CULTURA.SUL 91 - 8 ABR 2016

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D.R.

Espaço AGECAL: d.r.

Sobre a dança contemporânea

O Amante Japonês:

p. 3

Filosofia dia-a-dia:

Isabel Allende regressa aos romances de fôlego

d.r.

O Jardim de Epicuro p. 7

Sala de Leitura:

p. 4

d.r.

d.r.

Amália ao sul (II)

Fernando Silva Grade ‘pinta’ 30 anos de história em Faro

p. 8

p. 5

Espaço ao Património: d.r.

ABRIL 2016 n.º 91

A luz das conversas: património e Design

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO 7.615 EXEMPLARES

p. 10

www.issuu.com/postaldoalgarve


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08.04.2016

Editorial

Da importância dos dias...

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

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Fechámos o mês de Março, mais precisamente no dia 27 de Março, com o Dia Mundial do Teatro e o mês que agora se nos apresenta, Abril, traz consigo mais duas datas de relevo no campo das datas comemorativas. A 29 de Abril o Dia Mundial da Dança e a 30 o Dia Mundial do Jazz. A importância dos dias que assinalam as diferentes formas de expressão artística é altamente discutível, como o é a importância de qualquer outro dia nacional, internacional ou mundial destinado a assinalar o que quer que seja. Há quem olhe para estas datas com desdém e mesmo considere que já há 'dias de tudo e de nada' e que a respectiva proliferação lhes retitou o peso e a visibilidade e quem defenda a sua existência como marcos anuais capazes de galvanizar as atenções em torno de realidades para as quais se deve 'olhar' com especial cuidado e ponderação. Independentemente das opiniões, na área da cultura as datas relativas à comemoração dos dias de cada uma das artes são sempre momentos para podermos assistir a espectáculos temáticos, fazendo - muitas vezes - entrar na programação dos espaços culturais espectáculos que ali não teriam espaço, não fosse o dia comemorativo. Só por isso, se outro valor maior se lhes não encontrar, já faz com que estes dias valham a pena. Entretanto, e a título de mero exemplo, para estas datas Faro prepara no Dia Mundial da Dança o Festival de Flamenco de Faro, no Teatro das Figuras, e um imperdível concerto de Zé Eduardo, no Dia Mundial do Jazz, no Teatro Lethes. Vale ou não vale a pena?!

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Missão Cultura

DiVaM 2016 abre portas ao “Espírito do Lugar” Direção Regional de Cultura do Algarve

DiVaM é o programa de Dinamização e Valorização dos Monumentos desenvolvido pela Direção Regional de Cultura do Algarve desde 2014, que tem como principais objetivos a promoção, divulgação e valorização do património cultural da região, oferecendo a todos os residentes e visitantes, um conjunto de iniciativas culturais, de dinamização, de fruição e vivência nos monumentos diretamente tutelados pela Direção Regional. “O Espírito do Lugar” é o mote para o programa deste ano, apresentado em cerimónia pública na Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, no passado sábado. Durante a cerimónia foram assinados os protocolos de colaboração com as várias associações envolvidas nas 52 actividades culturais, que farão do DiVaM 2016 um acontecimento cultural a ser desfrutado ao longo do ano, pelas comunidades

foto: drcalg/r. parreira

locais, residentes e visitantes dos monumentos que acolhem as iniciativas. O programa conta ainda com a parceria de vários municípios algarvios e da Universidade do Algarve, oferecendo um leque diversificado de atividades culturais que vão desde performances, música, artes plásticas a atividades para os mais novos e para as famílias. A dinâmica desenvolve-se como habitualmente em 7 monumentos que estão afetos à Direção Regional de Cultura do Algarve - Castelo de Aljezur, Fortaleza de Sagres, Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, Monumentos Megalíticos de Alcalar, Castelo de Paderne, Castelo de Loulé e Ruínas Romanas de Milreu.

Apresentação do DiVaM 2016 termina com concerto de 'Jovens Talentos Algarvios', na Ermida de Nª Sra de Guadalupe

DiVaM 2016 com uma nova Identidade Visual

novos, estimulando a vontade da descoberta do programa cultural. De forma a fidelizar pú-

Este ano o DiVaM apresenta uma nova identidade visual, com uma imagem mais atual e contemporânea. Pretende-se seduzir públicos habituais, circunstanciais ou

blicos, o programa DiVaM apresenta-se agrupado em ciclos temáticos: “Música no DiVaM”, “Patri Per Form” -

Novo logótipo do DiVaM 2016

ciclo de artes performativas, “DiVaM para os + e – pequenos”, “DiVaM ao ar livre” , “Derivas Continentais” ciclo que junta artes plásticas e artes performativas - e ainda o ciclo “Amatores in situ”. O ciclo de palestras “Amatores in situ – O Mundo antigo visto por aqueles que o amam” dá continuidade a uma anterior edição, que teve lugar nas ruínas romanas de Milreu em 2013/2014, mas a sua integração no DiVaM 2016 constitui uma novidade. Organizado em parceria com a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, este ciclo pretende dinamizar o conhecimento da Antiguidade Clássica, através da Literatura, Arte, Filosofia e Arqueologia, no espaço arqueológico de Milreu e contribuir para aproximar o “dito” ao “visto”. A primeira palestra teve lugar na passada quinta-feira sob o tema “A identidade feminina na Antiguidade sob o olhar de Medeia”, pela Professora Dra. Ana Alexandra Alves de Sousa. Direção Regional de Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

Sociedade Recreativa Progresso Olhanense

Jady Batista Coordenadora Editorial do J

A Sociedade Recreativa Progresso Olhanense, fundada em 1918, é a mais antiga coletividade em acividade em Olhão e

uma das mais antigas do país. Perto de completar o seu primeiro centenário, considerada de Utilidade Pública, prova a sua vitalidade e capacidade em acompanhar a evolução dos tempos,s recuperando o seu lugar como referência de cultura e recreio do nosso concelho. Honra feita à nova direção, eleita em finais de 2014, presidida por Francisco do Ó, que soube congregar os esforços necessários para regularizar a situação

financeira e implementar uma dinâmica cultural que serve o interesse e as necessidades actuais dos sócios e da população. Exemplos disso são as actividades regulares que resultam da iniciativa da colectividade e das parcerias estabelecidas com entidades da terra como a GORDA ou a MOJU, para além do Município. Nesse sentido, são já conhecidos os bailes de Carnaval da MOJU, desenvolvidos naquele espaço e que representam o re-

“MÃE SOBERANA DE UM POVO” Até 29 MAI | Convento de Santo António - Loulé Vasco Célio, Luís da Cruz e Fernando Mendes apresentam um conjunto de fotografias da Festa da Mãe Soberana realizadas ao longo das últimas três décadas

cuperar de uma tradição que diz muito à colectividade e ao nosso concelho. Também o teatro, enquanto atividade regular, com a Gorda e o grupo da Casa da Juventude, volta a ser uma realidade, nesta que chegou a ser a melhor sala de teatro de Olhão, onde residiram grupos de referência regional como o GATO e posteriormente o Teatro da Vida. Ainda este ano, perspectiva-se o reinício das sessões de cinema, em colaboração com o Cineclu-

be de Olhão, trazendo de volta a esta casa mais uma das suas grandes referências de outros tempos. Para já, prepara-se um programa recheado de actividades, de música e poesia, no âmbito das comemorações do 25 de Abril. Em Maio, integrado no MOSTRA-TE, terá lugar, entre outras actividades, a estreia da peça de teatro da Casa da Juventude. Fiquem atentos. Vai valer a pena!

