CULTURA.SUL 95 - 5 AGO 2016

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Missão Cultura: d.r.

O Amor em Lobito Bay: Lídia Jorge na arte do conto p. 4

Colaboração em torno da Torre Albarrã do Castelo de Paderne

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Espaço AGECAL: d.r.

Gestão cultural urbana: o ‘Verão em Tavira’

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Artes visuais: d.r.

d.r.

Áurea brilha no Festival do Marisco

Os limites da integração de técnicas nas artes visuais p. 6

Espaço ALFA:

d.r.

AGOSTO 2016 n.º 95

Jornalismo on-line: um curso para todos!

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO 9.097 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

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05.08.2016

Editorial

Festas, festivais e feiras

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

O Verão instalou-se intrépido por terras do Algarve e o calor tem feito jus à época de estio, convidando a sair à rua e a viver fora de portas a época estival. As autarquias algarvias desempenham por esta altura um papel fulcral na dinamização da programação cultural e animação de toda a região e fazem-no em prol do turismo, mas também em resposta àquelas que são as necessidades dos seus munícipes. Não há nem recanto que não tenha por estes dias uma festa, uma feira, um festival. Rotulados por muitos como mera animação de Verão, estes acontecimentos - para fugir aoscostumeiro termo 'eventos' - são também manifestações culturais de relevo e são-no pelas mais variadas razões. Desde logo, porque trazem ao Algarve muito do que se faz no país em termos musicais e de artes performativas. Em particular destaque estão neste aspecto alguns dos nomes mais sonantes da música portuguesa que marcam presença na região nesta época enquanto presenças em alguns dos cartazes de festivais como o Festival do Marisco em Olhão, ou o Festival F, em Faro, ou o MED, em Loulé. Por outro lado, as festas e festivais celebram o que de mais arreigado há na identidade das terras onde se realizam. Celebra-se a sardinha em Portimão, comemora-se a doçaria em Lagos, festeja-se o presunto em Monchique ou os frutos da Ria Formosa na festa farense com o mesmo nome e os saberes serranos na Feira da Serra são-brasense. É a cultura a dar nas vistas, a passear-se pelas praças e zonas ribeirinhas, nos jardins e calçadões deste nosso Algarve, policromada e polifónica a combinar com as cores vivas do Verão.

Cultura.Sul

Missão Cultura

Colaboração em torno da Torre Albarrã do Castelo de Paderne Direção Regional de Cultura do Algarve

Foi assinado a 29 de Julho, na Câmara Municipal de Albufeira, entre a Direção Regional da Cultura do Algarve, o Município e a Fundação Millennium BCP, um protocolo de colaboração financeira para a execução da primeira fase do Projeto de Conservação e Restauro dos Módulos de Taipa Almóada do Castelo de Paderne - Torre Albarrã. O projeto é um investimento prioritário, identificado no planeamento da Cultura para a Região, pelo que será submetido ao CRESC 2020 através de candidatura. As caraterísticas mais notáveis do Castelo de Paderne são o uso massivo da taipa, como sistema construtivo, e a inexistência de torres intermédias ou de esquina, suprimidas por uma única torre de albarrã, ex-libris do castelo. Talvez por tratar-se de uma fortaleza de pequena escala, em sítio tão escarpado, o quebrar dos muros é recurso defensivo suficiente para compensar a fal-

foto: drcalg/r. parreira

ta de torres. A arquitetura militar tem a característica de ser completamente racional, no sentido de que não há desperdícios nos meios para garantir funcionalidade. No ato, participou o Arq. Manuel López Vicente que apresentou o projeto de intervenção de que é o autor. Princípios do Projecto de Intervenção O projeto assumiu os critérios e as recomendações das Cartas e Convenções sobre Património Cultural. Baseou-se numa série de opções técnicas compatíveis com a natureza do monumento de forma a permitir enquadrar a sua valorização, compreensão e leitura, nas seguintes bases: Manter a autenticidade e a identidade da Torre Albarrã evitando o falso histórico, ou acabamento de estilo histórico incongruente; Evitar que a Torre Albarrã se converta numa cópia, caricatura ou falsificação de si mesma; Respeito por todos os acréscimos de todas as épocas, pois apresentam-se como um documento para leitura das diferentes

Torre Albarrã do Castelo de Paderne fases da torre, desde que não sejam incongruentes, conflituantes ou incompatíveis com o restante monumento; Faculdade no uso de reinte-

grações e inserções de novos elementos, a fim de preservar e estabilizar a estrutura interna do suporte, perceptíveis e adequadas em termos de cromática;

Qualquer intervenção não poderá impedir acções futuras de conservação e restauro. Nesta base resultou um projeto conservador, centrado no saneamento das patologias dos módulos de taipa constituintes da Torre, para garantir uma maior durabilidade desta. O grau de intensidade da intervenção será proporcionado ao estado de conservação do módulo ou da zona a tratar, procurando manter aqueles cuja conservação esteja aceitável, individualizando os acrescentamentos e as alterações sofridas. Inclui eliminar o mínimo de material original, com as reintegrações e inserções reduzidas ao estritamente necessário, em harmonia com o contexto do edificado histórico, para uma adequada e controlada melhoria estética do perfil e da silhueta da Torre. As parcerias tornam assim mais uma vez possível a salvaguarda e valorização do nosso património cultural no Algarve, ao permitir um esforço tripartido com vista à recuperação nesta primeira fase da Torre Albarrã do Castelo de Paderne.

Juventude, artes e ideias

Bandas de Olhão no Festival do Marisco d.r.

Jady Batista

Coordenadora editoral J

O Festival do Marisco volta a ser palco para as bandas de Olhão. Assim, esta iniciativa do município, organizada pela Fesnima, para além de referência nacional como festival gas-

tronómico que traz a Olhão os melhores artistas da atualidade, assume também o nobre papel de promover os talentos da nossa terra. Tal como tem vindo a ser hábito, nos últimos anos, o Festival do Marisco, em parceria com a Casa da Juventude, convida as bandas que ao longo do ano se destacam a nível do nosso concelho. Nesta edição estão presentes três bandas de originais. No dia 10, a banda Caleidoscópio sobe ao palco antes dos Expensive Soul. The Black Teddys partilham o palco, no dia 11, com Os Azeitonas. Con-

“PRAIAS DO BARLAVENTO ALGARVIO E OUTRAS” Até 31 AGO | Centro de Interpretação de Vila do Bispo Leonardo Neves apresenta 46 obras de pintura a óleo sobre tela, onde retrata a paisagem marinha e campestre da zona do barlavento

tra-Corrente antecedem a atuação de Xutos e Pontapés, na última noite do festival, dia 14. Esta é uma oportunidade para a

população olhanense e os muitos visitantes nacionais e internacionais ficarem a conhecer o valor dos nossos músicos, neste

que é o palco maior do nosso concelho. A promoção dos jovens músicos da nossa terra tem sido um dos objetivos levados a cabo pela Casa da Juventude do Município de Olhão. A par desta iniciativa destaque para outras não menos importantes como: a formação em DJ e Produção Musical, ministrada por Viriato Muata; As Bandas da Casa, projeto de formação de bandas, em parceria com Eduardo Patarata; a organização de eventos como o Mostra-te ao Vivo e o Olhão ao Vivo, onde atuam exclusivamente bandas de Olhão.

“HOMENAGEM AO REI DO ROCK & ROLL” 14 AGO | 22.00 | Palco da Doca - Faro A Orquestra de Jazz do Algarve convida Elvis, aliás, Selvis Prestley, para reviver um artista e a sua carreira


Cultura.Sul

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Grande ecrã

Cinema não europeu mostra-se ao público no Convento do Carmo Enquanto o Cineclube de Faro faz uma paragem quase total neste mês de Agosto, Tavira prepara-se para uma quinzena inicial do mês recheada de muito e bom cinema. Regressa ao Convento do Carmo, na cidade do Gilão, ao ar-livre como a época aconselha, a mostra de cinema não europeu que marca anualmente a programação da cidade. Entre hoje, dia 5, e o próximo dia 15, juntam-se na tela de projecção curtas e longas metragens de realizadores como Bill Pohlad, Hiromasa Yonebayashi, Anna Muylaert ou o incontornavel Scorsese. O convite está lançado para mais de 20 películas que podem ser desfrutadas em pleno num enquadramento de beleza particular, o tavitrense Convento do Carmo. Oportunidades únicas de ver ou rever filmes que em muitos

fotos: d.r.

