ricardo claro
Letras e Leituras: d.r.
Jonathan Franzen e a Pureza de ser p. 4
Charolas de Bordeira:
Sala de leitura: d.r.
Das tentadoras maiorias às esquecidas minorias na Cultura
tradição assegurada p. 5
p. 8
Espaço ao Património: d.r.
d.r.
Visita guiada à Biblioteca Municipal de Lagoa
Da minha biblioteca:
Sete Contos Ilustrados p. 11
p. 10
O(s) sentido(s) a 37º N: d.r.
JANEIRO 2016 n.º 88 Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
Janeiro 2016
p. 9
7.573 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
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15.01.2016
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
Sinergias: teatro em rede
Cultura em rede Direção Regional de Cultura do Algarve
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
AGENDAR
A actuação em rede nos mais variados campos de vida tem ganho expressão assinalável e especial desenvolvimento desde o início dos tempos de crise e contingências orçamentais, como uma das formas de dar resposta às necessidades sem que para atingir os objectivos cada entidade tenha sozinha de desenvolver todo o esforço para cumprir um determinado desiderato. Na região algumas experiências neste campo, em que a aposta está na criação de sinergias, têm dado provas das vantagens deste tipo de actuação, pese embora as fortes resistências que sempre existem às acções conjuntas que diminuem - aparaentemente - protagonismos e poderes instalados. A criação da Rede de Museus do Algarve foi destes esforços um dos que marcou os últimos anos na região, tendo estado entre os frutos deste trabalho em rede dos museus regionais a notável exposição Algarve do Reino à Região. Muito embora este trabalho tenha sido de grande notoriedade, a Rede de Museus do Algarve parece estar actualmennte apagada de sobremaneira no que toca a actividade pública, algo que indicia que uma boa ideia não subsiste por si mesma, requerendo para que vingue um esforço contínuo. É exactamente este desafio que se coloca agora à recentemente criada Rede de Teatros do Algarve - AZUL, esperando que cumpra o objectivo de através de uma plataforma informal poder ser palco do desenvolvimento cultural e de uma programação mais viva e concertada, ao mesmo tempo que se espera possa ser motor de mais e melhor criação artística na região.
O ano começa com o Teatro em destaque no Algarve. São três os momentos a salientar: a apresentação da programação para 2016 da ACTA - a Companhia de Teatro do Algarve para o Teatro Lethes; a formalização da constituição da Rede de Teatro do Algarve – a Rede Azul; e o encontro da Rota Ibérica de Teatros Históricos (no Teatro Lethes também). É sobre a Rede de Teatros do Algarve que resolvemos centrar este artigo, ainda que todos sejam como se disse eventos a evidenciar no panorama cultural regional. Nos últimos anos foi efectuado um grande esforço de investimento das autarquias na construção, na recuperação e na adaptação de cine teatros e de outros equipamentos culturais destinados à apresentação e produção de espectáculos. A proposta de criação de redes no contexto cultural não é nova, nem recente, mas é fundamental ao desenvolvimento de políticas e estratégias culturais. O desenvolvimento de parcerias e de redes de cooperação pode ser uma forma de ultrapassar a ausência de reformas institucionais maiores ou da
produção de reformas de enquadramento legal. Nem sempre os procedimentos formais e legais dão resposta às necessidades locais das instituições, ou acompanham as dinâmicas de criatividade dos territórios. E por vezes, as condicionantes legais conduzem mesmo à definição de novas fórmulas e organizações para que consigam dar resposta a essas necessidades emergentes. As redes podem ser a resposta para os actuais desafios e podem assumir-se como fundamentais nos processos de implementação de estratégias de mudança e de inovação. Um dos estudos disponíveis sobre redes culturais fala-nos sobre o modelo de funcionamento das redes e refere como é importante que articulem entre si o trabalho que desenvolvem, para que melhor estabeleçam uma efectiva cooperação institucional (Manuel Gama, 2012. “Cultura de Redes Culturais: o Estado nas redes do Estado”, VIII Congresso Português de Sociologia. Universidade do Minho, pp. 2-13). A consolidação e a sustentabilidade das redes deve ser uma preocupação desde o primeiro momento, sob pena de aos olhos das outras organizações crescerem com uma dinâmica de protagonismo que possa pôr em causa a sua continuidade. A ligação com as restantes instituições e agentes culturais deve ser constante e em bene-
drcalg
Teatro Lethes, em Faro fício da comunidade. Os teatros e cine teatros chegaram a ter uma proposta de criação de rede prevista pela política pública para a área da cultura, tal como, a rede de bibliotecas, a rede de arquivos e a rede de museus, entre outros, que associados ao programa de criação e reabilitação das infra estruturas criariam financiamento à sua programação. Não aconteceu assim e os teatros e cine teatros têm assistido a grandes oscilações nos seus orçamentos e estruturas organizativas. Outras redes têm emergido, umas mais associadas a práticas de marketing, outras mais associadas a redes de programação (ex. da ArtemRede). O conceito de rede aqui proposto assume
uma lógica de grande interesse para o Algarve e será certamente uma oportunidade e um ponto de partida para estreitar a cooperação intermunicipal e intra regional. Este projecto, que tem dado os seus passos de forma mais consistente desde Fevereiro de 2014, foi apresentado à Direcção Regional de Cultura do Algarve em meados de 2015, tendo desde logo sido acolhido com grande entusiasmo e com o apoio directo ao projecto de criação artística associado. Como pilares principais a destacar nos benefícios que lhe estão associados, destacaria: a definição de uma estratégia colaborativa, sistémica e integrada; a intensificação do diálogo inter-
municipal; o estabelecimento de parcerias e fortalecimento da dinâmica de redes, criando oportunidades de circulação artística; a possibilidade de avaliar e monitorizar em conjunto as acções públicas desenvolvidas; o desenvolvimento e a promoção de projectos comuns de educação e criação artística; a partilha de oportunidades de formação; e finalmente a rentabilização dos investimentos efectuados nos espaços e em equipamentos. A Rede Azul será com o nosso esforço conjunto um efectivo projecto de cooperação cultural e, certamente, irá promover o desenvolvimento e a capacitação das comunidades dos territórios concelhios envolvidos. O Algarve necessita de ter esta voz de união em torno da cultura. Os teatros e os demais equipamentos culturais envolvidos dos 11 municípios que a rede inclui (Albufeira, Faro, Lagoa, Lagos, Loulé, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Silves, Tavira e Vila Real de Santo António) serão pólos dinamizadores e promotores de arte e de cidadania. Escreve-se assim uma nova página no teatro do Algarve, que se espera venha a ser uma história longa e repleta de momentos felizes. Alexandra Rodrigues Gonçalves Direção Regional de Cultura do Algarve
Juventude, artes e ideias
Universidade Sénior de Moncarapacho Jady Batista Editora do Jornal J
A Universidade Sénior de Moncarapacho (USM), iniciativa da Casa do Povo de Olhão, entrou no segundo ano letivo e conta
com 17 professores e cerca de 60 alunos, nas disciplinas de Português, Português para Estrangeiros, Inglês, Francês, História de Portugal, Sociedade e Cidadania, Cultura Geral, Psicologia, Saúde/ Biologia, Artes Manuais, Música, Reciclagem de Materiais, Teatro e Informática. O objetivo da Universidade é dinamizar e tornar os dias mais ativos dentro da classe sénior, promovendo atividades de desenvolvimento físico e intelectu-
“MESA AJUDADA” Até 29 JAN | Pólo Museológico da Água - Querença Durante 12 dias, 12 pessoas, entre elas artistas e artesãos escoceses e portugueses, trabalharam em conjunto na preparação de uma refeição e de tudo o que a compõe
d.r.
Aula de Ginástica 'Vida com Ritmo'
al e como tal pretende contribuir para a atualização do conhecimento, transmitindo-o numa linguagem acessível a todos, procurando destacar a experiência adquirida pelos alunos durante as suas atividades profissionais. A USM é membro da RUTIS (Associação Rede Universitária da Terceira Idade), uma instituição de utilidade pública representativa das universidades para a terceira idade, também denominadas universidades seniores.
A Casa do Povo de Olhão conta com quase dois mil sócios, sendo um exemplo de envolvimento, cidadania, e um pólo de atração das suas gentes e de toda a vizinhança, desenvolvendo diversas atividades para a população em geral, com as mais diversificadas aulas, como a defesa pessoal, pilates, dança escocesa ou zumba. Trata-se de um trabalho que é alimentado pelo sonho de uma equipa e do voluntariado de muitos sócios.
