Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
FEVEREIRO 2017 | n.º 100 5.203 EXEMPLARES
Espaço ALFA: D.R.
Exposição fotográfica ‘Sob o Céu da Messejana’ p. 5
Espaço ao património: FILIPE BALLY
100
www.issuu.com/postaldoalgarve D.R.
edições
Em 2008, quando lançámos o Cultura.Sul muitos foram os que duvidavam da sua perenidade no panorama da comunicação social regional. Hoje o Cultura.Sul chega à marca
Património natural no Algarve: descobrir e preservar p. 9
das 100 edições e continua a ser um veículo privilegiado para a opinião e informação cultural na região. p. 3 BRUNO FONSECA
Sala de leitura: ROBERT DOISNEAU
Eu e o Outro na sociedade da leveza
p. 10
Da minha biblioteca:
D.R.
Espaço ao património: As Mulheres no Parlamento, de Aristófanes
p. 11
Portimão, Você está aqui!
p. 8
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10.02.2017
Editorial
Novo '365 Algarve' promete manter investimento na cultura
Cultura.Sul
Missão cultura
Investimento em património classificado reforçado com verbas do PO CRESC Algarve 2020 FOTOS: D.R.
um total de 2 milhões, 316 mil e 346 euros. Direção Regional de Cultura do Algarve
Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
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Dissiparam-se as dúvidas e, para bem de todos, de forma positiva. Está desde esta semana em preparação mais uma edição, a segunda, do programa cultural '365 Algarve', que anima até Maio deste ano - ainda no âmbito da primeira edição - a cena cultural regional em época baixa do turismo. Uma vez mais, o rosto que dirige o programa é um dos nomes incontornáveis da programação cultural no Algarve nos dias de hoje. Dália Paulo está ao comando do '365 Algarve' e assegura rigor e qualidade à iniciativa que resulta da candidatura da Região de Turismo do Algarve a fundos disponibilizados através do Turismo de Portugal. Um trabalho que este ano está a provar ser proveitoso para a região e que une de forma saudável a cultura e a economia em prol do combate à sazonalidade no turismo e que assenta não em megalomanias de grandes espectáculos de parangonas internacionais, mas antes naquilo que a região tem e pode oferecer de seu aos turistas. Ganham todos os que se dedicam ao mister maior das artes e da cultura, ganha o turismo e os turistas com uma oferta alargada e ganham os algarvios que vêem reforçada a agenda cultural e a economia associada ao fenómeno cultural e ao turismo. É caso para dizer que mais do que um programa 'win - win' se trata de uma situação em que todos, muitos, ganham. Haja quem pense e aja, porque "quando um Homem pensa o mundo gira e avança".
A preservação, reabilitação e valorização do património cultural têm significativa relevância para a promoção e afirmação da identidade cultural da região do Algarve. Conservar e restaurar o património implica a utilização adequada de práticas e métodos de trabalho em constante evolução para legar às gerações vindouras a nossa história. O Plano Operacional CRESC Algarve 2020 prevê investimentos destinados à Conservação, Proteção, Promoção e Desenvolvimento do Património Cultural e Natural (PI-6.3, Eixo Prioritário 4 – Reforçar a Competitividade do Território), constituindo uma oportunidade de atuar positivamente na vertente de conservação e restauro em diversos monumentos classificados de Grau Nacional da região e neste contexto a Direção Regional de Cultura do Algarve candidatou e viu aprovadas cinco candidaturas. Representando um investimento total de 4 milhões, 294 mil e 6 euros e tendo como investimento nacional e privado
As ações a desenvolver incidem sobre: • Castelo de Paderne – Torre Albarrã e Muralhas: Projeto de Conservação e Restauro dos Módulos de Taipa Almóada • Sé de Silves – Intervenção de Conservação e Restauro no Portal Principal • Monumentos Megalíticos de Alcalar – Reabilitação do Monumento 9 e Área Envolvente • Ruínas Romanas de Milreu – Programa de Conservação e Requalificação • Fortaleza de Sagres – Centro Expositivo Multimédia dos Descobrimentos Portugueses A DRCAlg integra também outras candidaturas conjuntas em que a dimensão imaterial assume particular relevância e cuja apreciação decorre, como é o caso da “Semana Cultural dedicada aos Lugares de Globalização”, com a Associação Vicentina, estando a preparar também uma candidatura conjunta com vários parceiros da região sob a égide da salvaguarda e valorização da Dieta Mediterrânica. Ciente de que as necessidades ultrapassam sempre as disponibilidades, a DRCAlg tem vindo anualmente a harmonizar as necessidades de inter-
Monumentos Megalíticos de Alcalar
Castelo de Paderne
Ruínas Romanas de Milreu
Sé de Silves venção no património, como também identificar prioridades, certos de que a competitividade do território do Algarve está também relacionada com
os recursos culturais e patrimoniais, e com a capacidade das várias entidades públicas criarem sinergias de investimento nestes domínios.
Fortaleza de Sagres – Centro Expositivo Multimédia
Juventude, artes e ideias
Sociedade Recreativa Progresso Olhanense comemora 99 anos
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
A Sociedade Recreativa Progresso Olhanense, fundada em 16 de janeiro de 1918, é a mais antiga coletividade em atividade em Olhão e uma das mais antigas do país. Perto de completar o seu 1º centenário, considerada
“CONCERTO COM MAFALDA VEIGA” 11 FEV | 21.30 | Auditório Municipal de Albufeira Cantora apresenta o seu mais recente trabalho intitulado ‘Praia’, um trabalho com um tom optimista entre o pop e os sons mais tradicionais
de Utilidade Pública, prova a sua vitalidade e capacidade em acompanhar a evolução dos tempos, recuperando o seu lugar como referência de cultura e recreio do concelho de Olhão. Honra feita à nova direção, eleita em finais de 2014, presidida por Francis-
co do Ó, que soube congregar os esforços necessários para regularizar a situação financeira e implementar uma dinâmica cultural que serve o interesse e as necessidades atuais dos sócios e da população em geral. Prova disso é a atividade
continua e regular que resulta da iniciativa da coletividade e das parcerias estabelecidas com a Câmara Municipal e outras entidades da terra, em particular a Gorda. Quase 100 anos a promover a cultura em Olhão é motivo de verdadeira celebração.