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cineclubetavira@gmail.com MOSTRAS DE CINEMA NÃO EUROPEU | CONVENTO DO CARMO EM TAVIRA (AR LIVRE) | 21.30 HORAS 5 AGO | Curta: BOTTLE (GARRAFA), Kirsten Lepore, E.U.A. 2011, 6 min, M/6 | Longa: LOVE & MERCY, Bill Pohlad, E.U.A. 2014, 120 min, M/12 6 AGO | TRUMBO, Jay Roach, E.U.A. 2015, 123 min, M/12

Cena do filme 'A insustentável leveza do ser' casos são por muitos considerados de culto ou integram a memória colectiva da sétima arte, como 'A insustentável le-

veza do ser'. Vale bem a pena viver momentos únicos com os olhos fixos no ecrã de todos os sonhos.

7 AGO | OMOIDE NO MÂNÎ (MEMÓRIAS DE MARNIE), Hiromasa Yonebayashi, JAP 2014, 103 min, M/6 8 AGO | EL ABRAZO DE LA SERPIENTE (O ABRAÇO DA SERPENTE), Ciro Guerra, Colombia/Venezuela/Argentina 2015, 125 min, M/14

9 AGO | Curta: SNAKE-AFGHAN WOMEN POETRY (SERPENTE-POESIA FEMININA AFEGÃ), Seamus Murphy, Irlanda 2013, 14 min, M/12 | Longa: TAXI (TÁXI DE JAFAR PANAHI), Jafar Panahi, IRÃO 2015, 82 min, M/12 10 AGO | Curta: THE DAM KEEPER (O GUARDIÃO DO AÇUDE), Robert Kondo & Daisuke ‘Dice’ Tsutsumi, E.U.A. 2014, 18 min, M/6 | Longa: EL BOTÓN DE NACAR (O BOTÃO DE NÁCAR), Patricio Guzmán, CHILE/F/ES/SUI 2015, 82 min, M/12 11 AGO | QUE HORAS ELA VOLTA? (THE SECOND MOTHER), Anna Muylaert, BRA 2015, 111 min, M/12 12 AGO | Curta: EL EMPLEO (O EMPREGO), Santiago Bou Grasso, Argentina 2008, 11 min, M/6 | Longa: MEDIANERAS (SIDEWALLS), Gustavo Taretto, ARG/ES/ AL 2011, 95 min, M/12 13 AGO | SPOTLIGHT (O CASO SPOTLIGHT) Tom McCarthy, E.U.A./CAN 2015, 128 min, M/14 14 AGO | THE UNBEARABLE LIGHTNESS OF BEING (A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER), Philip Kaufman, E.U.A. 1988, 171 min, M/16 15 AGO | GEORGE HARRISON: LIVING IN THE MATERIAL WORLD, Martin Scorsese, E.U.A. 2011, 208 min, M/12

Espaço AGECAL

Gestão cultural urbana: o 'Verão em Tavira'

Jorge Queiroz Sociólogo e gestor cultural; Sócio da AGECAL

Em territórios que atraem turismo surgem contactos entre culturas locais e de outras geografias, expectativas e modelos comportamentais. Que programas culturais devem ser desenvolvidos para a comunidade e os visitantes? Esta questão colocou-se a Tavira e ao município no início da década passada. Os modelos conhecidos, festivais de música com promoção de marcas ou de gastronomia com música, não correspondiam ao potencial cultural e ambiental da cidade. Um “festival mediático” consumiria recursos significativos em dois ou três dias e seria imitativo do que já se fazia baseado em “cartazes” sonantes. O desenvolvimento humano é a marca da cidade cultural, não há cultura sem conhecimento e práticas. Com um perfil cultural herdado,

Tavira evidencia há muito uma estética urbana desenhada pela elevada densidade de ocorrências monumentais. Possui também património imaterial valioso, reconhecido em 2013 pela UNESCO com a dieta mediterrânica e os valores associados. Optou-se por um programa multidisciplinar de Julho a Setembro, um título simples com dois nomes, da estação do ano e o da cidade. “Verão em Tavira” (VET), em português, o património vivo mais importante de Portugal e idioma oficial de oito Estados nos cinco continentes, podendo ser subtítulado noutra língua. O VET surgiu em Julho de 2002 no contexto da reabilitação patrimonial e redefinição da orgânica municipal, década e meia provando sustentabilidade e adaptabilidade a diferentes circunstâncias e orçamentos. Foi pensado e concretizado como programa de conhecimento e lazer, nele cabendo educação e ciência, relação do património histórico-monumental com as artes actuais, divertimento e valorização ambiental, dirigido à população residente e visitantes, a todas as idades, com entradas gratuitas e alguns concertos com bilheteira, informativamente por um jornal de conteúdos.

d.r.

Nunca foi um programa “para turistas”, um inquérito confirmou 70% de público residente. Os turistas são cidadãos como nós vindos de outros lugares, normalmente desejando descobrir ambientes e culturas diferentes. Importa dar-lhes atenção, informação, hospitalidade, integrá-los como a um amigo que recebemos em casa. Sendo uma indústria, o turismo resulta de pré-existências naturais e culturais, que importa respeitar, estudar, salvaguardar e potenciar, a favor das populações e da economia regional.

O VET foi estrategicamente articulado com os recursos artísticos nacionais mas sempre ligado ao potencial proporcionado pelas instituições locais em cada momento mais activas, como o Museu e a Biblioteca Municipais, Centro de Ciência Viva, Cineclube (Mostras do Cinema Europeu e Não Europeu), Banda de Música, Academia de Música, Armação do Artista, Casa das Artes, Corpodehoje, Fado com História, Ranchos Folclóricos, NAFA, ASTA,… Estiveram em Tavira destacados nomes da música ligeira, como Mariza,

Abrunhosa, Dulce Pontes, Ana Moura, Carlos do Carmo, Rui Veloso, Sérgio Godinho, GNR, Deolinda, Rodrigo Leão e muitos outros, mas também a música clássica e a ópera. As feiras temáticas ligadas à produção cultural, livro, disco, artesanato, antiguidades, acompanham o Verão. Em 2005 surgiu o “Cenas na Rua”, festival internacional de teatro e artes na rua, uma quinzena em Julho, provavelmente o maior do sul do País. No “Jazz no Palácio” actuaram os melhores músicos e intérpretes do jazz nacional e no Palácio da Galeria/ MMT programadas relevantes exposições de arte, casos das Colecções Berardo, Fundação Gulbenkian, CGD ou das individuais de Luís Gordillo, Costa Pinheiro, Bartolomeu, Alberto Carneiro, Ângelo de Sousa, Paula Rego, Júlio Pomar, Cabrita Reis,… Impossível estabelecer números, mas são largas dezenas de milhares de pessoas que acompanham o VET e muitas marcam férias de acordo com a programação. O “Verão em Tavira” foi construído com e para as pessoas, é património destas, da autarquia e da cidade. Um “caso de estudo” de gestão cultural urbana. Pela longevidade e os frutos se reconhece a qualidade de uma árvore.


