Trânsitos: Brasil e América Latina

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REVISORES BRUNA RAFAELLA do carmo ferrer LUCIANA BORRE NUNES MADALENA ZACCARA MARIA BETÂNIA E SILVA maria das VITóRIAs negreiros do amaral MARINA DIDIER nunes galo ROBSON XAVIER DA COSTA ARTE DA CAPA ARTHUR BEZERRA DIAGRAMAÇÃO LUANA ANDRADE COMITÊ CIENTÍFICO luciana borre nunes madalena zacarra maria betânia e silva maria das VITóRIAs negreiros do amaral renata wilner roberta ramos robson Xavier da costa COMISSÃO ORGANIZADORA LUCIANA BORRE NUNES MADALENA ZACCARA maria betânia e silva maria das VITóRIAs negreiros do amaral RENATA WILNER

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Luciana Borre Nunes Madalena Zaccara maria das VITรณRIAs negreiros do amaral Renata Wilner (ORGS.)

V DIร LOGOS INTERNACIONAIS EM ARTES VISUAIS II ENCONTRO REGIONAL DA ANPAP NORDESTE

2016

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Catalogação na fonte: Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

D536t

Diálogos Internacionais em Artes Visuais (5. : 2016 24-26 ago. Recife/PE); Encontro Regional da ANPAP/NE (2. : 2016 24-26 ago. Recife/PE). Trânsitos : Brasil e América Latina : Anais [recurso eletrônico] / Luciana Borre Nunes (Orgs.)... [et al] ; Programa Associado de Pós graduação em Artes Visuais UFPB/UFPE. – Recife: Editora UFPE, 2016. Evento promovido anualmente pelo Programa Associado de PósGraduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (PPGAV). ISBN 978-85-415-0883-4 (online) 1. Arte – Congressos. 2. Arte – Brasil. 3. Arte – América Latina I. Nunes, Luciana Borre (Org.). II. Universidade Federal da Paraíba. Universidade Federal de Pernambuco. Programa Associado de PósGraduação em Artes Visuais. III. Título. 700

CDD (23.ed.)

UFPE (BC2017-031)


TRânsitos: brasil e américa latina

A Coordenação do Programa Associado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em parceria com a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), por meio da sua representação regional no nordeste e da Comissão Organizadora do evento vem a público divulgar os Anais do V Diálogos Internacionais em Artes Visuais do PPGAV UFPB/UFPE e do II Encontro Regional da ANPAP Nordeste que se realizaram na cidade de Recife - PE, de 24 a 26 de agosto de 2016. Ao propor mais essa versão do evento o PPGAV buscou estimular a ampliação e articulação da rede de docentes e discentes (da pós-graduação e graduação em Artes Visuais em redes públicas e privadas) e o público, em geral. Além disso, a realização do evento possibilitou a troca de experiências em pesquisa e dinamização de processos reflexivos e críticos, fortalecendo a contribuição do programa na formação dos estudantes, de pesquisadores, de profissionais da área e pessoas da sociedade interessadas em pesquisas de/sobre Artes Visuais.

O evento vem sendo promovido anualmente pelo Programa Associado de PósGraduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (PPGAV). Sua última edição apresentou como objetivo a internacionalização do diálogo sobre Artes Visuais promovendo novas pontes, envolvendo professores, estudantes e público; favorecendo a construção e troca de novos saberes bem como a produção científica da área. Esse evento possibilitou aberturas para novas reflexões e ampliação das investigações que se encontram em andamento por parte dos docentes e discentes no campo das Artes Visuais da região, da nação e do exterior. E neste, em especial, sentimos a necessidade de aproximar as discussões com os países da América Latina. Neste ano, o evento contemplou a vinda de dois pesquisadores: a Profª. Drª. Patricia Raquimán professora/artista/pesquisadora chilena, da Pontificia Universidad Católica de Chile y Docteur en Sciences Humaines- Sciences de l’Education, Francia e a professora/artista/pesquisadora Profª. Drª Lucimar Bello, Professora Titular aposentada da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. Como convidados locais tivemos a presença do Prof. Jomard Muniz de Brito, aposentado e da Profª. Drª. Joana D’Arc Lima, ambos da Universidade Federal de Pernambuco. A agregação ao evento (iniciado há cinco anos) de uma versão regional do encontro (também anual) da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes Plásticas (ANPAP) visou fortalecer ainda mais a proposta uma vez que essa associação, de âmbito nacional, fundada em 1987, já em sua vigésima quarta versão anual, tem como objetivo congregar pesquisadores para promover, desenvolver e divulgar pesquisas nas mais diversas temáticas do campo das Artes Visuais. Sua versão regional visou ampliar esses objetivos em um país conhecido por sua diversidade e dimensões territoriais onde alguns espaços são menos favorecidos no que diz respeito a encontros que incentivem a troca de informações e de ideias. Ao propor o V Diálogos Internacionais em Artes Visuais & II Encontro Regional ANPAP Nordeste, o PPGAV UFPE/UFPB estimulou a ampliação e articulação da rede de docentes e discentes que assim puderam trocar experiências


de pesquisa bem como, seus processos reflexivos e críticos, fortalecendo a contribuição do programa na formação desses pesquisadores. Em 2016, o tema foi “Trânsitos: Brasil e América Latina” que buscou discussões no campo das artes visuais em relação/em direção ao “outro” latino americano. Foi uma proposição para conhecer e legitimar poéticas, produções artísticas e narrativas diversas, até mesmo contraditórias, e sua relação com outras áreas do saber. A proposta de trabalho nestes três dias de evento contemplou múltiplas arestas e modos de pensar as Artes Visuais no Brasil e América Latina reconhecendo afinidades e proximidades históricas, sociais e políticas criadas a partir de processos colonizadores e das culturas de resistência. Em comum, Brasil e América Latina tem histórias marcadas pela colonização européia, regimes ditatoriais, lutas, hibridismo étnico cultural, afirmação de identidades locais/nacionais e necessidade de valorização e reconhecimento internacional de suas pesquisas e produções artísticas. Ao mesmo tempo, uma suposta unidade religiosa e étnica, cunhada pelo eurocentrismo, foi debatida dentro de provocações nas quais ainda temos muito a conhecer sobre as múltiplas identidades latinoamericanas. Foi um convite para transitar entre os campos de saberes artísticos na América Latina, conhecendo e compartilhando histórias com ‘outros’ e sobre ‘outros, sendo o ‘outro’, estando com o ‘outro’, contaminando-se com memórias, deslocando noções de centro e periferia, provocando discursos e legitimando novas fronteiras do conhecimento, bem como rompendo-as com objetivo primeiro de construir diálogos, tecer redes que aproximem e se tornem rizomáticas. O resultado desse diálogo está sendo publicado em formato de anais digitais que contempla reflexões sobre: •

O contexto da arte Latino Americana em tempos de globalização; as múltiplas identidades nacionais na América Latina e no Brasil; as novas fronteiras e territórios percorridos pela arte no contexto local/regional e global/internacional; os lugares e circuitos que as manifestações artísticas ocupam em um contexto marcado pela inovação, simultaneidade e expansão das tecnologias de informação e comunicação. Atuações de artistas através de suas poéticas ou de grupos ou coletivos que envolvam arte e possibilidades de trânsitos em suas diversas dimensões, diferentes linguagens. Atuações e investigações de pesquisadores-professores-artistas que estabeleçam conexões por meio do olhar da história, teoria e processos criativos. Atuações e investigações de pesquisadores-professores-artistas direcionadas às relações intrínsecas para a construção do conhecimento no campo da arte relativas aos espaços educacionais e seus desdobramentos.

Estimulando o debate, o diálogo, a troca de experiências e as concepções de pesquisa no campo ampliado das Artes Visuais o PPGAV, visou estabelecer um exercício constante de produção do conhecimento teórico, crítico e prático entre os docentes e discentes do Programa. Esse evento em sua quinta versão reafirmou o compromisso no desenvolvimento da pesquisa em Ensino de Artes Visuais no Nordeste brasileiro. Comissão Organizadora

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ARTIGOS

SUMÁRIO SOCORRO! ISSO É ARTE CONTEMPORÂNEA, COMO LER E CONTEXTUALIZAR EM SALA DE AULA

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TRANSFAZER A CASA: EXPERIMENTAÇÕES ENTRE A PESSOALIDADE E A ARTE

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A EXPOSIÇÃO “1DEDO DE PROSA” COMO PROCESSO DE DIÁLOGO ENTRE MODOS DE VIDA

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CONEXÕES DA CULTURA VISUAL COM A EDUCAÇÃO BÁSICA NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DOS ANAIS DA ANPAP DE 2010 A 2015

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ARTE E PAISAGEM: A INFLUÊNCIA DAS VANGUARDAS MODERNAS NA PINTURA DO PAISAGISTA ROBERTO BURLE MARX

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A SOCIÉTÉ DES ARTISTES BRÉSILIENS E O PAPEL DOS ARTISTAS BRASILEIROS NA CONQUISTA DO MERCADO INTERNACIONAL (1913 – 1937)

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MEMÓRIAS DE PAPEL: LAMBE PARA (RE)SIGINIFICAÇÃO DO PASSADO

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A EXPERIÊNCIA COTIDIANA NA CRIAÇÃO DE HÉLIO OITICICA: VIVÊNCIAS MULTISSENSORIAIS NO ENSINO DE ARTE

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A REPRESENTAÇÃO FEMININA NAS ARTES VISUAIS DE PERNAMBUCO

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ENTRE O MAR E O CÉU: UMA ANALOGIA ENTRE DEUS/CRISTO E DELEUZE/COUTINHO

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AURÉLIO DE FIGUEIREDO E O ADVENTO DA REPÚBLICA

107

O NEOCONCRETISMO E LADJANE BANDEIRA

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DO SAGRADO AO PROFANO: UMA VISÃO SOBRE AS MULHERES E DIVINDADES FEMININAS NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

127

TRAMANDO EM CONJUNTO: UMA PROPOSTA DE MEDIAÇÃO CULTURAL PARA A EXPOSIÇÃO TRAMAÇÕES

135

RELAÇÕES DO CONTEXTO ARTÍSTICO ESTADUNIDENSE E LATINO-AMERICANO

144

DA CONTINUIDADE ENTRE ARTE E VIDA. TÓPICO 1: AS ZONAS DE ADORMECIMENTO

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AFETOS E REENCONTROS: A FOTOGRAFIA TRANSFORMADORA DE ALEXANDRE SEQUEIRA

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REFLEXÕES SOBRE A INSTALAÇÃO “MENINO”: DA INFÂNCIA AO RECIFE

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BIOPAISAGEM: O SIGNO FEMININO NA OBRA DE LADJANE BANDEIRA

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ARTES VISUAIS, COMPARTILHAMENTOS ENTRE A UNIVERSIDADE FEDERAL

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DE PERNAMBUCO - UFPE E O INSTITUTO FEDERAL DE PERNAMBUCO – IFPE

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“NÃO PISE NA DAMA” EM BOGOTÁ

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DO OFICIAL AO OCULTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE AS TEORIAS DE CURRÍCULO E O ENSINO DE ARTE NA ESCOLA GINÁSIO PERNAMBUCANO

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O CAMPO DA CULTURA VISUAL NA PRODUÇÃO ACADÊMICA BRASILEIRA DISPONÍVEL NO BANCO DE TESES DA CAPES PERÍODO 2010-2015

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FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO – EM BUSCA DAS RAÍZES

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VICTOR MEIRELLES E O II REINADO DO IMPÉRIO BRASILEIRO: RETRATOS DE UM MOMENTO HISTÓRICO

247

A INFLUÊNCIA DO MOVIMENTO VANGUARDISTA EXPRESSIONISTA NA QUESTÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO

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WEB ARTE NA AMERICA LATINA: UMA ANÁLISE BASEADA NA TÉCNICA DA DERIVA E SEUS REFLEXOS NO BRASIL E NA ARGENTINA

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ESTÉTICA DE UMA ICONOGRAFIA XINGUANA

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MEDIAÇÃO DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARA ESTUDANTES DO IFPB

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CARTAS: PARA PENSAR GÊNERO E SEXUALIDADES NA ARTE/EDUCAÇÃO

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ALEGORIA ESTÉTICA DO FEIO: A FRUIÇÃO DO NÃO BELO

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LAMBE-LAMBE E ATIVISMO FEMINISTA: INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS COMO FERRAMENTA DE APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO

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POP ART NO BRASIL: A OBRA DE CLAUDIO TOZZI COMO IMPORTANTE INSTRUMENTO DE DENÚNCIA POLÍTICA E SOCIAL

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LÉXICOS, VISUALIDADES E CORPOREIDADES DA TEIMOSIA, DA GAMBIARRA E DA PRECARIEDADE EM "PEBA"

357

ALTO NOVA OLINDA, DEUS DA ASSAS FAZ TEU VÔO: SALA DE ARTE COMO LUGAR DE ENGAJAMENTO

367

O ARTISTA, A ARTE, SEUS CAMINHOS E FUNÇÕES

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TRANÇADO INDÍGENA EM PERNAMBUCO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

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ENSAIOS VISUAIS

SEGUNDA NARUTEZA OU CORPO PRESENTE, NOSSA NATUREZA

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DO INSCONCIENTE AO CONCIENTE: UM PROCESSO DE CONTEMPLAÇÃO VISUAL NO HOSPITAL ULYSSES PERNAMBUCANO

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ARMADURA

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ISTO NÃO É UM DESENHO: DAS LINHAS RETAS À EMANCIPAÇÃO DO DESENHAR

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CORPO PRESENTE

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TRÂNSITOS: MARCAS HISTÓRICAS NO BRASIL E AMÉRICA LATINA

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FRAGMENTOS DO LUGAR ONDE VIVO

448

DESMANCHE DOS NODOS: EMULSÕES TÓXICAS AFETAM O CORPO

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PÓSFÁCIO (Flávia pedrosa) FORMAS SEM FÔRMAS

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ARTIGOS


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SOCORRO! ISSO É ARTE CONTEMPORÂNEA, COMO LER E CONTEXTUALIZAR EM SALA DE AULA? Ane Beatriz dos Santos Reis/Centro Universitário SENAC SP RESUMO Esse texto nasce a partir de afirmativas e indagações ouvidas no cotidiano de trabalho em sala de aula com arte-educadores ou professores de outras disciplinas que ensinam Artes na educação básica. Afirmativas discordantes daquilo que as pesquisas em arte, história da arte e o ensino dessa história em sala de aula nos mostram. É complicado trazer a arte contemporânea para sala de aula? Será que os estudantes vão entender? E é para entender? Para tentar responder a essa questões, um tema foi escolhido e pesquisado entre as obras produzidas ao longo da história, lido o que cada imagem conta desse tema e confrontado com as obras da contemporaneidade sobre o mesmo tema. Com uma pequena pesquisa vamos discutir, descobrir e propor como podemos desmistificar a arte contemporânea indecifrável e difícil de discutir com estudantes da escola básica. PALAVRAS - CHAVE Arte; História da Arte; Arte Contemporânea RESUMEN El presente texto proviene de las declaraciones y preguntas oídas en el trabajo diario en la clase con los educadores de arte o profesores de otras materias que enseñan Artes en la educación básica. Afirmativas discordantes lo que la investigación en el arte, historia del arte y la enseñanza de la historia en la clase nos muestran. ¿Es difícil llevar el arte contemporáneo a la clase? ¿Los estudiantes entenderán? Y es para entender? Para intentar responder a estas preguntas, un tema ha sido elegido y investigado entre las obras producidas a lo largo de la historia, leído lo que cada imagen cuenta este problema y se enfrentó con las obras de contemporáneos también tienen el mismo tema. Con un poco de investigación vamos a discutir, descubrir y proponer cómo podemos desmitificar el arte contemporáneo indescifrable y difícil de discutir con los estudiantes de la escuela primaria. PALAVRAS CLAVE Arte; Historia del Arte; Arte Contemporánea

Introdução: que arte é essa? Sou a favor de uma arte […] que faz algo mais do que sentar seu traseiro num museu. Claes Oldenburg, 1961 (DEMPSEY, 2010, p. 263).

Ao iniciar esse texto, é necessário quebrar um pouco as regras da impessoalidade para primeiro explicar o porque escrever sobre as inquietações provocadas pela arte

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contemporânea. “O assunto é sobre história da arte ou sobre arte?” “Quem estudou o curso de Artes Visuais pode falar sobre Arte Contemporânea, prefiro falar sobre a história da arte.” “Como falar de história da arte com esse tipo de obra?” Afirmativas e indagações como essas fazem parte do meu cotidiano em sala de aula com arte-educadores ou professores de outras disciplinam que lecionam Artes na educação básica. Apenas esse grave fato “professores sem formação específica lecionando Artes”, já seria uma discussão que produziria várias e várias laudas de pesquisa. Mas nesse estudo vamos nos ater às inquietações, pesquisas, leituras, discussões e os sofrimentos pedagógicos que as produções artísticas da contemporaneidade proporcionam em sala de aula para professores com ou sem formação específica. Propomos um diálogo entre a arte de todas as épocas, inclusive a contemporânea, como forma de não dificultar essa discussão com os estudantes da educação básica, mas ampliar as narrativas e se for do interesse criar novas histórias a partir da que foi contada. Para sermos mais específicos e não falar de uma forma ampla sobre arte contemporânea escolhemos um tema: o mito “Penélope”. A personagem da mitologia grega que anseia pela volta de Ulisses, seu esposo, que retorna da guerra de Tróia. Penélope, filha de Icarius e Periboea, era esposa de Ulisses. Por mais de vinte anos, durante e depois da guerra de Tróia, esperou pelo retorno de seu marido e mesmo sendo muito cortejada, nunca duvidou que ele voltaria. Seu pai Icarius pediu para que se casasse novamente e ela, como não se convenceu da morte de Ulisses, decidiu continuar esperando, contudo concordou em casar-se novamente com uma condição: se casaria quando terminasse de tecer uma mortalha para Laerte, pai de Ulisses. Durante o dia ela tecia e a noite ela desmanchava. Assim o fez até o dia em que uma das servas descobriu o que ela fazia e assim teve que terminar o trabalho. Para mais uma vez ganhar tempo, Penélope teve a idéia de propor ao seu pai que se casaria com quem conseguisse atirar uma flecha da forma como Ulisses atirava, nenhum pretendente conseguiu até que Ulisses disfarçado de mendigo matou todos os pretendentes e voltou para sua amada. (Disponível em https://megaarquivo.com/2015/05/06/11-365-mitologia-gregapenelope/. Acesso em 06jul2016).

Além das representações da Grécia antiga, Penélope foi retratada tecendo seu tapete por vários artistas em diferentes momentos da história da arte. Destacamos algumas para lermos e discutirmos nesse texto: • • • • • • • •

Os gansos de Penélope, ânfora grega, 470-460 a.C. O retorno de Ulisses, Bernardino di Betti, chamado Pintoricchio, afresco, 1509; Penélope desfazendo seu trabalho, Leandro Bassano, óleo sobre tela, 1575-1585; Penélope desfiando seu tecido, Joseph Wright, óleo sobre tela, 1783-1784; Penélope em seu tear, Angelica Kauffmann, óleo sobre tela, 1764 A teia de Penélope, René Magritte, óleo sobre tela, 1958 Penélope, Tatiana Blass, instalação, 2011; O tecido de Penélope, Rosana Ricalde, instalação, 2016.

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Barbosa (2015) nos afirma que “a imaginação é uma função mental cade vez mais importante para a sobrevivência interna e social do ser humano, e a Arte é sua válvula propulsora". A partir dessa função mental, os artistas produzem imagens que contam histórias e instigam a imaginação de quem as lê. As obras destacadas desde a Grécia antiga até o século XX com Waterhouse, trazem a figura da personagem, retratada cada uma no estilo artístico de sua época, contando um pouco da história do mito: tecendo, triste esperando, desfazendo o tecido. A partir de Magritte temos uma Penélope diferente, uma mulher comum e não um mito. E essa é uma das particularidades que nos interessa nas obras da arte moderna e contemporânea, o fato de não mostrar ou contar a história do tema escolhido de forma tão explícita, mas de abrir espaços para novas interferências e outras histórias. Isso pode ser uma oportunidade para múltiplas discussões sobre arte e sua história ou também, uma complexidade difícil de assimilar e problematizar para alguns arte-educadores com os estudantes da educação básica. O que pretendemos com esse texto é discutir algumas dessas possibilidades e desmistificar a “arte contemporânea indecifrável”. Que história essa imagem conta? Voltemos às obras selecionadas que trazem como tema “Penélope”, a mulher fiel e apaixonada que não admite perder seu esposo e vive uma longa espera enquanto o amado luta na guerra de Tróia e depois enfrenta outros inimigos até conseguir voltar para sua casa. Nesse pequeno recorte, as imagens de Penélope serão apresentadas em ordem cronológica da história, sem destacar estilos, tendências, apenas para uma melhor organização e entendimento, antes de chegarmos na contemporaneidade. Assim, faremos uma leitura do que vemos e percebemos em cada imagem, em cada obra. Na primeira obra, a imagem de mulher aparece em uma ânfora vermelha datada de 470-460 a.C. Mostra Penélope em um momento de lazer brincando com uma bola em cada mão, enquanto um ganso a observa. Tais cenas podem ter sido comuns nos lares gregos, com animais de estimação nas proximidades, durante muitas atividades domésticas.

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Os gansos de Penélope, ânfora grega, 470-460 a.C., Coleção do British Museum Fonte: <www.penn.museum>

Um salto no tempo e chegamos ao século XVI, com o renascentista italiano Bernardino di Betti, mais conhecido como Pinturicchio. O afresco “Penélope e seus pretendentes”, 1509, foi encomendado por Pandolfo Petrucci, governador de Siena, para ornamentar um dos salões de seu luxuoso palácio. Em uma grande sala, Penélope, auxiliada por uma criada, está tecendo, enquanto quatro pretendentes a assediam. Ulisses mais atrás, à direita, observa a amada e seus opositores. A história está prestes a ter um final feliz.

Penélope e seus pretendentes, Bernardino di Betti (Pinturicchio), 1509. Afresco125x152 cm. Fonte: <www.virusdaarte.net>

Ainda no século XVI, Leandro Bassano, pintor maneirista italiano, retrata Penélope na penumbra, escondida de todos, desmanchando o trabalho de todo um dia. Apenas uma fraca e pequena vela acesa, ao centro da tela, ilumina a cena. Ninguém pode saber o que ela está fazendo, seus gestos são difusos, também para quem a observa permanece a dúvida, se ela está tecendo ou desfazendo o tecido.

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Leandro Bassano, Penélope desfazendo seu trabalho, 1575-1585. Óleo sobre tela 92x85 cm. Fonte: <www.mbar.org>

Outro salto no tempo e chegamos ao século XVIII e encontramos a Penélope de Joseph Wright. Conhecido como Wright of Derby, pintor inglês, ficou famoso por suas pinturas de paisagens e retratos com um acentuado contraste entre o claro e o escuro. A Penélope de Wright também está escondida, longe dos olhos de todos. Já é noite, enquanto observa o sono de seu filho Telêmaco, desfaz sua trama e enrola o fio. Uma estátua de Ulisses, que está contra a luz, a acompanha na solidão da espera.

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Penélope desfiando seu tecido, Joseph Wright, 1783-1784. Óleo sobre tela,106×131cm. Fonte: <www.getty.edu/

Ainda no século XVIII, encontramos a Penélope pensativa de Angelica Kauffmann, artista neoclássica suíça. Envolta em um belíssimo vestido com tecidos azul e dourado e muitas dobras, Penélope está triste, olhar perdido, segura um grande rolo de fios. Apenas um cachorro a acompanha na solidão, com uma coleira dourada também expressa um olhar de tristeza.

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Penélope em seu tear, Angelica Kauffmann, 1764. Óleo sobre tela, 169x118 cm. Fonte: < http://artmastered.tumblr.com>

Chegamos ao século XX com uma Penélope, uma das poucas telas impressionista do artista francês René Magritte, mais reconhecido por suas produções surrealistas. Uma bela mulher, com olhar contemplativo e nariz totalmente vermelho. Magritte traz as marcas do mito que chora pelo seu amado que tarda longos anos para regressar aos seus encantos embora a mancha de cor não diminui a sensualidade de seus lábios também vermelhos. Para onde a Penélope moderna olha? Agora não há sala, pretendentes, fios, noite, apenas Penélope.

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A teia de Penélope, René Magritte, 1958. Óleo sobre tela Fonte: <http://wiki.cultured.com/people/Rene_Magritte>

E concluindo a travessia, chegamos ao século XXI e a reprodução sai das telas para duas instalações produzidas por artistas brasileiras. A primeira, Tatiana Blass, nascida em São Paulo, formada em Artes Plásticas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), artista plástica com produções em pinturas, vídeos, esculturas e instalações. Penélope não aparece na cena montada na Capela do Morumbi, um dos espaços que compõe o Museu da Cidade de São Paulo, apenas um tear, um tapete inacabado e centenas de metros de fios de lã vermelha que invadem todo o espaço interno e externo do lugar. O público que visita a Capela passeia pelos fios que Penélope desfiou e esse segredo não está mais escondido.

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Penélope, Tatiana Blass, 2011. Instalação, tapete, tear, fios de lã, chenili. Capela do Morumbi/São Paulo/Brasil. Fonte: <http://www.tatianablass.com.br>

A segunda, Rosana Ricalde, nascida no Rio de Janeiro, formada em Gravura na Escola de Belas Artes, EBA/RJ, renova suas produções uma memória não linear da escrita e da fala ao combinar suportes obsoletos (carimbos, tipos de máquina de datilografar, etiquetas). Rosana Ricalde também não nos apresenta a figura da mulher que espera pelo amado, mas a complexidade dessa história exposta em “enquanto a conversa é entrelaçada através de máquinas de escrever opostas, estas são uma espécie de criadoras de palavras enfatizando essa materialidade, letra a letra” (Rosana Ricalde, 2016).

O tecido de Penélope, Rosana Ricalde,2016. Instalação, máquinas de escrever, texto impresso em papel branco. Galeria 3+1 Arte Contemporânea/Lisboa/Portugal. Fonte: <www.artalibi.pt>

E agora como explico essas imagens? Contar ou ouvir uma história nos provoca a criação de imagens na memória. Personagens lugares e objetos ganham formas, cores, texturas, movimentos, cheiros, sons de acordo com as referências de cada um e de como reagimos a narrativa. Da mesma forma as imagens da produções artísticas nos ajuda a conhecer histórias, personagens, lugares e objetos. As obras que destacamos, contam a história de uma mulher que espera por seu amado e por isso enfrenta muitos desafios. Desde a ânfora grega do século V a.C. retratam a figura de mulher, triste, abalada, frágil, mas confiante, inteligente com estratégias para conseguir alcançar seu destino. Com a arte moderna e

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contemporânea, a Penélope de Magritte torna-se independente de Ulisses e com Tatiana Blass e Rosana Ricalde, ganha uma complexidade que não pode ser mais contada com apenas uma história, mas várias histórias, como também a percepção da obra não se restringe ao olhar, mas a texturas, sons e cheiros. A arte da instalação teve origem no início da década de 60, o que também ocorreu com os assemblages e happenings. À época, o termo “ambientação” foi usado para descrever obras como as do pintor Ed Kienholz, os assemblages inabitáveis dos artistas George Segal, Claes Oldenburg e Tom Wesselmann e os happenings de Allan Kaprow, Jim Dine, Red Grooms e outros. Essas ambientações relacionavam-se com o espaço em torno delas - uma rejeição flagrante às práticas da arte tradicional - e incorporavam o espectador. Expansivas e abrangentes, funcionavam como catalisadoras de novas ideias, não receptáculos de significados fixos (DEMPSEY, 2010, p.247).

As instalações falam de “Penélope”, o mesmo tema das telas que destacamos, contudo não apenas contam a história do mito, são catalisadoras de novas experiências, de novas histórias, a cada momento que um novo personagem adentra na sala. E também a cada momento em que essa história é contada em sala de aula e revisitada através das imagens que a história da arte registrou. Para Mammì, “o que poderíamos chamar de arte moderna e contemporânea brasileira é um conjunto de problemas e não um repertório já pronto de soluções dadas” (MAMMÌ, 2012, p. 215). Esse repertório para uma narrativa, contada e recontada em poesias, telas, esculturas, videos, na arte contemporânea não perde sua essência, mas ganha elementos novos, é contada por e com perspectivas diferentes. E na sala de aula isso se amplia. Um rolo de fio de lã vermelha ou uma máquina de escrever pode provocar novos problemas, novas sensações, produzir novas instalações e novas histórias. É necessário explicar, precisa concluir? Trata-se aí de uma escrita que não visa diretamente o sentido mas outra coisa, materializando os traços que dão origem ao sujeito. Como caracterizar essa escrita que não reafirmaria a convencional fronteira entre signo linguístico e imagem, mas inscreveria traços que transbordam de um a outro, pondo em questão a representação - e seu sujeito? (RIVERA, 2013, p. 85)

Não, não é necessário explicar e muito menos temos que concluir. A escrita de um mito representado entre máquinas de datilografar com metros de papel entrelaçados ou centenas de metros de fios de lã emaranhados dentro e fora de uma capela contam a mesma história que uma bela figura de mulher sentada em frente a uma máquina de tear. A escrita de Rosana Ricalde, composta de signos linguísticos, retratam a mulher que tece enquanto espera. Os fios de lã de Tatiana Blass também. Mas a riqueza que essas duas obras apresentam em relação as outras obras destacadas nesse texto é a multiplicidade de leituras dessa mesma história. E não é para o arte-educador explicar a imagem ou lê-la para os estudantes, mas a leitura é individual, a imaginação é realizada de forma individual e as histórias criadas a partir 18


dessa leitura podem ser entrelaçadas, podem ser reescritas, podem criar um novo mito, uma nova “Penélope”. Criar cada vez mais uma arte e uma história da arte que faz algo mais do que sentar seu traseiro num museu.

Referências BARBOSA, Ana Mae. Redesenhando o desenho: educadores, política e história. São Paulo: Cortez, 2015. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2010. MAMMÌ, Lorenzo. O que resta da arte: arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify, 2013 Endereços eletrônicos https://tendimag.com/. Acesso em 04 jul 2016. http://www.mattesonart.com/1943-1947-sunlit-renoir-period.aspx. Acesso em 04 jul 2016. http://artalibi.pt/o-tecido-de-penelope/ Acesso em 05 jul 2016. http://virusdaarte.net/pinturicchio-penelope-e-seus-pretendentes/ Acesso em 05 jul 2016. http://www.penn.museum/sites/expedition/penelopes-geese/. Acesso em 04 jul 2016. http://wiki.cultured.com/people/Rene_Magritte/ Acesso em 047 jul 2016. http://artmastered.tumblr.com/post/41127944837/angelica-kauffmann-penelope-ather-loom-1764. Acesso em 07jul 2016. Ane Beatriz dos Santos Reis Estudante de Pós-graduação em Tecnologias da Educação, SENAC/SP; graduada em Artes Visuais, Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE; atua como professora de Artes Visuais no Ensino Médio da rede particular de ensino do Estado de Pernambuco; professora-pesquisadora da arte, suas histórias e as diversas possibilidades de contar e escrever tais histórias.

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TRANSFAZER A CASA: EXPERIMENTAÇÕES ENTRE A PESSOALIDADE E A ARTE Anna Carolina Coelho Cosentino/ Universidade Federal de Pernambuco Maria das Vitórias Negreiros do Amaral/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Na fronteira entre a pessoalidade e a Academia, questiono quais são os lugares de trabalhos criados por artistas mulheres na contemporaneidade. Aproprio-me da videoperformance como metodologia de pesquisa, assim como dos relatos sobre mulheres na História da Arte. Isso somado à concepção de performatividade de Judith Butler e minha história pessoal de mulher que experimenta as consequências de uma “pedagogia social” sobre o feminino, oferecem as bases para a reflexão. PALAVRAS-CHAVE Pessoalidade; Vídeoperformance; A/r/tografia ABSTRACT In the border between personhood and the Academic environment, I question which are the places for works created by women artists in the contemporaneity. I appropriate the videoperformance for myself as a methodology for research, as well as the stories about women in the History of Art. These aspects summed to Judith Butler’s conception of performativity and my own personal story as a woman who experience the consequences of a “social pedagogy” about the feminine, offer the basis for the reflexion. KEYWORDS Personhood; Videoperformance; A/r/thography

Desadormecer Fantasmas Imaginários do Corpocasa foi o título de uma pesquisa que teve início em 2014. Naquele ano participei de uma residência artística no espaço de arte Peligro (Recife), durante 11 meses. O título do trabalho foi idealizado a partir de um anseio pessoal: medos dentro do espaço físico da casa; a recorrente impressão de que existia alguém do lado de fora que invadia e ameaçava. Percebi que ao longo da vida, em todos os endereços onde experimentei morar, pairou sempre um sentimento de medo, o qual ficou cada vez mais nítido como sendo de fonte imaginativa. Não demorou para que eu percebesse a importância desse conteúdo. E adquirir consciência daqueles medos vibrando no corpo, no momento em que ocorriam, foi um divisor de águas. Desse fato resultou a experimentação de algo que é do senso comum, conhecido popularmente: a ideia do corpo enquanto casa. “Nossa alma é uma morada. E, lembrando-nos das “casas”, dos “aposentos”, aprendemos a “morar” em nós mesmos” ( BACHELARD, 2008, p. 20).

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Comecei a estar sensível ao fato de que o corpo era a casa onde eu estava habitando e sendo afetada, nele, no corpo, pelos acontecimentos da vida. E também por histórias muito antigas, memórias minhas de recém nascida, e talvez até de antepassados, com as quais mesmo sem intenção, estava me conectando. Ficou claro que do ponto de vista da minha imaginação e dos medos, estava havendo correspondência entre a casa física (de tijolos e paredes) e a casa que é o meu corpo, local onde vive a alma. De acordo com Bachelard, “com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de integração psicológica. (...) Analisada nos horizontes teóricos mais diversos, parece que a imagem da casa se torna a topografia do nosso ser íntimo” (2008, p. 20). Além disso, desde 2009 eu vinha notando que as mulheres da minha família, na contemporaneidade, processam no corpo o que compreendi por uma pulsão de morte: vivências de intensa compulsividade alimentícea, alcoolismo, depressão. Realizei uma investigação para tentar identificar a que fato ou questão esta "coincidência" se referia. Descobri que estas mulheres todas haviam experimentado por motivos distintos, afastamento de suas mães biológicas ou de seus filhos. Direcionei a pesquisa da residência artística para uma possibilidade de aproximação, de diálogo, por meio da arte, com estas questões presentes nas relações de meu cotidiano, com minha mãe, irmã, cunhadas e sobrinhas. A pesquisa, no entanto, foi mais além. Alcançou Francisca Friederike Margarette (1850), minha antecessora na ordem das avós, que morreu durante um parto, na Alemanha. Sua filha, Adele (1871), ainda muito jovem, engravidou sem estar casada e foi socialmente rejeitada. Nenhuma fotografia, carta, documento de Adele existe. Apenas a notícia que consegui levantar (com dificuldade, pois o assunto parecia ser tabu), em conversa com a pessoa mais idosa da família: Adele desapareceu depois que o pai da criança a registrou em nome de outra mulher como mãe. Circunstâncias sociais impediram Adele até de ver sua filha. Na família, repetições dessa natureza, onde mães são separadas de seus filhos, perpassaram as gerações subsequentes. Constatei que as mulheres de minha linhagem materna vêm morrendo no parto, deixando seus filhos para serem criados pelos pais. Ou morrendo em vida porque os maridos/amantes lhes tomaram os filhos. Constatei que, rejeitadas socialmente, encontram resignação no isolamento e na tristeza. O que chamei de fantasmas imaginários é uma espécie de ressonância advinda desse tipo de vivência infantil e pré-natal que se caracteriza por algum tipo de ameaça ao pleno desenvolvimento da vida (uma gravidez indesejada ou conturbada, por exemplo). Considero que o feto arquiva memória de suas experiências intrauterinas, assim como bebês recém nascidos e crianças bem pequenas, as quais não aprenderam ainda a falar. “Imagens tão grandiosas marcam para sempre o inconsciente que as ama. Suscitam devaneios sem fim” (BACHELARD, 2013, p. 15). Acredito que essas memórias podem repercutir inconscientemente, muito tempo depois do momento em que se

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originaram, muito tempo depois do acontecimento. Atuam, por exemplo, por meio de escolhas e atitudes compulsivas sem que se compreenda o porque da compulsão. Por uma busca insistente, uma tentativa de se vincular a repetições que não sejam boas/prazerosas, mas que ao contrário, possam levar à experimentação de tristeza. Acredito inclusive que do mesmo modo, certas experiências vividas por antepassados, deixem marcas em gerações subsequentes, numa espécie de herança ou memória sentida e experimentada no corpo, porém sem que se reconheça ou compreenda o que seja. A esse tipo de memória chamo igualmente, de fantasma, quando parece deveras que “a mesma lembrança sai de todas as fontes” (BACHELARD, 2013, p. 09), das mais variadas situações.

Figura 1: Frame da vídeoperformance Agora eu também quero sair, 2014. Captação: Maria Salguero.

Como força que engendra O ideário do fantasma da morte foi lentamente se transformando num bordado entre vida, arte e trabalho acadêmico. Depois da residência artística, que aconteceu de janeiro a novembro de 2014, escolhi a A/r/tografia, que é um dos métodos da PEBA (Pesquisa Educacional Baseada em Arte) como suporte aos desdobramentos que se seguiram. Com foco qualitativo, este é um modelo que pensa o fazer artístico reunido à investigação como forma de aprendizagem (Dias, 2013). A condução artística do trabalho se deu através de rituais e ações performáticas que foram registrados em vídeo (vídeoperformances). Realizá-los foi como experimentar um meio de expressão para as transgressões necessárias; foi a possibilidade de libertação de muitos daqueles fantasmas internos. Com as vídeoperformances: Agora eu também quero sair (2014), Origem (2014), Batismo (2015),

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Tecelagem lenta (2015) e Corpo Explícito (2015), produzidas e realizadas por mim, foi criada a imagética da investigação. Para o trajeto narrativo aproveitei meus escritos, poesias, cadernos de sonhos com ilustrações e diálogos com objetos herdados. Através dos atos performáticos filmados, meu corpo que ainda não gerou outros corpos, que ainda não se tornou mãe, pôde ao mesmo tempo ser um corpo que cria, que registra e arquiva nessa herança materna, imagens inéditas. Através delas elaboro os referidos afetos, procuro realizar um bordado com os fios dos acontecimentos, provoco um movimento, um deslocamento. A arte permite ressignificações para a vida. De fato foram propiciados gestos inversos. Onde existiam apenas silêncio e eco, passaram a existir ações de geração e criatividade autorizadas, paridas para viver. Supondo que uma memória permanece inscrita no corpo, busquei descobrir se é possível reordenar o passado, realizar uma digestão emocional do que ficou marcado. É relevante notar que para mim, tais afetos herdados na memória física, corpórea, constituíram o principal elemento ativador de uma prática artística. Por isso percorrer minha árvore genealógica materna, relacionando as questões acima levantadas com as experiências ocorridas nos corpos das mulheres, assim como a repercussão disso em minha trajetória foi a vertente escolhida. “Ao colocar a criatividade à frente do processo de ensino, pesquisa e aprendizagem, a A/r/tografia gera insights inovadores e inesperados ao incentivar novas maneiras de pensar, de engajar e de interpretar questões teóricas como um pesquisador, e práticas como um professor” (DIAS, 2013, p. 24). Baseia-se na ideia de que sentimentos, sensações, percepções e construções sociais de sentido podem ser modelados no decorrer das atividades. Na A/r/tografia, a imagem não é mera ilustração do texto alfabético. Ao contrário, através do método, no desdobramento da pesquisa, o pensamento deve se transformar também numa produção imagética. Com este propósito, minhas atividades circunscreveram a performance ritual e o vídeo. Em práticas como estas, tanto na performance como no video, o corpo consiste em mote privilegiado de investigação e criação estética. Muitas imagens criadas por artistas mulheres oferecem ainda o potencial de romperem com estereótipos culturais sobre o gênero. Lynda Benglis (1941-), Valie Export (1940-), e Marina Abramovic (1946-) por exemplo, utilizam seus próprios corpos para questionar sobre performatividade de gênero. Loponte (2002) averigua igualmente de que forma o corpo feminino tem sido construído no imaginário da arte ocidental. Esclarece que de fato existe a atuação de uma espécie de pedagogia visual do feminino, naturalizando e legitimando este corpo como objeto de contemplação. A autora refere-se ao corpo e à sexualidade feminina como postos em discurso, no campo das artes visuais, a partir de um determinado modelo de olhar masculino. Através da vídeoperformance dialogo com estas noções, utilizando como pano de fundo, minha história pessoal de mulher que experimenta as consequências dessa pedagogia do femino. O fluxo e o refluxo das ondas

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Atento para a relação das mulheres com seus próprios corpos; e também para as profundas relações entre sistema reprodutor, afetos, contradições, desejo de mundo. O motivo parece ultrapassado, pois é como se o assunto “emancipação da mulher” já tivesse se esgotado. Será mesmo? Uma apreciação mais cuidadosa pode constatar que o tema está talvez mais aquecido do que nunca. Judith Butler, uma das filósofas dos estudos de gênero, assim como muitas outras pensadoras desde a década de 60, tem sido crítica em relação a explicações naturalistas que pressupõem o significado da existência social da mulher como derivado da sua fisiologia. A autora desaprova a idealização da mulher como tendo nascido necessariamente para casar-se, cuidar de assuntos do lar e procriar. Pressupõe que o corpo não é uma materialidade idêntica a si própria ou meramente fatídica: “o corpo é uma materialidade que, no mínimo, traduz significado, e a maneira como o traduz é fundamentalmente dramática” (BUTLER, 2011, p. 72). Pelo termo “dramática”, a filósofa quer dizer que o corpo não é apenas matéria, mas uma contínua e incessante materialização de possibilidades. Alega que num sentido verdadeiramente essencial, cada indivíduo faz o seu corpo; e isso, diferentemente tanto dos seus antecessores quanto sucessores. No entanto, até que ponto os indivíduos são livres para fazerem o que querem com seus corpos? Ou reencenam fatalidades que seus antecessores não conseguiram ultrapassar? Ademais, até que ponto a educação é responsável pela sucessiva reincorporação de tais fatalidades? A explicação de Butler para suas colocações é que enquanto uma materialidade intencionalmente manipulada, o corpo é sempre uma formatação, “uma corporalização de possibilidades, condicionadas e circunscritas por convenções históricas e culturais” (2011, p. 73). Compreende que os desdobramentos das questões individuais estão vinculadas a uma teia de relações sociais, de acolhimentos ou não, de circunstâncias e atuações bem definidas do meio sobre os indivíduos, antes mesmo destes terem aprendido a falar. Butler (2011) reconhece o corpo como um veículo de representação, dramatização e reprodução de escolhas coletivas. Segundo a autora, em conformidade com Simone de Beauvoir, ser do sexo feminino não tem um significado em si. Diferentemente, ser mulher é ter forçado o corpo a adaptar-se a uma ideia histórica de mulher, a uma performatividade socialmente estabelecida e repetida. “Isso não pode ser feito sem que se induza o corpo a tornar-se um signo cultural, a materializarse em obediência a uma possibilidade historicamente delimitada” (BUTLER, 2011, p. 73). Foi com este olhar que dispus de meu corpo como objeto de pesquisa por meio da performance. Hernandes (2013) afirma que ao resgatar o conteúdo biográfico que está implicado nas reflexões acerca dos conhecimentos ontológicos e epistemológicos da investigação, pode-se abrir caminho para a voz do investigador de uma maneira não complacente. Conforme apontado por Hernandes (2013), por meio da exploração de aplicações pedagógicas, uma compreensão crítica acerca do posicionamento do pesquisador pode evidenciar-se. Diante do histórico familiar, pôde evidenciar-se em mim o desejo de rompimento com as repetições.

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Além disso, na Pós-Modernidade predominam as incertezas, permitem-se questionamentos, compreende-se que a realidade é uma construção social e subjetiva. Com a reflexão interrompi o ciclo que foi repetido às escuras, comecei a iluminar a história das referidas mulheres, a minha também; isso já se configura um espelho distorcido. No presente estudo destacou-se o aproveitamento das trocas entre escrita e imagens criadas a partir do vídeo. Este é um dos valores de metodologias como a A/r/tografia, privilegiar igualmente texto escrito e produção artística (DIAS, 2013). “A arte na contemporaneidade, muitas vezes pressupõe que os artistas sejam, também, teóricos de sua produção poética” (FREDDI, 2011, p. 01). Então, sendo a pesquisa acadêmica que estou realizando uma espécie de memória intelectual, até que ponto ela pode servir para preservar, legitimar e documentar o pensamento das mulheres artistas? Estimulados pelo assunto, rapidamente se enumeram publicações de artistas homens como Boécio, Dante Alighieri, Kandinsky, as cartas de Van Gogh a seu irmão Theo e assim por diante. Onde está o acesso à memória das produções femininas? Rosemary Betterton (2011) sugere outro viés para a reflexão: um desvio do olhar que está sempre querendo observar obras e artistas. Propõe uma ênfase maior na maneira como os significados das obras de arte são construídos, e para quem; que procuremos compreender como os textos de arte são mobilizados e tornados significativos. Ademais, defende a legitimação de variadas formas possíveis de interpretação. BETTERTON (2011) alerta para a urgência de se pensar sobre “como teorizar os afetos, a identificação e o investimento em imagens feitas por mulheres e outros grupos sociais”. Suas indicações são pertinentes ao diálogo com a A/r/tografia, assim como ao meu interesse de estudo.

Figura 2: Frame da vídeoperformance Origem, 2014. Captação: Maria Salguero.

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Sonoro grito Desde 1985 as Guerrilla Girls vêm atuando no mesmo sentido das primeiras ativistas da Califórnia que passaram a desenvolver estatísticas sobre a participação da mulher no campo das artes visuais. Na militância por igualdade de gênero e raça, o grupo, formado por antropólogas, sociólogas e artistas, veste máscaras de gorila para privilegiar o debate independentemente de suas personalidades individuais. Segundo informações postadas no site oficial do grupo, entre 1985 e o ano 2000, aproximadamente 100 mulheres trabalhando coletiva e anonimamente produziram posters, performances públicas e livros em função do feminismo e mudança social. O portfólio do grupo documenta o número de mulheres representadas em galerias e instituições da cidade de Nova Iorque. Em 1989 estiveram no Metropolitan Museum contando o número de corpos nus constantes nas obras, assim como o número de artistas mulheres presentes no acervo. O resultado foi a constatação de que apenas cinco por cento das artistas eram mulheres, sendo oitenta e cinco por cento dos nus contidos nas obras, femininos. No Metropolitan repetiram a ação nos anos de 2005 e 2012, verificando que os números permaneceram praticamente os mesmos. Constata-se que é ainda presente no campo das artes visuais, a reprodução de uma hierarquia de gênero. Este ambiente é, no entanto, um local onde estas hierarquias podem ser transgredidas, onde se pode fomentar práticas e pesquisas que questionem a naturalização entre os gêneros ou a fixação de padrões para o que se compreende por ser mulher. Se não na arte, então em que lugar? Poucas foram as artistas que, a seu tempo, como Frida Kahlo (1907-1954), tiveram um destaque social deixando inclusive para acesso do público, um diário com o registro de seu pensamento. Frida foi um exemplo de “mulher mártir”, de símbolo da luta feminista. Através da pintura refletiu sobre a impossibilidade de ter filhos, seus problemas de saúde e afetivos, sua luta contra o colonialismo. Representar suas vivências nas imagens pintadas foi também um meio para que outras pessoas discutissem aqueles temas. Sobre este tipo de luta específica, iniciada por mulheres, homossexuais e outras minorias, contra a forma particular de poder e controle exercida sobre eles, Foucault (2006) afirma que fazem parte de um movimento revolucionário. A condição para tanto é que sejam radicais, sem comprometimentos, sem reformismo, nem tentativa de reorganizar o poder apenas com uma mudança de titular. No tempo de Frida não existia um movimento com a abrangência que atualmente se confere ao Feminismo/Pós-feminismo. No entanto, rompimentos com modelos normativos são visíveis na trajetória de sua vida. Representou a si mesma da maneira como gostaria de ser vista. Corajosa, pintou seus abortos e registrou a relação com suas amantes. Desafiou os papeis destinados à mulher na sociedade de sua época. Na contemporaneidade, em contrapartida, tanto a noção dos papeis sociais destinados aos sujeitos, quanto de corpo, de maneira geral, têm mudado bastante. O ápice desses deslocamentos é a afirmação de que não é mais possível fazer qualquer

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distinção de gênero (Preciado, 2007), que vivemos um tempo em que identidades estabelecidas e fixas não são mais possíveis. Com base nessa ideia, o Pós-feminismo retirou o “sujeito mulher” do seu centro. Judith Butler (2003) defende o novo modo de ver as coisas chamando a atenção para o fato de que feminilidade é também uma característica do gênero masculino. Explica que existe um transbordamento das referências sobre feminilidade, as quais não se restringem ao que era tido como o sujeito mulher na modernidade. A filósofa (2002) chega a contestar a matéria dos corpos. Admite que isso pode implicar numa perda parcial de certeza epistemológica, mas que pode da mesma forma, abrir novas possibilidades de fazer com que os corpos importem de outros modos. Butler (2002) discorda da compreensão de que ser mulher é ter corpo onde a reprodução acontece, e que ser homem é ter corpo sem esta possibilidade. Para a autora, interessam os corpos que resultam quando se deixam de levar em consideração os corpos materiais, físicos. Se eles são retirados da análise, o que é ser feminina/feminino? Foucault (2006) afirma que ainda é preciso estudar de que corpo necessita a sociedade atual. E em meio a tantas transformações, será que os temas “tradicionais” sobre o corpo feminino já se esgotaram ? Será que as mulheres artistas, por exemplo, estão de maneira geral entrando no discurso da “grande arte” e saindo das questões identitárias, assim como saíram de outros papeis com o Feminismo? Além das artistas mencionadas mais acima, lembremos de Eva Hesse (1936-1970), Carolee Schneemann (1939-), Ana Mendieta (1948 -1985), Christina Machado (1957 -), Luiza Prado (1989 -) e Clara Averbuck (1979 - ), para citar poucas, cujos trabalhos giram em torno de tais aspectos.

Figura 3: Frame da vídeoperformance Tecelagem Lenta, 2015. Captação: Maria Salguero.

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Infinitude Voltando o foco para minha história, percebo que iniciei a pesquisa numa posição de herdeira de um silêncio; e ao mesmo tempo de uma memória inscrita no corpo, que denunciava a necessidade de investigação, pesquisa, escavação. Meu próprio corpo parecia ser uma condição daquela memória reproduzida geracionalmente. Então, busquei preencher lacunas da história de vida de mulheres que nem cheguei a conhecer, mas cujos fragmentos recolhidos e ressignificados através da arte, preencheram a mim também. Quando comecei a questionar sobre as histórias da família, ninguém havia se dado conta ainda das repetições. Tratei de fatos e mulheres que estavam desvanecendo, só não totalmente desaparecidos porque ainda incorporados nas repetições geracionais. Foram mulheres cujo corpo tornou-se imóvel, impotente diante dos fatos; que morreram enquanto estavam vivas. O elemento de imobilidade pareceu ser uma inscrição, um traço, uma marca; um registro que contribuiu para que a história entrasse no campo do esquecimento. A transformação desses afetos em arte, por outro lado, tornou-os memoráveis, passíveis de não serem esquecidos. Através das performances realizadas, uma transcendência da tragédia se fez possível, foram criados atos inaugurais num “espaço /tempo” que foi de um jeito, nas repetições do passado. Que agora será para adiante, diferentemente. “Quando a imagem é nova, o mundo é novo” (BACHELARD, 2008, p. 63). Através da performance o artista pode manipular a realidade, assim como a si próprio. Pode reescrever sua história. A escolha da autobiografia como método não teve por intenção um retorno melancólico ao passado, mas sim porque permite produzir uma memória que não faz parte da história tradicional. Permite documentar o que seria facilmente silenciado. Na fertilidade do processo, vislumbrei a criação de um blog para conectar pessoas interessadas em ancestralidade, histórias familiares. Pensei também no projeto de um filme curta metragem, documentário, onde outras mulheres usariam seu sangue menstrual para escrever na parede seus manifestos, para contar suas histórias. Convidei uma amiga para iniciar a proposta, mas ela respondeu categoricamente: “o sangue menstrual é muito sagrado para isso, não”. O que ela disse é verdade. Mas tentar transformar estigma, tabu, preconceito, subjugação do corpo feminino, não é igualmente sagrado? A mulher foi sempre o corpo “fetiche” usado na história da arte, é possível uma transformação dessa imagem cultural? Será que podemos falar desse corpo que vem sendo idealizado e interpretado por homens? Meu corpo sente diferente do que está sendo mostrado, meu corpo sangra, e também chora.

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Anna Carolina Coelho Cosentino Especialista em Teoria e Prática Junguiana (Universidade Veiga de Almeida, RJ, 2011), Especialista em Arteterapia (Clínica Pomar, RJ, 2009), Graduada em Economia (UFPE, 1998), Mestranda em Artes Visuais (UFPE, 2015). Membro da Associação Ylê Setí do Imaginário; do Centro de Pesquisas Internacionais sobre o Imaginário (CRI2i); e da Associação Pernambucana de Arteterapia.

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A EXPOSIÇÃO “1DEDO DE PROSA” COMO PROCESSO DE DIÁLOGO ENTRE MODOS DE VIDA Ariana Lima Nuala Reithler Pereira de Lima/ Universidade Federal de Pernambuco Xadai Rudá Chavarria Brochardt/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O artigo foi escrito após uma visita à exposição “1Dedo de Prosa”, do artista Marcelo Silveira e da pesquisadora e professora Cristina Huggins no MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães). E neste, pretendeu-se fazer uma leitura crítica do trabalho exposto levando em consideração a participação do EducAtivo do MAMAM durante o período de exposição. O trabalho artístico se divide em duas ações e estas foram realizadas nas ruas do Recife e no MAMAM, e serão pontuadas as diferenças entre as ações (fora/dentro), mas tais distinções não fazem perder a substância atômica da obra, localizando a potência entre dois espaços. PALAVRAS-CHAVE Estética Relacional; Artes Visuais; Espaço urbano; Mediação Cultural ABSTRACT The article came about after a visit to the exhibition "1Dedo Prose", by artist Marcelo Silveira and researcher and professor Cristina Huggins in MAMAM (Museum of Modern Art Aloísio Magalhães). In this writing was intended to make a critical reading of the above work in view of the participation of the educational MAMAM during the work period of exibition. The artwork is divided into two shares and these were held in the streets of Recife and MAMAM, and will be punctuated these two differences of actions (outside / inside), but these distinctions does not lose the atomic substance work, thus locating the power between two spaces. KEYWORDS Relational Aesthetics; Visual arts; urban space ; Cultural mediation

Introdução Iniciando a conversa Visitar uma exposição, conversar durante a visita e encontrar um espaço de diálogo a partir do simples, fez-nos refletir sobre o ato de escrever. O simples é aqui um lugar de exposição de si, um lugar onde não se oculta algo, mas se releva, se compartilha. Uma escrita que não fique apenas para si, para nós, mas uma escrita que se desloca do autor para o leitor. Uma escrita que se propõe ser para o outro. Será que todo texto é assim? Até onde o que é escrito é para o outro? Escrever para dialogar. Assim, a escrita também se torna uma ponte para o agir democrático, o exercício e a própria prática.

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A ponte se torna um valor estético, não somente quando estabelece, nos fatos e para a realização dos seus objetivos práticos uma junção entre termos dissociados, mas também na medida em que a torna imediatamente sensível (SIMMEL, 1996, p. 11).

Como este artigo, mesmo inserido nos critérios acadêmicos, procura dissolver barreiras e cria pontes? Com ele, exercitamos a potência do compartilhamento. “Porque essa mesa não ir pra calçada?” - Marcelo Silveira

Sair de si e ir para o outro. Transitar. Criar e encontrar o lugar que se estar. Dialogar. A pergunta acima foi uma das frases que o artista pernambucano Marcelo Silveira expôs em entrevista para o jornal local JC Online. Ele nos conta que foi nessa inquietação que surgiu o leitmotiv da criação da exposição “1Dedo de Prosa”, que ficou aberta no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães entre os meses de março e abril, do corrente ano, na cidade do Recife. A pergunta surgiu quando o artista e sua amiga Cristina Huggins, pesquisadora e professora, refletiram sobre o lugar de suas próprias conversas cotidianas, do por que não atravessar o lugar privado onde existia este encontro e também esta partilha entre eles e compartilhar, deslocando este espaço para lugares públicos e criar novas redes de partilha e diálogo. Este lugar onde o artista e a pesquisadora se encontravam eram as mesas de suas casas, exercitando o diálogo que é produto da relação entre eles. A exposição consiste na recriação de um espaço de convivência, onde a cidade do Recife se torna corpo com espaços de compartilhamentos, narrativas e vivências.

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Assim, também, durante uma conversa entre nós, dois estudantes do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), surgiu a ideia da escrita deste artigo. O desejo de nós, estudantes com experiências em mediação em instituições públicas da cidade do Recife, inclusive no próprio MAMAM, museu que abrigou a exposição “1Dedo de prosa” por um mês, querermos dialogar com os artistas citados. A Exposição “1Dedo de Prosa” é uma confirmação da ação 1Dedo de Prosa. É o registro e uma ocupação do que foi produzido nas comunidades para além das quatro paredes do MAMAM. A exposição é uma confirmação do diálogo entre os transeuntes, pelo motivo de ocupar um espaço do museu; registro por ter uma reprodução audiovisual do que foi ocorrido nos momentos das ações, devido a uma câmera escondida estrategicamente e alguns microfones no local da mesa, bem como um desenho do mapa do Recife onde mostra locais pela cidade onde a ação foi realizada. A Noção de ocupação de “1Dedo de Prosa”, que ora se dá nas ruas do Recife e ora se dá no MAMAM, são situações que no tempo e no espaço são diferentes. Entretanto, tais ocupações não se fazem perder aquilo que a ação tem de potencial: Entre Fora (na cidade) e Dentro (no MAMAM) os relacionamentos acontecem. A mesa, os bancos, o baralho e o dominó são objetos ali ocupados pelos transeuntes que contribuem para o acontecimento das relações. Além de permanecer a ideia dos objetos expostos, o espaço expositivo assegura a disponibilidade do objetivo pelo qual é percebida a possibilidade de interação. O espaço, elaborado pelos artistas, incita o transeunte a sentar ou jogar uma partida de dominó ou baralho. Neste sentido, portanto, é necessário aqui, não apenas descrever as ações nos diferentes momentos, mas explicitar como esta ação ocorreu dentro do MAMAM e como se desdobrou em outras reflexões sobre os modos de vida na capital pernambucana. Modo de vida: O artista Diante deste deslocamento, do próprio lugar onde se vive, o artista contemporâneo consegue exercer o exercício da contemporaneidade. Este, insere outro olhar sobre aquilo que ele vive; entretanto, este deslocamento não o faz (des)situar a noção de indivíduo no seu próprio espaço. Portanto, o artista “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p.62). É nesta observação de olharmos para o “escuro” que encontramos possibilidades de ressignificarmos a própria vida, e gerarmos os desvios e as novas formas de olhar. A noção de “vida cotidiana” é, de fato, normativa e viver a vida cotidianamente é uma escolha. A todo momento estamos condicionados a vivermos da forma que nos ditam os meios midiáticos, mas será que podemos criar o nosso próprio ritmo? Criar brechas e desvios para uma vida mais autônoma e menos automática, gerando consciência. Este desvio não é uma efemeridade do momento, como poderia ser um intervalo do tempo; é mais uma projeção da forma de vida.

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Será que aquilo que o artista observa pode-se criar formas ou é, na verdade, pela sua ação, nesta inserção do espaço em seu tempo que aparecerão as formas? Na exposição, que estava no MAMAM, as formas são constituídas por formações, cujo outro é o que dá o próprio molde. É neste sentido, também, que o sujeito é ‘crucial” na obra exposta, pois é o coeficiente da arte que Duchamp¹ fala: o sujeito se insere no objeto cujo resultado será o produto arte. Neste caso, o objeto - materialmente falando, a mesa - é suporte para o encontro. a relação entre dois sujeitos que surgem nas form(ações). Os objetos permitem e disponibilizam o espaço para que uma interação inter-humana aconteça, um “encontro fortuito, na relação dinâmica de uma proposição artística com outras formações, artísticas ou não” (BOURRIAUD, 2009, p.30). Lugar de vida: A cidade Cidade, este é o campo onde está presente o discurso da exposição “1Dedo de Prosa”, onde o território é ocupado. O deslocamento de um ambiente habitualmente privado, neste caso uma mesa e cadeiras, provoca encontros, onde a ação é uma expansão de um ambiente para o público. A cidade onde o artista mora e que também é palco para estes encontros é o Recife. O Recife vem sendo, cada vez mais privativo: prédios, carros, lojas, dinheiro, relógio e consumo. O cenário de um recifense é aquele que não pode parar, pois o parar significa, muitas vezes, perder. Assim, as pessoas deixam de construir ritmos próprios, o modo como operam. Os modos são preestabelecidos, organizados pelo ritmo do lugar onde vivem, neste caso a cidade como uma grande orquestra que organiza ritmos de vida, o modus operandi de cada um. O bairro da Boa Vista, lugar onde se encontra o MAMAM, é antes de tudo um lugar para passagem, com portas nos estabelecimentos que permitem o tráfego de quem transita na cidade, permitindo que as pessoas usufruam do comércio do bairro e de todas as articulações econômicas. “Se compra, se vende, se opera nestes verbos e em algum ponto o flâneur, que Baudelaire apontava, já não está nas maiorias, e que talvez nunca esteve e nem estará. O flâneur é aquele que observa a cidade, que vê as luzes e contempla a atmosfera de prédios, de construções, dos carros é aquele que ao andar consegue sentir e observar o lugar em que se anda”. Neste contexto, os que exercessem o deambular na cidade, muitas vezes são os que não usam os outros verbos anteriores, o de vender e o de comprar. O flâneur é o observador, então em qual perspectiva ele participa do comportamento da cidade? Ele é aquele que ver as tramas mercadológicas, mas segue sua vida com uma outra forma, a forma do observador, é observando que o flâneur consome. Quem é então o caminhante que vagueia nesta cidade? O ambulante solitário que anda a procura de encontros na cidade? Quem é aquele que com seu fio, se conduz para tramar novas relações que o tirem de seu próprio caminho, e assim o faça valorizar mais uma vez o significado de um desvio? Os movimentos da cidade parecem estar repletos de momentos de crises. E assim, em momentos de segregação das possíveis relações, tempos de afastamentos, individualização exacerbadas, inadmissíveis compartilhamentos, ignorância ao

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enxergar a existência desta outra pessoa. E, por fim, como estão se tramando as possíveis e até mesmo as breves relações que antes se tinham com os outros? O desvio é a criação para o momento de um mergulho profundo, neste segundo o tempo é ser e não ter dinheiro. As propostas para ações desviantes acontecem dentro de um lugar, de onde quem as propõe exercita em todo instante o olhar contemporâneo. “O caminhar condiciona a vista e a vista condiciona o caminhar a tal ponto que parece que apenas os pés podem ver - Robert Smithson” (CARERI, 2013. p.110). Esse pensar sobre o trajeto de alguns artistas da landart também é um descondicionante social e político, pois acaba acionando uma nova forma de interação com o ambiente, logo, o processo se torna emancipador. Aqui não é o caso de Marcelo e Cristina, as práticas feitas por eles se diferem das de Smithson, por exemplo, mas também constroem uma relação de ressignificação do espaço, onde o que importa é a verdadeira (re)criação do que parece já existir. Neste caráter, podemos ver a landart como um processo conscientizador, onde a alteração do ambiente pelos artistas promove olhares sobre aquele lugar não habitado, e assim, o que era vazio se tornava uma obra de arte, muitas vezes consagrando este ambiente. No caso da ação feita pelos artistas em questão, o olhar era sobre algo habitado, um lugar constante, mas até onde existia realmente uma fruição, um uso, deste espaço? A problematização sobre o lugar torna “1Dedo de Prosa” parte do lugar e não algo que apenas ocupava o lugar, mas sim, que fazendo parte deste, ela pode transitar entre outros. “É uma filosofia do transitar, os questionamentos então foram para como reconhecer esse tipo de trabalho que muitas vezes ninguém vê, mas que existe na travessia. Com a ausência do objeto, ficaram os registros das obras. É no exercício de empoderamento da paisagem que os artistas trabalham.” Assim, nos questionamos sobre a imensidão da experiência estética que existe nesta ressignificação, assim seria o próprio encontro com o objeto de arte e também um propositor de experiência. Ora, não seria essa pequena volta ao passado, essa genealogia das artes visuais, que passou pelos artistas da landart, dadaístas, surrealistas, situacionistas, entre tantos outros que buscaram provocar o lugar onde se habita, uma maneira de entendermos uma outra maneira de habitar os espaços? Na cidade do Recife, os lugares de afeto, viram cada vez mais um lugar de memória. O planejamento urbanístico da cidade se construiu dentro de uma pauta que estabelece poucos lugares de convívio, assim a própria ideia de política deixa de existir, pois não existem encontros entre sujeitos. As relações são vistas do alto para baixo, e quem está abaixo acaba tendo que correr. E como contemplar se apenas corremos? É como o coelho, da literatura de Lewis Carrol, onde precisa de um ser estranho, a Alice, para perceber seu próprio lugar em um modelo social hierárquico. Será que precisamos de um outro para nos percebemos? Nas suas ações Marcelo e Cristina criam um lugar de contato, ou seja, um ambiente que se forma primeiramente pela disponibilidade de estar com outros. O isolamento é um fator cada vez mais recorrente dentro da vida nas cidades, o encontro parece ser

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algo subversivo neste sentido, ele se apresenta na contramão do comportamento social contemporâneo. Somos reféns de um mecanismo infernal que, ironia do destino, parece ser, sim, irrefreável: quanto mais nos damos conta dos limites e dos imprevistos, mais nos sentimos frágeis; quanto mais nos sentimos frágeis, mais nos sentimos perdidos e com medo, mais nos tornamos retraídos e amargos. (LABBUCCI, 2013, p.128)

E é por este ser que se torna amargo e que tem medo que as ações de contato se tornem tão necessárias, que os campos onde o imprevisível parece ser permitido e o indivíduo se torna criador e participante do seu próprio espaço, surgem a partir do diálogo. Na exposição, devemos localizar o MAMAM como um ponto sutilmente estratégico para dar funcionalidade a esta potência de “1Dedo de prosa”. O museu se encontra no coração do comércio do Recife, onde milhares de pessoas ali circulam e trabalham exaustivamente. Ambulantes, lojas, shoppings, cinemas, churrasquinhos etc. neste caso, para além de comércio, então, circulam também muitas pessoas. O museu fica na Rua da Aurora, próximo a Av. Conde da Boa Vista, onde tudo acontece. Talvez seja preciso romper o vínculo com a cidade para assim, criar o seu próprio tempo. Isto não significa um corte ou uma fuga da metrópole, mas sim o exercício do contemporâneo, conseguir deslocar o olhar e os gestos para assim ressignificar onde se vive. É uma questão de reconstruir o que antes já estava vinculado de maneira determinada. Os artistas se posicionam para além de artistas, antes de tudo. conversar, por vezes, do passado é, de certa forma, elevar a uma diferença do momento presente. O que é falta neste presente senão um vínculo com o passado? Ora, se antes as pessoas se desdobravam esses territórios privados que, no caso, esta sala de estar para a rua, é pelo motivo de mostrar um laço afetivo de união, onde pessoas se uniam em encontros duradouros ou não. será que isto ocorre hoje como antes? A continuidade dos relacionamentos são as formas de vida que se davam. os artistas retornam a essa memória afetiva e aplica-se aqui e agora, no presente. A cidade como suporte de memória. Kafka, segundo Milan Kundera, escrevia sobre uma humanidade que esqueceu sua própria continuidade enquanto humanidade, que não sabe, que não lembra mais e que suas cidades não tem nomes... pois, a continuidade da noção de humanidade é uma continuidade do passado. O que seria de equivalente disto ao falar sobre “1Dedo de Prosa”? Quando a mesa se finca nessa cidade e delimita o território assegurando o espaço democrático, não seria uma maneira de fazer deste espaço um lugar de produção de diálogos? Não apenas isto: seria, antes, um lugar onde as pessoas possam produzir continuidade a este passado, onde as casas se alastravam nas calçadas, onde pessoas se encontravam e produziam diálogos; isto seria dar a continuidade ao que seria um relacionamento inter-humano cujos hábitos e costumes resistem em seu habitat. Quando os artistas, portanto, fincam uma mesa no território, está também fincando aquilo que resiste no presente: a memória de uma

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continuidade de relações humanas cujos gestos não podem ser esquecidos. Espaço de encontro: Mediação Transitar. Seria este o verbo sobre uma passagem, porém, um deslocamento que acompanha um sentido de mudança, quem se desloca já não é mais o mesmo. Aqui, a exposição cria um complexo de fios, e estes sugerem que seu início e fim estejam sempre emaranhados, ou seja, existe uma colaboração entres todos os fios para tramar uma mesma rede. Esta imagem pode ser usada em paralelo sobre a integração que surgiu como motor para os tantos diálogos construídos na exposição. O fazer artístico seria um lugar de construção de uma investida, ou seja, se acolhe para criar relações de possíveis identidades e alteridades. A investida neste caso é do artista que quer compartilhar e quer provocar outros compartilhamentos. É o ambiente de problematização e polinização, por isso, é nutrido por um acolher: (…) em seu modo de acolhimento absoluto, a obra de arte seria pura generosidade, ao receber tudo e todos (de modo perverso, sem perda de estranheza, no limite possível de uma alteridade radical) (BASBAUM, 2009, p. 205).

Aqui, o artista se coloca não só em uma posição de criador de uma produção para si, mas ele procura o diálogo, procura relações. Ser mediador é ser uma ferramenta, uma ferramenta que serve ao sensível e ao complexo, é ser articulação dobrável dentro de milhares de possibilidades. É ser contorcionista de um sistema muitas vezes enrijecedor, que nos isola e não nos permite o caminhar. Lugar de ferramenta, lugar de mediador. Artista, mediador, obra, lugar expositivo, cidade, ônibus, outdoor, facebook. Todos são educadores. Neste sentido, é essencial pensar no poder da imagem para reunir essa parcela de consciência de ser um mediador, a potência do que não é palavra, mas pode ser palavra quando esta é imagem. Uma mediação a tratar de imagens, deve algo que possibilita ainda mais imagens? Seria isso que recuperaria a política humana, como Arendt falou quando nos joga as relações entre barreiras? Didi-Huberman se apropria desta reflexão para nos questionar sobre como as imagens podem ser potência. Uma provocação sobre a disponibilidade para a política, os confrontos e os encontros. A política nasce no espaço-que-está-entre os homens, logo em algo fundamentalmente exterior ao homem. Não existe, portanto, uma substância verdadeiramente política. A política nasce no espaço intermédio e constitui-se como relação. (...) A política organiza subitamente seres absolutamente diferentes, considerando a sua igualdade relativa e fazendo abstração da sua diversidade relativa (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 53).

Seria essa, então, uma estratégia para um novo paradigma educacional e artístico? Uma maneira que tenta construir e não hierarquizar os pontos entre arte e educação, e assim, consegue levantar novos olhares e ações dentro de uma perspectiva de permutação entre esses dois campos?

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A produção de Marcelo Silveira e Cristina Huggins poderia estar falando também sobre a transpedagogia? Segundo nos diz Helguera, criador do conceito da Transpedagogia, nas primeiras páginas da publicação: “Pedagogia no Campo Expandido” da 8ª Bienal do Mercosul, o termo foi feito “(...) para tratar de projetos feitos por artistas e coletivos que misturam processos educacionais e a criação de arte, em trabalhos que oferecem uma experiência que claramente é diferente das academias de arte convencionais ou da educação de arte formal”. Diante disto, o que Silveira e Huggins propõem é a troca, é a relação do diálogo, a matéria prima de seu trabalho. Os dois discutem novas formas de interação, retomando até um antigo hábito de colocar a cadeira na rua e observar a cidade. Eles criam imagens, mas nunca sozinhos, eles recebem imagens dos transeuntes da rua, dos mediadores que bebem da obra e constroem sua relação autônoma atravessando todas as referências e se contagiando de novas proposições a cada encontro. Talvez o que a exposição mais ensine é a própria maneira de agir com uma obra de arte, que vem de maneira simples e é simples, é cotidiana, porém não menos complexa. Mediadores criam imagens. É preciso falar por si só. Isso é arte contemporânea, um espaço de generosidade. Levar uma experiência e compartilhar com o coletivo, num ato de generosidade. Deixar algo de si, como herança, para ser encontrado por alguém que nem conhecemos (COUTINHO, NAKASHATO, LIA, ARANTES; 2008, p. 1394).

O motor para essa escrita é o princípio de uma construção e de uma integração. Vemos as relações entre museu, cidade, artista, educativo, público, transeuntes, vendedores, leitores, escritores, montagem, exposição/expografia, curadoria, Marcelo, Cristina, Ariana, Xadai, etc; ou seja, o próprio processo criativo é feito por afetação. A afetação é o que movimenta a criação, é o motor que aqui realiza. As próprias relações onde todos, em algum momento, escutam e acolhem. Os artistas propõem exercitando o diálogo. A princípio, o artista já tinha estruturado nos seus planos o que e como pretendia montar a exposição para além da mesa, cadeiras e etc: uma projeção do vídeo que reproduzisse as ações que foram gravadas na grande Recife, bem como ilustrar na parede o grande mapa deste bairro para melhor delimitar e localizar todos os momentos que foram realizados. No entanto, a coisa só se completou a partir do EducAtivo MAMAM, o qual teve um papel crucial para essa montagem. O EducAtivo do mamam é composto por arte/educadores, com formação para além dos estudos de mediação cultural, os/as estagiários/estagiárias em sua grande maioria são estudantes de artes visuais. Como foi dito, o artista tinha alguns planos, mas resolveu ter uma conversa com o educativo do museu a fim de sugestões e uma possível ajuda. Então foram acolhidas estas duas ideias já estruturadas pelo artista, que foi posta em prática. No entanto, a equipe acrescentou algumas outras cuja

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forma seria para melhor fomentar além do diálogo, a interação. Em um processo colaborativo, educadores do museu sugeriram que o desenho do grande mapa fosse desenhado na parede para ilustrar os locais onde aconteceram as ações e que também fizessem um outro desenho em torno daquele. Este outro desenho seria feito, pelos educadores, agora a partir de fotografias tiradas estrategicamente para melhor localizar o fato ocorrido: coisas e objetos que de fato remetam ao espaço. Sendo assim, como uma espécie de um zoom do grande mapa, construiu-se uma linha para além do mapa do Recife para melhor precisar o local onde foi feito a ação. Esta ideia do desenho foi para vários cantos da parede. Uma outra ideia que é a do post-it: numa área da exposição haviam disponíveis vários papéis pequenos de forma retangular e de cores neon para que os visitantes escrevessem algo que remetesse a uma memória afetiva e que, em seguida, fosse colado, localizando-a no mapa. Neste sentido, a exposição desta ação denota um outro sentido como uma adição de sobreposição: não são os artistas que agora estão presentes no espaço expositivo, mas sim os mediadores. Ora, o que é a mediação cultural senão um meio para abrir-se a um possível diálogo ao que está sendo exposto? A mediação é muito diferente ao que se diz de monitor ou guia. O papel do mediador ainda é um tanto desconhecido e está para além de explicar, descrever ou até mesmo “guiar” o sujeito visitante ou o grupo que esteja presente no espaço expositivo: o mediador tenta situar-se entre o sujeito visitante que está à disposição e a arte; neste caso, a conversa é para se pensar em possíveis construções estéticas do sujeito a respeito da arte. O mediador não afirma o que é, mas levante questionamentos para o sujeito visitante sobre a arte, levando-o a refletir sobre a sua relação com ela. Portanto, o mediador cultural é um facilitador para um possível diálogo, no intuito que o sujeto visitante apenas se compreenda como apreciador estético, mas que pode construir novas formas de sensibilidades. Parece um tanto metafórico e não menos imprevisível, mas é como se a imagem da forma de vida dos artistas – seus gestos- recaísse na equipe do educativo; Pois, o público espontâneo trocava os papéis dos estagiários por pessoas igualmente espontâneas (como aquelas das ruas, que se sentavam e conversavam com os artistas no momento das ações) como se a conversa – como também as partidas – se operasse e vice-versa. Segundo alguns mediadores/estagiários, havia momento em que algumas pessoas se sentavam juntamente com a equipe do educativo e começavam a conversar ou até mesmo jogar uma partida de dominó, como também os mediadores convidavam para escreverem no post-it algo que remetesse alguma memória afetiva e que, em seguida, colasse no mapa desenhado o local onde aquele fato ocorreu. Sendo assim, os suportes materiais serviam-lhes, ao público e aos mediadores, como objetos facilitadores do diálogo. Portanto, a substância atômica, ou melhor, a arte como forma de vida ou formas de diálogos se manteve durante a exposição, sem subtrair nenhuma potência; na verdade, adiciona uma nova: as formas de relação de caráter espontâneo e de estranhamento do público com o educativo fazem com que

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o diálogo se desdobre independente de onde estejam localizadas a obra e sua ocupação, pois a ação, ou melhor, o diálogo deu-se criando uma continuidade e possíveis desdobramentos que foram facilitados pelos educadores do MAMAM. A exposição “1Dedo de prosa” é diferente de 1Dedo de prosa por alguns motivos. Essa ação ilustrada pela exposição é legitimada no espaço como objeto artístico, seja suporte ou não; seja meio ou fim. A ocupação dos objetos, bem como o espaço em si legitima e, de certa forma, privilegia aquele espaço como algo de sagrado. Mas, como se opera uma mesa cujas cadeiras estão livres ao dispor da rua e para o público que ali perambula, seja de forma rotineira ou não? Qual é o objetivo disto no espaço e o que tem a ver com as pessoas? Que relação tem isto com o momento presente? Ora, é disso – entre desencadeamentos de questionamentos possíveis - que lhes parecem estranhos aos olhos do público. A vida corriqueira, sem querer, faz-nos desperceber a rotina; mas quando se põe um objeto cuja natureza ali lhes parece ser uma novidade, suscita um estranhamento de algo que não pertence aquele espaço. Mas, por vezes, esse estranhamento se desloca para um possível encontro: o/a artista convida para sentar e os transeuntes aceitam o convite. Portanto, dois sujeitos – ou mais – se unem e se disponibilizam: é o começo para fomentar possíveis encontros, possíveis diálogos… Considerações finais Para além de uma metáfora, as considerações finais são um desfecho suficientemente incompleto em “1Dedo de Prosa”; pois, é uma forma política de pensar, produzir e unir laços afetivos - e isto nunca é suficiente em si mesmo. Requer práticas de vida que estejam sempre se desvirtuando destas relações robóticas que vem sendo vistas tanto na política como nas relações econômicas como formas de relação. É neste sentido, que Marcelo e Cristina fincam um projeto político, pois alterna esse modelo de relação… essa ação deve ser algo que se dê continuidade, independente da obra. As considerações finais são possíveis reflexões para além da obra de arte, mas como são realizadas e como podem ser operadas novas formas de vida nas relações interhumanas. Como ocupação de resistência, 1Dedo de Prosa nos convida para o encontro, para o dialogo e para operamos de através de modos de vidas mais autônomos. Uma estética da existência, como diria o filósofo francês Michel Foucault. Bourriaud, de forma magnífica, diz que " a arte moderna induz uma ética criativa refratária à norma coletiva, cujo imperativo assim formulado: faz da tua vida uma obra de arte" (BOURRIAUD.2011). A arte contemporânea de outras maneiras, parece ser um projeto semelhante neste sentido que o filósofo diz, no entanto, talvez o imperativo seja este: faremos desta obra de arte, produção de vida.

Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Editora Argos, 2009. BASBAUM, Ricardo. Quem é que vê nossos trabalhos?. Seminários Internacionais

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Museu Vale 2009–Criação e Crítica, 2009, pág. 201 - 208. __________ Mediações. Mesa: O artista e seu âmbito de atuação. Seminários Longitudes. Março, 2014. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. __________ Formas de Vida: A Arte Moderna e a Invenção de Si. São Paulo: Martins, 2011. CARERI, Francesco. Walkscapes: O Caminhas como prática estética. São Paulo: G. Gill, 2013. COUTINHO, Rejane; NAKASHATO, Guilherme; LIA Camila; ARANTES Tatiana. Mediação Cultural: Uma estratégia performática para a exposição Yoko Ono. 17ºEncontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, Florianopólis, 2007, pág 1391-1401. DIDI-HUBERMAN, Georges. Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural. A República Porvir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI, p. 41-70, 2011. HELGUERA, Pablo; HOFF, Mônica (orgs.). Pedagogia no campo expandido. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2011. KUNDERA, Milan. O Livro do Riso e do Esquecimento. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008 LABBUCCI, Adriano. Caminhar, uma revolução. Trad. Sérgio Maduro. São Paulo: Martins Fontes (2013). RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. Xadai Rudá Estudante de Licenciatura em Artes Visuais - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ariana Nuala Estudante de Licenciatura em Artes Visuais - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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CONEXÕES DA CULTURA VISUAL COM A EDUCAÇÃO BÁSICA NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DOS ANAIS DA ANPAP DE 2010 A 2015 Maria Emilia Sardelich/ Universidade Federal da Paraíba Bianca Taiana S. L. Alves/ Universidade Federal da Paraíba RESUMO Este trabalho apresenta um levantamento bibliográfico realizado nos Anais dos Encontros da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), entre 2010-2015, a fim de identificar o espaço da Cultura Visual no âmbito da Educação Básica. Está vinculado a uma pesquisa mais ampla, conduzida pelo Grupo de Pesquisa em Ensino de Artes Visuais (GPEAV), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sobre o estado do conhecimento da Cultura Visual no Brasil, no período de 2005-2015. O levantamento bibliográfico realizado a partir dos descritores cultura visual e visualidade foi organizado por ano de publicação e tendências temáticas identificadas. Os resultados apontam que essa produção acadêmica vem crescendo anualmente ampliando o debate na área de Educação com questões referentes aos afetos, o corpo, o gênero, a sexualidade, as relações étnico-raciais e as identidades. PALAVRAS-CHAVE Cultura bibliográfico; Anais ANPAP

Visual;

estado

do

conhecimento;

levantamento

RESUMEN Este artículo presenta una recopilación realizada en los Anales de los Encuentros de la Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), entre 2010-2015, para identificar el espacio de discusión de la Cultura Visual en la Educación Basica. Se vincula a un proyecto más amplio, realizado por el Grupo de Pesquisa em Ensino de Arte (GPEAV), de la Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sobre el estado del conocimiento de la Cultura Visual en Brasil, en el periodo de 2005-2015. Se realizó el estudio bibliográfico a partir de los descriptores cultura visual, visualidad y sus datos fueron organizados por año de publicación y las tendencias temáticas identificadas. Los resultados muestran que esta producción académica ascende cada año ampliando el debate en Educación con indagaciones relacionadas a las emociones, el cuerpo, el género, la sexualidad, las relaciones étnico-raciales e identidades. PALABRAS CLAVE Cultura Visual; estado del conocimiento; investigación bibliográfica; Anales ANPAP

INTRODUÇÃO Os campos de estudo costumam se configurar atravessados por inúmeras linhas e conexões que podem contestar as fronteiras disciplinares de outros campos em incontáveis vozes simultâneas. Seus antecedentes e contextos resultam de um esforço coletivo que requer certo tempo para a sua aceitação. Hernández (2006) situa na década de 1970 os inícios do debate sobre as práticas da visão, dos meios e das representações visuais a partir de uma perspectiva cultural. Esse amplo debate emergiu em uma conjuntura intelectual marcada pelo esfacelamento da ideia de 42


objetividade, razão e verdade; pela onda reivindicatória das minorias por reconhecimento; pela aceleração das trocas culturais por meio das tecnologias da informação e comunicação que vêm transformando a nossa compreensão sobre o próprio espaço/tempo em que habitamos, nossa memória e nosso conhecimento. Nessa conjuntura vem se constituindo o campo híbrido, polimorfo e a-disciplinar (HERNÁNDEZ, 2006) denominado de Cultura Visual, que assinala uma problemática de estudo e não um “objeto teórico” de contornos definidos e limitantes (MITCHELL, 2009), que move o pesquisador a explorar as fronteiras culturais, pois as representações visuais fazem parte do conjunto de práticas de discurso (MITCHELL, 2000). As noções de visão -o processo fisiológico em que a luz impressiona os olhos- e visualidade -o olhar socializado- são fundamentais para o campo de estudo da Cultura Visual, pois pensar sobre essas práticas implica questionar os modos pelos quais vemos o mundo e a nós mesmos e, também, como somos capazes, autorizados e ou levados a ver a nós no mundo (JAY, 2004). Do mesmo modo que a imagem é produzida, se multiplica e circula apressadamente pelas diversas redes biotecnológicas, a produção acadêmica sobre o campo da Cultura Visual experimenta essa mesma avidez. No Brasil, em 2005, a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), dedicou seu Encontro ao tema da Cultura Visual e Desafios da Pesquisa em Arte. A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) editou a Coleção Educação da Cultura Visual, entre 2009 e 2015, com a organização de Irene Tourinho e Raimundo Martins, que reúne grande parte da bibliografia em língua portuguesa desse campo de estudo. A problematização sobre a experiência visual também vem ganhando espaço em dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em levantamento realizado no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), em dezembro de 2015, foram localizados 139 trabalhos defendidos entre os anos de 2011 e 2012. A quantidade dessa produção em inúmeras áreas do conhecimento tem gerado alguns questionamentos entre os pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Ensino de Artes Visuais (GPEAV), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tais como: De que modo vem sendo construído o campo de estudo da Cultura Visual no Brasil? Quais os centros de produção acadêmica? Quais as concepções de Cultura Visual que circulam nesses trabalhos? Quais as concepções de visualidade? É possível reconhecer fontes de referência, opções conceituais, abordagens metodológicas comuns entre os centros de produção acadêmica? Quais as contribuições e pertinência destas publicações para o Ensino de Arte e da Educação no Brasil? Quais as contribuições desses estudos para o cotidiano escolar e professores da Educação Básica do Brasil? Em função desses questionamentos, o GPEAV vem elaborando um estado do conhecimento sobre a Cultura Visual no Brasil entre os anos de 2005 - 2015. Dayrell; Carrano (2009) afirmam que se convencionou denominar de “estado do conhecimento” ou “estado da arte” esse esforço sistemático do qual nenhum campo do saber pode prescindir de inventariar, de fazer um balanço sobre o conhecimento produzido em determinado período de tempo e área de abrangência. A investigação sobre o estado do conhecimento da Cultura Visual no Brasil propõe-se a contribuir com a consolidação do campo de estudo, divulgando a sua produção acadêmica como também indicando suas bases de sustentação, as temáticas investigadas, o processo histórico dessa produção e a distribuição geográfica de seus polos de produção.

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Apesar das diferentes denominações que os pesquisadores atribuem a esse tipo de investigação – estado do conhecimento ou estado da arte– o foco de interesse recai na busca pela compreensão do conhecimento produzido e acumulado em um determinado tempo e espaço por meio do seu inventário, sistematização e avaliação. Propõe-se “identificar temáticas e abordagens dominantes e emergentes, bem como lacunas e campos inexplorados abertos a pesquisas futuras” (HADDAD, 2002, p. 9). Inserida na abordagem qualitativa, de natureza exploratória e bibliográfica, a pesquisa descreve as informações sobre os trabalhos acadêmicos produzidos no campo de investigação. Spósito (2009) adverte que a confiabilidade de um levantamento que pretende caracterizar-se como estado do conhecimento depende tanto do recorte do universo a ser investigado quanto das fontes disponíveis para consulta. Por essa razão, o GPEAV articula, neste momento, levantamentos da produção acadêmica em três fontes de consulta: Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Anais dos Encontros da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e a Coleção Educação da Cultura Visual, editada pela UFSM. O recorte que se apresenta nesta comunicação refere-se à coleta, organização e classificação das comunicações apresentadas e publicadas nos Anais da ANPAP entre os anos de 2010-2015. Para tanto organizamos esta comunicação em três partes. A primeira expõe o processo de levantamento bibliográfico realizado nos Anais da ANPAP; a segunda apresenta os dados coletados sobre os trabalhos no campo de estudo da Cultura Visual destacando aqueles vinculados a projetos de pesquisa ou trabalho desenvolvidos em escolas de Educação Básica, pois o recorte que realizamos nesta comunicação indaga sobre os espaços que a Cultura Visual vem ganhando nesse âmbito. A terceira parte tece as considerações alcançadas com este estudo até o momento. A coleta da produção acadêmica André (2007) destaca que não há consenso entre os pesquisadores sobre os fins e métodos de pesquisa. O posicionamento que assumimos em relação aos fins desta investigação é o do questionamento sistemático, crítico e criativo do processo de produção desse conhecimento, pois consideramos que, na condição de pesquisadoras, necessitamos fazer um esforço de olhar o familiar como se fosse estranho, pelo fato de estarmos envolvidas na produção desse conhecimento. Bardin (1979), no clássico livro sobre análise de conteúdo, destaca que, em geral, os pesquisadores têm uma certa dificuldade e alguns até uma certa repugnância em descrever sua hesitante alquimia e se contentam com uma exposição rigorosa dos resultados finais evitando explicitar as hesitações dos “cozinhados” que os precederam, o que dificulta o trabalho dos pesquisadores iniciantes. Destacamos que este processo de investigação e sua comunicação também têm um caráter didático, pois se vincula à formação de pesquisadores iniciantes. Por isso mesmo procuramos descrever o processo de elaboração com suas dificuldades, os possíveis erros que nos levaram a corrigir o rumo previamente estabelecido. A coleta de dados que apresentamos neste tópico restringiu-se aos Anais dos Encontros da ANPAP entre os anos de 2010-2015. Justificamos nossa escolha por esses documentos em função da ANPAP ser a associação que congrega

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pesquisadores, centros e instituições de pesquisa para promover, desenvolver e divulgar pesquisas no campo das artes plásticas e visuais. Seus pesquisadores organizam-se em comitês, com o objetivo de melhor agrupar as investigações, que se desdobram nos seguintes campos: História, Teoria e Crítica da Arte (CHTCA); Educação em Artes Visuais (CEAV); Poéticas Artísticas (CPA); Patrimônio, Conservação e Restauro (CPCR) e Curadoria (CC). Os encontros anuais da ANPAP são dos mais significativos da área de Arte. O recorte realizado em uma única fonte de consulta e a delimitação temporal de cinco anos, de 2010-2015, a essa fonte de consulta, deve-se à adequação ao período de doze meses previstos para a realização dos projetos financiados pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) aos planos de Iniciação Científica, bem como a aprendizagem da estudante pesquisadora iniciante nos procedimentos fundamentais de toda e qualquer atividade investigativa, tais como a seleção de fontes, acesso a banco de dados, identificação de palavras-chave, registros, fichamentos, organização de dados, como também produção e apresentação de texto relacionando as fontes consultadas. Consideramos fundamental o envolvimento de graduandos em grupos de pesquisa com pós-graduandos na Universidade, pois, como destaca André (2007), esse envolvimento enriquece a formação do pesquisador, como também possibilita a consolidação de linhas de pesquisa na área, o que poderia reduzir os riscos por temáticas fragmentadas muito comuns e frequentemente criticadas na área da Educação. Os descritores utilizados para a coleta de dados são os mesmos para todas as fontes de consulta: cultura visual, que é a denominação do campo de estudo e visualidade, o conceito que diferencia esse campo dos demais. A coleta dos trabalhos se fez a partir dos descritores expressos no título, resumo ou palavras-chave. Apesar dos Encontros da ANPAP se organizarem por Comitês e contarem com um específico de Educação em Artes Visuais (CEAV), o levantamento realizado coletou trabalhos em todos os comitês, em virtude do a-disciplinar campo de estudo da Cultura Visual poder fundamentar pesquisas nos campos dos demais Comitês. Durante a coleta de dados encontramos algumas dificuldades relacionadas à precariedade da base de dados. Em incontáveis ocasiões o website da ANPAP esteve em manutenção como também os links que enlaçavam a produção encontravam-se inativos. Vários trabalhos foram localizados em websites pessoais dos autores e outras bases de dados, porém só foi possível chegar aos outros domínios graças aos dados precisos de autores e títulos indicados nos sumários dos Anais. Outra dificuldade refere-se aos resumos, pois nem todos apresentam os elementos recomendados para compô-lo. Estamos cientes que alguns trabalhos que inserem-se no campo da Cultura Visual e foram apresentados nos Encontros desses anos podem não ter entrado em nossa seleção, pois constatamos que alguns autores, que historicamente se vinculam a esse campo de estudo no Brasil, em algumas comunicações apresentadas não fizeram referência ao mesmo no resumo nem nas palavras-chave. Constatamos que há uma profusão de palavras-chave no campo de estudo e a escolha dessas pode afetar a representação e recuperação de informação pelos pesquisadores. Ao longo da coleta percebemos que as palavras-chave devem indicar os principais conceitos de um assunto ou campo de estudo e são úteis para a indexação, busca e categorização da produção acadêmica. Também identificamos algumas inconsistências em relação às informações dos autores e suas vinculações institucionais, que foram dissipadas consultando a

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Plataforma Lattes. Apesar dessas dificuldades, estas não invalidaram a coleta e sistematização dos dados que nos fornecem pistas a respeito da produção acadêmica brasileira sobre Cultura Visual em projetos de pesquisa ou trabalho em escolas de Educação Básica. A produção acadêmica localizada Finalizada a coleta de dados em dezembro de 2015, localizamos no ano de 2010 a quantidade de 8 trabalhos apresentados no CHTCA (1) e no CEAV (7); em 2011 foram apresentados 16 trabalhos nos comitês CHTCA (3), CEAV (10) e CPA (3); em 2012 quantificamos 11 trabalhos distribuídos nos Simpósios 1 (1),3 (1) ,11 (2) e 12 (7); em 2013 temos 17 trabalhos apresentados nos Simpósios 1 (3) , 3 (2) , 5 (1), 7 (10), 9 (1); no ano de 2014 coletamos 9 trabalhos distribuídos no CEAV (1) e nos Simpósios 4 (1),5 (4), 6 (1), 8 (1), 10 (1); em 2015 foram 16 trabalhos apresentados no CHTCA (1), CEAV (4), e nos Simpósios 5 (1), 8 (1), 12 (9), totalizando 77 trabalhos a partir dos descritores cultura visual e visualidade no título, resumo ou palavras-chave. Quadro 1. Trabalhos Localizados nos Anais da ANPAP ANO

QUANTIDADE TRABALHOS CV

2010

08

2011

16

2012

11

2013

17

2014

09

2015

16

TOTAL

77

COMITÊS SIMPÓSIOS CHTCA -1 CEAV – 7 CHTCA -3 CEAV – 10 CPA - 3 SIMP. 1 – 1 SIMP. 3 – 1 SIMP. 11 – 2 SIMP. 12 – 7 SIMP. 1 – 3 SIMP. 3 – 2 SIMP. 5 – 1 SIMP. 7 – 10 SIMP. 9 – 1 CEAV – 1 SIMP. 4 – 1 SIMP. 5 – 4 SIMP. 6 – 1 SIMP. 8 – 1 SIMP. 10 – 1 CHTCA -1 CEAV – 4 SIMP. 5 – 1 SIMP. 8 – 1 SIMP. 12 – 9

Fonte: Anais da ANPAP 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015.

Como é possível observar no Quadro 1, os trabalhos localizados foram apresentados em diferentes comitês e simpósios. É por essa razão que a coleta da produção acadêmica não focalizou, apenas, o CEAV. Por estarmos vinculadas a um grupo de pesquisa em Ensino de Arte, nosso interesse volta-se para os espaços que a Cultura

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Visual vem ocupando na Educação Básica. Por essa razão iniciamos um processo de refinamento na seleção dos 77 trabalhos localizados para identificarmos aqueles que relatassem experiências de projetos de pesquisa ou de trabalho desenvolvidos na Educação Básica. Desse modo definimos novos descritores que consideramos como característicos da área educacional: educação, escola, ensino, aprendizagem, aluno. Iniciamos uma depuração dos dados buscando identificar esses descritores da área educacional no título, resumo ou palavras-chave nos 77 trabalhos previamente selecionados. Por meio desse procedimento localizamos nesse cruzamento de descritores 7 trabalhos no ano de 2010; 6 trabalhos em 2011, 6 trabalhos em 2012; 8 trabalhos em 2013; 2 trabalhos em 2014 e 12 trabalhos em 2015, totalizando 41 trabalhos, o que representaria, aproximadamente, 53% do total de trabalhos apresentados no campo da Cultura Visual. Quadro 2. Trabalhos de Cultura Visual na área educacional ANO

QUANTIDADE TRABALHOS CV

2010 2011 2012 2013 2014 2015 TOTAL

08 16 11 17 09 16 77

QUANTIDADE TRABALHOS CV/EDUCAÇÃO 07 06 06 08 02 12 41

Fonte: Anais da ANPAP 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015. O procedimento posterior ao refinamento da coleta foi o da leitura dos 41 trabalhos localizados para identificar quais, efetivamente, vinculavam-se a experiências em escolas de Educação Básica. A partir da leitura dessa produção acadêmica identificamos um único trabalho (QUEIROZ; OLIVEIRA, 2014), no ano de 2014, que apresenta um levantamento bibliográfico sobre o campo nos Anais II Congresso Matéria Prima, de 2013 em Lisboa, Portugal, ao qual atribuímos a abreviatura LB. Um único trabalho (TERRAZA, 2015) propõe um projeto de trabalho em Escola Técnica, que foi identificado com a abreviatura ET e não foi incluído em nosso conjunto por ser um curso destinado aos egressos da Educação Básica. Também um único trabalho propõe uma pesquisa sobre a formação continuada de docentes da escola rural, procurando identificar como os docentes de Artes Visuais trabalham com a visualidade rural no espaço pedagógico, indicado com a abreviatura FCD. Três trabalhos (LAMPERT et al, 2010; SOUZA, 2014; MARTINS; GATTI, 2015) propõem intervenção em espaços não formais de educação, em projetos abertos à comunidade realizados fora do espaço formal escolar, que foram identificados com a legenda ENF. Localizamos 17 comunicações (DIAS, 2010; LOSADA, 2010; PIEKAS, 2010; VELOSO, 2010; FORTE, 2011; ROSA; MARTINS, 2011; DIAS, 2012; MARTINS; SÉRVIO, 2012; pereira, 2012; CHARRÉU, 2013; JUNGER, 2013; MARTINS; FALCÃO 2013; PAIVA; MATTOS, 2013; VICTORIO FILHO, 2013; ABREU, 2015; CASTRO, 2015; CHARRÉU; SALBEGO, 2015) que se organizam em torno de uma discussão teórica sobre possíveis fundamentos para a pesquisa com as imagens na Educação, seja para discutir os afetos, o corpo, o gênero, a sexualidade, as relações étnico-raciais, as identidades, a

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escola na Sociedade de Controle, entre outros, para os quais atribuímos a abreviação DT. Identificamos 9 trabalhos (GUIMARÃES; GUIMARÃES, 2011; MARTINS; SÉRVIO, 2011; OLIVEIRA, 2011; VAZ; OLIVEIRA, 2011; LAMPERT; NUNES, 2012; Mossi, 2012; SILVA, 2013; ÁLVAREZ, 2015; SÉRVIO; MARTINS, 2015) que relatam experiências de intervenção na formação de professores no ensino superior, que foram categorizados como ES. Por fim localizamos 9 trabalhos que são o centro de nosso interesse, aqueles que propõem um projeto de pesquisa ou trabalho em escola de Educação Básica (PILLAR, 2010 ; CASTRO, 2012; VILELA, 2013; FERNÁNDEZ; DIAS, 2013; FIRMINO, 2015; PILLAR; GOULART, 2015; SASSO, 2015; MEDEIROS, 2015; VILELA, 2015 ), identificados com a abreviatura INTEB. Quadro 3. Cultura Visual na Educação Básica Temas Destacados ANO

QUANTIDADE TRABALHOS CV EDUCAÇÃO BÁSICA

2010

07

TEMAS DESTACADOS

01 INTEB

01 FCD 01 ENF 04 DT

04 ES 2011

PILLAR, 2010 TASQUETTO; CORRÊA, 2010 LAMPERT et al, 2010 DIAS, 2010 LOSADA, 2010 PIEKAS, 2010 VELOSO, 2010 GUIMARÃES; GUIMARÃES, 2011

06

02 DT

2012

MARTINS; SÉRVIO, 2011 OLIVEIRA, 2011 VAZ; OLIVEIRA, 2011 FORTE, 2011 ROSA; MARTINS, 2011

01 INTEB

CASTRO, 2012

02 ES

LAMPERT; NUNES, 2012 Mossi, 2012

06

03 DT

DIAS, 2012 MARTINS; SÉRVIO, 2012 pereira, 2012

02 INTEB 2013

FERNÁNDEZ; DIAS,2013

08 01 ES 05 DT

VILELA, 2013 SILVA, 2013 CHARRÉU, 2013 JUNGER, 2013 MARTINS; FALCÃO 2013 PAIVA; MATTOS, 2013 VICTORIO FILHO, 2013

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2014

02

01 LB 01 ENF

QUEIROZ;OLIV EIRA, 2014 SOUZA, 2014 MEDEIROS, 2015

2015

12

05 INTEB

02 ES

01 ET 01 ENF 03 DT

PILLAR; GOULART, 2015 SASSO, 2015 VILELA, 2015 ZANIN; FIRMINO, 2015 ÁLVAREZ, 2015 SÉRVIO; MARTINS, 2015 TERRAZA, 2015 MARTINS; GATTI, 2015 ABREU, 2015 CASTRO, 2015 CHARRÉU, SALBEGO, 2015

TOTAL

41

Fonte: Anais da ANPAP 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015. A partir do Quadro 3 constatamos que, quantitativamente, há um maior número de trabalhos que discutem fundamentos do campo da Cultura Visual e suas possibilidades de pesquisa na área da Educação. Identificamos o mesmo quantitativo de trabalhos, nove, com experiências tanto na formação de professores quanto na Educação Básica. Em relação às intervenções realizadas na Educação Básica, cinco dessas aconteceram no Ensino Fundamental (PILLAR, 2010; CASTRO, 2012; MEDEIROS, 2015; PILLAR; GOULART, 2015; ZANIN; FIRMINO, 2015), duas no Ensino Médio (FERNÁNDEZ; DIAS, 2013; SASSO, 2015) e duas na modalidade de Jovens e Adultos (VILELA, 2013; VILELA, 2015). Pillar (2010) descreve um projeto de pesquisa amplo que pretende discutir a apreensão de sentidos dos sujeitos da Educação Infantil e Ensino Fundamental sobre desenhos animados e produções artísticas que envolvam o audiovisual, para compreender a interação com tais criações, além de conhecer possíveis relações que as crianças estabelecem entre as produções da mídia e da arte contemporânea. A autora destaca seu interesse por problematizar a leitura da visualidade no ensino da arte, procurando entender os efeitos de sentidos que as diferentes linguagens possibilitam, bem como as significações que as crianças apreendem e conferem a estas produções sincréticas. Indica os procedimentos relacionados a apreensão de sentidos de estudantes do quarto ano do Ensino Fundamental, em uma escola de Porto Alegre (RS), do desenho animado Bob Esponja (PILLAR, 2010). Em trabalho posterior (PILLAR; GOULART, 2015) relata o projeto desenvolvido com crianças do quinto ano do Ensino Fundamental, também em uma escola de Porto Alegre (RS), para conhecer as significações que um grupo de crianças atribuiu a produção de videoarte Cinema Lascado, de Giselle Beiguelman, a fim de verificar se distinguem os modos de produção da videoarte e dos empregados pela mídia televisiva. Castro (2012) descreve o projeto “Arte/Fatos: narrativas da cultura visual”, em uma escola pública de Brasília, para o Ensino Fundamental. O projeto, estruturado com base na 49


Educação da Cultura visual, explorou esse campo por meio de três eixos metodológicos: a bricolagem de linguagens, a educação pela pesquisa para a compreensão e a pedagogia do cotidiano. O processo de construção do artefato visual foi divido em três etapas elaboradas sob a perspectiva de que o estudo das visualidades é transdisciplinar, a partir de visualidades permeadas pelo teatro, pelas artes visuais, literatura e histórias em quadrinho. Medeiros (2015), como docente do sexto ano do Ensino Fundamental, em Canoas (RS), questiona junto aos estudantes com os quais interage o modo como se relacionam com a visualidade a partir das “novas tecnologias” (sic!), as razões pelas quais colecionam fotos com a própria imagem. A autora indaga se as imagens guardadas nos aparelhos celulares dos estudantes podem ser pensadas como coleções contemporâneas, se permitem pensar sobre as suas identidades e se seus autorretratos digitais possibilitam o entendimento do universo dos jovens na contemporaneidade. Zanin; Firmino (2015) apresentam um trabalho cujo objeto de estudo é a leitura de imagens de anúncios publicitários veiculados nos sites e redes sociais da internet acessados pelos sujeitos da pesquisa, estudantes do quinto ano do Ensino Fundamental, na cidade de Vitória (ES). As autoras pretendem verificar os modos como esses sujeitos compreendem, recebem e interpretam essas imagens, a relação desta com a realidade. Fernandez; Dias (2013) descrevem projeto de trabalho em uma escola de ensino médio, privada, na Bolívia, no qual analisam a arte contemporânea em uma série de ações performáticas com um carrinho de supermercado. Os estudantes converteram o carrinho de supermercado em meio de transporte com o qual realizavam ações performáticas nas ruas. Essas performances aliam-se a um manifesto que distribuíram na escola e na rua denominado de Movere Mutatio. Vilella (2013) apresenta suas primeiras considerações em torno de pesquisa realizada em escola municipal de Duque de Caxias, (RJ), sobre as imagens que envolvem os interesses dos estudantes da modalidade de Jovens e Adultos. Fez uso da intervisualidade da obra A última Ceia, de Leonardo da Vinci (1452 – 1519), e suas apropriações cotidianas, como, por exemplo, o uso da mesma pelo rapper Emicida. A autora considera que muitas são as imagens que transitam, mas que ficam invisibilizadas no cotidiano da escola e que precisam ser desveladas afirmando que os projetos em Culura Visual seriam uma possibilidade para esse desvelamento. Posteriormente, a autora dá continuidade ao relato de nova experiência (VILELLA, 2015) e sua maior proximidade com o Hip Hop em função de pesquisar com os estudantes sobre as imagens que lhes interessa, pois, geralmente, os interesses dos estudantes e suas visualidades em torno das artes visuais e da cultura visual, não são visíveis na escola. Entre a produção destacada na Educação Básica, nota-se a permanência dos pesquisadores em seus temas de interesse, pois os trabalhos apresentados nos Encontros da ANPAP, em diferentes anos, são resultados parciais de projetos mais amplos, como o caso de Pillar (2010), Pillar; Goulart (2015) e Vilella (2013, 2015). Considerações transitórias Os resultados apontam que a produção acadêmica em Cultura Visual vem crescendo anualmente e a discussão na área de Educação abarca mais da metade do total de trabalhos localizados entre os anos de 2010-2015. Esses projetos se organizam em torno de questões referentes as interpretações dos sujeitos sobre aquilo que vêem e as visualidades que produzem. Com o destaque que conferimos a esses projetos não

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pretendemos definir um encadeamento de procedimentos, nem sequer encontrar um caminho para desenvolver projetos de Cultura Visual na Educação Básica. Consideramos que a Cultura Visual abarca muito mais que um campo de estudo, pois se caracteriza como uma atitude intelectual, logo as temáticas e procedimentos estarão sujeitos ao contexto que deflagrar o projeto. Por isso nossa intenção é compartilhar a reflexão desses pesquisadores e avistar possibilidades de novas aventuras como todos aqueles que se propõem a aprender com e a partir das imagens. Referências ABREU, Carla. Imagens que não afetam: questões de gênero no ensino da arte desde a perspectiva crítica feminista e da cultura visual. n: ENCONTRO DA ANPAP, 24, 2015, Santa Maria, RS. Anais... Santa Maria: ANPAP/ Universidade Federal de Santa Maria, PPGART /Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPGAV, 2015. p. 3927- 3942. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s12/carla_de_abreu.pdf. ÁLVAREZ, Juan Sebastián Ospina. Levando afetos para partilhar em uma aula de visualidades, levando visualidades para partilhar afetos na hora da aula. In: ENCONTRO DA ANPAP, 24, 2015, Santa Maria, RS. Anais... Santa Maria: ANPAP/ Universidade Federal de Santa Maria, PPGART /Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPGAV, 2015. p. 3976-3991. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s12/juan_sebastian_ospina.pdf ANDRÉ, Marli. Questões sobre os fins e métodos de pesquisa em Educação. Revista Eletrônica de Educação, v. 1, n. 1, p. 119-131, set. 2007. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. CASTRO, Rosana. Afetos e Visualidades: o encontro dos corpos na educação em artes visuais. In: ENCONTRO DA ANPAP, 24, 2015, Santa Maria, RS. Anais... Santa Maria: ANPAP/ Universidade Federal de Santa Maria, PPGART /Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPGAV, 2015. p. 4097- 4111. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s12/rosana_de_castro.pdf CASTRO, Rosana de. Fotonovela: uma experiência de narrativa visual na escola. In: ENCONTRO DA ANPAP, 21, 2012, Rio de Janeiro, RJ. Rio de Janeiro: ANPAP, 2012. p. 2274- 2287. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2012/pdf/simposio12/rosana_de_castro.pdf CHARRÉU, Leonardo. SALBEGO, Juliana Zanini. Fenomenologia Hermenêutica e Grouded Theory: olhares e cruzamentos teórico-metodológicos de uma possível investigação em educação e cultura visual. In: ENCONTRO DA ANPAP, 24, 2015, Santa Maria, RS. Anais... Santa Maria: ANPAP/ Universidade Federal de Santa Maria, PPGART /Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PPGAV, 2015. p. 3399-3413. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2015/simposios/s8/juliana_zanini_salbego_leonardo_charreu.pdf CHARRÉU, Leonardo. Da fotografia global à justiça social: definindo um conceito de "testemunho" para a arte educação baseada na cultura visual. In: ENCONTRO DA ANPAP, 22, 2013, Belém, PA. Anais... Belém: ANPAP/ Universidade Federal Do Pará, PPGARTES/ICA, 2013. p. 3292- 3306. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/261286187_Da_fotografia_global_a_justica_social_ Definindo_um_conceito_de_testemunho_para_a_arte_educacao_baseada_na_cultura_visual_c ontemporanea DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo. Prefácio. In: SPOSITO, Marilia Pontes (coord.). O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: Educação, Ciências Sociais e Serviço Social (1999-2006). Belo Horizonte, MG : Argvmentvm, 2009. p. 7-9. DIAS, Belidson. Ensinando fora do eixo: cultura visual queer. In: ENCONTRO DA ANPAP, 21, 2012, Rio de Janeiro, RJ. Anais... Rio de Janeiro: ANPAP, 2012. p. 2111- 2125. Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2012/pdf/simposio12/belidson_dias.pdf __________. Paródias e precariedades nas des(truções) de Felipe Sobreiro. In: ENCONTRO DA ANPAP, 19, 2010, Cachoeira, BA. Anais... Salvador: ANPAP/ Universidade Federal da Bahia

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Maria Emília Sardelich Doutora em Educação, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Centro de Educação (CE), Departamento Metodologia da Educação (DME) e Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/UFPB/UFPE). Integra o Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV/UFPB). Contato: emilisar@hotmail.com

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Bianca Taiana S. L. Alves Licencianda em Pedagogia, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) 2015-2016. Integra o Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV/UFPB). Contato: biancataiana@hotmail.com

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ARTE E PAISAGEM: A INFLUÊNCIA DAS VANGUARDAS MODERNAS NA PINTURA DO PAISAGISTA ROBERTO BURLE MARX Carla Santos Ferraz / Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O lado polivalente do paisagismo Roberto Burle Marx o tornou uma figura reconhecida mundialmente no campo do paisagismo. Sendo sua primeira arte o paisagismo, podemos considerar a pintura como sua secundária. O artigo em questão explora a influência das vanguardas que compuseram o movimento moderno, tanto da influência brasileira como europeia, em seu trabalho na pintura e de suas repercussões como instrumento auxiliador nos projetos paisagísticos. PALAVRAS-CHAVE Paisagismo; pintura; Roberto Burle Marx ABSTRACT The polyvalent side of the landscaping Roberto Burle Marx became him a figure recognized worldwide in the landscaping field. As architecture as his first art, we can consider painting as his secondary. The article in question explores the influence of the avant-gardes that formed the modern movement, both the Brazilian influence as European, in his work in painting and its repercussions as supportive instrument in landscaping projects. KEYWORDS Landscape; painting; Roberto Burle Marx

Arquitetura paisagística Roberto Burle Marx, brasileiro reconhecido e prestigiado internacionalmente como paisagista, foi um verdadeiro homem das artes. Entusiasta da flora brasileira, também se dedicou à pintura, a qual esteve sempre presente desde seus primeiros projetos nos processos de concepção dos seus jardins e a outras atividades como composição de quadros, murais, joias, tapeçarias e azulejos (LUZ, 1969). Capaz de se expressar por diversas formas através da arte, conseguia conciliar seus diversos conhecimentos, sendo “considerado como o artista responsável pelo renascimento da jardinagem no Brasil” (ARTES, 1954a). Seus conhecimentos de pintor – o que conferiu às suas obras um aspecto pictórico– aliados aos conhecimentos botânicos fizeram com que ele trabalhasse bastante com contrastes de cores e texturas, volumes, elementos bidimensionais, harmonização da vegetação, emprego de diversos materiais (pedra, piso, água) uso de grandes manchas, formas livres surpresas, emoção estética – tudo com o objetivo de deixar a pessoa mais leve (PEDROSA, 1958).