“REGENERAÇÃO” De 23 JAN a 9 ABR | Centro Cultural de Lagos Exposição de pintura de Clotilde. Entre 1964 a 1975, como artista plástica, executou várias obras em cerâmica para várias instituições. Expõe regularmente desde 1984
Cultura.Sul
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Grande ecrã Cineclube de Faro
Programação: cineclubefaro.blogspot.pt CICLO ODISSEIAS FAMILIARES | IPDJ | 21.30 HORAS
19 JAN | CORAÇÃO DE CÃO, Laurie Anderson, EUA, 2015, 75’ TMF, co-produção Cineclube de Faro e USA – União Sónica do Algarve 29 JAN | ESTREIA NACIONAL DO FILME A LONG WAY TO NOWHERE – THE PARKINSONS STORY, Caroline Richards, Inglaterra, 2015, 98’ Presença do realizador e da banda OS MAL AMADOS | SEDE | 21.30 HORAS | ENTRADA LIVRE 21 JAN | PACTO DE SANGUE, Lina Wermuller, Itália, 1978 28 JAN | O CAÇADOR, Michael Cimino, EUA, 197
Cineclube de Tavira luta pela continuidade Por pura coincidência, os filmes programados para este mês de Janeiro foram todos classificados para maiores de 14 ou 16 anos. Não é que isso significa grande coisa… Desde há quase 17 anos, o nosso público já está habituado a ver filmes que provocam uma reflexão sobre a nossa própria vida e a dos que nos rodeiam. Este mês há uma excepção: O Que Fazemos nas Sombras. Trata-se da comédia e primeira longa metragem do jovem neozelandês Taika Waititi (realizador da bela curta Tama tu), que entretanto já completou o seu novo filme: Hunt for the Wilderpeople. Há sinais que a nossa associação poderá entrar num período indefinido de suspensão de actividades a partir do final do mês de Fevereiro. Não por questões financeiras
Cineclube de Tavira
Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com
fotos: d.r.
SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS 16 JAN | CLOUDS OF SILS MARIA (AS NUVENS DE SILS MARIA), Olivier Assayas – Fr/ Sui/Alem/E.U.A./B 2014 (124’) M/14
Até final de Fevereiro ainda há cineclube em Tavira mas por razões de falta de interesse e empenho dos sócios para dar continuidade a este projecto. Portanto, aqui vai mais um apelo: se conhecerem alguém com paixão pelo
cinema de qualidade, com energia e dedicação (e tempo livre, claro), por favor contactem connosco já a seguir! Obrigado e até breve! Cineclube de Tavira
21 JAN | KREUZWEG (ESTAÇÕES DA CRUZ), Dietrick Brüggeman – Alemanha 2014 (107’) M/16 28 JAN | WHAT WE DO IN THE SHADOWS (O QUE FAZEMOS NAS SOMBRAS), Taika Waititi e Jemaine Clement – Nova Zelândia/E.U.A. 2014 (86’) M/14
Espaço AGECAL
A indústria corticeira em São Brás de Alportel
Ricardo Guerreiro Mestre em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural Industrial
A vila de São Brás de Alportel fica situada no barrocal algarvio, tem a particularidade de estar situada ao pé da Serra do Caldeirão, serra esta que é dominada pelo sobreiro. Esta floresta que cobre toda a Serra do Caldeirão aumentou a partir dos anos 60, quando o declínio do rendimento agrícola provocou o progressivo abandono da terra e o despovoamento da Serra. Seguiu-se um período de recuperação das áreas de matos e matagais e de repovoamento florestal, que conduziu à paisagem atual marcada pela grande extensão de sobreirais. A indústria da cortiça sofreu um grande crescimento no Algarve, particularmente em S. Brás de Alportel a partir do século XIX. Entre 1850 e 1900 existiam 143 fábricas de preparação e transformação
com cerca de três mil postos de trabalho. De facto, fontes distintas apontam para S. Brás de Alportel e para Silves, datas quase coincidentes (1861 e 1862) como as do início da comercialização e transformação da cortiça em grande escala. Nesta altura São Brás de Alportel tornou-se um importante centro comercial e suplantava Silves na exploração comercial e na transformação da cortiça. Durante este período a vila acolheu vários operários rolheiros de Silves, Faro, Armação de Pêra, Querença, Portimão, Barão de São João, Lagos e Marmelete, que contribuíram para dinamizar a indústria corticeira são-brasense. As últimas décadas do século XIX foram a “era dourada” de São Brás de Alportel devido ao florescimento da indústria e comércio da cortiça. Assistiu-se a par de um notório desenvolvimento comercial a um crescimento demográfico que foi único na história deste concelho. Fontes históricas apontam para a existência na década de 1890 de cerca de cem fábricas a laborar. O período de 1905 a 1910 foi marcado por várias greves da indústria corticeira do Algarve. Por outro lado, os proprietários de fábricas e de oficinas exigiram ao Go-
d.r.
A Serra do Caldeirão é dominada pelo sobreiro verno a concessão de empréstimos financeiros melhores para poderem modernizar as fábricas e adquirir maquinaria mais competitiva, porém, o Governo nunca deu resposta favorável aos seus pedidos. O poder da economia da população estava a desaparecer, foram só alguns industriais que conseguiram vencer a crise. Toda esta crise estava a afetar a indústria corticeira no Algarve, e
muitos foram os operários que não conseguiram estabilizar a sua situação profissional na região algarvia e migraram para outras zonas do país (a margem sul do Tejo foi das zonas mais escolhidas). Todo este negócio da cortiça não foi só modificado pelas crises que surgiram ao longo dos anos, mas também pelo aparecimento de máquinas que foram substituindo a
mão-de-obra. Um bom exemplo foi o aparecimento da “garlopa”, que tinha como principal objetivo fazer rolhas, e contribuiu para o desemprego. A rolha manual deu lugar a máquina, e as fábricas começaram a diminuir progressivamente o número de operários. Com a 2ª Guerra Mundial, houve novamente a saída de alguns industriais corticeiros para outros países, e os operários acompanharam os seus patrões. O assentamento da indústria de preparação de prancha em São Brás de Alportel e a transformação em Faro e Silves tem a ver em muito com a situação geográfica das localidades. Na localidade de São Brás de Alportel foi interesse da produção suberícola, situada no barrocal algarvio, designada a produtora da melhor cortiça do mundo. Muita da cortiça ainda nos tempos de hoje vem do Alentejo, porque a Serra do Caldeirão onde está a maior parte dos sobreiros tem vindo a sofrer com a seca, a doença e os fogos, que estão a causar problemas no sector corticeiro. Hoje apenas cinco fábricas estão a laborar em São Brás de Alportel, uma de transformação e as restantes de preparação.
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Cultura.Sul
Letras e Leituras
Jonathan Franzen e a Pureza de ser
Paulo Serra
Investigador da UAlg associado ao CLEPUL
Purity é o último romance de Jonathan Franzen, e mais uma vez, à semelhança dos anteriores Correcções e Liberdade, é uma obra de grande fôlego, um livro denso, extenso (quase 700 páginas), mas que não se consegue pousar. Apesar dos seus títulos simples e sonantes, de uma só palavra, e apesar da prosa fluída e directa, as suas obras são polifónicas e centram-se em questões complexas e actuais (sem temer abordar questões políticas), à excepção de A zona de desconforto, em que o autor tece uma narrativa mais confessional, em jeito de autobiografia. Correcções não foi o primeiro romance de Jonathan Franzen, apesar de ter sido o primeiro traduzido e publicado entre nós, mas foi aquele que o catapultou para o estrelato literário, tendo ganho o National Book Award em 2001, tendo sido considerado o grande romance do século e
feito de Jonathan Franzen um dos mais importantes autores da atualidade. Narrando a história de uma família aparentemente banal, o autor tece um retrato vívido da sociedade norte americana em finais dos anos 90, com momentos de genuíno humor. O autor escreve de forma ligeira, mas sem por isso descurar a elegância, a partir de perspectivas múltiplas e narradas na primeira pessoa, na própria voz de cada uma das personagens, seguindo o fluxo de consciência de cada um, o que torna a leitura do romance fácil e quase frenética, pois apesar de extenso é difícil pousá-lo. Liberdade é mais uma vez um retrato tragicómico de família, também ele construído a partir de pontos de vista vários, focando-se desta vez em Patty e Walter Berglund, a mulher perfeita e o advogado ambientalista, com uma bela casa nos subúrbios, um casal aburguesado, com preocupações ecológicas e vanguardistas, que vê a sua família desmembrar-se face aos riscos da liberdade e do desejo, quando ambos atingem a meia-idade e de alguma forma dão por si a libertar-se das amarras das convenções e do que se espera deles. Purity, o seu mais recente romance, publicado à semelhança dos anteriores pelas
fotos: d.r.