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Cultura.Sul

Letras e leituras

O Amor em Lobito Bay: Lídia Jorge na arte do conto joão pedro marnoto

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

O Amor em Lobito Bay, publicado pela D. Quixote, é o quarto volume de contos da autora Lídia Jorge. Natural de Boliqueime, e uma das grandes romancistas da literatura portuguesa pós-25 de Abril, a autora opta por escrever estas narrativas breves entre os seus romances, como forma de experimentação literária, sendo o romance aquilo que a autora chama de “demonstração longa”. Os anteriores volumes de contos foram Marido e outros contos (1997), onde está integrado «Marido», um dos seus melhores contos, O Belo Adormecido (2004), e Praça de Londres (2008). Foram ainda publicados dois contos em edição individual: O organista e A instrumentalina, que já antes tinha conhecido uma edição isolada e estava ainda integrado na antologia de Marido e outros contos. Na contra capa deste livro podemos ler pelas palavras da própria autora que: «Em termos de género, o conto é um híbrido. Ele promove os dotes copiosos da narrativa mas dirige-se para a forma sucinta do poema. Gostaria que os meus contos, oscilando entre uma e outra forma, contivessem filmes de acção no seu interior, e ao mesmo tempo se aproximassem da música livre, sucinta, feita com um mínimo de palavras.». «O Amor em Lobito Bay» é o primeiro conto da colectânea, não só porque dá nome à mesma, mas porque acabou por coincidir com o tema de outros contos já escritos, igualmente inseridos na compilação: «O Tempo do Esplendor», «Dama Polaca Voando em Limusine Preta» e «Um Rio Chamado Mulher». Foi a partir desses que a autora decidiu escrever os outros cinco. Uma vez mais, na contra capa do livro, podemos ler que os contos reunidos neste livro «parecem chegar até nós com a finalidade de inquietar porque subvertem uma ordem e, ao mesmo tempo, têm o

O Amor em Lobito Bay é o quarto livro de contos de Lídia Jorge condão de aquietar porque propõem uma clarificação». É isso que acontece com a história do rapaz que queria comer o coração da andorinha. «O Amor em Lobito Bay» narra a história de um menino que queria apanhar uma andorinha viva pois «corria o rumor de que aquele que comesse o coração de uma andorinha apanhada em pleno voo, tornar-se-ia o maior corredor do mundo» (pág. 16). Lídia Jorge declarou, em entrevista, que o conto que dá título ao livro nasceu de uma história que ouviu contar, durante um almoço depois de uma sessão na Universidade Católica, ao padre José Tolentino Mendonça. A autora ficou tão sensibilizada com a história que lhe pediu depois autorização para

se apropriar dela, cruzando-a com o que conhecia de África. África, ou pelo menos a África lusófona, é um continente familiar a Lídia Jorge, pois depois de terminar o curso foi para Luanda onde se casou. Além disso, já tinha ouvido os relatos do avô que vive em África e do pai que também foi emigrado por lá. Dois anos depois de Angola, foi viver para Moçambique, país sobre o qual escreveu, aliás, em A Costa dos Murmúrios, um dos romances que mais a impulsionou no panorama literário nacional, adaptado em 2014 ao cinema por Margarida Cardoso. A salvaguardar a veracidade destas narrações breves temos no decorrer do conto «O Amor em Lobito Bay» planos alterna-

dos entre a história narrada e o momento em que a mesma é narrada pelo padre José Tolentino Mendonça, designado como «o professor»: «Era uma ave pequenina, fugidia, uma avezita de arribação que ora estava ora não estava. Era a andorinha. Disse o professor, enquanto nos serviam o primeiro prato.» (pág. 15). Diz-se ainda no próprio texto de apresentação do livro de que em todos os contos «existe uma história de amor, no sentido mais amplo do termo, que entrecruza a experiência da confiança na vida com o desconcerto do mundo». Mas aquilo que realmente parece unir estes contos é a forma como todos eles decorrem fora do nosso país, como episódios em trânsito pelo d.r.

Lídia Jorge é uma consagrada e premiada escritora

mundo e também pela vida, muitas vezes assinalando o momento de transição entre uma certa infância ou ingenuidade e a idade adulta, de confronto com a realidade em geral e com a realidade decorrida das nossas próprias escolhas. O amor pode assim definir-se como um momento de encontro consigo próprio que permite, então, encontrar o outro. O segundo conto, «Overbooking», ocorre num terminal de aeroporto onde um homem decide contar a um perfeito desconhecido um episódio traumático do qual participou e cuja verdade temível escondeu até àquele momento: «eu tenho uma coisa má para contar» (pág. 29). Este sentimento de isolamento ou de deriva num mundo maior perpassa ainda pelos outros contos, onde abundam ainda os estrangeirismos ou falas inteiras em inglês ou polaco, a confirmar essa ausência do país através do encontro com outras línguas. E talvez por o encontro com um Outro que partilhe connosco a mesma nacionalidade, a língua, as referências, seja mais forte esse impulso de confessionalidade e de despir a alma, como aconteceu a esse homem no aeroporto que confessa ter sido cúmplice de um crime. «O Tempo do Esplendor» é o terceiro conto e um dos mais belos, a par de «O Amor em

Lobito Bay», onde se conta a história de uma menina que para chamar a si o amor e o reconhecimento por parte do pai chega a tomar medidas drásticas. Esta narrativa terá também partido de uma história contada à autora, onde uma menina, Marina Pestana, de cinco anos, decide bordar um lenço para o pai onde caiba todo o seu amor: «O meu lenço tinha estrelas, o sol, a lua, os peixes e as flores e ninguém o via. O meu pai nem tinha escutado o meu murmúrio.» (pág. 59). Esta questão do distanciamento entre pais e filhas é aliás algo que cruza aliás a obra de Lídia Jorge, como, por exemplo, em O Vale da Paixão. Destaque-se ainda «Um Rio Chamado Mulher» que cruza mais uma vez a ficção e a realidade, onde se narra, conforme a autora contou num encontro decorrido na Casa Manuel Teixeira Gomes, em Portimão, um episódio decorrido em «New Orleans» onde, na busca do legado deixado por William Faulkner, mais especificamente a propósito do seu conto «Old Man», se dá um encontro com uma mulher, de seu nome Barbara (parecendo ela própria uma personagem de filme ou de livro), que alega que A Escolha de Sofia é a sua própria história. Quem lê «Um Rio Chamado Mulher» sente-o como um episódio que poderia ser retirado de um diário da autora, sendo bem conhecido o apreço de Lídia Jorge pela escrita de William Faulkner, uma das suas influências literárias como é o caso da sua obra de estreia O Dia dos Prodígios (1980). E, a dado passo do conto, lemos mesmo algo que a escritora declarou, referindo-se ao seu pai, durante essa Conversa com Gente Singular, em Portimão, e que aproxima inequivocamente esta narrativa de um episódio autobiográfico: «Queria, mais uma vez, experimentar na alma o princípio legado pelo meu pai de que quanto mais nos afastamos de casa mais nos aproximamos da nossa verdadeira morada» (pág. 105). O leitor anda assim numa corda bamba em que quer ler e sentir estes contos como uma confissão da própria autora, mesmo quando ela foi apenas uma interposta voz a dar conta dos relatos que lhe chegaram ou que testemunhou.


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Panorâmica

Olhão marca agenda cultural com os sons do Festival do Marisco

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

São algumas das melhores vozes do país e trazem ao Algarve muito do que de melhor se faz em termos de música nacional. Integram o cartaz do Festival do Marisco que promete, como sempre, arrastar largos milhares de pessoas até ao Jardim Pescador Olhanense entre os dias 9 e 14 deste mês. Agosto não seria o mesmo sem o mais importante festival da região, que alia de forma única os frutos do mar da Ria Formosa, a melhor arte culinária do Algarve e a boa música, numa frente de mar de que poucas terras algarvias se podem gabar. A cidade que se estende à beira-ria no coração da reserva natural faz jus ao epíteto de capital da Ria Formosa e reserva para os vistantes do Festival do Marisco, muito que comer, que beber e que escutar e ver num evento que é incontornável no Verão da região. Camarão, sapateiras, arroz de marisco, a célebre vila de amêijoas, arroz de lingueirão, açorda de marisco, caranguejos, amêijoas abertas ao natural, ostras e muito, muito mais são as iguarias ímpares que todos os que ru-

d.r.

marem a Olhão durante os dias do festival vão poder saborear. O ambiente esse é igual ao de sempre, único, animado, especial e convidativo nas noites em que ao calor do Agosto algarvio se unem os sorrisos francos e abertos e a arte de bem receber dos olhanenses. Bilhetes mais baratos nesta edição Nesta edição a Fesnima, empresa municipal olhanense responsável pela organização do Festival do Marisco, apostou na redução dos preços das entradas para conquistar ainda mais público, que decerto se somará aos milhares que anualmente fazem do evento um dos mais concorridos da agenda estival.