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Com o passar dos anos, os jardins brasileiros projetados por Burle Marx – públicos e particulares – atraíram os olhares do mundo inteiro, através das publicações de revistas brasileiras e estrangeiras (VINCENT, 1951), pois todo o esplendor da vegetação tropical neles presentes contrastavam esplendidamente com as formas da nossa arquitetura moderna (ARTES..., 1954b). Com formação acadêmica, Burle Marx fugia dos padrões de pintura adotados na academia, e afirma: nunca me interessei por isso, estava muito mais ligado aos problemas, às figuras do povo (OLIVEIRA, 2007). Porém não nega a influência do ensino do desenho adotado na Escola Nacional de Belas Artes, que desenvolvia a percepção do aluno em retratar o “real” e o “natural” na pintura e na escultura. Nesse sentido, a formação acadêmica lhe proporcionou o rigor e a precisão que caracterizavam a matriz clássica, e o seu interesse na observação do mundo, nas pessoas, nas vegetações, já conferiu uma pintura muito mais ligada aos princípios da arte moderna brasileira (OLIVEIRA; HASS, 2012). Na sua produção de quadros, se apoia em dois estilos artísticos: uma de caráter expressionista e outra de vanguardas pictóricas abstracionista. Seu propósito não é o “de repropor a forma desde critérios construtivos específicos, mas o de acentuar e distorcer determinados aspectos da imagem com fins expressivos e, definitivamente comunicativos” (PINON, 2008). Vanguardas modernas O abstracionismo e o expressionismo, que foram base de inspiração nas pinturas de Burle Marx, são vanguardas do movimento da Arte Moderna. No seu surgimento na Europa, elas partiram de manifestações e organizações de rupturas de artistas que questionaram o lugar e a forma de representação de arte, intimamente ligado com as transformações urbanas e sociais do contexto da época, do abandono do campo para a ocupação da cidade, um ambiente hostil e inquieto que fez com que os artistas procurassem um novo meio para se destacar diante dessa nova sociedade. O abstracionismo surge paralelamente com o expressionismo alemão, com pinturas livres e experimentais. “Os artistas de vanguarda que produziram a abstração buscavam, por sua vez, o fim da arte como representação de algo fora dela mesmo. Isto é, almejavam a abstração pura, sem equivalência na realidade.” (CANTON, 2009). A exploração de cores, formas geométricas e falta de figuração nítida dificultam a compreensão da obra e de seus significados. No entanto, o esforço intenso e demorado é necessário (BRECKETT, 2002). A arte moderna na América Latina em geral estava ligada a também movimentos sociais, políticos de direita e esquerda, de países comunistas sofrendo revoluções operárias e estudantis. Ela toma uma nova forma na américa se adaptando às condições de cada lugar e ao espírito de cada artista, reinterpretando as inspirações europeias e adquirindo uma maior identidade nacional (CAPELATO, 2005). Inspiração e professor de Burle Marx, Cândido Portinari é uma referência do

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expressionismo moderno brasileiro. Também aluno da Escola de Belas Artes de matriz classicista, em sua obra é notável o rompimento com tais padrões em sua obra pelo qual é reconhecido. A primeira fase que mostra esse rompimento Mário Pedrosa a classifica como fase marrom ou brodowskiana, Brodowski se refere a cidade de nascença do pintor, que retrata suas memórias da infância carregada de sentimentos e lembranças. A paleta de cor dominante é a marrom, simbolizando a terra rocha da cidade paulista, utiliza-se do contraste entre o claro e o escuro e de efeitos de luz. De forma bem pessoal Portinari retrata esse caráter nacional que o modernismo brasileiro buscava (ARÊDES, 2009).

Cândido Portinari (1903-1962) Jogo de Futebol em Brodowski, 1933. Óleo sobre tela, 49,5 x 124 cm Fonte: Acervo Digital do Projeto Portinari.

Da figura humana à pintura que vira jardim As suas influências dos movimentos das vanguardas modernas são percebidas em suas diferentes fases e temas retratados. Desde os seus encontros no bar 49 com o escritor Lúcio Cardoso e outros boêmios no Rio de Janeiro até a materialização dos projetos paisagísticos. Na sua série dominada Cenas de bar percebe-se um desenho simples de silhuetas, definidos pela grossura e forma do traço, ora distorcidos, como rápidos croquis, outros de silhuetas mais definidas (OLIVEIRA; HASS, 2012).

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Roberto Burle Marx (1909-1994) Cena de bar, Lapa, 1941 Nanquin, 32,4 x 44,3 cm Fonte: Sítio Roberto Burle Marx (RJ)

Roberto Burle Marx (1909-1994) Sem título, 1943 Nanquim e guache, 31,1 x 39,2 cm Fonte: Sítio Roberto Burle Marx (RJ)

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Percebe-se também a influência do cubismo, uma forma diferente de retratar a realidade a partir de traços geométricos, se assemelha a obra Les de-moiselles d’Avignon, pintado por Picasso em 1907 (OLIVEIRA; HASS, 2012).

Roberto Burle Marx (1909-1994) Sem título, 1950 Crayon, 73 x 54,4 cm Fonte: Sítio Roberto Burle Marx (RJ)

Roberto Burle Marx (1909-1994)

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Desenho da planta da orla de Copacabana no Rio de Janeiro Fonte: ELIOVSON, 1991

A partir dessa influência artística, Burle Marx traduziu também em forma de pintura os seus projetos. Suas habilidades os auxiliaram na representação dos projetos, como pedreiros e jardineiros não compreendem uma linguagem mais técnica das plantasbaixas, Burle Marx desenhava perspectivas para que os operários conseguissem visualizar o projeto e assim entender a vegetação e onde seriam plantadas.

Roberto Burle Marx (1909-1994) Desenho da Praça Euclides da Cunha, 1935 Fonte: Revista Projeto, 1991

O abstracionismo das formas livres foi traduzido em muita de suas obras, são consideradas quase como pinturas tridimensionais. Utiliza-se da vegetação nacional, rica em cores, volumes e texturas como materiais de organização plástica, faz o que qualquer outro artista faria com a tela, tinta e pincéis. (LEENHARDT, 2009)

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Roberto Burle Marx (1909-1994) Foto aĂŠrea do Banco Safra em SĂŁo Paulo, 2002. Fonte: ARCOweb

Roberto Burle Marx (1909-1994) Pintura para o jardim do Banco Safra (SP), 1983 Fonte: Acervo Burle Marx & Cia. Ltda.

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Roberto Burle Marx (1909-1994) Foto aérea do Ministério da Educação e Saúde (RJ), 2002. Fonte: Architizer

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Roberto Burle Marx (1909-1994) Pintura para o jardim do Ministério da Educação e Saúde (RJ), 1983 Fonte: ARTunlimited

[...] Não quero fazer um jardim que seja somente pintura. Mas também não posso deixar de reconhecer que a pintura influiu muito em minhas concepções de paisagismo. Trata-se de certos princípios, princípios gerais de arte, que estão indissoluvelmente ligados entre si. Essa é a coisa mais importante. Saber como estabelecer um contraste, como utilizar uma vertical, a analogia de formas, de volumes, a sequência de certos valores. São princípios que se podem aplicar à música, à poesia. Sem esses princípios, creio que, simplesmente não se pode praticar qualquer forma de arte. (MARX, 1992, p.307-308)

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As contribuições do período moderno de forma geral, tanto na pintura como na arquitetura, traduziram a ruptura de valores clássicos, e particularmente no Brasil - e América Latina – promoveram a elevação da voz de uma identidade nacional que por muitos anos permaneceu calada dando vez ao que era considerado o belo da arte europeia. Acredito que não posso afirmar que a pintura influenciou seu paisagismo ou viceversa, mas que os preceitos do movimento moderno marcaram ambos movimentos artísticos, e que Burle Marx, em sua face polivalente, utilizou-se de ambos como auxílio. Sua formação clássica o possibilitou trabalhar com desenhos que o auxiliaram na representação para os leigos nas suas leituras projetuais, assim como a influência do movimento moderno que o rodeava, que o fez encontrar o tesouro da flore autóctone brasileira. Robert Burle Marx nos deixa então um legado paisagístico e artístico regado de lirismo e rigor.

Referências ARÊDES, Ana Carolina Machado. Os traços modernistas da pintura de Candido Portinari. Revista Contemporâneos, no. 3, nov-abr 2009.

ARTES Plásticas: Burle Marx conquistou os meios artísticos americanos. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 05 ago. Caderno 1, p.11, 1954b. BECKETT, Wendy. A história da pintura. São Paulo: Ática, 2002. BUENO, Chris. Exposição viaja pela vida e obra do pai do abstracionismo. Ciência e Cultura. vol.67 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015. CANTON, Kátia. Do moderno ao contemporâneo. Temas da arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Modernismo latino-americano e construção de identidades através da pintura. Revista de História (USP), v. n°153, 2005. Eliovson, S. The Gardens of Roberto Burle Marx. London: Thames & Hudson, 1991. LEENHARDT, Jacques. Burle Marx e a modernidade nos jardins do Instituto Moreira Salles. In: Guia dos jardins de Roberto Burle Marx no Instituto Moreira Salles, 2009. Instituto Moreira Salles (org.). LUZ, Celina. Muitas artes e jardins. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 30 maio. Caderno B, p.04, 1969. MARX, Roberto Burle. Roberto Burle Marx entrevistado por Ana Rosa Oliveira. Vitruvius, São Paulo, Entrevista, fev. 1992. PEDROSA, Mário. Artes Visuais: O paisagista Burle Marx. Jornal do Brasil. 10 jan. Caderno 1, p.06, 1958. PIÑÓN, Helio. El formalismo esencial de la arquitectura moderna. Barcelona: Edicions upc,

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2008. OLIVEIRA, Ana Rosa de; HASS, Yanara Costa. ROBERTO BURLE MARX: A figura humana na obra e desenho. Rio de Janeiro: Centro Cultural Correios, 2012. 73p. Catálogo de exposição. OLIVEIRA , Ana Rosa de. Tantas vezes paisagem. Entrevistas. Rio de Janeiro: Digital Gráfica/FAPERJ, 2007.

ROVIRA, Teresa. Problemas de forma. Schoenberg y Le Corbusier. Barcelona: Edicions upc, 1999. SARTOR, Evelyn. Da pintura a fotografia: processos de abstração na produção artística contemporânea. Trabalho de Graduação: Curso de Artes Visuais – Bacharelado, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, Santa Catarina, 2012. VINCENT, Claude. Jardins públicos e particulares. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 15 jun. Construções e Urbanismo, p. 05, 1951.

Carla Santos Ferraz Graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco.

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A SOCIÉTÉ DES ARTISTES BRÉSILIENS E O PAPEL DOS ARTISTAS BRASILEIROS NA CONQUISTA DO MERCADO INTERNACIONAL (1913 – 1937) Carlos Henrique Rome Cabral/ Université Toulouse II RESUMO Este artigo revela a presença de um grupo de artistas plásticos brasileiros residentes em Paris, durante as primeiras décadas do século XX, como responsáveis pela criação da Association des Artistes Brésiliens. Esse importante organismo contribuiu de forma efetiva para com o processo de internacionalização da Arte Brasileira e Sul-americana. Os registros das ações dessa associação são apresentados nesta pesquisa a partir de notas publicadas em jornais franceses de grande circulação pertencentes à Coleção de impressos da Bilbiotèque Nationale de France. Serão identificados os membros fundadores da Associação, bem como apontadas algumas ações desenvolvidas. PALAVRAS-CHAVE Arte Brasileira, Internacionalização, Artistas, Instituições RESUMEN Cet article révèle la présence d'un groupe d'artistes brésiliens situé à Paris au cours des premières décennies du XXe siècle, comme responsable de la création de l’Association des Artistes Brésiliens. Cette importante institution a contribué efficacement au processus d'internationalisation de l'Art Brésilien et Sud-Américain. Les enregistrements des actions de cette association sont présentés dans cette recherche à partir de notes publiés par les journaux français de grande circulation qui sont conservés dans la Collection imprimé de la Bibliothèque Nationale de France. Seront présentés les membres fondateurs de l'Association et seront également décrit certaines actions réalisées. MOTS-CLES Art Brésilien ; Internationalisation ; Artistes ; Institutions

Introdução Durante a primeira metade do século XX a História da Arte do Brasil registra uma série de deslocamentos realizados por inúmeros artistas que tiveram como principal direção o continente Europeu, especialmente os países da França e da Alemanha, considerados na época como principais vetores do mercado de arte mundial. Esses deslocamentos contribuíram significativamente para a estruturação da Arte Moderna no país através de um rico processo de trocas e intercâmbios culturais. Ao refletirmos sobre as motivações que desencadearam a partida dos nossos artistas durante as primeiras décadas do século XX, torna-se obrigatório pensar sobre os interesses individuais que permeavam a classe artística. O que buscavam e quais eram as suas expectativas?

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A partir da trajetória realizada por esses artistas podemos observar uma preocupação latente com os processos de formação e de inserção profissional. A maioria encontrou espaço e oportunidade de formação principalmente na Académie Julien, situada em Paris e conhecida por aceitar um grande número de estrangeiros inclusive mulheres, novidade na época. No entanto, nem todos os artistas alcançaram uma inserção sólida no mercado de arte internacional, centralizado na época na cidade de Paris, capital repleta de espaços institucionais que atuavam como principais instâncias legitimadoras do trabalho artístico. Nesse sentido, podemos dividir os artistas gestores do Modernismo Nacional em dois grupos. Um primeiro grupo seria composto pelos artistas que obtiveram um contato mais curto com os centros hegemônicos europeus e logo retornaram ao Brasil para multiplicarem suas experiências. O segundo grupo seria composto por artistas que residiram durantes anos fora do país e consequentemente fora de foco da semana de 22, mas que tiveram tempo suficiente para participarem de importantes exposições internacionais divulgando a Arte Brasileira no exterior. Essa divisão indica dois grupos de indivíduos com interesses distintos e de extrema importância para o desenvolvimento da Arte Moderna no Brasil. De um lado, o Brasil vivia durante as primeiras décadas do século XX uma efervescência cultural alimentada pelas referencias adquiridas fora do país compartilhadas e legitimadas pela classe artística viajante. De outro lado este artigo apresentara alguns artistas brasileiros inseridos no mercado de arte Francês e que foram responsáveis pela criação da Association des Artistes Brésiliéns, uma instituição internacional e importante promotora da Arte Brasileira. A Associação Criada no ano de 1913 na cidade de Paris, a Société des Artistes Bresiliens apresentou-se publicamente para a sociedade francesa estruturada conforme uma nota publicada na coluna Nouvelle du Monde des Arts do cotidiano Le Radical. Le « Cercle des Artistes Brésiliens » tient aujourd’hui sa première réunion, ou sera décidée la date de l’exposition générale de ce groupe formée de l’élite de la jeunesse artistique brésilienne. (…) Le président du Cercle est M. Virgilio Mauricio, le jaune peintre médaillé de l’an dernier aux Artistes Françaises, assisté par M. Jean Turin, vice-président, et Zac Parana, secrétaire. Citons, parmi les membres du Cercle Mmes la vicomtesse de Sistello, la comtesse de Alto-Mearim, la baronne Hamoir de Rio-Branco, Mlle Fedora do Rego Monteiro, Mme Clotilde de Rio-Branco, M. Julio Balla, Manoel Madruga, Marques Campar Correia e Castro, Vicente do Rego Monteiro, Jose Rodrigues, Jose do Rego Monteiro, Oscar Pereira da Silva, Helene Pereira da Silva, Gaspar Coelho de Magalhaes, etc. etc. (M.P. « Nouvelle du Monde des Arts ». Le Radical. Paris, 21/11/1913.).

De acordo com os nomes citados pelo cotidiano, podemos identificar que este grupo era composto a partir de personalidades atuantes tanto no cenário artístico quanto político nacional e nesse organograma, evidencia-se a presença de alguns artistas

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plásticos oriundos de diferentes países e diferentes regiões do Brasil. A partir de uma consulta bibliográfica realizada em alguns dicionários dedicados ao levantamento dos principais artistas plásticos brasileiros, foi possível identificar nesta pesquisa, a origem de cada artista, suas disciplinas artísticas e consequentemente relacionar estes dados com a função ocupada por cada um no grupo, traçando assim um perfil da Société através da reunião destas informações. Artista Virgílio Mauricio (1892 – 1937) Joao Zanin Turin (1878 – 1949) Zac Parana (1884 – 1961) Fedora do Rego Monteiro (1889 – 1975) Manoel Madruga (1872 – 1951) Jose Marques Campão (1892 – 1949) Vicente do Rego Monteiro (1899 – 1970) Jose Wasth Rodrigues (1891 – 1957) Oscar Pereira da Silva (1867 – 1939) Helene Pereira da Silva (1895 – 1966) Gaspar Coelho de Magalhaes (1886 – 1947)

Função no grupo

Disciplina artística

Lagoa da Canoa - MG

Presidente

Pintura

Morretes PR

Vice-presidente

Polonês

Vice presidente

Local de Origem

Recife PE Teresópolis RJ São Paulo SP Recife PE São Paulo SP São Fidelis SP São Paulo SP Porto Portugal

Escultura Pintura Escultura Pintura

Membro

Pintura

Membro

Pintura

Membro

Pintura

Membro

Pintura Literatura

Membro

Pintura

Membro

Pintura

Membro

Pintura

Membro

Pintura

Relação dos artistas presentes na primeira reunião da Société des Artistes Brésiliens No levantamento realizado não foram encontrados registros sobre as figuras de José do Rego Monteiro e Júlio Balla, apontando assim uma lacuna a ser preenchida por pesquisas posteriores que se voltem para a obra desses artistas, buscando um maior entendimento sobre a contribuição dos mesmos para com a História da Arte no Brasil. No que se diz respeito aos objetivos da Société des Artistes Brésiliens, apos anunciar a composição dos membros integrantes, o cotidiano L’Homme libre indica uma possível atuação além das fronteiras nacionais. Voilà la composition du bureau de l’Association des Artistes Brésiliens qui vient de se fonder à Paris : (…) Cette société a pour but de reprendre ici l’art et les artistes sud-américaines. Sa première exposition aura lieu au moins d’octobre. (SILVIN, 1913, p. 3).

Uma atuação institucional de forma bastante abrangente se confirma através do cotidiano Journal de débats politiques et littéraires, que registra a presença de um membro da Associação apresentando um panorama da Arte Brasileira durante a 69


terceira jornada do Congresso de nações americanas, realizada em Paris no ano de 1937. La séance de l’après-midi présidée par M. Louis Hourtiq, de l’Académie de Beaux-Arts a été consacrée à l’archéologie et à l’art. M. Jose de J. Nunez e Dominguez, professeur d’histoire à l’Université du Mexico, a parlé des « dernières découvertes dans l’histoire précolombienne du Mexique ». M. Luis E. Valcarcel, directeur général du Musée national de Lima, a exposé les « nouvelles découvertes archéologiques au Peru ». M. Pedroza, président de l’Association des Artistes Brésiliens a présenté une synthèse de l’art brésilien. La séance s’est terminée par un exposé de M. de la Barra, ancien président de la République du Mexique, qui a présenté un projet de convention entre les pays américains et les pays de l’ancien continent pour la protection des œuvres littéraires et artistiques. (JOURNAL DE DEBATS POLITIQUES ET LITTERAIRES, 1937, p. 2).

A presença da Associação em eventos desse porte significa uma ampliação dos espaços receptores da produção artística brasileira no mercado internacional. As relações estabelecidas entre a Sociéte des Artistes Brésiliens em diferentes instâncias e entre diversas instituições, certamente contribuiu par uma maior visibilidade do cenário artístico do Brasil no exterior, principalmente fortalecendo e integrando a classe artística que buscava uma projeção internacional. Apesar de sua formação inicial apresentar um maior número de pintores, as ações da Sociéte des Artistes Brésiliens não se limitou apenas às Artes Plásticas. Sobre a variedade de atividades desenvolvidas pela Associação, o cotidiano L’Esprit Français apresenta através de uma nota publicada em 1933, uma gama de atividades artísticas que permeiam diferentes linguagens estéticas e congregam em um mesmo espaço institucional um amplo conjunto de artistas. La Société Artistique Brésilienne. – De fondation très récent ce groupe n’en a pas moins organisé déjà trois représentations qui ont eu le plus vif succès. Celle du 16 avril surtout. Le programme était d’ailleurs très bien compris dans sa variété. Amusant, touchant ou pittoresque suivent le genre de numéros qui le composaient, il était de nature à rallier tous les soufrages. Les comédiens, comédiennes, chanteurs, danseurs et danseuses bénévoles (on a donné le Ballet d’Isoline, de Messager) ont témoigné de beaucoup de gout et d’expérience. L’orchestre, bien dirigé a joué à la satisfaction unanime de la salle, tellement pleine que certains spectateurs ont dû rester debout. (L’ESPRIT FRANCAIS, 1933, p. 99).

Bem recebida pela sociedade francesa, A Associação dos Artistas Brasileiros em Paris tem o seu período de atuação, descrito aqui nesta pesquisa, entre os anos de 1913 e 1937, porem, não podemos apontar uma data precisa para o término de suas atividades. Este período foi delimitado de acordo com a quantidade de documentos encontrados na coleção de Impressos e Jornais da Bibliotèque Nationale de France.

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Como não foram encontrados registros que ultrapassem o ano de 1937, e considerando a insuficiência de informações sobre o sujeito pesquisado, bem como a pouca quantidade de fontes encontradas até então, abre-se o caminho para consultas necessárias em outros bancos de dados sobre o assunto em questão, tais como: coleções de catálogos, convites de exposições e fundos patrimoniais. Considerações finais Os textos de jornais discutidos neste artigo, reúnem uma série de informações sobre a atuação de diversos artistas brasileiros no exterior de uma maneira institucionalizada, através da criação de uma Associação, obtendo o reconhecimento social e desenvolvendo a capacidade de aglutinar forças e estabelecer uma rede de contatos e parcerias. A realização da exposição organizada pelo grupo em Paris no ano de 1913, insere a Arte Brasileira nas vitrines institucionais da Europa em paralelo ao período fértil e embrionário da produção estética moderna mundial. Os artistas brasileiros que pleiteavam inserir suas produções nos Salões de Arte na França (principal mercado aberto para artistas estrangeiros) conquistaram, através da Associação, um novo espaço de escoamento para exposição e venda de suas obras. A pintura nesse momento, recebe um destaque no panorama internacional e é evidenciada por ser a linguagem artística adotada pela maioria dos membros integrantes do grupo. Foi possível identificar também, através da origem de cada membro integrante da Société, os principais estados e regiões do Brasil que participaram desse processo. Percebemos a presença de artistas originários de apenas três regiões do país, curiosamente, aquelas que absorveram com maior profundidade as vanguardas modernistas. A região Sudeste, possuindo seis membros integrantes e representações de três estados, contrasta com a quantidade de artistas enviados pelo Nordeste e pelo Sul do Brasil, representados respectivamente por artistas oriundos apenas dos estados de Pernambuco e Paraná. A heterogeneidade do grupo não é marcada apenas pela diversidade de origem de seus integrantes, mas também pela presença feminina, dificilmente incorporada por um mercado de arte predominantemente machista e opressor. Em sua formação inicial o grupo teve como representantes do sexo feminino a pernambucana Fedora do Rego Monteiro e a paulista Helene Pereira da Silva. Esses dados indicam que, assim como os artistas, as artistas também alcançaram um importante espaço profissional legitimado institucionalmente fora do país. A insuficiência de informações e de pesquisas realizadas sobre a atuação da Association des Artistes Brésiliens em Paris, durante a primeira metade do século XX, abre uma lacuna na Historia da Arte do Brasil e ao mesmo tempo, indica a necessidade de um maior aprofundamento sobre os demais membros que participaram dessa Associação, bem como sobre as exposições realizadas pelos artistas plásticos ligados ao grupo.

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Identificar os sujeitos e suas produções escoadas através desse espaço institucional, nesse caso, contribuirá para o desenvolvimento de uma compreensão mais ampla sobre o processo de construção da Arte Moderna no Brasil e sua difusão no âmbito internacional. Este texto resulta de uma pesquisa doutoral em História da Arte, ainda em desenvolvimento, realizada junto à Université Toulouse II, através do Laboratoire France, Amériques, Espagne – Sociétés, pouvoirs, acteurs – FRAMESPA, que investiga as transferências artísticas realizadas entre o Brasil e a França no inicio do seculo XX e a difusão das vanguardas modernistas na América Latina após a I Guerra Mundial. Sua comunicação bem como sua publicação no Brasil, através do evento V Diálogos Internacionais / II Encontro Regional da ANPAP Nordeste, proporciona a comunidade científica o acesso de novos dados e reflexões relacionados a História das Artes Plásticas brasileiras durante o início do século XX.

Referências AYALA, Walmir. (org). Dicionário brasileiro de artistas plásticos. MEC, Brasilia,1980. CABRAL, Carlos. Conexão Recife – Paris: Reflexões sobre a internacionalização da pintura modernista brasileira. In: 24 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP, 2015, Santa Maria, RS. Anais (on line). Santa Maria: ANPAP, 2015. p. 100-111. ISSN 2175-8212. Disponível em: « http://anpap.org.br/anais/2015/comites/chtca/carlos_henrique_romeu_cabral.pdf » Acesso em: 01 jul. 2016. CHIALELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. Lemos, São Paulo, 2002.

Journal de débats politiques et littéraires. La troisième journée du Congrès des nations américaines. Paris, 02 jul. 1937, p. 2. Disponível em: « http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k508819f/f2.item.r=%22association%20des%2 0artistes%20brésiliens%22.zoom » Acesso em 08 jul. 2016. LEITE, Jose Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Artlivre, Rio de Janeiro, 1988.

L’Esprit Français. Paris, 10 jan. 1933, p. 99. Disponível em: « http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k56802700/f592.item.r=%22Société%20Artisti que%20Brésilienne%22.zoom » Acesso em: 08 jul. 2016. MONIER, Gérard. L’art et ses instituitions em France. Editions Gallimar, Paris, 1995. M., P. Nouvelles du Monde des Arts. Le Radical. Paris, 21 nov. 1913, p. 5. Disponível em « http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k7607424t/f5.item.zoom » Acesso em: 06 jul. 2016.

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PONTUAL, Roberto. Dicionário das Artes Plásticas no Brasil. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1969. SILVIN, Jean. Nouvelles Artistiques. L’Homme libre. Paris, 04 jun. 1913, p. 3. Disponível em:« http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k7596625v/f3.item.r=%22Virgilio%20Mauri cio%22.zoom » Acesso em: 06 jul. 2016. Carlos Henrique Romeu Cabral Doutorando em História da Arte pela Université Toulouse II – França e membro do Laboratoire France, Amériques, Espagne – Sociétés, pouvoirs, acteurs (FRAMESPA). Pesquisador do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Memória (UFPE - CNPq) e Professor do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) – Campus Olinda, onde atua como docente do curso Técnico em Artes Visuais.

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MEMÓRIAS DE PAPEL: LAMBE PARA (RE)SIGINIFICAÇÃO DO PASSADO Carolina Reichert Andres/ Universidade Federal do Oeste da Bahia RESUMO O presente ensaio visual tem como objetivo discutir por meio do processo criativo da série Memórias de papel, instaurada a partir da apropriação e recortes de fotografias do passado da cidade de Barreiras (BA). Com isso, explora-se por meio do lambe, mecanismos de acionamento da memória local com finalidade de resistência e permanência das imagens para uma (re)significação da identidade cultural local, dita até então, perdida. PALAVRAS-CHAVE Memória; identidade; lambe; (re)significação ABSTRACT This visual essay aims to discuss through the creative process of the series paper memories, brought from the ownership and past photographs clippings city Barreiras (BA). With this, it explores through licks, local memory drive mechanisms with the purpose of strength and permanence of the images for a (re)signification of the said local cultural identity, until then, lost. KEYWORDS Memorie; identity: sticker: (re)signification

Contexto de uma prática artística urbana As discussões em torno de uma identidade cultural local da cidade de Barreiras (BA), dita atualmente perdida/abafada/aniquilada, permanece frequente e crescente desde a invasão industrializante do agronegócio a partir da década de 1980 na região do Oeste da Bahia. O questionamento inicial que se coloca neste ensaio aciona por meio das poéticas artísticas urbanas, pensar o lambe como mecanismo de acionamento do pensamento de resistência da memória local em meio aos habitantes de Barreiras (BA). Minhas indagações, valem-se em (re)significar a identidade cultural como chamamento ao passado por meio das memórias de papel. Para isso, apropriei-me de fotografias do passado da cidade. Cenas do fotógrafo Napoleão Macedo, que deixou registrada boa parte dos acontecimentos festivos e o cotidiano das famílias tradicionais locais (Fig. 01). Nelas, vários estranhos co-habitam (KOSSOY, 2002) um mesmo ambiente promovido por uma festa ou jogo de futebol. Nas imagens, realizo uma arqueologia dos elementos (Fig. 02) e valido a minha poética nos personagens presentes em um acontecimento comum fotografado no passado. A partir disso, descontextualizo esse indivíduo do momento flagrado por Napoleão (Fig. 03) e o insiro na atualidade, colado em tapumes da cidade (Fig. 04), como se fosse um chamamento aos habitantes para com seu passado apagado/esmorecido/esquecido.

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Figura 01 - Fotografias de NapoleĂŁo Macedo

Figura 02 - Fragmentos retirados das fotografias de NapoleĂŁo Macedo. Acervo pessoal.

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Figura 03 - Coloração dos lambes antes da aplicação nas ruas de Barreiras (BA). Acervo pessoal.

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Figura 04 - Penico. Lambe. Aplicação na Rua Marechal Hermes, Centro, Barreiras (BA). Acervo pessoal.

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Referências KOSSOY, Boris. Realidade e Ficções na Trama Fotográfica. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. ANJOS, Moacir dos. Local/global. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. CARLSSON, Benke. Street art. São Paulo: Gustavo Gili, 2015. JACQUES, Paola B; BRITTO, Fabiana D. (Orgs). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: Edufba, 2010. Carolina Reichert Andres Graduação em Artes Visuais - UFSM (2010) e mestre em Artes Visuais - UFSM (2013). Docente de Artes da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Email: carolina.andres@ufob.edu.br/ reichertcarolina@gmail.com.

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A EXPERIÊNCIA COTIDIANA NA CRIAÇÃO DE HÉLIO OITICICA: VIVÊNCIAS MULTISSENSORIAIS NO ENSINO DE ARTE Caroline Moreira Bacurau/ Universidade Federal da Paraíba Sara Vasconcelos Cruz/ Universidade Federal da Paraíba RESUMO O presente artigo tem por objetivo discutir a obra de Hélio Oiticica a partir das correlações estabelecidas pelo artista com a experiência humana. Se o museu é o mundo, a arte parte da própria vida. A obra Tropicália, marco nas Artes Visuais e na Música brasileira, é o ponto inicial de um diálogo baseado na sensorialidade e na experiência humana. Assim, discutimos Tropicália a partir do conceito de experiência de John Dewey e de suas propostas para o ensino de arte. Por fim, apresentamos uma vivência em sala de aula baseada em experiências sensoriais inspiradas na obra Tropicália. PALAVRAS-CHAVE Artes Visuais. Hélio Oiticica. Sensorialidade RÉSUMÉ Cet article a pour objectif discuter sur l'oeuvre d'Helio Oiticica à partir des corrélations établies entre l'artiste et l'expérience humaine. Si le musée est le monde, l'art est la vie elle même. L'oeuvre Tropicalia, symbole des Arts Visuels et de la Musique Bresilienne, c'est le point initiale d'un dialogue basé sur la sensorialité et sur l'expérience humaine. Cet article vise aussi discuter la Tropicalia à partir du concept de l'expérience de John Dewey et de ses propositions pour l'enseignement de l'art. En dernier, nous présentons une connaissance de la vie en classe basée en expériences sensoriels inspirées en Tropicalia. MOT-CLÉS Arts Visuels. Hélio Oiticica. Sensorialité

Introdução Muitos são os caminhos que aproximam as discussões sobre Arte e Arte Educação no recorte Brasil e América Latina. Haveria uma “imagem brasileira” na Arte? Uma imagem latina? O que nos aproxima? O trabalho de Hélio Oiticica, artista brasileiro nascido em 1937, no Rio de Janeiro, é carregado de uma carga simbólica sensorialmente brasileira. Hélio partia da experiência humana para criar suas obras, fez parte de seu processo criativo o andar em meio ao povo, nas favelas, nas escolas de samba, sentir seus cheiros e incorporar suas características. Isso o movia! Assim, ao escolhermos Hélio Oiticica e sua obra Tropicália (1967) para travar esse diálogo entre a sensorialidade e a identidade brasileira, contextualizando-os no Ensino de Artes Visuais, reconhecemos as contribuições do trabalho desse artista para a arte brasileira assim como as potencialidades de seu processo criativo para propostas em Arte Educação.

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Hélio defendia que “o museu é o mundo; é a experiência cotidiana” (OITICICA, 1986; p.79). Se a Arte não está separada da experiência cotidiana e do mundo, ela se relaciona com a própria vida. As experiências sensoriais em Artes Visuais nos permitem conhecer nós mesmos e aos outros. Hélio aproximou os campos da Arte e da Vida baseando-se na experiência humana; são exemplos disso os seus trabalhos performáticos (Delirium Ambulatorium), instalações (Penetráveis) objetos sensoriais e interativos (Bólides), parte das propostas de seu programa ambiental. O legado de Oiticica, tão presente na contemporaneidade, pode ser observado na construção de trabalhos artísticos que primam por enfatizar a sensorialidade, mas transpõem o campo da fisicalidade artística inserindo no universo da arte a própria dinâmica da vida cotidiana e banal. Partiremos de Hélio para construir correlações com temáticas diversas: inicialmente discutiremos sua obra Tropicália (1967), a qual foi responsável por nomear o movimento primordialmente musical, Tropicalismo. Essa mesma obra foi montada em Frankfurt (Alemanha) na exposição The great labyrinth (O grande labirinto) de 2013 e aqui no Brasil, mais recentemente, em 2015, fez parte da 10ª Bienal do Mercosul, evento que apresentou algumas controvérsias. Na sequência, discutiremos a sensorialidade na Arte associando-a à experiência humana, tomando John Dewey (2010) como referência. Princípios como a sensorialidade, as relações entre Arte e Vida, a participação ativa (e sensorial) do espectador e a imersão nas propostas artísticas como experiências afetam nossos trajetos enquanto arte-educadoras e pesquisadoras em Artes Visuais. Por fim, apresentaremos as experimentações em Arte Educação que tem como mote a busca por explorar os sentidos e mesmo reler com os estudantes propostas como a Tropicália de Oiticica. A Tropicália: labirinto sensorial de Hélio Oiticica Preocupado com as relações arte-público e Arte e Vida, Hélio Oiticica desenvolveu pinturas que ultrapassaram o espaço da tela, propondo um deslocamento da Arte não apenas na ordem espacial, mas também temporal, posto que as obras exigiam um outro tempo, um deslocamento do público para serem observadas. Hélio realizou ainda performances e instalações, entre as quais citamos a série de Penetráveis, trabalhos que requisitavam a presença física do público-participante. Entre os trabalhos do artista, orientamos nosso olhar para Tropicália (figura 1), obra criada e exposta no ano de 1967. Segundo Hélio, Tropicália seria a “[...] primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente ‘brasileira’ ao contexto atual das vanguardas e das manifestações em geral da arte nacional” (OITICICA, 1986; p.106 [grifo nosso]). O que podemos apreender dessa afirmação é que Tropicália, dentro de um contexto de vanguarda, de rupturas com modelos já estabelecidos para a produção artística, esteve vinculada à construção de um recorte da brasilidade. Longe de propor estereótipos, a obra questionava o que teríamos como “brasileiro(a)” e usava uma linguagem que punha em dúvida até mesmo o que seria a produção artística e o objeto de arte.

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Figura 1: Tropicália (1967). Fonte: http://institutobybrasil.org.br/helio-oiticica-corpo-movimento-e-arte/

Teóricos como a historiadora da arte Paula Priscila Braga, que desenvolveu a tese “A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica” em 2007, na Universidade de São Paulo (USP), aponta que o artista “[...] se preocupava mais, [...], em desenvolver estruturas de pensamento do que ‘obras de arte’. Assim preferia falar em antiarte, pois ‘arte’ estava já muito relacionada à obra-evento, à produção de obras para consumo do mercado de arte” (BRAGA, 2007 apud GONÇALO JÚNIOR, 2008, p.93). No entanto, foi justamente essa postura vanguardista que levou o artista a ser reconhecido por críticos de arte internacionais, como Guy Brett, e a se tornar uma das maiores referências da arte contemporânea entre 1960 e 1970. Segundo Cocchiarale (2010) Oiticica fez parte de um grupo de artistas que se recusou a enfocar seu trabalho ao realismo social tão em voga na década de 1930 devido ao modernismo temático nacional, orientando-se para uma vertente abstrato-concreta. A tentativa de sintetizar a identidade brasileira – e reconhecer uma possível pluralidade dessa, tendo a diversidade como valor – não foi uma novidade. Ainda anteriormente à década de 1960, o Brasil foi o tema primordial da produção modernista brasileira. Todavia, é possível questionar “qual Brasil” foi representado nas produções modernistas, e qual buscava ser “objetivado” nos trabalhos de Hélio. Longe de uma idealização, Oiticica buscava explorar a experiência da vida cotidiana em suas obras. Borrando os limites que segregam Arte e Vida, o artista em seu programa ambiental e com uma orientação para a antiarte, costumava caminhar nos morros e favelas do Rio de Janeiro, incorporando os modos de construção, materiais, cores e sons que o atingiam, em seus Penetráveis.

Tropicália é uma instalação que engloba dois penetráveis: PN2 “A Pureza é um Mito” e PN3 “Imagético” (figura 2). Compõem a obra ainda, uma gaiola com dois papagaios

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australianos e elementos no entorno como areia, britas, plantas tropicais (bromélias e palmeiras) e poemas de Roberta Salgado escritos em tijolos.

Figura 2: PN2 “A Pureza é um Mito” (à esquerda); PN3 “Imagético” (à direita) Fonte: ITAÚ CULTURAL (2010, p.35)

O PN2 é constituído por painéis de sarrafos e revestido com chapas de fibra de madeira pintadas em vermelho, amarelo, branco, rosa, azul, preto e laranja; um desses painéis, móvel, funciona como porta. Nessa “porta” do lado externo e superior está fixado um saco de areia. O teto é feito com sarrafos de madeira e o piso com chapas de madeira pintadas de branco e cobertas com brita. O PN3 é constituído por dez painéis com estrutura de sarrafos forrados com tecidos estampados, plásticos preto, azul e laranja, juta e chapa de fibra de madeira pintada de branca. A cobertura é de chapa de fibras de madeira pintadas de preto e de madeira, tela de arame, filó, raspas de madeira e essência de sândalo e patchouli. Na parte interna uma cortina formada de fitas plásticas em vermelho, verde, preto, amarelo, azul e branco, o chão forrado por um carpete preto e a presença de uma TV com imagem em preto e branco (ITAÚ CULTURAL, 2010).

Tropicália explorava as experiências incorporadas por Hélio em suas caminhadas nas favelas e ambiente urbano, sua característica marcante era a de suscitar a participação do público que para confrontar-se com a obra precisava adentra-la, percorrê-la, penetrá-la (figura 3). Nas palavras do próprio artista: Quando eu ando ou proponho que as pessoas andem dentro de um Penetrável com areia e pedrinhas... eu estou sintetizando a minha experiência da descoberta de rua através do andar... do espaço urbano através do detalhe, do andar... do detalhe síntese do andar. (OITICICA, 1979 apud COCCHIARELE 2010, p.63).

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Figura 3: Projeto em planta baixa da obra Tropicália Fonte: ITAÚ CULTURAL (2010, p.195)

Tropicália foi exposta pela primeira vez na Exposição Nova Objetividade Brasileira realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Segundo Oiticica (1968), a Nova Objetividade tinha entre suas características a participação do espectador de maneira corporal, tátil, visual, semântica, etc e o ressurgimento e novas formulações do conceito de Antiarte. O autor defende ainda que a Nova Objetividade: [...] seria a formulação de um estado da arte brasileira de vanguarda atual, [...] e [...] sendo um estado, não é pois um movimento dogmático, esteticista (como, p.ex., o foi o Cubismo, e também outros ismos constituídos como uma ‘unidade de pensamento’), mas uma ‘chegada’, constituída de múltiplas tendências, onde a ‘falta de unidade de pensamento’ é uma característica importante [...] (OITICICA, 1986; p.84).

Tropicália foi ainda responsável por nomear o movimento da música brasileira “Tropicalismo”, o qual teve curta duração (1967-1969) e foi apoiado no conceito de Antropofagismo Cultural, buscando associar diferentes ritmos na construção de músicas de cunho crítico ao governo ditatorial da época. Apesar das contundentes afirmativas do artista no tocante à participação do espectador e da antiarte, inserindo uma postura ética e política em sua obra, nem toda remontagem de Tropicália correspondeu às intenções de seu criador. Recentemente, em 2015, Tropicália fez parte da 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de uma Nova América, realizada em Porto Alegre entre os dias 31 de outubro a 6 de dezembro. A mostra teve como curador-chefe o historiador de arte Gaudêncio Fidelis e foi organizada a partir de quatro eixos conceituais: Jornada da Adversidade, A Insurgência dos Sentidos, O Desapagamento dos Trópicos e A Jornada Continua. Esses eixos deram origem a oito mostras: Biografia da Vida Urbana, Modernismo em

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Paralaxe, Antropofagia Neobarroca, Olfatório: o Cheiro na Arte, Aparatos do Corpo, A Poeira e o Mundo dos Objetos, Marginália da Forma e Plataforma Síntese, a qual congregou obras que se relacionaram às sete outras mostras. Tropicália fez parte da mostra Modernismo em Paralaxe, vinculada ao eixo conceitual Jornada da Adversidade. O material informativo do evento divulgou que Modernismo em Paralaxe visava: [...] reescrever a constituição da modernidade específica dos países da América Latina – ou de suas diversas modernidades – que se mostram, em muitos casos, ocultas pela crítica e pela historiografia. A exposição apresenta uma visão revisionista da modernidade destes países que se transforma em uma confluência de obras, teoria e manifestos artísticos que constituem uma redefinição do projeto moderno nas margens. (FUNDAÇÃO BIENAL DO MERCOSUL, 2015; s/p.).

A obra de Hélio nessa mostra foi apresentada como um trabalho a ser conhecido apenas pelos olhos do visitante, pois esteve fechada para participação do público. Penetráveis impedidos de serem penetrados. Postura reprovada pelo professor doutor e crítico de arte Fábio Cypriano (2016, p.42): “uma contradição irresponsável”. O labirinto sensorial Tropicália, necessita para sua própria conclusão como obra, que seja experimentado pelo público. A relação visceral público-obra está presente também nos trabalhos das artistas contemporâneas à Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape. Reconhecendo a vertente de obras com caráter sensorial e relacional, trataremos dessa temática na sequência. Arte, experiência e relações

Nada que o homem já tenha alcançado pelo mais alto voo do pensamento, ou que tenha penetrado por um minucioso discernimento, é tão intrinsecamente tal que não possa se tornar o coração e o cerne dos sentidos. John Dewey, 2010, p. 100. Hélio Oiticica procurava destacar, em suas criações, a experiência humana. Era a partir do cotidiano que o artista criava. Andando pelos morros e favelas do Rio de Janeiro, Hélio captava as sensações próprias do espaço e que ele traduzia nos materiais e no envolvimento das suas obras. Eram pinturas sim, pelo predomínio da cor e um trabalho muito voltado para o pigmento; no entanto, eram pinturas que, como dito, ultrapassavam as telas. Os Bólides e Penetráveis criavam verdadeiros objetos de experimentações, onde o olho do espectador era apenas um dos vários canais de entrada para as experiências estéticas propostas por Hélio. Esses objetos transformavam as relações espaciais e temporais travadas entre o público e a obra. O tempo de observação e percepção era diferente. O espaço e as sensações contribuíam para que a obra não apenas se aproximasse da experiência humana, mas fosse traduzida nela própria. O que seria então o objeto? Uma nova categoria ou uma nova maneira de ser da proposição estética? A meu ver [...] a proposição mais importante do objeto, dos fazedores de objeto, seria a de um

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novo comportamento perceptivo, criado na participação cada vez maior do espectador, chegando-se a uma superação do objeto como fim de expressão estética. Para mim, na minha evolução, o objeto foi uma passagem para experiências cada vez mais comprometidas com o comportamento individual de cada participador; faço questão de afirmar que não há a procura, aqui, de um ‘novo condicionamento’ para o participador, mas sim a derrubada de todo condicionamento para a procura da liberdade individual, através de proposições cada vez mais abertas visando fazer com que cada um encontre a si mesmo, pela disponibilidade, pelo improviso, sua liberdade interior, a pista para o estado criador – seria o que Mário Pedrosa definiu profeticamente como “exercício experimental da liberdade”. (OITICICA, 1986; p. 102).

Sobre a relação entre a experiência e a Arte, John Dewey (2010) é referência: o filósofo afirma que a experiência é determinada pelas nossas vivências, sendo a relação que estabelecemos com o meio a ponto de sermos transformados por ele e de o transformarmos. Para Dewey, a experiência relaciona o que foi vivido com o presente, atribuindo significados que podem nos preparar para experiências futuras. Assim, aproximando-nos da obra de Oiticica, podemos dizer que as experiências sensoriais vividas pelo artista nas favelas do Rio de Janeiro, o levaram a pensar sobre como a Arte pode propor experiências próximas a essas a que vê – e posteriormente incorpora – suas obras. John Dewey destaca que a experiência é uma troca ativa com o mundo. Quando penetramos Tropicália, passamos por uma série de sensações propostas pela obra e que nos conduzem a um espaço-tempo diferente do que estamos acostumados nas exposições e nos museus. Hélio propõe deslocamentos: a obra só existe em contato com o público. A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, significa uma troca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos (DEWEY, 2010, p.83).

Um bom exemplo dessa proposição de experiências realizada por Hélio são os Parangolés. Sozinhos, os parangolés são apenas tecidos, eles só existem como obra a partir da incorporação deles por meio do público. O parangolé consiste na relação corpo-objeto, que vai além do visual, é, como diz o artista, “suprassensorial”: Cheguei então ao conceito que formulei como supra-sensorial [...] É a tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindido mesmo do objeto tal como ficou sendo categorizado – não são fusão de pintura-escultura-poema, obras palpáveis, se bem que se possam possuir este lado. São dirigidas aos sentidos, para através deles, da ‘percepção total’, levar o indivíduo a uma ‘supra-sensação’, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais para a descoberta do seu centro criativo interior da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. Isto implica uma série de argumentos

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impossíveis de serem aqui discutidos: de ordem social, ética, política” (OITICICA, 1986; p.103,104).

A experiência educativa precisa ser afetiva, ou seja, precisa afetar, tocar os sujeitos para que seja transformadora. Segundo Dewey, “a experiência é o resultado, o sinal e a recompensa da interação entre organismo vivo e meio que, quando plenamente realizada, é uma transformação da intenção em participação e comunicação” (DEWEY, 2010, p.88). As experiências em Arte são experiências estéticas, compreendidas como transformadoras, capazes de potencializar nossas relações com os contextos em que estamos inseridos. Para tanto, é preciso gerar afetações, desequilíbrios. O que Hélio propõe são esses desequilíbrios: uma outra maneira de se relacionar com a Arte. Correlações entre sensorialidade e ensino de Artes Visuais As experiências que abordaremos agora foram realizadas entre abril e junho de 2016 com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental de uma escola privada de Petrolina-PE. Participaram da atividade duas turmas, uma com cerca de 17 estudantes (Turma A) e outra com 12 (Turma B). Entre os conteúdos estipulados para estudos no segundo bimestre de 2016 havia a discussão acerca do Tropicalismo. Considerando que tal conteúdo estava mais vinculado ao campo da música, aproveitamos uma informação destacada no livro didático (figura 4) que aproximava o Tropicalismo das Artes Visuais: o fato desse movimento ter o nome associado à instalação Tropicália de Hélio Oiticica. Os estudantes de ambas as turmas tiveram como atividade realizar uma pesquisa sobre as relações de Hélio Oiticica com o Tropicalismo. A pesquisa deveria ser escrita e posteriormente socializada numa “roda de debates” com os demais colegas. Após esse primeiro contato com Hélio, apresentamos imagens da obra Tropicália além de trabalhos como a série de Bólides, Penetráveis e Parangolés. À medida que as imagens foram sendo exibidas, discutimos as características estéticas dos trabalhos e o processo criativo do artista, bem como sua busca de relações com o públicoparticipante. Informações e imagens foram veiculadas a partir de vídeos com depoimentos sobre Hélio e exposições de suas obras.

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Figura 4: Página de livro didático Fonte: Arte - volume 7 (2016, p.55)

Concluídas as discussões e análises teóricas, propusemos atividades práticas para os estudantes: eles deveriam anotar, durante uma semana, parte de suas percepções sensoriais (visuais, táteis, olfativas, gustativas, sonoras) mais marcantes e selecionar materiais e objetos que tivessem relação com tais experiências. Os estudantes da turma B construíram pequenos “diários sensoriais” (figura 5) para registrar suas percepções. Os orientamos aos estudantes que realizassem ao menos um registro durante cada dia da semana.

Figura 5: Diários sensoriais do estudantes da Turma B. Foto: Caroline Bacurau, 2016.

Entre as anotações registradas, foram encontradas as seguintes frases: “Eu senti a brisa do vento em meu rosto, toquei na massaneta [sic] gelada do meu quarto, e 87


escutei nada mais nada menos do que o ‘silencio’[sic] do meu quarto”; “Hoje eu senti um cheiro bom e bem forte era café, na verdade só o pó do café [...]”; “Escutei um som de violão. Quem estava tocando era meu colega”; “[...] areia nos pé [sic] espinhos calor bastante calor [...]”. A ideia era propiciar uma maior consciência sensorial para que os estudantes pudessem explorar melhor seus sentidos e usá-los com maior agudeza para apreender o mundo e também se expressar. Oiticica, em seus registros, costumava apontar para a necessidade de perceber o que nos cerca, inclusive cria o termo “suprassensorial” para tal agudeza de sensações: Tanto o condicionamento cotidiano, responsável por nossa sensibilidade adormecida, quanto a suprassensação, dilatadora de nossas capacidades habituais para a descoberta de nosso centro criativo interior, têm por ambiente a contaminação recíproca entre arte e vida, isto é, os lugares de nossas experiências cotidianas, as ‘paisagens’ concretas que nos são familiares (COCCHIARELE, 2010, p.63).

Na semana subsequente à solicitação dos registros sensoriais e coleta de materiais, foi realizada a exibição dos materiais selecionados. Decidimos que os estudantes da Turma A criariam uma instalação em ambiente de circulação da escola com os objetos e materiais que trouxeram. Depois da montagem buscariam dialogar com estudantes de outras turmas e séries. O ambiente escolhido foi parte do pátio da escola onde havia uma árvore, essa área recebe vários alunos durante o período de intervalo de aulas. A montagem se deu justamente um pouco antes desse intervalo o que permitiu a interação entre crianças de faixas etárias variadas (figuras 6 e 7). Além dos materiais trazidos pelos estudantes foram disponibilizadas fitas adesivas, linhas e tecido não tecido (TNT) de cores variadas. Apesar da presença dos autores da instalação como forma de atrair e dialogar com outros estudantes, não foi estabelecida uma maneira de se relacionar com o trabalhos. As crianças que caracterizaram o público participante não tinham trajetos ou comportamentos a serem realizados, mas transitavam como desejavam. É curioso constatar que apesar de não termos conversado com os estudantes autores sobre a rejeição de Hélio Oiticica ao “condicionamento de comportamentos” eles acabaram instaurando a mesma estratégia de liberdade em sua instalação coletiva.

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Figuras 6 e 7: Estudantes montado instalação no pátio (Turma A). Foto: Caroline Bacurau, 2016.

Os estudantes da Turma B fizeram uma atividade diferente. Orientados por seus diários sensoriais e os materiais/objetos trazidos, criaram uma bancada com organização individual e travaram um diálogo com seus próprios colegas. Sobre uma ampla bancada, quatro estudantes organizaram seus materiais e sentados atrás da mesa recebiam um a um cada colega. Orientamos para que cada estudante decidisse como conduzir a mediação de seu material: seja conversa, disponibilização para toque, cheiros ou demais interações (figura 8)

Figura 8: Montagem da bancada com materiais Turma B. Foto: Caroline Bacurau, 2016

Considerações Hélio Oiticica foi um artista sem igual, suas obras trouxeram ao cenário das artes no Brasil uma nova maneira de relacionar a obra e o público. Hélio nunca deixou a pintura, ele a transformou. E, se por ela foi transformado, podemos considerar que passou, ele próprio, por experiências singulares enquanto criava. Hélio discutia, pensava e criava em cima das – e para – as experiências sensoriais. Era movido pelas proposições de um novo modo de perceber a Arte. Suas obras exigiam que o espectador se deslocasse, saísse de sua zona de conforto para sentir o que era proposto, desde incorporar um dos parangolés até penetrar os Penetráveis. O movimento em torno da obra e com ela são cruciais para Hélio. O trabalho desse artista ia além do objeto em si, era voltado para a sensação, para a experiência. O cotidiano e a sensorialidade determinavam uma nova relação com a obra, as experiências cotidianas e o corpo do espectador entravam em seu trabalho como aspectos criadores.

Tropicália foi uma dessas experiências. Composta por penetráveis, ela era um convite ao corpo e os sentidos do espectador. Interessante notar que “sentido”, para Dewey (2010), abarca uma variedade de conteúdos, desde o sensorial, o sensível, o sentimental ou mesmo o sensual. Vai do físico ao campo emocional, ao sentimento:

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“[...] ou seja, o significado das coisas presente na experiência imediata. Cada termo se refere a uma fase, a aspectos reais da vida de uma criatura orgânica, tal como a vida ocorre através dos órgãos sensoriais” (DEWEY, 2010, p.88). Tropicália consistia numa proposta artística de criação de um espaço-tempo sensorialmente brasileiro. O que podemos notar com as propostas desenvolvidas a partir da obra é que, embora diferentes para cada turma, é perceptível o engajamento dos estudantes das atividades propostas e o prazer em manipular e experimentar os materiais. Usada para a criação artística, a sensorialidade tem se mostrado uma importante ferramenta para o campo de ensino da arte. As crianças, infelizmente, não mostraram ter apreendido as discussões de cunho ético e político de Hélio, pois não tinham tido, até o momento, propostas tão experimentais. Suas compreensões da arte não contemplavam ainda as discussões presentes no Neoconcretismo. Todavia, acreditamos que essa vivência e a aproximação com os trabalhos de Hélio possibilitou uma compreensão ampliada das possibilidades, limites e discussões abrangidas pela arte. Destacamos ainda o potencial artístico da proposta, ainda que de cunho educativo. Os estudantes mostraram-se envolvidos, afetados sensorialmente, permitindo-se criar. Ao mesmo tempo, destacamos a potência educativa e política da obra de Hélio ao se mostrar tão próxima à vida cotidiana. O diálogo entre Arte e Educação deve ser não apenas constante, mas também sensorial, quase um abraço, uma incorporação.

Referências CYPRIANO, F. De volta ao passado. In. ARTE!Brasileiros. São Paulo: Brasileiros Editora Ltda. p.42-44, n.33, mar. abr. 2016 COCCHIARALE, F. Da contemplação ao suprassensorial. In. ITAÚ CULTURAL. Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010 DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. Coleção Todas as Artes. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FUNDAÇÃO BIENAL DO MERCOSUL. 10ª Bienal do Mercosul – Mensagens de uma Nova América (press kit). Porto Alegre, 2015. Acesso: 05 jul. 2016. Disponível em:<www.fundacaobienal.art.br/site/upload/releases/1446231103_PressKit_FINAL.p df> Acesso em 05 jul. 2016 GONÇALO JÚNIOR. A Tropicália, segundo Hélio Oiticica. Pesquisa FAPESP p. 90-93, n. 144, fev. 2008. Disponível em: <revistapesquisa.fapesp.br/wpcontent/uploads/2008/02/90-93-tropicalia-144.pdf?2125d7> Acesso em 04 mai. 2016 ITAÚ CULTURAL. Hélio Oiticica: museu é o mundo. São Paulo: Itaú Cultural, 2010 OITICICA, H. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986

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Caroline Moreira Bacurau Licenciada em Artes Visuais (UNIVASF), especialista em Educação, Contemporaneidade e Novas Tecnologias (UNIVASF) e mestranda do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Pernambuco (PPGAV UFPB/UFPE). Arte-educadora, pesquisa relações entre multissensorialidade e educação inclusiva em Artes Visuais. Sara Vasconcelos Cruz Graduada em Artes Plásticas (IFCE), especialista em Educação Inclusiva (UECE) e mestranda do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Pernambuco (PPGAV UFPB/UFPE). Artista e educadora desenvolve pesquisa sobre mediação multissensorial no Sobrado Dr. José Lourenço, em Fortaleza.

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A REPRESENTAÇÃO FEMININA NAS ARTES VISUAIS DE PERNAMBUCO Clarissa Generino Duarte/ Universidade Federal de Pernambuco Luciana Borre Nunes/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Sendo a artista Fédora do Rego Monteiro Fernandes uma figura esquecida/ desconhecida no “canôn” da história da arte pernambucana, propus- me a pesquisar, conhecer e tornar público as contribuições artísticas desta figura tão importante para a arte de Pernambuco. Busca- se apresentar, de forma geral, como a mulher era vista no meio social e no mundo das artes, como profissional. Destacando a importância de estudos sobre gênero e como essa representação feminina contribui para que haja maior igualdade de gênero nas Artes Visuais. PALAVRAS-CHAVE Fédora do Rego Monteiro Fernandes; Artes Visuais; Pernambuco ABSTRACT Being the artist Fédora do Rego Monteiro Fernandes a figure forgotten/ unknown in the "canon" of the history of Pernambuco art, I set to research, learn and make public the artistic contributions of this figure so important to the art of Pernambuco. 'Il get to present, in general, as the woman was seen in the social environment and in the art world as a professional. Highlighting the importance of studies on gender and how this representation of women contributes to greater gender equality in Visual Arts. KEYWORDS Fédora do Rego Monteiro Fernades; Artes Visuais; Pernambuco

Introdução Este artigo é recorte de uma pesquisa que iniciei em 2014 a partir do programa de iniciação científica (PIBIC) e está inserido na investigação “Tramas na Formação de Professoras/es para Questões de Gênero e Sexualidades” desenvolvido pela professora Luciana Borre na Universidade Federal de Pernambuco. Aqui, busco apresentar as razões e motivos que me despertaram interesse de pesquisar sobre Fédora do Rego Monteiro Fernandes, artista pernambucana, também destaco a importância de estudos sobre gênero e como passei a conhecer a existência de artistas pernambucanas do sexo feminino. Este texto está dividido em três partes: (1) exponho minhas inquietações sobre ser mulher, artista e profissional; (2) falo sobre como fui inspirada pela artista Fédora a pensar sobre gênero e; (3) apresento a artista Fédora do Rego Monteiro. Após pesquisa bibliográfica, leituras, participação em uma disciplina do curso de Artes Visuais, sobre gênero e sexualidades, ministradas pela professora Luciana Borre e muitas reflexões, busco entender de que forma a ausência da mulher na história da arte me afeta e o quanto é relevante ter explicito a presença feminina no contexto artístico da história da arte de Pernambuco.

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Existente x Inexistente: A prática da exclusão Lidar e pesquisar sobre questões de gênero passou a fazer parte da minha vida a partir do momento em que percebi a não existência de mulheres, em livros e na história da arte com os quais convivia. Nunca pensei que a ausência da mulher, especificamente nas Artes Visuais, seria um problema, até porque não tinha noção sobre esse assunto no início da minha formação acadêmica. É interessante perceber que questões como essas nunca me foram nem sequer sugeridas ou que eu nunca tenha tomado atenção a elas, e entender a necessidade de discussões de gênero não é nada fácil na cultura em que estou inserida. Quando cheguei a Universidade para realizar o curso de Licenciatura em Artes Visuais, estava carregada de referências masculinas da arte, graças a um currículo eurocêntrico que me foi passado ao longo da minha vida, os melhores artistas da história, os melhores autores, os melhores em qualquer área, eram todos homens. Difícil perceber que falta algo entre tantas ótimas referências. Foi pesquisando sobre uma referência diferenciada que me deparei com uma artista, do sexo feminino, que também seria/é uma referência, caso, fosse lembrada, estudada ou falada. Fédora do Rego Monteiro Fernandes foi uma das minhas maiores descobertas. Parece inacreditável, mas encontrar uma artista, mulher e pernambucana, foi um alívio, “obviamente, não é tanto a falta de documentação sobre as mulheres, mas a noção de que tais informações não teriam a ver com os ‘interesses da história’, que gerou a ‘invisibilidade’ das mulheres nos relatos do passado” (MATOS, 2000, p. 21), de fato, muitas mulheres se aventuravam na vida artística e, possivelmente, tinham seus trabalhos reconhecidos, mas diante de uma sociedade que pouco valorizava a mulher, elas eram invisibilizadas ao longo dos tempos, Fédora Monteiro é um exemplo, por isso o alívio e o interesse em pesquisar sobre sua vida e obras. Uma mulher nascida no fim do século XIX e criada conforme as normas e valores de uma sociedade, não se deixou abater por comentários e normas sociais que, possivelmente, não permitiriam seu protagonismo dentro do que queria para sua vida. Numa época em que “a mulher artista durante muito tempo teve o seu trabalho legitimado a partir do seu atrelamento ao mundo masculino” (ZACCARA, 2010, p. 129), Fédora mostrou que, apesar das dificuldades, foi possível alcançar suas próprias realizações, mostrando que era possível às mulheres realizarem algo independente de aprovação ou permissão masculina. Encantada com o Movimento Modernista pernambucano, buscava encontrar informações sobre o período e me deparei com a artista Fédora do Rego Monteiro, que logo me interessou e passei a buscar maiores informações sobre sua vida, como a mulher era vista no início do século XX, como ela lidou com questões que colocavam a mulher em uma posição de inferioridade, enfim, tudo que pudesse descobrir. Percebi que apesar de poucas, existiam algumas informações sobre a artista, em jornais, especialmente no acervo da Escola de Belas Arte de Pernambuco, que está hoje na Biblioteca Central da UFPE, no memorial Denis Bernardes, além de artigos e

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em algumas poucas dissertações, com uma pesquisa mais detalhada é possível juntar informações e ter maiores detalhes sobre a artista, nota-se que, “Os estudos históricos com a abordagem de gênero, usando de muita criatividade, sensibilidade e imaginação na procura de transpor o silêncio e a invisibilidade a que estavam relegadas as mulheres na história, trouxeram à luz uma diversidade de documentação, um mosaico de pequenas referências esparsas [...]” (MATOS, 2000, p. 22).

Escolhi, aqui, não ser neutra. Quero falar abertamente sobre a real importância de ter reconhecida e apresentada uma mulher, que participou de um movimento artístico que em sua esmagadora maioria foi masculino, legitimando a mulher pernambucana, quero dar voz a uma figura que muito tempo passou despercebida. Acredito que chegou o momento de parar de reproduzir discursos masculinos, as novas gerações, sobretudo pernambucanas, precisam saber que sim, existiram grandes mulheres artistas. Descobrir quais as contribuições de Fédora do Rego Monteiro Fernandes para o Modernismo pernambucano é o principal objetivo, trazendo ao nosso conhecimento ou memória fatos que, possivelmente, mudaram a história da arte pernambucana. Acredito que seja fundamental para Pernambuco falar de memória, pois, “a memória dá significado as vivências humanas e suas intervenções no cotidiano” (SILVA; CARVALHO; COSTA, 2014, p. 13). Dentro desse contexto, encontrei necessidade de expor a mulher “não como figuras coadjuvantes na vida dos vencedores, dos senhores, dos homens, mas sim como agentes ativos na construção de suas vidas e do cotidiano das sociedades” (CARVALHO, 2014). A mulher visível Cada fala. Cada palavra cala. E ganha um ‘signovosignificado’ para mim. Desperta dor. Apaga dor. Vai embora. Fica. Meu amor. (Karina Buhr)

Ouvindo a música Cara Palavra, de Karina Buhr, por esses dias, me fez pensar, entre outras coisas, no quanto a palavra, ou a falta dela, nos faz ter interpretações distintas, meias verdades ou até mesmo nenhum tipo de informação. Desde sempre palavras foram ditas as mulheres, tais como, “as mulheres produzem crianças e não arte e confinam suas atividades ao doméstico privado e não à esfera cultural, pública” (LAMAS, 1997, p.68). Anos de silêncio e opressão foram trocados, em meio a lutas, por dias de liberdade e escolhas, “hoje presencia-se a mulher de profissão artista em toda parte, é um fenômeno cotidiano. Porque a própria mulher construiu essa história” (LAMAS, 1997, p.71). Hoje as palavras têm um significado diferente para as mulheres, na verdade as palavras agora falam das mulheres, mesmo não sendo o suficiente, já não passamos mais despercebidas. As palavras, os discursos, não falam de coisas que não existem, mas confirmam a

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presença dessas coisas. Se por séculos não se falava sobre mulher como profissional ou mesmo artista, era claro que as palavras e os discursos esqueceriam as mulheres que se aventuravam por essas escolhas. Tendo esse esquecimento reflexos até hoje. Entendendo “que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros” (LOURO, 1997, p.22), a famosa frase de Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher, torna- se mulher”, começa a fazer real sentindo em minha construção de conhecimento sobre esse tema. Ser mulher, se tratando especialmente das sociedades ocidentais, nunca foi garantia de felicidade ou sucesso, lutas diárias são travadas por mulheres de todos os âmbitos sociais buscando se colocar diante uma sociedade que pouco valoriza opiniões, pesquisas, arte, etc de pessoas do sexo feminino. Com o passar dos anos, a mulher passou a deixar a “esfera privada”, de trabalhar apenas em casa para o marido e para os filhos, e passou a sair e ocupar lugares que antes eram apenas de pessoas do sexo masculino, começaram a trabalhar na indústria, fazendo pesquisa, se tornaram filósofas, psicólogas e grandes estudiosas, mesmo não sendo reconhecidas, não desistiram de falar. Tornar a mulher visível, acredito que tenha sido um dos principais objetivos de estudiosas feministas ao longo dos anos, pois, “assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretensões de mudança” (LOURO, 1997, p. 19), essas mesmas mulheres que deixaram a esfera privada não se tornaram grandes estudiosas por nada, elas queriam mudanças, queriam mostrar que também havia espaço para questões que tratassem do feminino. Na história do Brasil, a mulher, não tem se mostrado de forma diferente do restante do mundo, “recorrentemente sob a luz de estereótipos, dando- nos a enfadada ilusão de imobilidade” (DEL PRIORE, 1994, p. 11), os estereótipos femininos têm trazido à mulher dificuldades que são causadas por esse imaginário que coloca a mulher como um ser frágil e delicado, digno de cuidado e atenção. Os diálogos existentes sobre a mulher, geralmente, falam sobre a dominação masculina e opressão feminina, como se isso fosse um ciclo sem fim (DEL PRIORE, 1994), entretanto, “Vale dizer, finalmente, que o território do feminino na história não é um lugar sereno, onde a mulher se locomove sem riscos, e onde o conforto e o conflito não imprimem suas marcas. A história da mulher é, antes de tudo, uma história de complementaridades sexuais, onde se interpretam práticas sociais, discursos e representações de universo feminino como uma trama, intriga e teia.” (DEL PRIORE, 1994, p. 13).

É certo que a mulher sofreu e sofre por inúmeros fatores, disso não há como discutir, mas é necessário parar de reproduzir esse discurso de sofrimento feminino, acredito que chegou o momento de mostrarmos os feitos da mulher, em qualquer área em estiver presente, vamos nos afastar dessa ideia de vitimização do “sexo frágil” e começar a valorizar e estimular a presença feminina, sobretudo nas artes, “No que diz respeito às Artes Visuais, a presença da mulher adquiriu outra dimensão. De objeto de representação tradicional ela passa à condição de observador superando restrições e

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dificuldades, de forma gradativa, em relação à sua inserção no universo profissional artístico e trazendo cada vez mais para a arte uma visão feminina sobre a própria arte, sobre si e sobre a vida.” (ZACCARA, 2010, p. 128).

Acredito que a valorização das artistas locais faria diferença na construção de um olhar diferenciado sobre a mulher/artista. Fédora do Rego Monteiro é um exemplo de mulher/artista/pernambucana que sofre, hoje, com o pouco destaque no mundo das artes, segundo Zaccara, (2010, p. 131), “[...] inegavelmente, ela é a presença que mais se destaca no contexto profissional das Artes Visuais em Pernambuco na década de 30, com um currículo bem mais sólido e cosmopolita em relação aos seus companheiros da EBAP” (Escola de Belas Arte de Pernambuco). Apesar das muitas dificuldades enfrentadas por mulheres artistas no início do século XX, podemos observar em Fédora Monteiro, muitas conquistas no campo profissional. Reconhecida por seu talento no início do século passado, Fédora Monteiro, hoje, não é tão conhecida pelos pernambucanos, pois, ainda, “o discurso mais comum que chega até nós sobre a arte, no entanto, ainda é uma interpretação pertencente a um sistema de significações muito particular, no qual um certo modo de ver masculino é dominante” (LOPONTE, 2002, 285), o que de alguma forma impede o reconhecimento feminino nas artes, mas não nos impede de continuar tentando recontar a história da arte pernambucana, desta vez, dando maior destaque as artistas do sexo feminino. Fédora do Rego Monteiro Fernandes Por muito tempo “a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito – inclusive como sujeito da ciência” (LOURO, 1997, p. 17), podendo também acrescentar invisibilidade como sujeito das artes. Em relação às artes, sempre houve essa tal “invisibilidade” das mulheres, seja na exclusão de nomes de artistas do sexo feminino nos escritos de alguns críticos “‘contaminando’ as fontes com que usualmente contamos para reconstruir a história das mulheres artistas” (SIMIONI, 2007, p. s/p), seja lhes colocando como “amadoras” e não lhes dando seu devido valor. Fédora do Rego Monteiro é a única mulher, da década efervescente de 1930, no Recife, a ter maior destaque. Apesar das dificuldades enfrentadas pelas mulheres da época e restrições no cenário das Artes Visuais e também em relação à sua formação acadêmica, Fédora foi uma das fundadoras e professora secundarista da Escola de Belas Artes de Pernambuco. Formada pela conceituada Académie Julian e presença constante em inúmeras exposições no Brasil e no mundo, Fédora do Rego Monteiro Fernandes poderia ter sido figura permanente no universo artístico pernambucano. Por ter, Fédora Monteiro, ido a Paris e ter participado de várias exposições foi melhor reconhecida quando retorna ao Recife. Podemos notar esse reconhecimento pela forma como o Jornal Pequeno, Recife, de 22 de agosto de 1932, recebeu a artista no corpo docente da EBAP. (TORRES, 2014).

Merecem rasgados aplausos os seus colaboradores, esforçados artistas, procurando levantar o nível cultural do Recife. Entre os professores figura uma pintora, nome bastante conhecido e a garantia de que a aula que tiver a seu cargo será conduzida com 96


brilho: Fedora do Rego Monteiro Fernandes, já laureada e mais – consagrada pelo *Salon Ofificiel* de Paris, onde expoz um soberbo auto-retrato.

Além de várias exposições que participou, sendo uma figura bastante presente no cenário artístico pernambucano e nacional, é impossível negar que Fédora contribuiu para a arte local com sua qualidade artística, representando por vezes paisagens pernambucanas e mulheres. Mostrando-nos que é urgente que a artista seja apresentada apropriadamente e tenha seu nome garantido entre os grandes artistas de Pernambuco e também do Brasil. O talento da artista pode ser visto em suas obras, que não deixam a desejar em nada diante das obras de outros artistas homens. Algumas de suas obras podem ser vistas no Palácio do Campo das Princesas, PE, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM), entre outros lugares.

Flor do Panamá, 1925. Óleo sobre madeira, 55 x 55 cm/ Acervo MAMAM

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La sorcière/ The which, Óleo sobre tela, 1913/ Acervo Palácio do Campo das Princesas

Essas duas pinturas da artista Fédora do Rego Monteiro Ferandes, são um exemplo de que “apesar de todas as dificuldades entrentadas em sua trajetória, ela conseguiu ser uma profissional das arte negando-se ao papel que era destinado [...], o de pintar aquarelas como parte do dote de uma senhorita prendada” (ALVES, 2010, p. 190). Considerações Finais Minha maior surpresa em falar sobre Fédora do Rego Monteiro Fernandes, foi entender que esse tema me escolheu. Ser representada, artisticamente, por uma mulher/pernambucana, a meu ver, tem enorme valor, pois, reforça a ideia de não vitimização da mulher, apesar de seus sofrimentos e opressões históricas, e fortalece a total capacidade da mulher em se envolver no mundo das artes. Graças ao meu envolvimento com a investigação “Tramas na Formação de Professoras/es para Questões de Gênero e Sexualidades” desenvolvido pela professora Luciana Borre na Universidade Federal de Pernambuco, desenvolvemos uma pesquisa que me trouxe além de satisfação, orgulho por saber que esta pesquisa contribui para que mais artistas sejam revelados, que a história da arte pernambucana não morra ou se perca no desconhecido, mas que assim como eu outros se encontrem e se espelhem com exemplos de superação. Ter alguém que, mesmo simbolicamente, nos represente e nos inspire torna nossa caminhada menos árdua, por meio de histórias e exemplos passamos não só a conhecer o outro, mas a nós mesmos também. Somos bastante positivas em relação

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ao futuro, quero acreditar que tudo pode ser diferente. Que a sociedade respeite nossas escolhas, que a história da arte seja mais generosa com as mulheres artistas, que as artistas sejam reconhecidas e valorizadas e que de fato o preconceito de gênero não exista.

Referências ALVES, Rafael. Fédora do Rego Monteiro: anotações sobre gênero e Artes Visuais em Pernambuco. In: ZACCARA, Madalena; PEDROSA, Sebastião (Orgs.). Artes Visuais e suas conexões: Panorama de pesquisa. Recife: Ed Universitária da UFPE, 2010, p. 185- 191. LAMAS, Berenice Sica. As artistas: recortes do feminino no mundo das artes. Porto Alegre, RS: ed. Artes e Ofícios, 1997. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pósestruturalista - Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, 2000. SILVA, Maria Betânea e; CARVALHO, Lívia Marques; COSTA, Robson Xavier. Encontros com a Arte. Recife: Ed Universitária da UFPE, 2014. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. As mulheres artistas e os silêncios da história: a história da arte e suas exclusões. Labrys, études féministes/ estudos feministas. janvier /juin 2007 - janeiro / junho 2007. TORRES, Niedja ferreira dos Santos. O ensino do desenho na Escola de Belas Artes de Pernambuco (1932 a 1946). 2015. 150f. Dissertação de mestrado. Programa associado de pós-graduação em artes visuais. Universidade Federal de Pernambuco/ Universidade Federal da Paraíba - Recife: 2015. ZACCARA, Madalena. Anotações sobre a presença da mulher nas artes visuais em Pernambuco. In: ZACCARA, Madalena; PEDROSA, Sebastião (Orgs.). Artes Visuais e suas conexões: Panorama de pesquisa – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010, p. 127- 147. Clarissa Generino Duarte Graduanda de Licenciatura em Artes Visuais – Universidade Federal de Pernambuco.

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ENTRE O MAR E O CÉU: UMA ANALOGIA ENTRE DEUS/CRISTO E DELEUZE/COUTINHO Darlyson Albuquerque/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Relato reflexivo e imaginativo sobre a experiência de um mestrando recém adentrado ao Programa Associado de Pós-graduação em Artes Visuais UFPE-UFPB em sua primeira aula de campo. PALAVRAS-CHAVE Marcelo Coutinho; Aula de Campo ABSTRACT Reflective and imaginative report about a student’s experience, who newly joined the UFPE-UFPB Visual Arts Post-graduation Associated Program, during his first Field Class. KEYWORDS Marcelo Coutinho; Field Class.

O questionamento Mestrado do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais UFPB-UFPE, primeiro período, nona semana. Aula de Teoria das Artes Visuais com o Prof. Dr. Marcelo Coutinho. No intervalo, um questionamento sobre o espaço físico da sala: apesar de convencionalmente adequado para uma aula de caráter estritamente teórico como é a disciplina em questão, o espaço torna a trato com o assunto um tanto quanto duro e frio. Afinal, pensar é necessário, porém, não é fácil. Fim do intervalo, o questionamento é apresentado ao professor que o recebe cordialmente. Após poucas palavras trocadas entre os discentes e o docente, uma espécie de “aula de campo” estava programada. Na semana seguinte, iríamos teorizar e refletir em um sítio de propriedade do mesmo professor. O espaço fica localizado no Bairro de Aldeia, Camaragibe, Região Metropolitana do Recife. A gentil oferta de Coutinho demonstra não apenas ter bem recebido o questionamento sobre as formas tradicionais dos espaços de ensino-aprendizagem, como também evidencia que essa é um inquietude compartilhada pelo docente. A auto-expulsão Na segunda aula, Coutinho proferiu uma preleção intitulada “A Cidade: O poeta expulso, a poesia sitiada”, a qual narrava sobre como Platão propunha a expulsão dos poetas da cidade, da Polis. O que diria o filósofo grego se soubesse que em um acordo social da nossa Doxa, os poetas resolvem sair da Polis deliberadamente? E assim fizemos. Ao terceiro dia do mês de abril do ano de nosso senhor Jesus Cristo de

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dois mil e dezesseis, seguimos todos a caminho do sítio. O bairro de Aldeia é, senão o mais bucólico dos bairros da Grande Recife, o que mais ostenta e projeta essa característica como seu principal atrativo. Alguns minutos e caminhos à frente e já estamos saindo do caos da metrópole em direção a serenidade das áreas verdes. Direita, esquerda, esquerda, direita e começo a pensar que já não sei exatamente onde estou. Indago-me se alguma vez na vida, eu já soube realmente onde estava. Silêncio... Penso: que pergunta tão filosófica! Será esse já o primeiro indicativo do efeito reflexivo causado pela atmosfera do lugar? Adiante. Chegamos. A propriedade exibe uma placa onde se lê “Rancho das Oliveiras”. Não poderia haver um nome mais sugestivo. Aproximo-me do professor e em tom de brincadeira comento: “quase um Monte das Oliveiras”. Ele ri educadamente. Não sei se o comentário foi bem entendido, tampouco sei por que o fiz, apenas pensei e falei, sem pensar no que falei. Depois, pensei em pensar. Desisti. Ainda não era o momento. Isso seria daqui a alguns minutos, durante a aula de campo, ou melhor, aula de rancho. O pecado Tema da aula: Deleuze. Eu nunca havia lido este autor. Pecado acadêmico, confesso. Mas calma, meu caro! Se você fez as contas, esta é a décima semana de aula e entre Sócrates e Deleuze, há tais Platão, Xenofonte e Aristóteles. Há ainda mais Rousseau, Nietzsche e Foucault. Havia também Deus, mas segundo Nietzsche, Ele morreu. Ou quem morreu foi Nietzsche segundo Deus? Enfim, muitos séculos de leituras que não poderiam ser reduzidas a dez intensas, porém curtas semanas. A conclusão é que para sair dessa caverna alegórica, é um passo de cada vez. Aproveito para advertir o estimado leitor a respeito e sem desrespeito da natureza indócil deste texto que se em algum momento lhe parecer pouco acadêmico ou caso sinta-se a sutil impressão de que o falta uma rigidez teórica, tenha a certeza de que sua intuição está certa. Segundo o dicionário Aulete Digital, intuição significa “percepção pronta e clara; instinto, sexto sentido”. Mas cuidado, não é de bom tom guiar-se pela intuição no mundo acadêmico. Sugiro que antes procure algum autor que referencie este tipo de problemática. E se tiver tempo, elabore um artigo e submeta-o a algum congresso mundo afora ou Brasil adentro! A redenção E se pequei em relação a Deleuze, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa! Porém, que melhor lugar teria eu para redimir-me dos meus pecados? Segundo A Bíblia, o Monte das Oliveiras foi onde Jesus transmitiu alguns de seus ensinamentos. Sim, Jesus, aquele autor Best-Seller que nunca escreveu uma linha, mas fez mais citações referenciadas com o Divino que qualquer outro na face da terra, do mar e do céu. Mar? Céu? Ai, ai, ai... E essa intuição que teima em pulsar. Apartai-vos de mim profético acaso e dai lugar às teorias pelo Grande Método validadas. Afinal, não escrevo para poetizar, senão para racionalizar. Ou seja, para engordar aquele senhor, o César Lattes. Finalmente, aqui estou eu, um pretensioso pesquisador das Artes Visuais com dez

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vastas semanas de experiência. Em um espaço verde, cercado de árvores que vou preferir tomar por Oliveiras, mesmo sabendo que não são – mas o lugar me incita a trocar o saber pelo crer até sentir. E no lugar do Monte, o Rancho. No lugar do Cristo, Coutinho. Marcelo Coutinho. Os guardiões Vamos com calma, leitor. Não tão facilmente se alcança o Reino dos Céus e a Glória do Esplendor. Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos (Mateus 22:14). Para conseguir adentrar ao tal Rancho, tivemos que antes passar pela guarda de alguns leões. Isso mesmo, leões da Rodésia. Difícil entender como saíram de lá e vieram até o Rancho das Oliveiras, mas, certamente, algum autor que trate de globalização do mundo animal saberia explicar. O fato é que assim como Daniel que fora atirado à cova dos leões e teve a vida preservada por intermédio de seu Deus que amansou as feras, eu também tive minha vida preservada por intermédio de Marcelo que amansou os rodesianos. Ora, não estava Marcelo no lugar de Cristo? Como pode agora ser Deus? Entendendo a função de um bom pesquisador, vou buscar nos livros a explicação. Encontro. Eu e o Pai somos um (João 10:30). Conclusão: Marcelo Coutinho é Deus e Jesus Cristo em um só. Concluída a travessia por entre as feras que, agora, de tão docilizadas, atrevo-me até a alisar os bichanos. Antes de iniciar a aula propriamente dita, preparamos o banquete da celebração. Celebração? Não adianta. Meu instinto de pesquisador – existe instinto de pesquisador? Para não voltar à incerteza da intuição, substituo. Minha análise de pesquisador, diante de tais evidências, conclui que algo maior se passa por aqui. Todos os meus sentidos põem-se em alerta e quase consigo escutar Hamlet sussurrando em meu ouvido: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Tão podre que até sinto o cheiro. Aproximo-me e percebo que o cheiro vinha do queijo gorgonzola trazido por outro mestrando a fim de engordar. Não o Cesár Lattes, mas nós mesmos. E antes que eu possa realmente entender o que está acontecendo, uma voz toma de cheio os meus sentidos. É ele, Marcelo Coutinho, o messias, o prometido, trazendo a mensagem do senhor, o Deleuze de Israel. Ou melhor, da França. A imersão A partir desse momento, admito que qualquer tentativa de relato objetivo será uma corrida em direção à linha do horizonte. Pode-se até chegar longe, mas nunca será perto o suficiente. E fatalmente, o cansaço venceria a obstinação. Foi uma experiência que escapa ao racional, pois só é tangível na esfera dos sentimentos. Mundo no qual essa experiência não “foi”, mas sim, “é”. Já que ainda consigo revisitar aquele espaço/tempo e reviver aquelas sensações. Na verdade, eu ainda estou lá. Lembro-me que fluindo ao som das palavras proferidas por Cristo/Coutinho anunciando as boas-novas de Deus/Deleuze, eu ouvia internamente o canto da Violeta Parra poetizando meu estado de espírito: “Voltar a ser de repente, tão frágil como um segundo. Voltar a me sentir profundo como uma criança diante de Deus. É o que eu sinto neste momento fecundo” (1966, tradução minha). E só uma obra de arte para expor um estado de arte, sentir-se arte, ser a arte: “O que pôde os sentimentos nuca pôde o saber. Nem o mais claro proceder, nem o mais largo pensamento.” (Ibdem,

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tradução minha). O que me resta da esfera racional são fragmentos de uma tentativa de estar consciente daquele momento fecundo. Em determinado ponto do sermão/preleção, Cristo/Coutinho prega/relata sobre uma entrevista de Deus/Deleuze na qual Ele/ele fala a respeito do estado da filosofia quando se está vivendo em uma época pobre. A filosofia assim torna-se apenas um ato reflexivo, sem, no entanto, produzir conceitos. Levanta-se então uma discussão sobre nosso momento atual: estaríamos vivendo tempos de pobreza intelectual onde nossa filosofia apenas “reflete sobre” e nada produz? Ou seria a nossa própria existência um ato criativo? Paro e penso no agora, neste agora. Estou imerso no instante, inebriado pela agudez de um sino dos ventos dependurado por perto que sutilmente me arrebata e nada lá fora me interessa. Como posso pensar em tempos pobres quando repouso no leito da fonte do conhecimento? Quando encontro-me aos pés de um messias filosófico. Suspeito que do fruto da árvore dão conhecimento que comeu Adão e Eva, comeu também Marcelo Coutinho. E com um pouco mais de tempo e ousadia, percorreria esse rancho e encontraria a tal árvore. De(us)leuze No entanto, não há tempo e falta-me ousadia. Não para desbravar o rancho, o que faria com muito gosto, mas para deixar de ouvir os ensinamentos. Uma aula que duraria quatro intensas horas em uma sala convencional, parece aqui, dobrar a linha do tempo e esvair-se por um momento perene, ainda que fugaz. Sim, meu caro Einstein, o tempo é relativo! E assim deu-se o nosso “encontro” com Deus/Deuleuze. Lá estávamos nós, alunos, buscando a iluminação, como pequenos Budas, sob árvores que não eram oliveiras, em um monte que era um rancho, com um Cristo que era Coutinho, falando de um Deus que era Deleuze. Finalmente, torno-me o primeiro desertor a deixar o rancho. No retorno do poeta à Polis, o êxtase vai aplacando-se e, em um primeiro ato racional, mas ainda impuro, lembro-me daquela tal intuição que incitava algo sobre mar... Sobre céu... Entre o Mar e Céu Segundo o Dicionário de Nomes Próprios, a origem do nome Coutinho é portuguesa e significa “terra coutada, cercada, privilegiada para alguns” (2006). Marcelo vem do latim Marcellus, diminutivo de Martius que quer dizer guerreiro. O nome era “utilizado pelos guerreiros latinos para invocar o deus Jupiter no início de uma batalha" (Ibdem, 2006). Pela corruptela do nome, temos a junção do Mar e Céu. Tudo esclarecido, os vestígios estavam lá desde o princípio. Se eu fosse um pesquisador com mais de dês semanas de experiência, talvez o tivesse notado antes. Estávamos nesta terra que não consigo definir bem onde fica, mas é em algum lugar privilegiado entre o céu e o mar. E quem eu suponha ser Cristo, é na verdade um guerreiro a serviço de um deus, também de origem românica, como Júpiter, porém, esse chamase Deleuze

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Conceito Coutinho Marcelo Coutinho sempre nos instiga a escrita imbuída de nós mesmos, dita por ele “incorporada”. Algo que de fato, ele domina magistralmente. Mas, relato aqui outra habilidade, a fala incorporada. Não aquele discurso apenas por si, cheio de si e mais voltado para si do que aos outros. Não aquela fala entusiasmada de quem se lambuza suinamente com o som da própria voz. E, ainda, não ao fato de falar pelos outros. É diferente. Refiro-me ao fato de emprestar-se a outros que falem através de si. Ceder-se ao encontro com os grandes. E Marcelo carrega com ele uma geração de outros mestres tantos indizíveis. Onde quer que ele vá e em o que quer que ele diga, os céus se abrirão e a natureza calará por algo que precisa ser anunciado pelo redentor prometido da filosofia. Suas palavras o precederão, mas, muito além da carne, elas o sucederão. Como escrituras sagradas, suas preleções alimentarão novas gerações vindouras. Aos que têm a honra de estar com ele, resta o “refletir sobre” Marcelo Coutinho. Desejando um dia ser-com ele e ser como ele. Mais do que um ser reflexivo, mas ser em si em ato criativo. Marcelo Coutinho é assim, não só uma reflexão, senão, seu próprio ato de existir a criação mesma de um conceito. Sua voz ecoa em mim e mesmo que aquele espaço no tempo tenha se concluído, em vários momentos, eu volto lá. Agora mesmo, fecho os olhos e ainda estou lá. Neste entre espaço do Céu e do Mar.

Registro da aula de “rancho”. Da esquerda para direita: Xavana Calesnah, Alexandre Targino, Guilhermina Pereira, Ana Lira, Nathalia Queiroz, Karla Gonçalves, Clarissa Machado, Darlyson Albuquerque, João Pedro Tavares, Janilson Lopes, Carolina Cosentino, Olga Wanderley, Marcelo Coutinho, Maximiliano Roger e Bárbara Collier. Foto de Leandro Pereira da Costa.

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Prof. Dr. Marcelo Coutinho. Foto de Leandro Pereira da Costa.

Na impossibilidade de uma descrição mais objetiva da experiência, acrescento a meu relato essa imagem feita durante a aula de campo e que, acredito, em seu esplendor estético, pode dizer mais sobre aquele momento em que uma luz se fez em meio às sombras, mostrando o belo. Foto de Leandro Pereira da Costa.

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Referências PLATÃO. Republica. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de Enrico Corvisieri. AULETE, Caldas. AULETE DIGITAL – Dicionário Contemporâneo da língua Portuguesa: Dicionário Caldas Aulete, VS online. Disponível em: http://www.aulete.com.br. Acesso em 09 de jul. de 2016. BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Texto Integral; Tradução: José Antonio de Freitas. São Paulo: Martin Claret, 2010 – Coleção a obra-prima de cada autor; 39. PARRA, Violeta. Voler a los 17. Las últimas composiciones de Violeta Parra. Chile: RCA, 1966. Dicionário dos Nomes Próprios – significado dos nomes. 7 Graus Ltda, 2006. Disponível em: http://www.dicionariodosnomesproprios.com.br. Acesso em: 09 de jul. de 2016. Darlyson Albuquerque Graduou-se em Artes Cênicas com habilitação em Teatro pela UFPE (2011) e é mestrando em Artes Visuais no Programa Associado UFPB/UFPE, pesquisando o cinema de Almodóvar. Mistura as Artes porque nunca conseguiu dissociá-las e assim tem sido sua trajetória como Artista, Professor e Pesquisador, somando seus interesses por ver neles diferentes manifestações de uma única Alétheia.

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AURÉLIO DE FIGUEIREDO E O ADVENTO DA REPÚBLICA Dilhermando Alves de Assis/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Trata-se de um estudo a partir da obra do artista Aurélio de Figueiredo e a importância de seu trabalho e sua contribuição para a narrativa do período de mudanças de poderes da Monarquia para a República no Brasil. As relações do artista para com sua época e o fenômeno das obras históricas brasileiras no século XIX, sobretudo influenciada pelo irmão do artista, o notável artista Pedro Américo. O advento da República ou O Baile da ilha Fiscal é o objeto de estudo, destacando-se do todo na obra do artista, ao propor reflexões e expor vertentes imutáveis que perduram até os dias de hoje em nossa política. PALAVRAS-CHAVE Arte brasileira; História do Brasil; Política; século XIX ABSTRACT This is a study about the artwork of the artist Aurélio de Figueiredo and the importance of his relevant work and contribution to the historical changes from monarchy to Republic in brazil. The artist's relationships with his time and the phenomenon of Brazilian historic works in the nineteenth century particularly influenced by the artist's brother, the famous painter Pedro Américo. O Advento da República (The beginning of the Republic) or O baile da Ilha Fiscal ( the Ball of Fiscal Island) is the subject of this study, this painting stands out from the outhers of the artist's works by proposing reflections and expose immutable aspects that persist even nowadays in our policy. KEYWORDS Brazilian Art; Brazil History; Policy; XIX century

Em uma época em que prevalecia o academicismo em todos os aspectos estéticos assim como na preferência dos artistas brasileiros, surge nesse cenário Aurélio do Figueiredo, irmão mais novo do renomado artista Pedro Américo (1843-1905), símbolo da intensa influência ocidental na arte brasileira. Aurélio de Figueiredo apesar de um início medíocre em suas pinturas que exigiam constante comparação com as de seu irmão pela imprensa floresce sua arte no século XX como um divisor de águas entre monarquia e república. A pintura histórica brasileira no século XIX foi um dos segmentos mais lucrativos, pois reproduzir tais cenas icônicas em escalas colossais era garantia de aquisição pelo governo para os órgãos públicos, que as adquiriam para a decoração de salões nobres dos patrimônios e consequentemente enaltecendo e legitimando tais artistas que as produzissem, enquanto as pinturas por encomenda e desenvolvidas ao gosto estilístico da época adquiridas por colecionadores davam certo suporte financeiro,

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mas estavam confinadas à particularidade de coleções, sendo apenas visualizadas por um seleto grupo social. Nascido em Areia, na Paraíba, em 3 de agosto de 1854, Francisco de Aurélio de Figueiredo e Mello foi pintor, caricaturista, desenhista, ilustrador, escultor e escritor. Na adolescência, fascinado pelo universo da pintura de seu irmão Pedro Américo e de seus contemporâneos na efervescência da arte européia no Brasil, mais precisamente no período do romantismo, ingressa na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, com auxílio de Pedro Américo e do eventual substituto deste, Jules Le Chevrel (c.1810-1872), produzindo suas primeiras caricaturas veiculadas nos periódicos A Comédia Social e Semana Ilustrada. Em 1870, devidamente matriculado na Academia de Belas Artes, recebe a importante medalha de Ouro, entregue pelo Imperador D. Pedro II. Em 1873, vai para Florença, na Itália para o Atelier de seu irmão, e estuda com artistas como Antonio Ciseri (1821 - 1891), Nicolò Barabino (1832 - 1891) e Stefano Ussi (1822 - 1901), artistas de tema histórico, de gênero e retratistas. Após aprimorar as suas técnicas artísticas, em academias na França e na Espanha (onde obteve distinção honrosa entre os colegas¹) ao regressar ao Brasil, em 1878, trabalha para o jornal O Diabo a Quatro, em Recife, dirigido por Souza Pinto e Aníbal Falcão, produzindo caricaturas até 1879, com o encerramento da publicação. Depois de outras viagens para países europeus, e em 1883, ilustra o romance de 3 Aluizio Azevedo, "Casa de Pensão"² e estréia na Exposição Geral de Belas Artes com o quadro "Francesca da Rimini". Estabelecido, em definitivo, em 1884 no Rio de Janeiro, une laços matrimoniais com Paulina Capanema, filha de Guilherme Schuch de Capanema, ou o barão de Capanema, com quem teve quatro filhas, destacando-se duas distintas pianistas. Expõe 25 telas no Rio de Janeiro, as quais também exibiu em Buenos Aires e Montevidéu (onde também lecionou artes plásticas). Adoecido em Portugal, durante uma quarentena obrigatória, na Ilha da Madeira, escreveu seu romance "O missionário", o qual foi premiado por uma banca especializada, por escritores de renome com Machado de Assis. Silvio Romero e 4 Aluizio de Azevedo, pelo jornal Correio do Povo. Uma das primeiras telas que fez despontar o jovem Aurélio de Figueiredo foi “Francesca da Rimini” realizado em 1883, um amor trágico medieval vivenciado na obra de Dante Alighieri, na qual Francesca, filha de Guido da Polenta, enganada por seu irmão Ostacio, desposa o filho de Malatesta da Verucchio, Gianciotto, que por causa de sua aparência grotesca, lhe é apresentada o seu irmão Paolo “o belo”, como a quem a jovem iria se unir, no entanto Francesca, no dia seguinte em Rimini, descobre a fraude. Paolo arrepende-se do que fez e propõe Francesca decidir sua morte, porém a jovem apaixonada entrega-se novamente aos encantos do formoso rapaz. Certo dia, os dois a sós nos aposentos de Francesca, transbordando de poesia 5 são flagrados por Gianciotto, que põe fim ao romance assassinando-os. Produzido em seu modesto ateliê no parque da proclamação, com o auxílio do poeta 6 Silvio Pellico que o inspirou a realizar uma das cenas menos melancólica, diferente das obras de Ingres, Scheffer, Cabanel e Dyce, representando o primeiro encontro dos amantes com um Paolo que paira e contempla a beleza da jovem que ainda não tomara conhecimento de sua presença.