Jonathan Franzen é um conhecido romancista norte-americano Publicações Dom Quixote em setembro de 2015, quebra a tradição na medida em que segue a história de uma jovem recém-licenciada, Purity Tyler e das várias pessoas que, sem ela própria saber, compõem a sua vida. Purity inova, em relação aos anteriores romances, na medida em que a trama é construída em torno de um mistério que se vai desvelando aos poucos, a partir, mais uma vez, de perspectivas múltiplas de cinco personagens, mas que desta vez não estão ligadas entre si, pelo menos não todas, por laços de parentesco, e pela forma como se estabelecem várias analepses, pois o passado, por muitas décadas que tenham passado, continua a afetar diretamente o presente e o íntimo de algumas das personagens, conduzindo cada uma das suas ações e motivações. E além de existir um segredo no cerne desta obra há também um crime que é revelado e que, apesar da natureza nefasta do ato, é aliás o que acaba por unir as várias personagens da obra. Apesar de uma primeira parte aparentemente banal, em que seguimos os dilemas de uma jovem aparentemente normal, uma jovém licenciada cujas principais preocupações são pagar a dívida contraída para poder completar o seu curso, a sua desorientação em relação ao seu futuro profissional e a sua paixão por um homem casado que vive na casa onde ela alugou um quarto. Mas Pip é também uma jovem que cresceu sob a alçada de uma mãe superprotetora e que acalen-
ta descobrir, e aqui sim Purity aproxima-se mais da extraordinariedade, quem é o seu pai, bem como desvendar a verdadeira identidade da sua mãe. Pip é uma jovem que num primeiro encontro com um rapaz, que convida até ao seu quarto, e com quem se prepara para ter relações sexuais quando subitamente se apercebe que tem de sair do quarto para conseguir um preservativo, mas acaba por ser (in)voluntariamente retida por outra inquilina da casa, Annagret, uma jovem alemã que a quer recrutar para o Projeto Luz Solar (organização semelhante à WikiLeaks), e que quando volta ao quarto apercebe-se que ele esteve a trocar mensagens com um amigo sobre ela. E aqui começam as várias implicações de uma história, como se referiu anteriomente, aparentemente simples. Purity
recusa o nome que a mãe lhe deu, com toda a sua sobrecarga emocional e ética, e adopta a alcunha de Pip. Mas Pip é um nome que na sua ressonância ecoa essa personagem de Charles Dickens, de Grandes Esperanças, um jovem pobre que vê a sua vida transformada, ao ser-lhe dada a possibilidade de deixar as suas origens humildes e prosseguir estudos que lhe permitem, mais tarde, iniciar uma carreira digna, em virtude da proteção de um misterioso benfeitor, só revelado no final, num tremendo volteface ficcional. Os livros referidos de Jonanthan Franzen, curiosamente, focam-se quase sempre em mães cujo amor raia o controlo excessivo, o que conduz ainda a chantagens emocionais e a conflitos tremendos entre as mães e os filhos ou filhas. Jonathan Franzen referiu, aliás, em entrevista
Purity é o último romance de Jonathan Franzen
que a sua mãe era uma pessoa com problemas, o que o levou a tentar sempre colocar-se na pele dela, de forma a saber como lhe agradar. Por último, com a questão da troca de mensagens, e a forma como elas são apresentadas graficamente, na página, com o próprio formato típico de mensagens entre smartphones, entramos na questão central do romance: a falta de privacidade da nossa era pós-moderna, o conflito permanente entre a esfera do público e do privado, dada a comunicação virtual frenética de hoje; a falta de integridade, apesar da necessidade de transparência imposta pelas redes sociais que nos identificam, que nos situam no espaço (onde recentemente já tem acontecido as empresas procederem a despedimentos com justa causa por detetarem quebras de confidencialidade ou de conduta profissional por parte dos seus funcionários, através daquilo que partilham publicamente nas suas redes sociais entre amigos e conhecidos, mas que está, na verdade, ao alcance de todos); em suma, a forma como a vida ao abrigo da internet, que tanto nos aproxima e agiliza enquanto seres sociais, se aproxima afinal do totalitarismo controlador e repressivo de regimes como o da Alemanha de Leste, na medida em que nada é privado, em que a geração de jovens parece querer seguir cegamente as massas, em que até o trabalho pessoal de artistas pode ser acedido livremente e de forma gratuita (como a luz solar que dá nome ao Projeto), numa ótica próxima do socialismo. Este é um romance cuja simplicidade e aparente descentralidade ou desunião entre os temas e as personagens é apenas enganadora, pois afinal quem sabe se esta escrita mais próxima do normal, do quotidiano, numa prosa transparente, pura, simples, sem grandes ambições de estilo, não é justamente uma forma de retratar mais fielmente a realidade, o que tem sido, afinal, o intuito deste escritor de 56 anos de idade, que surgiu na capa da revista Time (o que não acontecia com um autor vivo há dez anos) e que ainda antes dos seus 40 anos foi celebrado como um dos grandes romancistas norte-americanos.
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Cultura.Sul
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Panorâmica
Charolas de Bordeira: a tradição pagã e única de recepção ao Ano Novo fotos: ricardo claro
Ricardo Claro
Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com
A recepção ao Novo Ano faz-se um pouco por todo o Algarve e pelo país com, entre outras tradições, cantares, assumindo a forma de janeiras ou charolas, numa tradição de séculos assente essencialmente na transmissão oral de carácter religioso, mais ou menos marcado. Mas as charolas de Bordeira são únicas, diversas de todas as outras da região, pelo seu carácter pagão, manifestação rural de traço popular que, não segue a tradição de cantar ao Menino (Jesus), mas antes se fixa nas cantigas de amizade e alegria e nas vivas, quadras improvisadas com cariz - mais ou menos sublinhado de crítica social. É ao som do acordeão, das castanholas e pandeiretas, dos ferrinhos e mesmo, algumas vezes, da guitarra, do clarinete e do saxofone, que se celebra o novo ano de forma comunitária por terras de Bordeira, em Santa Bárbara de Nexe, concelho de Faro. O Dia de Reis foi a data escolhida pelo Cultura.Sul para ouvir as charolas em Bordeira, num espírito de convívio que arrasta largas centenas de pessoas à pequena localidade. Por esta altura, novos e menos novos percorrem as ruas e os cafés ou o espaço frente ao palco do ‘Encontro de Charolas’ para não perderem pitada das vivas que marcam sobremaneira esta tradição. São as quadras de suposto improviso que são a marca indelével das charolas bordeirenses. Carregadas de crítica social e picardias, as vivas são por excelência o vínculo mais forte desta tradição à comunidade e o momento mais esperado nas actuações de cada uma das várias colectividades dedicadas às charolas. O humor é a palavra de ordem nestas quadras que passam em revista a estória de Bordeira e das suas gentes, os seus defeitos e qualidades e que tudo usam para trazer ao patamar da brincadeira e do riso as ‘menoridades’ de cada um dos bordeirenses e das personagens mais conhecidas da localidade. Também a crítica política local se faz nestas vivas, assim como a
A Charola 'Democrata de Bordeira' deu as boas vindas ao Ano Novo social, de forma prazerosa, arrancando as palmas e as gragalhadas gerais, numa verdadeira ode ao
senso de humor e à capacidade de encaixe dos visados face às críticas de que são alvo.
O silvo do apito É ao som de um silvo do apito do
A tradição charoleira assegurada pelos mais novos
O jovem charoleiro bordeirense Pedro Ramos Pedro Ramos é aos 11 anos um verdadeiro charoleiro, lado-a-lado com os 28 membros da Charola Juvenil de Bordeira, a cujos comandos está Marina Martins. Não foi dos pais que herdou a tradição, antes dos avós, dos tios e da madrinha, como nos conta o jovem começador que faz das castanholas o instrumento de eleição. Para Pedro as charolas são muito mais do que tradição, trata-se
A Charola Juvenil de Bordeira, numa animada 'mini actuação' para o Cultura.Sul de fazer parte integrante da comunidade, de participar com os amigos e colegas numa manifestação que é um verdadeiro traço de identidade. Quanto às vivas que entoa, ainda não as escreve, mas ensaia-as com vigor para que pareçam verdadeiro improviso na hora de actuar, escudado na experiência de escritores de mais idade para garantir a verdadeira autenticidade e originalidade das quadras.