Festival já se tornou uma referência no Verão algarvio As entrdas vão variar entre os cinco e os oito euros, respecti-

vamente para os dias 9, 10 , 11 e 13 e para os dias 12 e 14, que

acolherão no palco C4 Pedro e Xutos & Pontapés.

Áurea, Xutos & Pontapés e Os Azeitonas são três dos nomes fortes do cartaz do Festival do Marisco

Animação e diversão são as palavras de ordem do evento maior do calendário anual de Olhão e já se prepara tudo na baixa da cidade para que a frente ribeirinha acolha nas melhores condições possíveis os comensais e os convivas a partir da próxima terça-feira. Absolutamente imperdível ou não fosse o Festival do Marisco a mais importante oferta de animação do concelho de Olhão, o evento decerto não deixará de proporcionar, a todos os que dos quatro cantos do Algarve escolhem a cidade cubista como ponto de passagem neste seis dias, momentos culturais de excepção. Nesta 31ª edição, a aposta na qualidade dos produtos do mar e da Ria Formosa promete manter-se. “Aliás, esse é um dos pontos de honra deste evento desde a primeira hora: gastronomia confeccionada no local e no momento!”, afirma a autarquia liderada por António Miguel Pina. E ninguém duvide da promessa de que o que de melhor a Ria Formosa tem para oferecer se poderá provar por terras olhanenses, é que a arte de bem cozinhar marisco é dominada há séculos pelas gentes de Olhão, timbradas na arte de mariscar e pescar e de levar à mesa pratos dignos de louvor com aquilo que o mar dá e que a ria tempera com um gosto único e indesmentível na excelência. Perder este momento seria um pecado, por isso já sabe, Olhão tem de constar da sua

Programação: Os Azeitonas | 11 AGO

Camané | 13 AGO

A menina bonita da voz magnífica promete arrastar uma multidão até Olhão para ouvir temas como 'Scratch My Back'.

A sonoridade de Os Azeitonas não deixará ninguém indeferente no festival deste ano. Um concerto a não perder.

A festa olhanense não seria a mesma se não contasse com a noite de fados que marca sempre ao cartaz. Desta vez a voz é a de Camané.

Expensive Soul | 10 AGO

C4 Pedro | 12 AGO

Xutos & Pontapés | 14 AGO

Demo (MC) e New Max, trazem a Olhão os sons da soul, r' n b', punk e hip-hop, num registo que conquistou uma legião de fãs.

Os ritmos de Angola chegam ao festival na noite de dia 12 pela mão de C4 Pedro, a proposta é tentadora para os amantes do género.

O encerramento do Festival do Marisco está bem entregue nas mãos da banda de culto do rock nacional na noite de dia 14.

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Áurea | 9 AGO

“ESPECTÁCULO CLÁSSICO ENCANTE” 13 AGO | 22.00 | Praia da Angrinha - Ferragudo As vozes de Vitorino e Janita Salomé juntam-se às dos Cantadores de Redondo e à Orquestra Clássica do Sul para um espectáculo que associa o Cante Alentejano aos temas tradicionais da orquestra

“A COR DO CORAÇÃO” Até 8 de OUT | Centro Cultural de Lagos Brigitte von Humboldt é uma pintora alemã que em 1979 fixou residência na cidade de Lagos, onde criou o seu atelier de pintura Atelier Azul’ na Meia-Praia


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05.08.2016

Cultura.Sul

Artes visuais

Quais os limites para a integração de técnicas nas artes visuais?

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

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Muitas vezes, perante certas obras, os espetadores questionam-se sobre como foi esse produto realizado, procurando identificar se se trata de pintura, de fotografia, de escultura, de instalação, etc. Outras vezes, as obras artísticas produzidas nem sequer são compreendidas pelo espetador. Isto pode dizer respeito ao conteúdo da obra, mas também diz respeito, muitas vezes, às técnicas de produção utilizadas. As técnicas contemporâneas de produção artística levam a que, por vezes, não se compreenda facilmente como são realizadas algumas obras. A arte contemporânea veio abrir as possibilidades relativamente às formas de produção artística e às combinações possíveis na utilização de diversas técnicas, tendo também cada vez menos sentido tentar categorizar um artista num determinado movimento ou estilo. A maioria dos artistas experimentam as várias técnicas existentes na sua época, numa perspetiva de experienciação no processo de produção artística. Sendo atualmente inúmeros os meios possíveis, sobretudo com o desenvolvimento das novas tecnologias, a maioria dos artistas procura integrar todos esses meios para o fim em vista que é a produção de uma obra artística. Uma das modalidades de expressão e produção artística cada vez mais frequente na arte contemporânea traduz uma utilização simultânea da fotografia e da pintura. Por exemplo, nos trabalhos de fo-

to-pintura que temos produzido a partir de 2006 temos utilizado a técnica de colar as fotos impressas em papel fotográfico na tela e pintarmos a partir daí o resto da tela, podendo também ser pintada parte das fotografias para que seja melhor conseguida a integração do elemento fotografia no todo que é o trabalho realizado. Pretende-se que a fotografia e a pintura quase que se diluam uma na outra, formando um todo coerente e harmonioso. A colagem é uma das hipótese para concretizar esta integração, mas há outras formas possíveis de combinação para a articulação da fotografia e da pintura na produção artística em artes visuais, não tendo que um elemento ser predominante em relação ao outro. Este é um aspeto importante, pois o todo mais do que a mera soma das partes e o importante é que ambos os meios contribuem para o todo que é a obra de arte produzida, permitindo a originalidade desta. Mas a integração em artes visuais também pode acontecer utilizando a pintura e a escultura. Por exemplo, no trabalho “Morena com lábios carnudos” a pintura incorporou uma componente de escultura, pois os lábios foram feitos à parte, em gesso, e depois integrados na pintura. Esta situação da integração nas artes visuais expressa aquilo que acontece noutros domínios, inclusive na própria ciência. Após séculos de uma cada vez maior especialização, diferenciando-se progressivamente as grandes áreas científicas, seguindo-se a própria diferenciação de domínios mais específicos dentro de cada área científica, começa a ser cada vez mais necessário o esforço de aproximação entre os diversos domínios e áreas científicas, numa perspetiva interdisciplinar que poderá permitir um conhecimento mais completo e

d.r.

A obra “Morena com lábios carnudos”, de Saul de Jesus (2012) complementar sobre o objeto estudado. Neste âmbito, a título de exemplo, já em 1996 havíamos proposto um modelo cognitivo-motivacional integrativo que permitisse o estudo do complexo fenómeno da motivação humana, em particular no caso dos alunos e também dos professores na

“CONCERTO DE MARIZA” 15 AGO | 21.30 | Largo Engº Duarte Pacheco - Loulé Estrela do fado trará a Loulé o seu último trabalho, ‘Mundo’, um trabalho que vai muito para além do fado e onde canta pela primeira vez em castelhano

escola, pois as diversas teorias da motivação existentes eram cada vez mais específicas e parcelares, não dando conta da complexidade dos processos motivacionais. Assim, a partir de várias teorias da motivação existentes na literatura, construímos um modelo teórico que as integrava, o qual foi

depois testado empiricamente, tendo os resultados obtidos mostrado o sentido do modelo que havíamos proposto. Até ao nível da sociedade, a própria globalização atual expressa a interligação que existe entre as economias dos vários países, revelando que tudo se encontra de alguma forma relacionado. Ao nível das artes visuais há um movimento específico intitulado de Arte Integrativa, o qual visa aprofundar conhecimentos teóricos e práticos da arte, por intermédio de diferentes formas de expressão.