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Apesar da técnica empregada, a perspectiva e as proporções anatômicas foram criticadas, no entanto, a obra foi um sucesso, adquirida primeiramente pela academia 9 de Belas Artes e atualmente figurando na coleção do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Por um longo período Aurélio trabalhou em outras telas históricas esporadicamente, 10 dedicando-se a seus projetos pessoais e fazendo retratos, mas não obteve sucesso com os outros temas trabalhados, principalmente a técnica e o assunto que utilizou 11 em suas obras, sendo motivo de injustas comparações com os trabalhos desempenhados pelo o famoso irmão, Pedro Américo, resultando em obras adversas ao que os outros pintores brasileiros de maior destaque produziam na época, no entanto, mesmo para DUQUE (1995) (historiador fascinado pelo talento de Pedro 12 Américo) o trabalho independente de Aurélio se mostrava mais delicado e fluido: [...]Nos pequenos quadros de gênero, nas alegorias, nas fantasias a pincel, o talento de Aurélio tem uma feição característica. Vê-se que todo o trabalho é espontâneo e rápido. Nos traços, os mais simples, conhece-se a mão sempre ligeira e leve do artista; nos toques, os mais insignificantes, o pincel passa com a mesma facilidade[...](DUQUE, 1995,p. 190)

Aurélio expôs, em 1898, cerca de 70 quadros, em sua maioria paisagens, e retratos de relativo valor artístico, os quais poucos possuíam interessante e apreciadas formas e colorido, enquanto nas paisagens eram notadas uma gradual melhoria da concepção do artista, em uma transição notável do estilo italiano para o francês (o qual muitos 13 artistas italianos migraram) na época. 14

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O Baile da Ilha Fiscal ou O Advento da República (Como Aurélio nomeou a obra) é um marco para toda uma geração que transitou entre a soberania da monarquia e o novo sistema republicano que se instaurou no Brasil. O artista iniciou a obra em 1902 (concluindo-a em c. 1905-1906), poucos anos após a queda do império e o "advento" 109


da república, destacando em uma cena alegórica e fantástica do derradeira episódio da família real no Brasil. Essa transição com significados metafóricos desse momento essencial para a história brasileira. O quadro que superou a beleza e técnica de suas outras obras, como o premiado "Descobrimento do Brasil" ( Produzido em 1900 para a celebração do 4º centenário do Brasil), na época, "O Advento da República" foi considerado um trabalho de alto valor artístico e histórico desde a "Batalha do Avaí" 16 de seu irmão Pedro Américo , um quadro de grande formato (6X11m) e que foi o estopim da rivalidade entre Pedro e Victor Meirelles, ambos artistas consagrados e disputados. Pedro Américo por exercer influências entre os partidos políticos, desde a monarquia à república, é a figura que ampara e auxilia a continuidade do trabalho de 17 seu irmão, que aprofunda-se no tema mais oportuno do momento: a república.

Aurélio de Figueiredo, O Advento da República ou o Baile da Ilha Fiscal 1903. Óleo sobre tela. A arte brasileira floresceu com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, estrategicamente para fugir da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte em Portugal. Dom João VI, acostumado com a arte e arquitetura européia vigente, decidiu designar um grupo de acadêmicos, a missão Francesa, chefiada por Lebreton juntamente com Grandjean Montigny, Félix Émile Taunay e Nicolas Taunay que influenciados com o neoclassicismo, criaram a Real Academia de belas Artes, em 1816, transformando a capital do Império em um reduto das artes e do intelectualismo, dissipando-se do período colonial. No entanto, o regresso que se deu no neoclassicismo, impediu artistas brasileiros como Pedro Américo e Vitor Meirelles de descobrirem uma estética candidamente brasileira na pintura. A criação de portos às nações amistosas, foram essenciais para a recepção de artistas estrangeiros. Insatisfeitos com o negligência do soberano, os portugueses geraram a Revolta Liberal do Porto, em 1820, exigindo o seu regresso. D. Pedro I, filho do Imperador, assume a coroa, e declara a independência do Brasil em 1822., no entanto, já cogitava-se a República e os benefícios que surgiriam com seu advento. Em 1831, forçado a abdicar, D. Pedro passa o trono para D. Pedro II, que possuía uma forte predileção pelas artes em geral, patrocinando a cultura no país. Em 1879, na

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exposição Geral de Belas Artes, onde 292.286 pessoas ao longo de 62 dias visitar as obras expostas, reflete e firma o interesse da elite brasileira na arte.

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foram

O Positivismo dos militares, contrários ao misticismo do império, foi um ponto singular para que o povo (inclusive os mais distantes da capitania) propusessem a república como a solução para sanar problemas como a escravidão. Pressionada pelos 19 republicanos, a Princesa Isabel põe fim à escravatura, assinando a lei Áurea em 1888. (Desde os primeiros meses do ano, e mais precisamente a partir do final de outubro de 1889, o país se encontrava em uma conflituosa situação política. Nos idos de novembro de 1889, a monarquia estava em crise com o afastamento do imperador das decisões do governo por causa de sua debilitada saúde. A chegada do encouraçado chileno "Almirante Cockrane" no Rio de Janeiro, foi conduzido pelo almirante chileno D. Constantino Bannen que fora oficialmente apresentado ao Imperador pelo ministro do Chile, D. Manuel Villamil Blanco. O Imperador não só resolvera dar uma festa em honra dos ilustres visitantes, mas também para ressaltar a riqueza da monarquia. Os planos da festa causaram frenesi na imprensa, que ressaltavam a colossal festa que iria ocorrer em poucos dias. De fato, os boatos surgidos sobre assuntos militares, os problemas enfrentados pelos escravocratas, os esforços em prol da conversão da dívida externa e o movimento a favor da Federação, proposta por Joaquim Nabuco em 1885, e que se dava desenvolvimento com mais vitalidade naquele ano, foram essenciais para a mudança que iria suceder dias depois. A cobertura da imprensa era intensa, tal como os projetos suntuosos da decoração, iluminação elétrica, grupos musicais e tapeçarias para o imponente festejo. Em 9 de novembro de 1889, a emblemática festa na ilha fiscal, na baía de Guanabara, contou com milhares de convidados da elite política e econômica e um exacerbado 20 banquete sendo considerada a última e mais grandiosa celebração do império. No início da noite, os holofotes dos navios chilenos e brasileiros foram direcionados para o que foi colocado acima da torre do edifício, causando um efeito extravagante da difusão das luzes, que auxiliou o transporte dos convidados na barca de maior capacidade, que fez o percurso várias vezes durante 4 horas. Entre a aristocracia brasileira, conselheiros de Estado, ministros, senadores, deputados, e membros da finança, comércio e artes, os jornalistas de diversos jornais como, Jornal do Comércio e Gazeta da Tarde, e seus respectivos chefes, os oficiais fardados eram em sua maioria da marinha. Célebres convidados como Malvino Reis, Frontin, Raul Pompéia. Coelho Neto, Valentim Magalhães, Pardal Mallet, Luiz de andrade, entre outros figuraram no evento. Alguns convidados, conscientes, criticavam o requinte que a festa causaria aos cofres públicos. Ao barão de Sampaio Vianna, inspetor da alfândega, fora incumbido a direção do deslumbrante baile, o qual encarregou o comendador Hasselman, a execução da festa devido seu prestígio social. A Imperatriz D. Thereza Christina e a princesa Isabel, trajavam sob as requintadas vestes um manto em veludo verde que as distinguiam das demais convidadas, entre condessas e baronesas, que

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também donas de uma indumentária impecável destacavam-se adornadas de jóias 21 preciosas. Todo esse luxo era correspondente à revolução financeira, iniciado com a riqueza do ministério de então. Entrava muito ouro no Brasil, fazendo acreditar numa 22 prosperidade desenfreada, mesmo com as insatisfações dos militares. O Marechal Deodoro da Fonseca, que pretendia apoderar-se da ocasião do grande baile, para surpreender o Imperador e seus amigos, adiou os planos em respeito aos 23 chilenos. Deodoro mesmo amigo do imperador D. Pedro II, cedeu às pressões dos republicanos, que estavam à frente da causa, como Benjamin Constant e Quintino Bocaiúva, e no dia 15 do novembro, Encarregou-se do comando das tropas, e demitiu o conselho de ministros e seu presidente, o visconde de Ouro Preto (que ocupara o cargo com a revolta dos conservadores), no entanto, apesar da agitação Deodoro não proclamou a República. Porém, na mesma noite, Deodoro soube que o monarca pretendia unir-se a um inimigo da República, para juntos construírem um novo governo, então, o Marechal por fim, acabou assinando o manifesto que declarou a 24 proclamação da república, caracterizando o primeiro golpe militar. A monarquia, que se julgava fortalecida mesmo sob a repercussão da festa, foi derrubada, entre 16 e 18 de novembro, D. Pedro II exilado, deixa a Brasil com a família real obedecendo a intimação para deixar o país em 24 horas, a partir de então, dá-se início ao período 25 republicano. Os primeiros anos enfrentados pelos republicanos foram difíceis, gerando o descontentamento do povo, que alheio à decisão tomada pelos militares, consideravam o período da monarquia como pacífica, desprezando a instabilidade do novo regime. Com a renúncia de Deodoro à presidência, o povo, agitado, recorreu às 26 revoltas e conflitos por todo o país. Entretanto, no início do século XX, o Brasil pôde então pode desfrutar de uma série de mudanças que foram primordiais para o desenvolvimento do país, como o saneamento e o alargamento de ruas e avenidas, iniciando uma nova etapa que contemplou vários estados, reestruturando e 27 urbanizando as cidades. A obra monumental de Aurélio retrata uma cena muito peculiar, onde os convidados no cais, em uma sombria passagem para a aurora, no final do baile, são contrapostos por sinais que salientam que a festa que fora o reinado chegara ao seu desfecho, triunfando entre a luminosidade do céu ao alvorecer da República com seus comandantes Marechal Deodoro e Benjamin Constant, por entre as nuvens, que 28 naquele momento no clube militar, conspiravam para a queda do império. À frente dos chefes republicanos a República (típica representação européia), ergue a bandeira nacional, que surgiu por meio do decreto nº 4, de 19 de novembro de 1889, foi idealizada por Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, com desenho de Décio Vilares, foi inspirada na bandeira do império, onde foram mantidos as características primitivas, havendo apenas a alteração do brasão da monarquia pela a esfera azul com 29 as estrelas (representando os estados), e a faixa com o lema "Ordem e Progresso". A princesa Isabel, que contempla o céu sonhadora, entre a orquestra e os padres (talvez 30 evidenciando um reinado de fanatismo religioso ), juntamente com a corte, um fato contraditório, visto que a família imperial se retirou à uma hora da manhã, mesmo 31 antes de servido o banquete. Mesmo assim, a mensagem que impera na obra é uma metáfora em consonância com o tema, visto que, a República aflorou no país sem

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violência, mas de forma pacífica, com a família real retornando, banidos, para a Europa. A conotação que se dá nessa passagem da "noite para o dia" era necessário que a família real estivesse presente, em uma imagem que transmite a mensagem dessa transição entre os regimes divergentes, em um contexto reflexivo, que não se atém a dados históricos, configurando como uma obra romanceada sobre o acontecimento, Segundo AGUILLAR: [...] Em o Último Baile da Monarquia, a paisagem como natureza é substituída por uma paisagem urbana real e ao mesmo tempo sonhada, o castelo gótico de conto de fadas da ilha, ainda que existente, não é menos irreal do que a multidão de personificações evocadas pela filosofia visionária do artista [..] A relação entre história e natureza, uma das constantes da pintura brasileira do século, é substituída por uma relação puramente imaginária com a história sonhada. O projeto do país futuro torna-se sonho ou profecia. (AGUILLAR, 2000, p. 185). 32

Em outubro de 1903, o deputado Germano Haslocher, apresentou uma ementa autorizando o governo a fazer a aquisição do quadro, e em janeiro de 1905, um parecer emitido pelos professores Rodolpho Amoedo e Zeferino Costa destinado para o ministro da justiça e negócios interiores no governo Rodrigues Alves, foi favorável para a aquisição do quadro pelo governo, que na época pagou-lhe sessenta contos de réis, no entanto, o valor primitivo calculado e divulgado pela comissão do 33 ministro era cem contos de réis. O quadro foi exibido pela primeira vez ao público em 10 de janeiro de 1907, na presença de Affonso Penna, então presidente, na galeria 34 nº3 da Escola Naval de Belas Artes. Em setembro de 1910, o artista faz uma exposição no pavimento superior da Associação dos Empregados no Comércio, que contara com 74 trabalhos. Entre aquarelas, lápis de cor, crayon e na sua maioria à óleo, Aurélio expõe paisagens, 35 gêneros e retratos, dotados de primorosa técnica e românticos temas. No "Salon" de 1912, é atacado pela imprensa que critica ferozmente dois retratos expostos pelo 36 37 pintor, como "não merece destaque" , "sem cor, sem vida, sem modelado" , e por 38 fim "nem vislumbram as obras de Pedro Américo" , decerto, os ferrenhos comentários devem ter contrariado a liberdade que o artista queria exibir, revelando uma consonância com as tendências coevas em contraponto com a atraso ocorrido nos movimentos artísticos no Brasil. Atingido por uma crise econômica nos primeiros meses de 1916, Aurélio leiloa algumas de suas obras (60 ao todo) entre elas peças de seu próprio acervo como as obras de seus convivas de outrora Jules Le Chevrel, A. Muller e Agostino da Motta 39 desfazendo-se, assim, de seu atelier e coleção. 40

Aurélio de Figueiredo que sofria de arteriosclerose, fora vitimado pela febre tifóide, incapaz de resistir à infecção, sucumbiu a enfermidade em 9 de abril de 1916, sua esposa, Paulina de Capanema, que também contraiu a doença, faleceu poucos dias depois. Seu funeral contou com grande acompanhamento de amigos e admiradores. 41 A Escola Nacional de Belas Artes suspendeu suas atividades em sinal de pesar.

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Apesar de não ter o reconhecimento merecido, Aurélio de Figueiredo foi um importante artista, de talento que não pode ser medido, tampouco equiparado aos demais artistas de sua geração. O posto ocupado por aqueles que exercem o ofício da arte, possuem sutilezas, belezas e peculiaridades únicas reservadas ao seu âmago. Um país como o nosso que desconhece a sua cultura, reflete os conflituosos embates que ocorrem recorrentemente através dos anos em nossa política, transpondo o evento do baile fiscal até hoje, onde nos deparamos com a fabulosa ascensão dos governantes e as quedas e danos dos mesmos causados pelos jogos do poder, em uma sólida comparação entre monarquia e república, quando nos deparamos que o afastamento de nossa presidenta Dilma Rousseff, não foi exatamente uma solução, mas o início de um "novo" comando mais instável e irregular. Nessa fragilizada situação, necessitamos urgentemente de mudanças para que possamos assim como Aurélio, sonhar novamente com a glória do nosso auriverde país. Notas 1 O Cruzeiro, nº 290, 18 out.1878, Ano I. p.1 2 Gazeta da Tarde, 23 maio1883, p.. 2. 3O mequetrefe, 10 set.1883, p. 8. 4 Braga, Robério, Aurélio de Figueiredo em Manaus disponível em: bv.cultura.am.gov.br) 5Revista da Semana, nº 141, 25 jan.1903 p. 458-459. 6 e 8 Junior, Dantas. A cidade e os theatros. A Estação, nº 7, Ano XIII, 15 abr. 1884. p.. 82 7 Ferreira, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ 9 Rounde, Emilio. Bellas Artes. Cidade do Rio, 14 jun.1889, p.2 10 Nazareth, Agripino. Um golpe de vista sobre o salon de 1912 inaugurado ha dias. A secção de pintura. A Epoca, 22/09/1912 p. 3. 11 A Illustração Brazileira, Nº80, 16 set.1912, p. 94. 12 A illlustração Brazileira, set. 1924, 13 J. R. A revista Brasileira, Abr-Jun /1898 p. 370-371. 14 A República, Curitiba -PR: nº 236, Ano XVII, 18 out. 1902, p. 2. 15 A República, Curitiba -PR: nº 232, Ano XVIII, 15 out. 1903, P. 2. 16 Dr. E. de A, O Pharol, Juiz de Fora -MG: nº 21, 25 jan.1907, Ano XLI,. Pag. 1. 17 Cardoso, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008. pags. 70- 74. 18 Cardoso, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro-RJ. Record, 2008. pag. 75) 19 Arte Brasileira, 3ªed. São Paulo -SP Abril Cultural, 1976 p. 8-11, 47 e 49) 20 Silva, Hélio. Nasce a República: 1888-1894. São Paulo, Editora Três, 1975. p. 71. 21 Revista da Semana, Rio de Janeiro: Ano XXII, nº I, 01 jan.1921. 22 Revista da Semana, Rio de Janeiro: Ano XXII, nº I, 01 jan.1921. 23 Revista da Semana, 04 jul. 1925. p.27. 24 Piletti, Nelson. História e Vida Integrada. 7ª série.Nova ed. reform. e atual. São Paulo: Á tica, 2005. p. 239. 25 Dr. E. de A, O Pharol, nº 21, 25/01/1907, Ano XLI, Juiz de Fora -MG. Pag. 1. 26 Costa, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. 3ª ed. Ed. Brasiliense s.a, 1985. São Paulo-SP p. 276-281) 27 Tirapeli, Percival. Arte moderna e contemporânea: figuração abstração e novos meios séculos 20 e 21. São Paulo: Editora Companhia Nacional, 2006. p. 10-11.

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28 e 30 Dr. E. de A, O Pharol, Juiz de Fora -MG: nº 21, 25 jan.1907, Ano XLI,. p. 1. 29 e 31 Piletti, Nelson. História e Vida Integrada. 7ª série.Nova ed. reform. e atual. São Paulo: Á tica, 2005. p. 240. 32 A República, nº 232, Ano XVIII, Curitiba -PR. 15 out. 1903 p. 2. 33 A República, nº 12, Ano XX, Curitiba-PR. 14 jan. 1905 p. 1. 34 O Pharol, Juiz de Fora-MG : Ano XLI, nº319, 10 jan. 1907 p.1 35 O paiz, 10/09/1910 pag. 5 36 Alves, Gonçalo. Notas do Salon. Modesto Brocos e Aurélio de Figueiredo. A noite, Rio de Janeiro: Ano II, nº 368, 18 set.1912 37 Nazareth, Agripino. Um golpe de vista sobre o salon de 1912 inaugurado ha dias. A secção de pintura. A Epoca, 22 set. 1912 38 A Illustração Brasileira, Nº80. 16 set. 1912. 39 A Noite, 05 fev. 1916. pag. 2) 40 A república . Curitiba-PR : Ano XXXI, nº 83, 10 abr.1916 41 A república, Curitiba-PR, Ano XXXI nº84, 11 abr. 1916 p. 2

Referências _______A Illustração Brazileira, Nº80, 16/09/1912, Pag. 94. _______A illustração Brazileira, set. 1924. AGUILLAR, Nelson (org.) Mostra do redescobrimento: A arte do século XIX. São Paulo-SP: Fundação Bienal de São Paulo- Associação Brasil 500 anos:, 2000. p.185. ALVES, Gonçalo. Notas do Salon. Modesto Brocos e Aurélio de Figueiredo. A noite, Rio de Janeiro: Ano II, nº 368, 18 set.1912 _______A República, Curitiba -PR: Ano XVIII, nº 232, 15 set. 1903, P. 2. _______A República, Curitiba -PR: Ano XVII, nº 236, 18 set. 1902, p. 2. _______A república . Curitiba-PR : Ano XXXI, nº 83, 10/04/1916 p.2. _______ A república, Curitiba-PR, Ano XXXI nº84, 11/04/1916 p. 2 _______Arte Brasileira, 3ªed. São Paulo -SP Abril Cultural, 1976 pags: 8- 11, 47 e 49) BRAGA, Robério. Aurélio bv.cultura.am.gov.br)

de

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em

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Costa, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. 3ª ed. Ed. Brasiliense s.a, 1985. São Paulo-SP pags. 276-281) CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008. pags. 70- 74. D'AQUINO, flávio. Biblioteca Educação é cultura. Artes Plásticas I. Rio de janeiro: Bloch: FENAME, 1980.p.44-45. DR. E. DE A, O Pharol, Juiz de Fora -MG: nº 21, 25 jan. 1907, Ano XLI,. Pag. 1.

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DUQUE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 190 FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/ ________Gazeta da Tarde, 23/05/1883, pag. 2. JUNIOR, Dantas. A cidade e os theatros. A Estação, nº 7, Ano XIII, 15 abr. 1884. pag. 82 J. R. A revista Brasileira, Abril-Junho /1898 pags: 370-371. NAZARETH, Agripino. Um golpe de vista sobre o salon de 1912 inaugurado ha dias. A secção de pintura. A Epoca, 22 set.1912 p. 3. ________O Cruzeiro, nº 290, 18 out. 1878, Ano I. Pag.1 OLIVEIRA, Esequiel Rodrigues et al. Telecurso: Artes Plásticas. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2008. p. 93. _______. O mequetrefe. 10 set. 1883, pag 8. _______. O paiz. 10 set. 1910 pag. 5 _______. Revista da Semana. nº 141, 25 jan.1903 pags: 458-459. _______. Revista da Semana. Rio de Janeiro: Ano XXII, nº I, 01 jan.1921. _______. Revista da Semana. 04/07/1925 pag.27 Piletti, Nelson. História e Vida Integrada. 7ª série.Nova ed. reform. e atual. São Paulo: Á tica, 2005. pag 239. ROUNDE, Emilio. Bellas Artes. Cidade do Rio, 14 jun. 1889, pag.2 SILVA, Hélio. Nasce a República: 1888-1894. São Paulo, Editora Três, 1975. p. 71. TIRAPELI, Percival. Arte moderna e contemporânea: figuração abstração e novos meios -séculos 20 e 21. São Paulo: Editora Companhia Nacional, 2006. p. 10-11.

Dilhermando Alves de Assis Arte-educador e artista plástico. Educando do curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco- UFPE. Em suas pesquisas, dedica-se às relações sistêmicas no campo das artes visuais.

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O NEOCONCRETISMO E LADJANE BANDEIRA Ediel Barbalho de Andrade Moura/Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Os movimentos de vanguarda, em meio ao século XX, passam por transformações estéticas e até conceituais, decorrentes de uma nova maneira de se pensar e produzir arte. Essa nova produção, que emerge em meio a pensamentos pós-modernos, passa a ser desenvolvida na América Latina, em específico no Brasil, por artistas como Lygia Clark, e no Recife, com Ladjane Bandeira, contrapondo-se ao Concretismo europeu. A Arte neoconcreta, é um exemplo de como essa renovação aconteceu, renovação esta resultado de uma proposta de emancipação cultural européia, que nacionalmente é registrada em trabalhos dotados de uma estética particular, como observado nos trabalhos de Ladjane Bandeira, importante figura do neoconcretismo pernambucano. PALAVRAS-CHAVE Ladjane Bandeira; Neoconcretismo; Artista, Pernambuco ABSTRACT The avant-garde movements as Concretism amid the twentieth century, goes through aesthetic changes and even conceptual, resulting in a new way of thinking and making art. This new production comes amid postmodern thought, developed in Latin America, specifically in Brazil by artists like Lygia Clark, and Recife, with Ladjane Bandeira. Neo-concrete art, is an example of how this happened renovation, renewal result of a proposal for a European cultural emancipation, which is nationally registered in works endowed with a particular aesthetic, like Ladjane Bandeira, important figure of Pernambuco Neoconcretism. KEYWORDS Ladjane Bandeira; Neoconcretism; Artist, Pernambucano

A Arte Construtiva surge na Europa, no início do século XX, com a proposta de romper com o espaço visual renascentista, centrado na perspectiva, e, partir de uma expressão racional, sobretudo inspirada nos trabalhos de Cézanne e de outros cubistas, pretendia tornar a arte consciente de sua especificidade, passando ela a ser tomada como um modo de conhecimento com uma organização formal rigorosa, irredutível ao senso comum, mergulhada nas redes das ideologias do desenvolvimento tecnológico da época, da crença de progressiva racionalização das relações sociais, nos conceitos da De Stijl, do suprematismo, da Bauhaus, e mais tarde da arte concreta¹. Segundo observa Ronaldo Brito em seu livro: “Neoconcretismo: Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro”, a arte construtiva procurou formalizar com rigor uma visão progressiva de uma prática artística tradicionalmente ligada ao pensamento irracional.

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A tendência construtiva com o abstracionismo geométrico, que na época surgia como uma maneira de emancipação do trabalho artístico, ou, como comenta o autor, como afirmação de sua autonomia diante da realidade empírica, foi uma tendência que inicialmente aparece como resposta ao corte ocorrido na história da produção de arte em seu estatuto social a partir do cubismo². Ao contrário dos outros movimentos da época, como o Dadaísmo e Surrealismo, os movimentos de extração construtiva operaram, ainda segundo Brito, sempre e necessariamente no sentido de uma integração funcional da produção artística e sociedade, no sentido de estetizar o ambiente social e educar esteticamente as massas³. Na América Latina, a arte concreta não-figurativa começou a ganhar notoriedade, segundo registra Dawn Ades em seu livro “A Arte na America Latina”, em 1944, com a 4 publicação da Revista Arturo, em Buenos Aires , a revista declarava que seu enfoque era arte abstrata não representativa, livre de qualquer determinismo ou justificação. Para Luciene Viana Barros Páscoa, Mestre em História da Arte pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), as ideologias construtivas na América Latina, no período de 1940 a 1960, estavam ligadas ao desenvolvimento cultural do continente, por contribuírem com projetos reformistas e aceleradores dos países latinos, servindo como agentes de emancipação cultural nacional frente a influência 5. europeia A primeira edição da Revista Arturo publicou trabalhos de dois grupos de artistas, o do Arte Concreto-Invencón, e de artistas do movimento “MADI”, 6 movimento que tinha a intenção de criar uma arte plástica plural e lúdica . Os artistas da Arte Concreto-Invencón seguiam uma direção mais rigorosamente formal, algo próximo do que produzia Mondrian, e posteriormente se aproximam da estética de Max Bill e Vantongerloo, estética que segundo Ades valorizava a materialização de figuras, a transformação delas em formas dentro de um espaço 7 independente, que também compõe a obra . Optar pela arte concreta no início dos anos 1950, para Brito, significou “optar por uma estratégia cultural universalista e evolucionista” (BRITO, 1999. p. 39), igualmente pensa Páscoa (inserir fonte), ao dizer que os artistas que aderiram à tendência de adotar formas e símbolos geométricos, nesse período, assim fizeram por essa linguagem possuir caráter universalista, característica especifica da arte após a Segunda Guerra, ou seja, por esses elementos geométricos significarem um alinhamento à estratégia cultural universalista e 8 evolucionista difundida na época . No Brasil, conforme afirma Brito, a arte moderna só veio a ser compreendida e praticada a partir de trabalhos de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcante, Guignard, Portinari e que “foi na década de 50 que o meio de arte brasileira começou a lidar com os conceitos da arte moderna” (BRITO, 1999. p. 36), enquanto a Europa, e os Estados Unidos, no mesmo período, começavam trabalhando com a trabalhar uma arte mais informal, o Brasil, assim como a Argentina, retornavam a tradição construtiva, tradição que tinha como representante internacional máximo a arte de 9 Max Bill . Esta tradição foi impulsionada, conforme registra Páscoa, “pela I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, que proporcionou maior contato com obras de concretistas internacionais como Max Bill, Sofie Tauber-Arp, Richard Lhose, Calder, entre outros” (PÁSCOA, 2005, p. 2).

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Este evento influenciou a criação do Grupo Frente, criado por Ivan Serpa, em 1954. Este grupo era composto por ex-alunos da Escola de Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a saber: Aloísio Carvão, Lygia Clark, João José da Silva Costa, 10 Vincent Ibberson, Lygia Pape, Carlos Val, Décio Vieira e Abraham Palatnik , e ficou caracterizado posteriormente por não obedecer ao código estético rígido do concretismo. Os artistas “contavam com o apoio do poeta Ferreira Gullar e recebiam a orientação filosófica de Mário Pedrosa, crítico de arte de renome internacional que apoiava as inovações em arte e que era um dos grandes defensores da vanguarda contra o academicismo” (PÁSCOA, 2005, p. 2), e visavam produzir uma arte objetivando a sua completa integração na vida e na sociedade contemporânea, não admitindo que a arte continue a ser uma ocupação feminina, um luxo para ociosos, mas como uma aliada à produção industrial moderna. O neoconcretismo brasileiro O movimento concreto brasileiro deve ser analisado dentro do contexto históricosocial da época, como foi visto, as ideologias construtivas estavam, na década de 1950, integralmente relacionadas ao desenvolvimento cultural da America Latina, aos projetos reformistas, com propósito de emancipação cultural, e tinham caráter político, pois como observa Brito, no Brasil, a vanguarda construtiva abrigou dissidentes de um projeto cultural político de esquerda, que aspirava construir o 11 ambiente social segundo os moldes de uma racionalidade modernizadora , e por vezes guiada por um didatismo preocupado em seguir um plano de organização social. Como sequência do movimento concreto, da estética construtiva, surge idealizado por Ferreira Gullar (citar fonte), um grupo de artistas de classe média alta, que a partir de seus trabalhos experimentais, questionou os dogmas do concretismo, e realizou adaptações da linguagem concreta, fazendo um retorno ao humanismo ante ao 12 cientificismo concreto . O grupo de Gullar se posiciona em face da arte nãofigurativa, e especificamente em face da arte concreta dotada de uma exacerbação racionalista, e como atitude de protesto, lança em 1959, o Manifesto neoconcreto, no 13 Suplemento Dominical do Jornal do Brasil , tal atitude, conforme Brito, “é resultado de uma crise local: a impossibilidade de os agentes culturais brasileiros continuarem pensando no interior do quadro de referencia construtivo exclusivamente. Com o final dos anos 50 e inicio dos 60, o neoconcretismo está no centro dessa crise e representa um conjunto de operações que tentam ora renovar, ora ultrapassar esse quadro de referencia.” (BRITO, 1999, p. 64).

No manifesto os artistas do então movimento neoconcreto deixam claro que se trata de um movimento nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, negando a validez das atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressão, incorporando as novas dimensões “verbais” criadas pela arte não-figurativa 14 construtiva . Diferentemente dos concretistas, que tendiam à politização da arte, sobretudo no plano das informações de massa, os neoconcretos seguiam as prescrições do sistema a cerca da atividade cultural: eram apolíticos, e se mantinham

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no terreno reservado, e tímido com relação à participação da arte da produção industrial. Dentre os artistas neoconcretos da época, uma artista que ganhou notoriedade pelo seu trabalho foi a Lygia Clark. Clark nasceu em Belo horizonte, no ano de 1920, e segundo Ricardo de Freitas, em seu trabalho biográfico de Lygia Clark, nasce como artista em 1947, ao se mudar, sozinha, para o Rio de Janeiro, quebrando os padrões normalistas para uma mulher da época. No Rio, Clark estudou na Escola de Belas Artes, e foi a partir do contato com o renomado paisagista Roberto Burle Marx que 15 passou a repensar seu trabalho artístico . Em 1950, Lygia viaja para Paris, onde conhece e trabalha com Fernand Léger, artista ligado aos movimentos de vanguarda, e inicia sua trajetória como pintora. Volta para o Brasil em 1952, para sua primeira exposição individual, com obras que interrogam o papel da linha e do plano como recursos plásticos. No início a artista desenvolveu uma estética intensamente marcada por com contornos abstratos e geométricos, muito orientada pela arte construtiva européia, mas posteriormente, repensa sua expressão, após entrar em contato com os conceitos do Grupo Frente. Envolvida pelas discussões artísticas neoconcretas, Lygia adere ao desregramento da arte concreta, eliminando a moldura de suas obras, passando a integrá-las com o ambiente. Podemos perceber essa transformação em dois trabalhos, o primeiro: Superfície modulada número 6, produzido para sua primeira série artística chamada “Unidades”, onde a artista manteve-se fiel ao construtivismo; e o segundo: Casulo número 2, que sugere, segundo Ades,“explicitamente por meio de seu espaço interior (como também através do titulo), certa organicidade, uma vida adormecida, possível de ser descoberta dentro da geometria racional” (ADES, 1997, p.264).

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Clark, Lygia. Superfície Modulada número. 6, da série Unidades, 1958. Tinta industrial sobre madeira. Fonte: http://macariocampos.blogspot.com.br/2014_03_01_archive.html

Clark, Lygia. Casulo número 2, da série Casulos, 1959. Metal galvanizado pintado. Fonte: http://www.gg-art.com/news/photoshow/139287l1.html

Ladjane Bandeira e o Neoconcretismo Maria Ladjane Bandeira de Lira nasceu em 1927, na cidade de Nazaré da Mata, em Pernambuco, foi professora, artista, poetisa, critica de arte, e uma das primeiras mulheres a atuar no jornalismo Pernambucano. Artista autodidata que começou a carreira como poetisa, em 1947, publicando nos jornais locais de Recife seus poemas, e no ano seguinte, torna-se ilustradora, não só de suplementos literários dos jornais locais, como também de livros de poesias de vários autores, e também do primeiro 16 Salão de Poesia, realizado no Recife, em 22 de setembro de 1948 . Nos anos subsequentes, 1949 e 1950, segundo Márcia Cristina de Miranda Lyra, autora da pesquisa biográfica da artista, foram anos importantes para a artista, pois nesse período ela tornou-se conhecida nas rodas artísticas da capital, chegando a ser conhecida como “a promessa cumprida de um novo tempo histórico para a arte em Pernambuco” (LYRA, 2016, p.16). Nesse período, a autora comenta ainda que Ladjane assume uma postura ativista em prol da produção cultural e artística local contribuindo para materializar o pensamento cultural e social das artes, à época, legitimando “movimentos e produções de artistas plásticos locais orientando os rumos que a arte moderna pernambucana deveria seguir” (LYRA, 2016, p. 20), promovendo-a, portanto, no meio artístico da cidade. À semelhança de Lygia Clark, Bandeira, ainda segundo a autora, no decorrer da sua vida, e, ao julgar sua trajetória profissional, também “quebrou paradigmas, transgrediu normas vigentes, seguiu idéias vanguardistas, realizou [especialmente em Pernambuco] pioneirismos à época” (LYRA, 2016, p. 31). O movimento cultural do modernismo, como já comentado, surgiu para contrapor-se ao regionalismo naturalista da década de 1920, com a proposta de defender a estética nacional, como acontecia em toda a América Latina. No Recife, segundo Lyra, 121


“essa dinâmica movimentou os intelectuais e especialmente os artistas da época, que, após a Segunda Guerra Mundial e a Ditadura de Getúlio Vargas, abandonaram a arte abstrata tida como alienada e voltaram-se para uma Arte engajada” (LYRA, 2016, p.156).

Diante das conjunturas do período, Bandeira, no inicio da sua carreira, transitou por algumas vanguardas européias, disseminadas, no estado, pelo Movimento dos Independentes, movimento artístico de 1933, que trouxe inovações para a sociedade e para a produção artística local, deixando, portanto, “importante legado no pensamento de vanguarda [...] indiretamente influenciada pela evolução artística européia, já peneirada e adaptada em São Paulo” (LYRA, 2016, p. 50). Possuidora de um trabalho plural, que reúne vários materiais e linguagens, podemos observar em seus desenhos com bico de pena, pinturas, gravuras, e esculturas influências do surrealismo, cubismo, expressionismo, abstracionismo e de conceitos da arte construtiva. Em setembro de 1948 Ladjane realizou sua primeira mostra de Arte no Recife, onde na ocasião expôs seus desenhos feitos com batom e no uso de croquis, pinturas de figuras humanas e paisagens. No ano seguinte expôs suas telas de pintura a óleo no IV Salão de Arte Moderna, e dois anos depois ganhou o primeiro prêmio de pintura do Estado, com o quadro “Guerra”. A Artista, ainda segundo Lyra: “passou pelo figurativismo e abstracionismo, para qual esse ultimo considerou uma arte válida deixando nada a desejar. Na fase figurativista inicial trouxe seu mundo sentimental, de formas e cores sentimentais, na lembrança do chão do maturo. [...] uso do verde, amarelo, roxo, reinos encantados, cenas e cores telúricas em imagens rurais [..] Ladjane fez incursões neoconcretas e concretistas e destacou-se no figurativo mágico” (LYRA, 2016, p. 239).

Em 1951 envolvida pela tendência expressiva artística e cultural voltada para a temática do povo, a artista começa a desenvolver a série “Passista”, que tem por temática central o frevo, dança popular de Pernambuco. A série é composta por desenhos que enfatizam a os movimentos individuais dos passistas numa coreografia de gestos típicos do frevo, com formas geométricas, umas mais próximas do concretismo e outras mais próximas do abstracionismo figurativo como podemos constatar nas imagens abaixo.

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Bandeira, Ladjane. Passista 11, da sĂŠrie Passistas, 1951. Fonte: http://www.ladjanebandeira.org/v8/Passista-iconografia.html

Bandeira, Ladjane. Passista 12, da sĂŠrie Passistas, 1951. Fonte: http://www.ladjanebandeira.org/v8/Passista-iconografia.html

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No mesmo ano, amadurecida artisticamente, muda-se para o Rio de Janeiro, no mesmo ano, disposta, segundo Lyra, a ampliar os horizontes artísticos e a rede de contatos, e retorna ao Recife em 1954, trazendo consigo impressões da XIII Bienal de São Paulo e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro que influenciaram 17 esteticamente seus trabalhos . A partir das experiências artísticas apreendidas no período fora do Estado, a artista marcou sua produção muralista abstrato geométrico, com a produção do um mural para a Faculdade Politécnica do Recife, em 1958.

Bandeira, Ladjane. Painel em vidrotil na Faculdade Politécnica do Recife, 1958. Fonte: http://www.ladjanebandeira.org/v8/producaoartistica.html

Nesse trabalho, observamos figuras geométricas não rígidas, dotadas de leves curvaturas, que integram-se umas as outras, dando a sensação de organicidade e continuidade, fugindo da rigidez construtiva, assim como os trabalhos de artistas 18 neoconcretos do sudeste brasileiro, cujo teve contato . Diferentemente de Lygia Clark que trabalhou mais o neoconcretismo em esculturas, Bandeira optou por trabalhar figuras geométricas em seus desenhos e pinturas, que dispostas abstratamente, revelavam figuras orgânicas como passistas, animais, e objetos. No painel em vidrotil e especialmente na série “Passistas”, a artista expressa claramente sua inclinação à estética neoconcreta, pois nela observamos a busca por representação figurativas, a produção de uma arte não engajada politicamente, mas sim a dispor da representação de manifestações culturais. A percepção estética da artista é claramente figurativa, e mostrava-se em fortes traços guiados pela autenticidade racional de um conjunto de estilos, que podem ser observados em artistas como Portinari, Guignard, Tarsila do Amaral, Cícero Dias, entre outros. Nesse período Ladjane trabalhava no estilo neoconcreto, mas Lyra registra que ela não ficava presa à estética neoconcreta, desenvolvia trabalhos em outras 124


estéticas e linguagens por ela ser uma artista diversificada, pois “a estética de Ladjane se orientou na presença da Arte, sob um sistema simbólico de percepção que a permitiu comunicar seus valores culturais e memórias” (LYRA, 2016, p. 179). Considerações finais A produção artística de diversos lugares do mundo, em especial na América Latina, na década de 1950, foi marcada por um desejo de emancipação cultural europeia, e por um desejo de construção de identidade poética individual, mas ao mesmo tempo acessível ao coletivo, quando se buscou adotar elementos culturais próprios. No Brasil, nesse período, podemos verifica-se a adaptação de um modelo estético vanguardista rígido, alinhado a uma estética industrial, que busca comunicação em massa, para uma um novo conceito artístico que valorizar a individualidade poética, e particularidades estéticas e presença de elementos culturais. Essa perspectiva de renovação estética proposta pelos artistas neoconcretos, em contraposição à estética construtiva, pode ser perceber ao analisarmos produções artísticas concretas e neoconcretas, a partir de registros históricos e comparações de obras como a da artista Lygia Clark e Ladjane Bandeira, ambas consideradas neoconcretas. A presença cultural na produção artística de Ladjane é perceptível, assim como nos trabalhos de Lygia; ambas incorporam elementos de sua cultura em seus trabalhos. Na produção de Clark percebemos o uso de materiais próprios da região de Minas gerais, como ferro, madeira, e em sua poética temas relacionados à natureza. Ladjane Bandeira apresenta, em sua fase neoconcreta, fez uso dos costumes, das danças, das tradições culturais para se inspirar artisticamente. Os trabalhos desenvolvidos pela artista, nesse período, são, para o neoconcretismo de Recife, de grande importante, pois, segundo Lyra, “Ladjane foi uma figura singular no cenário cultural pernambucano da segunda metade do século XX, [...] por representar um de nossos maiores expoentes artísticos”. Ladjane Bandeira, como com o seu pioneirismo na década de 1960, revela-se não só como uma artista, mas uma ativista a frente de seu tempo, envolvida com uma renovação não só estética, mas política e social, neoconcreta. Portanto, a representatividade de uma cultura, numa poética singular construtiva de Bandeira, configura não só uma produção artística neoconcreta legitimamente pernambucana, mas pode ser vista também com a intenção de reconhecer o papel da mulher na história da arte pernambucana. Notas 1 PÁSCOA, 2005, p.1 2 BRITO, 1999, p.14 3 BRITO, 1999, p.15 4 ADES, 1997, p.241 5 ADES, 1997, p.245 6 ADES, 1997, p.242 7 ADES, 1997, p.250 8 PÁSCOA, 2005, p.2 9 BRITO, 1999, p.37

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PÁSCOA, 2005, p.3 BRITO, 1999, p.53 12 BRITO, 1999, p.55 13 PÁSCOA, 2005, p.8 14 Manifesto neoconcreto, 1959, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. p. 2 15 Artigo biográfico do Projeto Memorial Minas Gerais, do Centro cultural da Vale, escrito por Ricardo Feitas Lima. 16 LYRA, 2016, p.14 17 LYRA, 2016, p.161 18 LYRA, 2016, p.165 11

Referencias BRITO,Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo. Cosac & Naify Edições, 1999. ADES, Dawn. Arte na América Latina: A Era Moderna, 1820-1980. São Paulo. Cosac & Naify edições, 1997. LYRA, Márcia Cristina de Miranda. Tempo em formas: Biografia de Ladjane Bandeira. Recife. FUNDARPE, 2016. LIMA, Ricardo de Freitas. Lygia Clark: Memorial Minas Gerais. Projeto República UFMG. Fundação Vale, 2014 PÁSCOA, Luciane Viana Barros. Concretismo e Utopia: a vanguarda artística nos anos 50. Revista Eletrônica Aboré. Manaus, AM, v. 1, n. 1, p. 4, 2005. Disponível em: http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/artigos/artigos_1/artigo_LucianePascoa.pd f . Acesso em: 09 maio. 2016. CAMPOS, Haroldo. Arte construtiva no Brasil. Revista Eletrônica USP. São Paulo. Edição Junho/Agosto, 1996. Disponível em: file:///C:/Users/Coputador%20casa/Downloads/25920-30001-1-SM.pdf. Acesso em: 10 maio. 2016. Ediel Barbalho de Andrade Moura Discente do curso de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco.

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DO SAGRADO AO PROFANO: UMA VISÃO SOBRE AS MULHERES E DIVINDADES FEMININAS NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS Giselle Natália Izidoro Silva/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O presente artigo pretende abordar a presença da mulher e a imagem da mesma no candomblé, religião afro-brasileira e busca uma reflexão sobre a temática visual das divindades femininas no candomblé a partir das obras de Marisa Varella, artista Pernambucana através de sua série “Pedra+água = material/criação/axé”, além de sua grande produção na Oficina de Gravuras Guaianases. PALAVRAS-CHAVE Candomblé; Afro-brasileiras; Pernambucana; Guaianases ABSTRACT This article aims to address the presence of women and the image of it in the Candomblé religion with African roots and seeks a reflection on the visual theme of female deities in the african -Brazilian religions from the works of Marisa Varella, an artist from Pernambuco . With her series of works "Stone + water = Material/creation/ axé", as well as its large production in the prints Guaianases Workshop. KEYWORDS Candomblé; Afro-brasileiras; Pernambucana; Guaianases

A presença do feminino nas religiões afro-brasileiras O candomblé é uma religião puramente brasileira, dado ao fato de ser originária do processo de escravidãopraticado no país. Com a chegada dos negros ao Brasil processava-se uma mistura das etnias dos grupos que vinhamda África e que aqui se misturaram. Dessa forma, o culto também se processava conjuntamente. Não havia uma distinção, como é feita na África. Isso, além da mistura sofrida com o sincretismo que foi a ocultação dos seus deuses a partir dos santos católicos. A participação da mulher nas religiões é algo que muitas vezes está ligada à submissão e à invisibilidade de um papel de poder destinado a ela. Nos templos pentecostais e cristãos podemos constatar que a grande maioria dos bispos é do sexo masculino. Apenas há pouco tempo é que surgiram, timidamente, algumas mulheres nesta posição. Outra religião que podemos tomar como exemplo desse fato é o islamismo. Existem várias linhas no islamismo e algumas delas são mais restritivas no que diz respeito ao direito das mulheres. No culto das religiões afro-brasileiras particularmente, o sexo feminino parece ocupar uma posição de maior destaque em comparação às outras religiões supracitadas.

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Historicamente, os homens dominam a produção do que é ‘sagrado’ nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso (BASTOS, ROSADO-NUNES, 2005, p. 363).

Percebe-se uma forte presença feminina nos terreiros de candomblé no Brasil. Para compreender essa afirmação precisaremos mergulhar um pouco no passado e verificar investigações que justifiquem o motivo de tal fenômeno. Em uma entrevista 1 feita com uma mãe de santo do candomblé , ela diz que: A nossa religião, na África é comandada por homens, no Brasil se deu o inverso, porque aqui as mulheres foram as primeiras a conseguir as alforrias. Quando elas conseguiam as alforrias, elas já se tornavam comerciantes, elas vendiam joias, vendiam mugunzá, elas vendiam acarajé, as chamadas negras vendeiras, que na Bahia, botaram o nome de mulheres do partido alto (...) então, com essas vendas, elas começaram a comprar os seus pares e também a comprar seus companheiros tanto maritalmente como companheiros da escravidão (...). A partir daí elas conseguiam a alforria e a independência econômica primeiro do que os homens (...) talvez tenha sido Iemanjá que deu essa força pra elas e Oxum, as Iabás certo, porque eu acredito que, como vieram pelo oceano, Iemanjá que deixou elas chegarem aqui, então eu acho que Iemanjá olhou assim e disse “Na África quem comanda são os homens, mas quem vai comandar no Brasil somos nós as mães, as mulheres”.

Teixeira, afirma que no candomblé, a religião é predominantemente feminina: “ Os terreiros de candomblé têm sido percebidos por estudiosos, literatos e público de maneira geral como espaços primordialmente femininos” (TEIXEIRA,2000, P.197). Ruth Landes veio dos Estados Unidos, da Universidade de Columbia, com uma bolsa do Departamento de Antropologia da Universidade com o intuito de iniciar estudos raciais no Brasil. Sua pesquisa tomou um rumo diferente, terminou por conhecer a trajetória das mulheres nos terreiros de candomblé da Bahia nos anos de 1938 e 1939. A afirmação da mãe de santo supracitada pode ser percebida e sancionada 2 com uma das conversas e passagens de Ruth Landes na Bahia. Essa passagem se dá com o Martiniano Eliseu do Bonfim, negro e sábio da comunidade, que se mostrava indignado com o fato de que a religião no seu país de origem Nigéria, mais precisamente na cidade de Lagos, na África Ocidental, era bastante diferente no Brasil, como nos mostra a fala dele:

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Ver “A visão do Feminino nas Religiões Afro-brasileiras” de Ivana Bastos. Ver LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1947.

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(...) Tia Massi, como a chamam. É a chefe do mais velho templo do Brasil, o Engenho Velho, que deve ter mais ou menos 150 anos. Mas ela faz tudo errado e, ainda pior, tenta baixar as almas dos mortos no seu templo! Isso é um sacrilégio! – Gritou, realmente horrorizado. – Só os homens devem encarar os mortos e fazem-lhe perguntas! (...)

Nesta entrevista Martiniano, afirma que são pouquíssimas as mães de santo. As poucas sacerdotisas são quem fazem os verdadeiros rituais. Martiniano diz ainda que a mulher deve deixar os desejos para trás e assim tomar a frente do terreiro, ou seja: papel que caberia às mulheres mais velhas. Para ele, havia um fingimento por parte das mulheres mais jovens e isto era algo que muito o incomodava. No geral, dessa parte em diante do relato, é perceptível o estado de confusão do entrevistado por tudo que acontecia. Ainda sobre a citação da mãe de santo que fala da autonomia feminina no período pós-escravidão, quando as negras começaram a criar seus próprios comércios, a vender alimentos para seu próprio sustento e de seus filhos, ela mostra o porquê da grande maioria das mulheres serem sacerdotisas dos terreiros hoje em dia. Elas começavam a libertar outros escravos e escravas, pagando-lhes a alforria. Silva fala sobre essas “negras vendeiras”: As mulheres negras, tidas exímias cozinheiras, quando não continuaram como empregadas domésticas na casa de seus antigos donos se estabeleceram vendendo, em seus tabuleiros, doces, acarajés, abarás e outras comidas da culinária africana feitas na hora, ali mesmo na rua. (SILVA, 1994, P.52).

Ruth Landes diz que o trabalho mais notável das mulheres nos templos é quando elas são possuídas por um santo ou deus, que é o seu patrono e guardião. Diz-se que ele ou ela desce na sua cabeça e a cavalga e, depois de ter usado seu corpo, dança e fala. Às vezes diz-se que a sacerdotisa é a esposa de um deus e as vezes que é o seu cavalo. Assim também se pode perceber a forte influencia que essas mulheres têm entre seu povo: elas são intermediarias dos deuses. Vê-se a visão de que nenhum homem “direito” deixará que um deus cavalgue, a menos que não se importe de perder a sua virilidade. Pois assim, naquela época sabia-se que este era homossexual. Em “A cidade das mulheres” é interessante também ver a proliferação dos terreiros de Umbanda, e a visão que o povo baiano, adepto do candomblé, tinha sobre a mesma. A umbanda é uma religião brasileira que tem muita influência do candomblé. Religião criada e espalhada em meados de 1908 no Rio de Janeiro. Dizia-se que eram grupos de culto sem tradição, chamados caboclos, que vinham se proliferando por toda parte. Caboclo refere-se aos índios do Brasil e esses cultos veneram espíritos indígenas que são acrescentados ao rol das divindades africanas. Segundos altos padrões da tradição iorubá, os caboclos são blasfemos porque são ignorantes e indisciplinados, porque “inventaram” novos deuses à vontade e porque admitem homens aos mistérios. Como podemos ver as mulheres tem um papel importantíssimo na participação dos rituais do candomblé especificamente. Gostaria de trazer agora, esse empoderamento em relação às deusas nas religiões afro-brasileiras. Percebo que há uma autonomia, irreverência e poder, além de não haver uma castração no sentido da 129


sexualidade feminina nesse meio, ou seja: prazer livre. No que diz respeito à questão da maternidade não há uma visão idealizada sobre tal assunto. Marisa Varella, e seu interesse sobre o candomblé Percebendo a invisilibidade de artistas mulheres na história da arte e principalmente em Pernambuco, procurei uma artista que muito me interessa pela sua temática que caminha junto com minha linha de pesquisa. Ela se destaca pela sua temática: além de retratar mulheres ela tem uma particularidade que é abordar a cultura africana e sua religiosidade. Marisa Varella é artista plástica, litógrafa, arte educadora, formada em desenho e artes plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco. Reside em Olinda, Pernambuco, onde recebe forte influência do meio artístico e dos movimentos culturais locais. É professora de pintura em porcelana, do Museu do Estado de Pernambuco desde 1994. Suas obras encontram-se espalhadas por vários países do mundo: França, Austrália, México, Inglaterra, Canadá, Cuba, Guatemala, Itália, Moçambique entre outros. Realizou e participou de várias exposições individuais e coletivas de porcelana e pintura. Participou também da oficina de Gravura Guaianases onde entrou em meados dos anos 1982,1983 e onde ficou durante 13 anos. Tem uma grande produção que recebeu forte influência da cultura africana. Irei focar na religiosidade, em uma de suas influência:, o candomblé, palavra de origem iorubá que significa mistérios ou ritual. A oficina de Gravuras Guaianases foi um dos movimentos artísticos mais significativos e duradouros do estado de Pernambuco. Foi criada, em 1974, por iniciativa dos artistas plásticos João Câmara e Delano. No início a oficina funcionou no ateliê do pintor paraibano João Câmara, na Rua Guaianases, no bairro recifense de Campo Grande. Um grupo pequeno de artistas se reunia, aos sábados, no local, para a produção de litogravuras (gravura feita com matriz de pedra). Com o crescimento do movimento, a Oficina passou a ser aberta para qualquer artista que tivesse interesse em participar. O grande número de associados fez com que a Oficina se organizasse como uma sociedade sem fins lucrativos e precisasse de um espaço físico maior. Além dos seus idealizadores João Câmara e Delano, podem ser destacados Gilvan Samico, Guita Chafifker, Gil Vicente, Humberto Carneiro, Thereza Carmen, Luciano Pinheiro, José Carlos Viana, Tereza Costa Rego, Raul Córdula, Romero de Andrade Lima, Maria Carmen, Maurício Arraes, Maurício Silva, Liliane Dardot, Inalda Xavier, Isa Pontual, Jeanine Uchoa, José de Moura, Petrônio Cunha, José de Barros, José Paulo, José Carlos Xavier, Maria Tomaselli, Mário Ricardo, Marisa Lacerda, Marisa Varella, Rinaldo, Teresa Pacomio, Carlos Haarle, Francisco Neves, Nilza Torres, Flávio Gadelha, José Alves de Moura, José Cláudio. Em entrevista realizada por mim, Marisa conta que conheceu uma pessoa que teve uma forte influência em seu interesse com relação a essa temática. Ela relata que era uma mulher negra, linda e tinha um porte vistoso e, nas conversas que tiveram, essa mulher disse que sua avó era rainha e veio para o Brasil, escravizada, na última

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remessa dos nagôs, provavelmente vindo da Nigéria, pois os Nagôs, ou Iorubás, são um dos grupos étnicos da África, e possuem a religião ancestral de lá. Marisa foi se interessando cada vez mais com as histórias dos orixás. Afirma que, inclusive, essa mulher que a influenciou era de Iansã. Depois das conversas Marisa conta que foi a livrarias e encontrou muitas coisas superficiais, e só quando começou a ler teses é que ela obteve um conhecimento mais aprofundado. Marisa é cristã, tem um grande respeito por todas as religiões, e gosta de divulgar seus trabalhos com essa temática pelo seu interesse e para também quebrar as visões estereotipadas e os preconceitos. Estudiosa dessa temática busca, através de suas obras, mudar uma visão deturpada que as pessoas têm das religiões africanas. Demonstra claramente em suas obras a exuberância da mulher no Candomblé, seu poder e sua sensualidade. Na série pedra+água= material/criação/axé que foi exposta em novembro de 2012, no Museu do Estado de Pernambuco, podemos ver a beleza e delicadeza do seu traço nas figuras 1, 2 e 3 abaixo.

Fig. 1

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Fig. 2

Fig 3 .Fotografias da exposição Pedra+água= material/criação/axé

As obras de Marisa são ricas em detalhes e o traço delicado chama atenção ao todo de cada obra, além dos trabalhos com litografia, que produziu na oficina de Gravura Guaianases, ela também apresenta outra série de sua produção artística em porcelana, com a temática da cultura africana figura 4.

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Fig 4 .Marisa lacerda .Fotografia de trabalho de pintura em porcelana.

Quando perguntada como ĂŠ ser mulher artista em Pernambuco, Marisa revela que gosta de divulgar seu trabalho, gosta de expor, vender, mas, acima de tudo, faz para seu prĂłprio prazer. A arte lhe faz bem, e ela ainda hoje produz e dĂĄ aulas de pintura no Museu do Estado de Pernambuco.

Fig 5.Fotografia de Marisa depois da entrevista

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Referências LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1947. SARACENI,

Rubens.

Códigos

de

Umbanda.

São

Paulo:

MADRAS,

2014.

BASTOS, Ivana Silva. A visão do feminino nas Religiões Afro-brasileiras. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais: Número 14 – Setembro de 2009 p.156-165. SOUZA, Andréia Lisboa de. A representação da Personagem Feminina negra na literatura infanto-juvenil brasileira.

Giselle Natália Izidoro Silva Discente do curso de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisa questões e relações etnorraciais.

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TRAMANDO EM CONJUNTO: UMA PROPOSTA DE MEDIAÇÃO CULTURAL PARA A EXPOSIÇÃO TRAMAÇÕES Clarissa Machado Belarmino/ Universidade Federal de Pernambuco Guilhermina Pereira da Silva/ Universidade Federal de Pernambuco Inácio Alves Dantas Neto/ Universidade Federal de Pernambuco Janilson Lopes de Lima/ Universidade Federal de Pernambuco Vanessa Soares Lorega/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O presente trabalho trata de um relato de experiência sobre uma proposta de mediação cultural para a exposição Tramações, realizada na galeria Capibaribe do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, no período de 25 de maio a 25 julho de 2016. A proposta foi construída pelos autores durante a disciplina Ensino de Artes Visuais em Espaços não-formais, ministrada pela professora Renata Wilner no semestre 2016.1, no programa associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFPE/UFPB. A proposta foi desenvolvida de forma dialógica e interativa, a partir de perguntas norteadoras e de uma experiência de troca de gênero. Os resultados obtidos demonstraram que a ação mobilizou os participantes para uma reflexão crítica a respeito dos temas gênero e sexualidade, possibilitando ainda o exercício do um olhar estético a partir da relação dos sujeitos com as obras e com o outro. PALAVRAS-CHAVE Educação não-formal; ensino de artes visuais; Exposição Tramações; Gênero; Sexualidade ABSTRACT This work is an experience report about a cultural mediation proposal for Tramações exhibition, held in Galeria Capibaribe at Arts and Communication Centre of UFPE, from May 25 to July 25, 2016. The proposal was built by the authors for the Visual Arts Teaching in non-formal spaces discipline, given by Professor Renata Wilner during the semester 2016.1, at the associated program of Post-Graduate Studies in Visual Arts of UFPE / UFPB. The proposal was developed in a dialogical and interactive way, from guiding questions and a gender exchange experience. The results showed that the action mobilized participants for a critical reflection about the themes gender and sexuality, even allowing for the exercise of an aesthetic look from the subjects with the works and the other. KEYWORDS Non-formal education; teaching visual arts; Tramações exhibition; Gender; Sexuality.

Introdução O presente artigo teve origem em uma proposta de mediação elaborada como atividade de uma disciplina cursada pelos cinco autores. Esta estratégia de mediação

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cultural surgiu a partir do diálogo entre as disciplinas de Ensino de Artes Visuais em Espaços Não Formais e Tramações: cultura visual, gênero, e sexualidades, ofertadas aos estudantes de mestrado do Programa associado de pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco e da Paraíba (UFPE/UFPB) e Mediação Cultural, ofertada aos alunos da Licenciatura em Artes Visuais da UFPE. Como proposta de culminância da disciplina Tramações, uma ação cultural foi concebida. Tendo como proposta abordar questões relativas à cultura visual, gênero e sexualidades, o evento contemplou uma exposição de artes visuais dos mais diversos suportes, círculos de debate, rodas de leitura e ações performáticas, utilizando a ação tema da disciplina: tramar. Essa exposição surgiu durante os encontros através de uma proposta pouco usual na academia: a partir das suas vivências e experiências artísticas, com o objetivo de construir conhecimento, os trabalhos da exposição tiveram como mote os temas gênero e sexualidade. Tramar está ligado à criação coletiva a partir da troca de vivências sensíveis. A exposição foi realizada na Galeria Capibaribe, localizada no Centro de Artes e Comunicações (CAC) da UFPE, no período de 25 de maio a 25 de julho de 2016. O espaço possui uma perspectiva de laboratório, oferecendo aos alunos e docentes um campo de pesquisa, estágio e espaço para proposições artísticas. Percebendo a riqueza e importância dessa exposição, as disciplinas de Ensino de Artes Visuais em Espaços Não Formais e Mediação Cultural, ministradas pela professora Renata Wilner no primeiro semestre letivo de 2016, propuseram a interação entre as três disciplinas, com o foco na parte de mediação cultural. A ação traria benefícios para exposição, por ter um grupo dedicado exclusivamente para elaborar e realizar as atividades educativas, e para as outras disciplinas por ter um objeto/campo de estudo no próprio espaço de ensino/aprendizagem, o Centro de Artes e Comunicação. Visando a concretização dessa interação entre as disciplinas, elaboramos uma proposta de mediação para exposição Tramações, a fim de somar conhecimentos, experiências e reflexões aos envolvidos nas atividades. A atividade educativa idealizada por nós foi desenvolvida com uma turma de estudantes do curso Técnico de Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE), e este texto além de apresentar a proposta de mediação realizada, traz reflexões sobre o trabalho colocado em prática, e consequentemente, as questões sobre os assuntos abordados nas disciplinas envolvidas. Referencial teórico O conceito de educação não deve ser confundido com escolarização. De acordo com as definições de Trilla (2008), a escolarização corresponde à educação formal, aos processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos no ambiente escolar. Porém, tendo em vista as peculiaridades do ser humano, estamos em constante processo de aprendizagem, nos mais diversos ambientes. Para a compreensão da abordagem que adotamos sobre a educação não formal, utilizaremos a definição empregada por Gohn (2015):

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A concepção que adoto de educação não formal parte do suposto de que a educação propriamente dita é um conjunto, uma somatória que inclui a articulação entre educação formal, aquela recebida na escola, regulamentada e normatizada por leis, via um conjunto de práticas que se organizam em matérias e disciplinas; a educação informal, aquela que os indivíduos assimilam pela família, pelo local onde nascem, religião que professam ou por meio do pertencimento a uma região, território e classe social da família; e a educação não formal, que tem um campo próprio, embora possa se articular com as duas anteriores (GOHN, 2015, p.15-16).

Nesse sentido, percebemos na Galeria Capibaribe, localizada no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, um importante espaço de educação não formal. É a partir de sua articulação com os demais tipos de educação que propomos a ação de mediação cultural na exposição Tramações, exemplificada através da visitação do grupo de estudantes do IFPE Campus Olinda. Este encontro foi construído como um momento de desenvolvimento humano através da arte, pois “precisamos de um ensino de arte por meio do qual as diferenças culturais sejam vistas como recursos que permitam ao indivíduo desenvolver seu potencial humano e criativo, diminuindo o distanciamento entre arte e vida” (RICHTER, 2003, p. 51). Com o nosso trabalho, buscamos desenvolver uma autonomia do espectador que se depara com as obras da exposições, que, através das nossas proposições, podem construir saberes a partir de suas visões de mundo e de suas experiências pessoas, não apenas pautado nas indicações dos mediadores. Essa abordagem tenta ir de encontrado à forma tradicional de mediação, descrita por Coutinho (2009) da seguinte forma: A ‘mediação’ tradicionalmente exercida nesses espaços por meio de visitas guiadas tem uma concepção diretiva, se pautando no discurso informativo construído em torno das obras, um discurso absorvido da erudição dos historiadores, dos críticos e dos curadores. Esse modelo de mediação, se assim pode qualificar tal ação, pressupõe um discurso unilateral e legitimador que afirma e confirma o lugar da obra e de seu autor – o artista – no mundo da arte. Paradoxalmente, exclui desse círculo fechado o sujeito que busca se aproximar, sobretudo o leigo, pois é um discurso pautado nos códigos instituídos do mundo da arte, em especial o código da tradição erudita, que pressupõe uma iniciação. Esse dispositivo de comunicação unilateral é uma herança dos sistemas elitistas excludentes, que desconsideram uma possível autonomia de observação dos sujeitos que se veem diante das obras obrigados a seguir com o olhar as indicações do guia (COUTINHO, 2009, p. 172).

A experiência de construção e execução de uma proposta de mediação cultural foi de fundamental importância para que colocássemos em prática os conceitos elencados por Burnham e Kai-Kee (2011) para uma mediação cultural bem estruturada: a liberdade do observador durante a leitura da obra de arte; a construção de um ambiente de debate e trocas entre os visitantes; a construção de momentos de silêncio para que o público possa se conectar ao espaço expositivo; e a utilização de 137


questões norteadoras e atividades temáticas para que o espectador possa realizar a visita através de um possível caminho. A nossa sociedade estabeleceu um contrato social que marca os gêneros de forma bem definida. Durante o período de gestação cria-se toda uma expectativa acerca do sexo do bebê, que determinará toda a sua vida dividida em azul e rosa. Quando o sexo é revelado toda uma gama de expectativas bem definidas baseadas naquela genitália é produzida. Esse sistema parece inocente à princípio, já que quando nascemos não nos damos conta de que isso decorre de uma sedimentação histórica aliada a práticas performativas reiteradas de gênero (BUTLER, 1990). Tudo o que fazemos sem percebermos, gestos, roupas, acessórios, modo de falar, determinados comportamentos são formas bem marcadas de demonstrar o gênero. É esperado de uma mulher que ela seja feminina nos gestos, que se sente de maneira diferente da do homem, que use maquiagem e que seja delicada. Esses demarcadores reiterados sutilmente por todos nós produzem diferença. Esses atos performativos de gênero aprisionam corpos que se deslocam desse binarismo. Quando a performance de gênero não condiz com a genitália correta somos punidos, uma vez que o gênero é sexo para muitos. O entendimento de que o gênero não é determinado pela biologia, mas sim pela cultura vem de uma corrente pósestruturalista. No caso do gênero o pós-estruturalismo vai romper com as naturalizações. Louro nos elucida bem esse deslocamento teórico: Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas [...], mas sim por nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação (LOURO, 2014, p. 26).

No que tange à sexualidade, Foucault (1998) com sua genealogia do sexo nos mostra que as sexualidades que estão fora do eixo heterocentrado foram produzidas dentro da dicotomia pecado/patologia. Havia um discurso sobre o sexo, sobre o que era certo e o que era errado, dominado pelo dispositivo religioso. Com a grande mudança de paradigma conhecida como iluminismo o discurso começa a se encaminhar para a esfera científica. Dentro da biologia a sexualidade apenas adquire categoria de cientificidade sem que houvesse uma reflexão sobre esse fenômeno. Durante todo o século XIX e XX, diversos dispositivos de controle social atuaram para controlar essas sexualidades consideradas fora do comum, entre essas a pedagogia, o direito, a medicina, a psiquiatria entre outras. Toda a atividade sexual que não fosse reprodutora era ligada a uma patologia, o que incluía masturbação, que era vista como uma prática que retirava energia do trabalho e a remanejava para o sexo sem fins reprodutivos. Podemos inferir que grande parte da discriminação e do ódio que a população LGBTQI enfrenta decorre de dispositivos de controle que produziram essa leitura sobre as práticas sexuais não reprodutivas. Diante dos argumentos propostos, podemos inferir que práticas que possam educar para gênero e sexualidade são tão necessárias. Perceber que devemos pensar e problematizar nossas práticas cotidianas e nos sensibilizar para a subjetividade do

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outro é essencial num mundo onde as identidades podem se constituir de forma tão plural. Neste trabalho iremos refletir sobre uma das muitas práticas de mediação para a supracitada exposição. Nela tecemos elos momentâneos de afetos compartilhando nossas vivências sensíveis; abrimo-nos para a educação de nós mesmos e a de muitos outros em nossas redes de contatos. Tramamos. Metodologia A proposta estruturada foi de caráter dialógico e interativo, e teve como objetivo provocar reflexões e construir conhecimento acerca das questões de gênero, sexualidades, cultura visual, além de temas relacionados que possivelmente surgiriam durante o diálogo. A ideia era que pudéssemos inicialmente acolher o público nos apresentando enquanto mediadores e contextualizando os visitantes sobre o que era a exposição Tramações (como se deu, do que se tratava etc.), e como seria nosso processo dinâmico durante a mediação. Após este momento, deixaríamos que eles circulassem pela galeria, tendo cada um seu tempo para contato e leitura dos trabalhos expostos. Durante ou após esse contato com os trabalhos, lançaríamos perguntas provocadoras sobre corpo, gênero, etc. Por exemplo: “Quais os sentidos vem a sua mente a partir da palavra ‘corpo’?”, “Você acha que a sociedade tem influência sobre seu corpo?”, “A que te remete a palavra ‘gênero’?”. Depois da familiarização do público com a exposição, reuniríamos o grupo para uma dinâmica intitulada “troca de gênero”. Essa vivência consistia em um corpo falante auto identificado como homem e outro auto identificado como mulher, um de frente para o outro. Esses sujeitos observariam os corpos um do outro, e um deles começaria a falar palavras ou frases que viessem à cabeça sobre como é ser do gênero oposto. Por exemplo: Ana e José se posicionam frente a frente, e José olha para Ana e começa a verbalizar o que ele acredita ser mulher. “Olhando para Ana, para você José, o que é ser mulher?”. A operação é invertida (Ana fala o que é ser homem, em frente a José) e a vivência seria finalizada ou repetida por outros participantes. A operação linguística que decorre dessa vivência, o falar, iria produzir, em sua maioria, generalizações sobre o que é ser homem e sobre o que é ser mulher. Os participantes identificariam características do senso comum para descrever o outro, uma vez que eles não sabem como o outro se sente em seu local de subjetividade. Essa é uma experiência de empatia que evidencia o caráter construído dos gêneros. Poderíamos, através dessa operação, perceber que a sedimentação histórica legitimada dentro da linguagem pelos discursos oriundos dos núcleos de poder (escola, medicina, biologia, direito, psiquiatria, etc.) exerce influência na naturalização de práticas e discursos. Por fim, como prática de expressão do momento vivido na galeria, realizar um convite ao público para que escrevesse entre as linhas de uma reprodução ampliada da obra da artista Luana Andrade, as representações de gênero observadas na dinâmica, seus medos, suas revoltas, seus protestos, seu apoio, seu aprendizado, sua solidariedade,

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enfim, o que de fato a passagem por aquela exposição reverberaria em cada um dos visitantes. Resultados Alguns assuntos ainda são tabus e encontram muita resistência dentro do universo da educação formal, mesmo na contemporaneidade. Entretanto, os indivíduos que a formam, afetados pelas outras dimensões da educação (informal e não formal) forçam essas barreiras conservadoras a se expandirem, introduzindo lentamente questões antes ignoradas pela esfera escolar. Esse movimento dilatante, causado por diversos setores da sociedade, obriga essas instituições de ensino formal a refletirem sobre suas práticas educacionais castradoras, disjuntivas e descontextualizadas. Ressaltando que a escola é apenas uma das esferas da complexa formação educacional, e deve estar atenta às demais esferas por reconhecer que seus marcos institucionais e pedagógicos [...] nem sempre é o mais idóneo para atender a todas as necessidades e demandas educacionais. A estrutura escolar impõe limites que devem ser reconhecidos. E mais: além de não ser apta para todo tipo de objetivo educacional, a escola mostra-se particularmente imprópria para alguns deles (TRILLA, 2008, p. 18).

Esse fluxo de infiltração entre as esferas da educação vem obtendo resultados interessantes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco, campus Olinda, onde são oferecidos os cursos técnicos de Computação Gráfica e Artes Visuais. Um núcleo de identidade de gênero e sexualidade foi criado em 2015, a partir de demandas dos próprios alunos e abraçado pelos professores e gestores da unidade federal. Esse núcleo, que é aberto a toda comunidade do campus, inclusive a localidade onde ele está inserido (bairro de Jardim Atlântico, cidade de Olinda) recebe convidados mensalmente, bem como dá voz a sujeitos da própria instituição, que problematizam questões referentes ao tema, realizando acercamentos a outras questões como: direitos sociais, políticas públicas, saúde, educação, mercado de trabalho, universo artístico, etc.. A turma do 2º período do curso Técnico de Artes Visuais, que viveu a experiência na Galeria Capibaribe durante a exposição Tramações, é composta por muitos membros desse núcleo de discussão sobre identidade de gênero e sexualidade. A ida a galeria foi concebida como visita técnica da disciplina de Mediação Cultural, componente obrigatório do curso, que tem como um de seus objetivos conhecer espaços de educação não formal como museus, galerias, ONGs, pontos de cultura, examinando as propostas educativas desenvolvidas por eles. A disciplina é inspirada filosoficamente pelo pensamento complexo, desenvolvido pelo teórico Edgar Morin que propõe uma reforma do pensamento necessária às configurações e demandas da atual sociedade. Escolhe dentro do universo do autor o

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princípio dialógico como sustentação da prática de mediação cultural, pois, como afirma Morin: A palavra dialógica não é uma palavra que permite evitar os constrangimentos lógicos e empíricos como a palavra dialética. Ela não é uma palavra-chave que faz com que as dificuldades desapareçam, como fizeram, durantes anos, os que usavam o método dialético. O princípio dialógico, ao contrário, é a eliminação da dificuldade do combate com o real (2013, p. 190)

O encontro com o oposto, com o diferente não deve ser encarado como um empecilho, mas como um estímulo a construções de variáveis respostas e verdades. É antes e tudo um mote de abertura para a pluralidade complexa dos seres e de suas relações. Um mote também para o conhecimento de si mesmo. Pressupondo uma harmonização, nas palavras de Nicolescu (1999), entre a efetividade, espaço exterior a nós, e a afetividade interior a nós. Esse encontro, que ademais de ter sido vivido entre os estudantes e as propostas artísticas expostas na galeria, também foi provocado a partir de uma dinâmica sugerida por uma das mediadoras, também autora coautora desse texto. Ela solicitou que dois indivíduos do grupo (um que se enxergasse como mulher e outro como homem) se pusessem um frente ao outro e fossem elencando compositores da identidade masculina e feminina. O resultado dessa ação, além de um encontro afetuoso com o outro, nítido entre os dois que aceitaram a proposta, causou uma discussão prazerosa a respeito de questões sobre o controle que a sociedade exerce sobre ambos os gêneros e os reflexos desse controle nas ações de permanecia de domínio sobre os sujeitos. Vínculos foram fortalecidos e construídos, uma vez que o espaço de escuta do outro foi respeitado, dando tempo para que uma reflexão de si mesmo fosse possível. Era possível perceber por meio dos pensamentos expostos que novos horizontes se descortinavam, naquele acontecimento, diante de todos nós. Passada uma semana da visita, os estudantes realizaram um apanhado da experiência vivida, destacando que a perspectiva dialógica empregada pelos mediadores foi importante para que tantas revelações fossem possíveis, visto o clima de segurança e afeto que foi criado. Destacaram também a potencialidade das relações complementares que podem ser construídas entre as várias dimensões educativas. Visto que as afetações entre elas são de fluxo contínuo e favoráveis as quebras de paradigmas presentes na lógica conservadora da escola. Considerações finais O que podemos considerar ao final deste artigo, escrito em conjunto, é sem dúvida a pluralidade das ideias contidas nas ações dos envolvidos no processo de ensinoaprendizagem, seja ele em qual âmbito for. Afirmamos isso no sentido de que cada sujeito que aqui expôs seu pensamento, de alguma maneira está ou esteve envolvido

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nas questões pertinentes que o configuraram, fortalecendo cada vez mais o seu caráter de pluralidade. A construção e participação em uma mediação cultural, muito fundamentada no pensamento voltado para uma prática social da arte, estão reconhecidas no termo transpedagogia proposto por Helguera (2011, p.11), pautado no processo pedagógico como núcleo do trabalho de arte, ou seja “esse trabalho cria seu próprio ambiente autônomo; na maioria das vezes, fora de qualquer estrutura acadêmica ou institucional” . Muito embora a exposição Tramações estivesse ligada a uma disciplina do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, dentro de uma instituição acadêmica, ela, por seu caráter sensível, pertinente e com sua urgência em evidenciar as questões de gênero e sexualidade com performances, quadros, videoarte, instalação e ações de mediação cultural, criou autonomia em seus processos educativos, expandiu os diálogos e fortaleceu a produção de artistas em formação. Outro ponto que podemos considerar para este artigo foi o processo dialógico que constituiu as várias fases desta construção de ensino-aprendizagem, desde suas trocas entre disciplinas acadêmicas até a realização de ações de mediações, que permitiram tanto ao público espontâneo, como aos grupos convidados um mergulho na sensibilidade de suas propostas artísticas e no debate de questões de gênero e sexualidades tão carentes de uma visão mais sensível e comprometida, uma vez que as concepções de suas obras estavam intimamente ligadas as vivências de cada artista. Da experiência de ter no processo pedagógico o trabalho de arte, cabe aos envolvidos expandirem essas trocas estabelecendo as muitas redes, e as muitas tramações. Esperamos que a partir do trabalho desenvolvido, muitos desdobramentos sejam possibilitados, a partir do desenvolvimento de uma consciência crítica e conhecimento a respeitos dos temas gênero e sexualidade, possibilitados pela experiência estética na exposição Tramações. Referências BURNHAM, Rika; KAI-KEE, Elliott. A arte de ensinar no Museu. In: HELGUERA, Pablo; HOFF, Mônica (orgs). Pedagogia no campo expandido. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do MERCOSUL, 2011. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. COUTINHO, Rejane Galvão. Estratégias de mediação e a abordagem triangular. In: BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (Orgs.). Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009. FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol. 1: a vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

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GOHN, Maria da Glória. Educação não formal no campo das artes. São Paulo: Cortez, 2015. HELGUERA, Pablo. Transpedagogia. In: HELGUERA, Pablo; HOFF, Mônica (orgs). Pedagogia no campo expandido. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do MERCOSUL, 2011. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 2014. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 1999. RICHTER, Ivone Mendes. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes visuais. Campinas: Mercado de Letras, 2003. TRILLA, Jaume. A educação não-formal. In: ARANTES, Valéria Amorin (org.). Educação formal e não-formal: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2008. Clarissa Machado Belarmino Mestranda no Programa associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (2016), na linha de Ensino das Artes Visuais no Brasil, e bolsista CAPES/DS. Licenciada em Artes Visuais pela UFPE (2013). Guilhermina Pereira da Silva (Velicastelo) Mestranda no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (2016). Artista visual e graduada em História pela UFPE (2015). Guilhermina é o nome social de Guilherme Pereira da Silva, CPF n: 084.990.724-10, uma mulher transexual. Inácio Alves Dantas Neto Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE (2016). Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (2014) pela UnB. Licenciado em Artes Cênicas (2012) e bacharel em Comunicação Social/Rádio e TV (2007), ambos pela UFPE. Assistente Júnior (Nível Superior) da CAIXA Cultural Recife desde sua abertura (2012). Janilson Lopes de Lima Mestrando no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (2016). Especialista em Cultura Pernambucana pela FAFIRE (2012) e licenciado em Artes Plásticas (2009) pela UFPE. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco, campus Olinda (2014). Vanessa Soares Lorega Mestranda do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (2016), na linha de Ensino das Artes Visuais no Brasil, e bolsista CAPES/DS. Graduada em Educação Artística/Licenciatura em Artes Plásticas (2014).

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RELAÇÕES DO CONTEXTO ARTÍSTICO ESTADUNIDENSE E LATINOAMERICANO Jacks Ricardo Selistre / Universidade Federal de Santa Maria Rosa María Blanca / Universidade Federal de Santa Maria RESUMO O presente trabalho pretende explorar a questão da hegemonia econômica e cultural dos Estados Unidos em comparação com a América Latina. Será realizado um diálogo entre as produções artísticas latino-americanas com as produções estadunidenses. Levar-se-á em consideração as discrepâncias sociais, políticas e culturais de tais países, bem como se discutirá a influência e/ou a submissão de um contexto artístico ao outro. Será realizada uma análise sociológica do panorama artístico, a fim de constatar quais são as diferenças e as semelhanças de tais produções, perguntar-se-á o que permite que tais diferenças existam e por quais motivos elas se perpetuam no sistema das artes. PALAVRAS-CHAVE Arte latino-americana; sistema da arte; hegemonia estadunidense. ABSTRACT This present article intends to explore the economic and cultural issues of the hegemony of the United States of America compared to Latin America. A dialogue between the Latin American art production and the USA production will be done. It will consider the social, political and cultural differences of these countries, and it will discuss the influence and/or the submission of one artistic context to another. A social analysis of the artistic scene will be done to perceive which are the differences and the similarity of these art productions, it will question what allows the existence of these differences and for which reasons they continue to exist in the art system. KEY WORDS Latin-American art; art system; USA hegemony.

O século XX foi marcado por inúmeros eventos históricos importantes tanto para o meio político, com a eclosão de duas Guerras Mundiais e da Guerra Fria; quanto para o meio cultural, com o deslocamento do panorama artístico de Paris para New York após a Segunda Guerra Mundial (ARGAN, 1992, s/d.). Esse deslocamento leva em consideração uma série de fatores, como a destruição em que a Europa se encontrava no período do pós-guerra, a migração de inúmeros artistas europeus que fugiram para os Estados Unidos em decorrência das guerras e perseguições aos intelectuais. A transferência do centro artístico mundial a New York é decorrente também do incentivo fornecido por grandes empresários e museus que estavam implementando uma cultura artística emergente nos Estados Unidos, que passou a ser não só o centro artístico global, bem como o centro econômico e financeiro mais importante do mundo.

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New York se destaca como centro artístico financiando artistas através de seus grandes empresários que cultivavam a arte e visavam ampliar suas fortunas. Eles auxiliaram na criação de grandes espaços expositivos e o governo fez-se presente com fortes políticas culturais de incentivo às manifestações artísticas. O governo e os empresários ainda fortaleciam o meio artístico premiando os artistas que se 3 destacavam com bolsas de estudo. A família Rockfeller , por exemplo, contribuiu com grandes feitos artísticos e filantrópicos para os Estados Unidos. Foi através das ideias da família Rockefeller junto a outrem que surgiu o Museu de Arte Moderna de NY. Ainda vale frisar que a família efetuou a maior doação para o museu, doando o 4 montante de 100 milhões de dólares para o MoMA . Após a emigração de inúmeros artistas europeus aos EUA, cada vez mais NY se solidifica como capital artística. Jackson Pollock emerge no contexto artístico estadunidense como o primeiro grande artista dos Estados Unidos, que fora 5 alavancado pela colecionadora Peggy Guggenheim . Pollock e suas action paintings chamam a atenção da cena artística nova-iorquina e mundial, fortificando ainda mais a importância cultural que o país está erigindo. O reflexo da cultura estadunidense nas artes visuais deu-se com a pop art, ainda que seu surgimento tenha ocorrido na Inglaterra. Esse movimento utilizou-se da crescente cultura de massa presente no cinema, na publicidade e no consumismo que se originaram nos Estados Unidos e que estavam rapidamente se espalhando pelo mundo. Algumas das obras pop fazem alusão à espetacularização realizada pela mídia diariamente, reorientando o ponto de vista do espectador e fazendo com que ele analise e reflita acerca do contexto em que ele está inserido. A pop art foi vista de maneira ampla, haviam aqueles críticos de arte que a aceitavam como arte e havia também aqueles que a rechaçavam por utilizar-se de elementos banais e cotidianos, que não se relacionam diretamente com os materiais artísticos tradicionais. Pode ser considerada até uma antiarte, quando vista por um olhar artístico conservador (DEMPSEY, 2003, 217;219). Mesmo tendo surgido na Inglaterra, a arte pop destaca-se pelas suas características que exploram o american way of life, bem como mostra Richard Hamilton em sua obra “O que será que torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”. A obra

3 A família Rockefeller ganhou fortunas no século XX nos Estados Unidos. Foram donos da Standard Oil, empresa que atuava no ramo petroleiro. Destacaram-se por viabilizar a construção do MoMA de NY, por construir o Rockefeller Center e o Linconl Center, que sedia a Ópera e a Orquestra Filarmônica de NY. Ainda destacavam-se como grandes filantropos que financiaram tanto artistas quanto pesquisas científicas, como a vacina contra a febre amarela. 4 De acordo com o site http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/983/noticias/o-petroleovirou-arte acesso dia 28 de jun. de 2016. 5 A estadunidense Peggy Guggenheim foi uma das maiores colecionadoras de arte do século XX. Foi a responsável por trazer à tona a obra do action painter Jackson Pollock. Além de possuir sua própria coleção de arte – que hoje encontra-se no Peggy Guggenheim Collection em Veneza, Itália – foi sobrinha de Solomon R. Guggenheim, o fundador do Guggenheim Museum de NY, que concedeu bolsas de estudos e incentivou inúmeros artistas do século XX.

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pode ser vista como uma das precursoras da pop art, sendo considerada um ícone desse movimento. Essa obra apresenta aspectos do american way of life bem como do american dream. Constituída de um casal utópico, formado por um halterofilista e por uma pin-up americana, sendo esse o ideal de casal moderno americano. Observa-se que figura uma empregada doméstica utilizando um aspirador de pó ao alto da escada, quase fugindo da cena. Pode-se associar essa imagem do casal utópico como indivíduos capitalistas importantes, afortunados, belos e felizes que dispõem da casa ideal para o americano moderno, possuem uma empregada doméstica que utiliza um aspirador de pó de última tecnologia, mostrando o avanço tecnológico americano. Bem como os brilhantes letreiros da Broadway que aparecem invadindo a sala pela janela, mostrando a agitada noite que o capitalismo proporciona a NY, com inúmeros musicais e teatros, destinados àqueles que podem pagar. Aqueles que não podem pagar contentam-se com os luminosos e com a promessa de liberdade que o capitalismo prega. A imagem mostra também a substituição de um quadro e de uma escultura por meros objetos corriqueiros. Uma lata de presunto figura ao centro da mesa, lugar que seria comumente destinado a uma escultura ou a algum objeto decorativo. O quadro fora substituído por uma imagem publicitária. Esses dois objetos representam bem a transformação artística e cultural ocorrida nessa época. Os artigos que antes seriam artísticos, artesanais ou decorativos são substituídos por produtos advindos da produção industrial de larga escala. Assim, analisa-se a transformação do indivíduo, da cultura e do sistema no século XX. A substituição pelos objetos de circulação de massa atuam questionando, revisitando e reavaliando os valores dos objetos artísticos e da concepção de cultura de massa.

Richard Hamilton (1922 – 2011)

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O que será que torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? (1956) Collage 26 cm × 24.8 cm Kunsthalle Tübingen, Tübingen

A abordagem do estilo de vida americano é uma constante na pop art, que multiplica cenas corriqueiras da vida americana moderna. Esse jogo de ilusões proposto pelos artistas pode ser considerado como um ato político, visto que pode ser considerado como uma propaganda ou crítica ao sistema capitalista americano. Considera-se o american way of life como o padrão imposto pelos Estados Unidos através de seus costumes nacionais, como seus hábitos alimentares, suas marcas de roupas e seu idioma. Destaca-se a imposição dos normativos americanos, como os estadunidenses se autodenominam, como se fossem a única nação de fato americana. O american way of life impõe suas regras às sociedades alheias, dissolvendo as outras culturas em detrimento da sua própria. A aldeia global, ideia desenvolvida por Marshal MacLuhan, apresenta-se assinalando as mudanças que decorrem da globalização. O fácil acesso à informação de qualquer lugar do mundo e a rapidez com que se pode consultar tais informações faz com que distâncias concretas sejam minimizadas em distâncias simbólicas através dos veículos de comunicação, como a internet e a televisão. A facilidade de acesso é vista como algo positivo em sua amplitude, porém pode-se questionar uma certa homogeneização cultural. Visto que com a rápida troca de informações desconstrói-se a ideia de cultura nacional cristalizada, assim revelando a ideia de cultura em constante transformação. “Estamos entre as promessas do cosmopolitismo global e a perda de projetos nacionais” (CANCLINI, 2008, p. 57).

American way of life: a imposição cultural A ascensão dos Estados Unidos na última metade do século XX fez com que esse país conquistasse uma posição cêntrica em relação aos demais, quando se trata de economia, cultura e pesquisas científicas. País esse que protagonizou a corrida contra os ideais político-ideológicos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, obteve seu destaque com a queda do Muro de Berlim (1989) e com a dissolução da URSS (1991), e consequentemente com a vitória do capitalismo. A queda do Muro de Berlim e a dissolução da URSS apenas afirmavam o que já estava sendo visto desde a década de 60, aproximadamente. Os Estados Unidos e seu sistema capitalista são novamente protagonistas da cena política atual, visto que o sistema capitalista predomina hegemonicamente no mundo através das doutrinas de economia liberalista e neoliberalista. O ideal liberalista pregado anteriormente pelos EUA buscava a globalização para todos, o que consequentemente facilitaria a comunicação, as migrações em massa e também o intercâmbio cultural, fazendo com que tanto a informação quanto a cultura fossem transmitidas rapidamente. Com as distâncias encurtadas em decorrência da tecnologia, percebe-se que as culturas e as identidades nacionais transformaram-se e seguem transformando-se drasticamente, visto que elas não são cristalizadas, mas que permanecem em constante transformação.

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Além de não serem cristalizadas, as identidades nacionais podem ser vistas como uma maneira de rotular as qualidades de determinada população. Pois, ao definir a identidade de uma nação se constrói um imaginário acerca dela, que muitas vezes não condiz com a realidade. Visto que a identidade nacional é um estereótipo, pois privilegia alguns aspectos em detrimento de outros. Stuart Hall desconstrói as ideias de identidade e cultura nacional, pois comportam um emaranhado de indivíduos 6 infinitamente diferentes, em suas identificações , em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural? Essa ideia é sujeita à dúvida, por várias razões. Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural. (HALL, 2011, p. 35)

Vê-se que a ideia de identidade e cultura nacional são construções sociais, não sendo algo que está inscrito em nossos genes (Idem, ibidem, p. 29), atuando como maneira de representação para outrem. A mudança do paradigma acerca da identidade e da cultura de cristalizadas para mutáveis, é decorrente da globalização, que fora proposta pelo liberalismo. No final do século XX, percebeu-se a ascensão do neoliberalismo, que alterou consideravelmente as bases da doutrina liberalista. Diferentemente do liberalismo, o neoliberalismo pontua que para a globalização ocorrer, deverá haver indivíduos que serão excluídos e segregados, não pertencendo de um todo à globalização. De maneira que apenas aqueles que têm acesso e condições possam ser integrados à globalização, deixando as exceções à deriva. Essas exceções são compostas por países cujo acesso aos mais variados recursos é negado à maioria da população, mas não há excluídos e segregados apenas em países periféricos. Vale ressaltar que há muitos países desenvolvidos cujo IDH é alto, e que mesmo assim apresentam enormes índices de pobreza, bem como de excluídos e segregados. De acordo com estudos do banco Credit Suisse em reportagem veiculada 7 pela Forbes , o número de cidadãos entre os mais pobres do mundo é maior nos Estados Unidos do que na China. Visto que nenhum cidadão chinês se encontra entre os mais pobres do mundo, enquanto 10% deles são estadunidenses e os outros 20% mais pobres estão na Europa. Vale ressaltar que a China possui um número maior de habitantes que os Estados Unidos e que a Europa juntos.

6 Preferimos o termo identificações neste caso pois aparenta ser um termo mais aberto e amplo do que identidade, bem como Diana Fuss (1995, p. 6) afirma ao analisar a obra de Judith Butler: “as identificações não são fechadas por completo; identificações são inevitavelmente falhas; e as identificações são veículo para o outro” (tradução nossa) original: “Identifications are never brought to full closure; identifications are inevitably failed identifications; and identifications are vehicles for one another.” 7 Reportagem publicada pela Forbes que aborda a pesquisa realizada pelo banco Credit Suisse. Disponível em: http://www.forbes.com.br/lifestyle/2015/10/estados-unidos-tem-maispobres-do-que-a-china-diz-estudo-polemico-de-banco-suico/ acesso dia 29 de jun. de 2016. 148


Assim, nota-se as consequências do neoliberalismo estadunidense, delegando ao país 10% dos cidadãos mais pobres do mundo. Além da questão da exclusão econômica, analisa-se também as questões referentes à exclusão social e à exclusão cultural. É fato que mesmo em nações desenvolvidas como os Estados Unidos as pessoas tenham mais acesso a amplas opções culturais, como museus, teatros, bibliotecas e concertos musicais. A situação na América Latina, por exemplo, ainda é restrita, mas essa é uma questão que não é fácil de ser resolvida, pois é decorrente de uma série de fatores sócio-históricos.

America: which one? A ambiguidade atribuída ao termo deve-se à apropriação cometida pelos Estados Unidos ao se autodenominarem americanos. Assim observa-se a negligência aos demais países que existem nesse continente. No parágrafo acima, bem como no restante do texto, uso o termo americano em itálico, pois sabe-se que esse não é o termo correto ao dirigirmo-nos aos Estados Unidos da América, sendo o termo correto estadunidense. Visto que americanos todos somos, brasileiros, peruanos, guatemaltecos e todos os outros países que pertencem ao continente americano. Dou ênfase ao termo americano, pois os estadunidenses se apropriaram dele, como se eles fossem os únicos americanos, como se seu território fosse correspondente à América inteira. Da mesma maneira que se referem à bandeira estadunidense, chamando-a de american flag. O que não é verdade, pois aquela bandeira corresponde à bandeira dos Estados Unidos da América, e não à bandeira da América, continente americano. Na procura de uma resposta, procuro na web o termo american flag, aparecendo única e exclusivamente a bandeira dos Estados Unidos, o que já era esperado. A fim de averiguar se o fato de um único país impor-se dessa maneira aos outros que fazem parte do mesmo continente acontece apenas na América, pesquiso também os seguintes termos: european flag, african flag, asian flag e oceanian flag. Ao pesquisar na web vejo como resultado para european flag, a bandeira da União Europeia (UE), na maioria das vezes, porém também apareciam imagens de bandeiras países que não pertencem à UE. Ainda que mais frequentemente apareça a bandeira da UE, aparecem também as bandeiras daqueles países que não compõem o bloco econômico, mesmo que em menor número. Esse resultado vem principalmente porque a Europa possui um bloco econômico que carrega seu nome e esse bloco possui uma bandeira. Da mesma maneira, pode-se observar a hegemonia da UE sobre os outros países que compõem a Europa. A hegemonia da UE é decorrente de seu poder econômico, cultural, bélico. Já ao pesquisar os termos african, asian e oceanian flag o resultado é diferente. Aparecem bandeiras da maioria dos países que compõem esses continentes, não há um país que se sobressaia ao outro nesse aspecto. Percebese, no caso da Europa e da América que as principais bandeiras a aparecer foram a da UE a dos Estados Unidos e, ambos classificam-se como as maiores potências dos respectivos continentes. Com isso, observa-se a postura dominadora dos Estados Unidos ao se autodenominarem como Americanos, como se fossem o único país do continente. O

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termo americanos faz um engrandecimento nacional dos Estados Unidos, a medida que empequenece os demais países que constituem o continente. Sobre o uso do termo América, destaca-se a obra A logo for America (1987) do artista chileno Alfredo Jaar. A obra constitui-se de mensagens nos telões luminosos da Time Square, que traziam os seguintes dizeres: This is not America, com o mapa dos Estados Unidos de fundo; This is not america’s flag, com a bandeira dos Estados Unidos de fundo; e AMERICA, em que o artista utilizou um jogo visual representando a letra R por todo o continente americano. De modo que se reflita que América é um continente inteiro, subdividido em Norte, Central e Sul; não restringindo-se a um único país apenas porque ele se destaca como a potência do continente. O próprio artista manifesta-se sobre a polêmica que sua obra gerou: Esse projeto era uma causa perdida (risos). A reação mais frustrante foi quando a NPR [National Public Radio] mandou um jornalista entrevistar pessoas enquanto elas assistissem a tela na Times Square. Algumas pessoas disseram ao vivo na rádio nacional, “Isso é ilegal. Como podem deixar ele fazer isso?” O termo América está incorporado na educação dos Estados Unidos, enquanto o 8 resto do continente é apagado. (JAAR, 2009)

A obra de Jaar exposta no espaço público chama a questão para como essa hegemonia se comporta ao impor seus costumes e ao apropriar-se de um termo que é comum a todos os americanos, não restringindo-se a apenas um país. Essa reflexão é válida pois como bem indica o artista, esse é um termo incorporado na educação dos Estados Unidos. Embora talvez não queiram parecer pretenciosos, é um equívoco o uso desse termo da maneira que o fazem.

8 Conteúdo extraído da entrevista de Alfredo Jaar aos críticos de arte Phong Bui, Dore Ashton e David Levis Strauss. Texto original em inglês: “That project was a lost cause. [Laughter.] The most frustrating reaction was when NPR sent a journalist around interviewing people while they were watching it on the screen in Times Square. Some of them said live on national radio, “This is illegal. How could they let him do this?” It is so embedded in their education that the U.S. is America, whereas the rest of the continent is erased.” Disponível em: http://brooklynrail.org/2009/04/art/alfredo-jaar 150


Alfredo Jaar – 1956 A logo for America (1987) Times Square, New York, USA

A imposição estadunidense faz com que inúmeras culturas sejam dissolvidas em detrimento da sua própria. Dentre todos os benefícios e malefícios esse se destaca pelas mudanças globais que conseguiu ocasionar. “Hoje ser latino-americano pede que reinterpretemos a persistência e as mudanças de um história conjunta em constante negação, fruto da imposição do modo de vida ‘americano’” (CANCLINI, 2008, s/d.). Globalização na América Latina e sua influência na cultura O processo de colonização portuguesa, principalmente, no Brasil explorou as riquezas naturais deste país e utilizou-se do trabalho escravo, que durou até 1888. A colonização, aliada à doutrinação católica que buscava difundir a religião entre os índios, dizimou boa parte das riquezas naturais que aqui se encontravam. Os costumes do homem branco foram impostos aos índios. O homem branco desconfigurou a paisagem natural a qual os índios estavam acostumados construindo cidades, extraindo madeira e minerais e com isso modificaram drasticamente a cultura indígena brasileira. O trabalho escravo foi a principal mão de obra utilizada, primeiramente tentaram escravizar os índios, mas não obtiveram sucesso. Na sequência os europeus viram-se obrigados a trazer africanos para ser mão-de-obra escrava. Com a alforria que ocorreu apenas em 1888, o Brasil se tornou o último país das Américas a abolir a escravatura, assim os escravos passam a ser livres. Porém com a abolição, os negros que eram escravos encontraram-se sem trabalho e sem moradia, visto que moravam na propriedade dos patrões. Nesse mesmo período aumenta a emigração italiana e alemã, que muitas vezes passam a ocupar as vagas que antes seriam destinadas aos escravos. Assim muitos negros ficam sem ter onde trabalhar e acabam à deriva da sociedade, sem trabalho, sem moradia e em uma condição marginalizada pelo sistema.

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O grande número de imigrantes europeus, principalmente na região sul e sudeste faz com que costumes italianos e alemães, principalmente, se disseminassem e continuassem até hoje principalmente na região sul do país. Essa região possui um clima mais similar à Europa, ainda em algumas cidades nota-se que o alemão e o italiano, ou os dialetos, são recorrentes; bem como as tradições culinárias. Assim diante da postura de alguns cidadãos, pode-se assimilar a ideia de não pertencimento ao imaginário latino-americano. Mesmo que tenham nascido no Brasil, há muitos que se consideram italianos ou alemães por algumas semelhanças que herdaram daqueles que emigraram da Europa há talvez mais de um século. O rechaço à latinidade é constante, ideia de permanente negação de ser latino-americano, de acordo com Aracy Amaral há latino-americanos que renegam sua latinidade, consideram-se de outro lugar, e buscam retornar prontamente a esse seu suposto lugar de origem, seja ele qual for (AMARAL, 2006, s/d.). E esse pensamento de não pertencimento à América Latina não é pertinente apenas ao sul do Brasil, mas também a outros países da América Latina. Visto que Borges já comentava que há muitos argentinos que se sentem como europeus no exílio (CANCLINI, 2008, p. 11). Nota-se o rechaço à latinidade principalmente em países que não se mostram visualmente latinos, como no caso da Argentina e do Brasil. Países esses que não preservaram as tradições indígenas, em comparação com países que resgataram e valorizam os costumes indígenas como a Bolívia e a Colômbia. Diferentemente disso, no Brasil e na Argentina se renega a origem indígena que possuímos, enquanto se exalta os traços europeus que por ventura possamos ter. A pergunta, de acordo com Canclini é: quem quer ser latino-americano? (Idem, Ibidem, p. 15). Diante do rechaço ao latino-americano que ocorre muitas vezes pelos próprios latinos, vê-se também a xenofobia presente no campo artístico. Rotular a arte latinoamericana apenas pela sua origem possui um significado, mas rotular a latinoamericanidade por características pictóricas como cores vivas, paisagens e temáticas tropicais é um método de encaixar a arte latino-americana em um subnível artístico. Ao analisar o posicionamento periférico da arte latino-americana no cenário artístico deve-se levar em consideração que ele é pautado por artistas dominantes, que são advindos do hemisfério norte-ocidental. Assim, as diferenças são imensas, a medida que artistas estrangeiros recebem incentivos culturais e reconhecimento para seguir trabalhando, na América Latina a situação é mais complicada, basta analisarmos as discrepâncias econômicas entre essas nações. Os artistas latino-americanos carecem de espaços expositivos, se comparado a quantidade dos espaços disponíveis no hemisfério norte-ocidental. Ainda, destaca-se a postura preconceituosa de muitos críticos de arte ao tratar a arte latino-americana como excêntrica, rebaixando-a quando comparada à arte dominante. [...] quando um artista brasileiro conhecido em NY mostra documentação sobre sua produção a um marchand, que reconhece o nível de qualidade de seu trabalho, mas se esquiva de estabelecer com ele um vínculo a fim de não ser identificado como interessado em arte 'latino-americana’ (I don’t want to be labeled as a Latin American art dealer), sem condições aparentes, portanto

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de observar o artista como uma individualidade, a situação parece atingir um ponto crítico de discriminação. (AMARAL, 2006, p. 37)

Assim conforme Amaral vê-se que muitas vezes um artista latino-americano é julgado não pelas qualidades estéticas e conceituais de suas obras, mas pelo preconceito presente tanto no campo artístico quanto no campo social. A xenofobia está presente e destaca-se de maneira lamentável, pois ao invés de proporcionar a integração aspirada pela globalização, ela acaba propondo a segregação. Essa relação pode ser feita com as condições do neoliberalismo. A globalização permite que o artista latinoamericano vá ao exterior, mas ao mesmo tempo ele corre um imenso risco de ser segregado/excluído pelo simples fato de ser latino-americano. Considerações Finais Neste artigo analisou-se as relações entre a arte latino-americana e a arte dominante, em especial dos Estados Unidos. Trabalhou-se a ideia de imposição estadunidense de seus costumes através do american way of life, bem como se discutiu a repercussão disso no mundo pós-moderno. As influências advindas dos Estados Unidos fizeram com que, através da globalização, muitas culturas se dissolvessem em detrimento daquela. Foi questionada a ideia de identidade e cultura nacional em meio à globalização que propõe trocas de informações e grandes migrações, com isso viu-se a cultura e a identidade como elementos em constante mutação. A discussão acerca do termo americano mostra que este termo não apenas se refere aos Estados Unidos, mas a todo o continente Americano, sendo essa apropriação uma maneira de engrandecimento nacional, a medida que empequenece os demais países que constituem a América. O que nos une como povo latino-americano em meio à efervescência pós-moderna? O mero fato que vivamos no mesmo continente? O idioma? Quais são as diferenças e semelhanças do povo latino-americano? Serão elas tão diferentes daqueles que não são latino-americanos? Visto que o processo de globalização homogeneizou inúmeros comportamentos? Tantos questionamentos pairam acerca do ser latino-americano, por isso deixa-se mais perguntas do que respostas. REFERÊNCIAS AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio - vol. 2 Artigos e ensaios (1980-2005): Circuitos de arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo contemporâneos. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. 709 p.

aos

movimentos

CANCLINI, Néstor. Latino-americanos a procura de um lugar neste século. São Paulo: Iluminuras, 2008. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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FUSS, Diana. Identification Papers. New York: Routledge, 1995 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011. http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/983/noticias/o-petroleo-virou-arte acesso em: 28 de jun. de 2016. JAAR, Alfredo. Entrevista disponível em: http://brooklynrail.org/2009/04/art/alfredojaar acesso 29 de jun. de 2016. http://www.forbes.com.br/lifestyle/2015/10/estados-unidos-tem-mais-pobres-doque-a-china-diz-estudo-polemico-de-banco-suico/ acesso em: 29 de jun. de 2016. http://brooklynrail.org/2009/04/art/alfredo-jaar acesso em 29 de jun. de 2016.

Jacks Ricardo Selistre Mestrando em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria, bolsista CAPES. Licenciado em Artes Visuais pela Universidade de Caxias do Sul (2016), com período em sanduíche na Universidad del Salvador, Argentina, e na Universidade de Vigo, Espanha. Integra o Grupo de Pesquisa de (Des)Configurações e Subjetivações em Artes (GEDESA). É membro do Conselho Fiscal Suplente do Instituto Bruno Segalla no triênio 2015/2017. Rosa Maria Blanca Doutora em Ciências Humanas (UFSC), Mestre em Artes Visuais (UFRGS). Professora da Pós-Graduação em Artes Visuais (UFSM). Coordenadora do Dossiê Artes Visuais: Diálogos com os Estudos Feministas, Trans e Queer, Revista Estudos Feministas 23(1), 2015, e Coordenadora do Grupo de Pesquisa de (Des)Configurações e Subjetivações em Artes (GEDESA). Atuou como orientadora do presente artigo.

