CULTURA.SUL 92 - 6 MAI 2016

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

MAIO 2016 | n.º 92 7.700 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.

Letras e leituras:

John Steinbeck:

d.r.

Salman Rushdie

p. 4

Panorâmica: d.r.

Há livros perigosos?

p. 11

‘WATT?’ ou o desafio do desenvolvimento pela arte

p. 5

Artes visuais:

d.r.

d.r.

Qual o espaço para a arte digital na atualidade? p. 6

Filosofia dia-a-dia: d.r.

Paisagens culturais:

Posso ajudar?

p. 7

A Dieta Mediterrânica como oportunidade

p. 2


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06.05.2016

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Algarve volta a marcar agenda do Design

As paisagens culturais algarvias: a Dieta Mediterrânica como oportunidade foto: drcalg/r. parreira

Direção Regional de Cultura do Algarve

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

Já vamos para a sexta edição do Algarve Design Meeting e, este ano, se esta mostra que decorre entre 21 e 28 de Maio mantiver a qualidade das anteriores é razão para visita obrigatória para quem se interessa pela área. A Fábrica da Cerveja em Faro é a montra escolhida para a comemoração da meia dúzia de anos desta iniciativa que colocou o Algarve e em particular Faro na agenda nacional no que respeita ao design e, de acordo com a organização, o espaço será aproveitado para levar até aos visitantes seminários, exposições, workshops, música, cinema, videomapping, entre outras abordagens que decerto não desiludirão quer quem é já presença habitual nestas andanças, quer quem escolha pela primeira vez aproximar-se das mais variadas vertentes do design. A marcar na agenda e a cumprir a marcação, porque decerto só terão a ganhar em conhecer um pouco mais do mundo inspirador do design.

Nota de pesar

AGENDAR

Não deixar nesta edição uma nota de pesar relativa ao falecimento de Querubim Lapa, seria deixar passar em claro o adeus a este espaço que ocupamos momentaneamente de um algarvio e verdadeiro génio das artes. Autor de inúmeras obras e marcantes intervenções artísticas quer em espaços públicos, quer em privados e nos mais variados suportes, tenho pela minha parte de lhe agradecer o painel 'Sol Ardente da Mexicana' que tantas vezes me acompanhou embelezando-me os dias.

Em 1992, na sua 16.ª sessão, o Comité do Património Mundial da UNESCO adotou critérios que permitiam acrescentar a paisagem cultural1 às categorias do Património Mundial2, definindo esta nova categoria de bem cultural como representiva das «obras conjugadas do homem e da natureza» a que se refere o artigo 1.º da Convenção do Património Mundial. Para a UNESCO, «as Paisagens Culturais ilustram a evolução da sociedade e dos estabelecimentos humanos ao longo dos tempos, sob a influência dos condicionamentos materiais e/ou das vantagens oferecidas pelo seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, económicas e culturais, internas e externas». A Convenção Europeia da Paisagem3 feita em Florença, em 2000, no âmbito do Conselho da Europa, designa a paisagem como «uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo caráter resulta da acção e da interacção de factores naturais e ou humanos». Ao ratificar esta Convenção em 15 de Dezembro de 2004, o governo português, pelo Decreto n.º 4/2005, de 14 de fevereiro, comprometeu-se nomeadamente a: - Identificar as paisagens no conjunto do seu território; - Analisar as suas características bem como as dinâmicas e as pressões que as modificam; - Acompanhar as suas transformações. Quais as implicações deste compromisso para as paisagens do Algarve? O Plano Regional do Ordenamento do Território (PROT-Algarve), procurou ultrapassar a clássica divisão tripartida do território algarvio em Litoral/Barrocal/Serra proposta em 1850 por Charles Bonnet4, definindo quatro5 unidades territoriais para o Algarve: Litoral Sul e Barrocal, Serra, Baixo Guadiana e

Vista do moinho de maré a partir do Castelo de Paderne Costa Vicentina. Esta repartição inclui, evidentemente, subunidades territoriais, nem sempre consensual na sua definição. Como testemunho do caráter humano, sempre dinâmico, uma paisagem nunca é estática. Permitindo que os elementos naturais sigam os seus ritmos biológicos próprios, ela está sempre sujeita às mudanças, o que constitui uma enorme dificuldade para a sua preservação. A paisagem é natureza mas também ação humana. Além disso, se a paisagem corresponde a uma parte do território tal como as populações o apreendem, isto significa, desde logo, que a noção de paisagem tem uma componente eminentemente cultural, que a sua relação com as comunidades é dialética, e que a sua abordagem nos conduz, uma vez mais, ao terreno do conflito social. No Alto Douro Vinhateiro, a mais antiga região vitivinícola regulamentada do Mundo, a ação humana dos socalcos sobre a paisagem testemunham e defendem um passado mas constroem um futuro. Em Sintra, primeira paisagem cultural da Humanidade a ser reconhecida em Portugal, a arquitectura, a serra, os parques e os jardins associada a uma história estabelecem uma simbiose quase perfeita entre o real e o sagrado. A Dieta Mediterrânica en-

“PERCURSO COLORIDO” Até 1 JUL | 1º andar do edifício da Câmara de Albufeira Nos seus desenhos Fernanda Nogueira privilegia o lápis de cor, potenciando as suas possibilidades no que respeita à cor, à sobreposição e intercepção de imagens

quanto estilo de vida tem de ter elementos na paisagem algarvia que evidenciem o seu reconhecimento mundial e a sua valorização nacional, regional e local. Podemos enumerar alguns elementos de caracterização: as arquitecturas do sul, as suas tipologias em espaço rural e as práticas de convivialidade associadas; as chaminés e as platibandas; os ciclos produtivos e as festividades associadas; o património genético da fauna e da flora mediterrânicas; a diversidade de habitats e a agricultura de proximidade; a serra, as pastagens e o montado;

mas também a faina piscatória e os seus elementos etnográficos; entre outros. A paisagem não é salvaguardada através de uma gestão do território pura e simples, ou do desenvolvimento de um conceito que alguns designaram como “estética ambiental”, é um todo, um contínuo que deve ser respeitado e valorizado. Este conceito de paisagem foi denominado pelo Arquitecto Ribeiro Telles como “paisagem global”. O que nos faltará para este caminho na relação com a dieta mediterrânica? A definição do referencial.

Este é um ponto de partida para o encontro do Dia internacional dos Museus em Tavira, no próximo dia 18 de maio. A salvaguarda das paisagens tradicionais algarvias deve estar relacionada com a sustentabilidade da Dieta Mediterrânica, um estilo de vida, um modelo cultural milenar, transmitido de geração em geração, que integra formas particulares de relacionamento coletivo, processos e técnicas, festividades, rituais simbólicos e expressões artísticas associadas à produção e consumo de recursos alimentares locais de acordo com as épocas do ano. A diversidade das paisagens tradicionais algarvias tem que ser encarada como um recurso potenciador do desenvolvimento regional6. A sua salvaguarda, conhecimento e valorização enquanto bens culturais (incluindo os seus valores naturais, arquitectónicos, arqueológicos, etnográficos e imateriais), exige uma ampla participação dos intervenientes no processo de ordenamento e gestão territorial para poderem definir-se e avaliar-se criticamente as condições de concretização de objetivos operacionais e mecanismos legais de proteção para o Património Cultural e Natural da região. 1 Ver http://whc.unesco.org/en/culturallandscape#1 2 Ver http://whc.unesco.org/archive/ convention-pt.pdf 3 Ver http://www.gddc.pt/siii/docs/ dec4-2005.pdf 4 Bonnet, C., Algarve (Portugal): Description géographique et géologique de cette province. Lisboa: Academia das Ciências, 1850 (veja-se a excelente tradução anotada dada à estampa pela então Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura em 1990). 5 Mapa em http://www.prot.ccdr-alg. pt/Storage/pdfs/MAPA_01.pdf 6 Ver Alexandre Cancela d’Abreu; Teresa Pinto Correia; Rosário Oliveira, Contributos para a identificação e caracterização da paisagem em Portugal Continental. Lisboa: DGOTDU 2004

Foto de Albufeira

Direção Regional de Cultura do Algarve

“SÍTIOS E LUGARES COM ALMA” Até 27 MAI | Sala de atendimento da EMARP Com predilecção pelas cores alegres e vivas Aurora Neves transforma realidade em abstracção através de uma geometria própria e um jogo de cores muito lúdico


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt CICLO “DELITOS DELAS” IPDJ | 21.30 HORAS 10 MAI | FOXFIRE - RAPOSAS DE FOGO, Laurent Cantet, Fra/Can, 2012, M/14, 143’

17 MAI | MUITO AMADAS, Nabil Ayouch, Fra/Mar, 2015, 106’, M/16 31 MAI | A ASSASSINA, Hou Hsiao-Hsien, Tai/Ch/HK/Fra, 2015, 105’, M/12 23 e 24 MAI | EXTENSÃO INDIELISBOA TEATRO MUNICIPAL DE FARO (programação a anunciar) SEDE | 21.30 HORAS | ENTRADA LIVRE A TELA AO SÓCIO | ANDRÉ PONTE 12 MAI | SAMSARA, Pan Nalin, Índia/ Ale/ Fra/Ita/Suí, 2011, 145’ 19 MAI | DÚVIDA, John Shanley, EUA, 104’, 2008, M/12 26 MAI | PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO, INVERNO... E PRIMAVERA, Kim Ki-duk, SK/ Ale, 2003, 103’, M/12

Junho recheado de documentários em Tavira O cineclube continuará com a sua programação regular todas as quintas-feiras, durante o mês de Maio, ainda no horário de inverno (21 horas). O sábado, 21 de Maio, a propósito do 75 aniversario de Bob Dylan, faremos a projeção do concerto MTV Unplugged. A sessão será gratuita. O cineclube anuncia que a Mostra deste ano decorrerá entre os dias 15 e 25 de Julho e entre 5 e 15 de Agosto. Destaque para as películas: MTV Unplugged - Bob Dylan e Nostalgia de la Luz. Para Dylan, a música é uma coisa bem viva e as coisas vivas mexem-se, mudam de lugar... Por isso ainda hoje continua na sua “Never Ending Tour”, desempenhando cerca de cem concertos anuais, e isso depois de quase 55 anos de palco. Nostalgia de la Luz (Nostalgia da Luz) é um filme sobre a distância entre o céu e a terra, entre a luz do cosmos e

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cineclubetavira@gmail.com

fotos: d.r.

