CULTURA.SUL 90 - 4 MAR 2016

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ricardo claro

Missão Cultura: d.r.

Fragmentos de uma história do Algarve contemporâneo

Som Riscado: festival desafia públicos em Loulé

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Espaço AGECAL: d.r.

Lugares da Primeira Globalização

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Letras e Leituras: d.r.

Harper Lee: Autora de um só livro?

Amália ao sul p. 8

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Artes visuais: d.r.

MARÇO 2016 n.º 90

A fotografia é arte visual?

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

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7.535 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

d.r.


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04.03.2016

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Museu de Portimão, um caso de sucesso

Fragmentos de uma história do Algarve contemporâneo Direção Regional de Cultura do Algarve

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

O reconhecimento é devido a quem o merece e o Museu de Portimão é um caso de sucesso que merece claramente ser reconhecido. Outros haverá certamente nesta área da museologia, como noutras, também eles e pelas mais diversas razões, que devrão ser alvo de reconhecimento, mas o que neste caso releva é o sucesso do museu portimonense em número de visitantes no passado ano de 2015. Mais de 53.400 pessoas passaram pelo equipamento cultural da cidade do Arade no ano passado, um valor que faz crescer o volume de visitas em 5,7% e só isto era por si digno de destaque. O espaço, um museu de cariz industrial, é no entanto digno de nota quanto à sua perfromance porque ao atingir este valor fica entre os grandes do país, combatendo com os museus sob tutela directa da Direcção-Geral do Património. O Museu de Portimão tem mais visitantes que, por exemplo, os museus Nacional de Arte Contemporânea / do Chiado e Nacional do Traje. A posição relativa do museu algarvio em termos comparativos é assim digna de relevo e dá nota do interesse que suscita e da sua capacidade de funcionar como elemento diferenciador da oferta cultural portimonense e regional. Uma mais-valia que prova também que os museus algarvios estão longe de serem simples espaços de exposição sem interesse ou capacidade aglutinadora. Por todas estas razões se deve o reconhecimento a quem pensou, criou, dirige e mantém em funcionamento mais um 'palco' da cultura regional.

Comemoraram-se em Setembro de 2015 os 100 anos do 1º Congresso Regional Algarvio em que se mobilizaram pela primeira vez os grandes vultos do Algarve para uma reflexão profunda, no Casino da Praia da Rocha, sobre os desígnios desta região. Durante três dias juntaram-se várias classes profissionais e as personalidades mais destacadas para diagnosticar o panorama regional de então. Podemos mesmo referir que o Algarve assumiu uma ruptura regionalista com o resto do país, pois ao invés de congressos municipalistas que promoviam a propaganda nacional, situaram a discussão numa dimensão aglutinadora de uma visão regional. O turismo ainda não era uma realidade no Algarve, mas as preocupações da população falavam de desigualdades sociais e territoriais. Vivia-se a 1ª República Portuguesa e experimentava-se uma crise governativa que contribuía para mudanças sucessivas de chefes de governo. A nível mundial, a Guerra das Guerras tinha despontado no ano anterior e a

Europa teria de reconfigurar as suas fronteiras. O comboio chegara pouco anos antes ao Algarve. As mulheres reivindicavam direitos de igualdade, o casamento laicizava-se e a ‘instrução popular’ era discutida. O último concelho do Algarve tinha acabado de nascer: São Braz de Alportel em 1 de junho de 1914, fechando assim o mosaico dos 16 concelhos que hoje constroem este território. As reflexões desenvolvidas à data falavam-nos dos produtos e da indústria do Algarve (Luís Mascarenhas), do clima (Bentes Castelo Branco), das paisagens culturais algarvias (João de Mello Falcão Trigoso) e da alfabetização (Mateus Moreno), entre outros. O professor Fernando Catroga fala numa revolução cultural de raiz neo-iluminista1 no Algarve. Sobre o desenvolvimento do turismo na região assume particular relevância a intervenção de Thomaz Cabreira (Presidente do Congresso), que havia sido ministro das finanças por pouco tempo e apresentava neste congresso uma reflexão sobre as zonas turísticas, que viriam a determinar o aparecimento das primeiras estruturas de apoio ao turismo do Algarve. Defendeu então a criação de uma gare marítima em Vila Real de Santo António para trazer os turistas da

foto: drcalg/r. parreira

margem de Ayamonte, na Andaluzia, até ao Algarve. Propõe a criação das ‘zonas turísticas’ da Praia da Rocha e de Monchique indo ao encontro da procura entre o mar e a serra, e introduz a necessidade de um casino e de um teatro, que proporcionem uma outra oferta regular. Foram dias de inovação e planeamento prospectivo. Numa coordenação científica conjunta connosco, o Professor Doutor A. Paulo Oliveira e a Mestre Cristina Fé Santos, deter-

minou-se que os 100 anos do 1º Congresso do Algarve seriam o pretexto para intentar um contributo para a história do turismo no Algarve. A obra aconteceu e está aí. Recebeu o contributo de 15 artigos que abordam temas sobre: património, cultura e turismo em termos abrangentes e conceptuais; história do turismo no Algarve; e as infra-estruturas e o turismo na região. O apoio de vários municípios e entidades, tornou possível a sua edição pela Universidade do Algarve, através

da sua Faculdade de Ciências Humanas e Sociais e do CEPAC. Estes retalhos a que se chamaram fragmentos celebram e marcam desta forma um centenário que teve com o Município de Portimão e o seu Museu Municipal ao longo do ano que passou a programação de um conjunto de relevantes palestras, assim como motivou uma excelente exposição ainda patente no Museu sobre o “despertar deste novo Algarve”. Hoje, na linguagem do marketing, correntemente adoptada, dir-se-ia que naquele Congresso Algarvio, foi a primeira vez que se fez uma análise SWOT, identificando-se potencialidades e constrangimentos para a região, no entanto, ainda subsistem muitas destas características por resolver e cumprir. Alexandra Rodrigues Gonçalves 1) Maria de Fátima Pegado Martins de Almeida Pires (2012) O surto das ideias republicanas no Algarve (1876-1910). Tese de Mestrado da FCHS/Universidade do Algarve. available on line: https://sapientia.ualg. pt/bitstream/10400.1/3484/1/ tese_venha%20a%20republica%20 paginada%20-%20C%C3%B3pia. pdf, Outubro de 2015.

Juventude, artes e ideias

Tirar... ou os ombros… ou o peso...

Petra Martins Blogger

Não gosto quando as pessoas dizem que não precisam de ninguém. […] Tal-

vez até seja bom ficar um dia ou dois a sós connosco próprios. Mas não será triste ficar sozinho o tempo todo? Eu fiz um bolo, vou comê-lo sozinha. Vou demorar imenso tempo a comê-lo, sozinha. A não ser que esteja em TPM. Mas que sentindo faz, Eu fazer um bolo só para mim? Sem ter ninguém que diga - Gosto, está bom, devias fazer mais vezes - ou - Que

“PRELUDE” 5 MAR | 22.00 | Casa do Povo de Santo Estêvão - Tavira Projecto Darko marca o regresso de Zé Manel à música (ex-vocalista dos Fingertips), desta vez, a solo, afirmando-se como compositor, intérprete e letrista

bela merda, não serves para pasteleira, vai mas é escrever. Eu acho que precisamos de alguém, para partilhar, para ajudar, para ouvir. Hoje em dia as pessoas já não ouvem, elas se calhar só esperam a sua vez para falar. Eu preciso de alguém, todos nós precisamos de ser amigos, de cuidar, proteger. Para que serve a vida se vivermos sós?

Não me digam que não precisam de ninguém. Não me digam que estão bem somente por vossa conta. Eu sei, todos sabemos cuidar de nós. Foi para isso mesmo que fomos ensinados, para cuidarmos de nós. Então e somos egoístas ao ponto de não cuidarmos dos outros? As pessoas precisam amar mais. Ter mais paciência. Não cuspir estupidez. Eu sou

estúpida, mas sou uma estúpida que cuida, que ama, e que não se importa de ser estúpida. Ser estúpido até não é mau. Desde que seja uma estupidez saudável. Aquilo que somos, anda connosco, aos nossos ombros. E parecendo que não, com o passar do tempo, às vezes o peso já nos dobra. Já não se suporta. Às vezes, temos que tirar... ou os ombros… ou o peso...

