pa_l_2008_enunciados_teoricos_vol2

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EDUCAÇÃO POPULAR - ENUNCIADOS TEÓRICOS -

VÁRIOS AUTORES COORDENADOR

VOLUME 2 JOÃO PESSOA-PB


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APRESENTAÇÃO


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PREFテ,IO


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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PREFÁCIO EDUCAÇÃO POPULAR - sistema de teorias intercomunicantes José Francisco de Melo Neto EDUCAÇÃO POPULAR E EMANCIPAÇÃO HUMANA: matrizes históricas e conceituais na conquista do reino da liberdade Ronney da Silva Feitoza EMANCIPAÇÃO HUMANA E A EDUCAÇÃO POPULAR: um devenir Maria do Amparo Caetano de Figueirêdo IGUALDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR José Luiz Ferreira SUBJETIVIDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR Nelsânia Batista da Silva CRIATIVIDADE COMO CONSTITUTIVO DA EDUCAÇÃO POPULAR: uma abordagem acerca da diversidade cultural, a partir de Paulo Freire Agostinho da Silva Rosas EDUCAÇÃO POPULAR E DIÁLOGO: precisa a educação (popular) ser dialógica(?) Antonio Roberto Faustino da Costa EDUCAÇÃO POPULAR E PRÁXIS: a ação política e educativa dos trabalhadors e das trabalhadoras do MST Rita de Cássia Curvelo da Silva EDUCAÇÃO POPULAR E AÇÃO TRANSFORMADORA: a ação do perguntar humano Tânia Rodrigues Palhano PROCESSOS DE EMPODERAMENTO EDUCAÇÃO POPULAR

NO

CONTEXTO

DA


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Iolanda Oliveira CULTURA E EDUCAÇÃO POPULAR: a apropriação dos entes da cultura Maria das Graças de Almeida Baptista RELAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO POPULAR FREIREANA MEDIADA PELA SUBJETIVIDADE DA SEXUALIDADE Roseana Cavalcanti da Cunha CONSIDERAÇÕES


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EDUCAÇÃO POPULAR: sistema de teorias intercomunicantes José Francisco de Melo Neto A educação popular pode ser examinada como uma possibilidade educativa veiculada e incentivada tanto pelo Estado como por setores da sociedade civil – sindicatos, partidos políticos, organizações não-governamentais, igrejas e outras instituições. Tem despertado maior interesse como ferramenta de luta, a partir do início do século passado, na organização de setores das classes trabalhadoras. Manifestou-se no seio das práticas políticas dos anarquistas, sobretudo nas duas primeiras décadas, ou mesmo na perspectiva educacional do governo, desde a década de 30, estando presente na legislação ou em projetos da política governamental1, voltados à educação do povo, compreendida como educação popular. Em época mais recente, adquiriu novas dimensões quando a educação popular passou a ser compreendida, também, como aquela propalada em campanhas do tipo Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e, de certa forma, do Movimento de Educação de Base (MEB). Isto ocorreu com maior ênfase durante as quatro últimas décadas, quando passou a absorver as mais diferenciadas experiências educativas nas Américas, na África e outros continentes, com metodologias, linguagens, visões políticas, técnicas didáticas, mecanismos avaliativos próprios e presentes nos distintos movimentos sociais revolucionários do século passado. Nessa perspectiva, assumiu-se como sendo a forma da educação possível aos setores sociais como indígenas, camponeses, trabalhadores, trabalhadores sem terra, moradores de periferias das cidades e outros setores marginalizados das políticas públicas. Contudo, somente a partir da década de 50, com ênfase, no início da década de 60, tem início a demarcação desse campo da educação com as experiências de Paulo Freire2, de modo especial, no âmbito da 1

Ver: Kulesza, Wojciech Andrzej. Para a história da educação popular no Brasil republicano. João Pessoa, 2003.

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A primeira, dentre as muitas experiências, aconteceu no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo Prof. Paulo Freire. Registrem-se ainda as ações educativas do Movimento de Cultura Popular (MCP) e da União Estadual dos


7 alfabetização. No entanto, análises, tentativas e definições de políticas em educação direcionadas a esse campo da educação continuam. A partir do ambiente de analfabetismo regional, Paulo Freire passou a delimitar a aplicação de sua perspectiva educacional, definindo essa situação como de comunidade ou consciência “intransitiva”, quando os interesses das pessoas estão definidos pelas exigências elementares biológicas de sobrevivência. Por meio da ação educativa, eleva-se esse patamar de consciência para um nível de “transitividade”, onde o humano e também o seu mundo adquirem esferas para além das dimensões biológicas vitais, alçando-se o compromisso para com a sua existência. Esse patamar da “consciência transitiva”, considerado por Freire (1963) de “ingênua” em um primeiro estágio, é caracterizado pela visão das coisas de forma nebulosa e não como fruto da investigação, pela fragilidade dos argumentos, pela desconfiança de tudo que é novo, pela falta de incentivo ao debate ou por suas explicações mágicas. A partir daí, eleva-se para o exercício da crítica estabelecido pelo diálogo, fomentando a socialização dos bens culturais. Em sendo diálogo, é comunicação e, jamais, superposição de ‘comunicados’ daqueles que se sentem possuidores desses bens. Isto implica “ter na própria realidade o elemento mediador. O homem comum e o intelectual, permeados pela realidade de ambos e ‘simpatizados’ em torno dos objetos, fazem assim a intercomunicação, que é a própria democratização da cultura” (ibid.: 22). Então, há de se perguntar3: um processo educativo que percorre os patamares de consciência do nível da ingenuidade à crítica, por meio da comunicação, inserida no Estudantes de Pernambuco, do Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Recife e o Centro Popular de Cultura (CPC), criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE). Estas ações estenderam-se por vários Estados, destacando-se os projetos implantados na cidade de Angicos e Natal, no Rio Grande do Norte, com a Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Na Paraíba, destacaram-se as campanhas: 1) alfabetização-educação de adultos pelo rádio (SIREPA – Sistema Rádio-Educativo da Paraíba); 2) aplicação em larga escala do Método Paulo Freire e do movimento de cultura popular adjacente (CEPLAR – Campanha de Educação Popular); 3) Cruzada ABC – Cruzada da Ação Básica Cristã, pós-abril de 1964, liderada por missionários protestantes e técnicos norte-americanos. Suas experiências chegaram a Osasco (SP) e Brasília. Posteriormente, elaborou-se o Plano Nacional de Alfabetização (PNA-MEC), o Projeto Nordeste e Projeto Sul (Sergipe e Rio de Janeiro) financiados pelo MEC. Ver: Scocuglia, Afonso Celso (1997). 3

A pesquisa desenvolvida teve como amostra cinco grupos de profissionais no campo da educação popular, num total de noventa e seis participantes: a) na Experiência de Autogestão que vem sendo desenvolvida na Usina Catende-PE (2002 a 2004); b)durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com a participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro (2003); c) com profissionais (alunos/as) de 3 turmas em duas disciplinas Teoria em Educação Popular e História e Filosofia da Educação Popular, no Programa de PósGraduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura) (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB (2003 e 2004), coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos.


8 ‘seio’ da cultura e promovendo a sua democratização, não se constitui como um sistema aberto de educação com teorias que se comunicam? É um possível sistema que não comporta a investigação por meio de cálculos lógicos, estando desprovido de interpretação. Não se está propondo o exame de um discurso que expresse símbolos primitivos determinadores de combinações simbólicas, construindo regras geradoras de novas regras de inferência que contenham expressões definidoras para outras novas regras. E, muito menos, que o seu percurso de chegada, por meio de formulações axiomáticas, seja a expressão da verdade última. Entende-se como um itinerário que pode expressar-se pelo modo de como se construiu aquele campo de conhecimento, o campo educativo popular, a forma peculiar de seu pensamento, com raciocínios que seguem um trajeto caracterizado por momentos intermediários dessa construção. Trata-se de um conjunto que expresse uma totalidade, estando traduzido nesse discurso. Essa totalidade precisa estar assentada em elementos unitários formados de conhecimentos múltiplos que organizam uma idéia central. A partir do concreto, os experimentos em educação popular e, portanto, o ambiente mais complexo de análise que se desenvolve e que se mantém, reunido como unidade mesma, constituem essa totalidade pelas suas determinações e diferenciações. O resultado é um conjunto expresso por inter-relações diversas, circunstanciadas em um certo tempo e movimento. E isto define a constituição de um sistema com teorias que, necessariamente, será mantido em aberto, comunicativo e em condições para comportar novas composições unitárias. Um sistema que encerra em si teorias traduzidas por proposições ou conjunto de proposições, envolvendo as suas relações e implicações. Essas teorias serão utilizadas na explicação desse fenômeno educativo, em que se tornem possíveis as suas verdades, bem como as bases de sua natureza. A partir dessas teorias, tornar-se-á possível a definição de hipóteses que poderão ser úteis nas explicações das realidades definidas. Com isso, estarão expondo os seus métodos, considerando a diferenciação dessas tentativas que conduzem o fenômeno educativo-popular. Todavia, um ambiente de educação não comporta teorias que se apresentem, tão-somente, assinaladas por generalização empírica ou por simples especulação. Em educação popular, são admissíveis teorias que possam se apresentar como expressão de síntese de um conjunto de proposições especulativas, desde que combinadas com proposições geradas das experiências.


9 Com essa possibilidade, admite-se haver a sua formulação, a partir de vários ensaios históricos e outros em desenvolvimento, como um fenômeno educativo que, pelo trabalho humano, assegurem a produção e a apropriação dos bens culturais. De forma mais ampla, esse sistema tem como objetivo explorar e incentivar as potencialidades humanas educativas quanto à produção e apropriação desses bens, na expectativa de mudanças. Experiências e formulações teóricas vêm abalizando seu significado como um conjunto de elementos teóricos que fundamentam ações educativas relacionadas entre si e ordenadas segundo princípios alicerçados em vivências. Esses princípios, por sua vez, formam um todo ou uma unidade. Porém, mesmo resultando em uma unidade, esta se mantém em aberto, na medida em que relaciona ambiente de aprendizagem e sociedade, educação e o popular. Dessa forma, a educação popular manifesta-se por meio do insistente desejo de criação de conhecimentos que busquem fazer história. Nessa construção da história, o ser humano expõe-se a novos temas e provoca o surgimento de novos valores, sugerindo outras formulações, dando origem a novas atitudes e mudando o seu comportamento. É um trabalho humano que se dá em e pela prática do indivíduo. Assim, à medida que humaniza a natureza, também naturaliza a sua dimensão de ser humano4. Expressa, ainda, a sua verdade, no sentido de que o indivíduo deve sair de si mesmo e modelar a própria realidade expressa pelas suas atividades. Nesse movimento, o humano elabora, sistematiza e reelabora o conhecimento, cuja cientificidade se demonstra na sua própria prática coletiva. Constrói-se, dessa maneira, uma metodologia coletiva capaz de tornar-se hábil em atitudes de orientação, sistematização e explanação de idéias. Com ela, preparam-se técnicas de reuniões, exercitando a crítica e a organização geral de entes humanos em suas classes. Através dessa teoria, exteriorizam-se conteúdos gerais que se originam no mundo concreto, adquirindo diferenciadas modalidades de trabalho pedagógico. Esse modelo vem sendo aplicado, com sucesso, nas ações educativas com moradores de periferias de cidades, operários, camponeses e outras categorias de pequenos produtores rurais, incluindo a educação indígena, não seriada. É um ato pedagógico em contínuo movimento, cuja dimensão qualitativa reclama a forma como se desenvolve a “consciência crítica” de seus participantes e o tempo em que as atividades são conduzidas. A

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Ver: Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Com destaque ao capítulo que aborda a teoria da cultura.


10 avaliação de seus conteúdos, finalmente, conduz à análise organizativa do conjunto educativo em desenvolvimento. Esse fenômeno educativo cultiva valores éticos promotores de atitudes democráticas, direcionadas para a igualdade e a liberdade. Tais valores efetivam-se como prática para a liberdade, “como gesto necessário, como impulso fundamental, como expressão de vida, como anseio quando castrada, como ódio quando explosão de busca, que nos vem acompanhando ao longo da história. Sem ela, ou melhor, sem luta por ela, não é possível criação, invenção, risco, existência humana” (Freire, 1991: 50). É uma luta coletiva ansiosa por democracia que, para Calado (2003), exigirá atitudes coletivas com dimensões de curto, médio e longos prazos, envolvendo os variados segmentos explorados da população. Caso esses setores estejam ausentes, tal conquista não ocorrerá. Essa luta resultará em um esforço de ascese em que o indivíduo se torna cada vez mais humano, quando inicia a sua descoberta consciente do mundo. As suas atividades conduzem para uma idéia central – a liberdade. Inicia-se na alfabetização, passa pelos círculos de cultura5, pela educação básica e média, chegando, de forma presumível, à universidade popular e a outros ambientes do conhecimento. Trata-se de um percurso de exercícios forçosamente subversivos, fundamentado na liberdade como expressão da utopia que está prenhe de possibilidades de realização. Esse é o percurso revelado por um sistema educativo. As bases da educação popular tornaram-se mais sólidas com Freire. Os seus programas de alfabetização de adultos originaram-se nas análises e nas críticas às situações existentes, em particular, ao analfabetismo, tentando a superação desse quadro com ações culturais para a liberdade6. O próprio termo “surgiu do reconhecimento da existência da diferença e da oposição entre culturas do povo e cultura da elite” (Brennand, 2003: 61). A sua ação cultural libertadora gestou programas voltados aos setores que estão à margem da sociedade - os oprimidos. Buscou a superação existencial da situação de ‘dominado’ daqueles que estão despossuídos dos produtos culturais, a partir da capacidade de leitura.

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Ambiente formado por um círculo de pessoas em que, pelo diálogo (educação popular), promovem-se a codificação e a decodificação de seus mundos e suas vidas.

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Ver os livros de Paulo Freire: Educação como prática da liberdade; Ação cultural para a liberdade e outros escritos; Conscientização; Teoria e prática da libertação; Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire e Pedagogia do oprimido.


11 Alimentou-se um desejo de caminhada em que se supera a condição de análise da mera experiência, mesmo que seja tida como ponto de partida. Transgrediu-se, pelo pensar crítico, a visão sensível geradora de um saber apenas existencial ou opinativo, fecundada de uma ação prisioneira da magia. Esse percurso inicia-se por outro sistema que é o de sinalizações, tratado como um sistema universal que descortina a condição de uma comunicação escrita. A questão que se impõe é: Como proceder a essa montagem de sinalizações? “Somente um método dialogal, ativo, participante poderia realmente fazê-lo. Somente pelo diálogo que, nascendo numa matriz crítica, gera criticidade e que implica uma relação de como conseguir esses objetivos” (Freire, 1963: 14). Estabelece-se prontamente o caminho da construção de um sistema educativo popular. O método em construção traz consigo uma teoria de conhecimento que tem como ponto de partida o mundo concreto por meio do levantamento do universo vocabular do grupo em condição de se alfabetizar. Nesse ambiente, desabrocham os seus anseios, suas crenças, suas frustrações e a estética de sua linguagem. Passa-se, em seguida, para um segundo momento de seleção nesse universo vocabular, quando o grupo consegue identificar as palavras que se apresentam mais ricas em fonemas e ‘pluralidade de engajamento’ no ambiente onde vive - local, regional e nacional. Avança-se, nos momentos seguintes, para o debate, a partir das situações que vão sendo geradas. Possibilita-se, com isto, a elaboração das ‘fichasroteiro’ e dos vídeos auxiliares dos coordenadores na organização da aprendizagem. A partir desse material, avança-se para a definição dos fonemas que irão compor outras palavras, continuando com os círculos de cultura. De acordo com Paulo Freire, esse método anuncia a definição da primeira etapa do percurso educativo, que é a fase da alfabetização infantil. A segunda etapa é a alfabetização de adultos, que abre à educação básica. Essa etapa contribui para a oferta do ensino médio e a organização da universidade popular, conduzindo às etapas finais da criação de um Instituto de Ciências do Homem. Culminará com a concretização de um Centro de Estudos Internacionais. É um método que se funde com a teoria do conhecimento e com a organização estruturante de um possível esboço de currículo, permeado por análises lógicas, semióticas, lingüísticas e filosóficas. Incorpora uma teoria da comunicação, edificando-se a partir de duas categorias fundantes: a comunicação e a cultura. E filosofia da educação “é, entre outras coisas, o estudo deste processo de transferência ou transmissão de cultura, e a teoria e prática da comunicação, que a torna possível” (Maciel, 1963: 29).


12 Pela comunicação, opera-se o sistema, enquanto a cultura torna-se o meio para sua realização, adquirindo maior radicalidade com a necessária socialização dos bens culturais. Assegura-se, assim, a pedagogia dialógica. Isto possibilita que o humano, à proporção que promove a democratização desses bens, realimenta-se com tal produto que lhe é próprio, pois é o seu produtor, passando o sistema a funcionar como um todo que se intercomunica. Por meio desse método dialogal, o humano passa a atuar conscientemente, educa-se e é educado com os demais. Ao se transformar e se comunicar, também transforma e comunica a todos. Ações intercomunicantes mantêm-se estabelecidas em experiências atuais, como a da Usina Catende7, externadas em planos de educação para a aprendizagem de outros valores éticos nas relações humanas. “O presente momento deste projeto exige organização da atividade de formação para os trabalhadores compreenderem a sua ação no interior do processo produtivo da empresa... Este plano está articulado com outras atividades complementares, tais como pesquisa sobre satisfação no trabalho e reuniões, às quintas-feiras, nos engenhos” (Lima, 2001: 1). O projeto é um convite aos trabalhadores demonstrando que, além do domínio dos códigos de linguagem pela comunicação, é urgente a compreensão dos mecanismos de produção. Para além disso, avança-se nos objetivos desse plano de educação no ambiente da indústria, resumido como “a capacitação dos trabalhadores na perspectiva da empresa autogestionária” (ibid.: 2). E isto significa ter por base a dimensão concreta da realidade, pois a sua execução passará pela quebra da visão de que o trabalhador não apresenta condições de gerir um empreendimento produtivo com suas próprias mãos. “Portanto, a formação, como processo permanente de produção da história e visão de mundo de cada um, cumpre, em nossa compreensão, o papel fundamental de ser cimento que agrega diversos fragmentos existentes na consciência dos indivíduos, possibilitando a compreensão do projeto histórico dos trabalhadores” (ibid.: 2). O plano teve início com as discussões dos valores da economia solidária e da autogestão. Em seguida, passou pelas dimensões técnicas específicas para ambos 7

Desde o ano de 1993, os trabalhadores da Usina Catende, no município de Catende, em Pernambuco, uma das várias usinas que faliram na região açucareira nordestina, vêm mantendo a sua sobrevivência e a da usina sob o controle deles próprios, num longo exercício educativo para a autogestão, administrando, economicamente, em dimensões de uma economia solidária. É uma experiência em andamento denominada de Projeto Catende/Harmonia. No seu Plano de Educação foram montados dois cursos técnicos, que foram realizados simultaneamente, sendo um curso em Técnicas de Gerenciamento em Produção Agrícola, para trinta participantes, e o outro em Técnicas de Produção na Agroindústria Açucareira, para outros trinta participantes, e ambos sob a orientação pedagógica da educação popular e da economia solidária.


13 os cursos, como as do plantio da cana, a escolha da agropecuária alternativa para a região e técnicas utilizadas para a produção do açúcar, no interior da usina. Chegou-se, por fim, ao exercício para a aprendizagem dos cálculos de custos das técnicas utilizadas, lastreadas pela educação popular. Abre-se um campo muito vasto para se discutir a lógica e a teoria do conhecimento que essas ações educativas e populares vêm demonstrando. O que se pode ver neste experimento? Uma expressiva série lógico-gnoseológica aparece. O objeto de ação é a realidade que se mostra com sentidos, expresso por sensações, percepções, juízos, verbalização e conhecimento objetivo. Surge uma dimensão que Maciel (1963) apresenta como as três operações do pensamento: a apreensão (operação mental que forma a idéia, expressa pela verbalização da palavra); o juízo (ato de afirmar as suas apreensões); o raciocínio (composição dos juízos entre si, por meio dos conectivos básicos geradores das demais conjunções). Através desse percurso, viabiliza-se a procura da melhoria sustentável das condições de vida dessa população de baixa renda e moradores dos engenhos de propriedade da usina. Isso ocorre por meio da mobilização, do acompanhamento e de suas iniciativas empreendedoras, inclusive de gestão, das articulações políticas dos atores locais, do trabalho sócio-educativo com as famílias da região, dos planos de negócios e projetos de empreendimentos, alimentando a visibilidade do aprender humano8. O projeto identifica-se com a abertura da sociedade à aprendizagem coletiva. Nela, segundo Gonçalves (2000: 37), “direcionam-se as novas formas de trabalho e de serviços, articulando-as ao aprender permanente e à flexibilidade adaptativa de seus sujeitos”. O método concebido na alfabetização freirena é aqui usado na mesma base maiêuticosocrática. O diálogo é usado como força motriz da linguagem que se instala e vai se apresentando como caminho, sempre aberto, para uma seqüência de argumentação ou novas definições de gestão para uma autogestão. O procedimento metodológico é sempre dicotômico(dialético) ou de divisão em duas partes; em seguida, uma das partes é tomada para nova definição, que novamente será dividida, dando continuidade ao procedimento. Este método duplo conduz, de início, a uma técnica de argumentação que procura desmontar os conhecimentos prévios de cada participante, bem como os possíveis vícios existentes de pensamento e tidos como verdadeiros e definitivos. 8

Vários momentos nos círculos de cultura são coordenados pelo grupo de mulheres, sob a orientação do Centro de Mulheres, da cidade do Cabo/PE.


14 O segundo momento é o da maiêutica em que todos se preparam, por meio de perguntas, trazendo as suas verdades. Os exercícios de anamnese (retornos à história da usina e às vezes do/a participante) criam as condições subjetivas desse trânsito do ‘eu’ para a própria interioridade. Esse conhecimento é resultante do movimento de perguntas e respostas. Não é um conhecimento gerado de uma simples opinião, daquilo que se pensa ter certeza. Há, portanto, toda uma argumentação que o solidifica. Essa construção é o método utilizado nesse caminho educativo, que não se esgota com o ato de colecionar informações categóricas ou definitivas. O debate sobre a autogestão em Catende apresenta-se, em geral, de forma bastante abstrata, considerando que tentativas dessa natureza não são comuns na região. Para os trabalhadores, o diálogo que se trava na construção da autogestão não é algo para grupos fechados; é uma postura de reflexão desenvolvida nos indivíduos participantes sobre o seu mundo, no qual aprendem como criá-lo e recriá-lo. É um convívio entre sujeitos cognoscitivos, para além de simples sinais de linguagem, na medida em que envolve eventos sociais de relacionamentos entre os atores do processo. Para nós, não existe democracia sem apropriação coletiva dos meios de produção. A autogestão é um processo de aprendizado, principalmente em áreas de agroindústria em que predomina alto índice de analfabetismo e baixa institucionalidade de organização empreendedora dos trabalhadores. Portanto, autogestão trata-se de nova cultura do trabalho e administrativa se articulando numa estrutura funcional do negócio, em que os resultados finais são coletivamente apropriados (Usina Catende, 2002: 1)9.

Isto expressa as funções psicológicas da abstração e da generalização que Maciel (1963) detecta em Freire, na perspectiva de Pavlov. É um sistema de sinalizações em que, no primeiro momento, há ênfase nas percepções do mundo real e concreto; no segundo momento, pela linguagem, o humano transcende para a criação, em todas as esferas da vida, sendo esta inesgotável. Após esses anos de ações de ensino e aprendizagem para outro estilo de vida, os trabalhadores da usina exibem mudanças quanto ao uso da terra, mesmo que permaneça a cana de açúcar como produto principal. “Mudanças das relações empresa e sociedade, da liberdade de organização e expressão, da moradia, da educação, e que despertam para a questão: o que significa (a usina) numa região dominada secularmente pelo latifúndio, exploração do trabalho, 9

Os textos produzidos na própria Usina Catende, aqui apresentados como mimeografados, estão disponíveis no ambiente de reuniões do Projeto Catende/Harmonia.


15 analfabetismo, mandonismo e violência?” (Usina Catende, 2002: 2). Trata-se de uma questão para ser respondida por quem assume a relação homem e mundo, num ambiente com as dimensões culturais apresentadas, expressando, de forma visível, o avanço para a consciência crítica, possibilitada pela comunicação por meio do diálogo. São categorias ou postulados presentes em Freire e que aparecem nesse projeto, incentivando ações que definem pressupostos teóricos formuladores de um sistema intercomunicante. Nos círculos de cultura10, são discutidas as providências com vista à obtenção de alevinos para os barreiros dos trabalhadores ou a criação de outros animais e implementos agrícolas. Neles, os trabalhadores debatem suas formas de atuação junto à administração central da usina, como a eleição para os vários conselhos existentes, a autogestão, a safra e preços do açúcar, a defesa do projeto Catende/Harmonia e suas dificuldades, a sua participação na Articulação da Mata Sul11, além do mecanismo de falência e a discussão permanente sobre economia solidária e autogestão12. Também nos círculos, os trabalhadores decidem o conteúdo dos cursos promovidos no âmbito da usina, as técnicas de produção para a agroindústria, onde são tratadas questões referentes à economia e à produção, além de todo o circuito da extração do açúcar – do plantio da cana à venda do açúcar no mercado internacional. “A socialização de conhecimentos adquiridos pela vivência, dialogando com os conceitos técnicos, favorece uma nova compreensão da realidade vivida pela produção familiar” (Usina Catende, 2004: 4). Trata-se do estudo de todos esses sinais que tem na linguagem o principal veículo de conhecimento e, na comunicação, o canal da cultura. Linguagem cuja dimensão pragmática verificada nesses aspectos da educação popular é destacada por Maciel (1963). Ele salienta quatro diferenciados níveis da pragmática, dando ênfase ao nível da pragmática existencial social, na semiótica das interpretações das palavras tratadas, e ao nível da pragmática existencial-transitiva, onde os participantes do ‘círculo de cultura’ captam a dimensão política e social da palavra. 10

Compõem a Usina Catende quarenta e oito engenhos (povoados rurais), onde funcionam vinte e três círculos de cultura. Em todos, estão instaladas associações de moradores, espaços de discussão e reflexão daqueles moradores.