 Assim, é cada vez mais comum a utilização de diversos meios na produção artística, numa atitude eclética e mul tidisciplinar, e de forma livre e com prazer, procurando fruir com a produção artística e deixar fluir essa realização, como se dum momento único de catarse se tratasse, num fluxo de criatividade projetada na organização de meios que contribuem igualmente para a obra produzida. Tem sido nesta perspetiva que nos temos cada vez mais posicionado na nossa própria produção artística, pois, em termos de técnicas utilizadas em artes visuais, temos realizado sobretudo trabalhos multidisciplinares, em que expressamos uma perspetiva integrativa e complementar das diversas artes visuais, pois utilizamos diversos meios artísticos, nomeadamente fotografia, pintura, escultura e também filmes de curta duração, encontrando-se vários destes meios presentes simultaneamente em cada um dos trabalhos realizados. Por exemplo, o trabalho “Funchal, 01/01/2007, 00h01” constitui um exemplo da integração das diversas técnicas de artes visuais, incluindo a fotografia, a pintura e a escultura, mas acrescentando a projeção de filme sobre a tela. Assim, encontram-se colocadas na tela fotografias de fogo-de-

-artifício, bem como pintura de explosões de luz e de cor que sai da tela através duma componente de escultura introduzida no trabalho. Desta forma pretendemos potencializar a “energia” transmitida pelas fotos, procurando estabelecer relações entre as várias fotos coladas em cada tela, numa perspectiva integrativa em que o todo ultrapassa a soma das partes. A projeção na tela de um filme de fogo-de-artifício, de 2 minutos que se repete, feito na mesma circunstância que as fotos (no Funchal, na passagem de ano de 2006 para 2007) permite a introdução de um elemento dinâmico, contribuindo para um aumento do ritmo e da cor no trabalho produzido, para além do próprio som que, não sendo visual, acrescenta uma outra dimensão à perceção da obra produzida. Este trabalho encontra-se disponível no youtube através do seguinte link https://www.youtube.com/ watch?v=EJnFC01I55M Desta forma, a atitude integrativa tem estado presente no nosso percurso científico e também artístico, numa constante procura de pontes, articulações, convergências e complementaridades que permitam uma maior harmonia e equilíbrio do todo, ultrapassando este a mera soma das partes. Assim, procurando agora responder diretamente à questão colocada, não há limites para a integração nas artes visuais, o que aumenta o jogo de possíveis na produção artística, sendo o conhecimento das técnicas artísticas e a criatividade do artista os principais motores para a realização da obra. Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigo encontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt).

“ÁGUA” Entre 9 AGO e 2 SET | Biblioteca Municipal de Olhão Maria Odete Fernandes apresenta nesta exposição os três estados físicos do líquido mais precioso, a água, na sua forma sólida, líquida e gasosa


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Espaço ALFA

Jornalismo online: um curso para todos!

João Prudêncio

www.facebook.com/alfaphoto

Na sociedade atual, o jornalismo continua a ter um forte poder atrativo entre os jovens em idade escolar e não se diluiu entre as novas gerações o pendor romântico habitualmente associado à profissão, a despeito desta nova tipologia jornalística, o chamado online. Por outro lado, nos cursos superiores de comunicação social a vertente prática do jornalismo assume um papel relativamente menor e muitos alunos sentem necessidade de adquirir conhecimentos e experimentar um ambiente mais próximo da realidade do mundo redatorial. Ainda, entre os profissionais da comunicação nos new me-

dia que se encontram “do outro lado” do processo jornalístico sobrevém amiúde a curiosidade intelectual acerca das etapas finais do processo comunicacional com o(s) público(s). É essencialmente a estes três grupos que se dirige o curso de curta duração “Jornalismo Online”, dinamizado em Faro pela ALFA. É inovador no mercado, porque, ao dirigir-se a formandos com nenhuns ou poucos conhecimentos de jornalismo, coloca-os em contato com a prática das redações, ao contrário de vários cursos de curta duração sobre a mesma temática, de caráter exclusivamente discursivo e expositivo. Por outro lado, adapta-se aos mesmos públicos pelo escasso número de horas de formação em causa e pelas suas caraterísticas introdutórias, ao invés de outros cursos de cariz operacional sobre a mesma temática. Com um enquadramento teórico destinado a uniformizar conhecimentos entre formandos com diversos níveis de forma-

ção, este curso propõe-se constituir uma pequena introdução ao mundo do jornalismo escrito dirigido à produção de conteúdos para online. Para eles, o curso pode cons-

tituir um click que os leve a optar pelo jornalismo escrito. Mas o curso dirige-se a jornalistas, fotojornalistas, produtores de conteúdos para redes sociais que se pretendam

manter a par da integração das tecnologias associadas à Internet. Por último, dirige-se também a jovens estudantes com gosto pela fotografia que pretendem aferir da sua voca-

ção para o aprofundamento de estudos nesta área, através da simulação da prática jornalística web e do ambiente redatorial e posteriores edição e adição de conteúdos.

Praticavam também corrida de velocidade, salto em altura, salto em comprimento, lançamento do disco, lançamento do dardo, jogos de bola (esferística) e várias formas de luta. Não admira que os jogos olímpicos tenham surgido na Grécia Antiga no sec. VIII a.C! A partir dos 18 anos entrava-se para o Colégio dos Efebos. O estado apelava aos melhores artistas para os conceberem e edificarem. Estes colégios não ficavam atrás de nenhum SPA da actualidade; continham: salas de reunião (Exedroe); aposentos exclusivos para Efebos (Efebon); compartimentos onde os atletas se cobriam de areia antes da luta (Consisterion); saletas onde se untavam com azeite e recebiam massagens (Eloetesion); zona para jogos de bola (Esferion); e last but not least, a câmara fresca (frigiderium) e a estufa (Laconion). Estes ginásios da antiguidade eram locais de convivência privilegiados. Artistas famosos ali afluíam para utilizarem os belos efebos como modelos para as suas obras. Os filósofos aí se encontra-

vam com os seus discípulos para reflectir em conjunto. O exercício físico e a actividade mental não estavam separados. Prova disso são os dois mais famosos ginásios da antiguidade: a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles. Por que será que hoje em dia tendemos a achar que um body builder será, certamente, acéfalo, e não nos espantamos com o intelectual balofo?

Filosofia dia-a-dia

Sócrates surfista? d.r.

corpo vai em aumento exponencial. Será ela uma enorme futilidade? Ou será que não? Corpo ou Mente? Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Princípio de Agosto, auge do verão, a densidade populacional no Algarve aumenta de tal maneira que me pergunto se a região não afundará com o peso. Há meses que as rádios não param de nos bombardear com programas de nutrição para emagrecer. As revistas oferecem dietas fantásticas. Nas estantes dos supermercados, farmácias e afins encontramos os cremes adelgaçantes e as cápsulas anti-apetite em destaque. As mulheres experimentam o anual terror na busca de um bikini que, afinal, nunca fica bem. Os homens exasperam-se no treino dos bíceps, como se essa fosse a chave para atrair o sexo oposto, (que enganados estão!) A preocupação com o

Na filosofia ocidental o corpo é frequentemente considerado um obstáculo. Todas as necessidades que possui: comida, bebida, descanso, higiene, etc., interrompem e distraem o pensamento. Opostamente a filosofia oriental considera o “precioso corpo humano” como uma condição sine qua non de acesso à iluminação. Antes de receber os ensinamentos requere-se que o estudante se sente numa postura correcta. Pode ser qualquer posição que permita manter a coluna vertical, a cabeça alinhada e os ombros relaxados. Também constitui um requisito prévio expirar o ar residual dos pulmões (que intoxica o corpo e a mente) e gerar a motivação apropriada. Claro que para estudar Filosofia no ocidente não se requer nenhuma postura física particular, nem técnicas respiratórias, nem nenhuma motivação específica.