“PARA ALÉM DA PORTA” Até 26 MAR | Galeria de Arte da Praça do Mar - Quarteira Exposição apresenta uma recolha que foi efectuada por António Alvélua Correia sobre portas em madeira de habitações, na sua maioria degradadas, em diversas zonas do Algarve


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

IPDJ | 21.30 HORAS 8 MAR | QUE HORAS ELA VOLTA?, Anna Mylaert – Brasil 2015 (111’) M/12 15 MAR | MUSTANG, Deniz Gamze Ergüven, França/Alemanha/Turquia/Qatar, 2015, 97’, M/14 22 MAR | ANTESTREIA | JOHN FROM, João Nicolau, Portugal, 2015, 98’ , com a presença do realizador (a confirmar)

TEATRO MUNICIPAL DE FARO | 21.30 HORAS 29 MAR | FILHO DE SAUL, László Nemes, Hungria, 2015, M/16

Filmes abordam condição humana e sociedade em Tavira A maioria dos filmes programados levantam uma série de questões em torno da condição humana. Se bem que o filme "45 anos" é um retrato mais intimista, os filmes "Sicário", "Que horas volta?" e "Mustang", levantam questões muito pertinentes no contexto económico e social que vivemos actualmente. Finalmente todos eles tratam da condição humana. "45 anos" foi um pedido do público de Tavira. Um filme que consegue escapar dos lugares comuns em torno do assunto da velhice e põe em relevo o papel da paixão e do tempo. "Sicário" questiona o valor da vida humana. Com um estilo visual que impressiona, o director gere com grande mestria o ritmo e o suspense. Tudo resulta credível no brutal universo que explora. O seu virtuosismo narrativo serve ao realizador para expor uma conclusão arrepiante. O que os guardiões da ordem mais temem não é a droga, mas sim que se provo-

Cineclube de Tavira

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | cinetavira@gmail.com fotos: d.r.

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS 10 MAR | SICARIO (SICÁRIO - INFILTRADO), Denis Villeneuve – E.U.A. 2015 (121’) M/16 17 MAR | QUE HORAS ELA VOLTA?, Anna Mylaert – Brasil 2015 (111’) M/12 24 MAR | AMY, Asif Kapadia – Reino Unido/ E.U.A. 2015 (127’) M/14

Cena do filme 'Sicário' que caos na própria ordem. "Que horas ela volta?" fala com inteligência e sensibilidade de algo que não perdeu vigência desde o princípio da humanidade, a chamada luta de classes, por mais que aqueles que estão por cima afirmem que se trata de algo que pertence ao passado, superado pelo progresso, pela civilização, ou por um mundo mais justo e falácias similares. "Mustang" exibe as contra-

dições da sociedade patriarcal turca. O realizador evoca essa crise cultural nos jovens. É uma história dramática, mas Gamze Ergüven tem a capacidade de a contar com leveza e com uma dose de humor. O cineclube anuncia que continuará com a sua programação regular todas as quintas feiras, e que a Mostra este ano inaugura no dia 15 de Julho. Cineclube de Tavira

31 MAR | MUSTANG, Deniz Gamze Ergüven – França/Alemanha/Turquia/Qatar 2015 (97’) M/12

Espaço AGECAL

Lugares da Primeira Globalização d.r.

Rui Parreira

Arqueólogo e museólogo, sócio da AGECAL.

Há 600 anos atrás, nos finais da Idade Média, o extremo Sul de Portugal assumiu um particular protagonismo nos contactos atlânticos que configuraram uma abertura do Mundo Antigo e Medieval que alguns historiadores designam como «Primeira Globalização». Numa conjuntura histórica específica, em que a Cristandade cobiçava as riquezas que vinham do espaço africano mas as rotas caravaneiras estavam nas mãos dos impérios muçulmanos, enquanto os medos ao oceano inibiam os mareantes e os afastavam das rotas oceânicas, algumas elites do espaço atlântico europeu e a burguesia emergente que as apoiava procuraram criar novas oportunidades económicas fora desse âmbito geográfico. Mercê das suas boas condições portuárias e da sua posição no ex-

tremo Sudoeste europeu como encruzilhada das rotas marítimas entre o Mediterrâneo, o Atlântico Norte e a costa atlântica africana, um conjunto de localidades algarvias foi implicado no lançamento de um projeto global de viagens de exploração marítima ao longo da costa ocidental africana a partir da segunda década do século XV. Se o centro nevrálgico desse movimento foi Lagos – protagonismo

que se deve a uma população de mareantes experimentados, à natureza da sua baía abrigada, à proximidade das serras de Monchique e Espinhaço de Cão para aprovisionamento de madeira usada na construção naval e ao abastecimento que era garantido por hortas, terras de pão e pastos, e às salinas essenciais à conservação dos géneros que abasteceram barcas e caravelas em viagens de longa duração – outras localidades algarvias

como Alvor, Silves, Tavira ou Castro Marim participaram nele ativamente. Em todas essas localidades se fez sentir a presença de um dos grandes impulsionadores desse movimento de exploração, personagem incontornável neste contexto: o Infante Dom Henrique, o príncipe que criou uma das maiores casas senhoriais do reino e um portentoso empório comercial sustentado pelo tráfico do ouro e dos escravos mas que, aos cin-

quenta anos, escolhe o promontório de Sagres, um ermo escarpado apontado mar adentro, para nele edificar a sua vila – a moradia que escolheu para morrer. Em 2015, esse conjunto de localidades algarvias onde se faz sentir a tradição dos patrimónios do mar conotados com os Descobrimentos, deu corpo a uma candidatura que visa a sua inscrição na lista indicativa do Património Mundial da UNESCO e que integra ainda, repartidos por Portugal, Espanha, Cabo Verde, Marrocos e Mauritânia (cinco países), vários lugares que a memória universal associa ao imaginário das importantes mudanças históricas relacionadas com aquele movimento de exploração e comércio. São lugares associados ao lançamento de um processo de globalização ainda limitado por uma perceção do mundo centrada no mediterrâno, sem uma noção da verdadeira configuração do oceano – que agora deixava de meter medo mas continuava a ser informe e sem fim. É nossa convicção que o reconhecimento mundial dessa herança comum e a sua adequada gestão promoverão o intercâmbio cultural entre povos, contribuindo para o diálogo entre culturas, projetando um conceito dinâmico de cultura de paz.


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Cultura.Sul

Letras e Leituras

Harper Lee – Autora de um só livro? fotos: d.r.

Paulo Serra

Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

Harper Lee é uma autora que marcou a literatura norte-americana e anglófona apesar de o ter feito – pensava-se – através de uma única obra. Mataram a Cotovia (To kill a mockingbird) considerado Melhor Romance do Século, em 1999, pelo Library Journal, ganhou o Pulitzer em 1961 e vendeu mais de 30 milhões de exemplares, traduzido em mais de quarenta línguas, adaptado ao cinema em 1962. Em Portugal, foi traduzido originalmente sob o título Por favor não matem a cotovia, até que a Relógio d’Água numa edição mais recente corrigiu o título, segundo muitos de forma mais justa, para Mataram a Cotovia. Poucos meses depois de ter sido publicado outro manuscrito seu, que parecia constituir uma sequela ao seu primeiro romance, a autora faleceu no dia 19 de Fevereiro deste ano. Apenas no final da sua vida, quando Harper Lee contava já 88 anos, foi publicada outra obra, entre muita polémica, lançada entre nós com o título Vai e Põe uma Sentinela, publicada pela Editorial Presença, em Outubro de 2015. Em agosto de 2014 a advogada de Harper Lee, Tonja B. Carter, ao remexer entre vários documentos da autora ter-se-á deparado com um manuscrito que lhe chamou a atenção pois parecia tratar-se de um rascunho para o To kill a mockingbird, sendo que os nomes das personagens eram os mesmos. Só depois percebeu que aquela era uma história diferente e situada vinte anos mais tarde em relação à acção de Mataram a Cotovia, com uma nova intriga e onde as crianças eram agora jovens adultos. Supostamente Go set a watchman foi o primeiro original de Harper Lee mas, quando o apresentou ao editor, este ter-lhe-á sugerido que escrevesse um livro da perspectiva de Scout ainda em criança, recuando cerca de vinte anos. Entretanto, tudo o que se conseguiu apurar sobre a publicação deste manuscrito perdido, ou melhor dizendo, esquecido, terá sido por interposta pessoa,