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21 HORAS

19 MAI | LE TOUT NOUVEAU TESTAMENT (DEUS EXISTE E VIVE EM BRUXELAS), Jaco Van Dormael, Bélgica/França/Luxemburgo 2015, M/14, 113 min 21 MAI | MTV UNPLUGGED - BOB DYLAN, E.U.A. 1994, M/6, 73 min, SESSÃO GRATUITA

Destaque para ‘MTV Unplugged - Bob Dylan’ os seres humanos e as misteriosas idas e vindas que se criam entre eles. Perante a incerteza do amanhã, o passado fala-

-nos. Um filme premiado em dezenas de festivais por todo o mundo. Cineclube de Tavira

26 MAI | NOSTALGIA DE LA LUZ (NOSTALGIA DA LUZ), Patrício Guzman, Chile/ Espanha/França/Alemanha/E.U.A. 2010, M/12, 90 min

Espaço AGECAL

A Museologia Social

Emanuel Sancho Coordenador nacional do MINOM – Movimento Internacional para uma Nova Museologia e membro da direção da AGECAL

Quando em maio de 1972 um grupo de museólogos se reuniu em Santiago do Chile sob os auspícios do ICOM1, talvez não tenha imaginado que o documento que resultou daqueles dez dias de reflexão, fosse capaz de perdurar décadas e chegar aos nossos dias como uma referência para os museus de todo o mundo. Poderíamos encontrar logo a partir das primeiras décadas do século XX, em contextos marginais, os primeiros passos de uma caminhada com rumo a uma museologia mais ativa na sociedade. É, porém, na segunda metade do século que assistimos à construção do pensamento museológico contemporâneo, num processo gradualmente mais claro: O Papel Educativo dos

Museus, (UNESCO) - Rio de Janeiro, Brasil, 1958; A Protecção do Património Mundial Cultural e Natural, UNESCO – Paris, 1972; Mesa Redonda de Santiago do Chile, 1972; Declaração de Quebec (MINOM) 1984; Reunião de Oaxtepec, México, 1984; A Missão do Museu na América Latina Hoje: Novos Desafios, Caracas, Venezuela, 1992; Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial (UNESCO) 2003; a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO), 2005; etc. A “Mesa Redonda de Santiago do Chile” é, neste processo, um momento marcante para uma museologia mais social pela clareza do corpo de ideias produzido, parecendo hoje óbvio e consensual que o museu: seja uma instituição ao serviço da sociedade; deva permitir a formação da consciência das pessoas que serve; possa contribuir para o envolvimento dos indivíduos na ação face aos seus problemas; desempenhe um papel decisivo na educação da comunidade; deva integrar novas disciplinas no seu seio. Anunciava-se então um “novo tipo de museu”, novos conceitos, expo-

nio, comunidade). Durante a XII Conferência Geral do ICOM em Londres, em 1983, alguns membros criticaram asperamente a cúpula da organização acusando-a, entre outras coisas, de inação perante a situação das minorias. Um grupo de participantes decidiu, então, encontrar-se no Canadá, no ano seguinte, para refletir sobre os caminhos para uma museologia nova. Foi assim que, a Declaração de Quebec (1984), com a participação de representantes de quinze países, e entre outros, dos nossos conhecidos Pierre Mayrand, Mário Moutinho e António Nabais, além de afirmar a sua filiação nos ideais de Santiago, assumiu a Função Social do Museu e comprometeu-se a criar um comité internacional de “Ecomuseus e Museus Comunitários” no quadro do ICOM, procurando estabelecer os “Princípios de Base de uma Nova Museologia”. Um ano depois (1985), em Lisboa, no decurso do II Encontro Internacional de Nova Museologia foi finalmente fundado o MINOM – Movimento Internacional para uma Nova Museologia. O conceito de Museologia Social,

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sições itinerantes, “museu integral”, museus de sítio... É após Santiago que vimos florescer as “museologias” nacionais, os museus não especializados, a responsabilidade política do museólogo, os museus locais, as noções de museu como instrumento de desenvolvimento, a ideia da Função Social do Museu e da própria Museologia Social. Hugues de Varine, levou ao limite a síntese do enquadramento teórico da Nova Museologia quando, à trilogia do Museu Tradicional (edifício, coleção, público) contrapôs a trilogia do Ecomuseu/ Museu Novo (território, patrimó-

traduz uma parte considerável do esforço de adequação das estruturas museológicas aos condicionalismos da sociedade contemporânea. (…) A instituição distante, aristocrática, olimpiana, obcecada em apropriar-se dos objetos para fins taxonómicos, tem cada vez mais - e alguns disso se inquietam - dado lugar a uma entidade aberta sobre o meio, consciente da sua relação orgânica com o seu próprio contexto social. A revolução museológica do nosso tempo - que se manifesta pela aparição de museus comunitários, museus ‘sans murs’, ecomuseus, museus itinerantes ou museus que exploram as possibilidades aparentemente infinitas da comunicação moderna - tem as suas raízes nesta nova tomada de consciência orgânica e filosófica”2. Nos nossos dias, o quadro de vida levou-nos por direções que estão em constante movimento e que se refletem na semântica: Nova Museologia, Museologia Social, Sociomuseologia – estádios de evolução num percurso que leva já 40 anos de caminho. 1 - ICOM - International Council of Museums / Comité Internacional de Museus 2 - Mário Moutinho, Sobre o Conceito de Museologia Social, Cadernos de Museologia nº 1, 1993


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Cultura.Sul

Letras e leituras

As Mil e Uma Noites ou Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, de Salman Rushdie fotos: d.r.

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites é a nova obra de Salman Rushdie e, sendo o primeiro livro que publica a seguir à sua autobiografia Joseph Anton, este livro parece constituir um agradável jogo literário em que o autor volta a incorrer na polémica de contestar as crenças e mitologias. Esta história inicia com o grande filósofo, Ibn Rushd, físico pessoal do califa na cidade de Córdova, no ano de 1195, que recebe em sua casa sem desconfiar uma criatura sobrenatural, Dunia, uma jinnia, isto é, um génio da tribo dos jinn femininos, e da união dos dois resultam três gravidezes em que Dunia dará à luz, de cada vez, uma multiplicade de filhos, em que num único parto chegam a nascer sete crianças e noutro onze ou até mesmo, possivelmente, dezanove filhos. E é a essa estirpe, cujo traço distintivo comum é nascerem sem os lóbulos das orelhas, além de possuírem capacidades sobrenaturais, que Dunia irá recorrer nos tempos modernos para salvar o mundo quando a fronteira entre o mundo dos humanos e dos deuses ou de divindades em muito semelhantes a deuses. Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites remete, feitas as devidas contas, para o número hiperbólico de mil e uma noites e, por conseguinte, para as histórias fabulosas de As Mil e Uma Noites. Apesar de se referir que o livro é inspirado nas tradicionais lendas fabulosas do Oriente, esta obra parece jogar muito mais com toda a cultura pós-moderna. De Andy Warhol a Gandalf, passando pelo Rato Mickey, Merlim, Morgana e a matéria da Bretanha, Mystique dos X-Men, as referências são imensas e contribuem para situar o livro, ainda que erroneamente, no campo da ficção fantástica ou mesmo ficção científica. Esta obra lembra que muitas vezes a nossa memória, mais do que uma súmula de vivências e expe-

Salman Rushdie volta a incorrer na polémica de contestar as crenças e mitologias riências pessoais, é um conjunto colectivo de leituras, de cinema, programas televisivos, banda desenhada, etc., filtrado mais ou menos ao gosto e segundo as preferências de cada um. O livro está ainda imbuído do mesmo realismo mágico que permeou as primeiras obras de Salman Rushdie, se bem que, conforme, evoluímos na leitura, se afigure muito mais justo situar o livro como parte integrante de uma cultura pósmoderna em que impera o poder da imagem, com episódios que lembram cenas saídas de filmes de fim do mundo ou de séries televisivas sobre superheróis, como acontece no momento em que uma serpente gigante invade a cidade, acontecimento este que é devidamente registado por pelo menos sete telemóveis. Ou quando Zumurrud, o Grande, surge «no átrio do Lincoln Center a berrar Vocês são todos meus escravos, mas até mesmo naqueles tempos de histeria havia alguns inocentes que julgavam que ele estava a publicitar uma nova ópera no Met» ou quando voa até ao topo do One World Trade Center e solta um grito tremendo capaz de ensurdecer todos os transeuntes

que, entretanto, menosprezam a cena, achando tratar-se de uma mera «manobra publicitária para promover uma nova versão de mau gosto do velho filme do gorila» (pág. 155). Ou quando se fala do espectáculo que Yasmeen, que não se chama realmente Yasmeen e tem cabelo cor de laranja, está a pensar desenvolver: espectáculo esse que «poderia (esperava ela) tornar-se também um livro, e (esperava realmente) um filme e (se tudo corresse mesmo, mesmo bem) um musical» (pág. 129). Nesta obra de ficção assiste-se a um debate filosófico-teológico entre dois sábios, a partir da campa de cada um. Ghazali de Tus, autor persa de «A Incoerência dos Filósofos», ataca os gregos e a filosofia em geral, afirmando a sua incapacidade de provar a existência de Deus ou de provar a impossibilidade de haver mais do que um Deus, além de defender que o medo é essencial à religião para aproximar o homem pecador de Deus, enquanto o filósofo Ibn Rushd, em 1195, a uma «distância de cem anos e de mil milhas», publica um livro intitulado «A Incoerência