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A Articulação das Entidades na Mata Sul de Pernambuco é um espaço de reflexão em que associações urbanas e rurais, organizações não-governamentais, movimento sindical de trabalhadores rurais e centros de mulheres (várias cidades) se articulam em torno de uma agenda comum para o desenvolvimento sustentável da Zona da Mata.

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Ver: Cartilhas da Série Catende/Harmonia, volumes 1 e 2. (Material didático dos círculos de cultura).


16 Nesse momento, a cana não é mais uma simples planta, transformando-se em produto de vida, com as interfaces das dimensões de mercado e as conseqüências sociais para a região. Esses sinais compõem os currículos naquele campo de vivências educativas, tornando possível a sua interpretação devido à riqueza de seus fonemas.

Merecem destaque os diversos

engajamentos dos trabalhadores nesses ambientes, com suas dimensões sociais e políticas. Esses sinais também foram detectados por Melo Neto (1999), num exercício de ação cultural, na Zona da Mata Norte de Alagoas. O estudo foi desenvolvido com membros de sindicato, professores da escola normal, grupo do Mobral, do esporte, clube de jovens, grupo de zabumba e da festa dos guerreiros e artesanato, além de grupos de arte13. Produziu-se um conhecimento que, segundo Fleuri (2002: 211), “significa fundamentalmente construir teóricopraticamente relações humanas”. Expõe-se, com freqüência, a presença do humano no seu meio ambiente, por meio de sinais semióticos ou da linguagem escrita, em autênticos exercícios de codificação, realizados através de debates, de cartilhas, de fichas e vídeos. Os momentos de decifrar esses símbolos reconciliam as dimensões antropológicas e sociológicas do estudo14 e, portanto, desse sistema de educação. É a única empresa que incentiva o trabalhador para plantar a cana e moer na própria empresa, além de outras culturas. As outras empresas só precisam do nosso trabalho... Isso é de fundamental importância e é a grande diferença para as outras empresas. A gente acredita que os apoios das entidades como a CUT, a Federação e Confederação, os sindicatos e todos que abracem esse projeto muito ajudam (Amaro Juvino)15.

No entanto, vários são os projetos de instituições de apoio ao Projeto Catende/Harmonia e que, muitas vezes, pulverizam ações, conduzindo para a criação de uma equipe de educação da própria usina como forma de melhor incorporar as atividades educativas. Então, a ADS (Agência de Desenvolvimento Sustentável) que a gente desenvolveu com a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e tem, inclusive, a ANTEAG (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária). Estão desenvolvendo coisas muito parecidas. A gente tenta ver uma forma de como somar forças... Isto pressupõe, 13

Ver: Melo Neto, José Francisco de e Kulesza, Wojciech Andrzey. Ação cultural no meio rural. In: Resistência popular – possibilidades, ontem e hoje. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.

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As entrevistas completas, das quais são apresentados trechos, estão no Relatório desta Pesquisa denominado: Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Melo Neto, José Francisco de. Catende, 2003.

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Trabalhador rural em engenhos da Usina Catente. Entrevista para esta pesquisa.


17 necessariamente, ter um trabalho educativo para que eles possam trabalhar de forma crítica todo processo (Isabel Cristina, professora da Catende/Harmonia).

Há necessidade de melhoria nos serviços prestados por grupos que contribuem para as ações de desenvolvimento local e da região. Além disso, é preciso criar novos mecanismos, fazendo com que os trabalhadores participem mais diretamente das negociações e decisões do Projeto Catende/Harmonia. Deve-se estabelecer um percurso de negociações que seja assumido e que garanta igual participação dos trabalhadores do campo e da empresa, tendo como pauta a implantação de política, buscando conferir as mesmas oportunidades a todos, de igualdade, de solidariedade e de proteção ao meio ambiente. São elementos de uma teoria política que se sustentam com o exercício da capacidade de gerenciar o empreendimento. A proposta do desenvolvimento local é nova para a região, e as relações sociais insistem em permanecer num tempo passado. Se ela (usina) fechasse e dividisse as terras para os trabalhadores seria bom – uma reforma agrária. Os donos que colocaram o pessoal para fora disseram, na época, para a gente receber o que nos era devido em terra e dinheiro. Os sindicalistas não aceitaram, com o interesse de tomar conta da empresa. Disseram que a empresa é do trabalhador, o lucro da empresa vai ser dividido pelos trabalhadores e isso nunca aconteceu nem vai acontecer. Eu acho que uma empresa dessas não vai para frente (José Milton)16.

As discussões continuam centradas nas questões econômicas, no mercado internacional do açúcar e no próprio desenvolvimento do projeto e da região, tendo-se a percepção de que as ações educativas não superam o debate sobre desenvolvimento. A esse respeito, alerta Ireland (2001: 176): “O crescimento econômico não é um substituto adequado para educação, ciência, cultura e comunicação entre povos e nações”. Todavia, os possíveis fatores de sucesso do Projeto Catende/Harmonia passam pela sua capacidade de produção, pelas relações que estejam ao seu favor entre a empresa e o Estado, bem como pela promoção da democracia interna no campo e na fábrica. Passam ainda por essa ação educativa, a partir da empresa, estendendo-se para a região e para o país, trilhando um caminho seguro em que a usina produza cultura, inclusive o açúcar. É preciso observar que, do ponto de vista jurídico, não houve o encerramento da falência. Os usineiros não assistem a tudo isto como expectadores. Acrescente-se, ainda, que 16

Entrevista para esta pesquisa. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Cidade de Palmares – PE. Palmares é um dos cinco municípios abrangidos pelo Projeto Catende/Harmonia, onde a usina tem suas terras.


18 uma empresa falida não pode fazer financiamento, investimento em pecuária, nem desenvolver pequenas fábricas. Isto só se viabiliza nas atuais condições, a partir de algum aporte de recursos da cooperação internacional. Precisamos transformar pessoas em dirigentes para o futuro. Além do problema econômico, há problemas de se planejar estrategicamente a ação dos bons quadros e dos atores existentes em torno do projeto. Todos aqueles dirigentes da Catende são importantíssimos, mas é possível aproveitar, ainda mais, o potencial deles num todo. As pessoas também têm muito potencial e é necessário ajudá-las nisso (Risadalvo José, assessor do Projeto

Catende/Harmonia)17. As críticas são feitas também por parte dos operários, quando apontam a necessidade de que o pessoal da indústria precisa partir para outras alternativas. Para o trabalhador do campo, há o ‘projeto cana de morador’ com a posse pelo próprio agricultor da cana plantada e colhida. Nessas críticas, pedem que sejam examinados projetos para os operários da indústria, em seus variados setores. Nós temos uma carpintaria que está, praticamente, parada; temos uma cerâmica que poderia gerar renda; temos um hospital – a Policlínica Gouveia de Barros - que está, praticamente, parado, além da fundição. Então, nós da indústria temos que criar algum tipo de perspectiva, algum tipo de alternativa para a gente garantir a nossa sobrevivência e não ficar na dependência da Harmonia/Catende e do pessoal do campo (Francisco José e Edvaldo Ramos,

operários da Usina). Cursos são promovidos para fortalecer metodologias de uma pedagogia participada, com a finalidade de “preparar trabalhadores residentes em áreas da usina, as zonas de produção agrícola, para atuar, técnica e solidariamente, no gerenciamento de produção da cana de açúcar e culturas alternativas para o desenvolvimento auto-sustentável” e “preparar trabalhadores para atuarem, técnica e solidariamente, em agroindústrias, no processo de produção do açúcar” (Melo Neto, 2003: 215), com conteúdos específicos, com um peculiar sistema de avaliação dos/as participantes e coordenadores/as dos cursos. Os canais variados e polissêmicos da linguagem cruzam-se. As pinturas, o auditivo, por meio do verbal, os áudios e gráficos estão presentes. Além da associação de fonemas e de palavras, associam-se palavras com as imagens, palavras com novas palavras, imagens com as palavras e imagens com novas imagens do mundo daqueles trabalhadores. Tal compreensão de linguagem pode explicar “o fato de que o indivíduo, ao usar a língua, não apenas exterioriza o pensamento ou transmite informações, mas também realiza ações com a própria linguagem e 17

Entrevista para esta pesquisa.


19 atua sobre os interlocutores” (Aquino, 2000: 53). Estes são campos de estudo para serem explorados pela teoria da comunicação e pela teoria da cultura, presentes nos exercícios da educação popular, efetivamente, com dimensões intercomunicantes. Resultados semelhantes foram catalogados em pesquisas que procuravam delinear ontologicamente a educação popular, junto a cursos de instituições18 que preparam profissionais para exercerem atividades nesse campo educativo. Durante a realização desses cursos, pesquisas foram desenvolvidas na busca de maior embasamento teórico para sua aplicação e a linguagem utilizada, tendo como fundamento o mundo experiencial dos participantes, definido como ponto de partida – o concreto. A presença do cotidiano entre os participantes desses cursos e suas reflexões foram se transformando em sínteses. A categoria teórica movimento acompanhou as reflexões e a produção coletiva durante o curso e a pesquisa, em um exercício geral de intersubjetividades. Foram coletados, com essa metodologia, os elementos que os educadores/as indicavam como os constituintes da educação popular, expressos abaixo: Quadro 1: Constituintes da educação popular com grau de pertinência19 igual ou superior a 80% dos respondentes. CONSTITUINTES

RESPONDENTES(%)

Compromisso político Práxis Autonomia Crítica Cultura Diálogo Processo

100 94 88 88 88 88 88

18

Dados de pesquisas realizadas no período de 2002 a 2004, nos cursos do Centro de Ação Comunitária (CEDAC), de preparação de profissionais em projetos que envolvem educação popular, na cidade do Rio de Janeiro, e com alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação (educação popular, comunicação e cultura), da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, em três turmas nas disciplinas de História e Filosofia da Educação Popular e de Teoria em Educação Popular. Todos os participantes são profissionais que atuam no campo da educação popular.

19

Aquele elemento teórico que mais identifica a educação popular. Destaca-se ainda um conjunto de outros elementos de pertinência inferior ao índice definido: metodologia própria, organização/sistema, coletivo, experiência, incentivo aos saberes, cooperação, trabalho, identidade/autoria, emancipação, liberdade, ideologia, subjetividade, ação, construção, produção, identidade, gênero e reflexão.


20 Pedagogia própria Transformação Realidade Empoderamento

88 81 81 81

Fonte: Pesquisa no CEDAC – Centro de Ação Comunitária, Rio de Janeiro, 2003. Esses dados reforçam a visão de educação popular expressa como um fenômeno cultural. Esse fenômeno passa a cultivar um tipo especial de ensino e aprendizagem, com teorias explícitas de conhecimento e de comunicação. Contém uma pedagogia própria, com conteúdos e procedimentos de avaliação, e uma base política libertadora efetivada por constituintes como a promoção de empoderamento das pessoas, a transformação e o compromisso político. A mesma pesquisa, realizada no ambiente universitário com alunos que atuam nessa área educacional, apresentou os resultados constantes no quadro que segue: Quadro 2: Constituintes da educação popular com grau de pertinência20 igual ou superior a 80% dos respondentes. CONSTITUINTES Cultura Construção do sujeito Compromisso político Crítica Diálogo Democracia Liberdade Autonomia Identidade Práxis Incentivo aos saberes Trabalho Popular

RESPONDENTES (%) 95 90 90 88 88 85 85 85 85 80 80 80 80

Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003.

20

Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Curso de Doutorado em Educação da UFPB, em João Pessoa - turma de 2003. Outras categorias teóricas que foram levantados com menor pertinência: produção de conhecimento(metodologia própria), prática, ideologia, autenticidade, experiência, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.


21 Essas categorias teóricas, identificadas para a composição de um conceito em educação popular, parecem ir, pouco a pouco, consubstanciando a possibilidade de que as mesmas formem uma visão da educação popular permeada de princípios éticos. Vão, além disso, constituindo uma filosofia com elementos evidentes de uma teoria de conhecimento. Esses elementos convidam para uma metodologia ou uma pedagogia especial, acompanhada de conteúdos com forte inspiração política para a liberdade, assumida pelas dimensões da práxis, da autonomia e da crítica. Além disso, aproximam-se no mesmo ambiente de pesquisa, considerando outra amostra21, apresentada a seguir. Quadro 3: Constituintes da educação popular com grau de pertinência igual ou superior a 80% dos respondentes. CONSTITUINTES

RESPONDENTES (%)

Autonomia Compromisso político Incentivo ao conhecimento Construção do sujeito Cultura Diálogo Práxis Trabalho Autenticidade/identidade Crítica Liberdade Saberes

90 90 90 85 85 85 85 85 80 80 80 80

Fonte: Pesquisa entre participantes de projetos em educação popular, João Pessoa, 2003. Esses elementos teóricos compõem material de discussão pelos participantes em seus ambientes de ensino e aprendizagem. Há, ainda, um exercício cujo objetivo é eliminar aspectos incongruentes do conceito, estabelecendo-se finalmente a educação popular como um conceito possível de orientar práticas educativo-populares. 21

Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina História e Filosofia da Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação - turma de 2003. Outros elementos também foram revelados abaixo do percentual de pertinência definido: democracia, experiência, ideologia, identidade, prática, popular, produção do conhecimento, resgate do sujeito, transitoriedade e apropriação do produto da educação popular.


22 Os dados de outro grupo pesquisado22 apresentam os seguintes elementos constitutivos: ação transformadora,

aprendizagem (sentir, pensar e agir), compromisso

político, construção do sujeito, crítica, cultura, democracia, diálogo, emancipação, liberdade, práxis, produção e apropriação do conhecimento (metodologia própria), realidade e saberes. Esses elementos indicam a existência de uma teoria de conhecimento que realiza uma pedagogia pautada na crítica, no compromisso político popular e na ética do diálogo. Essa pedagogia volta-se à construção do sujeito, ao empoderamento dos indivíduos envolvidos nessas ações comunicantes, definindo, portanto, um conteúdo e procedimentos de avaliação orientados no próprio processo. Ao reforçarem o compromisso político, a emancipação, a igualdade, a liberdade, a justiça e a felicidade, demarcam políticas que visam à emancipação da pessoa humana. Essas diversas ações educativas seguem os passos indiciários de Freire que, com base em sua pedagogia, passam também a nortear o exercício educativo presente na Usina Catende, nessas várias práticas pesquisas e em outros tantos lugares. Parece, assim, razoável compreender a educação popular como um fenômeno de produção pelo trabalho e de apropriação dos produtos culturais da humanidade. Como um fenômeno da cultura, a educação popular tem nesta as dimensões de bens de consumo e bens de produção. Apresenta a divisão do trabalho e expõe a existência humana, em razão de ser o humano o criador da cultura, alimentando uma teoria da cultura. Com a dimensão ética do diálogo, a educação popular forja um sistema aberto de ensino e aprendizagem, cuja filosofia convida outros valores éticos para expressar o seu fazer. Além disso, aponta para uma teoria do conhecimento referenciada na realidade e em um procedimento da razão, em forma de intersubjetividade, expressando a intersecção do mundo objetivo das coisas, do mundo social das normas e do mundo subjetivo dos afetos – a linguagem - cobrando uma teoria da comunicação. Pressupõe uma linguagem expressa por normas vigentes geradas de manifestações que possam ser justificadas, pois do contrário não serão legítimas nem terão valor dialógico intersubjetivo. É, enfim, um fenômeno educativo pautado por uma pedagogia (metodologia) incentivadora da participação e do empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais. Esse fenômeno é lastreado em

22

Profissionais que atuam em projetos de educação popular e alunos da disciplina Teoria em Educação Popular, no mesmo Programa de Pós-Graduação, turma de 2004.


23 uma teoria política direcionada aos anseios humanos de liberdade, de justiça, de igualdade e felicidade, além de estimuladora das transformações sociais necessárias. São dimensões teóricas, práticas e de valores para a vida que promovem a educação popular a patamares com possibilidades para além da ênfase na alfabetização de adultos. É uma filosofia com posturas éticas que sugerem outro estilo de se viver em qualquer ambiente do cotidiano, podendo ser iniciado na educação do lar, na educação infantil, na alfabetização e nos níveis do ensino básico e médio, consolidando-se na educação superior e espraiando-se por todos os níveis de ensino, também, de pós-graduação. Com essa demarcação, parece razoável a interpretação da educação popular como um sistema aberto de teorias intercomunicantes.

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24 __________. A paixão de mudar, de refazer, de criar .... Universidade e Sociedade. Sindicato Andes Nacional. Brasília. Ano I, fev/1991. FLEURI, Reinaldo Matias. A questão do conhecimento na educação popular: uma avaliação do seminário permanente de educação popular e suas implicações epistemológicas. Ijuí/RS: Ed.Unijui, 2002. GONÇALVES, Luiz Gonzaga. O viver/aprender na interface com o saber/ensinar. Temas em Educação. Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação-UFPB. João Pessoa: Editora da UFPB, vol 9, 2000. IRELAND, Timothy Denis. O atual Estado da Arte da educação de jovens e adultos no Brasil: uma leitura a partir da V Confintea e do processo de globalização. In: Educação popular – outros caminhos. José Francisco de Melo Neto e Afonso Celso Scocuglia (orgs). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2001. KULESZA, Wojciech Andrzej. Para a história da educação popular no Brasil republicano. In: O labirinto da educação popular. Org. Edna Gusmão de Góes Brennand. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003. LIMA, Lenivaldo Marques da Silva. Plano de Formação. Catende/PE. 2001.(mimeo). MACIEL, Jarbas. Fundamentação teórica do sistema Paulo Freire de educação. Estudos Universitários – Revista de Cultura da Universidade do Recife, no. 4, Abril - Junho, Recife, 1963. MELO NETO, José Francisco de. Ação cultural no meio rural. In: Resistência popular - possibilidades ontem e hoje. José Francisco de Melo Neto e Wojciech Andrzej Kulesza (orgs). João Pessoa: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 1999. _________. Usina Catende – entre a doçura e a harmonia. Relatório de pesquisa. Catende/PE, 2002. __________. Educação popular – enunciados teóricos. João Pessoa: Editora da Universidade Federal da

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25 USINA CATENDE. Pontos teóricos a serem destacados no projeto Catende/Harmonia. Catende, PE, 2002. (mimeo). __________. A Usina Catende – por uma cultura de autogestão. Série Catende-Harmonia, 1. Catende: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003. __________. A Usina Catende – técnicas e custos do plantio da Cana. Série Catende-Harmonia, 2. Catende: Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2004.


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EDUCAÇÃO POPULAR E EMANCIPAÇÃO HUMANA: matrizes históricas e conceituais na conquista do reino da liberdade. Ronney da Silva Feitoza

FAZ ESCURO MAS EU CANTO Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia. (“Faz escuro, mas eu canto”. Thiago de Mello, 1966)

Introdução Discutir a concepção teórica e disposição política da emancipação humana, como um dos constituintes da Educação Popular (EP), requer explicitar as idéias em torno do projeto de libertação humana, que se inscreve na perspectiva do materialismo histórico e dialético, sendo a compreensão da liberdade uma luta pela humanização e hominização de todo homem, superando o processo de coisificação.

Investidas

teóricas

deste

porte

se

apresentam como necessárias, marcadamente na contemporaneidade (ou “pós-modernidade”), que, como expressão filosófica e estética do neoliberalismo, do culto ao individualismo, da apologia pósestruturalista, vem buscando desqualificar todas as perspectivas coletivas, através do contraponto do requentado argumento do subjetivismo, desqualificando as demandas sociais, atingindo frontalmente os conceitos “clássicos”, como o da emancipação, pela opção reformista como nova síntese histórica. O conceito deriva do latim emancipare, relacionando-se ao processo, individual e coletivo, de considerar pessoas ou grupos independentes e representa o processo histórico, ideológico, educativo e formativo


27 de emancipar indivíduos, grupos sociais e países da tutela política, econômica, cultural ou ideológica (PIZZI, 2005). Nesta acepção, emancipar-se só é possível, no contexto de sociedades democráticas, por exigir um exercício anterior de noções como liberdade, igualdade, autonomia e desalienação, pois para exercer a emancipação, é preciso viver em sociedade, usufruindo de direitos civis, políticos e sociais, nos âmbitos individuais e coletivos, o que se desdobra em questões morais e éticas. Para Kant (apud RODHEN, 2004), a atitude crítica é o eixo definidor de uma pessoa livre e emancipada, com posições independentes e exame crítico apurado. Os seres humanos precisariam alcançar a maioridade e a autonomia, processualmente, já que Kant atribuía este sentido ao esclarecimento, o que só poderia ocorrer em situação de liberdade, propiciada pelo uso da razão e da linguagem, conceitos estruturais do contexto iluminista. Ainda assim, Kant não definiu o momento do Iluminismo como o final do caminho, reconhecendo que a exacerbação do uso da ciência e da razão poderia conduzir a não liberdade. A liberdade estaria conquistada, à medida que fossem respeitadas as leis estabelecidas pela razão, através do livre arbítrio humano, onde liberdade e emancipação significariam agir em conformidade com a lei moral que nos outorgamos a nós mesmos. Liberdade, do latim libertas, tem correlações políticas, éticas e filosóficas. Politicamente, relaciona-se ao exercício da cidadania, leis e direitos, sendo sua configuração relacionada ao Estado de Direito, aos fundamentos jurídicos. Para os neoliberais, a liberdade também se limita aos vínculos individuais, contudo, cada um seria responsável para conseguir estas condições de ser livre. Há os sentidos valorativo e moral, que também agregam definições e intenções, próximas ao que se consensuou como justiça, ética e desenvolvimento individuais. Este aspecto deriva de uma larga tradição histórica inaugurada pelo pensamento de Platão, dos estoicistas, inscrevendo-se na tradição cristã, pois se articula a idéia de liberdade vinculada à fé e moral, sendo a liberdade o bem supremo. As idéias de emancipação e educação têm fortes raízes na Revolução Francesa e no Iluminismo, porque neste momento a educação adquiriu papel social central, como mediadora dos processos sociais plurais e opostos, acentuando o aspecto da ideologia. Neste sentido é que MIALARET (1974) afirma que há somente duas paidéias, concebidas como ideal filosófico, congregando a dimensão ética e política e educacional, a paidéia de Platão e a paidéia de Rousseau. Como sínteses teóricas e disposições ideológicas de produção da hegemonia configuram a cosmovisão antiga, marcada pelas formações sociais e políticas derivadas do escravismo antigo e a mundividência moderna ou burguesa, marcada pelas sociedades de base capitalista. Aproximações com a Paidéia Grega Jaeger (1989) destaca que, na Antiguidade Clássica, a preocupação central dos gregos estava posta no ideário educativo e na política, sendo, portanto:


28 (... ) digno de nota que o ideal de liberdade, que impera como nenhum outro da época da Revolução Francesa para cá, não desempenhe nenhum papel importante no período clássico do helenismo (...) É a dignidade, em sentido político e jurídico, que fundamentalmente aspira a democracia grega (p. 380). Isto se explica porque ser livre era apenas o contrário de ser escravo, o sentido filosófico e político que temos hoje, advém do moderno conceito de liberdade, no século XIX. Assim, liberdade era “dádiva” dos livres, para comprar, exprimir idéias e viver naquele contexto. O conceito mais próximo à emancipação traduz-se em autonomia, vinculada a independência da polis sobre os demais estados, sem o vínculo ético que atribuímos hoje. Ser autônomo, para Sócrates (apud JAEGER, 1989), significava a independência do Homem em relação à parte animal da sua natureza. Na “República” de Platão, em sua alusão ao Estado ideal, há referências ao homem e seu valor interior e contradições na relação com o Estado real. O homem justo, que realiza seu sentido na Terra, é um ser em contradição com o “Estado dentro dele próprio”. Ser liberto é conhecer a obra divina, o que fundamenta o ideário cristão, até os nossos dias. Os debates sobre a democracia e a Paidéia grega são então, os legados para a humanidade, em suas lutas por emancipação. A distinção ao ideário da Antiguidade Clássica se põe na direção de sua significação para a educação e para o sentido do humano na história, conforme assinala Jaeger (1989):

o início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem, a qual não se afasta muito das idéias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana nem do ideal de autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclamou para cada indivíduo. (...) O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o “humanismo” (p. 7; 10).