A publicação de ‘Vai e Põe uma Sentinela’ gerou muita polémica sem ter havido qualquer declaração directa por parte da autora. Afinal, Harper Lee não dava uma entrevista desde 1964, pois recolheu-se ao anonimato, e desde 2007, quando terá sofrido um acidente vacular cerebral, que vivia num lar na terra onde nasceu, Monroeville, encontrando-se física e metalmente debilitada, e aparentemente cega. Mesmo quando a advogada foi julgada em tribunal o silêncio de Harper Lee ter-se-á mantido, ainda que tenha deixado a mensagem de que este manuscrito era uma obra acabada e, mesmo que não estivesse ao nível do romance por que ficou mundialmente conhecida, era certamente uma obra digna de uma principiante. Nelle Harper Lee nasceu no dia 28 de Abril de 1926 em Monroeville, uma pequena cidade do Alabama, onde se tornou a melhor amiga de um rapaz que se mudou para lá aos quatro anos, após o divórcio dos pais. Harper Lee servirá de inspiração a esse mesmo rapaz, anos depois, para a personagem Idabel de Outras vozes, outros lugares, o romance de estreia de Truman Capote, enquanto este, por seu lado, será retratado como Dill, o vizinho e amigo da protagonista Scout, de Mataram a Cotovia, um rapaz baixo, de ombros largos, sempre presente nas brincadeiras de Scout e do irmão Jem. Quem viu os filmes Capote (2005) e Infame (2006), recordar-se-á de Nelle Harper Lee, a inseparável amiga de Truman Capote, representada, respectivamente, por Catherine Keener e Sandra Bullock. Nelle foi a mais nova de quatro irmãs, filhas de um advogado, cuja carreira terá começado com o polémico caso de defe-

sa de dois negros acusados de terem morto um comerciante branco, depois condenados a morte por enforcamento. Este caso real está de certa forma retratado na forma como Atticus Finch, o pai de Scout, também ele advogado, em Mataram a Cotovia, não hesitará em defender, perante o assombro e revolta de vizinhos e amigos, um negro acusado de violar uma jovem branca, ensinando aos filhos que nunca se devem render ao racismo ou a qualquer outro tipo de preconceito social. Esta situação irá ter um volte face curioso no segundo livro de Harper Lee, Vai e Põe uma Sentinela, onde o pai de Scout, agora com 26 anos e conhecida pelo nome próprio de Jean Louise, parece finalmente sucumbir também ele ao racismo, o que retrata as tensões raciais que se viviam nos anos 50. Em Vai e Põe uma Sentinela sente-se, efectivamente, esse

constante retorno à infância de Scout, o que parece justificar, de facto, que este livro tenha provocado a escrita de Mataram a Cotovia. Quando Jean Louise regressa à sua terra natal, pois vive agora em Nova Iorque (à semelhança da autora), para visitar o pai que está doente, existem constantes deambulações pelo passado da protagonista, por vezes através da narração de episódios subitamente relembrados, muitas vezes apenas em subtis alusões ou comparações entre o tempo da narrativa e o tempo da infância: «Os comboios haviam mudado desde a sua infância» (p. 11); «Havia vinte anos que não voltava àquela estação» (p. 14); «O tempo da escola havia sido o período mais infeliz da sua vida» (p. 36). A escrita é leve mas cuidada, e com um humor bastante peculiar, que parece advir da própria perspectiva e espírito irreveren-

te de Jean Louise: «Jean Louise, Jem e Dill ter-se-iam aborrecido de morte não fosse o reverendo Moorehead possuir um talento deslumbrante que fascinava as crianças: ciciava. Tinha um espaço entre os dois dentes da frente (Dill jurava que eram falsos e tinham sido feitos assim para os fazer parecer naturais) que produzia um som desgraçadamente divertido quando ele pronunciava uma palavra com um «s» ou mais. Perversão, Jesus, Cristo, salvação, sucesso eram palavras-chave que esperavam ouvir todas as noites, e a sua atenção era recompensada de duas formas: naquele tempo, nenhum pastor conseguia terminar um sermão sem as usar todas, o que

Harper Lee marcou a literatura norte-americana e anglófona

lhes garantia deliciosos paroxismos de riso abafado pelo menos sete vezes por noite; em segundo lugar, uma vez que prestavam uma atenção tão rigorosa ao reverendo, os três amigos foram considerados as crianças mais bem comportadas da congregação.» (p. 60-61). Publicado ou não com o consentimento da autora, que já não terá vivido o suficiente para colher os louros deste sucesso (a obra estava já no top de vendas da Amazon, seis meses ainda antes do seu lançamento); o estado de saúde da autora seria tão debilitante como se fazia crer?; este romance tem de facto qualidade literária para fazer jus à sua obra anterior que parecia fazer de Harper Lee autora de um único livro (apesar de ter escrito alguns contos e ensaios)? Esta não é uma obra de todo pacífica, dado o contexto em que surge e as questões que levanta, mas é certamente um romance meritório de ser lido, independentemente de se ler antes ou depois ou até mesmo de se ter lido ou não Mataram a Cotovia. É também uma obra que faz luz sobre o passado da protagonista, Jean Louise Finch (terá a sua infância e a educação que recebeu por parte do pai uma mentira?) e sobre o passado de uma nação dividida pelas tensões raciais que, afinal, não são um assunto arrumado, como ainda recentemente se pôde verificar a propósito da questãos dos Óscares.


Cultura.Sul

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Panorâmica

Festival Som Riscado: Criar! Implicar! Inovar!

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

Loulé prepara-se para receber, entre os dias 31 de Março e 3 de Abril, um novo festival que promete ser uma verdadeira pedrada nas mansas águas do panorama geral da cultura no Algarve. Dizer que o Festival Som Riscado - assim se chama a nova data que pretende marcar a agenda anual da cultura regional - é um festival que pretende unir a nova música portuguesa de cariz experimental e os universos da imagem e das artes visuais, é pouco, muito pouco, para definir o desafio que a Câmara de Loulé, presidida por Vítor Aleixo, quer lançar à região. 'Som riscado': um apelo à intervenção, uma provocação... mesmo uma afronta ao pensamento do espectador É verdade que o festival quer unir a nova música nacional de linha minimal, psicadélica e electrónica e o desenho, a pintura, o graffiti e o cinema, bem como, a esta mescla quer chamar a fotografia, a arte digital, a imagem animada e o design. Mas o ‘Som Riscado’ quer ser muito mais do que isso, quer ser um apelo à intervenção, uma provocação... mesmo uma afronta ao pensamento do espectador. Mais longe - depois da conversa do Cultura.Sul com Dália Paula, responsável pelo departamento de Cultura da Câmara de Loulé e uma das mentes por detrás de todo o festival - a verdade é que o ‘Som Riscado’ não quer espectadores tout court, quer em cada um dos que se deslocarem ao festival um verdadeiro interventor, um pensador, um deslumbrado activo e - porque não - um ‘fazedor de arte’ que não deixa por mãos alheias a interpretação e a definição do fenómeno cultural. Por detrás deste entendimento pouco usual do espectador está a ideia de que a cultura é um factor estratégico de desenvolvimento do concelho de Loulé e a consciencialização dos programadores culturais locais de que a política cultural deve assentar num entendimento do território e da população, que se faz ouvindo as pessoas do concelho “numa perspectiva que recusa traçar rumos com decisões top-down

fotos: ricardo claro

e, antes, se obriga a ouvir e a apostar numa construção horizontal e transversal das decisões no campo cultural”, refere Dália Paulo. O festival não pretende ser um programa cultural com data marcada, finito e fechado sobre si mesmo enquanto epifenómeno cultural. “O ‘Som Riscado’ é o ponto culminante de uma programação cultural que se fez e faz - e fará ouvindo a população louletana e percebendo quais são as suas necessidades, ao mesmo tempo que, numa perspectiva macro, se vê o que faz falta no panorama cultural regional, quer em termos de oferta, quer em termos de resposta aos diversos públicos-alvo”, refere a responsável autárquica. Um festival urbano para um público jovem e jovem adulto “Percebemos que quer em Loulé, quer na região, havia uma falta de resposta para os públicos jovem e jovem-adulto que integrasse o que de novo na região e no país se vai fazendo na área da nova música portuguesa e na exploração de inovadores conceitos no mundo das artes visuais”, refere Dália Paulo, que encontrou a resposta na proposta “de verdadeiros e inovadores diálogos entre artistas das artes performativas e das artes visuais e plásticas”, onde o desafio lançado aos artistas foi o de se unirem em parcerias para a criação de obras verdadeiramente únicas e - não