“PORTUGAL EM AGUARELAS” Até 16 ABR | Galeria Municipal de Albufeira Exposição de Tom Whitelaw retrata na sua maioria paisagens de Portugal, revelando o gosto do pintor pela luz, pelas paisagens coloridas, pelo pormenor e pela perspectiva perfeita


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

IPDJ | 21.30 HORAS 12 ABR | POSTO AVANÇADO DO COMANDO, Hugo Vieira da Silva, Angola/Portugal, 2015, 120’, M/14 26 ABR | RIO GORGO, Maya Kosa & Sérgio da Costa, Portugal, 2015, 95’ TEATRO MUNICIPAL DE FARO | 21.30 HORAS VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES, Manoel de Oliveira, Portugal, 1982, 68’, M/12

25 ABR | COMEMORAÇÕES 25 ABRIL, MUSEU MUNICIPAL - 16 HORAS - O MEDO À ESPREITA, Marta Pessoa,2 Portugal, 2015, 86’ (presença da realizadora)

60 anos de Cineclube de Faro O mês de Abril é especial para o Cineclube de Faro (CCF), cumpriu-se na passada quarta-feira, dia 6, mais um aniversário desde a realização da primeira sessão oficial do CCF. “Douro, Faina Fluvial”, de Manoel de Oliveira, foi o filme escolhido para iniciar a actividade desta associação cultural que agora completa 60 anos. As comemorações decorrem ao longo de todo o ano, no entanto, têm também especial relevância no programa de actividades deste mês. O diálogo entre o cinema português e o seu público é o mote para um ciclo que reúne quatro obras de especial relevância. A homenagem que Manuel Mozos faz a João Bénard da Costa, figura que se confunde com o cinema em Portugal, abre este ciclo, seguindo-se um dos mais badalados títulos do cinema português mais recente, “Posto Avançado do Progresso”, de Hugo Vieira da Silva.

Cineclube de Tavira fotos: d.r.

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21 HORAS 14 ABR | SADILESHTETO (O JULGAMENTO: FRONTEIRA DE ESPERANÇA), Stephan Komandarev – Bulgária/Alemanha/Croácia 2014 (105’) M/12 21 ABR | EL BOTÓN DE NACAR (O BOTÃO DE NÁCAR), Patricio Guzmán – França/Espanha/Chile/Suiça 2015 (82’) M/12

João Bénard da Costa A história do CCF confunde-se com o cinema e com a figura de Manoel de Oliveira e desta forma a exibição do seu filme póstumo configura-se também como um momento não só de homenagem ao cineasta, mas também de celebração do CCF e da sua história. Por último, o documentário de Maya Kosa e Sérgio da Costa, “Rio Corgo”. Pelo meio um ciclo dedicado a filmes únicos que também celebram 60 anos de

existência, a colaboração com as comemorações oficiais do 25 de Abril com “O Medo à Espreita”, de Marta Pessoa (com a presença da realizadora), o filme francês do mês ou “Sicario” em Vila Real d eSanto António. A terminar, espaço ao cinema de animação, juntando novos e menos novos com “Paddington”, de Paul King (2014). 60 anos caramba, uma vida de sonhos! Cineclube de Faro

23 ABR | 678 (CAIRO 678) - Entrada gratuita: versão original legendada em português + inglês - Mohamed Diab – Egípto 2010 (100’) M/14 28 ABR | THE LOOK OF SILENCE (O OLHAR DO SILÊNCIO), Joshua Oppenheimer – Dinamarca/Indonésia/Noruega/Finlândia/Rússia/Israel/França/E.U.A./Alemanha/Holanda 2014 (103’) M/16

Espaço AGECAL

Sobre a dança contemporânea d.r.

Ana Borges, Coreógrafa e professora de dança; Corpodehoje; sócia da AGECAL

A dança foi desde sempre nas diferentes civilizações uma manifestação cultural ligada ao ritual. A ligação do corpo à natureza era mais próxima e as manifestações do corpo, por exaltação eram espontâneas, naturais. A Natureza como suporte da condição humana e a cultura como extensão da natureza humana. Com a mecanização do trabalho, a Indústria, a distância entre corpo e natureza aumentou e com ela o ritual desapareceu. As manifestações do corpo passam a ser performativas, de carácter profissional com a passagem da dança para o palco. A dança social no adro da igreja ou na corte, deixou de existir espontaneamente e passou a haver diferenças entre quem dança e quem assiste. Isto acontece após o reinado de Louis XIV, séc. XVII, em França, onde a dança foi instituída. Com as escolas de dança, nasce o ballet,

sistematizando a linguagem técnica da dança. Até ao Séc. XXI têm acontecido diferentes transformações a nível social, político e cultural que implicaram mudanças também na dança. A partir do séc. XX quando Isadora Duncan cria as primeiras coreografias com pés descalços, roupas leves e em espaços ao ar livre, a dança reivindicou para si a natureza como força criadora, ligando-se intimamente à vida. Associada

a esta estética, está fortemente ligada a ideia de democratização do corpo, sem aceitar um espartilho que o condicionava a um só padrão. Isadora Duncan foi extremamente importante na mudança da dança segundo o modelo clássico do ballet. Acreditava claramente na dança como forma de transformação social, como reforma educativa. Influenciando-se nos modelos estéticos da Grécia antiga, Isadora dançou com movimentos

leves, simples, ligados à vida, ao dia à dia e à escuta do pulsar da natureza, dos ritmos das estações. A ideia da dança foi-se transformando e espalhando a sua forma dos EUA até à Europa. Esta libertação do corpo, associa também a utilização do chão como superfície passível de utilização. Mary Wigman introduz o chão como superfície dançável e posteriormente Trisha Brown cria também estruturas

de movimento em que todo o movimento parte do chão até à vertical. A dança contemporânea é a filha mais nova de todos estes e outros movimentos que surgem no Séc. XX e que aliam as técnicas ao respeito pelo corpo, à sua organicidade, alinhamento, em que se respeitam diferenças em relação à forma, se aceita a pessoa como ser pensante e actuante e não mero elemento estético. A dança contemporânea não tem fronteiras, assume com prazer a ideia de que um corpo tem voz, movimento, ideias, memória, por isso dança o que pesquisa, o que pensa, é reivindicativa, social e politicamente, manifesta-se. Apesar de ter já um século esta transformação, em Portugal ainda se alia muito a ideia de “dança” ao ballet e ainda se dão os primeiros passos nesta transformação das realidades. Como agente cultural, a corpodehoje iniciou um trabalho na descentralização das artes e dança mais especificamente, saindo de Lisboa até ao Algarve e trabalha regularmente em Tavira, com oficinas regulares e pontuais de dança, promovendo a ideia de democratização do corpo e da dança e cruzamentos disciplinares. Aproxima a dança da vida, das pessoas, seguindo este ideal dança | natureza.


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Cultura.Sul

Letras e Leituras

O Amante Japonês: um romance de fôlego

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

O Amante Japonês é finalmente um retorno aos romances a que Isabel Allende nos tinha acostumado. Depois de algumas obras mais juvenis (O caderno de Maya) e uma estranha tentativa de incursão no thriller policial (O jogo de Ripper), cuja história se parecia arrastar sem qualquer chama, a autora (sobre quem já se escreveu aqui) regressa às suas histórias de grande fôlego que imediatamente puxam o leitor para dentro do seu mundo romanesco muito particular, tecido numa escrita fluída, desenhando um universo semi histórico, semi intemporal e levando-nos a conviver com personagens carismáticas e cheias de vida. A narrativa de O Amante Japonês (cujo título evoca esse outro romance de Marguerite Duras, O Amante) segue um plano em que alternam dois planos temporais, o presente e o passado, o que por outro lado traz uma oscilação entre a perspectiva de uma jovem chamada Irina Bazili e a de Alma Belasco, a elegante senhora que se instala na Lark House, o lar de idosos onde trabalha Irina. Alma Belasco nasceu na Polónia, mais precisamente em Varsóvia, em 1939. Com a II Guerra Mundial a deflagrar, é enviada pelos pais, como forma de a manter em segurança, para a Califórnia, onde irá ser acolhida pelos tios que vivem numa opulenta mansão de São Francisco. A decisão revela-se acertada, pois como sabemos, Varsóvia foi uma cidade que acabou completamente destruída, como palco de guerra entre as duas grandes frentes da Alemanha e da Rússia. Mas é com Irina que o romance se inicia, talvez por ser através desta personagem que vamos passar a conhecer melhor Alma Belasco e poder descobrir a sua história, justamente no momento em que esta é entrevistada e depois admitida: «Irina Bazili começou a trabalhar na Lark House, nos arredores de Berkeley, em 2010. Acabara de fazer vinte e três anos e tinha poucas

