CULTURA.SUL 86 - 13 NOV 2015

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Grande ecrã: d.r.

‘Três Irmãs’ de Bing Wang em Tavira Na senda da cultura:

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Redescobrir a Sé, miradouro privilegiado

Helder Guégués:

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Em Português, Se Faz Favor

Espaço ALFA: d.r.

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Viajar para fotografar ou fotografar em viagem?

Grupo de Amigos de Museu de Portimão, uma estrutura cívica em crescimento p. 10

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Sala de leitura:

NOVEMBRO 2015 n.º 86

Um abysmo de ‘nadas’

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

p. 8

7.590 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve


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13.11.2015

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Em Memória do Infante

Acesso à Cultura e ao Património Direção Regional de Cultura do Algarve

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

Faz hoje, 13 de Novembro, 555 anos que o Infante D. Henrique faleceu em Sagres. Ali mesmo onde fundou uma tercena naval, comummente conhecida por Escola de Sagres, expirou no ano de 1460, 66 anos depois de ter nascido na cidade do Porto, em 1394. Mais do que relembrar a personagem histórica ímpar e a sua profunda ligação a Sagres e ao Algarve - o que por si só não é de somenos - a verdade é que foi em navios cujos destinos foram traçados pelo Infante de Sagres que os portugueses se fizeram ao mar em direcção a muitas das paragens que tornaram Portugal um potentado das Descobertas. A estes destinos os navegadores levaram, sob o ‘protectorado’ do Infante D. Henrique, a cultura portuguesa e deles trouxeram para Portugal as mais diversas influências, fenómeno de permuta que repercutiu os seus efeitos à escala mundial. O Infante foi por esta razão um homem de visão não só para a expansão marítima de Portugal e para o reforço da posição do país durante séculos no mundo, mas também um dos grandes fomentadores da expansão da cultura e, muito em particular, da língua portuguesa por todo o globo. Deu ao velho mundo novos mundos e a estes a herança cultural do primeiro, de forma que marcou para todo o sempre a História da Humanidade. Incontornável, o Infante foi e é uma das figuras mais marcantes da cultura portuguesa enquanto fenómeno nacional e internacional, nesta medida a ele devemos em larga medida a grandeza do ser cultural português .

O património só tem significado pelo seu encontro com as pessoas. Há diferentes formas de explorar e discutir a questão da acessibilidade em património, em museus e nos bens culturais em geral. Por estes dias o centro desta discussão está em Castro Marim, na Casa do Sal, que acolhe o 4º Encontro Transfronteiriço de Profissionais de Museus, numa organização conjunta da APOM (Associação portuguesa de Museologia- delegação regional e da APPA - Associação de Museógrafos e Museólogos da Andaluzia), com o apoio da Direção Regional de Cultura do Algarve. Tornar o património acessível a todos pode representar dar prioridade à acessibilidade física mas também outras formas de compreensão e de experiência. Stephen Weil em 1999 a propósito do museu norte-americano dizia que o que era fundamental agora era: “From Being about Something, to Being for Somebody”. Tal como noutras questões, também nestas é muito difícil generalizar as soluções mais adequadas. Por vezes, a intervenção ne-

cessária pode ser mais temporária ou permanente, outras representam um grande desafio à criatividade, na medida em que se tem que conciliar a legislação, a conservação do património e as ideologias políticas dominantes destas áreas e, por vezes, torna-se mesmo impossível evitar impactes negativos sobre o património. A conservação do património procura adaptar-se às mudanças em termos de necessidades e valores da sociedade. Ao mesmo tempo, temos assistido ao desenvolvimento de soluções técnicas por parte do design, da arquitectura, das novas tecnologias. Outras vezes, é necessário algum amadurecimento em termos das opções a adoptar. O diálogo construtivo e a cooperação ajudam neste percurso. Existe hoje um movimento de âmbito internacional alargado, que reflecte sobre estas questões e preocupações. A nível nacional, constituiu-se um Grupo que se tem dedicado a estas reflexões e tem protagonizado ofertas formativas nestes domínios (até 2013 designado por GAM) agora Acesso Cultura (associação formal). Este grupo tem vindo a colocar as questões de acessibilidade no centro das preocupações e da reflexão dos museus portugueses e tem dinamizado diversos debates regionais.

No sector dos museus, uma das formas de contribuir para esta maior acessibilidade prende-se com a possibilidade de exigir o cumprimento das normas mínimas de acessibilidade no âmbito do processo de credenciação dos museus, conforme a ACESSO Cultura tem procurado. No seio da rede regional de Museus do Algarve esta é também uma preocupação que tem vindo a fazer parte dos fóruns de especialistas. Idealmente os objectos, as paisagens, os lugares que se constituem como património cultural e que resultaram da ação humana devem permanecer inalterados, contudo, a igualdade no acesso aos mesmos criou esta necessidade de ajustamento a necessidades e pessoas diferentes. Esta questão faz parte do natural desenvolvimento das democracias. Alguns destes locais são particularmente sensíveis face a novas intervenções e sobretudo a novas construções. Por vezes, a solução é criar espaços de interpretação fora desse património e manter o acesso limitado em monumentos de maior vulnerabilidade. Este é um desafio global não só dos museus, dos bens culturais, dos seus profissionais, mas também daqueles que têm a responsabilidade de promover a educação patrimonial. Quer os valores materiais,

drcalg

quer os imateriais compreendem a acessibilidade do património cultural. Os programas educativos e interpretativos no seio do seu desenvolvimento criam tensões e disputas em torno dos mesmos objectos, pelo que se torna essencial mais do que definir o “argumento” científico é necessário criar percursos de interação, que sejam potenciadores de novas dinâmicas culturais. Sabemos também que nem todas as melhorias em termos de acessibilidade requerem investimento financeiro. A participação de diferentes grupos nos mesmos espaços patrimoniais requer um estudo das melhores metodologias para a maior democratização

e subsequente acessibilidade junto de diferentes grupos de indivíduos. Com frequência é necessário olhar à especificidade do lugar e definir soluções específicas. A diversidade cultural e social é tão importante quanto a igualdade de oportunidades no acesso à cultura e ao património. Na base da actuação com vista a uma maior acessibilidade ao património deve estar uma análise cuidadosa do valor do património e considerar as consequências versus as alternativas para facilitar a decisão final e a opção de intervenção. A questão da acessibilidade deve ser abordada como um processo e não como um projecto. Os nossos esforços devem ser colocados em como encontrar formas de melhorar a acessibilidade do património e da cultura. A acessibilidade envolve movimento, visão e audição, e integração; envolve uma abordagem do lado do visitante. É importante o design, a educação e a formação e procurar conhecer o que já existe de melhores práticas. É um compromisso, não é uma opinião. Melhorar o acesso à cultura, aos museus e às colecções junto dos visitantes (ou potenciais visitantes) com necessidades especiais é um desígnio que deve ser partilhado por todos.

dois pescadores relembram algumas histórias do imaginário olhanense, com o mesmo humor e espírito crítico de sempre. Estreada em novembro de 2014, em Ferragudo, a peça Mê Menine… e a tu Mãe?, que esgotou em março no Auditório Municipal, obrigando a uma nova apresentação em outubro, voltou a encher a sala. De tal forma que se teve que anunciar um espetáculo extra para o dia a seguir. Tudo indica que não

fique por aqui. Para além de esgotar salas, as duas personagens Zé e Janica fazem sucesso na Internet. O último vídeo publicado, um excerto da peça apresentada em outubro, atingiu, em dois dias, mais de seis mil visualizações. Para além das duas peças referidas, estas duas personagens protagonizam a versão vídeo da iniciativa MOCE MÓ, que integra o J desde a sua primeira edição.