-se pela cidade de Loulé, terá o seu centro nevrálgico no Cine-Teatro Louletano, mas a intenção para esta edição zero é que se pulverize por espaços abertos e fechados em toda a cidade. “Este é um festival marcadamente urbano e jovem, mas que também terá programação para as famílias de jovens adultos com os seus respectivos filhos”, refere Dália Paulo, que não recusa - antes antecipa como provável - que o evento se espanda para além das fronteiras da cidade de Loulé em futuras edições. Com menos de 30 mil euros de orçamento o ‘Som Riscado’ quer ainda lançar pontes entre artistas e artes que fomentem a criação cultural de forma continuada a nível transversal nas geografias, unindo artistas regionais e nacionais e criando condições para que este palco alargado seja uma plataforma de lançamento da produção cultural do Algarve para o mainstream nacional. 'Maravilhem-se, impliquem-se e inquietem-se'

Dália Paulo, a responsável pela programação do festival poucas vezes - irrepetíveis. Implicar o espectador Este é um dos aspectos inovado-

O Cine-Teatro Louletano é o epicentro do Festival Som Riscado, previsto para se espalhar pela cidade

res do festival que importa realçar, mas não é o único. A ideia da equipa de programação do ‘Som Riscado’ é a de que o espectador deve ser implicado em todo o festival, mais do que assistir, deve propor, questionar, desafiar e participar no fenómeno cultural. Um verdadeiro desafio a quem assiste às performances ou vê as exposições ou ouve os concertos durante este festival. “Começámos a fazer este caminho de implicar o público desde 2014 e apostámos nele em 2015 e 2016, para que a programação cultural do concelho seja o reflexo dos seus destinatários, que nela participam desde o início, e que culmina com este primeiro festival, que funciona como a cereja no topo do bolo deste percurso”, diz Dália Paulo. “É este processo de audição da população que nos faz acreditar que o ‘Som Riscado’, formatado como foi para implicar os públicos, trará consistência e coerência a uma oferta cultural que estava em falta na região”. A partir do Cine-Teatro Louletano num verdadeiro espectáculo constante pulverizado por toda a cidade O festival, que promete espalhar-

“Maravilhem-se, impliquem-se e inquietem-se” é a proposta - nada pouco ambiciosa - que Dália Paulo faz ao público na apresentação deste novo festival, que une conferências a exposições, música a projecções, instalações e leitura entre tantos outras propostas, numa programação que junta nomes como Marum Nascimento, Milita Doré, Susana de Medeiros, Menau, Vasco Célio, Carlos Barretto, João Frade, Simão Costa, Yola Pinto, Holy Nothing e Rui Monteiro, entre muitos outros. Uma aposta na sustentabilidade Tudo isto para um primeiro festival que não se esgota com o cair do pano e que promete manter-se vivo ao longo de toda a programação cultural de Loulé durante o ano, criando condições para uma “aposta sustentável na criação artística local e regional e no cruzamento desta com o todo nacional”, de forma a criar não só produtos culturais inovadores como públicos novos e implicados na vida cultural que os envolve”, refere Dália Paulo. Quatro dias de artes várias e casamentos improváveis prometem assim animar Loulé enquanto ameaçam provocar o verdadeiro arrepio do som riscado nas consciências de quem se atrever a passar por Loulé a partir de 31 de Março. Implique-se, vai ver que emoção é participar em alternativa a, simplesmente, assistir. Há propostas assim!


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Cultura.Sul

Artes visuais

A fotografia é arte visual?

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Em termos de fotografia artística, e inclusivamente das relações entre a fotografia e a pintura na primeira metade do século XX, destaca-se o trabalho de Francis Picabia, considerando este que a fotografia pode ajudar o artista a desenvolver a sua imaginação sobre o que vai efetivamente pintar. Como exemplo, pintou o quadro “Femmes au Bulldog” (1940/41) a partir de uma fotografia retirada de uma revista pornográfica “Mon Paris” (1936), mas transformou os elementos decorativos do original, sendo substituídos por um cão e por uma segunda mulher. Segundo o próprio, “o pintor escolhe um motivo, depois imita o que escolheu e, por fim, deforma-o. É aqui que o artista se encontra”. No que concerne a artistas que na primeira metade do século XX tiveram um contributo importante para o desenvolvimento da fotografia como expressão artística destaca-se ainda Man Ray. Este viveu nos EUA, encontrando em Marcel Duchamp o principal “aliado” para as suas ex-

periências fotográficas entre outras iniciativas conjuntas, como o terem fundado a revista New York Dada. No entanto, não encontrou nos EUA o reconhecimento pretendido, pelo que partiu para Paris, em 1921, considerando que “só a capital francesa estava madura para compreender o seu espírito profundamente impregnado de dadaismo” (cit. em Heiting, 2008, 14). Parece que aqui encontrou o pretendido reconhecimento do seu trabalho, tendo conhecido Picasso e Braque, entre outros artistas, e desenvolvido a fotografia artística, utilizando várias técnicas de manipulação fotográfica, como a dupla exposição e a solarização, sendo até considerado que “em resumo, Man Ray criou a fotografia surrealista” (Heiting, 2008). Uma das suas fotografias mais conhecidas é “Le Violon d’Ingres” (1924), em que desenhou nas costas de uma modelo os símbolos que costumam encontrar-se desenhados nos violinos, estabelecendo as semelhanças entre o corpo da mulher e um violino. É curioso que Man Ray trabalhou como fotógrafo para financiar a pintura e, com a nova atividade, desenvolveu a raiografia (1922), criando imagens abstratas, obtidas sem o auxílio da câmara, mas sim com a exposição à luz de objetos previamente dispersos sobre o papel fotográfico, deixando nestes a marca da sua sombra. Era claramente um artista multidisciplinar, diferenciando o seu trabalho na fotografia e na pintura, ao afirmar

fotos: d.r.

Fotografia ‘Le Violon d’Ingres’, de Man Ray (1924) o seguinte: «em lugar de pintar pessoas, comecei a fotografá-las, e desisti de pintar retratos ou melhor, se pintava um retrato, não me interessava em ficar parecido. Finalmente conclui que não havia comparação entre as duas coisas, fotografia e pintura. Pinto o que não pode ser fotografado, algo surgido da imaginação, ou um sonho, ou um impulso do subconsciente. Fotografo as coisas que não quero pintar, coisas que já existem” (cit. em Heiting, 2008). Os contributos de Man Ray alargaram-se inclusivamente ao cinema, ten-