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DA CONTINUIDADE ENTRE ARTE E VIDA. TÓPICO 1: AS ZONAS DE ADORMECIMENTO Prof. Dr. Marcelo Farias Coutinho/ PPGAV-UFPB/UFPE João Pedro Tavares da Silva/ PPGAV-UFPB/UFPE RESUMO Este artigo apresenta a primeira parte de uma série de três diálogos, que possuem como tema as relações entre Arte e Vida, a transposição das fronteiras entre obra de arte e o puro ato de viver. Se a dissolução dos limites entre Arte e Vida forma um tema recorrente e inconcluso na arte ocidental moderna e contemporânea, a busca por uma “estética da vida” transporá o campo da arte e se mostrará como tema para parte da filosofia moderna. É o caso de expansão do conceito de “habitação poética” proposto por Martin Heidegger. Nesta primeira parte de nosso diálogo, expomos o que chamamos de Zonas de Adormecimento como sendo o primeiro obstáculo a ser transposto neste movimento de expansão do artístico para além do campo da arte. PALAVRAS-CHAVE Arte-Vida; Abordagens de Complexidade; Arte Contemporânea; Filosofia da Arte ABSTRACT This article presents the first part of a series consisting of three dialogues, each that explore themes of arts, relationship and life; the transposition of borders between art and the simple act of living. If the dissolution of the borders between art and life form is a recurrent and unfinished theme in western and contemporary art, the chase of a “life aesthetic” trespasses the field of visual arts and reveals itself as an important theme to modern philosophy, just as it was proposed by Martins Heidegger’s expansion of the concept of “poetic living”. In the first part of this dialogue, I will explore the concept of the term “Zones of Numbness” as being the first obstacle to be trespassed in this movement of artistic expansion beyond the art field. KEYWORDS: Life Art; Complexity Paradigm; Contemporary Art; Art Philosophy

Introdução Essa conversa sobre o tema é o ponto de partida para outras reflexões que pretendemos estabelecer acerca de nosso campo de pesquisa. O intuito dessa investigação é discutir fronteiras entre as relações da arte e a vida. Para abrir a possibilidade da publicação de mais diálogos, intitulamos “tópico um” como uma maneira de fundar este primeiro passo durante nossas investigações. Entretanto, durante toda a caminhada, é previsível cambalear para o “lado lá” da fronteira e, logo em seguida, voltar para o “lado de cá” com a finalidade de refletir sobre este território. Portanto, nesse diálogo sobre a práxis vital artística, decidimos começar de um ponto chamado Zonas de Adormecimento, e será aqui nossa geolocalização, buscando percorrer de uma maneira não linear e, talvez cíclica, a fim de construir

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poéticas que possam elucidar cada vez mais o campo de pesquisa. Diante disso, o trabalho aqui proposto segue tal qual uma caminhada em diálogo, pontuando questões que servem como satélites para pensar o ser, a existência, a complexidade e a produção de conhecimento a partir da perspectiva poética das Artes Visuais. Vale dizer que esse trabalho segue um trajeto de raciocínio pouco usual, isto é, tratase de uma rota em mata fechada. Essa foi a maneira híbrida pela qual os dois autores adotaram para juntar estes dois universos, que aparentam ser atividades apartadas, a saber, arte e vida, buscando zonas de fusão onde ambas se diluem e se confundem. A linha de pensamento é tortuosa e densa, pois estamos percorrendo áreas de fronteira que, por natureza evocam encontros e confluências. Nosso método de trabalho foi o mais tradicional. E, paradoxalmente, o mais inusual contemporaneamente: construímos um diálogo. Neste diálogo, procuramos garantir algum nível básico daquilo que Edmund Husserl chamava de “redução eidética”. Ou seja, procuramos reconstruir uma situação inaugural de encontro com o mundo, nos livrando mesmo que temporariamente da doxa, ou seja, daquilo que o mundo já disse e se mantem inconscientemente repetindo sobre o mundo. Acreditamos - uma aposta que para nós é política - que se faz necessário evitar qualquer traço de repetição, criar diferença e delas retirar a força das perguntas inaugurais. Acreditamos que esta busca por uma folha em branco é, sempre foi e continua sendo o solo primeiro de toda investigação. A partir desse pressuposto metodológico, nada do que foi dito aqui terá uma dimensão única e restrita. O importante, neste trabalho é caminharmos juntos e, como ocorre naturalmente em um diálogo, coisas se vão e outras serão absorvidas, pois é assim que acreditamos que se dá a construção do conhecimento. Por que arte-vida? Os contextos humanos sempre construíram e continuarão a construir para si Zonas de Adormecimento. Chamamos de Zonas de Adormecimento as produções incorpóreas 9 geradas pela doxa e que tendem a realimentar e gerar dox . É verdade que a maior parte das produções simbólicas, já em sua essência, visa e deseja o adormecimento próprio da doxa. Seja como for, a natureza universalizante da doxa tende à supressão da diferença. E por sua vez, a natureza indócil da diferença será sempre a ruptura e o colapso da doxa. O que chamamos de Zonas de Adormecimento não apenas geram doxa como garantem sua sobrevida da doxa que produzem. Vale dizer, no que se refere à

9 A palavra grega Dóxa deriva do verbo Dokéo que possui duas significações básicas. Por um lado define a escolha de um partido que se julga mais adequado numa certa situação. Por outro significa conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo. Este sentido da subordinação individual à opinião do grupo é a base da assembleia dos guerreiros e que deu origem ao conceito e a montagem da pólis na Grécia. Ou seja, na base da formação da cidade grega está a construção das convenções grupais da doxa. (CHAUÍ, 2002, p.499) 156


sobrevida, que podemos pensar em sintomas de domínio presentes no biopoder que 10 ressoa por todas as relações sociais . São as Zonas de Adormecimento que geram os Estados Nacionais. São elas que escrevem as constituições que, aparentemente, ao menos para a doxa, regem estes estados nacionais. São as Zonas de Adormecimento que regem os contratos de trabalho que, por sua vez, geram a ideia de propriedade, propriedade do patrão, propriedade do empregado. São também elas que estabelecem o valor de uma obra de arte. E também são as Zonas de Adormecimento que constroem o prazer que um objeto de desejo é capaz de produzir naquele que o conquista. As Zonas de Adormecimento estabelecem o que é obra de arte e o que não é obra de arte. Serão as Zonas de Adormecimento que, por exemplo, normalizarão a anormalidade febril 11 dos infraleve de Marcel Duchamp. O que chamamos de Zonas de Adormecimento não quer refazer perguntas, tampouco refará as fundamentais: “O que é a vida?”. Nas Zonas de Adormecimento as perguntas e as respostas possuem remetente e destinatário controlados. As perguntas devem vir de certos lugares para que tenham alguma pertinência. E assim serão respondidas por aqueles que se especializaram em construir as respostas. A supressão do refazer de perguntas fundamentais é o que visa as Zonas de Adormecimento e é o trabalho em que mais se empenham. Para que se refaça certas perguntas, certas perguntas fundamentais - como por exemplo “o que é a vida?”, pergunta tão primária e inaugural, que atravessa qualquer mesquinha ideia de campo disciplinar, afinal por qual motivo o biólogo teria mais autoridade a falar do bios, o físico a falar da phisis ou o filósofo a falar do ser, já que natureza, vida e ser são o fundamento de tudo e de todos? Vejamos que seja necessário um desacordo fundamental com as respostas dadas. É importante dizer que as Zonas de Adormecimento na verdade nunca farão perguntas. Não é de sua natureza fria perguntar. Afinal, toda pergunta é uma chama ou um rasgo de luz lunar na noite. Toda pergunta é um desacordo. E assim, a natureza da pergunta desacorda algo que dorme no escuro das noites espessas.

10 Para

resumi-lo numa frase simples: o poder já não se exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa vitalidade social de cabo a rabo. Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um poder apenas repressivo, trata-se de um poder imanente, trata-se de um poder produtivo. (PELBART, 2009, p. 58). [...] O poder tomou se assalto vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde o genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação e a criatividade. Tudo isso foi violado, invadido, colonizado; quando não diretamente expropriado pelos poderes. (PELBART, 2007) 11 O conceito de “Infraleve” foi criado por Marcel Duchamp e procura definir algo volátil e imperceptível, nascido pela diafaneidade natural da banalidade do dia-a-dia, ou seja, da vida. O Infraleve, desta forma, é o prolongamento gestual e conceitual do ready-made. Duchamp organizou 46 notas sobre o seu infraleve. Uma delas define o infraleve assim: “”Pantalonas de pana -/ su ligero silbido (al andar) por / roce de las 2 piernas es uma / separacion infra leve indicada / por el sonido. (no es um sonido infra leve?) (DUCHAMP, 1989, p. 23) 157


O filósofo e antropólogo Gregory Bateson traçava uma elucidativa diferença entre o que seria rito e o que seria jogo. Dizia que os ritos possuem uma estrutura circular repetitiva, uma “roteirização”, cujo final todos que aderiram e participaram da experiência já sabiam, antecipadamente, como se daria. Já o jogo possuiria em comum com o rito o fato de ser uma narrativa que possui uma estrutura específica, cujas regras são aceitas pelos participantes. Porém, ao contrário do rito, nunca 12 ninguém sabe ao certo o final do jogo. Nos ritos cerimoniais tradicionais a liturgia se impõe como atualização de uma eterna atemporalidade, totalizante, circular e una, que se impõe sobre as temporalidades finitas, particulares e pessoais daqueles que atualizam com seus corpos a voz milenar das repetições mitológicas. As Zonas de Adormecimento abrem mão de ser um jogo e não passam de um rito fraco e degenerado. Aqueles que se engajam nos ritos fracos das Zonas de Adormecimento não atualizam a eternidade. Elas encenam o mortífero ciclo de repetições do mesmo. Se aqueles que se engajam no rito tradicional fazem perguntas, investigam e deslocam a si mesmos de si, nas Zonas de Adormecimentos não resta muito mais que um rígido e inflexível script. Edmund Husserl chamou este regressar às bases primeiras do encontro interrogativo com o mundo de “redução eidética”. Falou de suspensão do “senso comum”, de “parentização” daquilo que o mundo diz sobre si mesmo. Para além da criação do conceito de “intencionalidade”, este desejo de retorno, esta busca por uma página em branco, por uma perene inauguração adâmica do mundo é o que manteria para nós 13 em circulação até hoje a força, o Kairós, próprio da fenomenologia . Apenas assim, e tão somente assim, se operaria um furo naquilo que, de tão bem assentado, nada mais é capaz de dizer além de repetir. Na Grécia são dois os deuses do tempo. Se khronos constrói um tempo linear, kairós, igualmente deus do tempo, é fenda, é fratura na temporalidade que desliza para frente, tal qual trem e trilho, em sequência e em destino. Kairós é um tempo qualitativo, tempo de surpresa, tempo de supressão da repetição. Tempo que evoca o clima, as estações e o plantio. Tempo para o imponderável, próprio à natureza, tempo de Deus: kairós refere-se também, paradoxalmente, por ser instante, à eternidade.

12 BATESON,

1972, p.129 “Intencionalidade” é um conceito chave para a fenomenologia. Foi Franz Brentano quem primeiro sugeriu que a natureza dos estados mentais são os “conteúdos” ou “objetos” que as impelem. Diz André de Muralt: “Após a psicologia descritiva de Brentano, as críticas dirigidas por Sartre ao conhecimento-assimilação, poderíamos definir a intencionalidade como a tendência constitutiva da consciência para o objeto.” (MURALT, 1998, p.13). Robert Sokolowsky descreve a intencionalidade como a idéia de que “(...) cada ato de consciência que nós realizamos, cada experiência que nós temos é essencialmente ‘consciência de’ ou uma ‘experiência de’ algo ou de outrem.” (SOKOLOWSKI, 2004, p.17). 158 13


O deus Kairós grego é importante para Heidegger por expressar no interior da ideia de ser, não um atributo, porém, uma ação. Daí deriva essa belíssima ideia de que a essência do ser está em kairós: o momento em que o ser decide. O gesto da decisão define, para Heidegger, ontologicamente o ser. Portanto, a partir daí, a ideia de “essência” precisaria ser repensada, já que o gesto, a própria ação seria o ser em sua plenitude. Neste sentido, como arte e vida se articulariam? A meu ver a parte da pergunta mais importante e fértil seria aquela que se refere objetivamente ao menor núcleo do ser: a vida assim como me atravessa. Seria este “para mim”. Mais importante do que um conceito para “arte” ou para “vida”, o mais importante parece ser este “para mim”. Pois será neste “para mim”, nesta instância, ínfima e insignificante, onde muito concretamente a história do homem, como nomeação e inauguração adâmica, pode vir a se constituir. O tempo desse “para mim” parece ser o tempo do kairós, temporalidade singular, irruptiva e qualitativa, capaz de quebrar khronos, em sua indiferença repetitiva, previsível, maquínica. De Kairós e Poiesis como Habitação Não somos nós que vivemos. É a vida que em nós vive, para nosso intransponível espanto. Somos certamente habitáculo para a vida. E, ao mesmo tempo, somos passagem para as vontades e vigores da vida. Mas, ao mesmo tempo, somos uma dobra da vida: somos a vida que observa a si mesma. Somos o ser que se debruça sobre o ser e assim, percebe-se. Somos o tempo que, através de nós, observa-se, atônito. Por isso Kairós surge como a desmedida mais adequada para pensar este instante em que a vida se percebe vivente, em que o ser percebe-se sendo. O modo como a vida vive em nós e para nós pode ser percebido, portanto, não como tempo cronológico, porém como tempo kairológico: como corte e suspensão, como irrupção e arritimia. 14

“Poeticamente o homem habita essa terra”, diz Hölderlin em seu poema célebre . Heidegger irá usar este verso para pensar, a partir dele, a essência do humano. Este

14 O poema de Friedrich Hölderlin chama-se “No Ameno Azul”: “No ameno azul floresce, com o seu telhado de metal, o campanário. À sua volta paira a gritaria das andorinhas, rodeia-o o azul mais comovente. O sol ergue-se, alto, sobre ele, e dá cor à chapa metálica, mas é no seu cimo que, ao vento, suavemente, canta o catavento. Quando alguém então desce para o patamar do sino, por aqueles degraus, há uma vida silenciosa, pois quando a sua figura está assim tão isolada, sobressai a plasticidade do homem. As janelas em que os sinos tocam são como arcos de beleza. Pois os arcos ainda imitam a Natureza, são semelhantes às árvores da floresta. E o que é puro também é belo. No interior, da diversidade surge um espírito sério. E as imagens são tão simples, tão santas, que muitas vezes verdadeiramente se teme descrevê-las. Porém os Celestiais, que são sempre bondosos, uma vez que tudo têm, como os ricos, possuem a virtude e a alegria. O homem pode imitá-los. Mas poderá o homem, quando toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer 159


“poético” evocado por Hölderlin, por um lado, recupera o solo etimológico que está na palavra grega poiesis. Ou seja, trata-se de recuperar para a palavra “poético” seu halo ação, ação e fazer, de práxis e produção. Por outro lado, este mesmo halo dota a palavra “poético” de uma qualidade especial no uso da palavra e no do ato de dizer. O uso poético da palavra vai para muito além da atividade profissional do poeta ou do lugar social da poesia. Dizer que “poeticamente o homem habita” é dizer que a essência humana é dotar de sentido a vida. Não se trata aqui, portanto, de reduzir o poético ao poeta. Tampouco reduzir o poético a poesia. O poético não cabe no campo literário. Assim com o habitar não se reduz à arquitetura que abriga o homem. Habitar poeticamente é ir para além da habitação. Habitar poeticamente é, antes, produzir um sentido para a existência. Poderíamos dizer de outra forma e falar de uma qualidade da presença. Construir a qualidade da presença seria, a nosso ver, o mesmo que falar sobre o “habitar poeticamente”. Hoderlin-Heidegger parecem indicar essa qualidade do estar como sendo a essência do humano. O ser seria portanto uma poiesis, uma produção. O ser seria a produção dessa qualidade do estar. Diz Heidegger: “A poesia ou bem é negada como coisa do passado, como suspiro nostálgico, como vôo ao irreal e fuga para o idílico, ou então é considerada como 15 parte da literatura.” Sendo assim, a arte e vida já há muito tempo não eram encaradas como possuindo entre si uma fronteira. Habitar poeticamente: uma autopoiese A produção de poesia é sempre uma resposta da experiência. O ser está constantemente interagindo com o meio, estabelecendo relações e sendo por ele afetado. É a partir desse contato com o mundo que o ser se revela, se manifesta, age, intervém, enfim, habitualmente habita. Este “habitar” não é estático, pois requer

o olhar e dizer: assim quero eu ser também? Sim. Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isto creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. E no entanto a sombra da noite e as estrelas não são, se é que posso dizê-lo, mais puras do que o homem, como imagem que é da divindade. Haverá na Terra uma medida? Não, não há. É que os mundos do Criador jamais inibem o curso do trovão. Também uma flor é bela porque floresce sobre o sol. O olhar encontra muitas vezes ao longo da vida seres que seriam mais belos de nomear que as flores. Oh, como o sei bem! Pois agradará a Deus que a figura e o coração sangrem e que se deixe completamente de existir? Mas a alma, tal como penso, deve permanecer pura, pois assim chega ao que é poderoso sobre as asas de águias como um cântico de louvor e com a voz de muitas aves.” (In Hinos Tardios, Assírio &Alvim, Lisboa, 2000. Tradução: Maria Teresa Dias Furtado) 15 HEIDEGGER, 2002, p.165 160


reinvenção constante no escoamento do tempo e, a partir dessa, outras manifestações. Assim sendo, podemos visualizar que a qualidade da presença do ser é mantida por certo dinamismo, em interação com o meio ao longo do tempo; ou seja, 16 trata-se de se recriar a cada momento em que se encontra com o que está fora . Isto posto, temos então a possibilidade de pensar também numa qualidade da ação. A ação é manifestação do ser. É onde o ser se revela. Ou seja, é através do ato que o manifestante se manifesta. Vale dizer que procuramos distinguir Ser e Manifestação, mesmo que um seja proveniente do outro. A ação seria, portanto a projeção do ser/estar que, ao mesmo tempo, o declara. Dessa maneira, para pensar no habitar, temos que pensar na potência do gesto. Pois, assim como o uso poético da palavra, o uso poético da ação também está além da atividade profissional do poeta. Caso aceite o desafio desta condição, é necessário escolher a ação mais poética a todo o momento. A maneira pela qual o ser age ou a maneira pela qual o ser se manifesta, também são passíveis de qualidade. A escolha da decisão está inserida em Kairós. Tal ação careceria de um “saber já sentido”, pois diante do fenômeno, o indivíduo é colocado diante de um repertório de experiências já vividas, sentidas e, portanto, já compreendidas. E, neste momento que é determinada qual delas será manifestada. Esse é o momento da decisão. Desse modo, para que a manifestação se poetize, o ser-que-decide deve antes possuir um conhecer, uma espécie de um “saber de relação”, um “saber de interação”, um tipo de saber já vivido ou provado que somente a experiência determina. Para Maturana e Varela, “todo conhecer é um fazer daquele que conhece, ou seja, que 17 todo conhecer depende da estrutura daquele que conhece” . Logo, a partir desse axioma, podemos perceber que a natureza autopoiética desse habitar é como uma poesia que se “repoetiza” no ser e através do ser, para que, em seguida, seja manifestada novamente conforme se habita. Vale dizer que a experiência não se enclausura apenas num saber da mente, mas em um conhecer do corpo. Um território do “déja vu”, sensório e emocional, onde o ser age de acordo com aquilo que se evoca e, é por meio desse “conhecer anterior”, que o ser toma a decisão e manifesta-se. Assim, é possivel pensar que habitar é viver conscientemente em kairós. Procedimentos operacionais das Zonas de Adormecimento É importante que iniciemos por um simples questionamento: Como operam as Zonas de Adormecimento?

16 O que está fora e o que é que, de fora, encontra-se também incluído dentro? [...] O encontrar-se é pois ao mesmo tempo localização e acontecimento, o acontecer de uma inocência absoluta, de uma afirmação antiga do ser como um “assentimento vital” sem faltas, antes de qualquer falta, qualquer culpabilidade, qualquer ressentimento e qualquer reatividade. Sim, eu me encontro, sim, onde e como eu me encontro. É também, devo dizê-lo, o sentimento próprio do experimento (DERRIDA, 2005, p. 63-64). 17 MATURANA; VARELA, 2001 161


Bom, as Zonas de Adormecimento acontecem e se fazem presentes nas ações da doxa. Mas, para podermos ampliar mais um pouco, podemos nos questionar mais especificamente: O que caracteriza as ações da doxa? A doxa são códigos e convenções, um saber-comum entre os seres, que age por meio de acordos sociais, explícitos e implícitos. Muitos destes acordos são regidos por leis jurídicas e outros por negociações sutis não declaradas oficialmente. São normas, axiomas, crenças e métodos reproduzidos constantemente. Formal ou informalmente. Uma espécie de tradição física e simbólica, material e imaterial, que opera na relação entre os seres. A doxa é “modo de reprodução” em uma sociedade, pelo qual é desenvolvido, de maneira funcional, apartir de um saber previamente estabelecido. Tal “saber” opera como informação constantemente compartilhada entre os pares. Atualmente, a doxa atua de maneira mecanicista, cumprindo e difundindo, disciplinarmente, os métodos e conhecimentos ao longo do tempo, fortelecendo os ritos, e naturalmente, as estruturas de poder presentes neles. Portanto, as ações da doxa regidas pelas Zonas de Adormecimento manifestam o que “foi dito”, o que “é dito” e o que “devemos dizer” em tom e ritmo autoritário. A ação, consequentemente, torna-se um “fazer insípido”. Esse tipo de fazer são ruídos que causam diversos sintomas em sua hodierna reprodução. Que, ao passar dos anos, a ação da doxa, sustentada pelsa Zonas de Adormecimento, produz, durante sua atuação, o surgimento dissidências que operam dentro de seu próprio sistema. É evidente que sua ação precisa ser repensada e reinventada, caso contrário, os “modos de reprodução” desenvolverão, por efeitos de causa e consequência, enfermidades sociais no lugar onde deveria se localizar a regeneração, o desenvolvimento e o cultivo. Considerações Diante desse primeiro tópico, dois pontos importantes aguçam nosso diálogo.Primeiro, apontamos para o conceito de Zonas de Adormecimento numa tentativa de dar corpo a um elemento fugídio que opera substancialmente na doxa. E em seguida, seguimos para a percepção da habitação em Khronos e Kairós. Acreditamos que tais tópicos são influenciados pela busca de investigar as experiências sentidas e presentes no saber do corpo e que servem como base para refletirmos a práxis vital. O intuito é ampliar cada vez mais os alicerces levantados em cada tema e, por meio de uma construção colaborativa, abordar questões pertinentes às bases poéticas da existência humana. Dessa maneira, é possível criar relações com outros campos do conhecimento que dialogam com o universo das Artes Visuais, sobretudo com aqueles que fazem parte dos paradigmas da complexidade. Por fim, seguiremos em comum acordo, sob os moldes da redução eidética, nos propondo a refazer questões de base e, portanto, nos inclinando a criar tessituras poéticas para nossa área de pesquisa.

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Referências BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind: Collected essays in anthropology, psychiatry, evolution and epistemology. University of Chicago Press,. 1972. p. 129. CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio. Tradução Eliane Lisboa. Ed. Sulina. Porto Alegre, 2005. DUCHAMP, Marcel. Notas. Coleccion Metropolis. Madrid: Edictorial Tecnos S.A. 1989. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.

HÖLDERLIN, Friedrich. Hinos Tardios. Tradução: Maria Teresa Dias Furtado. Ed. Assírio & Alvim. Lisboa, 2000. MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução Humberto Mariottti e Lia Diskin. Ed. Palas Athema. São Paulo, 2001 MURALT, André de. A Metafísica do Fenômeno. São Paulo: Editora 34, 1998. PELBART, Peter Pál. Biopolítica. In: Sala Preta, Brasil, v. 7, p. 57-66, nov. 2007. ISSN 2238-3867. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57320/60302>. Acesso em: 21 Mai. 2015. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v7i0p57-66. ____. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, p.1-5, 2007. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl>. SOKOLOWSKI, Robert. Introdução a Fenomenologia. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.

Prof. Dr. Marcelo Farias Coutinho Marcelo Coutinho é artista e professor do Depto de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE. É mestre em Comunicação pela UFPE e Doutor em Poéticas Visuais pela UFRGS. João Pedro Tavares da Silva Graduado no curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestrando no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal da Paraíba. Atualmente pesquisa sobre o conceito de autopoiesis nos processos de criação. Email: jptavars@gmail.com.

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AFETOS E REENCONTROS: A FOTOGRAFIA TRANSFORMADORA DE ALEXANDRE SEQUEIRA Kyrti Ford/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Alexandre Sequeira é um fotógrafo e professor paraense cuja maior maestria reside na tecelagem do mundo imagético com o da narrativa oral. Este artigo é uma resposta a um sedutor convite de ir além da técnica fotográfica e ir mergulhar nas complexas possibilidades permitidas, geradas e suscitadas pelo ato de fotografar. O processo criativo de Sequeira é percorrido em duas instâncias: no seu projeto talvez mais emblemático Nazaré do Mocajuba (2005) e em Meu Mundo Teu (2007) em argumentação com questões relativas à fotografia relacional e alteridade com destaque para o primeiro. PALAVRAS-CHAVE Fotografia relacional; arte contemporânea; criação; fotógrafo; alteridade ABSTRACT Alexander Sequeira is a photographer and teacher from Pará (Brazil) whose greater mastery lies in weaving the imagistic world with the oral narrative. This article is a response to a seductive invitation to go beyond the photographic technique and dive into the complex possibilities offered, generated and raised by the act of shooting. Sequeira’s creative process is traversed in two instances: in your perhaps most emblematic project Nazaré do Mocajuba (2004) and Meu Mundo Teu (2007) and its arguing converses with issues related to photo photography and otherness where de first is highlighted. KEYWORDS Relational Photography; contemporary art; creation; photographer; otherness

“ [...] a arte sempre foi relacional em diferentes graus, ou seja, fator de socialidade e fundadora de diálogo.” (BOURRIAUD, 2009, p. 21). Viajante e contador de histórias “Você trouxe lenço de papel?”, perguntou-me uma moça simpática que estava recebendo os inscritos na oficina Criação em Arte Contemporânea e Fotografia ministrada pelo fotógrafo paraense Alexandre Sequeira. A oficina fazia parte da primeira edição do Pequeno Encontro da Fotografia que tomou as ruas de Olinda entre os dias 18 e 22 de setembro de 2012. A inusitada pergunta veio seguida de uma breve explicação acompanhada de um sorriso. “É que todo mundo chora quando o Alexandre conta suas histórias.” Até o Pequeno Encontro da Fotografia eu nunca havia ouvido falar de Alexandre Sequeira. Entre as três oficinas gratuitas que estavam sendo oferecidas escolhi a dele

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porque possuía o conteúdo que mais me interessava. Todas as oficinas estavam sendo oferecidas à tarde das 14h00 às 17h00 durante os dias 18 e 20 de setembro. Eu penso que devo ter balbuciado algo como “É mesmo?” como uma possível reação a possibilidade de uma oficina de fotografia capaz de colocar lágrimas nos olhos de seus participantes. Em verdade, dei pouca importância ao fato. Havia chegado cedo e aproveitei para explorar um pouco o Museu do Mamulengo, um belo sobrado próximo ao Mercado da Ribeira e que eu nunca havia visitado antes. Era ali, em uma de suas salas, que Alexandre Sequeira ministraria a oficina. Os outros participantes da oficina chegaram e então devidamente acomodados no pequeno auditório aguardamos que o palestrante finalmente desse início ao encontro. Alexandre chegou quieto e até um pouco introspectivo. Traçou em palavras rápidas como se desenrolaria nessas três tardes a oficina e em seguida pediu que nos apresentássemos. Demorou um pouco a rodada de apresentações cobertas de expectativas e relatos sobre a fotografia já que éramos vinte participantes. Sequeira prestou atenção a cada pequena confissão de amor e desencanto com a atividade de tirar fotos. Nessa altura eu já havia esquecido completamente a curiosa observação da atendente. Nada ali parecia indicar que emergiria qualquer relato emocional o suficiente para gerar lágrimas. Alexandre Romariz Sequeira (Imagem 1) nasceu em Belém do Pará em 1961. É formado em Arquitetura pela UFPA e Mestre em Arte e Tecnologia pela UFMG. É professor do Instituto de Ciências da Arte da UFPA e artista com várias participações em exposições no Brasil e no exterior. Suas obras podem ser encontradas em acervos de vários museus como o Museu de Arte do Rio (MAR), Museu de Arte de São Paulo (MASP) e Espaço Cultural Casa das 11 Janelas na cidade de Belém. Sequeira também conta em seu currículo com várias participações em encontros e seminários além de ministrar várias palestras e oficinas. Mas não é como professor e artista que o próprio se vê e sim como um explorador itinerante. “Eu sou um andarilho, assim, meio solitário. Eu costumo ter ao meu lado sempre a minha máquina fotográfica”, se apresenta numa palestra que ofereceu via 18 TedxAmazônia em novembro de 2010. Sequeira é um inquieto andarilho e um apaixonado contador de histórias. Antes de começar a relatar suas próprias experiências com a fotografia Sequeira deu início a sua oficina no Pequeno Encontro da Fotografia falando sobre memória, emoção e percepção observando que a escola quando abre espaço para a fotografia na maioria das vezes a entende como uma técnica e não uma linguagem. “Nosso vínculo com a arte é a evidência que optamos pelo sonho”, afirma. É por escolhermos essa opção que somos manipulados e ao mesmo tempo convidados a perceber as dobras. A fotografia contemporânea se constrói no limite da dúvida. É nesse limiar dúbio entre o real e o sonho que Alexandre caminha. Na oficina ele apresenta um número significativo de fotógrafos asiáticos que ajudam a configurar o universo em que o próprio Sequeira reside. Como Chen Wei (Pequin), Darren Soh (Cingapura),

TED (Technology, Entertainment, Design) em português: Tecnologia, Entretenimento, Design é uma série de conferências realizadas na Europa, na Ásia e nas Américas pela fundação Sapling (EUA) sem fins lucrativos e destinadas à disseminação de "ideias que merecem ser disseminadas"( Em inglês, ideas worth spreading). Fonte consultada: http://www.ted.com/about/our-organization/how-ted-works acesso em: 05 jun. 2016. 165 18


Jeon Lok Lee (sul coreano de Gwanju), Koo Sung-Soo (sul coreano de Daegu), Lin Zin Peng (natural da província de Guangdong na China) entre muitos outros. Fotógrafos que em sua maioria trafegam entre o sonho, o mágico e o real. Alexandre foi buscar muito longe seus companheiros de caminhada. É um caminhante entre os mundos físico e imagético.

Imagem 1: Alexandre Sequeira durante o Pequeno Encontro da Fotografia em Olinda/PE (set. 2012). Fonte: a autora.

Lençóis, toalhas e mosquiteiros Depois de dar o braço a teóricos e estudiosos da imagem, tanto brasileiros como estrangeiros, construindo um diálogo mais rico em sua oficina Alexandre finalmente aporta em suas próprias experiências com a fotografia. O encontro já se dirigia para seu término quando finalmente somos convidados para participar das viagens do andarilho. Com uma voz suave e mansa, que lhe é característica, e mais à vontade com sua plateia pernambucana Sequeira começa a relatar uma de suas mais ricas e frutíferas experiências que foi intermediada pela fotografia. Nazaré do Mocajuba é uma pequena vila no nordeste do Pará localizada a cerca de três horas de carro de Belém. Sequeira chegou inicialmente no local em 1990 a principio atraído pela geografia do local. O modesto lugarejo de ruas de terra fica situado a beira do rio Mocajuba e seus habitantes vivem do que pescam e plantam. Lentamente ao longo de visitas que cobriram alguns anos, Alexandre começa a ser acolhido e reconhecido pelos moradores. Uma teia afetiva vai sendo construída o que ele mesmo considera a base do que faz.

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Em 2004 é contemplado com a bolsa de pesquisa em Criação e Experimentação 19 artística do IAP . O tempo de contato com o lugar e o convívio próximo com seus moradores fizeram Sequeira eleger Nazaré do Mocajuba como objeto de estudo para sua pesquisa. Em fevereiro do mesmo ano, Sequeira retorna à vila para retomar o contato e reviver o percurso. Nesse reencontro com o local que tanto o encantou e com as pessoas que por muitas vezes o emocionaram Sequeira deixa-se levar organicamente em sua investigação interativa. Mocajuba havia se tornado parte do homem e o homem havia se tornado parte de Mocajuba. O interesse inicial que residia na observação de cenas e costumes foi comutado e contaminado pela convivência. Sequeira relata que nunca sabe quando seu trabalho vai começar ou como ele se configura. A ideia inicial surgiu por um pedido singelo e inesperado vindo de uma das moradoras idosas do lugar. Sabendo que ele era fotógrafa lhe pede que produza uma fotografia para um documento. Ao retornar o serviço pronto subitamente se vê coberto por uma avalanche de solicitações. Alguém lhe pede uma foto de uma tia velha que estava para morrer e para guardar como memória, outro uma foto em frente a sua cãs, outro uma foto em grupo com os amigos. Sem cobrar pelos serviços Sequeira assume a função de retratista da comunidade favorecendo um contato cada vez mais íntimo com as pessoas. [...] os fotógrafos contemporâneos agregam a esse estilo expressivo [diário da intimidade humana], como sua construção de sequências dinâmicas e seu foco em momentos inesperados da vida cotidiana, eventos que são claramente diferentes daqueles que o leigo seria capaz de capturar normalmente. (COTTON, 2010, p.9)

Imagens de família desgastadas pelo tempo que segundo Alexandre os moradores levavam até ele entristecidos por estarem se perdendo ajudaram a expandir seus serviços no local. Ele começou a trabalhar na recuperação das fotos para “devolver essa memória que estava sendo perdida”. (SEQUEIRA, 2010). Finalmente ele começa a entrar nas casas e a deparar com os objetos pessoais de seus residentes, itens que traduziam um pouco da personalidade do seu dono. Singelos tecidos serviam de portas improvisadas nas modestas casas. A silueta furtiva de alguém que passava por essas cortinas flutuantes encantou e despertou algo em Sequeira que começou a propor trocas, uma cortina usada por uma nova, por exemplo. Mesmo achando estranho tal pedido os moradores embarcaram nessa permuta. As fotos que havia reunido passaram por um processo de solarização e foram impressas nos itens coletados. Lençóis, redes, mosquiteiros (Imagem 2) serviram de suporte e Índice ao mesmo tempo.

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IAP – Instituto de Arte do Pará localizado na cidade de Belém.

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Imagem 2: Adriane, 2005. Da série Nazaré do Mocajuba. Fotografia Digital. c-print (impressão em papel fotográfico) 0,60 x 0,45 m | Tiragem: 10 Exemplares. Fonte: www.alexandresequeira.com

Alexandre usava o próprio corpo como instrumento de medição. Seu Suzano, um dos moradores, tinha uma altura que alcançava até seu ombro por exemplo. As medidas eram anotadas e a pessoa era reproduzida sobre seu objeto pessoal em tamanho real. “A dona Benedita quando se deparou ela ficou em silêncio, se olhando ‘Nossa, eu nunca imaginei que eu era tão parecida com minha cortina!’ [...] e eu achei de uma sabedoria incrível. Ela foi direto no ponto.” (SEQUEIRA, 2010). Ali estava mulher e sua representação e a consequente relação para com a mesma. “[...] a fotografia confronta o modelo com a precariedade da identidade humana em sua individualidade biológica, psicológica e social, situando-a na esfera do reflexo.” (FABRIS, 2004, p.51). A primeira exposição do resultado foi na própria vila, antes de uma exposição em lugar formal em Belém. Uma pequena celebração surgiu em meio a risos e choros, as reações dos contatos que os fotografados tinham com os tecidos. Depois do pequeno evento os itens foram retornados aos moradores que os deixaram disponíveis em suas casas para aqueles por estarem afastados pescando ou na roça não puderam comparecer. “[..] era lindo porque uma toalha de mesa não era mais uma toalha de mesa, o lençol não era mais um lençol. Havia acontecido alguma operação mágica ali que lançava aquele objeto para outra dimensão.” (SEQUEIRA, 2010). Peças únicas os tecidos nunca foram vendidos. Eles circulam e muito. O que são comercializadas são as fotos tiradas dos tecidos nas residências. Parte do arrecadado vai para a execução da foto e parte vai para a vila que tem a liberdade de decidir qual sua a melhor aplicação. A experiência em Mocajuba e seus frutos, a pesquisa acadêmica e os tecidos impressos que circulam o mundo fazem parte da vida de Alexandre Sequeira até 2016

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e provavelmente para sempre. A instalação/projeção Vida Estampada fez-se presente 20 no último dia 25 de junho no Festival Amazônia Mapping que em sua segunda edição é acolhido pelo Museu do Estado do Pará (MEP) em Belém. Sequeira vive a e através da fotografia. Os caminhos nunca são seguidos em linhas retas, mas através de uma intricada rede poética. Explorar a intricada rede de ramificações e conexões que sustenta e oferece coerência para uma imagem – seja ela fotográfica ou não --, demanda, quase sempre, um mergulho em relações muitas vezes não aparentes, dúbias e complexas. (SEQUEIRA in: DOBAL; GONÇALVES, 2013, p.124)

Alexandre conviveu (e convive) com os indivíduos que marcam a geografia que inicialmente o seduziu com paixão, paciência, admiração e respeito. “O vínculo com o outro só se dá como responsabilidade” (BOURRIAUD, 2009, p. 32). Em sua palestra de onze minutos para o TEDxAmazônia em novembro de 2010 Alexandre repete em singela frequência a palavra encantamento. É a emoção de um pertencimento prazerosamente abraçado que marca seu trabalho com e sobre Nazaré do Mocajuba. Na imagem fotográfica, encontram-se, indissociavelmente incorporados, componentes de ordem material, que são os recursos técnicos, ópticos, químicos ou eletrônicos, indispensáveis para a materialização da fotografia e, os de ordem imaterial que são os mentais e os culturais. Estes últimos se sobrepõem hierarquicamente aos primeiros e, com eles, se articulam na mente e nas ações do fotógrafo ao longo de um complexo processo de criação. (KOSSOY, 2009, p.27).

Nazaré do Mocajuba em tecido (Imagem 3) e imagem surgiu de uma sombra por trás de uma cortina. Não houve um planejamento. “O acaso - um ingrediente chave na 21 criação da maioria dos trabalhos - ainda desempenha seu papel.” (SHORE, 2014, p.105). O mesmo ocorreu em outro trabalho seu conhecido como Meu Mundo Teu de 2007. O intercâmbio de dois mundos nas mãos de dois adolescentes Tayana Wanzeler, moradora do bairro do Guamá na cidade de Belém e Jefferson Oliveira, morador da ilha do Combú na região amazônica através da fotografia. A série composta de 15 trabalhos traduz os encontros travados pelos dois adolescentes ao longo de 2007. Diferenças e semelhanças foram exploradas através de registros fotográficos com o uso de câmeras convencionais com dupla exposição de filmes. Sequeira trás o que está para uma outra luz. “O principal projeto da fotografia dos artistas não é reproduzir o visível, mas tornar visível alguma coisa do mundo, alguma coisa que não é, necessariamente, da ordem do visível.” (ROUILÉ, 2009, p.287). Emoção e aproximação A narrativa de Alexandre Sequeira sobre Nazaré do Mocajuba no Pequeno Encontro da Fotografia em 2012 (ele também mencionou o trbalho Meu Mundo Teu) pegou-me surpreendida pelas furtivas lágrimas que rapidamente sequei na escuridão do auditório no Museu do Mamulengo. Sim, eu deveria ter levado lençóis de papel. É

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Mais informações em: www.amzoniamapping.com Tradução nossa. Original em inglês.

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impossível não se emocionar e se envolver com a história. A narrativa deu outra dimensão ao trabalho. O próprio Alexandre admite ao final palestra do TEDxAmazônia que não vê outra maneira de apresentar Nazaré do Mocajuba senão contando uma história. É uma prática fotográfica que circula de maneira rizomática indo de um vilarejo a 500 km de Belém até um auditório em Olinda assim perpassando múltiplas vidas e múltiplas experiências e culturas. A essência da prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos; cada obra de arte particular seria a proposta de habitar mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. BOURRIAUD (2009, p. 30-31).

A emoção compartilhada em Olinda segue distribuindo-se até mesmo pelo meio digital. Basta apenas ler os comentários deixados pelos internautas que assistiram o vídeo da palestra do TEDxAmazônia disponibilizado pelo Youtube. Alexandre Sequeira é um apaixonado contador de histórias.

Imagem 3: Alexandre Sequeira e os tecidos impressos do seu trabalho Nazaré do Mocajuba (2005). Fonte: Balneário Camboriú Foto festival 2016. Disponível em: http://bcfotofestival.com.br/fotografo-alexandre-sequeira/ Acesso em: 18 jun. 2016.

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Kyrti Ford Graduação em Comunicação Visual pela UFPE, Extensão em Fotografia em Preto e Branco pela Universidade de York/Galeria 44 (Toronto, Canadá), Especialização em

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Arte/Educação pela UNICAP, Especialização em Mediação Cultural pela UFPE, Especialização em Estudos Cinematográficos pela UNICAP, Mestrado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação da UFPE/UFPB.

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REFLEXÕES SOBRE A INSTALAÇÃO “MENINO”: DA INFÂNCIA AO RECIFE Leandro Machnicki Altaniel/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Este artigo pretende discutir a proposição da instalação “Menino”, com reflexões relacionadas à escolha da cor azul para o masculino como um reforço psicológico ligado ao gênero durante o período da infância. Relacionando-se com a produção de uma obra de arte, este estudo trata das subjetividades que motivaram a construção desta instalação e também dos trânsitos percorridos até a sua materialização. Em relação à obra, será discutida a escolha dos objetos utilizados para sua criação e a maneira como o deslocamento desses objetos de sua funcionalidade original pode produzir questionamentos e novas reflexões. Por fim, este estudo aborda a própria definição contemporânea do azul como uma cor destinada ao menino e do rosa, à menina, dentro de suas contextualizações históricas e sociais. PALAVRAS-CHAVE Instalação; trânsitos; infância; cores; gênero ABSTRACT This article intends to discuss the proposition for the art installation “Menino”, with reflections related to the choice of the blue color for boys as a psychological reinforcement connected to a gender definition during their childhood. As this study relates to the production of a work of art, the subjectivities that made part of the path until its realization will be in focus. About the art installation itself, some topics are part of the discussion such as, the choice of objects to be part of this installation and the way the displacement of such objects from their original use can create questions and new reflections. At last, the present study addresses the contemporary definition of blue as a boy's color and pink as a girls's color inside their historical and social contexts. KEYWORDS Installation art; transit; childhood; colors; gender

Trânsitos entre o agora e a infância Essa reflexão que se tornou instalação iniciou há algum tempo, quando comecei a pensar o porquê das cores azul e rosa, especificamente, serem tão decisivas para os pais em relação ao gênero do bebê. A partir destes pensamentos comecei uma viagem de volta ao passado, para a minha infância, para lembrar como eram as coisas, que memórias eu tinha em relação às cores e o que era sugerido ou imposto. É evidente que a memória é algo fascinante e que sempre pode ser uma ferramenta para o artista falar de suas questões, mas, também é importante dizer que ela é fonte de novas leituras e não exatamente um registro daquilo que aconteceu. Salles

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comenta sobre esse uso da memória no fazer artístico: "Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje as experiências do passado. Memória é ação. A imaginação não opera no vazio, mas com a sustentação da memória" (SALLES, 2011, p. 105). Ela diz ainda que não há como estabelecer uma relação entre o que foi vivido e o que é lembrado, pois, a imaginação altera ou corrige aquilo que foi de fato vivido. Portanto, essa construção que faço sobre a infância deve ser vista a partir deste ponto de vista. Em Recife, no momento, o meu fazer poético ganha materialidade. Há uma intensidade nas vivências e nos encontros que me impulsionam ao fazer, ao expressar, e é justamente por conta disso que esta instalação se tornou possível. Há uma persistência (minha) no fazer que antes estava adormecida. Como designer sempre estive trabalhando e, por conta disso, continuei desenvolvendo olhares para o estético, enquanto o meu fazer artístico estava dormente por algum tempo, até a vibração que surge neste período. Na arte como no design, cores podem ter significados bastante diversos e com grandes possibilidades, uma vez que nestes universos é facilmente perceptível que as cores tem influência nos objetos, mas que também é possível propor novas leituras ou desconstruir estas relações quanto às cores. É evidente também, que as cores são objeto de estudo das mais diversas áreas e, portanto, para este artigo eu resolvi olhar para as cores a partir do universo psicológico, das cores enquanto produtoras de sentido em relação ao social e, obviamente, às questões de gênero. Eu nasci e estive até o fim da graduação na região de Curitiba. Minha infância foi muito rica de experiências. Mudei de cidade algumas vezes depois de formado, por razões variadas, mas uma questão sempre se manteve: a busca por novas experiências, por novas sensações. Meus trânsitos foram enormes, como um nômade, que me levaram a conhecer as culturas mais diversas dentro do Brasil e fora. Essa troca, muito rica, me fez crescer enquanto sujeito e ao mesmo tempo me fez pensar sobre coisas que mudam tanto de um lugar para outro, como exemplo, a comida. Já outras permanecem intactas, como é o caso da reflexão que faço nesta obra com estas duas cores. Despertar da obra A partir destas vivências nômades, de aprendizados em trânsito por tantos lugares e impulsionado pela possibilidade de propor uma obra que dialogasse com estas referências, especialmente um retorno ao lugar da infância, criei uma proposição para Tramações, exposição que aconteceu na Galeria Capibaribe, entre 25 de maio e 22 de junho de 2016, em Recife, Pernambuco. A temática da exposição era questões de gênero e sexualidades, trazendo para a discussão as individualidades de cada artista. Como artista e designer, a primeira coisa que quis selecionar para trabalhar como tema era a questão dos estereótipos ligados às cores.

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Exposição Tramações, 2016. Material de Divulgação.

A obra se configurou como instalação, nomeada “Menino”, que se propõe a refletir sobre essa ideia de que as cores tem uma utilidade ou um significado específico, como nas roupas e nos acessórios que as pessoas escolhem para seus bebês usarem. Quando as pessoas dizem que azul é cor de menino e que rosa é cor de menina, algo mais está implicado, uma determinação, um enquadramento do sujeito, desse bebê que ainda nem sabe como vai ser, ou quem virá a ser. O outro, aquele que impõe azul ou rosa ao bebê, já tem impregnado em suas concepções uma forma bem definida sobre o uso destas cores, que, imediatamente se vincula aos seus valores culturais e também a sua aceitação no meio social. Dentro deste contexto, a minha proposta para a instalação “Menino” reflete sobre esse lugar estabelecido para a cor azul dos sujeitos, criando no espaço físico da galeria uma interação entre um objeto concebido para o bebê, a chupeta, e as representações imagéticas de uma sociedade que transforma a mulher em objeto. A representação da imagem feminina como objeto, nesta instalação, faz uso da cor azul em outro contexto: as roupas e os acessórios que esta mulher idealizada veste na cor azul, pontuam para outra direção completamente diferente, para uma representação culturalmente permitida e sexualmente desejada na sociedade ocidental moderna e contemporânea. Ao usar roupas e acessórios desta cor, ao contrário do contexto do bebê, isso não significa mais uma confirmação do gênero de acordo com o sexo biológico. É como se uma espécie de autorização tácita ou implícita fosse criada, uma normatividade social, por não haver mais confusão com a relação biológica binária homem-mulher e com a escolha das cores azul-rosa.

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Instalação "Menino", 2016.

É interessante falar sobre as minhas ideias para a criação desta obra. Escolhi usar objetos que já possuem significados próprios (a chupeta, a tinta acrílica para pintura de paredes, o adesivo e o fio de nylon), que são itens aparentemente desvinculados de uma ligação pessoal. Por outro lado, faço esta escolha justamente porque os objetos carregam uma divisão, uma separação, como se fossem uma parte da minha forma de comunicação como artista. Decidi usar coisas que já existiam em seus contextos para representar as conexões que fiz com as questões de gênero. Senti que fosse necessário no momento de criação da obra utilizar objetos que já carregavam significados próprios em sua funcionalidade, como uma forma de expressão. Estes objetos se comportam na obra quase como um anteparo ao qual eu me apoio para falar. O deslocamento de significados que pretendo com estes objetos está mais intimamente ligado ao meu jeito de ser e pensar e essa escolha surgiu como a mais adequada para o que eu queria expressar naquela obra. Sobre a questão do uso de objetos para pensar a instalação como uma linguagem, dois conceitos complementares trabalhados por Derrida (1990) se relacionam com a lógica destes objetos como signos: a iterabilidade e a citacionalidade. Segue a explicação dos dois conceitos: Derivada do sânscrito itara, “outro”, a iterabilidade é a propriedade do signo de ser sempre outro na sua mesmidade, a repetição na alteração; a citacionalidade é a propriedade do signo de ser retirado de seu contexto “original” e deslocado para outro, produzindo, por isso mesmo, significado. Derrida argumenta que tais propriedades não são eventuais ou acidentais, mas

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constitutivas dos signos, portanto, dos atos de fala, e, delas, os atos retiram sua força. (PINTO, 2013).

Da mesma forma que a proposição destes objetos se utiliza dessa força da linguagem a partir dos signos de acordo com Derrida, a discussão sobre a função dos objetos no mundo moderno e contemporâneo será discutida mais adiante. A partir desses mesmos conceitos, Butler (2010) fala sobre a performatividade de gênero. Segundo ela, a repetição de atos que antecedem até mesmo a chegada do bebê, como por exemplo, na configuração do quarto, nas roupas e nos brinquedos, as vezes, são repetições de modelos que não tem uma origem definida ou que acontecem a partir de citações de outras pessoas. Essas repetições são reproduzidas conforme padrões sociais e definem essa expectativa de performatividade do bebê. O gênero e até mesmo o corpo da criança já teriam essa carga anterior que está ligada a uma série de expectativas presentes nas ações dos pais. No caso da instalação, o que coloco em discussão é justamente essa repetição relacionada à escolha das cores para o bebê. Parece que a escolha das cores é uma atividade intrínseca ao momento do nascimento do bebê e que o fato da cor azul ser escolhida para o menino mesmo que não seja especificamente discutida pelos pais, revela uma escolha convencionada no âmbito social. Os pais, a partir dessas definições de Butler, escolhem essas cores como parte de um padrão de repetições de comportamento que já está implícito na sociedade. Sobre a relação dos objetos com a sociedade moderna e contemporânea, Baudrillard (2000) discute e demonstra com acuidade essa modificação da relação do sujeito com o objeto moderno em contraposição a uma visão clássica. Ele fundamenta que os objetos perderam a ligação que possuíam com a moral e com a ideia de sistema. Se a velha sala de jantar era sobrecarregada por pesada convenção moral, os interiores "modernos", na sua engenhosidade, produzem frequentemente o efeito de expedientes funcionais. (BAUDRILLARD, 2000, p. 23).

Ele situa que esse objeto moderno se liberta das convenções morais e passa a ser apenas funcional. Essa libertação, no entanto é apenas uma "libertação da função do objeto e não do próprio objeto" (BAUDRILLARD, 2000, p. 24). Essa afirmação é por ele acrescentada de uma reflexão sobre o homem moderno ao dizer que "assim como o objeto é somente libertado em sua função, o homem reciprocamente é libertado somente como usuário deste objeto" (BAUDRILLARD, 2000, p. 25). É nesse terreno do objeto, da sua redução apenas à funcionalidade e desse contexto de uma sociedade moderna ou contemporânea, que se comporta somente como usuária dessa utilidade dos objetos, que pretendo discutir as possibilidades de deslocamento dos significados. A chupeta na instalação "Menino" funciona justamente como esse anteparo, um objeto conhecido e significado apenas em seu contexto de utilidade e que aqui ganha outra dimensão. Só por estar em frente a uma mulher representada já pode, a partir disso, remeter a vários possíveis significados. Um exemplo situa-se justamente na linguagem, na palavra que define seu nome, chupeta. Por este olhar, a palavra chupeta associada a esta mulher já pode ter nova

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conotação, considerando que quando associada ao sexo, nesta mesma sociedade, a palavra chupeta tem significado bem diferente daquele ligado à sua função primeira de acalmar o bebê. Além do uso de objetos, é relevante discutir a escolha da cor azul para o menino. Para contextualizar essa questão da escolha como cultural e o uso das cores azul e rosa como definidoras do gênero do bebê é necessário compreender essa distinção do momento em que a cor azul passa a ter uma representatividade ligada ao universo masculino, na sociedade ocidental, a partir do século XX. Essa colocação é feita por Andrade que diz: O uso diferenciado de cores é uma normatização social recente, inclusive, pela preferência, pelo uso da cor branca e de vestidos para meninas e meninos, até o final do século XIX, e o uso da cor azul para meninas e do rosa para meninos, no início do século XX. Porém, em meados do século XX, sob a influência do nazismo e da segunda guerra mundial, têm-se indícios do início de uma tendência de associação do azul ao sexo masculino e do rosa ou vermelho ao sexo feminino. (ANDRADE, 2014, p. 185).

É interessante olhar para esta mudança exatamente oposta de escolha das cores para as meninas e para os meninos durante o último século. No contexto do fim do século XIX e do início do século XX, as indicações da cor azul para as meninas, possuíam uma ligação com o sagrado e com a mulher como portadora da possibilidade de concepção da vida e, portanto, dessa manifestação do sagrado. Já no modernismo do século XX, como pontuado por Baudrillard (2000), a relação do homem moderno com os objetos muda, há uma desvinculação da moral. O modernismo, como movimento, teve em suas premissas a ideia de fundar algo novo, abandonando tudo o que existia anteriormente, principalmente o que dizia respeito às ligações com a tradição e com a representação. A questão da adoção do azul para o menino nesse novo contexto, como explicada por Andrade (2014), indica uma influência do nazismo e da segunda guerra mundial. Essa ligação teria sentido com a adoção do uso de uniformes em cores específicas, sóbrias e escuras e a uma rigidez destas aplicações das cores para o que é masculino e para o que é feminino. Outra perspectiva divergente sobre essa mesma temática é proposta por Paoletti (2012), na qual ela diz que nos Estados Unidos essa mudança aconteceria apenas após os anos 1940. Para ela, a mudança ocorreu a partir de uma vontade mercadológica amparada pela publicidade, ou seja, como uma escolha de marketing. Ela informa que antes desse período era comum a cor rosa ser destinada aos meninos. Neste trecho fica mais claro como eram as escolhas de cores neste período anterior aos anos 1940: Por exemplo, um artigo de Junho de 1918 da publicação comercial da loja de departamentos Earnshaw's Infant escreveu, "A regra geralmente aceita é rosa para meninos, e azul para meninas. A razão é que rosa, sendo uma cor mais forte e decidida, é mais adequada ao menino, enquanto azul, que é mais delicado e gracioso, é mais bonito para a menina" [...]

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Em 1927, a revista Time imprimiu um quadro mostrando cores apropriadas para meninos e meninas de acordo com as principais lojas dos Estados Unidos. Em Boston, a loja Filene falou aos pais para vestir meninos de rosa. Assim também fez Best & Co. na cidade de Nova Iorque, a loja Halle em Cleveland e Marshal Field em Chicago. (MAGLATY, 2011, Tradução nossa).

Além das questões sociais ligadas à escolha das cores para cada gênero como foi evidenciado nesse trecho anterior, encontro também conexões com a narrativa empreendida por Foucault (1999) quando ele estabelece um panorama da história da sexualidade a partir do século XVII. Ele coloca que naquele período foram criados discursos sobre o sexo, de forma dirigida, para falar em demasia sobre o assunto, quando fosse interessante, ou para calar-se quando inconveniente. Ele questiona esse silenciamento criado sobre algumas temáticas relacionadas ao sexo e sugere que isso foi induzido pela Igreja. A estratégia adotada pela Igreja foi de estimular essa verbalização do assunto a partir da lógica confessional. A transformação do sexo em linguagem verbal teria sido então escolhida como mecanismo para que a Igreja naquele momento pudesse controlar o que se dizia sobre o sexo. Nesse cenário, não seria diferente com o sexo das crianças, que também foi para a sombra do que não deveria ser dito e que parece ter sido institucionalizado nas revoluções que ocorreram nos séculos seguintes. As crianças, por exemplo, sabe-se muito bem que não têm sexo: boa razão para interditá-lo, razão para proibí-las de falaram dele, razão para fechar os olhos e tapar os ouvidos onde quer que venham a manifestá-lo, razão para impor um silêncio geral e aplicado. Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das interdições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. (FOUCAULT, 1999, p.10).

Assim, ao olhar para a questão das escolhas que os pais fazem em relação ao gênero das crianças, pode-se perceber uma ideia de tabu, que funcionaria como algo que não pode ser dito e discutido. Esse olhar torna mais fácil a compreensão sobre o modo como as cores possam ter passado para um papel decisivo nas questões de gênero. Interessante mencionar também como as minhas escolhas e preferências em relação às cores tratadas nesta instalação também estiveram ligadas a um condicionamento repressivo ou a um reforço positivo em meu desenvolvimento como criança, [...] meninas tendem a desenvolver uma paixão pela cor rosa originada pela produção de dopamina cerebral estimulada pelo reforço positivo ou recompensa presente em situações nas quais a criança ouve coisas do tipo: “Ohhh! Como fica linda de rosa […]”. Já os meninos tendem a ter um espectro maior de preferências de cores, sem uma paixão específica, como as meninas, entretanto, evitam o rosa. Tal rejeição acontece a partir do condicionamento

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aversivo através de mecanismos de punição ou constrangimento. (ANDRADE, 2014, p. 185).

Sempre convivi com a cor azul desde muito cedo. Isso é extremamente interessante, pois, apesar de gostar muito desta cor, ao considerar esta análise, é possível perceber que esta preferência pode conter elementos de um reforço positivo em relação ao azul que pode ter origem neste modelo de educação. Cresci dentro de uma oficina e sempre via aquela faixa azul na parede, o macacão azul-marinho e o óleo, quase com cor de petróleo, que estavam presentes. Essa ligação com a memória também me faz pensar sobre estes usos diversos da cor em tantos contextos específicos e que reforçam uma simbologia da cor no universo do masculino; a ligação com a ideia de força, de resolução, de trabalho, da agressividade etc. Fausto-Sterling (2012) propõe que há uma reprodução social de ideais de comportamento que advém dos pais e que são reforçados ou reprimidos no comportamento das crianças. Essa visão também é comentada por Andrade, […] por volta dos três anos, os elogios ou críticas relacionadas aos brinquedos ou às roupas e suas cores passam a ser ainda mais intensos, de modo que as maiores conquistas neste período se tornam “ser forte” (meninos) e “ser bonita” (menina). O feedback negativo é muito mais intenso nos meninos que, através de fortes constrangimentos, são obrigados a se afastar de ícones que representam a feminilidade durante as brincadeiras. (ANDRADE, 2014, p. 185).

Chupeta em detalhe, Instalação "Menino", 2016.

A escolha da cor da chupeta como um símbolo do mundo infantil também representa uma escolha que é dos pais e não da criança. Essa diferenciação entre as escolhas do

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mundo do adulto e da criança é importante. Um estudo recente, de aplicação do 1 Teste de Pfister demonstra que, de fato, a escolha de cores muda conforme o sexo e a idade sob influência de fatores culturais e que esses fenômenos estão ligados a esterótipos sociais. […] as tonalidades mais claras e suaves, que sugerem mais fragilidade, foram selecionadas mais frequentemente por mulheres e crianças, enquanto que as tonalidades mais escuras ou vibrantes, que denotam força ou energia, foram mais frequentes, por homens. Esses resultados parecem confirmar uma influência mútua em que interagem tanto as propriedades físicas da cor quanto seus significados simbólicos culturais cristalizados ao longo do tempo. (AMARAL, 2015, p.418).

Neste teste específico as pessoas deveriam escolher as cores que mais lhes agradassem sendo as principais cores possíveis, o azul, o verde e o vermelho em suas diversas tonalidades. O que o teste revela e que tem ligação com esta reflexão é que as cores escolhidas pelos adultos são diferentes das cores preferidas escolhidas pelas crianças, além da própria tonalidade variar conforme a idade. Conclusões Na instalação “Menino”, as chupetas se comportam justamente como aquilo que separa fisicamente o observador da imagem representada na parede. Elas são a fronteira entre esse espectador e um mundo imaginário, idealizado. O que coloco em questão é essa escolha e uso da cor azul para o menino na chupeta, enquanto na imagem colada na parede, como uma representação, mostro uma mulher como objeto do mundo masculino, idealizada, branca, irreal, de cabelos compridos, sexualizada e que, de fato, não utiliza a cor azul como um confirmador de gênero. Interessante observar que no caso da escolha das cores, a partir deste olhar teórico, evidencia-se um processo histórico, seja a partir do universo confessional colocado por Foucault, seja nos olhares americano ou europeu quanto à imposição da cor azul para o menino, por questões relacionadas à guerra ou de ordem mercadológica. Nada disso é uma construção nossa, brasileira ou latino-americana. Mais interessante ainda, observar que essas escolhas são reproduzidas em nossa sociedade latina de modo bastante aceito e recorrente, sem que haja alguma reflexão consistente dos pais sobre o assunto. Por fim, a instalação como um todo, faz referências ao mundo masculino. As cores azul, cinza e branco; a parede que exige uma pintura; o adesivo e a sua colagem; a colocação e a disposição dos objetos que requer uma forma específica de instalação comumente relacionada como tarefa do mundo masculino. Esse modo de fazer também se insere nessa discussão de gênero, como uma pergunta: Será mesmo que o masculino seria o melhor para realizar tais atividades e que o azul deveria ser reforçado como uma cor ideal para o menino? Notas 1 O Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC) é um método expressivo de avaliação psicológica, que favorece a exteriorização de conteúdos internos e permite a investigação de

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aspectos emocionais da dinâmica de personalidade da pessoa avaliada (Guntert, 2000; Peres, Santos, Rodrigues & Okino, 2007).

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BIOPAISAGEM: O SIGNO FEMININO NA OBRA DE LADJANE BANDEIRA Luana Andrade/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Este artigo pretende desenvolver uma breve análise da representação do signo feminino na obra de Ladjane Bandeira, mais especificamente em sua série Biopaisagem. A contribuição artística e filosófica da artista pernambucana se deu numa época de importantes mudanças sociais refletidas, por exemplo, no movimento modernista, que se consolidava no Brasil com a Semana de 22. Propõe-se aqui uma reflexão que permeia a criação e seu contexto histórico social, dada a importância de uma mulher que, no século XX, atuou efetivamente no âmbito artístico e intelectual do país. PALAVRAS-CHAVE Ladjane Bandeira; Biopaisagem; feminino; modernismo ABSTRACT This article intends to develop a brief analysis of the representation of feminine signs in the work of Ladjane Bandeira, more specifically in her series "Biopaisagem". Her artistic and phylosophical contributions happened in an important time for social change reflection, for instance, in the modernist movement that was being consolidated in Brazil with the Semana de 22. I propose it here a reflection over the creation and historical social context given to an important woman that, in the 20th century, acted effectively in the country's intellectual and artistic sphere. KEYWORDS Ladjane Bandeira; Biopaisagem; female; modernism

Data do início do século XX as primeiras manifestações efetivas da luta pela igualdade de gênero. No campo das artes, até então, a mulher era classificada como amadora pela crítica - que atuava como legitimadora da qualidade artística - e, quando lembrada, a sua memória estava sempre vinculada a um nome masculino que poderia ser seu pai, seu irmão ou marido. A ausência de nomes femininos no mercado das artes se devia também às desigualdades na formação, a exemplo das aulas de modelo vivo, por muito tempo proibidas às mulheres. O século XX se inicia no Brasil ao som de Chiquinha Gonzaga: “Ô abre alas que eu quero passar”. O simbolismo contido no fato de ser Chiquinha Gonzaga a primeira mulher compositora de choro, autora da primeira marcha carnavalesca e também primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, abre precedentes para uma série de ineditismos na história da mulher brasileira - aqui, especificamente, das mulheres artistas. Seria a Belle Époque brasílica? Anita Mafaltti, em sua Exposição de Pintura Moderna, em 1917, já anunciava o que estava por vir na Semana de 22, um verdadeiro marco para a compreensão do modernismo brasileiro. De acordo com Canton (2009), 183


esse movimento foi marcado pela influência europeia, com "os artistas viajantes, que trazem da Europa e dos Estados Unidos os desenvolvimentos estéticos propostos pela vanguarda" (p.31). Desse modernismo, que representa, sobretudo, uma ruptura com o passado dando lugar a uma nova visão de mundo (num contexto de reflexão situada no pós primeira grande guerra), é importante destacar o que ele significou na prática. Para além das discussões filosóficas, o movimento se concretizou em ações de fato, como exposições, festivais e publicações de manifestos, com objetivos claros de “derrubar os cânones que legitimavam a criação artística; proclamar o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e o estabelecimento de uma consciência crítica nacional” (RIBEIRO, 2007, p. 119). Entretanto, o recém findado século XIX ainda deixava os resquícios do extremo patriarcalismo que contribuiu para a invisibilidade da mulher na história da arte. E se no Brasil, ser mulher e artista nesse período era sinônimo de luta e resistência, no Nordeste, em específico, as condições para isso eram ainda mais subalternas. Particularizando-se o caso de Pernambuco, muito pouco se sabe sobre as artistas atuantes fora do eixo hegemônico brasileiro (leia-se Rio de Janeiro/São Paulo). A raridade das fontes primárias, o pouco interesse até poucos anos atrás em relação à produção artística do século XIX, a implantação tardia do ensino sistemático da Escola de Belas Artes de Recife, o ainda recente interesse pela produção da mulher artista, enfim, todas essas circunstâncias, reduziram o universo de pesquisa e a rara historiografia sobre a produção artística feminina (ZACCARA, 2011).

O início do século XX traz para o Brasil as transformações do processo de industrialização, principalmente no estado de São Paulo. Nas artes, os academicismos começam mais do que nunca a serem questionados. A gênese do movimento modernista vai se estruturando sob a influência, inclusive, de mulheres como Anita Mafaltti e Tarsila do Amaral. Essas mudanças que implicam em novas relações de gênero contribuem para uma "inclusão da mulher artista no Brasil, ainda de forma lenta, hesitante, até que, num processo gradativo, sua presença marcará as gerações posteriores" (ibidem). Introdução à Ladjane Bandeira É nesse contexto de mudanças significativas no âmbito artístico e no que diz respeito também ao lugar ocupado pela mulher na sociedade e no mundo, que nasce, em 1927, Ladjane Bandeira, em Nazaré da Mata, Pernambuco. Já em 1948, recémchegada em Recife, Ladjane realiza exposição individual na Faculdade de Direito, local de exposições anteriores de artistas como Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, e também participa do I Salão de Poesia do Recife. Seu trabalho ganhou destaque e foi comentado pelo jornalista, cronista e poeta Guerra de Holanda em artigo de revista. Para ele, o trabalho da artista se diferencia da produção de pintores pernambucanos por não ter necessariamente uma ligação telúrica, sociogeográfica, com o local de onde parte o discurso imagético. Ele 184


comenta, por exemplo, que a arte de Ladjane Bandeira é “prolongamento do seu próprio corpo”, uma forma de mencionar o caráter íntimo e autobiográfico da obra de Ladjane em oposição (sem, contudo, negar ou posicionar-se contra) à resistência de um projeto regionalista que pairava na cena artística pernambucana. Os poemas que Ladjane preferiu ilustrar foram justamente aqueles que mais se distanciaram de qualquer ponto de referência geográfica; aqueles poemas de conteúdo angustioso, pois existe nesta jovem e formosa artista uma espécie de fatalidade que a carrega para o sofrimento, de caminho para o abismo, para “o vale das lágrimas” da alma humana, uma “dama da madrugada” que a acompanha suavemente pelas estradas do mundo (HOLANDA, 1948, apud DIMITROV, 2013, p. 204).

A afirmação de que o trabalho de Ladjane supostamente fala de si própria mais do que das coisas a seu redor, ao mesmo tempo em que caracteriza a sua originalidade também abre margem para certos equívocos tendenciosos. São conjecturas próprias de uma época onde, muito recentemente, a mulher, aos poucos, ocupava espaços até então reservados ao gênero masculino. É notório que o jornalista se reporta a “jovem e formosa artista” com certo espírito de fragilidade, fazendo conexões entre tristeza, fatalidade e sofrimento. Embora tenha Ladjane conseguido determinada projeção com sua produção artística, isso não quer dizer que tenha sido naturalmente fácil. É importante ressaltar que, anterior a ela, apenas Fédora do Rego Monteiro tenha conseguido feito semelhante. Ainda em Nazaré da Mata, Ladjane chegou a estudar pedagogia e lecionou Desenho. Em Recife, teve seus poemas publicados em importantes jornais do estado como Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e Diário da Noite. Neste último ela foi autora de uma página chamada Arte-Ladjane, onde escrevia sobre arte, publicava entrevistas e ilustrações, abrindo debates sobre os rumos da arte moderna. A sua contribuição fora também jornalística, além de literária e artística, ao abrir um espaço para falar não apenas sobre a produção pernambucana, como também sobre questões contemporâneas a época e que repercutiam em todo o país. Houve, portanto, uma preocupação em cuidar, através desses registros do patrimônio cultural local. Portanto, além de Ladjane Bandeira colaborar na criação de uma memória comunitária, exercendo um papel direto na escrita da história social das Artes Plásticas em Pernambuco, também reuniu subsídios para um levantamento e estudos memoriais da formação de um patrimônio cultural intangível pela memória coletiva das artes em Pernambuco e por extensão para estudos das artes no Brasil (LYRA, 2012, p. 68).

O envolvimento de Ladjane com o meio jornalístico propiciou a aproximação de artistas como Abelardo da Hora e Hélio Feijó. É importante mencionar também que ela participou ativamente da Sociedade de Arte Moderna de Recife (SAMR).

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A contribuição de Ladjane Bandeira para o jornalismo estava aliada também à crítica de arte e aos noticiários. Suas publicações abrangiam temas para além dos regionais, como Arte e Tecnologia, Filosofia da Arte, Arte e Ciência, Franz Post no Brasil, entre outros. Neste ponto é válido destacar que tratava-se de uma mulher que deteve certo poder e autonomia nos meios midiáticos, atuando diretamente na disseminação de ideias e na produção de conhecimento. O feminino presente na Biopaisagem Sem sombra de dúvida, Ladjane Bandeira é uma artista de vanguarda e sua série Biopaisagem enfatiza esse caráter, mas é difícil classificá-la como pertencendo a uma escola em específico. Mesmo porque sua obra visual compõe um conjunto de pesquisas profundas onde imagem e escrita se entrelaçam e se complementam. Porém, se necessário, ficamos com a sua própria denominação de "figurativo mágico". Há uma constante em seu trabalho de fazer um elo entre filosofia e ciência através da Arte, uma ideia utilizada também por artistas europeus (a exemplo de Paul Klee), mas com certo ineditismo no Brasil, dado a época. Podemos dizer, nesse sentido, que a atuação interdisciplinar de Ladjane se reflete na sua obra. Para o desenvolvimento da Biopaisagem, ela estudou diversas áreas de conhecimento como Biologia, Química, Física, Filosofia, Astronomia, etc, para melhor expressar as suas ideias. Com isto, concretizou uma teoria, que chamou de Intelorgânica, se envolvendo com questões cognitivas e biofisiológicas nos processos de construção do pensamento humano e que foram expressas, na sua pintura e literatura, em relação intersemiótica. A teoria Intelorgânica, um compêndio documental concebido por Ladjane a partir dos anos 60 e finalizada no fim dos anos 80, é a guia de toda a Biopaisagem. Discursa sobre o ser humano evoluindos e através do conhecimento adquirido e aperfeiçoado, desenvolvendo igualmente a Ciência e a Tecnologia em benefício da amplitude e do aperfeiçoamento de seu conhecimento universológico. (LYRA, 2012, p. 91)

A série Biopaisagem consiste num complexo elaborado: a Itelorgânica, estrutura teórica, duas séries de imagens, uma colorida e outra monocromática ("A Metamorfose Humana", um conjunto de 19 telas a óleo, e "A Transformação da Natureza em Conhecimento", 12 quadros em bico-de-pena), e mais outros textos literários. Ladjane trata de um assunto universal, e ao mesmo tempo, muito pessoal e íntimo - ao passo que ela mesma criou uma teoria que serviu de base às produções. Também é verdade que a mulher, ou o ser feminino e os signos que o representam, se faz presente de forma muito significativa nesta obra. De maneira muito orgânica - mais até do que a organicidade presente nas esculturas 2 hiperrealistas de Ron Muek - Ladjane apresenta composições que fundem o feminino e a natureza. Podemos observar também que a forma como a mulher aparece na obra de Ladjane foge aos padrões de representação da iconografia feminina ao longo das épocas. Nos quadros intitulados Biopaisagem n. 1 e n. 2 (Fig. 1 e 2), a relação da

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natureza com o corpo é sugerida através da aparente "confusão" entre membros, galhos, folhas, troncos, cabelos, artérias... Também há uma analogia evidente à Vênus:

Ladjane Bandeira (1927 - 1999) Biopaisagem n.1, Biopaisagem n.2, sem data Óleo sobre tela, 100 x 50 cm Instituto Cultural Ladjane Bandeira, Recife (PE)

Por vezes, é possível notar cenários quase surrealistas, ilustrado por formas que remetem a organismos, placentas, ventres, órgãos, tecidos, células. Nessa "ode" à Natureza é criada também uma atmosfera misteriosa, através das sombras e cores. As sutis referências feitas às representações neoclássicas do corpo feminino propõem um diálogo entre as épocas. Sobre este primeiro conjunto iconográfico da série, Ermelinda Ferreira (2009) faz uma descrição interessante: [...] a representação do feminino parece evocar o estereótipo ecofeminista da Mulher-Deusa, segundo o qual as mulheres só poderão encontrar a liberdade na medida em que se desprenderem do mundo moderno e descobrirem sua suposta conexão espiritual com a Mãe-Natureza. São representações de corpos femininos que fundem a imagem clássica da Vênus com a estrutura de uma árvore, circundando-a em um multicolorido e decorativo emaranhado de cipós, folhas e flores [...] também chamado pela artista, noutras versões do tema, de "Gestações florais" (p. 98).

É interessante a relação que a autora faz da Biopaisagem com os conceitos do 3 ecofeminismo , colocando a total emancipação da figura feminina dependente não da dominação da Natureza por ela, mas da integralidade das partes. De fato este signo de um corpo feminino integrado à natureza, e vice-versa, é frequente nesta obra. No segundo conjunto iconográfico da série, intitulado "Transformar a Natureza em Conhecimento", encontramos uma diversidade de imagens, como, por exemplo, um conjunto de cabeças desenhadas a bico-de-pena em estilo ultrafuturista, utilizando de signos visualmente tecnológicos. Ladjane produziu também os dípticos e trípticos,

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construções imagéticas que integram fetos, cordões umbilicais, espermatozóides, remetem a úteros, placentas, óvulos. Uma espécie de paisagem interior feminina. Não se trata mais da visualidade externa do corpo da mulher, representado desde sempre nas artes, mas de um olhar "para dentro" dela.

Ladjane Bandeira (1927 - 1999) Cosmobiótica III e IV, sem data Bico-de-pena sobre papel Instituto Cultural Ladjane Bandeira, Recife (PE)

Ladjane Bandeira (1927 - 1999) Tríptico Biogaláxia, sem data Bico-de-pena sobre papel, 132 x 51cm Instituto Cultural Ladjane Bandeira, Recife (PE)

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As relações entre corpo e natureza estão presentes em toda a Biopaisagem. Podemos observar que do primeiro conjunto para a série Cosmobiótica do segundo conjunto, há uma espécie de transmutação dos interesses estéticos e filosóficos, sugerido já no título "A Metamorfose Humana", de forma que as estruturas presentes nas cabeças futurísticas dizem respeito não mais à Mãe-Natureza, mas à naturalização da artificialidade humana, uma segunda "gestação". Já no tríptico Biogaláxia, da segunda série, há uma metáfora visual entre o organismo feminino, intrauterino, e o próprio universo em que ele habita. É uma relação entre micro e macro, uma representação "abissal e autoreflexiva do corpo feminino" (FERREIRA, 2011, p. 102). Podemos interpretar como uma narrativa: após a gestação o nascimento, do feto ou das estrelas, numa perspectiva cósmica. Considerações finais De uma maneira geral, é possível olhar para a Biopaisagem de Ladjane Bandeira como uma caracterização da complexidade do ser humano observador e gerador da vida. Numa época de luta pelos direitos igualitários, ela fez uma importante e profunda análise do ser feminino, um ensaio sobre a sua organicidade e humanidade, sobre a Natureza do universo e a natureza criada pelo humano. A representação do corpo feminino surge de maneira muito única na obra de Ladjane e, sendo autobiográfica ou não, preza universalidade do discurso. Notas 1 Ron Mueck é um escultor australiano hiper-realista que utiliza resina, fibra de vidro, silicone, argila em suas obras para obter efeito mais real possível da textura da pela, dos pêlos, da composição do corpo em geral. 2

O ecofeminismo pode ser definido como uma escola de pensamento que tem orientado movimentos ambientalistas e feministas, desde a década de 1970, em várias partes do mundo, procurando fazer uma interconexão entre a dominação da Natureza e a dominação das mulheres. Disponível em: <http://www.emater.tche.br/docs/agroeco/revista/n1/11_artigo_ecofemi.pdf>

Referências CONSELHO ESTADUAL DOS DIREITOS DA MULHER (CEDIM) O Século da Mulher. Texto preparado para a exposição "O Século da Mulher". CANTON, Katia. Do Moderno ao Contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda, 2009. v. 1. 51p. DIMITROV, E.. Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano. 2014. (Relatório de pesquisa).

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FERREIRA, Ermelinda. Trajetória da Vênus: leituras do corpo feminino na arte. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 2, p. 10-30, 2009. LYRA, M. C. M. Produção estética do conhecimento e uso social da herança cultural na obra Biopaisagem de Ladjane Bandeira. 2012. 214 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. RIBEIRO, Marilia Andrés. O Modernismo Brasileiro: arte e política. ArtCultura (UFU), v. 9, p. 115-126, 2007. ZACCARA, Madalena. Uma artista mulher em Pernambuco no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro Fernandez. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/frm_mz.htm> Luana Andrade Graduanda em Artes Visuais (Licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco.

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ARTES VISUAIS, COMPARTILHAMENTOS ENTRE A UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO - UFPE E O INSTITUTO FEDERAL DE PERNAMBUCO – IFPE Luciana dos Santos Tavares/ Instituto Federal de Pernambuco RESUMO O presente artigo tem como objetivo principal compreender como as relações de ensino-aprendizagem podem ser estabelecidas a partir de um processo de compartilhamento de experiências entre estudantes e docentes de duas instituições públicas de Pernambuco, a Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE, no Curso de Artes Visuais, através do programas institucionais. Para tal, observou-se a presença de estudantes da UFPE no Curso Técnico subsequente em Artes Visuais a partir do primeiro semestre letivo de 2015 adentrando por 2016. As informações presentes no artigo foram coletadas a partir da observação do cotidiano escolar e a partir da escuta do que dizem os envolvidos, docentes e discentes da ambas as Instituições. PALAVRAS-CHAVE Compartilhamentos; Formação em Artes; UFPE; IFPE ABSTRACT This article aims to understand how the teaching-learning relationships can be established from an experience-sharing process between students and teachers of two public institutions of Universidade Federal de Pernambuco - UFPE and the Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE in Visual Arts course through institutional programs. To this end, there was the presence of UFPE of students in the Course subsequent Technician in Visual Arts from the first semester 2015 by entering 2016. The information contained in the article was collected from the observation of daily school and from listening than say those involved, teachers and students of both institutions. KEYWORDS Shares ; Training in Arts ; UFPE ; IFPE

Refletindo acerca do campo de formação em Artes Visuais na Região Metropolitana do Recife em Pernambuco, nos deparamos com três instituições que, de forma presencial oferecem uma formação específica em Artes Visuais, duas públicas e uma privada; são elas: a Universidade Federal de Pernambuco – UFPE que oferta o curso de Licenciatura em Artes Visuais, a Faculdade Barros Lima – AESO que oferece o Curso de Bacharelado em Artes Visuais e o Instituto Federal de Educação, Ciência e

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Tecnologia de Pernambuco – IFPE que oferece o Curso Técnico Subsequente em 22 Artes Visuais . Sendo somente esta a realidade existente no campo de ensino das Artes Visuais nas cidades de Recife e Olinda, resolvemos investigar se alguma relação de troca de aprendizagens e experiências entre estes dois cursos já foi estabelecida. Para este artigo, iremos nos deter somente a realidade das duas instituições públicas, por serem estas as instituições que oferecem uma formação em Artes Visuais gratuita e disponibilizada para um grande público. Breve currículo dos Cursos de Artes Visuais na UFPE e no IFPE Para compreendermos melhor as similaridades e diferenças existentes entre estes dois cursos, se faz necessário destacar que, apesar dos dois habilitarem profissionais para a atuação nas Artes Visuais, suas perspectivas são bem diferentes. Enquanto Graduação e Licenciatura, o curso da UFPE está voltado para a formação docente com o objetivo prioritário de formar professores para atuarem na educação formal nas escolas, já o curso técnico do IFPE, por ser de nível básico e profissional, tem como objetivo principal formar um profissional que atue em ateliês, espaços expositivos e afins, onde o objetivo principal seja priorizar o conhecimento técnico e não a formação docente. Partindo em busca de informações mais esclarecedoras sobre os dois cursos, consultamos documentos que regimentam ambos, com a intenção de entender melhor a que se proponham os cursos, suas relações com o mercado e trabalho, componentes curriculares, carga horária e outras. De acordo com as informações disponibilizadas no site da UFPE, O curso visa a formação do professor em Artes Visuais. Desde o início do curso o estudante tem contato com disciplinas teóricas e práticas específicas da área de artes plásticas e com disciplinas pedagógicas. Espera-se que o licenciado nesta graduação seja apto a lidar com as poéticas visuais ou apreciação crítica da obra de arte, seja no nível de criação pessoal ou a serviço da comunidade. O mercado de trabalho para esse profissional é o ensino das artes plásticas nas redes oficiais e privadas, animador cultural em instituições culturais, museus e projetos artísticos comunitários. (UFPE, 2016)

O curso que anteriormente era chamado Educação Artística/Artes Plásticas obteve a autorização de criação e funcionamento em 06/10/1972 e continua existindo até hoje, passando por uma mudança na nomenclatura para Artes Visuais em 2012. Atualmente possui uma carga horária de 2.810 horas, sendo componentes obrigatórios 2.370

22 Curso técnico subsequente ao ensino médio é o curso de formação profissional em nível técnico, ofertado a estudantes que já concluíram o ensino médio. Como o curso destina-se somente à formação profissional, sua duração é de 2 anos.

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horas e o restante podendo ser utilizadas para curso de componentes eletivos livres 23 ou para atividades complementares . Oferece 35 vagas a cada vestibular que utliza o sistema ENEM/SISU como forma de ingresso no curso, tendo somente uma entrada no início do ano. Seus horários de aulas podem ser alternadas entre o periodo da manhã e tarde e possui duração mínima de oito semestres e máxima de quatorze semestres letivos. Há no ciclo profissional ou tronco cumum do curso cerca de quarenta e oito componentes obrigatórios e vinte e oito components eletivos, distribuídos em oito períodos com uma média de seis componentes por período. O Enem é um instrumento avaliador do Ensino Médio cujo os resultados são utilizados como parâmetros da eficiência desse ensino no Brasil. Segundo Garcia: É um exame individual, de caráter voluntário, oferecido anualmente aos estudantes que estão concluindo ou que já concluíram o Ensino Médio em anos anteriores. [...] Possibilita aos estudantes, à sociedade e ao governo uma avaliação sobre o desenvolvimento, por parte do aluno, das competências fundamentais na sua formação enquanto pessoa, profissional e cidadão [...] servir como o próprio exame de vestibular (GARCIA, 2014:18).

Em relação aos componentes curriculares da UFPE, a maior parte hoje se destina à componentes voltados para a História da Arte I, II,III, IV e V e vários outros voltados para Educação como: Metodologias das Artes Visuais, Estágios curriculares em Ensino das Artes visuais I,II,III e IV; além de gestão Educacional e outras, possuindo um currículo bastante diversificado voltado mais para uma realidade de Curso de Licenciatura. No que se refere ao Curso de Artes Visuais no IFPE o que encontramos no Plano 24 Pedagógico de Curso em Artes visuais – PPC de Artes Visuais, ainda em construção , é uma preocupação voltada para formar profissionais com habilidades na área de Artes Visuais para atender aos desafios de um mercado de trabalho especializado, global e competitivo. O Curso Técnico em Artes Visuais está inscrito no Eixo Tecnológico Produção Cultural e Design, de acordo com o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, fundamentado no parecer CNE/CEB nº 3/2012, instituído pela Resolução nº 04/2012. A estrutura curricular do curso observa as determinações legais dispostas na Lei de

23 A carga horária do curso é de 2.370 horas, distribuída da seguinte forma: O aluno cursará 2.370 horas em components obrigatórios e 240 horas components eletivos no próprio curso ou eletivas livres em qualquer curso no âmbito da UFPE ou em outras Instituições de ensino superior com a aprovação do Colegiado do curso e 200 horas em atividades complementares de monitoria, extensão e iniciação científica. 24 Por conta do pouco tempo de existência deste curso no IFPE, o plano pedagógico está à espera de aprovação da Pró-reitoria de ensino – PRODEN, para poder ser divulgado oficialmente. 193


Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei Federal nº 9.394/96 e nas suas posteriores alterações. O curso pretende formar o técnico em Artes Visuais no período de dois anos. O estudante entrará em contato com conteúdos das Artes Visuais em seus aspectos éticos, estéticos, teóricos e práticos, bem como será introduzido nas discussões sobre o ensino e a pesquisa em Artes Visuais. Desta forma, o técnico em Artes Visuais poderá atuar no ensino formal, enquanto auxiliar no ensino de arte, e no ensino não formal, como arte/educador, mediador cultural ou coordenador/executor de projetos culturais. Além disso, o técnico em Artes Visuais poderá atuar na curadoria e montagem de exposições, na elaboração de textos críticos no campo das Artes Visuais e na proposição e criação artística. No que diz respeito ao campo de atuação em relação ao Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (MEC/SETEC, 2012), apresenta as possibilidades de atuação do Técnico em Artes Visuais divididas em três eixos: ateliês e oficinas de artes, agências de publicidade e propaganda e editoras e espaços alternativos de interação social, lazer e cultura. Além das possibilidades de atuação profissional apontadas pelo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, o Técnico em Artes Visuais poderá atuar também como produtor cultural independente, capaz de elaborar, executar e produzir projetos culturais através da captação de recursos oriundos de agências de fomento governamentais ou provenientes da iniciativa privada. O Curso Técnico em Artes Visuais é o primeiro em Pernambuco no âmbito do IFPE e surgiu após uma audiência pública que foi realizada na cidade de Olinda. O ingresso é realizado a partir de um processo seletivo elaborado pelo próprio Instituto Federal, já que este curso pertence ao Ensino Básico e não ao Nível Superior como é a Universidade. Disponibiliza 36 vagas em uma única entrada no início do ano e as aulas acontecem no período da manhã ou tarde de acordo com a escolha do estudante, apresentando uma carga horária total de 1305 horas mais carga horária de Prática Profissional que é de 150 h/a. A carga horária destinada à Prática Profissional pode ser vivenciada pelo educando a qualquer momento do curso, uma vez que se caracteriza por atividades de naturezas diversas. A carga horária do Curso Técnico em Artes Visuais é composta de quatro períodos e o limite máximo para a conclusão do curso é de oito períodos ou seja, quatro anos, possuindo no ciclo profissional ou tronco comum do curso cerca de vinte e três componentes obrigatórios sem a existência de componentes eletivos. Dentre esses componentes, a maior parte está voltada para as disciplinas práticas de ateliês como: Desenho de Modelo Vivo, Desenho de Observação, Pinturas I e II, Modelagem em Argila, Estamparia de Tecidos, Gravuras I e II, Curadoria e Montagem. Além de outras um pouco mais teóricas como: História das Artes I e II, História do Brasil, Metodologia e pesquisa em Artes Visuais, Empreendorismo e outras, possuindo um currículo bastante diversificado voltado mais para a prática em Artes Visuais.

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Onde esses dois cursos se encontram? Antes mesmo de pensarmos de forma prática na área de intercessão entre os dois cursos, algo bastante curioso se estabelece, é o fato de que todos os professores efetivos do Curso Técnico em Artes Visuais fizeram a sua graduação na UFPE, fazendo com que, guardada as especificidades de cada curso, o curso da Universidade Federal de Pernambuco torne-se sempre um parâmetro para todos os professores. Observarmos a força disto quando, por exemplo, no processo de escolhas das disciplinas que os professores do IFPE naquele período irão lecionar, eles geralmente escolhem aquelas com as quais se identificavam na universidade no período da sua graduação. Outro aspecto que merece um olhar apurado é o diálogo existente entre os estudantes do Curso Técnico do IFPE e da Graduação da UFPE quando se encontram, seja em um curso, nas redes sociais, em uma oficina, uma palestra ou mesmo em uma atividade recreativa. É comum percebermos uma certa ansiedade em saber como é um ou o outro curso acompanhadas muitas vezes de comentários que versam sobre começar o outro curso quando terminado o que está fazendo, seja para aprofundar nos conhecimentos de cunho voltados para a prática docente ou para práticas mais profissionais. É frequente também encontrarmos estudantes comuns aos dois cursos, já que isto é possível, pelo fato do Curso Técnico ser no nível da Educação Básica e o da Graduação ser de Nível Superior. Porém neste aspecto é salutar colocar que existe uma realidade estabelecida no cotidiano do IFPE nestes casos, que é o abandono do Curso Técnico quando o estudante não está conseguindo conciliar os dois cursos; é comum também o abandono do Técnico por conta deste não lhes conferir uma graduação a mais do que a sua de nível básico. Outro fato bastante comum é também o abandono do Curso Técnico quando o estudante é aprovado no Curso superior em Artes Visuais, pelos motivos já citados anteriormente. Porém, o caminho mais provável de ser trilhado, segundo depoimentos dos estudantes, é ainda o do estudante do Curso Técnico ao término do Curso prosseguir com os seus estudos na Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal. Curiosamente, também acontece a procura do Curso Técnico por parte dos graduandos que já estão na UFPE. Isto justifica-se pelo fato do curso de Licenciatura da UFPE ter passado por mudanças curriculares recentes que lhes imprimiram um caráter mais voltado para a formação docente, neste caso aqueles estudantes que não querem tornar-se professores acabam por optar pela formação técnica mesmo que de nível médio, pelo conhecimento mais empírico que o Curso Técnico oferece, já que não existe o Bacharelado em Artes Visuais em universidades públicas do Grande Recife.

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Mas afora este percurso realizado pelos estudantes, outros encontros tem acontecido entre os cursos de Artes Visuais do IFPE e da UFPE. No Campus Olinda do IFPE cotidianamente encontramos estudantes da graduação da UFPE pelos corredores da escola, e isto se deve à projetos como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência- PIBID e ao Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais III. Ambos utilizam o Campus Olinda como espaço de investigação e experimentação em uma parceria bem-sucedida.

Reunião entre membros do PIBID UFPE/IFPE com coordenação da área na UFPE - março/2015 Fonte: acervo da autora

Estudantes, professores e técnicos do IFPE junto à professores e estudantes do PIBID em aula/projeto do PIBID na UFPE - abril/2015 Fonte: acervo da autora

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Estudantes do IFPE em aula de Gravura na UFPE - abril/2015 Fonte: acervo da autora

Aula no IFPE com dinâmica baseada na obra de Lygia Pape conduzida por licenciandos da UFPE no Campus Olinda do IFPE - novembro/2015 Fonte: acervo da autora

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O IFPE recebe estudantes da UFPE Desde o primeiro ano de funcionamento do Técnico em Curso de Artes Visuais no Campus Olinda no IFPE as relações entre a UFPE e o IFPE foram estabelecidas. Havia uma comunicação constante entre os dois Campi devido à várias circunstâncias como por exemplo, docentes do curso do IFPE que faziam mestrado na UFPE, ou por estudantes comuns aos dois cursos, ou mesmo porque alguns docentes do IFPE eram convidados pelos da UFPE a participarem de eventos pedagógicos na Universidade assim como docentes da UFPE também eram convidados para os do IFPE. Assim desde de o início do curso do IFPE, houve esta naturalidade nas relações entre as duas Instituições Públicas de Ensino das Artes Visuais. Dentro dessa perspectiva, surgiram duas grandes parcerias da Universidade com o IFPE, uma delas é a presença dos estudantes da UFPE no IFPE com a disciplina de Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais III do sétimo período do curso da UFPE, que envia estudantes para a prática de docência acompanhando uma disciplina da sua escolha no IFPE. Em 2015.1 o IFPE recebeu uma estudante na disciplina de História da Arte II que fazia parte do segundo período do curso do IFPE e em 2015.2 recebeu outra estudante na disciplina de Estamparia em tecidos do terceiro período. Esta disciplina da UFPE objetiva promover uma imersão do licenciando em uma sala de 25 aula do Ensino Médio em um currículo da Educação Básica . Neste processo o professor da UFPE entra em contato com o do IFPE e verifica a possibilidade do IFPE receber este discente em suas aulas; aceito o convite começa um trabalho de compartilhamentos constantes já que o discente da UFPE trabalha ao lado do professor desde o planejamento daquela disciplina até as aulas ministradas, não havendo uma delimitação para as ações que possam ser realizadas por ambos no que se refere à sala de aula. E de acordo com os relatos de professores do IFPE e dos licenciandos da UFPE, esta parceria só tende a render excelentes frutos, haja vista que há para o estudante da UFPE a oportunidade de vivenciar com muita liberdade de ação o cotidiano de uma sala de aula em todos os seus aspectos, onde o planejamento de atividades, 26 avaliações, visitas técnicas são realizados junto ao professor da disciplina no IFPE, além do que, é também um segmento novo de Ensino da Arte, um Curso técnico específico em uma Instituição Federal de ensino como é o do IFPE. No que concerne aos professores do IFPE que recebem estes estudantes, há com a presença destes licenciandos “uma oxigenação” nas suas aulas pelo fato destes estudantes estarem de uma forma geral inteirados com as discussões mais recentes no campo do ensino/aprendizagem da arte, trazendo isto naturalmente para a sua prática docente no IFPE, além do que, a prática de compartilhamento entre docente

25 Existe

ainda, na matriz curricular da Licenciatura de Artes Visuais da UFPE, as disciplinas de Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais I e II que se referem à Educação Fundamental e Ensino não Formal, o IFPE só recebe os discentes do Estágio III por trabalhar somente com a realidade de Ensino Médio dentro da Educação Básica. 26 No IFPE as aulas fora do âmbito do Campus são chamadas de Visitas técnicas. 198


do IFPE e discente da UFPE gera cotidianamente reflexões que acabam por enriquecer as aulas ministradas por ambos. Somente a reflexão e o diálogo vão fortalecer a concepção da Educação como uma tarefa que exige a complementaridade de saberes, o respeito pelos conhecimentos do outro e o reconhecimento dos próprios limites. O pior que pode ocorrer a um educador é pensar que sabe tudo e os outros nada sabem (ALARCÃO, 2011).

A outra parceria entre docentes e discentes do IFPE e docentes e discentes da UFPE 27 acontece através do PIBID que durante todo o ano de 2015 e 2016 até o presente momento se fez e faz presente no Curso Técnico em Artes Visuais do IFPE. O primeiro grupo de PIBID a chegar no Instituto Federal foi composto por cinco estudantes de períodos variados da UFPE, o processo de escolha dos componentes curriculares que iriam acompanhar variou de acordo com o interesse de cada estudante e da sua disponibilidade de horário, pois todos estão cursando disciplinas da graduação na Universidade. É importante ressaltar também que não são todos os professores do Instituto que se mostram interessados em receber em suas aulas estudantes do PIBID, por conta disto, quando é apresentado ao Pibidiano o horário de aulas daquele semestre no Instituto, também já há uma orientação à respeito dos professores que se mostram interessados e abertos à presença dos Pibidianos em suas aulas durante o semestre letivo. No primeiro grupo que se fez presente no Instituto Federal no semestre 2015.1, só houve ao longo do percurso uma troca de estudante por questões pessoais, de forma geral estes estudantes permanecem no projeto durante dois anos consecutivos, salvo se terminar a graduação, quando será excluído automaticamente, o que não foi o caso de nenhum deste grupo. As disciplinas escolhidas por eles neste período foram: História das Artes II, Fotografia e Fundamentos da Linguagem Visual. Em algumas disciplinas algumas vezes há a presença de mais de um Pibidiano, mas ainda assim, existe uma preferência que se alternem os horários de presença na disciplina. Para este grupo só existia dois períodos disponíveis no curso e por isso se dividiram entre aulas de primeiro e segundo períodos. A segunda formação do grupo já passou por algumas mudanças, havendo a saída de dois componentes do grupo e a entrada de outros dois. Os que saíram o fizeram porque precisaram se dedicar mais às disciplinas da graduação já que estavam próximos da conclusão da graduação; este grupo no semestre de 2015.2 , escolheu como disciplinas para acompanhar: Desenho de Modelo Vivo, Gravura I, Estamparia, Modelagem em Barro, Mediação Cultural e Pintura I. Para este grupo houve a existência também do terceiro período e assim alguns optaram por disciplinas mais práticas, alguns acompanharam mais de uma disciplina, ficando algumas vezes com uma disciplina mais prática e outra mais teórica.

27

O Programa Institucional de Bolsa de iniciação à Docência- PIBID existe em várias áreas de conhecimento e foi criado pelo Ministério de Educação com a intenção da valorização da prática docente, dispondo de bolsas concedidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – autarquia e agência pública do Brasil vinculada ao Ministério da Educação. 199


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A terceira formação que é a vigente no período que se inicia 2016.1 , também é composta de cinco estudantes, passou por uma troca dois estudantes do semestre passado para este e escolheu como disciplinas para acompanhar: Mídias Digitais, Mediação Cultural, História da Arte no Brasil e Pintura II, sendo algumas destas disciplinas já pertencentes ao quarto período do curso, que por sua vez é uma turma terminal. É importante ressaltar que a presença dos estudantes com PIBID na escolar, tem ido além da ação em sala de aula diante de um entendimento de todos do grupo que as condições e aprendizagem se dão dentro e fora da sala de aula, portanto, dentre estas as ações do PIBID na escolar podemos ressaltar a grande importância da contribuição na sala de aula desde a elaboração do planejamento a efetivação do conhecimento, passando por atividades realizadas fora e dentro da sala de aula, regências, visitas técnicas, oficinas para todo o Campus, atividades no contra - turno de aulas, reflexões acerca da estruturação do curso, cotidiano em sala de aula, propiciando para estudantes, professores, coordenadores de ambos os cursos e supervisores a constante reavaliação do conhecimento construído no espaço educacional. De acordo o subprojeto PIBID/Artes Visuais da UFPE, O subprojeto de artes visuais será pautado pela compreensão dessa área de conhecimento em seu contexto social, cultural, histórico e político, no ensino de artes visuais, no nível médio de forma a contextualiza-la na vida cotidiana do estudante. A experimentação faz parte da essência do ensino de arte; no experimentar os estudantes são levados a resolverem os desafios enfrentados na própria vida, buscando além das soluções, a autonomia. Nota-se aqui a ênfase no caráter experimental da arte como enfatizam Paulo Freire e John Dewey; e o exercício criativo de curiosidade nas buscas das leituras das imagens da arte e do cotidiano. Este subprojeto visa assim engajar os/as licenciandos/as de Artes Visuais no seu ensino, no nível fundamental e médio de escolas públicas estaduais, fomentando neles a práxis da docência lidando com a leitura de mundo de forma mais ampla do que o currículo, visto no seu curso. Apontamos ferramentas para que os/as bolsistas lidem com um currículo de ensino mais amplo, qualitativo, sublinhando o caráter específico das artes visuais em ler, contextualizar e produzir arte, citando Ana Mae Barbosa. (subprojeto Pibid/ Artes Visuais UFPE, 2012).

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Houve um atraso no início das aulas do semestre 2015.2 por questões infra-estruturais do prédio, fazendo com que o semestre 2016.1 só tenha início em maio de 2016.

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E a UFPE tem recebido os estudantes e professores do IFPE? Estudantes do IFPE têm sido recebidos na UFPE em seus eventos pedagógicos com relativa frequência. Em 2015 e 2016 participaram da Semana Nacional de Expressão Gráfica, Fórum Nacional e Compartilhamento de Experiências do PIBID, Exposição de estudantes da UFPE na Galeria Capibaribe, no Centro de Artes, visitas à ateliês de Estamparia e Pintura, Aula no Ateliê de Gravura, e em alguns outros eventos. Também há projetos em andamento para a UFPE receber em seus laboratórios os estudantes do Curso Técnico em Artes Visuais como estagiários. Professores do IFPE, que fizeram o Mestrado em Artes Visuais na UFPE têm sido convidados para participarem de bancas no término de Cursos de graduação como membro externo, participam também de mesas-redondas, palestras em aulas e outras atividades, além de supervisão de PIBID e de Estágio de Docência. Conclusão Investigados a partir da observação, entrevistas, conversas e depoimentos podemos concluir que a presença dos Pibidianos e estudantes da disciplina de Estágio Curricular no IFPE Campus Olinda tem de fato gerado bons frutos, a partir do que dizem os docentes do Instituto: com a presença dos estudantes da UFPE há uma possibilidade de trocas constantes, reatando vínculos com a universidade. Para os discentes da UFPE: vivência de um cotidiano escolar dialogando com o corpo pedagógico da escola, um campo aberto para a pesquisa e experimentação. Para os estudantes do Ensino Técnico: novas práticas de aprendizagem, diálogos, novas metodologias, estímulo para estudar e aprender. Para todos: praticar, experimentar, reinventar, reavaliar, reconstruir, ousar, refletir, desfrutar do prazer de viver o dia a dia de um processo de prática em ensino em uma escolar de Ensino Básico. Mas principalmente aprender todos os dias com todos que perfazem uma escola. Ainda de acordo com todos os envolvidos, esta parceria não se limitará a apenas o que já está sendo praticado. Segundo eles, outras oportunidades virão. Quem sabe não nos tornamos professores ou técnicos da Universidade ou do Instituto Federal? Dizem os estudantes de uma Instituição e de outra.

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Estudantes no ateliê do IFPE, numa aula de Estamparia em tecidos, auxiliados por estudante da UFPE dentro da disciplina Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais III -fevereiro/2016. Fonte: acervo da autora

Referências FREIRE, Eleta Carvalho; RAMOS, Sérgio Ricardo Vieira; DIONÍSIO, Ângela Paiva.(Orgs). PIBID-UFPE: por uma nova cultura institucional na formação docente. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014. GARCIA, Wander. Como se dar bem no novo ENEM/Wander Garcia. 5.ed. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco Jurídico, 2014. p. 680. MEIOS ELETRÔNICOS ALARCÃO, Isabel. Gestão escolar. junho de 2011. http..//gestao escola:abril.com.br/formação/isabel-alarcao-fala-formacoa-docente-escola-reflexiva629883.shtml.11 de fevereiro de 2015. UFPE. Home>PROACAD>Cursos de Graduação>Lista de Cursos>Artes Visuais. https://www.ufpe.br/proacad/index.php?option=com_content&view=article&id=128& Itemid=138/ acesso em: 23.05.2016.

