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tempo e sem idade

Aos 92 anos, José Pilar Afonso descobriu o menino que está em si e as memórias adormecidas de tempos distantes mas que tornou presentes na arte de recriar ofícios já desaparecidos. Trata-se de um trabalho de rendilhado difícil, recortado em chapa de metal e pintada com as cores vivas da sua alma FOTOS D.R.

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o menino o homem e as andorinhas

Texto RODRIGO SANTANA

“A arte é força imanente, Não se ensina, não se aprende, Não se compra, não se vende, Nasce e morre com a gente”

(António Aleixo)

Tem a lucidez dos sábios e a tranquilidade dos justos. O tempo, que o transporta há quase um século, passou por ele e deixou as suas marcas. Mas não fora o rigor próprio dos dias que lhe vão tolhendo os gestos e os passos, dir-se-ia que está ali para as curvas da estrada da vida. Para novas aventuras e outros projetos. José Pilar Afonso é daquela cepa velha, rara e de bom fruto. Delicado, um brilho vivo no olhar, semblante que não permite enganos: homem bom e transparente. Amigo da palavra e da verdade. Um homem à moda antiga, que guarda os mesmos valores sem tempo e sem idade. Por estes dias, a Biblioteca António Ramos Rosa, em Faro, foi descobri-lo a tricotar memórias que lhe escorrem da alma para a ponta dos dedos: tesoura na mão, recorta o desenho estampado na chapa de metal, com o esmero de um menino a tatear o seu brinquedo na plasticina ou no barro vermelho do seu quintal. E é vê-lo, remirando-se no brilho do olhar cintilante da criança que pula sorridente dentro de si. O seu jeito de sorrir!... E assim vão os dois, acordando e recriando sonhos adormecidos que, por magia, se transformam e ganham corpo e vida nova. Vêm de um passado longínquo, mas parece que nunca deixaram de estar tão próximos. Tão juntos e tão presentes. Aos 92 anos, José Pilar Afonso descobriu a sua vocação de artista e vai agora dividindo os seus dias na evocação do Algarve de tempos idos. E a viagem começa num passeio naquelas velhas e ronceiras carroças puxadas pela força das bestas. As de trabalho e as de passeio. Para ricos e para pobres. As mais vistosas tinham acabamentos de luxo: quatro jogos de rodas manobráveis, com cobertura ou capoeira, onde se aconchegavam passeatas domingueiras em quatro lugares almofadados e duas lanternas à frente. Era o trem puxado a dois cavalos. Um topo de gama que fazia o deslumbramento inalcançável do Zezinho, a caminho dos seus 11 anos. A arte que sai da chapa que ele agora corta e recorta e dobra e pinta nas cores do seu pensamento e imaginação, é feita numa banca improvisada na cozinha ampla de sua casa no Arneiro, onde montou oficina e todo o entusiasmo deste mundo, mais a sensibilidade que o menino trouxe do outro. E se a curiosidade lhe pode fazer despertar o interesse, esta obra, de rendilhado difícil, pode ser apreciada numa exposição virtual - até queseja possível outra forma - que a biblioteca de Faro decidiu organizar para mostrar aos mais novos, formas de viver de um Portugal antigo, distante e profundo. Rural e longe de tudo. E é na carroça dos pobres que o vemos ir com o seu pai, levar o trigo ao moinho da Barracosa, num cerro acima, logo passando Santa Bárbara de Nexe. Ainda hoje – basta cerrar os olhos e fixar os sentidos – rola pela encosta abaixo, o “zunido” da mó e das velas a trabalhar o grão. No regresso, tirado o quinhão do moleiro, carregam a maquia em farinha que lhes houvera de caber em parte. E há mais de se ver: o poço com roldana e balde de tirar água, o carrinho de mão que trouxe dos anos de trabalho em França, os cataventos, para cada gosto e cada casa, o arado e as noras, as alcatruzes e as andorinhas. As andorinhas! Ah... as andorinhas!... que todos os anos regressam de olhos fechados de uma viagem ao infinito ou para lá dele, direitinhas ao beiral do telhado onde tinham deixado casa alugada, sita na telha 5, primeiro andar, esquina sul, batida ao sol. - Ainda tem muitos sonhos, Sr. Pilar? - Não paro de sonhar, permanentemente, de olhos abertos! Ou fechados, seguindo o voo das andorinhas!...