AGENDAR

Fotografia ‘Sem título #96’, de Cindy Sherman (1981) “PORTUGALIDADE” 4 MAR | 22.00 | Cine-Teatro Louletano O maestro António Victorino d’Almeida apresenta uma conferência-concerto juntamente com Miguel Leite (antigo aluno do maestro), numa digressão que assinala o seu 75º aniversário

do produzido em particular o filme surrealista “L’Étoile de Mer” (1928), com o auxílio de uma técnica chamada solarização, pela qual inverte parcialmente os tons da fotografia. Um outro artista cujo trabalho marcou simultaneamente a his-

tória da pintura, da fotografia e do cinema, mas já no início da segunda metade do século XX, foi Andy Warhol, inserido no movimento Pop Art. Este surgiu nos EUA, em finais dos anos 50, procurando constituir uma alternativa à produção artística desenvolvida na Europa, em particular Paris. Associado ao movimento da “cultura pop”, este movimento procurou trazer para o meio artístico temas do quotidiano, permitindo que, não só a cultura popular se tenha tornado um tema da arte, como também que a arte se tenha tornado parte integrante da cultura popular. Warhol também apresentou alguns contributos ao nível do cinema. Por exemplo, em “Sleep” (1963), este artista até expressa alguma relação com os pressupostos do movimento futurista, ao procurar explorar a gestão do tempo através do vídeo, pois este permitiria aumentar ou diminuir a velocidade comparativamente à realidade. O elevado valor financeiro com que as fotos de alguns artistas são transacionadas na atualidade em leilões de arte contemporânea também expressa o reconhecimento da fotografia como forma de arte. Uma das artistas que mais se destaca a este nível é Cindy

Fotografia ‘Sem título #153’, de Cindy Sherman (1985)

Sherman, sendo suas duas das dez fotografias mais caras vendidas desde sempre, “Sem título #153” (1985) e “Sem título #96” (1981). Esta última foi transacionada por 3,89 milhões de dólares, em 2011. Cindy Sherman centra-se fundamentalmente no auto-retrato, procurando levantar questões sobre o papel da mulher na sociedade. Curiosamente, a própria refere que terá abandonado a pintura, na sua formação superior em artes visuais, e se terá começado a dedicar à fotografia, por na pintura se limitar a copiar a arte de outros pintores. Nesta análise das relações entre a fotografia e a pintura, convém ainda salientar os trabalhos produzidos no âmbito do fotorealismo, desenvolvidos a partir dos anos 60. Os fotorealistas copiavam meticulosamente, em pintura, motivos projetados na parede por um projetor de diapositivos. Seria assim um novo tipo de realismo, uma representação da representação, sendo a máquina fotográfica o instrumento intermediário entre a realidade e o artista. Seria a fotografia que constituía a realidade, pois era sobre ela que os pintores realizavam os seus trabalhos. Na sequência do fotorealismo, desenvolveu-se o hiperrealismo, em que as obras representadas, pinturas ou esculturas, são realizadas a partir de imagens fotográficas, no caso da pintura, ou de figuras reais, no caso da escultura. Como o próprio nome indica, é uma realidade levada ao extremo e, para isso, é trabalhada a partir da imagem fotográfica. Tendo uma base fotográfica, o resultado final é, no entanto, mais complexo e subjetivo, criando a ilusão de uma nova realidade não presente na fotografia original, a chamada simulação da realidade. Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigoencontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)

“TRADIÇÕES DE PÁSCOA” Até 2 ABR | Posto Municipal de Exposições de Lagos Exposição de Timo e Elisabeth Dillner alusiva à Páscoa, com uma mostra de ovos coloridos artesanais típicos de vários países como França, Bélgica, Alemanha (da coleção Schnorr) e Países Baixos


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Momento

«A tempestade cai sobre a cidade» Foto de Ana Omelete

Espaço ALFA

A imortalidade da fotografia a preto e branco

Marco Pedro

Membro da ALFA

Desde o século XIX, uma das grandes ambições na fotografia era conseguir captar imagens coloridas, tal qual eram observadas. Para cumprir o objetivo, vários foram os estudos e experiências efetuadas, sendo que a primeira fotografia colorida foi captada em 1861, pelo físico James Clerk Maxwell. Mas, apenas em 1935 surgiu o primeiro filme colorido “Kodachrome”, o qual, após melhoramentos, revolucionou o mercado e incentivou outras marcas a apostar nesta área, permitindo a massificação da fotografia colorida, a partir da década de 1960. A massificação da fotogra-

fia colorida levou a que muitos fotógrafos e meios de comunicação vaticinassem o fim da fotografia a preto e branco. Várias foram as publicações mundiais que passaram apenas a utilizar registos coloridos, afastando os fotojornalistas do registo preto e branco, visto como algo fora da realidade. Porém, muitos fotógrafos não adotaram o “corte radical” com a fotografia a preto e branco, continuando a produzir trabalhos de autor, apreciados internacionalmente. Ao longo dos últimos anos, o registo fotográfico preto e branco passou a ser visto como uma forma de expressão artística de grande impacto, capaz de transmitir as emoções que estão por detrás das imagens. Sendo este tipo de imagem uma abstração da realidade, o que faz dela algo magnífico é a capacidade que o fotógrafo tem de produzir um bom enquadramento, que possa contar uma história e despertar sentimentos, sem que seja necessário o re-

curso a texto, com uma boa utilização da escala de cinzas, jogando com o contras-

te da imagem. Hoje, já na era digital, a fotografia a preto e branco afirmou-se e é idola-

trada, existindo no mercado várias soluções para tratamento digital que permitem

simular o “velhinho” efeito do grão-de-filme, imortalizando o uso desta técnica secular.


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Sala de leitura

Amália ao sul

In memoriam João Belchior Viegas À Teresa Oliveira e ao Gonçalo Couceiro d.r.

Paulo Pires

Programador cultural no Município de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

“Na brancura da cal o traço azul / Alentejo é a última utopia. // Todas as aves partem para o sul / todas as aves: como a poesia”, escreveu Manuel Alegre. Amália também sentiu este apelo inebriante do sul, talvez impelida pelo seu espírito de cigana-andarilha e bicho-do-mato (como gostava de se definir), talvez para se lavar de desencontro e poeira num lugar, renovador, onde a luz cai a direito (como diria Sophia). Ávida de horizontes largos e da comunhão despreocupada com as coisas mais simples, a afinidade com o mistério da imensidão alentejana já morava em si: “A primeira vez que fui ao Alentejo era muito nova e tive uma sensação de liberdade. E aquele espaço todo sem fim à vista. O Alentejo é um sítio onde uma pessoa vê mais do que aquilo que pode ver.” E depois havia o mar, motivo poético que cantou nos palcos do mundo e que redescobriu nos encantos da então virginal costa alentejana, e que para Amália foi sempre sinónimo de força e de ânsia de libertação. “Gostar do mar foi talvez uma necessidade”, diria mesmo, e imaginava frequentemente, como reza certo cancioneiro alentejano, “que o mar se transform[ava] em rosas / e o seu barco num jardim”. Daí ter pintado, pela sua mão, flores de todas as cores nas paredes voltadas para o mar da sua casa no Brejão, na freguesia de S. Teotónio (concelho de Odemira), onde escondia e exorcizava a inescapável solidão – de muitos anos a arrastar o amor das multidões – e a desilusão – de quem não tinha saudade do passado nem esperança no futuro –, numa espécie de fortaleza que era também um porto de abrigo. Como confidenciava o João Belchior Viegas – amigo, cúmplice e empresário, sempre invisível e decisivo, de Amália entre 1965 e 1992, o qual