Imagem do percurso acessível na Fortaleza de Sagres

Juventude, artes e ideias

Mê menine… e a tu mãe? Jady Batista Coordenação do Jornal J

Depois do sucesso da peça Mê Menine... e o tê Pai?, que esteve em cena durante 6 anos e que percorreu o Algarve sempre com ca-

sas cheias, a GORDA surge uma nova peça que é uma sequela da anterior e que promete ter sucesso idêntico. Mê Menine... e a tu Mãe? é a mais recente produção da companhia olhanense, que conta com João Evaristo e Joaquim Parra como intérpretes. Na sequência da peça Mê Menine... e o tê Pai?, as duas personagens, Zé e Janica, voltam a encontrar-se, desta vez numa taberna de Olhão. Sentados à mesa, os

“OLHARES LACOBRIGENSES” Até 30 DEZ | 21.30 | Fototeca Municipal de Lagos O paradigma fotográfico vai mudando por força da evolução tecnológica e das abordagens diferentes que ela permite, a par das novas intuições sobre comunicação por imagem

d.r.

Os actores de mê menine... e a tu mãe?

“Concerto de VIVIANE” 14 NOV | 21.30 | TEMPO – Teatro Municipal de Portimão Viviane revisitará os temas principais que marcaram a sua carreira ao longo dos quatro CDs de originais já editados desde 2005


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt CICLO PARALELOS AUDITÓRIO DA ESCOLA SUPERIOR DE SAÚDE | 21H30 17 NOV | TAL PAI, TAL FILHO, Hirokazu Koreeda, Japão, 2013 , 120’, M/12

24 NOV | CÃES ERRANTES, Tsai Ming-liang, França/Taipé, 2014, 138’, M/12 SESSÃO EXTRA MUSEU MUNICIPAL | 18 HORAS 27 NOV | NATIONAL GALLERY, Frederick Wiseman, EUA/Fra, 2014, 180’, M/12 A TELA AOS SÓCIOS “EUROPA” - PEDRO MESQUITA SEDE | 21.30 HORAS 19 NOV | Benvindo Mister Marshall, Luis García Berlanga, Espanha, 1953, 78’ 26 NOV | Underground – Era uma Vez um País, Emir Kusturica, França/Jugoslávia, 1995, 170’ SEMANA CULTURA CIENTÍFICA CCMAR ANFITEATRO VERDE - UALG GAMBELAS 18.30 HORAS 18 NOV | O PESADELO DE DARWIN, Hubert Sauper, Áus/Bél/Fran/Ale, 2004, 107’

‘Três Irmãs’ de Bing Wang a não perder em Tavira Neste penúltimo mês de 2015 propomos mais um programa de grande interesse. Começámos com a primeira parte da trilogia de Miguel Gomes (Tabu e O Meu Querido Mês de Agosto). Na semana a seguir exibimos um filme relativamente desconhecido mas de grande interesse: Masaan, a primeira longa metragem de Neeraj Ghaywan. Não percam um dos documentários que mais me marcaram nos últimos anos: Três Irmãs, do realizador chinês Bing Wang. Junto aos meus colegas no júri da Federação Internacional de Cineclubes elegemos este filme como o melhor no Festival de Fribourg (Suíça) em 2013. Com Viggo Mortensen e Ángela Molina, Longe dos Homens é baseado numa história de Albert Camus, e em colaboração

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com

fotos: d.r.

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS 19 NOV | SAN ZIMEI - THREE SISTERS (TRÊS IRMÃS), Bing Wang – França/Hong Kong 2012 (153’) M/12 26 NOV | LOIN DES HOMMES (LONGE DOS HOMENS), David Oelhoffen – França 2014 (101’) M/12

28 NOV | SÅ MEGET GODT I VENTE GOOD THINGS AWAIT (COISAS BOAS NOS ESPERAM) Phie Ambo – Dinamarca/ Islândia 2014 (96’) M/12

Cena do documentário ‘Três irmãs’ com Apordoc, no sábado, dia 28, iremos exibir um documentário ecológico: Coisas

Boas nos Esperam. Belos filmes, a não perder no grande ecrã! Cineclube de Tavira

Na senda da cultura

Redescobrir a Sé, miradouro privilegiado fotos: ricardo claro

Lisboa pelo alemão Johann Heinrich Hulenkampf encontra-se decorado com pinturas em chinoiserie realizadas por um artista tavirense e apresenta três castelos e quatro nichos sobrepostos.

vista panorâmica única sobre grande parte da cidade e dos esteiros da Ria Formosa que se estendem a Sul até às ilhas barreira.

A vista é magnífica a partir deste ponto privilegiado, verdadeiro miradouro-mor da cidade.

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

Há locais que de tanto nos habituarmos a vê-los perdem a sua importância no conjunto das memórias que guardamos. Têmo-los por adquiridos... estão aqui mesmo, tão perto de nós que quase os ignoramos e assim se vão perdendo na penumbra da memória selectiva que temos. O ano de 1251 marca o início da construção da Sé Catedral de Faro, sobre o que antes teria sido a mesquita, depois um templo romano e ainda, mais tarde, um templo cristão da alta idade média. Mas Sé só se tornaria com a transferência do bispado para a cidade de Faro, assumindo o título honorífico em 1577. Repetidas vicissitudes ditaram a sua constante alteração ao longo dos tempos. Desde logo a pilhagem e incêndio pelos ingleses durante as invasões francesas e depois o terra-

moto de 1755. A Sé de Faro encerra um patrimóio de relevo à escala da região, desde logo com o retábulo-mor de características maneiristas e com o retábulo do antíssimo Sacramento de traça barroca que apresenta grande tribuna albergando um monumental trono piramidal. Os tectos de madeira profusamente decorados são suportados por colunas dóricas e albergam várias capelas laterais de diferentes e belas decorações, onde pontuam os azulejos decorativos evocativos da religiosidade. O órgão setecentista construído em

Mas o que se destaca na Sé Catedral é sem dúvida a torre da fachada de entrada, que antecede o portal principal do templo. Com três arcos ogivais em cada uma das fachadas expostas ao exterior a também torre sineira é o ponto mais alto de todo o conjunto da Cidade Velha de Faro e proporciona uma

Aos visitantes é ainda proporcionado o acesso ao Museu do Cabido Catedralício, onde várias imagens religiosas e paramentos podem ser observados a par de outros objectos de arte e de função ligados à religiosidade. Uma vista a não perder para redescobrir a Sé Catedral de Faro e reencontrar um dos monumentos notáveis da cidade e da região, refrescando a memória deste que é o nosso património, tantas vezes esquecido.


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13.11.2015

Cultura.Sul

Letras e Leituras

Crónicas do além: Lugar caído no Crepúsculo

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

João de Melo, autor açoriano, regressou ao romance cerca de oito anos depois de O Mar de Madrid (2006). No entretanto o autor não esteve parado, publicou um pequeno livro ilustrado por Paula Rego, intitulado O Vinho, cujo conto figurava na colectânea de contos As Coisas da Alma (2003) e uma novela, A Divina Miséria (2009), que configurava um retorno ao realismo mágico ou, como o autor prefere designar, etno-fantástico da sua obra O meu mundo não é deste reino e fechava de certa forma esse ciclo. O meu mundo não é deste reino (originalmente publicado em 1983), considerado por muitos a sua obra-prima, foi relançado pela Dom Quixote. A 8ª. edição deste romance

foi publicada em Junho deste ano, com a particularidade de ter sido também revista e reescrita pelo autor, nomeadamente no que concerne ao despojamento de certos regionalismos que podiam complicar a leitura de um romance que se quer fluído e universal. João de Melo trabalhou ainda durante cerca de uma década como conselheiro cultural na embaixada de Portugal em Madrid. Reformado do ensino, o regresso a Portugal significou um regresso e uma dedicação exclusiva à escrita, que antes apenas se fazia de modo sazonal, aos domingos, dada a intensidade da sua actividade profissional, e uma acutilante percepção crítica do estado da nação. Lugar caído no Crepúsculo foi publicado em Outubro de 2014 e à semelhança de O meu mundo não é deste reino o título parte de uma intertextualidade, desta vez não com o texto bíblico mas com uma citação que serve de incipit ao romance de Juan Rulfo: «Um lugar caído no crepúsculo, que é como quem diz, ali onde se

fotos: d.r.