da Incoerência», como forma de refutar as teorias de Ghazali e tentar conciliar as noções de razão, lógica e ciência, «palavras chocantes para os seus contemporâneos», com os conceitos de Deus, fé e Corão, o que resulta tão somente no facto de cair em desgraça e ver o seu livro ser queimado (pág. 21). Rushdie constrói uma história que descola do extraordinário para entrar no reino do altamente improvável, com passagens cuja intenção metaficcional pode ser vista de forma bastante clara, onde o autor parece reflectir sobre a própria natureza da sua escrita: «Embora a normalidade da cidade tivesse sido perturbada, talvez para sempre, pela eclosão da grande guerra, a maior parte das pessoas não tinha conseguido compreendê-lo e continuava ainda perplexa com a irrupção do fantástico no quotidiano» (pág. 132, itálicos nossos). Recorde-se que a definição mais simples de realismo mágico é quando se dá a irrupção do fantástico no quotidiano mas, ao contrário da literatura fantástica, sem criar perplexidade nas perso-

nagens. Ressalve-se ainda que o realismo mágico foi muitas vezes considerado como histórias de tapetes voadores, objecto mágico saído das Mil e Uma Noites que também não falta a esta história (se bem que com um sistema de posicionamente que se avaria constantemente e por isso a sua passageira erra os andares a que pretendia dirigir-se). Outro exemplo em que se pode perceber como a ficção é posta em causa nesta obra dá-se quando Yasmeen divaga sobre o facto de todos nós estarmos presos em histórias: «O que eu estou a pensar é que todas estas histórias são ficções, dizia ela, mesmo as que insistem em serem factos, como quem estava onde primeiro e que Deus de quem teve precedência sobre os outros, é tudo a fazer de conta, fantasias, as fantasias realistas e as fantasias fantásticas são ambas inventadas, e a primeira coisa a saber sobre histórias inventadas é que são todas falsas da mesma maneira, Madame Bovary e as histórias zaragateiras de libánonima são ficcionais da mesma maneira que tapetes voadores e génios» (pág. 130). E apesar

de já antes ter corrido perigo de vida, quando pôs em causa a religião do seu país, com Os Versículos Satânicos, Salman Rushdie volta a demonstrar isso mesmo, que não só todos nós vivemos presos dentro de histórias mesmo quando essas «ficções estão a matar-nos, mas se não tivéssemos essas ficções talvez isso também nos matasse» (pág. 130). Porque o realismo mágico também é isto, mostrar que todos vivemos imbuídos de crenças e mitologias talvez tão fantásticas como génios que vivem em lâmpadas mágicas. Recordada a partir de um tempo distante no futuro, dez séculos depois (novamente o número mil) em que os factos desta história se encontram ainda registados em fotografia ou filme, conhecidos como a Guerra dos Mundos, esta narrativa pretende ilustrar a forma como teve início a «morte dos deuses» (pág. 293), em que a fé em crenças cegas é posta em causa, e livros como este serão vistos como relíquias ou como mitos fundadores ao nível da Odisseia ou da Bíblia.


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Panorâmica

‘WATT?' ou o desafio do desenvolvimento pela arte em territórios de baixa densidade fotos: ricardo claro

Mónica Monteiro (com Ricardo Claro)

Jornalista monicam.postal@gmail.com

Criar obras de arte pública em conjunto com comunidades rurais algarvias é o desafio que a Fundação EDP lançou ao Laboratório de Actividades Criativas (LAC). Vila do Bispo, Barão de São João, Mexilhoeira Grande, São Bartolomeu de Messines, Alte e Alportel foram os locais escolhidos pelo LAC para a implementação do projecto “WATT?”. O principal objectivo do “WATT?”, centra-se em envolver um tipo de população, que não está tão habituada a experiências culturais, na decisão e planeamento de obras de arte que serão realizadas em locais públicos. “A Fundação EDP lançou o convite e o LAC é que tomou as decisões em termos de localidades e dos artistas”, explicou ao POSTAL a responsável pela produção do projecto, Carmo Serpa. O projecto está dividido em quatro fases, sendo que a primeira ainda está a ser realizada e consiste na apresentação do projecto às populações. Os artistas convidados reúnem-se em espaços das várias localidades com os cidadãos de forma a que “as populações acompanhem o processo criativo todo”, afirma Carmo Serpa. “Queremos que a população nos inspire porque na verdade, no final do projecto, os artistas e a produção vão-se embora e o que fica em cada localidade são as obras que produziram e que passam a ser das pessoas”, enquadra a responsável. Após a primeira fase de discussão de ideias os artistas vão voltar às localidades já com um projecto das obras que pretendem fazer e apresentarão propostas à população. “Nós não queremos que as pessoas tenham de viver com obras que elas não gostam ou com as quais não se identificam”, refere Carmo Serpa. Daí a importância de uma pariticipação activa da comunidade, neste projecto que além de pioneiro se realiza em várias localidades rurais de Portugal. A terceira fase da iniciativa será a de produção e instalação das obras que irão ficar em espaços públicos a que toda a comunida-

Os artistas convidados reúnem-se em espaços das várias localidades com os cidadãos de tenha acesso. “Provavelmente muitas das obras estarão expostas na rua mas não tem de o ser necessariamente”, disse a responsável ao CULTURA.SUL. Prevê-se que a maioria das obras sejam murais, adianta Carmo. Depois de realizadas e expostas as obras, a última fase do projecto passa por realizar visitas guiadas que contextualizem as obras espalhadas pelas localidades. “A nossa pretensão é fazer formação a nível local, de forma a tentarmos encontrar entidades ou pessoas que consigam contextualizar as obras,

para as mostrar a quem não as conhece”. Ao todo serão entre duas a três obras em cada uma das regiões e não estarão expostas menos de dois anos. Quanto aos artistas convidados, Menau é talvez o mais algarvio de todos eles, nascido e criado em Quarteira, começou a sua jornada artística em 1998 através do Graffiti. Jorge Pereira, Mariana Santos, mais conhecida como “Mariana, a miserável”, Padure, Susana Gaudêncio, Xana e Tiago Batista são os sete criativos que aceitaram o desafio de espalhar arte pelas ruas algarvias.

Falta de interesse da população em geral O projecto já se apresentou nas localidades de Alte e em Messines e segundo a organização “correu bastante bem”. Ainda assim, e apesar de terem “sempre público e pessoas super interessadas”, a organização disse ao POSTAL que gostava de ter uma plateia mais eclética. O grande problema do arranque deste projecto, segundo Carmo Serpa, foi o facto de a população em geral não se interessar por eventos culturais “tanto quanto a organização gostaria”.

Em cada localidade serão realizadas duas ou três obras que ficarão expostas em espaços públicos

“Se calhar somos nós que somos muito ambiciosos”, refere a responsável, “gostaríamos de ter na sala pessoas de todas as profissões, de todas as idades, de todos os níveis de formação e o que tem acontecido é que as pessoas que se interessam pelo “Watt?” são aquelas que se interessam por projectos culturais em geral, não é um público tão abrangente como nós gostaríamos”, lamenta. Em Messines já se preparam ideias para os projectos e as principais, para já, passam por ilustrar figuras importantes da terra. Em Alte as propostas passaram “mais pelas tradições ou pela importância da presença da água na população”, referiu Carmo Serpa. O nome do projecto é um trocadilho entre a palavra inglesa “what”, que significa “porquê”, e a unidade de medida da energia “watt eléctrico”. No dia 6 de Maio os artistas apresentam o projecto no Centro Museológico de Alportel. Um dia depois, a 7 de Maio, será a vez de Mexilhoeira Grande com uma conversa entre a comunidade e os artistas na Sociedade Recreativa da Figueira. As entradas são gratuitas. LAC promove a criação artística na região do sudoeste algarvio O LAC é uma associação cultural sem fins lucrativos formada em 1995 e com sede na Antiga Cadeia de Lagos. O edifício projectado por Cottinelli Telmo e cujos alicerces estão edificados sobre um antigo convento é um local com história, fazendo parte integrante da cidade. Construído com outros objetivos, revela actualmente uma dicotomia interessante entre prisão/reclusão versus espaço de criatividade/liberdade, ao tornar-se espaço de criação reconverteu assim os moldes da sua existência, agora as celas são espaço de ateliê para artistas e a sua utilização e trabalho contribuem para a revitalização do edifício, dotando-o de uma nova história. A associação é um espaço de residências artísticas que tem como prioridade desenvolver e alargar o Programa de Residências Artísticas no LAC (PRALAC), com o objetivo principal de dinamizar e promover a criação artística na região e especialmente na zona do sudoeste algarvio. Em 2012, o LAC inaugurou a Galeria LAR, espaço de tertúlia e partilha nas diferentes vertentes artísticas. A Galeria é parte integrante do edifício destinado a alojar artistas integrados nas residências do LAC.


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Cultura.Sul

Artes visuais

Qual o 'espaço' para a arte digital na atualidade?