Um exemplo apenas dos muitos que em Bordeira se podem ver e que garantem a sobrevivência da tradição charoleira da localidade. A alma bordeirense tem vida longa assegurada nos sorrisos dos jovens charoleiros e músicos locais que fazem jus à tradição centenária de celebrar o novo ano. Boas notícias a provar que a tradição ainda é o que era.
começador que a charola se inicia, é deste ‘mestre’ da arte do canto e do improviso que depende todo o andamento, desde o início da música à entrada das vivas. Ao entrarem em palco, ou num dos vários cafés de Bordeira, para apresentarem a sua actuação a vizinhos e visitantes que enchem os espaços de apresentação até ao limite, as charolas iniciam a performance com a marcha de entrada, a que se segue o estilo pela voz do começador, dedicando quadras aos convivas e amigos, à alegria , à tradição e às histórias e passado. Depois é a vez das vivas, ditas por membros das charolas e pela assistência onde sempre estão improvisadores de créditos firmados na arte de versar em quadra e em jeito de animada provocação e crítica social e política. Por fim, ao som da marcha de saída, é tempo de levar a charola à ‘paragem seguinte’, numa verdadeira romaria por todos os espaços públicos de Bordeira, em nome de uma forma de estar e de ser típicas e que teimam - felizmente - em manterem-se vivas e de boa saúde. Uma tradição que é muito mais do que música e animação As charolas são mais do que música, tradição, crítica e picardia. Em Bordeira sente-se o pulsar de uma forma arreigada de ser e de estar na vida, uma verdadeira galhardia no saber versar e encontrar a palavra certa para criticar. Há garbo no rosto de quem canta e no tom com que se soltam as quadras, atiradas para o meio da roda com o coração amigo que ‘tudo’ aceita e compreende. Das críticas feitas de forma aligeirada pela música e pelo tom, o peito de quem as faz não colhe por terras de Bordeira, na verdadeira tradição das charolas, qualquer melindre dos visados. As charolas são a prova cabal dos fortes laços comunitários que unem os bordeirenses e que fazem desta uma comunidade coesa onde - pese embora as diferenças e divergências naturais e costumeiras - a preservação da identidade e do conceito de comunidade têm uma força já rara em muitas aldeias, vilas e cidades da região e do país. Afirmada de forma peremptória no Dia de Reis, a identidade bordeirense, feita música e verso, é assim uma manifestação rara de força popular que promete não esmorecer com os muitos herdeiros que nas charolas juvenis fazem já vingar a arte deste verdadeiro ‘rap rural’.
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Cultura.Sul
Artes visuais
A fotografia no desenvolvimento das artes visuais d.r.
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
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A origem etimológica de fotografia provém do grego fós, que significa luz, e grafê, que significa desenhar, pelo que pode significar desenhar com luz. E é sobretudo isso que a fotografia procura fazer, isto é, através da luz que incide sobre os objetos do mundo num determinado momento, conseguir captar esse momento de forma a que fique registado para o futuro, como se de uma memória visual se tratasse. Em termos de definição mais formal, por fotografia entende-se a técnica de criação de imagens por meio de exposição luminosa, fixando esta numa superfície sensível. Este processo conheceu uma evolução, tendo contado com diversos contributos, desde a câmara escura, descrita por Della Porta já em 1558, a qual era utilizada por Leonardo da Vinci e outros artistas do século XVI para fazer esboços de pinturas. Merece também destaque, o fato de Angelo Sala, em 1604, ter percebido que um composto de prata escurecia ao sol, supondo que seria o calor a produzir esse efeito. No plano das descobertas da química que precederam a fotografia foi muito importante que, em 1724, Johann Schultze, ao realizar experiências com ácido nítrico, prata e gesso, tivesse verificado que não era o calor, mas sim a prata halógena convertida em prata metálica que provocava o escurecimento. Todavia, é em 1826 que o químico francês Joseph Niépce produz a imagem que é reconhecida como a primeira fotografia da história, intitulada “Vista da janela em Gras”, suportada numa placa de es-
tanho coberta por um derivado de petróleo fotossensível, denominado Betume da Judéia. Ao contrário das anteriores tentativas de Niépce, esta imagem não desapareceu tendo conseguido ficar com o seu registo. Este processo foi designado como heliografia, significando gravura com a luz do sol. No entanto, eram necessárias cerca de oito horas de exposição à luz solar para concretizar este processo. Foi Louis Daguerre, que veio a tornar-se sócio de Niépce, que, após o falecimento do primeiro, apresentou um novo processo de revelação, designado por daguerreotipia, em que utilizou vapor de mercúrio ou iodo no revestimento das placas, em vez de prata, permitindo reduzir significativamente o tempo de exposição necessário, pois bastavam alguns minutos para conseguir o registo da imagem. Além disso, Daguerre solucionou o problema da curta durabilidade da imagem formada na chapa depois de revelada, pois continuava sensível à luz do dia. Nesse sentido, descobriu que, mergulhando as chapas reveladas numa solução aquecida de sal de cozinha, este tinha um poder fixador, obtendo assim uma imagem inalterável. Para além de ter patenteado o seu invento em França, em 1835, Daguerre procurou fazê-lo em Inglaterra, mas aqui William Talbot trabalhava já em suportes de papel fotossensível, tendo registado o seu calotipo em 1839. O processo de Talbot usava folhas de papel cobertas com cloreto de prata que posteriormente eram colocadas em contato com outro papel, produzindo a imagem positiva. Este foi o processo que se veio a utilizar daí para a frente, pois também produzia um negativo que podia ser reutilizado para produzir várias imagens positivas. Os anos 30 foram realmente caracterizados por um ambiente de competição em torno do desenvolvimento do processo de registo fotográfico, tendo havido outros que realizaram estu-
d.r.