ilusões, pois andava, desde os quinze anos, a saltitar de emprego para emprego e entre uma cidade e outra.» (pág. 9). Mas conforme a intriga se adensa e Seth, o neto de Alma Belasco, mais tarde, se apaixona por Irina, percebemos que esta jovem proveniente da Europa de Leste também tem o seu passado obscuro e esconde um segredo. O Amante Japonês é a história de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que mais tarde se tornará no amor de uma vida, que partilhou com Ichimei Fukuda, o filho do jardineiro dos tios: «Conhecera-o no magnífico jardim da mansão de Sea Cliff, na primavera de 1939. Na época, ela era uma menina com menos apetite do que um canário, que de dia andava calada e de noite chorava, escondida nas entranhas de um armário de três espelhos no quarto que os tios tinham decorado para ela (...)» (pág. 49). Mas neste romance Isabel Allende não cria espaço para o amor romântico das suas outras obras e a classe social pode falar mais forte. O humor irreverente da escrita de Isabel Allende sempre foi um dos seus fortes, característica que se acentuou mais depois dos seus primeiros romances, como se pode comprovar em alguns dos momentos deste romance: «Na opinião de Seth, no início de 2010, de repente, em cerca de duas horas, alguma coisa afectou a personalidade da avó. Sendo ela uma artista de êxito e um modelo no cumprimento dos deveres, afastou-se do mundo, da família, dos seus amigos, e refugiou-se numa residência geriátrica que nada tinha a ver com ela, passando também a vestir-se como uma refugiada tibetana (...).» (pág. 42). Ou quando a nora pergunta a Alma o que irão dizer às pessoas, esta responde pronta-

fotos: d.r.

A escritora chilena Isabel Allende mente: «- Digam que estou velha e louca. Não estarão a faltar à verdade» (pág. 43). Outra das principais qualidades da escrita de Isabel Allende é o seu estilo narrativo ao jeito mágico realista que, apesar de ter tido o seu expoente máximo em A Casa dos Espíritos, ainda se respira entre as páginas desta obra, conforme se pode verificar logo no início do romance, quando o empregador de Irina a prepara para algumas das particularidades do seu trabalho na Lark House: «- Por último, menina Bazili, devo mencionar-lhe a questão dos fantasmas, porque certamente será a primeira coi-

sa que lhe dirá o pessoal haitiano./- Não acredito em fantasmas, senhor Voigt./- Felicito-a por isso. Eu também não. Os de Lark House são uma mulher com um vestido de tule cor-de-rosa e um menino de três anos..» (pág. 14). A opinião de Irina sobre os fantasmas, aliás, iria mudar muito em breve... Esta obra percorre ainda diversos episódios históricos e questões significativas mas sempre num contexto muito suave, sem verdadeiramente aprofundar esses temas ou momentos da história da Humanidade, como a diáspora

Autora regressa às histórias de grande fôlego com 'O Amante Japonês'

judaica, o ataque surpresa do Império Japonês a Pearl Harbor ou o racismo. Talvez pelo facto de não ser um facto histórico muito conhecido, a descrição do que se sucede nos Estados Unidos da América nos meses seguintes ao ataque a Pearl Harbor é um dos momentos mais fortes do romance, onde se descreve a forma como, por se temer um novo ataque por parte do Japão e como meio de prevenir ataques de ódio aos asiáticos pela própria população americana, todos os japoneses que viviam na costa do Pacífico, isto é, cerca de vinte mil homens, mulheres e crianças, são evacuados por “razões de segurança militar” para dez campos de concentração em zonas isoladas do interior do país. O romance abre-se ainda numa galeria de personagens curiosas e inspiradoras, que justificam sempre uma apresentação detalhada, como, por exemplo, Kathy, a psicóloga da Lark House: «Os anos de imobilidade e o esforço tremendo para sobreviver tinham reduzido o tamanho de Cathy, que parecia uma menina na volumosa cadeira elétrica, mas irradiava uma enorme força, suavizada pela bondade que sempre tivera e que o acidente multiplicara. O seu permanente sorriso e o cabelo muito curto davam-

-lhe um ar travesso, que contrastava com a sua sabedoria de monge milenar. O sofrimento físico libertara-a dos defeitos inevitáveis da personalidade e tinha-lhe lapidado o espírito como um diamante. Os derrames cerebrais não afetaram o seu intelecto, mas, tal como ela dizia, trocaram-lhe os fusíveis e em consequência disso aguçou-se-lhe a intuição e podia ver o invisível.» (pág. 208). O romance pode até estar recheado de estereótipos e lugares comuns (os judeus ricos, a máfia da Europa de Leste, a serenidade dos japoneses) mas ler Isabel Allende é um daqueles prazeres quase culposos embora perfeitamente justificados se considerarmos como a voz da autora é original e criativa. Falta ainda o grande fôlego narrativo de outras obras suas, como Filha da Fortuna, mas é um livro que prende, entretém e seduz o leitor até ao fim, num tom ligeiro, mediante um humor muito próprio e um sentido prático da vida que daria para escrever alguns livros de autoajuda, sem nunca cair no delicodoce daquilo que se pode entender como chic literature (literatura feminina). Em suma, é impossível não nos deliciarmos com quem sabe contar uma história.


Cultura.Sul

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Panorâmica

‘Trajectos’ apresenta antologia da obra de Fernando Silva Grade fotos: ricardo claro

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

São 30 anos de percurso artístico mostrados em jeito de antologia da obra pictórica de Fernando Silva Grade. A abertura da exposição que estará patente no Museu Municipal de Faro e na Galeria ARCO, também situada na Cidade Velha, teve lugar ontem e os dois espaços vão acolher 25 óleos do artista, sobre tela e sobre madeira. “Não se tratando de uma retrospectiva no sentido estrito do termo, é uma antologia que percorre as fases mais importantes do meu percurso na pintura”, disse ao Cultura.Sul o artista. Dezassete dos quadros expostos são oriundos de colecções privadas e, por isso mesmo, Fernando Silva Grade, reconhecido aos privados que cederam as suas obras para integrar a mostra, sublinha “o esforço para reunir as obras que fossem marcas de cada uma das fases que atravessei na minha carreira”.

que, embora próximos, vão criar sinergias acabando por participar na geração de um percurso para os visitantes todo ele feito rodeado por património e cultura”, refere o responsável pelo museu da cidade. Na galeria ARCO, sem actividade galerista há bastante tempo, recupera-se assim a função de outrora numa parceria entre o museu, o pintor e as associações ALFA e ArQuente, que cederam os seus espaços para acolher a exposição de um dos artistas ilustres de Faro. Um homem e artista marcante

Fernando Silva Grade expõe 25 telas no Museu Municipal de Faro e na Galeria ARCO da cidadania, reconhece que esta exposição é como “um desenho de traços largos dos caminhos percorridos na pintura que fui fazendo ao longo destas três décadas”.

Um artista com forte intervenção cívica

"Museu municipal não podia deixar de acolher esta mostra de um artista emblemático do concelho"

O artista plástico, também conhecido pela sua intervenção no quadro das questões ambientais e de urbanismo e na área mais alargada

O também autor do livro “O Algarve tal como o destruímos” é visto pelo director do Museu Municipal de Faro, Marco Lopes, como “um ar-

tista do concelho que pela sua relevância não poderia o museu deixar de acolher no seu espaço”. “As várias linguagens artísticas e as variadas temáticas abordadas pelos 25 quadros que integram a mostra são mais uma oportunidade para o museu cumprir a sua função primordial de dar destaque ao património e cultura do concelho de Faro”, reforça Marco Lopes. Apresenta-se assim ao público em dois espaços, traços emblemáticos da obra multifacetada do pintor, criando uma lingua-

Óleo sobre madeira 195x130cm, 2010, série Pedreiras

gem expositiva que visa mostrar a sua evolução e os momentos e escolhas por si criados para expressar a sua arte. Uma exposição que é simultaneamente um convite a percorrer a Cidade Velha entre o Museu Municipal e a Galeria ARCO “O museu ao associar-se nesta exposição à Galeria ARCO cria também uma dinâmica dentro da Cidade Velha entre dois espaços

A exposição - cumpre dizê-lo mostra o trabalho artístico de um homem cujo perfil interventivo, atento e preocupado merece destaque na sociedade farense e algarvia. Trata-se de um rosto que marca em muitos momentos a face visível das lutas pela conservação e protecção da cultura e do património colectivo do Algarve e que é uma referência em termos de intervenção cívica em prol do bem comum. A Cidade Velha mostra agora uma paleta com 30 anos de história na pintura de um homem e artista a quem decerto a cidade e a própria região muito devem, um momento marcante na carreira de Fernando Silva Grade e uma oportunidade rara de melhor compreender o artista num todo desenhado para vivenciar um caminho feito na arte de pintar. A não perder até 22 de Maio no Museu Municipal de Faro e na Galera ARCO, dois espaços na Vila Adentro unidos para mostrar um único artista, Fernando Silva Grade.