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

AGENDAR

Colocamos a questão e quase a corrigimos desde logo, pois talvez não seja uma questão de “espaço”, mas sim do próprio “tempo”, pois há quem considere que este é o tempo da arte digital. Efetivamente, uma das modalidades que tem assumido uma importância crescente nas artes visuais nos últimos anos diz respeito à utilização das denominadas “novas tecnologias”. Desde logo, com a digitalização dos sistemas fotográficos, a fotografia ainda se tornou mais popular, tanto mais porque este sistema está presente inclusivamente nos telemóveis, sendo a melhoria da qualidade fotográfica nestes um dos aspetos em que as diversas marcas têm vindo a apostar nos modelos mais sofisticados. Assim, a fotografia digital está à distância de um “clique” a que todos podem ter acesso, sem qualquer custo, pois não é necessária revelação, encontrando-se reduzidas as etapas, acelerandos os processos e facilitada a manipulação, armazenamento e transmissão de imagens através da internet. No seu livro “Art+Science”, Stephen Wilson (2010) procura abordar a questão de como a inovação tecnológica está a começar a ser a chave para a arte do século XXI. Não pretendendo aprofundar de forma exaustiva o impacto que o desenvolvimento das novas tecnologias tem tido na arte, gostaríamos no entanto de ilustrar este âmbito com o incremento na utilização do vídeo e do computador na produção artística. Considera-se que, com a crescente importância das imagens na sociedade, na cultura e na comunicação e com o desenvolvimento das tecnologias de registo

de imagens em vídeo, a vídeo arte desenvolveu-se a partir dos anos 60 (Martin, 2006). Tal como nos anos 40 Jackson Pollock introduziu uma perspetiva performativa de não causalidade em relação à pintura, nos anos 60 surgem manifestações desta perspetiva em relação ao vídeo, encontrando-se isto bem sintetizado nas palavras de Bill Viola: “sem começo, sem final, sem direção, sem duração, o vídeo é como uma mente”. Um dos principais trabalhos de Bill Viola consistiu numa “colagem” de imagens com diferentes velocidades no trabalho “The reflecting pool” (1979), a partir da mera perspetiva de uma piscina com o salto de uma pessoa para a água, sendo apresentadas simultaneamente diferentes velocidades no movimento. Em termos de vídeo arte, uma das artistas que mais se tem destacado nos últimos anos é Judith Barry, à qual foi dedicada uma exposição no Museu Colecção Berardo, do Centro Cultural de Belém (CCB), intitulada “Body Without Limits”, em 2010. Dos trabalhos expostos destacaríamos “Imagination, Dead Imagine”, produzido em 1991, no qual é apresentado um cubo de grande dimensão, sendo projetados vídeos feitos a partir de vários ângulos que se estruturam como um todo nas quatro faces, permitindo criar uma percepção global do conteúdo fílmico que está a ser observado. Ao contrário de alguns artistas que, com o incremento do vídeo como meio de arte, começaram a utilizá-lo como único meio de expressão a partir dos anos 80, Judith utilizou várias técnicas para exprimir as suas ideias, pelo que podemos encontrar vários meios de expressão artística no seu trabalho, em particular instalação, vídeo, escultura e fotografia. É assim cada vez mais difícil delimitar as categorias das artes visuais utilizadas pelos artistas no seu trabalho, pois assumem uma perspetiva multidisciplinar, em que utilizam algumas das várias categorias possíveis, integrando a sua utilização. Com o desenvolvimento das novas tecnologias, em particular

fotos: d.r.

Vídeo “Imagination, Dead Imagine”, de Judith Barry (1991) da internet, nos anos 90 surgiu o movimento designado media arte em que se inserem projetos que fazem uso das tecnologias emergentes e que se preocupam com as possibilidades estéticas dessas ferramentas (Tribe & Jana, 2010). Considera-se que a primeira experiência a este nível ocorreu em 1993, quando dois artistas europeus, Joan Heemskerk e Dirk Paesmans, criaram o site jodi.org, mostrando que a internet não era apenas um meio para partilhar informação, mas que podia ser também um instrumento para veicular arte. Os termos arte digital, arte de computador, arte multimédia, arte interativa e media arte começam então a ser utilizados para descrever trabalhos que eram feitos utilizando a tecnologia digital, como sejam as instalações multimédia interativas, os ambientes de realidade virtual e a arte baseada na net. Este movimento inclui a video art e os filmes experimentais, mas vai mais além na utilização das novas tecnologias. No âmbito da nossa prática artística, produzimos a animação “Stress”, utilizando as novas tecnologias. Esta encontra-se disponível no youtube, através do link http://www.youtube. com/watch?v=leZsbiqbYoM

“MERCADOS NO ALGARVE AO LONGO DOS TEMPOS” Até 27 MAI | Casa do Sal - Castro Marim Mostra fotográfica colectiva, actual e retrospectiva dos mercados de rua, mensais ou semanais, e feiras anuais, assim como de bilhetes-postais ilustrados

Tivemos em conta que o aumento do ritmo respiratório e dos batimentos cardíacos são dos principais sintomas que podem surgir nas situações de stresse. Em termos de fatores de stresse, podem ser externos, como seja a pressão social, isto é, a exigência colocada por outros sobre o sujeito, mas também pode ser derivada de fatores internos, como seja a exigência que o sujeito se coloca a si próprio. Para a realização deste trabalho de abordagem do stresse através de meios audiovisuais, utilizámos o trabalho feito em desenho “Stresse cardíaco”, que havíamos produzido anteriormente. Assim, a partir de fotos dos dois desenhos do coração, foi feita uma montagem com o programa “EDIUS”, no sentido de simular o batimento cardíaco, integrando ainda todos os outros sons e imagens que fazem parte desta produção. Estas imagens sucedem-se a uma frequência de 63 pulsações por minuto, sendo acompanhadas pelo respetivo som das pulsações. Durante o primeiro minuto é simultaneamente integrado um som de respiração lenta do sujeito, cujo batimento cardíaco é simulado com a alternância dos

desenhos. Há uma relação entre o ritmo da respiração e a frequência do batimento cardíaco. No final do primeiro minuto, o próprio sujeito que está a respirar diz, de forma tranquila, “That’s being a day!” (“Isto é que está a ser um dia!”), traduzindo a influência que a atitude do próprio sujeito pode ter no seu nível de stresse. Ao minuto e quinze segundos surge uma voz exterior que refere, de forma calma, “You’ve done what I asked you?” (“Já fizeste o que te pedi?”). Esta voz pretende representar a influência que os fatores externos, em particular outros sujeitos, podem ter sobre o nível de stresse. O sujeito responde calmamente “I’m doing it” (“Estou a fazer”) e o ritmo cardíaco permanece tranquilo durante este período. Ao minuto e quarenta, a mesma voz exterior que representa o chefe do sujeito diz, de forma agressiva, “You’ve done what I asked you?”, aumentando consideravelmente o ritmo respiratório do sujeito, bem como o seu ritmo cardíaco. Isto é, a voz exterior coloca exatamente a mesma questão que havia colocado antes, mas varia na forma como esta é colocada e isso tem um impato

direto no nível de stresse do sujeito, o qual responde o mesmo que anteriormente, “I’m doing it”, mas de forma stressada. O som do tic-tac de um relógio surge também a partir deste momento, traduzindo a pressão do tempo colocada sobre o sujeito para realizar o seu trabalho. Aos dois minutos, o sujeito refere, de forma ofegante e irritada, “That’s being a day!”. Este comentário do sujeito é exatamente o mesmo que ele havia feito inicialmente com prazer e satisfação, mas que agora faz de forma brusca e com insatisfação, traduzindo o impato dos pensamentos, das crenças e das auto-verbalizações do sujeito sobre o seu próprio nível de stresse. Nesta circunstância, os ritmos respiratório e cardíaco continuam a aumentar, chegando às 182 pulsações aos dois minutos e quinze, momento em que o sujeito grita “Ahhhh!” e o coração deixa de funcionar, passando o ruído do ECG a ser contínuo, representando a situação de morte do sujeito, derivada do stresse resultante da pressão externa e da atitude negativa do próprio sujeito. Para além de pretendermos expressar diversos aspetos do stresse neste breve vídeo, quisemos também que o mesmo pudesse ter algum efeito no stresse do próprio espetador. Nesse sentido, utilizámos uma gradação que leva a que, de um início calmo e relaxante, quer ao nível da imagem, quer ao nível do som, passemos para uma clara aceleração no ritmo da imagem e do som, expressando um aumento da intensidade dramática. As vozes são sempre apresentadas fora de campo, o que também contribui para um efeito surpresa que permite aumentar o seu impacto no nível de stresse do espetador. Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigo encontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)

“PELO SONHO É QUE VAMOS” 12 MAI | 19.30 | Centro Cultural de Lagos Apresentação de diversas coreografias, incluindo as premiadas e apuradas para o final do dance World Cup jersey, interpretadas pelos alunos e professores da Escola de Dança de Lagos


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Filosofia dia-a-dia

Posso ajudar? d.r.