Uma outra Amália, (re)ligada à terra e aos encantos do sul conheci em 2002 em S. Brás de Alportel (onde passou a viver após sair de Lisboa) e com quem partilhei longas horas daquelas conversas que permanecem dentro de nós para a vida toda –, ela procurava os campos de Odeceixe e lá, sim, sentia-se contente por estar viva, excitando-se com os prados repletos de malmequeres e comovendo-se com as cores garridas e contrastantes, como que embriagada pelo cheiro da esteva. Consultaria até um psicanalista por causa da sua paixão pelas flores, com quem falava amiúde e ralhava quando não abriam ou cresciam como desejava. Os seus amigos, aliás, também eram aqueles que consigo se aventuravam a cortar ramagens e flores em muros de casas particulares em Lisboa. Quando eram surpreendidos pelos proprietários, Amália lançava o xaile à cabeça e fugia a rir. Apesar de a Câmara Municipal lhe ter começado a remeter ramos de flores regularmente para a poupar ao cansaço das jardinagens clandestinas, a fadista nunca abdicou desse vital divertimento. Um dia, quando questionada sobre as suas virtudes, Amália diria mesmo que as suas maiores qualidades eram cheirar com o seu nariz, ver com os seus olhos, apalpar com os seus dedos, crer em Deus – à sua maneira, sem esperança no céu nem medo do infer-

no (curiosamente, a palavra “Amália” significa em árabe “trabalho de Deus”) – e não ter ambição. A descoberta, em 1962, dos paradisíacos nove hectares de terra junto à praia da Seiceira no Brejão veio no seguimento de uma década de intensa projecção internacional para Amália, a qual culminou, em 1959, com a eleição como uma das quatro melhores cantoras do mundo (a par de Édith Piaf, Judy Garland e Lena Horne) pela prestigiada revista norte-americana Variety. Não obstante, Amália faria um ano sabático, ausentando-se dos olhares públicos entre 1960 e 1961, vindo a casar neste último ano com o engenheiro César Seabra no Rio de Janeiro. Apesar de ter anunciado que iria abandonar a carreira artística passando a viver no Brasil, a paixão pelo chão pátrio e por um povo-fa(da)do que a entendia falariam mais alto, e em 1962 Amália regressa a Lisboa, ano em que conhece Alain Oulman na Ericeira (este mostra-lhe inicialmente o poema “Vagamundo”, de Luís de Macedo) e com quem enceta uma inspiradora colaboração que irá ser decisiva para o seu futuro percurso, levando-a a explorar novos e ousados territórios musicais estranhos até então ao fado clássico: “Eu estava à espera daquela música [de Oulman]. Não é que estivesse à espera, mas a minha

maneira de cantar estava à espera daquilo.” O ano de 1962 é, assim, duplamente estimulante para Amália: nova etapa musical em que o fado atingirá voos mais altos de arrojo e reinvenção (patentes logo no célebre EP “Amália Rodrigues”, mais conhecido como “Busto” ou “Asas fechadas”) e a descoberta de um singular refúgio a sul. Num descapotável verde prateado, de estilo americano, conduzido por um motorista, Amália chegou ao Brejão com César Seabra, recém-casados, e ter-lhe-á dito “Já não saio mais daqui”, adquirindo uma herdade junto à falésia a Jacome Pacheco, pai do actual dono do Café Central da pacata povoação, pela quantia de 300 contos. Terminava assim o périplo exploratório da fadista pela costa alentejana (de Lisboa a Sagres), em busca de distância e resguardo relativamente aos holofotes da fama. O marido de Amália idealizaria então para esse espaço um projecto de vivenda para férias, com linhas modernas e privilegiando o conforto, bem como um acesso (ainda estão lá os degraus que Amália tantas vezes pisou) ao pequeno areal da praia que ficaria conhecida como a “Praia da Amália”. Uma casa sem luz nem telefone, “simplesmente” um sítio onde pendurar o chapéu, um “lugar sem deve nem haver”,

onde Amália encontrou “um modo de calar e um falar claro / um olhar cara a cara e frente a frente / um viver devagar que tudo é raro / e único e só assim urgente” (Manuel Alegre, sobre o Alentejo). A ligação apaixonada e cúmplice de Amália com aquele lugar mágico de finisterra e suas gentes terá sido uma das obras-primas da sua vida: desde as idas regulares ao Café Central, em jeito de ritual, onde pedia sempre a sala de dentro e uma mesa específica, escolhendo invariavelmente peixe (sobretudo dourada), ou das sardinhas assadas na brasa com que gostava de receber os amigos em sua casa, até à cúmplice amizade com Francisca Efigénia (a “Xica”), a quem escreveu uma dedicatória numa fotografia que dizia “Para a minha amiga Xica que sabe tanto de pesca que até me pescou a mim” e com quem passava longe serões a ver filmes do Fred Astaire ou a devorar livros de cowboys alugados numa loja de S. Teotónio, passando ainda pela original sinalização em forma de malmequer (que resistiu à voragem do tempo e lá permanece) que mandou colocar na entrada do caminho de terra batida que dá acesso à sua herdade, pelas flores de todas as cores que pintou, com as suas próprias mãos, no muro branco de entrada (infelizmente hoje apagadas), pelos porcos

que ficava a mirar de longe e que baptizava com nomes próprios portugueses (António, Joaquim, etc.), ou até pela sincera e esforçada tentativa, ainda que quase sempre desajeitada, de ajudar o caseiro da quinta a plantar batatas. Ao sul, num Alentejo que desnuda e recentra, onde se vive rente à terra e rente à pele, acredito que Amália pôde evadir-se, esquecer-se e regressar àquela frescura das coisas vegetais e ao grande vento límpido do mar que Sophia sublimemente cantou nos seus versos. A sua atracção pelos lugares de fronteira e abismo – talvez porque “todos os amantes são raianos / como os ciganos de passagem” e seu “amor é de bala e desafio” (novamente Alegre); e o Belchior falava-me tanto do seu fascínio por Sagres – levou assim Amália a esse lugar-destino de liberdade e solidão, como que sentada à beira do mundo, o qual se foi mitificando no imaginário colectivo, ainda mais após a sua morte no Outono de 1999. A sua memória espiritual ficou indelevelmente impressa naquela paisagem recôndita e selvagem, naquela falésia onde se abre um admirável mundo novo ao olhar – tal como Amália nos abriu novos horizontes de ouvir e de sentir com o seu fado feito de singular intuição e verdade natural. Numa entrevista a Inês Pedrosa dois anos antes da sua morte, Amália reiterava a ideia de que andara toda a vida a não viver a sua vida, de que não fizera a sua vida, fizeram-na. E de que continuava a não saber o que é a felicidade, até porque “não se pode meter uma vida toda numa palavra”. Mas a sul ela terá pintado de muitas tonalidades e matizes esse denso preto que dizia ser, excessivamente, a cor do seu feitio e da sua vida inteira – essa cor que para si não era necessariamente triste: “Tenho muitas alegrias através da cor preta. Às vezes, por isso, é como se fosse encarnado.” Gosto de pensar que Amália encontrou nos trilhos e areais além-Tejo, entre a serenidade criadora dos campos e o ímpeto fremente e inquietante das águas atlânticas, uma (ambígua, misteriosa) alegria que advém de uma tristeza à qual não faltou pecado nenhum. (continua na próxima edição)


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O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Março

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Melhor ao sol fotos: d.r.

Olho no céu desta manhã de ainda inverno, a instabilidade que o ar tem vindo a produzir por estes dias apresentando-se em termos de nuvens cumuliformes, mas um melómano com um pouco de sorte encontra facilmente na internet, uma canção apropriada para se reafirmar no desejo da cláusula de que as pessoas ficam sempre melhor ao sol…

vida e obra, o poeta Manuel Madeira, até à estreante Adília César, que já aqui publicámos. Do primeiro saiu «Para Decifração do Caos» e da segunda «o que se ergue do fogo». Na colecção Lua Cheia já tinham saído simultaneamente em 2015 os sugestivos títulos «artrozes, nozes e vozes (com)sentidas» e « Curt’os Contos», de Gabriela Rocha Martins e Paulo Moreira respectivamente. Destaque ainda para os mais recentes livros dos autores Fernando Cabrita - «Meditação em Novembro», e Vítor Gil Cardeira com «Escaras» (ambos na colecção Meia Lua-parte II). E acabadinho de sair «Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido» de Luís Ene, com texto abaixo: Estava a escrever quando ouviu um arranhar quase imperceptível na porta do quarto; levantou o olhar como à procura de uma palavra ou de uma ideia, o que fazia muitas vezes, e continuou a escrever. Voltou a ouvir o arranhar e parou de escrever, mas toda a sua atenção estava dirigida para aquilo que escrevia. Faltava qualquer coisa. Assim não dava! Não conseguia terminar a história. E de novo o arranhar. Olhou para a porta e depois para o ecrã. Parecia que ia recomeçar a escrever, mas depois levantou-se e foi abrir a porta. E é assim que finalmente o gato Benevides consegue entrar nesta história e acabá-la de uma vez por todas com alguma dignidade.

Meditar em Azul

Lua de Marfim

Assim se descobrem novos mundos, mesmo esses, os interiores que os há sempre por descobrir ou revisitar nessa meditativa extensão.