Óleo sobre tela 195x1300cm, 2008, série Mosaicos


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Cultura.Sul

Artes visuais

Como se podem integrar a fotografia e a pintura na produção artística? fotos: d.r.

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Muitas vezes, os espetadores da produção artística em artes visuais, ao observarem certos trabalhos, questionam-se sobre “O que é isto? Como foi feito?”. Isto porque, frequentemente, as obras artísticas produzidas não são compreendidas pelo observador/espetador. Isto diz respeito ao assunto/tema, mas também à técnica de produção utilizada. Assim, as técnicas contemporâneas de produção artística levam a que, por vezes, não se compreenda facilmente como são realizadas algumas obras. Temos como exemplo alguns nus femininos produzidos nos anos 50-60 (ver figura 1). A imagem do lado esquerdo, intitulada “Nu azul IV” (1952), foi feita por Henry Matisse recorrendo à colagem, enquanto a do meio, “Silhueta feminina” (1950), foi produzida por Robert Rauschenberg, consistindo na exposição à luz de papel fotográfico onde se deitou uma mulher nua. Nenhuma destas é pintura. A única pintura é a do lado direito, “ATN 13” (1960), embora tenha sido produzida de forma pouco ortodoxa, pois tratava-se de uma técnica utilizada por Yves Klein em que,

Figura 1: Imagens de nus femininos utilizando diferentes técnicas das artes visuais durante 40 minutos, vestido de smoking, aplicou tinta azul sobre três mulheres nuas, para de seguida se encostarem, como “pincéis vivos”, às telas penduradas, enquanto a orquestra tocava a “Sinfonia Monotónica” de Klein (20 minutos de som contínuo ininterrupto, seguido de silêncio de igual duração). Esta Performance de “Antropometrias da Época Azul” foi realizada na Galeria Internacional de Arte Contemporânea de Paris. Desta forma, a arte contemporânea veio abrir as possibilidades relativamente às formas de produção artística e às combinações possíveis na utilização de diversas técnicas. Uma das modalidades de expressão e produção artística cada vez mais frequente na arte contemporânea traduz uma utilização simultânea da fotografia e da pintura. Os trabalhos que utilizam si-

multaneamente a fotografia e a pintura podem ser produzidos através da técnica de colagem. Esta consiste na composição feita a partir do uso de matérias ou objetos apropriados do mundo real para serem colados na tela, contribuindo para a criação de um motivo ou imagem. Surgiu no âmbito da arte moderna, nomeadamente com o cubismo sintético (1912-13), sendo conhecidos, como exemplos, os trabalhos de Picasso intitulados “Natureza morta com cadeira de palha” (1912) e “Guitarra, jornal, vidro e frasco” (1913). No entanto, só posteriormente se começaram a usar fotos nas produções com colagem, embora estas fossem inicialmente um elemento acessório na pintura de uma tela. Assim, sobre a forma de articular fotografia e pintura na mesma tela podemos distinguir entre várias técnicas (ver figura 2).

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Figura 2: Imagens de trabalhos produzidos em que são utilizadas diferentes técnicas na combinação entre fotografia e pintura “BAILARTE FLAMENCO” 30 ABR | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro Espectáculo de cante, guitarra, cajón e baile, que tem como protagonistas Ramón Martínez, Eva la Yerbabuena e Cristina Hoyos

Desde aquelas que utilizam um estilo Pop Art, como na imagem do lado esquerdo (Janszen, 2010), em que a fotografia é impressa na tela e se pinta sobre essa imagem, aquelas em que é utilizada a técnica de pintar a partir da fotografia impressa na tela, como no segundo exemplo da figura (Bradford, 2008), aquelas em que a técnica é pintar e colar fotografias na tela num sentido decorativo, como no terceiro exemplo (Vance, 2008), ou aquelas em que a técnica é pintar sobre fotografias, constituindo estas o fundo do trabalho produzido, como no exemplo do lado direito (Almeida, 1975). Helena Almeida é uma das mais reconhecidas artistas portuguesas

que se dedicaram à fotografia, tendo simultaneamente utilizado técnicas de pintura. O seu trabalho centra-se sobretudo em fotografias a preto e branco tiradas a si própria, sobre as quais realiza pontuais intervenções pictóricas em acrílico. A série de imagens “Inhabited painting” (“Pintura habitada”), realizadas em 1975, é uma das mais conhecidas. A técnica que temos utilizado nos trabalhos de foto-pintura que temos produzido a partir de 2006 tem sido um pouco diferente destas, pois colamos as fotos impressas em papel fotográfico na tela e pintamos a partir daí o resto da tela, podendo também ser pintada parte das fotografias para que seja melhor

conseguida a integração do elemento fotografia no todo que é o trabalho realizado. O objetivo seria que a fotografia e a pintura quase que se diluíssem uma na outra, formando um todo em que quase não seria perceptível onde termina uma e começa a outra. Por exemplo, no trabalho “Sombras no mar” (2007) é mostrado o início do procedimento, em que temos a foto colada na tela, e o final do processo, em que a parte da tela que estava em branco já está pintada, dando continuidade à fotografia através da pintura na tela (ver figura 3). Esta continuidade leva a que, por vezes, também seja pintada parte da fotografia, deixando de haver limites rígidos entre a fotografia e a pintura, para ambas contribuírem para o produto final. Assim, há várias formas possíveis de combinação possível na articulação da fotografia e da pintura na produção artística em artes visuais, não tendo que um elemento ser predominante em relação ao outro, pois ambos contribuem para o todo que é a obra de arte produzida, sendo o todo mais do que a mera soma das partes. Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigo encontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)

Figura 3: Quadros em que foi utilizada a técnica de colagem, em cima “Sombras no mar” (Jesus, 2007) “PLAZA SUITE” 15 ABR | 21.30 | Cine-Teatro Louletano Alexandra Lencastre e Diogo Infante são os protagonista de uma comédia sobre o amor, encarnando as desventuras de dois casais, muito diferentes, que enfrentam momentos cruciais nas suas vidas


Cultura.Sul

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Espaço ALFA

A fotografia na terapia

Tânia Guerreiro Membro da ALFA

Há vários anos que a fotografia é usada como terapia ou como forma de complemento da mesma. O registo mais antigo que existe do uso de técnicas de terapia com base em fotografias data de 1856 pelo Dr. Hugh Diamond. O de Fotografia Terapêutica é ainda mais antigo, data de 1844 pelo Dr. Thomas Kinkbride. Mais recentemente, a Drª. Judy Weiser, considerada pioneira no uso destes métodos na terapia, em 1973 usou fotografias nas suas consultas com crianças surdas e é também autora do livro “Phototherapy Techniques Exploring the Secrets of Personal Snap-

shots and Family Albums”. A diferença “Fototerapia” e “Fotografia Terapêutica” é a seguinte: a “Fototerapia” é o uso de fotografias numa sessão de terapia conduzida por um profissional, em que as mesmas são usadas por exemplo: para despertar e confrontar diversos tipos de sentimentos e memórias e ajudar o paciente a lidar com os mesmos. A “Fotografia Terapêutica” é o uso de actividades fotográficas como forma de terapia que podem ser iniciadas e conduzidas pela própria pessoa sem a assistência de um terapeuta ou que podem ser usadas como complemento de uma terapia conduzida por um profissional. Podem ainda também ser usadas para o sujeito expressar algum tipo de sentimento, preocupação ou defender uma causa social. Estas duas formas de usar a fotografia na terapia podem ser executadas em separado ou então em conjunto (ex: um “paciente” realiza actividades

fotográficas como forma de exprimir um sentimento com o qual não consegue lidar de

outra forma e o resultado dessas actividades (as fotografias) é usado numa terapia condu-

zida por um profissional para o ajudar a lidar com esse mesmo sentimento).