João de Melo dedica a obra 'Lugar caído no Crepúsculo' à sua mãe nos acaba a jornada.». Estas são aliás duas constantes da obra do autor, cujo imaginário bebe da mitologia cristã (o autor estudou num seminário, à semelhança do protagonista de Gente Feliz com Lágrimas) bem como da literatura sul-americana. O livro é dedicado à mãe («À memória viva da minha Mãe. Na sua morte.») que, conforme expresso em entrevista ao Jornal de Letras, terá interrogado o autor a propósito do que a esperaria depois da morte. A obra divide-se em seis cadernos, onde se nota também a intertextualidade que se estabelece com A Divina Comédia de Dante. Os dois primeiros cadernos, «Assim na Terra como no Céu» e «O Peso da Alma», preparam o leitor para a viagem que se vai encetar, onde temos um protagonista, um ator famoso de nome Tomás Mascarenhas que nos narra as suas aventuras na primeira pessoa. O início da narrativa inicia assim de forma normal, com uma aturada descrição da cidade de Lisboa: «Encostando o ombro a uma esquina do velho Teatro Nacional, onde

tantas vezes fora aplaudido e ovacionado, pôs-se a ouvir o movimento surdo e enrolado da cidade. Viu as pessoas de sempre à conversa nos portais de acesso aos pátios e às lojas; outras a andar lado a lado nos passeios, com alguns pares de mãos dadas ou abraçados, felizes, a deslizarem por entre uma gente triste e calada que caminhava de olhos no chão; e outras sentadas nos cafés, saudando-se, despedindo-se, sorrindo ou não a quem passava; e ainda outras que entre si lamentavam o estado do negócio, de pé à entrada dos pequenos comércios (...).» (pág. 13). É apenas no segundo capítulo que se adensa uma certa confusão quando um magote de gente começa a querer cercar o ator, ao descer a Rua Augusta, e subitamente o impossível acontece: «Ao vê-la desprender-se do corpo e da bem-amada terra da sua cidade natal, e começar a subir aos céus, compreendeu que a alma se libertara de dentro de si e voava sozinha no ar, sob o firmamento de Lisboa.» (pág. 21). Neste primeiro caderno, constituído por apenas dois breves capítulos, a personagem parece incerta da sua condição, pois só nesta passagem nos apercebemos de que o que antes foi descrito como banal e quotidiano ganha laivos de fantástico em que provavelmente a sua descrição de

Lisboa era já feita a partir de um outro plano. Ainda a propósito do realismo mágico, a própria obra procura deixar bem claro ao leitor como categorizar esta narrativa ou os eventos que nela se narram quando a personagem se interroga: «"Isto só podem ser coisas da literatura", pensou então. "Outra vez o realismo mágico ou fantástico a apartar-me da minha própria pessoa (...). E como posso eu estar aqui a pensar, a dizer tudo isto, se afinal a minha alma se foi embora de mim e eu continuo vivo e de pé em terra, com a boca aberta, cheia de espantos, a assistir a semelhante desvario?"» (pág. 22). Nos cadernos que se seguem e que de certa forma redefinem o Além entre Limbo, Purgatório, Paraíso e Inferno, haverá outras personagens a narrar cada um desses espaços a partir da sua própria perspectiva. Curiosamente, um desses espaços acabará por ver anulada a sua existência no decurso do romance, num dos momentos-chave da narrativa, em que a figura de Deus parece irromper até que se percebe que é afinal o Sumo Pontífice (Deus permanecerá oculto nos seus recantos divinos) que vem decretar a extinção do Limbo – à semelhança do que aconteceu efec-

tivamente com o Papa Bento XVI em 2007. É deliciosa essa passagem: «De repente, foi um fragor no céu a abrir-se, a rasgar-se como um imenso manto de seda estendido por cima das nossas cabeças. Despertou-nos da indiferença e do abatimento em que nos encontrávamos. Qual relâmpago feroz, ou bicha faiscada de luz a descoser o firmamento, uma fenda de claridade encheu-nos de tal modo o olhar, que quase nos cegou a brancura da sua intensidade. Caímos dos nossos nichos baixo. Tombámos como pesos mortos, uns por cima dos outros. (...) Parecia uma ressurreição.» (pág. 71). Apesar do humor e da ironia a que nos habituara já noutros romances, o autor mantém um tom sério no retrato que procura fazer tanto da realidade do país como desses vários planos sobrenaturais da existência. Baseando-se na tradição e na imagologia cristã, mas nem sempre os respeitando (como quando descreve o Inferno como uma superfície desolada toda coberta de neve, situada na outra margem de Lisboa), o autor parte ainda de outras referências da tradição popular e da própria literatura portuguesa que, noutras épocas, contribuiu também para imaginar como seria a vida depois da morte. Outro dos momentos altos dá-se quando percebemos que quem tenta colocar ordem na confusão que reina na barca que zarpa do Cais das Colunas, pelo Tejo acima, é o Mestre Vicente – o clássico autor da trilogia das barcas. Apesar de este livro poder ter na sua génese o falecimento da mãe, o autor não se limita a interrogar aspectos metafísicos da existência humana pois as questões que se levantam estão sobretudo ligadas à condição de se estar vivo e por que valores se deve conduzir a nossa existência. Desta forma o autor disserta sobre várias profissões, como corruptos corretores da Bolsa, coloca os artistas no Paraíso, os ditadores no Inferno, bem como os assassinos, os burlões, e toda a «grossa ladroagem dos dinheiros públicos» (pág. 224). Uma fabulosa efabulação da vida que nos espera para além da vida...


Cultura.Sul

13.11.2015

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Espaço AGECAL

O culto dos mortos: o 'pão por Deus' e outras tradições de 1 e 2 de Novembro fotos: d.r.

Catarina Oliveira Arqueóloga Sócia da AGECAL

Existem dois grandes períodos festivos anuais: o ciclo da Primavera/Verão, marcado pela abundância alimentar, decorações florais evocando a renovação da natureza, com a presença de crianças e jovens; e o ciclo de Outono/Inverno, caracterizado pela intensificação da relação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, manjares cerimoniais e culto dos antepassados. (Clara Saraiva em Festas e Tradições Portuguesas, 2002) O Dia de Todos os Santos e o dos Fiéis Defuntos ou dos Finados (1 e 2 de Novembro), que o povo sempre unificou, inauguram o Ciclo do Inverno, dedicado à celebração dos antepassados. Ainda hoje se fazem romagens aos cemitérios, limpam-se as campas, colocam-se flores e acendem-se lamparinas. “No dia dos finados à noite fazem-se grandes fogueiras nas praças, nas encruzilhadas das ruas. As mulheres velam aí e rezam pelas almas”. Escrevia no início do séc. XX J. Leite Vasconcelos. Era costume nalgumas zonas do país acenderem-se fogueiras em honra dos mortos, comerem-se castanhas e beber-se vinho à roda do fogo. O magusto com castanhas é uma das práticas alimentares que caracteriza este período que vai até ao São Martinho (11 de Novembro). Os

O tratamento e manutenção das campas nos cemitérios é uma tradição no país magustos de 1 e 2 de Novembro são mais frequentes no Norte do país, rareiam no Alentejo e Algarve, mas aparecem na zona serrana de Monchique, onde além da castanha se comia também a batata-doce e se bebia aguardente de medronho. Noutras regiões subsistia o hábito de à meia-noite de 1 para 2 de Novembro se pôr castanhas na mesa para os entes falecidos comerem durante a noite. Enquanto a Páscoa e o Natal são épocas de ofertas, os “Santos”, bem como as Janeiras ou os Reis, são períodos de peditórios. As crianças iam de porta em porta pedir o “pão por Deus”. Acredita-se que por cada bolo oferecido se libertava uma alma do seu penar. Recebiam

no saco, nozes, castanhas, romãs, figos secos. Registava Veiga de Oliveira em 1984: “No Algarve (…) cozem-se para o dia pequenas broas especiais, de farinha milha, que se comem e constituem o principal donativo tradicional que se faz às crianças que andam a pedir”. Em Odeceixe as crianças, ricas e pobres, correm as casas, cantando às portas em melopeia: B’linh’, b’linh’, P’r alma d’ sê d’funtinh’! Broa, broa. P’r alma da sua c’roa! E as pessoas dão-lhes as broas, e também castanhas, com que elas fazem magustos nos campos. Na Mexilhoeira Grande, as crianças andam pelas portas, desde o dia 1 até ao dia 12, mais ou menos, pedindo: Bolinho, bolinho, Pela alma do defuntinho. E recebem, por exemplo, amêndoas, castanhas, figos, pão (se são pobres), broas, etc. Registava J. Leite Vasconcelos na sua Etnografia Portuguesa, vol. VIII no início do séc. XX. Em Santa Catarina da Fonte do Bispo o “bolo dos Santos” era oferecido pelos padrinhos aos afilhados.