Imagem da primeira fotografia da história, intitulada “Vista da janela em Gras” (Joseph Niépce, 1826) dos nesse sentido. Por exemplo, em 1939 Hippolyte Bayard também desenvolveu um método de obtenção de uma imagem fotográfica em positivo sobre papel, mas não tornou desde logo pública a sua descoberta. Além disso, embora habitualmente sejam enfatizados os trabalhos de Niépce, Daguerre e Talbot, convém salientar que a palavra “photographie” foi proposta por Hércules Florence, francês radicado no Brasil, em 1833, para descrever o seu processo de revelação nitrato de prata, baseado na criação de negativos, tal como Talbot fazia. A base para a “democratização” da fotografia estava lançada e daí em diante a evolução das técnicas e do equipamento fotográfico nunca mais parou. Nomeadamente, em 1861 foi feita a primeira fotografia colorida da história, tirada por James Maxwell, conforme já anteriormente referimos. No final do século XIX ocorre a popularização da fotografia, tendo sido essencial o contributo de George Eastman, fundador da Kodak, nos EUA, com a introdução no mercado da câmara tipo “caixão” e pelo rolo substituível ou filme fotográfico, em 1888. Este é constituído por uma base plástica, geralmente triacetato de celulose, flexível
“CONCERTO DE ANO NOVO” 17 JAN | 16.30 | Igreja Matriz de São Brás A Banda Filarmónica de São Brás de Alportel apresenta um repertório onde se incluem obras originais e adaptadas para Orquestra de Sopros, sem esquecer a tradicional Marcha “Radetzky
e transparente, sobre a qual é depositada uma emulsão fotográfica. Esta é formada por uma fina camada de gelatina que contém cristais de sais de prata, sensíveis à luz que chega a ela através da lente da câmara. Esta popularidade levou a que muitos intelectuais e artistas ainda no século XIX vaticinassem o fim da pintura, pois permitia a multiplicação de uma única imagem e a representação muito realista dos objetos, de forma mais rápida, a custos reduzidos e a que todos poderiam ter acesso. No entanto, enquanto a pintura continuava a ser encarada como arte, a fotografia não obteve desde logo esse estatuto, por ser um processo mecânico que captava imagens através de fenómenos físico-químicos. Os fotógrafos eram vistos com técnicos e não como artistas. No seu livro “O acto fotográfico” (1992), Philippe Dubois considera ter havido uma polarização que atribuía à pintura as funções de arte e imaginação, enquanto a fotografia seria responsável pelo documentário e focalizada no conteúdo concreto. O “ambiente” era de alguma tensão e mesmo de oposição entre os pintores e os fotógrafos. Assim, enquanto os fotógrafos valorizavam o
potencial da fotografia, chegando Lamertine a considerar que “a fotografia, mais do que uma arte, é um fenómeno solar, em que o artista colabora com o sol”, ao contrário o posicionamento dos pintores foi claramente negativo, tendo Vlaminck referido “odiamos tudo o que tem a ver com a fotografia” e Delaroche feito o conhecido comentário, no ano em que a fotografia foi inventada: “a partir de hoje, a pintura está morta”. Não tendo provocado a morte da pintura, a fotografia veio influenciar o desenvolvimento desta. Tinha deixado de fazer sentido à pintura limitar-se a tentar reproduzir a realidade, pelo que se libertou dessa condição e evoluiu no sentido de novas formas de expressão que fizessem mais apelo à criatividade, do que à mera reprodução do real observável, e as técnicas pictóricas mais fluídas, livres e espontâneas. O próprio Gustave Courbet, considerado o fundador do Movimento Realista, apontava para o facto de a invenção da fotografia ter levado à mudança da arte realizada através da pintura, mas, ao contrário de Delaroche, considerava positiva a relação que se poderia estabelecer entre ambas. É curioso que várias
pinturas feitas por Courbet nos anos 50, do século XIX, vieram a ser “traduzidas” na forma de fotografia por Villeneuve e August Belloc na mesma época, mostrando a proximidade que havia nalguns casos entre a pintura e a fotografia, bem como a tentativa de inspiração e apropriação por parte da fotografia de temas usualmente tratados através da pintura. Por seu turno, vários pintores recolhiam fotografias de paisagens e de modelos para poderem depois pintar no conforto dos seus ateliês. Por exemplo, Bierstadt, Courbet e Manet consideravam as fotos como um bom suporte para pintar paisagens, não sendo necessário que o pintor condicionasse o seu trabalho às condições climatéricas, e por seu turno Delacroix usava fotos para o estudo de poses difíceis de manter. O próprio Picasso utilizava a máquina fotográfica para documentar o ambiente que o rodeava, sendo por vezes as fotos uma fonte de inspiração para os seus quadros (Gantefuhrer-Trier, 2005). No entanto, embora começando a ser reconhecida a utilidade da fotografia pelos pintores, esta parecia sempre como não pertencendo ao domínio das artes. Em síntese, o surgimento da fotografia, inicialmente visto como um problema por alguns pintores, paradoxalmente foi talvez o principal fator que contribuiu para o desenvolvimento da pintura, com uma importância fundamental para a transição da pintura clássica para a pintura moderna (Stremmel, 2005). O impressionismo do final do século XIX marcou essa transição, ao procurar que a pintura expressasse mais as “impressões” da realidade, do que a reprodução da realidade que poderia ser obtida através da fotografia. Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)
“PINTAR SEM TINTAS… EM CORES” De 20 JAN a 18 MAR | Antigos Paços do Concelho de Lagos Lena Rita Vansteelant sente-se fascinada por tecidos desde a sua infância. Actualmente, pinta não só com tecidos, mas também com rendas e tules
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Cultura.Sul
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Momento
"Charolas de Bordeira" Foto de Ricardo Claro
Espaço ALFA
Fotografia comunicação e memória
Membro da ALFA
A fotografia é, sem dúvida, uma forma de arte e de comunicar, seja através da mensagem que a imagem diretamente transmite, seja pelo que subliminarmente nos poderá transmitir. A fotografia é presente e é memória futura, uma vez que nos pode dar uma imagem no imediato mas também e essencialmente nos ajuda posteriormente a perceber ou a recordar momentos essenciais, da história, das experiências positivas e negativas, da felicidade, do prazer, do evoluir da vida e na vida. Para nós fotógrafos, cada fotografia conta-nos não só a história dessa imagem fotográfica, mas também todos os passos e as razões que nos levaram até ao premir do obturador e obter o resultado final. Quantas vezes, para obtermos “aquela” foto, nos levantámos bem de madrugada, passámos fome, ficámos ensopados, percorremos quilómetros sem fim, ficámos atolados na
lama, fomos insultados, perseguidos, vaiados, compensados com sorrisos, acarinhados, enfim, cada foto contém um imenso percurso, umas vezes mais feliz, outras nem tanto, mas que ao ser recordado nos deixa sempre com um sorriso de satisfação nos lábios, porque
nos faz perceber melhor as pessoas, a natureza, o universo e a razão porque gostamos de fotografar. A fotografia tem a capacidade de levar o desconhecido ou de redesenhar o conhecido a todos que a ela tenham acesso, sejam as desgraças
dos povos ou as suas felicidades, as mortes ou o desabrochar da vida, as belezas e os horrores. A fotografia é uma forma de expressão, de arte, de comunicação, de explosão, de cor, de prazer ou de dor, de história, de ciência, de real
e até de irreal. P.S. - A ALFA elegeu novos corpos gerentes em novembro, com um novo programa, uma nova dinâmica e com toda a disponibilidade e vontade para promover a fotografia e os fotógrafos. Junta-te a nós.
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Cultura.Sul
Sala de leitura
Das tentadoras maiorias às esquecidas minorias na Cultura foto: dariusz klimczak
Paulo Pires
Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt
“Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão”, escreveu o poeta brasileiro Ferreira Gullar. Sob esta dupla (e complexa) condição, revisito a visão de Gilles Lipovetsky sobre o nosso tempo, quando introduz o conceito de “cultura-mundo” como seu denominador comum, o qual se materializa em dois movimentos fundamentais: aproximando as sociedades, as multidões, isto pela abundância das mesmas marcas, produtos idênticos, modos de estar e estilos de vida similares; e, paralelamente, contribuindo para uma profunda diversificação dos indivíduos. “O colectivo assemelha-se, mas o indivíduo diferencia-se nesse colectivo.” É a aceleração do individualismo, que cria assim uma maior pluralidade e heterogeneidade de gostos e comportamentos. Daí advêm, ainda segundo Lipovetsky, dois paradoxos: hoje vive-se menos bem, mas vive-se melhor, isto porque, não obstante haver condições materiais mais favoráveis (e de o indivíduo privilegiar, em grande medida, a satisfação imediata), há mais medo, falta de esperança e ansiedade relativamente ao futuro; e a ideia de que se comunica mais mas, simultaneamente, de que há um crescente sentimento de solidão. Junta-se a este cenário a tendência para “ler” a realidade actual numa perspectiva dominantemente quantitativa, feita de números e estatísticas, à qual os universos da criação, programação e recepção culturais também não são imunes. A espectacularização e hipermediatização que dominam uma parte relevante da oferta cultural que é apresentada actualmente assentam muito na ideia de que o valor e impacto público de uma actividade se aferem e são “validados” pelo