“O SUL DE JOSÉ AFONSO” 23 MAR | 21.30 | Centro Cultural de Lagos O colectivo artístico formado por João Afonso, Luís Galrito e o Barco do Diabo apresenta um concerto que pretende assinalar os 30 anos sobre o falecimento de José Afonso
Cultura.Sul
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Panorâmica
Cultura.Sul comemora 100 edições a divulgar e celebrar a cultura no Algarve Ricardo Claro
Editor ricardoc.postal@gmail.com
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100 edições. São 100 meses e outros tantos cadernos culturais que o Postal publicou desde Junho de 2008, num percurso de quase oito anos que se fez procurando sempre levar até aos leitores a melhor informação e opinião na área da cultura, abordando predominantemente, mas não só, o fenómeno cultural no Algarve nas suas mais variadas vertentes. Uma ideia original de Salvador Santos em parceria com o Postal e desde logo abraçada sem hesitações pelo director do jornal regional, Henrique Dias Freire, o Cultura. Sul deve ainda a João Evaristo o seu perfil editorial que é hoje responsabilidade de quem vos escreve estas linhas. À data muitos foram os que duvidaram do espaço e viabilidade que um caderno cultural teria no Algarve, em particular quando o mesmo se propunha ser editado em formato jornal. Acreditámos que era possível. E provámos que foi e é possível, a bem da informação plural, diversificada e apostada em levar aos leitores conteúdos culturais diversos e pertinentes. A viabilidade, que se faz provar em termos económicos na grande maioria das vezes, ignorando o serviço público que é a informação e a opinião livres
levadas ao mais amplo espectro de público, prova-se com a perenidade de um caderno cultural que dá e deu, ao longo de todos estes anos, voz às mais diversas posições e opiniões e que dá e deu, em todo este tempo, cobertura aos mais diversos temas de informação cultural na região e fora das suas fronteiras geográficas. Para tanto contámos, desde 2008, com dezenas de responsáveis por centenas de rubricas, com várias centenas de colaboradores e jornalistas e com a disponibilidade incondicional de centenas de artistas, performers, opinadores e 'fazedores' de cultura. O Cultura.Sul é tanto nosso, colaboradores do Postal,, como de todos eles e é - como sempre se
A evolução do Cultura.Sul desde a imagem da primeira capa do caderno mensal do Postal até à actual apresentação pensou ser e foi - acima de tudo de todos os leitores que, de forma mais ou menos assídua, lêem as páginas do caderno mensal do Postal. Para trás ficaram as profecias de um caderno cultural com os dias contados à nascença e, mesmo que muitas vezes ignorados no apoio que seria mais do que merecido por parte das entidades responsáveis pela cultura na região, batalhámos ao longo destes oito anos e batalhamos hoje por cumprir uma função que só aos órgãos de comunicação social cabe como dever maior, a de informar com isenção, rigor, independência e pluralidade, abordando todas as temáticas independentemente de protagonismos e protagonistas que a história dos tempos em cada momento traz às luzes da ribalta. Trabalho feito! Trabalho feito, mas missão longe “OÁSIS” Até 25 FEV | Biblioteca José Mariano Gago - Olhão O fotógrafo Nuno Sá dá a conhecer ao público momentos captados na imensidão do mar que rodeia o arquipélago dos Açores
de cumprida. O propósito inicial do Cultura.Sul continua hoje tão importante como o era há oito anos, informar os algarvios, dar relevo e densidade públicas na imprensa regional ao fenómeno cultural e trabalhar em prol da cultura e da economia cultural da região, bem como participar, humildemente e lado-a-lado com quem faz da cultura um propósito de vida, para dar aos algarvios uma oferta cultural capaz de participar no enriquecimento de todos e cada um de nós. Nestes anos que distam desde 2008, o Cultura.Sul foi teatro e foi dança, foi escrita e pintura, artes de palco das mais diversas. Foi música e artesanato, foi tradição e modernidade, foi arte de rua e de sala de espectáculo. Estivemos nos museus como nos monumentos, entre a elite cultural, como entre as populações das mais diversas zonas do Algarve. Fomos fotografia e cinema, repor-
tagens e entrevistas, e continuaremos a ser exactamente tudo isto e o muito mais que conseguirmos em cada momento levar aos algarvios dentro do panorama cultural. Queremos continuar a progredir para sermos a cada passo a melhor informação possível na área da cultura para os nossos leitores actuais e futuros, nas mais diversas plataformas, seja no papel, a cada mês em conjunto com o Postal e com o jornal Público, seja on-line através da página do Postal na plataforma ISSUU (www.issuu.com/postaldoalgarve), seja a partir da página do Postal on-line em www.postal. pt ou, ainda, através da página do Cultura.Sul na rede social facebook (www.facebook.com/Cultura.SulArtes/). A cada momento, à distância de um clique ou nas linhas de uma página de jornal, continuaremos a trabalhar para si que nos lê.
“CANTE FLAMENCO PELA VOZ DE ARGENTINA” Dia 11 MAR | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro Cantaora de flamenco conta com duas nomeações aos Prémios Grammy Latinos pelos seus álbuns ‘Un viaje por el cante’, de 2013, e ‘Sinergia’, de 2015
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Cultura.Sul
Artes visuais
Pode uma imagem visual sintetizar questões psicossociais complexas e atuais?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora
Na sequência do artigo anterior, em que explicitámos o nosso entendimento da arte visual como uma forma de comunicação que, através da imagem, pode permitir sintetizar conceitos ou ideias complexas, vimos agora desenvolver esta perspetiva aplicada a questões psicossociais, como sejam os atentados terroristas. Infelizmente, desde o dia 11 de setembro de 2001 o mundo nunca mais foi o mesmo. O ataque suicida homicida às torres gémeas do World Trade Center, cada uma com 110 andares, que vitimou quase 3000 pessoas de mais de 70 países, fez com que a percepção da incerteza e da insegurança sobre a própria vida aumentasse drasticamente. Passados menos de três anos, a 11 de março de 2004, ocorreram novamente atentados que abalaram o mundo e a confiança das pessoas sobre a vida e o sentido desta. Foram os atentados ocorridos em Madrid, que vitimaram quase duas centenas de pessoas, três dias antes das eleições em Espanha e que viriam a condicionar os resultados destas. O mundo nunca mais foi o mesmo! As investigações realizadas desde os anos 60 do século passado vinham revelando que cada vez mais as pessoas apresentavam um maior locus de controlo externo, isto é, cada vez mais consideravam que os objetivos ou os resultados que gostariam de alcançar dependeriam de fatores externos, como a sorte ou outros mais poderosos, e não tanto de fatores internos, como a competência pessoal ou o esforço na realização das tarefas. Daí que os índices de desmotivação, stresse e depressão tenham vindo sempre a aumentar. Mas, a acrescentar a todos os fatores que vinham contribuindo para isto, surge agora este perigo “escondido” que são os ataques terroristas que podem ocorrer em qualquer
Obra 'Stresse – Grito de sangue em atentado terrorista' (4,10 x 2,10m), de Saul de Jesus (2010) Grito de sangre
Grito de sangue
¡¡¡Púm!!! (explosión) ¡Ayyyyyy!... ¡Grito de rebeldía por ser el último!... Lágrimas de sangre En un ataúd de llamaradas… ¿Por qué yo, por qué ahora? Por fin todo parecía estar bien… Había conseguido un nuevo empleo, tenía buena salud, mi marido estaba más cariñoso que nunca; tal vez por estar embarazada de cuatro meses… Íbamos a saber el sexo del bebé la próxima semana… ¡Nunca sabré si era niño o niña! ¡Todo acabó! Todo puede acabar al girar la esquina…
Broom!!! (explosão) Aiiii!... Grito de revolta por ser o último!... Lágrimas de sangue num caixão de labaredas… Porquê eu, porquê agora? Finalmente tudo parecia estar bem… Havia conseguido um novo emprego, estava de boa saúde, o meu marido estava mais querido do que nunca; talvez por estar grávida de quatro meses… Íamos saber o sexo do bebé na próxima semana… Nunca saberei se era menino ou menina! Tudo acabou! Tudo pode acabar ao virar da esquina…
Atentado terrorista
Atentado terrorista
Es todo una cuestión de espacio y de tiempo… “Estaba en el lugar equivocado, a la hora equivocada”, se dice a veces… Espacio que se pierde en el tiempo, tiempo que se derrite en el espacio, en llamaradas de memorias sin melancolía. Explosión de rabia sin destino trazado, pero que acaba con el destino de alguien, sin misericordia ni piedad, en un “mundo perro”, de guerras por todo, ¡para conseguir nada!
É tudo uma questão de espaço e de tempo… “Estava no lugar errado, à hora errada”, diz-se por vezes… Espaço que se perde no tempo, tempo que se derrete no espaço, em labaredas de memórias sem saudade. Explosão de raiva sem destino traçado, mas que acaba com o destino de alguém, sem dó nem piedade, num “mundo cão”, de guerras por tudo para se conseguir nada!
momento, em qualquer lugar e vitimar inocentes. O aumento da violência na sociedade e, em particular, os atentados que ocorrem cada vez com maior frequência e gravidade, têm vindo a aumentar a insegurança das pessoas e a incerteza quanto ao futuro, pare-
cendo que, não obstante a longevidade ser cada vez maior, a perspetiva temporal de futuro é cada vez menor, traduzindo que as pessoas se focalizam cada vez mais no presente e nas questões imediatas que têm para resolver. O imediatismo e o consumismo encontram cada vez mais “espa-
ço/tempo” para prosperar nesta sociedade, em que as pessoas procuram distratores que permitam a aparente satisfação imediata das suas necessidades. Como forma de sintetizar este aumento da incerteza e da insegurança na sociedade atual, realizámos a pintura em acríli-
co “Stresse – Grito de sangue em atentado terrorista”. Esta pintura representa o comportamento limite do sujeito face a uma situação extrema de stresse, em que grita de forma desesperada, sentindo que não pode fazer nada, uma total impotência, ou um total descontrolo, face à si-
tuação em que se encontra. A pintura traduz um atentado terrorista através das duas explosões representadas neste trabalho. A situação limite em que o sujeito se encontra é reforçada pela cor cinzenta da pintura e pelas lágrimas vermelhas que lhe escorrem pela face, “lágrimas de sangue”, isto é, o sujeito não só grita como chora ao mesmo tempo, representando a situação em que houve muito sangue derramado pelas vítimas dos atentados. Este trabalho integra três telas, sendo as telas laterais representativas do fator limite de stresse em que o sujeito se encontra e a tela do meio representativa do impacto que esse fator provoca no comportamento do sujeito. Para além de representarem explosões, as telas laterais têm escritos dois textos que se complementam e que pretendem reforçar a mensagem já expressa pela imagem da tela central. Esta tela central foi utilizada para a capa do livro “Stress approach by Visual Arts” (Jesus, 2013). Os textos estão escritos em espanhol, pois este trabalho foi por nós concebido em Madrid, no dia 11 de Março de 2010, dia em que decorriam nesta cidade as comemorações dos seis anos dos atentados de Athocha. Talvez também o fato de termos podido apreciar nesse mesmo dia a obra “Guernica” no Museu Reina Sofia, em que é explícito o desespero das pessoas com a guerra civil de Espanha, possa ter contribuído para a concepção do quadro, com o qual procurámos realizar uma singela homenagem às vítimas dos atentados em Madrid, como aliás vem escrito nas telas laterais que integram este trabalho. O texto que está escrito nas telas laterais é o que consta das caixas abaixo da imagem (à esquerda está o original escrito em espanhol e à direita está a tradução em português): Assim, a imagem visual pode sintetizar questões psicossociais complexas e atuais e pode ajudar a promover a necessária reflexão sobre as mesmas. Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigo encontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt).