Mente sã em corpo são Curiosamente, os filósofos da Grécia Antiga começavam impreterivelmente o seu dia no ginásio. A educação seguia dois eixos principais: a ginástica e a música. Platão (428-348 a.C) na República afirma que “a simplicidade na música gera a temperança na alma, e a ginástica a saúde no corpo”. Dos 7 aos 14 anos frequentava-se a Schole palavra que embora se pareça com “escola” significava “recreio”. Um

gramatista ensinava a ler e escrever, e um citarista a cantar e a tocar algum instrumento, para desenvolver o sentido da medida e da harmonia. Dos 14 aos 18 anos estudava-se na Palestra cuja origem etimológica pale significa luta, a denominada Agonística. Havia um treino comum intitulado Calistenia (Kalos=Beleza e Stenos=força) que consistia num conjunto de exercícios executados com o próprio peso: abdominais; flexões; elevações e agachamentos. Soa familiar?

Sócrates Surfista? Sócrates (469-399 a.C), o insigne filósofo, nasceu e viveu em Atenas banhada pelo golfo Sarónico, um local de águas tranquilas. Afirma Xenofonte (430-355 a.C) que Cármides o viu dançar de manhã cedo. E se tivesse sido Sagres, na bela costa vicentina, o seu berço? Imagino-o a contemplar as ondas, a classificá-las de acordo com a sua forma e cadência rítmica e a abrir a primeira escola de surfistas-pensadores. As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia dia-a-dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro em Português e Inglês. Para mais informações contacte: filosofiamjn@gmail.com


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Na senda da Cultura

Feira da Serra celebra 25 anos entre a tradição e a inovação fotos: ricardo claro

nar, de forma a inovar e criar mais produtos, melhores resultados e a maximizar e potenciar o aproveitamento daquelas que são as potencialidades endógenas do Algarve e muito em particular do seu interior.

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

A Feira da Serra comemorou na edição que decorreu no último fim-de.semana 25 anos de existência. Um quarto de século de um trabalho esforçado que fez este certame vingar e cimentar-se não só enquanto momento maior da agenda de São Brás de Alportel, mas também como o maior evento do género na região. A assinalar a data a organização, a cargo da Câmara de São Brás, escolheu como temática central desta 25ª edição a inovação. Porque nem só de tradição se faz a Feira da Serra, mas porque cada vez mais a inovação se 'imiscui' nos processos de desenvolvimento das mais tradicionais produções algarvias. Trata-se de uma parceria que abre novas portas às produções e produtos regionais tradicionais, juntando o conhecimento científico e a tecnologia ao saber mile-

Exemplos de inovação não faltaram na Feira da Serra Não é por isso de espantar que produtos como o caviar de caracol, uma cerveja que inclui no seu 'blend' a alfarroba ou sabonetes que recorrem a produtos naturais para serem base das emulsões de raro requinte, tenham surgido na mostra realizada durante a Feira da Serra a par de pranchas de surf fabricadas a partir de matérias primas extraídas das árvores, de sacos de golf feitos com recurso à cortiça ou compotas extraídas a partir do fruto do medronheiro. Em todos estes produtos a inovação participou de forma directa na redimensionação da realidade tradicional do aproveitamento que se faz das matérias primas, abrindo novos horizontes e criando condições para que se reforce o valor acrescentado na transformação e se

A tradição do partir da casca das amêndoas sobre uma pedra de calcário potencie o valor económico de recursos naturais endógenos da região. Neste casamento feliz en-

tre a ciência e o saber centenário, a Universidade do Algarve desempenha no quadro regional um papel

de destaque, quer pelos profissionais que forma e que posteriormente desenvolvem trabalhos neste campo, quer através de empresas que se geram no seio da própria instituição, quer ainda através da transferência de know-how entre a academia algarvia e as empresas. Parcerias de futuro que fazem germinar em vários campos de actividade novas formas de encarar os produtos algarvios e de os fazer chegar aos consumidores de forma potenciada face às necessidades dos mercados. Do lado dos empresários também não falta arrojo e capacidade inventiva, apostando em projectos que até há bem poucos anos estariam fora dos horizontes empresariais e que com esforço, empenho e dedicação fazem brotar nichos de desenvolvimento económico, geradores de riqueza e de emprego, mas muito particularmente, geradores de condições para a não extinção de determinados produtos e matérias primas tradicionais. Uma mostra que atinge milhares de pessoas Com a Feira da Serra a apostar na divulgação da inovação

no âmbito dos produtos e produções artesanais do Algarve, são milhares de pessoas que, de todos os cantos do Algarve e do país ficam a conhecer os produtos que são hoje a ponta de lança da inovação no Algarve no que respeita ao aproveitamento de matérias primas típicas da região. Trata-se de uma montra privilegiada que não se pode descurar para ganhar massa crítica e visibilidade. Uma aposta que a autarquia são-brasense fez desta vez de forma directa e especialmente focada, mas que - convém recordar - faz desde há 25 anos consecutivos com a Feira da Serra. Durante os últimos 25 anos foram milhares os produtos, produtores, artesãos, designers, criativos e empresários que puderam beneficiar deste palco maior regional e dos efeitos benéficos que a visibilidade que aporta lhes trouxe e traz. A este esforço conjunto de quem produz riqueza e de quem dispõe das ferramentas para lhe dar exposição pública o mínimo que se pode fazer é reconhecer-lhes o mérito, a audácia e a capacidade de acreditar sempre e preseverar ainda mais para a salvaguarda dos valores que a tradição algarvia ainda tem e terá para oferecer à região.

O medronho em compota através do trabalho desenvolvido na UAlg

Moura, a presença da alfarroba na cerveja

Sabonetes reinventados criados a partir de produtos da serra

Caviar de caracol, mais um produto inovador mostrado na Feira da Serra


Cultura.Sul

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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Agosto a 27 do mês passado o autor Fernando Cabrita apresentou o seu livro bilingue «Lejos de Sefarad» no âmbito do evento «La Semana de las Três Culturas» na Casa da Cultura de Vejer de la Frontera na Andalucia. Também o escritor e músico Fernando Pessanha participou na sessão de encerramento do mítico espaço sevilhano La Carboneria, depois de ter apresentado em Madrid «A Devota e a Devassa», a sua última novela.

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Agosto

FLIQ fotos: d.r.

ção literária que se vive actualmente no Algarve. Isto baseado na ideia de que atrás das pelo menos duas dezenas de livros interessantes e igualmente diferentes entre si, já lançadas neste ano de 2016, possam surgir movimentações literárias importantes para o futuro da cultura no Algarve. Na sua página apresentam-se os autores que na região se movimentam através das suas criações; divulgam-se editoras, textos, tertúlias e os mais variados acontecimentos ligados à escrita e todas as outras manifestações culturais que a ela se liguem. Visite e participe! http://algarveliterario.blogspot.pt/

Programa de Apoio às Artes no Algarve

É o mês mais importante das nossas vidas. Em que todos somos livres, mas em que nos queremos esconder, partir, largar o que é nosso. Fugir para longe da rotina para sermos diferentes de todos os dias, o que significa na verdade sermos por dias, verdadeiramente nós. Isso que é o mais importante nas nossas vidas. Mesmo que seja só em agosto.

Creaturas Literarias

Este fim de semana, 5, 6 e 7 de Agosto, numa iniciativa da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, com a colaboração de várias outras instituições e pessoas, a aldeia de Querença, no Concelho de Loulé, proporcionará um ambiente poético de cariz ibérico. Serão três dias de poesia, arte, animação cultural, petiscos e tapas, apresentação de livros, mercadinhos de poesia, com a presença de escritores nacionais e estrangeiros. Será um Encontro Ibérico de Poesia. O primeiro dia será dedicado aos Poetas Andaluzes, o segundo será uma homenagem ao poeta Casimiro de Brito, de origem algarvia e raízes em Querença, com uma vasta obra publicada e traduzida em mais de trinta línguas, e o domingo será dedicado aos Poetas Algarvios – os de berço ou de coração. O objectivo principal é o de celebrar a Palavra em todas as suas formas - dita, lembrada, escrita, cantada, subvertida, dançada, repetida, encenada, discutida… e os seus protagonistas.