Para os gregos, o homem pleno (livre) é o que recebe e usufrui a formação educativa e esta idéia surge articulada a um projeto educativo, onde o espírito humano abandona o adestramento e uma educação fincada na exterioridade, pela reflexão da essência educativa, o que é um dos elementos fundantes da Educação Popular.

A Emancipação como Ideário Iluminista Para o Iluminismo, crucial era a emancipação humana, dando o norte da ideologia liberal, para a qual, a libertação dos indivíduos conduziria à emancipação da sociedade em geral. Contudo, o Iluminismo não


29 23

materializou sua ideologia, desencadeando o que Rousseau definiu como limite entre uma idéia revolucionária e sua materialização (contradições). As teses da Revolução Francesa foram relegadas para a maioria e se tornaram privilégios da burguesia nascente (teor ideológico), apresentando problemas em questões como igualdade, individualidade e a hegemonia dos projetos das classes sociais. A burguesia pós-revolucionária objetivou privilegiar os interesses materiais e políticos de sua classe, buscando ajustar os demais, aos vieses ideológicos da dicotomia entre os que necessitavam da educação para se adequar e os demais, seus “ideólogos”. As contribuições de Rousseau também são demarcadas pelas condições objetivas do século XVIII, quando a educação burguesa passa a ser controlada pelo Estado e suas proposições incorporam a tese de uma educação autônoma e criativa, como fundamento de seres humanos sociáveis e cidadãos. Daí a educação ter um sentido crucial, junto com as saídas individualistas, na disseminação de idéias e comportamentos que justificariam as desigualdades, baseando-se no saber racional, na noção de autonomia e nas relações de subordinação de classe, postos pelo capitalismo emergente, explicita Mészáros (2004):

A nova tendência intelectual surgiu em uma sociedade pós-revolucionária, na qual não mais havia espaço para a idéia da emancipação humana universal em qualquer sentido significativo do termo-sobre a base de classe original do movimento iluminista (p. 464).

O Positivismo deu sustentação a este modelo educativo, ao justificar a ordem capitalista e a acomodação pela via educativa, como forma de não desvelar a dominação de uma classe sobre a outra (status quo), através do uso da razão. Na atualidade o problema se acentua, à medida que temos as roupagens neoliberais deste discurso. Contrário ao ideal positivista, Hegel buscou explicar as contradições do ideário iluminista (e sua promessa emancipatória), com sua dialética histórica, que tinha como ápice o Espírito Universal e assim, defendeu o Estado germânico, como o estágio mais elevado da vida humana. Portanto, a dialética histórica encontrava-se “estática”, contrariando as possibilidades de emancipação humana, já que a estas cabia serem instrumentos do espírito do mundo. Neste aspecto, o pensamento marxista se confronta com o hegeliano, ao afirmar que a emancipação era inconcebível dentro da estrutura do “absoluto na Terra” hegeliano. Para Marx, o próprio Estado representava a alienação dos indivíduos sociais em relação ao poder mais abrangente de tomada de decisões. (MÉSZÁROS, 2004). 23

Rousseau (1712-1778) influenciou com seus escritos os teóricos do liberalismo e das revoluções do século XVIII, através de suas teses sobre a liberdade, individualidade e bondade, inerentes ao humano. Explicava a desigualdade pelo afastamento do ser humano de sua natureza (íntima e exterior), propondo um retorno a esta natureza, nestes termos: “... estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém”. (apud MARCONDES, 1999).


30 Sendo necessária à emancipação, a crítica da ideologia de cada época e das organizações das sociedades democráticas, fincadas nos ideais de liberdade, novamente esta reflexão nos remete a Marx (apud MÉSZAROS, 2004):

A libertação, diz Marx, é um ato histórico, não um ato mental. (...). A transformação, através da divisão do trabalho, dos poderes (relações) pessoas em poderes materiais não pode ser dissipada descartando-se da mente a idéia que se tem dela, mas só pode ser abolida pelos indivíduos quando novamente sujeitam estes poderes materiais a si mesmos e abolem a divisão do trabalho. Isso não é possível sem a comunidade. Somente dentro da comunidade cada indivíduo possui os meios para cultivar seus dons em todas as direções; por isso, a liberdade pessoal só se torna possível dentro da comunidade. (...) Na comunidade real, os indivíduos obtêm sua liberdade por meio de sua associação. (p. 488-489, grifo nosso). A tese dos interesses coletivos solaparem os individuais é rechaçada, o que torna os argumentos pós-estruturalistas obsoletos e infundados, já que no marxismo, autonomia individual e emancipação humana se complementam, demonstrando os distanciamentos entre o pensamento liberal e o pensamento marxista: o viés de classe social é um dos eixos estruturais do marxismo; a mão invisível do Estado e suas “mediações”, o argumento do liberalismo, para justificar as desigualdades. O liberalismo trata de indivíduos abstratos; o marxismo, de sujeitos concretos.

A Síntese Marxista Em Marx (2002), emancipação é um projeto que insere a libertação de todos os homens, através do reconhecimento do reino da liberdade (afirmação como sujeito e minimização como objeto), aspectos em que corrobora Lukács, ao inscrever a inserção crítica, como marco dos homens em seu processo de transformação. O viés marxista gramsciano de emancipação destaca grande importância à EP, baseada em princípios humanistas e científico-técnicos, para viabilizar a emancipação ideológico-cultural e econômico sóciopolítica. Para Marx, emancipação difere da perspectiva liberal, para a qual liberdade significa ausência de coerção e ação individual. No marxismo, ser livre é ser autodeterminado, com base no que também propuseram Spinoza, Rousseau, Kant e Hegel. Há, portanto, uma relação direta entre liberdade e emancipação, sendo o “desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma forma de associação digna da condição humana”, estreitamente ligada ao trabalho. As análises de Marx sobre a liberdade pessoal esbarraram nos limites da sociedade capitalista, fincada nas leis de mercado. Daí, apesar das liberdades individuais terem sido alavancadas no liberalismo (ao menos para a classe burguesa), as críticas dos marxistas abordam os limites formais da democracia burguesa. Porém, as críticas internas ao pensamento marxista, conforme acentua Bottomore (1997), acentuam que:


31

É um erro pensar que o desmascaramento da ideologia burguesa implica denunciar as liberdades burguesas como ilusórias. Antes, é preciso mostrar que, em certos casos (...) elas restringem ou mesmo impedem o exercício de outras liberdades mais valiosas, e que, em outros ainda (...) são aplicadas de maneira excessivamente limitada (p. 124).

As contribuições de Lessa (2002) acentuam a atual redução das necessidades humanas ao conceito restrito de “cidadania” e a tese de que tais constituintes sejam análogos. Este termo, em geral, é aceito como plenitude de direitos civis, políticos e sociais, lealdade a um Estado- nação e participação na vida política, relacionando-se a democracia (princípios liberais). No neoliberalismo, o conceito de cidadania se reduz á consumo. Cidadania prende-se ao campo do Direito, em sentido contrário á emancipação. O autor situa como se definem os “complexos valorativos na sociabilidade burguesa” (p. 05), problemas para a moral (necessidades ligadas ao individualismo burguês) e a ética (valores singulares para a generalidade humana). A moral burguesa evoca a cidadania para justificar os direitos do indivíduo proprietário privado, porém é ontologicamente impossível á ética valorar a vida social no capitalismo, conforme descreve Lessa: (...) o desenvolvimento do capitalismo coloca a humanidade frente a necessidades e possibilidades que são efetivamente ético-genéricas, contudo enquanto perdurar a regência do capital estas mesmas necessidades e possibilidades só podem comparecer na reprodução social pela mediação das relações de mercado. (...) A vida burguesa cria as bases materiais indispensáveis á gênese de valores éticos (...) ontologicamente incompatível com a vigência cotidiana desses mesmos valores. (p. 05).

Sobre a emancipação humana, acentua também sua impossibilidade numa sociedade de classes, fundada no poder do homem sobre o homem. A existência da necessidade de políticas para mediar conflitos, significa o quão distantes estamos de uma sociedade emancipada. Engels (1980) situa a emancipação em relação direta com a independência econômica. Engels e a maioria dos autores marxistas tratam a emancipação sempre como um processo coletivo, de classe. Atualmente, os neomarxistas estão incorporando às determinações econômicas (sociais e de classe) as questões de gênero e de etnia, bem como a possibilidade de serem considerados os projetos e anseios pessoais, não diluídos, mas


32 articulados dialeticamente no processo de emancipação coletiva, onde necessidade e liberdade são os pólos contraditórios mais problemáticos. Importantes, neste particular, são as contribuições de Sousa Santos (1994) acerca das utopias trazidas pelo marxismo, suas vinculações com a modernidade e os possíveis caminhos na pós-modernidade. O marxismo, como apoio teórico e como projeto políticosocial, se “desfez no ar?” Quais as possibilidades de analisarmos as lutas por emancipação, com o eixo da luta de classes? Ao contrário, precisamos compreender a efetividade dos referenciais marxistas, dentro da contemporaneidade. Sousa Santos (1994) reconhece a pertinência de categorias como classes sociais/lutas de classes para a análise da sociedade capitalista. Remete-nos à reflexão sobre as consideráveis mudanças ocorridas na sociedade, que nem sempre acompanharam as análises do marxismo clássico. Para tanto, destaca a formação das classes médias e a opressão a que estão submetidas, bem como a importância que as questões como raça, etnia, religião e sexo vêm adquirindo neste novo contexto. Considerando a contemporaneidade como eixo de construção de novos homens e mulheres em relações emancipatórias, Gramsci (1982) reforça o papel da escola e das atividades dos intelectuais como formadores destes novos grupos de pessoas no exercício de suas funções próprias de seres também pensantes e, portanto, intelectuais. Em que sentido este conceito se relaciona com a condição humana emancipatória? Esta relação se dá à medida mesmo em que reflitamos sobre os homens e mulheres, que a educação desta nova sociedade (emancipatória) poderá promover, pois a educação significa a luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, o domínio da natureza, buscando criar o homem “atual” à sua época. (Gramsci, 1982). A formação desta nova condição humana emancipatória deve estar na base de uma EP crítica, comprometida com o tornar homens e mulheres “atuais” à sua época, observando o processo de luta para essa transformação e elevação do biológico ao natural. A emancipação aparece como um dos nexos, demonstrando o caráter de desafio constante para a construção deste sentido. Por isto, não é possível resolvermos problemas deste tempo, com soluções prontas de outros contextos, afastando-nos do presentismo. Expressa está a concepção política na idéia de construção de novos homens e mulheres, rompendo com o individualismo e com as apologias reformistas, propondo a condição humana emancipatória. Entendemos a condição humana emancipatória nestes limites


33 e neste ponto questionamos em que medida a EP tem se colocado como alternativa para uma participação crítica, um novo fazer educativo, dentro da idéia de forjar as condições para o desenvolvimento e fortalecimento da emancipação humana. Que EP serve a este projeto? Necessário se faz qualificar a EP emancipatória, entendendo a emancipação como autodeterminação, que conduz ao controle humano sobre a natureza, rompendo com o modo de produção capitalista. Mészáros (2004), em sua análise sobre ideologia, autonomia e emancipação, situa que a ideologia se constituiu como um limite para o projeto emancipatório das “massas enganadas”, na definição de Adorno. Exacerba-se a idéia da ideologia, como falseamento da realidade e a autonomia, como caminho para a emancipação, sendo que tais conceitos estariam ficando restritos ao campo teórico. O conceito de ideologia surge na época moderna e tem seu ápice na filosofia marxista. A ideologia é então a forma de representação, no plano da consciência, que serve para mascarar a realidade fundamental, que é de natureza econômica. Löwy (1992) esclarece que para Marx, ideologia é um conceito pejorativo (falsa ilusão), pois trata da consciência deformada da realidade que se dá pela ideologia dominante. Lênin (apud LÖWY, 1992) já define ideologia como qualquer concepção de realidade social ou política, vinculada aos interesses de certas classes sociais (existiria uma ideologia burguesa e outra proletária). Passa a significar então, qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe. Ainda para Löwy

24

(1992), a ideologia pode ser definida como visão social de mundo

(conjuntos estruturados de valores, representações, idéias e orientações cognitivas). Estas visões podem ser ideológicas, legitimando, justificando, defendendo e mantendo a ordem social do mundo ou utópicas, cuja função seria a crítica, a negação e a subversão da ordem vigente, apontando para uma realidade ainda não existente. Articulada à conquista da autonomia e emancipação deve estar a crítica da ideologia, pois que a idéia de uma falsa consciência (consciência social), deixa de ressaltar o poder da ideologia, como anúncio do novo (reação) ou como mascaramento da realidade, o que ocupou por tempos os teóricos socialistas.

Em “A Questão Judaica” (1843), Marx explicita que só é possível a emancipação humana, com o fim do Estado burguês. Na vigência deste Estado, somente teremos os direitos de cidadania, não os direitos de hominização.

Marx (1843) amplia a relação para além

do que pensava Bauer- quem há de emancipar e quem deve ser emancipado- ao formular a questão: “... de que espécie de emancipação se trata” (p. 04). Sem negar a importância processual do exercício destes direitos de cidadania, enfatiza: 24

“as ideologias não são simplesmente uma ou outra idéia, uma mentira ou uma ilusão, são um conjunto muito mais vasto, orgânico, de valores, crenças, convicções, orientações cognitivas, de doutrinas, teorias e representações (...). As ideologias correspondem aos interesses, posições, aspirações, tensões, das diferentes classes sociais”. (p. 2829).


34 Não há dúvida de que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual. (...) Porém não nos deixemos enganar sobre as limitações da emancipação política. (p. 07).

Nesta mesma perspectiva, a grande aposta de Souza (2007) está na defesa do humanismo presente na ética marxista, fundado em uma concepção de homem concreto, como ser da práxis, que se humaniza na relação com a natureza e o trabalho (criativo, histórico, como autoprodução humana). Para a “superação do estado atual das coisas” (MARX; ENGELS, 2002, p. 32), o autor propõe a ética do socialismo marxista: uma ética do real, fincada na dialeticidade histórica; a classe trabalhadora como a responsável pela missão histórica da auto-emancipação e da emancipação humana universal: A ética marxista não é uma abordagem moralizante dos efeitos desumanizadores do modo de produção capitalista, mas parte da análise crítica do estado atual das coisas (...) que se dá a crítica marxista e o seu pressuposto ético: a emancipação humana, possibilitada no desenvolvimento histórico, com a intensificação de tantos movimentos de resistência, de enfrentamentos, de perspectivas novas no modo de pensar e organizar a sociedade (p. 48).

A ética marxista está substanciada nas proposições da auto-emancipação e emancipação da sociedade, sendo necessários os processos de superação das condições de exploração da classe trabalhadora- de um movimento revolucionário que parte da consciência de classe - e da utilização de “todos os meios necessários e possíveis, dentre eles, a “violência revolucionária” como força criativa, como ação efetiva sobre a natureza e sobre a sociedade, para alcançar seu fim maior, a auto-emancipação e a emancipação humana (p. 54). Em suas palavras: Continuamos a defender a tese de que a ética marxista é uma crítica radical á lógica, á especificidade do modo de produção capitalista, garantido pela opressão e exploração e, por isso, a necessidade de ser enfrentado, desmascarado, superado nos seus fundamentos políticos, nos seus constituintes ideológicos, na sua ética cínica, nos seus disparates sociais (p. 58). Contribuições da Teoria Crítica Adorno (2000) propôs a difusão da educação política, como eixo do projeto emancipatório, acentuando que educação não seria esclarecimento da consciência ou o único fator de emancipação, tendo em conta que esta


35 também contribui para acentuar a barbárie. O processo de desvelamento da realidade deve levar ao entendimento de uma educação e sociedade em seu devir:

O núcleo desta experiência reside na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixado e determinado apenas como garantia de sua continuidade, cujo curso precisa ser rompido em suas condições sociais e objetivas. (p. 1213). Emancipar-se significa, para Adorno (2000) ter decisões conscientes e independentes, através de uma consciência verdadeira, sendo ainda um dos nexos de uma sociedade verdadeiramente democrática. Porém, na sociedade moderna, cada vez mais emancipação se torna sinônimo de abstração, necessitando de inserção no pensamento e na prática educativas, pois é importante o enfrentamento da organização do mundo e dos vieses ideológicos, que superam a educação e limitam as possibilidades emancipatórias. Emancipação é conscientização, racionalidade e ao mesmo tempo, adaptação dos homens ao mundo, no sentido de ensejar orientações para que estes homens e mulheres se situem no mundo. Neste aspecto, acentua a ambigüidade do conceito de educação para a consciência e racionalidade. Uma educação emancipatória deve desenvolver princípios individuais e sociais (adaptação e resistência), sendo sugerido pelo autor que a educação deveria fortalecer a resistência mais que as condições de adaptação dos humanos e humanas. A educação informal teria importância marcante no desenvolvimento de condições sociais de igualdade, pois caberia à esta educação, ser um exercício de preparação para a superação permanente da alienação: “... A Educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação (...) pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais” (ADORNO, p. 148; 151). Destaca a relação entre anti-individualismo e atitude colaboracionista e relaciona emancipação com as sociedades democráticas, considerando que uma educação sem indivíduos é opressiva, repressiva. Daí problematizar sobre o modo como se educa, inferindo que se procuramos cultivar indivíduos da mesma maneira a cultivarmos plantas que regamos com água, então isto tem algo de quimérico e de ideológico. Neste trecho, retoma Kant, para o qual o esclarecimento é a saída dos homens de sua autoinculpável menoridade, onde democracia e formação de vontade são inseparáveis. Há um viés individual da emancipação, tratado por Adorno (2000) destacando a autonomia e a preservação das diferenças. O projeto emancipatório já denuncia que vivemos em uma sociedade não profundamente democrática, acentuando que “a emancipação precisa ser acompanhada de uma certa firmeza do eu, da unidade combinada do eu, tal como formada no modelo do indivíduo burguês (p. 180). A emancipação é um vir-a-ser e está articulada ou condicionada às heteronomias da organização da sociedade capitalista (contradições sociais), desviando as pessoas de sua consciência. A educação para a emancipação deve ter como norte servir mais à contradição e à resistência, que à conformação e adaptação. As sociedades mantêm os homens não emancipados porque, mesmo no contexto de transformação, há resistências e um grande teor de repressão.


36 Uma das questões fundamentais da modernidade foi apontar para a maioridade kantiana, como síntese racional, que levaria os seres humanos ao esclarecimento e que a educação (como acesso ao pensamento racional) significaria emancipação. Esta mesma crença na necessidade da educação para a emancipação humana é corroborada por Rousseau e Comenius, nos séculos XVII e XVIII. Os caminhos que o conhecimento científico e o uso da racionalidade tomaram, demonstraram algumas das limitações destas utopias. Os teórico-críticos não deslegitimaram a razão, mas seu veio instrumental, conforme destacamosi em Adorno (2000), quando este afirmara a autonomia e a emancipação como nexos da educação crítica, para confrontar a barbárie humana. Esta razão crítica tem como elementos cruciais o estímulo à transformação do mundo e à emancipação humana, portanto, se opõe as teses idealistas, ao imobilismo e as saídas individualistas, de corte “pós-moderno”. Embora reconhecendo as contribuições atuais de Habermas, sobre as alternativas de emancipação social, em novas formulações de organização social, nas sociedades democráticas e cidadãs, não aprofundaremos este viés, por exigir uma abordagem mais detida sobre sua visão de emancipação, através dos argumentos da teoria da ação comunicativa. Isto exigiria um estudo específico sobre as críticas á tradição marxista, as aproximações do autor com as teorias pós-estruturalistas, o que não seria possível para os limites desta análise proposta.

Educação e Emancipação em Paulo Freire Na obra de Freire, pensar a emancipação é buscar o seu contraditório: a opressão. Esta condição de opressão tem o recorte de classe social, em suas obras iniciais, pois seriam estes grupos os necessitados do sentido de liberdade, autonomia e emancipação, passíveis de conquista pela práxis revolucionária destes sujeitos. Porém, assim como percebo nos escritos de Kant, Rousseau, Hegel e Marx, os aspectos individuais também concorrem para que uma nova sociedade (emancipada) se construa. Freire (1980) acentua que os oprimidos vivem sob os ideais humanos dos opressores, e por isto, a práxis da libertação é um dos exercícios para esta superação. O conceito de “homens novos” se aplica, pois há que se superar os modelos autoritários (para além de trocar de papéis com os opressores) e individualistas:

somente os oprimidos podem libertar os seus opressores, libertando-se a si mesmos. (...) É, pois essencial que os oprimidos levem a termo um combate que resolva a contradição em que estão presos, e a contradição não será resolvida senão pela aparição de um “homem novo” e nem o opressor nem o oprimido, mas um homem em fase de libertação (p. 59). As lutas por emancipação perpassam a confiança nos humanos, a busca pela superação da contradição oprimido/opressor e a constituição de “homens novos”, em relações de liberdade, igualdade e


37 emancipação. Freire (1979) acentua a necessidade de uma educação humanizante, circunscrita às sociedades e homens concretos, superadora da alienação e potencializadora da mudança e da libertação social:

Que cada vez mais cortasse as correntes que a faziam e fazem permanecer como objeto de outras, que lhe são sujeitos. (...) A opção, por isso, seria de ser também, entre uma “educação para a domesticação”, para a alienação e como educação para a liberdade. “Educação” para o homem- objeto ou indivíduo para o homem sujeito (p36).

Educação Popular e Emancipação: Possibilidades e Contradições na Conquista do Reino da Liberdade Será possível pensar em uma educação popular emancipatória? Uma vez superado o reino da necessidade, a partir do estabelecimento dos consensos sociais mínimos, postos pelo ideário da Modernidade, poderemos caminhar em direção à emancipação e ao reino da liberdade? Seremos alçados ao reino concreto da liberdade, quando os meios de produção se tornarem propriedade social e os homens e mulheres dominarem a natureza, assenhorando-se desta e de si próprios, o que traz vinculação direta ao projeto emancipatório. Conforme situou Engels (2005), a humanidade procederia ao salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, pelo conhecimento e domínio das necessidades da natureza, contrariando o pensamento kantiano, para o qual não haveria liberdade, enquanto estivéssemos submetidos à necessidade. O materialismo histórico e dialético serviu e serve como instrumento teórico-metodológico para a E P, porque tais estudos partiram de sistemas concretos, cujo foco está na tentativa de emancipação humana e na necessária transformação do mundo, o que me leva a refutar as teses de que este é o fim deste método, como compreensão, interpretação e intervenção na realidade. E mais ainda: há condições objetivas para a construção de uma educação popular emancipatória?

Buscando esta possibilidade, buscarei delinear alguns modos de apreensão e

análise do fenômeno da E P, para visualizar meu entendimento do conceito. Em seqüência pretendo retomar as contribuições histórico-conceituais, para pontuar as contribuições para a E. P. emancipatória e suas possibilidades, no quadro da emancipação humana. EP aponta para o exercício da cidadania, junto aos grupos populares. Freire (1991) reforça esta tese, ao relacionar educação e organização popular como princípios básicos, intimamente ligados à prática política: “... Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica” (p. 19).


38 É fundamental, portanto, qualificar a E. P. de que necessitam os movimentos sociais, para potencializar seu projeto emancipatório. “Adjetivar” a Educação Popular é demarcar a diferença desta, da educação das aristocracias, reconhecer sua existência e o caráter marcadamente compensatório, buscando anunciar novas perspectivas. É neste cenário controverso que se torna crucial recuperar o sentido amplo da educação, enquanto produção social de homens e mulheres e o sentido restrito, como escolarização e letramento (NUNES, 1999). Estes elementos podem qualificar a EP para a emancipação, reconhecendo que não cabe à educação propagar a emancipação humana, mas potencializar espaços, práticas, experiências para o exercício das idéias emancipatórias, que podem contribuir para a organização dos grupos em sua práxis revolucionária. Assim as várias interlocuções neste estudo, apontaram para a constituição de sociedades democráticas - base da emancipação. Se esta não pode alterar concretamente a natureza de classe do Estado, em que direção pode fomentar a emancipação humana e a aproximação do reino da liberdade? Cabe esperarmos a revolução ou a organização popular e a educação crítica podem alinhavar um projeto emancipatório? Gramsci (1982) recomendava o instruir, agitar e organizar, como eixos desta luta. Como Nogueira (2004), entendo que pela E.P. pode-se intensificar ou aprimorar a democratização de procedimentos institucionais que pautam ações de cidadania, visando melhoria de condições na vida pública cotidiana. As possibilidades emancipatórias podem surgir das interações pedagógicas, para além do conhecimento transmitido. Contribuições da Educação Popular para a Emancipação Humana O estudo dos eixos fundamentais da ética marxista, no exigente contexto do desmonte dos movimentos sociais organizados, nos finais do século XX e início do século XXI, quando vemos intensificados os recortes subjetivos, em confronto com a organização em torno de lutas gerais e projetos emancipatórios, é antes de tudo, uma afirmação e uma crença em um projeto de sociedade humanizatório diverso do atual. É importante situarmos de que educação tratamos, pois assim como Souza (2007) entendemos que a ética marxista traz um projeto educativo, baseado na educação


39 omnilateral, aprofundando a pertinência da educação como um dos elementos revolucionários, produzindo críticas aos determinismos e idealismos que permeiam as idéias pedagógicas. É necessário reafirmar proposituras fundamentais, como a crença no socialismo como projeto histórico-social, no fim do Estado capitalista como base para a constituição da sociedade socialista e do “homem novo”, na construção de um novo modo de produção, na defesa do humanismo fundante da ética marxista e no “marxismo como filosofia viva e até o nosso tempo histórico insuperável, por expressar, no tempo atual, a problemática própria da época que a suscitou” (p. 06). Daí o papel da ética marxista, na constituição de novas formas de organização social e em conseqüência, de novos eixos valorativos e culturais, para orientar a vida dos homens e mulheres emancipados. A ética marxista terá sentido numa sociedade emancipada e para tanto, Lessa (2002) aponta para a revolução como possibilidade histórica de uma nova síntese. Não defende um determinismo econômico nem um monismo materialista: trata da revolução na história, uma história que se abre como campo de possibilidades transformadoras, sendo o marxismo, portador desta nova concepção de ética e moral. O marxismo, enraizado na história, traz esta dimensão, pois se efetivará pela superação do Estado burguês. Percebemos as aproximações nos argumentos de Souza (2007) e Lessa (2002), pois a lógica do modo de produção capitalista é incompatível com o pensamento crítico e emancipatório, fundado que está em relações sociais desumanizadas- é uma “ética dos privilégios” 25 . A ética marxista é uma ética da práxis, pois sua potencialidade se dá pela intervenção transformadora. É propósito e práxis. Diante destas provocações, busco concluir (provisoriamente), retomando alguns eixos articuladores desta reflexão, na direção da EP emancipatória, que se articula com os propósitos do reino da liberdade, em Marx. Uma EP emancipatória necessita fincar-se na constituição de novas relações econômicas, sociais e culturais, caminhando na direção do reino da liberdade e deste modo, alguns princípios orientadores podem ser pontuados, a partir da interlocução com os autores, num viés histórico-conceitual, tendo como fundamento o trabalho com sujeitos concretos:

25

DOWBOR, Ladislau. Préfácio. In: FREIRE, Paulo. Á sombra da mangueira. São Paulo: Olho d´água, 2000.