Cultura.Sul
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Espaço ALFA
Exposição fotográfica ‘Sob o Céu da Messejana'
Rui Correia
Autor da exposição
Valorizar o património da linda vila alentejana Messejana é o objetivo das imagens que expus na Galeria ARCO, sede da ALFA, em Faro, até ao final do passado mês de Janeiro. A exposição, intitulada ‘Sob o Céu da Messejana’, foi a primeira que fiz do género. A ideia era fotografar perto de alguma barragem e aproveitar a pouca poluição luminosa que costuma
haver nestes locais. Um amigo sugeriu-me que fotografasse uma igreja que existe perto de Messejana. As condições eram excelentes e as reacções de quem viu as fotografias que tirei foram positivas. As pessoas deram-me muita força para lá voltar e eu continuei a fotografar o património histórico da vila de uma nova forma. As imagens em exposição abordam apenas duas técnicas, “startrails” e longa exposição. Os “startrails”, ou rasto de estrelas, obtêm-se sobrepondo várias exposições de 30 segundos, existem softwares que fazem a sobreposição das imagens automaticamente para obtermos uma única foto. A outra técnica, de longa exposição, permite captar a
ténue luminosidade da Via Láctea, utilizando ISOs elevados, no mínimo ISO1600. O tempo de exposição depende da distância focal da objectiva e do tipo de sensor da nossa máquina fotográfica, para evitar o arrasto de estrelas. O mais importante neste género fotográfico é um céu limpo, escuro e contrastado, livre de poluição luminosa. Para efetuar este tipo de imagens é necessário uma máquina fotográfica que permita o controle total do tempo de exposição, aberturas, ISO, balanço de brancos e foco, um tripé, comando que permita bloquear o obturador e uma objectiva grande-angular, para paisagens, e uma tele-objectiva, para fotografar a Lua.
Filosofia dia-a-dia
Impermanência
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio. Heraclito
Acordamos para a solidez dos dias. Ainda acariciados pela macieza dos lençóis, sentimos o frio do chão e o ar fresco na face. Lá fora, uma vez mais, o sol inaugurou a manhã, as montanhas beijam os céus e o oceano imenso estende-se para lá da linha do horizonte. Quantos exemplos de estabilidade! No entanto, embora as árvores possam viver centenas de anos, e as montanhas parecer imutáveis durante vários milénios, tudo perecerá. Para os homens e mulheres do futuro, o Oceano Atlântico talvez venha a ser o Deserto Atlântico. É apenas a escala relativa na qual o tempo geológico opera que torna
este processo invisível para nós. A Terra gira em torno do seu eixo e, simultaneamente, realiza a sua órbita em redor do sol, enquanto a galáxia gravita ao seu próprio ritmo e se desloca na vastidão do espaço. A permanência, a fixidez, são truques de ilusionista em que continuamente caímos ao acreditar na realidade dos fenómenos. Nada, absolutamente nada, no nosso mundo é estável. O filósofo Heraclito de Héfeso (535 a.C.- 475 a.C) utiliza a imagem do rio para postular a absoluta continuidade da mudança em todas as coisas: tudo está num perpétuo fluir como um rio. Não se pode penetrar duas vezes no mesmo rio, porque o rio nunca é o mesmo. Todas as coisas, mesmo as aparentemente estáveis, incessantemente se modificam num constante devir. Na tradição budista, a Impermanência é a segunda das quatro contemplações preliminares, modificadoras da atitude mental. Com grande detalhe, descrevem a destruição total do planeta através de sete sóis consecutivos. Esqueçamos as previsões desta
D.R.
tradição e pensemos em quantas explosões nucleares seriam necessárias para eliminar o nosso planeta. Tomemos consciência do arsenal nuclear existente e não requererá demasiado esforço imaginar que a insensatez humana pode levar a uma aniquilação global. Basta um único déspota carregar num botão, dando livre expressão à ignorância e ao ódio, e o nosso belo planeta azul extinguir-se-á. Já estivemos mais longe deste cenário. Estaremos conscientes da transitoriedade das coisas? Em
que direção caminha o mundo moderno? Tende a uma maior permanência? Ou menor? Que expectativas quanto à nossa própria vida? Tenhamos por seguro que, ao contrário de nós, o tempo nunca descansa. Enquanto repousamos confortavelmente o nosso corpo envelhece. Novas células dão lugar às anteriores, mas este processo não é digno de total confiança. Por vezes às boas células sucedem cópias de pior qualidade. No interior do corpo, o ciclo de nascimento-morte é experi-
mentado continuamente, e “ninguém sabe o que virá primeiro, a próxima inspiração ou a próxima vida”. No entanto, é frequente que a morte assalte alguém a meio do seu planeamento para os próximos tempos. Há uma luta constante entre o desejo compreensível de estabilidade e solidez por um lado, e a pressão cruel do fluxo ininterrupto de circunstâncias e situações, por outro. Experimente, caro leitor, tomar consciência disto. Durante o dia, ao respirar, dê-se conta de quão maravilhoso é inalar novamente após cada expiração. Não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe. Provérbio Popular
O outro lado da moeda Impermanência é o Horizonte de Possibilidades. Quando se está numa situação difícil, talvez não seja mau recordar que esta não durará para sempre. Quando não se encontra solução para um problema, convém equacionar que algo poderá estar a escapar-nos. Possuímos um mecanismo, inerente à nossa fi-
nitude, de sistemática Elisão das Possibilidades Alternativas, fenómeno assim denominado por Mário Jorge de Carvalho. Actua como um simplificador: de todas as opções a considerar elegem-se intuitivamente algumas cuja possibilidade de apreciação se considera averiguável. É uma questão de sobrevivência. Mas entre as alternativas ainda não consideradas, pode existir uma boa solução. Quando nos encontramos naquilo que julgamos ser um beco sem saída, talvez nos faça bem recordar-nos deste mecanismo de ocultação. Existem, certamente, possibilidades que não estamos a equacionar. É preciso exercitar a mudança do ponto de vista, coisa que não é nada fácil, pois somos criaturas de hábitos. Sei, por experiência própria, que fazer o pino ajuda! As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia dia-a-dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro em Português e Inglês. Para mais informações contacte filosofiamjn@gmail.com
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Cultura.Sul
Letras e Leituras
Uma distopia americana de Margaret Atwood: O coração é o último a morrer
Paulo Serra
Investigador da UAlg; Associado ao CLEPUL
Chega-nos mais uma distopia de Margaret Atwood, autora canadiana, que será adaptada ao pequeno ecrã este ano tal como A história de uma serva (série a estrear em Abril). A sua mais recente obra, O coração é o último a morrer, lê-se de um fôlego e, ao jeito pósmodernista, é uma obra extremamente visual. A escrita da autora é contida, despojada de floreados ou devaneios, narrando de forma concisa, e é quase como estar a seguir um filme, pois as imagens que se desenham mentalmente são vívidas e nítidas. Esta obra aliás encontra (ou faz) eco em séries televisivas do momento, como Westworld, com a premissa de criar mundos alternativos acessíveis apenas a uma certa elite, onde podem viver os seus sonhos ao abrigo do caos resultante de uma recessão que reina num mundo em queda económica e em desintegração de valores. Uma história aparentemente futurista ou que raia a ficção científica mas que assenta, na verdade, em premissas
não tão distantes do real: Charmaine e Stan estão desesperados, tendo fugido da casa cuja hipoteca perceberam que não iam poder pagar quando a economia colapsou, adiantando-se ao momento em que os expulsariam, e passam a viver no carro e a viver de trabalhos menores. Aliás, Stan não consegue encontrar trabalho enquanto Charmaine trabalha num bar duvidoso. «Depois, a coisa deu para o torto. Como se tivesse sido de um dia para o outro. E não fora apenas na sua vida pessoal: todo o castelo de cartas, todo o sistema ruíra, milhares de milhões de dólares eliminados das folhas de cálculo como nevoeiro de uma janela. Na televisão, hordas de peritos de meia-tigela tentavam explicar por que razão aquilo acontecera – demografia, perda de confiança, gigantescas operações fraudulentas –, mas tudo isso não passava de suposições da treta. Alguém mentira, alguém defraudara, alguém minara o mercado, alguém inflacionara a moeda. Havia poucos empregos e gente a mais. Ou poucos empregos para o americano médio como Stan e Charmaine.» (pág. 20). Consiliência parece ser a única alternativa para um mundo em ruínas. Stan e Charmaine decidem assim integrar nessa «experiência social» que implica viver de modo alternado numa prisão, isto é, durante um mês os ocupantes de Consiliência vivem como presidiários, numa cela de prisão, mas com as melhores condições
FOTOS: D.R.