dias, acredita-se que as almas vêm à terra visitar os lugares que habitaram em vida, por isso se fazem bolos destinados às almas, peditórios, mesas postas para os defuntos e oferendas alimentares a par de luminárias sobre as campas. As crianças que andam de porta em porta pedindo pão por Deus parecem representar as almas dos mortos que erram pelo mundo e por isso dar-lhes pão equivale a dá-lo às almas. Também os magustos que se fazem nesses dias constituem reminiscências de sacrifícios ou cerimónias fúnebres rituais que tinham lugar no dia consagrado aos mortos e que envolviam ofertas alimentares às almas dos mortos familiares. A crença que os mortos têm influ-

ência no mundo dos vivos constitui um dos principais fundamentos de todas as crenças religiosas, sublinha o historiador José Mattoso em “Pressupostos mentais do culto dos mortos” (1997). Alguns rituais destinam-se a intervir positivamente no processo de passagem da vida para a morte. A celebração do dia dos finados, entre outros costumes (oferendas, ornamentação do túmulo, preces pelas almas, os banquetes em memória dos defuntos), procura garantir um destino mais feliz e tranquilo para o morto, ou, sendo os mortos considerados protectores dos vivos, garantir a sua benevolência para os vivos e o caminho da salvação para aqueles que os lembram e veneram. A progressiva implantação do “Halloween” ou Dia das Bruxas em Portugal, uma tradição anglo-saxónica, constitui, como alerta a Direcção Geral do Património Cultural, uma ameaça à continuidade do “Pão por Deus” e das restantes práticas e crenças que marcam estes primeiros dias de Novembro. O carácter manifestamente comercial do “Halloween” artificializa e descontextualiza manifestações comunitárias antigas, eliminando expressões orais e conotações religiosas e simbólicas presentes na tradição do “Pão por Deus”, que remetem para a ancestral relação do homem com a morte e com os seus antepassados. Não terão neste período festivo, escolas, autarquias, museus e outras entidades de natureza educativa e científica, a obrigação de prioritariamente conhecer, estudar, preservar e promover o nosso património imaterial e a identidade cultural do País?

Mas qual o significado destes rituais?

Bolinhos característicos do 'Pão por Deus'

Segundo E. Veiga de Oliveira em Festividades Cíclicas em Portugal, a crença na sobrevivência da alma, no seu retorno periódico à terra e sua intervenção nos acontecimentos humanos encontra-se em todos os povos e em todas as épocas. Nestes

Sacolas ainda hoje utilizadas em algumas zonas pelas crianças para pedirem o 'Pão por Deus' porta-a-porta


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13.11.2015

Cultura.Sul

Artes visuais

Qual a importância da cor nas artes visuais? (do século XX à atualidade)

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

AGENDAR

No último número analisámos alguns dos principais contributos ocorridos até ao século XX para compreender a importância da cor em artes visuais. Neste número vamos analisar alguns dos principais contributos ocorridos desde então. Conforme refere Guinle, “não se trata da cor das coisas, mas das coisas que surgem da cor” (2010). Por exemplo, em Matisse não é um corpo que é azul, mas um azul que se mostra como figura. Quando “desenhou” com a tesoura o seu “Nú Azul IV” (1952) não coloriu um contorno, não havendo linhas a delimitar o seu trabalho. As colagens de papel azul formaram um todo, insinuando uma figura, sendo a forma ganha através da cor do papel colado que se destaca do fundo branco. Uma vez que não se trata de uma propriedade do objeto, mas sim de um elemento perceptivo, a cor é um fenómeno subjetivo e individual, pois um mesmo comprimento de onda pode ser percebido diferentemente por diferentes pessoas. Nesse sentido, a Psicologia tem também estudado a cor, não só em termos da percepção, mas também em termos de representação ou significado da cor. Embora dependa de fatores culturais, em geral o vermelho está associado à emoção, o amarelo à concentração e disciplina, o verde à esperança, o azul à serenidade, o branco à pureza e o preto ao luto. Sobre o efeito psicológico das cores, foi na Alemanha, país de Goethe, que foi realizada aquela que é considerada uma das principais investigações neste âmbito.

Trata-se do trabalho “A Psicologia das Cores. Como atuam as cores sobre os sentimentos e a razão”, da autoria de Eva Heller (2007). Nesta investigação, em que participaram 2.000 alemães, procurou-se conhecer as impressões e sentimentos associados a cada cor. Este estudo revelou que o azul é a cor mais apreciada, sendo considerada a cor da simpatia, da harmonia e da fidelidade. O vermelho seria a cor das paixões, do amor ao ódio. O verde representa a fertilidade e a esperança. O amarelo parece ser a cor mais contraditória, podendo significar otimismo, mas também ciúme. Também ambíguo se revela o rosa, pois pode significar doce e delicado, mas também escandaloso e ridículo. O preto também se revela uma cor paradoxal pois, embora esteja associado à violência e à morte, é a cor preferida dos jovens e também está associada ao poder. Por seu turno, o branco seria a cor da inocência e pureza, o laranja está associado a diversão e o violeta está associado ao feminismo e ao movimento gay, mas também pode significar magia. O

dourado significa luxo, felicidade e dinheiro, enquanto o prateado está associado à velocidade e também ao dinheiro. Por seu turno, o cinzento está associado ao tédio e a ser antiquado. Por último, o castanho, embora seja a cor menos apreciada, está associado com algo acolhedor. Recentemente têm sido também realizadas investigações no âmbito das neurociências que revelam a importância da cor no reconhecimento de objetos (Bramão, Faisca, Petersson & Reis, 2010; Bramão, Inácio, Faisca, Reis, & Petersson, 2010). Além disso, verifica-se que os objetos coloridos, quando comparados com objetos a preto e branco, ativam uma maior extensão de redes cerebrais relacionadas com a ativação visual-semântica (Bramão, Faisca, Forkstam, Reis, & Petersson, 2010). Uma outra descoberta interessante ocorrida no âmbito das neurociências diz respeito ao facto da amígdala, considerada a área emocional do cérebro, responder mais fortemente a imagens desfocadas do que focadas (Vuilleumier,

Obra “ATN 13”, de Yves Klein (1960) “DIVERSIDADE DE OLHARES” Até 12 DEZ | Galeria de Arte da Praça do Mar - Quarteira O Círculo de Animação Cultural de Alhos Vedros traz a Quarteira uma embaixada de artistas que apresentam os seus trabalhos dentro da pintura, desenho e fotografia

fotos: d.r.