Maria João Neves Ph.D

Investigadora da Universidade Nova de Lisboa filosofiamjn@gmail.com

A compaixão é natural

Quanto mais cuidamos da felicidade dos outros, maior é a nossa sensação de bem-estar. Dalai Lama O impulso para ajudar surge espontaneamente, é quase um acto reflexo: alguém escorrega, os braços estendem-se para amparar; um carro empanado, juntamo-nos para empurrar; alguém se sente triste, tentamos consolar. O treino da entre-ajuda começa cedo, no seio familiar, com a distribuição das tarefas domésticas que visam o bem comum, ou em actividades tais como os desportos em equipa ou o voluntariado. Quando um grupo de pessoas se junta com este espirito de entre-ajuda, as coisas acontecem quase sem esforço e todos se sentem melhor, mais alegres, de alma nutrida. A oportunidade de expressar a nossa generosidade inata proporciona um prazer profundo, sentimo-nos parte de um todo, temos um vislumbre da unidade primordial. Quando a ajuda corre mal

Muito ajuda quem não atrapalha. Provérbio Popular Embora o impulso para ajudar seja inato, será que isso basta? Vejamos alguns exemplos reais: Numa aldeia remota os habitantes, sobretudo mulheres e crianças, caminhavam quilómetros para trazer água potável para as suas casas. Uma ONG conseguiu fundos para instalar água canalizada. Foi um processo moroso e um investimento considerável. Pouco tempo depois da obra concluída a canalização foi

vandalizada. Um estudo antropológico revelou que era durante a caminhada para ir buscar água que as mulheres falavam umas com as outras livremente, sem a presença e a censura dos homens. Era o seu momento de intimidade feminina, partilhavam confidências, saberes, conselhos. Riam juntas. Os “benfeitores” chocados com a dureza do seu dia a dia, projectaram o seu próprio desconforto na condição destas mulheres, desconforto esse que elas próprias não sentiam. Tentaram resolver um problema para elas inexistente e, pelo contrário, criaram um outro problema, esse sim tão doloroso - a supressão do seu único espaço de liberdade - que as levou a um acto de vandalismo. No Natal, uma organização de caridade angariou fundos e ofereceu bengalas articuladas a uma comunidade de cegos. Para grande surpresa, a maioria destas novas e sofisticadas bengalas apareceu pouco tempo depois à venda em mercados de rua. Por que é que isto

aconteceu? Em primeiro lugar todos estes cegos já tinham a sua bengala. O presente era, portanto, supérfluo. Em segundo lugar, cada bengala tinha a sua história: uma tinha sido a oferta de um filho emigrado, outra ganha num concurso de xadrez para invisuais, um dos presenteados não se adaptou de todo a uma bengala articulada, e assim por diante. Em vez de gerar felicidade e gratidão, a iniciativa foi recebida como descabida, intrusiva até. O que é que estas duas histórias têm em comum? Em ambos os casos os supostos benfeitores actuaram unilateralmente. Decidiram tudo sem perguntar aos directamente interessados de que é que eles precisavam, que tipo de ajuda gostariam de receber. Que pretensão de ajudar é esta que ignora totalmente o outro? Como posso pretender saber o que é que o outro deve fazer, ou o que é que lhe convém sem sequer lhe perguntar? Mas que grande dose de arrogância!

A Prisão do Benfeitor

Algemados de pernas e pescoços, só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente. Alegoria da Caverna, Platão Somos encorajados a ajudar e essa ajuda é frequentemente recompensada. No entanto, a partir do momento em que o sentido da recompensa prevalece, a expressão da compaixão natural foi tergiversada. Infelizmente, estes subterfúgios começam cedo: se for pôr o lixo na rua talvez o meu pai me empreste o carro; ajudo nas compras e consigo que a mãe me faça o meu bolo favorito; etc. Já adultos, esta tendência mantém-se: oferecemo-nos como voluntários em busca de reconhecimento. Ocupamo-nos com os problemas dos outros para fugir de enfrentar os nossos próprios problemas. Ao julgarmo-nos capazes de ajudar sentimo-nos poderosos e respeitáveis. É muito difícil encontrar

uma disposição para ajudar que não esteja toldada por necessidades pessoais. Basta olharmos para dentro com atenção. Qual é realmente a minha motivação? Existe um grande potencial no reconhecimento das nossas intenções, que na maioria dos casos se revelam muito menos nobres do que aparentavam. O simples facto de estarmos alerta para as armadilhas da nossa mente pode constituir o princípio da libertação. É o virar do pescoço do prisioneiro no fundo da caverna platónica. Tudo começa pela mudança do ponto de vista. A Verdadeira Ajuda

Com o rio aprendeu como ouvir com um coração sossegado e uma mente aberta, sem paixões, nem desejos, julgamentos ou opiniões. Siddhartha, Hermann Hesse A nossa capacidade para

ajudar não depende tanto dos nossos recursos financeiros, dos nossos conhecimentos, das nossas capacidades, do nosso treino ou até do nosso tempo. De que depende, então? Depende, sobretudo, do nosso estado mental. Uma mente dispersa, confusa, deprimida ou agitada dificilmente propicia ajuda adequada. Não é somente o que fazemos, mas a forma como o fazemos. A motivação de que estão imbuídos os nossos actos. Embora raras, existem pessoas que com a sua mera presença já estão a beneficiar os outros. Alguns de nós já terão tido esta experiência: estar na presença de alguém que tem uma mente aberta, sossegada, alegre, receptiva e reflexiva constitui, por si só, uma enorme ajuda! A maioria de nós, enquanto ajuda, tem a mente ocupada com outras coisas: está a planear, a calcular, a avaliar, a julgar, a tomar as coisas pessoalmente e a sentir-se ofendido, ou está aborrecido, zangado, mal-disposto... A lista de distracções da mente é interminável! Quer dizer, estamos primeiramente com os nossos pensamentos, e não com o outro! Não só a nossa capacidade de escuta diminui, mas a rede conceptual que a nossa mente vai tecendo constrói um filtro que selecciona a informação. Já não ouvimos de forma isenta. Com tanta actividade e reactividade mental, o espaço de encontro com o outro é diminuto. A motivação fraca não consegue eliminar as distracções da mente. A verdadeira ajuda presta-se apenas quando estamos totalmente concentrados nas necessidades do outro e esquecidos de nós. Cessa a diferença de papéis entre “aquele que presta ajuda” e “aquele que é ajudado”. Quando as personagens que desempenhamos caem por terra, o que existe é apenas um espaço comum. Livres da ilusão de uma existência separada, estamos agora unidos nessa compaixão primordial intrínseca a todos nós. Busco um exemplo a seguir e lembro-me das árvores. As árvores sem falar ou saírem do seu lugar, dão-nos sombra, alimentos e oxigénio. Sendo essenciais para a vida não esperam gratidão.


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Cultura.Sul

Sala de leitura

Amália ao sul (conclusão)

Paulo Pires

Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

Numa inesperada visita a Silves em 1996, em conversa com o então presidente da edilidade José Viola, Amália não esqueceria de relembrar um dos elos afectivos que mais a ligava ao Algarve: Alberto Costa. Amigo dilecto, antigo colega de andanças musicais e influência importante no arranque da vida artística da fadista, viveu em Silves até ao fim dos seus dias (1987) enquanto proprietário, junto com o irmão Américo Costa, do selecto e concorrido Café Havaneza, lugar de cultura e convivialidade que aglutinava na sua clientela habitual as classes média-alta da vetusta cidade banhada pelo rio Arade. Costa nascera em Torres do Mondego (Coimbra) em 1898 e depois da família se mudar para o bairro de Alfama, em Lisboa, nasceria no seu espírito um fascínio arrebatador pelo fado. Aos 11 anos, na escola e desafiado por um professor, cantava versos de João de Deus. Três anos depois, já actuava em público em colectividades, sociedades recreativas e festas de beneficência, tornando-se uma figura carismática no meio fadista e integrando-se numa geração que, junto com nomes como Berta Cardoso, Ercília Costa, Alfredo Marceneiro ou Joaquim Campos, se foi afirmando gradualmente no panorama musical nacional ao longo dos anos 20 e inícios da década de 30 do século passado. “Reúne a uma bela dicção uma voz impregnada do mais puro sentimento e isso tem feito dele um dos cantadores mais preferidos”, podia ler-se na imprensa em 1923 sobre Alberto Costa. Foi um dos responsáveis, junto com Joaquim Campos Silva, pela fundação do Grémio Artístico dos Amigos do Fado, no bairro da Graça, o qual tinha por missão “ajudar os necessitados a levantar o fado”, “fazer aquilo que os velhos nunca tentaram”. Ou seja, “roubar a criança à mãe”, como Costa gostava de frisar numa entrevista ao jornal Guitarra de Portugal (dirigido por Linhares

Barbosa) em Maio de 1923, isto para defender que o fado devia distanciar-se do contexto da taberna, por este não dignificar o género e seus intérpretes. E “se um dia o [o fado] cantarmos na taberna é para arrancar de lá os que o comprometem”. Tendo sido um dos primeiros artistas portugueses com edições discográficas (são da sua autoria alguns fados tradicionais como as músicas do “Fado Bragança”, “Fado Dois Tons” ou “Fado Torres do Mondego”), gravaria em 1926 para a Valentim de Carvalho e no ano seguinte estreou-se como cantor profissional no Ferro de Engomar, velho retiro que o próprio intérprete viria a gerir, transformando-o num espaço musical com elenco fixo frequentado pela classe média. Em 1928 o seu ideal de “casa de fado” concretiza-se no Solar da Alegria, administrado por si, passando o seu percurso artístico ainda por outros espaços de referência como o Penedo da Saudade, o Retiro da Severa ou o Café Mondego, além de digressões organizadas por si ou em parceria artística levando grupos de fadistas à província. A sua experiência e influência como empresário e profundo conhecedor do circuito fadístico e da vida boémia lisboeta foram importantes para a então jovem Amália Rodrigues, que se estreou profissionalmente aos 19 anos no Retiro da Severa (ganhava 500 escudos por mês), onde decerto conheceu Alberto Costa. Amália passou depois, num trajecto de fulgurante ascensão e reconhecimento, pelos também já referidos Solar da Alegria (a partir de 1943, como artista exclusiva) e Café Mondego, e posteriormente, através do empresário José Melo, pelo emblemático Café Luso. Amália cantaria mesmo composições de Costa na Adega Machado, a cujo núcleo de fadistas este também pertencia, e integraria ainda, durante os anos 30 e 40, várias digressões nacionais, de grande impacto mediático, organizadas pelo mesmo com o elenco seleccionado do Retiro da Severa, que incluíam o próprio Alberto Costa, Alfredo Duarte (Marceneiro), Armandinho, Maria Emília Ferreira, Júlio Proença, José Porfírio, Adelina Ramos, Natividade Pereira, Natália dos Anjos e Amália Rodrigues. Era uma “embaixada do fado dos artistas do Retiro da Severa”, proporcionando uma “verdadeira verbena de Verão da Canção Nacional”, como podia ler-se nos cartazes

publicitários da época. Alberto Costa abandonaria depois a vida artística em 1939, vendendo os seus negócios em Lisboa, e rumou a Silves comprando o Café “A Pernambucana” a José Gabriel Pinto (ligado ao ramo corticeiro), passando depois a chamar-se “Café Havaneza”, estabelecimento que perduraria até 1977. Amália visitava-o sempre que se deslocava ao Algarve, tendo decerto aí actuado, junto com Costa, em moldes mais intimistas/informais, revisitando outros tempos. A partir da década de 50 Amália começa a gravar regu-