O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso

PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

OPlantador de Abóboras, com o subtítulo Sonata para uma neblina, é o sétimo e mais recente romance do autor timorense Luís Cardoso, publicado pela abysmo, em que o autor continua a brincar com as palavras e a pintar cenários míticos ao rememorar a sua terra da infância. Luís Cardoso nasceu em Kailako, uma vila no interior de Timor. Nasceu pela segunda vez, para a escrita, na ilha de Ataúro quando aprendeu a ler e a escrever com as redacções da escola primária, e fazia o trabalho do colega Vasco que lhe pagava em pão com manteiga. É filho de um enfermeiro que prestou serviço em várias localidades de Timor, pelo que ficou a saber diversos idiomas timorenses. Estudou nos colégios missionários de Soibada e de Fuiloro, no seminário dos jesuítas em Dare e no Liceu Dr. Francisco Machado em Díli. Licenciou-se em Silvicultura no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Foi militante, desempenhando as funções de Representante do Conselho Nacional da Resistência Maubere em Portugal. O autor estreou-se com Crónica de uma Travessi – A Época do Ai-DikFunam, em 1997, em que a escrita memorialista realizava diversas travessias. Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, o segundo romance, publicado em 2002, é bastante singular, abordando elementos culturais que configuram a temática da independência de Timor. Em A Última Morte do Coronel Santiago, publicado em 2003, a intriga repartida em 12 capítulos centra-se na possibilidade do regresso do protagonista a Timor. A Dom Quixote publicou ainda Requiem para o Navegador Solitário, em 2007. Os seus romances seguintes, O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação, em 2013, e Para onde vão os gatos quando morrem?, em 2017, foram publicados pela Sextante. Luís Cardoso é um dos raros autores que tem Timor como berço e a sua profícua obra centra-se em temas como a memória, a identidade, a História. Todos os seus livros se interligam, inclusivamente, ora com referências explícitas ao autor e aos outros títulos, ora por episódios ou motivos que vão ressurgindo. Esta intertextualidade homoautoral, onde confluem ainda diversas outras referências exteriores à sua obra, serve como comprovação da existência de um mundo ficcional muito próprio, atestando a criação de um imaginário que efabula e recria toda uma geografia da alma. Quando lemos a sua obra e sobre a sua obra, fica aliás a sensação que partiu de Timor para começar a escrever sobre Timor. Nalgumas das suas obras, não se refere contudo ao cenário como sendo Timor. Em O Plantador de Abóboras, designa-se o reino de Manu-mutin (que podemos tomar como um local imaginário ou como sendo Manatuto) escondido algures no interior do país: «Uma terra oculta como tantas outras que foram descobertas.» (p. 95) O autor recorre constantemente a expressões e palavras do tétum, língua oficial timorense a par do português. Por exemplo, quando se refere malae-mutin para designar o europeu, e malae-metan que significa africano. A polifonia linguística está aliás presente noutros escritos do autor, como o seu conto Cáspita, onde se explica como o narrador cresce rodeado de várias línguas: o laclei, o mambae, o tétum, e por fim o latim… Em O Plantador de Abóboras, a narradora fala-nos da sua pronúncia que descreve como uma «estranha mistura» entre «mambae, tétum, português e o grasnar de um ganso» (p. 150). Na sua prosa, Luís Cardoso brinca constantemente com as palavras, reflectindo sobre elas, como acontece quando a narradora brinca com o uso do verbo escrutinar. Usa ainda refrões que marcam uma cadência muito própria no romance (e que recordam a escrita de António Lobo Antunes). A própria estrutura do romance é circular, feita de recorrências, repetições, avanços e recuos.