Obra “Nu azul IV”, de Henry Matisse (1952) Armony, Driver & Dolan, 2003). No entanto, as investigações em neurociências ainda não se centraram sobre aspetos especificamente ligados ao reconhecimento e valorização de obras de arte, podendo ser um domínio de investigação a ser desenvolvido no futuro. A cor continua a ter uma importância fundamental nas artes visuais. Por exemplo, em termos de química da cor, destaca-se o trabalho do artista Yves Klein, pois em 1960 registou a composição química do IKB (“International Klein Blue”) no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, com o número 63471. A partir daí, a quase totalidade dos trabalhos de Klein utilizaram essa cor, na pintura, na escultura e nos seus “pincéis vivos”, passando esta cor a ser o aspeto central dos seus trabalhos artísticos. Numa das performances que produziu (“Antropometrias da Época Azul”), na Galeria Internacional de Arte Contemporanea de Paris, Klein, vestido de smoking, durante 40 minu-

tos aplicou tinta azul sobre três mulheres nuas, para de seguida se encostarem, como “pincéis vivos”, às telas penduradas, enquanto a orquestra tocava a “Sinfonia Monotónica” de Klein (20 minutos de som contínuo ininterrupto, seguido de silêncio de igual duração). A cor assumiu uma enorme importância no trabalho de muitos outros artistas, quer do designado movimento minimalista, quer do expressionismo abstrato. No âmbito deste último movimento, destacamos o trabalho de Barnett Newman que chega mesmo a “provocar” o observador para a sua relação com as cores, na série de trabalhos que intitulou “Quem tem medo de vermelho, do amarelo e do azul?” (1966-67), usando grandes áreas de cores saturadas interrompidas por estreitas faixas verticais de outras cores, a que ele chamou “zips”. Na atualidade, um dos artistas que estuda o fenómeno da cor, associado a outros conhecimentos da ciência e da tecnologia, é

Olafur Eliasson. Tem um “laboratório de investigação espacial” em que trabalham vários cientistas, engenheiros e artistas para conceptualizarem, testarem e construírem esculturas e instalações de larga escala, com um aproveitamento das potencialidades da luz, da água ou da temperatura para aumentar a experiência sensorial do público. Eliasson tem vindo a desenvolver diversos projetos com densidade atmosférica em espaços de exposição. No trabalho intitulado “Sala para uma cor” (1998), criou um corredor iluminado por tubos amarelos, fazendo com que os participantes se encontrem numa sala cheia de luz que afeta a percepção de todas as outras cores. Por seu turno, na instalação “Sala de 360º para todas as cores” (2002), é apresentada uma escultura de luz intensa que leva os participantes a perderem a sensação de espaço e perspetiva. O seu projeto mais conhecido foi realizado em 2003, pois instalou “O projeto do tempo na parede da turbina” na Tate Modern, em Londres, tendo usado humidificadores para criar uma névoa no ar em que circulava uma mistura de açucar e água, bem como um disco semi-circular com centenas de lâmpadas de luz monocromática que irradia uma luz amarela, para além de ter coberto o teto do salão com um espelho no qual os visitantes podiam ver-se como pequenas sombras negras envoltos por uma luz laranja. Mais recentemente, em 2010, criou a instalação “O teu passageiro cego”, em que, num túnel de 90 metros de comprimento, o visitante é cercado por uma densa neblina, com visibilidade apenas a 1,5 metros, tendo que usar outros sentidos além da visão, para se orientarem no espaço à sua volta. Estas últimas instalações revelam que a arte faz cada vez mais apelo a outros sentidos, que não apenas a visão, fazendo com que a importância da cor seja por vezes diluída por outros aspetos presentes nas obras realizadas.

“VIII FESTIVAL DE ÓRGÃO” 14 NOV | 21.30 | Igreja da Sé em Faro O organista Marco Brescia é frequentemente convidado a actuar em prestigiados festivais e ciclos internacionais de concerto na Europa e América


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Momento

Encantador de gaivotas Foto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Viajar para fotografar ou fotografar em viagem?

Vera Silvestre

Membro da ALFA

A qual dos dois grupos pertence? Ao das pessoas que viajam e perpetuam memórias com uma fotografia? Ou ao grupo que viaja com o intuito de fotografar? Muitos de nós aliam os dois prazeres. O turismo e a fotografia são atividades acessíveis. As fronteiras têm-se diluído e os preços das viagens baixado. O equipamento fotográfico e as tecnologias evoluído. Já se faz arte fotográfica com um telemóvel. A fotografia transmite um mundo visível e sentimental, de sensações, de vivências e de riqueza de um olhar. Fotografia de viagem ou de um passeio regista um momento que queremos preservar. Quem não parou já diante de uma fotografia porque lhe desperta o interesse? É porque ela lhe despertou um sentimento.

Muitos fotógrafos têm imagens de África e da Índia. Normalmente são imagens onde o olhar se perde e fica. As paisagens fazem-nos viajar. Uma cidade pode ter o mesmo efeito, pode prender-nos e fazer-nos sonhar. O Algarve é rico em temas para fotografar. O litoral tem as praias e o interior tem o rural para descobrirmos as histórias vividas. Registe os momentos com um clic. Aborrece-lhe ir sozinho? Há associações que fazem passeios para partilhar conhecimentos, tais como a ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve, a A-NAFA - Associação e Núcleo de Amigos Fotógrafos do Algarve e o Racal Clube de Silves. Há empresas que organizam viagens para fotografar, como a Fotoadrenalina, a Papa-Léguas e a Flandria. São viagens acompanhadas por um fotógrafo profissional. Quer inspirar-se? Pode ler relatos de viagens de Gonçalo Cadilhe, Nuno Lobito e até de Miguel Sousa Tavares e ver fotografias de Joel Santos. Planeie onde quer ir com tempo para criar intimidade com a fotografia. Traduza essas sensações em imagens. As fotografias têm o poder de ser sentidas e fazerem sentir.

Fototurismo Lisboa Foto de Vera Silvestre


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Sala de leitura

Um abysmo de “nadas”

Paulo Pires

Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

Duro, reflexivo e (des)apaixonado. Assim se revela este punch em forma de livro de Paulo José Miranda [PJM] publicado pela abysmo e vencedor, em 2015, do Prémio Autores para Melhor Livro de Poesia, da Sociedade Portuguesa de Autores. Para exercício inicial o poeta escolheu uma metáfora do (derradeiro) fim: o penalti, bem marcado, em que a vida vai para um lado e o humano para o outro. E logo aí como que o mote desta obra: um inexorável “abysmo” entre esse humano e a vida, uma rima que se afigura impossível. A existência humana surge prefixada por essa contrariedade inevitável, por esse “des” dissonante e anulador que emerge como denominador comum (que não descola da palavra primitiva): desamparo, desencanto, desencontro, descrença, desilusão, desconhecimento… Existe uma espécie de beco sem saída, pois “o desânimo aumenta apenas por duas razões / ou porque nada muda / ou porque tudo muda” (itálico nosso). PJM apresenta-nos o humano como aquele que atingiu finalmente o estatuto de “ninguém” ou, se se quiser, de “alguém” a caminho das coisas, que está sempre aquém de. Não chega/chegou a ser, e essa incompletude “será para sempre // uma maldita praga ancestral”. Ele está condenado a viver nesse limbo, nesse impasse, nesse vazio paralisante e indefinido: de um lado “a resistência da matéria”, do outro “a acção do espírito”, “encurralado entre sonhos e um cobertor”. A esperança é uma miragem e, que nem “ponte de carne esticada entre dois promontórios” (“Exercício 59”), só parece restar ao humano “o precipício em baixo e o nada em cima”. A metáfora do “rio poluído” é bem ilustrativa desta mundividência, como se lê no “Exercício 34”. A vida sur-