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Luciana dos Santos Tavares Mestre em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco na linha de pesquisa do Ensino das Artes Visuais. A autora trabalha com o Ensino da Arte no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE. HYPERLINK "http://lattes.cnpq.br/7282555558301402" http://lattes.cnpq.br/7282555558301402

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“NÃO PISE NA DAMA” EM BOGOTÁ Carol Piñeiro/ Universidade Federal do Rio Grande do Norte Naira Ciotti/ Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO O artigo traz algumas das experiências vividas no “Experimento 5 – Não Pise na Dama” fruto dos estudos em reperformance da obra “Não Pise na Dama” que integra o projeto de mestrado “Pina, Marina em Carolina”, realizada em outubro de 2015 na cidade de Bogotá, Colômbia dentro do “Encuentro Latino Americano de Pesquisadores del Cuerpo, Corporalidad y las Culturas”. Neste artigo além de alguns registros do workshop de “Reperformance e Feminismo” ministrado apenas para mulheres, também trago alguns relatos da experiência de reperformar em Bogotá e de propor uma vivência urbana em reperforrmance com as participantes do workshop, artistas brasileiras, colombianas, chilenas e uruguaias. PALAVRAS CHAVE Experimento; reperformance; feminino ABSTRACT The article presents some of the experiences of the "Experiment 5 – Não Pise na Dama” fruit of reperformance studies of the work "Não Pise na Dama” which includes the master's project "Pina, Marina em Carolina" held in October 2015 in Bogota, Colombia within the "Encuentro Latino Americano de Pesquisadores del Cuerpo, Corporalidad y las Culturas”. In this article in addition to some workshop records "Reperformance e Feminismo" given only to women, also bring some reports of reperformance experience in Bogota, and to propose an urban experience in reperforrmance with workshop participants, Brazilian, Colombian, Chilean artists and Uruguayan. KEYWORDS Experiment; reperformance; feminine

No ano de 2014 iniciei uma pesquisa em reperformance a partir do ingresso ao Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com a orientação da Prof. Dr. Naira Ciotti, e entre o período de março de 2015 à março de 2016 realizei a prática de estudos em reperformance intitulada “Pina, Marina em Carolina” desenvolvendo ao todo sete experimentos. Neste artigo pretendo discorrer especificamente sobre o quinto experimento, que foi realizado em parceria com artistas latino americanas na cidade de Bogotá em outubro de 2015 (CO). Na pesquisa “Pina, Marina em Carolina” me predispus a investigar a reperformance enquanto ferramenta de investigação e criação, e partindo de algumas obras e

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artistas que me fomentam também investiguei minha produção autoral. Iniciei a investigação estudando algumas obras das artistas Pina Bausch e Marina Abramovic, que selecionei para os meus estudos em reperformance. E com foco de delinear meu próprio processo estabeleci alguns links poéticos para poder organizar a ordem em que realizaria os experimentos. Para isto, me inspirei na estrutura da obra “Seven Easy Pieces” (2005) de Marina Abramovic, onde a artista reperforma alguns trabalhos de artistas da década de 70 durante sete dias, como Valie Export e Joseph Beuys, cada dia expondo uma nova reperformance no Museu de Guggenheim em Nova York. Finalizando a série com duas obras onde a própria artista revisita um de seus trabalhos, a performance “Lips of Thomas” (1975) e encerra a semana com uma performance inédita “Entering the Other Side” (2005), desenvolvida exclusivamente para a série “Seven Easy Pieces” (2005). Inspirada nesta estrutura das reperformances de Abramovic desenvolvi minha própria ordem com sete experimentos. Acabei desenvolvendo ao longo do processo dois experimentos em que investigo duas obras minhas, e cinco experimentos a partir de trabalhos das artistas investigadas. Reperformar é dialogar com outras obras, recriar, como me propus a realizar investigando novamente um trabalho desenvolvido no ano de 2012, agora em 2016. Segundo a performer e pesquisadora Naira Ciotti (2014) a criação: é o processo que dá e concede autoria de uma obra pela originalidade, reconhecendo, na autoria, o artista. Daí então, a obra e seu criador passam a exercer influências sobre expectadores e artistas de seu tempo. Vem do sujeito contaminado admitir ou afirmar que sua obra sofre influências de outro artista e quem se inspira se deixa influências mostra ao mundo sua capacidade narrativa. Na reperformance, a questão é de responsabilidade no reconhecimento da contaminação pela obra de outro artista. (CIOTTI, 2014, p. 3)

A partir de reflexões sobre as pesquisas de Ciotti pode-se afirmar que dentro da perspectiva da Reperformance é possível propor uma pesquisa de investigação e visitação de outros artistas para construir a sua própria poética, pois uma obra contamina a outra. E de acordo com este pensamento, para realizar esta minha criação a partir dos estudos em reperformance, decidi desenvolver links poéticos. Na tentativa de esboçar um roteiro de certa forma dramatúrgico dos experimentos, acabei estabelecendo ligações essencialmente poéticas e intuitivas. Uma delas foi a percepção da temática do feminino em minha trajetória enquanto performer, atriz e diretora. Falar sobre o universo feminino em toda sua amplitude e possibilidades é um assunto que para mim nunca cessa e consciente ou inconscientemente venho abordando há anos. Para isto busquei obras que dialogassem com esta temática, e o link poético do feminino. Neste link poético uma das obras que compõe a experimentação dos estudos em reperformance foi o espetáculo “Não Pise na Dama” que desenvolvi em parceria poética com o artista Juão Nin em 2012. Este trabalho se desdobrou em uma performance realizada no mesmo ano nas cidades de São Paulo e São Caetano do Sul,

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e também integrou o “Circuito Regional de Performance BodeArte” organizado pelo “Coletivo Es3”na cidade de Natal. O recorte escolhido para os estudos em reperformance da obra “Não Pise na Dama” surgiu a partir da aprovação do “Workshop Reperformance e Feminismo – Estudos em Reperformance” no “Encuentro Latino Americano de Investigadores del Cuerpo, Corporalidad y las Culturas” realizado na cidade de Bogotá, Colômbia no período de 2 à 6 de outubro de 2015. Diante dos conflitos iniciais a estratégia foi adaptar a obra para que pudesse ser realizada com poucos elementos, e para que fosse “portátil”, por causa do deslocamento para a cidade de Bogotá. Pensando também no tempo do workshop cedido pelo evento a idéia precisava ser simples. Lidando com a precariedade de não ter uma equipe de produção que conseguisse me auxiliar, adaptei a performance para algo que fosse possível e consistente no breve tempo que o evento havia me disponibilizado. Era de desejo pessoal que também, anterior ao workshop, ocorresse a performance na qual seria sugerida a vivência para finalizar os estudos e investigações em reperformances e feminismo. Para isto convidei, um afeto performero, a artista Ludmila Castanheira que conheci em março de 2015 na cidade de Santos e também integrou o “Workshop Exercícios para Artistas Rebeldes” ministrado pelo coletivo La Pocha Nostra, para reperformar comigo o “Não Pise na Dama” antes do workshop. Minha proposta na realização do experimento era de compor a investigação apenas com mulheres, no sentido que a atualização da obra seria a opressão da mulher consigo mesma ou com outra mulher. Originalmente a obra é composta por um homem e uma mulher. Quando a desenvolvi no ano de 2012 junto com a parceria do artista Juão Nin, nossa perspectiva era de iniciar as investigações acerca da violência e opressão social na figura do feminino, e para isso utilizamos o binárismo homem e mulher iniciando o espetáculo, que ao seu decorrer era descontruído apresentando possibilidades de existência e resistência do universno feminino na mulher, na travesti, na transexual, na bissexual, no homossexual, e também no homem heterossexual cis. O feminino em todas as suas diversas possibilidades sociais. E partindo de uma perspectiva de atualização, a partir dos estudos em reperformance, o experimento da obra “Não Pise na Dama” para mim, não faria sentido se eu repetisse as figuras desenvolvidas por mim e Juão Nin, e sim se investigasse esta opressão do feminino por uma outra perspectiva. Para isto decidi investigar a opressão feminina realizada pela figura da própria mulher. Pensar este corpo oprimido que também pode ser opressor de si mesmo, e de outros corpos, socialmente, poeticamente, cotidianamente. Diante desta decisão convidei apenas mulheres para integrar esta experimentação junto comigo e desenvolvi esta experiência em Bogotá em três partes. Na primeira realizei a vivência da reperformance junto com a parceria de outra artista brasileira, Ludmila Castanhera. Convidei-a tanto para experimentar comigo, quanto para convidar as mulheres que integravam o evento a participar do workshop que seria realizado a seguir. Após a reperformance entramos na sala na qual ministrei o

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“Workshop de Reperformance e Feminismo”, com o público voltado apenas para mulheres.

Figura 1 – Registro do “Workshop de Reperformance e Feminismo” realizado para mulheres na Universidad Destrital Faculdad de Artes ASAB em Bogotá, 2015. Foto: Produção do evento.

Como Ludmila também iria performar no mesmo dia, e haviam muitas atividades na faculdade que integravam o evento neste dia, o tempo para teste de materiais da reperformance e espaço foi curto e pontual. Duas horas antes da realização da reperformance, subimos para a cobertura, local que iriamos reperformar o “Não Pise na Dama”, e que em seguida ocorreria o workshop, e testamos a movimentação apenas para perceber se havia espaço suficiente ou não na realização da ação. A obra consiste em um esgotamento de dois corpos que sambam e aos poucos se aproximam, cansados se beijam. Do beijo surge um fio de cetim vermelho, que com a ação de se afastar, ainda sambando, é estendido. Após o fio vermelho, que está ligado pelas duas bocas, estender, uma das pessoas (no caso da obra original a mulher) continua sambando no centro, e a outra pessoa corre de costas de modo que o fio começa a deformar o rosto da pessoa que continua sambando no centro. A performance é finalizada apenas quando um dos dois corpos soltam o fio.

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Figura 2 – Espetáculo “Não Pise na Dama”, na foto os artistas Carol Piñeiro e Juão Nin, Natal 2012. Foto: Ramilla Souza

Após a realização do experimento com a artista Ludmila Castanhera dei início a um workshop aberto apenas para mulheres, sobre reperformances e feminismo. O workshop foi criado especificamente para o evento, contendo, porém, práticas e exercícios que desenvolvi durante os “Workshops de Estudos em Reperformance” no Brasil. A única diferença foi a questão temporal, dentre todos os experimentos. Esta foi uma vivência em reperformance que conteve menos tempo. Tive apenas um dia para realizar a reperformances, o workshop e a vivência. Todas as outras práticas que desenvolvi no projeto “Pina Marina em Carolina” foram desenvolvidas no período de uma semana, lidando também com períodos curtos e pontuais, porém até então nunca tão curtos. Acredito que se esta vivência em Bogotá tivesse acontecido no início da minha prática, talvez não tivesse conseguido realizar as três atividades que idealizei. Principalmente porque tive que me comunicar em espanhol, a pedido do evento, língua que não domino completamente, apenas entendo parcialmente. O “Experimento 5 - Não Pise na Dama” foi realizado às 14:20 na cobertura do prédio da Universidad Destrital de Artes ASSAB. Após a realização da obra eu, Ludmila, a equipe do evento e cerca de 12 mulheres entramos na sala que estava disponibilizada para o workshop e iniciamos a segunda etapa do dia. Ministrei então o “Workshop de Reperformance e Feminismo” onde adaptei alguns dos laboratórios já realizados anteriormente nos “Workshops de Estudos em Reperformance” no Brasil, e também realizei uma fala introdutória sobre o que é Reperformance, discorrendo sobre minha pesquisa, as descobertas com o levantamento histórico da performance arte, realizado pela teórica Amelia Jones em seu livro “Reperform, Repeat and Record”, o qual traduzi e reflito em minha dissertação.

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Finalizei a abertura do workshop apresentando duas obras que foram analisadas e discutidas com o grupo para introduzir, posteriormente a esse início teórico, a parte prática. Após situar as participantes no que consiste a Reperformance, e falar sobre a linha do tempo de Amélia Jones, sobre o “Seven Easy Pieces” de Abramovic e sobre meu projeto “Pina Marina em Carolina”, falamos sobre os trabalhos “Não Pise na Dama” (2012) e sobre a performance “Altar Feminista” (2015). Ambos trabalhos haviam sido reperformados durante o desenvolvimento da minha pesquisa, na parte de investigação autoral, e carregam discursos acerca do feminino, do corpo, do gênero e do feminismo. A busca neste workshop era de identificar características importantes de cada trabalho para, na segunda parte do workshop, participar da vivência em reperformance, integrando ainda o “Experimento 5”, porém desta vez agregando novos corpos, onde intitulo e finalizo o pensamento de toda vivência em Bogotá por “Não Pise na Dama”. O workshop foi composto por mulheres de origens brasileiras, uruguaias, colombianas e chilenas. A proposta era, a partir dos estudos em reperformance, investigar uma nova atualização enquanto vivência urbana na obra “Não Pise na Dama” e encontrar o discurso que unia este grupo de mulheres latinoamericanas. Após a parte de introdução teórica do workshop foi proposta então uma roda de bate papo que teve duração de cerca de uma hora, onde todas as participantes puderam fazer colocações sobre a pesquisa, e era sugerido que cada um compartilhasse seu olhar com relação ao feminismo, para que o discurso de grupo fosse conhecido e afinado. A característica mais forte desta conversa foi o desabafo de experiências pessoais referentes a abusos, assédios e inseguranças de atos cotidianos como o de “voltar para casa sozinha”, “sair de casa com roupas curtas”, “andar de taxi sem a companhia de um homem”. Segundo uma das participantes do workshop “mulheres não andam de taxi no México” pois o nível de agressões sexuais, estupros e abusos por meio dos próprios taxistas é alto. Assim como outra participante indicou também, os índices de agressões em mulheres no Brasil, por exemplo, é um dos mais altos da América Latina, tendo o Rio Grande do Norte, cidade onde resido, como a capital mais violenta do país, com relação à taxa de agressão de mulheres, como mostra a matéria “Taxa de 29 agressões no RN é a maior do Brasil diz Mapa” feita por Rafael Barbosa e Paulo Nascimento, jornalistas do Novo Jornal. De acordo com a matéria o Mapa da Violência de 2015: Homicídio de Mulheres do Brasil, 79.708 mulheres foram vítimas de agressão no ano de 2013. Este levantamento foi realizado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso) e de acordo com estes dados: O número representa 6,2% da população feminina potiguar. É a maior taxa de todo o Brasil. Ainda segundo o levantamento, se forem levadas em consideração agressões de pessoas conhecidas e

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BARBOSA, Rafael; NASCIMENTO, Paulo. “Taxa de agressões a mulheres no RN é a maior do Brasil, diz Mapa”. Portal Novo Jornal. Disponível em: <http://novojornal.jor.br/cotidiano/taxa-de-agressoes-a-mulheres-no-rn-e-a-maior-do-brasil-dizmapa>. Acesso em: 21-nov-2015.

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desconhecidas, esse índice sobe para 120.060 casos, 9,3% do total de mulheres do estado. Também é a maior taxa nacional. (BARBOSA e NASCIMENTO, portal Novo Jornal, 2015)

Julgo que este tipo de atividade é extremamente relevante socialmente e politicamente. Enquanto pesquisa e enquanto experiência, partilhar minhas experiências artísticas e pessoais com outras mulheres de diferentes nacionalidades, mas que passaram por momentos semelhantes aos meus, aqui no Brasil, só reforça a importância da arte feminista persistir, ainda mais na América Latina. Investigar gênero, liberdade, em contraponto com padrões de sociedades patriarcais não é um trabalho simples, porém se mostra cada vez mais necessário e urgente, mesmo que não seja um assunto nem um pouco novo. E estabelecer este trânsito de investigação, compartilhando um pouco do meu trabalho e dialogando com outras artistas latino-americanas foi uma experiência extremamente especial e forte. Finalizo este pensamento com um trecho de Julia Antivilo Peña em seu livro “Entre o Sagrado y lo Profano se tejen Rebeldias” que resume minha sensação pós esta experiência dos estudos em reperformance em Bogotá: El arte feminista segue desafiando las representaciones dominantes y estereotipadas de alas mujeres latino-americanas para reiventar uma forma más libre de ser mujeres fuera de la representación patriarcal, para reiventar uma forma más, para cuestionarla y patentear sus entrelazamientos com los temas de género, sexo y raza. (PEÑA, 2015, p. 43)

Segundo o pensamento de Peña (2015), a busca e o interesse da arte feminista latino americana é de reinventar formas livres para nós, mulheres, nos desprendermos da representação patriarcal, questionando-a e criticando-a. Para isto, trocar experiências, ouvir memórias, relatos de abusos, medos, dados culturais, apenas reforçou a importância do trânsito que estava sendo estabelecido com todas as mulheres neste workshop. E que não foi um trânsito entre Brasil e Bogotá apenas, foi um trânsito entre mulheres, artistas latino-americanas, que vivenciam opressão cotidianamente. Cada uma dentro da realidade cultural do seu país, mas que se refletiu em todas as outras realidades, precariedades, diante dos relatos e experiências compartilhadas que se repetem nos outros países, realidades e corpos. Após este compartilhamento de experiências sobre conflitos e opressões também refletimos juntas sobre a importância da sororidade, da coletividade feminina. Diante de alguns relatos extremamente pessoais e íntimos descobri que uma das mulheres que integrou o workshop estava, por exemplo, morando há um mês em um abrigo para mulheres que haviam sofrido violência sexual. Esta mulher, que inclusive incialmente havia dito que não desejava integrar a prática, que estava apenas como ouvinte, após esta troca disse que estava completamente agradecida por estar ali, ouvindo outros relatos, e desejou participar da vivência. A experiência com estas mulheres mexeu muito comigo, pois me vi em todas elas. Percebi que o trabalho que eu decidi compartilhar com elas, e a forma de inserir-lás nesta investigação comigo e proporcionar este trânsito, também estava sendo uma atitude política, sensível e necessária para mim e para elas.

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Pensando nesta reflexão, finalizei o bate-papo e propus três exercícios de relação para que o contato físico entre o grupo fosse estabelecido, e ainda mais importante que o contato físico, para construir um cuidado com o corpo do outro assim como o respeito. Começamos com uma massagem coletiva e em seguida dois exercícios de confiança. O primeiro de correr em linha reta, com os olhos fechados, seguindo as instruções sonoras de “vai” e “para”, atentando para a confiança no grupo e contato de corpo e espaço. Em seguida, após finalizar este exercício propus uma nova corrida, desta vez com olhos abertos, e partindo do lado oposto da sala até o grupo, que deveria levantar e erguer a pessoa que corria assim que a instrução “pule” fosse realizada. A pessoa que corria em direção ao grupo deveria pular para cima, próximo a ele e ser segurada pelas participantes do workshop, e erguida para o alto. Ambos são exercícios simples, mas que exigem confiança e prontidão. Características presentes e necessárias para uma performance e principalmente para uma vivência urbana. Após os três exercícios sugeri a vivência na rua em frente ao prédio da Faculdade. Todas as participantes concordaram, e animadas desceram comigo para ouvir as instruções da vivência que seria realizada em seguida. Expliquei como a performance se desenvolvia para as poucas pessoas que chegaram atrasadas no workshop e não conseguiram assistir o “Experimento 5” feito por mim e Ludmila, e em seguida realizamos a vivência. Pedi que o fio sempre estivesse tenso, e que cada uma seguisse o ritmo da dupla. O final seria escolhido dupla a dupla, não sendo necessária uma preocupação com marcações ou finais premeditados. Realizamos a vivência, que teve cerca de 10 minutos e foi realizada por 4 duplas e 1 trio.

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Figura 3 – Registro da vivência em reperformance e feminismo a partir dos estudos da obra “Não Pise na Dama”, após o workshop realizado para mulheres na Universidad Destrital Faculdad de Artes ASAB em Bogotá, 2015. Foto: Javier Orlando Lozano Escobar.

A partir das experiências descritas em todos os “Workshops Estudos em Reperformance” até então desenvolvidos para esta pesquisa, é interessante perceber que cada processo ditou seu próprio percurso. O estudo em reperformance lida com a atualização da obra estudada e sua reflexão crítica, e se torna um novo material, ainda mais nesse contexto de uso da reperformance enquanto metodologia, estudo e desenvolvimento de uma criação artística. Fiquei muito contente com os “resultados” deste experimento, ainda mais com o retorno das participantes pós vivência. Sentamos-nos na própria rua e conversamos sobre a experiência, algumas choraram e disseram que nunca haviam se sentido tão próximas de outra mulher. Algumas estranharam o fato do fio machucar e “deformar” os rostos, e não conseguiram realizar a vivência durante muito tempo, pois não suportaram se perceber enquanto opressoras. Já outras se identificaram com a figura do poder e do controle do corpo da outra, e mantiveram a experiência até o esgotamento das energias dos corpos. Cada corpo relatou suas memórias pós vivência e foi muito especial ouvir tantos relatos sobre algo que partilhamos e experimentamos juntas. Trago para finalizar este artigo um depoimento de uma das participantes do workshop e da vivência em reperformance e feminismo, a artista Daniela Villa Garcia: Una comunidad de emancipación y resistencia. Eso fue lo que creamos en aquel taller, que sin yo pretenderlo me hizo sentir, analizar e interiorizar ese cuerpo que es tan violentado socialmente. Ese cuerpo que está controlado y estereotipado tanto por "hombres" como por las mismas "mujeres". Danzamos, vivimos, sentimos, pero al tiempo reprimimos y violentamos con palabras y actos. Me encantó estar allí, bailar como si nadie me viera, compartir desde la intimidad de las "mujeres", conocer nuestros temores y alegrías... Y sentir esa presión que transgredía mi rostro mientras solo quería escapar. Gracias a mi compañera (Depoimento de Daniela Villa Garcia, sobre a vivência urbana dos estudos em reperformance da obra Não Pise na Dama, realizado em Bogotá)

Referências CIOTTI, Naira. A Re performance. ABRACE. São Paulo. PUC, 2008. _______, Naira. O professor-performer. Natal. Editora: EDUFRN, 2014. JONES, Amelia; HEATHFIELD, Adrian. Perform Repeat Record: Live Art in History. Intellect, 2012.

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PEÑA, Julia Antivilo. Entre lo sagrado y lo profano se tejem rebeldías – Arte Feminista Latinoamericana. Bogotá. Editora: Desde Abajo. 2015. REFERÊNCIA HIPERTEXTUAL: BARBOSA, Rafael; NASCIMENTO, Paulo. “Taxa de agressões a mulheres no RN é a maior do Brasil, diz Mapa”. Portal Novo Jornal. Disponível em: <http://novojornal.jor.br/cotidiano/taxa-de-agressoes-a-mulheres-no-rn-e-a-maior-dobrasil-diz-mapa>. Acesso em: 21-nov-2015. Maria Carolina de Hollanda Cavalcanti Piñeiro (Carol Piñeiro) Artista e pesquisadora, graduada em Teatro pela UFRN (2012). Trabalha com performance desde o ano de 2008 na cidade de Natal. Discente do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas pela UFRN, desenvolve uma pesquisa autoral de estudos em reperformance intitulada “Pina, Marina em Carolina”, no qual realizou uma série com sete experimentos que investigaram algumas obras das artistas Pina Bausch, Marina Abramovic e trabalhos autorais.

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DO OFICIAL AO OCULTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE AS TEORIAS DE CURRÍCULO E O ENSINO DE ARTE NA ESCOLA GINÁSIO PERNAMBUCANO Maria Clara de Lima Santos/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir por um viés crítico o papel do ensino das artes visuais na Escola de Referência em Ensino Médio Ginásio Pernambucano, situada em Recife. Através das teorias críticas de currículo, será analisada as discrepâncias entre o discurso do Plano Político Pedagógico (PPP) da instituição e a prática cotidiana dos professores e gestores, pensando também as relações de poder dentro da escola. Analisando a relação do PPP com os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), resgatando, também, o papel daquela instituição na comunidade ao redor, dando assim o panorama das relações curriculares para além dos “muros da instituição”, procura-se apresentar uma solução para a problemática analisada. PALAVRAS-CHAVE Arte-educação; Currículo; Ensino Básico, PCN ABSTRACT This article has the objective to talk for a critical bias about the art education in the “Escola de Referência em Ensino Médio Ginásio Pernambucano”, located in Recife. Through critical curriculum theories, It will analyze the discrepancies between the discourse of the Pedagogical Political Plan (PPP) and the daily pratical of teachers and administrators. It will analyze the relation about the PPP and the Current National Curriculum Parameters (PCN), rescuing also the role of that institution in the community around, giving the panorama of the curriculum relations beyond “the school’s walls”, try to present a problematic analyzed solution. KEYWORDS Art education; Curriculum; Basic education, PCN

Existe uma premissa que já foi atribuída a diversos pensadores, porém beira o dito popular, de que “saber é poder”. Essa frase define, quase como um aforisma, as teorias do currículo no âmbito educacional. O currículo, que é sempre um recorte de um todo, seleciona quais os conteúdos serão ensinados, quais serão privilegiados e o como e o porquê eles serão lecionados. Segundo Silva (1999, p.150): O currículo é um lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.

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Sendo assim, as teorias de currículo vão além do ambiente escolar e se refletem nas relações sociais, culturais e econômicas. Entender e questionar esse processo é de fundamental importância para entender a dinâmica escolar como um todo. Ao analisar os parâmetros curriculares da Escola Estadual de Referência Ginásio Pernambucano, situada no centro de Recife e considerada a mais antiga escola em funcionamento do país, nota-se que oficialmente a instituição está político e pedagogicamente comprometida com a formação de um cidadão crítico. A ideia de autonomia e convivência social permeia todo o documento (PPP) e visa também a construção de uma identidade cultural que respeite a vivência dos estudantes, mas que seja ao mesmo tempo aberta a outras culturas. Esse ideal de cidadão universal e abrangente, guiado pela sua racionalidade e papel central da ação social, é herança de uma visão Moderna da educação. A escola como instituição surge na idade moderna como forma de unificar um ensino baseado em uma unidade e universalidade moral. Esses ideais divergem com os questionamentos levantados pelo pensamento pósmodernista. Atualmente percebe-se que o cenário (social, político e econômico) é de descentralização, questionamento e dúvida, além de uma retomada ao pensamento subjetivista. Logo, quando uma visão tradicional de formação é confrontada com uma visão de mundo contemporânea completamente adversa, há um conflito ideológico. Essa tensão é nítida no cotidiano do Ginásio Pernambucano, sendo um dos principais motivos para a equipe pedagógica estar desorientada sobre como se aproximar dos estudantes e pela falta de interesse dos educandos na vivência escolar. (Silva, 1999) O Plano Político Pedagógico da escola teve como base os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Produzidos na segunda metade da década de 90 pelo MEC, os PCNs possuem a função de uniformizar o currículo escolar nacional pela delineação do conteúdo mínimo a ser trabalhado no ensino básico. A organização curricular sugerida pelo PCN traz a criação de três áreas do conhecimento que agrupam disciplinas que possuem afinidades entre si, como exemplo o ensino das artes visuais, que está dentro da área de linguagem e suas tecnologias, assim como o ensino da língua portuguesa, literatura e língua estrangeira. Não procurando, dessa forma, o fim da organização curricular por disciplinas, mas uma maior coesão entre elas. O documento oficial do Ginásio Pernambucano está atento a essa questão abordada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, sendo a interdisciplinaridade citada como um dos objetivos, porém no cotidiano escolar as disciplinas continuam estruturadas de maneira tradicional. Cada professor leciona uma disciplina em determinado horário de tempo, não havendo diálogo entre os conteúdos disciplinares. A relação contraditória entre o planejamento político pedagógico da instituição inspirado pelo PCN e as práticas pedagógicas mostram que as constantes citações dos PCNs no texto do PPP vieram na tentativa de legitimar um discurso, ao invés de refletir sobre o currículo. O documento (PPP) prevê, como exigido na lei 11.645/2008, a realização de atividades referentes a história e cultura afro-brasileira e indígena, conteúdo a ser trabalhado principalmente na área de linguística, letras e artes. Essa escolha curricular

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cria a possibilidade de relegação do assunto a atividades pontuais, previsão que se demostra na prática cotidiana escolar. Essa redução a que fica submetida a discussão dos conteúdos sobre grupos minoritários reforça uma atitude discriminatória, de trivialização e que distancia ainda mais os educandos da postura de protagonista social que a instituição tanto almeja. (Santomé, 2011) Ainda no documento (PPP) há menção à introdução dos jovens no mercado de trabalho, aliado à construção do ser crítico, buscando o trabalho como atividade de transformação social. Contudo, na prática é possível notar a ausência de programas que viabilizem essa inserção, e a falta de parcerias com empresas e instituições mantém essa diretriz apenas no papel. Seguindo essa exigência curricular, os estudantes possuem uma disciplina de empreendedorismo que dispõe de uma carga horária irrisória, além de ser constantemente negligenciada durante o processo avaliativo. Não há, de acordo com Plano Político Pedagógico da instituição, nenhuma referência ao ensino probatório, com exceção da atividade GP Fera que prevê a realização de “aulões” e simulados para as provas do ENEM e vestibulares. O GP Fera que aparece no documento apenas como mais uma das diversas atividades desenvolvidas pela escola toma lugar de protagonismo no cotidiano escolar. Todo o processo avaliativo da escola, composto por provas trimestrais, é voltado para a simulação da prova do ENEM. A preocupação dos docentes em atrair a atenção dos alunos para o vestibular é uma constante nas práticas em sala de aula e nos diálogos extraclasse. Todos os pontos apontados acima levam à conclusão de que no Ginásio Pernambucano há visivelmente dois currículos em prática. O currículo oficial, que pomposamente escrito visa uma educação mais humanista, e o currículo real, que se revela na prática cotidiana e visa a preparação para provas de vestibular. A questão levantada a seguir é “qual o papel da arte-educação nessa instituição? ”. Pois no texto do PPP já há uma indicação de que o ensino de arte será coadjuvante no papel de ensino-aprendizagem e principalmente vinculado a alguns projetos pontuais. Quando vamos para o currículo real, a arte-educação ainda possui pouco espaço nas provas de vestibular, aparecendo esporadicamente pelo viés da história da arte.

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Imagem 1: Janela da Escola de Referência do Ensino Médio Ginásio Pernambucano, Recife. Acervo pessoal.

A imagem (1) acima responde claramente à questão sobre o papel da arte/educação no cotidiano da instituição. O prédio da escola (durante sua existência o colégio teve várias instalações, ganhando recentemente uma nova sede) foi inaugurado em 2012 e construído especialmente para ser utilizado como espaço escolar. Todas as salas de aula do colégio possuem janelões para aproveitar o máximo possível da claridade e ventilação externa, mas essas janelas não possuem cortinas. Contudo, foi instalado uma rede de refrigeração nas salas porque o ambiente é insalubre por causa do calor excessivo. E com o uso de projetores de imagem, o excesso de luminosidade vira um incômodo, devido à falta de cortinas. A direção do colégio teve que tapar as janelas com pedaços de jornais antigos, tecidos escuros e papelão. Esse fato já aponta uma falta de sensibilidade das políticas públicas com o planejamento da rede pública de ensino, pois o prédio foi construído de forma obsoleta, não tendo em vista as mudanças tecnológicas que a escola (como instituição) vem sofrendo nessas últimas décadas. Todavia, o ponto crucial em que a imagem (1) toca é que uma produção artística de um aluno foi usada como vedação da janela. De acordo com a teoria do currículo oculto (Silva, 1999, p.78): Eram as características estruturais de sala de aula e da situação de ensino, mas do que o seu conteúdo explícito, que “ensinavam” certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo. (...) O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes.

Sendo assim, a marginalização do ensino da arte está implícita nesse ato da coordenação, que teve toda a condescendência da equipe pedagógica (incluindo a docente de artes) e dos próprios alunos. Isso se confirma com a falta de investimento

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que o curso de artes possui na escola. Constantemente é solicitada uma lista de materiais para uso em aula que nunca é atendida. A atual gestora argumenta sobre a falta de verba, contudo é possível notar que ela prioriza outras áreas do conhecimento, pois nunca falta material esportivo na instituição, por exemplo. A docente de artes visuais pede com frequência uma sala própria para agilizar seu tempo de aula (que é bastante limitado), e apesar da escola possuir salas desativadas e em plenas condições de uso, seu pedido nunca foi atendido. Santos e Barros (2010, p.1) atentam que através da arte-educação o indivíduo pode ser “capaz de conquistar autonomia, criticidade frente às questões sociais que o cerca e capaz de promover a construção da sua identidade”. Se entendermos que é “através da arte que o agente transformador e socializador se manifesta” (Santos e Barros, 2010) era de se esperar que, de acordo com o currículo oficial da instituição, o ensino da arte tivesse papel fundamental na formação dos educandos. Porém, as entrelinhas do currículo oculto negam veemente esse currículo oficial. O currículo oculto que se revela na imagem vai além das questões referentes ao ensino da arte. O desprezo pela produção artística dos alunos revela como são consideradas as experiências e o desenvolvimento do ensino-aprendizado dos educandos. Freire (1996, p. 35) aponta que é impossível educar havendo uma contradição entre prática e discurso. Segundo o autor: Que podem pensar alunos sérios de um professor que, há dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e hoje, dizendo que não mudou, faz o discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência do saber do professor para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formação da classe trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém que é progressista? Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz ou invés de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar certo e ao mesmo tempo perguntar ao aluno se ‘sabe com quem está falando’.

O exemplo citado por Freire trata do micro da relação aluno-professor, porém pode muito bem ser aplicada em uma relação mais ampla de equipe pedagógica-alunoprofessor. Como pode se falar em promover o protagonismo social e cultural dos educandos e ao mesmo tempo desvalorizar a produção de conhecimento deles? O que se aprende no currículo oculto são atitudes, comportamentos, valores e orientações que estão fortemente ligadas às relações sociais mais amplas. (Silva, 1999). Logo essa ação vem para interiorizar nos estudantes que suas produções e conhecimentos não são válidos no âmbito acadêmico, mexendo diretamente com a autoestima deles. A perfuração da imagem indica que esse processo de baixa autoestima e desrespeito dos educados pelo próprio conhecimento já sucede.

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Imagem 2: Alunos do Ginásio Pernambucano em uma atividade escolar, Recife. Acervo pessoal.

A imagem 2 mostra mais uma faceta do currículo oculto da escola. A coordenação distribui aos alunos do terceiro ano uma farda especial que indica a área do conhecimento na qual o aluno tem interesse (no lado traseiro) e possui o ano de formatura e a palavra fera (no lado frontal). Na psicologia analítica a roupa está fortemente associada a ideia de Persona. A palavra Persona têm origem latina e significa máscara ou personagem, um termo bastante utilizado na área de publicidade e teatro, que em psicologia assume a forma de como nos apresentamos ao mundo. As diversas faces que uma pessoa assume em diferentes situações sociais, não necessariamente indicando quem elas são, mas sim, quem elas gostariam de ser ou querem aparentar ser. (ÉSTES, 1996) Distribuir fardamentos especiais a turma que está prestes a terminar o ensino básico e pode, então, pleitear uma vaga no ensino superior, tendo essas camisas referências explícitas à preparação para a competição voltada ao vestibular, demonstra que o que realmente se espera dos alunos é que eles assumam uma postura, uma persona, dedicada ao ensino probatório (que tem como característica a constante realização de provas e visa atingir um certificado de aprovação, como no caso, a aprovação no vestibular) . Sendo também uma discussão bastante presente na sala dos professores a questão: “como o colégio pode motivar os alunos a estudar mais para o ENEM? ”. Essa é uma das principais preocupações da equipe docente. O contraste entre as imagens (1 e 2) e o discurso é marcante. Demonstra o que a escola prioriza, a ponto de querer que os alunos assumam como uma faceta da sua personalidade, e o que claramente é marginalizado. Ao analisar não apenas os documentos oficiais que indicam as diretrizes curriculares do Ginásio Pernambucano, mas também seu cotidiano escolar, é bastante significativo os discursos contraditórios dentro da instituição. A distância do que oficialmente se tem como objetivo pedagógico e a prática docente e institucional é abissal, tendo o currículo oculto como um indicativo de consolidação da prática cotidiana e de negação do discurso oficial e o ensino de arte como um componente escolar tido como dispensável. Segundo Silva (SILVA, 1999, p.80): 219


“O que está implícito na noção de currículo oculto é a noção de que se conseguirmos desocultá-lo, ele se tornará menos eficaz, ele deixará de ter os efeitos que tem pela única razão de ser oculto. (...). Tornar-se consciente do currículo significa, de alguma forma, desarmá-lo”

Iluminar o currículo oculto pode ser um começo para se repensar todo o currículo escolar da instituição (pensando o currículo não apenas como uma visão tradicional de lista de conteúdo, mas como toda a interação social que se dá entre os muros da escola e além deles), passando pela reflexão sobre a prática pedagógica e do que é educar para aqueles docentes, já que nenhuma mudança ocorre longe de uma reflexão crítica.

Referências BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 1991. ÉSTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e arquétipos da mulher selvagem. Editora Rocco: Rio de Janeiro, 1994. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Editora Paz e Terra: São Paulo, 2015.. GALIAN, Claudia Valentina Assumpção. Os pcns e a elaboração de propostas curriculares no Brasil. Cadernos de pesquisa v.44 n.153 p.648-669 jul./set. 2014. SANTOMÉ, Furjo Torres. Org: SILVA, Tomaz Tadeu. As culturas negadas e silenciadas no currículo. Editora Vozes: 2011. SANTOS, Erton Kleiton Cabral dos. BARROS, Ana Maria. Educação e cultura: O papel da arte educação na formação de protagonismos na juventude pernambucana. Revista eletrônica da Faculdade de Direito de Caruaru – UFPE. Caruaru, 2010. SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Editora autêntica. Belo Horizonte, 1999. Maria Clara de Lima Santos Estudante de licenciatura em artes visuais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista Pibic/Capes.

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O CAMPO DA CULTURA VISUAL NA PRODUÇÃO ACADÊMICA BRASILEIRA DISPONÍVEL NO BANCO DE TESES DA CAPES PERÍODO 2010-2015 Maria Emilia Sardelich/ Universidade Federal da Paraíba Ana Garcia/ Universidade Federal da Paraíba RESUMO Este trabalho apresenta dados referentes a produção acadêmica brasileira no campo de estudo da Cultura Visual. É resultado de uma pesquisa mais ampla, conduzida pelo Grupo de Pesquisa em Ensino de Artes Visuais (GPEAV), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sobre o estado do conhecimento da Cultura Visual no Brasil. Os dados apresentados nesta comunicação referem-se a um levantamento realizado no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no período de 2010 a 2015. Os resultados apontam para um número significativo de trabalhos produzidos em Programas de Pós-graduação nas áreas de Artes, Comunicação, Letras, Educação e História. Quantitativamente destaca-se a área de conhecimento de Artes, com Programa de Pós-graduação localizado na região centrooeste do País. PALAVRAS-CHAVE Cultura Visual; estado do conhecimento; levantamento bibliográfico; Banco de Teses CAPES RESUMEN Este artículo presenta datos sobre la producción académica brasileña en el campo de estudio de la Cultura Visual. Se vincula a un proyecto más amplio, realizado por el Grupo de Pesquisa em Ensino de Arte (GPEAV), de la Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sobre el estado del conocimiento en Cultura Visual. Presenta una recopilación de las disertaciones y tesis disponibles en el Banco de Tesis de la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), en el período de 2010 a 2015. Los resultados apuntan a un importante número de obras producidas en los programas de postgrado en las áreas de Artes, Comunicación, Lengua y Literatura, Educación e Historia. Se destaca el área de conocimiento de Artes, con un Programa de Posgrado ubicado en la región central del País. PALABRAS CLAVE Cultura Visual; estado del conocimiento; investigación bibliográfica; Banco de Tesis CAPES

Introdução Um dia comum na vida de qualquer um de nós que estejamos conectados no e ao século XXI, está traspassado por incontáveis imagens errantes que nos olham enquanto as olhamos deslizando nossos dedos pelas telas que lhes suportam. As imagens estão presentes nas nossas práticas sociais como elemento fundamental

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tanto nos modos de produção como de apropriação das representações simbólicas e discursivas. Essa ubiquidade da imagem no mundo contemporâneo tem atraído diferentes áreas do conhecimento para o seu estudo. Cada uma dessas áreas tem tratado a questão relacionada com a imagem e a visualidade de um modo diferente, porém encontramos um campo de estudo, que emerge entre as fronteiras das Artes e Ciências Humanas, que vem sendo denominado de Cultura Visual. Esse campo tem atraído pesquisadores desde a década de 1980 e tornado-se objeto de devoção acadêmica nos Estados Unidos com a organização de Programas de Doutorado na Universidade de Rochester, em 1989, com professores dos Departamentos de Arte e História da Arte; o da Universidade de Chicago, em 1993, no Departamento de Língua Inglesa e Literatura; o da Universidade da Califórnia, em 1998, com professores dos Departamentos de História da Arte e Estudos de Cinema e Mídia, entre outros. Mitchell (2000) destaca que o interesse pela Cultura Visual foi uma das revoluções que ocorreram nas últimas décadas do século XX e indica como prova mais evidente desse fato os estudos sobre cinema, televisão, mídias, em uma nova ordem social/política/comunicacional que utiliza o espetáculo e as tecnologias de simulação visual e auditiva de forma radicalmente nova. O autor observa que essa revolução aconteceu nas fronteiras do vasto e indeterminado campo conhecido como teoria literária, entrecruzando-se nas margens da história da arte, da filosofia, dos estudos da comunicação, do cinema, da antropologia, dos estudos de gênero, entre outros. No Brasil, um primeiro levantamento bibliográfico em torno das publicações em que se utiliza o termo Cultura Visual em língua portuguesa, localizou a Revista Cultura Visual, editada semestralmente pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal da Bahia, com o seu primeiro número no ano de 1997. Segue-se a esta publicação o artigo do professor de História da Arte, da Universidade de Rochester, Estados Unidos, Douglas Crimp, intitulado Estudos Culturais, Cultura Visual e publicado na Revista da USP, em dezembro de 1998. Cronologicamente, segue-se a esse artigo a publicação de Hernandez (2000), com o livro intitulado Cultura Visual, mudança educativa e projeto de trabalho, em 2000. Nessa publicação o pesquisador espanhol defende a tese de que o campo da Cultura Visual poderia reorientar as práticas de Ensino das Artes Visuais e até mesmo a organização da instituição escolar como um todo. A Universidade Federal de Goiás, em 2003, organiza o primeiro Programa de Pós-graduação em Cultura Visual Mestrado, porém em 2010, com a aprovação de seu doutorado, ganha a denominação de Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual - Mestrado e Doutorado (PPGACV). Ao longo desse período, a problematização sobre a experiência visual também vem ganhando espaço em dissertações de mestrado e teses de doutorado em programas de várias áreas. A intensificação de publicações sobre Cultura Visual nos programas de pós-graduação brasileiros tem gerado alguns questionamentos entre os pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Ensino de Artes Visuais (GPEAV), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tais como: De que modo vem sendo construído o campo de estudo da Cultura Visual no Brasil? Quais os centros de produção acadêmica? Quais as concepções de Cultura Visual que circulam nesses trabalhos? Quais as concepções de visualidade? É possível reconhecer fontes de referência, opções conceituais, abordagens metodológicas comuns entre os centros de produção acadêmica? Quais as contribuições e pertinência destas publicações para o Ensino de Arte e da Educação

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no Brasil? Quais as contribuições desses estudos para o cotidiano escolar e professores da Educação Básica do Brasil? Apesar da acelerada produção acadêmica sobre Cultura Visual no país, ainda faltam estudos que realizem um balanço sobre o conhecimento produzido e apontem os enfoques mais pesquisados. Por essa razão o GPEAV vem elaborando um estado do conhecimento sobre a Cultura Visual no Brasil entre os anos de 2005-2015. Esse estado do conhecimento pretende contribuir com a organização de uma memória no campo das pesquisas sobre Cultura Visual e adota a mesma perspectiva de Ferreira (2002), Nóbrega-Therrien; Therrien (2004), Soares; Maciel (2000), Sposito (2000), por considerar que a compreensão do estado do conhecimento sobre um campo de estudo, em um determinado período, é necessária ao próprio processo da construção do mesmo, para que se sistematize, periodicamente, o conjunto de informações e resultados alcançados. Soares; Maciel (2000) destacam que dados os objetivos e metodologias das pesquisas de estado do conhecimento, estas não poderiam nem deveriam ter um término, por duas principais razões. A primeira porque identificar e caracterizar o estado do conhecimento sobre determinado campo é fundamental na dinâmica da própria Ciência, pois esta vai se construindo privilegiando um ou outro aspecto, metodologia, referencial teórico ao longo do tempo. A segunda razão para o caráter permanente das pesquisas de estado do conhecimento seria a de que em um país como o Brasil, com poucas e precárias fontes de informação, o banco de dados que esse tipo de pesquisa produz precisa manter-se atualizado e torna-se relevante para pesquisadores e estudiosos. Uma pesquisa do estado do conhecimento é, segundo Messina (1998), um mapa que possibilita perceber discursos que podem parecer contraditórios ou descontínuos. A análise da produção acadêmica em um determinado campo de estudo e área permite identificar o conhecimento produzido, os avanços na compreensão do tema em estudo como também os temas em tensão nesse debate (CASTRO; WERLE, 2004). Romanowski; Ens (2006) esclarecem que os estados do conhecimento buscam sistematizar o que foi produzido numa determinada área em um rigoroso processo de estudo, capaz de buscar em resumos de teses e dissertações, além de verificar em eventos relevantes da área pesquisada e em publicações de periódicos, os diferentes resultados, metodologias, referenciais teóricos, contribuições e lacunas que provoquem novas pesquisas. Por essa razão, o GPEAV realiza levantamentos articulados da produção em três fontes de consulta: Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Anais dos Encontros da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e a Coleção Educação da Cultura Visual, editada pela Universidade Federal de Santa Maria. O recorte que se apresenta nesta comunicação refere-se à coleta, organização e classificação das dissertações e teses defendidas no Brasil, por meio dos resumos divulgados no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no período de 2010 a 2015. Para tanto organizamos este artigo em três partes. A primeira expõe o processo de levantamento bibliográfico realizado no banco de dados indicado; a segunda apresenta os dados coletados por ano de publicação, área de conhecimento, origem institucional, região geográfica e tendências temáticas identificadas nas áreas de Arte e Educação; a terceira parte tece as considerações alcançadas com este estudo até o momento.

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A coleta da produção acadêmica Os estados do conhecimento são caracterizados por Ferreira (2002) como um inventário que mapeia, descreve e discute determinada produção acadêmica, além de identificar aspectos e dimensões que se destacam em diferentes épocas e lugares. A autora destaca que ao optar-se por uma fonte de consulta corre-se o risco de ignorar outras possibilidades de reconstruir a história dessa produção. Por essa razão o projeto de pesquisa estado do conhecimento considera, atualmente, três fontes de consulta para seus levantamentos, porém aqui serão apresentados os dados coletados no Banco de Teses da Capes. Justificamos nossa escolha por este banco de dados apoiando-nos em Moraes; Oliveira (2010) ao indicarem que as teses e dissertações destacam-se entre as diversas produções científicas por serem produzidas em programas de pós-graduação e avaliadas em bancas constituídas por pares de conhecimento respeitado na área. As autoras também destacam que tanto as teses quanto as dissertações são indicadores de avaliação da produção científica de uma área, além de servirem como subsídio para a política de ensino e pesquisa nacional. Por meio da observação desses trabalhos é possível localizar as áreas do conhecimento em expansão, bem como as lacunas de pesquisa tanto institucional como nacional. Sposito (2000) destaca que a produção de conhecimento na área de Educação derivada dos Programas de Pós-Graduação torna-se relevante por permitir aferir a sua trajetória, como também realizar avaliação crítica e propor outras possibilidades de investigação. O recorte realizado em uma única fonte de consulta e a delimitação temporal de cinco anos, de 2010-2015, a essa fonte, deve-se à adequação ao período de doze meses previstos para a realização dos projetos financiados pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) aos planos de Iniciação Científica, bem como a aprendizagem da estudante pesquisadora iniciante nos procedimentos fundamentais de toda e qualquer atividade investigativa, tais como a seleção de fontes, acesso a banco de dados, identificação de palavras-chave, registros, fichamentos, organização de dados, como também produção e apresentação de texto relacionando as fontes consultadas. Um dos primeiros desafios enfrentados neste processo foi a definição de descritores para a coleta dos trabalhos no banco de dados. O campo de estudo da Cultura Visual ainda é um campo emergente, em construção, com muitas divergências entre seus estudiosos em relação à sua delimitação e ao seu próprio objeto de estudo. Por essa razão optamos pelo termo que denomina o próprio campo e por aquele que consideramos ser o conceito que diferencia a Cultura Visual de outros campos de estudo, que é o conceito de visualidade. Na linguagem comum do cotidiano utilizamos o vocábulo visual e visualidade como sendo aquilo que vemos e tudo aquilo que é visível. No âmbito da optometria, a vista o olho, o órgão da visão- é a habilidade para ver algo e a visão a capacidade para compreender o que vemos. A visão implica captar a informação visual, processá-la e dar um significado a essa informação. Por isso a visão é um processo dinâmico, de organização, interpretação e compreensão do que vemos e que está em constante transformação (GIMÉNEZ, 2008). Isso quer dizer que nascemos com a vista, porém a visão é aprendida. Nesse entendimento o significado não está no objeto que se vê,

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mas é na relação com o que vemos que construímos o significado do que foi visto. Assim sendo optamos por localizar os trabalhos que apresentassem os descritores cultura visual e ou visualidade no título, resumo ou palavras-chave das dissertações e teses. Durante a coleta de dados encontramos algumas dificuldades relacionadas à precariedade da base de dados. Apesar de definirmos o recorte temporal entre os anos de 2010-2015, só localizamos trabalhos referentes aos anos de 2011 e 2012. Esse fato deve-se a perda de consistência dos dados do Banco de Teses da CAPES nos anos anteriores a estes citados. Em relação aos anos posteriores, a coleta de dados finalizou em dezembro de 2015, devido ao período do cronograma previsto pelo plano de trabalho do PIBIC. Em dezembro de 2015 o Banco de Teses da CAPES não vinha sendo alimentado e tampouco estava conectado aos dados da Plataforma Sucupira, atual ferramenta para coletar informações, realizar análises e avaliações e ser a base de referência do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG), que promete maior confiabilidade, precisão e segurança das informações. Outra dificuldade refere-se aos resumos, pois nem todos apresentavam os elementos recomendados para compô-lo como também algumas inconsistências em relação às informações dos Programas de Pós-graduação, que foram dissipadas consultando as páginas oficiais dos mesmos. Apesar dessas limitações, estas não invalidaram a coleta e sistematização dos dados que nos fornecem pistas a respeito da produção acadêmica brasileira nesses dois anos, do volume de trabalhos produzidos e dos pólos mais ativos dessa produção. A produção acadêmica localizada Finalizada a coleta de dados em dezembro de 2015, localizamos 81 trabalhos em consulta ao Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) a partir do descritor cultura visual. Em relação à titularidade do curso, 71 trabalhos foram produzidos em Programas de Mestrado e 10 em Programas de Doutorado. Esses Programas de Pós-Graduação estão localizados nas seguintes áreas de conhecimento, de acordo com a categorização da CAPES: Artes - 33 trabalhos; Comunicação - 23 trabalhos; Comunicação Visual - 9 trabalhos; Educação 6 trabalhos; História - 4 trabalhos; 1 trabalho nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Desenho Industrial, Ensino de Ciências e Matemática, Geografia, Letras e Psicologia.

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Quadro 1. Trabalhos por Área de Conhecimento e Titularidade DESCRITOR CULTURA VISUAL Áreas de conhecimento

Quantidade de Trabalhos

Mestrado

Doutorado

Arquitetura e Urbanismo

01

Artes

33

32

Comunicação

23

23

Comunicação Visual

09

09

Desenho Industrial

01

Educação

06

04

Ensino

01

01

Geografia

01

01

Letras

01

01

História

04

01

Psicologia

01

01

Total

81

71

01 01

01 02

03

10

Fonte: Banco de Teses da CAPES, dezembro 2015.

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A partir do descritor visualidade no título, resumo ou palavras-chave, foram encontrados 66 trabalhos. Desses 66 trabalhos, 8 já haviam sido coletados com o descritor cultura visual. Desse modo, foram considerados 58 trabalhos produzidos entre os anos de 2011 e 2012 com o descritor visualidade. A partir desse descritor classificamos esses trabalhos em relação à titularidade, dos quais 37 trabalhos foram produzidos em Programas de Mestrado e 21 em Programas de Doutorado. Esses Programas de Pós-Graduação situam-se nas seguintes áreas de conhecimento, de acordo com a categorização da CAPES: Artes - 15 trabalhos; Comunicação - 14 trabalhos; Desenho Industrial - 3 trabalhos; Educação - 1 trabalho; Ensino - 1 trabalho; Filosofia - 1 trabalho; Fonoaudiologia - 1 trabalho; Letras - 10 trabalhos; Linguística - 2 trabalhos; História - 4 trabalhos; Sociais e Humanidades - 3 trabalhos; Sociologia - 2 trabalhos; Turismo - 1 trabalho. Quadro 2. Trabalhos por Área de Conhecimento e Titularidade DESCRITOR VISUALIDADE Áreas de conhecimento

Quantidade de Trabalhos

Mestrado

Doutorado

Artes

15

11

04

Comunicação

14

07

07

Desenho Industrial

03

02

01

Educação

01

01

Ensino

01

01

Filosofia

01

Fonoaudiologia

01

01

01

Letras

10

08

02

Linguística

02

01

01

História

04

01

03

Sociais e Humanidades

03

02

01

Sociologia

02

01

01

Turismo

01

01

Total

58

37

21

Fonte: Banco de Teses da CAPES, dezembro 2015.

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A seguir totalizamos a quantidade de trabalhos encontrados a partir dos dois descritores com as seguintes quantidades por área de Conhecimento e titularidade do curso: Arquitetura e Urbanismo: 1 trabalho em Programa de Doutorado; Artes: 48 trabalhos, sendo 43 de Mestrado e 05 de Doutorado; Comunicação: 37 trabalhos, sendo 30 de Mestrado e 07 de Doutorado; Comunicação Visual: 09 trabalhos de Mestrado; Desenho Industrial: 4 trabalhos, sendo 2 de Mestrado e 2 de Doutorado; Educação: 07 trabalhos, sendo 05 de Mestrado e 02 de Doutorado; Ensino: 2 trabalhos de Mestrado; Filosofia: 1 trabalho de Doutorado; Fonoaudiologia: 1 trabalho de Mestrado; Geografia: 1 trabalho de Doutorado; Letras: 11 trabalhos, sendo 8 de Mestrado e 3 de Doutorado; Linguística: 2 trabalhos, sendo 1 de Mestrado e 1 de Doutorado; História: 8 trabalhos, sendo 2 de Mestrado e 6 de Doutorado; Psicologia: 1 trabalho de Mestrado; Sociais e Humanidades: 3 trabalhos, sendo 2 de Mestrado e 01 de Doutorado; Sociologia: 2 trabalhos: sendo 1 de Mestrado e 1 de Doutorado; Turismo: 1 trabalho de Mestrado. Quadro 3. Trabalhos por Área de Conhecimento e Titularidade DESCRITORES CULTURA VISUAL E VISUALIDADE Áreas de conhecimento

Quantidade de Trabalhos

Mestrado

Doutorado

Arquitetura e Urbanismo

01

Artes

48

43

05

Comunicação

37

30

07

Comunicação Visual

09

09

Desenho Industrial

04

02

02

Educação

07

05

02

Ensino

02

02

Filosofia

01

Fonoaudiologia

01

Geografia

01

Letras

11

08

03

Linguística

02

01

01

História

08

02

06

Psicologia

01

01

Sociais e Humanidades

03

02

01

Sociologia

02

01

01

Turismo

01

01

Total

139

108

01

01 01 01

31

Fonte: Banco de Teses da CAPES, dezembro 2015.

228


Observando os dados apresentados no Quadro 3, constata-se que as áreas de conhecimento com maior quantitativo de trabalho são as áreas de: Artes (48); Comunicação abarcando também os trabalhos da área de Comunicação Visual (46), Letras (11), Educação e Ensino (9) e História (8). Desse modo podemos identificar uma proximidade na construção do campo entre o Brasil e os Estados Unidos, que também organizou seus programas de pós-graduação agrupando docentes das áreas de Letras e Literatura, Artes, Estudos de Comunicação entre outros. Devido ao fato dessa investigação realizar-se no âmbito de um grupo de pesquisa em ensino de Arte, e as limitações impostas ao formato dessa comunicação, enfatizaremos apenas os dados referentes às áreas de Arte e Educação, áreas de interesse das pesquisadoras envolvidas neste estudo. Em relação aos pólos de produção de conhecimento, na área de Artes, dos 48 trabalhos localizados: 27 foram produzidos no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, da Universidade Federal de Goiás (UFG), na cidade de Goiânia (GO) e 1 no Programa de pós-graduação em Arte, da Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal, que localizam -se na região Centro-Oeste do Brasil; 4 no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na cidade de Salvador (BA), na região Nordeste; 2 no Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte, Universidade Federal do Pará (UFPA), na cidade de Belém (PA), região Norte; 6 no Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na cidade do Rio de Janeiro (RJ); 2 no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na cidade do Rio de Janeiro (RJ); 01 Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), na cidade de Niterói (RJ); 1 no Programa de Pós- Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na cidade de Vitória (ES), 1 no Programa de Mestrado Acadêmico em Artes, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), na cidade de São Paulo (SP); 1 no Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP),na cidade de São Paulo (SP) e 1 no Mestrado em Artes Visuais, Faculdade Santa Marcelina, na cidade de São Paulo (SP), totalizando 13 trabalhos na região Sudeste; 1 no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na cidade de Santa Maria (RS), da região Sul.

229


Quadro 4. Trabalhos na área de Arte por Região TRABALHOS DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE POR REGIÃO DESCRITOR

CENTRO-OESTE

NORDESTE

NORTE

SUDESTE

SUL

TOTAL

CULTURA VISUAL

27

02

--

04

--

33

VISUALIDADE

01

02

02

09

01

15 48

TOTAL

28

04

02

13

01

27 UFG (GO) 01 UNB (DF)

04 UFBA (BA)

02 UFPA (PA)

06 UFRJ (RJ) 02 UERJ (RJ) 01 UFF (RJ) 01 UFES (ES) 1 UNESP (SP) 01 USP (SP) 01 FSM (SP)

01 UFSM (RS)

Fonte: Banco de Teses da CAPES, dezembro 2015.

Na área de conhecimento Educação, observa-se que dos 9 trabalhos localizados, 7 foram desenvolvidos em Programas de Mestrado e 2 em Programas de Doutorado. Destacam-se como pólos de produção desse conhecimento: 3 trabalhos no Programa de Educação, Mestrado e Doutorado, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na cidade de Porto Alegre (RS); 2 trabalhos no Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na cidade de Santa Maria (RS); 1 no Programa de Pós-graduação em Ensino Cientifico e Tecnológico da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), na cidade de Santo Ângelo (RS), 1 trabalho no Programa de Pós-graduação em Educação Cientifica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na cidade de Florianópolis (SC), totalizando 7 trabalhos na Região Sul do País; 1 trabalho no Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Federal de Minas Geris (UFMG), na cidade de Belo Horizonte (MG); 1 trabalho na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), na cidade de Campinas (SP) somando 2 trabalhos na região sudeste.

230


Quadro 5. Trabalhos na área de Educação por Região TRABALHOS DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO POR REGIÃO CENTRO-OESTE

NORDESTE

NORTE

SUDESTE

SUL

TOTAL

CULTURA VISUAL

01

06

07

VISUALIDADE

01

01

02

TOTAL

02

07

09

01 UFMG(MG) 01 UNICAMP (SP)

03 UFRGS (RS) 02 UFSM (RS) 01 URI (RS) 01 UFSC (SC)

Fonte: Banco de Teses da CAPES, dezembro 2015.

A partir dos quadros relacionados aos pólos de produção acadêmica sobre Cultura Visual nas áreas de Arte e Educação, constata-se que quantitativamente a região centro-oeste, com o Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, da Universidade Federal de Goiás (UFG) destaca-se, na área de Arte, em primeira posição, seguido do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na região sudeste. Na área de Educação é a região sul que predomina nessa produção, destacando-se o Programa de Educação, Mestrado e Doutorado, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) seguido pelo Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). As palavras-chave identificadas nos trabalhos localizados sinalizam uma complexa teia de relações. Quantitativamente a palavra corpo destacase como a mais referenciada nos trabalhos da área de Arte, indicada 5 vezes, seguida das palavras fotografia, imagem e visualidade, expressas 4 vezes. As palavras cinema e cultura visual são mencionadas 3 vezes, seguidas por aprendizagem, arte contemporânea, arte digital, artes visuais, educação, literatura, memória, moda, narrativa, performance, processo criativo, sexualidade, tridimensionalidade, duas vezes. São mencionadas uma única vez as palavras: Alphonsus Benetti; Amazônia; ambiente virtual de aprendizagem; análise de imagens; apropriação; Arquivo Público Municipal; arte; arte abstrata; arte e tecnologia; arte pública; audiovisual; Bachelard; bioarte; campo ampliado; campos cegos; canibalismo; caricatura em Goiás; chafurdo; charge política; Chelpa Ferro; Chris Marker; cibercultura; ciberdigital; cineclube; cinematográfica; condenação; congado; contemporaneidade; conversão semiótica; cópia; cotidiano; criação; cultura livresca; cultura material; Dadá; desenho; diferença cultural; direção de arte; Editora Melhoramentos; educação da cultura visual; educação estética; escultura moderna; goiana; espectador; espetacularidade; estágio; estética do game Lineage II; Feira do Ver-o-Peso; feitiçaria; Fernanda Magalhães; festas populares; ficção Científica; fluxos; formação de designers de moda; formação de professores; fotofilme; fotografia documental; gênero; grupo de discussão; Grupo de Teatro Venvê Parangolé; história da fotografia; história em quadrinhos;

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homossexualidade; identidade docente; identidade visual nacional; ignorância; ilustração; imagem e cultura; imagem publicitária; imaginação criadora; interdisciplinaridade; ipad; Jorge Braga; juventude urbana; L'Inhumaine; linguagem cinematográfica; literatura e cinema; livro digital; luto; máquinas de visão; Mariosan; metrô; mídias digitais; modelagem; morte; murais; narrativa de moda; narrativa hipermidiática; obesidade; olhar educado; paisagem; patrimônio; pérola; pintura; poéticas digitais; Portinari; práticas sociais; processo de criação; queer; representação docente; Ronaldo Fraga; rua; saias estampadas; sertão nordestino; sinestesia; sonoridade; sujeitos desviantes; telemática; teoria literária; teoria queer; terno dos caboclinhos; ticumbi; trabalhador; tradição; trajetória artística; transbordamentos; vida artificial; vídeo etnográfico; Vitória; xamanismo. Na área de Educação constata-se que quantitativamente a expressão cultura visual está indicada 4 vezes e as demais palavras-chave são mencionadas uma única vez compondo a seguinte rede: arte, arte contemporânea, artes visuais, autoajuda, beleza, cultura indígena, ensino de arte, ensino de história, espaço escolar, fabulação, formação continuada, gênero, grafite, história indígena, infâncias, leitura de imagem, livro didático, matemática, narrativas, narrativas visuais, práticas de si, práticas pedagógicas, processo de criação, publicidade, técnica da perspectiva, visualização. São comuns às duas áreas de conhecimento as palavras-chave: arte, arte contemporânea; cultura visual; gênero; narrativa, processo de criação. Considerações transitórias A partir dos dados apresentados neste breve panorama sobre o campo da Cultura Visual na produção acadêmica entre os anos de 2010 e 2015, os resultados apontam para um número significativo de trabalhos produzidos em Programas de Pósgraduação nas áreas de Artes, Comunicação, Letras, Educação e História. Quantitativamente destaca-se a área de conhecimento de Artes, com o Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, da Universidade Federal de Goiás (UFG), na região centro-oeste, em primeira posição, seguido do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na região sudeste. Esse resultado desloca uma certa tradição das Universidades das regiões sudeste e sul predominarem na produção do conhecimento no Brasil. Na área de Educação é a região sul que predomina nessa produção, destacando-se o Programa de Educação, Mestrado e Doutorado, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) seguido pelo Programa de Mestrado em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Consideramos que essa produção acadêmica vem se ampliando e impulsionando o debate na área de Arte com questões referentes ao corpo, memória, performance, gênero e sexualidade, além da aprendizagem, ensino de arte e arte contemporânea fazendo referência também a processo de criação com a tecnologia digital, além da fotografia e do cinema. Na área de Educação o debate centra-se na discussão da Cultura Visual como campo de conhecimento. São comuns às duas áreas

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indagações referentes à arte contemporânea, gênero, narrativas e processo de criação. Referências CASTRO, Marta Luz Sisson de; WERLE, Flávia Obino Corrêa. Estado do Conhecimento em Administração da Educação: Uma análise dos artigos publicados em periódicos nacionais 1982-2000. Ensaio: avaliação políticas públicas educacionais, Rio de Janeiro, v.12, n.45, p. 1045-1064, out./dez. 2004. CRIMP, Douglas. Estudos culturais, cultura visual. Revista USP, São Paulo, n.40, p. 7885, dez./fev. 1998. FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. As pesquisas denominadas estado da arte. Educação & Sociedade, n. 79, p. 257-272, ago.2002. GIMÉNEZ, María Pilar Vergara. Tanta inteligencia, tan poco rendimiento: ¿podría ser la visión la clave para desbloquear su aprendizaje? Madrid: Edit. Pilar Vergara, 2008. HERNANDEZ, Fernando. Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. MESSINA, Graciela. Estudio sobre el estado da arte de la investigacion acerca de la formación docente en los noventa. Organización de Estados IberoAmericanos para La Educación, La Ciência y La Cultura. In: REÚNION DE CONSULTA TÉCNICA SOBRE INVESTIGACIÓN EN FORMÁCION DEL PROFESSORADO. México,1998. MITCHELL, W. J. T. ¿Qué es la cultura visual? JORNADAS MÁS ALLÁ DE LA EDUCACIÓN ARTÍSTICA. CULTURA VISUAL, POLÍTICA DE RECONOCIMIENTO Y EDUCACIÓN. Barcelona: Fundación La Caixa, 5 y 6 de noviembre, 2000. MORAES, Alice Ferry de; OLIVEIRA, Telma Maria de. Experiências relacionadas ao levantamento de teses e dissertações. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 20, n.1, p. 73-81, jan./abr. 2010. NÓBREGA-THERRIEN, Sílvia Maria; THERRIEN, Jacques. Trabalhos científicos e o estado da questão: reflexões teórico metodológicas. Estudos em Avaliação Educacional, v. 15, n. 30, p. 516, jul.-dez./2004. ROMANOWSKI, Joana Paulin; ENS, Romilda Teodora. As pesquisas denominadas do tipo “estado da arte” em educação. Diálogo Educacional, Curitiba, v. 6, n. 19, p. 37-50, set./dez. 2006. SOARES, Magda; MACIEL, Francisca. Alfabetização. Brasília : 2000.

MEC/Inep/ Comped,

SPOSITO, Marilia (Coord.). Juventude: estado do conhecimento. São Paulo: Ação Educativa, 2000.

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Maria Emília Sardelich Doutora em Educação, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Centro de Educação (CE), Departamento Metodologia da Educação (DME) e Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/UFPB/UFPE). Integra o Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV/UFPB). Contato: emilisar@hotmail.com Ana Garcia Licencianda em Artes Visuais, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atualmente preside a Associação de Artistas Plásticos da Paraíba. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) 2015-2016. Integra o Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais (GPEAV/UFPB). Contato: amrg0508@gmail.com

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FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO – EM BUSCA DAS RAÍZES Mariah Cysneiros da Silva/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O artigo tem o intuito de compartilhar as experiências iniciais da docência que vivenciei enquanto graduanda, na licenciatura de Artes Visuais, numa escola da rede pública estadual em Pernambuco. As primeiras observações, as primeiras regências. Os caminhos se mostraram sinuosos e se apresentaram com o asfalto em demasia desgastado. Porém, mediante todo o caos estabelecido, consegue-se perceber mecanismos que não irão sanar da noite para o dia tais percalços, mas que, com a persistência, podem trazer bons resultados. Como suporte, utilizei a Cultura Visual para trabalhar em sala de aula temas étnicos e culturais. Em meus propósitos com relação à docência, os mais importantes ao abordar a construção étnica do Brasil, são “Quais conhecimentos étnicos, raciais e culturais os estudantes possuem? Quais os representam e como influenciam e se manifestam em suas criações artísticas?”. PALAVRAS-CHAVE Arte; Cultura Visual; Docência; Educação; Estágio ABSTRACT The article aims to share the early experiences of teaching I experienced while graduate, degree in Visual Arts, a school of public schools in Pernambuco. The first observations, the first regencies. The paths shown sinuous and presented with the asphalt worn too. But through all the chaos established mechanisms is achieved realize that will not solve the overnight such mishaps, but through persistence brings success. As a support used the Visual Culture to work in the classroom racial and ethnic cultural themes. In my purposes in relation to teaching, the most important to address the ethnic construction of Brazil, it is "What ethnic, racial and cultural knowledge students have? Which they represent and how they influence and manifest themselves in their artistic creations?". KEYWORDS Art; Visual Culture; Teaching; Education; Internship

Primeiras aproximações, primeiras impressões No processo de ensino aprendizagem do qual vivenciei, abordei em alguns aspectos as questões étnicas, raciais e culturais brasileiras: indígenas, negros e brancos, a fim de ampliar os processos criativos dos alunos e desmitificar certas construções narrativas, permeadas numa cultura colonizadora. Quando neste artigo, alguns termos que denotam essencialidade, porventura são utilizados, exemplo: raízes, entre outros, o intuito não é o de reforçar uma dicotomia na arte, pelo contrário, é o de reforçar identidades, que não são inferiores, nem superiores. Identidades que se entrelaçam e que se fundem a partir dos trânsitos humanos.

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Durante o 5º período, no semestre 2016.1, cursando a disciplina obrigatória Estágio I, do curso de Licenciatura em Artes Visuais, pela Universidade Federal de Pernambuco, observei e fiz regência nas aulas de Artes para alunos do 8º e 9º ano do Ensino Fundamental, que possuem entre 13 e 17 anos, numa escola da rede estadual de educação em Pernambuco. Nos primeiros dois meses destinados a observação, assisti a diversas aulas, de disciplinas variadas e observei o espaço físico da escola. A escola é de pequeno porte, contendo apenas oito salas de aula: a sala dos professores, a sala da direção, os banheiros dos estudantes, onde há a divisão entre o dos meninos e o das meninas, o banheiro dos professores, cantina, que eles chamam de cozinha, onde são servidas as merendas na hora do recreio, uma mini biblioteca, a sala de computação desativada e um pátio central que utilizam para as atividades recreativas. A sala onde se encontra a direção e a sala dos professores são bem apertadas e são climatizadas, já as salas de aula possuem a maior parte dos ventiladores com avarias praticadas pelos próprios estudantes, segundo eles mesmos. Mediante as circunstâncias, os estudantes apresentam comportamento inquieto, pois as salas situadas do lado esquerdo, durante o período da tarde, recebem incidência muito grande do sol, resultando em muito mormaço, calor e por consequência, em desconforto, tanto para os estudantes, que entram e saem a todo momento das salas para beberem água, quanto para os professores Nas diversas aulas de matemática, português, geografia, história, que eu observei, foi perceptível que os estudantes queriam aprender. Os olhos curiosos, naturais da fase em que se encontram, sempre estavam voltados para o docente presente, embora também houvesse aqueles dispersos e irrequietos. Temos que levar em consideração todos os aspectos do meio do qual são provenientes, para não sermos tão críticos e rígidos em relação ao comportamento desses jovens. Na maioria das vezes são filhos de mães prostitutas, pais alcoólatras, drogados ou traficantes, passam por muitas dificuldades financeiras, sofrem agressões físicas e psíquicas dentro do próprio lar, não possuem nenhuma estrutura familiar, enfim, fazem parte de uma realidade completamente adversa a que estamos normalmente habituados. E, embora passem por todas estas atribulações, muitos se apresentam amáveis e acima de tudo vão à escola. Infelizmente, mediante toda dificuldade que enfrentam, chegam muitas vezes ao ensino fundamental apresentando defasagens graves no ensino, problemas de leitura, compreensão de texto, não conseguem realizar as quatro operações básicas em matemática, entre outras. Minha relação para com os estudantes foi bastante harmoniosa, em sua maioria me acolheram e criaram expectativas acerca do meu trabalho para com eles. Em relação ao corpo docente, se mostraram devidamente prestativos aos meus anseios enquanto aprendiz e se disponibilizaram no que fosse preciso a me ajudar. Tive acesso a todas as aulas, das mais variadas disciplinas, para tornar a minha observação mais ampla em aspectos metodológicos, me permitindo uma visão mais abrangente em relação ao ensino aprendizagem. Um dos pontos cruciais a serem observados dentro da sala de aula, é o de que embora tenham aulas nas quais os professores se esforcem em repassar os conteúdos de forma oral, com o auxílio do livro ou do datashow (projetor de imagens), para apresentação de documentários, filmes ou slides, os estudantes estão imbuídos no

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costume de ver as anotações no quadro para poderem copiar. Só assim sentem-se seguros. Não se sentem confortáveis em dialogar, muito menos em se posicionar a frente para apresentação dos trabalhos. Outro aspecto que deve ser apontado é a falta do espaço para os estudantes realizarem as atividades de educação física. No pátio central, único espaço externo que possuem, ocorrem partidas de futebol, as peladas, porém como atividade para tirá-los do ócio, no caso da falta de algum professor, portanto, sem nenhuma orientação de um profissional da área e em horários inadequados, atrapalhando o funcionamento escolar através do barulho e dispersando aqueles que estão em aula. Para suprir a falta do professor e a falta de atividades extra sala como: aulas de campo, aulas de educação física, entre outros, além dos jogos de futebol que ocorrem de forma indeliberada, é permitido dentro das salas de aula, na ausência do professor, jogos de xadrez, damas e dominó. Os professores faltam por motivos diversos e pessoais, dos quais não tenho ciência. Quanto às medidas tomadas pela direção, para inibir a falta dos docentes, são brandas. São colocadas as faltas no livro de pontos, e quando no máximo, o encaminhamento do profissional para outra instituição de ensino Em relação as realizações das aulas de artes, não possuem um espaço apropriado, como um atelier. Por conta da escassez, a direção escolar não possibilita fácil acesso para a utilização dos materiais (cola, tesoura, tinta guache, cartolina, papel ofício, lápis grafite, etc.). Em uma das turmas, 8º ano, os alunos não sabem dizer o que estão estudando em artes. Nas quintas-feiras, dia que, no horário escolar consta uma das duas aulas de artes visuais, a docente não leciona por acordos feitos com a direção, ou seja, desvio de função. Pela ausência da professora, os estudantes desta turma sentem-se desprezados, esquecidos. Não foi constatado nenhum tipo de projeto desenvolvido na escola, nem no âmbito das artes, nem em qualquer outra disciplina. A decoração escolar é desbotada, observa-se na sala dos professores, uma tentativa frustrada, com a exposição de inúmeros girassóis amarelos, feitos com cartolina, pregados nos armários, denotando explicitamente a carência de um arte educador na instituição de ensino. Isto se reflete nitidamente na falta de produções artísticas nas instalações da escola. Quando muito foi percebido durante o período Pascal a presença de cartazes, confeccionados pelos estudantes. Apresentavam-se bem convencionais e pobres, não apresentavam propostas esclarecedoras, tratavam a temática de forma superficial. Nesta mesma festividade, um dos poucos momentos em que os alunos exploraram de forma mais ampla a temática, através de uma representação teatral da Santa Ceia, onde os professores do turno da tarde (cada turno se organiza de forma independente) se responsabilizaram em conseguir vestimentas, em fazer um rateio para a compra de suco de uva e pães, em conseguir os materiais necessários para o cenário da apresentação como: mesa larga, toalha, cadeiras, pratos e copos, houve a censura por parte de uma funcionária, técnica administrativa, lotada no turno da manhã, que acusou os docentes de não darem aula e ameaçou enviar um ofício a GRE (Gerência Regional de Educação). A atitude da técnica administrativa nada tem haver com questões religiosas, o problema consistiu no fato da mesma não dar importância as festividades e aos trabalhos realizados fora da sala de aula, pois é fadada a educação mecânica e tradicional

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Para o resgate e valorização desses meninos e meninas, faz-se necessário trabalhar questões relacionadas à identidade, às raízes, explorando alguns aspectos da formação do nosso povo, a fim de levá-los a uma melhor compreensão de si mesmos e do mundo que os rodeia e assim entenderem de forma gradativa, a atual situação que estão inseridos, mostrando-os a possibilidade de novos caminhos, de novas perspectivas. Ao abordar assuntos pertinentes da sociedade, como questões étnicas, financeiras, geográficas, por intermédio da arte, tendo como suporte a cultura visual, que nos possibilita ir em busca das comunidades desprivilegiadas, estamos desconstruindo conceitos que fazem parte de um ótica elitista, ouvindo vozes de timbres e tessituras diferentes, para um melhor futuro, onde todos de fato tenham iguais oportunidades. Embora o relato apresente um cenário degradante, depreciável, pois não podia deixar de ignorá-lo, a fim de contribuir para a lucidez das novas gerações, no combate a uma realidade insuportável, os professores demonstram empenho, os estudantes frequentam a escola, alguns pedem inovações, contrariando a política de controle do contexto, que instaura o medo, relacionando-os com a delinquência, alimentando desta maneira, o distanciamento permeado no racismo cotidiano, limites culturais, entre outros. Eu insisto na docência, acredito no potencial que possuem. “Ver aquele povo se mexendo para aprender, querendo aprender, é muito bonito. Só eles caminharem até a escola é uma benção.” Flávia, professora da instituição pública, da rede estadual de Pernambuco, 07/04/2016. “Reflexos dos meus pensamentos, sentimentos provindos de mim mesma”: A imagem elaborada foi fruto de uma série de sentimentos despejados até a última gota no primeiro dia em que estive na escola. Foi notada, com toda a sensibilidade, a efervescência dos estudantes e toda a heterogeneidade que se apresentava naquele instante. A história é bem interessante. Num momento de catarse, resolvi desenhar na sala, durante uma aula de matemática, de maneira explícita, para que se tornasse identificável em qual área eu estava estagiando, pois em todo momento os estudantes indagavam o que eu estava a fazer ali, me identificando como estagiária de matemática, por mais que eu relatasse que era de artes!

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Mariah Cysneiros, (1982) Texturas, 2016 Nanquim sobre papel Canson, 20 x 15 cm

Tema e justificativa do projeto Os temas escolhidos para serem trabalhados nas turmas do 8º e 9º ano, dos Anos Finais do Ensino Fundamental, foram as “culturas indígenas”, as “influências da arte européia no Brasil” e as “culturas afro-descendentes”. A proposta em levar aos estudantes o conhecimento no campo das Artes é envolver a todos num processo de ensino aprendizagem em favor da pedagogia crítico-social dos conteúdos. Estes temas propõem certamente contribuições valiosas na relação professor-aluno, considerando o passado e o presente da Arte, mas com foco nos avanços possíveis na construção de novos conhecimentos e vivências de novos saberes. É importante ressaltar ainda que o conhecimento da Arte e da cultura local e regional é de extrema valia, sendo essencial não só obter o saber como a Arte é concebida, mas também como é aplicada no ensino e como se manifesta no contexto local e regional, destacando os saberes culturais e suas origens Em consonância com os Parâmetros Curriculares de Arte, elaborados pela Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, “é fundamental que os educandos compreendam que suas experiências em Arte e com Arte, em cada campo específico, são para Arte integrante da construção de seu conhecimento. Seu trajeto de aprendizagem deve estar em constante relação com a própria Arte, consigo mesmo e com o mundo”. Objetivos e conteúdos Para que a aprendizagem fosse realmente significativa para os estudantes, para a construção de um novo olhar sobre o mundo em que vivemos, foi necessário tomar por objetivos: os signos (palavras escritas e faladas, gestos, objetos, roupas e arte tradicional, tendo em vista que qualquer coisa pode constituir um signo) das diferentes linguagens artísticas, em especial as artes visuais, buscando compreendêlos como parte de uma linguagem que interage como instrumento de comunicação e

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expressão política, histórica e cultural na sociedade; possibilitar conhecimentos sobre alguns aspectos das culturas indígenas, das influências artísticas européias e das culturas afro-descendentes; explanar conteúdos e processos de criação que provoquem o desejo de saber mais sobre a arte indígena, a arte européia no Brasil e a arte afro-descendente; reconhecer a pluralidade e expressões artísticas em alguns aspectos das culturas indígenas, européias e afro-brasileiras; conhecer e valorizar em alguns aspectos a Arte e a cultura de alguns locais e algumas regiões brasileiras, situando-se geograficamente nesse contexto; estabelecer relações entre as produções artísticas indígenas, influências européias e da arte afro-descendente, seu contexto histórico social e sua identidade cultural, ao mesmo tempo em que cria conexões entre tradição e contemporaneidade; refletir sobre as artes plásticas no Brasil, sobretudo, a partir da questão da projetividade consciente ou não de artistas contemporâneos que utilizam elementos das culturas indígenas, européias e africanas, denotando características próprias da arte nacional; discutir a presença de uma identidade nacional brasileira nas obras estudadas e nos discursos dos seus respectivos autores. Os objetivos tem por finalidade possibilitar aos alunos o desenvolvimento da capacidade de elaborar reflexões críticas sobre Arte. Dentro dos conteúdos abordados em sala de aula podemos destacar: arte indígena, seus Signos (qualquer coisa utilizada para veicular mensagens) e Significados (o que os signos dizem), produções artísticas contemporâneas (body art), arte Colonial – 1500, o Brasil holandês – 1630 a 1654. o Brasil português – Barroco, a Afro-descendência artística no Brasil, e Diálogos contemporâneos – Produção de arte contemporânea no Brasil. Metodologia, desenvolvimento no processo ensino-aprendizagem A Proposta Triangular é uma referência incontestável na história do ensino de Arte no Brasil. Essa abordagem metodológica visa, segundo Ana Mae Barbosa (1998), desenvolver a capacidade dos alunos em realizar uma análise crítica da obra de arte. A abordagem triangular tem como base procedimentos de descrição e análise na interpretação e avaliação da obra de arte, na investigação de seus significados, além de discutir assuntos de estéticas apresentadas na obra de arte, ampliando o repertório cultural dos alunos e explorando potenciais de criação artística. A Proposta Triangular defende também que os três eixos da aprendizagem (apreciar, contextualizar e fazer) podem ampliar a capacidade cognitiva e crítica de crianças e jovens. Nesse sentido o estudante seria estimulado a criar suas próprias manifestações poéticas e artísticas com um repertório cultural alimentado pelas produções de diferentes artistas. Essa concepção de ensino de Arte valoriza o processo criativo, o conhecimento com procedimentos artísticos, a acessibilidade de bens culturais, além da relação entre a arte e a vida. Entretanto, outras concepções de educação estética, artística e cultural vêm trilhando caminhos próprios nas escolas e nos programas educativos brasileiros. O estudo da cultura visual proposto por Fernando Hernández (2007) também desencadeou vários estudos sobre o ensino de Arte e ainda influencia diversos núcleos de pesquisa em universidades brasileiras. A ideia da cultura visual é interdisciplinar, procurando buscar referenciais de arte, arquitetura, história, mediação cultural, psicologia, antropologia. Ela ainda não se organiza com base em nomes de peças, fatos e sujeitos, mas a

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relação estabelecida com seus significados culturais. O autor defende uma abordagem da arte que considere “a arte e a cultura como mediadores de significados, na qual o significado pode ser interpretado e construído” e as imagens podem “informar àqueles que as vêem sobre eles mesmos e sobre temas relevantes no mundo” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 54 Na intenção de criar diálogos entre arte e sociedade contemporânea, determina-se como proposição e embasamento teórico, trilhar percursos em campos conceituais da arte para estudar as várias linguagens artísticas, com a idéia de que em toda obra de arte, sejam das linguagens visuais, cênicas, literárias ou musicais, há o pensamento do ser humano e sua condição de ser e estar imerso em contextos culturais. Dessa forma, entende-se arte como um produto do ser humano que lida com uma rede complexa de pensamentos, relações e modos simbólicos de fazer e expressar leituras do mundo A partir da leitura dos capítulos 1, 2, 3, 4, do livro Catadores da Cultura Visual (HERNÁNDEZ, 2007), temos uma noção do que se trata este vasto campo epistemológico. Por conta da sua amplitude, torna-se natural o surgimento de questionamentos, receios, enfim, inseguranças acerca de como vamos utilizá-lo a favor da educação, em prol da formação crítica de nossos alunos. Entende-se que se faz necessário abordar questões sociais (gênero, sexualidade, violência...), porém temos que nos atentar para a construção de um pensamento crítico que discerne, que reflete, que indaga, e para tal devemos estar apropriados, embasados e seguros a cerca do que queremos estudar, compreender A cultura visual, aplicada no ensino das artes visuais há muito contribui para a construção da visão sensível, aquela que percebe o que está fora do alcance, o que aparentemente está invisível, um olhar não excludente, suscitando em muitos a criticidade e até mesmo a auto-estima, a partir da compreensão mais ampliada de si e do que o rodeia. Enquanto graduanda em Artes Visuais reconheço a importância da valorização das mais variadas culturas, descartando por completo a possibilidade do enaltecimento de uma em detrimento de outra, embora tenhamos que nos atentar que existem caminhos a serem traçados e diversos desafios a serem superados. As artes estão inseridas na cultura visual, que por sua vez abrange múltiplas maneiras de externar os anseios sociais. Cabe a nós, arte educadores, elaborarmos nosso projeto de forma que a compreensão esteja atrelada a questões sociais e culturais, que por sua vez, estão de forma impregnada, intrínseca na cultura visual, a fim da desconstrução de muitos conceitos pré-estabelecidos. Contribui para que haja uma imersão maior em tais valores, Hernandez, em sua afirmação: Quando falamos de cultura visual, nos referimos a “objetos” como a perspectiva de estudo. Tenho a impressão de que aqueles que, como nós, se interessam em favorecer experiências de aprendizagem neste campo educativo, concordam com a necessidade de se ampliar e desnormatizar os objetos e os artefatos com os quais se trabalha em educação das artes visuais... (HERNANDEZ, 2007, p.3)

Em observação ao funcionamento e comportamento dos discentes em uma escola pública da rede estadual, pude perceber o quanto é importante abordar aspectos

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sociais e culturais, pois se percebe claramente os problemas enfrentados em seus cotidianos que não são compartilhados em sua maioria. Uma das piores causas para a estagnação do aprendizado dos conteúdos escolares é a falta de suporte fora da escola e o acesso negado a informações cruciais. Dentro dessa realidade, torna-se de suma importância perceber o que mais os aflige, para desta forma, através da cultura visual, desmitificar, quebrar barreiras, causar rupturas, deslocando o olhar de maneira que se possa deixar fluir novos prismas. Quadro no qual a cultura visual aparece múltipla, formando um heterogêneo campo de forças, o qual vem emergindo no processo crescente de reflexão sobre as mais variadas problemáticas sociais. Essa empreitada parece, contudo, um tanto difícil, pois corroborando a marginalização sociocultural, as articulações entre arte e sociedade são desvalorizadas pelo sistema educacional brasileiro. No ambiente escolar a disciplina de Artes é vista como inferior, menos essencial, do que português, matemática, entre outras. Entretanto é preciso reconhecer que já há caminhos trilhados, experiências realizadas, espaços abertos a ocupar. Utilizando uma compreensão crítica e performativa, é proporcionado em sala de aula a oportunidade do deslocamento do olhar em relação aos povos indígenas, negros e brancos, que fizeram e fazem parte da construção histórica do nosso país. Através de problemas culturais trabalhamos em conjunto para uma melhor compreensão e desconstrução de inúmeros valores instaurados, a fim de que os alunos se posicionem mediante tais percalços. A saber, segundo Hernandez: Uma perspectiva que não considero pronta, acabada, mas em permanente construção. Como os termos “crítico-crítica”, em educação, aparecem muitas vezes e com significados diferentes, é importante dizer que a noção de “compreensão crítica” não se fundamenta em valorações ou juízos individuais, mas na pluralidade de perspectivas de análise em relação aos objetos e sujeitos da cultura visual (perspectiva semiótica crítica, desconstrucionista, intertextual, hermenêutica, discursiva, etc.). (HERNANDEZ, 2007, p.79)

Se o objetivo é privilegiar a aquisição do saber, e de um saber vinculado às realidades sociais, é preciso que os métodos favoreçam a correspondência dos conteúdos com os interesses dos alunos, e que estes possam reconhecer nos conteúdos o auxílio ao seu esforço de compreensão da realidade. Ao tratar questões étnicas num país multicultural, como é o Brasil, abordamos diversos aspectos das problemáticas sociais como temas transversais, que consequentemente são explicitados pelos alunos em sala de aula. Podemos citar o racismo, o machismo, a sexualidade, entre outros, a fim de suscitar rupturas acerca de assuntos pertinentes e ainda tidos como tabus em dias atuais. Momentos de aprender, demonstrar conhecimentos

momentos

de

ensinar,

momentos

de

Nos momentos em sala de aula houve a abordagem, em alguns aspectos, das culturas indígenas, das influências européias e das culturas afro-descendentes. Dentro do âmbito da arte houve a conexão entre essas culturas e artistas da contemporaneidade. Nas culturas indígenas foram enfatizadas as pinturas corporais, relacionando-as com a tatuagem contemporânea e a body art, que utiliza o corpo 242


como suporte para a arte. Com as culturas afro-descendentes foram feitas conexões aos artistas que fazem uma arte projetivamente africana, dentre esses, Caribé, Rubem Valentim, Mário Cravo Júnior, Agnaldo dos Santos, Heitor dos Prazeres, Emanoel Araújo, Abdias do Nascimento, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos. Nas influências européias, foi abordada a necessidade, na época em que Maurício de Nassau aportou em Pernambuco, de, através das pinturas, fazer o registro do Novo Mundo, partindo do olhar eurocêntrico. Pensando nesta necessidade que o homem, enquanto indivíduo, tem de registrar aquilo que lhe interessa e que faz parte do seu universo interior, elaborei uma aula dedicada à produção artística para a confecção de máscaras. Os estudantes puderam escolher entre duas atividades propostas. A primeira, utilizando uma máscara de papel como suporte, fizeram uma composição com características humanas, decidiram que sentimento iriam expressar. Tiveram que ressaltar características para que essa expressão fosse alcançada, criaram elementos e detalhes com canetas hidrográficas. Utilizamos os seguintes materiais: máscara de papel, tesoura, cola branca, revistas e canetas hidrográficas. A segunda opção era criar, com máscara de papel, uma composição com imagens extraídas de revistas e jornais. Para isso selecionaram imagens com as quais tinham algum tipo de identificação e colaram-nas sobre o suporte, lembrando de deixar espaço para os olhos e para respirar. Foi apresentado como referência artística aos estudantes, o trabalho do fotógrafo norte-americano Arnold Newman (1918-2006), que fez muitos registros das coisas que lhe interessavam, como imagens de políticos e personalidades artísticas. Algumas dessas imagens compõem a fotografia feita em 1988 por Abe Frajndlich (1946-), que retratou Arnold Newmam com uma máscara de papel em que foram coladas várias das fotografias feitas por ele. Do mesmo modo, as fotografias que os estudantes tiraram ou gostaram de olhar, também contaram um pouco de si mesmos, ideias, pessoas que admiraram e que foram inspiradoras para elas. Recortando, colando, criando, como podemos ver na imagem abaixo.

Figura 1 – Atividade prática de artes com os alunos, do 8º ano do Ensino Fundamental.

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Como foram avaliados os processos criativos dos alunos Já vai longe o tempo em que a avaliação era a verificação mecânica e classificatória da aprendizagem. A avaliação não deve medir apenas a assimilação mecânica dos conteúdos, mas também a aplicação de habilidades e competências diversas. Uma avaliação nos moldes tradicionais, com ênfase quase absoluta em provas mensais ou bimestrais, não deve ser o parâmetro. Embora tenha sua importância e validade, acredito que esse meio seria complementar a esse processo e que o núcleo principal da avaliação decorreria da participação e do envolvimento dos alunos em discussões em sala de aula e na realização das atividades propostas. A saber, vale ressaltar: Conforme apontam Ferraz e Fusari (2009), a Pedagogia Tradicional tem raízes no século XIX e é voltada para o ensino mecanizado, desvinculado dos aspectos do cotidiano, com ênfase na transmissão de informações, repetição, memorização e exercício modelar, de caráter autoritário. A partir das observações em sala de aula, é possível notar que as tendências de ensino tradicional continuavam a ser reproduzidas na contemporaneidade. (FERRAZ; FUSARI apud RIBEIRO; ZAMPERETTI, 2015, p.149)

Convocar alunos, individual e coletivamente, para elaborar conceitos gerais da avaliação (que incluiriam as dimensões conceituais das disciplinas, mas também posturas e comportamentos individuais das equipes e da classe como um todo) poderá servir para aferir o rendimento conseguido em sala de aula e preparar o caminho dos trabalhos seguintes. O processo de avaliação contínua sugere verificar o que o aluno realmente aprendeu. As diferentes atividades propostas são úteis para este tipo de avaliação. Cabe ao professor também avaliar as próprias estratégias escolhidas para o seu curso e a necessidade ou não de rever procedimentos. Além da avaliação contínua, temos também a possibilidade da avaliação diagnóstica, que consiste no uso de instrumentos de avaliação como recurso para verificar o desenvolvimento do aluno e seu sucesso em cada um dos objetivos propostos. Essa perspectiva de avaliação pressupõe a existência de objetivos que vão além de meramente “passar o conteúdo” e depois verificar se ele foi assimilado ou não. Tais objetivos têm caráter de conquistas cognitivas progressivamente mais complexas, mais do que uma restituição de informações fornecidas em aula. Essa avaliação contínua consiste no processo de ensino aprendizagem onde são realizadas a avaliação formativa e a avaliação somativa, sendo esta última não muito utilizada durante as minhas primeiras atuações como docente. Na citação feita por Ribeiro e Zamperetti, podemos comprovar a ineficácia de uma avaliação pautada na meritocracia, a saber: Na abordagem tradicional de ensino, a avaliação é concebida como instrumento de medida do conhecimento do aluno, e tem como objetivo, classificar, selecionar e determinar a aprendizagem deste por meio da atribuição de nota. Nesse sentido, Luckesi (1997) aponta para a inadequação desta forma de avaliação. O autor afirma que avaliar as “[...] construções de conhecimentos dos alunos, não implica apenas o ato de somar e dividir notas, fragmentando e reduzindo o aprendizado, colocando-o a serviço de resultados e do julgamento do professor”. (LUCKESI apud RIBEIRO; ZAMPERETTI, 2015, p.150)

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A avaliação que permite a criatividade do aluno é importante para a superação do que Paulo Freire chamou de “educação bancária” e Ausubel chama de “aprendizagem mecânica", ou seja, aquela composta principalmente por conteúdos que se aprendem por repetições constantes e técnicas de memória, mas não chegam a constituir um todo significativo e aplicável à vida, e cujo destino, ao longo dos anos é desaparecer quase por completo. Instrumentos que incentivem a criatividade, a resolução de problemas e o levantamento de informações que sejam aplicadas na criação de novos enunciados são benéfícios a uma fixação do aprendizado não só nos termos do conhecimento histórico, mas de um saber-fazer que será útil no cotidiano do cidadão, filtrando as informações necessárias às suas decisões. A saber, vale salientar: Sabemos, concordando com Ferraz e Fusari (2009, p. 161), que a avaliação das atividades pedagógicas artísticas torna-se complexa, “[...] principalmente quando se refere ao estabelecimento de critérios e julgamentos sobre a produção expressiva e comunicativa (visual, dramática, musical, poética)”. (FERRAZ; FUSARI apud RIBEIRO; ZAMPERETTI, 2015, p.150)

Dentre os meus propósitos com relação à docência, os mais importantes ao abordar a construção étnica do Brasil, são as questões pertinentes acerca de quais os conhecimentos que os alunos tem sobre suas raízes étnicas raciais, ou seja, “quais conhecimentos étnicos, raciais e culturais eles possuem? Quais os representam e como influenciam e se manifestam em suas criações artísticas? ”. Nas avaliações professores e alunos podem beneficiar-se de uma linguagem coloquial, que introduza com detalhe e clareza o que se pede, investindo em situaçõesproblema, abusando de textos introdutórios, fontes textos e figura de análise. É possível esperar melhores resultados com orientação clara e com uso de verbos e explicações que apontem com precisão o que se espera do aluno. Assim, é possível requisitar as mais variadas capacidades, das mais simples (classificar, associar, identificar) às mais complexas (estabelecer relações, comparar, levantar hipóteses, avaliar, propor soluções). Obviamente para que sejam avaliadas, devem ser exercitadas. Outro elemento cotidiano no ensino são as pesquisas demandadas como tarefa, fora da sala de aula. Com disponibilidade de sites de internet que armazenam programas de televisão, gravações de vídeo, trechos de filmes etc., é possível propor pesquisas nas quais o aluno extraia informações disponíveis em reportagens e entrevistas, por exemplo, redigindo sua pesquisa a partir daí. Enfim, sem que haja cópia de trechos de enciclopédia ou de livros ou aquela pesquisa em que o aluno através dos servidores de busca, simplesmente digite o tema, selecione, copie e cole. As atividades devem desenvolver habilidades de linguagem, capacidade de se relacionar, analisar, interpretar dados, fatos, situações e modelos explicativos. Ao mesmo tempo elas devem visar a produção de trabalhos artísticos, individuais e coletivos que permitirão avaliações diferenciadas. Cabe ao professor mobilizar os alunos no processo de autoavaliação, do qual devem fazer parte não só uma autorreflexão, mas os comentários feitos pelos colegas de sala.

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No final, – avaliar – o preparo dos estudantes para entender o mundo em que vivem e no qual devem atuar e interferir de modo mais preparado e consciente. “A arte transforma pontos de vistas até então ignorados. ”

Referências ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil, “Histórias, costumes e lendas”. São Paulo – SP: Grupo de Comunicações Três S.A., 2000. Fascículo 2. BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte – MG: C/Arte, 1998. BEUTTENMÜLLER, Alberto. Viagem pela arte brasileira. São Paulo – SP: Editora Aquariana, 2002. CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros [1790-1930]. Rio de Janeiro – RJ: Editora Record, 2008. CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte – Minas Gerais: Editora C/ Arte, 2007. FERRARI, Pascoal Fernando; FERRARI, Solange dos Santos Utuari; LIBÂNEO, Daniela Leonardi; SARDO, Fábio. Por toda Parte. São Paulo – Bela Vista – SP: Editora FTD S.A., 2007. Volume único. HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: proposta para uma nova narrativa educacional. Porto Alegre – RS: Mediação, 2007. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo – SP: Companhia das letras, 1995. RIBEIRO, Cristiano Acosta; ZAMPERETTI, Maristani Polidori. Refletindo sobre Avaliação no ensino de artes visuais a partir do portfólio. Presidente Prudente – SP: Nuances: estudos sobre Educação, v.26, n. 1, p.148-162, jan./abr. 2015. Mariah Cysneiros da Silva Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco.

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VICTOR MEIRELLES E O II REINADO DO IMPÉRIO BRASILEIRO: RETRATOS DE UM MOMENTO HISTÓRICO Marina Didier Nunes Gallo/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O artigo apresenta questões referentes ao uso do retrato no século XIX por parte de membros do Império Brasileiro, durante o reinado de D. Pedro II, a partir da análise da obra Dom Pedro II (1864), pintada por Victor Meirelles, que foi uma figura de grande importância dentro da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro nesta época. Este gênero da pintura, que começou a ter seu espaço no meio artístico por volta do século XIV, era um dos mais encomendados aos artistas. Para estes, na maioria das vezes, pintar retratos era uma forma de se manter financeiramente, bem como de contribuir para o aprendizado do ofício e para o domínio da técnica. Já para a sociedade, esta era uma das maneiras de se perpetuar na história e mesmo de construir sua imagem e fortalecer seu poder perante seus contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE retrato; século XIX; Victor Meirelles; II Reinado

ABSTRACT This main issue presents subjects related to the use of the portrait in the nineteenth century by members of the Brazilian Imperium, during the reign of D. Pedro II, asfrom the analysis of the portraits painted by Victor Meirelles, who was a much important figurewithin the Imperial Academy of Fine Arts of Rio de Janeiro at that time. This genre of painting began to take its place in the fine arts around the fourteenth century and it was one of the most ordered to the artists. For them, most of the times, painting portraits was a way to uphold financially as well as

Breve história de Victor Meirelles Victor Meirelles nasceu na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, em 18 de agosto de 1832. Filho de imigrantes portugueses, de condições financeiras precárias, começou muito cedo a desenhar bonecos e paisagens do lugar onde morava. Teve por primeiro mestre o engenheiro argentino d. Mariano Moreno, com quem começara a aprender desenho muito cedo. Por volta dos seus 14 anos, Victor conheceu Jerônimo Francisco Coelho, conselheiro do Império que estava na cidade em missão do governo e que, ao ver a aptidão do jovem, fez questão de informar ao então diretor da Academia Imperial de Belas Artes, Félix-Émile Taunay. No ano seguinte, Victor segue para a Corte e matricula-se na já citada Academia, se tornando aluno de Félix-Émile Taunay na sala de Paisagens, Flores e Animais. Como os trabalhos de Victor feitos nesse período foram exibidos na VI Exposição Geral, que foi inaugurada por d. Pedro II, acredita-se que foi nesta ocasião que aconteceu o primeiro encontro entre os dois.

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O fato de, aos seis anos de idade, segundo alguns biógrafos, ou aos treze, segundo outros, Victor Meirelles ter começado a estudar o desenho a partir de aulas de desenho geométrico, com seu então mestre d. Mariano Moreno, que era também engenheiro, aprendendo “a desenhar calculando, com auxílio da matemática” (COLI, 2009, p. 33), aliado a total dedicação que ele dava aos estudos, explica, em partes, tamanha perfeição nos traços feitos por ele. Dedicação esta percebida por aqueles que o cercavam, como comentou Luiz Gonzaga Duque Estrada numa de suas críticas: “Colegas e biógrafos de Victor afirmam que ele foi um dos mais laboriosos alunos desse tempo. Noite e dia dedicava-se ao estudo da arte com entusiasmo de fanático. O desenho!... o desenho!... era a sua maior preocupação, o seu cuidado, o seu amor. Estudava-o sempre, nos museus, n’academia, nas horas de descanso. Minardi e Consoni educaram-no rigorosamente”. (DUQUE, 1888, p. 141, apud COLI, 2009, p.34)

Esta sua preocupação excessiva com o desenho, fez com que Victor fosse extremamente reconhecido pela Academia Imperial de Belas Artes, por seus mestres de então, como Manuel de Araújo Porto Alegre, e pelo próprio imperador, d. Pedro II, que era o grande mecenas da Academia nesta época. A relação de Victor Meirelles com a Academia Imperial de Belas Artes foi longa. Entrou como aluno no ano de 1847, com 15 anos incompletos, permanecendo nesta condição até 1852. Começou, assim como os demais, com aulas de desenho, iniciando pelas cópias de estampas; depois assistiu às aulas de moldagens em gesso e só então pode ter aulas de modelo vivo. Em cada “módulo” desses, os alunos eram premiados pelos exercícios que faziam, e Victor foi premiado em todos os anos. No final de 1852, ele ganha o Prêmio de Viagem, com a tela São João Batista no cárcere [Fig. 1], e embarca para a Europa. Lá ficou como pensionista de 1853 à 1861. Seguiu primeiramente para Roma, onde teve por mestre inicialmente Tommaso Minardi, “um apaixonado do desenho, um idólatra da linha”, (DUQUE, 1888, p. 141, apud. COLI, 2009, p. 34), e depois Nicola Consoni, aprofundando ainda mais o estudo do traço. Viajou pela Itália, passando por Florença e Veneza, e, neste período, cumpriu muito bem a sua obrigação de pensionista, que era de enviar trabalhos para o Brasil, entre eles, diversas cópias de obras dos famosos artistas europeus, que serviam de referência para a Academia no Brasil e eram utilizadas como exemplos de normas a serem seguidas pelos alunos da mesma.

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[Fig. 1] São João Batista no Cárcere, 1852, Victor Meirelles. Óleo sobre tela, 88,7 x 105,9 cm. Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.

Nesta mesma época Manuel de Araújo Porto-Alegre teve a iniciativa, junto ao imperador, de ampliar os estágios dos pensionistas na Europa, de três para seis anos, e de incluir também Paris no roteiro do estágio, já que este era considerado o ponto de maior riqueza cultural para o aprendizado das artes. Desta forma, após três anos na Itália, Victor seguiu para a França. Lá, freqüentou o atelier de Léon Cogniet e conseguiu ingressar na Escola de Belas Artes de Paris. Devido à dedicação dada aos estudos e ao fato de continuar enviando uma grande quantidade de obras para o Brasil, Victor teve seu “estágio” prorrogado por mais dois anos, e foi neste momento que pintou a famosa tela, Primeira missa no Brasil, um dos maiores símbolos da iconografia nacional. Após concluí-lo, ele retorna ao Brasil em 18 de agosto de 1861. Tanto Porto-Alegre como Taunay foram grandes interlocutores entre d. Pedro II e Victor Meirelles. Ao final deste ano ele ingressou como professor honorário na AIBA, depois como professor interino até 1890, quando foi jubilado do posto da então Escola Nacional de Belas Artes, por conta da sua fidelidade à d. Pedro II, que havia sido deposto. Por outro lado, tamanha preocupação com o traço, com a perfeição, com o fato de conseguir produzir trabalhos tão bem feitos como os de alguns mestres, citados nos primeiros parágrafos deste artigo, e um ponto forte de Victor, ele acabou sendo acusado de ser dono de uma obra que era fruto de um “trabalho árduo e trabalhoso” (COLI, 2009, p.34), pouco espontâneo e praticamente isento de sentimentos (COLI, 2009, p.34), como Gonzaga Duque escreveu numa outra crítica: “Não será, nunca, uma obra extraordinária, opulenta de vigor, audaciosa, sincera, espontânea, vivificada por esse clarão estranho que se intitula gênio. Não, isto nunca” (GONZAGA DUQUE, 1888, p. 144-145. Apud COLI, 2009, p.34), e ainda: “O seu desenho parece feito a compasso, é exato. Estuda-o durante horas e horas, bosqueja-o, mede, relaciona, estabelece proporções precisas, nos mais insignificantes trabalhos e a mesma paciência emprega na execução” (GONZAGA DUQUE, 1888, p. 153. Apud COLI, 2009, p.34). Sem dúvida,

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além da “vocação íntima” de Meirelles, e da formação de desenho geométrico com Moreno, há também nesses traços “perfeitos” a influência do “projeto linear da arte purista” que encontrou em Roma (COLI, 2009, p.34). Victor desempenhou um papel fundamental para as artes visuais e para o registro da história do Brasil. Além de ter sido, junto com Pedro Américo, um dos artistas que mais registrou momentos históricos do país durante o II Reinado, colaborando para a construção de uma imagem e de uma memória nacional, também manteve uma boa relação com a família imperial. Com isso, produziu diversas obras ligadas a eles, entre elas Juramento da princesa Isabel e o Casamento da princesa Isabel. Victor também foi, durante pelo menos dois anos, professor de pintura e desenho de d. Isabel. Essa escolha foi feita pela princesa, devido à influência de seu pai, o imperador, de Manuel de Araújo Porto-Alegre e da condessa de Barral, grande conhecedora de artes, amiga e conselheira da princesa, grande apreciadora do trabalho de Meirelles. Alguns outros pontos servem para explicar a estreita relação de Meirelles com o imperador, além das questões ligadas à sua viagem à Europa, expostas acima. Victor, assim como Pedro Américo, foi um dos grandes colaboradores na construção de uma identidade nacional. Com obras como Primeira Missa no Brasil, que foi uma tela bem aceita no Salão de Paris de 1861, Victor se torna o primeiro artista brasileiro a representar o Brasil numa exposição internacional. Com esta obra também, ele foi condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Rosa, em 1861. Além dessa, recebeu outras graças honoríficas, como as de oficial (1870), comendador (1872), dignitário (1879) e grande dignitário (1855) da mesma ordem, e hábito da Ordem de Cristo (1864) e, depois, comendador dessa ordem (1876) (ARGON, 2009, p.98). Para entender ainda melhor essa relação de Victor Meirelles, bem como de outros artistas brasileiros da época, com os membros da família imperial, faz-se necessário um breve estudo sobre o II Reinado e a Academia Imperial de Belas Artes. A Academia Imperial de Belas Artes e o II Reinado A Academia Imperial de Belas Artes foi parte do projeto da Missão Francesa que chegou ao Brasil em março de 1816, mas só passou a funcionar, de fato, dez anos depois, e, ainda assim, com grandes dificuldades, principalmente de ordem econômica. E foi somente com d. Pedro II que o centro conseguiu se estabilizar, em grande parte por conta dos auxílios públicos e privados do monarca (SCHWARCZ, pág. 145). Foi ele que passou a distribuir medalhas e insígnias das ordens de Cristo e da Rosa aos alunos/artistas que mais se destacassem, bem como a conceder bolsas àqueles que tivessem ganhado o Prêmio de Viagem. Além disso, fazia questão de comparecer, sempre que possível, às Exposições Gerais que aconteciam na AIBA. Isso fazia com que o imperador acabasse tendo uma relação mais próxima com os artistas que mais se destacassem na instituição. Além de ter sido um imperador de grande carisma, D. Pedro II revelou-se um mecenas da produção, não somente artística, como também literária, no Brasil. Ganhou o título de Protetor do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que foi uma entidade feita com a intenção de refletir o que era a nação brasileira naquela época em que a independência havia sido recentemente conquistada. Nesta ocasião, ele 250


incentivou e financiou pesquisas, fez doações valiosas, cedeu sala no Paço Imperial para sede do instituto em seus passos iniciais, e presidiu mais de 500 sessões. Da mesma forma, como citado no parágrafo acima, ele fazia com a AIBA. Uma das coisas que se pode ler neste momento histórico, é que o monarca entendia que a unificação do território imperial podia ser fortalecida através de uma unidade cultural, por isto ele investia numa fundamentação e numa autonomia cultural que se mostrava necessária à elite cultural, ansiosa por definir sua identidade. Até porque a ausência de uma identidade nacional, de fato, iria resultar, em algum momento, em uma possível divisão interna e até mesmo em um enfraquecimento das instituições do governo (BISCARDI, 2006). Daí a opção de se adotar uma produção artística voltada para criar e fortalecer uma iconografia nacional, mesclando influências artísticas e sociais européias, com características locais, como as qualidades físicas naturais do país, o índio, “como habitante genuíno e elemento da brasilidade”, e “os temas históricos” (BISCARDI, 2006), sempre com um olhar heróico e bravo para as batalhas retratadas. Era um projeto de caráter tipicamente nacionalista, patriótico. É neste contexto que a AIBA ganha força, ainda sobre influência da estética neoclássica, e “recebe um vasto volume de encomendas de pinturas oficiais do império, sobretudo retratos do mecenas e cenas de exaltação cívica do Brasil, objetivando representar a nação da mesma maneira que a literatura do IHGB o fizera” (BISCARDI, 2006). Schwarcz discorre sobre esse momento: “Muito poderia ser dito sobre a Academia, mas de pronto basta lembrar que a relação do monarca com essa instituição era, também, estreita. Afora o apoio financeiro e oficial, os vínculos com d. Pedro II ficam claros pelo volume de retratos produzidos sob encomenda tendo como modelo o imperador.” (SCHWARCZ,1998, pág. 145).