In memoriam João Belchior Viegas À Teresa Oliveira, ao Gonçalo Couceiro e à Adelina Costa

Agosto de 1964 na Alameda João de Deus, em Faro, num espectáculo apresentado pelo declamador farense João Pinto Dias Pires e por José Saldanha, e cuja receita reverteu a favor da instituição de assistência social a crianças “Florinhas do Sul”, da qual Amália era madrinha. Em 1969, antes da sua partida para uma digressão na União Soviética, Amália actuaria para os clientes do Hotel Algarve, na Praia da Rocha, acompanhada da sua formação habitual: José Fontes Rocha (guitarra portuguesa), Júlio Gomes (viola) e Joel Pina (viola-baixo). Além de Alberto Costa, evoco

grupo literário Távola Redonda (fundado pelo seu maior amigo, o poeta David Mourão-Ferreira), trabalhou com o pai no Montijo no ramo corticeiro e integrou, desde meados da década de 50, os quadros da Valentim de Carvalho, assumindo em 1965 a chefia dos seus estúdios em Paço d’Arcos (Oeiras) – onde produziu vários discos de Amália, entre eles Gostava de ser quem era (1980) e Lágrima (1983), ambos inteiramente com letras da fadista –, função que acumulava com a de seu agente artístico. Recordo nitidamente o nosso último momento, no sítio das d.r.

Amália Rodrigues e Fernanda de Castro no I Festival do Algarve (1964) larmente, conhece o poeta David Mourão-Ferreira (que escreve “Primavera” para si em 1953) e internacionaliza-se, viajando por todo o mundo, com grande impacto sobretudo em França e nos Estados Unidos. As suas aparições em Portugal passam a ser muito esporádicas nesta fase, mas, por exemplo, em 30 de Abril de 1950 a “rainha do fado” teve mesmo direito a uma lápide evocativa que assinalou a sua gloriosa passagem pelo antigo cinema de Olhão, a qual se conserva actualmente no Museu do Trajo de S. Brás de Alportel. Nos anos 60 as suas vindas ao Algarve ocorrem sobretudo durante os períodos da Páscoa e do Verão, actuando na maioria das vezes em casinos e hotéis (sobretudo Monte-Gordo, Vilamoura, Armação de Pêra, Praia da Rocha). Ao pernoitar no Hotel Vasco da Gama, em Monte-Gordo, em 28 de Agosto de 1965, Amália deixaria o seu comentário no livro de hóspedes: “O grande Vasco da Gama foi grande descobridor. Quem dorme aqui numa cama descobre o hotel melhor”. Sensível às causas solidárias, a fadista actuaria a 2 de

novamente João Belchior Viegas, a cuja memória dediquei esta série de três artigos e com quem tive o privilégio de privar durante ano e meio em S. Brás de Alportel. Após o falecimento de Amália em 1999, que muito o abalou, desencantou-se com Lisboa e voltou para a terra-natal dos seus pais, ambos de S. Brás, onde começou a colaborar com a Biblioteca Municipal (a quem doou o seu espólio literário), inclusive coordenando o seu clube de leitura em parceria comigo, o qual arrancou a 23 de Abril de 2003. Foi a minha amiga Teresa Oliveira, bibliotecária, que me apresentou este homem discreto, atento, inteligente, crítico, certeiro na palavra (deliciosamente), mordaz e com sentido de humor, que me iria marcar para o resto da vida – pelas conversas, histórias, curiosidades e rituais diários (como o café com queque de noz que partilhávamos quase diariamente no Café da Vila ao fim da tarde) que nos uniam. Nas horas essenciais nunca me faltou. O João nasceu em Lisboa em 1926, frequentou o Colégio Moderno até 1944 e depois o Liceu Camões, integrou nos anos 50 o

Mealhas (S. Brás), no final do Verão de 2004: ligou-me para o telemóvel (coisa rara nele) pois queria muito ver-me para me dar algo. Vim a perceber depois que era um quadro que sempre estivera na sua sala de estar, com grande valor afectivo para si, e que eu muito apreciava (ele sabia-o pois nunca consegui disfarçar o meu fascínio por aquela obra), com desenhos de Francisco Simões e versos eróticos de David Mourão-Ferreira escritos pela sua própria mão e que acompanhavam as linhas das silhuetas das mulheres representadas. Passada uma semana, o João deixou-nos. Dois anos depois, o seu grande amigo José Manuel dos Santos escreveria: “Possuía as qualidades e até alguns dos defeitos necessários para o conquistar [o mundo], excepto a vontade de ter vontade para isso. E defendia-se do mundo, atacando-o. Nunca conheci ninguém que fosse tão capaz de ver a nódoa no melhor pano”. Eficaz, fiel e invisível – a pintora Maluda faria um retrato seu que é ilustrativo, em que há um corpo, mas não há traços no rosto –, esteve nos me-

lhores e mais difíceis momentos da vida de Amália. Correu o mundo com ela, aconselhou-a e transmitiu-lhe aquela segurança e conforto que alguém com a personalidade intensa e inquieta da fadista tanto precisava. Em 1984, quando Amália refugiou-se no hotel Milford Plaza em Nova Iorque pensando que teria uma doença fatal, num momento de profunda tristeza e desespero em que terá até equacionado o suicídio, foi ao João Belchior que ela enviou uma carta (inédita) que passo a transcrever: Querido Belchior Tenho tentado telefonar-lhe mas a diferença das horas não me deixou encontra-lo. Quero dizer-lhe que gosto muito de si, que não gosto nada de estar aqui e que estou cheia de medo! Só amanhã é que vou saber se tenho de ser operada. Não fique triste. Todos nós temos que ir e eu, como já deu por isso, não gosto de cá andar! Só lhe digo isto porque julgo que para si será um bocadinho menos triste… No caso de eu ficar por cá, queria pedir-lhe um favor. Gostava que continuassem a pagar ao Carlos Gonçalves [músico de Amália (guitarra portuguesa)] e, no caso de a vida aumentar muito, dar-lhe os meus direitos da Valentim de Carvalho. Direitos do[s] [discos] Gostava de ser quem era e Lágrima. Agradecia que dissesse isto ao Rui [Valentim de Carvalho]. Até quando Deus quiser. Se Deus quiser… Agradeço-lhe muito cá de dentro de mim a amizade que me deu e que me deu tanto! Também gostava que continuassem na mesma a seguir com o disco das cantigas americanas [Amália na Broadway]. Um beijinho muito grande e grande parte de mim. Obrigada por tudo! Amália Também eu te sou grato, meu querido João, por uma amizade que soube a pouco e a tanto, que fez da minha vida mais vida e que foi, acima de tudo, certeza (não é isso que a distingue do amor?). Depois de ti acredito mais em Demócrito: “a amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos”. E obrigado por me mostrares, do teu jeito, uma mulher apaixonante, de seu nome Amália, que gostava de cantar de olhos fechados (como o seu pai quando tocava cornetim) e que, à imagem da bonita voz de sua mãe, não era capaz de cantar sempre da mesma maneira.


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Maio

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Maio fotos: d.r.

dia), têm lugar os recitais de poesia. É também na galeria desta associação que decorrem as exposições dos artistas plásticos presentes nesta edição. Paulo Tomé, José Bivar, Eduardo Pinto, Manuel Neto dos Santos, Fernando Esteves Pinto, Vitor Gil Cardeira, Fernando Pessanha, Artur Filipe, Adão Contreiras, Paulo Moreira, Adília César, Pedro Jubilot, Marco Mackaaij, José Manuel Ferreira, Cristiano Cruz, Célia Mendes, Pedro Vale, Joana Rego, Gilda David, João Pereira, Pedro O. Tavares, Ana Amorim Dias, Osvaldo Rocha, João Caldeira Romão, Miguel Godinho, José Estevão Cruz, Beliza de Almeida e Sousa, Manuel de Almeida e Sousa, Carlos Campaniço, Renato Santos, Maria Luísa Francisco – são os editores, poetas e artistas algarvios presentes no encontro.

De Ernesto Hemingway Eram fracas E que o teu uppercut à pugilista dos anos trinta Era fraco Mas mesmo assim, E contra todas as probabilidades, Ó, quem diria, Descobriu que o alude emocional Das neves do Kilimanjaro Chegava Para um knockout

de renovação da natureza que vai do equinócio da primavera ao período do solstício de verão.