Algarve Literário

AGENDAR

Uma agência literária sediada em Sevilha, que é coordenada por Joaquin Gonzalez e Carmen Vargas, filmou na passada semana, uma primeira série de entrevistas com os autores Fernando Cabrita, Luís Ene, Pedro Jubilot e Fernando Pessanha, neste caso dedicadas aos livros e à literatura. Ao que parece a cena cultural algarvia está a atrair as atenções fora de portas. Ainda

Este blogue quer refletir e potenciar a excita“FEIRA DO LIVRO DE QUARTEIRA” Até 15 AGO | Avenida Marginal de Quarteira Certame junta diversos expositores em representação das mais importantes editoras e livreiros, com o que de melhor há para oferecer em termos de artesanato nacional

descansam ainda da noite e para a noite o sol escandece na brisa que afla leve do estreito. numa esplanada do porto percorre-se a ideografia que rafael alberti velejou: ¿qué tienes, dime, musa de mis cuarenta años? nostalgias de la tierra, de la mar y del colegio..., até que os olhos desfocados nas letras impressas levem a uns minutos de enlevo desperta-se com um ritmo nervoso e histriónico de guitarra flamenca, mas isocronicamente triste e melancólico, que estruge de um pátio. e do devaneio sonial parece que se ouve a dona luzia a chamar seu filho de paco |

Clássica em Cacela

Dália Paulo é a comissária do novo programa que pretende articular Cultura e Turismo no Algarve. Destina-se a apoiar projetos a apresentar na região, dando prioridade às estruturas culturais regionais, entre Novembro deste ano e Maio de 2017, para promover a oferta cultural na chamada época baixa do turismo, de modo a tornar a região algarvia mais atractiva ao longo do ano e a esbater a sazonalidade, apostando em projectos de raiz regional.

Na 7ª edição dos ciclos de concertos de música antiga em Cacela Velha, a decorrer na igreja e no antigo cemitério, entre 4 e 25 de agosto, o destaque vai para o encerramento do evento com a pianista Joana Gama.

Agosto

«Telegramas do Mediterrâneo» de Pedro Jubilot (canalsonora editora, 2016) Telegr. nº 04 Algeciras, Andaluzia

| é a hora do almoço e já cheira a marisco cozido e peixe frito. cantores, bailarinas, guitarristas e outros poetas andaluzes de agora

Cria espaço para todos os sonhos. Cria o embaraço de nos querermos à força livrar dos pesadelos. Cria o espaço de queremos fazer nada. A difícil actividade de quem cada vez mais se depara no dia-a-dia com a exigente facilidade da vida moderna. Agosto cria o espaço para (re) planear o que se queria/queira…

“O CONTINERALISMO POÉTICO - ACHADOS” Até 28 AGO | Museu Municipal Dr. José Formosinho - Lagos Projecto que se materializa em três séries distintas com temáticas próprias (Achados, Musas e Todos os Santos), criado para apresentar as últimas criações de Timo Dillner


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Cultura.Sul

Espaço ao Património

Um Algarve para além da areia e do branco “para que exista património reconhecível, é preciso que ele possa ser gerado, que uma sociedade se veja o espelho de si mesma, que considere seus locais, seus objectos, seus monumentos reflexos inteligíveis de sua história e sua cultura”. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das Cidades. Tradução Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 fotos: filipe da palma

Filipe da Palma

Fotógrafo na Câmara Municipal de Portimão

Acompanhando a imagem pretérita de um povo que habitava em casas de linhas simples e totalmente caiadas de branco, existe uma outra e presente imagem de um Algarve cuja existência é delimitada numa longa e fímbria litoral, de paradisíacos areais banhados por cálidas águas de um oceano sempre meigo e azul. Estas serão as duas mais marcantes imagens que actualmente vingam ainda na esmagadora maioria dos discursos e pensamentos de cada indivíduo. De facto, nada mais errado poderá corresponder à realidade, ou seja, os elementos acima mencionados, apesar de verem tangivelmente confirmadas sua existência não fazem a regra. O Algarve, constituindo-se em mim, na mais rica região de Portugal, por ser território de múltiplas e diversificadas paisagens, cujas existências resultam de um exuberante conjunto de diferentes elementos de geo-

Platibanda e miradouro, casa em Castro Marim grafia física, incorpora em si a autenticidade de uma miríade de soluções, de sentires num ocupar o espaço por parte do ser humano que aqui, desde cedo, marcou presença. O Algarve possui assim, ainda, breves testemunhos pulsantes e tangíveis do tempo em que a arquitectu-

ra incorporou e edificou à vista de todos o delírio e a ostentação, que reverberou durante décadas ao contrário das visões redutoras de discípulos funcionalistas. A humana paisagem, edificada e nutrida, caracterizou-se através dos tempos pela edificação de elementos cuja aplicação pouco devem a um

redutor retrato funcional dessa produção arquitectónica. Numa crescente individuação de um território marcado de forma indelével com: cor, símbolos, texturas e formas. Foi pela leitura de o “Algarve Revisitado”, de Jacinto Palma Dias, após ter retornado à região, há cerca de 20

anos, que iniciei a recolha desses elementos sobreviventes, cuja existência dão corpo a um outro Algarve, diferente da tão propagada e institucional imagem de uma região só litoral. A rápida mudança de paradigmas civilizacionais que ocorreu no Algarve foi suportada num alheamento dos naturais para com esses elementos cuja existência remetia para um passado de carestia económica e riqueza cultural. Desta forma o desejo de mudança, a antecipação do fruto prometido que por força se haveria de provar, houve um desapego e consequente abandono extremo para com a verdadeira herança deste território. A fotografia como acervo de resilientes documentos, resistentes a décadas de abandono, de destruição, de perda de identidade e de legado, num testemunho da História de uma região cada vez mais depauperada. Uma tentativa de através da imagem fotográfica fazer emergir uma outra realidade do território, qual naufrago ainda a tempo de resgate.

Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Filipe da Palma João Prudêncio Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com

Palheiros circulares, serra algarvia

Platibanda, Calvário

e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 9.097 exemplares

Motivos decorativos na construção algarvia

Casas na serra algarvia


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Adília César: O que se ergue do fogo fotos: adriana nogueira

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

No início deste ano, saiu o primeiro livro de poesia de Adília César, O que se ergue do fogo. Mas não é o número de livros que faz o escritor. É outra coisa. E Adília César, 57 anos, educadora de infância, com mestrado em Teatro e Educação Artística da Universidade do Algarve, que nasceu em Lagos (de pai músico e mãe pintora) e vive em Faro, é escritora. Como a própria já o afirmou publicamente, escreve há muitos anos. Um dia, queimaram-lhe os escritos, mas o fogo não os apagou. Quando a sua vida deu uma grande volta, a escrita impôs-se de tal modo que passou a fazer parte do seu quotidiano. Como diz na p. 47, «mesmo que acredites que a poesia é um bem maior/ que a ela não tens direito/ qualquer poeta te dirá que a poesia é de todos, sem excepção». Adília César apresenta-nos 55 poemas, na sua maioria não muito curtos, mas concisos, considerando que concisão é a precisão, o rigor que se coloca no que se quer dizer. Essa precisão, também contrariamente ao que se poderia pensar, não restringe as leituras, mas alarga-as. Como exemplo, dou o título. E o que se ergue do fogo?