Em suma, Schwarcz faz uma relação entre o fato de d. Pedro II ser um mecenas da Academia e o fato dele querer investir num projeto imperial, com o interesse não só de criar sua imagem como um governante comprometido com a nação, agora livre do colonialismo português, como também criar uma memória coletiva e uma cultura unificada. E artistas como Victor Meirelles eram interessantes para o imperador neste sentido. Segundo Schwarcz, “para ele (d. Pedro II) proteger esse tipo de artista era quase uma obrigação de Estado; uma forma de garantir uma iconografia social” (SCHWARCZ, 1998, p.145-146) Ainda segundo Schwarcz, a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro estava tão ligada à d. Pedro II que, no momento em que o Império foi derrubado e o monarca deposto, “a própria escola entrou em decadência, com um grande número de cadeiras vagas e o final da política de financiamento” (SCHWARCZ, 1998, P. 146). Desta forma, pode-se ter uma idéia no nível de envolvimento e investimento de d. Pedro II com a Academia.

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Os retratos dos membros do Império durante o II Reinado Como no século XIX uma grande parte da população era analfabeta, se fazia cada vez mais necessário utilizar a informação visual como forma de veículo para propagação de idéias. Desta forma, essa utilidade foi ampliada também para a propaganda política. Para o monarca de então, d. Pedro II, além da literatura e obras escritas produzidas pelo IHGB, era necessário o uso das pinturas, como forma de transmitir à população local e mesmo ao exterior, atos heróicos, símbolos da identidade nacional que se pretendia criar à época, bem como obras que retratassem a simbologia do seu poder, ainda que através de uma visão romântica da situação. Uma das maneiras encontradas pelos membros do império brasileiro, assim como se fazia na Europa, para fortalecer e perpetuar sua imagem e força política, era investir na produção de retratos de si mesmo. Roland Barthes, no seu livro “A Câmara Clara”, fala que “o retrato, pintado, desenhado ou miniaturizado, era, até a difusão da Fotografia, um bem restrito, destinado, de resto, a apregoar uma situação financeira e social” (BARTHES, 1980). O pintor português Varela Aldemira, discorre sobre a origem deste vocábulo: “A palavra retrato, imagem plástica de uma pessoa conseguida pelo desenho e pela pintura, vem do italiano ritratto, cópia exacta do modelo vivo. E a origem do termo é do latinório retractus, ou retractatio.”. Segundo Miceli, o ato de retratar uma outra pessoa sempre despertou uma verdadeira fascinação, tanto entre os participantes deste ato, como o artista, o modelo e os espectadores, quanto entre os historiadores e teóricos de arte, o que justifica a existência desse gênero há tantos anos, e a permanência do mesmo com tanto sucesso até hoje nas sociedades individualistas modernas. No entanto, apesar de toda essa constante admiração pelo gênero, sobretudo pelo retrato pictórico, ainda existe pouca coisa escrita neste sentido no Brasil (MICELI, 1996, apud SANTOS, 1996), o que dificulta um aprofundamento neste tema. Este gênero da pintura, que começou a ter seu espaço no meio artístico por volta do século XIV, era um dos mais encomendados aos artistas. Para estes, na maioria das vezes, pintar retratos era uma forma de se manter financeiramente, já que as pessoas pagavam bem por este serviço, como explicita Schwarcz: “No resto do país predominava, ainda, o academicismo, bem como o retratismo, grande moda entre as famílias abastadas até a difusão da fotografia.” (SCHWARCS, Pág. 145). Além disso, o ato de retratar pessoas através da pintura contribuía para um maior aprendizado do ofício e para o domínio da técnica. Até porque, para pintar as famosas obras de batalhas, que eram as de maior valor à época, era necessário dominar o desenho de pessoas também. Já para a sociedade, como foi dito acima, esta era uma das maneiras de se perpetuar na história e mesmo de construir sua imagem e fortalecer seu poder perante seus contemporâneos. Victor Meirelles aprendeu sobre a importância do retrato muito cedo, já que, durante sua estada na Europa, além de estudar figuras essenciais para o desenho histórico, de batalhas principalmente, que era o mais valorizado à época, como os cavalos, Meirelles recebeu a orientação de Porto-Alegre para estudar os retratos, numa das cartas que o pensionista recebeu do mesmo:

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“Como homem prático, e como particular, recomendo-lhe muito, o estudo do retrato, porque é dele que há de tirar o maior fruto de sua vida: a nossa pátria ainda não está para á grande pintura. O artista aqui deve ser uma dualidade: pintar para si, para tua glória, e retratista para o homem que precisa de meios”. (PORTO-ALEGRE, In: ROSA, 1982, p. 38).

Já aqui no Brasil, estava claro para o monarca a força que as imagens tinham em criar certas “verdades” que ele tinha o interesse de propagar como forma também de manter a ordem em seu Império. Jorge Coli, num artigo sobre a obra Primeira Missa no Brasil, utilizou a expressão “verdade visual” para se referir às conclusões que se chegam e que são tomadas como “verdade” a partir da análise de obras como essa, algumas delas difundidas durante o século XIX e repetidas durante o século XX. Podese dizer, inclusive, que até hoje vestígios dessas “verdades” ainda são disseminadas. Assim como obras escritas, algumas pinturas surgem como formas de instituir uma história para o Brasil, com o propósito de manter a idéia romântica de um passado colonial idealizado e de um Império Independente. Ricardo Salles discorre sobre em que consistia essa idéia de escrever a história da nação através de obras: “[...] entender as raízes históricas de uma entidade chamada Brasil no momento mesmo de sua fundação. Intimamente identificada com o Estado central que há pouco consolidara seu poder sobre o restante do país, a tarefa que se colocava era a de produzir uma história fundada nas tradições, que demonstrasse a identidade entre o novo Estado e as raízes nacionais.” (SALLES, 1996, p. 31, 1996, apud SANTOS, 2009, p. 131.Renata Santos).

O artista deveria então narrar a história, fosse ela forjada dentro dos espaços das academias ou não, principalmente para as pessoas que não faziam parte dos círculos de arte e literatura, e mesmo para aquelas que não sabiam ler. Era preciso propagar essa “verdade” ao maior número de pessoas possível. Assim era feito principalmente com as pinturas históricas, narrando batalhas e fatos pelos quais o país havia passado. No entanto, da mesma forma, através dos retratos, também se buscava construir essas “verdades”, como já citado anteriormente. No caso do imperador, procurava-se passar a imagem de um político comprometido, um homem de família, de fato retentor de um poder, e responsável por um governo que fazia com que o país fosse um lugar civilizado, em evolução. Essa era a imagem que ele queria passar através dos retratos. E para entender isso se faz necessário situar esse governante e as obras encomendadas por membros do seu Império, no momento histórico pelo qual o Brasil passava então, pois, como disse Ulpiano Bezerra de Menezes: “As imagens não têm sentido em si, imanentes. Elas contam apenas — já que não passam de artefatos, coisas materiais ou empíricas — com atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar. [...] Daí a importância de situar a obra no tempo e no espaço, inseri-la no contexto histórico e situacional da época, bem como a necessidade de entender também sobre a vida e o

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percurso profissional do artista que a criou. Fatores como esses devem ser levados em consideração da hora de se “ler” uma obra.”. (MENEZES, jul. 2003, p.28)

Integrado ou não a um evento histórico, o retrato era o gênero mais divulgado, principalmente utilizando a iconografia do Imperador e da família real, que eram expostos nas galerias dos edifícios públicos e religiosos, e nos Salões das Exposições Gerais. “As tendências, que observamos na pintura, seja nas grandes batalhas de Victor Meirelles ou de Pedro Américo, ou nos demais gêneros representados, desses e de outros artistas, revelam esse academismo de tendência romântica, que serve à narrativa dos temas nacionais, de inspiração nativista.” (FERNANDES, 2007).

Havia uma verdadeira negociação entre artista e personalidade retratada, cabendo aí idealizações e uso de simulacros. “[...] a liberdade de criação de signos, inerente ao retrato pictórico, é capaz de mentir ou idealizar o retratado (de maneira bem mais convincente, aliás, do que no meio fotográfico). Na pintura de retratos os traços fisionômicos e a própria configuração do corpo podem ser manipulados completamente. E é por esta negociação, geradora de simulacros corporais, que os retratos tiveram grande êxito junto às elites econômicas e culturais no Brasil, ora legitimando o caráter dos modelos, ora sublimando-lhes as qualidades, ora ocultando-lhes os defeitos, mas quase sempre apontando para os seus desejos de presença idealizada. [...] Retratos oficiais ou oficiosos de dignitários ou de personalidades de destaque político e da representação de fatos históricos convenientes á exaltação cívica do Império em telas de dimensões inusitadas, que os favores oficiais estimulavam, no cuidado de estabelecer toda uma documentação figurativa de interesse óbvio, [...]” (BATTISTONI FILHO, 1995,1996, p. 59-60)

Faz-se necessário lançarmos mão de um breve panorama sobre o contexto em que essas obras foram concebidas, que aliás é contemporâneo ao momento retratado, para compreendermos a complexidade do período e, dessa forma, entender o porquê da tentativa de afirmação da imagem do Imperador como foi realizada. Contexto histórico D. Pedro II teve o governo mais duradouro da história do Brasil, enquanto país independente, tendo o mesmo durado 50 anos. Neste período aconteceram diversas transformações de cunho social, político e econômico. O café se consolidou como principal riqueza do país, as indústrias começaram a surgir, e, consequentemente, aconteceu um verdadeiro progresso econômico que acabou gerando alguns conflitos internos e externos.

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Um exemplo disso é a Guerra do Paraguai, na qual a Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai, enfrentou o Paraguai, numa batalha pela região da Bacia do Prata, entre os anos de 1864 e 1870. Este acontecimento só contribuiu para potencializar o enfraquecimento que o Segundo Império vinha enfrentando no século XIX, “com as fortes resistências, fossem populares ou elitistas, em resposta às medidas centralizadoras ou ao escravismo que vinha sendo gradualmente abolido” (PRAZERES, 2011). Enfraquecimento este que contribuiu para que houvesse uma verdadeira crise de cunho econômico e também político no governo de d. Pedro II. “[...] em conseqüência dos conflitos de 1865 a 1870, houve a questão do recrutamento, que gerou perdas humanas e profunda insatisfação popular; o descontentamento dos pecuaristas gaúchos, que têm seus negócios prejudicados pela guerra civil; e a insatisfação do Exército brasileiro, que não foi atendido em suas reivindicações por melhores salários e condições mais adequadas para exercer o ofício das armas, passando a criticar abertamente a monarquia.” (PRAZERES, 2011)

Além da crise econômica e política, dos milhares de mortos, da fome e das epidemias que aconteceram em decorrência da guerra, o abolicionismo, em 1888, fez com que o sistema monárquico perdesse sua sustentação, que tinha como base o trabalho escravo, mantido principalmente pelos grandes proprietários rurais. Paralelo a estes acontecimentos, as ideias republicanas, - que eram fruto de um desejo coletivo que unia no mesmo ideal grupos que estavam descontentes com o Império, entre eles, setores do exército, camadas médias urbanas, setores do clero (igreja) e fazendeiros do Oeste Paulista, - “começam a pairar sobre o governo monárquico neste contexto e encontram ambiente fértil para se instalarem, agravando o enfraquecimento do Imperador e do regime” (PRAZERES, 2011). “Muitos proprietários rurais, sobretudo os cafeicultores paulistas, classe média e operariado desejavam maior participação política, mobilizando-se em favor da República, que acreditavam poder proporcionar a desejada autonomia. A crise de setores da Igreja e do Exército com o governo imperial, e a ausência do Imperador em relação às crises e às decisões do governo, [...], dão coro ao enfraquecimento da monarquia e ao fortalecimento do movimento republicano.” (PRAZERES, 2011)

Análise Pode-se observar no retrato de d. Pedro II, pintado por Victor Meirelles no ano de 1864, intitulado Dom Pedro II [Fig. 2], uma influência direta dos retratos dos grandes imperadores e personalidades européias. Da mesma forma que os jovens pintores se inspiravam e até mesmo citavam os mestres que os precederam, os membros do império no Brasil também utilizavam praticamente a mesma reprodução da simbologia do poder que os imperadores utilizavam na Europa, através de seus retratos.

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[Fig. 2] Dom Pedro II, 1864, Victor Meirelles. Óleo sobre tela, 252 x 165 cm. São Paulo, Museu de Arte de São Paulo.

Observando o retrato de Napoleão Bonaparte pintado por Jacques Louis David em 1812, pode-se ver o uso de trajes oficiais, de insígnias e medalhas, um olhar sereno, e, ao fundo, símbolos de cultura e poder. Analogicamente, em Dom Pedro II, de Meirelles, vemos o imperador com um traje oficial, no qual constam alguns símbolos nacionalistas, como ramos de tabaco e café, algumas medalhas e insígnias, e o mesmo olhar sereno, que passa a idéia de uma figura calma, tranqüila e carismática, fundamental para a idéia de unidade e segurança que o mesmo queria transmitir para a população do país. “A imagem do Imperador, ligada ao sentido de regra e de ordem, deveria orientar os destinos da instituição. Eram ambos jovens, o Imperador e a Academia, mas a ambos estavam delegadas tarefas de grande relevância, cabendo a um prover os meios para o desenvolvimento das artes e a formação de especialistas nessa área e a outro a elaboração dos símbolos da Nação, comemorando os fatos da história, os registros da natureza brasileira, os seus recursos, a sua gente.” (FERNANDES, 2007)

Nota-se também, ao fundo, a intenção de se passar a imagem de que d. Pedro II era um homem culto e, de fato, retentor do poder. Podem ser vistos neste retrato, quadros, esculturas, livros, um globo terrestre, o imponente chapéu, e a decoração do

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ambiente ao estilo europeu; “tudo colaborava para a construção de uma identidade feita de muitos empréstimos e várias incorporações.” (SCHWARCS, Pág. 141). O artista fez uma composição de cores sóbrias, o que contribui para esta imagem serena. No entanto, com o ato de colocar a figura no centro do quadro, nota-se o monarca aparentemente imóvel, ríspido. O pintor português Varela Aldemira, em um de seus artigos, discorre sobre este tipo de retrato, no qual o motivo encontra-se centralizado: “[...] uma só figura, no centro do enquadramento é desaconselhável, porque desse modo, prisioneira do eixo vertical, vive na imobilidade de um equilíbrio estático. O personagem deve estar liberto de monotonias circundantes, isto é, respirando á vontade numa composição dinâmica. Daí a lei antiga, intuitiva dos retratistas de todas as épocas, ao dizer-nos que o espaço maior do fundo é aquele para onde olha e está voltado o corpo da figura”. (ALDEMIRA, 1967, pág. 24)

Mesmo que alguns teóricos digam que o projeto de construção de uma identidade nacional e de fortalecimento de poder de d. Pedro II não teve seu objetivo alcançando, já que houve a queda do Império, esta ainda é uma incógnita. Fica difícil dizer exatamente se uma obra conseguiu atingir seu objetivo maior ou não. Como disse Coli, “o impacto de uma obra, sua força interna, a capacidade de agir sobre outros criadores, que multiplicarão, de maneira muitas vezes indireta e não explícita, a força dos protótipos, é impossível de medir por números ou pelas formas simplificadas daquilo que se imagina ser uma compreensão ideológica. Quando muito, alguns desses estudos “cientificamente” sociológicos podem servir como apoio, secundário, para compreensão das obras. No entanto, eles não funcionam de maneira primordial para o que de mais importante a história das artes pode trazer.” (COLI, p.20)

Referências ALDEMIRA, Luiz Varela. Anotações didácticas sobre o retrato. Colóquio – Revista de Artes e Letras, Lisboa, n. 45, p. 22-25, out. 1967. BATTISTONI FILHO, Duílio. Aspectos preconceituosos na pintura brasileira ao final do século XIX. Revista Comunicarte, Campinas, v.12, n. 20, p.53-61, 1995-1996. BISCARDI, Afrânio. ROCHA, Frederico Almeida. O Mecenato Artístico de D. Pedro II e o Projeto Imperial. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 1, mai. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/mecenato_dpedro.htm>. Acesso em 01/05/2012. COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do seculo XIX?. São Paulo: SENAC, 2005. 114p. (Livre pensar; v. 17). ISBN 8573594446 (broch.).

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BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. COLI, Jorge. Primeira missa e invenção da descoberta. In: NOVAES, Adaulto (Org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Fabris, Annateresa. Fotografia: Usos e Funções no Século XIX. Annaterea Fabris (org.). - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. FERNANDES, Cybele V. F. A construção simbólica da nação: A pintura e a escultura nas Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v.II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cfv_egba.htm>. Acesso em 13/05/2012. FREUND, Gisele. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, c1989. 214p., il. MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, proposta cautelares”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, jul. 2003, Pág. 28. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf>. Acesso em 18/05/2012. PRAZERES, Jéssica Costa; COSTA, Mariana. A representação da simbologia do oder na obra Dom Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, de Pedro Américo. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/pa_dompedro.htm>. Acesso em 01/05/2012. ROSA, Angelo de Proença et al. Victor Meirelles de Lima (1832-1903). Pref. De Alcídio Mafra de Souza. Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982. SANTOS, Alexandre Ricardo dos. Resenha: MICELI, S. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920 – 40). São Paulo, Companhia das Lestras, 1996. In: Arte e Educação em Revista, São Paulo, ano II, n. 2-3, p. 95-109, jul./dez. 1996. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998. TURAZZI, Maria Ines (org.). Victor Meirelles – novas leituras. Florianópolis, SC: Studio Nobel, 2009. Marina Didier Nunes Gallo Mestra em Artes Visuais (UFPE/UFPB), possui graduação em jornalismo. Atualmente cursa a Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco e é professora de artes da Licenciatura em Artes Visuais da EAD-UFRPE e da educação Infantil, no Colégio Equipe.

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A INFLUÊNCIA DO MOVIMENTO VANGUARDISTA EXPRESSIONISTA NA QUESTÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO Marina Nolêto Wanderley/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O movimento vanguardista expressionista tem como fundamento a negação de valores classicistas conservadores através da expressão artística individual subjetiva, onde o eu íntimo é evidenciado e a visão de mundo individual, exaltada. Os fundamentos do ideário do expressionismo encontraram espaço na crescente consciência social atual, onde se encontra a questão da identidade de gênero, que está intrinsecamente ligada à expressão mais pura do ser individual, onde a quebra de paradigmas com o socialmente convencional, se dá através dessa expressão de identidade pessoal que foge ao controle do individuo. PALAVRAS-CHAVE Vanguarda; expressionismo; identidade de gênero; expressão ABSTRACT The Expressionist avant-garde movement is based on the denial of conservative classicist values through individual subjective artistic expression, where the inner self is evidenced and the individual worldview, exalted. The fundamentals of the ideas of expressionism found space in the growing current social consciousness, where the issue of gender identity lies, which is intrinsically linked to the purest expression of the individual, where the paradigms rupture with the socially conventional, is shown through the expression of personal identity that is beyond the control of the individual. KEYWORDS Avant-garde; expressionism; gender identity; expression

Os movimentos artísticos de vanguarda que surgiram na Europa do século XX foram considerados extremamente radicais e influenciaram manifestações artísticas em todo o mundo a partir da ruptura com a tradição cultural do século XIX. Foram especialmente reflexos da transformação socioeconômica, devido à rápida industrialização, e do quadro político da pós Primeira Guerra Mundial. O Expressionismo foi um movimento artístico vanguardista especialmente radical – transversal aos campos artísticos da música, cinema, teatro, dança, fotografia, literatura, arquitetura e artes plásticas – iniciado na Alemanha nas duas primeiras décadas do século XX, onde se buscava romper drasticamente com os conceitos

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clássicos de harmonia, belo e bom proposto por Goethe e Schiller , especialmente porque tais princípios eram os pilares do governo corrupto do estado prussiano31 alemão do final do século XIX . O ideário do movimento seria a ruptura de padrões socialmente estabelecidos, colocando o homem e sua identidade subjetiva como centro, expondo a realidade angustiante de cada eu, e incorporando todos os excluídos e rejeitados da sociedade – pobres, prostitutas, poetas – ao instigar o “rompimento com esse mundo que o aprisiona e o mantém refém” (MOURA, 2007: p.245). Ao mesmo tempo que o movimento expressionista se refere à relação de fuga no reconhecimento unicamente de si mesmo; se refere, de maneira mais básica, ao impacto da expressão, como manifestação do ser interior/ transmissão da profundidade do ser a partir daquilo causado pelo mundo exterior. Assim, resumido 32 por Gerd Bornheim , o paradoxo expressionista da subjetividade objetiva de se trata de uma luta pela síntese do mundo interior com o mundo exterior, resultando em arte/linguagem/imagem de criatividade espontânea. O expressionismo possui uma forte ligação com o irracional, predominância do inconsciente, do mundo interior, do eu absoluto; onde a realidade só pode ser analisada a partir do desespero pessoal de cada um, sem necessariamente evidenciar a consciência de uma subjetividade, mas apenas expressa-la; pois a única realidade aceita é a expressão propriamente dita, onde os elementos expressam a si mesmos, tirando qualquer controle pertencente ao artista. As duas principais correntes do expressionismo, segundo o acadêmico e crítico de arte galês Raymond Williams, seriam o expressionismo subjetivo e o expressionismo social. Segundo o autor, o primeiro se referenciava ao “grito do indivíduo perdido em um mundo sem sentido”, onde “(...) tanto o ambiente material quanto as relações sociais dados eram radicalmente excluídos da forma, de modo a enfatizar, em primeiro lugar, o indivíduo isolado e seu mundo projetado, mas a seguir, (...) uma redução ainda para além disso, a pedaços fragmentados de indivíduos que sequer podem reconhecer suas próprias projeções.” (WILLIAMS,1992: p.173 apud MATE, 2014). O expressionismo social compartilhava os mesmos ideários de subversão de padrões estabelecidos na sociedade classicista a partir de expressões profundas, porém voltados para respostas à momentos de crise extrema, como greves, revoluções, guerras e outras diversas formas de lutas sociais. Segundo Ludwig Rubiner, 1912 (apud MOURA, 2007) o expressionismo tenta chamar

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a base do Classicismo Alemão, séc. XIX, estabelecendo conceitos de beleza e harmonia como fundamento da obra de arte, que se institui como uma releitura dos padrões clássicos greco-romanos. 31 Guilherme II (1859-1941), Imperador da Alemanha e rei da Prússia de 1888 a 1918, estado prussiano tornado hegemônico pela unificação do estado alemão, em 1871. 32 Professor, filósofo e crítico de arte moderna brasileiro. Nasceu em 1929, em Caixias do SulRS.

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atenção a partir da exposição do irracional, do excluído, renegado e reprimido, onde a revolução tem que partir do rompimento com o tradicional através do uso do incomum cotidianamente, como parte intrínseca de cada indivíduo, a parte mais real do ser: “Nós?”/ Não. Eu não estou sozinho./ Embora isto não seja uma prova./ Mas uma alegria./ Quem somos nós?/ Quem são os camaradas?/ Prostitutas, poetas, gigolôs,/ Colecionadores de objetos perdidos,/ Ladrões de ocasião, mandriões,/ Amantes em meio a um abraço,/ Loucos religiosos,/ Bêbados, fumantes inveterados, desempregados,/ Comilões, vagabundos, assaltantes,/ Chantagistas, críticos, litúrgicos./ Gentalha./ E por instantes, todas as mulheres do mundo./ Somos as fezes,/ O resto, o desprezo./ Somos os desempregados,/ Os incapazes,/ Os que não querem trabalhar. Não queremos trabalhar,/ Porque é devagar demais./ Somos imunes/ À doutrina do progresso;/ Para nós, ele não existe./ Acreditamos no milagre.../ Acreditamos que em nossos corpos,/ De repente,/ Sejam devorados em chamas/ Pelo espírito ardente.../ Procuramos raios de fogo/ Na nossa memória,/ A vida toda,/ Atropelamos atrás de toda cor,/ Queremos penetrar em espaços alheios/ Queremos entrar em corpos estranhos. (RUBINER, Ludwig, 1912 apud MOURA, 2014)

Esse automatismo da expressão pessoal resulta em uma consequente subversão de valores morais conservadores, devido à inquietação dos sentimentos do indivíduo diante do mundo. As obras de arte do movimento expressionista eram visões individuais de mundo, onde se espelhavam sentimentos e vivências intensos, com o objetivo de tocar o íntimo de cada indivíduo inserido em sua coletividade.

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Otto Dix. Frente ao Espelho (1921)

O expressionismo no Brasil teve sua mais forte representação no âmbito da pintura, onde diversos artistas renomados seguiram a linha do expressionismo social – talvez devido ao constante estado de luta social da realidade brasileira –, na qual se apresentavam desejos intensos de demonstração de nossa realidade social, espiritual e cultural. Um dos mais importantes pintores expressionistas brasileiros, cuja temática se foca na denúncia das desigualdades da sociedade brasileira e suas consequências, foi 33 Cândido Portinari , conhecido internacionalmente pela utilização de corpos humanos de pés descalços e super escalonados, relacionando íntima e diretamente seus personagens com a terra, assim como a utilização de figuras marginais e excluídas da sociedade em suas obras como, por exemplo, retirantes nordestinos e cangaceiros.

Candido Portinari. Criança morta (1944)

A busca pela ruptura de paradigmas e criação de um novo tipo de expressão artística através da combinação dialética entre a coletividade e individualidade, proposta pelo movimento vanguardista expressionista, gerou um movimento artístico repleto de polêmicas, discussões e pontos de vista antagônicos, que possui diversos traços e características conservados até hoje, acima de tudo, por ter encontrado na complexidade de uma crescente consciência social, um espaço de permanência.

33 1903 – 1962. Suas obras possuem influência do surrealismo, cubismo e a arte dos muralistas mexicanos.

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Nesse âmbito, da quebra de padrões convencionais, exaltação do reconhecimento individual – apesar de não individualista –, liberdade psíquica e, acima de tudo, expressão automática da subjetividade pessoal como consequência do que se é causado pelo mundo exterior ao eu interior individual; é possível fazer um paralelo quanto à questão da identidade de gênero como forma mais atual de expressão profunda do ser. Nossa identidade de gênero se constrói a partir do momento que é identificada uma rotulação de menino ou menina a um bebê, que passar a carregar expectativas de comportamentos condizentes à essa rotulação. A questão da identidade de gênero se refere ao gênero em que a pessoa se identifica em nível pessoal, individual e social, podendo ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído em seu nascimento, remetendo à constituição do sentimento individual de identidade (GROSSI, 2010).

Andreia Magnoni. Flores e Cores para Tita, 2016

A expressão da identidade de gênero está se tornando cada vez mais ativa na sociedade atual, que nas últimas décadas mostrou uma grande intensificação de expressão artística voltada sobre essa discussão, devido ao avanço do debate psicológico, ético e social na maior parte do mundo. Essa expressão do íntimo para o mundo, no caso da questão de identidade de gênero, possui os resultados estéticos mais diferenciados, existindo também diversos tipos de expressões artísticas que focam nessa discussão, entre elas a pintura, escultura, dramaturgia, fotografia, literatura, dança e artes plásticas.

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Richard Webb. Transsexual Robotic Stick Shift-Joy Toy. 2009

Mark Quinn. Retrato escultura dos transsexuais Buck e Allanah. 2013.

Dentro da multiplicidade que contempla diversos campos artísticos, a abordagem da identidade de gênero se liberta de qualquer amarra de pertencimento a movimentos artísticos unificados, evidenciando a urgência do movimento social – e ao mesmo tempo individual – de expressão da manifestação do ser interior. O paralelo que se faz entre o expressionismo e a questão da identidade de gênero não se dá necessariamente pelos resultados estéticos do movimento vanguardista, mas sim pela hermenêutica de seus fundamentos e obras de arte; onde a questão da

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identidade de gênero, pode ser considerada a mais pura evolução dos ideários expressionistas do início do início do século XX de reconhecimento individual no mundo externo, onde se misturam o íntimo, a formação, os desejos e os desconfortos sociais do indivíduo, excluído e rejeitado dentro dessa sociedade. Portanto, a expressão artística sobre a questão da identidade de gênero, se encaixa perfeitamente na subjetividade objetiva de Bornheim, já citada anteriormente, visto que a subjetividade do mundo interior possui uma urgente necessidade de expressão objetiva no mundo exterior. É uma síntese sobre como cada indivíduo se vê e se mostra ao mundo, em um resultado espontâneo e inerente à vontades.

Adam Caldwell. Precious Human Birth .2014

No Brasil, as diversas expressões artísticas voltadas para a discussão de identidade de gênero são uma forma de luta social devido à quebra de padrões determinados por uma sociedade que apesar de conservadora, passa por uma crescente conscientização de respeito da expressão livre individual.

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A artista visual pernambucana Guilhermina Pereira da Silva (Velicastelo), que se interessa por teoria queer, transexualidade, arte e gênero, é mestranda em Artes Visuais pela UFPE/UFPB, e expressa o tema de identidade de gênero através de seu ideário sensível, transmitindo em suas obras de arte imagens fortes e repletas de significância pessoal e coletiva, de um grupo que ainda é muito reprimido.

Guilhermina Pereira da Silva. Sem título. Nanquim sobre madeira . 2016

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Guilhermina Pereira da Silva.Sem título Nanquim sobre madeira, 2016

Apesar do não pertencimento estilístico – devido inclusive à natureza de diversidade da discussão – a questão da identidade de gênero pode ser considerada, assim como o movimento expressionista, uma forma drástica de ruptura com o convencional, pelo uso cotidiano do inusitado, que em toda sua complexidade de quebra de padrões e expressão individual, possui a simplicidade da inconsciente subjetividade autônoma, onde o eu interior não pode – nem deve – ser mudado, apenas expressado, sem 34 qualquer necessidade ou possibilidade de controle por parte do indivíduo . “Quando o homem atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava ampliar seu entendimento: - só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo o homem atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, jogando sobre os ombros do mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do Sol.” (NIETZSCHE. Aurora, p. 27 apud JESUS, 2012).

34 Assim como no movimento expressionista, onde o artista perde qualquer tipo de controle sobre a expressão doseu eu interior, pois a expressão é autônoma – como citado anteriormente.

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Referências MOURA, M. S. O Expressionismo Alemão: a procura arrebatada por um novo homem, por um novo mundo. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <http://amazonaws.com/academia.edu.documents/31496921/Magali_Moura.pdf?> Acesso em junho, 2016. MATE, Alexandre. Vanguardas Históricas Européias: O Expressionismo. São Paulo: Teatro sem cortinas, 2014. Disponível em: <http://www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br/Home/HistoriadoTeatroMundial33/evolu cao--- expressionismo-revisado-e-formatado.pdf> Acesso em junho, 2016. Expressionismo no Brasil. 2007. Disponivel em: <http://hist-daarteexpressionismo. blogspot.com.br/2007/05/expressionismo-no-brasil.html> Acesso em junho, 2016. GROSSI, M. P. Identidade de gênero e sexualidade. Trindade, 2010. Disponível em: <http://bibliobase.sermais.pt:8008/BiblioNET/upload/PDF3/01935_identidade_gener o_revisado.pdf> Acesso em junho, 2016. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos. Brasília, 2012. Disponível em: <https://issuu.com/jaquelinejesus/docs/orienta__es_popula__o_trans> Acesso em junho, 2016.

Marina Nolêto Aluna do último ano de graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.

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WEB ARTE NA AMERICA LATINA: UMA ANÁLISE BASEADA NA TÉCNICA DA DERIVA E SEUS REFLEXOS NO BRASIL E NA ARGENTINA Milena Anunciada Monteiro/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O presente artigo produz uma breve análise acerca dos desvios presentes em projetos de web arte de acordo com as determinações do Guia Prático do Détour de Guy Debord e Gil Wolman, escrito no ano de 1956. Além disso, tem a pretensão de ampliar a discussão sobre os novos meios de produção da arte contemporânea, que vem acompanhando o crescimento da tecnologia e do universo online apresentando questionamentos políticos, sociais e econômicos. As artemídias digitais, mais especificamente os projetos de web arte serão abordados e com uma sucinta visualização da produção latino-americana de dois países bastante relevantes neste continente: o Brasil e a Argentina. PALAVRAS-CHAVE Web Arte; Desvio; Política ABSTRACT This article makes a brief analysis about the present deviation in art web projects according to the User´’s Guide to Detournement, written by Guy Debord and Gil Wolman in the year 1956. In addition, with the intention to broaden the discussion on the new means of production of contemporary art, which has been tracking the growth of technology and the online universe featuring political, social and economic questions. Digital media art more specifically the web art projects will be discussed and a brief display of Latin American production of two very important countries in this continent: Brazil and Argentina. KEYWORDS Web Art; Deviation; Politics

Introdução Segundo a definição do dicionário Aurélio de contemporaneidade, quando se fala em arte contemporânea, entende-se pela arte atual, aquilo que se pratica naquele momento, já para Nietzsche o contemporâneo é o intempestivo. (AGAMBEN, 2009). Este texto segue adiante conforme o conceito de Agamben (2009): A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo, que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. (ANGABEM, 2009)

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A definição do contemporâneo se faz necessário a partir do momento em que a arte contemporânea se modifica enquanto se apropria de seu tempo, e dele também se distancia. No território da internet, a arte pode ser um dispositivo (AGAMBEN, 2009) que gera um novo processo social, chamado de estética relacional por Bourriaud (2009), da qual fazem parte as obras de web arte, propondo novas relações entre a arte, a internet e o ser humano. Uma característica observada em alguns projetos de web arte é a prática da distorção de web sites originais ou de alguns elementos, com a finalidade de promover indagações sócio-políticas. Segundo Nunes (2010), a arte produzida através dos meios tecnológicos, diga-se 35 artemídias , possui a capacidade inerente de realizar estes desvios de ordem sóciopolítica com maior nível de precisão e complexidade que os outros. O estudo das distorções em sites de web arte convém no sentido de consolidar vozes como a de Bourriaud (2009), quando diz que: “A arte tem a função de se apropriar das técnicas conforme o seu tempo”. Este artigo tem a pretensão de apresentar uma pequena amostra do trabalho de dois artistas contemporâneos latinos, mais especificamente abordando as produções do Brasil e da Argentina, com obras políticas que permeiam o universo da internet e do mundo digital. As obras selecionadas são de artistas, cujos trabalhos estavam presentes na Bienal Internacional de Curitiba do ano de 2013 na sessão especial Web Arte. É a partir das técnicas do Detour que os projetos de web arte serão analisados em concordância com as definições do Guia Prático do Détour de Debord e Wolman do ano de 1956. Para isso, haverá uma breve fundamentação teórica sobre o tema para melhor compreensão das análises da presença da técnica da deriva nas obras selecionadas. Détournement Movimento Internacional Situacionista O Movimento internacional situacionista originou-se a partir da unificação dos grupos 36 37 Internacional Letrista e MIBI com a participação da Associação Psicogeográfica de Londres, que se consideravam vanguardas da época. Este movimento tinha como base uma posição crítica em relação as situações do cotidiano. Desejavam uma mudança radical da arte no século XX, com o intuito de revolucionar, criando situações que rompessem com a alienação vivenciada diariamente pela sociedade, a verdadeira superação da arte. (JAPPE, 1999). Deixando de se submeter àquilo que

Formas de expressão artística que se apropriam de recursos tecnológicos das mídias e da indústria do entretenimento em geral. (MACHADO, 2010). 36 Grupo que Debord participou antes da Internacional Situacionista. 37 International Movement for an Imaginist Bauhaus. 35

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todos estavam condicionados a fazer, conforme Bourriaud (2009), o objetivo dessas ações era “devolver paixão à vida cotidiana”. Uma das técnicas utilizadas pelos situacionistas era a técnica da deriva, que consistia em percorrer os ambientes urbanos de forma distinta do comum, não alheia ao seu redor. Também se tornou conhecida através dos situacionistas a teoria do desvio, que para Guy Debord, Asger Jorn e Gil Wolman consistia na situação de edifícios e todos os entornos do ambiente urbano passam a ser tidos como elementos festivos e animados, com os quais deveria interagir. (BOURRIAUD, 2009). O desvio pregado pelos situacionistas é considerado por Bourriaud (2009) como o único modo possível de utilização da arte. O mesmo também cita: “O desvio, como Debord especifica mais tarde em La Société du spectacle [A sociedade do espetáculo], “não é uma negação do estilo, mas o estilo da negação”, definido por Asger Jorn como “um jogo derivado da capacidade de desvalorização”. (BOURRIAUD, 2009, p. 37-38).

É baseado neste desvio, utilizado pelos situacionistas sob a palavra francesa Détournement, que consiste a breve análise de projetos de web arte proposta. Define-se como o desvio de elementos estéticos existente em uma situação, podendo estes elementos serem integrados em produções diversas, independente do seu sentido anterior. (DEFINITIONS, 1958) Guia Prático para o Détournement No ano de 1956, Guy Debord e Gil Wolman publicaram um texto que ficou conhecido como o Guia Prático para o Détournement (DEBORD, G. & WOLMAN, G., 1956), nele continham as leis do desvio, seus conceitos e métodos. Ao falar, com determinação, que é preciso superar a arte. Debord e Wolman citam claramente como definição do detour a liberação para usar quaisquer dois ou mais elementos e posteriormente reuni-los, independente de seus contextos originais. E que a influência de dois elementos diferentes e independentes substitui os elementos originais podendo resultar em uma nova organização mais eficaz do que o original. Foram definidas duas categorias de elementos deturnados, segundo o Guia Prático. A deturnação secundária e a deturnação enganosa. A primeira é um deturnamento onde um elemento, sem importância, se transforma, passando a ter um novo significado quando é colocado em um contexto diferente do qual ele pertencia anteriormente. No segundo caso, a deturnação enganosa, também chamada de proposição premonitória, trata-se de um elemento significante que muda por completo quando se localiza em um novo contexto. Após a definição das categorias também é possível encontrar as leis fixadas no Guia. São quatro leis, a primeira diz que o elemento que mais contribui para a impressão global é o elemento mais distante. A segunda se refere as distorções introduzidas nos elementos deturnados dizendo que estas devem ser as mais simples possíveis. A terceira lei versa sobre a menor efetividade do desvio a partir do momento que este se aproxima de uma resposta racional. E por fim, a quarta lei acontece pela simples

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inversão dos elementos, o desvio acontece de forma mais direta, porém menos efetivo. É importante acentuar o caráter político do Guia criado por Debord e Wolman, deixando o leitor livre para multiplicar ideias e criações. Artemídia O Surgimento da Internet De acordo com os registros históricos, a II Guerra Mundial foi marcada pelo surgimento e desenvolvimento dos computadores, que foram criados com o intuito de suprir a necessidade de processamento de cálculos matemáticos de alta complexidade e também para decifração de códigos criptografados a serem interceptados. Tendo os computadores como ferramenta já em uso, em outro momento histórico, neste caso a Guerra Fria, surgiu a necessidade latente de uma forma de comunicação mais rápida, bem como de controle de informações confidenciais. Este é o primeiro passo do que viria a se chamar Internet. (EDWARDS, 1996). Esta necessidade militar por comunicação deu início a pesquisas e desenvolvimento de tecnologias que tornassem possível a construção e o aperfeiçoamento de complexos artefatos, dos quais podemos citar o computador eletrônico digital. Conforme os investimentos continuavam, em meados de 1966 as primeiras técnicas de comunicação se desenvolveram através de redes de computadores, e vários financiamentos foram feitos para promover estudos pioneiros de diversos projetos de rede. É importante lembrar que tal fato não era privilégio norte-americano, pois ingleses também faziam pesquisas em torno de tecnologias parecidas com o que hoje conhecemos como rede de computadores (ABBATE, 2000). Ainda sob o domínio dos militares, a Internet já estava bem próxima do que é nos dias atuais. Aos poucos a Internet foi se popularizando e se tornando um atrativo interessante, não só para os americanos, mas também para o resto do mundo. Artes e Mídias digitais A arte cria, questiona, transforma, desperta sensações e impulsiona maneiras de ver o mundo e de repensar o papel da humanidade. Ao mencionar a arte digital, ou tecnológica, é de extrema importância destacar o marco que foi a Guerra Fria, como detalhado anteriormente. Diante dos avanços tecnológicos na área de informática e comunicação, a popularização da internet fez nascer uma nova arte. A arte que utiliza a Internet, as linguagens de programação e hipertexto, refletindo os avanços da contemporaneidade. Quando a criação artística é baseada em técnicas computacionais, ela engloba o que chamamos de Arte Digital, ela dialoga com a ciência, a arte e a tecnologia criando interfaces e experimentações estéticas novas. Essas experimentações começaram a se ampliar quando o acesso ao computador se tornou maior. E isso aconteceu principalmente na década de 1990. A Arte Digital existe para questionar as distâncias espaço-temporais, como diz Arantes (2005 p.2): “...criar ambientes que ampliam o campo perceptivo daquele que interage, criar espaços específicos de cooperação,

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onde os usuários experimentam, compartilham, transformam e intensificam maneiras de sentir e ver o mundo, trabalhar com questões da área da biologia e vida artificial”. Web Arte Na web arte a interface é vista como uma membrana que não afasta, pelo contrário permite a aproximação entre o autor e o internauta apreciador. São projetos interdisciplinares e diferente de uma galeria virtual que apenas dispõe imagens de obras de arte, a web arte apresenta-se em tempo real, online e está pronta para interagir com seu expectador. É um trabalho que discute fortemente a questão da autoria e do plágio, pois tudo que está na rede pode ser copiado ou compartilhado facilmente (ARANTES, 2005). Segundo Nunes (2003), a web arte é a arte telemática produzida para Internet. É cedo para dar-lhe uma definição exata, mas sua principal característica é a produção de trabalhos de arte para redes que se utilizam da Internet como parte da obra. Não apenas como uma ferramenta expositora. O viés filosófico acerca deste tipo de arte segue em torno da cultura interativa em que vivemos, onde a web pertence a todos, e o internauta pode apreciar com prazer a estética da Web Arte. Para Nunes (2010), em tempos de um início de século XXI onde estamos cerceados por câmeras, celulares, microchips, sites de relacionamentos, todo tipo de parafernália tecnológica, a web arte traz para a sociedade uma saída através de uma via tecnoartística. A ideia é desconstruir esse modelo hegemônico interativo através de desvios estratégicos. Uma fuga para a sociedade midiatizada. Web Arte no Brasil com Lucas Bambozzi O projeto de web arte selecionado de Lucas Bambozzi é o projeto meta4WALLS, disponível no endereço http://www.comum.com/diphusa/meta/. O projeto consiste na exibição de todo lixo eletrônico recebido pelo artista sob a forma 38 de spam .

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Mensagens indesejadas enviadas por e-mail.

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Página inicial do projeto meta4WALLS do brasileiro Lucas Bambozzi.

A página inicial do projeto apresenta-se com imagens e textos bastante estimulantes, após clicar nestes links, o usuário é direcionado para outra janela com mensagens contendo mais informações, no caso os spams recebidos e coletados pelo artista. Ao tentar fechar as janelas, o site passa a se comportar como se estivesse contaminando o computador do expectador com uma espécie de vírus, abrindo novamente a página do site, como se fosse impossível se desvencilhar deste. Com este ambiente, Bambozzi oferece uma experienciação acerca do submundo virtual, e de tudo aquilo que é, muitas vezes, automaticamente excluído e que é oferecido a todo internauta através de e-mails, sem a devida permissão. Além disso, ele propositalmente questiona o espírito voyeur dos internautas, não só através de textos, mas também de sons e imagens, o desejo de ir além de descobrir o que está além. De acordo com o Guia Prático do Détour é possível classificar o projeto de forma geral como sendo uma deturnação enganosa, visto que o spam que é o elemento analisado, neste contexto, é carregado de significação sendo então colocado em um novo contexto. Apesar de terem sido retirados do local original seguem com sua significação. Mas conforme o Guia Prático, obras extensamente deturnadas geralmente podem apresentas os dois tipos de desvio. É o que se observa no caso da imagem central da tela inicial do site, que não apresenta nenhuma importância em si mesma, e modifica todo seu significado quando fixada no contexto do projeto de Lucas Bambozzi. Dando continuidade a esta análise, resta verificar se este projeto segue à lei universal proposta pelo Guia. Neste caso, a lei define que o elemento mais distante é o que mais contribui para a impressão global. Pode-se dizer que o elemento da figura central, que consiste em uma mulher de pernas abertas introduzindo um objeto, é o mais distante, juntamente com os ruídos presentes na página inicial, sendo assim os que mais contribuem para o desvio e para o estranhamento da obra online.

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Web Arte na Argentina com Gustavo Romano O projeto de web arte Time Notes House do argentino Gustavo Romano consiste na criação de um novo sistema monetário. A grande diferença é que o capital acumulado se trata de minutos, dias e anos. No site é possível reaver o tempo perdido, ou solicitar o uso de um cartão de crédito de tempo.

Página inicial do projeto Time Notes do argentino Gustavo Romano

Analisando de forma ampla o projeto do argentino Gustavo Romano, observa-se que há bastante deturnações podendo ser encontradas as secundárias e as enganosas.

Deturnação secundária: Imagens pertencentes a outro contexto que compõem o layout do projeto

Há desvios não só de imagens e textos, como de uma ideia geral. A deturnação secundária é encontrada nas imagens presentes, que foram retiradas de diversos meios fora do contexto do projeto, sem nenhuma importância em si, e aqui dão um novo significado ao compor o layout do projeto. No caso da deturnação enganosa, é possível encontrar elementos intrinsecamente significantes que derivam para um novo contexto, como por exemplo, todo o formato de serviços originários de um

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Internet Bancking, aqui sendo usados com termos que mudam completamente de modificado dando a ideia, por exemplo, de que tempo é dinheiro. Considerações Finais A arte está sempre apresentando novas linhas de fuga e é desta forma que as forças se unem para ultrapassar fronteiras, surgindo assim novas práticas artísticas. São as problematizações sociais que passam a orientar essas novas práticas. (ROLNIK, 2009). Os projetos de web arte fazem parte dessas novas linhas de fuga, e quase sempre se apresentam como questionadores do sistema. A arte é um meio de fazer política, é algo inerente. A arte contemporânea espelha e reflete atitudes sociopolíticas e econômicas, que estão diretamente ligadas com as problemáticas do mundo real. (CANTON, 2011). Vive-se um novo panorama da arte contemporânea, novos territórios da internet e do mundo digital do qual as artemídias fazem parte. Por outro lado, apesar de ter sido escrito no ano de 1956, o Guia Prático do Détour (DEBORD, G. & WOLMAN, G., 1956) apresenta-se bastante atual em se tratando dos novos meios da prática artística contemporânea, conforme foi exposto neste artigo. Vale salientar que quando foi criado, não havia internet e nem o conceito de interatividade, algo também bastante presente em projetos de web arte, tornando o anônimo colaborador de uma obra artística. É preciso lembrar que o que foi apresentado neste artigo é apenas uma modesta amostra do que é produzido no universo online da web arte. É impossível deixar de citar projetos como o do web artista Fábio Oliveira Nunes com seu projeto Freakpedia, um evidente desvio da enciclopédia Wiki, a mais famosa de toda web. É um projeto onde está presente a interatividade tornando o internauta um participante da arte e também fazendo uso do humor, que para Rancière (2005), é uma das grandes virtudes de um artista, dessa maneira, fazendo passar despercebido uma sequência de imagens ou ideias críticas. Outro fator a considerar é que de acordo com o Guia Prático, o cinema era onde mais claramente se poderiam ver os desvios. É certo que na época em que o manifesto foi escrito, era o cinema que de fato mais apresentava possibilidades de inovações (DEBORD, G. & WOLMAN, G., 1956). Este breve estudo apresenta a possibilidade de que as artemídias e os projetos interativos de arte online venham a oferecer uma gama maior de atrativos, de expressão e de intervenção política atuando criticamente no sentido do enfrentamento e da problematização do modo de vida da sociedade contemporânea. Apesar de haverem grandes produções, conhecidas internacionalmente, como o projeto Velvet Strike da norte americana Anne-Marie Schleiner, onde intervenções artísticas de paz podem ser criadas e colocadas dentro do ambiente de um jogo de guerra bastante conhecido mundialmente, os artistas latino-americanos têm desenvolvido seu papel. Brasileiros, argentinos e outros artistas latino-americanos têm se mostrado bastante envolvidos no âmbito da web arte e da arte digital em geral. Outros artistas podem ser citados como a brasileira Giselle Beiguelman e o

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argentino Woki Toki que também estavam presentes na Bienal Internacional de Curitiba e foram selecionados para a seção especial de web arte. Por fim, estudos sobre o processo criativo dos projetos de web arte se fazem necessários. Entender como funciona a interdisciplinaridade, quase sempre necessária, como a participação de designers e programadores, e em quais casos seus olhares técnicos ou artísticos predominam, e que outras técnicas além do détour são ou podem ser aplicadas.

Referências ABBATE, J. Inventing the Internet. Cambridge, MA, MIT Press, 2000. AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009 ARANTES, P. Arte e mídia no Brasil: perspectivas da estética digital in ARS, São Paulo, v. 3, n. 6. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S167853202005000200004&script=sci_arttext &tlng=pt>. Acesso em 29 set. 2015. BOURRIAUD, N. Pós-Produção: Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BULHÕES, M. A. Web Arte e Poéticas do Território. Porto Alegre: Editora Zouk, 2011. CANTON, K. Da política às micropolíticas. São Paulo: Martins Fontes, 2011. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DEBORD, G. & WOLMAN, G. Um Guia Prático para o Desvio, 1956. Disponível em: <http://www.reocities.com/projetoperiferia4/detour.htm> Acessado em: 14 jan 2016. DÉTOURNEMENT as negation and prelude. Intenationale Situacionniste, Paris, n. 3, June, 1959. Disponível em: <http://www.cddc.vt.edu/sionline> Acessado em 26 mar 2016. EDWARDS, P. The Closed World. Cambridge, MA, MIT Press. 1996. JAPPE, A. Guy Debord. Petropólis: Vozes, 1999. MACHADO, A. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010 NUNES, F. Web Arte no Brasil: Algumas Poéticas e Interfaces no Universo da Rede Internet. 2003. 113 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes , Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2003.

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NUNES, F. Ctrl+Alt+Del – Distúrbios em arte e tecnologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2009. RANCIÈRE, J. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Servei de Publicacions de la Universitat Atuónoma de Barcelona, 2005. ROLNIK, S. Arquivo para uma obra acontecimento. Projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto.: São Paulo: Edições Sesc, 2009. Milena Anunciada Monteiro É especialista em Novas Tecnologias na Educação (2013) e possui bacharelado em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (2009). Atualmente é assistente educacional do Governo do Estado de Pernambuco e aluna especial da disciplina de Processos de Criação em Artes Visuais na Contemporaneidade, ofertada no semestre 2016.1 pela professora Roberta Marques, no Programa de Mestrado da PósGraduação em Artes Visuais da UFPE

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ESTÉTICA DE UMA ICONOGRAFIA XINGUANA Mônica Lima de Carvalho/ Universidade Federal de Goiás Yacy-Ara Froner/ Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO A reflexão apresentada decorre do interesse pela análise da produção iconográfica dos ameríndios xinguanos tendo inicio a partir do trabalho de conservação das coleções etnográficas pertencentes ao Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, sucedido pelo contato com os artefatos, acesso aos seus produtores e por meio das questões que eles suscitam em mim enquanto artista, conservadora e pesquisadora da área. A pesquisa de cunho artístico-etnográfico-preservacionista vem acontecendo desde o ano de 1994, com aprofundamento das investigações no âmbito do mestrado em Artes e Tecnologia da Imagem, em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais. PALAVRAS – CHAVES Cultura material; Estética xinguana; Ameríndios ABSTRACT The reflexion presented is originated from the interest towards the analysis of iconographic production of the Amerindians xinguanos; that was initiated from my work with relation to the conservation of ethnographic collections which belong to the Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, followed by the contact with the artefacts, access to its producers through the questions they instigate in me as an artist, conservator, and researcher in the field. The research in terms of art, ethnography, and preservation has taken place since 1994 and has furthered the investigation in terms of master degree in Arts and Image technology, in 2013, at the Universidade Federal de Minas Gerais. KEYWORDS Culture Material; Xinguano Aesthetics; Amerindians

Introdução Desde os primeiros estudos e registros da cultura material desenvolvidos por etnólogos na região Xinguana do Brasil, determinados padrões do grafismo e do caráter formal dos desenhos vêm sendo mantidos até os dias atuais na produção iconográfica dos artefatos. O reconhecimento e o estudo desses padrões, presentes nos acervos do Museu Antropológico, foram dispositivos primordiais para o estabelecimento desta pesquisa. Algo que transcende à essência estética na mais simples representação, traduzida como arte indígena, é mantida pela memória histórica e cultural à tradição visual que, possivelmente, não seja apenas originária do fazer humano, mas também percebida pelos meandros desenhados por fatores

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naturais ambientais como sendo a fonte reveladora desse signo que se manifesta como um código xinguano para essa região. O inevitável interesse pelo estudo da natureza do desenho e seu aspecto simbólico do elemento “peixe” (Ilustração 1), representado na maioria dos artefatos que compõem o acervo xinguano salvaguardado no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, inicialmente despertado pela revelação iconográfica presente na cultura material dessas coleções etnográficas representativas dos Ameríndios Xinguanos, desenha a representação fundamental na conexão do material e do imaterial dessas tradições pela experienciação estético e artístico, imbricados de seu agenciamento enquanto artefato artístico-cultural etnográfico.

Ilustração 1 – Peixe – signo estilizado em cerâmica – frente. Dimensão: 8,8 cm x 12,2 cm. Origem: Lagoa Miararré, Fase Ipavu. Procedência: baixo curso do rio Culuene. Fragmento arqueológico ícone indicial denominado “Peixe” Foto: A autora.

A cultura material produzida por esses povos traz aspectos iconográficos – simbologia da memória cultural de uma tradição do passado que sobrevive no presente – que só podem ser captados e revelados a partir da percepção advinda de sua própria cultura. Os estudos etnográficos e antropológicos que geram essa interpretação demandam uma estreita interlocução com seus produtores. Além disso, há uma mutabilidade nos significados inerente à própria cultura tradicional ameríndia. O invisível da tradição coletiva mapeado pela interface da poética e do material desperta uma nova potencialidade da fenomenologia do sensível: Permaneçamos no visível no sentido estrito e prosaico: o pintor, qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão. Ele precisa admitir que as coisas entram nele ou que, segundo o dilema sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas coisas, uma vez que não cessa de ajustar sobre elas sua vidência. (Nada muda se ele não pinta a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível). (MERLEAUPONTY, 2004, p. 20)

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Apresento como hipótese a ideia da existência de uma estética xinguana própria do território do Xingu, no Mato Grosso, podendo ser fortemente influenciada pelos meandros da natureza na figuração do signo ‘Peixe’ (Ilustração 1), assim denominado pelos ameríndios dessa região, representado na decoração de artefatos em contexto etnográfico. O registro imagético do signo ‘Peixe’ e seus desdobramentos simbólicos são analisados, inicialmente, respeitando os critérios utilizados em trabalhos etnográficos realizados anteriormente pelos viajantes alemães Karl Von Den Steinen, em 1884, e Max Schmidt, em 1901, quando de suas expedições em terras xinguanas no Brasil. O desenho que nos remete ao momento contemporâneo, o signo ‘peixe’, é representado com domínio e desenvoltura, desse modo prenunciado em registros de Steinen antes de seu contato com os povos Xinguanos. Pela marcante angústia que se apodera dos dois viajantes, percebe-se que, ao nos aprofundarmos nos relatos de seus diários de campo, em contato com a prática do desenho estilizado do signo ‘peixe’ e sua rica padronagem simbólica presente em toda a região por eles explorada, surgem os primeiros vestígios de credulidade à reverência, imbuída do respeito ao valor simbólico praticado pelos índios. Steinen (1940, p. 331) afirma que, apesar do caráter puramente ornamental da figura, a qual de modo algum se aplica a nossa noção de “imagem”, o índio decididamente ainda tem consciência de sua significação concreta: Só não consigo acreditar que esse “molde de ornamentação” que exprime do melhor modo o elevado grau de nivelamento etnológico entre as tribos, seja um produto recente. Si se pudesse admitir o grau de estilização como relativa medida de tempo, dever-se-ia atribuir aos Auetö à posse mais antiga.

Considerando o fato de que a partir desses estudos etnológicos já realizados, com elaborada interpretação visuais e configurados com padrões de grafismo e de caráter formal, percebo que o signo é mantido até os dias atuais na produção iconográfica desses objetos. No entanto, a contemplação ambiental das belezas naturais, supostamente intrínsecas ao processo criativo e à produção iconográfica dos povos Xinguanos, ainda não foi relacionada em estudos mais acurados enquanto abstração simbólica dos fenômenos da natureza manifesta à pintura, gravados e trançados. No entanto, são despertados, no decorrer da discussão, para além dos fatores materialistas como os de função dos artefatos – propósito utilitário, matéria-prima e técnica – aspectos do campo da estética que podem ser orientados pela tese “Abstração e Natureza”, por Wilhelm Worringer. Originalmente, a tese se aplica à obra de arte, especialmente à pertencente ao campo das artes figurativas. Contudo, dada a sutileza do trabalho, nos cabe proceder com muita cautela ao estabelecer analogias com as culturas ameríndias. Voltamo-nos aos valores artísticos relativos ao ato da projeção sentimental ou de Einfühlung, assim originalmente denominada pelo autor, que consiste, inicialmente, na atividade perceptiva geral do objeto, porquanto ele ressalta que todo objeto sensível, enquanto exista para mim, sempre é somente o resultado desses dois componentes: o perceptível pelos sentidos e a minha atividade perceptiva.

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Cualquier línea me pide, para que la capte como lo que es, una actividad perceptiva. Tengo que ampliar la mirada interna hasta que abarque toda la línea; y lo captado de tal manera tengo que deslindarlo interiormente y aislarlo de su ambiente. Por lo tanto cualquier línea me exige ya aquel movimiento interior que comprende los dos factores de ampliación y delimitación. Pero además de estos factores, cualquier línea me insinúa, en virtud de su dirección y forma, otras exigencias especiales. Surge ahora esta pregunta: ¿Qué actitud adopto ante tales exigencias? Hay dos posibilidades: puedo decir sí o no; puedo realizar libremente la actividad que se me pide o puedo oponerme a la exigencia; las tendencias, inclinaciones, necesidades de autoactividad, naturales e inherentes a mí, pueden coincidir o no con la exigencia. Siempre necesitamos la autoactividad. Ésta es incluso una necesidad fundamental de nuestro ser. (WORRINGER, 1966, p.20)

O valor de uma linha, de uma forma, consiste no valor da vida que contém também para nós. O que lhe dá sua beleza é somente nosso sentimento vital, que obscuramente introduzimos nela (WORRINGER, 1966). O desenho enquanto originário do gesto Inicialmente, abordo alguns aspectos dos conceitos desenvolvidos por Karl Von den Steinen, quando de sua expedição no Alto Xingu, entre os anos de 1884 e 1887, referentes ao desenho “Peixe”, no estudo publicado em seu livro Entre os Aborígenes do Brasil Central, cuja tradução começou a ser publicada sob o título Na gema do Brasil. Nessa obra, Steinen salienta a necessidade de continuar as pesquisas etnológicas na região por ele percorrida e na América do Sul em geral: Uma estrela excepcionalmente favorável conduziu-nos a um caminho que nos pôs em contato com representantes de todos os mais importantes tipos tribais. A esse respeito, o Xingu supera a todos os afluentes do Amazonas. E por essa razão cumpre estender a investigação agora começada numa pequena parte dos índios do Xingu, primeiramente sobre o Kulisehu, tirando o véu, pouco a pouco, de toda a paisagem ainda rica de mistérios [...]. Não há metais, nem cães, nem bebidas embriagadoras, nem bananas! Eis a verdadeira idade da pedra entre tribus cujos parentes vivem espalhados sobre quase dois terços do continente sul-americano. Eis, por conseguinte, no estado primitivo, os principais tipos de tribus cujos parentes, em outras regiões, já se acham mais ou menos influenciados por nossa civilização e, por isso, somente acessíveis ao estudo, em condições impuras. Eis, por fim, um campo preciosíssimo de investigação, situado no território restrito que se localiza entre a cachoeira de Martius e o divisor das águas no sul. Não é claro como a luz do sol que a província de Mato Grosso possui tesouros maiores do que oiro e diamantes? (STEINEN, 1940, p.7)

O autor dedica um capítulo sobre o desenho enquanto originário do gesto, observando que o desenho mais simples é certamente aquele que se liga diretamente a um gesto explicativo, sendo seus motivos artísticos abstraídos da natureza, de

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modo análogo e com surpreendente lateralidade. Observa e compara as atitudes do aborígene de imitar sons de alguns animais para demonstração visual, atitudes e movimentos do animal no ar, com a mão, a forma peculiar do modelo. Dessa forma, o gestual do desenho é paralelo ao som e, quando não conseguiam satisfazer o processo, eles desenhavam na terra ou na areia. Nesse caso, Steinen exemplifica o peixe como o animal favorecido pela facilidade da percepção da forma e pela impossibilidade de imitar alguma voz. Segundo análise comportamental dos índios enquanto povos primitivos, realizada por Steinen (1940), o desenho, assim como o gesto, serve como meio de comunicação, e não para produzir formas graciosas. Acredita que os desenhos explicativos, de cunho imediato, se tratam de algo anterior ao ornamental-artístico. Presume que talvez os ameríndios do Xingu já sejam artistas e por isso desenvolvem o desenho como meio de expressão com muita facilidade: Depois de ter chegado por si mesmo a figurar os contornos dos objetos que lhe prendiam vivamente a atenção, depois de ter aprendido, deste modo, a ver imagens externas das representações internas, adquirindo assim a noção da figura, o indígena fez valer em todas as técnicas, mesmo na de trançar, a tendência para observar como, no decorrer do trabalho sossegado, surgem semelhanças com os originais interessantes e variados da natureza, aumentando estas semelhanças e provocando outras. (STEINEN, 1940, p.302)

Entretanto, o autor classifica o desenho dos índios como “descritivos”, chegando, em certo momento, a criticá-los pela forma primitiva e infantil como concebem a figura humana, por exemplo. No entanto, podemos afirmar que o desenho dos ameríndios é rico em formas abstratas ao invés de “descritivas”, considerando o relato, nesse capítulo de seu livro, dos desenhos em que estão representados os quatro membros de sua expedição. Ao solicitar aos outros índios que os identificassem eles os fez prontamente, com respostas acertadas, levando-o a crer que não tivesse sido pela fealdade dos retratos, mas pelos caracteres dos indivíduos ali representados e indicados ou salientados, mas não descritos, como interpreta Steinen. A proposição de Worringer para as formas abstratas considera que a simples linha e seu desenvolvimento de acordo com a sujeição a uma lei puramente geométrica deviam oferecer mais possibilidade de felicidade ao homem enganado pelo capricho e confusão dos fenômenos. Isso ocorre por nela estar eliminado até o último resíduo de um nexo vital e uma dependência da vida; com ela está alcançada a forma absoluta, suprema, a abstração pura: Del objeto natural se distingue la línea geométrica precisamente por el hecho de no hallarse dentro de ningún nexo natural. Es cierto que lo que constituye su esencia sí pertenece a la naturaleza: las fuerzas mecánicas son fuerzas naturales. Pero en la línea geométrica y, en general, en las formas geométricas, estas fuerzas mecánicas están desprendidas del nexo natural y de la infinita mutación de las fuerzas naturales y se expresan aisladamente. (LIPPS apud WORRINGER, 1966, p.34)

Nesse diapasão, pode-se identificar a abstração do signo peixe na construção dos “retratos”, por exemplo, como representados na ilustração 2 a seguir, em que,

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desenvolvendo o esquema comum ao símbolo, chegamos à abstração por eles representativa desse signo. A figura que representa Steinen apresenta, em primeira instância, um caráter representativo simbólico, e, na sequência do desenho, quando solicitado para descrevê-lo com mais detalhes, alguns aspectos mudam, embora o signo prevaleça às complementações, sendo mantido o caractere que o identifica pela comunidade. Steinen (1940, p. 310) elucida, a respeito dos dois retratos feitos por um ameríndio Nahuquá, sua total impassibilidade à essência estética desses códigos representativos da cultura xinguana. Era curioso como o homem começava por riscar uma linha horizontal, representando, com este único traço, a linha umeral e os dois braços; encimou-a por uma espécie de semi-círculo, fez em baixo dois traços oblíquos em cruz, entregando-me em seguida, como terminado, este desenho muito imperfeito. Revoltei-me contra isso lembrando-lhe que eu tinha olhos, orelhas, etc., como todo homem normal, e exigindo nova edição, completamente refundida, com o que ele, olhando-me atentamente, logo concordou. Caiu no extremo oposto, passando a desenhar mais do que no melhor dos casos poderia ter visto.

Ilustração 2 - Detalhe dos desenhos representativos dos componentes da expedição Steinen, realizados pelos índios Bakairí do Alto Xingu. Fonte: Steinen (1940). Foto: autora.

Pude perceber ou interpretar nessa passagem, contrariamente à percepção de Steinen, a essência estética abstraída em signo como estrutura representativa vital orgânica presente em toda abstração estrutural representativa desse índice em seus mundos. O autor, na tentativa de interpretar a abstração do desenho, procura relacioná-lo com definições precisas a cada imagem, conquanto abstraídas de um modelo visivelmente existente no ambiente onde vivem os ameríndios. Do ponto de vista de um médico psiquiatra, como o era, pôde pensar que em dado momento era quase inadmissível tamanha abstração e simplicidade com a qual eles tratavam suas representações, ou seja, sem critérios para a identificação dos animais que para eles se configuravam como sagrados. Ao gesto abstraído da natureza, o desenho se ilumina e aflora às superfícies visíveis como uma magia que os orientasse na representação do que para eles se faz ‘sagrado’.

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Steinen tenta interpretar com rigor formal os signos padronizados relacionados ao peixe, mas não consegue associá-los com coerência à minúcia de detalhes por eles combinados em composições variadas, levando-o à incerteza e à dúvida quanto à classificação e origem na identificação desses desenhos. Era curioso como o losango com os quatro ângulos preenchidos representava o corpo do peixe: a cabeça, a cauda, a barbatana dorsal e a abdominal, como a forma geral do peixe estilizado, correspondesse ou não à referida espécie – pois assim era representado o peixe merechú em toda parte com extraordinária predileção. Preciso confessar que eu não sabia muito bem se devia rir-me do indígena que afavelmente explicava as pinturas, ou se me devia entregar ao sentimento da perplexidade que se pode resumir na exclamação: Quão diferente o mundo se espelha nestas cabeças. (STEINEN, 1940, p.326)

Contudo, chego à conclusão de que quando certas figuras se repetem regularmente, inclusive quando se trata de um ornamento adotado, pode-se ter a certeza de que os primeiros indivíduos que a desenharam tinham diante dos olhos um modelo determinado. Na perspectiva da teoria de Worringer (1966), o afã artístico de um povo havia de levá-lo, forçosamente, à abstração linear inorgânica, porém, em um nexo causal, não com a técnica e os métodos de confecção imperantes em cada caso, mas sim com seu estado anímico. O signo peixe, modelo determinado ou desvelo artístico de uma etnia? Ao considerar o signo peixe como um ornamento adotado, a afirmação de Steinen de que os primeiros indivíduos que o desenharam tinham diante dos olhos um modelo determinado é uma conclusão fundamentada em suas observações e tentativas de entendimento do ponto de vista intelectual dessas imagens grafadas. No entanto, os estudos de Worringer (1966) pelo estado anímico do afã artístico de um povo, em um nexo causal, e não técnico e metodológico, haveria de levá-lo forçosamente à abstração linear inorgânica, o que irrefutavelmente registra uma vivência estética passível de ser experienciada por aqueles que se afinarem à forma. Contudo, observa-se que, para Max Schmidt (1942, p. 332), a vivência estética experienciada pela forma, o desenho merechu, se manifesta a partir dos aspectos técnico e metodológico. Ele amadurece sua experiência técnica e metodológica em dois importantes momentos na concepção da arte de trançar. Primeiramente, ele vê o desenho surgir das fibras trançadas pelo estudo matemático da técnica de construção do trançado (Ilustração 3). O segundo momento, dado o grau de envolvimento com a tecnologia dos trançados, sente a necessidade de confeccionar o trançado, só então enxergando a partir do desenho, ressalta ao olhar, a estética dos aspectos meândricos da forma. Em seus estudos, reuniu diferentes ornamentos (Ilustração 2) que, conforme seu sentido, embora representem objetos tão distintos entre si, isto é, peixe, figura humana e pássaro, se acham intimamente ligados em sua criação, pois os três desenhos têm por base a ornamentação derivada dos trançados. Isso se torna mais evidente (e ilustra bem nossa discussão) na figura do pássaro: segundo ele, o desenhista não disse claramente representar uma figura de pássaro, mas tê-lo-ia dito certamente se lhe tivessem feito tal pergunta com a técnica peculiar a um etnólogo.

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No caso, porém, o ameríndio interrogado talvez fosse além, indicando mesmo a espécie do pássaro, como ainda o faz nos dias atuais, quando lhes perguntamos a respeito de determinados desenhos ou significados de certos objetos, etc.

Ilustração 2 - Representação de pássaro, homem e peixe. Fonte: Schmidt (1942, p. 331). Foto: autora.

Para Schmidt, a superfície de um trançado flabeliforme, devido à maneira especial de trançar, sempre apresenta um desenho capaz de chamar a atenção, ao contrário das superfícies de outros artefatos; não havendo partes nessa superfície sem ornamentos, é notável que essa ornamentação que surge com o trançado se tenha estendido a todas as outras superfícies: O que aos índios das cabeceiras xinguenses se mostrou como mais característico nos trançados flabeliformes, e que foi transferido como tal para o ornamento derivado desses padrões, é o seguinte: 1. A unidade do quadrado propriamente. 2. O listrado diagonal do quadrado. 3. A natureza especial dos cantos do quadrado e a singularidade que daí se origina pelo ponto de contacto de quatro quadrados de trançado que se encontram. (SCHMIDT, 1942, p. 322)

A esses três pontos observados por Schmidt na técnica do trançado, é atribuído pelos Kuikuro, aos três aspectos da figura geométrica, o losango correspondente ao ‘peixe’ (Ilustração 3), em suas manifestações: Ingu, Ingü e Tüihitinhü, segundo nomenclatura informada pelos atuais povos Kuikuro

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Ilustração 3 – Trançado da base do cesto Tatohongo – figuração do signo peixe – trançado por cacique Yacalo Kuikuro, Aldeia Ipatse, Xingu, 2012. Foto: A autora.

A unidade do quadrado propriamente é identificada pelos Kuikuro por Ingu (Ilustração 4).

Ilustração 4 - Ingu. Desenho – bico de pena e foto: A autora.

O listrado diagonal do quadrado é identificado pelos Kuikuro por Ingü (Ilustração 5).

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Ilustração 5 - Ingü. Desenho – bico de pena e foto: A autora.

A natureza especial dos cantos do quadrado e a singularidade que daí se origina pelo ponto de contacto de quatro quadrados de trançado que se encontram é identificado pelos Kuikuro por Tüihitinhü (Ilustração 6).

Ilustração 6 - Tüihitinhü. Desenho – bico de pena e foto: A autora

O listrado diagonal do quadrado é identificado pelos Kuikuro por Ingü e se repete, porém, com a mesma nomenclatura da unidade de quadrado, Tüihitinhü, com os cantos de contato ressaltados na formação de outro padrão de desenho (Ilustração 7).

Ilustração 7 - Tüihitinhü = Ingü. Desenho - bico de pena e foto: A autora.

Steinen (1940, p. 338) reconhece que o losango é a forma geral do peixe estilizado, corresponda ou não à referida espécie, como se dá com o merechú: Quanto menos se precisa pensar, tanto maior a vitalidade da forma, pois, que não foge ao alcance de talentos menos robustos. A arte aqui ainda registra um progresso quando consegue o padrão que eternamente há de repetir; só assim ela pode firmar-

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se, tornando-se uma necessidade geral, e mantendo-se de geração em geração. (STEINEN, 1940, p. 340)

A essência do estilo geométrico, dominado pelos xinguanos, sem dúvida foi objeto de deleite desses dois pesquisadores alemães, que dedicaram considerável parte de suas obras à cultura material pela sedução dos aspectos formais e pela concepção técnica na arte vivida por esses povos. Además, el dominio universal del estilo geométrico precisamente en las culturas primitivas no podría explicarse de ninguna manera suponiendo que la sujeción a la ley geométrica no pasa de ser un fenómeno preferido por nuestro entendimiento. Nosotros estamos de acuerdo con Lipps en “que los productos de regularidad geométrica son objetos de deleite porque aprehenderlos como un todo es natural al alma o porque corresponden en alta medida a algún rasgo de nuestra naturaleza o de la esencia de nuestra alma (WORRINGER, 1966, p. 73).

Steinen ressalta, ainda, a relação que os índios têm das imagens com o modelo concreto, resultando na passagem da imagem para a esquematização, pois a relação com o original é exatamente o que lhe dá o prazer de desenhar, ressalta que o nobre índio Bakairí autor dos seus primeiros desenhos contentou-se com os contornos mais simples que se pode imaginar, contudo, é o único que se distingue por tal “genialidade relaxada” (Ilustração 8). Acrescenta que esses desenhos não constituem simplesmente figuras geométricas, mas sim a “transformação do objeto concreto em abstração, consequência por certo infalível, está entre êles, quando muito, no comêço” (STEINEN, 1940, p. 339). O fato é que o sentimento que transcende à essência estética na mais simples representação, traduzida como arte indígena, é mantida pela memória histórica e cultural à tradição visual dos códigos xinguanos contemporâneos.

Ilustração 8 - Desenhos a lápis de merechú. O primeiro e o segundo ornamento, de cima para baixo, foram desenhados a lápis pelos Bakairí, o terceiro por um Nahuquá. Fonte: Steinen (1940, p. 329).

Ademais, o sentimento que transcende à essência estética na mais simples representação, traduzida como arte indígena, é mantida pela memória histórica e

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cultural à tradição visual dos códigos xinguanos contemporâneos. Contudo, o aspecto metafísico inerente ao signo em estudo, tentando, de alguma forma, consubstanciá-lo em um instante no tempo artístico e filosófico, traz ao lume todo potencial de sua existência ao plano do visível, porém, em instância manifestada pelo invisível. O objeto artefato arqueológico ‘Peixe merechú’, segundo descrições de Steinen, constituiu elemento primeiro a nos olhar, com manifesta veemência pelas imagens em cenas ou paisagens suscetíveis da abstração do signo. O desenho, possível ‘ente original’ imanente dessa ‘matriz’ de onde tudo pode se reproduzir enquanto imagem, vivenciada e transmitida pelos ancestrais Xinguanos, transcende a memória coletiva de várias gerações na construção da simbologia desse importante signo por eles cultuado. Adicionalmente, como intuito de continuidade dessa pesquisa no âmbito do doutoramento em Arte e Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás, o intangível pela percepção das ressonâncias mórficas desencadeadas pela estética xinguana, incorpora à subjetividade minha concepção criativa visual contemporânea ao corpus iconográfico a ser desvelado.

Referências LÈVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido (Mitológicas v.1). Trad de Beatriz PerroneMoisés. São Paulo, 2010. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. SCHMIDT, M. Estudos de Etnologia Brasileira. Trad. de Catarina Baratz Cannabrava. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942. SIMONSEN, Iluska. Modelos etnográficos aplicados à cerâmica de Miararré. Organização de Iluska Simonsen e Acary de Passos Oliveira. Goiânia: Ed. da Universidade Federal de Goiás, 1980. ______; OLIVEIRA, Acary de Passos. Cerâmica da Lagoa Miararré. Goiânia: Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, 1976. STEINEN, Karl Von den. Entre os Aborígenes do Brasil Central. São Paulo: Departamento de Cultura, 1940. WORRINGER, Wilhelm. Abstracción y naturaleza. Traducción de Mariana Frenk. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica. México, 1966.

Mônica Lima de Carvalho Bacharel em Artes Visuais e Doutoranda do curso de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. Especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais/ CECOR/ UFMG e Mestra em Arte e Tecnologia da Imagem pela

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Universidade Federal de Minas Gerais. Aperfeiçoamento em Restauração de acervos etnográficos pelo Royal Albert Memorial Museum, Exeter, UK. Yacy-Ara Froner Gonçalves Professora Doutora associada da EBA-UFMG, atuando no Curso de Artes Visuais e no Curso de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis. Vinculada ao Programa de Pós-Gaduação em Artes da EBA-UFMG e ao Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela EA-UFMG. Coordenadora do grupo de pesquisa ArCHE (Arte, Conservação & História-Espaços).

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MEDIAÇÃO DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARA ESTUDANTES DO IFPB Olga Maria do Nascimento Lopes Cabral/ Instituto Federal da Paraíba RESUMO Apresento o resultado de uma pesquisa que trata de um processo pedagógico desenvolvido com educandos do Curso Técnico em Instrumento Musical, do IFPB campus João Pessoa, envolvendo a mediação cultural entre a escola e a Estação Cabo Branco, Ciência, Cultura e Artes. O objetivo foi o de analisar a contribuição que tais espaços proporcionaram para a compreensão da arte contemporânea pelos estudantes. Abordo sobre a arte contemporânea, mediação cultural, a mediação na escola e no museu. Trago a compreensão dos estudantes do IFPB sobre a arte contemporânea antes e após o processo pedagógico e faço uma análise comparativa entre suas concepções sobre essa arte em fases distintas deste processo. PALAVRAS-CHAVE Estação Cabo Branco; IFPB; Mediação Cultural; Arte Contemporânea RESUMEN Presento el resultado de una pesquisa que trata de um processo pedagógico desarrollado com educandos del Curso Técnico en Instrumento Musical del IFPB – Campus João Pessoa, envolviendo la mediación cultural entre la escuela y la Estação Cabo Branco, Ciência, Cultura e Artes. El objeto fue lo de analizar la contribución que tales espacios proporcionaron para la comprensión del arte contemporáneo por los estudiantes. Abordo sobre el arte contemporáneo, mediación cultural, la mediación en la escuela y en el museo. Traigo la comprensión de los estudiantes del IFPB sobre el arte contemporáneo antes y después del proceso pedagógico y hago un análisis comparativo entre sus concepciones sobre ese arte en fases distintas de este proceso. PALABRAS-CLAVE Estação Cabo Branco; IFPB; Mediación Cultural; Arte Contemporáneo

A arte contemporânea é de princípios contraditórios àqueles já estabelecidos e não deixa de ser inovadora apesar de lançar o olhar para a história, citando e apropriando; arte do aqui e do agora comprometida com o contexto atual e suas problemáticas. Ela traz para a discussão todo e qualquer tema, até aqueles mais existenciais da natureza humana; arte que explora os sentidos fazendo pensar, refletir, que não dita regras, interagindo com o público num convite democrático à completa-la, a expandir seu significado, podendo provocar ainda, com essa experiência, transformação. Essa Arte, estritamente relacionada à vida cotidiana, se confunde muitas vezes com essa última e pode passar despercebida e quando se faz ser notada, é criticada, rejeitada, incompreendida. Que causas provocariam o não reconhecimento como arte, o estranhamento, a rejeição e a falta de compreensão, reações tão frequentes do público leigo diante dela? Alguns autores nos apontam como causas:

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- As instituições expõem a arte contemporânea como se fosse tradicional, e o fazem entre pinturas, desenhos, esculturas, Chiarelli (2009); - Essa arte é abrangente demais e muito próxima da vida, Cocchiarale (2006); - Para Maria Tornaghi (2015)que também cita como causa de estranhamento o fato dela ser muito parecida com a vida, a arte separou-se do artesanato no século XVIII, ganhando autonomia, afastando-se do cotidiano e dificultando a comunicação com o público; - O entendimento ou a verdade, arraigada pela história, que o senso comum tem sobre o que é arte, é outra causa apontada por Freire (2006); - A existência de um ensino de arte voltado, com maior ênfase, para a arte clássica e moderna, é citada por Menezes (2007); - Os hábitos culturais dos brasileiros – parte significativa não vai a exposições de arte, espetáculos de dança, teatro, show, cinema e não leem livro - é mencionado por Paulo Ghiraldelli. - A educação escolar e a universitária não proporcionam ao público as informações especializadas para que ele tenha uma atitude diferente diante de obras contemporâneas, Canclini (2012). Questiono, entretanto, essa última afirmativa: seria verdade isso? Diante desse quadro de respostas à indagação sobre o que provocaria a típica reação do público leigo frente a arte contemporânea, temos como contrapartida a mediação que se faz entre o público e a arte, seja na escola ou no museu. Ela se constituiria como instrumento através do qual seria possível proporcionar uma aproximação maior entre ambos, ao ponto de ampliar a compreensão acerca dessa arte. O processo educativo proposto aqui enquanto pesquisa-ação levou em consideração a dificuldade de entendimento sobre a arte contemporânea por parte de estudantes do Ensino Médio ingressos no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, campus João Pessoa. Teria, então, este processo, contribuído para ampliar a compreensão dos estudantes acera da arte contemporânea? Foram num total de 13, as ações desenvolvidas e a análise que fiz foi comparando a compreensão em arte contemporânea desde o início do processo até a etapa final daqueles estudantes que responderam aos questionários na 1ª e na última etapa. Esse foi, portanto, o critério que considerei para selecionar e inserir os estudantes na pesquisa, por possibilitar dados que me indicassem o avanço que obtiveram na compreensão sobre arte contemporânea. Tais estudantes foram identificados pelas letras O, B, R, A e S, no intuito de preservar suas identidades. Apresento, então, as etapas e a análise dos dados obtidos: 1ª Etapa: Diagnóstico preliminar acerca da compreensão da arte contemporânea pelos estudantes do IFPB Fundamentada no questionário aplicado no início do processo desta pesquisa foi possível fazer um diagnóstico sobre a vivência deles com a arte contemporânea e a sua compreensão sobre ela, foco ou objeto deste trabalho, de modo que a avaliação obtida foi a seguinte: os estudantes demonstraram entre nenhum e pouco conhecimento sobre arte contemporânea.

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2ª Etapa: Apresentação de uma imagem pelos estudantes e relato escrito. A apresentação de uma imagem pelos estudantes teve como intenção ou objetivo conhecer o gosto estético de cada um ao mesmo tempo que me proporcionou mais informações acerca do seu conhecimento de arte. Dos estudantes selecionados para fazer parte da pesquisa segundo o critério da participação, conforme já mencionado, apenas não apresentou uma imagem. As imagens trazidas e apresentadas oralmente pelos estudantes são exclusivamente de obras pictóricas. A estudante O trouxe uma imagem que teve contato no museu, especificamente, do Louvre em Paris, por ocasião de uma viagem com a família. A imagem apresentada “Sagração de Napoleão e coroação de Josefina” de Jaques Louis David - é uma pintura neoclássica do início do século XIX. O justifica sua escolha por “sua dimensão imensa”, chamando-lhe sua atenção. Essa dimensão só foi possível perceber e causar-lhe impacto através do contato direto com a obra. Para Martins e Picosque (2012) “estar em frente ao original é muito diferente[...]é a minha relação com a dimensão, a nitidez e a qualidade das cores e formas[...]muitas vezes o espanto pelo tamanho é enorme”. (p. 10 e 11). Daí a importância da experiência em ir ao museu e outros espaços expositivos. Além da dimensão, o realismo característico da obra lhe atrai. Aqui percebemos também a importância da família na formação cultural que é citada por Martins e Picosque (2012) como nossa primeira mediadora diante da arte. A imagem escolhida por B, R e A foi a mesma: “Noite estrelada” de Vicent Van Gogh. O que teria influenciado a escolha desses estudantes? Trata-se de uma pintura pertencente ao Modernismo. A coincidência de escolherem uma mesma imagem tem uma explicação: foram colegas de uma mesma turma numa escola na qual existia um professor de artes que enfatizou a história da arte e mais precisamente o Modernismo e o artista sobre o qual estamos falando. Isso contribuiu para que esse grupo desenvolvesse o gosto pela estética modernista e de modo específico, por obras de Van Gogh. Percebe-se, portanto, a importância da educação informal (família), formal (escola) e não formal (museu, espaços expositivos, etc.) na compreensão da arte pelos estudantes, influenciando suas escolhas e preferências. 3ª Etapa: 1ª visita à exposição A visita à exposição ocorreu no espaço expositivo Estação Cabo Branco Ciências, Cultura e Artes, comumente denominado de Estação Ciências. Tratava-se de uma coletiva de arte contemporânea intitulada “Mostra Nordeste de Artes Visuais”, cujos artistas eram todos do Nordeste. As obras eram compostas nas modalidades fotografia, desenho, pintura e instalação. Na sequência abordo sobre a mediação direcionada a referida exposição.

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Mediação na exposição Na fala do educador -“monitor” pelo setor educativo do Estação Cabo Branco apareceu “diálogo”, fator importante no ato de educar conforme Paulo Freire (2012) que faz opção pela educação dialógica ao mesmo tempo em que tece críticas à educação “bancária”. No discurso de Martins (2006) mais precisamente em se tratando de mediação, há também a corroboração com a presença ou utilização do diálogo. Como, então, ele se concretizou na ação daquele educador? Neste caso o educador concentrou toda a turma diante de um quadro informativo que abria a exposição e ao mesmo tempo, diante da primeira obra que estava exposta abaixo dele. Expôs em linhas gerais sobre a exposição. Após essa explicação nos deixou à vontade e livres para percorrermos toda a exposição, dizendo que estava à disposição do grupo para esclarecer alguma dúvida, caso fosse solicitado. E assim ocorreu. Foi solicitado para tirar dúvidas em relação aos materiais de uma das obras lá exposta. O tempo do nosso “passeio” ou percurso diante das obras durou aproximadamente 35 minutos, mas foi suficiente para o grupo esgotar a curiosidade e fazer o registro através de fotografia. Percebi que os estudantes se detiveram mais diante da obra “Diário de bandeja”. Nela, além dos desenhos tinham frases que os completavam, nos dando pistas das ideias da artista. O educador perguntou se já poderíamos ir para outra sala onde haveria uma oficina de flauta que não a considerei como atividade de mediação, pois não estava relacionada com a exposição e era ministrada em outras visitas, independentemente do que estava exposto. Como afirma Coutinho (2009), num processo de mediação “o primeiro passo é mergulhar nesse universo procurando fazer um levantamento das principais questões implícitas no contexto. São essas questões que vão direcionar os percursos e o desenvolvimento de estratégias que favoreçam a mediação.” (p. 180). O universo ao qual a autora se refere é aquele das exposições. A visita à exposição se encerrou naquele momento. Apesar do setor educativo utilizar a terminologia “monitor”, a atuação do educador não se encaixa no conceito abordado por Pinto (2010), quando a este é atribuído a função de comandar o espectador dentro do espaço, determinando o percurso da visita, o olhar e a percepção deste público, com exceção do ato de “conceder explicações”. Sua atitude de deixar o grupo livre para observar as obras está coerente com o seu discurso, pois ao ser indagado sobre o seu conceito de mediação, arte contemporânea e mediação para exposições de arte contemporânea, falou respectivamente: “ a mediação funciona como uma ponte que leva o visitante a descobrir sozinho novos horizontes”; “ a arte contemporânea para mim é aquela que não está apegada em conceitos fixos e isso dá maior liberdade ao artista para executar suas próprias obras, sem precisar exprimir um sentido político ou religioso”; “da mesma maneira que a arte contemporânea é mais livre, da mesma forma o mediador deve se portar. O mediador irá levar o visitante a um conceito próprio, fazendo-o raciocinar por si só”. A princípio eu questionei o limite dessa liberdade: não teria ele deixado solto ou livre demais? Deixar assim talvez não proporcione o que Martins considera como função da mediação: “ampliação de conhecimento [...]desenvolver o estético, estimulando e resignificando o conhecimento” (2005, p.76). Mas ao contrário, esta postura estaria se assemelhando ao chamado laissez faire, prática de arte educadores na década de 1970, que não resultava em aprendizagem, mas em acentuar as diferenças existentes. Senti falta de uma roda de conversa, dando um fechamento na atividade de observação das obras, momento

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oportuno para se colocar em comum dúvidas, ideias, pensamentos, sensações, expectativas etc a cerca daquela experiência como um todo e especificamente da exposição. Como afirmam Martins e Picosque (2012) “ a presença do mediador é fundamental pois pode instigar, com questões provocadoras[...] a troca das impressões sensoriais, de interpretações, da socialização de perguntas que as próprias obras nos fazem” ( p. 13). Isso seria interessante também como uma forma de avaliação e um retorno, imediato, daquele público àquela instituição. Entretanto ao analisar os questionários dos estudantes encontrei resposta positiva relacionada a postura do educador e que aponta sua contribuição e importância na aquisição do conhecimento. 4ª Etapa: Debate e relato escrito sobre a exposição com escolha de uma de suas obras O debate e o relato por escrito sobre a exposição “Mostra Nordeste de Artes Visuais” com escolha de uma de suas obras foi fundamentado principalmente no que os estudantes viram através do contato direto, porém foram exibidas imagens das obras, atendendo a um pedido deles. Isso possibilitou ao estudante S, que não participou da visita, participar mais ativamente desse momento, tecendo comentários sobre a arte contemporânea e escolhendo uma obra de sua preferência. Eles consideraram a experiência positiva, pois uma aula de campo sempre acrescenta algo mais. O contato direto com as obras proporcionou interação e despertou-lhes sensações e reflexões. As emoções foram motivadas porque esse tipo de arte aborda questões do seu tempo (ANJOS apud VERAS, 2009); é muito próxima da vida (COCCHIARALE,2006); muito parecida com a vida (TORNAGHI,); há uma interatividade - neste caso mental – com o público (SPRICIGO e SILVEIRA, 2007). E é nessa interatividade que as sensações, emoções e pensamentos surgem, completando o sentido, o significado da obra. Nesse encontro dialógico além das informações acerca da obra “o importante também é nosso olhar/corpo singular, o encontro entre nossas referências pessoais e sociais com o que nossos olhos veem, com o que nossos ouvidos ouvem, com o que nosso corpo sente” (Martins; Picosque, 2012, p. 13). 5ª Etapa: Exibição do filme “Isto é arte”: comentário escrito e debate No filme “Isto é arte”? o professor de filosofia Celso Favaretto aborda sobre a produção artística contemporânea brasileira através de imagens de obras. O foco da abordagem é a transformação estética e conceitual da arte -paradigmas estéticos - do clássico para o moderno e do moderno para o contemporâneo. Todo discurso é direcionado para responder a questão: isto é arte? Após a exibição do vídeo, cuja duração é de 10 minutos, pedi que organizassem por escrito suas ideias sobre o filme para depois exporem, compartilhando com o grupo, suas impressões. A atitude de levar para sala de aula material para embasamento conceitual a respeito de arte contemporânea através de vídeo, foi importante neste processo de mediação,

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pois facilitou-me uma discussão através da qual pude conhecer mais referenciais dos estudantes, além do entendimento sobre essa arte pelo grupo. 6ª Etapa: Exibição do vídeo “O que é arte contemporânea? O exemplo da bienal de 2014”: comentário escrito e debate No vídeo “O que é arte contemporânea? O exemplo da bienal de 2014” em uma visita guiada a arte contemporânea é explicada, através de exemplos, por educadores da Fundação Bienal. Quanto a dinâmica, segui a mesma da etapa anterior. Exibi esse segundo vídeo receosa de ser repetitiva, mas os resultados foram satisfatórios, pois ele foi mais esclarecedor, em relação ao anterior, na opinião dos estudantes. 7ª Etapa: Apresentação oral de imagens de arte contemporânea pelos estudantes e entrega de um relato escrito sobre essas obras Foi solicitado aos estudantes que eles escolhessem uma imagem, considerando as características da arte contemporânea, até então, estudados por eles. A estudante B apresentou uma imagem de uma tatuagem. A estudante O mostrou uma imagem criada por Virginia Azzurra Di Giorgio. A estudante A escolheu Tim Burton. Já S apresentou “Aldebaran de Ubella Preta”. “Notem que B e O trouxeram uma imagem, enquanto A trouxe um nome de cineasta e S uma música, como exemplos que apontam para o alargamento do conceito de arte contemporânea para além das artes visuais, manifestando-se em campos como o da música, dança, teatro e cinema. Estabelecendo uma relação com a arte contemporânea conforme eu solicitei ao escolherem uma imagem, B aponta o fator “renovação”; A cita os termos “inovador”, “estranhezas” e obras que “saem do padrão”; S fala do uso de “instrumentos não convencionais”; O disse que a imagem é de arte contemporânea por ter objetos em sua composição. 8ª Etapa: Modalidades de arte contemporânea Essa etapa consistiu em aula expositiva sobre performance, happening, intervenção e instalação. A abordagem feita foi através de data show, falando de origens, conceitos e exemplos, com exibição de imagens de obras. 9ª Etapa: Elaboração de uma proposta de um contemporâneo

trabalho artístico

Etapa iniciada por eles em sala de aula, porém concluída depois como atividade extra classe. Propus que pensassem em um trabalho a ser elaborado com características de arte contemporânea. Escreveram ideias quanto a objetivos, materiais, modalidades. Eles teriam uma semana para trazer a proposta de trabalho e montar, deixando exposto por alguns dias. 10ª Etapa: Exposição de uma proposta de um contemporâneo

trabalho artístico

A exposição dos trabalhos deles foi realizada em um dos corredores do IFPB/Campus João Pessoa. Minha postura foi a de não interferir ou sugerir, exceto no caso de

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solicitarem, pois considerei que eles já haviam tido a base ou o fundamento suficiente para a realização do trabalho. Dos estudantes selecionados para participar da pesquisa, apenas S não compareceu. Foi realizado um trabalho artístico contemporâneo e um comentário, por escrito, explicando a intenção e justificando o porquê do trabalho ser considerado contemporâneo. Nessa etapa, antes da montagem dos trabalhos, elaboraram um conceito sobre arte contemporânea. 11ª Etapa: Visita à 2ª exposição Visitamos as exposições “Ressignificar’ de Aída Martins e “Singularidades” de Célia Gondim. A exposição “Ressignificar” era composta por pinturas e assemblages. A artista apresentou matrizes bordadas com materiais descartados e seus respectivos desdobramentos coloridos feitos com giz de cera, caneta esferográfica, pastel ou acrílica, tendo como suporte papéis ou tela. Quanto a “Singularidades” de Célia Gondim, a exposição apresentava temas sobre o cotidiano através de pintura naif – termo que constava na exposição- com colagem, tendo como suportes tela e papelão, tinha bordados em bastidores, cuja linguagem era simples e explícita. Para essa visita não havia educadores para a mediação. Atrasamos 30 minutos em decorrência do atraso de uma estudante, de modo que o mediador designado para mediar a visita precisou atender um público que ali chegara, antes de nós. Realmente nesse dia percebi a presença de um contingente maior por lá. Isso nos foi informado pelo educador responsável por ministrar a oficina de flauta que também afirmou a existência de poucos monitores para a demanda de público. Como já tínhamos participado dessa oficina, decidimos aproveitar o tempo disponível apenas em visita às exposições. Naquela ocasião fui eu a mediadora: orientei para que observassem as obras, fizessem seus registros fotográficos e após isso, para finalizar a visita nos sentamos em círculo para colocar em comum as impressões, opiniões, dúvidas, etc. Demonstraram satisfação, como geralmente acontece, ao visitarem mais uma vez um espaço expositivo. Para O, fora a primeira vez que vira em uma exposição o bordado, fato que a fez lembrar da avó que executa essa técnica. Comentei que quando criança também tive uma experiência com bordado. O estudante R mencionou que achou muito interessante o efeito abstrato obtido, partindo das matrizes com objetos variados. Esses foram os ganchos para falar de conceitos como apropriação pelo uso de objetos e assemblage. Essa última visita foi um instrumento que gerou conhecimento teórico e prático, sendo mais uma oportunidade de estarem novamente em contato direto com as obras, enriquecendo o repertório cultural e ampliando a capacidade crítica e de argumentação. Ali propus como desdobramento, a realização de xilogravuras. 12ª Etapa: Desdobramento da visita na escola Propus que realizassem xilogravura porque, além de estar presente em uma das últimas exposições - “Ressignificar” – os estudantes ainda não tinham experimentado essa técnica. É notório também que a arte contemporânea dialoga com a arte do passado, incorporando técnicas e procedimentos. Podemos constatar isso nessa

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exposição pelas matrizes e bordados. Daí a importância de experimentarem essa técnica que é milenar na história da arte. A gravação foi feita com estilete sobre restos de madeira recolhidos na sala de oficina da marcenaria do IFPB/Campus João Pessoa. À xilogravura, como referência às matrizes da exposição “Ressignificar”, somou-se o tema afro, relacionando assim os conteúdos do museu e escola. 13ª Etapa: Aplicação de questionário Como etapa final de todo esse processo foi aplicado um questionário aos estudantes visando estabelecer uma comparação entre seu conhecimento sobre arte contemporânea antes e após esse processo pedagógico. Aqui também procuro investigar a contribuição do museu e da escola. Compreensão da arte contemporânea pelos estudantes e as contribuições do IFPB e do Estação Cabo Branco Ciências, Cultura e Artes Na concepção dos estudantes a ação do museu e da escola foram importantes nesse processo de aprendizagem sobre a arte contemporânea. Na mediação ocorrida na escola foram citados os vídeos e as aulas, enquanto no museu, as exposições, a presença do educador e as “plaquinhas” ao lado das obras. A seguir apresento o conceito e gosto de cada estudante pela arte contemporânea: Respostas da estudante O:

Conceito preliminar: “Movimento que ocorreu próximo a Segunda Guerra Mundial, como introdução da arte moderna[...] Os artistas queriam revelar as verdades do inconsciente”. Gosto pela arte contemporânea: “ Sim, pois os artistas procuram expressar o seu interior sem se preocupar com a aceitação...”

Conceito na 10ª etapa (exposição dos estudantes): “A arte contemporânea é constituída não mais necessariamente de algo novo. Ela se caracteriza principalmente pela liberdade de atuação do artista que não tem mais compromissos institucionais que o limitem. Os artistas passam a questionar a própria linguagem artística, utilizando variados recursos materiais que podem até usar o próprio ambiente, podendo ser instalação, intervenção, performance ou happening. A arte contemporânea tem amplo campo de atuação, pois não trabalha apenas com objetos concretos e sim com conceitos e atitudes”.

Complementação do conceito na 13ª etapa (final da ação): “a arte contemporânea se caracteriza principalmente pela liberdade de atuação do artista, que não tem mais compromissos institucionais que o limitem, portanto pode exercer seu trabalho sem se preocupar em imprimir nas suas obras um determinado cunho religioso ou político. Este tipo de arte pode utilizar texturas, colagens, pinturas, fotografia e até mesmo o próprio ambiente para concretizar uma obra. O ponto que eu poderia acrescentar é a utilização do bordado, pois não havia pensado nisso antes tampouco visto em alguma obra. Gosto pela arte contemporânea: “Sim. A possibilidade de liberdade e a variedade de utensílios que a arte contemporânea oferece ao artista passa exatamente esta mesma sensação ao público: sem restrições”.

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A estudante O participou de todas as etapas e se menciono tal fato é porque isso reflete diretamente no processo de aprendizagem. No conhecimento prévio a cronologia está equivocada, pois a arte contemporânea surge após a 2ª guerra, consolidando-se a partir da década de 1960 e não surgiu introduzindo a arte moderna. No conceito elaborado na fase preliminar são citadas características referentes ao Surrealismo, embora a arte contemporânea possa apresentar esses aspectos, pois busca referências na história, estes não a definem como tal. No conceito elaborado na 10ª etapa ela conseguiu ampliar sua compreensão acerca dessa arte quando cita a liberdade intrínseca à arte, a utilização de recursos materiais variados, a inclusão do ambiente na composição de modalidades contemporâneas, que também são citadas. Além disso, em sua fala é mencionado o campo amplo dessa arte ao trabalhar também com “conceitos e atitudes”. Na complementação do conceito ela reforça o aspecto da liberdade, menciona novamente o ambiente como elemento compositivo da obra e cita técnicas utilizadas, inclusive o bordado, como sendo uma novidade antes não vista por ela em arte. Afirma gostar de arte contemporânea e justifica citando a liberdade como fator. Isso foi citado na fase preliminar e final. Respostas da estudante B:

Conceito preliminar: Não soube definir. Gosto pela arte contemporânea: “Não sei dizer”, afirmou.

Conceito na 10ª etapa: “É um tipo de arte que se apropria de coisas incomuns dentro da arte tradicional, exemplo: objetos incorporados num desenho. Ou quando objetos comuns são utilizados como obras de arte, mas inseridos em outro contexto, com uma nova visão, exemplo o mictório. Existem várias formas da arte contemporânea ser apresentada, mas o que mais me chamou a atenção são as instalações e intervenções... que é possível uma interação com o público e integração com as coisas já existentes no local da exposição”.

Complementação do conceito na 13ª etapa (final da ação): “A arte contemporânea, além de fugir das normas da arte clássica, o artista utiliza suas obras como reflexo da suas ideologias e da sua identidade pessoal, trazendo para dentro delas coisas do cotidiano. Objetos que antes eram vistos apenas como objetos ganham uma nova visão, novas formas e significados. Gosto pela arte contemporânea: “Sim. Pois ativa meu senso criativo e minha imaginação.”

A estudante B assim como O, participou de todas etapas. Não definiu, na etapa preliminar, o conceito de arte contemporânea e não soube dizer se gostava de arte

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contemporânea. No percurso do processo quando é solicitada a elaborar um conceito sobre arte contemporânea ela a define apontando algumas de suas características: a incorporação de objetos à outras modalidades, como o desenho e sua inserção num contexto diferente daquele para o qual foi criado, com uma nova visão. E cita o mictório, numa referência a “ Fonte” de Duchamp. Não é uma obra contemporânea, considerando a época em que foi criada, mas trata-se de uma experiência precursora importante. Menciona o fato dessa arte ser apresentada de várias formas, citando as que chamaram-lhe mais atenção: instalações e intervenções. Inclusive lembro aqui que uma instalação foi seu trabalho artístico para a exposição. Além disso menciona a questão da interação dessa arte com o público e sua integração ao ambiente onde é montada e exposta. E no final, complementando seu conceito, fala da liberdade do artista, tomando como parâmetro a arte clássica, que não se prende a regras, mas expõe através das obras “ suas ideologias e da sua identidade pessoal, trazendo para dentro delas coisas do cotidiano”. E quanto ao gosto? B gosta de arte contemporânea? “Sim. Pois ativa meu senso criativo e minha imaginação”. Confesso que essa foi a frase que mais me emocionou nesse processo ao compará-la com “não sei dizer”, da etapa inicial, pois só é possível gostar (ou não) daquilo que se conhece e a estudante demonstrou que assimilou conhecimento sobre arte contemporânea, ao ponto de ser capaz responder e justificar sobre seu gosto. Respostas do estudante R:

Conceito preliminar: “Não sei diferenciar muito arte moderna de arte contemporânea. Arte contemporânea de diferencia por utilizar recursos técnicos ainda não disponíveis na explosão moderna como os eletrônicos”. Gosto pela arte contemporânea: “Não gosto muito de artes plásticas, minha afinidade é literatura, teatro, música e cinema[...] quadrinhos”.