«Telegramas do Mediterrâneo» de Pedro Jubilot

Viva a Primavera

«Antes da Iluminação»

Do Algarve, diz-se (por piada ou por desejo) ter erradamente ficado fora do Mar Mediterrâneo, quando tem características semelhantes na sua gastronomia, arquitectura, atmosfera, ou pela paisagem, ambientes, cultura. E por receber os ventos que sopram de levante, cruzando o Estreito de Gibraltar, vindo estabelecer-se nas suas praias, trazendo o apelo e a inspiração à viagem poética. cacela velha. algarve. portugal

É o mês mais importante das nossas vidas. É a esperança contida no acrescento de luz nas horas dos dias. Lavados os céus, das nuvens que viajam do norte, abrimos os olhos ao horizonte, largo, abrangente. Lançados nesse infinito azul – pois claro! a inegável mais bela cor que conseguimos sonhar…

EDITA Portugal, em Tavira Foi o título escolhido por Mariano Alejandro Ribeiro para a sua estreia em livro de poesia na editora Mariposa Azual. Nascido em Buenos Aires em 1993, vive desde os nove anos de idade em Tavira. Tem poemas publicados no jornal literário da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Os Fazedores de Letras, e na coletânea Sizígia, da editora CanalSonora. As regras do pugilismo

AGENDAR

A 36ª edição do Festival Ibero-americano da Edição, da Poesia e das Artes, começou ontem em Vila Real de Stº António, e estará hoje, 6 e amanhã, 7, em Tavira, com comunicações às 17h, no auditório do Clube de Tavira (rua da liberdade). À noite, pelas 22h, no foyer da Casa Álvaro de Campos (ali à esquerda nas escadinhas do arco que levam à Igreja da Misericór-

Não te iludas, O teu uppercut à pugilista dos anos trinta é sobrevalorizado Os sinos dobram por aquele rapazinho no ghetto a atirar murros À maluca Que um dia cresceu e achou que as capacidades descritivas “MOURASENCANTADAS” De 10 a 30 MAI | Galeria Samora Barros - Albufeira Sofia Pinto Correia expõe bonecas ilustrativas de mouras encantadas, confeccionadas e pintadas por si, baseadas nas antigas lendas portuguesas

“Viva a Primavera”, é uma exposição de Artes Plásticas, organizada pela Armação do Artista, com artistas da cidade de Tavira, ou a residir na cidade, e tem como objectivo extrapolar o espaço convencional da “galeria”, imprimindo desta forma uma outra abrangência / envolvência, pois trata-se de levar as obras dos artistas para a “rua”, permitindo um maior contacto com o cidadão comum. Para o efeito convocou-se um conjunto de estabelecimentos do comércio local, afim de, nas montras desses espaços se poderem expor as obras dos artistas, numa desconstrução do processo tradicional de exposições. A exposição inaugurada a 25 de abril, ficará patente ao público durante trinta dias. Nela participam os Artistas Plásticos: Ângelo Encarnação, Ângelo Gonçalves, Kinga Subicka, Leif Lonne, Margarida Santos, Miguel Martinho, Pedro Fernandes, Vinicius Almada, José Mário Carolino. A maioria dos estabelecimentos comerciais que aderiram estão na Rua da Liberdade e na zona comercial pedonal: Eduardo Reis / Atelier, Fotografia Andrade, Casa Stick, Goji / Cafetaria, Anas / Lingerie-Tavira, Ativar Tavira, O Arco Sport e Fotografia Algarve. Esta atividade está inserida no programa “Viva a Primavera!” promovido pela autarquia e associações culturais do concelho, visando estimular e valorizar a criatividade da comunidade, a iniciativa das organizações, as práticas culturais e o aparecimento de novos talentos artísticos, num período

nesse abstracto arrebatamento me trago para um pouco de deleite na amurada junto à ria. daqui vejo o que ele viu, sinto o que ele sentiu? atento, sereno, confiante? só se não ouvir hoje o ruído de todos estes dias, ou então se me lembrar de como as coisas já foram simples neste pedaço muito próprio que remanesceu de mediterrâneo aspira-se a um novo dia infinito. acima da praia, onde o mar se em-prata de lua ou se vai na-mouriscar, facilmente se encarna o inesgotável inebriamento de ibn darraj al-qastalli só aqui se não deseja parar o tempo. e se acaso alguém souber de outro lugar assim de tão belo, poderá vir um dia trocar de morada comigo.

Casa Álvaro de Campos – Tavira A casa de todas as artes e todos os artistas continua a esperar a visita de todos amantes da cultura. Neste maio, recebe a exposição de pintura – «Do comer e do pintar» de Rosário Félix (sex, 13, às 18 h.); «Caetanando», um espetáculo musical com a chancela da Associação Cultural Rock da BaixaMar (Sáb, 14 – 21,30h); apresentação do livro «Lugar Sinónimo», de Pedro Oliveira Tavares e João Pereira (sáb, 21 - 18h) e «Sons da Primavera» - concerto de piano por Marcelo Montes (sáb, 21 -21h30). Na última sexta do mês às 18h, continua o «Café Filosófico» com Maria João Neves. Informação adicional no facebook da associação.

“A BUNCH OF MENINOS” 14 MAI | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Sem letras nem palavras, os Dead Combo, duo constituído por Tó Trips e Pedro Gonçalves, cantam com uma clareza desarmante o Tejo e Lisboa, Portugal e o Mediterrâneo


10 06.05.2016

Cultura.Sul

Espaço ao Património

Ficha Técnica:

Interculturalidade

fotos: d.r.

Ana Fazenda

Vereadora da Câmara Municipal de Portimão

A questão da diversidade cultural passou, em pouco mais de uma década, a ser um tema de discussão, a várias vozes, nos diversos fóruns políticos, quer a nível nacional, quer a nível local. Portugal tem vindo a assumir-se como país pioneiro na implementação de políticas de inclusão social, e de boas práticas, com impacto na vida de todos os que precisam de ser acolhidos. No quadro de articulação entre o poder central e local os municípios são convocados a corresponder aos desafios que se lhes colocam em matéria de acolhimento dos imigrantes, num esforço conjunto com os parceiros locais, assumindo-se, cada vez mais, como um município de todos e para todos, protagonizando uma política de inclusão, através da implementação de respostas sociais que respondam às necessidades de quem nos procura para viver. Portimão, uma terra de partidas e chegadas, nas palavras de

mília do Lado” que em novembro de 2015 reuniu à mesa famílias portimonenses e imigrantes que abriram as portas das suas casas a outras famílias que não conheciam para a realização de um almoço-convívio, típico da sua cultura de origem, como forma de acolhimento do “outro”. Portimão foi a segunda cidade do país que registou o maior número de famílias participantes na iniciativa. As comemorações do Dia da Cidade

Imagem da iniciativa 'Família do Lado' Manuel Teixeira Gomes, tem a construção da sua identidade, enquanto comunidade, baseada no acolhimento e tolerância. Neste processo tem vindo a desenvolver múltiplas atividades no sentido de “bem” acolher e ser uma cidade tolerante e solidária para os migrantes de 62 nacionalidades diferentes existentes no Município. Nesta linha de atuação o município de Portimão há muito que dá o exemplo de boas práticas em matéria de políticas de acolhimento e inclusão de imigrantes, respondendo às necessidades dos cerca de sete mil imigrantes residentes no concelho. Desafiado pelo ACM (Alto Comissariado para as Migrações - ACM, I.P), para a cons-

trução de um Plano Municipal para a Integração dos Imigrantes, em que sistematizasse todo o trabalho que de alguma forma tem vindo a ser desenvolvido nesta área, continuando a dar exemplos de boas práticas, o município apresentou a sua candidatura em Abril de 2015, estruturado em cinco áreas de intervenção. Importante instrumento de trabalho construído com a rede CLAS, rede local com base num diagnóstico de necessidades sentidas pelos imigrantes residentes, concretizou já duas das medidas implementadas, sendo uma delas a inauguração do CLAIM - Centro Local de Atendimento e Integração dos Migrantes no dia 21 deste mês, no edifício da Câmara

Municipal. Outro dos projetos apresentados foi o Programa Mentores que desde 2015 representa uma resposta social inovadora, reforçando o acolhimento e integração dos imigrantes através do envolvimento direto da própria sociedade, assente numa troca, entreajuda e apoio entre voluntários (cidadãos portugueses) e migrantes (emigrantes e imigrantes). Tem por base a existência de mentores disponíveis para estabelecer compromissos de mentoria com cidadãos migrantes (mentorados), facultando uma troca de apoios / auxílios, aconselhamentos e / ou esclarecimentos a vários níveis, facilitando a sua integração na comunidade. De destacar a iniciativa “Fa-

11 de dezembro de 2015 foi também uma ocasião para dar voz àqueles que vieram de outras paragens e fizeram de Portimão a sua casa, tendo sido convidados a participar ativamente na sessão solene. Imigrantes oriundos de Angola, Brasil, Irão, Rússia e China, atualmente residentes em Portimão, partilharam as suas experiências de vida e a forma como se integraram na sociedade portimonense. Estes são alguns dos exemplos das inúmeras iniciativas que têm sido implementadas ao longo do tempo como resultado das políticas locais, concertadas entre entidades públicas e privadas numa aposta de serviço público, fazendo a diferença na vida de todos quantos nos procuram para viver.