40 •

A EP pode contribuir efetivamente para a constituição de sociedades democráticas, pois a

emancipação exige democracias: democracia de processos institucionais; novas interações pedagógicas são espaços para a E P; •

O materialismo histórico e dialético ainda se apresenta como uma das possibilidades

vigorosas, no campo teórico-metodológico da E. P; •

A mobilização, organização e capacitação dos grupos populares, como um dos pilares da

construção de uma nova hegemonia (teses de Freire); •

A articulação com os movimentos sociais populares da América Latina e dos demais

países, para criar redes de comunicação em E. P pelo mundo pode contornar os vieses atomizantes destas ações; •

A valorização do núcleo autêntico da EP precisa incorporar as dimensões afetivas,

intelectuais e práticas (Sales, 1994); •

Conscientização e Emancipação surgem como ideário iluminista, são reforçados na Teoria

Crítica (Adorno) e reinventados em Freire e prosseguem fundantes da EP; •

A recuperação da razão crítica, rechaçando a razão instrumental e buscando a relação entre

os diversos saberes, combatendo os dogmas, para superação da alienação; •

A supressão da opressão, sendo educação para a humanização, onde os oprimidos

eduquem a si mesmos e aos opressores, nas lutas pela busca do reino da liberdade. •

A utopia emancipatória é o norte e insere o desenvolvimento da autonomia, o

desenvolvimento cultural, ético, estético, político e pedagógico das pessoas. A EP emancipatória tem a vida, a existência concreta como norte e compromisso e se relaciona ao conceito de autonomia, amadurecimento, plenitude educacional, cultural, ética, estética, política e pedagógica das pessoas (NUNES, 2003). Tem como horizonte as utopias que alimentam os projetos, nas dimensões valorativas já abordadas, mas aqui aprofundadas por Melo Neto (2004): Ser popular é tentar alternativas. É estar realizando o possível, mas que, ao se realizar, abre, contraditoriamente, novas possibilidades de utopias, cuja negação trata os elementos já efetivados e tentativas de novas realizações. (...) A utopia da democracia tem um valor permanente e deve ser vivida sem qualquer entrave. Precisamente, nos espaços da realização e da não – realização, estas são suas contradições e dificuldades maiores. Entretanto, não podem transformar -se em agentes impeditivos da intransigente e radical busca por novas concretizações de sonhos de liberdade e de felicidade" (p. 159).


41 Entendo que esta trajetória é um devir dialético, onde parece crucial atentarmos para as ponderações de Mészáros (2004) sobre as perspectivas emancipatórias das classes trabalhadoras no século XXI. Deste modo, não há como pensarmos o projeto socialista, em suas possibilidades históricas, sem ter como eixo o poder da ideologia emancipadora:

Sem esta, as classes trabalhadoras dos países capitalistas avançados não serão capazes de se tornar “conscientes de seus interesses”, muito menos de “lutar por eles” - em solidariedade e espírito de efetiva cooperação com as classes trabalhadoras das “outras” partes do único mundo real - até uma conclusão positiva. (p. 546).

Tais desafios projetam a necessidade desta EP latino-americana, fazendo o movimento consciente de se vincular a outros movimentos ao redor do mundo, como forma de sonhar novos mundos e o ideal emancipatório. Este projeto educativo emancipatório parte do acesso aos bens culturais, como um dos elementos que contribuem para a elevação intelectual das camadas subalternas (no entender de Gramsci) e ao mesmo tempo, é, um dos campos primordiais de atuação dos educadores- o campo da cultura, sendo fundamental a educação omnilateral contar com a contribuição qualificada dos educadores críticos. Esta educação é uma “educação para além do capital”, que congrega a função técnica e política, onde a “função técnica é sempre subsumida por uma função política” (SAVIANI, 2002, p. 212). É uma educação para a humanização, estimuladora da liberdade e da função criadora do trabalho, é uma educação para a emancipação Em que sentido a educação pode ser emancipatória e contribuir para o processo de hominização, como prática de resistência e emancipação, diante do mundo excludente e globalizado? Retomaremos Nunes (1999) para explicitar estas possibilidades de uma EP emancipatória: A educação popular não pode aceitar a lógica do mundo globalizado (...) tem que continuar como um núcleo sadio de resistência política, de ampliação da participação cultural, coletiva, de recuperação da fala autêntica, relações de respeito, familiaridade e diálogo. (...) promover a decisão coletiva sem clientelismo e assistencialismo. Responsabilidade no que decide, solidariedade orgânica e afetiva, fraternidade, consciência crítica, palavra autêntica e coração solidário (...) são estas categorias que a E. P. precisa para que o núcleo popular venha a ser um dia o modelo hegemônico (p. 7-8).

Insistir no projeto socialista, nas utopias e projetos não apenas reformistas, mas de caráter emancipatório e estruturante, nos encaminham a adotar a categoria da


42 contemporaneidade expressa por Gramsci (1984), buscando “... fixar os problemas novos e atuais ou a colocação atual dos velhos problemas” (p. 19), o que nos direciona a pensar acerca das referências teórico-metodológicas do marxismo, amplamente referenciando nos estudos de Souza (2007), um dos interlocutores fundamentais no debate sobre a ética marxista e a emancipação e sua atualidade.

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EMANCIPAÇÃO HUMANA E A EDUCAÇÃO POPULAR: um devenir Maria do Amparo Caetano de Figueirêdo

Reflexões iniciais Nesse novo milênio, vive-se diante de alguns paradoxos: ao mesmo tempo em que se avança com relação ao progresso tecnológico, por outro lado, a humanidade caminha num sentido quase inverso às capacidades de garantir um norte ético e emancipatório para a vida em coletividade. Há uma ética que atende muito mais aos interesses do mercado, do que a espécie humana. “Quanto maior vem sendo a importância da tecnologia hoje tanto mais se afirma a necessidade de rigorosa vigilância ética sobre ela. De uma ética a serviço das gentes, de sua vocação ontológica, a do ser mais (FREIRE, 2000, p. 102). Tem-se uma sociedade cada vez mais globalizada, tecnologicamente avançada. Contraditoriamente, a maioria da população vive submetida a processos de exclusão sem precedente. Na América Latina mais de 210 milhões de pessoas vivem em estado de pobreza. O Brasil tem 50 milhões de brasileiros abaixo da linha da indigência, que possuem uma renda inferior a R$ 80 por mês. “Quase um terço da população brasileira”. No Estado de Alagoas, 56,84% da população encontra-se abaixo da linha da pobreza, no Piauí 61,26% e no Maranhão 62,37%. Além da pobreza, verifica-se também a discriminação referente às diferenças raciais, étnicas, regionais e sexuais. Pois, os pobres brasileiros, são mais excluídos quando são negros, índios, mulheres e nordestinos (GENTILI, 2003, p.261). Nesse sentido, Freire reflete sobre o papel e o compromisso da ciência e da tecnologia e a desigualdade social. “A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres” (FREIRE, 1998, p.147). Uma ciência e tecnologia a serviço do processo de emancipação humana. Por outro lado, Boaventura defende uma globalização contra-hegemônica, ou seja, uma globalização condizente com um projeto de sociedade que respeite as culturas locais, multicultural e emancipada.


46 Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata acrescentamos, de inibir a pesquisa e frear os avanços, mas pô-los a serviço dos seres humanos (FREIRE, 1998, p. 149).

Portanto, a questão não é a tecnologia, mas o que fazemos dela, a serviço de quem e de qual projeto de sociedade ela está sendo executada. Freire questiona, para que serve esta ética que aí está, que desemprega tantos trabalhadores diante dos interesses do mercado? Nesse aspecto, me alio a Freire quando afirma: a minha música tem outra semântica, defendo a resistência, a luta contra a ética do mercado, por uma ética da vida, da dignidade e da felicidade humana. Assim, neste contexto da globalização hegemônica, a educação muitas vezes se encontra pouco vigorosa para dar a sua contribuição no processo de emancipação humana. Diante dessa situação, as idéias sobre emancipação precisam ser (re)discutidas, através de um debate teórico que contemplem os dilemas e as perspectivas da emancipação da humanidade frente às novas configurações societárias instituídas. “O desafio é a construção de propostas concretas para superar dialeticamente os processos socioculturais desumanizantes construindo, igualmente, novas bases filosófico-científicas capazes de orientar um projeto emancipatório de sociedade” (ZITKOSKI, 2003, p.1). Deste modo, a peleja da Educação Popular(EP) pela emancipação humana, demanda sem dúvidas um conjunto de reflexões sobre os múltiplos elementos que conjugam e formulam o conceito de educação popular. Nesse sentido, muitos são os constituintes que têm fundamentado as práticas e concepções da educação popular no Brasil e na América Latina: emancipação, realidade concreta, trabalho, igualdade, práxis, autonomia, liberdade, diálogo, resistência, saberes, entre outros. Segundo Melo Neto (2004, p.137), essas categorias vêm nutrindo “a história e as práticas em educação popular, constituindo-se como elementos essenciais para o seu exercício, fecundando enormemente a sua compreensão e o seu distanciamento de outros sistemas de educação”. Portanto, a elaboração desse texto nasce do desejo e da necessidade de estar aprofundando teoricamente o constituinte emancipação, que tem formado historicamente, em conjunto com outros, o campo de atuação da educação popular26. Nesse sentido, num primeiro 26

Este texto, tem com referência o conceito de Educação Popular, elaborado coletivamente pelos alunos e alunas integrantes da 2ª Turma do Doutorado em Educação da UFPB, enquanto processo da Disciplina Teoria da Educação Popular, ministarda pelo Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto, assim constituído: “Educação


47 momento, será apresentado o debate sobre emancipação realizado por Marx, onde ele faz a distinção entre emancipação política e emancipação humana. Posteriormente, busco compreender no pensamento de Adorno a relação entre emancipação e educação. Em seguida, situo o pensamento de Freire sobre a pedagogia da libertação. Por fim, apresento algumas reflexões desenvolvidas por Boaventura sobre emancipação, enquanto um projeto contrahegemônico diante do atual estágio do capitalismo globalizado. Feitas essas reflexões conceituais, busco destacar como é que a emancipação se afirma, se revela, se institui no âmbito da educação popular. Busco refletir alguns desafios, limites e possibilidades presentes no campo da Educação Popular, vislumbrando a emancipação humana, tendo por base as concepções teóricas de Freire (1987, 1991, 1998, 2000, 2001), Melo Neto (2003, 2004). A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória... Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente (MELO NETO, 2004, p. 176).

Assim, encontro-me, pois, no desafio de realizar uma provocação teórico-prática sobre as perspectivas de emancipação da humanidade, sem a pretensão de esgotar ou até mesmo concluir este debate. Encontro-me igualmente mobilizada pelo desejo de refletir as possibilidades da atividade da educação popular nessa empreitada emancipatória. Enfim, escrever sobre a emancipação humana é discorrer sobre um conjunto de ações, utopias, lutas, sonhos, projetos, ações humanas em busca da felicidade, da justiça, da liberdade e da fraternidade, o que Marx chamou do “reino da liberdade”. É escrever inclusive sobre a minha vida, pois o sonho e a luta pela emancipação humana têm estado presente nos meus saberes e fazeres individuais e coletivos, nas minhas utopias, nos meus projetos, na minha história de vida. Reflexões sobre o conceito de emancipação

popular é um fenômeno de apropriação (trabalho) dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto, constituído de uma teoria do conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdo e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade”.


48 Para desenvolver o debate sobre emancipação27 buscarei me fundamentar no pensamento de Marx, Adorno, Freire e Boaventura dos Santos, através das suas construções teóricas sobre este conceito. Nessa perspectiva, a base teórica que sustenta nossas reflexões tem nas idéias de emancipação o ideário de uma sociedade emancipada, tendo a práxis como a síntese dialética entre a teoria (subjetividade) e a prática (objetividade), a partir de uma intencionalidade capaz de alterar os determinantes históricos e sociais dos sujeitos e da própria história. Este ensaio discute basicamente o conceito de emancipação na educação popular, contudo, em alguns momentos do texto, sobretudo no pensamento de Freire, ele torna-se sinônimo de liberdade, por que tanto Freire quanto Marx, vai falar de emancipação na perspectiva também da liberdade, libertação humana. Emancipação em Marx Toda a obra marxista é permeada pela utopia da emancipação humana que é o socialismo, a sociedade comunista. A realização plena do ser, da humanidade por inteiro, uma realização que tanto vai contemplar a satisfação das necessidades materiais, quanto às subjetivas – os aspectos espirituais, os aspectos simbólicos. Em A questão judaica (1978), Marx fundamenta sua concepção de emancipação, a partir do estabelecimento de uma clara e radical distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Inicialmente Marx define o sentido da emancipação política. Portanto, este tipo de emancipação se configurou pela superação da forma de sociabilidade feudal, em que o modo de produção estabelecia uma desigualdade jurídica e política explícita entre as classes sociais. Nesse contexto, emancipar-se politicamente não era emancipar-se de uma maneira absoluta, porque a emancipação política não era uma forma incondicional e global da emancipação humana. “O limite da emancipação política torna-se imediatamente evidente no facto de o Estado se poder libertar de uma barreira sem que o homem se tenha realmente liberto da mesma, de o Estado poder ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, 1978, p.17). (Grifos do autor) 27

O conceito de emancipação, segundo o Dicionário do Pensamento Marxista tem a ver com a liberdade em nível da supressão dos obstáculos à emancipação humana, ou seja, ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma nova forma de associação digna da condição humana. “Dentro da comunidade terá cada indivíduo os meios de cultivar seus dotes e possibilidades em todos os sentidos” (Marx, apud Bottomoro, p. 124). Assim, quanto tratarmos da concepção de emancipação, em alguns momentos do texto, vamos fazer referência ao conceito de autonomia, liberdade e emancipação como sinônimos.


49 Portanto, a emancipação política é limitada, por que ela não vai interferir na estrutura de desigualdade social, representa apenas uma igualdade jurídica, não extingue, antes solidifica a desigualdade social. Não obstante, para Marx, a emancipação política representa um grande progresso e, mesmo que não seja o modelo mais elevado de emancipação humana em geral, é a configuração mais elevada de emancipação dentro do seu contexto. “É certo que não é a última forma da emancipação humana, mas é a última forma da emancipação humana na ordem do mundo actual. Entendamo-nos: falamos da emancipação real, da emancipação prática” (MARX, 1978, p. 23). Por outro lado, embora a emancipação política seja uma emancipação limitada, ela também é fruto de lutas históricas28, pois ela não é inata ao ser humano, ela é fruto da resistência, organização e lutas que a humanidade tem desenvolvido ao longo de sua história. Portanto, a emancipação humana constitui ao mesmo tempo um anseio humano e uma busca em todos os tempos. Deste modo, como a emancipação política tem sua base nos princípios da cidadania, da democracia, tem representado um avanço diante da sociedade feudal. Marx questiona que a crítica não está em quem deve emancipar, e nem quem deve ser emancipado. Mas numa terceira questão: de que espécie de emancipação se trata? Quais as condições que fundam a essência da emancipação reclamada? De fato essa emancipação já é um progresso para a humanidade, porque através dela se teve acesso aos direitos do cidadão. Todavia, essa emancipação ainda não é obra da classe trabalhadora, proletária, não é um ato revolucionário de transformação das relações de produção. Esse modelo de emancipação segundo Marx(1978), vai apenas legitimar o direito do cidadão de ser egoísta, de explorar o outro. Nessa perspectiva, Marx faz uma crítica ao conceito liberal clássico de emancipação, através do questionamento ao direito à propriedade, à liberdade e à segurança, entre outros que são instituídos com a Revolução Francesa. Para o autor, “o direito de propriedade é, pois o direito de usufruir da fortuna própria e de dispor dela “à sua “vontade”, sem preocupações com os outros homens, independentemente da sociedade; é o direito do egoísmo”. É o direito a propriedade, a conservação das propriedades do homem burguês, de sua pessoa egoísta. Por outro lado, este tipo de liberdade individual defendida, assim como a sua aplicação no contexto da sociedade burguesa, faz com que “cada homem veja nos outros homens, não a realização, mas antes a limitação da sua liberdade”. Esse tipo de liberdade aclama, antes de tudo, o 28

Como exemplo destaco as lutas empreendidas pelo fim do apartheid na África do Sul, as lutas dos Quilombos e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil.


50 direito de “usufruir e de dispor à sua vontade dos seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho e da sua indústria” (MARX, 1978, p.38). Nesse aspecto, a emancipação referese simplesmente a “igualdade” conforme o princípio do direito burguês, estabelecido pelo capitalismo liberal. Portanto, essa igualdade é só aparente, pois só vale para alguns. A liberdade é, pois o direito de fazer tudo o que não prejudique os outros. Os limites dentro dos quais cada qual pode mover sem prejudicar os outros são definidos pela lei, tal como o limite entre dois campos é determinado por uma estaca. Trata-se da liberdade do homem considerada como mónada isolada, fechada sobre si própria... Mas o direito do homem, a liberdade, não se baseia nas relações do homem com o homem, mas antes na separação do homem em relação ao homem. É o direito desta separação, o direito do indivíduo limitado a si próprio (MARX, 1978, p.37).

Outra promessa da emancipação política foi o direito a segurança. Nesse contexto, Marx faz uma crítica a este direito, que só existe para assegurar que cada um dos membros da sociedade burguesa tenha a conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades. Pois, a segurança que a revolução francesa veio instituir é a segurança para a burguesia, é a segurança que vai garantir ao ser humano o direito ao seu egoísmo. “É neste sentido que Hegel chama à sociedade burguesa ‘o Estado da angústia e do entendimento’” (MARX, 1978, p.39). Nessa perspectiva, a segurança não tem uma conotação coletiva, um bem coletivo, mas um direito essencialmente individual e vinculada a classe que está no poder. Assim, os pretensos direitos humanos instituídos com a revolução francesa, não ultrapassam o homem egoísta, o homem enquanto membro da sociedade burguesa, ou seja, um indivíduo separado da comunidade, ensimesmado, preocupado apenas com o seu interesse pessoal, obedecendo unicamente à sua arbitrariedade privada. Neles, o homem está longe de ser considerado como um ser genérico; muito pelo contrário, a própria vida genérica, a sociedade, surge como um quadro exterior ao indivíduo, como uma limitação da sua independência original. O único laço que os une é a necessidade natural, a exigência e o interesse privado, a conservação das suas propriedades e da sua pessoa egoísta (MARX, 1978, p.39).

Portanto, o conceito de emancipação política constitui, respectivamente, “a emancipação da sociedade burguesa face à política e até à aparência de um conteúdo de ordem geral”. Desse modo Marx observa que a instituição da emancipação política constitui uma comunidade política, uma comunidade cívica, um simples ambiente de que deve servir para a permanência dos chamados direitos do homem, “onde o cidadão é declarado servidor do “homem” egoísta”. Pois o homem não foi emancipado da propriedade, antes ganhou a liberdade da propriedade. Não foi emancipado do egoísmo da indústria, recebeu a liberdade da


51 indústria. Por conseguinte, a revolução política alterou a vida burguesa nos seus elementos, sem revolucionar estes elementos nem os submeter à crítica. Destarte “a emancipação política é a redução do homem, por um lado, ao membro da sociedade burguesa, ao indivíduo egoísta e independente, por outro lado ao cidadão, à pessoa moral” (MARX, 1978, p.46). (Grifos do autor). Depois que Marx questiona, reflete sobre as limitações da emancipação política, que é a da perspectiva dos direitos, do jurídico, do político, do cidadão burguês, ele vai apresentar a sua proposta de emancipação, que ele chama de “emancipação humana” ou “emancipação humana geral”. Nesse sentido, o marxismo torna-se herdeiro de um conceito mais fértil e mais amplo de emancipação: “emancipação humana geral”, enquanto a mais elevada expressão das potencialidades humanas. Uma vez que a “emancipação humana só é realizada quando o homem reconheceu e organizou as suas próprias forças como forças sociais, deixando, pois de separar de si a força social sob a forma de força política”. Para tanto, Marx pauta sua obra no conhecimento e crítica a sociedade burguesa, vislumbrando alternativas, caminhos, ações instituintes da emancipação da espécie humana. Nessa perspectiva, Marx vai romper com o significado originário do conceito de emancipação na perspectiva jurídica29.

Portanto, o

conceito de emancipação humana é profundamente distinto da emancipação política. Com a emancipação política, o trabalhador permanece separado da sua comunidade. Esta comunidade, da qual é afastado “pelo seu trabalho é a própria vida, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o prazer humano, a essência humana”. A “verdadeira comunidade humana” (MARX apud TONET, 1995, p.60). Nos Manuscritos Econômicos – Filosóficos de 1844, Marx explicita os mecanismos que produzem a separação do trabalhador da autêntica comunidade humana, resultando no estranhamento, na desumanização do ser. Pois, o trabalho alienado acabou escravizando o ser 29

Segundo Pogrebinschi (2004), a origem do conceito de emancipação, em sua formulação latina original emancipatio, deriva de e manu capere, enquanto ato jurídico através do qual o paterfamilias da República Romana tinha autorização para libertar seu filho do pátrio poder. Posteriormente este conceito é retomado pelo projeto do iluminismo, através dos ideários de liberdade e igualdade, inspiradores da Revolução Francesa. Nesse contexto, o conceito de emancipação é também aprestado na perspectiva de autoemancipação, passando a ser ação do próprio sujeito. Portanto, se na Roma republicana a autoridade que proporcionava a emancipação era o paterfamilias, na Idade Média ela passa a ser o direito emanado do Estado. Tem-se, portanto, a emancipação no campo público, político. O Estado constitui o agente emancipatório, ou seja, um instrumento de realização da emancipação. Entretanto, no século XIX, o Estado constitui o próprio objeto de emancipação, ou seja, a origem da opressão da qual se deseja emancipar. Todavia, somente em Marx o conceito de emancipação se libertará do Estado. Trata-se do termo emancipação humana teorizado por Marx. Para maiores aprofundamentos sobre origem e evolução do conceito de emancipação ver POGREBINSCHI (2004).


52 humano, transformando-o em objeto. De tal modo que uma proposta de emancipação dentro de um contexto fundado numa forma de trabalho que tem por essência a compra e venda da força de trabalho, ocorre uma dissociação ontológica. Marx também identifica que o trabalho no capitalismo tornou-se somente um meio de sobrevivência, de conservação da existência humana, e a não concretização do reino da liberdade. Segundo este autor, a liberdade constitui o conceito essencial para a compreensão do homem em sua relação concreta com a existência. O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho que é determinado pela necessidade e por objetivos externos; por conseqüência, em virtude da sua natureza, encontra-se fora da esfera da produção material propriamente dita (...) A liberdade neste campo só pode consistir no fato de a humanidade socializada, os produtores associados, regularem racionalmente o intercâmbio com a natureza, submetendo-a ao seu comum controle, em vez de serem governados por ela como por um poder cego, e cumprindo a sua tarefa com o menor dispêndio de energia possível em condições tais que sejam próprias e dignas de seres humanos. (...) o desenvolvimento da potencialidade humana com fim em si mesma, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer tendo como base o reino da necessidade (MARX apud D’ACRI, 2003, p.6).