Paulo José Miranda, in Exercícios de Humano

que se refugiam ilusória e superficialmente na ideia de “matar o tempo / ó lá lá / com uma canção doce e a palavra amor”. Por outro lado, certos versos fazem entrever uma espécie de paliativo, ou melhor, um mecanismo de protecção face a essa perversa tendência dominante, de modo a salvaguardar a individualidade e integridade humanas: “precisamos de esquecer / esquecer humanos que nos es quecem” (neste sentido: olvidar, tanger, secar). É a apologia de uma certa “amnésia” voluntária para lidar com os já referidos monstros, com as ervas daninhas do dia, com a pequena e escura satisfação do dia, parafraseando o poeta. Deve, contudo, exceptuar-se desse apagão o instante iniciático/ Um punch poético, por Paulo José Miranda nascimento, para o tempo da “alegria fininha cente. Essa silhueta dos dias que a consciência da queda / que permitia aos humanos convoca-nos, na poesia do se não perca: “a primeira noipassarem em todos os luga- primeiro vencedor do Prémio te do mundo” (“Exercício 93”), res / até nos mais apertados Literário José Saramago (1999), em que o “não se saber nada que alguém possa imaginar”, para as questões do lugar da e um choro profundo” foram é o lugar majestoso do (dual) humanidade e da violência o augúrio de um destino que, “inexistente e omnipresente (no sentido de um desprezo metaforicamente, se poderia deus”. O humano assemelha- pela vida humana) na socie- traduzir numa vela que per-se muito mais a esse ontem, dade contemporânea, dado deu a chama. E a poesia do humano? Entre do que ao agora ou ao ama- o confessado fascínio de PJM nhã – ou àquela areia que nos pela observação do humano, os “escombros do homem”, a fugiu entre os dedos. E “até o que, nas suas palavras, “faz escrita poética (que, para PJM, vento lá fora / que quando es- história deixando sempre um é – ao contrário do que se poderia pensar – o que é e não cutamos sempre já passou / rastro de violência”. Ao abordar a questão da o que poderia ser, ao invés da sabe muito bem disso”. Pelo meio reina a estupi- alienação do/no humano o vida) emerge como salvaçãodez, que é definida nestes escritor nascido na aldeia de -revolução, como força que termos: “uma raça um povo Paio Pires (Seixal) não des- oxigena esse “tempo de nada um planeta que só pensa carta, como é notório, a iro- e de ninguém” e que resiste à numa fracção de segundo / nia como ácido retórico da resignação, ao imobilismo, à aquela em que se vem ou em sua escrita, como ao aludir decadência. A palavra assume que mija em cima de outro”. aos que morrem pelo menos assim uma função criadora, Aliás, o tema da alienação é uma vez na vida, aos que não epifânica, primitiva, iniciátirecorrente nesta obra, não querem enfrentar a realidade ca, como origem e sentido de insistisse PJM tanto na visão de frente, aos que preferem todas as coisas, e o seu desdo mundo actual como jogo não pensar em nada, aos que tinatário, o leitor, ainda que simultâneo de prazer e indi- decidem simplesmente deitar “habitando uma inexistente ferença, como confessou mes- a vida fora porque “é domin- paz”, surge como uma espécie mo numa entrevista reww- go é verão é de novo”; ou aos de herói bafejado pela sorte de d.r.

ge como sinónimo de fome e é esta a sentença eterna dos dias. Estamos sempre deficitários e diminuídos, e só a morte, esse “pó imprestável”, se afigura como horizonte visível (e possível) – mesmo aquelas mortes que nos dão nesta vida e que o humano devia aceitar, como ironicamente aconselha PJM. PJM insiste muito na ideia de um humano que sai do útero maternal (nascimento) e, abandonado (é esse o limite imposto), se precipita no abismo que desemboca na terra-mãe (morte). Há uma mãe de onde caímos abaixo, pois “a expulsão de nós mesmos / já era desde sempre um acontecimento inevitável”, e outra que nos espera, pois “o futuro é um apêndice de nós / e como um cordão umbilical será cortado”. A “lâmina afiada” que conferiu identidade e liberdade ao humano é a mesma que, paradoxalmente, o acaba lançando nos estômagos dos “monstros” que, ao longo da vida, lhe tolhem o fôlego, a essência, o ser. O saldo existencial é negativo, nivelado por baixo, definido por defeito ou exclusão: “somos somente o bem que fica / de todo o mal que nos quiseram” (“Exercício 79”), e, mais uma vez, a visão não resiste à crítica implícita de um certo modo perigosamente conformado e pessimista de contabilizar o mundo e o humano, isto é, focarmo-nos mais nas coisas que deixámos de fazer do que nas que efectivamente fizemos. E PJM relembra-nos que o que dói mais ao humano não é tanto a perda de algo que parece ter “morrido na praia”, mas sim a consciência infinita disso, “a fragância de uma flor que nunca morre”. Escreve-se assim a “impossibilidade / de a vida ser de outro modo”, feita – “com a lâmina do relógio” – de exploração e usurpação do humano e do seu passado, presente e futuro. O antes é um bem subtraído pelo tempo (que “nos faz escravos” a “contar as coisas que se deixou de fazer”) e pela noite, e agora “tudo cabe num pequeno vaso”: “um sentimento bom por outrem”, “as forças que há vinte anos ainda atravessavam o rio” ou “uma carícia [que já] não aumenta o caudal das águas”. O passado é

como se morrer não fosse suficiente ainda temos de viver

encontrar esse oásis que parece ter resistido à destruição geral. Esse verbo é, também por isso, para o humano uma espécie de inquietante consciência sobrevivente do sentido e destino de si mesmo e do mundo, a qual seria porventura mais fácil “ignorar esplendorosamente / e correr e saltar / ou apenas não acreditar sequer numa única palavra que [se] leu”. Mas o que resta ao humano é somente essa derradeira palavra que intenta iluminar o indecifrável e captar aquele fio invisível que une as coisas, arranhando “de algum modo o que não se consegue saber”. Porque o poema – que para PJM “é a necessidade de sermos / nos olhos de outro” – revela(-se) pela interrogação que instaura e pela aproximação que intenta, e não pela afirmação e iluminação de algo. Por isso, PJM avisa-nos para não esperarmos da poesia “um verde pasto de respostas / mas um pântano do que se não sabe”. Pois é o mistério, a ocultação, que dá corpo aos dias “como uma infinita voz” a que o humano não acede. No remate da obra PJM recorda-nos a evidência mais escamoteada: “somos ilhas uns dos outros”, pois, no fundo, não nos conhecemos nem a nós próprios nem ao(s) outro(s), vivendo numa familiar estranheza, numa hipócrita proximidade, num entendimento aparente (o desencontro e o desligamento mais uma vez). O humano (sobre)vive sem memória do passado, sem consciência do hoje/aqui/agora e sem expectativa face ao que está por vir, numa amálgama indiferenciada e difusa de “nadas” onde experimenta a solidão porventura mais dolorosa: no meio da multidão. PJM atira-nos com uma poesia sem grandes ilusões ou promessas de felicidade: nós nascemos, vivemos e morremos sozinhos. Resta ao humano a “consolação” de captar a loucura do outro (mas não o sentido deste), numa fronteira frágil e ténue, “por centímetros”, entre as duas dimensões; e na certeza de que, segundo o poeta, há três máximas que sempre farão rir o universo: “tempo é dinheiro”, “deus existe” e “a matemática descreve o mistério”.


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Novembro E agora é o acaso quem me guia. Sem esperança, sem um fim, sem uma fé, Sou tudo: mas não sou o que seria Se o mundo fosse bom — como não é!

O céu não existe

Lua de Marfim

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Nestas tardes fotos: d.r.

Fandango

O vento puxa as nuvens que à sua passagem choverão, ou não, sobre as horas que estão indicadas no relógio biológico de cada ser. Ao mesmo tempo mas em lugares e percepções diferentes para cada observador de céu. P - Mas como pode o céu ser ou estar azul, nublado, cinzento, escuro, estrelado…. se não há verbo ? R - Porque não existe.

Benjamin Clementine

Nestas tardes acabando tão cedo nos dias de fecharem a luz às horas da estação, resta-nos a consolação das manhãs abrindo cedo a claridade útil de nos fazermos ao caminho deste tempo apoucado em si. E embora os carros de castanhas assadas já estacionem por aí nas ruas das cidades, esperamos sempre que o S. Martinho nos traga por uns dias - os seus dias de verão, para já outono dentro nos despedirmos dos dias quentes.

António Aleixo No mês da morte do poeta, chega à vida portuguesa uma ténue renovação de esperança para os idosos e os reformados.

AGENDAR

Forçam-me mesmo velhote, de vez em quando a beijar a mão que brande o chicote que tanto me faz penar.

Ajuda os meus passos (walkman) a 37º N e toca nos meus ouvidos (headphones) o tema «Algarve» uma das faixas do álbum Fandango, nome que também designa o projecto, exploratório - como já nos habituaram – os músicos Gabriel Gomes e Luís Varatojo.