Juventude, artes e ideias

Grupos de teatro da Casa da Juventude: 18 produções teatrais, em apenas 9 anos

Jady Batista Coordenadora Editorial do J

A Casa da Juventude de Olhão (CJO) tem sido uma verdadeira incubadora de talentos, quer a nível das artes plásticas, das artes performativas, como o teatro, a música e a dança, ou das artes visuais, como a fotografia ou o vídeo. No que diz respeito ao teatro,

em particular, esta foi sempre uma área em que a CJO apostou. Desde a sua inauguração, em 2004, que vem dinamizando uma série de atividades formativas nas várias vertentes da produção teatral, como sejam voz, corpo, interpretação ou até mesmo maquilhagem e efeitos especiais. Em 2008/2009 apresentou a sua primeira produção - Viagem Breve a Um Reino Esquecido (Pedro Bom), dirigida por Hugo Sancho. Desde aí nunca mais parou. Também com a direção de Hugo Sancho, levou à cena, em 2010, Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll) e Aventura no Sótão

dos Sonhos (produção coletiva do extinto Grupo Teatro da Vida de Olhão). Em 2011, criou-se mais um grupo (dos 14 aos 20 anos), que produziu a peça Face, escrita e dirigida por João Evaristo. Em simultâneo, o grupo anterior levou à cena Turma X (produção coletiva). Em 2012, das oficinas de formação nasceu um novo grupo que, dirigido por Fernando Cabral, levou ao palco As Coisas Mais Belas do Mundo (produção coletiva). Nesse mesmo ano, foram ainda produzidas, pelos outros dois grupos, as peças Tanto Barulho para Nada (adaptação coletiva,

dirigida por Hugo Sancho) e Xixi Cócó (escrita e dirigida por João Evaristo). Nesta fase, a CJO começou a contar com a colaboração da Gorda e em 2013 foram produzidas quatro peças: Às Escuras, Branca de Neve Sem Anões e A Diva, pela CJO e O Testamento (em coprodução com a Gorda). Em 2014 houve uma renovação dos elementos dos grupos de teatro e a oferta da CJO passou a abranger três faixas etárias distintas: grupo de crianças (dos 6 aos 13 anos), dirigido por Vanessa Caravela e grupo de jovens (dos 14 aos 20 anos) e de adultos, dirigidos por João Evaristo. Por ser ano de iniciação, apenas foi pro-

duzida a peça Face (adaptação da versão de 2011). Em 2015 a CJO retomou a produção regular e apresentou no Auditório, numa mesma sessão, três peças de João Evaristo: Ser Criança Cansa (crianças), Princesa Procura-se (jovens) e Xixi Cócó (adultos). No presente ano, à colaboração da Gorda juntou-se a da Sociedade Recreativa Progresso Olhanense que cede o espaço onde os três grupos ensaiam e irão levar à cena, no dia 26 de maio, as peças Quando Eu For Grande (crianças), Três (jovens) e Olhão: 6 Retratos à La Minuta (adultos), com textos de João Evaristo.

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Ana Fazenda Emanuel Sancho Mónica Monteiro Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.700 exemplares


06.05.2016  11

Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Há livros perigosos? A propósito de Noite sem lua, de John Steinbeck Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

O jornal Público tem a decorrer uma coleção de livros intitulada «Quem vê capas vê corações» e o leitor provavelmente ainda conseguirá encontrar o número 5 da série, Noite sem Lua, de John Steinbeck. A edição portuguesa é de 1955 e a original de 1942. Comprei este livro há pouco mais de um mês por duas razões principais: por saber o impacto que teve na época em que foi escrito e por ter ilustrações de um grande pintor de renome mundial e artista muito querido no Algarve: Costa Pinheiro, falecido no passado mês de outubro (de quem podemos ver os painéis de azulejos no mercado de Olhão). O Público dizia, a propósito desta edição: «À complexidade da figura da capa [da autoria de Querubim Lapa], opõem-se as

ilustrações de António Costa Pinheiro (1931-2015), ainda que incipientes, demonstram já um fino sentido de humor e uma notável capacidade de síntese» (nas palavras de Rita Gomes Ferrão, a 24 de março de 2016). Não sendo especialista em desenho, achei que Costa Pinheiro ilustra, no sentido etimológico da palavra (dar brilho, luz), o texto. A simplicidade das linhas (não lhes chamaria incipientes) enquadram a história, sendo, ao mesmo tempo, expressivas na sua contenção. Um livro perigoso Quanto ao impacto que este livro de Steinbeck teve na época… como eu gostava de dizer que estávamos perante um livro datado. Que bom seria que louvássemos o talento literário do seu autor e suspirássemos de alívio, exclamando «Que sorte este mundo agora não ser assim!». Em 1943, a edição suíça foi censurada para não ofender os alemães; em 1944, tradutor e ilustrador da edição holandesa usaram nomes falsos, como medida de proteção; em Itália, possuir um exemplar deste livro

tinha como pena a condenação à morte por fuzilamento… Que bom seria dizer que, neste séc. XXI, ninguém vai preso, em nenhum país que se queira civilizado, por ler determinada obra. Como tenho a sorte de ter vivido toda minha vida em liberdade (quase toda, mas como tinha 7 anos no 25 de abril de 1974, não me lembro do «antes») e nunca tive livros proibidos, fiquei curiosa sobre os critérios que teriam sido usados para considerar um livro perigoso. Fiquei surpreendida pela simplicidade do livro e pelo seu forte humor, logo nas primeiras páginas: «(…) Às dez e meia a banda dos invasores começou a tocar lindas músicas sentimentais na praça pública (…). Às dez e trinta e oito os seis mortos estavam enterrados, os pára-quedas estavam dobrados (…). Às dez e quarenta e cinco o velho presidente da Câmara, Orden, recebeu pedido de audiência para o coronel Lanser, comandante dos invasores» (pp. 15-16). A descrição, no capítulo II, realça a quase infantilidade destes conquistadores. Depois de descrever as personagens, cada uma com características a raiar o ridículo, afirma: «Eram esses os homens do estado-maior, todos ali como crianças que brincam o Corre, carneiro, corre» (um misto de jogo de escondidas e de apanhada). Frase perigosa: «a autoridade não reside na pessoa, e sim no povo»

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Steinbeck, ilustração de Costa Pinheiro

Contudo, estamos perante uma guerra e a ocupação de uma pequena cidade mineira no norte da Europa, com toda a crueldade que esta situação implica, apesar do comandante ocupante e o chefe da cidade ocupada serem homens que se entendem, pela cultura que, apesar das diferenças, partilham. Um fará o que tiver de fazer para cumprir as ordens do Líder (subentende-se Hitler), mesmo que não as ache apropriadas, e o outro assumirá a consequência dos seus atos de desobediência a

“DO ABSTRACTO AO FIGURATIVO” Até 22 MAI | Galeria Municipal de Albufeira Henrique Silva, Martins Leal e Marisa Patrício apresentam ao público telas e esculturas que versam sobre a linha abstracto-figurativa

fotos: d.r.

Capa de Querubim Lapa, falecido no passado dia 2 essas ordens. Pergunta o coronel Lanser a Orden, o presidente da câmara: «- Mas vai experimentar cooperar? Orden sacudiu a cabeça. - Não sei. Tenho de agir de acordo com a resolução da cidade. Se a cidade quiser cooperar, só então cooperarei. - Mas o senhor é a autoridade!... Orden sorriu. - O coronel não acreditará nisto, mas é certo: a autoridade não reside na pessoa, e sim no povo. Não sei porquê nem como, mas é assim. E isso quer dizer que nós aqui não podemos agir tão depressa quanto os senhores lá na sua terra; mas quando o povo estabelece um rumo, então todos agimos de acordo» (p.41). Ao ler isto, veio-me à memória a peça Antígona, de Só-

focles, de há 2500 anos, nas palavras trocadas entre Creonte, rei de Tebas, e o seu filho Hémon, que tentava trazer o pai à razão: «Creonte – Com que então devo aprender a ter senso nesta idade, e com um homem de tão poucos anos? /Hémon – Nada aprenderias que não fosse justo. E, se eu sou jovem, não são os anos, mas as acções que cumpre examinar./ Creonte – ‘As acções’ consistem então em honrar os desordeiros?/ Hémon – Nem aos outros eu mandaria ter respeito pelos perversos./ Creonte – E então ela [Antígona] não foi atacada por esse mal?/ Hémon – Não é isso que afirma o povo unido de Tebas./ Creonte – E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?/ Hémon – Vês? Falas como uma criança./ Creonte – É portanto a outro, e não a mim, que compete governar

este país?/ Hémon – Não há Estado algum que seja pertença de um só homem./ Creonte – Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?/ Hémon – Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta» (vv. 727-739. Trad. Rocha Pereira). Se Sófocles não está explícito, Platão está, quando a sua Apologia de Sócrates é recitada por Orden, acompanhado pelo seu amigo médico e… pelo próprio Lanser. O coronel pede ao presidente que coopere, mas Orden responde: «Não depende de mim a minha morte ou a minha vida, senhor, mas… depende de mim uma escolha: de como viver ou de como morrer. Se eu disser ao povo que não lute, todos ficarão tristes, mas lutarão. Se eu disse ao povo que lute, todos ficarão alegres – e eu, que não sou um valente, contribuirei para tornar a minha gente mais valente. (…) O povo não quer ser conquistado, senhor, e não será conquistado. Os homens livres não podem impedir uma guerra, mas quando a guerra sobrevém podem lutar e lutam mesmo depois de derrotados. Já os homens escravos, os homens de rebanho, não podem fazer isso, de modo que são sempre os homens de rebanho que ganham as batalhas e os homens livres que vencem as guerras» (p. 174). Os ocupantes são homens de rebanho, que cumprem ordens, mesmo quando percebem que elas são ineficazes: «Eles pensam que pelo facto de terem um só chefe e uma só cabeça todos os outros devem ser assim. Eles sabem que entre eles dez cabeças cortadas os destroem, mas sós somos um povo livre: temos cabeças quantas pessoas, e em caso de necessidade os chefes pululam entre nós como cogumelos» (p. 164). Como narrativa, lê-se com leveza. Mas depois pesa, pesa… Ainda bem que há livros que podem ser perigosos.

“LANZAROTE: A JANELA DE SARAMAGO” Até 9 JUL | Centro Cultural de Lagos A exposição fotográfica de João Francisco Vilhena mostra a relação entre o Nobel da Literatura falecido em 2010 e a ilha que escolheu para viver


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