Escritora é conhecida pelas suas histórias de carácter futurista possíveis, quase como se estivessem num hotel, e no mês seguinte irão desempenhar as suas funções como funcionários dessa mesma prisão, chamada Positrão, com direito a uma casa no exterior que é ocupada também de forma alternada por um outro casal enquanto Stan e Charmaine permanecem um mês na prisão. Apesar de toda a história parecer estar aqui explanada (apenas adianto o que já está na contracapa) as verdadeiras peripécias começam a suceder-se depois dessa mudança para o estabelecimento
prisional de Consiliência, que se afigura cada vez menos com uma salvação ou refúgio mas mais como a prisão emocional e mental em que muitas vezes as nossas vidas caem, se não soubermos superar os erros ou as más escolhas: «A finalidade de Consiliência é que a vida decorra tranquilamente, com cidadãos felizes, ou serão eles reclusos? Ambas as coisas, na verdade. Os cidadãos sempre foram um bocado como reclusos, e os reclusos serem foram um pouco como cidadãos; Consiliência e Positrão só oficializaram essa ideia.» (pág. 178). Mas é na mudança para a tranquilidade de Consiliência que tudo, e que era aparentemente muito pouco (pelo menos em termos materiais), o que era seguro, pois Stan e Charmaine tinham-se um ao outro, ameaça ruir de vez por causa de meras fantasias sexuais. A narrativa alterna entre a perspectiva de Stan e de Charmaine, sempre na terceira pessoa, e é particularmente interessante a forma como a autora nos faz viver a realidade narrada através de uma mentalidade que é bastante simples, no caso de Charmaine, que vive com base nos ensinamentos da sua avó Win, aplicando na vida uma filosofia aparentemente baseada em certos livros de autoajuda: «a realidade somos nós que a construímos com as nossas ações, e se pensar que aquilo vai acontecer, acontecerá mesmo.» (pág. 178). O cinema e a televisão são referências muito presentes na narrativa e surgem como forma de as personagens fazerem sentido do que se vai desenrolando na intriga: «Tem uma imagem de como iriam decorrer os minutos seguintes se aquilo fosse um filme de espionagem. Dava um murro a Jocelyn que a fazia perder os sentidos, tirava-lhe as chaves, metia-a no contentor, roubava-lhe
o telemóvel para não poder pedir ajuda quando acordasse – de certeza que ela tinha um telemóvel – e em seguida saía e ia salvar o mundo sozinho.» (pág. 199). Ou na passagem: «tinha de fingir que era estúpida, porque eles estavam a tentar baralhar-lhe as ideias. Tinha visto filmes assim: pessoas que se disfarçavam e fingiam não conhecer outras» (pág. 218). São constantes estes momentos em que uma cena perfeitamente banal é transplantada na imaginação dos protagonistas para uma alucinação saída do pequeno ou do grande ecrã: «como um desses filmes assustadores em que uma personagem acorda e descobre que está numa nave espacial, que foi raptada e que pessoas a quem considerava amigas lhe mandaram tirar o cérebro e querem fazer exames bizarros» (pág. 217). Uma história que aparentemente surge apenas como uma distopia e cuja segunda parte é cada vez mais frenética em termos de peripécias, onde não faltam momentos genuinamente cómicos (com actores que se fazem passar por Elvis e Marilyn, uma mulher apaixonada por um ursinho de peluche, robôs sexuais), revela-se mais como uma profecia daquilo que as nossas vidas se podem tornar se não exercermos bem a nossa principal ferramenta enquanto seres humanos e pensantes. O diálogo que encerra o livro, com uma pergunta colocada e que fica sem resposta, é emblemático disso mesmo e é a pergunta que no fundo a autora coloca aos leitores: o que vamos nós fazer com o nosso livre-arbítrio quando o mundo que conhecemos deixar de existir. Ou talvez ainda esteja nas nossas mãos mantê-lo o melhor possível. Afinal as nossas vidas decorrem, de certo modo, nesse círculo vicioso de cumprir funções ou um papel social para nos ajudar a mantermo-nos vivos, o que também pode ser visto como um ciclo limitador, a não ser que optemos por ver os muros que nos rodeiam como as prisões em que nos encerramos como forma de nos mantermos seguros e confortáveis: «Em tempos sentia-se tão segura dentro daquela casa. Na casa que era sua e de Stan, o seu casulo aconchegado, o seu abrigo do perigoso mundo exterior, aninhado no interior de um casulo maior. Primeiro os muros da cidade, como uma casca exterior; depois, Consiliência, como a parte branca e macia de um ovo. E, no interior de Consiliência, o complexo prisional Positrão: o cerne, o âmago, o significado de tudo aquilo.» (pág. 227). Mas este é também um livro que defende que apesar de tudo o mais poder desaparecer, o amor, a afeição, o mero desejo, em suma, serão os últimos a morrer.
Cultura.Sul
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Grande ecrã Cineclube de Faro
Programação: cineclubefaro.blogspot.pt IPDJ ¦ 21.30 HORAS
Cineclube de Tavira 28 FEV ¦ FOGO NO MAR, Gianfranco Rosi, Itália, 2016, M/12, 93'
14 FEV ¦ O VENDEDOR, Asghar Farhadi, Irão, França, 2016, M/12, 125’
Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 ¦ cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES ¦ CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO ¦ 21 HORAS
23 FEV ¦ POESIA SIN FIN, Alejandro Jodorowsky, 2016, M/16, 128’
11 FEV ¦ AMA - SAN, Cláudia Varejão, Mélanie Laurent, 2016, M/12, 103’
FOTOS: D.R.
CICLO VIDEO LUCEM ¦ IGREJA MATRIZ DE ALBUFEIRA ¦ 21.30 HORAS 21 FEV ¦ A LEI DO MERCADO, Stéphane Brizé, França, 2015, M/12, 93’
23 FEV ¦ 2001, ODISSEIA NO ESPAÇO, Stanley Kubrick, 1968, M/12, 139'
16 FEV ¦ VIDA ACTIVA: THE SPIRIT OF HANNAH ARENDT, Ada Ushpiz, 2015, M/12, 132’
Espaço AGECAL
O campo como recurso cultural: 'Barro Cal' um projecto de investigação-acção para o barrocal algarvio
Jorge Queiroz Sociólogo; Presidente da Direcção da AGECAL
A gestão cultural é no fundamental gestão dos recursos culturais disponíveis num determinado território, cidade, região ou País. Pelas características intrínsecas os recursos culturais são variados, podem ser uma estação arqueológica ou um museu, um edifício teatral, biblioteca ou uma unidade de criação artística. A Gestão Cultural é uma disciplina científica que se estrutura e desenvolve com base em diagnósticos, investigação e potenciação de recursos, pela organização de projectos e programas, corporização de produtos/obras para preservação, valorização, difusão e fruição. As assimetrias regionais em Portugal são hoje uma evidência patente em
todas as estatísticas. Cerca de 2/3 do território português encontra-se em processo de desertificação, com consequências nefastas para a economia nacional, como a dependência alimentar, fogos estivais, envelhecimento das populações, perda de identidade e da memória histórico-social. “Barro Cal”, será uma festa-feira do barrocal algarvio, a realizar entre 26 e 28 de Maio de 2017 na aldeia de Santo Estevão, experiência teórico-prática e projecto de investigação-acção concebido e proposto pela AGECAL com o apoio do programa 365 Algarve e das autarquias. Será realizada em estreita colaboração com a comunidade local e produtores, protagonistas centrais do acontecimento cuja preparação começou com o convite à participação. Estarão no foco da iniciativa, a valorização do território e das pessoas, com identificação, potenciação e gestão de recursos endógenos desta sub-região algarvia, em particular dos seus recursos culturais, herança de muitas gerações. O primeiro momento será de reflexão-debate “O campo como recurso cultural”, em seguida haverá abertura
D.R.