Duplos e intertexto

É muito curiosa, e um dos aspectos mais fortes da sua obra, a forma como o autor se desdobra nos seus escritos em narrador ou em personagem. Nesta obra, especificamente, a narradora é uma mulher (como já acontecia em Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo). E mais perto do final percebemos que o narratário é um jovem seminarista que tencionava estudar Agronomia em Portugal, sonho esse interrompido pela guerra. A intertextualidade está presente ao longo do livro, como aliás acontece frequentemente na sua obra. Se, por um lado, o próprio subtítulo do livro é Sonata para uma neblina, por outro lado, a sua estrutura tripartida (do Primeiro ao Terceiro Andamento) apontam para uma sinfonia. Da literatura à música (por exemplo, com a música Que sera, sera na voz de Doris Day), encontramos diversos ecos da comprovação da existência de todo um mundo alternativo e paralelo ao mundo empírico, o da arte. Mas é a primeira vez que num livro do autor se incorre na pintura, pois a nossa protagonista e narradora pinta. Ainda mais num diálogo surpreendente com a belíssima capa e as ilustrações a cores de Ana Jacinto Nunes, que tanto enriquecem este livro. Ainda a propósito da intertextualidade temos a forte presença do Dom Quixote, citado em várias passagens no original castelhano. O narratário, que se faz acompanhar permanentemente desse livro, é aliás apelidado de Sancho Pança pela narradora: «Faltava-lhe o arrojo e a loucura de Don Quijote» (p. 153).

Luís Cardoso tem Timor como berço e a sua obra centra-se em temas como a memória, a identidade e a História Bellis Sylvestris?) é ainda mais feérica por aqui passam) parecemos entrar do que Beatriz: conhecida como «a no domínio do mito. Mito esse que neblina ou a noiva de Manu-mutin» surge na narrativa de forma muito (p. 122); como a fantasma, na forma especial, quando o antepassado dos como enfrentou todos no seu vestido timorenses, o avô-crocodilo, tenta de noiva manchado de sangue; ou impedir a sua fuga (pp. 60-61). mais exactamente como uma bruxa, O Plantador de Abóboras - Sonauma mulher que vive na loucura… ta para uma neblina constitui um E talvez por ser considerada a fantástico retrato, entre o mito e a A narradora louca daquele local a sua voz ganha crítica, à história de Timor desde os liberdade para denunciar, interpelar, tempos da ocupação colonial portuÉ possível detectar semelhanças acusar. O próprio nome com que o guesa ao mesmo tempo que interpela entre esta narradora e a Beatriz de noivo a apelida, Bellis Sylvestris, é constantemente alguém a quem é Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bra- nada mais do que o nome científico dirigido todo o livro, da primeira à vo. Ambas podem ser entendidas da Margarida, um nome próprio que última frase, um narratário que se como alegoria de Timor, pois a vida já surgiu antes em A Última Morte do desdobra entre o seu noivo Sancho da noiva atravessa as várias fases da Coronel Santiago. Pança e um misterioso visitante: história do país, da colonização à ocu- A narradora, apesar de ter ascen- «Extraordinário, Sancho Pança, é pação indonésia. Tal como a Beatriz, dência africana, é branca como a este povo que (…) aguenta tudo e também esta donzela tem de ser leva- neve, branca como uma margarida. todos com extraordinária paciência. da «para bem longe da fronteira por Esta noiva foi criada por um ganso Primeiro foram os malaecolonialiscausa de desacatos que tiveram lu- branco, o que representa uma ale- tas, depois os kamikazes do Japão, gar entre ambos os lados pela minha goria do colonialismo (aliás explícita mais tarde os komodo ou lagartos da disputa» (p. 131). Mas esta mulher, na obra na pág. 160). Com este ganso Indonésia e, por fim, os seus libertade nome desconhecido (Insulíndia? (além das muitas outras aves que dores.» (p. 180)

RESTAURANTE O TACHO

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