‘Escandinávia Bar’

xões, workshops, instalações e performances, entre 31 de Março e 3 de Abril. Em iniciativa promovida pela Câmara de Loulé, com um forte envolvimento da equipa do Cine-Teatro, pretende fomentar cruzamentos e diálogos criativos entre a nova música portuguesa mais experimental e o universo da imagem e das diferentes correntes de artes visuais. A programação poderá ser consultada nos sites da organização.

Jam – A – Lyrica

No último álbum de originais, ‘Galinhas do Mato’, no qual, devido ao seu estado de saúde, não consegue interpretar todas as músicas previstas, apenas duas das canções, sendo uma ‘Escandinávia Bar’, dedicatória à conhecida casa que o autor frequentava na Fuzeta, com a mulher Zélia. O disco foi completado por José Mário Branco, Helena Vieira, Fausto e Luís Represas. José Afonso acabaria por falecer a 23 de Fevereiro de 1987, em Setúbal, outra terra de pescadores, deixando um cancioneiro inigualável.

Som Riscado

É… quando as palavras se encontram com a música. Tânia Silva e Paulo Moreira, actores da ACTA, e o músico Zé Eduardo, referência internacional do jazz, servem ao público, de um modo original, poemas de seis autores contemporâneos, todos a viver no Algarve: Adão Contreiras, Adília César, Fernando Esteves Pinto, Maria Luísa Francisco, Miguel Godinho, Vítor Gil Cardeira. O espectáculo surgiu de uma ideia inicial do escritor e editor Fernando Esteves Pinto e é uma produção da Associação Grémio das Músicas. A apresentação ao público do projecto será no Dia Mundial da Poesia – 21 de Março, às 21h30, na Biblioteca Municipal de Faro António Ramos Rosa. Ou poderão tentar entrada na ante-estreia de dia 12, no Clube Farense.

Barquinho

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No último trimestre, esta editora de Lisboa tem sido a casa de diversos escritores algarvios, desde o recentemente homenageado pela sua

Virando costas ao agreste vento de norte que teima em arrefecer os dias, deparamos forçosamente com esse imenso mar a sul. Impondo-se na paisagem de costa. Impossível desviar o olhar. E ignorar como mexe com os sentidos. “BIOCO” Até 2 ABR | Museu Municipal de Loulé A paixão pela tradição e pela nossa identidade levou a Bioco Tradition a recriar esta peça com design, adaptando-a à mulher actual

É pelo menos arriscado fazer um festival de som em Loulé, que não é só feito de concertos. Mas terá também exposições, debates e refle-

Na tarde de chuva, há uma folha branca de papel sempre pronta a dobrar-se, até formar um pequeno barco. Pode pintar-se, batizá-lo até, e porque não colocar-lhe uma mensagem de esperança, desde um país quase triste. Depois vai ser lançado suavemente nas águas de um rio ali à mão. Mesmo sem se saber onde chegará nesta odisseia. Sequer, encontrará ele água salgada que não a das lágrimas de um povo antigo.

“OBRAS NARRATIVAS” Até 1 MAI | Museu Municipal Dr. José Formosinho - Lagos Eduarda Coutinho apresenta uma exposição simultaneamente literária e artística, com nove obras de espaços e tempo divergentes, mas ainda assim interligadas entre si


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Cultura.Sul

Espaço ao Património

Ficha Técnica:

A Rede AZUL – uma rede de Teatros para o Algarve

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro

d.r.

Dália Paulo

Diretora de Departamento de Desenvolvimento Humano e Coesão da Câmara Municipal de Loulé

Nos finais da década de 90, inícios dos anos 2000 foi pensada (e nunca concretizada) uma rede de Teatros e Cine-Teatros para Portugal. Os dois últimos quadros comunitários permitiram a recuperação e a construção de uma “rede” de equipamentos que nunca vieram a funcionar em rede. Construídos os equipamentos, as equipas ficaram sem rede e foram construindo o caminho que culminou, em alguns casos, com a constituição de redes regionais ou de programação, como é o caso da Artemrede (2005), a rede de programação Cinco Sentidos (2009) ou a rede informal CIRA - Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (2013). Na região do Algarve, cinco municípios do Algarve Central – Faro, Loulé, Olhão, Tavira e Albufeira – no âmbito da candidatura (2009) “Rede de Equipamentos Culturais – Programação Cultural em Rede”, apoiada pelo QRENPO Algarve21, promoveram o programa Movimenta-te - Trajectórias de Programação Cultural em Rede (20112012), de criação, produção e programação em rede. Uma experiência muito enriquecedora para as equipas que, pela primeira vez, começaram a construir uma rede, a pensar o território e a criar sinergias entre as equipas. Uma experiência que permitiu ser complementar, ganhar escala e criar “novas” experiências de trabalhar com o público, “ouvir” o território, tendo algumas das propostas programáticas permitido ao público fazer parte e estar em palco; implicando-o na acção desmistificou pré-conceitos e criou afetos com os espaços. O Movimenta-te derrubou barreiras, criou públicos mas esfumou-se com o fim do financiamento comunitário e o trabalho em rede terminou.

Joaquim Guerreiro

Diretor delegado do Teatro Municipal de Faro

Conscientes de que a Cultura deve estar no centro da política de desenvolvimento da região e que para isso se tornar uma realidade o trabalho em rede é fundamental, os profissionais dos equipamentos culturais – teatros, cine-teatros e auditórios – (re)iniciaram o caminho (janeiro de 2014) de trabalho em rede. Durante dois anos fez-se o diagnóstico das potencialidades e carências da região, criaram-se laços de confiança interpares, perspectivou-se o futuro do trabalho em rede, criaram-se os documentos “fundadores” da rede AZUL, rede de Teatros do Algarve e apresentou-se, num momento inicial, a proposta às instituições regionais – Direção Regional de Cultura do Algarve, Universidade do Algarve, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, Região de Turismo do Algarve e Comunidade Intermunicipal da Região do Algarve. Comummente identificadas, a rede AZUL elencou as principais debilidades na área das artes performativas no Algarve: a fixação de criadores na região; o apoio à criação; a debilidade do

Apresentação da rede AZUL apoio por parte do Estado às estruturas da região; uma programação pouco consistente dos equipamentos culturais; a quase ausência de itinerância das estruturas de cariz amador pela região e a carência de recursos humanos dos equipamentos culturais. Nesse sentido, a rede AZUL definiu a sua missão: “programar e apoiar a produção cultural regional, tendo em vista a circulação artística na região, rentabilizando as infraestruturas existentes e reforçando a oferta cultural regional, assim como permitir receber no Algarve produções nacionais e internacionais”, bem como os seus objectivos principais: promover a identidade cultural regional; apoiar a criação pelos agentes culturais locais; aumentar o acesso e fruição às artes; valorizar a oferta cultural da região; criar economias de escala na aquisição

de espetáculos; apoiar a circulação dos agentes culturais locais pelos espaços da rede. Para a concretização destes objectivos, a rede definiu três eixos de atuação: apoio à criação; programação em rede e formação, os quais foram elencados a 9 de janeiro de 2016, aquando da apresentação pública da Rede AZUL, composta, nesta fase inicial, por 11 parceiros: Albufeira, Faro, Lagoa, Lagos, Loulé, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Silves, Tavira e Vila Real de Santo António. No eixo do Apoio à Criação, foi aberto um Convite à criação (terminou a 28 de fevereiro) que se destinou a “Associações culturais sem fins lucrativos de cariz amador e com personalidade jurídica, sediados no Algarve” e que contou com o apoio da Direção Regional de Cultura do Algarve, tendo envolvido 10 dos 11 parceiros.