da exposição e a festa-feira intergeracional, com avós, pais e filhos, habitantes e visitantes. Iniciativa à escala de um território concreto, uma aldeia e a sua periferia. Procuraremos questionar razões, identificar problemas resultantes da desertificação, sobretudo experienciar recursos culturais disponíveis que poderão ajudar à revitalização do mundo rural. O campo é mais que paisagem ou a agricultura. Embora sejam estes elementos centrais, existem múltiplos re-
cursos biológicos, fauna e flora, estruturas materiais e imateriais, patrimónios riquíssimos vindos da Antiguidade, estruturas hidráulicas, poços, noras, platibandas, saberes-fazeres, brinquedos, músicas, danças,… Pretende-se que os visitantes encontrem genuinidade evolutiva e novos modelos de abordagem dos recursos culturais, que o Algarve, visto como “sol e praia”, tenha progressivamente um turismo cultural personalizado e diferenciado. Os três dias serão inspirados nas
manifestações cíclicas da Primavera, construindo diálogos possíveis entre tradição e contemporaneidade, um percurso que se pretende duradouro, geográfica e socialmente abrangente, construído com as pessoas e para as pessoas. O conteúdo da festa-feira abordará vivências comunitárias que deram origem a expressões artísticas, fazendo dialogar e convergir actividades ancestrais com novas funções propostas para o mundo rural, adequando actividades económicas e culturais aos ecossistemas, às paisagens culturais e aos produtos endógenos, onde o “pomar de sequeiro algarvio” e outras produções assumirão um lugar saliente. A cultura mediterrânica, da qual fazemos parte, assume relações equilibradas e respeitadoras da natureza, encontrando nela fonte inspiradora para a dança, o teatro, a música, a tradição oral e nesta linha de continuidade deveremos construir as novas expressões culturais com redobrado empenho face aos problemas ambientais e sociais do mundo actual. Vamos todos, (re)aprender a divertir-nos no campo.
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Cultura.Sul
Espaço ao património
'Portimão, Você Está Aqui': um olhar sobre o património a partir do ar
Bruno Fonseca
Responsável pelo projecto 'Portimão, Você está aqui!'
Nesta rubrica do Espaço ao Património proponho uma observação do património e do espaço que ocupa desde o espaço, ou seja, na forma de fotografia aérea. A primeira fotografia aérea conhecida foi tirada em 1858 pelo fotógrafo e balonista francês Gaspard-Felix Tournachon, conhecido por Nadar. Foi da vila francesa Petit-Bicêtre (actual Petit-Clamart) a 80 metros de altura e a partir do processo fotográfico de colódio húmido. Este processo implicava ter de levar no cesto do balão de ar quente o equipamento de revelação usado no quarto escuro de um estúdio de fotografia, visto que o tempo máximo que se pode esperar para revelar as fotografias de colódio é de cerca de 15 minutos. Estas primeiras fotografias aéreas não chegaram até aos dias de hoje, sendo que a fotografia aérea mais antiga que se tem conhecimento que existe é da cidade americana de Boston tirada pelo fotógrafo James Wallace Black, também tirada de balão de ar quente. Com a evolução dos processos e das máquinas fotográficas foi ficando mais fácil fazer fotografia aérea, tendo-
Amanhecer em Portimão -se utilizado ao longo dos tempos balões de ar quente, pombos, kites (papagaio-de-papel), foguetões (estes três últimos utilizando temporizadores nas máquinas), aviões, helicópteros, satélites e mais recentemente os drones. A fotografia aérea sempre
património edificado na sua envolvente, como é a paisagem natural de determinado lugar. Esta perspectiva elevada foi algo que o ser humano sempre sonhou e ter a possibilidade de ter um momento capturado de um certo lugar, de um ângulo que seria hu-
Igreja Matriz de Portimão criou um grande fascínio sobre o observador. Ver o mundo desde o céu proporciona uma sensação de grandeza, o percebermos melhor o espaço que nos rodeia, os caminhos que percorremos todos os dias, como se dispõe o
papel determinante na cartografia e topografia, na área militar, na área documental, histórica, planeamento urbano, na área artística, turística, entre outras. É nesta última que tenho vindo a actuar, utilizando as fotografias aéreas que tiro com o auxílio
Miradouro da Praia da Rocha
manamente impossível sem o auxílio de máquinas, parece algo mágico. Não há dúvidas que a fotografia aérea alterou a percepção que temos do mundo, sendo-lhe atribuído valor em diversas áreas. Teve e tem um
de um parapente motorizado pilotado pelo meu colega Ramiro Spinedi. Ao longo dos últimos quatro anos fomos voar diversas vezes com o intuito de realizar um projecto de promoção turística que se apoiasse na fotogra-
Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural
fia aérea. Com as fotografias que tirei criei uma página de Facebook, a qual convido a visitar, que se chama “Portimão, Você Está Aqui” e que tem como objectivo promover o concelho de Portimão através de fotografias maioritariamente aéreas, estando em decurso o desenvolvimento do mesmo projecto para os restantes concelhos do Algarve, assim como o respectivo site de internet. Tirei fotografias aéreas não só de grandes planos mas também dando enfoque ao património, tanto edificado como natural. Juntei ainda elementos como o nascer-do-sol, pôr-do-sol ou o entardecer para adicionar valor às fotografias. Este projecto propõe criar uma maior ligação afectiva entre quem usufrui deste espaço, seja residente ou visitante, ficando estes a ter uma ideia mais concreta onde estão ou quem ainda não conhece e está a escolher o destino das próximas férias se sinta mais tentado a conhecer, daí ter designado o projecto de “Você Está Aqui”. Serve também para salientar o património histórico e natural de uma forma cativante ao observador e de certa forma protegê-lo, fazendo o registo fotográfico deste neste ponto da história. A quem visitar a página espero que goste e se surpreenda pela paisagem maravilhosa que o concelho de Portimão tem para oferecer, ficando para breve a partilha da vista do resto do Algarve em fotografias aéreas.
Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Bruno Fonseca Filipe Bally Rui Correia Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.203 exemplares
Nascer do Sol na Praia da Rocha
Vila de Alvor
Cultura.Sul
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Espaço ao património
Património natural no Algarve: descobrir e preservar
Filipe Bally Biólogo
“Sol e praia” ainda hoje é o binómio que no imaginário de muitos define Algarve quando pensam num destino de férias. Foram as praias de areia branca, as águas azuis do mar e a temperatura amena que possibilitaram nas últimas décadas o desenvolvimento da indústria turística e serviços associados que atualmente ocupam grande parte da população residente. Apesar da atividade turística ter sido responsável pelas principais modificações da paisagem e das formas de vida, hoje ainda é possível visitar e observar no Algarve algumas das suas tradições e lugares recônditos e idílicos. A região do Algarve, no extremo sul de Portugal, forma um retângulo com fronteiras naturais bem definidas. A norte uma cadeia montanhosa de média altitude, que até há pouco mais de 50 anos era de difícil e demorada transposição, separa o Algarve das planícies alentejanas. Arribas alcantiladas, sistemas dunares, estuários e lagunas costeiras estendem-se ao longo da costa ocidental e sul, criando um interface com o grande azul. A leste o troço terminal separa a região da Espanha Andaluza. Esta faixa do território de paisagens variadas, ocupada por vários povos ao longo dos tempos, como atestam vários achados arqueológicos e mo-
numentos, associada às condições climáticas, onde se cruza a influência do Atlântico, do Mediterrâneo e Norte de África, possui um património natural ímpar. O relevo montanhoso a norte e a extensão da planície alentejana, sendo obstáculos difíceis de ultrapassar, conduziram a que os primeiros locais ocupados tenham sido estuários e zonas lagunares costeiras. Aqui, além da navegabilidade que permitia as trocas comerciais e contactos com outras culturas, floresceu, entre outros, uma indústria baseada na pesca e sal, recursos naturais por excelência do Algarve. No litoral, onde a pressão humana tem sido mais acen-
À descoberta do Algarve natural trolo de cheias e proteção da linha costeira, as zonas húmidas são um dos ecossistemas
Outras há que as elegem para passar o Inverno ou nidificar no Verão.