Fontes: phototherapy-center.com; preconsciouseye.com

Filosofia dia-a-dia

O Jardim de Epicuro

Maria João Neves Ph.D

Investigadora da Universidade Nova de Lisboa

O que é que mais deseja nesta vida? Ser feliz? Haverá alguém que queira aumentar o seu sofrimento e diminuir o seu prazer? Se todos queremos mais alegria e menos tristeza por que motivo as nossas vidas não parecem experienciar-se desse modo? Seremos todos vítimas de um destino cruel? Ou andaremos a fazer qualquer coisa de muito errado? Em 306 a.C., Epicuro (341-270 a.C.) adquiriu em Atenas uma casa grande rodeada de um enorme jardim. Ali se instalou com um grupo de amigos e seguidores, vivendo em comunidade uma vida frugal. Pouco a pouco a fama deste filósofo que ensinava como viver uma vida feliz chegou aos sítios mais recônditos. Jovens

provenientes de distantes regiões começaram a acampar no jardim, escutando avidamente os ensinamentos do excelso sábio. Em troca cuidavam do jardim e da horta. Assim nasceu uma das mais proeminentes escolas filosóficas da Antiguidade que ficaria para sempre conhecida como O jardim de Epicuro. Do muito que Epicuro escreveu apenas alguns fragmentos chegaram até nós. Sobreviveram, contudo, três cartas completas endereçadas a discípulos. A Heródoto escreveu sobre física atómica; a Pítocles sobre os fenómenos celestes e a Meneceu a epístola que ficou conhecida até aos nossos dias como A carta sobre a felicidade. Nela se garante que não só a prática de tais ensinamentos conduzirá à felicidade plena, mas também a sentir-se como um deus imortal entre os homens mortais. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...” mas naquilo que é essencial seremos assim tão diferentes de um ser humano do séc. IV a.C.? Olhemos para os nossos medos e para os nossos anseios e vejamos o que tem Epicuro

a dizer sobre o assunto. A maioria de nós receia acima de tudo a morte. Epicuro diz-nos que não há que temer a morte pois “quando estamos vivos, é a morte que não está presente; pelo contrário, quando a morte está presente nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos nem para os mortos, já que para aqueles não existe, ao passo que estes já cá não estão”. Por outro lado, há que eleger a qualidade em detrimento da quantidade, “assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo [o homem feliz] colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve”. Quando a adversidade nos assalta tendemos a cair no desespero, e quando algo que muito desejamos tarda em concretizar-se somos tomados pela ansiedade. Epicuro trata estes males com um entendimento objectivo do tempo futuro, que não é nem totalmente nosso nem não-nosso: “não devemos esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desespe-

d.r.

rarmos como se não estivesse por vir jamais”. E que dizer sobre o desejo, muito frequente hoje em dia, de ganhar o euromilhões? Epicuro aconselha a distinguir bem os desejos porque os há naturais e necessários (ex: alimentação, sono) mas também os há inúteis ou prejudiciais (ex: riqueza, glória). A estupidez de uma avaliação errónea nesta matéria leva direitinho à infelicidade! Por outro lado, “desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil

de conseguir. Difícil é tudo o que é inútil”. Como bem diz o ditado: “não é mais rico quem mais tem, mas aquele que menos necessita”. Há que valorizar as coisas simples, “habituar-se a um modo de vida não luxuoso não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida”. E se colocássemos algumas frases de Epicuro nas paredes dos centros comerciais? Talvez não fosse bom para o negócio mas ajudaria à consciencialização de que com-

prar não nos garante felicidade. É frequente o estabelecimento da equivalência entre a felicidade e o sentimento de prazer. Também Epicuro afirmava que o fim último é o prazer. Por este motivo foi muitas vezes erroneamente interpretado. O excelente filósofo não se referia a banquetes ou orgias, pelo contrário, entendia o prazer como “ausência de sofrimentos físicos e de perturbação da alma”. Conviria, portanto, “avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos” e, sobretudo, remover as opiniões falsas. A vida bem vivida é uma vida examinada em que se investigam as causas de toda a escolha e de toda a rejeição. Como vimos no princípio deste texto, apesar de cada um de nós ser distinto e inconfundível, talvez sejamos todos mais parecidos do que à partida se supõe. O jardim de Epicuro perdurou durante sete séculos depois da morte do seu fundador, promovendo a felicidade através da saúde do corpo, da vivência dos prazeres moderados e da serenidade do espírito.


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Cultura.Sul

Sala de leitura

Amália ao sul (II)

Paulo Pires

Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

Rumo ao sul, “passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa!”, escreveu Miguel Torga no seu livro Portugal, de 1950. No Algarve não se via verdadeiramente dentro da pátria nem fora dela, mas sim “numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril” e onde “um poeta tem a sensação de que se pode viver do ar, sem ninguém ter necessidade de pensar sequer no dia de amanhã”. Talvez seja sobretudo essa leveza e volúpia dos sentidos, essa “miragem dum céu deste mundo” (Torga), que tanto fascinaram muitos dos que, ao longo dos tempos, rumaram a este algarve d’aquém-mar, placa giratória de culturas e imaginários que temperaram e sedimentaram a identidade mediterrânica. Terá sido também isso, aliado a um espírito irrequieto e fervilhante, e a uma saúde mais débil a precisar de outros ares, que levaram a escritora e tradutora Fernanda de Castro (19001994), casada com António Ferro (homem forte de Salazar na área do fomento cultural subordinado aos fins políticos do regime), a cultivar uma ligação estreita com o Algarve, que, segundo ela, possuía três milagres: a praia da Rocha, o promontório de Sagres e as amendoeiras em flor. Mantinha mesmo uma casa em Alporchinhos (concelho de Lagoa), que alugava ao ano e da qual registou diversas impressões nas suas memórias, recordando a simplicidade, virgindade e quase despovoamento do lugar, e remetendo-nos para um Algarve outro: […] a praia deserta, o rochedo com 200 ninhos de gaivotas no dizer dos pescadores, a vinha a perder de vista, as figueiras carregadas de figos doces e pequenos, o cheiro a maresia e as ervas aromáticas, os crepúsculos incomparáveis e um céu carregado de estrelas – em parte alguma via tantas estrelas cadentes –, e ainda o silêncio e os sons que também eram silêncio, marulho

das ondas, pios de gaivotas, adejar de asas. Ao longo do ano de 1963 Fernanda de Castro desdobrou-se em visitas ao Castelo de Silves, Quinta de Mata-Mouros, rio Arade, cais de Portimão, praça pombalina de Vila Real de Santo António, Tavira e suas inúmeras igrejas, praia da fortaleza na praia da Rocha, Olhão, Albufeira e a outros lugares com o intuito de organizar o I Festival do Algarve. Fruto da sua rede privilegiada de relações e contactos, apresentou o projecto ao então secretário nacional da informação, Dr. Moreira Baptista, argumentando nestes moldes: “Acho que o Algarve começa a ser muito conhecido no estrangeiro, mas a verdade é que, tirando o sol, o mar e as praias, o turista não tem nada que fazer além do banho e das refeições”. Autorizado o evento pela tutela, o staff organizador seria composto pelo irmão de Fernanda, Francisco Telles de