Portanto, o reino da liberdade só será instituído quando o ser humano se libertar da necessidade imediata da existência, tornando-se livre para expressar suas possibilidades, suas potencialidades. Nessa perspectiva, a emancipação humana geral só será possível para além do horizonte burguês. Somente o trabalho no comunismo é capaz de possibilitar a construção de uma autêntica comunidade humana, que tem sido apresentada como caminho para a efetivação de uma revolução social. Revolução social, aqui, constitui uma transformação que altere, a partir da raiz, a velha ordem social (TONET, 1995, p. 62). Portanto, essa sociedade emancipada inteiramente, só vai ser instituída com a revolução social e deverá ser obra dos próprios trabalhadores explorados. No Manifesto Comunista Marx e Engels afirmam: “a emancipação dos operários tem de ser obra da própria classe operária”. Nesse sentido, a perspectiva de Marx sobre emancipação fundamenta-se no devir do gênero humano, por meio da atuação do proletariado como classe protagonista da história. O que propõe Marx é a “revolução radical” para se efetivar a “emancipação humana geral”. Desse modo afirma Marx, que só com a instituição do comunismo existirá a liberdade plena e o pleno desenvolvimento das potencialidades, graças à propriedade social dos meios de produção. “O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da auto – alienação e, pois, a verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o homem. Ele é,


53 portanto, o retorno do homem a si mesmo como ser social, isto é, realmente humano” (MARX, 2005, p.21). Pois, a propriedade privada de um priva os demais, explora-os e limita a liberdade. Marx defende a igualdade social enquanto condição essencial para o mais amplo desenvolvimento da liberdade humana. Assim, para Marx, “o comunismo é a criação das condições para a libertação do homem” (apud GRUPPI, 1986, p.36). Portanto, numa fase mais elevada da sociedade comunista, o trabalho deixa de ser somente uma estratégia de sobrevivência, tornando-se essencialmente a primeira necessidade humana, assim como uma fonte de realização, prazer, criação, expressão das suas potencialidades humanas. “O trabalho não é mais servidão, mas sim libertação, potenciação das faculdades humanas” (GRUPPI, 1986, p.43). Assim, será superada a limitação jurídica da emancipação política da burguesia. “Cada um contribui de acordo com suas capacidades, cada um recebe de acordo com suas necessidades” (MARX, apud GRUPPI, 1986, p.44). No entanto, concordo com Gruppi (1986), quando reflete que o comunismo é uma projeção ideal, uma meta à qual devemos aproximar-nos. Pois, a afirmar que cada ser humano receberá de acordo com suas necessidades, uma vez satisfeita uma necessidade, apareceram outras. Será difícil uma satisfação definitiva de todas as necessidades humanas trata-se, por conseguinte de um processo. Pois, as necessidades humanas são históricas, estão sempre sendo ressignificadas. Diante dessas breves reflexões sobre o que pensa Marx sobre emancipação, apresento algumas reflexões: Quais as contribuições teóricas de Marx para o constituinte emancipação da EP? O que existe de fundamento nas práticas em educação popular, originárias das concepções de emancipação política e emancipação humana apresentadas por Marx? Essas questões serão retomadas no item sobre educação popular e a emancipação humana. Emancipação em Adorno A emancipação da humanidade constitui parte integrante de todo o projeto dos pensadores constituintes da Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt30. Estes pensadores 30

A Escola de Frankfurt foi criada na Alemanha em 1923. Contudo, não permaneceu na Alemanha, pois foi “transferida” para os Estados Unidos em 1933, onde permaneceu até 1950, retornando ao país de origem. Seus principais representantes foram: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas. A Escola de Frankfurt constitui um grupo de intelectuais que formularam uma teoria social crítica,


54 desenvolveram nos seus estudos profundas críticas e alternativas à sociedade de sua época e, sobretudo diante da não efetivação de uma sociedade emancipada, inclusive no contexto do chamado socialismo real. Horkheimer e Adorno em Dialética do Esclarecimento (1985), denunciam o caráter alienado da ciência e técnica positivista, cujo fundamento comum é a razão instrumental. Nesse estudo, os autores buscam compreender como a razão abrangente e humanística, que deveria está a serviço da liberdade e emancipação humana, se atrofiou, resultando na razão instrumental. Os autores fazem a vinculação entre esclarecimento e liberdade, entre razão e emancipação. Eles refletem que a humanidade, em vez de caminhar em direção à condição verdadeiramente humana, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. Dessa forma, o mérito da teoria crítica seria precisamente analisar a formação social dessa barbárie, revelando as raízes desse movimento, que não são naturais, nem acidentais e descobrir as condições para interferir no seu rumo, na construção de uma ação contra a barbárie, que representa a educação para a emancipação (Adorno, 2003, p.12). Para este texto, vou me deter especificamente na obra desenvolvida por Adorno: Educação e emancipação (2003). Nesse trabalho, Adorno escreve sobre um propósito específico dialogar com os educadores Hellmut Becker e Gerd Kadelbach (1969) sobre o processo educacional e a prática emancipatória no contexto da Alemanha, quando ele vai presenciar a barbárie dos campos de concentração. Para Adorno, a educação para a emancipação é a educação contra a barbárie que ocorreu em Auschwitz31, não deixando que ele se repita de outra forma, cotidianamente à nossa volta. Segundo estes autores o problema da emancipação não é unicamente alemão, mas internacional. A educação emancipatória nessa perspectiva constitui um instrumento de criar, educar, e de conscientizar pessoas, para no mínimo resistir a esta barbárie, a essa desumanização, a este extermínio coletivo. Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm

de inspiração marxista. Segundo esses teóricos, a relevância de uma teoria depende fundamentalmente de sua relação com a práxis. Nesse caso, a teoria, para ser relevante, precisa estar relacionada com as questões históricas da sua época, vinculada aos setores progressistas desse período. 31

Auschwitz foi um dos campo de concentração crido pelos nazistas em 1940, durante a 2ª Guerra Mundial e representou um dos maiores genocídios contra judeus, ciganos e outros grupos perseguidos pelos nazistas.


55 de fundamental as condições que geram esta regressão” (ADORNO, 1995, p. 119).

Identifiquei no pensamento de Adorno um compromisso com os problemas do seu tempo e com a classe social oprimida. Ele problematiza a finalidade da ciência e da tecnologia, onde se tem um mundo tão desenvolvido cientificamente, e ao mesmo tempo tanta exclusão e miséria. Portanto, uma educação que conduzirá à emancipação dos homens precisa levar em conta as condições a que se encontram subordinadas a produção e a reprodução da vida humana em relação à sociedade e à natureza. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto... A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades (ADORNO, 2003, p.117).

No diálogo com Adorno, Becker (2003) chama atenção para o conceito de “homem emancipado”, pois “é preciso tomar cuidado para não convertê-lo em um ideal orientador”. Por outro lado, Adorno reflete que a idéia da emancipação humana é ainda abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética. Assim, as questões abordadas pelos autores pertencem em seu conjunto a uma prática que pretende gerar emancipação, não a própria emancipação por si só. Conforme afirma Becker, é fundamental esclarecer com muita precisão as limitações e debilidades do conceito de emancipação no âmbito das sociedades democráticas. Marx já questionava a perspectiva da emancipação política no século XIX. Nesse aspecto, Adorno destaca a questão da “própria organização do mundo em que vivemos e a ideologia dominante”, quando se trata da efetivação de um projeto de emancipação num contexto capitalista. Pois, “Seria efetivamente idealista o sentido ideológico se quiséssemos combater o conceito de emancipação sem levar em conta o peso imensurável do obscurecimento da consciência pelo existente” (ADORNO, 2003, p.144). Nessa perspectiva, considero pertinente as reflexões de Kant: “vivemos atualmente em uma época esclarecida?... Não, mas certamente em uma época de esclarecimento”. (apud ADORNO, 2003, P. 181). Adorno comenta a concepção de emancipação constituída por Kant “como uma categoria dinâmica, como um vir-a-ser e não um ser”. Portanto, o termo emancipação, não deve ser utilizado apenas de forma retórica, vazio como o discurso da maioria dos políticos. Adorno aponta a necessidade de enxergar efetivamente os grandes desafios e dilemas que se opõem à emancipação no mundo atual. Portanto, a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a


56 resistência... Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente, pois hoje em dia o mecanismo da ausência de emancipação é o mundus vult decipi em âmbito planetário, de que o mundo quer ser enganado (ADORNO, 2003, p. 183).

Nesse sentido, Adorno identifica os limites da educação enquanto possibilidade de emancipação humana. Para o autor, a sociedade como ela está fundada, cultiva o homem nãoemancipado. Portanto, “qualquer experimento de conduzir a sociedade à emancipação é reprimida com força, que buscarão demonstrar que, precisamente o que desejamos encontra-se de há muito superado ou então está desatualizado ou é utópico” (ADORNO, 2003, p.185). Desse modo, acho pertinente destacar a persistência desse autor em defender a necessidade de radicalmente adentramos no momento da negatividade dialética, a fim de conseguir aprofundar a crítica a seu extremo para, quiçá sair dessa rua de mão única. Não ingenuamente, esperando como os discursos oficiais que a grande transformação se dará a partir da escola, mas reafirmando o seu papel importante nesse processo – que caminha em conjunto com a emancipação de toda a sociedade dessa situação “escravizadora” que nos submete o capitalismo... Num momento em que os educadores críticos estão desmotivados pela situação imposta pelo capitalismo tardio, ele nos propõe um caminho de resistência e de utopia (ainda que estejamos numa época em que esta palavra esteja fora de moda) (RONDON, 2001, p. 222).

Nessa perspectiva, Adorno propõe uma educação para a emancipação, que representa uma “educação que possibilite ao homem elevar-se à maioridade, como afirmava Kant, ou emancipar-se da exploração do trabalho alienado, como afirmava Marx” (RONDON, 2001, p.219). Becker (2003, p.180), defende a importância de “traduzir a possibilidade de emancipação em situações formativas concretas”. Embora tenha observado no pensamento de Adorno um grande pessimismo, identifico também uma grande esperança. Para compreender o que representa esta educação contra a barbárie e pela emancipação, acho pertinente apresentar os conceitos de Adorno sobre barbárie e educação: Entendo barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de toda esta civilização venha a explodir, aliás, uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade (ADORNO, 2003, p. 155). (Grifos meus)


57 (educação) Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior, mas também não a mera transmissão de conhecimentos cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua idéia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado (Adorno, 2003, p.142). (Grifos meus)

Adorno e Becker (2003), dialogando sobre o lugar do conceito de emancipação na educação, afirmam que no espaço de emancipação geral, nos deparamos com um conceito fundamentado muitas vezes na própria sabotagem desse conceito. A sociedade atual dita democrática, não só de forma implícita, mas explicitamente na maioria das vezes se coloca contra os pressupostos de uma democracia efetiva. Portanto, Adorno reconhece toda a complexidade da sociedade industrial, os dilemas, o autoritarismo, ele vai inclusive questionar com Beckher o modelo de socialismo da Rússia, que não vai significar um instrumento de emancipação humana. Nesse sentido, estão as colocações de Becker (2003, p.175): Estive durante algumas semanas visitando escolas da União Soviética. Foi muito interessante ver como num país que há muito tempo realizou a transformação das relações de produção mudou extraordinariamente pouco em termos de não educar as crianças para a emancipação e que nessas escolas persista dominando um estilo totalmente autoritário de educar. É efetivamente muito interessante este fenômeno da continuidade mundial do domínio da educação não-emancipadora, embora a época do esclarecimento já vigore há tempos, e embora certamente não apenas em Kant, mas também em Karl Marx haja muitas coisas que se opõem a essa educação não-emancipadora.

Conforme penso, a educação para a emancipação não é tão fácil de ser instituída, pois a educação por si só não é fundamentalmente um fator de emancipação. “Assim como o desenvolvimento científico não conduz necessariamente à emancipação, por encontrar-se vinculado a uma determinada formação social, também acontece com o desenvolvimento no plano educacional” (MAAR, 2003, p.15). Nessa perspectiva, Kant, Adorno, Freire nos convidam a pensar a sociedade e a educação em seu devir. Só assim será viável fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos construtores da história, aptos a interromper a barbárie e realizar o projeto emancipatório (MAAR, 2003). Portanto, o cerne deste experimento vive na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixados e determinados apenas como garantia de


58 sua continuidade, cujo curso precisa ser rompido em suas condições sociais e objetivas (MAAR, 2003, p. 13).

Emancipação em Freire

Nas obras de Freire: Pedagogia do oprimido, Educação como prática de liberdade, Medo e ousadia, Pedagogia da esperança, Pedagogia da autonomia, não identifiquei um conceito, um aprofundamento sobre o termo emancipação. Encontrei o movimento teórico-prático de Freire contra a opressão, a desumanização e pela libertação humana. Nessa perspectiva, Paulo Freire vai falar de emancipação enquanto processo de libertação, humanização dos seres humanos. Este autor em seus escritos debate sobre a libertação humana na história, enquanto a perspectiva de instituição do socialismo. E, ao mesmo tempo, no cotidiano, no aqui-e-agora, nas práticas miúdas que possibilitam aos seres humanos irem

exercitando processos

vislumbrando a emancipação humana geral. Fico deslumbrada em toda a obra de Freire com a sua posição na sociedade, na educação, na vida, diante do outro, diante dele mesmo. Suas indicações são sempre no sentido de refletir sobre o papel que temos e a responsabilidade de assumi-lo bem, na construção de uma sociedade mais democrática e humana. Paulo Freire tem um papel importante na feitura dos diversos constituintes que compõem o campo de intervenção da educação popular emergente no Brasil e na América Latina desde os anos 60. Portanto, é fundamental refletir as contribuições desse educador brasileiro no debate sobre o projeto de emancipação que permeia as práticas da educação popular. Emancipação na perspectiva de Freire é apropriar-se e experimentar o poder de pronunciar o mundo, a vivência da condição humana de ser protagonista de sua história. Freire nos possibilita um projeto de educação popular que almeja a libertação, humanização e emancipação humana. A pedagogia freireana caminha “em torno de uma ontologia social e histórica. Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária e inevitável, não a entende como uma a priori da História. A natureza humana se constitui social e historicamente” (FREIRE, 2000, p.119). A Emancipação nessa perspectiva consiste num fazer cotidiano e histórico permeado de desafios, sonhos, utopias, resistências e possibilidades. “Vocacionado à Liberdade, o ser humano busca responder através de sua disposição de cavar, sem cessar, espaços de autonomia, em vista de um renovado compromisso com a causa emancipatória, seja no plano pessoal, seja no âmbito coletivo” (CALADO, 2001, p. 55).


59 Freire comenta um trecho de O capital, quando Marx, debatendo sobre o trabalho humano em face do trabalho do outro animal, afirma que nenhuma abelha se compara ao mais “acanhado” mestre-de-obra. Pois, “o ser humano antes mesmo de produzir o objeto tem a capacidade de ideá-lo. Antes de fazer a mesa, o operário a tem desenhada na “cabeça” (apud FREIRE, 2000, P. 132). Portanto, do mesmo jeito que o operário tem na cabeça o desenho do que vai produzir em sua oficina, nós, mulheres e homens, temos também na cabeça, o desenho do mundo em que gostaríamos de viver (FREIRE, 2000, p.133). Tudo isso não representa necessariamente a emancipação, mas já nos motiva a caminhar, a lutar diante desse projeto, sonho, utopia de emancipação da humanidade. Nesse sentido, há uma relação entre o pensamento de Freire com o de Marx, quando estes afirmam reiteradamente, que a libertação (Freire), assim como a emancipação humana (Marx), não será instituída como dádiva das classes que detém o poder, mas como obra dos próprios trabalhadores. “Não pode ser proposta pela classe dominante. Deve ser cumprida por aqueles que sonham com a reinvenção da sociedade, a recriação ou reconstrução da sociedade” (FREIRE, 2001, p.49). Nessa perspectiva, Freire defende a concepção de libertação que de certa forma afina-se com o conceito de emancipação humana geral apresentada por Marx. Freire defende a realização do projeto político a favor da libertação: Libertação e opressão, porém, não se acham inscritas, uma e outra, na história, como algo inexorável. Da mesma forma a natureza humana, gerando-se na história, não tem inscrita nela o ser mais, a humanização, a não ser como vocação de que o seu contrário é distorção na história... Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade (FREIRE, 1997, p. 100).

Freire reconhece, assim como Marx, o progresso da emancipação política. No caso de Freire, a vivencia da cidadania, mas considera que só com a instituição do socialismo é possível a emancipação geral da humanidade. Para Freire(2001), não podemos abandonar o sonho socialista, sobretudo diante da possibilidade de começar de novo, sem mais referência do paradigma do socialismo soviético, e o modelo autoritário do denominado socialismo real. Portanto, Freire não abandona o sonho socialista – a utopia do socialismo. O discurso contra a utopia socialista – o discurso liberal ou neoliberal – necessariamente e obviamente enaltece o avanço do capitalismo. Eu me


60 recuso a pensar que se acabou o sonho socialista porque constato que as condições materiais e sociais que exigiram esse sonho estão aí. Estão aí a miséria, a injustiça e a opressão. E isso o capitalismo não resolve a não ser para uma minoria. Eu acho que nunca, nunca na nossa História, o sonho socialista foi tão visível, tão palpável e tão necessário quanto hoje, embora, talvez, de muito mais difícil concretização (FREIRE, 2001, p. 209).

Nas suas últimas obras, Pedagogia da esperança e Pedagogia da autonomia, Freire é claro quando afirma a sua defesa intransigente dos interesses humanos de dignidade, felicidade, fraternidade e amorosidade: “radicalmente sonho e luto por uma outra sociedade”. No entanto, Freire reconhece os limites da efetivação de uma sociedade emancipada no contexto do capitalismo. Por isso Freire reflete o processo de libertação (emancipação) como projeto de sociedade, como possibilidade, um devenir, que inicia-se em casa, nas relações entre pais, mães, filhos, filhas, na escola, nas relações de trabalho... Não importa para Freire o seu grau, o que importa é o seu caráter revolucionário. A educação, tanto a que ocorre nos espaços formais quanto nos informais, constitui um instrumento que possibilita aos seres humanos ir exercitando esse processo de emancipação em nível individual e coletivo. Deste modo, a libertação em Freire contempla a vivência das necessidades matérias e subjetivas, inclui a festa, a celebração, a alegria de viver: Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, tem que ser abrangente, totalizante; ela tem que ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver. E não apenas com a rigorosidade da análise de como a sociedade se move, se mexe, caminha, mas ela tem a ver também com a festa que é vida mesma. Mas é preciso fazer isso de forma crítica e não de forma ingênua. Nem aceitar o todopoderosismo ingênuo de uma educação que faz tudo, nem aceitar a negação da educação como algo que nada faz, mas assumir a educação nas suas limitações e, portanto, fazer o que é possível, historicamente, ser feito com e através, também, da educação (FREIRE, 2001, p. 102).

O processo de libertação humana no pensamento de Freire contempla o processo de humanização tanto do oprimido quanto do opressor. Destarte, essa luta unicamente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem reconstruir sua humanidade, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. “E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos” (FREIRE, 1991, p.30). Deste modo, essa libertação não acontecerá por eventualidade, todavia pela práxis de sua busca, pelo conhecimento e reconhecimento imprescindível da luta por ela. “A libertação,


61 por isto, é um parto... O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos”. Portanto, A pedagogia do oprimido (1991), constitui a pedagogia dos homens e das mulheres na práxis32 pela emancipação humana. A origem da pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, está estabelecida em dois momentos distintos: O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (FREIRE, 1991, p. 41).

De tal modo que a superação dessa contradição é um processo que traz ao mundo novos seres, não mais opressores, nem oprimido, mas homem libertando-se, emancipando-se. No entanto, essa libertação, ou seja, emancipação, não pode ocorrer em termos genuinamente idealistas. (FREIRE, 1991, p.35). “Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores” (FREIRE, 1991, p.32). A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos (FREIRE, 1987, p.30).

Nesse sentido, Freire argumenta contra a concepção bancária de educação. Educação que não promove a emancipação, ao contrário, reduz o ser humano ao “autômato”, que constitui a negação de sua ontológica vocação de ser mais, numa concepção de homem como ente “vazio” a quem o mundo “encha” de conteúdos, constituído numa consciência particularizada, mecanicistamente compartimentada: Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio” a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição (FREIRE, 1987, p. 59).

32

De acordo com o pensamento Freire (1991), a práxis é a reflexão e a ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo.


62 Freire desenvolve uma concepção dialógica da educação fundamentada numa compreensão problematizadora do ato de conhecer, na consciência de classe oprimida e na intencionalidade de mudar o mundo. Propõe uma educação que, eliminada a roupagem alienada e alienante, consista em uma força de transformação, emancipação e libertação humana. Conseqüentemente, se não é autolibertação, pois ninguém se liberta sozinho, por outro lado, não é libertação de uns feita por outros. Nesse processo de libertação, Freire afirma que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens e as mulheres se libertam em comunhão mediatizados pelo mundo. Portanto, Freire não acredita na auto-emancipação. Para ele a emancipação (libertação) é um ato social. Veja o diálogo de Freire (2001, p.135) com o educador norte-americano Ira Shor sobre esse assunto: Não existe uma auto-emancipação pessoal? (pergunta Ira)... Não, não, não. Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem através da transformação global da sociedade, então você só está exercitando uma atitude individualista no sentido do empowerment ou da liberdade (responde Freire).

Portanto, na perspectiva da educação libertadora proposta por Freire, a ação educativa tem limites. Representa um instrumento de contestação do status quo, principalmente no que diz respeito às questões da dominação de classe, sexo ou raça, contribuindo para a compreensão e transformação da realidade. Todavia, a libertação humana implica um sentido mais profundo, uma transformação radical da sociedade que aí está. Nesse sentido, Freire(1997) afirma que a finalidade da educação constitui um ato de libertação humana. Destarte, intercedidos por uma leitura crítica do mundo, mulheres e homens são convocados ao ato de instituir uma nova educação, sociedade, humanidade. Assim sendo, a emancipação é uma conquista, e não uma concessão. Portanto, demanda uma luta ininterrupta.

Nessa perspectiva, Freire não defende uma libertação

enquanto ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Em Freire, a liberdade é condição imprescindível ao movimento de busca pela emancipação em que estão inscritos os homens e as mulheres como seres inconclusos. Freire, Adorno, Kant falam, portanto da emancipação como um devenir: O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz (FREIRE, 1997, p. 99).


63

Emancipação em Boaventura dos Santos Boaventura dos Santos aporta uma nova concepção de emancipação. Esta perspectiva nasce do aprofundando da teoria democrática, que contempla uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação. Segundo este pensador, no contexto atual, o socialismo encontra-se liberto da caricatura grotesca do “socialismo real” e torna-se, portanto disponível para voltar a ser a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor para todos. Santos coordenou um projeto de pesquisa de âmbito internacional intitulado: Reinventar a emancipação social: Para novos manifestos. O ponto central desse projeto é que a atuação e a concepção que estearam e deram credibilidade aos ideais modernos de emancipação social encontra-se no momento atual fortemente questionados pela globalização. Este fenômeno embora não sendo novo, tem adquirido nas duas últimas décadas uma amplitude tal que tem redefinido os contextos, as configurações, os objetivos, os meios e as subjetividades das lutas sociais e políticas. A idéia, portanto desse projeto é que esta forma de globalização, embora hegemônica, não é a única e de fato tem sido progressivamente confrontada por uma outra forma de globalização, uma globalização que o autor chama de “alternativa”, “contrahegemônica”. Santos (2003, p.14), vai teorizar sobre a globalização numa perspectiva emancipatória, instituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, através de vínculos, redes e alianças em nível local, nacional e internacional, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo mais justo e pacífico que acreditam possível e a que sentem ter direito. A emancipação não é mais do que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidades das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social (SANTOS, 2003, p.277).

Conforme o pensamento de Santos(2003, p.35), é nesta esperança de globalização alternativa e no seu embate com a globalização neoliberal que estão sendo pensados e instituídos os novos caminhos da emancipação social. Desse modo, esta visão alternativa de globalização defendida por Santos, vai se fundamentar no marxismo perante a idéia da importância das articulações internacionais das lutas no contexto do capitalismo global. Essa


64 perspectiva de emancipação emergiu no I Fórum Social Mundial em Porto Alegre e se fortalece até os dias atuais. Boaventura vai situar a emancipação humana na perspectiva de que Um Outro Mundo é Possível, a partir da construção coletiva dos vários movimentos e setores populares que se organizam e lutam por uma vida melhor. Portanto, o conceito de emancipação (a globalização contra-hegemônica) proposto por Santos, é baseado na construção de cidadanias emancipatórias que articulam o local e o global por intermédio de redes e de coligações mundiais, a partir de um conjunto de lutas, de diferentes povos, culturas, formas: Urge identificar caminhos, sementes, formas diversas e alternativas de emancipar os sujeitos e de os capacitar na luta contra a exclusão. Acima de tudo, é importante perceber que não existe uma, mas muitas formas de dominação e emancipação. Assim como a hegemonia tem muitos rostos, também a resistência se desdobra em múltiplas agências e estruturas (CRISTINA SANTOS, 2003, p.364).