Maiorias/minorias: um questionamento e desafio permanentes na área cultural número de ingressos vendidos/lotações esgotadas, lucro obtido ou, a nível digital, pela contabilização facebookiana das visualizações, gostos, reacções, comentários, partilhas, identificações ou “adesões” a dado evento. Esta visão, que privilegia claramente as maiorias, o consumo (em detrimento da recepção individual e do impacto pessoal) e uma lógica massificada e rentável, muito dificilmente coexiste com uma ideia, não perversa e não deturpada, de democraticidade cultural e de respeito pelas minorias culturais, sejam estas criadores e/ ou públicos. Não obstante terem a sua natureza e legitimidade próprias, a afirmação das maiorias não pode ser sinónimo de “tolerância repressiva” ou ter como reverso a anulação, directa ou sub-reptícia/ enviesada, dos grupos minoritários, nem servir de argumento de sucesso para “justificar” a não atenção ou menor aposta em segmentos culturalmente não massificados da sociedade. Em toda a sua amplitude institucional, através das políticas e intervenções dos seus organismos e equipamentos culturais, o Estado e as autarquias não se devem divorciar de uma certa “regulação” desta sensível antinomia, funcionando como exemplo de boas práticas, enquanto filtro que também legitima a diferença, que reconhece a diversidade e que não se limita à mediania nem a
populares, mediáticas e “pacíficas” ditaduras da(s) maioria(s). Esta postura, que implica coragem, determinação e arrojo, constitui um enorme desafio para o aparelho estatal, dada ainda uma certa tradição, entre “paraquedística” e aventureira, de perigosa politização da actuação a nível cultural, fruto da ausência de protagonistas clarividentes/competentes ou de estratégias definidas para essa área. Sem descurar obviamente o grande público a nível da sua programação cultural, é fundamental que o sector público dê mais espaço e dignidade às expressões minoritárias, experimentais, “lentas”, apostando também, efectivamente, na vertente da educação artística (a qual, infelizmente, tem sido gradualmente desvalorizada nos contextos de ensino oficiais) e em equipamentos culturais dotados de serviços educativos estruturados e consistentes, visto que quando não se conhece dificilmente pode valorizar-se algo. É claro que esta atitude não populista em relação à oferta cultural implica ainda, da parte de quem programa e promove, um maior investimento e exigência na componente da mediação/envolvimento dos públicos e em plataformas específicas de apresentação e difusão para os formatos minoritários que se pretende apresentar. Se a tentação pela maioria, pelo consenso alargado, por
um gosto mais comum e abrangente, pelo retorno financeiro, pela garantida visibilidade e prestígio (até com dimensão política) pode assaltar dilematicamente vários gestores e programadores no momento de gizarem os seus planos de actividades, não é menos verdade que essa tendência para agradar e ser numericamente impactante (nivelando, não poucas vezes, por baixo) também pode influenciar perniciosamente certo meio criativo e artístico, retraindo a sua capacidade de ousar, arriscar, “sair da caixa” – e, assim, de surpreender, reinventar e abrir renovados horizontes de conhecimento e prazer. Nesta medida, é essencial que quem gere e programa transmita um sinal positivo ao circuito cultural ao apostar também em propostas emergentes/minoritárias, lançando chamadas para criação, estabelecendo parcerias em co-produção, realizando encomendas, apoiando projectos diferenciadores com marca autoral. Por outro lado, e perante esse amplo, heterogéneo e desigual território a que hoje se chama “cultura”, também cabe aos públicos a filtragem, distância crítica e atenção diferenciadora face à oferta apresentada. Mas também aqui o terreno é complexo e apaixonante, estando intimamente ligado às motivações e expectativas de cada indivíduo em relação às actividades culturais: se o consumo e a cultura me-
diática do divertimento, onde parece não haver lugar para o “valor do espírito” de que falava Paul Valéry, têm vindo a adquirir um peso – que é, obviamente, legítimo – muito assinalável no quotidiano actual, também é um facto que outros, os “amadores de arte”, continuam a privilegiar a busca de uma experiência estética “pura”, a contemplação e elevação espirituais, a imersão em percursos iniciáticos, o cultivo do recolhimento e silêncio. Pelo meio – e pensando ainda nas questões da recepção/fruição culturais e formação do gosto –, a já aludida tendência para uma maior individualização e heterogeneização dos gostos e das atitudes e para um incremento das variações intra e interpessoais ao nível cultural (derivadas da superabundância de escolhas apresentadas pelo mercado e da diluição das culturas de classe) patenteia-se em múltiplos indivíduos que conjugam no seu gosto e prática regular formatos estética e artisticamente mais exigentes com outros mais ligados a esferas do chamado “entretenimento”. Estamos, neste caso, perante uma variada gama de “arranjos pessoais” – para usar uma expressão cara à sociologia da religião –, feita de cruzamentos, sínteses e eclectismos que caracterizam várias franjas de público cultural contemporâneo.
Reflexo também disso é, por exemplo, o facto de a cultura artística nunca ter tido, como agora, uma tão grande audiência das massas. As obras mais amplamente reconhecidas parecem funcionar “como objectos de animação das massas destinados a diversificar os lazeres e a ‘matar’ o tempo”, proporcionando aquilo a que Lipovetsky chama “emoções secundárias que criam um tempo de recreação”. É um novo tipo de experiência, em que aclamadas obras suscitam, para o grande público, a mesma atitude e a mesma relação temporal que o consumo dos produtos mais vulgares. Uma última nota sobre a questão da formação do gosto: se o peso familiar, educacional e económico tem um reflexo crucial nesse processo individual, as práticas de interacção social que os sujeitos estabelecem entre si no dia-a-dia assumem igualmente um papel preponderante, como preconiza o sociólogo Paul DiMaggio. Funcionando como uma forma de classificação ritual e um meio de construção de relações sociais, os gostos artísticos podem ter, ao nível dos seus usos sociais, um efeito de ponte ou de muro entre os indivíduos. DiMaggio insiste, aliás, na ideia de que pessoas que possuem bastantes contactos e papéis sociais (o capital relacional) desenvolvem um maior e mais variado repertório de gosto cultural, preocupando-se em conhecer e relacionar obras de arte para andarem actualizados e possuírem motivos de interesse que lhes permitam ampliar a sua rede social. Voltando ao título deste texto: se a democracia, idealmente feita de liberdade, diversidade, inclusão e de maiorias, é essa “mãe mais doce que o mel” de que fala Sérgio Godinho numa canção intemporal, é deveras preciosa (inclusive no plano do acesso cultural, que é, também ele, uma forma de poder) a ideia de que uma civilização também deva ser julgada pelo tratamento que efectivamente dispensa às suas minorias.
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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N
Janeiro 2016 e visível. Entre outros, a construção naval em miniatura, de Vitorino Nascimento, os ímanes e pregadeiras de Maria Manuela Moreira, os postais e fotografias de Filipe da Palma e os trabalhos da artista Joana Rosa Bragança.
CA2
na cidade. Mas passa e corre. E quando te aperceberes parecerá que já terá passado tudo. Tudo (o que já passou)
Cine-Teatro Louletano
A Voz
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
A Natureza fotos: d.r.
Agora que as árvores estão nuas, de folhas despidas, espalhadas pelos chãos, vestimo-nos nós. Calçamo-nos, cobrimo-nos, para nos protegermos das aragens frescas. Para que a partir do próximo equinócio vistam elas os seus troncos, e vamos nós aliviando as peças que nos atafulham os membros. A natureza sabe tudo, e nós só temos que segui-la.
Pinta Roxa
A voz de Paulo Moreira, encenador, actor, escritor… soará a orientar o «Workshop de Dicção e Expressão Oral» - com exercícios para uso correcto e eficaz da voz: dicção/articulação, respiração, entoação e projecção de voz. Dia 23 de Janeiro, das 14h às 19h, na Biblioteca Municipal de Faro A. R. Rosa, numa organização de Requinte Turquesa – Eventos & Serviços (inscrições: geral@requinteturquesa. pt - 20€)
Uma brincadeira começada na página facebook de Balsa Papilar mas que entretanto foi parar ao papel. O palavreado no papel é outro, salvo o dos Pimentos Curtidos & Papas de Milho. Vai numa impressão muito simples a preto & branco, não serve para engalanar prateleiras. Custa o mesmo que uma compota de 140g: 3,50€ (edição Balsa Papilar) e é servido por Luísa Soares Teixeira.
Poema do livro «(eu diria que nevava)» que a autora de Sabugal/Guarda em breve publicará na CanalSonora, editora de Tavira, e também não de apenas a 37ºN .
a relva, agora mais parca, era dantes tapete alucinante na janela obstinada demoram-se devaneios dos céus que acontecem e virá o inverno a defender-se de uma primitiva primavera
AGENDAR
A Conversa Já Chegou à Cozinha
Artur Pastor
Maria Afonso
segundos apenas e tudo aparenta achar-se no lugar que lhe cabe
O nome foi pescado ao peixe (ver logotipo) que faz parte da troika fundamental de uma caldeirada à maneira, juntamente com a tremelga e a raia (o resto é para encher e decerto discutível). Está ali na avenida 5 de outubro, em Olhão, frente ao jardim, como quem vem dos mercados para o cais T. Apresenta uma miscelânea de artes, mas tudo devidamente exposto
A nova sala do Centro Cultural António Aleixo, em Vila Real de Santo António, recebe no próximo 22 de Janeiro, pelas 21h30 - «Noites de Poesia», com presença dos Poetas do Guadiana e com microfone aberto a quem desejar participar, lendo os seus textos, numa sessão de tertúlia, improviso, leituras e música.
um dia voltará um verão incendiado nas mãos e a terra terá a cor da nossa pele só um rosto arredado numa ausência firme retardará o movimento de translação e o tempo volta a ser calculado por desusadas clepsidras
“VIAGENS, EPIFANIA DA COR” Até 27 FEV | 22.00 | Galeria do Convento do Espírito Santo - Loulé Guilherme Parente remete-nos para um universo do maravilhoso e da utopia onde a cor é a própria viagem, numa dualidade entre a realidade e a imaginação
Com Paulo Pires agora ao comando da programação cultural do município de Loulé, apostando numa linha de reinvenção, questionamento, transformação e envolvimento da comunidade local, podem já consultar-se as muitas e boas propostas para o primeiro semestre de 2016. Difícil é destacar algumas. Nada como verificar rapidamente na página do Cine-Teatro da Avenida José da Costa Mealha, não vá já ter perdido, por exemplo «As Conversas à quinta» que ontem contou com Paulo Cunha.