Sapais na Ria de Alvor tuada, destacam-se pelos valores naturais, as zonas húmidas, algumas associadas a sistemas dunares, formando ecossistemas complexos de elevado valor natural e paisagístico, como a Ria Formosa, os sapais de Castro Marim e Vila Real de Santo António, estuário do Arade e Ria de Alvor. Além de desempenharem um importante papel no con-
mais produtivos do planeta, desempenhando um importante papel na reprodução de peixes, crustáceos e moluscos, alguns de grande valor económico. São locais procurados por milhares de aves, que no Outono fazem uma última paragem de descanso e reabastecimento antes de se aventurarem a atravessar o oceano a caminho do Norte de África.
Cegonha-branca
No interior do Algarve, onde a ocupação humana é reduzida, são as culturas tradicionais de alfarroba, figo e amêndoa que marcam a paisagem. Nas áreas mais acidentadas e de difícil acesso desenvolvem-se matos mediterrânicos e povoamentos de azinho e sobro. Deste último retira-se a cortiça, transformada por artesões locais em peças de rara beleza.
A Serra de Monchique, onde se encontram os pontos mais elevados do Algarve – a Fóia com 902 metros e a Picota com 774 metros – e serras limítrofes, são áreas históricas da presença do lince-ibérico, durante muitos anos o felídeo mais ameaçado do mundo. A presença de habitats favoráveis, a recuperação das populações de coelho-bravo, estão a permitir o trabalho de reintrodução na natureza deste felídeo. O planalto de Sagres é um “hotspot” de biodiversidade, onde se concentram habitats e plantas raros e exclusivos, com a presença de vários endemismos. É também um importante ponto de concentração de aves planadoras e passeriformes na migração outonal. Milhafres, águias-cobreiras, águias-calçadas, gaviões, falcões, abutres, cegonhas-pretas, são aqui regulamente observadas. Descobrir o património natural do Algarve não é difícil. Várias instituições públicas e privadas nos últimos anos
criaram e produziram roteiros, guias e percursos que permitem de forma autónoma partir à descoberta de um outro Algarve. Em alternativa, há empresas especializadas em turismo de natureza a que se pode recorrer. A Via Algarviana atravessa o Algarve de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, passando pelas Serras do Caldeirão, Monchique e Espinhaço de Cão. A Rota Vicentina liga o Cabo de São Vicente a Santiago do Cacém (Alentejo). A Rota do Guadiana, tendo como cenário, une as praias de Vila Real de Santo António a Alcoutim. Nos Postos de Turismo está disponível informação sobre estes e outros percursos pedestres que permitem conhecer as paisagens, tradições, cultura e gastronomia do Algarve. A presença regular de pelo menos 250 espécies de aves e ocorrência de aves raras provenientes do Norte da Europa, Norte da América e África, reúne condições para o Algarve ser um destino de birdwatching – observação de aves. As zonas húmidas, a península de Sagres, as Serras de Monchique e Caldeirão são locais obrigatórios para observar aves. Os valores naturais – paisagem e diversidade biológica – não se podem dissociar das tradições e cultura de um povo. Importa por isso continuar a estudar, conhecer, divulgar e proteger este património natural e cultural ímpar. A forma como ocupamos e ocuparmos o território nos dirá se iremos entregar às gerações futuras os valores e recursos naturais que recebemos dos nossos pais e que diferenciam o Algarve de outras regiões da bacia do Mediterrâneo.
Painel informativo do percurso 'Rocha Delicada' em Portimão
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Cultura.Sul
Sala de leitura
Eu e o Outro na sociedade da leveza Paulo Pires
Programador cultural na Câmara Municipal de Loulé http://escrytos.blogspot.pt
Conta-se no meio artístico uma velha piada, muito difundida na imprensa dos Estados Unidos a partir dos anos 20 do século passado e posteriormente generalizada – a actriz Bette Midler replicou-a no filme Beaches, de 1988 –, sobre um actor egocêntrico que terá afirmado: “But enough about me. Let’s talk about you. What do you think about me?” O enfoque primordial no si-mesmo, o centramento no eu e na esfera do privado, estão na ordem do dia, como insistem inúmeros filósofos e sociólogos. É o hiperindividualismo de que nos fala Lipovetsky, feito de hedonismo, consumismo e tecnicismo. Mas é perigoso tomar a parte pelo todo e generalizar, bem como simplificar o panorama, como também tem vindo a ser sublinhado pelo reputado pensador francês. Nessa linha, na sua obra A Sociedade da Decepção (publicada em Portugal em 2012) este frisa que a liberdade das sociedades actuais, aliada ao sentimento individualista, geram, ao mesmo tempo, nos indivíduos uma atitude de frustração que deriva de uma constatação fundamental: a consciência de que a liberdade existente não aligeira necessariamente a vida e não resulta imediatamente em realização pessoal, sucesso ou felicidade. A não existência objectiva, até um certo ponto, de evidentes barreiras e restrições ao indivíduo nas sociedades democráticas e secularizadas (estando os direitos humanos fortemente legitimados) cria-lhe directa ou indirectamente a esperança de tudo ser possível, mas na prática a complexidade da realidade acaba por limitá-lo, fruto de condicionantes e obstáculos tantas vezes difusos e “invisíveis”. Daí que já não seja a falta de liberdade que o afecta, mas todo um outro conjunto de factores exterior ou não ao mesmo, mostrando que a individualização do mundo acarreta também vulnerabilidade e fragilidade, bem como insegurança e desconfiança em
relação à política, à economia, ao amanhã. Uma segunda questão inquietante tem a ver com a relação entre esta era dominada pela economia, tecnologia e consumismo de um lado e os valores éticos e humanistas do outro. A tentação imediata poderia ser a de proclamar que, atendendo à aludida supremacia da esfera do individual, vivemos numa fase de niilismo e “barbárie” morais, de esvaziamento de sentidos e princípios. Mas mais uma vez será redutor esboçar uma tendência unívoca. Atentemos nalgumas conclusões do recente estudo Be Positive, um inquérito realizado com 2700 jovens portugueses entre os 16 e os 29 anos. O estudo, liderado pela Universidade de Bergen (Noruega) e abrangendo simultaneamente mais vinte países, pretende esboçar uma radiografia da saúde pública dos jovens segundo a teoria dos 5 cês do norte-americano Richard Lerner, a qual preconiza que há traços básicos na juventude – confiança, competência, conexão, cuidados e carácter – que são determinantes nos seus comportamentos ao nível escolar e de saúde, bem-estar e qualidade de vida. Um dado que ressalta é o facto de os jovens mais competentes e bem-sucedidos academicamente, bem como os de mais elevado estatuto socioeconómico, serem os menos preocupados e solidários com os outros e com a realidade circundante. Sentimentos de compaixão, justiça social e noção de pluralidade e inclusão, e ética parecem assim não figurar como prioridades. Percebe-se também que não é preciso ter grandes valores pessoais para se ter uma boa percepção de si mesmo enquanto aluno. “A grande preocupação da vida deles é acabar o curso e arranjar um emprego”, como sublinha a psicóloga Margarida Gaspar de Matos, da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. Esta é, sem dúvida, uma tendência psicossocial a levar em conta: a de que parece já não ser realmente incorrecto pensar apenas em si próprio e nos interesses privados. É o reflexo de um individualismo exacerbado e de um clima de vincada competitividade, mas também da pluralização de éticas e de um sentimento de incerteza face ao futuro, mormente a nível profissional (paira sobre as mentes a ameaça permanente de não
conseguir emprego ou então de perdê-lo, de “ficar à margem”), sendo ainda fruto, em grande medida, de um paradigma educacional que também estimula, para o bem e para o mal, esse mesmo individualismo e a competição. Mas sabemos que, paralelamente, a sociedade contemporânea tem mecanismos de auto-correcção que têm um papel a dizer. Daí que se assistimos a uma obsessão pelo bem-estar e lazer “fáceis”, pela leveza fútil e ligada aos sentidos, ao corpo e à aparência e conforto individuais, ao mesmo tempo surge, por exemplo, um número crescente de voluntários e associações cívicas, e de movimentos humanitários de sensibilização e apoio face às grandes crises e catástro-
uma maior volatilidade eleitoral. Há uma tendência crescente dos eleitores para a hesitação e para esperar pelo último instante para se decidirem, bem como para o florescimento das “opiniões sem pertença”, em que um número cada vez maior de indivíduos se identifica apenas com uma parte das ideias de dado aparelho partidário e não com a maioria do seu discurso. Um terceiro aspecto central a focar prende-se com o sistema educativo. O papel da escola revela-se primordial para o indivíduo aprender a orientar-se neste tempo de hipertrofia informacional. Continuando com Lipovetsky: “Um dos grandes desafios do século XXI será inventar novos sistemas de for-