Portanto, segundo Santos, o êxito dessas lutas emancipatórias, vai demandar um conjunto de alianças que seus protagonistas poderão estabelecer em redes. “No início do século XXI, essas alianças têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e tem de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de opressão” (SANTOS, NUNES, 2003, p.64). Portanto, esses movimentos têm sido travados em um contexto histórico, onde se observa a emergência de diferentes lutas e atores coletivos distintos: as mulheres, os ambientalistas, os movimentos anti-racistas, os indígenas. Deixou de ser possível atribuir a um ator coletivo por excelência, como o proletariado global, o papel principal das lutas dirigidas contra formas diferentes de opressão e de dominação, envolvendo a emergência de uma correspondente diversidade de sujeitos coletivos. Por outro lado, torna-se necessário reconceitualizar a escala espacial dessas lutas, que são travadas nos espaços nacionais, supranacionais e subnacioanis em que opera o capitalismo (SANTOS, NUNES, 2003, p.35).

Portanto, Santos vai identificar a necessidade de instituir lutas multiculturais emancipatórias, do reconhecimento da diferença, contra a uniformização e a padronização. Este pensador vai trabalhar o conceito de emancipação no âmbito da problemática de gênero, etnia, raça, ecologia. Desse modo, a globalização hegemônica, ao mesmo tempo em que sucinta novas formas de racismo e exclusão também tem criado condições para a emergência do multiculturalismo. No entanto, alerta o autor, este pode ser tanto conservador quanto emancipatório. Santos defende o multiculturalismo emancipatório, que se baseia no reconhecimento da diferença e no direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além da diferença de vários tipos. No entanto, a igualdade ou a diferença, por


65 si só, não são aspectos suficientes para uma política emancipatória. Portanto, o debate sobre os direitos humanos e sua reinvenção como direitos multiculturais, bem como a luta das mulheres, dos povos indígenas, mostram que a afirmação da igualdade com base em pressupostos universalistas, bem como os que determinam as concepções ocidentais, individualistas, dos direitos humanos, leva muitas vezes à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas diferenciadas (SANTOS, 2003). Nesse contexto, as políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias colocam-se no terreno do conflito entre igualdade e diferença, entre o requisito do reconhecimento e o imperativo da nova distribuição da justiça social. No entanto, “a afirmação da diferença por si só pode servir de justificativa para a discriminação, exclusão ou interiorização, em nome dos direitos coletivos e de especificidades culturais”. Nesse aspecto, Santos (2003, p.64), propõem que para abolir este dilema se faz indispensável defender a igualdade sempre que a diferença originar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade referir-se à descaracterização. Assim, a partir das várias reflexões conceituais aqui tecidas, defino a emancipação humana enquanto um processo em construção permanente, que tem como base a instituição de uma ética humanizadora, comum a todas as pessoas, cuja proposição principal constitui o acesso e o usufruto de todos os seres a uma vida digna, plena, livre e feliz. Nesse sentido, estou tentando fazer uma reflexão da herança teórica de Marx, Adorno, Freire e Boaventura sobre o conceito de emancipação à luz de um contexto profundamente diferente da sua época, caracterizado atualmente por uma sociedade globalizada. Por conseguinte, discutir a constituinte emancipação na EP necessariamente nos remete a uma problematização desse debate, tentando compreender e transcender os desafios postos pelo capitalismo no contexto atual, assim como visualizar proposições concretas de superação desses limites.

Educação popular e emancipação A história da educação “popular” emerge da necessidade de contestar o discurso formal da igualdade e do Estado de direito, instituído desde a Revolução Francesa (emancipação política), e tem sido desenvolvida na América Latina enquanto uma educação


66 aberta aos camponeses, indígenas, mulheres, trabalhadores rurais, moradores de favelas, populações que historicamente têm sido excluídas do usufruto dos bens materiais e culturais produzidos socialmente. Nesse sentido, é uma educação que defende a transformação geral da sociedade (emancipação humana). Tem como metodologia o desenvolvimento de uma consciência crítica que recusa o autoritarismo da educação formal, almejando a superação da dicotomia entre sujeito e objeto, teoria-prática, objetividade-subjetividade no processo educativo social. Desse modo, a educação popular tem se confrontado com as práticas que propagam uma falsa neutralidade política e científica, a partir da afirmação de concepções e práticas emancipatórias da humanidade. Pois, “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante”. O que Freire quer dizer “é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, nem tampouco é a perpetuação do ‘status quo’” (FREIRE, 1998, p.127). Nessa perspectiva, a educação popular se funda na compreensão de que a educação é um processo permanente de afirmação da condição do ser de sujeito histórico. Sua proposição desde seus primórdios nos anos 60 constitui estimular processos que promovam a libertação, emancipação, autonomia individual e coletiva. Essa perspectiva de educação se fundamenta no pensamento marxista, na concepção de Homem construtor da sua história e da sua cultura, enquanto ser da práxis. De acordo com Melo Neto, a educação caracterizada popular está relacionada: as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação... Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político (MELO NETO, 2003, p.52).

Na perspectiva desse autor, o conceito de popular refere-se a uma ação que contemple os seguintes elementos que se relacionam entre si, no entanto diferenciando-se: tem uma origem nas maiorias (povo), ou a ele esteja encaminhado, tem o político como componente de promoção de hegemonia dos setores majoritários da sociedade, no aspecto metodológico, vislumbra uma prática para o exercício da cidadania crítica e geradora de ação. No tocante a dimensão ética e utópica, fundada em princípios de solidariedade, tolerância e justiça pela busca incessante de alternativas de vida e de felicidade (MELO NETO, 2003).


67 Paulo Freire nas suas diversas obras expressa a sua compreensão de educação popular vinculada às ações com os oprimidos. Freire propõe uma metodologia que facilite o processo de emancipação do indivíduo e da sociedade, na esperança de superação da opressão, exploração e desigualdade social. Nessa perspectiva, Freire coloca que uma das primordiais tarefas da educação crítica radical libertadora (popular) “é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta”. Assim, a educação popular defendida por Freire é aquela que persegue o sonho da construção de uma nova sociedade, reinventando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma nova compreensão da produção, uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora da curiosidade, mantenedora da curiosidade (FREIRE, 2001, p.101).

Freire indaga a favor de quem e contra quem são desenvolvidas as práticas de libertação e emancipação humana no processo educativo. Como é que a prática em educação se articula a outras ações vislumbrando a construção de uma nova sociedade? Nesse aspecto, Freire está atento para os limites da educação como prática de liberdade. Para ele, a educação é modelada pela sociedade segundo os interesses dos que detêm o poder, e sozinha não vai instituir uma sociedade emancipada. Portanto, Freire enfatiza que embora a educação não seja a “alavanca da transformação social", a transformação plena da sociedade, não obstante, é um processo educacional. Da mesma forma compreendo que o conceito de emancipação vai para além do conceito de transformação social, pois posso fazer uma transformação social sem necessariamente haver a emancipação humana. A exemplo tem-se a experiência da Rússia socialista, da revolução cubana, do socialismo real. Sei que o ensino não é a alavanca para a mudança ou a transformação da sociedade, mas sei que a transformação social é feita de muitas tarefas pequenas e grandes, grandiosas e humildes! Estou incumbido de uma dessas tarefas. Sou um humilde agente da tarefa global de transformação. Muito bem, descubro isso, proclamo isso, verbalizo minha opção (FREIRE, 2001, p.60).

No contexto atual, o desafio da educação popular é estimular e possibilitar, nas circunstâncias mais diferentes, a capacidade de intervenção e transformação do mundo na perspectiva da emancipação humana contemplando a diversidade cultural. Nesse sentido, Freire (2000), destaca a experiência tanto dos Quilombos quanto dos camponeses das Ligas e os sem-terra de hoje, o protagonismo histórico desses sujeitos sociais: anteontem, ontem e agora sonharam sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história como “façanha da liberdade”... Se os sem-terra tivessem acreditado na “morte da


68 história”, da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficácia dos testemunhos de amor à liberdade; se tivessem acreditado que a crítica ao fatalismo neoliberal é a expressão de um “neobobismo” que nada constrói; se tivessem acreditado na despolitização da política, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje é “pouca conversa, menos política e só resultados”, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido das ocupações e voltado para suas casas, mas para a negação de si mesmos, mais uma vez a reforma agrária seria arquivada (FREIRE, 2000, p. 61).

Dessa forma, Freire desenvolve uma discussão centrada na educação libertadora enquanto educação democrática, desveladora, desafiadora, um ato crítico do conhecimento, da leitura da realidade, da compreensão de como funciona a sociedade, a escola, como também, os processos educativos que se dão no interior dos movimentos sociais e das práticas em educação popular. Em uma de suas últimas obras: Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1998), Freire apresenta diversos saberes imprescindíveis à ação educativa. Destaco dois saberes abordados por Freire fundamentais na constituição de uma educação popular emancipatória: “é o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo” (FREIRE, 1998, p. 85). Outro saber é o de que, “como experiência designadamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 1998, p.110). Por fim, tem-se na obra de Freire uma educação a favor da emancipação humana, uma educação a favor da decência contra o despudor, da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Defende a luta contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Se coloca contra a ordem capitalista neoliberal vigente que concebeu este contra-senso: “a miséria na fartura”. Se coloca contra o desengano que consome e imobiliza a humanidade (FREIRE, 1998, p. 116). O avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma “ordem” desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados... Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado (FREIRE, 1998, p. 114, 145).

A partir dessas reflexões, identifico vários significados, concepções do conceito de educação popular e interfaces com o conceito de emancipação e de outros constituintes que


69 compõem a gênese teórico-metodológica da educação popular: ação transformadora da sociedade, vínculo com a classe trabalhadora, libertação dos oprimidos, autonomia, cidadania ativa, protagonismo da classe popular. Portanto, a maioria desses conceitos se inscreve numa perspectiva de mudança na ordem instituída, na constituição de uma sociedade mais justa e fraterna. Assim, diante dessas reflexões sobre as concepções de educação popular, observa-se que os projetos em educação popular na atualidade precisam buscar uma saída teórico-prática que responda aos desafios e as possibilidades postas pelas novas configurações humanosociais. Precisam tornar-se projetos atrelados à busca de realizações de novas relações sociais, pautadas em outros fundamentos. Podem estar voltadas à construção de um novo estilo de vida... Elas parecem ter significado à medida que sejam conduzidas a processos que mantenham o humano como centro dessas realizações e o trabalho impulsionador de sua emancipação, assegurando a existência da própria vida humana resultante de sua intervenção na natureza (MELO NETO, 2004, p.85).

Enfim, a EP essencialmente tem uma marca, de perspectiva de classe social oprimida, excluída. Em alguns momentos de sua história ela se sustenta na perceptiva da transformação radical de que Marx vai discorrer. Transformar a sociedade capitalista pela raiz, a partir da instituição da sociedade socialista. Noutros momentos, tem-se a perspectiva da sociedade democrática, a partir das mudanças sociais, das reformas, a emancipação política da que trata Marx. Todavia, tem sido o conceito de emancipação humana teorizado por Marx que tem nutrido a maioria dos projetos, das práticas, e dos sonhos no âmbito da educação popular desde os seus primórdios nos anos 60 até os dias atuais.

Vislumbrando a emancipação humana na educação popular Após a feitura desse texto, muitas reflexões permanecem em aberto: Emancipação em que nível? Como conduzir uma prática emancipatória em um contexto cada vez mais opressor, individualista, cujas leis maiores estão sendo as do mercado, a da luta pela sobrevivência imediata? Como conduzir um projeto de “emancipação humana geral” em um globo cada vez mais apartado por políticas neoliberais, excludentes e discriminatórias? Nesse contexto de grandes questionamentos postos pelo capitalismo atual, pergunto: para onde caminha ou poderá caminhar a humanidade?


70 No contexto atual é visível os limites impostos pelo projeto de globalização hegemônica. Este projeto institui um discurso fatalista, conservador e alienatório, condições inclusive necessárias para sua efetivação. Nessa perspectiva, estou de acordo com Freire (2000), quando declara que o discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, até mesmo por lucrar com ela. Freire sublinha a necessidade do aprendizado constante da “leitura do mundo”, exigindo fundamentalmente a compreensão crítica da realidade, que envolve, de um lado, sua denúncia, de outro, o anúncio do que ainda não existe, mas poderá existir: a emancipação humana. No pensar freireano a leitura do mundo é um que-fazer pedagógico-político, ou seja, é uma ação política que envolve a organização dos grupos e dos setores populares para intervir na reinvenção da sociedade (FREIRE, 2000). Compreendendo, obviamente, que ninguém é sujeito da emancipação de ninguém. A emancipação vai se dando no cotidiano e na história. Parafraseando Paulo Freire, os homens e as mulheres se educam e se emancipam em comunhão. Portanto, a história da humanidade é contada a partir da peleja humana em busca da sua liberdade, emancipação. Na perspectiva da emancipação política, verificamos que esta representou para a humanidade apenas a legalização e o acesso apenas para uma minoria de direitos no campo jurídico. Tivemos a esperança da emancipação humana no leste europeu, contudo, ela tentou construir uma liberdade apenas na perspectiva das condições matérias, mas a liberdade humana foi cerceada. Atualmente, o desafio permanece vigente, instituir uma emancipação humana que contemple tanto os aspectos matérias, quanto os subjetivos. Não podemos pensar em emancipação apenas na perspectiva social, ou econômica, ou política, ou cultural, mas geral que possibilite ao ser humano expressar-se ao máximo na sua capacidade, criatividade, potencialidade, realização e felicidade. É nessa perspectiva que a pedagogia da autonomia defendida por Freire está centrada em experiências estimuladoras da coragem, da responsabilidade, uma educação como prática de liberdade (FREIRE, 1998, p. 121). Nessa esperança, o processo de emancipação no âmbito da educação popular vislumbra instaurar um processo permanente de transformação social, através de uma prática que possibilite aos sujeitos sociais a vivência da autonomia, participação na tomada de decisões. Assim sendo, debruçar-se sobre os processos emancipatório no âmbito da educação popular é também falar de autonomia, liberdade, resistência, e conseqüentemente da luta dos


71 setores populares pelo acesso e usufruto de um conjunto de bens materiais e simbólicos, fruto do seu trabalho e do trabalho da humanidade. É trazer à tona as diversas formas de lutas, resistências, esperanças e manifestações de sujeitos sociais, nos vários lugares, sentidos, formas, realizados pelos vários povos, culturas, utopias em defesa de uma vida mais digna, humana e justa que vem sendo construída historicamente pela humanidade. Afinal, o processo de emancipação humana através das práticas em educação popular constitui uma utopia, ou pode vir a ser uma realidade? No meu entender, no âmbito da sociedade de classes, as práticas em educação popular, na perspectiva emancipatória é sempre limitada, incompleta, um devir, um processo em construção, pois os obstáculos estruturais emperram sua realização efetiva. Desse modo, a consolidação da emancipação geral da humanidade passa pelas transformações profundas no âmbito das relações sociais de produção. No entanto, mesmo diante de todos esses limites, há várias práticas em EP que estão ocorrendo a partir de ações concretas, embora restritas, conduzidas por sujeitos coletivos, que almejam a humanização, a liberdade, a dignidade, a felicidade, enfim a emancipação humana. Estas práticas em educação popular “emancipatória”, vêm sendo desenvolvidas pelos diversos setores da sociedade, no âmbito das Organizações Governamentais, das Organizações NãoGovernamentais e dos Movimentos Populares, a partir de outra lógica de sociedade munida de valores, tais como a cooperação, a fraternidade, a solidariedade e a justiça social. Desse modo, acredito inspirada em Freire (2000), que a educação que tem como princípio a emancipação humana tem sentido porque o mundo não é fundamentalmente isto ou aquilo, “porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo”. A educação para a emancipação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem e que podem saber e fazer. A educação para a emancipação “tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem na haveria porque falar em educação” (FREIRE, 2000, p. 40): A consciência do mundo, que viabiliza a consciência de mim, inviabiliza a imutabilidade do mundo. A consciência do mundo e a consciência de mim me fazem um ser não apenas no mundo, mas com o mundo e com os outros. Um ser capaz de intervir no mundo e não só de a ele se adaptar. É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos fazem e que nos torna, portanto históricos.


72 Portanto, diante de tantas reflexões sobre a emancipação humana e a educação popular, encontro esperança e luta nas colocações de Freire: pergunta ele: a emancipação humana “é um sonho possível ou não? Se é menos possível, trata-se, para nós, de saber como torná-lo mais possível” (responde ele). Acredito que o legado histórico das lutas sociais pela emancipação humana é este: que aspectos da emancipação política podemos considerar um avanço enquanto mecanismo de fortalecimento do projeto de emancipação maior da humanidade? E continuar caminhando rumo a emancipação humana geral... Pois muitos caminhos já foram feitos e muitos ainda serão criados, percorridos... Referências

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74

IGUALDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR José Luiz Ferreira

Introdução A disciplina Teoria da Educação Popular foi articulada de forma a desenvolver, com a participação da segunda turma do doutorado, um conceito para a Educação Popular. Na elaboração desse conceito diversas categorias apareceram, constituindo cada uma delas, em um novo constituinte da Educação Popular. Depois de um processo de discussão chegou-se ao seguinte conceito: É um fenômeno de apropriação (trabalho) dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto, constituído de uma teoria do conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdo e técnicas de avaliação processuais, permeado por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade.

No processo de construção do conceito três etapas foram básicas. A discussão de textos, a indicação de constituintes e a sistematização destes constituintes em três grupos, selecionados a partir de uma organização, por grau de importância, dada a cada um deles. No primeiro grupo, com valores iguais ou superiores a 80%, ficaram os seguintes constituintes: apropriação do produto da educação popular, ação transformadora, aprendizagem, autonomia, construção do sujeito, crítica, cultura, classe social, democracia, diálogo, emancipação, experiência, felicidade, liberdade, identidade, pedagogia, práxis, popular, produção do conhecimento, saberes, trabalho, realidade e totalidade. No segundo bloco estão os constituintes localizados na faixa de 60 a 79%: autenticidade, compromisso político, ideologia, incentivo ao desejo de saber, prática, poder popular, processo, empoderamento e igualdade.


75 Por fim, o bloco três consta dos constituintes abaixo de 60%, transitoriedade, lócus, organização/sistema. A igualdade é a categoria que neste texto procuro compreendê-la, refletindo sobre sua participação no contexto do conceito de educação popular. Para tanto inicio o texto discutindo o rastreando o conceito de igualdade, respaldando-me em textos de Norberto Bobbio e Aristóteles, para em seguida trazer alguns discursos da educação popular em relação à igualdade. Por fim, procuro deixar minha impressão a respeito do que significa a igualdade no contexto do conceito da educação popular, para compreender o seu aparecimento no conceito que produzimos a partir das atividades desenvolvidas em sala de aula.

Rastreando o conceito de igualdade A discussão da igualdade é muito recorrente em uma sociedade de classes, desigual, como a brasileira. Ela se dar na busca constante pelas eliminações das desigualdades construídas no campo social. As reivindicações no sentido da igualdade estão apoiadas na idéia de que todos os indivíduos são portadores dos mesmos direitos fundamentais, um dos valores políticos centrais da modernidade; e são alimentadas pela contradição entre esses ideais e as desigualdades verificadas cotidianamente nas oportunidades de educação, trabalho e autonomia social para homens e mulheres. Do ponto de vista teórico, seu arcabouço recorre basicamente aos princípios da igualdade de direitos e da liberdade individual, movendo-se no campo previamente definido da cidadania e dos direitos civis. O conceito de igualdade parece mesmo vago, genérico, que, se não for especificado, nada significa. Estamos muito em contato com ele em nossas leituras e discursos, particularmente no campo da educação. No caso da educação popular o aparecimento dos discursos e práticas que buscam a superação das desigualdades, a equidade entre sujeitos, a igualdade de condições e de direitos políticos, sociais e civis, é freqüente. Uma vez comprometida com as causas mais importantes das classes populares, denuncia e reivindica condições iguais para todos. Mas de que igualdade estes discursos realmente falam? Que igualdade a educação popular costuma postular?


76 Igualdade é a qualidade de igual, é um nivelamento de coisas. Ser igual é ter elementos idênticos ao outro. É estar no nível do outro. Ter os mesmos direitos do outro. No âmbito do cristianismo somos todos filhos de um Deus único, somos então todos irmãos, iguais perante Deus. Idéia esta, que, secularizada através da doutrina da natureza humana comum, acabou por instituir a fraternidade e se constituir num dos três princípios da Revolução Francesa. Na matemática, por exemplo, igualdade corresponde a partes iguais, um membro igual ao outro. O próprio símbolo da igualdade, duas retas paralelas, mantém a mesma distancia até o infinito. Qualquer alteração nessas medidas recai em um outro símbolo, maior, menor, diferente. Mas é no campo da política que a igualdade tem um papel importante. O reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de toda a família humana é o fundamento da liberdade, da paz e da justiça no mundo. A Declaração dos Direitos Humanos33 afirma o principio da inadmissibilidade da discriminação e proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, é o que prescreve o Art. 5º da Constituição Federal do Brasil. A igualdade é condição para a instalação de uma democracia. Sócrates evoca a velha constituição ateniense, contrapondo-se às outras constituições que, pressupondo a desigualdade dos homens pela qual alguns são servos e outros senhores, deram origens a tiranias e oligarquias. “Nós e os nossos – conclui -, nascidos irmãos da mesma mãe, não pretendemos ser entre nós servos e senhores, mas a igualdade de nascimento nos obriga a buscar também a igualdade legal e a não ceder a ninguém mais, a não ser no apreço da virtude e da inteligência”, Bobbio (2000, p. 378). Hobbes, afirma que”a natureza fez os homens tão iguais na capacidade física e intelectual” (Leviatã, cap. XIII). O homem, a mulher como pessoa, para ser considerado(a) como pessoa, deve ser, enquanto indivíduo, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa

33

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26/08/1789, em seu Artigo 1, diz: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamentadas senão sobre a utilidade comum.


77 relação de igualdade. Liberdade e igualdade são valores que servem de fundamento à democracia. No campo das teorias políticas a igualdade pouco se distancia da liberdade. No que concerne à igualdade, há de se perguntar de imediato: igualdade entre quem? Igualdade com relação a que coisas? Seguindo os passos de Bobbio (1997, 2000), há uma estreita ligação entre as sociedades liberais e as sociedades igualitárias. Como entender a perspectiva de uma sociedade igualitária numa sociedade liberal? Ou de outra forma, como buscar a igualdade numa sociedade desigual? Em resposta a estas questões, Bobbio (2000) coloca quatro alternativas: 1) Igualdade de alguns em alguma coisa 2) Igualdade de alguns em tudo 3) Igualdade de todos em alguma coisa 4) Igualdade de todos em tudo. Analisando estas alternativas Bobbio (2000) diz que a primeira não é significativa para uma sociedade igualitária, pois poucos seriam contemplados com a igualdade e ainda assim só em alguma coisa. A segunda corresponde a um igualitarismo parcial ou limitado, pois só alguns teriam direito a tudo. A terceira alternativa nada tem a ver com uma sociedade igualitária. Quando se colocam direitos para todos de acordo com determinados critérios, estabelece-se princípios liberais que não comportam a igualdade. Como ser igual se as regras levam a desigualdade? É a quarta alternativa que caracteriza uma sociedade igualitária. Essa seria aquela em que todos os homens e todas as mulheres seriam iguais em tudo. É uma sociedade ideal na qual o maior número de pessoas teria acesso ao maior número de bens. A doutrina prega a idéia de cada um, buscando o melhor para si, estará promovendo o progresso da coletividade. A capacidade de cada um é um principio que orienta a vida em comunidade.


78 Para Bobbio, o critério da necessidade é o mais adequado a uma sociedade igualitária. Marx afirmou, “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Para Buonarroti34 (apud Bobbio, 2000, p. 300), dado que todos têm as mesmas necessidades e as mesmas faculdades, que exista portanto para todos uma só educação, uma só nutrição. Eles se contentam com um único sol e um único ar para todos: por que não deveria bastar para cada um deles a mesma quantidade de alimentos?.

Bobbio (2000, p. 300) também coloca que os homens podem ser considerados de fato mais iguais em relação à quantidade e em relação à quantidade das necessidades do que em relação à quantidade e à qualidade da capacidade demonstrada nesta ou naquela atividade ou trabalho prestado nesta ou naquela obra.

Pensando assim, a quantidade e a qualidade segundo as necessidades vão na direção de que ninguém tem duas bocas ou duas barrigas. Também há de se considerar que os indivíduos não comem a mesma quantidade. Crianças geralmente comem menos que os adultos, mas Buonarroti lembra que “em moral, em política, e em economia, a igualdade não é uma identidade matemática e não se altera por pequenas diferenças” (Ibidem). O critério da necessidade parece mais justo “a natureza fez os homens mais iguais em relação às necessidades do que em relação às capacidades e a possibilidade que, segundo as diferentes capacidades, têm de cumprir este ou aquele trabalho na sociedade”, (Bobbio, 2000, p. 301). Todavia a capacidade não é um critério descartado. Se é certo que todos devem trabalhar, e aí reside a perspectiva da igualdade quanto a direito ao trabalho, é certo também que todos só não devem como não podem fazer o mesmo trabalho. Da mesma forma, se lutamos pelo direito de todos comerem, não é a mesma coisa afirmar que todos vão comer a mesma coisa e na mesma quantidade. Que critérios estabelecer para oferecer diferentes

34 Filippo Buonarroti, é um autor que, em 1828, publicou a obra Conspirations pour l´égalité de Babeuf, considerada por Bobbio como um dos textos mais completos, por apresentar um protótipo de uma sociedade igualitária.