A primeira grande exposição das fotografias de Artur Pastor patente no Algarve pode ser vista até 31 de Março no Convento de S. José em Lagoa. Apresentam-se comoventes imagens desse mundo a preto e branco dos anos 40 a 60 do século passado, tiradas no Algarve, pelo qual se apaixonou (fez a tropa em Tavira) o jovem regente agrícola alentejano (Alter do Chão,1922). A exposição «O Algarve de Artur Pastor» é o culminar da 2ª edição dos Encontros de Fotografia de Lagoa.
Um pequeno rio Um pequeno rio numa pequena cidade sempre ali. E o rio sempre ali. Visto das margens. Não o atravessas, não o mergulhas, não se nada. Nada. e o rio que parece que está sempre ali. Parado
Num outro dia
Num outro dia decerto a chuva trará a maré subindo, nem sempre a transbordar nas margens de madeira aprumada. Onde ando como se sobrevivesse do que lá se passa. Reflectindo palavras, espelhando imagens nas águas que fluirão nesse rio, que vazará todos os dias umas vezes mais que outras. E mesmo assim nada será como antes e no entanto tudo ficará como que na mesma.
“COMÍCIO-CONCERTO “COMÍCIO-CONCERTOCANDIDATO CANDIDATOVIEIRA” VIEIRA” 15 15JAN JAN| 22.00 | 22.00| Casa | Casado doPovo PovodedeSanto SantoEstêvão Estêvão - Tavira - Tavira Manuel ManuelJoão JoãoVieira Vieiraapresenta apresentaasasmotivações motivaçõesmorais, morais, económicas económicase eestratégicas estratégicasque queo olevam levammais maisuma umavez vez à àdisputa disputado domais maisalto altocargo cargodadaNação NaçãoPortuguesa Portuguesa
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Cultura.Sul
Espaço ao Património
Ficha Técnica:
Do prazer da leitura: visita guiada à Biblioteca Municipal de Lagoa
Clara Andrade
Técnica superior responsável pela Biblioteca Municipal de Lagoa e artista plástica
Sempre que falamos das virtudes das Bibliotecas Municipais, falamos, e muito legitimamente, em informação e documentação, no livro e na leitura, nas competências várias que promovem, na democratização da cultura, na promoção do bem comum e da boa cidadania, e por aí fora. Como bibliotecária responsável pela Biblioteca Municipal de Lagoa, dei comigo, um dia destes, a observar os leitores ou utilizadores - ninguém me obrigará a chamar-lhes clientes - e a aperceber-me de uma realidade que raramente é referida e que, contudo, me parece ser uma qualidade inquestionável e de superlativo valor: o prazer e a alegria que as bibliotecas proporcionam. Qualquer que seja o serviço utilizado, quer no serviço de informação e referência na Recepção, quer nas Salas de Leitura, no Espaço Internet ou nos diversos eventos culturais, adultos, jovens e crianças reflectem um estado de aprazimento e bem-estar que começo a pensar se não deveriam, as Bibliotecas, ser mencionadas e consideradas de importância capital para a felicidade nacional. E não me refiro às actividades de lazer, que também entram no leque dos objectivos deste tipo de Bibliotecas, onde o prazer e a alegria serão uma consequência natural. Refiro-me a todos os serviços. Mas vejamos, nesta visita guiada: Entra-se na Biblioteca onde na zona da Recepção, ambiente informal de funcionalidades várias, um leitor pede informação sobre um qualquer autor, título ou assunto. A funcionária, prestável, simpática e sorridente, com créditos mais que assinalados nesta matéria, dá o seu melhor: o leitor segue satisfeito o seu caminho já com a informação requerida e os livros emprestados para a semana; outros leitores observam interessados os expositores das últimas novidades editoriais e outros ainda os dos eventos culturais. Um efusivo e garrido grupo de alu-
nos discute pormenores sobre a exposição colectiva de pintura patente nas paredes do Átrio. Uma fila de gente mais adulta dirige-se para a Sala Polivalente, onde vai começar, dentro de instantes, a tertúlia “Potencialidades dos vinhos do Algarve”. Mesmo a propósito: Lagoa foi escolhida “Cidade do Vinho 2016”. No final haverá prova de vinhos produzidos neste concelho, trazidos pelos produtores presentes. Nada como um bom vinho para a boa disposição e alegria de todos e como as conversas fluem! Há quem suba as escadas para o Espaço Internet. Nos vários postos ocupados todos parecem placidamente absorvidos nas suas tarefas. Paralelamente, junto aos expositores multimédia há quem se forneça de música ou filmes para o fim-de-semana. Umas horas antes, na Sala Infantil, a alegria um pouco ruidosa das crianças, torna-se repentinamente silêncio e expectativa. Irá decorrer a oficina “Palavra de Sofia”: leitura encenada de textos de Sophia de Mello Breyner Andresen, que a Nelda Magalhães, animadora do Teatro Experimental de Lagos, excelentemente desenvolve dando a compreender as histórias e poesias desta autora. Todos se encantam com a magia e simplicidade das palavras, com a força e beleza das imagens. Sim, as histórias e a literatura têm o poder de encantar toda a gente, crianças e adultos. Entretanto, na Sala de Leitura alguns leitores examinam as estantes. Uns já sabem o que procuram, outros saberão quando encontrarem. A surpresa e o
fotos: d.r.
Recepção da Biblioteca, aspecto geral mistério também acontecem nas estantes de uma Biblioteca, quem tem hábitos de Biblioteca sabe do que falo. Outros, nas mesas, trabalham silenciosamente debruçados sobre livros ou portáteis e outros ainda, na zona mais informal, ocupam-se com jornais ou revistas. Uns e outros reflectem tranquilo bem-estar. Estou certa de que a benigna companhia dos livros há-de ter responsabilidades nesta boa disposição geral. Também estou certa de que o que realmente importa na vida, valores humanos universais como a tolerância, o respeito, a solidariedade, o optimismo e, claro, o conhecimento e o saber são privilegiadamente acessíveis através da leitura, seja em formato tradicional ou digi-
tal. Sendo o livro impresso um objecto perfeito, porque de fácil transporte, acessível em qualquer lugar e auto-suficiente em matéria de energia, a verdade é que a sua desmaterialização é um facto dos nossos tempos. Contudo, por ora, o livro tradicional perdurará a par de outras ofertas desmaterializadas. A actual variedade de suportes de leitura permite diferentes opções de acordo com os interesses e apetências de cada um, possibilitando um acesso rápido e sem limites de espaço e tempo à informação. Mas mais que o seu formato, o que é realmente importante é a leitura. E as Bibliotecas são espaços de leitura em diferentes suportes. São espaços onde pela leitura
Sala Infantil: Oficina “Palavra de Sofia” com Nelda Magalhães
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro nos é permitido acordar os espíritos adormecidos e convocar os seus tesouros e legados. É só abrirmos um livro e deixarmos que nos sussurrem a intimidade das suas palavras, da sua sabedoria, dos seus sonhos. O edifício desta Biblioteca foi, no início do século passado, construído sobre um antigo cemitério para ser um teatro. Nunca o foi. Seria em 1997 inaugurado como Biblioteca da Rede de Leitura Pública. Quem sabe se também os espíritos dos que sob estes alicerces descansam nos convocam e inspiram. Penso que uns e outros decidiram aliar-se para nos fazer bem, neste espaço plurifuncional e aprazível. E são um pouco assim as demais Bibliotecas Municipais espalhadas por todo o país. Noutros tempos, sem estes espaços de leitura, valeram-nos as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, singulares carrinhas cinzentas repletas de livros. Uma alegria quando chegavam! Soube recentemente que algumas das pessoas que percorriam o país nestas carrinhas, distribuindo livros e prazer, seriam escritores e poetas contratados por aquela Fundação. Verdadeiros oásis no deserto de leitura pública nacional, numa época em que os livros eram material de consumo controlado e as Bibliotecas, locais raros e de acesso restrito. A história das Bibliotecas também é feita de repressões e proibições e queimar livros representa, quase sempre, um emblema contra o livre pensamento. Tal como no magistral romance, O nome da Rosa, de Umberto Eco. A Biblioteca da Abadia é por aquilo que esconde um lugar de mistério e morte. Em forma de labirinto, com caminhos falsos e segredos, guarda o livro proibido, o livro do riso - uma possível versão do desaparecimento de A Comédia de Aristóteles que não chegou até nós. Também célebre e igualmente labiríntica, A Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges (Ficções, 2003) é infindável mas não proibida. Metáfora da própria vida, da realidade e do mundo, uma enorme Biblioteca à espera de ser lida e decifrada. Uma Biblioteca fantástica que abre as portas de par em par e convida generosamente todos sem excepção a entrar, a desfrutar, a viver… Não sonharemos todos com uma Biblioteca assim?
Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Clara Andrade Ricardo Guerreiro Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.573 exemplares
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
Sete Contos Ilustrados to que ilustrou, fazendo, por vezes, da ilustração um novo «texto», mais do que uma ilustração. Descubram-nos!
Adriana Nogueira
Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Escrever um conto, precisamente por ter de ser curto e ter de conter (e contar) tudo em poucas palavras, exige uma grande perícia. Demora ser breve. Conseguir, em poucas páginas, prender a atenção do leitor, levá-lo ao clímax da ação e descontraí-lo, no final, não é tarefa simples. Pois bem, posso dizer que os autores presentes neste volume, publicado pela Lua de Marfim e coordenado por F. Esteves Pinto, alcançaram com sucesso aqueles objetivos. A ideia de convidar também sete artistas para ilustrarem os contos foi muito feliz. Cada um leu, à sua maneira, o con-
António Manuel Venda – «Os Romanos» Quem me tem acompanhado nesta página mensal sabe que sou uma fã confessa de António Manuel Venda: tenho todos os seus livros e saber que A. M. Venda é um dos autores seria já, para mim, motivo para ter o livro. E não desilude. Mantendo o seu universo no registo do fantástico tornado comum (o chamado realismo mágico), há uma personagem que se confunde propositadamente com o autor (não só pela profissão de escritor, como pela referência a um livro que teria escrito e que é igual a um que o autor tem), numa história absurda de um barco cheio de romanos prontinhos para atacar Vila Real de Santo António, em que o – moral, possível, da história – que nos fica dos
Vai ser difícil escrever sobre todos os contos – esta página é limitada. Vou procurar, pelo menos, deixar algumas impressões sobre cada um ou um trecho que possa ajudar a formar uma ideia do que nos é oferecido com a sua leitura. De Esteves Pinto destaco a capacidade para nos contar uma história não feliz sem ser triste, de sexo que não o é, de amor que não acontece. Destaco ainda o modo como trata bem as suas personagens e como consegue falar deste assuntos sem ser vulgar. A sua elegância a tratar os temas enterneceu-me, como a personagem masculina que, no fundo, tem «bom vinho»: beber de mais não a tornou vil. Gostei muito.
O título do conto leva-nos, com humor, para um universo onírico, de fantasias (masculinas, atrevo-me a dizer), em que um jovem investigador se vê atraído por uma Xerazade, que lhe conta histórias, rodeado de beldades que dão a entender promessas de prazer («Respondeu com uma expressão malandra» - p.53; «Todas as raparigas assentiram, continuando a fitar o historiador com os seus olhos melosos» - p. 58) – de tal modo que se sente no seu sétimo céu – e… adormece. Mas aqui, como na vida, os sonhos trazem esperança de concretização. Um final que torce o destino, ao gosto do autor. Paulo Moreira – «Filho da Mãe» O conto de Paulo Moreira tem uma construção em cres“COCHES DOS SÉCULOS XVI A XVIII” Até 26 FEV | Museu Municipal de Olhão A exposição nasce das mãos do mestre José Cardoso Brito, artista autodidacta que reproduz fielmente alguns dos originais expostos no Museu Nacional do Coches
Pedro Afonso – «Aquilo» O narrador deste conto confessa a sua dificuldade em descrever por palavras a experiência «única e indizível» que a personagem estava a sentir. Vou apropriar-me dessas palavras para que sejam elas a contar: «Raramente conseguimos resistir a transpor todas as vivências para o discurso, ou pelo menos as mais marcantes, e mesmo que não as comuniquemos a ninguém, organizamo-las para nós em pensamentos verbalizados. Se fosse de outra maneira, como existiriam os milagres, as aventuras, os êxtases e coisas que tais que invocam sempre o mistério, ou seja, aquilo que as palavras não dizem?».
Fernando Esteves Pinto – «Coração da Cidade»
Fernando Pessanha – «O Sétimo Céu e as Meninas de Tânger»
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fotos: d.r.
tempos perdidos são objetos do passado, que nos transportam de um lado para o outro.
Vítor Gil Cardeira – «O Amor é uma Fuga sem Fim»
Os contos foram ilustrados por sete artistas cendo. Começamos por não saber quem é a personagem nem a sua mãe, cuja vida vai sendo recordada por memórias mais ou menos esquecidas do filho, que a acompanhou no funeral com que se inicia a história. Gradualmente vamos descortinando o homem e o seu caráter, assim como a frágil e esporádica relação que tinha com a mãe. No final, liberto do preconceito, aceita as lágrimas, a dor, e a expressão, tão adequadamente aplicada, de filho da mãe. Paulo Kellerman – «Facelist» Este conto tem uma estrutura que me agrada, pois é um desafio ao leitor (também o foi ao autor), dado que não tem narração nem descrição, mas apenas o diálogo entre duas persona-
gens, sem orações parentéticas ou explicativas: não há «disse um» ou «disse o outro». Percebemos, pelo diálogo, que a conversa se passa entre cliente e psiquiatra, sobre o facto de as pessoas serem indiferentes ao que sai do comum, como reagirem ao verem um homem com uma lista de compras escrita na cara. « – O senhor, que é psiquiatra e deve perceber destas coisas, diga-me lá: porque sorriem as pessoas tão pouco? – Demasiada consciência de si próprias, talvez, Incapacidade de se libertarem dos seus pensamentos e racionalidades, dos seus medos, das suas ansiedades. Talvez as pessoas estejam demasiado fechadas em si próprias, demasiado auto-conscientes. Demasiado reféns de si».
Este é o conto maior (25 páginas) e, talvez por isso, a história possa ter mais personagens (o anjo, o camionista, o patrão, o médico, a enfermeira, os mineiros), sem que se sinta que estão a mais, e ser um pouco mais complexa. Mantendo um registo de algum humor e ironia (vai interpelando o leitor, com graça), não deixa de semear algumas reflexões mais sérias: «Havia mesmo uma pequena alegria que o animava na contemplação do outro. O outro que oferecia o desejo da diversidade, apelando à união das incompatibilidades. Não há serenidade nem planura nos homens incompletos. O outro é o espelho que nos transforma no todo. A fusão entre o efémero e o eterno. Gostei bastante deste livro. Gostei, principalmente, porque não se lê depressa. Sim, leu bem. Estes contos são bons para se lerem devagar. Podemos, assim, apreciar melhor as suas especificidades, pois são bem diferentes uns dos outros. E convém fazer uma pequena pausa entre cada um. Não tem de ser muito grande, mas o suficiente para se mudar de registo. Ou então faça mesmo uma pausa maior, para durar mais o prazer da leitura.
“GENTE “MÃE COM DE FÉ” AÇÚCAR” Até 15 e26 16NOV JAN | Biblioteca 15.30 e 21.30 José| Cine-Teatro Mariano Gago Louletano – Olhão Exposição A peça é um revela retrato tododa o envolvimento relação entreque avós o povo e netos, do arquipélago da amizade que temnasce pelasna suas distância tradições de religiosas gerações, na da perspectiva sabedoria edo daigualmente inocência eaçorense das tradições Marcelo e estórias Borges passadas oralmente
 12 15.01.2016
Cultura.Sul