também prepare o indivíduo para competir no mercado de trabalho – não sendo, porém, garantias de sucesso e riqueza a escolarização e a habilitação profissional, mas sim sinónimo de progresso pessoal, capacitação intelectual, civilizadora e dignificante. E que permita recuperar a humanidade roubada noutros espaços e tempos. O paradoxo humanização/ desumanização faz parte, aliás, do processo histórico e acompanha o indivíduo desde cedo, estando presente também no sistema de ensino. A valorização (quase) exclusivista do saber acumulado, conteudista e quantitativo (ao encontro dos apelos do mercado e na ilusão de preparar para um futuro redentor) e, mais ou menos expliFOTO: ROBERT DOISNEAU
Individualismo e solidariedade na era da leveza fes. E mesmo os cidadãos que se desinteressam da política continuam a esperar dela um grande número de vantagens e benefícios, exigindo maior segurança e protecção. Face a este panorama, Lipovetsky fala de uma destradicionalização da moral e não da sua decadência ou destruição. A diferença é que agora coloca-se em questão o que outrora não era discutível. Para o clarividente pensador a sociabilidade e a empatia continuam a existir, mas sob novos moldes, em grande medida assentes em ligações pós-tradicionalistas, ou seja, escolhidas, múltiplas e renovadas. A cidadania, essa, é mínima, sem dever nem obrigação, light. Por isso falamos tanto da abstenção, fruto de
mação intelectual, uma escola da pós-disciplina, mas também uma escola do pós-hedonismo. O estaleiro é considerável.” Torna-se imperioso que a educação seja encarada não só como veículo de instrução e aquisição de conhecimento, mas também como instrumento imprescindível para a progressiva libertação dos indivíduos da sua condição de seres desumanizados, como advoga o filósofo e educador brasileiro Paulo Freire numa obra fundamental: a Pedagogia do Oprimido. Um fazer educativo que instrua e humanize, mediado por mestres exigentes e/mas solidários, os quais encaram os alunos não apenas como sujeitos de aprendizagens mas como sujeitos humanos, sociais e culturais; e que
citamente, da competição ao nível da avaliação numérica e resultados estatísticos continua a ser uma tónica ainda bastante preponderante na mentalidade e engrenagem educativas. Nas décadas mais recentes vinculamos inclusive educação e cidadania, acreditando que o conhecimento acumulado e o saber crítico libertarão o indivíduo para um maior empenhamento social e político. Mas esta consciencialização social e cívica que o ensino ideologicamente proclama parece ainda longe de se efectivar, até porque constitui hoje mais um anexo (flutuante, incerto e residual em termos programáticos) do que uma matriz fundadora do modelo oficial vigente. Recorde-se, por outro lado,
que mais erudição, mais conhecimento podem não ser necessariamente sinónimos de maior humanidade, ética ou civismo. Num dos seus ensaios fundamentais, dedicado aos livros e ao seu futuro, George Steiner relembra-nos que a bestialidade do nazismo desenvolveu-se no cerne de uma cultura altamente erudita como era a alemã em meados do século XX. Na mesma obra Steiner fala-nos ainda de uma tentação ligada à fruição e imersão no universo dos livros (a qual justifica com uma hipótese psicológica): o facto de o magnetismo exercido pelo imaginário, pelas ficções supremas, sobre a consciência humana, assenhoreando-se do território da sensibilidade e prendendo-a como que hipnoticamente aos textos, poder tornar-se um potencial factor de auto-centramento, isolamento, altivez ou indiferença perante a realidade exterior, condicionando a conexão do indivíduo com aquilo a que Freud chamou o “princípio da realidade”. Como se o erudito ficasse saturado pela intensidade terrível da ficção, incapacitando-o de se relacionar com as tarefas domésticas, miudinhas e insignificantes, com o grito na rua que mal lhe chega aos ouvidos, sinónimo de uma “realidade desarrumada, contingente, vulgar e transitória, impossível de comparar com a que se apoderou da nossa consciência”. Sobretudo para os amantes dos livros, parece constituir um tabu ou quase um escândalo aflorar este intrigante tema, mas por vezes as torres que (n)os isolam são mais sólidas do que o marfim. É que a arte pode ser (também) “a forma mais intensa de individualismo que o mundo já conheceu”, como diria Oscar Wilde. Termino com a convicção de que a educação (ministrada em casa e numa renovada escola) e a construção de uma personalidade afectiva e cognitivamente estruturada podem ser, de facto, decisivos para equilibrar a balança dos dias e permitir a conjugação entre um individualismo saudável – que também nos é necessário como forma de afirmação e valorização identitárias, e de preservação da autoestima – e uma atitude mais humanista, plural, relativista e humilde que nos mostra que, no fim de contas, somos “apenas” mais um entre muitos.
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Cultura.Sul
Da minha biblioteca
As Mulheres no Parlamento, de Aristófanes FOTOS: D.R.
Adriana Nogueira
Classicista; Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
AGENDAR
Como devem imaginar, sendo eu uma amante dos estudos clássicos, tenho a minha biblioteca cheia de escritores gregos e latinos, mas acho que me tenho contido tanto para não inundar estas páginas apenas com os autores do meu coração, que os tenho deixado um pouco para trás. Trago, por isso, hoje uma peça de um escritor que viveu no séc. V e IV a.C., chamado Aristófanes, que muitos conhecerão, por ser o principal representante da comédia antiga, de temática essencialmente política. Aristófanes criticava sobretudo os políticos da sua época, mas também troçava de outras personagens importantes da sociedade, como os filósofos (ridiculariza Sócrates, em As Nuvens)) ou os autores de tragédias (como acontece com Eurípides, em As Mulheres que Celebram as Tesmofórias). As Mulheres no Parlamento (em grego, Ekklesiazousai, também conhecida por Assembleia de Mulheres ou Mulheres na Assembleia)) foi escrita por Aristófanes e representada em Atenas, provavelmente entre os anos 393 e 392 a.C., já depois da queda da democracia, após a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso. Talvez por isso a trama represente apenas uma «jocosa utopia», uma «caprichosa fantasia» que «chega despreocupadamente ao absurdo» (nas palavras do austríaco Albin Lesky, autor da monumental História da Literatura Grega, publicada pela Gulbenkian). A peça inicia-se com as mulheres a maquinarem ir ao Parlamento (em grego Ekklesia, que se localizava na Pnix, uma
pequena colina rochosa em frente à Acrópole de Atenas), vestidas com as roupas dos maridos e levando barbas postiças, com o objetivo de fazer com que os políticos decidam entregar-lhes o governo da cidade, por serem elas as mais sensatas para governar. Como uma delas mora perto da Pnix e já ouviu muitos oradores falarem, sabe o modo como os homens se expressam naquelas ocasiões, sendo, por isso, a escolhida para as representar, depois de a verem fazer uma demonstração das suas capacidades, com este discurso (curioso, pela descrição das atividades femininas):
Aristófanes criticava, sobretudo, os políticos da sua época
Discurso de Praxágora «Que os hábitos delas são melhores que os nossos é o que passo agora a demonstrar. Para começar, mergulham a lã em água quente, à moda antiga, todas elas, e não se vê que estejam dispostas a mudar. Ao passo que a cidade de Atenas, mesmo se uma coisa dá resultado, não se julga a salvo se não engendrar qualquer inovação. Fazem os seus grelhados sentadas, como dantes; trazem fardos à cabeça, como dantes; celebram as Tesmofórias, como dantes; cozem bo-
los, como dantes; estafam os maridos, como dantes, metem amantes em casa, como dantes; compram gulodices, como dantes; gostam de uma boa pinga, como dantes. Por isso é a elas, meus senhores, que temos de confiar a cidade, sem mais discussão, sem sequer nos preocuparmos com o que pensam fazer. Dêmos-lhes carta-branca para governarem. Consideremos apenas estes pontos: primeiro, que, se são mães, vão dar tudo por tudo para salvarem os soldados; segundo, no que respeita à comida, quem mais solícito que uma mãe para reforçar uma ração? Ninguém mais furão que uma mulher para arranjar
“ENTRE O ABSTRATO E O FIGURATIVO” Até 3 MAR | Galeria de Exposições do IPDJ Algarve Marisa Patrício procura transportar para a tela o lado romanesco, tradicional e pitoresco duma cidade visionada e interpretada por si
umas massas; no poder, não há quem lhe faça o ninho atrás da orelha, porque a fazer o ninho atrás da orelha quem é que lhes leva a palma?! Bom, adiante! Vão pelo que vos digo, que hão-de levar uma vidinha regalada.» (vv.214-241) Aparece, depois, em cena o marido, que não foi votar (porque Praxágora lhe tinha roubado as vestes masculinas… e porque se levantara tarde) e fica a saber o que aconteceu, ouvindo, depois, da própria Praxágora, as decisões do Parlamento: Programa político das mulheres de Atenas (comunismo avant la lettre) «Praxágora (dirigindo-se aos espectadores): Bem, que nenhum de vocês me contradiga nem in-
terrompa, antes de conhecer o meu projecto e de ouvir os meus argumentos. Quero dizer-vos que é preciso que todos entreguem os seus bens para um fundo comum, para onde cada um contribua com a sua parte e de onde retire a subsistência. Não mais há-de haver ricos e pobres; nem uns a cultivarem propriedades enormes, e outros sem terem onde cair mortos; nem uns a terem ao serviço batalhões de escravos, e outros nem sequer um criado. O que eu quero estabelecer é um padrão único de vida em comum, igual para todos. Bléfiro: Comum a todos... como? Praxágora: Já a formiga tem catarro! Bléfiro: Catarro?! Também vamos pô-lo em comum?