Conceito na 10ª etapa: “É a arte cuja obra é construída na relação entre o público, o objeto e o artista com a intenção de ressignificação simbólica dos objetos construídos, estes muitas vezes são objetos do cotidiano, transformando-os e ressignificando-os a fim de passar uma mensagem. Por conta disso, facilmente torna-se uma forma Complementação do conceito na 13ª etapa (final da ação): Não acrescentou mais argumentos sobre arte contemporânea. Gosto pela arte contemporânea: “Gosto muito de algumas coisas, menos de outras. Depende muito das particularidades da obra”.

O estudante R participou de 10 etapas, entre as 13 desenvolvidas. No conceito da etapa preliminar menciona sua dificuldade em diferenciar a arte moderna da contemporânea e cita a utilização, nesta última, de recursos eletrônicos como uma diferença entre elas. Já no conceito elaborado na 10ª etapa ele acrescenta um argumento novo: fala da construção da obra a partir de uma relação de interação onde objetos ganham novo significado, podendo se constituir numa arte engajada e de cunho político. Seus argumentos quanto ao gosto pela arte contemporânea mudou, ou seja, se antes ele afirmou não gostar de artes plásticas, agora ele

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argumenta que depende da modalidade a qual pertença e “particularidades da obra”. Isso revela um despertar crítico, pois não dá para generalizar: cada obra e cada artista trazem em si suas especificidades. O estudante ampliou seu conhecimento acerca dessa arte. Respostas da estudante A:

Conceito preliminar: “ arte contemporânea não segue um padrão certo e pode utilizar de objetos como metais e etc e o objetivo é despertar alguma interpretação da sociedade atual. Gosto pela arte

Conceito na 10ª etapa: “Arte atual que busca representar o cotidiano de forma livre e pouco convencional. A arte contemporânea não segue um padrão, estilo. O artista é livre para expressar-se usando formas, texturas e planos diferentes. Além disso, mesmo que o artista procure dar um significado a obra, o observador da obra pode encontrar outro por Complementação do conceito na 13ª etapa (final da ação): “A arte contemporânea pode ser bem abstrata e vir de várias formas diferentes, seu objetivo não é ter apenas um significado, mas que o observador tire várias conclusões em relação a ela. Não existe uma técnica específica de serem feitas, o artista tem livre escolha dos materiais que quer usar e como quer usalos, a visão do artista sobre a obra, embora importante, não é o proposito principal e sim a do publico. Pode tratar o cotidiano de forma abstrata ou se tratar de algum acontecimento pessoal do artista.” Gosto pela arte contemporânea: “Gosto. É uma arte que todos podem apreciar bem por não ter que ter algum conhecimento sobre o artista nem o contexto em que foi feita.

A estudante A, participou de oito etapas entre as 13 desenvolvidas. No conceito elaborado na etapa preliminar, fala de uma arte que não segue padrões e utiliza materiais em sua composição, tendo como objetivo “despertar uma interpretação da sociedade atual” e logo a seguir em seu argumento sobre o gosto, ela afirma gostar dessa arte por ser diferente e algumas fazerem críticas à sociedade. Na elaboração do conceito sobre arte contemporânea, reforça a questão da liberdade e traz elementos novos no seu argumento: o artista utiliza diferentes “formas, texturas e planos”; faz referência ao cotidiano; a obra pode ter outro significado atribuído pelo observador e diferente daquele intencionado pelo artista. Justifica seu gosto por essa arte por considerar sua leitura acessível a todos, independente do conhecimento que se tenha sobre ela. Será mesmo assim? É notório, como afirma Umberto Eco, “que a arte seja um modo de estruturar certo material (entendendo-se por material a própria personalidade do artista, a história, uma linguagem, uma tradição, um tema específico, uma hipótese formal, um mundo ideológico )” (ECO, 2012, p.33) e quando ignoro tais aspectos, fechando-me no que acho, eu deixo de conhecer algo mais e não amplio meus referenciais e consequentemente minha percepção, sensibilidade e poder de argumentação. Lembro aqui Vygotsky quando

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este afirma que é na presença do outro que o homem se constrói (VYGOTSKY apud FERRARI, 2003). No conceito da etapa final a estudante acrescenta o caráter subjetivo e abstrato de uma obra contemporânea e reforça a questão da liberdade a ela intrínseca, se referindo a escolha, pelo artista, de materiais e técnicas. A estudante A, ao apresentar novos elementos a sua argumentação, demonstra que passou a entender mais essa arte. Respostas do estudante S: Conceito na 10ª etapa: Não elaborou pois não participou dessa etapa. Conceito preliminar: “Nela o artista é mais livre para fazer o que quer, sem ter que seguir regras”. Gosto pela arte contemporânea: “Sim, porque eu gosto dessa ideia de liberdade para com o artista. Essa liberdade deixa a arte fluir mais”.

Complementação do conceito na 13ª etapa (final da ação): “Não tenho nada, a acrescentar, tudo já foi discutido na sala de aula”. Gosto pela arte contemporânea: “Sim, gosto muito. O que me fascina na arte contemporânea é a liberdade que o artista tem e também a não monotonia das obras. As obras sempre chamam muito a atenção do público, pois são muito peculiares”.

O estudante S participou de 8 entre as 13 etapas desenvolvidas, não comparecendo às duas visitas ao Estação Ciências. As argumentações de S não indicam avanço na sua compreensão sobre arte contemporânea por não apresentar novos elementos que a caracterizem como tal. Portanto, ao analisar as respostas dos estudantes, verifica-se que todos, exceto S, demonstraram um avanço na compreensão sobre arte contemporânea ao acrescentar mais argumentos sobre essa arte, caracterizando-a como tal. Esse fato contraria o argumento de Canclini (2012) quando afirma que a educação escolar e a universitária não proporcionam ao público as informações especializadas sobre obras contemporâneas. Esse estudo mostra que é possível (re) pensar o papel da escola e dos espaços culturais na educação do olhar e aprimoramento dos sentidos. O avanço dos estudantes em relação a arte contemporânea é um fato que aponta para a importância da educação formal (escola) e não formal (museu), numa relação de reciprocidade e complementação, onde cada um participa do processo educativo conforme a sua especificidade e competência.

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Referências COUTINHO, R. G. Estratégias de mediação e a abordagem Triangular. Arte/Educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009. CANCLINI, N. G. A Sociedade sem relato. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. CHIARELLI, T. Considerações breves sobre a arte contemporânea e o papel das instituições. Revista continuum. Março/abril 2009. Disponível http://novo.itaucultural.org.br/materiacontinuum/marco-abril-2009-consideracoesbreves-sobre-a-arte-contemporanea-e-o-papel-das-instituicoes/ Acesso em 11/06/2015. COCCHIARALE, F. Quem tem medo de arte contemporânea. Recife. Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2006. DANTAS, M. Catálogo da exposição “ Ciclo-Criar com o que temos”. Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). 2014. ECO, H. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2012. FAVARETTO, C. F. Transformar a arte, mudar a vida. Artigo disponível em piwik.seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/viewFile/2602/2255.Acesso em 11/02/2015. FREIRE. P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012. FREIRE, C. Arte Conceitual. Rio de Janeiro. Zahar, 2006. GHIRALDELLI, P. “Macaquinhos” – performance para falar de ânus, mesmo? Disponível em www http://ghiraldelli.pro.br/macaquinhos/ . Acesso em 30/11/2015. _________,M. C; PICOSQUE, G. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. São Paulo: Intermeios, 2012. _________, M. C. (org.). Mediação: provocações estéticas. Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes. Pós-graduação. São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. _________, M. C. Curadoria educativa: Inventando conversas. Reflexão e Ação. 2006. Disponível em http://pt.slideshare.net/Andreia73/curadoria-educativa-inventandoconversas. Acesso em 26/02/2016.. MENEZES, M. P. de. A Arte contemporânea como conteúdo e fundamento para a prática do ensino de artes. 2007. Dissertação (Mestrado em Artes).SS PINTO, J. R. A mediação cultural e a avaliação no ensino não formal. Universidade Estadual Paulista – UNESP,2010.

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SGARIONI, M. A arte aponta aquilo que falta em você. Entrevista. 2009. Revista Continnum. Disponível em http://www.itaucultural.org.br/materiacontinuum/marcoabril-2009-a-arte-aponta-aquilo-que-falta-em-voce/ .Acesso em 20/04/205. SPRICIGO, Vinícius Pontes e SILVEIRA, Luciana Martha. Ação comunicativa e participação do espectador na poética de Hélio Oiticica in Revista Tecnologia e Sociedade. nº 4, 2007. Disponível em https://periodicos.utfpr.edu.br/rts/article/view/2493/1607 files. Acesso em 12/02/2015. TORNAGHI, Maria. o que é isto?- in Revista continuunitaú cultural-19.Disponivel em www.itaúcultural.org.br/continuun. Acesso em 19/02/2015. VERAS, L. Quem tem medo de arte contemporânea?. Artigo.2009. Revista Continnum. Disponível em http://www.itaucultural.org.br/materiacontinuum/marco-abril-2009quem-tem-medo-da-arte-contemporanea /. Acesso em 12/09/2015.

Olga Maria do Nascimento Lopes Cabral Graduada, Especialista e Mestra em Artes Visuais (UFPB). Professora do IFPB/Campus João Pessoa.

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CARTAS: PARA PENSAR GÊNERO E SEXUALIDADES NA ARTE/EDUCAÇÃO Priscila Ferreira Agostinho/ Universidade Federal de Pernambuco Luciana Borre Nunes/Universidade Federal de Pernambuco

Carta ao leitor/a Recife, 22 de maio de 2016 Amigo/a leitor/a, “Cartas para pensar Gênero e Sexualidades na Arte/Educação” é um recorte do meu Trabalho de Conclusão de Curso. Busco compreender como ocorre a formação de Arte/educadores/as no curso de Artes Visuais na UFPE. Entender como os/as discentes são formados/as para questões de Gênero e Sexualidades na educação. Como o ensino de Artes Visuais relaciona-se com tais questões? Também pretendo analisar possibilidades de se ter um currículo – ações pedagógicas – em Artes Visuais que contemple a formação de professores/as para questões de gênero e sexualidades. Trata-se de uma pesquisa narrativa artográfica desenvolvida através de cartas, em andamento. A escrita de cartas foi a estratégia de produção de dados mais significativa que encontrei para compor e narrar histórias sobre gênero e sexualidades. São histórias diferentes, por vezes interligadas, que perpassam o ambiente escolar e meus relatos pessoais. Quero contar que acredito na produção de conhecimentos que se instauram nas experiências de vida e que meus caminhos nestas cartas perpassam os campos reflexivos das Artes Visuais; Arte/Educação; Gênero; Sexualidades. Abraço, Priscila Ferreira.

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Carta ao meu irmão Recife, 17 de março de 2016 Querido irmão, tenho falado sobre você por aqui. Das minhas preocupações, meus medos e por todas as vezes que te condenam, jogando-te à margem da sociedade. Relembro as diversas vezes em que foste violentado e agredido. Sonho com o dia em que irás perceber que podes “ser”, apenas ser quem é, sem medo, dor e lágrimas. No momento estou me fortalecendo e preciso desse tempo. Entenda, quero me fortificar para que de alguma forma eu possa contribuir para seu empoderamento. Acredito que também cabe a mim, como futura educadora, tal contribuição. Talvez eu possa ser um instrumento de paz, amor neste mundo com tantas verdades absolutas, certezas e essas coisas que nos aprisionam e fazem sofrer. Quero te dizer que nunca sentirei tuas dores com a mesma intensidade, mas me sensibilizo com elas. E falar sobre você pode ser uma forma de contribuir para emancipação de outros/as. Agradeço por todo aprendizado que tens me proporcionado. Sinto-me mais forte com você. Sinto-me tão confusa e cheia de incertezas, mas você, sem saber, vem me encorajando. Lembra-se daquela festa em que você arrasou no samba? Desceu na boquinha da garrafa e fez toda família gritar. Talvez não lembre, pois era pequeno demais. Que coragem! Transgressor! Você arrasou! Lembra-se do dia que contou pra nossa mãe do seu namorado? Ela chorou muito! Foi difícil, né?! Vem sendo difícil. E nosso pai? Ele nem comenta, mal fala. Muitas coisas mudaram a partir daquele dele dia. Você não está sozinho. Estou aqui! Te amo! Beijos da sua irmã, Priscila.

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Carta a Suelen Recife, 30 de março de 2016. Querida Suelen, li teu Trabalho de Conclusão de Curso e logo me identifiquei com o título “Tu é menino ou menina? reflexões sobre teoria queer e arte/educação”. Fiz a leitura cheia de curiosidades e senti em suas palavras “o peso da segregação das diferenças na escola. Jamais entendi o espaço escolar, que frequentava, como lugar que possibilitasse o exercício das diferenças” (AQUINO, 2015, p.8). Mas agora, você é professora de artes visuais e está em um lugar diferente, exercendo um papel determinante nas relações de poder e entendendo que a “escola deve ser um espaço de acolhimento e valorização das diferenças” (AQUINO, 2015, p.8). A escola não apenas produz e transmite conhecimentos, mas também forma sujeitos e constrói identidades de gênero, sexualidades, étnicas, geracionais... Pelo que percebi nós não buscamos ser professoras que reproduzem desigualdades e nem estamos omissas a estas questões. Entendo que as práticas escolares estão inseridas em um campo político, passível de transformações. Falar sobre questões de gênero e sexualidades na educação e na formação docente dentro de âmbitos ligados a religiosidade foi difícil e desafiador para mim. Recordo as palavras de Louro (1997, p. 133) ao dizer que o Brasil está fortemente atravessado por escolhas morais e religiosas e que “o tratamento da sexualidade nas salas de aula geralmente mobiliza uma série de dualismos: saudável/doentio, normal/anormal (ou desviante), heterossexual/homossexual, próprio/impróprio, benéfico/nocivo, etc”. Acho que estamos juntas nessa luta política, mas quero saber mais sobre tuas experiências como arte/educadora preocupada com questões de gênero e sexualidade. Abraço! Priscila Ferreira. Para ajudar na reflexão: LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. AQUINO, Suelen de Aquino Teixeira Marques. “Tu é menino ou menina?”: reflexões sobre teoria queer e arte/educação. Trabalho de Conclusão de Curso. Recife, 2015.

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Carta a Clarissa Recife, 1 de abril de 2016. Querida amiga! Nossas vidas estão sendo marcadas por muitos pontos em comum e, ao mesmo tempo, divergentes. Você é sempre muito franca comigo e, às vezes, até me assusto. Você optou como tema de pesquisa falar sobre a presença da mulher nas artes visuais e eu preferi continuar com a pesquisa que desenvolvemos no Programa de Iniciação Científica da UFPE sobre questões de gênero e sexualidades na formação de professores/as. Neste momento me interessa saber como ocorre nossa formação docente no curso de artes visuais para questões de gênero e sexualidades. Quero compartilhar com você minhas inquietações em relação a este tema na educação - e na minha vida. Estar envolvida na pesquisa “Tramas na Formação de Professoras/es para Questões de Gênero e Sexualidades”, desenvolvida por nossa orientadora Luciana Borre, foi um desafio devido a minha relação pessoal com o catolicismo. Em minhas vivências familiares e na igreja aprendi que práticas homossexuais são pecados. Às vezes, me sinto confusa e pressionada com tudo isso, mas ando problematizando-me e lendo muito a respeito (NATIVIDADE, 2009; LOURO, 1997). Perguntei-me várias vezes se estava a serviço do “inimigo” por defender que homossexuais e sujeitos não heteronormativos merecem respeito e legitimação. Sou agente da corrupção moral quando me nego a colaborar com a discriminação de gênero e sexualidades? Distanciando-me destas verdades questionei se é correto disseminar discursos de ódio durante as pregações religiosas. Na minha concepção de fé, Cristo é amor e, por amar sem julgar, não discriminava por classe social, raça, etnia, gênero ou sexualidade. Como pode reparar, não é fácil pra mim. Muitas vezes tenho minha relação com Cristo colocada em dúvida. É como se agora eu fosse uma marginal também, uma contaminada, imprópria somente por questionar a doutrina. Diante de tudo que te falei finalizo te contando um segredo: ao imaginar-me como professora de artes visuais em processo de formação me vejo discutindo as separações de gênero e as situações de opressão de sexualidades. Na sala de aula que sonho não existe ódio, dor, discriminações e exclusões. Acredito que o papel dos/as professores/as neste processo é importante e tenho consciência que a sala de aula é um dos vários espaços que pode valorizar uma diversidade de sujeitos que pensam de modo diferente. E você? Como seria a sala de aula que sonhas? Aguardo tua resposta. Com carinho, Priscila Ferreira! Para ajudar na reflexão: LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.

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NATIVIDADE, Marcelo: OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Sexualidad, Salud y Sociedade: Revista Latinoamericana. n° 2, 2009, p. 121-161.

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Carta a Camilla Recife, 1º de abril de 2016. Querida Camilla, estamos aprendendo muito sobre questões de gênero e sexualidades no campo das artes visuais, mas sei que tuas inquietações incomodam e que precisamos contar nossas experiências em sala de aula para que um olhar crítico reflexivo se instaure em nossas ações pedagógicas. Estamos em processo de formação docente e muitas vezes não sabemos o que fazer em sala de aula por inexperiência. Por isso quero compartilhar contigo os relatos de Duque¹ (2014): Porque, sabemos, o silêncio de educadores, e aqui entendo inclusive os educadores responsáveis pela formação de professores/as, diante do incômodo causado por um relato ou até mesmo por uma situação “estranha” envolvendo gênero e sexualidade vivida em sala de aula, não é uma atitude neutra (DUQUE, 2014, p. 658). Ainda te digo, amiga, que mesmo aqueles/as que pesquisam sobre gênero e sexualidades enfrentam muitas situações conflitantes. Em sala de aula surgem muitas situações “estranhas” e não sabemos reagir a todas elas, assim como o próprio Duque (2014) relata em sua experiência em sala de aula, mesmo sendo um pesquisador experiente se sentiu confuso diante de uma situação inesperada: Desconcertado, perguntava-me se ela seria uma travesti ou transexual. Como em pouco tempo teria que fazer a chamada pelo nome da lista de presença, e, certamente, lá não constaria o seu nome social, pensava comigo mesmo: “como vou chamá-la pelo nome de registro se lutamos tanto pelo reconhecimento da feminilidade trans? Mas, e se ela não for travesti ou transexual?” (DUQUE, 2014, p. 658). Não existe ensinar sem aprender (FREIRE², 1993) e com isso ensinar e aprender acontecem de tal forma que quem ensina também aprende. Duque se viu diante de uma situação nova, para ele desconcertante. Mas tomou uma atitude: sugeri que, se houvesse alguém na sala com um nome de registro que não se identificasse, que fosse até mim naquele momento para que eu pudesse anotar o nome adotado socialmente no diário. Outra mulher que havia passado despercebida por mim se levantou e se aproximou dizendo que, por favor, eu não a chamasse pelo primeiro nome, somente pelo segundo. Ninguém mais se pronunciou. Por um lado, eu havia me enganado em relação à minha suspeita, por outro, aprendi o quanto, por estudarmos, pesquisarmos e ensinarmos sobre questões que envolvem sexualidade e gênero em uma perspectiva da diversidade sexual, não estamos livres dos estranhamentos que envolvem o que temos historicamente construído e identificado como sendo “normal” e “não normal”, afinal, também somos compostos pelas mesmas normas hegemônicas de construção do gênero e da sexualidade (DUQUE, 2014, p. 659). Duque reconheceu que se enganou e assumiu que não está livre de estranhamentos. O modo como agiremos diante dos relatos dos/as nossos/as estudantes/colegas e das

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situações comentadas por Duque podem ser transgressores ou reafirmar estereótipos sobre o feminino e o masculino. E você o que pensa sobre isso? Da sua amiga, Priscila Ferreira. Para ajudar na reflexão: DUQUE, Tiago. “Professora, vem ver! O Paulo vai ter neném!”: gênero, sexualidade e formação de professores/as, 2014. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs2.2.2/index.php/reveducacao/article/viewFile/8205/pdf. Acessado em 13/05/2015. FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. Estudos Avançados. Vol.15, nº 42, 2001, p. 259-268.

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Carta à Professora Betânia Paulista, 4 de abril de 2016. Olá, Professora Betânia! Quero te contar sobre como surgiu meu interesse pela pesquisa que já estou desenvolvendo para meu Trabalho de Conclusão no Curso de Artes Visuais da UFPE. Em 2015 iniciei tutoria no Curso de Extensão à distância “Formação de Professores para questão de gênero e sexualidades”, oferecido pela UFPE. Durante as aulas virtuais passei a refletir sobre as dificuldades do trabalho pedagógico sobre esta temática nas salas de aula e sobre a importância disso na construção do profissional docente. Através dos fóruns de discussão percebi que existem resistências de professores/as, gestores/as e familiares nas comunidades escolares para abordar as condições das mulheres na sociedade e a diversidade de sexualidades. Talvez, os principais motivos sejam falta de conhecimento sobre o assunto, convicções religiosas e/ou receio de tornar visível um assunto ocultado no âmbito educativo. Outro desafio que enfrentei durante o processo de formação docente estava em situações nas quais muitas pessoas foram discriminadas no âmbito familiar e escolar por não serem heteronormativos. Ouvi relatos onde amigos e familiares disseram que preferiam não ir a uma festa familiar por não se sentirem aceitos no ambiente ou que não queriam voltar para determinada sala de aula por serem incomodados com comentários pejorativos feitos pelos colegas. São piadas, agressões verbais e físicas que ocorriam desde os anos iniciais da educação básica e que perduram até os dias atuais. É como se essas pessoas não se sentissem pertencente nestes ambientes. Destas situações surgiu meu interesse pela pesquisa na qual pergunto: como os docentes em artes visuais são formados para trabalhar questões de gênero e sexualidades em sala de aula? Qual a relação do ensino de artes visuais com questões de gênero e sexualidades na formação docente? E de que forma o currículo da graduação em artes visuais aborda questões de gênero e sexualidades na formação docente? Acredito que o papel dos/as professores/as neste processo é importante e tenho consciência que a sala de aula é um dos vários espaços com uma diversidade de sujeitos que pensam de modo diferente. Acredito que pesquisas sobre formação de professores/as são complexas, mas importantes para produção de conhecimento no campo científico. Apresento minha pesquisa narrativa através de cartas, pois estou tentando transformar meu processo de escrita mais prazeroso. E por que cartas? Foi a maneira mais próxima e significativa que encontrei para compor e narrar histórias sobre gênero e sexualidades. São histórias diferentes, por vezes interligadas, que perpassam o ambiente escolar e meus relatos pessoais. Foi assim, que consegui chegar mais próximo de minha família, principalmente do meu irmão que enfrenta inúmeros desafios por não apresentar-se heteronormativo. Acredito na produção de conhecimentos que se instauram nas experiências de vida. Abraço de tua aluna! Priscila Ferreira. Carta à professora Vitória Recife, 23 de abril de 2016.

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Querida Vitória, espero que você esteja bem. Eu ando um pouco enrolada neste semestre. Muito envolvida com a pesquisa do meu tcc. Estou interessada em compreender como ocorre a formação de professoras/es para questões de gênero e sexualidades na graduação em artes visuais da UFPE. Assim que iniciei o curso de graduação passei a questionar qual a relevância desse tipo de pesquisa nas artes visuais. E se alguém me fizesse tal pergunta hoje, confesso, não sei se saberia responder. O que te posso dizer é que me sinto cada vez mais mergulhada em um mar de incertezas e dúvidas. Perdendo noites de sono com mil ideias na cabeça. Com leituras que venho fazendo e com as experiências como arte/educadora, compreendi que a escola é uma instituição que pode perpetuar exclusões, mas, também, pode ser um espaço democrático e inclusivo com potencial para desconstruções de narrativas consolidadas. Falar de uma forma crítica e reflexiva sobre a condição das mulheres nas artes visuais, por exemplo, acredito ser importante, não apenas para pensarmos a ausência delas na história contada, mas também, para discutirmos sobre como são representadas e de que forma essas imagens podem reforçar os estereótipos sobre como viver o feminino. Li em Silva¹ (2003, p. 93) que “não existe nada de mais masculino, por exemplo, do que a própria ciência. A ciência reflete uma perspectiva eminentemente masculina”. A análise feminista da educação e do currículo questiona a neutralidade de gênero na construção da história da humanidade. Segundo isso, as sociedades foram feitas com base nas características do gênero masculino como dominante. E todas essas construções sociais baseadas apenas nas experiências do homem refletem diretamente na educação, na ciência e na forma como os currículos são formulados. Vitória, a história foi contata por homens, historiadores. Na história da arte, por exemplo, as mulheres artistas foram excluídas dos movimentos artísticos e nomes femininos foram ocultados nos livros. Somente no século XX que se começou, efetivamente, o questionamento dessa ausência feminina como protagonista nas artes plásticas/visuais. Logo, eu acredito que provavelmente essa “neutralidade de gênero” possa sim ser questionada. Sobre a análise da masculinidade da ciência Silva (2003, p. 94) explica: Ela expressa uma forma de conhecer que supõe uma separação rígida entre sujeito e objeto. Ela parte de um impulso de dominação e controle: sobre a natureza e sobre os seres humanos. Ela incide corpo e mente, cognição e desejo, racionalidade e afeto. Essa análise da masculinidade da ciência pode ser estendida para praticamente qualquer campo ou instituição social. Apesar das conquistas feministas e dos avanços dos estudos sobre a mulher dentro das universidades e cursos para formação de professores/as ainda percebo dificuldades para se trabalhar questões de gênero e sexualidades em sala de aula. Apesar destas conquistas temos ainda um currículo explicitamente masculino?

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Abraço! Priscila Ferreira Para ajudar na reflexão: ¹SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

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Carta a Priscila Recife, 5 de abril de 2016. Olá, Priscila! Tuas dúvidas e incertezas neste processo de pesquisa logo ganharão novos contornos e tenho convicção de que devo te deixar ainda mais desestabilizada. Logo, não terás as respostas que procuras comigo. Fico contente que a pesquisa ganhou vida em teu cotidiano e que as cartas estão te ajudando a responder inquietações. Quero compartilhar contigo um desenho que fiz na escola quando cursava o ensino médio. Lembro que a professora de artes plásticas solicitou a produção de um desenho relacionado ao móvel que gostaríamos de ter em nossas futuras casas. Havia uma lista no quadro negro com sugestões para os meninos (mesa de escritório, sofá, televisão) e uma lista para meninas (fogão, geladeira, berço). O fato é que escolhi desenhar o berço porque me identificava com a ideia de uma preparação para assuntos da maternidade. Dois ou três anos depois de realizar esta atividade iniciei minhas práticas como professora e reproduzi a mesma proposta com meus estudantes.

Conto esta história porque acredito que o processo de formação de professores/as deve passar por questões de gênero e sexualidades e que verdades incontestáveis podem cair no abismo da dúvida. Narrativas consolidadas podem ser questionadas e práticas educativas serão ressignificadas a partir de um processo crítico reflexivo. Hoje, com um pouco mais de apropriações no campo educacional, entendo que o/a professor/a deve estar em constante estado de reflexividade e que apresenta responsabilidades na criação de dúvidas com seus estudantes.

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O desenho do berço, hoje transformado em metáfora, traduz o quanto aprendi enquanto professora. Ao mesmo tempo, denuncia práticas sexistas e o quanto ainda precisamos falar sobre questões de gênero e sexualidades no campo educacional. Um beijo da tua orientadora, Luciana Borre.

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Carta ao leitor/a Paulista, 15 de maio de 2016. Perguntaram-me como ando trilhando meu caminho como mulher. Pensei e só consegui chegar a esta conclusão: Tornaram-me mulher Observei-me mulher. Estou me tornando outra. E serei outras. Priscila Ferreira.

Carta ao leitor/a Paulista, 14 de maio de 2016. A quem importa minhas histórias? O que há de transgressor nestas cartas? Posso mudar o mundo com cartas? Ouvi dizer que ando seguindo uma linha de pesquisa muito pós-moderna e ligada a um “feminismo burguês”. E ainda, que essas coisas que fico falando em minhas cartas são apenas opiniões sem cientificidade. Cartas repletas de “idealismos é muito normal para uma pessoa religiosa”, disseramme outro dia. Um conhecido disse “seremos amigos, mas essas coisas que você anda dizendo não servem para nada”. Ainda não tinha pensado se sou ou estou “pósmoderna”, mas percebo que de maneira cordial e perversa muitos dizem que minha forma de pensar, de ser e de produzir conhecimento não é legítima. Desqualificam minhas estratégias de pesquisa para fortalecer seus pontos de vista. Pós-modernismo? Modernidade Líquida? (BAUMAN¹, 2001) São conceitos/perspectivas ainda não muito claras pra mim. Mas, pelo pouco que sei, entendo que a clareza que busco talvez nunca aconteça e que outras formas de pensar atormentam. Incertezas assustam. Estou atrevida, ouso duvidar das coisas que aprendi. Por vezes, sinto falta de bases sólidas e certezas inabaláveis porque parece ser mais fácil transitar assim. Priscila Ferreira. Para ajudar na reflexão: ¹BAUMAN, Sygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar. 2001.

DO FEIO: A FRUIÇÃO DO NÃO BELO

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Rafael Cabral de Vasconcelos / Universidade Federal de Pernambuco RESUMO O presente artigo pretende observar como se dá a fruição estética do feio e como se trabalham os juízos de gosto pelos e para os expectadores de arte. Caracteriza-se pela análise sob dois aspectos principais: da forma como esse conceito foi transformado desde a época da Grécia Antiga até o século XIX e do exemplo dos artistas Francisco de Goya e Pablo Picasso, ambos compostos por imagens violentas; grotescas, híbridas e trágicas, que refletem esteticamente o horror durante a ascensão do Liberalismo e Iluminismo. Tal pesquisa mostra como os acontecimentos históricos podem transformar os conceitos artísticos de acordo com as necessidades humanas de retratar seu próprio tempo, cada qual à sua maneira. PALAVRAS-CHAVE Fruição; Feio; Século XIX ABSTRACT This article aims to observe how happens the fruition of the ugliness and how to work the judgments of taste by and for the viewers of art. It is characterized by analysis on two main aspects: how this concept has been transformed since the time of Ancient Greece until the nineteenth century and the example of the artists Francisco de Goya and Pablo Picasso, bouth painters of violent images; grotesque, hybrid and tragic, that aesthetically reflect the horror during the rise of Liberalism and Enlightenment. Such research shows how historical events can transform the artistic concepts of agreement with human needs to portray their own time, each one in their own way. KEYWORDS Fruition; Ugliness; nineteenth century

Aparentemente, beleza e feiura são conceitos com implicações mútuas, e, em geral, entende-se a feiura como a antítese da beleza. No entanto, as várias manifestações do feio através dos séculos são mais ricas e imprevisíveis do que se pensa habitualmente. Problemas sobre o “belo” e o “não belo”, o que seria “bonito” ou “feio”, “harmônico” ou “desarmônico” têm sido debatidos por historiadores da arte, filósofos, teólogos, acadêmicos e fazem parte do discurso cotidiano das pessoas desde os tempos mais remotos. No entanto, embora essas questões façam parte da memória atávica da humanidade, o campo da estética emergiu como uma reflexão sobre as manifestações do belo natural e o belo artístico, por meio do conhecimento dos aspectos da realidade sensorial classificáveis em termos de belo ou não belo, e a história da arte confirma os percalços de gosto ao longo do tempo. Mas, quem ama o feio, bonito lhe parece? O conceito de grotesco, por sua vez, foi, ao longo dos séculos, vinculado ao da graça e formosura. Já o feio, o cruel e o demoníaco

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são os parâmetros para a existência do belo. A trajetória da feiura, ao contrário, terá de buscar seus próprios documentos nas representações visuais ou verbais de coisas ou pessoas consideradas feias. Mas gosto se discute? Como mensurar a ausência da perfeição? Beleza e feiura estão nos olhos de quem vê ou também é pertinente lembrar que esse olhar é influenciado pelos padrões culturais de quem observa? Entre monstros, demônios, loucos, inimigos horrendos e presenças perturbantes, entre abismos medonhos e deformidades que esfloram o sublime, entre freaks e mortos vivos, descobre-se uma veia iconográfica vastíssima e muitas vezes insuspeitada. E aqui reside o intuito maior desta investigação: um convite sedutor e irresistível a um passeio pelo reino abissal do feio. Nesse estudo proponho o foco da pesquisa justamente no não belo, no feio e suas acepções. Na Poética (335 a. C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), ao versar sobre a relação da filosofia com a arte, diz que “o belo consiste na grandeza e na ordem, e, portanto, um organismo vivente, pequeniníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível).” (Aristóteles, 335 a. C.). Para Plotino (205 d. C. – 270 d.C.), em “Sobre o belo (Enéada I, 6), “ser belo é ser simétrico e proporcionado (...) e tudo o que naturalmente está destinado a receber uma ideia e uma forma, se fica privado dela e não participa de sua ideia exemplar, é feio e fica fora do plano divino; nisso consiste a feiura absoluta. Assim resulta também feio o que não está dominado por uma forma e um exemplo devido a ter a matéria recebido incompletamente a informação da ideia. (...) Em todo caso, o belo está no inteligível”. (DUARTE, 2012, p. 49)

Na acepção da palavra na língua portuguesa, os antônimos de belo variam entre monstruoso, malfeito, mal-acabado, defeituoso, deselegante, desgracioso, desajeitado, desarmonioso, imperfeito, feio, mal-apessoado, hediondo, horroroso, disforme, horrível, desvantajoso, insatisfatório, desagradável, desproveitoso, mau, deletério, ruim, improfícuo, péssimo, prejudicial, vulgar, comum, desinteressante, irrelevante, simples, parco, pequeno, insignificante, desimportante, mínimo, apagado, infeliz, desventurado, infausto, desgraçado, inditoso, miserando, desaventurado, malfadado, infortunado, miserável, desditoso, desapiedado, inumano, aviltante, inglório, cruento, despiedado, espiedoso, malevolente, duro, inglorioso, desalmado, impiedoso, ímpio, maldoso, desumano, cruel, desonesto, insensível, frio, baixo, mesquinho, mau, inclemente, indecoroso, cru, maléfico, maligno, indigno, indecente, etc. (AURÉLIO, 2014). Nas Artes Visuais, por vezes, o estudo da feiura é renegado pela hegemonia clássica do belo e de suas manifestações. Na história da arte, por exemplo, o feio por vezes torna-se quase que uma lacuna epistemológica, um solo infértil de reflexão filosófica, fomentando o preconceito estético e corroborando com a intolerância para com o grotesco, à sarjeta do discurso e do próprio pensar-se sobre eles como lugares legítimos, lugares, sim, possíveis de apreciação e fruição estética, passíveis de julgo de gosto e sentido de prazer, fruição.

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No surrealismo, por exemplo, a livre associação do belo com a alegoria do não belo produz resultados significativos quando a congruência da estrutura é descoberta em coisas ou situações que são incongruentes em seu caráter ou contexto. Entre Picasso e Goya, por exemplo: no cubismo, a decomposição de figuras em formas geométricas não necessariamente proporcionais e harmônicas; no romantismo, a valorização da emoção e do sentimento à baila dum estilo próprio de representação estilística. A exemplo do artista Francisco de Goya, através de sua série de gravuras Los Desastres de la Guerra, 1863, composta por imagens violentas; grotescas, híbridas e trágicas, reflete-se esteticamente o horror advindo da Guerra de Independência e do retorno de um Estado Monárquico e Absoluto (OLIVEIRA, 2013).

“Grande hazaña con muertos”. Desastres de la Guerra. Goya, 1892, Gravura em Metal, Espanha

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“Contra o bem geral”. Desastres de la Guerra. Francisco de Goya, 1892, Gravura em Metal, Espanha

Vale a ressalva que, esta última gravura “Contra o bem geral”, traz signos bastante explícitos que nos remetem à tão emblemática representação da invocação de São Mateus, por Caravaggio, em 1602. Goya, todavia, traz em suas gravuras (à reboque dum estilo harmônico arrojado típico do barroco italiano), linhas mais obtusas e menos harmônicas, trazendo à baila um traçado mais forte, com estudo de sombras marcantes e relevo erosivo que perpassa o sofrimento e a amargura.

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“A inspiração de São Mateus”, Caravaggio,1602, óleo sobre tela, 340x322 cm, Itália

Por conseguinte, havemos de valorizar o Feio tanto pela sua função no reconhecimento do Belo como, e em especial, pela sua função de protesto, no sentido sócio-político-filosófico, como se apresenta, por exemplo, na Guernica de Pablo Picasso. Como bem diz Leila Brito, “a Arte não existe destituída da Sensibilidade Humana e também da Política – que encerram o significado da nossa humanidade”.

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“Guernica”, Pablo Picasso, 1937, 349x776 cm, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Espanha […] Felizmente, o Belo que a Arte expressa vai muito além do visualmente belo (este que todos valorizam e tomam como o lado positivo de uma moeda onde o Feio é visto como o lado negativo), por projetar este sentido sócio-político-filosófico. Assim, quando valorizamos o Feio, exibindo-o (um grupo de crianças buscando comida em um lixão ou um grupo de moradores sendo atacado pela PM numa operação de desocupação), estamos exercendo o realmente Belo da nossa essência: a sensibilidade humana, ou seja, aquela que projeta o Humano que cada Ser traz em si, ou não. (BRITO, 2014, p. 02).

Outro bom exemplo é a pintura intitulada de “Cabeça de mulher chorando com lenço”, 1881, de Pablo Picasso, no qual a feição de tormenta e angústia daquela que chora são visivelmente representados fora dos padrões e arquétipos da academia e dos juízos de gosto que eram preconizados a seu tempo. A tortuosidade dos olhos e a mordida voraz no lenço negrita ainda mais as lamúrias da mulher chorosa, elevando o potencial de tristeza da imagem. Além disso, o estilo cubista dá à tela em comento um ar de irregularidade, como se a sensação que desembocou em lágrimas estivesse latente goela a seco, quase como um suspiro abafado querendo sair por berro. A beleza então se escancara nesse afloramento dos sentidos, através do qual o belo é justamente essa agonia sentida quando da apreciação de suas subjetividades: a tormenta enquanto um lugar pertinente de fruição estética e gozo.

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Cabeça de mulher chorando com lenço. Pablo Picasso. Málaga, 1881-Mougins, Franca, 1973 (1937). 92 x 73 cm

Por isso, aquele que valoriza o não belo da vida e da sociedade passa a valorizar o belo da humanidade que reside em si e naqueles que sofrem com a feiura da vida em sociedade. Nesse sentido, o Feio supera o Belo, e a arte, então, que descobre correspondências inesperadas, tenderá a enfatizar ou a incongruência que as torna extraordinárias ou a congruência que as torna viáveis. (Sylvester, 2006) Como bem colocou o artista plástico pernambucano Paulo Bruscky, “o perfeito da arte é o defeito”. Contudo, a Crítica, por sua vez, já muito emudeceu e fez calar as discussões sobre o não belo. Para Adorno, o único sentido da crítica, e que permite à razão não se transformar em anti-razão, é o carácter não conclusivo de uma reflexão dialética que não cessa de recolocar em questão os seus próprios resultados. (SILVA, 1997, p. 02) Esta é, aliás, a força da presente pesquisa: não tentar locar o não belo em categorias (pois, na lógica shopenhaueriana, o íntimo do mundo é inalcançável por conceitos), mas entender e aprofundar o olhos sobre esses lugares que permeiam a antítese do belo. Como se sabe, a questão estética, desde que Sócrates respondeu a Hípias que "o Belo não era um atributo particular de mil e um objetos; mas acima de tudo isso, existe a Beleza em si" (Huisman, 1984, p. 16), acompanhou para sempre o homem. Platão, no Fédon, diz que na origem de toda a beleza deve haver "uma primeira beleza que pela sua presença torna belas as coisas que designamos por belas, qualquer que seja o modo como se faz essa comunicação"(Huisman, 1984, p. 17), e é só pela ascese dialética que ascenderemos amorosamente a esse cume ideal do mundo das ideias, onde o perfeito Belo resplandece. Muitos séculos passaram até que se despertasse deste sonho dogmático de existência de um belo-em-si, e para tal foi preciso esperar pela figura tutelar de Kant, que na "Crítica do Juízo Estético" pretende "superar a antinomia fundamental entre a ideia de um gosto subjetivo, imbuído do que a sensibilidade comporta de contingência, particular e arbitrário, e a ideia de um gosto universal e necessário. Entre estes dois polos, o gosto ficava apenas reduzido ou a um prazer ou a um juízo" (Huisman, 1984, p. 36). Para o filósofo alemão, o gosto já não é apenas um juízo do sentimento, é também um sentimento do juízo, tornando-se, pois, um universal necessário e afetivo – o subjetivo, que aqui se correlaciona à concepção de prazer. (FREUD, 1976, p. 32) No interior da "Crítica do Juízo Estético", Kant alude à faculdade de julgar proveniente do sentimento do prazer ou do desgosto. Na sua Analítica, num primeiro momento, considerado o da qualidade, compara as formas de satisfação estética do gosto, do agradável e do Bem, no qual "o gosto é a faculdade de julgar um objeto ou um modo de representar pela satisfação ou desprazer de forma inteiramente desinteressada. Designa-se por Belo o objeto dessa satisfação" (Huisman: 1984, p. 38). No passo seguinte, o da relação, Kant vai mostrar que o juízo do gosto repousa em princípios a priori e totalmente independentes de conceitos como a atração, a emoção, e a perfeição, propondo em princípio o ideal de beleza "pelo acordo mais

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perfeito possível de todos os tempos e de todos os povos" acerca "das produções exemplares". Kant retira daqui a conclusão de que a beleza se manifesta como "a forma da finalidade de um objeto enquanto percebida sem representação de fim". (Huisman, 1984, p. 39). Entretanto, posteriormente, a metafísica da natureza de Arthur Schopenhauer discorda de Kant ao pretender decifrar o enigma do mundo não pelo conhecimento racional – pois a razão foi despotenciada -, mas pelo corpo e pelo sentimento, pelos afetos. Para Schopenhauer, a arte será, assim, definida como “exposição de ideias”, ou “modo de consideração das coisas independente do princípio da razão”. Neste sentido, a metafísica do belo schopenhaueriana vai além da estética de Kant, para quem o juízo-de-gosto não diz respeito ao conhecimento de algo, mas é um “jogo” entre imaginação e entendimento, ocasionado pela mera representação de um objeto, a partir da qual, se o sentimento advindo do jogo for prazeroso, tem-se o juízo de beleza propriamente dito.” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 12 e 13). Ao chamar de beleza objetiva quando nomeamos um objeto belo, “dizemos que ele é objeto de nosso consideração estética, a qual envolve dois fatores: de um lado, na consideração do objeto não estamos mais conscientes de nós mesmos como indivíduos, mas como puros sujeitos do conhecer destituído de vontade; de outro, no objeto conhecemos não a coisa isolada, coisa-em-si, mas uma ideia” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 120).

“A duquesa feia”, Quentin Matsys, 1513, óleo sobre tela, National Gallery, Londres

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Uma verdade, ainda que estranha, é que o feio fascina. Uma das imagens mais populares na Galeria Nacional de Londres é do mestre flamengo do século 16, Quentin Matsys. Convencionalmente conhecido como “A Duquesa Feia”, 1513, a babá sofre de um distúrbio ósseo causando deformidades faciais horríveis. Na loja da Galeria Nacional, seu cartão postal vende tão bem quanto o sereno Water-Lily Pond” de Claude Monet. (http://www.architectural-review.com, acesso em 10 de junho de 2016, às 17:05) É justamente nesse espaço de disputa que se aloja o atual projeto: em quais dos lados reside o não belo e qual o seu coeficiente de participação na eleição de um objeto como belo? Quais afetos estão envolvidos no julgo de algo tido por feio? Seriam esses afetos sentimentos tão legítimos e pertinentes às Artes Visuais quanto os intrínsecos ao vislumbre do belo? Como está sendo relevado o não belo nas instituições de Artes Visuais, seja em museus e galerias ou na própria sala de aula?. Através do questionamento, viso a contestar o império do conceito clássico do belo, de forma a questionar como estão sendo fruídas as outras categorias que compõe o entorno do objeto estético. Como , então, pode-se fruir do feio e de sua alegoria? Os resultados obtidos devem estar inseridos dentro do quadro de reflexão que remonta às diferentes concepções acerca da fruição e da dimensão de gosto, satisfação e prazer estéticos advindos da apreciação das ‘figuras do não belo’. Isso torna pertinente pensar que as tarefas envolvendo situações dialógicas entre o belo e o não belo devam oferecer maior potencial para o desenvolvimento de conhecimentos/valores, se comparadas às situações monológicas do império do belo em sua concepção clássica, perante os valores das culturas dominantes. Assim, elucubrações produzidas sob condições dialógicas devem ser mais ricas sob o ponto de vista formal, envolvendo um esquema argumentativo mais sofisticado e abrindo chancelas à reflexão acerca do exótico, do pitoresco, do brega, da ‘jegueira’, do grotesco, do escandaloso, dentre outras figuras alegóricas do feio e dialéticas do belo. Com o reconhecimento do potencial das discussões no tangente ao processo de aquisição e desenvolvimento dos valores de gosto, abre-se espaço a um lugar de intervenção essencialmente dialógico voltado para trabalhar a questão do desenvolvimento estético e dos valores convencionais que se omitem e subjugam o não belo à lacuna da leitura da obra de arte, fomentando o prejuízo e estigmatizando a sua alegoria à sarjeta epistemológica nas Artes Visuais e seus constructos conceituais. A partir daí, releva-se quanto à necessidade de investigar sobre o não belo, suas concepções e seus valores perante a apreciação de arte na contemporaneidade. Com isso, abrir-se-ão alas ao diálogo acerca de figuras tão julgadas ao limbo da Estética, como é o caso da forma como se é fruído e como, através dele, alcança-se o prazer ao contemplá-lo. Além disso, cá prioriza-se o desenvolvimento da autonomia estética e intelectual dos fruidores de arte, contribuindo com o aprimoramento da fruição também dos conceitos que lhe compõem e suas figuras alegóricas essenciais à

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dialógica composição de uma obra-de-arte (belo e não belo juntos numa mesma composição). Cá se pretende então o estudo sobre essa alegoria que representa o oposto do belo e o desabrochar de sua satisfação estética, e caso a contra-máscara do belo seja destituído de ideia própria, proponho também o olhar sobre os percalços do feio ao longo da história das sociedades. Não apenas o estudo do conceito do feio em si e de suas manifestações, mas também como ocorre seu processo de fruição estética, como se dão as valorações de gosto e prazer a partir de sua percepção ontológica e, sobretudo, qual o seu nível de significância no estudo da História da Arte, seja pelas Artes Visuais, pela Estética e pela própria Filosofia, pois.

Referências BRITO, Leila. O Belo do Feio [6 set. 2014]. Chá.com Letras, 9 out. 2014. Disponível em: <http://www.chacomletras.com.br/?p=4235> acessado em 10 de junho de 2016, às 20:32. DUARTE, R. O belo autônimo: textos clássicos de estética / organizador Rodrigo Duarte. – 2. Ed. rev. E ampl. – Belo Horizonte: Autêntica Editora; Crisálidade, 2012. – (Coleção Filô/Estética ; 3) ECO, Umberto. História da feiúra. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, ... Rio de Janeiro: Record, 2007. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920-1922). v. 18. In: ______. Obras completas, Rio de Janeiro: Imago, 1976. LEITÃO, S. L. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 6, p. 332-360. 2000. HUISMAN, Denis. A estética. Lisboa, Portugal. Editorial 70, 1984 OLIVEIRA, Sandra Regina Marin de. A representação do feio na arte: um breve estudo sobre quatro gravuras de Francisco Goya. 2013. x, 131 f. Dissertação (mestrado) Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Artes do Planalto, 2013. Available at: <http://hdl.handle.net/11449/86890>. acessado em 10 de junho de 2016, às 19:47. SCARDAMALIA, MARLENE & BEREITER, CARL. Writing. In: Dillon F. and Stember, Robert J. (eds), Cognição and Instrução. Orlando; Academic Press, Inc. 1986.

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SCHOPENHAUER, Arthur, 1788-1860. Metafísica do Belo. Tradução, apresentação e notas Jair Barbosa. – São Paulo: Editora UNESP, 2003. 256 p. SILVA, J. Manuel. "Já não se sonha mais com a flor azul" A estética de Theodor Adorno e Walter Benjamin. Fevereiro de 1997, disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/silva-jmadorno-benjamin.html acessado em 26 de agosto de 2015, às 23:00. SYLVESTER, David (1924-2001). Sobre arte moderna: David Sylvester (About modern art). Tradução Alexandre Morales; São Paulo: Cosac Naify, 2006. 616 pp. http://www.architectural-review.com/rethink/viewpoints/the-ugly-truth-the-beautyof-ugliness/8641754.fullarticle, acesso em 10 de junho de 2016, às 17:05)

Rafael Cabral De Vasconcelos Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco/Universidade Clássica de Lisboa, graduando em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco. Em suas pesquisas, dedica-se às relações estéticas no campo das artes visuais, com ênfase em audiovisual.

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LAMBE-LAMBE E ATIVISMO FEMINISTA: INTERVENÇÕES ARTÍSTICAS COMO FERRAMENTA DE APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO Rayane Barcellos / Universidade Federal de Pernambuco RESUMO A arte de rua surge como uma resposta a todos os conflitos das grandes cidades. Se estabelecendo através de pinturas, esculturas, instalações ou performances, as intervenções artísticas despontam entre o caos da paisagem urbana do século XXI e para o caos do cotidiano de seus espectadores. Neste contexto o Lambe surge como uma variante do cartaz (que possui valor funcional majoritário de propaganda e comercialização), porém com um viés crítico e com objetivo de propor uma ideia crítica ou reflexão contrária a algum comportamento social ou desigualdade. Por causa deste viés crítico do Lambe, diversos grupos ativistas adotam deste tipo de arte de rua para expor seus pensamentos e polêmicas acerca da temática abordada, como é o caso dos coletivos feministas Colativa e Deixa Ela Em Paz utilizados como estudos de caso no presente artigo. Diante do exposto, o presente artigo tem como problema de pesquisa a seguinte questão: Como as intervenções artísticas influenciam no desenvolvimento crítico cultural e nas relações de apropriação do espaço? PALAVRAS-CHAVE Arte, Arte de Rua, Espaço Urbano, Coletivo, Feminismo ABSTRACT Street art emerges as a response to the great cities’ conflicts. Being established through paintings, sculptures, installations or performances. Artistic interventions stand out among the chaos of the XXI century's urban landscape and to the spectator’s daily life. In this context, the Wheatpaste poster appears as a variant of the billboards (which has a major functional value of advertising and marketing), however with a critical bias and the purpose of suggesting observation and critical ideas that go against the social or inequality behaviour. Due to this Wheatpaste poster’s critical bias, several activist groups adopt this kind of street art to expose their thoughts and arguments regarding the selected theme, which is the case of the feminist collectives Colativa and Deixa Ela Em Paz, studied in this article. That being said, this article’s objective is to research the following question: How the artistic interventions can influence the cultural critic development and in the space's appropriation relations’? KEYWORDS Art, Street Art, Urban Space, Collective, Feminism

Apresentação A arte de rua surge como uma resposta a todos os conflitos das grandes cidades. Se estabelecendo através de pinturas, esculturas ou instalações e performances, as intervenções artísticas despontam pelo caos da paisagem urbana do século XXI e para

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o caos do cotidiano de seus espectadores. As grandes metrópoles e seus desenhos urbanos modernos amplificam cada vez mais os conflitos sociais existentes de seus habitantes e em meio aos espaços segregados, à violência, aos tráfegos infindáveis e à poluição visual e sonora, a arte de rua desabrocha como uma afronta, um respiro e uma reflexão (Figura 01).

Figura 01 Paulo Ito (1978 – atualmente) Need Food Not Football, 2014 Ruas de São Paulo (SP)

As intervenções artísticas urbanas transmitem sensações inerentes ao ser do homem, histórias cotidianas, uma forma de compreender em meio a desordem, uma maneira de dialogar diretamente com o próprio espaço urbano e se tornar espectador e autor ao mesmo tempo da sua própria paisagem. De acordo com o documentário Cola de Farinha.doc a arte de rua permite a transformação do cidadão em artista e vice-versa. É um modo de se fazer presente na cidade, de deixar sua marca, de participar ativamente da dinâmica e efemeridade do meio que você habita, é uma forma de se sentir dono do espaço e de se apropriar do coletivo. O perfil de intervenção artística urbana estudado no presente artigo é o Lambelambe (Figura 02). O lambe surge como uma variante do cartaz (que possui valor funcional majoritário de propaganda e comercialização), porém com um viés crítico e

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com objetivo de propor uma ideia crítica ou reflexão contrária a algum comportamento social ou desigualdade (OLIVEIRA, 2015).

Figura 02 Coletivo Transverso (2011 – atualmente) Buraco do Tatu, Saída Norte, Brasília (DF)

Por causa deste viés crítico do Lambe diversos grupos ativistas adotam deste tipo de arte de rua para expor seus pensamentos e polêmicas acerca da temática abordada, como é o caso dos coletivos feministas Colativa e Deixa Ela Em Paz que serão explorados mais a fundo neste artigo. Diante do exposto o presente artigo tem como problema de pesquisa a seguinte questão: Como as intervenções artísticas influenciam no desenvolvimento crítico cultural e nas relações de apropriação do espaço? A arte de rua e a apropriação do espaço urbano “No cotidiano das grandes cidades os espaços públicos se tornam, cada vez mais, locais de passagem” (MENDES, 2012). E a arte urbana, como prática crítica, coloca em jogo a produção simbólica do espaço urbano, repercute as suas contradições, conflitos e relações de poder. E o potencial da arte urbana está no seu meio sinestésico e direto de transmitir as informações aos seus espectadores, por exemplo: a crítica à criação de muros longos e altos será feita nos próprios muros longos e altos e, estes elementos, uma vez ferramentas de segregação e objetos que causam insegurança e enfatizam uma tipologia desarmoniosa irá se tornar, pela arte urbana,

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um painel, de pinturas, colagens, desenhos. Veja bem, a arte urbana não reconhece e aceita o caos e a arquitetura do espaço urbano disléxico, mas, mesmo assim, dialoga com ele e o transforma, o humaniza, e o harmoniza com a percepção do humano (Figuras 03 e 04).

Figura 03 Ygor Marotta (1988 – atualmente) Mais amor, por favor, 2012

Figura 04 Coletivo SHN (1998 – atualmente) Sem Nome, 2015 São Paulo (SP)

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De acordo com Mendes (2012) a intervenção artística em espaços urbanos não está se opondo à institucionalização da arte pelo mercado, ou a arte “clássica” exposta em grandes galerias e voltadas para um grupo social limitado, mas se diferencia sim deste tipo de obras pela sua dimensão contextual, pela sua dinâmica e efemeridade, que envolve o espectador durante a realização da obra como acontecimento e que reconfigura, mesmo que momentaneamente, as percepções do espaço real. A autora identifica ainda este perfil de intervenção como uma experiência heterotópica do espaço urbano, pois: “[...] A noção de heterotopia, traçada por Michel Foucault, como lugares reais que são contra-posicionamentos, “espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros posicionamentos reais, que se pode encontrar no interior da cultura, são ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos” (Foucault, [1984], 2006:p.415), pode ser articulada com os intuitos de uma arte circunstancial, em que as barreiras espaciais-temporais que separam criação e percepção da obra se desmancham pela reconfiguração dos dados de realidade. A própria cidade se faz matéria de criação não apenas do artista, mas de todos que reinventam os sentidos do espaço urbano através da experiência estética compartilhada. A intervenção artística - enquanto arte contextual - instaura uma heterotopia efêmera (heterocronia) na qual a singularidade das relações redefine o “lugar cidade” pelo contato entre estranhos. A arte contextual “se instala no coração do mundo concreto e da vida presente pela colaboração instantânea com o público” (ARDENNE, 2004: p.180) em proposições estéticas que re-inserem a experiência da alteridade em espaços urbanos que, sendo agradável ou não, remete à existência de outros lugares da cidade. ” (MENDES, 2012).

As intervenções artísticas urbanas se inserem no contexto de interesse de teóricos urbanos pelo seu potencial e capacidade de causar impactos sociais positivos e que geram um sentimento de apropriação do espaço e de pertencimento da cidade. De acordo com Ghel (2010) a cidade deve ser produzida por pessoas e para pessoas, este é o princípio fundamental dos assentamentos urbanos. Quanto mais humanizado for um espaço, mais ele irá atrair outras pessoas, pois gente gosta de estar perto de gente, de ver gente e de se sentir parte de uma comunidade e este sentimento de identificação com o espaço gerado por intervenções artística urbanas proporcionam não apenas maior qualidade de vida para a população, como também maior qualidade dos espaços públicos e melhorias na percepção de segurança dos seus habitantes. “Assim como espelho, cuja existência real exerce um tipo de contra-ação à posição ocupada por quem se olha refletido ali, a Intervenção artística nos espaços urbanos instaura uma espécie de contra-lugar que desvia as ações cotidianas deslocando, sobrepondo e contrapondo lugares diferentes que refletem modos de organização social do espaço público na cidade ” (MENDES, 2012).

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Lambe-lambe: histórico e experiências Muitas vezes confundindo com os termos pôster e cartaz o lambe-lambe identifica-se como uma ressignificação do cartaz. Segundo Oliveira (2015) o cartaz possui um valor funcional e comercial, sempre relacionado a uma propaganda de um produto ou serviço, o pôster tem valor estético e decorativo e é atribuído a espaços privados, já o lambe-lambe (que possui o pôster e o cartaz como precursores) surge no século XXI mas possui um caráter crítico diferente dos seus antecessores e representa, na arte de rua, o resultado do trabalho de artistas e coletivos que tem o objetivo de espalhar ideias e criações. O primeiro cartaz registrado foi criado pelo francês Saint-Flour (Figura 05), seu cartaz foi feito manuscrito a partir da técnica de impressão tipográfica e não possuía imagens ou cores.

Figura 05 Saint-Flour 1454 França

Na metade do século XIX artistas como Jules Cherét e Henri de Toulouse-Lautrec ficaram conhecidos por se apropriarem da técnica de impressão litográfica colorida para retratarem cenas da vida noturna parisiense como forma de cartazes de divulgação de espetáculos e eventos (Figura 06).

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Figura 06 Toulouose-Lautrec (1864 – 1901) Troupe de Mlle Elegantine - 1896 França

O caráter reprodutivo desse tipo de impressão permitiu que a mídia, mercados e os governos passassem a utiliza-los como forma de propagação em grande escala, os cartazes possuíam grande poder de alcance devido a facilidade da sua fabricação. O cartaz teve função de divulgar e promover diversos ditadores, regimes políticos, entre outros acontecimentos que marcaram a história como ferramenta de persuasão de massas. A partir do século XXI o lambe-lambe adquire sua conhecida forma de intervenção artística urbana com um viés de crítica e protesto, divide espaço nas ruas com o grafite, o stencil e outros meios de arte urbana e é propagado através de artistas, coletivos e mídias alternativas. O documentário Cola de Farinha.doc explora toda essa característica dinâmica do lambe de ser aplicado por qualquer um de maneira simples e acessível. Podendo ser considerado também como uma democratização das intervenções artísticas, pela praticidade da sua aplicação e confecção dos materiais. Basta o artista elaborar o seu projeto em uma folha de papel (o padrão comum utilizado é um tamanho A3, mas não se enquadra aqui como regra) e um pouco de mistura de cola e a intervenção pode ser aplicada a qualquer momento no ambiente escolhido pelo autor. A irreverência do lambe está na sua dinamicidade e efemeridade, assemelhando-se assim ao espaço urbano que é transitório e orgânico, se faz e se desfaz a partir da perspectiva de cada transeunte, a partir de cada fluxo e de cada fixo, movendo-se constantemente, se desintegrando e se regenerando em novos elementos.

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Movimentos feministas e intervenções artísticas urbanas O feminismo surge da necessidade do combate a violência gerada contra a mulher no decorrer dos séculos e se apropria de intervenções artísticas como forma de validação e como um processo de formação crítica e desconstrução de práticas sociais. “Arte e história têm um papel muito importante na formação das atitudes contemporâneas e na construção e produção de um olhar sobre a realidade social, na “formatação” das lentes com que olhamos essa realidade. A arte pode ser uma ferramenta poderosa de alerta e consciencialização, enquadrando-se no tipo de educação informal (LA BELLE, 1986). O argumento central é que as imagens, pinturas, cartazes, performances podem, para além de proporcionar uma experiência estética, contribuir para a desconstrução do sujeito dominador masculino” (MAGALHÃES, 2010).

Ainda de acordo com a autora citada é possível observar que na sociedade contemporânea a exploração, subordinação e opressão das mulheres ocorrem a partir de um processo de socialização, de uma série de significados construídos socialmente de como uma mulher deve se portar, a quem ela deve se reportar, quem ela deve obedecer. Esta ordem de comportamento ainda é amplificada pela afirmação de uma “diferença sexual” reforçada pela circulação de imagens, fotografias, filmes e propagandas midiáticas. As dimensões da vida feminina, tais quais, gravidez, maternidade, amamentação, cuidado das crianças, sexualidade feminina tornam-se representações ausentes tanto nos campos artísticos como nos campos de políticas públicas e desenvolvimentos espaciais, isto porque a sociedade funciona de acordo com um padrão em que a cultura dominante é representada pelo patriarcado e falocentrismo (MAGALHÃES, 2010). Conforme Deborah Haynes “a arte tem o poder de mudar a consciência e, em última análise de afetar a mudança social”. Neste conjunto de estratégias e intervenções artísticas que é possível incluir performances e instalações feministas para a conscientização acerca das diversas subordinações das mulheres, entre as quais a violência e outras formas de repressão. Grandes artistas e coletivos, tais como Suzanne Lacy e Leslie Labowitz (1977), Nan Goldin (1984), Paula Rego (1988) e Guerrilla Girls (1989) são fortes exemplos de trabalhos elaborados por artistas mulheres de alta qualidade, crítica e poder de transformação. Estudo de caso 01 – O Movimento Colativa 1

Criado em meados de 2015 o Colativa é um movimento ativista feminista recifense que se auto intitula como: “Intervenção artística de mulheres, pelas mulheres e para mulheres”. Seu trabalho mais recente refere-se a um mutirão de arte de rua que incluíam lambes e grafites feitos por mulheres no bairro da Vila Rica (Cohab 1, Jaboatão dos Guararapes, PE). Em seus lambes o coletivo aborda temas como:

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violência doméstica, discriminação de gênero, preconceito racial, padrões de beleza impostos, machismo e moradias (Figura 07 e 08).

Figura 07 Movimento Colativa (2015 – atualmente) 2015 Recife – PE

Figura 08 Movimento Colativa (2015 – atualmente) 2016 Jaboatão dos Guararapes - PE

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A riqueza do Colativa está em ao mesmo tempo que o movimento conscientiza de maneira acessível à população de temas pertinentes do ativismo feminista suas intervenções promovem o desenvolvimento de artistas mulheres, considerando outra temática feminista que seria a de que ainda existem grandes obstáculos para mulheres estarem inseridas em campos de artísticos de produção majoritariamente ocupados por homens. Outra característica que potencializa toda a capacidade dos trabalhos de lambe é que o próprio coletivo disponibiliza a sua arte de forma que o espectador da intervenção possa tornar-se participante do movimento. Estudo de Caso 02 - Movimento Deixa Ela Em Paz 2

Assim como o Colativa, o Movimento Deixa Ela em Paz surge em 2015, porém no cenário carioca. Caracterizado como coletivo feminista e de intervenção urbana o projeto tem como objetivo a conscientização da população ao assédio sexual disseminado e aceito de forma natural pela sociedade. “Ao ex que não desiste de ligar de madrugada; ao fofo que acha que já que pagou o jantar, merece pelo menos uns beijinhos; ao que se faz de surdo quando ouve um “não”; ao querido que acha que mulher tem que se dar o respeito; ao galão que coloca a etiqueta “pra casar” x “pra pegar”; ao que assovia, sussurra e “elogia” na rua; à moça que mede o comprimento da saia alheia; à revista que ensina 100 maneiras de enlouquecer um homem na cama e como conquistar um corpo digno do verão; aos que rotulam, calam, discriminam, diminuem, interrompem, menosprezam ou tratam como louca, mandamos o recado: Deixa ela em paz.” (DEIXA ELA EM PAZ, 2015).

Contudo, diferente do estudo de caso 01 o Deixa ela em paz não se faz de diferentes artes e imagens para dialogar e informar os espectadores, o movimento se utiliza de uma imagem clara e escrita, mas que é rica em simbolismo e atinge a mensagem necessária (Figura 09). Assim como o gênero dos lambes o movimento disponibiliza a arte por meio digital e convida o observador a participar do coletivo, possibilitando uma repercussão que transcende fronteiras e que ecoa em diferentes lugares, cidades e culturas (Figura 10).

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Figura 07 Movimento Deixa Ela em Paz (2015 – atualmente) 2015 Bucólico Bairro da Glória – RJ

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Figura 10 Movimento Deixa Ela em Paz (2015 – atualmente) 2016 Berlim – Alemanha

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Notas 1 As Informações apresentadas sobre o movimento Colativa foram adquiridas a partir de conversas com os representantes do grupo por redes sociais através da página do movimento <https://www.facebook.com/colativa/?fref=ts> em Junho de 2016. 2 As Informações apresentadas sobre o movimento Deixa Ela em Paz foram adquiridas a partir de conversas com os representantes do grupo por troca de e-mails e redes sociais através da página do movimento <https://www.facebook.com/deixaelaempaz/?fref=ts> em Junho de 2016. Referências CARTAXO, Zalinda, Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, vol. 01, n.1, 2009. Disponível em: < http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/431/381>. Acesso em: Junho de 2016 Cola de Farinha.Doc – Wheatpaste.Doc. Duração 20’00”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=LPKR2JSsFXM>. Acesso em Junho de 2016 GEHL, Jan, Cities for people, Island Press, Washington, 2010. MAGALHÃES, Maria José, A arte e a violência no olhar: Activismo feminista e desconstrução da violência contra as mulheres. Revista Crítica de Ciências Sociais, [Online], p. 89-109, 2010. Disponível em: < https://rccs.revues.org/3735>. Acesso em: Junho de 2016 MENDES, Eloísa Brantes Cidades Instáveis: Intervenção artística como experiência heterotópica do espaço urbano. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, vol. 02, p. 1-19, agos. 2012. NEWMAN, P Jennings, Cities as sustainable ecosystems: principles and practices, Island Press, Whashington, 2008. OLIVEIRA, Diogo, Lambe-lambe: resistência à verticalização do Baixo Augusta. 2015. 24f. Dissertação (Pós-Graduação em Especialista em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Rayane Barcellos Estudante do oitavo período de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pernambuco. Contato através do endereço eletrônico: rayanebarcellosms@gmail.com.

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POP ART NO BRASIL: A OBRA DE CLAUDIO TOZZI COMO IMPORTANTE INSTRUMENTO DE DENÚNCIA POLÍTICA E SOCIAL Rayanne Debora Gonçalves de Lima/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO A Pop Arte foi um movimento que emergiu na Inglaterra dos anos 50, baseado na insatisfação de alguns com a distância entre a arte e a ‘massa’ (maior parte da população), entre a ‘arte elitista’ e a ‘arte vulgar’. Chegou no Brasil pouco depois, mas em um contexto histórico e social bem diferente. Aqui vivía-se a época dos ‘anos de chumbo’, repleta de censura aos artistas e imprensa, práticas de violência e tortura por todos os lados da cidade. É nesse momento ‘conturbado’ que o arquiteto e artista plástico, Claudio Tozzi, frequenta curso na área de Ciências Humanas da USP, ou seja, imersão profunda nesse mundo de conflitos e debates ideológicos. Dessa forma, reflete nas Artes, influenciado e adepto ao movimento Pop Art, toda a sua capacidade criativa para a denúncia e crítica aos problemas políticos e sociais a serem enfrentados na época. PALAVRAS-CHAVE Artes visuais; Pop Art; Claudio Tozzi; Ditadura Militar ABSTRACT The Pop art was a movement that emerged in England in the 50s, based on one´s dissatisfaction with the gap between 'art' and 'crowd', such as the 'elitist art' and the 'popular art'. It arrived in Brazil shortly after, but in a historical and social context really different. Here, the people was passing through a military dictatorship, which was of censure and brought many practices of violence and torture. The architect and artist, Claudio Tozzi, started joined a Human Sciences´ course at USP, what means a deep participation in that world of conflict and ideological discussion. Thus, he reflected in artworks - influenced by the Pop Art expression - all his creativity, focused on denouncing political and social problems of that time. KEYWORDS Visual arts; Pop Art; Claudio Tozzi; Military Ddictatorship

O mundo antes da Pop Art Com o fim da 2ª Guerra Mundial, a Europa se viu diante de uma grande crise econômica e, enquanto isso, os Estados Unidos comemoravam um momento de grande prosperidade. O país vendia o chamado “sonho americano”, onde a imagem de felicidade, conforto e progresso era vendida associada ao poder de consumo. Propagava-se a ideia de que qualquer um poderia melhorar sua qualidade de vida. Os anos 50 e 60 foram marcados pelo boom do consumismo. Os meios de comunicação de massa passam a fazer parte de um processo de alienação. Por outro lado, neste mesmo momento, Theodor Adorno e Max Horkheimer criaram o conceito da indústria 343


cultural, o qual desempenhou papel essencial no surgimento do pensamento artístico sobre a reprodutibilidade da arte. Raízes e Influências da Pop Art O expressionismo e toda sua subjetividade dominava o mundo artístico, havendo claramente, naquela época, uma divisão entre a “arte elevada” e a “arte vulgar”. A pop art surgiu como resultado da insatisfação de certos artistas com essa situação de separação entre a arte e as massas. De fato, pode-se datar sua origem em meados dos anos 50 na Inglaterra, onde um grupo de artistas, intitulado ‘Independent Group’, começou a dar os primeiros passos e a apresentar as bases da nova forma de expressão artística. No entanto, foi na Nova York dos anos 60 que o movimento artístico demonstrou todo seu potencial, chamando a atenção do mundo inteiro. A expressão “Pop Arte” foi originada do inglês, e significa “Arte Popular”. Esse movimento teve início a partir da exposição do pôster de Richard Hamilton, que ajudou a estabelecer vários dos temas dominantes. O pôster era composto basicamente de anúncios recortados de revistas populares. O “Pop Art” enquanto movimento abraçou várias manifestações, criadas para as multidões e produzidas pelos grandes meios de comunicação, as quais demonstravam a massificação da cultura popular capitalista. O objetivo do movimento era o da crítica irônica, fazendo uso de vários recursos da mídia propagandista: televisão, fotografia, quadrinhos, cinema e publicidade. De toda forma, ela trouxe uma novidade: o grande público poderia, finalmente, compreender uma obra de arte. Diz-se que a Pop art é o marco de passagem da modernidade para a pós-modernidade na cultura ocidental. A nova atenção concedida aos objetos comuns e à vida cotidiana encontra seus precursores na antiarte dos dadaístas. Os artistas norte-americanos tomam ainda como referência uma certa tradição figurativa local - as colagens tridimensionais de Robert Rauschenberg e as imagens. Ademais, os artistas que faziam parte do movimento desafiaram o convencional, criando natureza-morta com latas de sopa ao invés de girassóis, e estátuas de guimbas de cigarro em vez de líderes políticos. "O fenômeno pop pode ser entendido também como a marcante migração de assuntos entre arte e design e a relação entre objetos do dia a dia e imagem", afirmam críticos (BBC BRASIL, 2014). Suas raízes provêm do dadaísmo de Duchamp e tinham como objetivo fazer oposição ao expressionismo abstrato, como já citado. Memso assim, é interessante observar que o consumo criticado pela pop art era sua principal matéria-prima, ou seja, o movimento também precisava daqueles objetos de consumo para manter sua iconografia e inspirar novas obras. Inclusive, houve o aumento do consumo de alguns produtos como a sopa Campbell, usada pelo principal artista da pop art, Andy Warhol. Em resumo, o que era brega passou a ser considerado tendência de moda, o que era considerado banal se tornou requintado, já que o valor da arte muda de acordo com o contexto histórico no qual está inserida.

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Andy Warhol (1928–1987) Campbell´s Soup, 1965 Tinta serigráfica e polímero sintético sobre tela, 91 x 61 cm Museu Coleção Berardo, Lisboa (POT)

Breves características do Movimento Os artistas da pop art passaram a usar signos estéticos massificados da publicidade e do consumo como forma de arte. Para isso, utilizavam as principais satisfações visuais das pessoas, a exemplo dos comerciais de TV, campanhas publicitárias e histórias em quadrinhos para aproximar justamente a arte e a vida comum. Além do mais, a técnica de repetir várias vezes um mesmo objeto, com cores diferentes e a colagem foram muito utilizadas. Um fato interessante é que os materiais artísticos mais usados pelos profissionais eram derivados das novas tecnologias que surgiram em meados do século XX. Entre eles, podemos citar a tinta acrílica, o poliéster e o látex. Esses eram aplicados com cores fortes, brilhantes e vibrantes, reproduzindo objetos do cotidiano em grande escala, transformando o real em hiper-real.

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Roy Lichtenstein (1923–1997) In the Car, 1963 Óleo sobre tela, 172 x 203,5 cm Scottish National Gallery of Modern Art, Edimburgo (UK)

Estrelas de destaque do cinema americano, revistas em quadrinhos, automóveis, aparelhos eletrônicos e produtos enlatados tiveram que ser desconstruídos para que as impressões e ideias desses artistas apontassem o poder de representação daquilo que era oferecido pela era industrial. A multiplicação das imagens enfatiza a ideia de anonimato e também do efeito decorativo, uma vez que a ilustração destacada e reproduzida mecanicamente, com o auxílio do silkscreen, afasta qualquer vestígio do gesto de seu autor. Sem estilo comum, programas ou manifestos, os trabalhos dos artistas se afinam pelas temáticas abordadas, pelo desenho simplificado e pelas cores saturadas. A nova atenção, concedida aos objetos comuns e à vida cotidiana, encontra seus precursores na antiarte dos dadaístas. Os principais representantes da Pop Art internacional foram: Robert Rauschenberg (1925), famoso pelas pinturas com garrafas de CocaCola, embalagens de produtos industrializados e pássaros empalhados; Roy Lichtenstein (1923-1997), com suas obras baseadas nas histórias em quadrinhos e anúncios publicitários; e Andy Warhol (1927-1987), ao retratar ídolos da música popular e do cinema, como Michael Jackson, Elvis Presley, Elizabeth Taylor, Marlon Brando e, sua favorita, Marilyn Monroe, mostrando o quanto personalidades públicas são figuras impessoais e vazias. Ele expunha tal realidade a partir da associação com a técnica reproduzida nos retratos por uma produção mecânica em vez do trabalho 1 manual. Da mesma forma, utilizou a serigrafia para representar a impessoalidade do objeto produzido em massa para o consumo.

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Andy Warhol (1928–1987) Green Coca-Cola Bottles, 1962 Acrílico e tinta serigráfica sobre tela, 210 x 145 cm Whitney Museum of American Art, Nova York (EUA)

A Pop Art brasileira A pop art representou um período de transformação na arte, principalmente no Brasil, onde se enfrentava o período da ditadura militar. Vários artistas, intelectuais, jornalistas, músicos, formadores de opinião, entre outros, eram perseguidos, presos, torturados, exilados e/ou mortos. Na década de 60, as artes plásticas sofreram grandes mudanças no país, pois os artistas nacionais assimilaram os expedientes desse movimento, a exemplo do uso das impressões em silkcreen e as referências aos gibs. A obra de Andy Warhol expunha uma visão irônica da cultura de massa. Entretanto, a incipiente proliferação no Brasil dos meios de comunicação de massa, na década de 1960, leva, paradoxalmente, esses artistas a aproximar técnicas da arte pop (altocontraste) a temas engajados política e socialmente, muitas vezes como instrumento de denúncia. Aqui, a manifestação cultural não perdeu as características norte americanas, porém seu enfoque era mais ‘pesado’, já que tornou-se uma ferramenta de protesto contra a ditadura militar, já no início dos ‘anos de chumbo’. Os principais artistas do Pop art brasileiro foram: Claúdio Tozzi, Rubens Gerchman (com seus temas de futebol, LUTE e havaianas, dentre as obras mais relevantes), Wesley Duke Lee, José Roberto Aguilar e Marcelo Nitsche. Em seguida, ocorreram exposições simbólicas nesse período, vale destacar a Opinião 65, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (composta por 17 artistas brasileiros e 13 estrangeiros). Esse corpo artístico é bastante plural e inovador. Cada um agrega valor à formação do caráter peculiar do movimento no país, de forma a também construir sua identidade frente à Pop Art no cenário global. De um lado, por exemplo, temos o Marcelo Nitsche, conhecido por representar um universo infantil em suas obras, por

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ter espontaneidade na sua invenção estética. É ousado, criou as pinceladas em material rígido, fugindo às pinturas e esculturas tradicionais. É muito reconhecido por transformar os objetos, por isso é comparado com o universo infantil, pois quando olhamos o resultado da sua obra é impossível perceber como ele consegue relacionar objetos de utilidades tão diferentes. Já Claudio Tozzi cria imagens a partir dos acontecimentos cotidianos, atribui outra visão à, por exemplo, uma panela de pressão. O artista eleva o significado de um simples objeto à condição de ser uma imagem, de ser algo reconhecido por nós, acaba com a banalidade existente nas coisas consideradas simples, pois tenta nos fazer lhes dar a devida importância. Podese afirmar que a Pop Art Brasileira reflete muito a realidade do país: suas diversas faces, gostos, características naturais e de sua população, pluralidade cultural.

Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Panela de Pressão, 1968 Acrílico sobre aglomerado

Aspectos relevantes da ditadura militar no Brasil Os anos da ditadura e de chumbo no Brasil (1964-1985) deixaram a impressão permanente da mesquinharia do ser humano. Rios de tinta correram para encobrir a clandestinidade política e a imprensa de resistência, os movimentos estudantis ou um cenário musical que cobrou um protagonismo indiscutível entre os jovens da época. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré encarnaram a perseguição e o exílio das vanguardas artísticas. O assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975 pelas mãos de militares no interior de um presídio de São Paulo representou a gota que transbordou o copo, o ponto de inflexão a partir do qual a ditadura começou a tomar forma, pressionada por um crescente clamor social que exigia anistia e democracia. No entanto, o cenário artístico desses anos pouco tinha sido abordado até agora.

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Claudio Tozzi e o contexto de suas obras Claudio admirava secretamente um pintor húngaro que morava próximo da sua casa, ele costumava segui-lo e ficava espiando escondido através da janela do ateliê desse pintor. Estudou no colégio de Aplicação da USP e era incentivado pela sua professora de artes a inventar colagens, cartazes e composição abstratas. Ganhou um episcópio e projetava a imagem na parede, copiava a imagem em uma tela e trabalhava sobre ela. Com a técnica de projeção ele percebeu, também, que não precisava saber desenhar para se tornar um pintor. E foi assim que nasceu o artista para um estilo de arte que o acompanha até os dias de hoje. Jovem na década de 60, vivenciando as notícias sobre a Guerra do Vietnã, a chegada do homem à lua, cantando Beatles e Rolling Stones, as comunidades hippies com a vida de liberdade, paz e amor, protestos em greves, participação de comícios e manifestações, nesse cenário o jovem Claudio fez a sua primeira obra “Paz”. Em 1963, começa o curso de arquitetura, concluído em 1968, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU/USP. Em seus trabalhos são encontrados símbolos da sociedade de consumo que aparecem como imagens ou objetos. Ele frequentemente utiliza sinais de trânsito, bandeiras, letreiros e peças publicitárias, retira-os de seu contexto e atribui-lhes novos sentidos. É influenciado por Sérgio Ferro, Flávio Império e Maurício Nogueira Lima, em cujas obras se percebe a convergência entre a cartazística soviética, as vertentes construtivas e o vocabulário pop com finalidade política. A proximidade com as faculdades de Ciências Humanas criara um espaço altamente politizado, onde a temperatura dos debates ideológicos muitas vezes se elevava e se transformava em conflitos e enfrentamento entre estudantes de direita e de esquerda, sobretudo a partir do golpe militar de 1964. Na velha FAU, fermentavam os sonhos de liberdade e de profundas transformações culturais, uma vez que a produção artística desse período foi profundamente marcada pelas propostas dos CPC - Centros Populares de Cultura, criados em 1961. Num primeiro momento, a arte de combate e reflexão, arrancada aos cabeçalhos dos jornais, exprimia-se por histórias em quadrinhos e outros recursos da pop art. Tozzi lhes dá sentido crítico, sob a influência do artista norte-americano Roy Lichtenstein, e realiza as telas ‘Até que Enfim’ e ‘Bandido da Luz Vermelha’. Simultaneamente, o artista trabalha com temáticas políticas e urbanas, utilizando com freqüência novas técnicas em seus trabalhos, como a serigrafia. Durante esses anos, o artista subia nos telhados do centro do Rio de Janeiro e deixava nas marquises pilhas de panfletos com desenhos de sua autoria, convocando a população para mobilizações contra a ditadura. O vento fazia o trabalho de distribuição da propaganda entre os pedestres, e, dessa forma, Tozzi minimizava o risco de ser parado e acusado de subversão.

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Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Bandido da Luz Vermelha, 1967 Liquitex sobre hardboard, 95 x 95 cm

Por intermédio das artes protestava-se contra o autoritarismo do governo militar, que impedia a livre manifestação artística pela censura. Portanto, ele também concebe telas explicitamente engajadas, como ‘Guevara Vivo ou Morto’. Esse painel, exposto no Salão Nacional de Arte Contemporânea, sofre um atentado e é praticamente destruído, por um grupo de extrema direita, num processo de radicalização ideológica e de agressividade crescentes, sobretudo naquele ano, marcado pelas lutas estudantis contra a ditadura. Pelos movimentos de massa que procuravam restaurar a democracia e por outro lado, com a promulgação do AI 5. Sua obra incomodava porque não estava restrita ao circuito artístico, porque não se restringia nos problemas estéticos, mas voltava-se, sobretudo, e de forma engajada à realidade, para as contradições políticas e sociais daqueles anos: [...] Uma das características da arte brasileira de vanguarda dos anos sessenta é a preocupação com o coletivo. Na pintura refletiase, principalmente a temática social. Os fatos políticos eram narrados pela figura; a obra exigia do espectador não apenas uma atitude de contemplação, mas tinha o intuito de incitar seu pensamento, levá-lo à reflexão e ao debate [...] Importante também é o seu conteúdo-signifícado e a linguagem utilizada: a apropriação da linguagem usada nos meios de comunicação de massa, desde sinais de trânsito, letreiros, "outdoors", histórias em quadrinhos, até os processos fotomecânicos de reprodução [...] (TOZZI, 1977)

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Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Guevara Vivo ou Morto, 1967 Tinta em massa e acrílica sobre aglomerado, 175 x 300 cm

A arte naquele tempo parecia não poder sobreviver fora da preocupação com a transformação política e social. Ferreira Gullar chamava atenção, no seu livro, para a necessidade de a cultura ser colocada a serviço do povo e Claudio Tozzi, integrado com a vanguarda do seu tempo, compartilha dessa preocupação. O engajamento em relação às massas está presente desde os seus primeiros trabalhos. Nesses anos ocorria uma enorme transformação na pintura em todo mundo. Mário Schemberg, um dos críticos de arte mais atuantes nesse período, caracteriza o momento como um novo realismo. Tornava-se necessário encontrar uma linguagem acessível às massas. O artista chegou a utilizar textos em suas obras para reforçar o conteúdo semântico da imagem. Seus temas são multidões e heróis de multidões, realçadas num período de comícios agitados de greves de passeatas, de protestos e de sonhos revolucionários. Dessa forma, a leitura de suas telas não pode ser feita isolada ou desvinculada da análise daquele momento histórico: [...]A gente viveu um momento de muita pressão e essa cultura era nossa arma, nossa metralhadora. Dentro desse conceito, eu trabalhava com algumas imagens que pegava de jornais. Essa imagem (citando a obra ‘Multidão’), por exemplo, é do ‘Jornal da Tarde’. Ela foi retrabalhada, com ampliação das retículas, para dar um caráter mais de gráfico, um caráter mais de pintura [...] (TOZZI, 2 2012)

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Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Multidão, 1968 Vinílica sobre aglomerado, 175 x 300 cm

Alguns elementos desse conjunto são apresentados em eventos importantes, como a 9ª Bienal Internacional de São Paulo e coletivas em Londres e Buenos Aires. Pouco tempo depois, devido ao acirramento da censura e da repressão no país pós-68, Tozzi – que chegou a ser detido por uma semana pela Operação Bandeirantes – passa a se dedicar a um outro tipo de denúncia: questionando o próprio status da obra de arte como única e elitizada, alheia aos novos meios de linguagem e fatura publicitárias. Inicia uma série de trabalhos de multiplicação e alteração de imagens, a partir de técnicas derivadas da reprodução gráfica. Num segundo momento, a partir de 1969, seus trabalhos deixam de expressar impactos políticos e perdem o carácter panfletário. Os tempos não permitiam, pois a luta armada leva a ação política para a clandestinidade e a violência da repressão alija e impede as massas de se manifestarem. O conceito de suas obras passa da crítica social para a pesquisa de formas, sobretudo da disposição gráfica e impessoal das figuras. Dessa reflexão, nascem as séries Astronautas, Presilhas e Parafusos. É bem provável que esse ‘parafuso’ também faça referência à época da ditadura, onde os pensamentos não corriam livremente e havia forte ‘lavagem cerebral’. [...] O primeiro parafuso que eu usei foi um elemento bem simbólico. Eu associei com o momento da época, que é exatamente o parafuso pressionando o cérebro. E depois, em outras épocas, eu também trabalhei o parafuso como se fosse uma 2 forma geométrica. (TOZZI, 2012)

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Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Parafuso, 1971 Acrílica sobre tela

O contato com o real torna-se mais crítico, menos imediato. Surgem então pesquisas ópticas e séries onde ele alia desenho e pintura aos objetos da era tecnológica. Em seu processo metódico e objetivo, Claudio Tozzi utiliza ícones visuais – parafusos, escadas, fragmentos de peças, símbolos tropicais,espaços urbanos, etc. Revelando-se, desta forma, artista de elevado rigor formal, cuja obra transita por vertentes construtivas e conceituais. De toda forma, alcançou o reconhecimento merecido, ainda jovem – foi considerado pela crítica como um dos dez melhores pintores da década, no concurso ‘Destaque Hilton’ de 1980. É nesta época que sua produção abre-se a novas temáticas figurativas, como é possível observar nas séries dos papagaios e dos coqueirais, apresentando também a tendência à geometrização das formas. Na realização dos quadros utiliza um rolo de borracha de superfície reticulada, o que agrega novos aspectos às suas obras, como textura e volumetria. Conjuntamente, começa a realizar trabalhos abstratos, nos quais explora efeitos luminosos e cromáticos. A Arte de Tozzi foi se tornando cada vez mais uma dança de cores e formas. Segundo o próprio: “O artista faz arte quando cria o próprio baile no espaço”. A sua formação em arquitetura foi importante para Tozzi olhar o espaço da cidade e criar obras que recriam os espaços urbanos pelas suas imagens e cores. Esse é um artista que traduz 3 em formas geométricas, cores e desenhos a sua forma de expressão . Ainda assim, desenvolve seu trabalho num processo interdisciplinar. Suas obras revelam uma organização racional dos elementos. Ele não é intuitivo e nem suas obras não são feitas por emoção, pois antes de iniciar o trabalho o artista já sabe exatamente o que e como vai fazer para alcançar o resultado imaginado. Segundo ele, a arte não deve ficar presa em museus, galerias e instituições de ensino. Ela deve ocupar as ruas, praças, edifícios e a vida das pessoas. Claudio Tozzi procurou sempre se superar num processo de reelaboração de sua linguagem. Artista ainda ativo, além de arquiteto,

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designer, gravador, pintor hoje ele também é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Claudio Tozzi (1944 – até hoje) Parafuso, 1971 Mural em Pastilhas Vítreas, 36 x 16 m Higienópolis, São Paulo (SP)

Desde meados de 2003, a fachada lateral do Edifício Comercial Exclusive abriga a obra premiada do artista plástico. O mural que mexe com o espírito dos paulistanos, encontra-se na Avenida Angélica e foi construída com 1,5 milhão de pastilhas revestindo uma área de 600 m2, a maior do gênero na cidade. Tozzi é, também, o autor de vários painéis em espaços públicos, na cidade paulistana, como na Praça da República, nas estações da Sé e Barra Funda do metrô, entre outras, onde mescla diferentes técnicas em uma mesma composição, dotando-as de uma linguagem rica, complexa e diversa. Considerações Finais Levar sua produção artística para fora dos espaços convencionais das artes plásticas, como galerias e museus, foi outra preocupação presente desde o início da carreira de Cláudio Tozzi. Ele procurava comunicar-se com um público mais abrangente. E por ter entrado no mundo da Pop Art, obteve bastante sucesso no que diz respeito a ‘se encaixar perfeitamente nos objetivos do movimento’. Ele pôde exercer seu papel de cidadão, e de própria vítima dessa terrível cena histórica do país, de forma inteligente, criativa e segura, já que essa expressão artística garantia o anonimato dos autores, embora a mensagem principal fosse transmitida de forma clara e ‘audaciosa’, o que era de suma importância na época, uma vez que viviam-se ‘os anos de chumbo’. Vale destacar que ela foi uma arte literalmente popular, onde a grande massa da população se sentia envolvida, considerada e entendida pelos artistas, já que conseguiam finalmente compreender o sentido das obras de arte (o anterior

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expressionismo não garantia fácil entendimento). As cores vivas impressas e a utilização das formas publicitárias simples (cartazes e objetos do dia a dia), permitem uma aproximação maior desses produtos com o grande público, configurando cada vez mais essa ideia de retratar e assimilar o típico ‘jeitinho brasileiro’ (alegre, espontâneo, sem tanta rigidez e pressão). No mundo artístico e cultural das épocas posteriores, essa manifestação de arte influenciou também o grafismo e os desenhos relacionados à moda. O artista, ao longo das várias fases pelas quais passou, conseguiu sempre renovar, explorar novas formas de criar suas figuras. Por isso, a variedade, a contemporaneidade, a ousadia e a qualidade são os atributos que mais chamaram a atenção de seu público nacional e internacional. Ele é ainda hoje considerado um dos mais expressivos artistas do cenário artístico nacional. Não apenas pelo exímio conhecimento e domínio do criar artístico, mas também pela notável coerência formal que revela na diversidade temática do conjunto de sua obra. Voltando-se ora para composições mais geométricas, construtivistas, ora para questões referentes à comunicação direta da imagem, Cláudio Tozzi revela-se sobretudo um arquiteto construtor de imagens. E, para muitos, um marco divisório da arte contemporânea no país.

Notas 1 Serigrafia, também conhecido como silk-screen ou impressão a tela, é um processo de impressão à base de estêncil. O nome de origem grega - seri (seda) e gráfia (escrever ou desenhar). Esta é uma técnica de impressão muito versátil e permite obter uma grande variedade de resultados - tons sutis com características de aquarela, por exemplo -, bem como reproduzir a densidade e riqueza de cores da pintura a óleo. 2 Em entrevista concedida ao Programa Metrópolis da TV Cultura, exibido em 2012. Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=skeTB2oN_Kg>. Publicado em 19 de abr de 2012. 3 Os artistas utilizam as cores conforme o caráter que querem imprimir à sua composição. Quando o artista tem a intenção de imprimir uma sensação mais intimista, sóbria e calma privilegia o uso de cores frias (matiz azul e verde) e quando a sua intenção é imprimir uma sensação mais alegre e agitada, utiliza as cores quentes (matiz amarelo e vermelho).

Referências AMARAL, Aracy. Arte Para Que? A Preocupação Social na Arte Brasileira 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1987. DANTAS, Tiago. Pop Art. Site Mundo Educação. Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/artes/pop-art.htm>. Acesso em 19 de junho de 2016. ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Claudio Tozzi. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8528/claudio-tozzi>. Acesso em 19 de junho de 2016.

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FREGULIA, Bruna Ronzani. O QUE PODE E O QUE NÃO PODE EM TEMPOS DE DITADURA: REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO E O ENSINO DA ARTE. 2013. 40. Dissertação de Licenciatura em Artes Visuais. Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2013. MAGALHÃES, Fábio. Obra em Construção: 25 Anos de Trabalho de Claudio Tozzí. Rio de Janeiro: Revan, 1989.

Rayanne Debora Gonçalves de Lima Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2011 até o presente momento). Parte do curso fora realizada na modalidade de Graduação Sanduíche, como bolsista pela CAPES, através do programa de intercâmbio Ciências Sem Fronteiras, no Dublin Institute of Technology em Dublin, capital da Irlanda.

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LÉXICOS, VISUALIDADES E CORPOREIDADES DA TEIMOSIA, DA GAMBIARRA E DA PRECARIEDADE EM "PEBA" Roberta Ramos Marques/ Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Discuto, neste artigo, a performance Peba, de Iara Sales (PE - Brasil), a partir de referências que a situam como uma obra que funda seu conceito em uma corporeidade desterritorializada, ao mesmo tempo que afirmativa de suas singularidades. Identifico que Peba, em contraponto a uma língua maior, universal, instaura um corpo-língua menor, à esteira do que Deleuze e Guatari (1977) chamam de literatura e língua menores. O modo de essa língua menor ganhar corpo em cena no que se mostra em Peba é através dos pedaços da cultura que não se dissolvem, não se fundem, e, dentre tais referências, o modo de o corpo mover-se, no precário e na gambiarra, afirma-se como marca da singularidade frente ao imperativo do universal, e não como celebração à pobreza e à falta de recurso (ANJOS, 2010; FABIÃO, 2011). PALAVRAS-CHAVE Corporeidade; Peba; performance; gambiarra; precariedade RESUMEN Discuto, en este artículo, la performance Peba, de Iara Sales (PE - Brasil), a partir de las referencias que la sitúan como una obra que funda su concepto en una corporalidad desterritorializada, en tanto afirmativa de sus singularidades. Identifico que Peba, en oposición a una lengua mayor, universal, introduce una lengua-cuerpo menor, en conformidad con aquello que Deleuze e Guattari (1977) llaman de literatura y la lengua menores. Esta lengua menor gana terreno en la escena de Peba a través de los fragmentos resistentes de la cultura que no se disuelven, no se fusionan y, entre estas referencias, se manifestan los modos en que el cuerpo se mueve precariamente y se afirma como una marca de singularidad ante el imperativo de lo universal, y no como una celebración de la pobreza y de la falta de recursos (ANJOS, 2010; FABIÃO, 2011). PALAVRAS CLAVE Corporeidad; Peba; performance; precariedad

Introdução Este trabalho discute a performance Peba, definida por seus criadores como "uma 39 proposta cênica entre dança, performance e arquitetura sonora" , de autoria de Iara Sales (PE), em colaboração com Tonlin Cheng (PE), músico e performer, e Sérgio Andrade (RJ/BA), dramaturgista e diretor:

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Para saber mais a respeito da performance Peba, cf. textos informativos do blog do trabalho. Disponível em: < http://projetopeba.blogspot.com.br/p/blog-page.html>. Acesso em: 7 jul. 2016. 357


A pesquisa investe numa corporalidade “peba”, que, sorrateiramente, transita entre brincadores, folguedos, ruas e festas dos estados de Pernambuco (PE) e Bahia (BA). Entre manifestações [extra]cotidianas, territórios, memórias e subjetividades Iara Sales toma a fronteira como um interstício de heterotopias [ou desutopias] no corpo: nem Pernambuco nem 40 Bahia, “PEBA” pode ser outro e está por ai. (PEBA, 2016).

A partir da ideia de que esta performance investe em uma "corporeidade peba", discuto como esta corporeidade afirma-se, simultaneamente, como desterritorialização, e singularidade, através de seus pedaços teimosos (GOMEZ-PEÑA apud BHABHA, 1998). Identifico que Peba, em contraponto a uma língua maior, universal, instaura um corpo-língua menor, à esteira do que Deleuze e Guattari (1977) chama de literatura e língua menores. O modo de essa língua menor ganhar corpo em cena no que se mostra em Peba é através dos pedaços da cultura que não se dissolvem, não se fundem, e, dentre tais referências, o modo de o corpo mover-se, no precário e na gambiarra, afirma-se como marca da singularidade frente ao universal, e não como celebração à pobreza e à falta de recurso (ANJOS, 2010; FABIÃO, 2011). Performance, referências culturais e uma língua-corpo menor contra o Universal Durante várias décadas no Recife, a única forma conhecida, e por isso naturalizada, de traspor elementos dos folguedos populares para outro contexto cênico e social era através do foco em seus bens e objetos, e não seus agentes e processos. Na dança, essa operação, largamente investida, por exemplo, pelo grupo Balé Popular do Recife, tinha seu equivalente mediante o foco nos passos, e não na complexa corporeidade dos seus agentes. Através do foco nesse aspecto, que, isolado do seu contexto, muito pouco ou nada carrega da complexidade envolvendo seus contextos produtores, projetos como o de uma Dança Armorial, circunscrito a um projeto mais amplo, o do Movimento Armorial, pensavam ser possível encontrar a brasilidade artística através de uma fusão entre elementos culturais (isolados) populares e elementos culturais (igualmente isolados) eruditos, numa compreensão estática e dicotômica de ambas as referências. A performance Peba, através do agenciamento entre muitos elementos que se mantêm e não se dissolvem, contrapõe-se à fusão harmônica entre as culturas "eruditas" e "populares" pretendida pelo projeto do Movimento Armorial, pensado por Ariano Suassuna, para criar uma arte brasileira erudita com apelo ao universal. Uma operação, essa do Armorial, não inédita, mas bastante persistente, que perdura até hoje, e olha para o popular associando-o ao passado, em uma afirmação épica do popular, conforme Canclini (2008), e emoldurando-o de modo a polarizá-lo com o massivo. Essa operação projetou, entre várias outras linguagens artísticas, uma dança armorial e, dessa projeção, nasceram o Balé Armorial do Nordeste (1975), o já citado Balé Popular do Recife (1977), Grupo Grial (1997), essa última a mais duradoura e respaldada experiência de busca de um graal dançado, como o próprio grupo e o seu

40 Informações contidas no Blog de Peba. Disponível em: < http://projetopeba.blogspot.com.br/p/blog-page.html>. Acesso em: 7 jul. 2016.

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mentor inicial metaforizaram a busca da dança brasileira erudita, "castanha" (conceito metafórico da fusão e da mestiçagem positiva numa concepção freyriana), desejada por esse projeto estético. Ao invés de uma dramaturgia do antiquário, do poupurri de passos e ritmos, como objetos e bens isolados, justapostos e embaralhados em uma narrativa do nacional e do discurso da "riqueza cultural", Peba apresenta algo mais próximo de uma dramaturgia de um corpo desterritorializado. Ao invés de fusão, pedaços teimosos, como explicarei mais à frente. Não há fusão. Nem se confirma o universal. Ao invés de reafirmação de nacionalismos, outras formas de agência e outras formas de pertencimento, crítico, propositivo, recriativo (ANJOS, 2010). Numa copresença entre referências da performance, maracatu, mass samba, cavalomarinho, malemolência, gestos macunaímicos, frevo, orientalismos (estereótipos de gênero e de cultura que parecem não descolar mais, e que, expostos, servem para instigar outras camadas de complexidade e de reflexão), balbucios ininteligíveis e intraduzíveis, relação do corpo com tecnologia (games), ebriedade, Peba constrói uma língua-corpo menor, no sentido deleuzeano e guattariano (apud ANJOS, 2010), que se irrompe contra a ideia de uma língua maior, hegemônica, internacional. O que Deleuze e Guattari (1977) atribuem à literatura kafkiana ganha seu equivalente em performances como Peba, através do que aqui proponho como um corpo-língua menor. Peba, com o corpo-língua, em alguns frames de sua transitoriedade, investe no heterogêneo, numa visão não-hierárquica entre estratos culturais, frente a um espaço que já se pretendeu homogêneo, pela elitização do popular, e que ainda se pretende, numa suposta "língua internacional da arte", sempre numa pedagogização do gosto (MILLER; YÚDICE, 2004). Frente ao passado, presente e futuro, esse corpo-língua menor insere "diferenças linguísticas, multiplicando afirmações de diferenças, torcendo" uma língua pretensamente universal, "fazendo-a gaguejar em seu léxico e em sua sintaxe" (ANJOS, 2010, p. 116). E, ainda, amplia e altera convenções de linguagem e de 41 conduta corporal. Esse corpo-língua menor não se pauta numa proxêmica , não tem 42 compromisso com os limites da cinesfera do outro, nem grande, nem pequena. Os soteropolitanos, diria Fernandes (2002, p. 267), mas também podemos dizer desse traço em Pernambuco, podem cultivar limites estreitos entre corpos, "em ônibus, filas, bancos públicos, praias lotadas, etc." (FERNANDES, 2002, p. 267), e isso compõe esse corpo-língua menor de Iara Sales, em Peba, que, com outros artistas, desde "a periferia, o oriente ou o sul corroem, ampliam e alteram as convenções linguísticas que predominam" numa suposta língua maior, internacional, de arte (dança/performance) contemporânea. Peba recria, assim, num espaço a um só tempo cênico e político, o "sistema das formas que governam aquilo que pode ser visto e aquilo que pode ser dito", ou de temas e de atitudes "passíveis de serem expressas" (ANJOS, 2010, p. 118).

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Conceito do antropólogo Edward Hall, para referir-se aos espaços individuais em relação aos contextos sociais, culturais. 42 Conceito de Rudolf Laban. Esfera onde cada indivíduo se move. 359


Pedaços teimosos e o direito à opacidade 43

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Uma das ações do corpo-língua menor de Peba é um bamburim de nego bom a uma certa altura da performance. Nego bom é incomensurável, intraduzível, opaco, até mesmo nas contradições do que ele tem de 'pele negra, máscara branca' (FANON, 2008). É uma referência de memória positiva, associada à infância no Recife, ao mesmo tempo em que é açúcar, é corte de cana, trabalho "quase" escravo. Incomensurável como os pedaços teimosos que Homi Bhabha (1998) faz lembrar da caldeirada menudo do artista performativo mexicano Gomez-Peña, em seu The new World Order, mostrando que a noção de cadinho, fusão harmônica, cai por terra, diante da realidade da caldeirada menudo, que Bhabha diz mexer com nossa visão de "incomensurabilidade": Esta nova sociedade é caracterizada por migrações em massa e relações inter-raciais bizarras. Como resultado, novas identidades híbridas e transitórias estão emergindo... […] A noção falida de um caldinho {melting pot} foi substituída por um modelo que é mais apropriado aos novos tempos, o da caldeirada menudo. De acordo com este modelo, a maioria dos ingredientes derrete mas alguns pedaços teimosos são condenados a simplesmente flutuar. (GOMEZ-PEÑA apud BHABHA, 1998, pp. 301 e 302).

Neste corpo-língua menor, portanto, alguns pedaços teimosos "flutuam como elementos incomensuráveis, intraduzíveis, como os reversos, torções, refreios das respostas locais sofridas pela globalização em sua "inequívoca tendência homogeneizante" (ANJOS, 2010, p. 113). Dessa forma, aparecem agenciados nesse corpo-língua menor, e ainda nessa cena menor da performance de Iara Sales, referências visuais e afetivas que configuram pedaços teimosos, tais como nego bom, revolver d'água carnavalesco, água de coco, havaianas, purpurina, a preguiça macunaímica ("Ai que preguiça"), estereótipos, orientalismos, carnavais, no campo, na cidade, games, cavalo-marinho, maracatu, mateus, bastião, moído, samba, pagode, corpo ébrio, tiroteio, bebum, batida de goiaba, etc. E, dessa forma, esse corpo, ao mesmo tempo em que é 45 desterritorializado, híbrido , é um corpo que mantém os seus pedaços teimosos, sua intradutibilidade, o que Édouard Glissant chama de "direito à opacidade" (GLISSANT, 2005, p. 86). Desde seu nome, é do incomensurável que Peba trata. Além do nego bom, vários outros são os pedaços teimosos, entre imagens e ações, tais como cabeça/máscara da

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Brincadeira comum em festividades no Brasil, através da qual se sorteiam brindes (muitas vezes, balas, chocolates, etc.) arremessando-os aos participantes, que disputam entre si para alcançar tais brindes. 44 Nego bom é um doce típico de Pernambuco, preparado à base de banana, açúcar e limão. 45 Peba, além de algo chulo, é também a junção das siglas de Pernambuco e Bahia, estados evocados pela performer. 360


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la ursa , beber água de coco, cair como mateus e bastião, calçar havaianas, tomar e oferecer batida de goiaba e promover uma espacialidade de terreiro aos espectadores, com direito a constante deslocamento no espaço e à invasão de suas cinesferas.

Tonlin Cheng, músico e performer de Peba, servindo batida. Foto: Lara Perl/Labfoto | VIVADANÇA 2015

Pedaços teimosos, que mantêm seu "direito à opacidade" (GLISSANT, 2005), também são (para além dos hábitos e imagens culturais incomensuráveis nesse corpo-língua menor) as estrangeiridades que se forjam em meio ao que se constrói no próprio jogo da cena.