AGENDAR

A primeira ideia que me veio à cabeça, provavelmente influenciada pela capa do livro, que remete literalmente para esse sentido (fundo vermelho alaranjado, cor de chama, com uns tons mais de cinza em baixo, atravessado por um pássaro branco) foi a da Fénix, a mítica ave que re-

pé», e termina, quatro estrofes depois, com igual crueldade: «os pensamentos riscados pelos meus passos/ (…) enchem o vazio que te veste de cinzas/ para que nada reste de ti/ a não ser o silêncio/ o medo/ a submissão».

nasce das cinzas. O que se ergue do fogo pode também ser aquilo que vemos erguer-se do fogo: as chamas, o fumo… aquilo que se levanta e se dissipa no ar, aquilo que era matéria e que, pelo fogo, se mistura, inefável, com os elementos primordiais. Mas o que se ergue do fogo pode ser o sobrevivente. Aquele que, ainda que queimado, chamuscado, dorido, não se deixa morrer e insiste em viver, mesmo com sequelas. A escolha das palavras feita pelo poeta é como um dar a mão, um acompanhar no percurso do que nos quer mostrar. Cabe-nos a nós vermos, pois a mão do poeta apenas aponta: podemos ver o longe ou o perto, o pormenor ou a extensão.

Amor e humor

Geografia, mapas, espaço Na leitura deste livro houve palavras que me saltaram à vista, como «geografia», «mapas», «espaço», elementos necessários para quando nos perdemos e nos queremos encontrar: somos levados para espaços, através de uma geografia, de mapas, de meridianos… Na poesia de Adília César, a frequência deste vocabulário apela ao encontro – consigo, com os outros. Como no exemplo do poema «Visualizo um ponto ao acaso»: «um simples ponto/ pode conter toda a doutrina da eternidade/ sem necessidade de profetas da luz ou da escuridão // como se cada um de nós fosse apenas um ponto/ mais ou menos luminoso/ consciente da sua própria incandescência/ a criar uma distância/ entre o nosso ponto e os pontos dos outros/ a inventar um espaço só nosso onde às vezes/ deixamos entrar os outros/ a tornar-se visível na invisibilidade da multidão/ a desenhar uma geografia da vida para aceitar a morte» (p.11). No poema da página seguinte, intitulado «ela chama-se a ela própria», temos o nome «a desenhar uma geografia de sobrevivência/ no seu corpo dobrado, um meridiano

Adília César apresenta 55 poemas no seu livro replicado/ até que todas as paredes saibam o caminho». «A poesia é para comer» … dizia Natália Correia. Não sei se daqui lhe veio a inspiração, mas na poesia de Adília César aparecem muitas palavras do campo semântico de «comer», sendo «mastigar» uma das mais frequentes. Na p. 7 temos «palavras mastigadas»; na p. 61, há «bagos que devoras ao amanhecer» e «flores carnívoras esfomeadas» que, «quando não têm palavras/ roem a

“TERRAS BRANCAS” Até 3 SET | 18.00 às 00h00 | Convento de Santo António - Loulé Projecto nasceu da vontade de Teresa Pavão e Teresa Ramos realizarem um trabalho conjunto, tomando como elemento aglutinador, referências e interesses comuns

tua boca e os bagos de romã». Na p.63, há afetos se mastigam. Na p. 68, as palavras mitigam

a fome: «começa por escrever/ e mastigar as palavras/ se continuares faminta, usa as tuas mãos/ e se a fome ainda te assolar, grita// o alimento de que precisas vai entrar pelos poros». Sendo, então, a poesia para comer, ela é mantimento e fonte de resistência. Porque este também é um livro entre a morte e a vida, de resistência à violência, onde as palavras tornam a violência real. No terrível (porque infunde terror) poema «a submissão do medo» (p.37), um sujeito masculino começa por dizer: «gosto de ti submissa/ nesse espaço junto ao chão/ donde tu nunca te levantas/ mesmo quando estás de

Este livro é muito variado nas temáticas que apresenta, mas o amor talvez seja a que mais se destaca: para além de poemas ao amado, há poemas à conquista do amor-próprio, ao amor pela vida, ao amor à poesia. Os amores são múltiplos e múltiplas as tentativas da sua definição, tais como «o amor é uma boca que morde» (p. 19); ou «o amor é um soldado destemido/ que lavra o chão onde acampa» (p.60), culminando no poema «o amor é a sincronia dos pássaros» (p. 48), cujo epílogo nos diz que «na sincronia do voo urgente dos pássaros/ o amor é uma asa à procura da outra asa». E porque é sinal de inteligência não nos levarmos muito a sério, encerro com um poema satírico (e corajoso, porque não é fácil rirmos dos nossos sofrimentos): «-Querido, não me atires poemas inteiros à boca/ eles magoam como pedras/ marcam-me a pele, os ossos, o sangue e a paciência/ pingos de pesadelos a tingir as horas// preocupa-me essa tua atitude recorrente/ além da minha falta de poder de encaixe para a má poesia/ para nódoas difíceis/ uma solução definitiva/ mas sem a eficácia de um bom detergente emocional/ (procurei em todas as lojas de referência/ mas está esgotado) / sinto-me demasiado impaciente// a não ser que passes a escrever romances de amor/ uma palavra de cada vez/ e escreves amor em todas as páginas/ não te esqueças, esta regra é muito importante// e podes atirar-me amor à vontade/ com o amor aguento eu bem» (p.15). Este livro é um livro de sobrevivência e de renascimento, de amor, silêncios e caminhos a percorrer.

“AS MARIAS” 9 AGO | 22.00 | Centro Cultural de Lagos Neste espectáculo, António Raminhos leva o público a uma viagem pelos dramas e peripécias que todos passamos na infância, adolescência, casamento e paternidade


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Cultura.Sul

Ciclo de Música Antiga ‘Sons Antigos a Sul’ regressa a Vila do Bispo d.r.

O primeiro concerto a realizar na Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, esta sexta-feira, pelas 17 horas, por Ludovice Ensemble, tem como tema “Chinoiseries, ou o Oriente imaginado”. No dia 12 será a vez dos holandeses The Goldfinch Ensemble, com uma ho-

menagem a Élisabeth Jacquet de La Guerre. No dia 19 os Duo Lundú interpretam as heranças musicais de África e Brasil na Corte Portuguesa de 1800. Na última sexta-feira de Agosto, dia 26, a 5ª edição dos "Sons Antigos a Sul" termina com uma apoteose vocal dos

jovens "Bando de Surunyo", com apresentação de um repertório vernacular do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra escrito em castelhano, português, galego, língua teatral que representa os africanos e quicongo (kikongo). Esta iniciativa produzida

pela Academia de Música de Lagos, integra o ciclo “Música no DiVaM” do programa DiVaM – Dinamização e Valorização dos Monumentos – 2016 promovido pela Direção Regional de Cultura do Algarve em parceria com agentes culturais da região. pub

Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe O Ciclo de Música Antiga “Sons Antigos a Sul” regressa à Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, em Vila do Bispo, todas as sextas-feiras de Agosto, pelas 17 horas, com quatro ensembles de craveira nacional e internacional: Ludovice Ensemble (Lisboa), The Goldfinch Ensemble (Haia, Países Baixos), Duo Lundú (Lagos e Évora) e Bando de Surunyo (Porto), numa viagem entre a Europa e o Mundo do século XVII e XVIII. O Ciclo de Música Antiga “Sons Antigos a Sul” é um projecto anual - dirigido pela Academia de Música de Lagos - de promoção e divulgação da Música Antiga no Algarve, envolvendo ensembles profissionais

nacionais e internacionais, sob fundação de Elsa Mathei. “Género & Diáspora” é o tema para 2016, abordando questões sociais que são transversais à história mundial como a migração e igualdade de género. Este festival foi reconhecido em 2015 e 2016 com o título de qualidade EFFE (Europe for Festivals, Festivals for Europe), da EFA (European Festivals Association), um projecto piloto da Comissão Europeia que procura distinguir e dinamizar os melhores festivais de toda a Europa. Conta com o apoio da Direcção Regional de Cultura do Algarve, o Real Conservatório de Haia, Países Baixos e Cultugarve.com na sua agenda cultural. pub

Consulte a lista dos Projetos Aprovados no âmbito do Programa Operacional CRESC ALGARVE 2020 em

www.algarve2020.pt


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