Praxágora: Nada disso! Levas o tempo a interromper-me. Ora dizia eu que a terra, antes de mais, vou torná-la um bem comum a todos; e também o dinheiro; e tudo que é propriedade privada. É deste fundo comunitário que nós, mulheres, vos vamos sustentar. É a nós que compete administrá-los com economia e bom-senso. Bléfiro: E quem não for proprietário de terras, mas possuir dinheiro e ouro, bens que se não vêem? Praxágora: Tem de os pôr no monte. Bléfiro: E se não puser? Praxágora: Incorre em perjúrio. Bléfiro: Ora, ora! Já foi assim que eles os ganharam! Praxágora: Mas seja como for, também não lhes servem para nada. Bléfiro: Como assim? Praxágora: Por necessidade, ninguém mais precisa de se mexer. Toda a gente vai ter tudo: pão, peixe, bolos, casacos, vinho, coroas, grão-de-bico. Qual a vantagem de se não entregar os bens? Ora diz lá, se fores capaz! Bléfiro: O certo é que, hoje em dia, são aqueles a quem não falta nada, os que mais roubam. Cremes: Isso era dantes, meu amigo, quando vivíamos no tempo da outra senhora! Mas agora – com a tal história do fundo comum – , que é que se ganha em não entregar?» (vv.588-611). Mas quando uma personagem (apelidada apenas de «Homem») diz: «Cum raio! Tenho de arranjar uma saída, para conservar o que me pertence, e ao mesmo tempo partilhar com esta gentinha do bolo comum», acordamos da utopia e vemos que os outros não estão a sonhar o mesmo. A peça termina em festa, mas nós, passados mais de dois milénios, não podemos deixar de sentir o sorriso a amarelecer. (Nota: traduções de Maria de Fátima Sousa e Silva, Aristófanes, As Mulheres no Parlamento, JNICT, Coimbra, 1996).
“LEÔNCIO & LENA” 26 FEV | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Produção teatral conta a história de dois reinos que dividem o Algarve, o pequeno reino do barlavento e o pequeno reino do sotavento
Última O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N
Fevereiro Quartel da Atalaia
um holograma que varia conforme as massas vaporosas de cinzento que se arrastam ao sabor de ventos. De tão simples e ambígua esta discussão desfaz-se ao saborear de um chá fumegante trazendo calor a peito e mãos.
Literatura e Diplomacia
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Fevereiro FOTOS: D.R.
«A Casa da Convergência!?»
Em fevereiro queremos forçosamente ver cumprida a hora a mais de claridade que janeiro prometeu na sua despedida. Desejamos ardentemente que as terras frias se vão emudecendo das geadas, para a seguir deixarem rebentar as ervas da subterra.
As apresentações do novo livro de Manuela Sabino continuam, este mês em Faro, a 22 de fevereiro na Biblioteca António Ramos Rosa, pelas 18h. Isabel Vila Pery apresenta o novo romance da autora (em edição de autor) baseado na história de uma escritora portuguesa que, através de um antigo namorado, toma conhecimento de alguns factos que foram vividos durante o período imediatamente posterior à guerra civil espanhola no seio de uma família da alta sociedade madrilena, os quais foram mantidos em rigoroso secretismo, o que a leva a escrever um romance, facto que a levará a mudar radicalmente a sua vida.
Manta de Rosetas O que passa através da quadrícula cansa olhar de tanto cinzento que tomou o céu. O mar ao longe ilude numa longa camada de vida fria. Pressente-se um inverno por ficar. Mas logo se evoca esse tempo no devir que abrirá todos os quadrantes a tons inteligíveis de lavar o espírito. Fecham-se os postigos e os olhos. Um todo silêncio ofusca nos pensamentos. A cafeteira do chá está ao lume. O cão adormeceu sobre a serra do caldeirão no mapa aberto sobre a caleidoscópica manta de rosetas.
Tavira possui este edifício histórico, de caracter arquitetónico único, e de condições estruturais bastante favoráveis, que devidamente adaptado aos tempos modernos e às actuais necessidades do concelho e da região, se poderia transformar num pólo cultural (relevante, que falta à região) de dinâmica internacional, mais propriamente na sua transformação num museu de arte moderna, como face marcante do projecto, mas sempre aliado a um sem fim de possibilidades culturais activas e abertas à população. Alguns debates públicos e artigos em jornais, têm trazido este tema à reflexão. Estejamos atentos aos desenvolvimentos, agora que já se percebeu que o Algarve precisa da cultura para continuar a ser o local desejado por todos.
O céu de fevereiro
Seus ‘Reflexos e Imbricações’ – em Mesa-Redonda, numa iniciativa do Consulado Geral do Brasil, com o apoio da Universidade do Algarve e da Biblioteca António Ramos Rosa em Faro. Será a 10 de fevereiro pelas 17h com os comunicadores Gonçalo Mourão, Pedro Férre, Fernando Cabrita e Cláudio Guimarães dos Santos.
Fevereiro
SobreViver
As amendoeiras Procuramos as amendoeiras ao lado das estradas do barrocal, na esperança continuada da regeneração da natureza. No carinho alvo-rosa da sua flor entrevemos a necessidade de amar. O seu fruto, da casca à carne, toda uma criação poética milenar.
Título de estreia em livro da jornalista Cláudia Sofia Sousa, radicada em Olhão, e que transfere agora para o objecto físico parte das emoções que tem ensaiado no seu blogue. Como o subtítulo ‘Crónica dos Sentimentos Universais’ aponta, a autora descreve um manual de sobrevivência pessoal mas cujos temas são comuns a todos. Editado pela Andorinha Editorial, ligada à Lua de Marfim, será apresentado em Tavira na Biblioteca Municipal, em conversa com Maria Luísa Francisco e Pedro Jubilot, com leituras de João Pereira. É na quinta-feira, 23 de fevereiro às 18h.
Chamas-lhe o céu, como se fosse só teu, sempre o mesmo, fixo, projectado no tecto côncavo da passagem dos teus dias. Mas não é, senão
Fevereiro chegará ao fim, naturalmente, como não podia deixar de ser, na nossa impossibilidade de mudar o tempo, descrevendo as memórias à passagem da sua marcha.