Palavra Ibérica O evento «Palavra Ibérica» regressa e decorre em Punta Umbria, Andaluzia, a 13 e 14 de Novembro. Conta com a participação de autores do Algarve, como Fernando Pessanha, Fernando Esteves Pinto, Vítor Gil Cardeira, Pedro Jubilot, Rute Castro e Paulo Moreira, que apresentarão os seus mais recentes livros. “MÚSICA FRANCESA” 14 NOV | 21.30 | Centro Cultural de Lagos O maestro titular da Orquestra Clássica do Sul, Rui Pinheiro, irá conduzir um concerto que integra suites e sinfonias de três grandes compositores franceses: Rameau, Chabrier e Gounod

A editora sediada na Amadora deu à estampa no final de outubro três livros com autores que vivem no Algarve e que a partir daqui desenvolvem a sua actividade, mostrando assim a sua atenção e interesse pela animada cena literária a sul. «Curt’Os Contos» de Paulo Moreira e de Gabriela Rocha Martins - «Artroses Nozes e Vozes (com)Sentidas». E ainda a antologia de contos ilustrados « 7 Contos Ilustr.s», com prefácio de Miguel Real, onde participam os autores António Manuel Venda, Fernando Esteves Pinto, Paulo Kellerman, Paulo Moreira, Vítor Gil Cardeira, Fernando Pessanha e Pedro Afonso. Nas ilustrações encontramos José Bivar, Paulo Serra, Gilda David, Inês Ramos, Reinaldo Barros, Sara Ceriz e Adão Contreiras.

Ainda da natureza de Albufeira

Pelas mãos ao piano, e de uma voz nascida em Londres de pais ganeses e revelada em Paris - Benjamin Clementine, o homem que já esteve só numa caixa de pedra e agora tem uma legião de fãs rendida ao seu talento, soltará as canções de «At Least For Now», recentemente nomeado na categoria álbum do ano dos Mercury Prize. Ainda bem que temos esta poesia e música para vivermos numa realidade parada, o sonho de que todos temos cada vez mais medo. No Teatro das Figuras em Faro, 28 de novembro.

As imagens que chocaram o país no passado dia 1, serviram (apenas?) para encher os noticiários de umas dezenas de horas e muito provavelmente serão esquecidas em breve, assim como é esquecido o respeito que se deve ter pela história e património natural. Cada vez é mais certo que o mundo - esta nossa terra - irá por água abaixo e não faltará assim tanto. Mas a maioríssima parte de nós - os pequenos poluidores, não tem capacidade para perceber como menorizar esse efeito melhorando o mundo dos seus netos. Já os grandes poluidores, nem sequer pensam nos filhos, e se calhar teriam mais capacidade para tornar tudo menos propício ao fim…

“NA PONTA DA LÍNGUA” 21 NOV | 21.30 | TEMPO – Teatro Municipal de Portimão O humorista Salvador Martinha regressa com tudo sabido e de resposta sempre pronta, usando a sua linguagem muito própria que já originou expressões como ‘pussy’ ou ‘raton’


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Espaço ao Património

Grupo de Amigos de Museu de Portimão, uma estrutura cívica em crescimento!

Daniel Cartucho

Cirurgião do CHAlgarve Presidente do Grupo de Amigos do Museu de Portimão (GAMP) amigosdomuseudeportimao@ gmail.com

No Sábado passado, vindo de um compromisso prévio, entro no Museu de Portimão, no seu espaço de restaurante onde a tertúlia já começara e vejo cerca de 50 pessoas, de todas as idades, à volta de mesas num animado debate. Tratava-se da apresentação, em forma de tertúlia, de uma iniciativa que tomou forma recentemente aqui bem perto, na margem do Rio Arade, oposta ao Museu: as conservas artesanais de peixe da “Saboreal”. Num museu que dedica à indústria conserveira um amplo espaço, tem todo o sentido a apresentação das formas actuais do empreendorismo neste campo, o provar dos produtos, bem como a conversa que se gera em torno das conservas. Ouvimos, a título de exemplo, que em Portugal são raras as conservas, sobretudo de peixe, em frasco de vidro. E que esta opção actual é um retorno ao início das conservas quando, em França, para alimentar as tropas de Napoleão, Nicolas Appert acondicionava as conservas em vidro, de garrafas de champagne. Uma referência histórica apropriada ao local onde estávamos, acrescentava-se uma nota de cultura aos sabores que nos estavam a ser propostos. Tratou-se de uma reunião inserida numa programação periódica onde o Grupo de Amigos do Museu de Portimão (GAMP), em conjunto com este Museu vem assegurando. A constituição do GAMP começou em 2014 com uma reunião, a Assembleia Geral Constitutiva, onde um grupo de cidadãos deliberou a constituição de uma associação cívica de carácter cultural, sem fins lucrativos, com o objectivo de valorizar, dinamizar e promover o Museu de Portimão, nas suas valências e missão museológica. Asso-

ciação constituída nos termos dos seus estatutos, por tempo indeterminado. Tratou-se de uma iniciativa da sociedade civil, de apoio aos seus Museus, a exemplo de outras Associações já existentes a nível nacional e internacional. De facto, Grupos de Amigos de Museus são associações sem fins lucrativos, constituídos por pessoas individuais ou colectivas que desenvolvem iniciativas e actividades em prol do estudo, inventário, preservação e valorização dos bens imóveis e móveis geridos pelas entidades museológicas e patrimoniais, e das quais já existem com alguns bons exemplos no Algarve. Do conjunto de linhas programáticas do GAMP verificamos que esta associação propõe em estreita colaboração com a direcção do Museu, quatro grandes objectivos: 1 - Na concretização e desenvolvimento das suas actividades; 2 - Fomentar o conhecimento público do Museu de Portimão, nas suas valências culturais e científicas; 3 - Promover o enriquecimento do acervo do Museu de Portimão e o seu melhor apetrechamento em meios técnicos de trabalho, nomeadamente de bens museográfico, científicos, didácticos, arquivísticos, laboratoriais e bibliográficos, em parceria com o Município de Portimão e o Museu; 4 - Manter relações com todos os cidadãos e entidades julgadas relevantes para a prossecução dos seus objectivos. Vem dando corpo à sua actividade com um conjunto de iniciativas que, simbolicamente, se iniciou com uma “Descoberta do Outro Lado do Museu”, compreendendo uma visita às

fotos: d.r.

Descobrir o outro lado do Museu reservas, aos arquivos, à oficina de restauro, contactando com algumas peças mais emblemáticas das suas colecções, entre as quais o foral de Vila Nova de Portimão, a colecção de Manuel Teixeira Gomes, antigos transportes e a saudosa Carrinha, entre muitas outras do património cultural de Portimão, trazidas pela arqueologia, a etnografia e doadas pela comunidade. Seguiu-se um interessante e produtivo “Passeio pelas Margens da História” que, como o nome indica, constituiu uma autêntica viagem histórica à zona ribeirinha de Portimão. Como verificamos na actividade referenciada na abertura deste texto, estas associações aproveitam as especificidades locais das suas regiões e acrescentam algum valor com a sua acção. Assim, no âmbito das actividades ligadas ao património e ao acesso à cultura tomemos como exemplo “Um dia na

Pré-história em Alcalar”. Este dia integrado nas comemorações do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, constituiu uma autêntica viagem à pré-história, através da participação em experiências únicas, designadamente sobre os processos de preparação dos animais provenientes da caça e da pesca, de os cozinhar como há cinco mil anos, utilizando apenas os instrumentos de pedra, o barro e o fogo. Organizado pelo Museu de Portimão este pôde contar com o apoio do GAMP, traduzido na possibilidade de actividades de arqueologia experimental, nesse dia com a presença de um arqueólogo que exemplificou, entre outras, algumas técnicas então utilizadas como a simples utilização de faca de pedra (sílex) para desmanchar e preparar um animal, no caso um porco, para ser cozinhado. Por intermédio de um projecto do GAMP pôde

Passeio pelas margens da história

ser concretizado o apoio da Direcção Regional da Cultura do Algarve. Neste dia, com o conjunto de actividades referenciadas, Alcalar foi visitada por mais de 1.500 pessoas. Além deste tipo de iniciativa, o GAMP tem promovido um conjunto de tertúlias sob a designação de “Conversas com Portimão ao fundo”. Nestas, procuramos conhecer e debater aspectos da história local, com incidência por exemplo na arqueologia e no trabalho dos arqueólogos em Portimão. Uma oportunidade para conversarmos e sabermos mais, sobre o caso concreto dos vestígios da Capela de Santa Isabel, uma das 15 capelas e ermidas que existiam no século XVIII, sobre as escavações a decorrer na cidade, no designado Edifício Mabor e nas antigas muralhas de Portimão e também sobre os trabalhos no contexto arqueológico subaquático do Rio Arade. O GAMP, como qualquer estrutura que ainda está no seu primeiro ano de vida, procura as formas adequadas para este elemento de identidade que norteia a sua actividade: colaborar com a direcção do Museu de Portimão na concretização, articulação e desenvolvimento das suas actividades. Desta maneira, com o envolvimento cívico da sociedade local, do Algarve ou de outras origens, inclusive não nacionais, o património cultural, natural e todos nós ficaremos a ganhar.

Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Catarina Oliveira Daniel Cartucho Vera Silvestre Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.590 exemplares


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Da minha biblioteca

Em Português, Se Faz Favor, de Helder Guégués

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

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«A filha de um gramático deu à luz, após amorosa união, / uma criança do género masculino, feminino e neutro.» Depois de ler Em Português, Se Faz Favor (da editora Guerra e Paz, 2015), lembrei-me deste epigrama de Páladas (poeta de Alexandria, dos finais do séc. IV d.C.). Também Helder Guégués (não é engano, tem mesmo dois acentos), revisor de texto, encara a língua com humor e ironia, mas sempre com muita seriedade. São assim os seus comentários nos blogues (de que sou leitora assídua) que manteve (Assim Mesmo) e mantém (Linguagista) e nos quais se inspirou para muitas das entradas deste Guia Fundamental para Escrever bem,

fotos: d.r.

de subtítulo. Aí, onde o objetivo não é serem um tira-teimas da língua portuguesa, Helder Guégués é muito divertido, pela mordacidade com que critica os erros que vai lendo nos jornais e nos livros ou ouvindo na rádio e na televisão, muitas vezes nem explicando que erro é esse. Porém, nesta obra que não é para especialistas, mas que se dirige «antes a todos os falantes comuns que querem e precisam, exprimir-se melhor em português» (p.21), o autor contém um pouco o sarcasmo, tem o cuidado de explicar o que está errado e indica a forma correta. O livro tem exemplos de vários tipos (géneros, numerais, regências verbais, etc.), como se pode ver pelo índice, dos quais aqui vou apresentar apenas alguns, para ficarmos com uma ideia do que podemos aprender. «Alguns erros mais comuns» Sob este título, encontramos uma entrada pela qual também batalho, por cujo uso já fui

Helder Guégués encara a língua com humor e ironia, mas sempre com muita seriedade «corrigida» e que aqui transcrevo: «Grama. Um erro de peso». Escreve o autor: «‘Quantas gramas’, perguntava o jornalista ao produtor de um vinho premiado, «‘precisa para fazer uma garrafa, tem ideia?’ O produtor, não apenas tinha ideia, pelo menos aproximada, como caiu no mesmo erro. No sentido de milésima parte da massa do quilograma-padrão, grama é do género masculino, porque os nomes gregos em -ma são neutros e correspondem por este género ao masculino português: o coma, o crisma, o dilema, o grama, o lema, o panorama, o poema, o sistema, etc. ‘Este livro pesa, aproximadamente, setecentos gramas.’ No sentido de erva rasteira, prejudicial às culturas, é do género feminino. Como sinónimo de relva só se usa no Brasil – é um brasileirismo para nós.» Na entrada «Formas perifrásticas», refere uma dúvida comum: «‘Apesar de fazer parte da colecção Portugal Turístico (o logótipo é um trevo de quatro folhas), o postal foi Made in Italy. É pois aos italianos que assacamos o ultraje. Não é assim tão mau:

“FUTURO EU” 14 NOV | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro O novo espectáculo de David Fonseca expõe um conceito inédito na sua já vasta obra em que o inesperado é princípio basilar

acabamos por nos habituarmos a morar em Necklaces’ (‘Feito à mão’, Miguel Esteves Cardoso, Público, 6.06.2010, p. 33). Com formas verbais perifrásticas, o infinitivo deve ser impessoal, acabamos por nos habituar, pois a marca da pessoa já lá está, no primeiro verbo.» Neste capítulo há explicações muito interessantes sobre o uso dos pronomes em expressões de tratamento («Trata-se de um verdadeiro idiotismo da nossa língua, isto de as expressões de tratamento levarem os restantes possessivos para a 3ª pessoa. Ora repare-se: ‘Vocês têm as suas opiniões e eu tenho as minhas’. E quem diz vocês, dirá ou poderá dizer V.as Ex.as, V.as Majestades, etc.[…]»), mas o espaço aqui é curto. Não deixem, no entanto, de as ler no livro. «Algumas confusões mais comuns» Este capítulo tem informações tão úteis, que tive dificuldade em selecionar apenas uma. Aqui vai: «No Red Light, em Amesterdão, uma mulher gorda numa montra «chamou-a à atenção»,

a uma personagem. Está errado: no sentido de ‘despertar, atrair o interesse de alguém’, diz-se chamar a atenção. Portanto, ‘chamou-lhe a atenção’. Também existe, isso é certo, a expressão chamar à atenção, mas com o significado de chamar alguém para que preste atenção ou admoestar, advertir, repreender.» «Modismos e mau uso» Deste capítulo, escolhi a entrada «Confortável»: «‘Com espanto, o alemão percebeu que os oficiais inimigos, apesar de graduados em coronéis, comandando regimentos em batalha, não se sentiam confortáveis com mapas’ (‘Os coronéis de Tannenberg’, Viriato Soromenho-Marques, Diário de Notícias, 9.07.2012, p.11). ‘Não se sentiam confortáveis com mapas’… Como quem diz, um sem-abrigo confortável com os jornais com que se protege do relento. Deve evitar-se o uso desse vocábulo para significar ‘à vontade’, pois, nesse caso, estaremos perante um desnecessário anglicismo semântico.»

«Pronúncia» No último capítulo explica-se o modo correto de pronunciar o nome de Almeida Garrett: «Na Antena 1, recordavam o incêndio do Chiado, ocorrido em 1988. E como pronunciavam o nome Garrett? Pois Garré. Garrett dizia que escrevia com dois tt para pelo menos lhe lerem um, mas a ironia não chegou a todos os ouvidos modernos. Escreveu Gonçalves Viana: ‘Se o nome fosse francês, que não é, nenhum francês, ao vê-lo escrito com dois tt finais, deixaria de pronunciá-lo gàréte [garréte]. A extravagante pronunciação garré é que não pertence a língua nenhuma conhecida, e só prima pelo ridícula que é.» E mais, acrescenta Gonçalves Viana, «o próprio poeta sempre pronunciou o seu apelido como se em português se escrevesse garréte, com a surdo na primeira sílaba, o acento tónico na segunda, e o t perfeitamente proferido. Assim lho ouvi eu várias vezes, assim o pronunciavam todos os seus contemporâneos’. ‘Garrett’, escreveu Botelho de Amaral, ‘deve rimar com canivete.’» O livro está dividido em 12 capítulos, tem um prefácio do linguista Fernando Venâncio e um posfácio do professor de filosofia Desidério Murcho. No final, quer o Anexo com «Alguns vocábulos com variantes» (formas, entre muitas outras, como abdome/ abdómen, balançar/balancear, filhó/filhós, magricela/magrizela, ramela/remela) quer o «Índice alfabético e remissivo» são muito funcionais. As referências que vão sendo feitas ao longo do livro remetem para uma vasta e excelente bibliografia, com nomes como Francisco Rebelo Gonçalves, Francisco José Freire (o Cândido Lusitano), Vasco Botelho de Amaral ou Rodrigo de Sá Nogueira, a par de atuais dicionários e prontuários mais comuns. Ser revisor não é fácil e muitos destes temas geraram polémicas no blogue. Mas assim se faz a língua: lendo a sua literatura e discutindo a sua gramática. Um livro que já fazia falta.

“GENTE DE FÉ” Até 26 NOV | Biblioteca José Mariano Gago – Olhão Exposição revela todo o envolvimento que o povo do arquipélago tem pelas suas tradições religiosas na perspectiva do igualmente açorense Marcelo Borges


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