In memoriam João Belchior Viegas À Teresa Oliveira e ao Gonçalo Couceiro

tados, respectivamente, sonetos camonianos e excertos d’Os Lusíadas, e o poema dramático de Ary dos Santos "Tempo da Lenda das Amendoeiras", o qual ganhou aqui uma importante consagração. Amália Rodrigues, que acreditava nas origens árabes (e marítimas) do fado, encarando-o como expressão de uma queixa, foi uma das protagonistas deste I Festival, dada a proximidade e amizade com Fernanda de Castro. A relação da fadista com o Algarve já remontava aos anos 40 (como atestam várias fontes), com passagens pela região para concertos, sobretudo nos casinos mas também em festas de cariz mais popular, sempre com assinalável sucesso para a já então considerada “rainha do fado”. A actuação de Amália na "Festa da Lua", em Armação de Pêra, seria um dos pontos altos do evento, tendo como pano de fundo um mar repleto de bar-

escondidas na sombra e a voz de Amália, vibrante, pura como um cristal, abalou o silêncio, a noite, a própria Lua que a iluminava. Havia uma leve aragem e eu disse à Jacqueline, que tinha vindo passar umas semanas a Alporchinhos: – Dommage qu’il fasse un peu froid. Ao nosso lado uma francesa, elegante e muito bela, voltou-se para mim, sorriu e disse: – Qu’est-ce que ça fait, madame! C’est beau, c’est terriblement beau! Depois de cantar duas horas, Amália andou de grupo em grupo na praia, dando-se ao povo, agradando-o – um dia confessaria mesmo que, no fundo, essa era a sua única pretensão –, como tanto apreciava/precisava. A organização do festival preparara, sobre a areia, vários repastos típicos: “vilas” de amêijoas, ostras e polvos grelhados, azeitonas britadas com orégãos, pão de trigo, queijos de Serpa,

cado na memória das gentes de Armação durante o período áureo do casino local, por onde passavam, nos períodos estivais, as principais figuras da música nacional. Depois de uma actuação em Quarteira, a fadista honrou o palco do casino com um espectáculo, mas dada a enorme e entusiástica afluência de público a actuação acabaria por se realizar no exterior, em pleno Mini-Golf, numa noite marcante que ficou indelevelmente gravada na memória colectiva. Antes do concerto, e dada a sua atenção sensível e deslumbramento por paisagens naturais, Amália, Ary dos Santos e seus amigos terão inclusive desfrutado da beleza da baía a partir do miradouro da Rocha da Palha. Antes, em 1950, o encenador Filipe La Féria também ficara impressionado quando, aos cinco anos, viu pela primeira vez Amália e ouviu o povo que circuzdava o então Casino Oceano, em d.r.

Amália Rodrigues actuando no Hotel Algarve (Praia da Rocha), em 1969 Quadros e Castro, a escritora Edith Arvelos, a pintora Inês Guerreiro e o poeta José Carlos Ary dos Santos. O arrojado evento, que se estendeu assim a vários pontos do Algarve, só se concretizaria em 1964, iniciando-se a 12 de Agosto no Castelo de Silves com um espectáculo cuja primeira parte foi dedicada à música e poesia árabes, com a colaboração especial de Larbi Jacoubi (então director do Teatro Universitário de Tânger) e dos irmãos e músicos Hamza Ouazzani e Abdellatif Ouazzani (príncipes marroquinos). Na segunda e terceira partes foram apresen-

cos engalanados e iluminados, e no meio do areal uma embarcação colorida, rodeada por uma guarda de honra de pescadores, de remos ao alto. Fernanda de Castro registou na sua autobiografia este momento mágico em que a energia do lu(g)ar, o simbolismo do cenário montado para o efeito e a envolvência poética da música se fundiram harmoniosamente: E, sobre esse barco, pálida, sob a pálida brancura da Lua, Amália, sozinha, de pé, com um vestido negro que a tornava ainda mais branca. Na praia, coalhada de gente, um silêncio mortal. Começaram a ouvir-se as guitarras

vinho de Lagoa e de Portimão, figos e amêndoas, morgadinhos e dom-rodrigos, aguardente de medronho, etc. O já aludido Larbi Jacoubi ficaria visivelmente impressionado com a força e verdade com que a voz de Amália exprimia a tristeza pura e poética ou a existencial alegria de viver, tirando do dedo um anel que lhe ofereceu dizendo-lhe: “Como vê, este anel tem como adorno um olho de boneca. Tenho outro igual em Tânger, com o outro olho da mesma boneca. Use este, que eu vou usar o outro, e assim ficaremos ligados até ao fim da vida”. Já em 1962 Amália tinha fi-

Monte Gordo, a chamar e gritar por ela, o que até levou a que a segunda parte do espectáculo fosse realizada na varanda do edifício com a fadista a cantar para a numerosa população, num gesto de generosidade e dádiva ao seu público. Revisitando mais uma vez memórias das conversas com o João Belchior, penso que Amália tinha essa capacidade rara (uma espécie de dicotomia quase “esquizofrénica” e cativante) de convocar a alegria solar, a festa, a dança e o riso com a mesma intensidade e verdade com que cantava a tragédia e derramava lágrimas sobre o mundo, sem

se inclinar ou revelar necessariamente uma opção muito clara por um desses registos/dimensões – e talvez por isso gostasse tanto de citar o espanhol Antonio Machado (1875-1939), um dos seus poetas predilectos: “A todos nos han cantado / en una noche de juerga / coplas que nos han matado…” (do poema “Cante Hondo”). Na 2.ª edição do Festival do Algarve, realizada em 1965, Amália voltaria a participar, desta vez cantando em Albufeira numa grande esplanada na praia. Dado o vento e a humidade do ar, a fadista estava preocupada com a sua garganta, tendo em conta até que iria cantar a o ar livre. Daí que Inês Guerreiro, da organização, tenha falado “com um velho marinheiro e com o auxílio deste montou no estrado uma vela de traineira que, logo que Amália começou a cantar, se ergueu como se o estrado fosse de facto um barco a fazer-se ao mar”. O belo efeito de cena que a solução originou, protegendo ao mesmo tempo a voz de Amália do vento, foi recebido com uma enorme ovação pelas centenas de pessoas (sobretudo estrangeiros) que estavam presentes no local, segundo também recorda Fernanda de Castro. Quando, nesse mesmo dia, num momento de maior relaxamento, a escritora perguntou a Amália o que sentia perante o enorme reconhecimento mostrado lá fora por plateias cosmopolitas, a sua reacção inicial foi de silêncio, e a resposta foi: “Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados.” Amália nunca aprendera a cantar e nem sabia porque cantava, como sublinhava amiúde. Mas a sua intuição, ouvido e instinto (uma espécie de inteligência-bruxa que lhe dizia do bem e do mal) eram porventura os seus traços mais vincados e a sua “única e exclusiva arma”, como até confessou. Porque a canção popular portuguesa talvez seja – como ela definiu, com uma clarividência genial, numa entrevista a Miguel Esteves Cardoso em 1982 – duas ou três notas que não valem nada e que nos comovem. (continua na próxima edição)


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Abril amor arrebatado, parecia-lhes fácil encarnar aquelas personagens. À medida que se aproximava o dia da estreia a relação amorosa deles ia-se deteriorando ao mesmo tempo que a paixão em palco se acalorava. Na noite do dia mundial do teatro, foram efusivamente aplaudidos. Foram os últimos a deixar os camarins. Depois à porta do teatro, cada um seguiu sozinho para um dos lados da rua.

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

é senão mesmo o sol, e a temperatura que se insinua pelo dia, que te faz ficar só de roupão turco vestido, sob o alpendre a despelar as novas nêsperas, provando da sua polpa suculenta, doce ou ácida…

“Sextas da Primavera”

Edita 35 / 36

Sinónimos de Leitura

O Dia fotos: d.r.

Viajar de comboio ou na linha dele na penumbra da manhã. Ir de barco ou na rota dele na neblina da tarde. Andar a pé ou na calçada dele na humidade da noite. Adormecer no sofá ou nas margens dele na calada da madrugada

A Gorda volta a atacar Amanhã, sábado 9 de Abril, pelas 21h30. Desta vez no Cine-Teatro António Pinheiro em Tavira. João Evaristo e Joaquim Parra, trazem «Mê Menine, e a Tua Mãe!?».