79 trabalhos? Para Buonarroti é o critério da capacidade o mais justo: “a igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pelas necessidades do consumidor” (Ibidem). Nas doutrinas liberais o critério da capacidade serve para justificar as diferenças de fortunas, de riquezas. Nas doutrinas igualitárias serve para justificar as desigualdades de deveres. Para o estabelecimento de uma sociedade igualitária, qual deve ser o ponto de partida? E qual deve ser o ponto de chegada? Numa perspectiva liberal o ponto de partida é igual para todos, todavia o vencedor será aquele que mostrar-se mais capaz, o melhor. No ponto de chegada, todos são desiguais. Numa perspectiva igualitária, o que conta são os pontos na chegada, não importando a posição que ocupa. Aqui coloca-se a igualdade de oportunidade, de chances. Se tomarmos o exemplo de uma corrida, como o próprio Bobbio (1997, 2000) lembra, há de se reconhecer que cada um dos competidores tem características individuais que o faz diferente do outro e que se expressarão no resultado final. Numa sociedade igualitária leva-se em conta a igualdade dos resultados, com as diferentes posições ocupadas na linha de chegada. Numa sociedade liberal, jogando para cada competidor a responsabilidade de ganhar segundo suas próprias capacidades, larga-se na mesma linha, mas chega-se em posições diferenciadas, instituindo-se os vencedores e os perdedores. Segundo Bobbio (2000, p. 302), um dos temas recorrentes nos escritos dos iguais é o reconhecimento de “que todos tenham o bastante e ninguém tenha demais”. Duas possibilidades Bobbio vê para se conseguir uma maior igualdade entre os membros de uma sociedade. A primeira é estender as vantagens de uma categoria a outra categoria que dessas vantagens esteja privada. Cita o exemplo da extensão dos direitos políticos de quem sabe ler e escrever aos analfabetos. Esse procedimento é típico das doutrinas não igualitárias, pois além de ser utilizado pelas doutrinas liberais, nada tira dos que detêm o poder ou o direito em questão. A segunda possibilidade é tirar de uma categoria que detém privilégios, vantagens de que goza de modo que possam deles obter os benefícios também os não privilegiados. Neste caso pode-se citar como exemplo a reforma agrária, pois não é possível dar as terras aos posseiros sem tirá-la dos proprietários. Para Bobbio a igualdade econômica é a adequada para se instituir uma sociedade mais igualitária ou menos desigual. Não se consegue fazer uma distribuição de renda sem que ninguém tenha renda superior a um certo máximo e uma renda inferior a um certo mínimo, sem que se tire de alguém para passar para outro.


80 As teorias políticas que tentam desafiar o problema da igualdade, terminam por se confrontarem com as diferenças entre as desigualdades naturais e as desigualdades sociais. Aí se encontram, de um lado, quem defende a maioria (ou todas) as desigualdades que caracterizam a vida social como sendo naturais. Do outro, estão àqueles que atribuem ao social a razão da maioria (ou todas) das desigualdades da vida em sociedade. Seja de um lado Rousseau, para quem a natureza fez os homens iguais, mas a sociedade os tornou desiguais. Seja Nietzsche, para quem os homens são por natureza desiguais e apenas a sociedade, com a sua moral do rebanho, com sua religião da compaixão e da resignação, tornou-os iguais. Firmase a oposição entre os igualitários, que condenam as desigualdades sociais e os inigualitários, que em nome da desigualdade natural, condenam a igualdade social. Sabemos que a diferença fundamental é que, entre as desigualdades naturais e as desigualdades sociais, são estas últimas que podem ser alteradas e até eliminadas. Não restam dúvidas que muitas das desigualdades sociais são construções sociais, articuladas com vistas ao predomínio de uns sobre outro, no estabelecimento de poder de poucos sobre muitos; na definição de governos tiranos e oligárquicos, na contramão da democracia, da participação de todos nos destinos de uma sociedade.

Igualdade e justiça A justiça pode ser entendida como “a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e ainda como princípio do acordo que mantém uma ordem social”35. A justiça é, portanto, a guardiã dos direitos, tanto em sua forma legal quanto na sua aplicação aos casos específicos. Se “todos são iguais perante a lei’, é porque “todos têm garantias legais”, ou ainda, “todos têm iguais direitos”. À justiça cabe a igualdade entre os cidadãos. Para Aristóteles “a igualdade parece justiça, e efetivamente o é: porém não de modo geral, e sim apenas entre os iguais. A desigualdade também parece que o é, e efetivamente não para todos, somente o é entre os que não são iguais” (A política, p.91). Para ele não tem como pensar a diferença entre os que são iguais. Aos iguais o igual, aos desiguais o desigual. Aristóteles dar dois significados a justiça36: um é o de legalidade, no qual para ele justa é a ação em conformidade com a lei, e o outro significado é o que identifica justiça com 35 36

Retirado do site www.enciclopedia.com.br. Ver em Ética a Nicômaco, Livro V.


81 igualdade. Para ele justo é o homem que respeita as leis, é a ação que se orienta pela lei e justas são as próprias leis. Mas também é justa uma ação, uma lei, um homem que respeita ou institui uma relação de igualdade. Além das questões anteriormente colocadas sobre o que vai se igualar e igualar o que ou, com que ou com quem, acrescenta-se, como será feita a distribuição? De que forma a distribuição será justa? O que seria uma igualdade desejável e uma indesejável? Teremos que ver os critérios de justiça, aqueles critérios que nos permitem compreender como, em cada situação, duas ou mais pessoas possam ser consideradas iguais e que esta igualdade seja considerada justa. Seria justo partes iguais para todos? Ou, de acordo com o pensamento de Aristóteles, seria mais justo oferecer partes iguais a um grupo relativamente grande? A perspectiva de uma sociedade igualitária tende a se constituir naquela em que o maior número de pessoas passam a receber o maior número de bens. Como permitir que todos tenham direito à educação? Ao aprendizado do ler e do escrever, de forma que o acesso seja justo? Numa economia liberal aceita-se a igualdade de direitos, embora, de fato, nem todos usufruem de certos direitos. Se o liberalismo estimula o sucesso individual, a desigualdade é aceita como um critério de diferenciação na seleção econômica e social. O princípio, a cada um segundo suas necessidades e suas referências culturais, que fundamenta as políticas de desigualdade fomenta, por um lado, a segregação social e faz com que as pessoas se relacionem somente com aquelas que lhe são mais afeitas, e por outro, chegar às experiências baseadas no principio de que, quem tem mais recebe mais, e quem tem menos recebe menos. Desta forma ao se elaborar princípios de equidade, termina-se por se instituir princípios de iniqüidade. Se todos fossem iguais em tudo, bastaria apenas um critério, “a todos a mesma coisa”. Mas como todos não são iguais em tudo ou em nada, a igualdade não pode meramente ser pensada como algo que iguala uma coisa a outra, uma pessoa a outra. O igual pode ser diferente ou os desiguais podem ser iguais. Recorrem-se às diferenças ou semelhanças para a distribuição de ônus e de bônus. Aqueles que são iguais em um critério podem ser desiguais em outro e vice-versa. Mas qual a semelhança ou a diferença mais relevante para o estabelecimento de uma regra ou oferecimento de um bem? Se a estatura não é relevante para adquirir o direito ao voto, é relevante para se fazer jogador na seleção brasileira de vôlei ou no


82 serviço militar. Se o condicionamento físico não é um critério para se escrever, certamente poderá ser para uma carreira militar. Em alguns casos a definição de critérios torna-se um elemento complicador, pois pode aparecer mais de um em uma mesma situação, sendo necessário eliminar alguns em detrimento de outro. A escolha de determinados critérios passa também por juízos de valor que, além de não serem passíveis de demonstração e sustentáveis através de argumentos contra ou a favor, são historicamente mutáveis. Em síntese, a igualdade não parece fácil de ser compreendida, pois na própria formulação pode estar colada a sua própria negação.

Educação Popular e igualdade Num país com tantas diferenças sociais, políticas, econômicas, culturais, não é difícil encontrar quem lute pelo resgate da igualdade entre as pessoas. A América Latina e o Caribe constituem uma região onde predomina a desigualdade. Desde a década de 80 (séc. XX), a pobreza e a desigualdade social dispararam. Nem mesmo com a expansão econômica nos anos 90, a América Latina conseguiu melhorar a distribuição de renda. Dados da Cepal em 2001, apontam que, de 1980 a 1999, a porcentagem da população em situação de pobreza ficou na casa dos 43,8%, mesmo que este percentual tenha chegado a 48,3% em 1990. O Brasil é o campeão em concentração de renda em mãos de uma minoria. A região também é uma das mais injustas. Foi-se criando uma distância cada vez maior entre os que, de um lado têm uma boa educação e uma boa situação econômica, e, de outro, os que correm um duplo risco, ter uma educação deficiente e viver na pobreza. A lógica parece insistir em oferecer menos a quem ganha menos ou nada tem. Uma política que vise a igualdade é uma política que procura igualar o acesso à educação e que busca a igualdade nos resultados. As políticas atuais parecem insistir nesse caminho. Os resultados é que não seguem a mesma lógica. Além de terem acessos diferentes, os resultados também não são os esperados. Uma parte dos pobres termina o ensino fundamental, uma parte menor termina o ensino médio e uma porcentagem muito pequena chega à universidade. A superação das diversas desigualdades é, na verdade, o pano de fundo de muitas ações desenvolvidas pela educação popular. Que sentido tem a luta pela democratização da


83 educação, do acesso a novas tecnologias, a novas formas de avaliação, a conteúdos que representem a própria histórica dos educandos, se não é a de oferecer a quem tem menos ou quase nada uma educação possível, libertadora, alegre e igual? Muito mais do que apenas conseguir um determinado direito, está a sua aplicabilidade. Seja no campo formal da educação, seja na esfera do não formal, a educação, em várias manifestações pleiteia a igualdade. Os movimentos pela igualdade de gênero têm, nessa categoria, a base de suas reivindicações. A luta é pela equiparação de direitos ainda não conquistados e o efetivo cumprimento daqueles que a própria Constituição e outras leis garantem a ambos os sexos ou propriamente às mulheres. Se a terra não pode ser igualmente distribuída para todos, é certo reconhecer que todos têm igual direito a um pedaço de terra para, no mínimo, morar e cultivar. A desigualdade social é a razão da concentração de terras em mãos de poucos e muitos sem um lugar para se alojar. Eis, entre tantos motivos, uma das razões do Movimento Sem Terra37. O movimento pela educação escolar busca enfrenta historicamente problemas com relação ao acesso e as condições de permanência, desde as condições mínimas de operação da escola aos resultados finais, significando assim que sendo a educação um bem geral e para todos, todos aqueles que à escola cheguem devem sair com resultados satisfatórios, com conhecimentos construídos e preparados para a vida e para o trabalho. A educação no Brasil tem uma história de perdas e ganhos que se desenvolve desde o período de colonização. A separação de senhores e escravos já instituía também diferenças na aprendizagem das primeiras letras. Nem todos podiam ter esses conhecimentos. Para Paiva (1987, p. 26): a educação do povo só começou a ser valorizada como processo sistemático quando a revolução industrial na Europa passou a exigir o domínio das técnicas da leitura e da escrita por parte de um maior número de pessoas, (...) tornou-se ainda mais importante quando o desenvolvimento do capitalismo permitiu percebê-la como um importante instrumento de ascensão social.

37

A Lei N. 4.504 - de 30 de Novembro de 1964 – Estatuto da Terra, em seu Art. 2º diz: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.


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Ainda no século XIX a educação não era estendida a todos. Kulesza (1999, p. 78) mostra como era pensada, : Ler e escrever, as primeiras operações da aritmética, alguns rudimentos de gramática e o catecismo, eis aí tudo. Para as classes inteiramente pobres, e que vivem do trabalho manual nas regiões inferiores da sociedade, talvez uma tão acanhada instrução possa em rigor bastar. Mas de certo não basta para aquelas outras classes que medeiam entre as operarias e as cientificas, classes importantíssimas, em que reside toda a força da comunidade, em que se encontra o negociante, o fabricante, o lavrador, o artista e o empregado público.

O compromisso com a mudança social atravessou décadas, mantendo-se ativo nas várias propostas de educação popular. Beisiegel (1982) dizia que essa perspectiva nos situava em oposição a todos os que procuravam encontrar no processo educativo um instrumento de preservação das desigualdades que marca a ordem vigente. Reivindicamos uma sociedade mais justa e esta idéia envolve, entre outros elementos, menos privilégios para as minorias dominantes e menos miséria para as maiorias dominadas” (Beisiegel, 1982, p. 64). Paiva (1987) entende educação popular como aquela oferecida a toda a população, gratuita e universal e também aquela voltada para as camadas populares. A Educação Popular, entre tantos significados que a ela foram produzidos, é entendida como “aquela voltada à cultura do povo que está à margem dos processos escolares e da produção, ou excluído das realizações culturais” (Melo Neto, 1999, p. 47). Nestas enunciações percebe-se que nem todos têm ou tiveram acesso a uma educação de qualidade, gratuita e universal, apesar do reconhecimento de que na lei a igualdade é um principio que rege a Constituição Brasileira. Se retomarmos o conceito construído por nós, identificamos nele várias categorias, entre elas trabalho, cultura, sistema, pedagogia, poder, participação, técnicas de avaliação, todas articuladas em prol dos anseios humanos, a exemplo da liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Seja em que situação for, a educação popular visa a humanização do ser humano. Visa a sabedoria, que é mais do que a erudição, segundo Sales (1999). E ainda segundo ele, nessa fase do capitalismo, exclui-se pessoas, regiões, ramos de produção e países. E, se nesse processo for necessário sucumbir com o solo, o ar, a floresta, crianças, mulheres, não será difícil que isto aconteça. Parece então que a igualdade não será a regra a ser seguida. Na


85 esteira da história são as camadas populares as principais a sofrerem as ações do capital financeiro.

Igualdade em educação popular Pensar a igualdade no contexto e do discurso da educação popular, só me é possível, neste momento fazendo muito mais indagações do que afirmações. Quando se fala de igualdade, quando se reivindica direitos não se atenta para outros elementos ali implícitos. Os direitos à igualdade das mulheres em relação aos homens não passam pelo entendimento de que as mulheres seriam iguais em tudo, mas exatamente reivindicam também a sua própria diferença. Em certo sentido, querem também ser desiguais. Qualquer lei assegura, em primeiro plano, uma primeira forma de igualdade, a igualdade formal. No caso particular da relação entre os gêneros masculino e feminino, a igualdade requer uma visão mais ampliada. Se todos os homens e mulheres são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, nada poderá fazer de que um seja superior ao outro no campo da convivência social. E é na construção social dos gêneros que reside a possibilidade das mudanças, o que significa de certa forma uma igualdade, mas de outra forma a manutenção das diferenças. Se tomarmos a educação como uma referência para entender a igualdade, algumas questões precisam ser elaboradas. A que tipo de educação estamos a nos referir? É o direito a todos irem à escola? Permanecer nela e de lá sair para a universidade? Como equiparar as forças para que o filho ou a filha do trabalhador possa ter as mesmas condições para chegar ao objetivo desejado em relação aos filhos e filhas das famílias mais abastadas? Se o problema estiver nas famílias, não será na escola que se equiparará, mas no seio das famílias. Parece então que ao reconhecer que a desigualdade na concentração de renda, notadamente influente no padrão de vida, já é um dado de que a igualdade ao acesso e à permanência na escola é aparente. Nada parece igualar os desiguais. O problema é maior do que se possa imaginar. É uma questão de construção de uma nova sociedade. Ou será que uma vez entendendo as diferenças pessoais, de mérito, de capacidade das pessoas, a igualdade só poderá acontecer entre pessoas que reunam características iguais? O direito à terra, a moradia, à saúde, à educação, ao lazer, entre outras possibilidades de equiparação dos sujeitos, não significa necessariamente a certeza de que todos terão estes benefícios e se os tiver, não serão na mesma quantidade. O acesso aos bens culturais só é


86 possível, de forma igualitária para todos, no plano da realização formal, da lei enquanto regra da justiça, pois mesmo que todos tenham acesso aos diversos bens, nem todos terão em igual quantidade e qualidade. O princípio aristotélico da igualdade numérica, “serem igual e identicamente tratados no número e volume das coisas recebidas”, não se consolida numa sociedade de classes, liberal, capitalista. Reivindicar, portanto uma sociedade mais justa, igual para todos, significa entender as diferenças existentes e considerar o acesso ao bolo com partes desiguais, desde que todos tenham parte na distribuição. A reforma agrária, por mais que seja justa, não equiparará o volume de terras dos grandes latifundiários aos novos posseiros. Em tese, a perspectiva da igualdade termina por se consolidar no reconhecimento das desigualdades. Os discursos da educação popular apontam para um conceito de igualdade genérico, às vezes utópico, exprimindo idéias contraditórias ao próprio discurso. Penso que a categoria igualdade como um constitutivo da educação popular deve ser sempre explicativo do que se pretende, de quem estar reivindicando e de como será distribuído, socializado os bens.

Referências ARISTÓTELES. A Política. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2004. ARISTOTELES. Metafísica: livro I e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Peçanha. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Série os Pensadores. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organização de Mechelangelo Bovero. São Paulo: Elsevier, 2000. KULESZA, Wojciech A. Educação Popular e Educação Básica na história do Brasil. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999. MELO NETO, José Francisco. Educação Popular: uma ontologia. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.


87 PAIVA, Vanilda Pereira. Educação Popular e Educação de Adultos. São Paulo: Loyola, 1987 SALES, Ivandro da Costa. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um debate). In: SCOCUGLIA, Afonso Celso e MELO NETO, José Francisco (orgs). Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999.


88

SUBJETIVIDADE EM EDUCAÇÃO POPULAR Nelsânia Batista da Silva O presente texto procura evidenciar questões levantadas em uma pesquisa realizada sobre a produção de subjetividades e a educação popular, no contexto da Feira Agroecológica e Solidária38. A existência da Feira Agroecológica se dá a partir da organização do movimento de luta pela terra, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da igreja católica. E mesmo reconhecendo o seu caráter econômico como fundamental, desde a sua origem, existem outras dimensões que acompanham a sua trajetória e a sua forma de organização. Os princípios que a embasam seguem um caminho compartilhado com os movimentos sociais populares na sua lógica de organização. É organizada por agricultores e agricultoras de assentamentos de reforma agrária, situados nos municípios de Sapé e Cruz do Espírito Santo. Os produtos são cultivados sem utilização de agrotóxicos e de produtos químicos que degradam a natureza, numa vertente ecologicamente responsável, preservando a vida e o ambiente. Segundo um de seus participantes, a feira foi gerada a partir da necessidade dos trabalhadores e trabalhadoras de se organizarem para atender a sua sobrevivência. Esse processo foi ocorrendo através da articulação dos diversos assentamentos existentes na região que se reuniam freqüentemente para refletir sobre sua realidade. A organização da Feira ocorre através de reuniões, encontros e assembléias, baseada em regimento e estatuto construído coletivamente, com princípios éticos compartilhados por todos. Para a sua sustentabilidade existe um fundo de feira39 coletivo, com contribuições semanais de todos os participantes. A Feira é uma produção humana, construída num contexto histórico, que para sua compreensão buscaremos analisá-la a partir de sua dimensão subjetiva através da educação popular. 38

A Feira Agroecológica e Solidária acontece nas sextas-feiras, no campus I, João Pessoa, da Universidade Federal da Paraíba. 39 Fundo de Feira é uma poupança coletiva, em que todos os participantes contribuem com uma porcentagem de sua arrecadação semanal. Esse recurso é utilizado para a organização, manutenção das necessidades coletivas e para pequenos empréstimos dentro do próprio grupo. Os empréstimos são parcelados, sem cobrança de juros, num acordo considerando a condição de pagamento da pessoa.


89 Para compreender essa produção, discutiremos como se dão as construções subjetivas num contexto de organização que se concretiza com a realização da feira, mas que não perde o seu caráter subjetivo, sem o qual, o concreto deixaria de existir. Esta preocupação remete à construção do pensamento psicológico que tem suas bases epistemológicas na filosofia. Na Grécia antiga, Sócrates e Platão concebiam o humano com a dualidade corpo e alma. O conhecimento estava no mundo das idéias, necessitando ser ativado pelo processo educativo. Já para Aristóteles, corpo e mente eram indissociáveis, compreendendo o humano como uma “tabula rasa”, sem nenhum conhecimento pré-existente. O conhecimento dava-se na realidade do mundo concreto. O conhecimento a respeito do sujeito nas origens do pensamento psicológico era centrado basicamente no indivíduo, sem uma compreensão das relações existentes com o mundo. Nesse sentido, subjetividade era vista como algo individual, pertencente unicamente ao indivíduo. Porém, os behavioristas concebiam um antagonismo entre o indivíduo e o seu meio, em que o comportamento se dava a partir das determinações ambientais. A perspectiva de compreender a subjetividade de forma individualizada, centrada no indivíduo, ainda prevalece com fortes tendências hegemônicas. E apesar do avanço desta compreensão, em função da humanização do sujeito, diferenciando-o dos outros animais, podendo transformar a vida. Nisto, há uma perspectiva de naturalizar as questões relacionadas ao psicológico, distanciando do mundo material. Essa concepção naturalista e individualista do humano afasta-o de pensar uma postura de humano, capaz de transformar sua realidade social. Com uma visão em que há um distanciamento entre mundo subjetivo e o mundo concreto, é como se um existisse independente do outro, como se não se desejasse olhar além do indivíduo em si mesmo. A forma de compreender o mundo e intervir nele, neste caso na organização de uma Feira Agroecológica e Solidária e em bases à economia solidária, também, depende de uma construção subjetiva de mundo. Mas que subjetividade é essa que se está falando? Essa categoria apresenta-se como algo complexo em um meio de concepções que surgem especialmente num momento que aparece como tema emergente, nos dias de hoje. Em uma experiência dessa natureza, destaca-se a importância da subjetividade enquanto construção humana com o seu mundo, num movimento permanente em que ao transformar o mundo, o sujeito também se transforma, numa relação entre o individual e o social. A organização de uma feira, com as características da agroecologia e solidariedade,


90 significa transformar as relações estabelecidas no próprio ato de sua realização – as mudanças concretas advindas dessa possibilidade de produzir, vender e ratear recursos de forma coletiva, fortalecida por atividade educativa e popular. Estabelece-se um amplo campo de subjetividade que na concepção de Vygotsky (1998: 40): [...] “essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social”. Nesse sentido, o sujeito está em relação com ele mesmo, com os outros numa relação intersubjetiva e com o mundo concreto, dele não podendo se dissociar. Assim, não se pode compreender o sujeito em si, a não ser na sua relação com o mundo. A perspectiva de subjetividade vai sendo constituída historicamente pelo humano. A história humana tem demonstrado uma capacidade de atuação, que a partir da necessidade, o sujeito cria, experimenta, constrói jeitos de viver. Ao se desenvolver enquanto humano, foram construindo linguagem, valores, economia e toda uma cultura que os faz ser como são. Há uma construção cultural coletiva acumulada que mesmo antes de sua existência concreta numa sociedade, já estavam presentes dimensões como linguagens, valores, economia, enfim um mundo que perpassa o ser psicológico do sujeito. Segundo Bock e Gonçalves (2005:124): “ os sentidos produzidos pelos sujeitos são únicos, mas têm sua fonte no mundo dos significados, nos mundos da cultura e do social. No entanto, o sujeito os constrói a partir de sua experiência pessoal histórica que é única”. Vão se construindo jeitos de ser, de sentir, de se expressar no mundo, considerando a história de vida do sujeito, na sua intima relação com o mundo. Contudo, isso não significa a negação das dimensões biológicas, mas a evidência da dimensão subjetiva na constituição humana que se define, neste caso, pela educação popular. Nessa perspectiva, a educação popular e a psicologia sócio-histórica vêm subsidiar essa compreensão. Segundo Gonçalves e Bock (2003: 96): [...]Nessa perspectiva, compreender o indivíduo é compreender ao mesmo tempo a relação indivíduo sociedade, superando a dicotomia. Não há uma sociedade externa ao indivíduo; não há um indivíduo a priori ou independente da sociedade. Desvendar os processos subjetivos e sua constituição é desvendar a relação entre o psicológico e o social, compreendida aqui como uma relação de constituição mútua.


91 As relações existentes na experiência em análise são compreendidas na relação histórica do humano com o concreto e o social. Nesta concepção, o humano é um ser de transformação, mesmo existindo os condicionantes do mundo material. Como o humano é um ser em permanente movimento de transformação, faz pensar que é possível transformar a realidade em função da vida. Mas o movimento é permeado por uma realidade contraditória, em que a ideologia hegemônica acompanha as construções subjetivas. O humano se constitui como um ser que não age exclusivamente pela sua compreensão de mundo, mas existe uma ideologia que perpassa o seu ser, mesmo que nem se perceba, provocando incoerência na sua relação com o mundo. Segundo Reich (2001: 17): A ideologia social, na medida em que altera a estrutura psíquica do homem, não só se reproduz nele, mas também – o que é mais importante – se transforma numa força ativa, num poder material, no homem que por sua vez se transforma concretamente e, em conseqüência, age de modo diferente e contraditório.