O logótipo da nova rede algarvia na área da Cultura

No eixo da programação em rede está a ser desenvolvido um programa na área educativa, direcionado para o público escolar, a principiar no ano lectivo 2016/2017. Iniciou-se, ainda, a partilha da programação dos parceiros, assim como a possibilidade de realização de uma programação temática anual. Por outro lado, os parceiros vão disponibilizar uma “ficha de itinerância” para que as estruturas possam apresentar a sua proposta artística à AZUL. Comprometeram-se, ainda, a trabalhar a itinerância das estruturas sediadas na região, como forma destas irem densificando as suas propostas. No eixo da formação a AZUL pretende qualificar as equipas técnicas dos equipamentos culturais da rede, quer através de formação externa, quer através de formação entre parceiros. Neste eixo prevê-se, igualmente, a formação dirigida às estruturas de cariz amador da região. Como afirmou o poeta António Machado “ao andar faz-se o caminho”, e este é o grande desafio da rede AZUL: construir um caminho coerente, consistente, complementar e resiliente que vise contribuir para o aumento da criação regional e da qualificação da oferta cultural regional, alicerçada numa visão estratégica de desenvolvimento regional que coloque a Cultura no centro da agenda política regional e numa necessidade para as pessoas.

Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Momento: Ana Omelete • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Dália Paulo Joaquim Guerreiro Marco Pedro Petra Martins Rui Parreira Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 7.535 exemplares


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Retrato de Rapaz, de Mário Cláudio foto: d.r.

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

Passei os olhos pelas estantes e reparei num conjunto de livros, deitados (e não na vertical como os outros dessa prateleira, que é como eu os ponho quando me falta espaço numa qualquer letra, o C, neste caso). Não eram muitos (apenas 9, num universo bem mais extenso). Entortei a cabeça, para ler os títulos, e lá estava o nome de Mário Cláudio, autor sobre o qual aqui nunca tinha escrito. A cor da lombada de um deles, em bordeaux, com letras brancas, destacava-se das outras (brancas ou pretas) e eu lembrava-me bem do livro, lido recentemente (2014): Retrato de Rapaz. A identidade

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Mário Cláudio é o pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa. Durante algum tempo não soube disso, apesar do primeiro livro que comprei dele, em 1992, Tocata para Dois Clarins, ter um pendor autobiográfico (que eu na altura não soube – não devia ter lido nenhuma crítica sobre o assunto) e as últimas palavras daquela novela serem «Rui Manuel». A ideia de um autor que usa pseudónimo sempre me despertou curiosidade, imaginando as razões que poderiam subjazer ao facto (no caso de Mário Cláudio, foi por razões pragmáticas, para que o, então, recém-advogado não fosse confundido com o escritor). Mas mais curiosidade tive quando surgiu, em 2011, Tiago Veiga, uma biografia. Terá Tiago Veiga existido? Será um novo pseudónimo? Ou será um heterónimo? Mário Cláudio não quis ser explícito nas respostas que foi dando a estas perguntas, mas numa entrevista à revista LER, declarou: «Como figura de ficção,

Mário Cláudio foi premiado pelo romance 'Retrato de Rapaz' Tiago Veiga tem de ser respeitado por razões de afecto. Explico-lhe porquê: uma das maiores deceções que tive foi quando os meus pais me disseram que o Pai Natal não existia. Estava farto de saber mas não queria confrontar essa verdade. Fiquei completamente devastado. Não quero devastar ninguém». Biografias É notório que muitos dos seus livros são de biografias. Uns por encomenda (como foi o caso de Amadeo, a pedido de Vasco Graça Moura), outros, porque encontrou nas vidas dos biografados razões para isso. Numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, à revista Selecções do Reader’s Digest, afirmou: «Quando vejo uma figura biografável, sinto que, de alguma forma, essa figura me chamou. É mais uma possessão de uma figura que exige que eu a biografe do que propriamente uma busca minha. São figuras que têm alguma coisa a ver comigo, mesmo que a afinidade se manifeste por um lado mais negativo. A única coisa que depois respeito é a cronologia. Faço uma psicobiogra-

fia, uma incursão pela personalidade da pessoa, pelas atmosferas a que esteve ligada, muito mais que pelos factos verificáveis». «Um discípulo no estúdio de Leonardo da Vinci» Este livro não é uma biografia de Leonardo da Vinci, que é nomeado, frequentemente, apenas por «o Homem». Um narrador omnisciente acompanha o rapaz que dá o título ao livro, cujo pai o entregou ao mestre para ser um criadito para varrer a oficina, mas que, dada a sua natureza conquistou o grande pintor e tornou-se um dos seus aprendizes mais chegados. E é essa natureza que é explorada na obra (139 páginas), onde ele é tratado por ganapo, moço, mocito, catraio, pequeno, miúdo, gaiato (nomes exemplificativos, retirados apenas das pp. 21-24). Por vontade de agradar ao amo ou por vontade de chocar os outros, o rapaz vive, desde cedo, no exagero e no desregramento. Quando toda a oficina se esmera por contribuir para a construção do modelo do gigantesco cavalo encomendado por Ludovico

“DESCORTINAR” Até 30 ABR | Galeria do Convento do Espírito Santo - Loulé Tata Regala apresenta um estudo fotográfico sobre o conceito de retrato, onde as palavras vestem e desnudam

Sforza para homenagear o seu pai, «o ganapo, levado pelo inconsciente afã de reconquistar as boas graças do amo, assumindo uma natureza equestre, manifestada em trotes e galopes, em relinchos, em violentos bufos das narinas, e nesse gemido plangente, comum aos cães, que denota a queixa, a súplica, ou a declaração de amor. O próprio construtor do cavalo deliciava-se com tais entremezes, e dir-se-ia estimulá-los até, isto como se o catraio o apoiasse no devaneio em que andava, e no engenho que punha na concretização dos seus artefactos» (p.26). Quando cresceu, aprimorou as suas qualidades de ladrão, manipulador, fanfarrão, abusador, sempre com a complacência do artista. Amante? Pai? Irmão? A relação entre os dois não é explicitada, mas deixa-nos pistas da cumplicidade que sempre os uniu. Anos depois, quando a idade já não lhe permitia ser chamado pelos nomes que antes o descreviam, pois mantinha, paradoxalmente, a malandrice e ingenuidade da quase infância, o narrador anexa expressões

ou adjetivos para o descrever: é chamado de «o moço de outrora» (p.116), «o pretérito rapaz» (p.120), «o antigo jovem», «o adolescente perpétuo» (p.121), ou «o jovem de antanho» (p.128). Um outro nome pelo qual é tratado no texto é «Salai», alcunha por que o aprendiz era chamado por Leonardo, insinuando que o moço era um «‘diabinho’, e em que se reconhecia a sua natureza de ‘ladrão’ e ‘mentiroso’, de ‘teimoso’ e ‘glutão’, conforme o amo o caracterizava» (p.37). Durante muito tempo foi conhecido como Andrea Salaino, até que no séc. XX o seu nome foi recuperado: Gian Giacomo Caprotti, chamado de Salai. Leonardo parece passar flutuante, pouco definido, pela narrativa. Quando está a morrer, é isso que se observa nele: «Um nevoeiro pairava nos olhos do génio, igual ao que torna irresistível de compaixão a mirada dos cães moribundos. E nisso via o aprendiz a velatura que desde sempre cobrira rostos e

paisagens do pintor». Mas, na verdade, é Leonardo que constrói Salai, como se cria uma obra, tirando aqui, acrescentando ali, permitindo isto, não recriminando aquilo, castigando aqueloutro. Ao perceber os suspiros finais do mestre, o rapaz «Fugiu por fim à morte que invadia o que lhe talhara a vida, não como desistem os covardes que não podem amar, mas como escolhem os heróis que entregam o coração para além da caducidade dos dias» (p.130). Alguns desenhos de Leonardo e de Salai ilustram o livro, não apenas para distração ou instrução do leitor, mas justificados pela narrativa, que os enquadra no momento da sua criação. A linguagem usada, algo arcaizante, contribui para nos cercar num clima de sfumati, como a pintura do mestre, suavizando a brutalidade de algumas descrições de abusos e deboches. Não podemos deixar de ter compaixão pelo «rapaz de sempre».

“PINTURA DE CASSIANO LIMA” Até 29 FEV | Galeria Pintor Samora Barros - Albufeira O autor é apaixonado por pintura há mais de 20 anos, contando no seu curriculum com várias exposições individuais e colectivas em Portugal e no estrangeiro


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