No dia mundial do teatro

De 11 a 22 de Abril, a Biblioteca Municipal Vicente Campinas de Vila Real de Santo António leva a cabo a 5ª edição de «Sinónimos de Leitura». Esta iniciativa anual gira em torno da leitura, em todas as suas acepções e perspectivas e do universo que a rodeia e a torna possível. Na Biblioteca, os escritores, os contadores, os editores, os livreiros, artistas, e os leitores de todas as idades, juntam-se numa semana de atividades - leitura da poesia ou da prosa, mas também a do livro científico, a leitura da pintura, do cinema, da dança, da fotografia ou do teatro, cruzando-se na leitura do mundo. A edição deste ano, conta com a presença, entre outros, de Bru Junça, Carlos Brito, Catrapum Catrapeia, Cristina Valente, Dulce Maria Cardoso, Fernando Évora, Jacinto Palma Dias, Lénia Santos, Luís Carmelo, Luís Ene, Luís Portela, Marina Palácio, Nelson Ramiro, Pedro Leitão, Pedro Santos, João Pereira e Pedro Tavares, Poetas do Guadiana, Rituais Dell Arte, Rodolfo Castro e Susana de Sousa.

O Festival Iberoamericano de La Edición, La Poesía y Las Artes, decorre em Punta Umbria (Huelva) de 29 de abril a 1 de maio. Concentra no Teatro del Mar a grande parte das suas actividades – exposições, mostra de edições/editoras e feira de livro, apresentações, concertos. No bar Casa del Ingles 1880 terão lugar os recitais e performance. O evento conta com a participação de vários autores/editores algarvios. Uberto Stabile, o coordenador deste festival, escolheu este ano precisamente o Algarve para a edição 36, que terá lugar na semana seguinte, em Tavira e V.R. Stº António, entre os dias 5 e 7 de Maio (programa a anunciar brevemente).

o tempo …

«(…) não há melhor sítio do que a concha ancestral do mediterrâneo para fazer amigos eternos, mesmo que essa eternidade possa durar o lacónico curso de um só verão apenas.»

Das novas nêsperas

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Quando os ensaios começaram três meses antes, Carlota e Henrique eram um casal, assim..., digamos que… feliz. Na peça, uma história de

Essas árvores plantadas em campos sobranceiros ao mar dão frutos tão afrodisíacas como qualquer outro de casca aveludada. Mas não “INSTALAÇÃO PEOPLE” Até 7 MAI | Galeria de Arte da Praça do Mar - Quarteira Pinto da Silva apresenta uma exposição sobre a vida, desde que nascemos, quando espreitamos os primeiros raios de luz e precisamos de protecção, até à nossa partida

Ciclo de 4 concertos na Casa do Povo de Santo Estevão, sempre às sextas-feiras, 22h, traz Lula Pena já a palco, no 15 de abril, seguindo-se até junho Norberto Lobo, B Fachada e Benjamin. Tem por objectivo levar música e público até ao barrocal do concelho de Tavira, numa perspectiva de educação para as artes com base na descentralização, combate à exclusão social, desertificação e envelhecimento. Integrado no programa municipal “Viva a Primavera” elaborado em parceria com as associações culturais do concelho, que visa estimular e valorizar a criatividade da comunidade, a iniciativa das organizações e o aparecimento de novos talentos artísticos, num período de renovação da natureza que vai do equinócio da Primavera ao período do solstício de Verão.

o tempo que se esfuma nas dimensões do real, que é o mesmo que essa rotina que nos consome…

Depois de «Postais da Costa Sul» e «Alma», Pedro Jubilot lança agora «Telegramas do Mediterrâneo», pela editora CanalSonora. O novo livro do autor olhanense radicado em Tavira, será lançado nos encontros «Edita» de Punta Umbria e Tavira. Um pré-lançamento da obra terá lugar a 23 de abril – dia mundial do livro – em local a anunciar, estando já prevista uma das apresentações para 4 de junho na Biblioteca Municipal de Tavira.

“BEBER’ARTE” Até 7 MAI | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira A mostra, que presta homenagem ao universo vínico, integra serigrafias, litografias, gravuras e posters que pertencem à colecção particular da enófila Ragnhild Olsen


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Cultura.Sul

Espaço ao Património

Ficha Técnica:

A luz das conservas: património e design

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro d.r.

Daniela Braz

Docente de Design de Comunicação no Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes Diretora Criativa na Porquê Design

O presente artigo tem como objetivo demonstrar como é possível, através de um projeto académico de alunos de Design de Comunicação, ativar e potenciar o valor estético do património, em particular das composições gráficas desenvolvidas por ilustradores, tipógrafos e litógrafos para a comunicação visual dos envoltórios das latas de conserva, de algumas fábricas portuguesas dos finais do século XIX, até meados do séc. XIX. Para a concretização deste projeto houve necessidade de seguir uma metodologia projetual que assentou no Método para o Desenvolvimento de Projetos de Design-Gráfico-Sistemas de identidade visual, de Maria Luísa Peón. Para Peón (2001), a metodologia é o conjunto de métodos utilizados na realização de um objetivo e também seus estudos e análises. A metodologia, portanto, não é o objetivo em si, mas apenas uma ferramenta de auxílio na resolução de um problema. Peón explicita a necessidade da criatividade no início do seu método e prevê uma pesquisa qualitativa para avaliação dos resultados preliminares. Somente com a “aprovação” dos resultados por uma amostra do público-alvo é que o projeto é finalizado e implantado. Este método prevê igualmente uma sequência de etapas sucessivas cronologicamente, denominado fluxograma, que resume o processo de projetação. Este fluxograma encontra-se dividido em três grandes fases: problematização, conceção e especificação. A primeira fase consistiu no reconhecimento do problema – desenvolver uma exposição com base numa identidade gráfica gerada pela indústria conserveira existente em Portugal, desde o final do século XIX até meados do século XX.

A exposição 'A luz das conservas' esteve patente no Museu de Portimão em 2015 Efetuámos uma recolha e seleção de envoltórios de várias fábricas portuguesas. Reunidos os exemplares, considerou-se pertinente proceder ao estudo desse material, através da identificação dos conceitos e elementos fundamentais da representação bidimensional. Para Wong (2007), os elementos que formam uma composição bidimensional, determinando a sua aparência e o seu conteúdo, podem ser classificados da seguinte forma:

 1. Elementos conceituais, que não são visíveis, porém, parecem estar presentes, como ponto, linha, plano e volume;

 2. Elementos visuais, que são os traços e manchas que expressam os elementos conceituais e os tornam visíveis, com formato, tamanho, cor e textura;

 3. Elementos relacionais, que dizem respeito à localização e às inter-relações dos formatos de um desenho e são percebidos como direção e posição ou

como sentidos, espaço e gravidade; 
4. Elementos práticos, que estão relacionados com a funcionalidade, o conteúdo e a importância da representação, definindo o “porquê” do desenho. Após esta recolha, passamos à fase da conceção, dividida em cinco etapas. Na primeira (geração de alternativas), todas as necessidades e restrições do projeto foram levadas em consideração para a geração de alternativas e, segundo Peón, quanto mais alternativas, melhor. Na etapa seguinte (definição do partido), os conceitos desenvolvidos foram avaliados de maneira que se pudesse escolher aquele que mais traduziu as necessidades do projecto, e que serviu como solução preliminar. Esta solução foi mostrada e testada a uma amostra do público-alvo, a fim de gerar uma validação por parte do mesmo. Na etapa de solução, avaliados

os resultados, é mais uma vez aperfeiçoada a solução final. Na fase da especificação, foram feitos desenhos técnicos e tridimensionais dos elementos do sistema expositivo, desde as peças a expor, como as de divulgação e promoção do evento, a maqueta virtual da exposição e as artes finais para impressão. Por último a implantação. A preparação e pintura das bases dos candeeiros, a produção dos abajures, a instalação elétrica, a produção dos materiais promocionais e a montagem da exposição “A luz das conservas”, que esteve patente no Museu de Portimão de março a maio de 2015. Segundo Costa (2011, p.165), o que define o design gráfico é a sua essência visual, e os olhos não são mais do que terminais do cérebro na sua conexão com o exterior. Neste contexto, percebe-se que o design gráfico tenha um du-