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Definição de La Ursa: "brincadeira do carnaval de Pernambuco, que tem origem em antigos costumes trazidos ao Brasil pelos imigrantes italianos". Disponível em: < http://laursa.com/a-laursa/>. Acesso em: 7 jul. 2016. 361


Iara Sales em Peba. Foto: Lara Perl/Labfoto | VIVADANÇA 2015 Com um pano meio rasgado, gambiarra, arquitetado com uns sons que parecem vir do oriente, uma burca surge, como uma fantasia precária, que dá a ver (ou a imaginar) uma ironia "orientalista", com camadas de contradições nas opressões de gênero, sobre desejos mal abafados, mal contidos, da carne gustativa e sexual feminina e que explodem, em seguida, na violência carnavalizada por revólveres de disparar água.

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Iara Sales em Peba. Foto: Lara Perl/Labfoto | VIVADANÇA 2015 Trata-se de render o espectador, desabituá-lo, de/com seus clichês, e ser rendido, misturar-se, expandindo a cena para além do que nela (bem como no cotidiano) é interdito, através da carnavalização da relação também entre corpos - do público e dos performers. A gambiarra e o precário, sem celebração à pobreza As muitas pontes de Peba também se fundam na potência da precariedade e da gambiarra, estética, conceitual, linguística, semântica, política. Vale a ressalva de Fabião (2011) de que não se trata de um elogio à precariedade como falta de recurso. Ou, ainda, a problematização do termo e das práticas que ele define, feita por Anjos (2010), quando alerta para o cuidado de não exaltarmos a gambiarra ao ponto de isso igualar-se a uma exaltação de um "cosmopolitismo do pobre": Acercar-se do termo gambiarra de uma maneira menos celebratória de suas formas ou, alternativamente, de sua alegada potência crítica, não esvazia, entretanto, sua capacidade de esclarecer o que distinguiria a produção simbólica feita em um lugar dentre tantas outras geradas em sítios distantes. Para tanto, porém, é preciso entendê-la, sobretudo, como metáfora de processos de transculturação realizados sob condições específicas de subordinação, em que elementos comumente pensados como apartados - quer no campo restrito da história da arte, quer no campo mais largo da cultura - são aproximados e atados a partir de um ponto de vista singular. (ANJOS, 2010, p. 123).

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É, portanto, a singularidade de um corpo-língua menor que interessa a Peba evocar através do uso da gambiarra. O que faz esse corpo-língua menor de Peba não separarse do que ele pode é o fato de ele por em xeque o universal generalizante, de desestabilizar "mecânicas comportamentais, rotinas cognitivas e hábitos de valoração, porque desfixam sentido e desmontam convenções", e, ainda, o fato de inventar "novos corpos, possibilidades de encontros, agrupamentos e devires" (FABIÃO, 2011, p. 66). A arquitetura sonora, a iluminação, figurino "peba" (precários), com direito à já mencionada fantasia precária, espaço precário e precarizado em sua ocupação, falas crioulizadas, em que só se entendem pequenas modulações de sotaque, etc., são invenções que dissolvem linhas abissais (SANTOS, 2008) entre centro e periferia, ocidente e oriente, popular e massivo, popular e erudito, tradição e contemporaneidade. Dessa forma, através do precário e da gambiarra, Peba potencializa seu corpo-língua torto e rijo, familiar e estrangeiro, singular e cosmopolita (ANJOS, 2010, p. 120). A gambiarra e o precário não são celebrados, mas marcam lugares de opacidade, de intradutibilidade, como metáfora das fricções culturais, como opacas e inconclusas, em que os pedaços teimosos constituem a inscrição de "incorreções" salutares para a heterogeneidade que previne modos únicos de entender a vida e as culturas. Modos singulares, através dos pedaços teimosos que se dão a ver, estão arquitetados, agenciados, des(localizado)s em Peba, e não importa de que posição se olha para seu jogo performático. Literal e corporalmente, lá, em seu espaço múltiplo e precário; corporal e literalmente, aqui, de onde poderíamos acessar Peba por muitos buracos, brechas. Tem muito a ver-se por esse desmanche que Peba performa, dança, 47 arquiteta . Com o presente de Peba, o passado de afirmações épicas de identidades populares, entre outras, têm muito a aprender, e o espectador, muito a mover.

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O trabalho se define como dança, performance e arquitetura sonora ao mesmo tempo.

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Iara Sales em Peba. Foto: Lara Perl/Labfoto | VIVADANÇA 2015 Pedaços inconclusos

Peba não indica uma substituição, na cena do Recife, do paradigma do universal pelo paradigma do singular, numa compreensão de evolução da dança/performance como progresso. Com a ideia de um contemporâneo-concomitante (BARTHES apud LOUPPE, 2007), muitos extratos históricos entre dança e performances, com compreensões muito distintas, coexistem. Entretanto, aponta para a expansão de um espaço para formas incessantemente novas de agenciar os pedaços teimosos da cultura sem ser necessariamente através de discursos nacionalistas ou, por outro lado, universalizantes. O corpo-língua menor torna-se, sim, mais frequente na performance e na dança no Recife, e isso indica que o corpo reinvindica para si outras narrativas menos universalizantes. Nessas outras narrativas para dizer um corpo desterritorializado, léxicos e visualidades agenciam uma corporeidade singular, e o papel da gambiarra e do precário é acentuar as práticas, os espaços e as alternativas pelas quais essas singularidades se afirmam e se movem. Um corpo que aprende a ser/mover-se em meio ao precário e à gambiarra não se exalta enquanto dificuldade, falta de outras condições, mas afirma o que pode na singularidade, fazendo pensar sobre si, entendo-se como inconcluso, híbrido, transitório, e insujeito à universalidade.

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Referências ANJOS, Moacir dos. Arte menor, gambiarra e sotaque. In: FIALHO, Ana Letícia et al. Depois do muro. Coleção Estudos da cultura. Série encontros, v. II. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2010. pp. 111-128. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMg, 2003. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. 7.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. FABIÃO, Eleonora. Performance e precariedade. In: OLIVEIRA JUNIOR (org.). A performance ensaiada: ensaios sobre performance contemporânea. Fortaleza: Expressão, 2011. pp. 63-85. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartinieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002. GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJf, 2005. LOUPPE, Laurence. Poétique de la danse contemporaine: la suite. Bruxelles: Contredanse, 2007. PEBA. Blog. Disponível em: < http://projetopeba.blogspot.com.br/p/blog-page.html>. Acesso em: 7 jul. 2016. MILLER, Toby, YÚDICE, George. Politica cultural. Barcelona: Gedisa, 2004. SANTOS, Laymert Garcia. Como a arte global transforma a arte étnica. In: FIALHO, Ana Letícia et al. Depois do muro. Coleção Estudos da cultura. Série encontros, v. II. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana, 2010. pp. 11-46. SANTOS, B. de S. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, 2008. Pp. 3-46. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros>. Acesso em: 28 junho de 2016. Roberta Ramos Marques Professora doutora do Curso de Dança da UFPE e do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – UFPB/UFPE; pesquisadora do Acervo RecorDança; membro do Conselho Editorial da Revista do PPGDança – UFBA; membro do Coletivo Lugar Comum. Autora do livro Deslocamentos Armoriais: reflexões sobre política, literatura e dança armoriais (2012); organizadora e autora no livro Acordes e Traçados Historiográficos: a dança no Recife (2016).

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ALTO NOVA OLINDA, DEUS DA ASSAS FAZ TEU VÔO: SALA DE ARTE COMO LUGAR DE ENGAJAMENTO Rodrigo Gomes da Silva / Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Este trabalho propõe reflexão sobre a docência como ação política no ensino de artes. Nesta lógica, mescla um referencial teórico artístico com as concepções pertinentes as problemáticas no campo da docência. No primeiro momento, convida o leitor a perceber o lecionar através dos impulsos que movem uma docência politizada. No segundo momento, executa um estudo sobre a política da arte no sentido de engajamento. Por fim, descreve uma experiência artística pedagógica no contexto de periferia. Nestas configurações, potencializa a docência em artes como prática engajada. PALAVRAS-CHAVE Ensino de arte; Política; Engajamento ABSTRACT This paper proposes political reflection on teaching in art education. Therefore, a connection is established between an artistic theoretical reference with the relevant concepts to the problematic situations in the field of teaching. At first, it invites the reader to perceive the teaching as a total experience through the impulses that move a politicized teaching. On the second point, it executes a study of the art policy of engagement. Finally, it describes an educational artistic experience in the outskirts of context. In these settings, it enhances the teaching of arts and engaged practice. KEYWORDS Art Education; Policy; Engagement

Por uma docência artística política Existe um ditado francês que diz: se você não se encarregar da política, a política se encarregará de você. A arte é imprescindível na educação se quisermos uma geração de seres pensantes (BARBOSA, 2012). Neste sentido, ser pensante, é o indivíduo que busca a compreensão da realidade, entendendo-se como amigo do saber filo-sophos. Por ser pensante, está disposto a proferir sua noção de realidade. Nesta postura reflexiva, indigna-se perante as decisões sobre sua polis. A arte seria então um prérequisito para o ser educado, pensante e político? Talvez seja por que o potencial político da arte estaria nela mesma, absolutamente autônoma perante as relações sociais. A arte protesta contra essas relações na medida em que transcende. Nesta transcendência, rompe com a consciência dominante, revoluciona a experiência (MARCUSE, 1977). Na revolução da experiência, a arte se torna parte do mundo contemporâneo. No mundo contemporâneo, as noções de sujeito, de indivíduo, de identidade, de unidade

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estão visivelmente em crise e é possível mapear vários pontos e épocas diversas o prenúncio dessa crise que não começa agora, já que estava em gestação no século XIX e hoje tornou-se, em alguns casos, parte do senso comum (COCCHIARALE, 2011). Logo, qual seria parte correspondente e a contribuição da revolução própria da arte nos sujeitos modernos? Visto que, temos que responder a seguinte pergunta de se o acesso à maior variedade de bens, facilitado pelos movimentos globalizadores, democratiza a capacidade de combiná-los e de desenvolver uma multiculturalidade criativa (CANCLINI, 1989). Neste processo de hibridização, os sujeitos são bombardeados pela variedade de bens. Seria uma das funções do ensino de arte criar processos e possibilitar estudantes visualizar e viabilizar exercícios de mixagem e de desobediência tecnológica, promovendo reinvenções, rebeliões, refuncionalização e acumulação? Pois a ideia de que as nações modernas são, todas, híbridos culturais (HALL, 2001) é uma perspectiva que ganha cada vez mais força. O estudante, na condição de ser híbrido em formação estaria neste processo desenvolvendo sua multiculturalidade livre da influência dos discursos de alienação ideológica? A prática de docência em artes potencializa a reflexão sobre o espaço e o ser multicultural. O professor deve propor condições que permitam ao educando “assombrar-se de ser”. E para isso é preciso ter espaço (MACHADO, 1988). Neste sentido, o ensino de arte evoca o pensamento político como experimento criativo, através da feição das atividades que levam a enxergar além do imediatismo das imagens flutuantes, mas sim leva a entender o interior do próprio ser. Assim, o educando experimenta meios de ver e compartilhar significados a partir de sua percepção política, sua visão sobre o social de forma a questionar o que vê. Não se limitando a consumir imagens e descartá-las, mas potencializar o ato de leitura do seu cotidiano. Uma arte política engajada A intencionalidade política artística de uma prática pedagógica carrega consigo, instantaneamente, o potencial de engajamento dos membros. A expressão “arte engajada” foi levantada pelo crítico de arte jamaicano Edward Lucie-Smith. Segundo ele, a década de 70 nos Estados Unidos, pode ser considerada um período onde exposições deram ênfase aos grupos étnicos e raciais historicamente desfavorecidos. Os anos 70 destacaram-se por o aparecimento de exposições com temáticas negras e africanas. Os anos 80 e 90 destacaram-se pelos trabalhos de discurso feminista. A próxima parte deste texto irá relatar uma experiência artística pedagógica no contexto de periferia. A vivência é resultante do pensamento político na poética pedagógica de um professor de artes visuais. Prática de docência engajada, criando arte engajada numa escola de periferia na cidade de Olinda em Pernambuco. A vivência: Alto Nova Olinda: Deus dá asas, faz teu voo Era dezembro de 2014 quando a prefeitura de Olinda convocava uma nova remessa de professores. Os classificados da seleção simplificada para novos contratos. Após exame médico e documentos em mãos, todos os professores foram destinados às

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escolas onde iriam lecionar a partir de então. Um único professor de Artes, chamado Rodrigo Gomes da Silva, estava no grupo. A maioria dos professores era das disciplinas de matemática e de língua portuguesa. O professor de Artes foi enviado para a escola Alberto Torres no Alto da Conquista. Esse bairro fica nos limites da cidade de Olinda, um lugar que pode ser considerado até rural, pois ainda preserva mata atlântica e é pouco habitável. Nesta escola o professor substituiria a professora de artes. Ela estava passando por problemas de saúde. Dezembro de 2014 passou e o professor foi realocado em janeiro do ano seguinte. Passado o recesso de Janeiro, no início 2015 o professor Rodrigo foi chamado novamente pela secretaria de educação. Nesta ocasião, foi informado de seu novo local de trabalho, a escola Elpídio França no Alto Nova Olinda. Ele iria lecionar duas disciplinas: arte e religião. Apesar de ser uma prática maléfica, no contexto da cidade de Olinda, os contratados lecionam em mais de uma disciplina. Essa nova escola ficava no morro ao lado da antiga escola que ele lecionava. Na periferia de Olinda, grande parte das unidades de ensino ficam nos morros. São vários, um ao lado do outro, por exemplo: Alto José Bonifácio, Mirueira, Alto da Bondade, etc. São lugares de difícil acesso, onde o transporte público é limitado, e por vezes nem chega próximo das escolas. O Alto Nova Olinda é mais um destes.

Figura 1 - vista da zona norte do Recife a partir do ponto mais elevado do Alto Nova Olinda. Fonte: Portfólio do professor.

Como chegar ao Alto Nova Olinda Para chegar no Alto nova Olinda, o professor enfrentava uma verdadeira odisseia. Nenhum transporte público do centro da cidade atendia ao bairro. Nem a ele, nem a todos os outros a seu redor. As linhas que atendiam a estes eram integralizadas ao terminal integralizado do Xambá, no bairro de Beberibe. Logo, quem quisesse ir do centro para os morros, deveria pegar um ônibus e fazer baldeação no terminal. Lá as

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linhas demoravam muito a chegar e subir o Alto a pé, era uma alternativa fora de cogitação. O pico do morro é muito alto, mais ou menos 3 minutos de subida em linha reta, quando se vai de ônibus. De lá de cima a vista é magnífica. Boa parte da cidade de Olinda e Recife pode ser vista. O primeiro contato A escola Elpídio França fica em uma rua que só se tem acesso através de um beco. Muito escondida, nos limites da comunidade, essa escola tinha acabado de ser municipalizada. Antes pertencia ao governo do estado. Pequena, poucas salas e poucos alunos. Tinha quatro turmas era o total no turno da tarde em 2015. Turmas com no máximo 15 estudantes. Quando o professor Rodrigo entrou na escola pediu para dar uma palavra com a diretora. Descobriu que a diretora estava de licença por conta de uma depressão, quem o atendeu foi a vice-diretora. Ela o deixou ciente das condições da escola e da comunidade. Também o informou sobre a precariedade de material pedagógico e da dificuldade que isso significaria para disciplina de arte. No dia seguinte, o professor entraria pela primeira vez nas salas de aula, sem nenhum tipo de material além do seu próprio corpo. Antes de acabar o encontro, a vicediretora o esclareceu sobre os horários e turmas que ele iria lecionar. O Alto Nova Olinda No alto, as ruas são bastante estreitas, às vezes uma única via para subir e para descer o morro. Poucas são calçadas, a maioria ainda está no barro. A comunidade é repleta de vielas, becos e escadarias como um labirinto. Luz e água encanada chegam até lá, mas não atendem as casas mais distantes mata dentro. A comunidade se concentra no pico do morro, ao redor dele é vestígio de mata atlântica. A escola fica no topo, no limite entre a mata e a comunidade, por trás é a mata e pela parte frontal ficam as residências. As residências são muito humildes. Casas e barracos, uns de marcenaria e outras de alvenaria. Casas frágeis, a maioria delas sem reboco, quando possuíam, eram pintadas a cal. Casas coladas umas nas outras, cobertas com telhas diferentes. Muito comum era ver uma única residência com vários tipos de telha, algo tipicamente improvisado. Poucas janelas nas paredes, chão de cimento queimado. Roupas a secar ao sol do meio dia. O esgoto correndo ao ar livre, exposto no meio da rua ou dos becos, com plantas crescendo ao redor. Esgoto que se misturava com o lixo amontoado. Ao lado da escola um terreno baldio era repleto de lixo. Residências sem calçadas e sem muros. Quando chegavam a ter muros, eram feitos de galhos secos. Animais desnutridos, cachorros e gatos aos montes vagando pelos becos. Ao meio dia as ruas eram vazias. O calor do sol fazia com que as pessoas se escondessem dentro das casas. Mas quando marcava dezoito horas, o Alto Nova Olinda acordava. A maioria das pessoas estariam voltando dos trabalhos, outras indo para igreja e algumas ouvindo música. A rua principal ficava abarrotada de gente, indo e vindo da padaria, da quitanda, da barraca de batata frita na esquina. A comunidade é repleta de igrejas. Desde as mais tradicionais, aos pequenos cultos realizados nos quintais e nas garagens. Pessoas muito humildes, senhoras andando com os cachorros, meninas adolescentes seminuas, homens sem camisas, pessoas desnutridas ou obesas de corpos tatuados e cabelos coloridos. As roupas eram curtas e brilhosas. Muito comuns eram as malhas coloridas e os jeans.

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A primeira aula O professor iria dar aula para todas as quatro turmas do fundamental dois no turno da tarde. Durante a noite ficaria com EJAs quatro e cinco. A escola só possuía o fundamental dois pela tarde, durante o período da manhã oferecia fundamental um, e a noite EJAs – Educação de Jovens e Adultos. A primeira aula ocorreu durante a tarde na turma do nono ano. Entrando na sala o professor foi iniciado aos alunos pela diretora. Ele se apresentou e pediu que os alunos também se apresentassem. O professor Rodrigo deixou claro que lecionaria além da disciplina de arte, também a de religião. Muitos deles nem “deram bola”, uns poucos, poucos mesmo, ficaram entusiasmados. A maioria não se dava conta da importância e da presença do professor em sala. Sem recursos pedagógicos, o professor percebeu que muitos alunos possuíam apenas o lápis, a caneta e o caderno de matéria. Era fevereiro e não tinham comprado material novo para reiniciar os estudos, utilizando cadernos de anos passados, isso era desestimulante. Lápis de cor e hidrocor era uma raridade. Perante isso o professor pediu que destacassem uma folha do caderno de matéria. Dois garotos reclamaram, afirmaram estar gastando folha em vão. Para eles, o caderno deveria render o máximo possível, e a extração de folhas era visto como algo negativo. Rodrigo informou que iriam fazer Origamis, e que precisariam de papel. Eles nem sabiam o que significava a arte do origami. Alguns se negaram a fazer, mas o professor sabia que era a única atividade a ser proposta naquela condição. Neste dia, eles aprenderam a fazer uma flor de lótus. A escola O prédio era bem antigo, com leves alterações. A vice-diretora sempre destacou que o local passava por reformas constantes, mas os próprios estudantes não ajudavam a conservar o espaço. As paredes estavam sempre riscadas e as carteiras com encostos arrancados. As salas possuíam grandes armários de ferro, eles estavam muitos velhos e depredados. Os ventiladores não funcionavam. Quando faltava água o banheiro era um caos, apesar da determinação dos funcionários em o manter limpo. A sala de professores tinha crateras nas paredes, buracos do reboco caído. A escola inteira era no chão de cimento. Quando chovia ficava impraticável a continuidade das atividades, as goteiras das telhas quebradas inundavam todas as salas. Quando fazia sol, o calor chegava aos 35 graus lá dentro.

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Figura 2 - interior de sala de aula da escola Elpídio França. Fonte: Portfólio do professor.

Os estudantes A ordem não fazia parte do sistema deles. Eram jovens muito carentes. Carentes de afetividade e de materialidade. Histórias de vidas marcadas por verdadeiras tragédias, descasos e muita necessidade. Casos assustadores que foram sendo revelados aos poucos no contato diário. Jovens sem família, alguns eram filhos de criação, viviam jogados a sorte ou ao azar. Eram seres sem normas a seguir. Alguns estudantes andavam sem os uniformes. Alguns estavam lá só pela merenda das 15:30. Outros passavam o dia inteiro na escola para poder comer nos três horários. Conversando com os outros professores o professor Rodrigo foi descobrindo como funcionavam as coisas naquele lugar. Professores eram protegidos da comunidade. Quem se atrevesse a incomodar ou roubá-los seria penalizado pela própria comunidade. Ocorreu um caso de um garoto que roubou a bolsa da professora. Este jovem sofreu agressões na frente da escola. As pessoas faziam justiça como as próprias mãos. A arte e a religiosidade O professor foi tendo todo cuidado ao trabalhar a religião. Pois ela é um elemento de potência no Alto Nova Olinda. A comunidade evangélica é maioria. Apesar de não ter estudado teologia, o professor trabalhou a espiritualidade dos jovens a partir da feição dos origamis. Cada aula era um origami diferente. Tanto na aula de artes como na de religião eram feitos origamis. Da atividade plástica realizada, brotavam as discussões sobre arte e espiritualidade. Se a dobradura fosse um peixe, era debatido o significado do peixe para a vida e para as diversas religiões. Se a dobradura do dia fosse uma casa, o mesmo ocorria. E assim repetiu-se com outras dobraduras criadas. Durante o feriado de São João, eles fizeram balões de origamis. Esses balões cobriram toda a escola colorindo os espaços externos. Nesta ocasião foi lembrado que as festas juninas são de origem religiosa. No dia em que fizeram uma flor de lótus, foi recordado que esta espécie de flor é usada no oriente com signo religioso.

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Os origamis No decorrer do ano de 2015 foram trabalhados mais de 50 tipos diferentes de origamis. Dos mais simples aos mais complexos. Logo no início do ano, Rodrigo pediu aos alunos que abrissem uma matéria para a disciplina de artes em seus cadernos. O objetivo era colar todos os origamis criados durante as aulas de artes e religião. Através da técnica de Origami eles criaram as mais diversas formas, entre elas: animais, casas, meios de transporte, vestuário, brinquedos, etc. De início usavam apenas a folha do caderno para dobrar e caneta para ornamentação. Por volta do mês de maio, o material escolar oferecido pela prefeitura chegou na unidade de ensino. Cada aluno recebeu uma mochila com materiais e novos fardamentos. Os professores também ganharam um material em conformidade com suas necessidades. Com isso os trabalhos ganharam riqueza, passaram a ser feitos em papel ofício, a serem pintados com tinha guache e cobertos com hidrocor. Também chegaram folhas de cartolina grande, possibilitando a feição das dobraduras em maior dimensão. Além disso, o professor levava para sala de aula, materiais que deveriam ser compartilhados com todo o grupo, na intenção de realizar da melhor maneira o trabalho de todos. O professor criou diversas aulas teóricas e expositivas sobre artistas que expressão suas poéticas através do uso de papel.

Figura 3 - morcego em origami feito por estudante do nono ano. Fonte: Portfólio do professor.

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Figura 4 - dois elefantes em origami feito por estudante do sexto ano. Fonte: Portfólio do professor.

Figura 5 - Vestido em origami feito por estudante do oitavo ano. Fonte: Portfólio do professor.

O furto: medo aterroriza a todos Em setembro de 2015 a escola foi furtada. O ocorrido aconteceu durante a madrugada. Os ladrões entraram pelo telhado da sala de professores e conseguiram levar um computador portátil e a antena roteador de wifi. Pela manhã todos estavam sabendo do arrombamento. Alguém da comunidade ligou para polícia. Chamaram também uma rede de TV para cobrir e transmitir o caso em TV pública. A polícia subiu o morro e iniciou as investigações. No dia seguinte descobriram os autores, dois exalunos da unidade de ensino. Na tarde que antecedeu o arrombamento, eles estavam visitando a escola. A polícia conseguiu captura-los após buscas dentro da comunidade. Eles foram levados para a FUNASE – Fundação de atendimento sócio educativo.

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Após o ocorrido algumas pessoas da comunidade condenaram a escola. Afirmando que a direção e os professores chamaram a mídia e a polícia para prender os jovens. O telefone da unidade de ensino recebeu ligações de pessoas não identificadas ameaçando por fim a vida de todos os funcionários. O medo ocupou o lugar. Aulas foram canceladas, as atividades do período noturno foram paralisadas. Durante a tarde todas as grades ficavam fechadas. Nos fins de expediente, os funcionários saiam juntos. A polícia foi chamada novamente para resguardar a vida dos funcionários da escola. As luzes dos corredores externos foram estouradas durante invasões noturnas. O clima de tensão e horror dominava o lugar. Um grupo de professores foi até a prefeitura cobrar do secretário de educação segurança e o concerto do patrimônio destruído. Após a mobilização, mesmo lentamente, várias reformas iniciaram. Os armários foram trocados, os ventiladores foram consertados, colocaram lâmpadas nos corredores, desamassaram as grades das portas, limparam e trocaram telhas no teto. A vice-diretora pressionava a secretaria de educação constantemente. Arte para paz Neste contexto a aula de artes ganhou uma nova configuração. Diante daquela atmosfera o trabalho com origamis passou a ser pensado como um pacificador social. Com isso, surgiu a ideia do professor e alunos do nono ano, criarem seus origamis no sentido de ofertar ao ex-aluno infrator que se encontrava aprisionado. Desta forma, desconstruir a rotulo de vilã que a escola adquiriu da comunidade. E ao mesmo tempo, amenizar o julgamento que caía sobre os jovens assaltantes. Visto que, os alunos da escola passaram a demonizar os dois meninos. Assim, o professor e os estudantes iniciaram a criação de vários origamis em cartolina. Estas dobraduras, em maior dimensão, representavam a paz e a liberdade. Os jovens escolheram criar formas diversas, dobrando no papel o formato de uma concha, de um pássaro, de um leque, de uma borboleta e de flores tulipas. Optaram por deixar algumas das dobraduras em branco e outras pintaram colorido. Tiveram a ideia de explorar o espaço físico aos arredores da escola. O Professor Rodrigo de artes, juntamente ao professor Júlio Cezar de geografia e todos os alunos envolvidos na proposta, entraram na mata por trás. Com os origamis em mãos, fizeram uma trilha dentro da mata atlântica fotografando os origamis na natureza circundante. As fotografias iriam resultar numa exposição fotográfica que foi realizada em 2016.

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Figura 6 - Aula campo, entrando na mata atlântica para ensaio fotográfico com origamis. Fonte: Portfólio do professor.

A exposição Passado o recesso de Janeiro, no início de 2016. Os estudantes e o professor Rodrigo criaram dois grandes murais com as fotografias impressas e alguns origamis. Estes murais ficaram expostos no pátio da escola durante o mês de fevereiro. Eles foram assinados pelo grupo de alunos e prestigiados por toda a comunidade escolar e externa. Também foi editado um vídeo com as fotografias. Esse vídeo foi exibido e discutido em sala de aula. Os alunos atribuíram um nome à exposição, que terminou sendo chamada por: Alto Nova Olinda – Deus dá asas faz teu voo. Este nome propõe agregar ao nome da comunidade um trecho da música Conquistando o impossível de reconhecida cantora gospel. Música que eles sempre cantavam quando estavam em momento de criação plástica.

Figura 7 - Estudantes montando exposição Alto Nova Olinda: Deus da assas faz teu voo no pátio. Fonte: Portfólio do professor.

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O professor Rodrigo procurou saber sobre os jovens aprisionados. Queria lhe dar os origamis. Mas, segundo a guarda da escola, eles já estavam em liberdade. O professor ainda entrou em contato com algumas pessoas da comunidade, informando que queria ver o jovem. No entanto, o silêncio era a única resposta. A peregrinação performática Em março de 2016 os jovens estudantes e o professor saíram em peregrinação pela comunidade. Visitando, casa por casa, eles “plantaram” nas residências as flores tulipas de origami. Ocuparam lares ainda em construção, entregando as flores aos pedreiros. Adentraram em um reduto de viciados, e os presentearam com um ramo das flores. Os estudantes saudaram as casas de suas famílias, e lá deixaram mais flores brancas de origami. Entraram em um salão de beleza. A manicure achou o ato tão poético, que resolveu gravar um vídeo para postar nas redes sociais. Eles foram até na venda da esquina, entregaram flores aos alcoólatras e ainda abordaram pessoas que circulavam nas ruas ofertando as dobraduras.

Figura 8 - flores de origamis entregues a comunidade Fonte: Portfólio do professor.

Os moradores da comunidade receberam muito bem os alunos. Não existiram resistências em abrir as portas. Na rua, na tentativa de descobrir o que se passava naquela movimentação, olhares curiosos eram lançados pelos moradores sobre a ação. Os estudantes ficaram inibidos quando entregaram as flores na “casa dos viciados”. Esta casa fica no centro da comunidade. Não é uma casa de apoio. É sim uma residência como todas as outras. Porém, todos os moradores de lá são vistos como marginais pela comunidade. O professor Rodrigo encorajou os estudantes e eles consumaram a entrega das flores.

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Figura 9 - Moradoras da comunidade com flor de origami em mãos. Fonte: Portfólio do professor.

No retorno para escola, estavam todos felizes. Durante aquela noite o Alto Nova Olinda dormiria em paz. Em cada casa, em cada comércio, em cada canto a paz esteve presente através da arte plantada. E lá da periferia, lá do ponto mais alto da cidade, o amor pode voar e fertilizar todo lugar. No ponto mais Alto As atividades ocorridas no Alto Nova Olinda se configuram como ações de engajamento, efetuadas tanto por parte do docente como por parte dos estudantes. Elas dão ênfase a um contexto social negligenciado pelo poder público, fazendo com que as atenções se voltem aquele lugar e o consolide como centro criativo, expressivo, vivo, espiritual e artístico. A prática pedagógica ganha um sabor derivado do próprio tempero das ocorrências. O trabalho no contexto de comunidades carentes levam educadores e educadoras a refletirem sobre a experiência de suas docências. Em um de seus livros, Paulo Freire descreve uma visita que que fez a uma favela da cidade de Olinda, como mostra o texto a seguir: Tive recentemente em Olinda, numa manhã como só os trópicos conhecem, entre chuvosa e ensolarada, uma conversa, que diria exemplar, com um jovem educador popular que, a cada instante, a cada palavra, a cada reflexão, revelava a coerência com que vive sua opção democrática e popular. Caminhávamos, Danilson Pinto e eu, com alma aberta ao mundo, curiosos, receptivos, pelas trilhas de uma favela onde cedo se aprende que só a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase ausência – ou negação -, com carência, com ameaça, com desespero, com ofensa e dor. Enquanto andávamos pelas ruas daquele mundo maltratado

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e ofendido eu ia me lembrando de experiências de minha juventude em outras favelas de Olinda. Ou do Recife, dos meus diálogos com favelados e faveladas de alma rasgada. Tropeçando na dor humana, nós nos perguntávamos em torno de um semnúmero de problemas. Que fazer, enquanto educadores, trabalhando num contexto assim? Há mesmo o que fazer? Como fazer o que fazer? Que precisamos nós, os chamados educadores, saber para viabilizar até mesmo os nossos primeiros encontros com mulheres, homens e crianças que cuja humanidade vem sendo negada e traída, cuja existência vem sendo esmagada? (FREIRE, 2015, p. 72)

Os questionamentos que moveram Paulo Freire foram os mesmos que moveram professor Rodrigo a buscar experiências engajadas com seus estudantes em Olinda. O cenário vivenciado por Freire não é divergente do encontrado no Alto Nova Olinda. É o mesmo, transportado para o século XXI. As vivências das atividades de origamis provam que é possível sim fazer algo, concretizar sonhos, realizar metamorfoses, provar o doce da vida e jamais perder a esperança.

Referências BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2012. CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. COCCHIARALE, Fernando. Quem tem medo de arte contemporânea? Recife: Massangana, 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. RJ: Paz e terra, 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. LUCIE-SMITH, Edward. Os movimentos a partir de 1945. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MACHADO, Regina. AHC ED ASAC: Uma reflexão da arte no magistério, Manuscrito, 1988. MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Trad. Maria Elisabete Costa. Portugal: Edições 70, 1977. RICHTER, Ivone Mendes. Interculturalidade Estética do Cotidiano no Ensino das Artes Visuais. Campinas: Mercado das letras, 2003.

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Rodrigo Gomes da Silva Mestrando do PPGAV UFPE/UFPB – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco e da Paraíba. Graduado pela UFPE – Universidade Federal de Pernambuco na licenciatura em Artes plásticas. Atua como professor de artes na rede particular da cidade do Recife. Email: Rodrigoartes@hotmail.com

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O ARTISTA, A ARTE, SEUS CAMINHOS E FUNÇÕES Suzana Maranhão de Azevedo Mello/ Universidade Federal de Santa Maria RESUMO O artista, sua trajetória na construção de uma obra e a estrutura da cadeia de ritos que pertencem ao campo de trabalho artístico. Isso é o que referendo neste artigo na intenção de discutir o assunto ordenando o meu pensamento sobre o processo do trabalho que desenvolvi nos últimos dois anos. Falo sobre os dois últimos volumes do Almanaque do Tempo Comum – ATC: O Rei está Nu e sua Rainha tece Rendas e Sala de (Re)Trato. PALAVRAS-CHAVE Ação mediadora. Arte. Artista. Conceito. Processo ABSTRACT The artist, her trajectory on the construction of a piece and the structure of the chain of habits that belong to the artistic field of work. This is what is endorsed in this paper, in an attempt of discussing the subject while ordering thoughts on the work that was developed over the past 2 years. The paper analyzes the last two volumes of the Almanaque do Tempo Comum - ATC: "O Rei está Nu e sua Rainha tece Rendas" and "Sala de (Re)Trato". KEYWORDS Mediation. Art. Artist. Concept. Process

A pirâmide O discurso, o fazer artístico e a pesquisa existem gravitando entre os trabalhadores da arte como uma pirâmide triangular, onde as várias intenções do movimento da ação artística, oriundas da função mediadora da arte, se agrupam em bloco descrevendo uma figura geométrica, tal qual uma pirâmide de três lados. Imaginemos o interior dessa pirâmide recheado com a função mediadora da arte como o núcleo duro dessas preocupações. Esse núcleo duro acelera o movimento de contaminação de dentro pra fora, para falar em sentido figurado. No entanto, essa pressão provoca os seguintes movimentos, de fora pra dentro, a saber: nos lados externos da figura geométrica que imagino, estariam o discurso ou conceito; o fazer artístico ou processo; a pesquisa ou busca pela legitimação. Na camada mediana, estariam as seguintes ações: a fruição da obra impulsionando a crítica, o fomento da cultura e o aparecimento do mercado. Para o núcleo duro, guardamos os movimentos originados pela função mediadora da arte entre nós com os três aspectos: a mediação cultural agindo na comunidade social; a motivação efetiva das mudanças sociais e a interligação das épocas passadas. Portanto, armazenada na memória e no acervo

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físico dos guardados, a época atual está na vigência da nossa ação e o prenúncio dos processos que ainda não estão sendo exercidos no presente. A Arte Ontem, Hoje e Sempre Com o movimento ritmado entre conceito, processo e busca pela legitimação, a pirâmide do trabalho artístico envolve a comunidade social com o fortalecimento da cultura trabalhando o interesse do público com a fruição e discussão da obra. Isso provoca o nascimento do mercado em torno do produto final já atestado, já aprovado e complementado pelo público e, portanto, já transformado em objeto de cobiça. Para considerar o complemento que aprofunda as três dimensões da pirâmide do movimento artístico, valorizamos também os três aspectos da função mediadora da arte, aqui chamados de núcleo duro. A saber, esses três aspectos, como já referendados acima, são a mediação cultural, a mediação da transformação social e a mediação entre as épocas. Esse último é o que interessa a este artigo, uma vez que o meu tema de interesse é o tempo. Mediando o tempo Nos últimos anos, em dois momentos, eu trouxe o tema que é o centro de interesse da minha produção, o “Almanaque do Tempo Comum (ATC)”, para uma relação de busca de complementação e legitimação junto ao público. Esta produção alberga uma pesquisa material e subjetiva. A manipulação do tempo pelo ATC traz um discurso multifacetado. Duas mostras foram especialmente importantes para normatizar essas preocupações. Em maio de 2014, no Museu do Estado de Pernambuco, apresentei uma (re)memoração de um tempo que existiu em meados do século passado. A mostra se chamou Impressões e o momento foi dividido com mais dois artistas amigos cada um com seus interesses, o que não está em discussão agora. Transcrevo um pouco do texto que construí para ocasião da Impressões, uma vez que essas palavras dizem do panorama discutido então. Os dados selecionados para fazer parte da mostra Impressões são: o linho velho que encontrei guardado em gavetas na casa dos meus pais, que se destinava a confeccionar roupas para uso do senhor, segundo o costume da época; madeiras articuladas em juntas de metal e uma lona pontilhada com ilhoses, desenhando a possibilidade de uso para uma cama transportável; ripas, de madeira muito leve articuladas e transpassadas, criando um plano retangular pequeno, que se transformam em um tamborete de fácil portabilidade, do tamanho de um notebook, rendas para adornar bordados e costuras em quantidade, que provavelmente se destinavam ao mister da dona da casa, cuja atividade preenchia de vida o ambiente doméstico. Ao mesmo tempo em que os artefatos de madeira sugerem a ideia de expansão desse ambiente, as rendas e os tecidos diluem o tempo em pontos e linhas no interior da casa (AZEVEDO, 2014).

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Imagem 1 - O triunvirato passado/presente/futuro não tem a conotação de segmentos separados.

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Imagem 2 - Foto aproximada das manchas no trabalho dos bastidores.

Então, como relato nas citações acima, a arte mostra sua força mediadora na cultura, ambiente físico e costumes de uma época, de um tempo específico. O jogo dos vários aspectos da vivência artística tem a propriedade de descrever tendências através dos tempos. A música, a dança, as artes cênicas e visuais, a literatura, descrevem épocas, estilos e os mais variados aspectos do viver humano. Na verdade, através da arte de maneira total, o homem deixa suas “impressões” no mundo desde o tempo das cavernas até o universo virtual da atualidade. Costumes mudam de geração em geração sem que o homem se canse de inovar o mesmo “velho” que um dia foi considerado “novo”. E, portanto, todas as coisas são novas e velhas ao mesmo tempo, considerando a abordagem de cada geração sobre um mesmo e sempre igual assunto. A pirâmide dos trabalhadores da arte se apresenta dinâmica e ao mesmo tempo compacta em suas propriedades como um bloco. O discurso, que é o chamado conceito, nasce no plano ideal e é transcrito imediatamente pela ebulição do fazer artístico que chamamos de processo de feitura 384


e resolução da obra. Com a obra acabada, tanto quanto possível, a ansiedade de legitimá-la cria uma busca por atestados, por uma crítica de qualidade, por confrontos e ainda por uma opinião de fora do âmbito do ateliê. Vale a pena considerar uma explicação para a designação de ateliê. Refiro-me aqui ao artista, a sua mente e a sua expressão corporal. A necessidade de ver fruída a obra é o tempo da ansiedade, é quando o artista inicia a pesquisa e o confronto dos dados que foram considerados por ele durante o processo. O artista então vive o espelhamento, procura-se no outro, sente-se inseguro e espalha um sentimento de dúvida advindo do processo... Compara o que concebeu com o resultado final e nessa hora a obra fala mais alto, torna-se autônoma. Então, nesse momento, define-se a resolução plástica e tanto quanto possível o trabalho é considerado a contento. Quando exposto ao público, o parto está terminado; instala-se o fomento cultural no entorno e a consequência seguinte é o mercado. O giro dessas etapas da pirâmide do trabalho artístico funde-se em modalidades da mediação, função primeira da arte. A arte media, portanto, uma aproximação social entre os indivíduos, uma cultura que espelha novas leituras de um mesmo grupo social, evoca tempos, épocas passadas ou, ainda, propõe-se a antever a chegada de mudanças e de novos tempos como uma premonição do devir. O momento atual Gestei, desde 2014, o novo momento de tornar a expor meu trabalho e tornar a verificar a minha teoria de retomar “velhos” momentos como se “novos” fossem. O trabalho que agora exponho na Galeria Arte Plural, no Bairro do Recife Antigo, vem intitulado como Sala de (RE)trato. Eu quis dizer que coisas que já existiam poderiam ter um novo trato e então trouxe da mostra Impressões o pano feito com os restos de renda da caixa da minha mãe. Separei essa mostra em três assuntos: as roupas, as imagens do processo impressas em cartões e até em papel de arroz ou acrílico e gravuras sobre LMais, que subvertem as funções das imagens das minhas avós, dos suportes e das molduras usados. Chego, portanto, a me sentir completamente envolvida pela ação da pirâmide do trabalho artístico que, desde o meu processo à crítica que curou a mostra Sala de (RE)trato, denuncia a emoção que está presente na mostra. Essa emoção de que falo e que mostro resgata a ação do artista como um trabalhador diferenciado, assim como diferenciado é o mercado desses produtos e a abordagem desses operários da mediação social. A mediação do tempo dentro de épocas me interessa. A mediação entre funções para o que descartamos para voltar ao uso me interessa. A investigação para o significado de novo e velho é também do meu interesse para investigar e sistematizar o que discuto aqui. Escrevi este artigo para melhor apreciar e deixar que este evento também siga o meu interesse.

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O vestido se move como uma vela ao vento. O tecido de cetim, ainda está integro, mas amarelado. Costumava ser branco como a neve. A renda, esgarçada, rompeu o compromisso o compromisso um dia firmado com a perfeição. O tempo faz isso: transforma tudo em outra coisa, às vezes tão outra coisa que a gente pensa que desapareceu. Mas, não, está lá. De outra forma, lá. (GUSMÃO, 2016).

Imagem 3 - Sala de (RE)trato

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Imagem 4 - Sala de (RE)trato

Imagem 5 - Sala de (RE)trato

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Imagem 6 - Sala de (RE)trato

Imagem 7 - Sala de (RE)trato

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Imagem 8 - Sala de (RE)trato

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Referências AZEVEDO, Suzana. O Rei está Nu e sua Rainha tece Rendas. Catálogo da Mostra Impressões. Recife: Museu do Estado de Pernambuco, MEPE, 2014. GUSMÃO, Flávia de. Catálogo da exposição Sala de (RE)trato. Galeria Arte Plural. Recife, 2016.

Suzana Maranhão de Azevedo Mello Licenciada em Educação Artística – Artes Plásticas pela Universidade Federal de Pernambuco, 2002. Mestra em Poéticas Visuais pela FSM – São Paulo, 2012. É membro efetivo da ANPAP. Ganhou o Prêmio Mulher Tacaruna (Recife, 2014) na categoria Cultura e Mostra Impressões, no MEPE. Desenvolve pesquisas em Poéticas Visuais. Mostra (RE) Trato em curso até 09/07/2016 na Galeria Arte Plural - Bairro do Recife.

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ENSAIOS VISUAIS


SEGUNDA NARUTEZA OU CORPO PRESENTE, NOSSA NATUREZA Alexandro Nepomuceno Targino Prof. Dr. José Augusto Costa de Almeida

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Esta é uma exposição imaginária. Imaginária como as veias da América Latina. Mas presente e transubstanciada em carne e sangue das obras expostas. Obras latinas, corpos latinos. A exposição pretende o dialogo da arte e a natureza, ou a representação desta pelo corpo. Aqui reside pois a afirmação desse corpo, sua presença no espaço, e no tempo, o perfeito casamento, pois segundo Goethe, a Arte não empreende uma disputa com a natureza, mas reconhece sua profundidade, a perfeição da proporção, o ápice da beleza, a dignidade do significado, a altura da paixão. (GOETHE, 2008). Podemos pensar a arte com a religião e a ciência compartilham um objetivo comum que é o controle da natureza imprevisível. O controle ou a tentativa deste na natureza interior/exterior, no corpo/espaço, se dá através de símbolos - manuseio da escultura, transformação do corpo, repetição de gestos, pinceladas, ecos, ruídos, um insano esforço por apaziguamento e destruição. O corpo, pois com suas limitações, suas fragilidades, suas potencialidades, seu poder de mudança, de moldagem, é esse corpo agora, a própria obra. A escultura/obra que antes feita em argila, pedra, bronze, agora é carne, músculo, osso. O sangue tinge a carne na película, uma sucessão de frames em que a carne é imagem e o corpo-objeto é esmiuçado, flagelado, contorcido, exposto, dissecado, venerado, mas também banido. Corpo que se apresenta a nós como a ponte tênue entre morte e vida. Lutamos para entender o que nos fascina na imagem de corpos acidentados, corpos mutilados, corpos-troféus ou cabeças degoladas em Angicos. Mas nos toca também ver o corpo primitivo ameaçado, o corpo divinizado medieval, o corpo humano (re)descoberto no Renascimento em que se antevia a metáfora do biônico, o corpo fragmentado, animalesco, estranho, performático do século XX, corpo contemporâneo modificado, travestido, na fronteira entre o real e o virtual; enquanto 48 esse corpo físico e humano existir é dele que iremos falar . Se a natureza é o mote, vale o espanto de como interagimos com a terra/mundo, no chão, na pele, na mente… Artistas: Theodor de Bry Javier Soriano Anônimo Rosângela Rennó Tania Bruguera Ana Mendieta Paulo Bruscky Artur Barrio

48 Pensamento do artista José Rufino, extraído de sua aula sobre processos criativos em artes visuais. UFPB, 2014. 394


Sons of Pindorama, Theodor de Bry, antes de 1562. DomĂ­nio Publico

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Che Guevara morto, 1967. Imagem: AFP/Javier Soriano

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Fotografia anônima – cabeças degoladas de Lampião e cangaceiros, 1938

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Rosângela Rennó – Atentado ao poder, 1992

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Tania Bruguera, El cuerpo del silencio, 1997-98 Foto: Marcos Castillo.

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Paulo Bruscky - Alimentação, 1978

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Ana Mendieta - sem título, 1973 Š The Estate of Ana Mendieta Collection

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Artur Barrio, Situação TE (Trouxas Ensanguentadas), 1970. Fotografia registro da ação por César Carneiro.

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Referências CAYSES, Julia Buenaventura Valencia de. Isto não é uma obra: Arte e ditadura. Estud. av., São Paulo , v. 28, n. 80, p. 115-128, Apr. 2014 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142014000100011&lng=en&nrm=iso>. acesso em 03 Jul. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142014000100011. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da américa Latina. tradução de Galeano de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, (estudos latino-americano, v.12) GOETHE, J. W. Escritos sobre arte. Introdução, tradução e notas de Marco Aurélio Werle. São Paulo, Associação Editorial Humanitas, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri, SP: Estação das Letras, 2007.

Alexandre Nepomuceno Targino – PPGAV/UFPE Mestrando no Programa Associado de Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco/Universidade Federal da Paraíba (2016), tendo como foco de interesse a pesquisa em curadoria. Atualmente é professor de História da Arte, no Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ/PB (cursos de Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo e Tecnologia em Design de Moda). José Augusto Costa de Almeida De nome artístico José Rufino, vive e trabalha em João Pessoa, Paraíba. Artista e escritor, é também professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba e do Mestrado em Artes Visuais das universidades federais da Paraíba e de Pernambuco.

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DO INSCONCIENTE AO CONCIENTE UM PROCESSO DE CONTEMPLAÇÃO VISUAL NO HOSPITAL ULYSSES PERNAMBUCANO Ariana Lima Nuala Reithler Pereira de Lima

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“Os passos são como as nuvens, vêm e vão.” Hamish Fulton Produzir um ensaio imagético vai além dos critérios acadêmicos, mas também de uma poiese dentro do Hospital Ulysses Pernambucano (HUP). Essa narrativa tem como experiência de travessia dentro de um lugar afetivo, visando que o hospital é uma edificação histórica na cidade do Recife e fica localizado em uma região bastante movimentada que a graduanda morou por 5 anos e ainda mora, o bairro da Tamarineira. Logo, partindo do principio que a cidade também é corpo, sendo este corpo espaço, busquei referências sobre o caminhar como prática artística e encontrei trabalhos como o de Richard Long em seu trabalho A Line Made by Walking, 1967, caminha em linha reta sobre um terreno simples e registra essa ação que, mesmo sem mostrar o corpo, só poderia ser feita com a presença deste. Visto que o corpo pode ser visto com presença e criando o sentido simbólico, traçado pela linha reta que o artista percorre, onde a própria linha já é forma, mas se completa a partir da força. A caminhada. Esse tipo de prática sobre o espaço no espaço, o objeto sobre o objeto, o sujeito sobre o sujeito a partir das autos-avaliações, provocou uma experiência de integração entre a paisagem e o corpo, completando então o sentido de ressignificação da vida. A prática inicialmente foi solitária, mas aos poucos tomou corpo com os transeuntes do lugar e principalmente os usuários do hospital. A metodologia de integração foi pensada buscando fundamentação nesse exercício nômade de deslocamento que tanto Lygia Clark, Lygia Pape, Helio Oiticica abrigam, como também Richard Long e Robert Smithson. Esse processo fez parte da disciplina de Estágio Obrigatório 3 em Artes Visuais, onde mergulhei no espaço hospitalar buscando a escuta entre os tantos diálogos que encontrei durante os três meses (abril, maio e junho de 2016) constantes no HUP sobre a supervisão de Bete Rocha, terapeuta ocupacional do espaço. A contemplação é um estado de olhar onde a consciência é nutrida, e assim possibilitando um respeito e um interesse pelos que transitam no ambiente. A narrativa mostra espaços vazios, mas que foram em algum momento um lugar de encontro e presença. Este processo foi acompanhado pela professora doutora Maria das Vitórias Negreiros do Amaral na disciplina de Estágio 3 e também como orientadora do projeto de Iniciação ao Trabalho Científico.

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O INCONSCIENTE

I A MOTIVAÇÃO

I

O MERGULHO

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A RELAÇÃO O DENTRO

I O FORA

I O ESTIGMA

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A ESCUTA

I A OBSERVAÇÃO

I O TEMPO

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O VAZIO

I O ESPAÇO

I A PRESENÇA

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A IMPERMANÊNCIA I A ÉTICA

I O TRABALHO

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A CONSCIÊNCIA

I A VIDA

I A ARTE I

A SAÚDE

Referências FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Vozes, 1991.

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JODOROWSKY, Alejandro. A Dança da Realidade: Psicomagia e Psicoxamanismo. São Paulo: Devir, 2009. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. BOURRIAUD, Nicolas. Formas de Vida: A Arte Moderna e a Invenção de Si. São Paulo: Martins, 2011. FERREIRA, Glória e CONTRIM, Cecília (orgs.). Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. CARERI, Francesco. Walkscapes: O Caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gill, 2013. LISBOA, Ana. Arte como Prece. Recife: Funcultura, 2012. BACHELARD, Gastón. A Poética do Espaço., trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins, 1884. RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010. FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,1979. CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Relâmpagos com claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida com arte. Imaginário, 2004. OLIVEIRA, Lúcia. Corpos Indisciplinados: Ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo: Beca, 2007. Ariana Nuala Estudante de Licenciatura em Artes Visuais - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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ARMADURA Bรกbara Collier

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Essas imagens, aqui apresentadas, fazem parte do registro de uma das três performances realizadas recentemente na exposição TRAMAÇÕES: CULTURA VISUAL, GÊNERO E SEXUALIDADES, oferecida no primeiro semestre de 2016 pela professora Luciana Borre aos estudantes de graduação e pós-graduação do curso de licenciatura em artes visuais da UFPE. Tendo em seu conteúdo programático estudos feministas, gênero, sexualidades, corpo e relações de poder, demarcadores sociais da diferença, tramações dos processos de pesquisar, ensinar e artistar. A metodologia propunha vivências poéticas que mesclavam trajetórias de vida e arte, imersões em leituras sobre cultura visual, gênero e sexualidades, protagonismo na produção de imagens e discussões sobre a construção social da experiência visual e seus impactos econômico, político, cultural, tecnológico e emocional. Dentro dessa proposta metodológica realizei três performances. Vestido Vermelho, Armadura e Gostosa. Armadura surge de uma reflexão recente e pessoal sobre a minha condição física de mulher, abusada e assediada escolhe de forma inconsciente se proteger sob de uma capa de gordura. E ao perceber o corpo envolvido nessa armadura de gordura tendo a certeza hoje que a culpa de assedio não está nela e sim no sistema de poder social vigente, busca deliberadamente a retirada dessa armadura, na busca de sua liberdade.

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Registro da performance Armadura. Foto: Leandro Pereira da Costa

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Registro da performance Armadura. Foto: Leandro Pereira da Costa

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Registro da performance Armadura. Foto: Leandro Pereira da Costa

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Bárbara Collier Artista plástica, mestranda em teoria da arte pela UFPE/UFPB e tem como poética artística questões que envolvem a performance, o corpo e o feminino. É especialista e economia da cultura e gestão cultural pela UFMG e licenciada em artes visuais pela UFPE. É também produtora cultural com diversos projetos culturais aprovados e executados.

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ISTO NÃO É UM DESENHO: DAS LINHAS RETAS À EMANCIPAÇÃO DO DESENHAR Flávia Maria de Brito Pedrosa

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Numa configuração de pesquisa doutoral em Arte/Educação (VASCONCELOS, 2015), pude construir entendimentos sobre o que significa pesquisar o Desenho desde a revisão da necessidade de representação e da dicotomia dentro do ambiente acadêmico das funções do artista e do professor. Indo além dos territórios demarcados e colonizadores do pensar/fazer Arte, pude construir um acervo de mais de 300 desenhos, onde a linha ia além do limite do Desenho idealizado e realista. Com Desenhos que utilizavam o arcabouço de imagens mentais e que coadunavam com momentos de inquietação dentre as questões investigativas, consegui realizar algumas exposições pontuais dessa caminhada de busca estética em eventos científicos na Europa e na Austrália e em algumas universidades europeias. Os Desenhos abaixo selecionados recontam momentos em que considero significativos enquanto perpassava por indagações fortes no ambiente da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em Portugal, momentos em que me foram entregues um contexto de necessidade de autoridade e legitimação que remonta a epistemologia das Academias italianas de Arte. Ao ultrapassar as linhas retas esperadas, confrontei também um olhar sobre a produção da mulher na universidade e as epistemologias que partem da América Latina, dialogando com a formação contínua de professores/artistas/pesquisadores. Com isso, recordo das pertinentes indagações de Brocos (1915) quando inferiu as fragilidades da Academia de Belas Artes, principalmente por dar espaço a apenas uma forma de ensinar e produzir Desenho. No que tange a produção da mulher artista, tanto Portugal quanto Brasil tem historicamente invisibilizados o papel feminino nas Artes Visuais. Reforço que no ambiente das universidades tem havido já na última década uma maior busca do romper dessas fronteiras, principalmente no âmbito brasileiro. Diante de meu olhar como mulher nordestina, professora universitária, artista e pesquisadora, enxergo os Desenhos abaixo agrupados como narrativas visuais que remetem à pesquisa em Desenho que de outra maneira não poderia ser contada, ou seja, se pesquisa e ensina Desenho, desenhando. Por conseguinte, foi uma Pesquisa em Arte/Educação Baseada nas Artes Visuais (VIADEL, 2005) e teve como base a perspectiva da A/r/tografia (IRWIN, 2004) e da Autoetnografia (CHANG, 2008) em que a investigação parte de uma produção contextualizada na qual o investigador está envolvido com o espaço cultural em que insere o problema da pesquisa e, por essa razão, a escrita e as imagens são partes importantes e essenciais do pensar/produzir teorias/práticas. Destarte, revejo estas narrativas visuais como parte de um aprendizado sobre minha produção que vai adquirindo uma qualidade estética à medida em que fui produzindo, diante de meios e reflexões, nos contextos investigativos nos quais estive envolvida. Por fim, trago o “Isto não é um Desenho” a partir da análise de Foucault (1988), não circunscrito a uma primeira aparência, tendo sido o último trabalho que realizei no Doutorado e teve como objetivo de questionar a configuração entre Desenho e corpo no ato de representar. Ao rever a plataforma em que no Brasil e em Portugal se

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percebe o que é ou não é um Desenho e, o que é ou não é saber desenhar, traço o desejo de emancipação diante de deteriorizações entre o ensino/aprendizado artístico, é imprescindível ampliar o olhar para um desenhar descolonizador entre pontes na América Latina.

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Fig. 1 Imagens de diferentes momentos do ato de pensar o desenhar. Porto, Portugal 2013-2015. Flรกvia Pedrosa Vasconcelos.

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Fig. 2 Imagens de diferentes momentos do ato de pensar o desenhar. Porto, Portugal 2013-2015. Flรกvia Pedrosa Vasconcelos.

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Fig. 3 Desenhos que participaram de exposições na Finlândia, Espanha e Portugal. Porto, Portugal 2013-2015. Flávia Pedrosa Vasconcelos.

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Fig. 4. Ceci n'est pas un Dessin. Foto: Danilson Vasconcelos. InSEA Regional. Lisboa, Portugal. 2015.

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Referências BROCOS, Modesto. A questão do ensino de Bellas Artes. Seguido da crítica sobre a direção Bernardelli e justificação do autor. Rio de Janeiro: s/e, 1915. CHANG, Heewon. Autoethnography as Method. Walnut Creek, CA: Left Coast Press, 2008. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. IRWIN, Rita Louise. A/r/tography: a metonymic métissage. In IRWIN, Rita Louise. ; Cosson, A. de. (eds.). A/r/tography: rendering self through arts-based living inquiry. Vancouver, Canada: Pacific Educational Press, 2004. pgs. 27-38. VIADEL Ricardo Marín. ‘La Investigación Educativa Basada en las Artes Visuales’ o ‘ArteInvestigación Educativa’. In Viadel, Ricardo Marín. (ed.). Investigación en Educación Artística: temas, métodos y técnicas de indagación sobre el aprendizaje de las artes y culturas visuales. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2005. pgs. 223-274. VASCONCELOS, Flávia Maria de Brito Pedrosa. Designare: pontes artístico/educativas na formação docente em Artes Visuais. Lisboa: Chiado Editora, 2015.

Flávia Maria de Brito Pedrosa Vasconcelos Doutora em Educação Artística, UPORTO (2015), reval Doutorado em Arte e Cultura Visual, UFG (2016). Mestre em Artes Visuais, UFPB/UFPE, Especialista em Língua Portuguesa e Arte-Educação, URCA, 2008. Graduada em Artes Plásticas, CEFETCE (2008). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Multi, Inter e Trans em Artes – MITA/CNPQ. Tem pesquisas em teorias/práticas das Artes Visuais e da Arte/Educação em congressos e revistas especializadas.

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CORPO PRESENTE Guilhermina Pereira da Silva

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Ainda não consigo ter paz. Só não consigo ver um futuro. Semana passada matei três ‘eus’ e os sepultei todos de uma vez. A filosofia é uma merda! A biologia é um saco! Necromancia! Que vida é essa? Vou matar minha mãe! Eu amo quando ouço por aí que a gente não é doente. O corpo que faz a cabeça dos homens virar. Eu não sou outra coisa senão artista. Às travestis mortas. Vou arrancar a pele da minha mãe, e vou vestila. Guilhermina não está morta. Minha mãe, aos prantos. Se sepultar e renascer. Queria descansar, para sempre. Conviver comigo as vezes é difícil. Cada dia que passa me sinto mais doente. As palavras tem poder. Sobre não se adequar às normas. Eu não quero ser curada! Eu sonho com meu funeral. O corpo permitido, que não é o meu. Comido pela travesti, ele sofre. Eu não pertenço. Eu estou só, parece que o mundo inteiro está contra mim. Eu continuo pintando gente, deve ser a esperança. Cada coisa que se pode provar é um erro! A ciência é uma ilusão! Não quero decobertas! Quero ser fera! Quero ser bruza! Quero ser nua! Prefiro morrer autêntica do que viver uma mentira. Shemale. Shemal Shema Shem She. Nunca mais quero sair do meu quarto. Eu tive uma infância feliz, mas... Eu não sei se é pior aqui ou do outro lado. Celebrar a lua, o sangue e o leite. Dormir o sono eterno. Todos os dias tomar remédios...Hoje ele me desrespeitou! Sei que estou me matando, aos poucos. As vezes a gente precisa morrer várias vezes. Ele me deixa muito magoada. Eu sempre desejei uma fantasia... agora tenho a minha. Quero celebrar o instinto, a intuição e a superstição!

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Guilhermina Pereira da Silva (Velicastelo) Artista visual, Graduada em História pela UFPE e atualmente é mestranda no Programa associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB. Guilhermina é o nome social de Guilherme Pereira da Silva. CPF n: 084.990.724-10 visto que sou uma mulher transexual.

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TRÂNSITOS: MARCAS HISTÓRICAS NO BRASIL E AMÉRICA LATINA Maria Betânia e Silva

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Referências http://definicion.de/dictadura/ http://www.significados.com/dictadura/ http://dle.rae.es/?id=Dh6nkVn http://www.suapesquisa.com/pesquisa/ditadura.htm http://www.significados.com.br/ditadura/ http://www.dicionarioinformal.com.br/ditadura/ https://sites.google.com/site/sbgdicionariodefilosofia/p-1 http://www.prof2000.pt/users/dicsoc/soc_p.html#poder https://books.google.com.br/books?id=dBeVKI0qHvgC&pg=PA114&lpg=PA114&dq=d icionario+de+psicologia++poder&source=bl&ots=_EFG2cVsJR&sig=aQLeEvWO0SdYk et2oTd7yig8mHM&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwjF3YKshNfMAhWFbB4KHcysAZQQ6 AEIPTAC#v=onepage&q=dicionario%20de%20psicologia%20-%20poder&f=false http://dicionariocriativo.com.br/analogico/poder/substantivo/poder http://www.dicionarioinformal.com.br/poder/ http://www.significados.com.br/justica/ http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=justi%E7a http://www.dicionarioinformal.com.br/justi%C3%A7a/ http://www.dicio.com.br/justica/ http://www.dicionarioweb.com.br/justi%C3%A7a/ https://www.google.com.pe/search?q=dictadura&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo =u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjN_5SS0MXMAhUGH5AKHQj9DMAQsAQIMw#i mgrc=NIF2VpNRMZzhGM%3A https://www.google.com.pe/search?q=dictadura&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo =u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjN_5SS0MXMAhUGH5AKHQj9DMAQsAQIMw#i mgrc=yplSx2Su6f4UDM%3A https://www.google.com.pe/search?q=dictadura&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo =u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjN_5SS0MXMAhUGH5AKHQj9DMAQsAQIMw#i mgrc=yGbbw7kg7OBHZM%3A https://www.google.com.pe/search?q=dictadura&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo =u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjN_5SS0MXMAhUGH5AKHQj9DMAQsAQIMw#i mgrc=HNqn-ixDA12VPM%3A

Maria Betânia e Silva Doutora em Educação pela UFMG. Mestre em Educação pela UFPE. Graduada em Artes Plásticas pela UFPE. É professora da Graduação e Pós-Graduação em Artes Visuais. É Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB.

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FRAGMENTOS DO LUGAR ONDE VIVO Clarissa Generino Duarte Priscila Ferreira Agostinho

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O projeto “Fragmentos do Lugar Onde vivo” surgiu do nosso desejo de valorizar o lugar de onde viemos, possibilitando reflexões sobre a nossa identidade cultural, utilizando como principal ferramenta a fotografia. É um projeto que foi elaborado na sala de aula, para o componente curricular Estágio Curricular em Artes Visuais 3. Uma colega dessa turma, ao apresentar as suas narrativas sobre o estágio, usou a palavra “periferia” para falar do local onde estagiava. Os termos “os alunos da periferia” nos causaram desconforto. Incomodou-nos. Ela não se referiu de forma pejorativa, mas para nós esta palavra é carregada de significados e já traz consigo preconceitos. Nós somos “periféricas/suburbanas” e sentimos o peso da segregação que essas palavras nos causam. A professora Vitória, de forma muito delicada, resolveu refletir sobre esses termos e a essa inquietação provocada. Resolvemos, então, trabalhar sobre este nosso sentimento e de alguma forma transformá-lo em aprendizagens. Foram feitas leituras, assistimos vídeos que nos fortaleceram. Sabemos que “periféricos/as/suburbanos/as” ainda são minoria nas universidades públicas federais, mas nós estamos lá lutando por nosso direito de fala e recebemos apoio de nossa professora. O projeto foi uma forma encontrada para mostrar um pouco o lugar onde vivemos e levar nossas experiências para dentro da academia, por este motivo nossa participação no minicurso não foi apenas como professoras, mas como produtoras de imagens. Também começamos a refletir sobre a partir de quais perspectivas definiram o que é central e o que periférico. A partir do quê julgamos periférico e/ou central? Ao lermos “O lugar como ponto de partida identitário na criação da arte das Novas Tecnologias Comunicacionais”, texto de Claudia Sandoval Romero, tivemos a clareza de que somos chamadas de “periféricas” porque o lugar onde vivemos está fora dos centros “hegemônicos”. Conseguimos entender com esta leitura o potencial que as artes, de modo geral, possuem quando se trata de desconstruções de paradigmas sociais e nos permitem questioná-los. A arte/educação possui papel social fundamental nessa transformação. Mas, qual? Ainda não o compreendemos com clareza. Entendemos apenas que como futuras educadoras devemos nos posicionar diante destas questões e foi importante trazer o debate para dentro da universidade. Não queremos contribuir com atitudes preconceituosas em sala de aula nem ser omissas a elas. Desejamos estar por dentro e que nossos estudantes tenham plena consciência que podem e devem estar no centro e não à margem, dentro do mundo. Vivemos em um sistema excludente, sofremos com essas exclusões. Queremos uma ideologia inclusiva na arte/educação. Entre morros, ladeiras, escadarias nos criamos. Não gostamos de nos colocar como minoria, pois não somos. Ninguém nunca nos perguntou sobre como desejamos ser reconhecidas. Às vezes, sem querer e sem perceber, reproduzimos desigualdades. Estamos tentando nos colocar dentro da Universidade. Não é fácil, e por vezes dói. Faz sofrer. É um caminho difícil, mas estamos percorrendo e entendemos que seja importante para nós. E assim como nossa professora Vitória, nós pretendemos ser professoras que educam para liberdade. Como Santomé diz:

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Uma educação libertadora exige que se leve a sério os pontos fortes, experiências, estratégias e valores dos membros dos grupos oprimidos.Implica também ajudá-los a analisar e compreender as estruturas sociais que os oprimem para elaborar estratégias e linhas de atuação com probabilidade de êxito (SANTOMÉ, 1995, p.166). Diante disto, destacamos a função crítica da arte que precisa estar presente em nossas práticas em sala de aula. De algum modo fizemos coisas “acertadas” e, diferente dos estágios anteriores em espaços formais, percebemos certa maturidade no estágio 3. Desde o desenvolvimento do projeto até a aplicação notamos uma maior consciência da nossa proposta. Tínhamos um objetivo muito claro para nós. E diante da avaliação dos participantes nosso principal objetivo foi atingido, estimular a percepção da comunidade em que vivemos no exercitar do nosso olhar. Já no final do curso, nas últimas aulas descobrimos que Chico Science & Nação Zumbi faziam este mesmo exercício de percepção do lugar onde eles viviam. Os “meninos do mangue” fizeram por meio da música e da poesia o que nós tentamos fazer com a fotografia. Trazer o lugar onde vivemos da forma como nós o percebemos, com nosso olhar de quem está “dentro”. No livro de Moacir dos Anjos “Local/Global: arte em trânsito” descobrimos outras inspirações na música como: Mundo Livre S.A., Mestre Ambrósio, Cordel do Fogo Encantado e DJ Dolores. Com isto, nos sentimos motivadas a produzir um vídeo onde imagens e músicas dialogavam. Na montagem do vídeo contamos com a colaboração na criação do título de Jadiewerton Tavares que nos auxiliou nas questões técnicas e também estéticas. Trabalhamos juntos durante um dia e o resultado foi significativo. O vídeo foi apresentado na avaliação final do componente Estágio Curricular em Artes Visuais 3. A trilha sonora escolhida para o vídeo foi “Subúrbio soul” do álbum “Contraditório?” do DJ Dolores. Segue adiante o link do vídeo e também as imagens com o link da trilha. Recomendamos que caso o/a leitor/a escolha não assistir ao vídeo aprecie as imagens ao som de “Subúrbio soul”. Links: Fragmentos do lugar onde vivo: https://www.youtube.com/watch?v=KUNDev4oVzA&feature=youtu.be 'Suburbio Soul/ DJ Dolores: https://www.youtube.com/watch?v=OkbEaypkYR8

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“Ontem olhei pela janela e vi algo tão sufocante, o por do sol era lindo.” Camilla Fernanda Caetés I, Abreu e Lima/PE

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“Quero mostrar as belezas do lugar onde vivo e as intervenções do homem ao decorrer da história.” Isaac Martinho Maranguape I, Paulista/PE

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“A chuva muda os sentimentos. A gota de chuva que vês é apenas a imagem que sou. e o sol? O sol que vês? É apenas a imagem que és.” Priscila Ferreira Paulista/PE

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“Aprendi com minha mãe e o nosso jardim de casa: esperando que um relacionamento floresça em determinada época, mas não nos damos conta de que as ‘flores’ que temos agora são lindas, estão vivas e precisam de nossa atenção.” Clarissa Generino Caetés I, Abreu e Lima/PE

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Fortalecemos nosso projeto dialogando com: ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 78p. Disponível em: https://lookaside.fbsbx.com/file/ICAA1111037.pdf?token=AWyT7I7egtasUXRlttzTZE9 BBLpM0LBmNiRsLHhHdlS3_Yl97FRgru0zNIqsQ6BBRq0TI32Ows7xZG9cugky1N6ttkc8 HQ0gXOEfqFjtxo3oAsGBvX7vuFWjQWtz0rCrPfr3HZZIq4cnOtLx6BUcGIp. (link inexistente) BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2014. BUORO, Anamélia Bueno. Olhos que pintam: a leitura de imagem e o ensino da arte/2ª Ed.- São Paulo: Educ/ Fapesp/ Cortez, 2003. HÉRNANDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho/trad. Jussara Haubert Rodrigues. – Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 2000. PARSONS, Michael. Compreender a Arte: uma abordagem à Experiência estética do ponto de vista cognitivo. Lisboa: Presença. 1996. ROMERO, Claudia Sandoval. O lugar como ponto de partida identitário na criação da arte das Novas Tecnologias Comunicacionais. España: Copyright, 2009. Disponível em: http://revistas.um.es/api. Acesso em: 16 Nov 2016 ROSSI, Maria Helena. Imagens que falam: leitura da obra de arte na escola. Ed. Rio de janeiro: Mediação, 2006. SANTOMÉ, Furjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

Clarissa Generino Duarte Graduanda em Arte Visuais (licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco. Priscila Ferreira Agostinho Graduanda em Arte Visuais (licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco.

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DESMANCHE DOS NODOS: EMULSÕES TÓXICAS AFETAM O CORPO João Pedro Tavares da Silva (PPGAV-UPPB/UFPE)

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A performance Natal Simbiótica, de Brio Virgílio Arqueu, é de longa duração. O artista se coloca em frente a uma bacia de barro preenchida emulsão asfáltica e vários metros de cordas. A ação consiste em desatar nós por 4 horas e, enquanto o artista realiza o desmanche, ao mesmo tempo se contamina de líquido betuminoso. De acordo com os registros, crio este ensaio para pensar a relação entre o sintético e o corpo bem como suas perspectivas políticas.

Figura 1 Natal Simbiótica, 2014. Performance. Piche, bacia de barro artesanal, cordas, tecido e roupas brancas. Dimensões variáveis. Mostra PERFORMANCE: CORPO, PROCESSO E PRÁTICA, Idealizadores: Coletivo ES3. Natal, RN.

Sintético, material dúbio. Pode ser tóxico ou curativo. Ele age em nós mesmos assim como naquilo que está a nossa volta. Esse material, carrega em si mesmo, forças políticas, a saber, construtivas e destrutivas. Seu uso é de relativo interesse por pessoas e instituições, pois são antígonas carentes de uma justificativa. Ora, que tipos de sintéticos nos atravessa? Sobretudo hoje, presente em todas as extensões do dentro-corpo e do fora-corpo? As vozes dos organismos colonizados tem algo a dialogar com o sintético. Aqui, em solo nordestino, um véu coronelista entoxica as potencialidades, e lá, fora daqui, emulsões de poder contaminam o corpo. Pois, quanto mais desatamos os nós, mais percebemos que esse material se torna forçapresente na pele. Um corpo-que-soma: isso é inevitável, pois o tecido orgânico e o tecido sintético estão entrelaçados. Hoje precisamos dele, ou melhor, ele está, e não devemos deixar de lado sua presença. Pois, o sintético também se faz simbólico. Afinal, o que a cultura tem de sintético? E onde situa a linha que distingue o que é de fato corpo de sua construção sintética? Como ele é afetado? Como sou afetado por ele? Como sinto o sintético através dele? Eu-Corpo-Outro: Nós. A Cada desmanche, mais líquido betuminoso mancha. Biopolítica. Essa emulsão asfáltica difícil de ser retirada, atinge o corpo. É coisa pegajosa, que impregna e contamina; tal substância, dotada de entoxicantes, está presente no betume dos territórios de poder.

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João Pedro Tavares da Silva Graduado no curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestrando no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal da Paraíba. Atualmente pesquisa sobre o conceito de autopoiesis nos processos de criação. Email: jptavars@gmail.com.

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TRANÇADO INDÍGENA EM PERNAMBUCO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Clarissa Machado Belarmino/ PPGAV UFPE/UFPB 49 Robson Xavier da Costa/ PPGAV UFPB/UFPE RESUMO Este trabalho objetiva analisar o uso do trançado na arte indígena pernambucana como referência para uma investigação de mestrado em artes visuais, desenvolvida junto ao PPGAV UFPE/UFPB. Consideramos que o uso da cultura e arte das etnias indígenas do Estado de Pernambuco devem ser utilizadas como referências para os professores da área de artes visuais, atendendo o cumprimento da Lei 11.645, de 10 de março de 2008, que estabelece as diretrizes para a obrigatoriedade da inclusão da temática “história da cultura afro-brasileira e indígena” no Currículo oficial da rede de ensino. Utilizamos como referências os estudos sobre Arte e “Arte Primitiva” (BOAS, 2015; GELL, 1998; PRICE, 2000; LAGROU, 2009), cultura material (RIBEIRO, 2015; BARBOSA, 1999) e cultura visual (GUIMARÃES, 2005; BARBOSA, 2010). A pesquisa qualitativa propôs uma leitura sobre a cultura, as técnicas e a Arte dos povos indígenas em Pernambuco. PALAVRAS CHAVE: Arte Indígena. Trançado. Pernambuco. Ensino de Artes Visuais. RESUMÉN Este trabajo tiene como objetivo analizar el uso de trenzado en Pernambuco arte indígena como una referencia a la investigación de maestría en artes visuales, desarrollado por la UFPE PPGAV / UFPB. Creemos que el uso de la cultura y el arte de los grupos étnicos indígenas del Estado de Pernambuco debe ser utilizado como una referencia para los profesores en el campo de las artes visuales, sirviendo al imperio de la ley 11.645 de 10 de marzo de 2008, por las orientaciones de obligatoria la inclusión del tema "la historia de los afro-brasileña y Cultura Indígena" en la Red Oficial de programa de enseñanza. El uso como referencias los estudios de Arte y "arte primitivo" (BOAS, 2015; GELL 1998; PRICE, 2000; LAGROU, 2009), la cultura material (RIBEIRO, 1989; BARBOSA, 1999) y la cultura visual (GUIMARÃES, 2005; BARBOSA, 2010). La investigación cualitativa propone una lectura de la cultura, las técnicas y el arte de los pueblos indígenas en Pernambuco. PALABRAS CLAVE: arte indígena. Trenzado. Pernambuco. Escuela de Artes Visuales.

Introdução

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O Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais em nível de Mestrado, criado mediante uma associação ampla entre a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) surgiu da necessidade de atender a considerável demanda por cursos de Pós-Graduação em Artes/Artes Visuais, sobretudo em Ensino das Artes Visuais, na Região Nordeste.

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Esta pesquisa tem como objeto de estudo a técnica do trançado indígena pernambucano, tendo como suporte a feitura de objetos das etnias Fulnió e Kambiwá, localizadas no Sertão pernambucano, mas precisamente nos municípios de Águas Belas e Ibimirim, respectivamente. Sob o enfoque dos estudos sobre Arte e “Arte Primitiva” (BOAS, 2015; GELL 1998; PRICE, 2000; LAGROU, 2009), cultura material (RIBEIRO, 1989; BARBOSA, 1999) e cultura visual (GUIMARÃES, 2005; BARBOSA, 2010) a pesquisa pretende trazer para o cenário, tanto artístico quanto educacional, uma leitura sobre a cultura, a técnica e a Arte dos povos indígenas. A partir do contato com o livro de Berta Ribeiro, “Suma Etnológica Brasileira”, no qual um dos capítulos analisa a tecelagem indígena, fomos despertados para o tema desta pesquisa. As inquietações nos levaram a estudar a técnica do trançado, especificamente da região Nordeste, tendo as Etnias (Funió e Kambiwá) de Pernambuco como campo de investigação. Poucos são os registros sobre a Arte e cultura material dos povos do Nordeste; portanto um dos motivos que nos levou a lançar o olhar para a Arte Indígena é a investigação voltada para uma produção artesanal e seus diálogos com o mundo contemporâneo. Neste trabalho o trançado foi abordado enquanto técnica, visualidade e experienciado em sua materialidade, em seus contextos culturais e suas possíveis abstrações. A pesquisa também questiona os artefatos enquanto produção técnica e poética. Ao problematizar uma técnica de origem autóctone transformando-a em um dispositivo pedagógico podemos contribuir para os estudos sobre Artes Visuais no Nordeste brasileiro. Partindo do conceito de “dispositivo” trabalhado no texto de Jorge Larossa, “Tecnologia do Eu e Educação”, no qual ele afirma que “um dispositivo pedagógico será, então, qualquer lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se aprende ou se modifica as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo” (LAROSSA, 2010, p.57). Essa definição possibilita relacionar o “dispositivo” como construção de subjetividades, tendo como ponto de vista pedagógico a sua não neutralidade, e sim, o seu caráter plural. Iniciamos um levantamento das produções acadêmicas em relação ao estado da Arte do objeto de pesquisa e aos assuntos aos quais ele tangencia. Ressaltamos a contribuição da antropóloga Berta G. Ribeiro, com uma vasta atuação em pesquisas de campo e publicações sobre o tema. Nos anos 1980 defendeu sua tese intitulada “A Civilização da palha. A arte do trançado dos índios do Brasil”. E em 1986, publicou três volumes da “Suma Etnológica Brasileira”. O primeiro volume é dedicado a etnobiologia, o segundo a tecnologia indígena e o terceiro a Arte Índia e a linguagem simbólica da cultura material. No âmbito dos bancos de pesquisas de pós-graduações mais recentes no Brasil, visitamos o Portal de Periódicos da CAPES, o banco de teses e dissertações da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), os Anais da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e por fim a Revista MANA de Antropologia. Procuramos os trabalhos no período de 10 anos, ou seja, de 2006 até 2016, ano do ingresso da autora Clarissa Belarmino no Mestrado de Artes Visuais do PPGAV UFPE/UFPB, sob a orientação do Prof. Dr. Robson Xavier.

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Durante a pesquisa o link para os anais do 19º Encontro Nacional da ANPAP, estava indisponível na internet. Nos anais do 20º Encontro Nacional da ANPAP, não encontramos nenhum artigo com o tema sobre Arte Indígena. No levantamento feito na Revista MANA, encontramos três trabalhos que dialogavam com o tema. No ano de 2012, na categoria de resenhas foi encontrado o texto de Vanessa R. Lea, sobre o livro “Xicrin: uma coleção etnográfica”, organizado por Fabíola Adréa Silva e César Gordon, com as fotografias de Wagner Souza e Silva. Segundo Vanessa o livro reúne uma coleção etnográfica dos objetos Xicrin-Mebengokre, coleção foi organizada pela antropóloga Lux Vidal, ao longo de três décadas e cedida ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. O livro traz imagens dos objetos e textos dos organizadores intercalados, oferecendo um rico e vasto material, fomentando novas pesquisas sobre o tema. No ano de 2014, outra resenha de um livro abordou o assunto, Maria Regina Celestino de Almeida, resenha o livro organizado por João Pacheco de Oliveira (1999), “A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de conhecimentos e regimes de memória”, no qual 23 artigos enfatizam que os índios do Nordeste não deixaram de existir, os textos foram escritos tendo como viés os seguintes conceitos: indíos misturados, territorialização, resistência, aculturação e tantos outros já referenciados na produção de João Pacheco. A terceira publicação encontrada na revista MANA que tem uma ligação com esta pesquisa foi publicada no ano de 2015 com o título “El textil tridimensional: la naturaleza del tejido como objeto y como sujeto”, de Indira Viana Cabellero. Segundo a resenha de Indira, a antropóloga Denise Arnold e a artista plástica Elvira Espejo, trabalham em seu livro sobre a ótica da cultura material tomando como objeto de estudo os tecidos artesanais dos Andes bolivianos, dando ênfase não apenas ao seu caráter enquanto objeto material, mas também enquanto sujeito de relações intrínsecas com suas artesãs. Ao abordarmos o tema Arte Indígena em Pernambuco faz-se necessário contextualizar a visão antropológica dos estudos sobre a Região Nordeste. Partindo da perspectiva apresentada por João Pacheco de Oliveira (1999), em seu trabalho intitulado “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, o autor aponta o ponto de vista de Eduardo Galvão que a Região Nordeste é caracterizada pelos efeitos de aculturação, sendo que “a maior parte (das 50 etnias indígenas) vive integrada no meio regional, registrando-se considerável mesclagem e perda dos elementos tradicionais, inclusive a língua”(op cit., p.48). Porém, Pacheco de Oliveira (1999) propõe um estudo que parte não do viés do passado, com uma visão estereotipada e romantizada dos índios, mas busca entender o que eles representam atualmente, construindo desta maneira o sentimento de pertença a uma região, como o autor afirma: “A unidade dos “índios do Nordeste” é dada não por suas instituições, nem por sua história, ou por sua conexão com o meio ambiente, mas por pertencerem ao Nordeste, enquanto conglomerado histórico e geográfico” (op cit., p. 16-17).

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Destaque dos autores.

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Considerando esta unidade regional, pode-se então recorrer a outro termo usado amplamente nos escritos sobre os índios nordestinos, “índios misturados”, para assim caracterizá-la. Os estudos antropológicos que passaram a abordar este tema pretendiam “discutir a mistura” como uma fabricação ideológica e distorcida (op cit., p.17), para então reconstruir as novas identidades, reinventando novas etnias (op cit., p.18). Na tentativa de dar voz e fortalecer a formação dos povos indígenas pernambucamos, pelo viés das Artes Visuais, esta pesquisa se ampara na Lei nº: 11.645/2008, que regulamentou a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todos os níveis de ensino da Educação Brasileira e procura visualizar as diversas maneiras de se construir uma história de um povo. Na abordagem metodologica utilizamos como referências os estudos de: Alberto Melucci (2005) sobre pesquisa qualitativa: “um processo no qual se combinam questões teóricas e problemas práticos colocados por novas formas de fazer pesquisa.” (p. 26). Melucci afirma que “a necessidade de qualidade tem, certamente, raízes nas diversas modalidades com que nos referimos às relações sociais contemporâneas” (op cit., p.28). Tais relações, segundo o autor estão em constante movimento, sejam em processos individuais ou sociais, adentram a vida cotidiana, os sujeitos constroem sentidos em seu agir e experimentam maiores possibilidades de ações, buscam e estão diretamente relacionadas com o fator de qualidade de vida e consumo cultural, de mercadorias ou de conhecimentos, ou o processo de diferenciação, ligado a questões culturais, emocionais, que necessitam de uma dimensão qualitativa em sua abordagem. É bem evidente que a virada não diz respeito somente aos métodos qualitativos, mas abrange todo o campo da pesquisa social. É como se as práticas de tipo qualitativo tivessem aberto a estrada para uma redefinição do campo no seu conjunto e começassem a produzir uma mudança dos velhos limites que separavam quantidade e qualidade (MELUCCI, 2005, p.32).

Apontando as características dessa virada epistemológica o autor mostra quatro eixos: a “a centralidade da linguagem: tudo que é dito, é dito para alguém em algum lugar”. A “redefinição profunda da relação entre observador e o campo”. Seguindo para “à dupla hermenêutica” na qual a pesquisa de campo está inevitavelmente ligada. E por fim, “a apresentação dos resultados que tende a aceitar a polifonia, o pluralismo possível das formas de relatos e uma atitude auto-reflexiva” (MELUCCI, 2005, p. 33 e 34). Esta pesquisa se inspira nos Métodos da Etnografia proposto por Malinowisk. Mariza Peirano em seu livro “A favor da etnografia” argumenta que para além da mitificação em torno da obra de Malinowisk, pode-se considerar que: coube a ele confrontar as teorias sociológicas, antropológicas, econômicas e lingüísticas da época com as idéias que os trobriandeses tinham a respeito do que faziam. Mais: ao comparar tais idéias com suas próprias observações in loco pôde perceber que havia resíduos' não explicados: o kula — a troca cerimonial de

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conchas de spondylus vermelhas por braceletes de conchas brancas entre determinados parceiros no extenso círculo de ilhas no extremo oriental da Nova Guiné —, por exemplo, não era apenas um fenômeno meramente econômico de troca de bens preciosos, mas envolvia as esferas do religioso, da política, da mitologia, dos ritos, repercutia nas formas lingüísticas e incluía também o comércio puro e simples, criando um circuito fechado de relações entre as ilhas do arquipélago (PEIRANO, 1995, p.16).

Ao unir teoria e observação dos nativos surgiu uma peculiaridade do fazer etnográfico. Em outro texto “Etnografia ou a teoria vivida” a Peirano questiona a etnografia apenas como um método, afirmando que a “etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação” (op cit., p.3). A etnografia não se faz apenas com a espontaneidade ou com o talento, e não se presta a meras descrições de fenômenos. É com base no conceito sobre a descrição densa desses fenômenos, que a etnografia vem apresentar uma maneira descritiva, mas não superficial. A respeito desta descrição Clifford Geertz (2008) em seu livro “A Interpretação das culturas”, apresenta a etnografia como uma descrição densa e que o etnógrafo vai encontrar “uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (GEERTZ, 2008, p.7). Neste recorte da pesquisa pretendemos trabalhar com uma revisão bibliográfica e documental sobre o tema em questão: o trançado indígena em Pernambuco. Trançando Etnias A maioria dos estudos que versam sobre a organização dos índios do Nordeste 51 brasileiro, tem sua fundamentação pautada no processo de etnogênese , “abrangendo tanto a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já reconhecidas” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p.18). Em seu texto “Uma etnologia dos índios misturados”, João Pacheco de Oliveira (1999), compara as questões que alimentam o processo de etnogênese no Nordeste com o que acontece na Amazônia, afirmando que na Região Nordeste o “desafio a ação indigenista é restabelecer os territórios indígenas, promovendo a retirada dos não índios das áreas indígenas, desnaturalizando a 'mistura' como uma única via de sobrevivência e cidadania” (op cit., p.18). Enquanto na Amazônia a maior preocupação seria a invasão do território indígena e a degradação de recursos naturais. Este paralelo é feito para legitimar não só os estudos antropológicos que teriam como objeto os índios nordestinos e seu contexto, como também reivindicar os direitos civis e territoriais desta população. Tais reivindicações tem sua base tanto na transformação antropológica, que visa a partir do século XX, uma abordagem cultural, quanto na ação indigenista. Marcondes Secundino, no texto intitulado “Índios do

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Etnogênese - conceito oriundo da área de antropologia que se refere ao processo de surgimento de novas identidades étnicas ou de novas etnias no contexto atual, a partir de desdobramentos de etnias pré-existentes.

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Nordeste: alguns apontamentos sobre formação de um domínio da antropologia” esclarecendo: Além dessa transformação da antropologia no início do século XX, processavam-se mudanças da política indigenista oficial. Em 1910, cria-se o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a ciência etnográfica passa a produzir subsídios para uma mudança de orientação de base missionária então vigente, projetando-se em defesa de uma razão de Estado e de uma ordem legal e racional protetora das populações indígenas (SECUNDINO, 2011, p.637)

A questão de “territorialização” incorporada a uma ação indigenista a partir da demarcação de territórios pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão estatal federal, que tem como função mediar a política territorial e reconhecer oficialmente as etnias indígenas brasileiras, tem enorme influência na valorização das civilizações indígenas do Nordeste brasileiro. O processo de “territorializção” ao qual João Pacheco de Oliveira (1999) define como “transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais” (1999, p.22), ocorre na consolidação das populações indígenas nordestinas de duas maneiras: a primeira esta associada às missões religiosas nos séculos XVII e XVIII com três processos de “misturas”; e a segunda no século XX, com a agência indigenista oficial a FUNAI. Em relação ao primeiro caso, o autor trata de “famílias de nativos de diferentes línguas e culturas que foram atraídas para os aldeamentos missionários, sendo sedentarizados e catequizados” (op cit., p.22), considerando está a primeira “mistura”, e mais adiante ele afirma: O caso das missões, que são unidades básicas de ocupação territorial e de produção econômica, há uma intenção inicial explícita em promover uma acomodação entre diferentes culturas, homogeneizadas pelo processo de catequeze e pelo disciplinamento do trabalho. A mistura e a articulação com o mercado são fatores constitutivos dessa situação interétnica (PACHEDO DE OLIVEIRA, 1999, p.23).

Partindo dessa primeira “mistura”, e dando continuidade a uma ação intervencionista, instalam-se nos limites dos antigos aldeamentos colonos brancos e o constante casamento interétnico, porém não tiveram uma notória expansão devido ao pouco fluxo migratório para o Sertão. E para finalizar o autor descreve a terceira “mistura” como sendo aquela associada à Lei de Terras de 1850, que regularizou as propriedades rurais, “os governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos os antigos aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a comarcas e municípios em formação” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p.23). A retirada das terras dos índios e o reagrupamento em fazendas de gado estabeleceu a desterritorialização de etnias inteiras, situação que define o posicionamento posterior da retomada de posses das terras. O segundo processo faz referência ao movimento de retomada dos territórios e aos processos de reconhecimento de uma legitima “indianidade”. Tem início com a implantação de um Posto Indigenista na região de Águas Belas, nos anos 1990,

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aldeamento dos descendentes dos Carnijó, conhecidos hoje como os Fulnió. As décadas que seguiram foram sendo implementados outros Postos Indigenistas em diversos municípios, não só pernambucanos como em toda Região Nordeste, e junto a eles o processo de reconhecimento de suas “indianidades”, baseado em uma estrutura política - cacique, pajé e conselheiro - tendo a frente na tomada de decisão de quem ocupa esses postos o chefe do Posto Indígena. É uma estrutura que respeita o patrimônio cultural, que no caso nordestino tem no ritual do Toré sua principal forma diacrítica de “indianidade”. Transmitido de um grupo para o outro por intermédio das visitas dos pajés e de outros coadjunvantes, o toré difundiu-se por todas as áreas e se tornou uma instituição unificadora e comum. Trata-se de um ritual político, protagonizado sempre que é necessário para demarcar as fronteiras entre 'índios' e 'brancos' (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p.26).

Os apontamentos que seguem a lógica do raciocínio de Pacheco de Oliveira (1999) conduzem para uma via de mão dupla, cada grupo étnico também se questiona em relação a essa “mistura”, e suas possíveis invidualidades, ao perceber as singularidades que cada grupo tem em sua organização política e cultural. A configuração que tem sequência nos anos 1970/1980, na audiência de demarcação territorial indígena pelos grupos não reconhecidos pelo órgão oficial - FUNAI, tidos como “novas etnias” ou “índios emergentes” é considerado um dos problemas centrais para as comunidades. Associando a isto, existe uma bifurcação nos estudos sobre etnicidade, de um lado têm-se a trajetória dos estudos dos “instrumentalistas” (BATH, 1969 e COHEN, 1969; 1974), que buscavam “explicar por processos políticos que devem ser analisados em circunstâncias específicas” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p. 30); e a origem, aos estudos “primordialistas” (GEERTZ, 1963; KEYES, 1976; BENTLEY; 1987) os quais “identificavam com lealdades primordiais” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p. 30). Pacheco questiona os termos empregados para se falar de “etnicidade”, propondo uma quebra nessa polarização “trajetória” ou “origem”, afirmando que: A etnicidade supõe necessariamente uma trajetória (que é histórica e determinada por múltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a utilização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etinicidade (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999, p.30).

O autor referindo-se ao termo “viagem da volta” explica dois aspectos da relação de “etnicidade” entre os índios do Nordeste brasileiro, a primeira como a relação entre etnicidade e território; aludindo ao sentimento étnico de pertença e de origem; e o segundo a relação entre etinicidade e características físicas, algo “mais forte que a lealdade” e “um vínculo primário inextirpável”. Muitos líderes indígenas brasileiros são atuantes políticos em busca do reconhecimento de seus territórios, etnias e da reafirmação de seus valores morais, culturais e religiosos.

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O conceito de respeito às diferenças culturais, atende a recorrente busca das etnias indígenas do Nordeste brasileiro em busca de (re)construir uma unidade regional fundamentada em suas particularidades étnicas, não configurada apenas em acordos políticos ou administrativos; e sim, numa (re)significação de suas “misturas”, de seus territórios, crenças e rituais, a fim de manter uma identidade étnica e seus direitos civis e morais. É sem dúvida inegável a relação que as etnias indígenas nordestinas estabelecem com sua cultura material, incluindo a produção de trançados e cestarias, como fonte inegável, reflexo da riqueza e importância da sua cultura imaterial.

Trançado Indígena: Arte e/ou Técnica Na introdução do livro “Arte Primitiva em Centros Civilizados”, Sally Price justificar a sua abordagem que conduz a noção de “Arte Primitiva”: “meu desejo é simplesmente levantar algumas questões a respeito das cômodas ideias preconcebidas que geralmente ditam o lugar da arte 'exótica' na nossa sociedade” (PRICE, 2000, p. 25). O que seria a arte de outros povos? Não somos todos, um só povo brasileiro? Lagrou, no início do seu texto “Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas” apresenta um paradoxo, seria arte a produção visual dos índios? Quando afirma: “tratam-se de povos que não compartilham a nossa noção de arte” (LAGROU, 2009, p.11). Questionamos qual e como seria a “noção de Arte” das etnias indígenas pernambucanas? e também, como se estabelecem os processos de produção dos artefatos visuais? Enquanto Price (2000) questiona o uso em larga escala do termo “primitivo”. A autora apresenta alguns pontos de vista sobre o uso desse termo por aqueles que se consideram “civilizados”, e os possíveis aspectos que ele tangencia. Em seguida critica o conceito de conhecedor da Arte, já que “evoca uma imagem de um cavalheiro impecável, culto, educado e bem vestido, de comportamento discreto, opiniões comedidas, dotado de autoconfiança e, acima de tudo, um homem de supremo bom gosto” (PRICE, 2000, p.27), apresentando uma visão sexista e machista, a autora se posiciona contra essa maneira de identificar civilização. Em oposição a essa distinção social do bom gosto ou da apreciação estética por parte do conhecedor da Arte, a autora descreve a concepção do “especialista”, associando ao que Pierre Bourdier (1979) coloca como um bom gosto construído – o olho é um produto da história e reproduzido pela educação (BOURDIEU, 1979, p.41). Muito mais que uma universalidade estética, de cunho eurocêntrico, ligado a noção de beleza comercial e sua supervalorização, construídos em suas especificidades históricas, a arte dos povos não dominantes não pode perpetuar essa visão “evolucionista” e racista, conceitos embrenhados no termo Primitivo (em seu sentido pejorativo). Lagrou faz um paralelo entre a Arte Conceitual com a Arte Indígena, afirmando que “muitos artefatos e grafismos que marcam o estilo de diferentes grupos indígenas são materializações densas de complexas redes de interações que supõem conjuntos

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de significados, ou, como diria Gell, que levam a abduções, interferências com relação a intenções e ações de outros agentes” (LAGROU, 2009, p. 13). Ao deslocar tais artefatos para um contexto metropolitano, ou como poderíamos dizer “civilizado”, podemos levantar o questionamento da centralidade, ou mais especificamente a universalidade da linguagem, que pode ser dada aos objetos expostos como afirma Price (2000) “ver toda a arte como tratando das mesmas 'questões centrais' e até que ponto a produção artística de diferentes povos reflete a maneira especial pela qual cada sujeito vê o mundo e o seu lugar nele” (op cit., p.56). Tal centralidade passaria então pelo viés da múltipla identidade das diversas etnias indígenas. A Arte Moderna, que tem uma fonte de inspiração na Arte Primitiva, está fundamentada na inovação artística; enquanto na cultura dos povos indígenas não encontramos separação entre o sujeito artístico e o sujeito social, eles não necessariamente produzem objetos para serem contemplados, geralmente, não existe uma distinção entre o artefato utilitário, a Arte e a sociedade. Considerações Finais Neste breve artigo tentamos esboçar o campo teórico desta pesquisa, que transita entre culturas, a partir do questionamento das categorias de “Arte Civilizada” e “Arte Primitiva”. O foco da pesquisa é o trançado das etnias indígenas do Estado de Pernambuco. O que seria essa cultura material? Segundo Dolores Newton, na introdução do livro “Suma Etnológica Brasileira” volume V; a “cultura material” foi um termo empregado por Barrie Reynolds (apud RIBEIRO, 1987, p. 15) que “pretende distinguir está área da etnologia que trata da cultura material traduzida em artefatos” (NEWTON apud RIBEIRO, 1987, p.15). Explicando que: A cultura material foi caracterizada por Bohannan (1973, p. 364) como único fenômeno cultural codificado duas vezes: uma fez na mente do artesão e a outra na forma física do objeto. Essa dupla codificação permite comparar os três fenômenos culturais, ou seja; o artefato, bem como seus aspectos cognitivos e comportamentais (NEWTON apud RIBEIRO, 1987, p,15).

Partindo do pressuposto da técnica presente no capítulo nove, do livro citado acima, intitulado “A arte de trançar: dois macroestilos, dois modos de vida” Ribeiro mapeiam os estilos do trançado das etnias indígenas brasileiras, em uma relação estreita com o estilo de vida dos índios, ao afirmar que: procuro demonstrar que existe uma correlação entre os referidos estilos de trançado e modos de vida: campestre, silvícol-canoieiro e silvícola-interiorano. Os grupos que chamo campestres (ou campeiros) quase todos filiados ao grupo linguístico macro-Jê, executam um trabalho predominantemente de palha (folíolos do limbo da folha nova – “olho” ou broto - de palmeira), resultando um estilo de trançado monocromo, de padrões ornamentais variados, porêm menos chamativos que os trançados bi cromos. Estes são elaborados com lâminas (talas, taliscas) de material córneo, mais rígido, cuja superfície raspada pode ser adredemente pintada,

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permitindo esboçar padrões marcheteados em claro/escuro. Constitui o segundo macro estilo – de tala – próprio, mas não privativo, dos grupos silvícolas-canoeiros (Tupí, Aruak, Karib, Pano, Tukâno e outros). Um terceiro estilo, ou subestilo, menos difundido, é praticado pelos grupos silvícolas-inteioranos (Makú, Yanomâmi), desprovidos de canoas e de cerâmica (ou com a cerâmica muito rudimentar), do mesmo modo que os campestres, que fazem um trançado tipificado por cestos de fasquias de cipó (RIBEIRO, 1987, p, 283-284).

Ao afirmar que os trançados monocromáticos resultam menos “chamativos que os trançados bicromos”, a autora emprega um juízo de valor, favorecendo uma leitura visual tendenciosa, quando na verdade cada estilo tem sua particularidade e sua expressão. A classificação dos estilos de trançados indígenas segundo Berta Ribeiro, reúne dois grandes grupos, que são: Monocromos (monocromáticos) - em sua maioria feitos com palha, e os Bicromos (bicromáticos), geralmente, elaborados com talas. Pode-se então dizer que dentro desses dois macroestilos teremos duas classificações; os “entretrançados” e os “trançados costurados”. A autora define o “entretrançado” como sendo um “termo genérico” compreendendo as técnicas de entrecruzar (to twill), entrelaçar (to warp), cuja tradução literal seria embrulhar; entretorcer (to will); ou seja, enroscar, misturar, dobrar, rotar. “Entretrançar” equivaleria a interwork em inglês” (RIBEIRO, 1987, p. 318); e o “trançado costurado” “(coiled). Compõe-se de dois elementos: 1) uma base de fibras, tiras de folhas de palmeira ou outro material compondo um rolo achatado, que corresponde a urdidura, a partir do qual evolui a espiral formada por: 2) uma trama que entrança o rolo. Comumente usa-se um implemento pontiagudo (awl – sovela, instrumento de sapateiro) que produz uma abertura por meio da qual é passada a trama” (RIBEIRO, 1987, p. 320). Em seguida a autora estabelece três categorias: “entrecruzado ou cruzado”, “entrelaçado ou laçado” e o “entretorcido ou torcido”, sendo as duas primeiras categorias da classe “entretrançado” e o último do “trançado costurado”. Distinguindo também os grupos e os tipos. Fazem parte da categoria “entrecruzada” ou “cruzada”, os grupos: 1) quadricular ou xadrezado; 2) arqueado; 3) diagonal ou sarjado ou entretecido ou marcheteado e 4) hexagonal. Da categoria “entrelaçado” ou “laçado” os grupos: 1) enlaçado vertical; 2) enlaçado horizontal; 3) enlaçado com grade e 4) embricado. Na terçeira categoria “entretorcido” ou “torcido” encontramos dois gupos, o primeiro: 1) torcido vertical; 2) torcido horizental; 3) torcido gradeado; e o segundo: 1) com falso nó; 2) com ponto de nó; 3) com ponto longo e 4) espacejado. Com relação aos tipos encontraremos apenas na categoria dos “Entrecruzados ou Cruzados”: 1) quadricular gradeado; 2) quadricular diagonal; 3) arqueado sarjado; 4) sarjado gradeado; 5) “espinha de peixe”; 6) “casa de abelha”; hexagonal reticular ou retículo; 7) hexagonal ou treliça e 8) hexagonal oblíquo. A nossa intenção após esta revisão bibliográfica e descrição sobre os estilos do trançado, foi tentar fazer um paralelo entre algumas técnicas de trançado desenvolvidas pelas etnias Fulnió e Kambiwá que iremos estudar na pesquisa de campo, durante a investigação para elaboração da dissertação de mestrado em Artes

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Visuais, desenvolvida junto ao PPGAV UFPB/UFPE e a teoria de base antropológica abordada. REFERÊNCIAS GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC; 2008. LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. LAROSSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In: TADEU DA SILVA, Tomáz. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 7 ed. Petrópoles, RJ: Vozes, 2010. MELUCCI, Alberto. Por uma Sociologia Reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2005. PACHECO DE OLIVEIRA, João. A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. _____ (org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. PEIRANO, Mariza. A favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. RIBEIRO, Berta G. A arte de trançar: dois macroestilos, dois modos de vida. In: RIBEIRO, Berta G. Suma Etnológica brasileira. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. _______. Glossário dos Trançados. In: RIBEIRO, Berta G. Suma Etnológica brasileira. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. Mariza Peirano. Etnografia, ou a teoria vivida. In: Ponto Urbe [Online], fevereiro de 2008. Disponível em: http://pontourbe.revues.org/1890. Acesso em: 13 de Maio de 2016. PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Trad. Inês Alfano. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. In: Ponto Urbe [Online]. Novembro de 2012. Disponível em: http://pontourbe.revues.org/300. Acesso em: 21 de Maio de 2016.

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FLÁVIA PEDROSA

FORMAS SEM FÔRMAS

Instável lua que irradia na iminência do afeto, encontro em ti um regesto e uma trajetória… Parei em um ajuntamento por alguns minutos com um pulso de paz com um suor gordo fechei os olhos em descolamento desloquei a verdade do agora coloquei a frequência inaudita entre melodias coloquei de molho por horas fiquei sentada naquela fenda observando encolhi os ombros e na aleatoriedade do tempo não sofri uma linha redesenhei generosamente em palavras com a atenção ao corpo da imagem em desalinhamento fazedora ao vento sem lamentos enxergo potências do agora onde habitam milimetricamente desejos inabitados cotidianamente reflexo maravilhamentos arranco um suspiro e no silêncio instaurado desato nós hospedados ao longo das últimas semanas

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urge um tempo além do desespero do ser domado desapego das perdas e identifico outras setas para outros alvos não-definidos mas que miram encorpados aguçamentos… Nesse conjunto, memória abre baú recordando em profusão dando nascimento ao processo… devires que estavam escusos, sem medo, sou desenho escorrido e enxaguado depois de expôr os desalinhamentos em vigor da ação deixo sem recorte água que deságua na pedra desafogada…. Confiro a existência do trajeto presto reverência aos temperos todos e salpico um pouco no ambiente sem destemperos desloco então as pontas desfiadas fabricando nuvens para voar em algum horizonte destaco em vermelho o motivo

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desse reatamento em conjunturas não-lineares “las cajas no me encajan” e a linha reta já é utopia respiro pausadamente em tragos cálidos dou um tom de quem prova vinhos grudos nas fissuras de onde brotam e gotejam as ideias assumo o assombro caudalosamente cato cascaviando com dedinhos de quem come com cuidado gestos em salivas estou te salvando em mim flash eclipsado no instante acurando piedosamente… agradeço desde já os (res) piros dou o toque em (re) gesto a paz instaurada estralada e digerida na cumplicidade estética…com consentimento.

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