Projeto envolveu várias áreas de atuação do design

plo destino: a sensibilidade estética e o conhecimento. Percebemos assim, que a atuação por via do design, ao nível da sensibilidade estética, foi determinante no processo de otimização do património gráfico, de técnicas de desenho tipográfico, registos de marcas, conjugações cromáticas e técnicas de composição e impressão, deixado por estes envoltórios. Considerando o design como uma mistura de conhecimento, criação e aplicação (Heylighen et al, 2009), tornou-se relevante criar um objeto expositivo e simultaneamente útil e funcional. Como Bernd Löbach defende no seu livro “Design industrial: bases para a configuração dos produtos industriais”, um bom produto de design deve atender a três funções básicas: prática, estética e simbólica. A prática diz respeito à capacidade do produto em atender a uma necessidade de uso. A estética, não diz respeito à beleza do produto mas à capacidade de sensibilizar pelo menos um dos sentidos humanos. Além da função percetiva dos elementos estéticos, a função simbólica evoca associações à cultura e aos movimentos artísticos da época. Este projeto envolveu várias áreas de atuação do design, o que tornou a experiência muito válida para quem se prepara para a profissão de designer. O desafio foi superado, a exposição revelou um forte valor estético e fica a ideia de que há muito a fazer pelo património existente nos museus do país. Referências Bibliográficas: Costa, Joan. (2011). Design para os olhos – Marca, Cor, Identidade, Sinalética. Lisboa. Dinalivro. Heylighen, Ann; Cavallin, Humberto; Bianchin, Matteo. (2009). Design in Mind. Design Issues, Volume 25. Lobach, Bernd. (2001). Design Industrial - Bases para a configuração dos produtos industriais. Tradução Freddy Van Camp. São Paulo: Editora Egard Blucher. Peón, Maria Luísa. (2011). Sistemas de identidade visual. Rio de Janeiro: 2AB. Wong, W. (2007). Princípios da Forma e do Desenho. São Paulo. Martins Fontes.

Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Ana Borges Daniela Braz Tânia Guerreiro Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.615 exemplares


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

«Escrever é…», de Luís Ene fotos: d.r.

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

Luís Ene (autor apresentado neste jornal, na edição de fevereiro de 2015) publicou, em fevereiro de 2016, sob a chancela da Lua de Marfim, Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido, um conjunto de 45 contos ao longo de 67 páginas. Alguns têm duas linhas, outros ocupam cinco páginas. Esta variação de dimensão é progressiva e vai permitindo o dobrar e desdobrar de palavras, personagens, assuntos, enfim, o material de que o autor dispõe para construir as suas narrativas. Daí que não se estranhe a repetição de frases, o reaparecimento das personagens em contos distintos ou até o mesmo nome em personagens diferentes. São tantos (quase infinitos) os caminhos por onde um texto pode andar, que Luís Ene não os quis desperdiçar, exercitando a sua mestria. Percursos possíveis

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Tal como a escrita, a nossa leitura não tem de ser sempre linear, e este livro é um desafio à descoberta dos itinerários que ele nos pode dar: «Descobriu assim que uma história podia aparecer de diversas formas e de diversos tamanhos e, sendo sempre a mesma história, era ao mesmo tempo sempre uma história diferente.» (conto 45, p.66). E assim há histórias que continuam noutras. Ou há palavras que se dobram e se desenvolvem em histórias diferentes. Por exemplo, há uma espécie de expansão do conto 1 no conto 19. O primeiro é pequenino, mas contém os elementos que vão ser reutilizados no conto 19 (e em outros, onde as palavras

«embrulhar» e «desembrulhar são exploradas nos seus diversos sentidos e utilizações»). Conto 1 «‘Um dia embrulhado’. O dia estava embrulhado; aproveitei e levei-o comigo, para oferecer a uma amiga muito especial. Era um dia cinzento e triste, perfeito para a minha amiga, que é dada à melancolia». O conto 19 é maior (ocupa cerca de 1 página), já nos indica o nome da amiga e algumas das suas características. Este conto enquadra o anterior, dando um sentido ao final escolhido. Porque a amiga «dizia que os presentes deviam ser especiais, deviam dizer não só alguma coisa a quem os recebia mas também a quem os oferecia. Se não se tinha um presente assim, mais valia não oferecer qualquer presente. O dia estava embrulhado e ele sabia o que fazer com ele. Não hesitou, levou-o para oferecer à Cecília. O dia era cinzento e triste, mas a sua amiga era dada à melancolia» (p.12). A escrita Deixei, acima, no título desta página, o nome do livro propositadamente incompleto, como tentativa de resumir, naquelas duas palavras, uma das temáticas recorrentes do autor, que é a reflexão sobre a escrita e sobre o ato de escrever.

do e o nosso real, com o qual descodificamos aquela ficção: «Observo o gato Benevides e de imediato ele entra na minha escrita, como me acontece muitas vezes não só com ele mas com muitas outras realidades, porque se podemos eventualmente questionar que toda a realidade seja ficção, ainda que percepcionada e construída por nós, dificilmente se poderá afirmar que a ficção, apesar de invenção, não é construída a partir do real (…). Escusado será explicar que o gato Benevides que se passeia nesta folha é outro gato que não aquele que observo, ainda que tire a sua verdade do gato original» (p.26). Bem e mal, amor e morte

Luís Ene publicou a sua última obra no passado mês de Fevereiro No conto 25, há uma explicação mais completa da forma como faz a escrita acontecer: «Sentei-me e comecei a escrever, uma palavra depois da outra, à espera que no final tudo fizesse sentido; um novo sentido que fosse muito além do sentido inicial. Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um

sentido, escrevi uma vez, ainda que não esteja certo que a frase seja realmente minha. Com a escrita nunca se sabe, e eu tenho sempre dúvidas quanto à autoria do que escrevo, mas, em contrapartida, acredito nas palavras e nas histórias que elas contam, ainda que se escrevam muitas vezes quase sozinhas, até tanto melhor d.r.

Livro integra um conjunto de 45 contos ao longo de 67 páginas “DO PRINCÍPIO” 9 ABR | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro O músico Tiago Bettencour faz uma viagem pela sua carreira de mais de dez anos, iniciada com os Toranja, onde não vão faltar todos os seus grandes sucessos

quanto menos eu interferir. As histórias estão como que em suspensão, é o que acredito, e é preciso encontrá-las e fazê-las aparecer, revelá-las, como uma fotografia. Escrevi uma frase, depois outra, desdobrei a primeira, dobrei a segunda, e fui dando espaço para a história surgir. Às vezes surgia logo em seu formato final, outras era apenas um vislumbre, um quase nada, mas a maior parte das vezes percebia que tinha uma história, ainda que não estivesse a vê-la por completo. Outras vezes a história não aparecia mesmo, não aparecia mesmo de um todo, como foi o caso» (pp.17-18). Este tema vai aparecendo pelo livro. No conto 31, aproveitando a presença do gato Benevides, há uma nova reflexão sobre a ficção e a confusão que se pode fazer entre escrita e realidade: um momento de metaliteratura (ou metaficção), que também nos leva, como leitores, a pensar sobre qual o nosso papel nesta dinâmica que se estabelece entre um real alheio que é ficciona-

Os temas dos contos são variados, mas há um privilégio de assuntos que nos levam a pensar sobre os limites a que nos leva o amor, independentemente do objeto da nossa afeição e da própria definição desse sentimento; sobre a morte e a sua presença na vida, mesmo quando a queremos ignorar; sobre o bem e o mal e o quão difícil é definirmos as suas fronteiras. O conto 6 é um perfeito exemplo: «‘O bem e o mal’. Era um homem mau, capaz no entanto de boas acções. Com o tempo, tornou-se um homem bom, capaz no entanto de más acções. Os seus inimigos nunca deram pela diferença. Os seus amigos também não». Em geral, os contos estão organizados para que nos surpreendamos com o seu final. São construídos para, eficazmente, nos surpreenderem com o uso de uma palavra ou de uma personagem que faça uma reviravolta. Luís Ene usa de uma forma literal palavras em contextos que esperaríamos que o sentido fosse o figurado (ou vice-versa), pregando, portanto, partidas à nossa expectativa e trocando-nos as voltas. Nestes contos vai encontrar muita reflexão com inteligência e humor.

“DESCORTINAR” Até 30 ABR | Galeria do Convento do Espírito Santo - Loulé Tata Regala apresenta um estudo fotográfico sobre o conceito de retrato, onde as palavras vestem e desnudam


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