Então, as percepções, as ações e o pensamento do sujeito apresentam-se permeados de contradições que tornam mais complexa a compreensão da realidade e aquilo que pertencente ao indivíduo. Afinal, existe esse indivíduo independente da realidade? Existe uma diversidade de dimensões que perpassa o indivíduo, a todo instante, e que vai além de uma leitura apenas objetiva, fortalecida por ações educativas em bases populares. A perspectiva de perceber a realidade e o poder de intervir nela possibilitam o desenvolvimento da criatividade, sensibilidade, inteligência, busca de um conhecimento que subsidiem as intervenções humanas voltadas às classes populares - dos que estão a margem, dos que estão distantes do acesso ao conhecimento e ao poder de intervir em função de melhorar suas vidas. É nesse sentido que se afirma a importância de uma educação - educação popular, voltada para esse público. Entende-se que essa intervenção não se dá em si, mas na ação humana sobre o mundo. Nessa relação, o humano transforma a sua realidade e é transformada por ela. Quando a gente decidiu trabalhar agroecologicamente, é tudo educativo, existem alguns atropelos porque quando você está aprendendo claro que em algum ponto você vai chegar a errar, mas está criando aquela capacidade de não errar mais. Então o educativo está cada vez mais fortalecendo a


92 consciência das pessoas, a questão de reclamar, perder a timidez, a vergonha que você tinha em chegar perto de uma pessoa e falar.40

O processo educativo, compartilhado numa perspectiva de educação popular possibilita que os sujeitos reflitam sobre seu mundo, ampliem sua realidade e criem outros jeitos de atuar que podem projetar o futuro, agir com intencionalidade pensando em função melhorar a vida. Quebrar com algo que parece naturalizado e ir além daquilo que se apresenta como determinante. Para o sujeito compreender a possibilidade de intervenção no mundo se faz necessário também entender a sua complexidade, como algo em movimento permanente historicamente construído. E que mesmo entendendo a sua lógica, a intervenção não é total, porém existem as possibilidades que são ampliadas ou restritas pela intervenção humana.

Se a realidade

estabelece-se de uma certa forma, é por conseqüência da ação transformadora humana. À medida que se entende a possibilidade do poder refletir, de intervir, de transformar o mundo e a si mesmo é que se pode avançar para além dessa realidade. A transformação social, a favor da vida, base dos valores de uma Feira Agroecológica e Solidária, deve considerar o movimento dialético entre as questões individuais e coletivas. Porém, quando se está pensando numa outra lógica de sociedade, com valores construídos diferentes dos alimentados por uma lógica individualista, pode-se ir pensando de que forma o bem coletivo poderia existir sem esmagar o sujeito e suas peculiaridades. Como pensar nesse movimento que possibilite a combinação das necessidades individuais e coletivas sem cair num certo tipo de coletivismo que esmaga o indivíduo e nem no individualismo, tão somente. Mas, que sujeitos e que sociedade são estes? A questão é que esses caminhos podem ser pensados, considerando uma estratégia de intervenção do ser humano, como construtor de outras subjetividades que alimentem outra lógica de sociedade, direcionada para todos e todas. Mesmo reconhecendo-se as adversidades que essas proposições enfrentam, é por elas existirem que há uma necessidade de transformações sociais que já estão acontecendo. Só a perspectiva de transformação de valores, em função da vida e não do capital, já faz diferença, como mostra esse esforço coletivo da Feira Agroecológica e Solidária. E isso se dá num processo que não pode ser de um indivíduo, mas de produções subjetivas e intersubjetivas. 40

Membro da Feira, pertencente ao assentamento Dona Helena, em entrevista realizada para essa pesquisa.


93 A perspectiva do sonho não pode ser perdida desde que pensada, desejada, construída, gerada, alimentada, aprofundada e inspirada por homens e mulheres que querem construir outro tipo de sociedade para se viver melhor. A Feira Agroecológica e Solidária, em bases de outra economia, não pode perder de vista as satisfações humanas, durante o percurso de transição para outro tipo de sociedade. Na perspectiva de Calado (2000: 272): É fundamental seu respeito à indissociabilidade entre um rumo libertário e seus respectivos métodos/meios que aqui tomamos como um processo de utopia em construção. Utopia que contemple aspectos e dimensões ao mesmo tempo macro e micro-estruturais, capazes de impregnar as diferentes dimensões do cotidiano e de projetar-se na busca incessante de criar e manter condições favoráveis a um tipo de sociabilidade que faça justiça às aspirações mais generosas do gênero humano.

Um humano que possa realizar-se em todas as suas dimensões, pela crítica, na liberdade de expressão, com sensibilidade, criatividade, amorosidade, vivacidade e com a produção. Na concepção de Marx (2001: 141): [...] apropriação sensível da essência e da vida humanas, do homem objetivo, das criações humanas para e por meio do homem, não deve considerar-se apenas no sentido do ter. O homem apropria-se do seu ser unilateral de uma maneira compreensiva, portanto como homem total. Todas as suas relações humanas com o mundo – visão, audição, olfato, gosto, percepção, pensamento, observação, sensação, vontade, atividade, amor – em síntese, todos os órgãos da sua individualidade, como também os órgãos que são diretamente comuns na forma, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento perante o objeto a apropriação do referido objeto, apropriação da realidade humana.

Afirmar-se enquanto sujeito, com possibilidade de viver todas as dimensões da vida, é tornar-se mais humano, mais gente, e isso se dá, no campo do social e da realização do seu ser enquanto sujeito transformador de si e do mundo, mesmo em uma micro dimensão como essa da Feira. Isso não tira o reconhecimento das subjetividades inerente à lógica do capitalismo. Nesse sentido, as transformações são processos em curso que precisam ser reafirmados. Através do esforço coletivo de todos e todas que não concordam com a lógica destrutiva da vida, de todos que sonham com a transformação social, no sentido de construir caminhos para uma lógica humanizante.


94 Para tanto, o processo educativo provocador de outras lógicas de produção de subjetividades que favoreçam a vida faz-se necessário. Afirmara-se também no pensamento de Freire (1996: 136): É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógica progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica.

Parece sonhador, mas são nas experiências permeadas por contradições, com todos os valores inerentes ao humano, que se podem experimentar outras possibilidades. Esses caminhos são difíceis e de fragilidades evidentes porque são processos em construção, numa direção contrária ao sistema econômico dominante. As relações configuram-se no processo em que o grupo realiza atividades de aprendizagem que alimentam vínculos, dando sustentação ao desenvolvimento do grupo. Constrói-se uma cultura, que de acordo com o pensamento de Vygotsky (1998) passam a ser incorporadas psicologicamente pelos sujeitos. Nesse sentido, percebe-se que as resistências iniciais podem impossibilitar o processo de desenvolvimento do grupo, tendo em vista que é preciso um enfrentamento da realidade no sentido de construir outros caminhos. No grupo, pessoas e realidades se transformam. A partir do olhar sobre a realidade, as pessoas percebem o poder ser diferentes. Esse olhar não se dá de forma individual. Surge a necessidade de um compartilhar de diversos olhares, fortalecendo o processo coletivo. As realidades podem ser evidenciadas, as limitações, os impedimentos conscientes e inconscientes podem ser trabalhados subjetivamente. O grupo é lugar fértil para as construções subjetivas, pois o individual e o coletivo estão em permanente interlocução e diálogo. No grupo, as idéias interconectam-se, evidenciam-se, relacionam-se de forma intensa. As relações intersubjetivas acentuam-se, possibilitando outras conexões e outros diálogos. Esse processo de organização do grupo nasceu num grupo, veio mantendo a sua ética, a sua responsabilidade, tanto com a produção familiar, com a alimentação da família, também com a produção para os consumidores, então isso cria aquele grande relacionamento, aquele grande laço com as


95 famílias que produzem e as famílias que consomem, então a gente está mantendo um pacto de responsabilidade.41

No grupo, as subjetividades entram em relação direta e indiretamente com outras subjetividades. Uma feira é um grupo com todo tipo de conexões diretas e intersubjetivas. Como o ser humano vive sempre em contato com outros, as subjetividades não são produções individualizadas, mas fazem parte do seu contexto e são produzidas socialmente, permeadas por ideologias de mundo, pelas pessoas, pelas regras estabelecidas, pelas estruturas e pela política. Segundo Marx (2001), assim como a sociedade produz o homem, também, é por ele produzida. No caso da Feira, aquelas pessoas que a fazem ser, estão construindo o ser delas mesmas. Nesse sentido, entende-se que realidades e subjetividades podem ser transformadas. O indivíduo não consegue separar a sua realidade objetiva da subjetiva, pois elas estão em permanente relação. Dessa forma, as realidades objetivas são construções permeadas por subjetividades, alimentadas pelas afetividades do grupo. Veja o depoimento de uma pessoa que pertence a grupo da feira: A relação que a gente tem, acho que é como uma amizade que se tem um com o outro, entendeu. Eu acho que é uma amizade muito profunda. Tanto na experiência da hortaliça, como na experiência da convivência do trabalho, a gente tem essa ligação. Aquele aconchego, um com o outro, que a gente não sabe nem explicar como é aquilo ali, é muito interessante.42

Subjetividades essas que não se dão apenas no plano consciente. Estão também na invisibilidade da práxis, marcada pela história de vida do sujeito e por seu contexto social e econômico. O ser humano é um ser essencialmente de relações e, à medida que vai se relacionando, também vai construindo as suas subjetividades. Para Bock e Gonçalves (2005: 121): Estamos usando o termo subjetividade para designar essa configuração – que nunca fica pronto – do processo de transformação do mundo, no âmbito do sujeito; desse sujeito que atua no mundo, que vive o mundo, que faz o mundo, transformando-o e submetendo-se a ele. Estamos usando dimensão subjetiva para falar sobre a dimensão dos registros simbólicos e emocionais. No entanto, esses registros, além de estarem no campo da subjetividade do sujeito, também estão no campo coletivo, pois se 41

Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, em entrevista realizada para essa pesquisa.

42

Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, entrevista para esta pesquisa.


96 objetivam como leis, valores, regras, significados, ideologias, teorias, ciência e discursos. Assim toda realidade social tem uma dimensão subjetiva.

A subjetividade materializa-se na realidade vivenciada pelo humano, acompanhadas de sua objetivação pelas práticas sociais. Analisar o que acontece com o sujeito nas suas relações grupais é compreender as múltiplas dimensões que estão presentes em suas vidas. Assim como outras práticas humanas, a construção do saber está permeada por dimensões subjetivas que não se dão apenas em ambientes formais. As classes populares que não têm acesso ao saber acadêmico e constroem um outro tipo de saber. Todos os conhecimentos precisam ser analisados no seu interior com um olhar crítico e problematizador. Nesse sentido, para sua autenticidade, é necessária a participação de todos os envolvidos. E em se tratando de grupos sociais, a formação se dá no processo de luta, ou seja, nas reuniões, nos encontros, nos seminários, nos cursos de formação, nas visitas de intercâmbio de experiências, nas comemorações, nos contatos e nas conversas informais. Mesmo reconhecendo os processos educativos, decorrentes da luta, esses não bastam. A educação popular com sua metodologia torna-se necessária, acompanhada dos valores da educação de jovens e adultos, devido ao analfabetismo existente em grupos dessa natureza. Assim, pode-se estabelecer uma educação que seja mais cuidadosa com as pessoas. Essas relações desencadeiam em produção de outras realidades que vão se transformando, pautadas pela subjetividade e objetividade. Dessa forma, Barros (2001: 86) compreende o grupo como estratégia que produz outras relações, outras conexões, outras possibilidades de intervenções e de intersubjetivações: Assim, o grupo, como estratégia de formação, opõe-se a utilização do grupo como, simplesmente, mais uma técnica.” [...] O que ganha lugar de destaque é a processualidade, o inventar modos de “aprender”, o poder olhar o texto, o contexto e o fora do texto como fluxos que se atravessam constituindo formas.

Nessa concepção, o grupo apresenta-se como uma estratégia na educação popular, capaz de potencializar a produção de conhecimento, de compreender as múltiplas relações que se dão na realidade, de constituir outros modos de existir, de pensar a realidade, de outras possibilidades de intervir no processo de transformação da vida.


97 No processo grupal há toda uma construção subjetiva que permeia o individual e o coletivo. Nesta concepção, não existe um determinismo histórico, porque os sujeitos estão em movimento, buscando outras possibilidades e construindo outras subjetividades. Centrada na concepção de indivíduo, a psicologia adotou como instrumentos de análise psicodiagnóstico, a psicometria, o aconselhamento, as técnicas de dinâmica de grupo e a análise individual. Sem entrar a fundo nessa discussão, a questão que se coloca é se essas abordagens têm dado conta em responder os problemas que se têm desenvolvido por homens e mulheres na sociedade. Entre os humanos, suas ações concretas estão cheias de subjetividades. Por mais concreto que seja um determinado objeto, havendo a intervenção humana também existe a subjetividade. A presença dos humanos se concretiza nas ações dos sujeitos no mundo. Daí que a compreensão da subjetividade se dá nas construções históricas, numa relação entre sujeito e mundo. Segundo Bock (2003: 22): “Nossas concepções sobre subjetividades deveriam unir o mundo objetivo com o mundo subjetivo, a fim de compreendê-los como construções históricas a partir da atuação transformadora do homem sobre o mundo.” A compreensão das produções humanas nessa direção se faz necessária tendo em vista que é exatamente por sua capacidade de pensar, analisar, agir e criar que o humano pode atuar na sua realidade com intuito claro de transformação. Para Furtado (2003: 254): “Trata-se de buscarmos referências que definam esse ser da transformação, que estudem sua subjetividade e que relacionem tal subjetividade dialeticamente a condições objetivas de transformação social.” Existe uma produção em movimento que independe do que se pense e queira. O próprio sistema se encarrega de alimentá-la de forma invisível e sutil por meio de leis, de instituições, de comunicações, de relações, enfim da sociedade civil e política em geral. Nesse sentido, se faz necessário pensar por dentro do pensamento psicológico que vem se desenvolvendo no social: a que tipo de sociedade cada um está servindo? E que projeto de sociedade deseja-se? Tendo em vista que a construção das subjetividades ocorre nas relações dos sujeitos e mundo, Lane afirma (2003: 112): [...] a humanidade é conquista e construção humana que se põe na cultura, nos instrumentos e na linguagem, permitindo que cada homem, ao nascer candidato à humanidade, possa apreender e aprender as formas de ser, de sentir e pensar; possa registrar o já criado e possa imaginar e criar o novo, transformando a humanidade.


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A preocupação central nesse momento é o humano. Tendo em vista que não se está só no mundo e que o ser humano só existe relacionado com o seu ambiente, não se pode conceber uma subjetividade que só consiga entender indivíduo separado da sua realidade social. O conhecimento científico também tem subsidiado a produção capitalista, levando à perspectiva de que esse conhecimento serve aos propósitos da exploração humana. Nem sempre está voltado ao empenho para uma vida melhor dos produtores dos entes culturais. Considerando o conhecimento produzido a partir de uma educação popular e sua importância no processo educativo em movimentos sociais populares e em grupos populares, pode-se perceber como fundamental a base de construção de outra perspectiva de sociedade. Porém, ela só não é suficiente para dar conta da concretização das transformações. Nesse sentido, buscamos abordar a produção de subjetividades como base na construção de uma sociedade, seja qual for sua perspectiva. Mas não é qualquer tipo de sociedade que interessa às classes populares. Esse sistema competitivo e excludente não tem dado respostas aos problemas sociais produzidos socialmente. Por isso, buscamos compreender a abordagem da economia solidária, presente nessas feiras, que aponta como foco diferenciado de outra lógica, fundamentada em princípios de cooperação, de solidariedade e respeito à vida, a partir de alternativas concretas de se viver, como é o caso da Feira Agroecológica Solidária. Não existe o processo de concorrência entre nós, se eu não tenho um produto, não tem ganância nenhuma entre o grupo, ninguém disputa a essa questão de cliente, você está vendendo, você não chama cliente, não existe esse processo, existe um entendimento entre todo mundo, que todos têm a possibilidade de vender o seu produto e ficar com a sua renda e seguir aquilo que é determinado pelos critérios do regimento interno da feira.43

Porém, no ambiente da Feira, há um espaço de convivência em que os conflitos são evidenciados. Os interesses são diferenciados no interior da própria classe, num diálogo que carrega consigo os confrontos e as disputas coletivas e individuais. E a riqueza é que a diversidade de pensamento é colocada no espaço público, assumindo uma responsabilidade, entendendo que a educação popular não escamoteia as diferenças e, assim, as subjetividades 43

Membro da Feira, pertencente ao assentamento Padre Gino, em entrevista realizada para essa pesquisa.


99 podem se expressar. Aprende-se, contudo, a refletir e a lidar com as diferenças. A esse respeito Ieno Neto (2005:47) afirma que: [...] As práticas de autonomia e emancipação, portanto, não escamoteiam as diferenças e os conflitos, mas os coloca como oportunidade dos assentados aprofundarem suas análises sobre o que querem construir nos assentamentos e a partir deles e, frente ao que se apresenta como diferente, assumir publicamente a responsabilidade por suas decisões.

Para isto, fundem-se as possibilidades de concretização de subjetividades e as ações educativas e populares. Esse processo de construção de subjetividades cobra o exercício de práticas educativas que contribuam para que essas atitudes de aprendizagem estejam presentes. As diferenças, confrontos e contradições estão presentes no cotidiano desse grupo. A diferença é que esses conflitos são expressos e podem se propor soluções individuais e coletivas. Um processo educativo, pela educação popular, que possibilita um espaço permanente de discussão e superação de problemas de vivência e sobrevivência em grupo, num movimento permanente. Assim, a educação popular aponta, nessa Feira, para uma aliança entre o subjetivo e o concreto num movimento indissociável, pois um alimenta-se do outro. Segundo o pensamento de Vieira Pinto (1979), a educação seria uma forma de apropriação dos bens culturais que os humanos criaram e desenvolveram ao longo da história. Mas, é por demais conhecido que o acesso aos bens culturais não ocorre de forma eqüitativa, além de não atender aos interesses dos mais desfavorecidos economicamente. A educação, dentro ou fora da escola, como se apresenta está produzindo subjetividades mas é pela educação popular que destaca o olhar do sujeito ao mundo para a sua transformação como um processo permanente. Nesse sentido, a educação popular destaca a vida no contexto histórico, cultural, econômico, ideológico permeando a ação dos sujeitos e alimentando sua criação, suas idéias, seus sentimentos e amor. É exatamente por essa capacidade humana de pensar sobre sua própria realidade que se insiste na possibilidade de intervenção sobre os condicionantes sociais pelos caminhos da educação popular. Tendo em vista, os princípios pelos quais se baseia, considerando o humano como centro do processo educativo, que ao se educar também considera os outros que se educam entre si. Sendo uma educação pela práxis, os conhecimentos teóricos estão sempre relacionados com o mundo da vida dessas pessoas. A experiência analisada mostrou a presença necessária da educação popular nesse processo de construção de subjetividades, expressa em suas reflexões, suas propostas e suas


100 variadas perspectivas de vida, centrada no outro, na inserção objetiva de sua prática, na realização concreta da Feira Agroecológica Solidária. A educação popular contribuindo ativamente na quebra de condicionantes sociais, através da luta pela terra, num percurso permanente até a construção de uma alternativa econômica. Essas e outras alternativas vêm demonstrando que, mesmo reconhecendo as fragilidades dos processos em curso, a educação popular ajuda na desconstrução da idéia de modelo único de sociedade estabelecida. Pela educação popular, têm surgido reações no cotidiano dessas pessoas, nas formas de organização sentidas e pensadas estrategicamente pelos sujeitos que desejem construir essas alternativas. Estas, também, não podem e nem precisam ser únicas. Construídas na diversidade precisam ter um eixo de princípios que as guiem, porém sem perder de vista as necessidades humanas para além do econômico. Essa Feira Agroecológica Solidária é um ambiente de produção de subjetividade e bens econômicos, aprimorada nos exercícios da educação popular. Na perspectiva de Calado (2003: 26): Não basta que apenas o rumo seja socialmente generoso, oposto portanto ao do projeto capitalista dominante. Importante também que os caminhos, os valores e o próprio jeito de caminhar dos protagonistas sejam igualmente alternativos. E aqui começa uma longa e interminável caminhada de aprendizado, de autoavaliação e de aquisição de novas atitudes por parte dos que se pretendem protagonistas (individuais e coletivos) de um processo alternativo de globalização.

Um projeto coletivo que procura sustentar-se em princípios libertários não se sustentará simplesmente num exercício utópico praxeológico, mas esse caminho fortalece-se mesmo, no cotidiano. Um exercício de experimentação de sujeitos que pensam, sentem e agem no intuito de um outro jeito de viver. O processo educativo, na perspectiva da educação popular com seus valores éticos de transformação, contribui para a produção da cultura, da subjetividade, da criação da existência humana para além da mera reprodução, pois instiga os sujeitos a pensarem, a refletirem, a criarem e a intervirem no mundo propositivamente.


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REFERÊNCIAS BARROS, Regina D. Benevides. Grupo: uma estratégia na formação. In Athayde, Milton, BARROS, Maria Elizabeth; BRITO, Jussara e NEVES, Mery Yale (Orgs.). Trabalhar na escola? Só inventando o prazer. Rio de Janeiro: IPUB/ CUCA, 2001). BOCK, Ana Mercês Bahia. Psicologia e compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003. BOCK, Ana Mercês Bahia; GONÇALVES, MARIA da Graça M. Indivíduo-Sociedade: uma relação importante na psicologia social. In. Bock, Ana Mercês Bahia. (Org.) A Perspectiva sóciohistórica na formação em psicologia. Petrópoles: Vozes, 2003. ______, Ana Mercês Bahia; CONÇALVES, Maria da Graça Marchina. Subjetividade: o sujeito e a dimensão subjetiva dos fatos. In: REY, Fernando González. (Org.). Subjetividade, complexidade e pesquisa em psicologia. São Paulo: Pioneira Thompson, 2005. CALADO, Alder Júlio Ferreira. Tecelão da utopia: uma leitura transdisciplinar de Paulo Freire. In RODRIGUES, Luiz Dias e VASCONCELOS, Eymard Mourão.(Orgs) Novas configurações em movimentos sociais. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2000. ______. O labirinto da educação popular. In BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. João Pessoa: Editora Universitária, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FURTADO, Odair. Psicologia e o compromisso social. In: BOCK, Ana Mercês Bahia.(Org.). Psicologia e o compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003. IENO NETO, Genaro. Assentamentos rurais e desenvolvimento: em busca de sentido – Projeto Lumiar na Paraíba. Tese de Doutorado, UFPB/CCHLA/PPGS. João Pessoa, 2005. LANE, Silvia T. M. Emoções e Pensamento: uma dicotomia a ser superada. In. Bock A. M. B. A Perspectiva sócio-histórica na formação em psicologia. Petrópoles, RJ: Vozes, 2003. MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001. REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. VIGOTSKI, Levi Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


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CRIATIVIDADE COMO CONSTITUTIVO DA EDUCAÇÃO POPULAR: uma abordagem acerca da diversidade cultural a partir de Paulo Freire Agostinho da Silva Rosas

Vários têm sido os estudos que apontam um olhar explicativo sobre processo criativo e ações pedagógicas no cenário da educação formal e informal. No Brasil, nos anos 80 e com maior intensidade na última década do século XX, Alencar e Virgolim (1994) publicam estudo reunindo onze experiências bem sucedidas sobre expressão e desenvolvimento da criatividade, fazendo referência à escola. Nesta época, outros trabalhos são desenvolvidos envolvendo arte, propaganda, ciência. Mais recentes são aqueles que se direcionam às novas tecnologias e a indústria do entretenimento com jogos informatizados e criatividade. Contudo, desde o início dos tempos, o homem deparou-se com a diversidade de problemas e a necessidade de envolver-se elaborando soluções. O conceito de criatividade, assim, vai tomando significados durante os tempos, aproximando processo e produto criativos como expressão da capacidade humana. Aos poucos, criatividade passa a ser conhecida como condição humana que adquire visibilidade através das relações que o homem estabelece consigo, com outros homens e com o mundo. De início, contudo, criatividade foi termo associado ao sobrenatural, ao domínio da fé em Deus. Era Deus que, através dos homens, era criativo. O homem, neste sentido, seria dotado de um “dom” que o diferenciaria dos demais homens, na medida em que se encontrava entre os escolhidos por Deus para desempenhar o papel divino. Noutra direção, numa época em que se associava criatividade a traços de loucura, verificava-se tendência em explicar o ato criativo como conseqüência de um estado patológico da estrutura emocional humana. Seja como for, dos tempos mais antigos ao contemporâneo, criatividade parece manterse sob o domínio de certos privilégios que alguns homens podem exercer e outros não. Privilégios estes ora constituídos sob a seletividade divina, ora humana. Assim sendo, este estudo vai submeter-se à reflexão acerca da relação que se estabelece


103 entre a particularidade da educação popular44 e criatividade. De um lado, a educação popular enquanto espaço diversificado e ampliado de educação e de outro, a criatividade expressa no pensamento de Paulo Freire45 acerca da educação. Com este ensaio pretende-se discorrer acerca de criatividade como um dos constitutivos da educação popular no Brasil. Mais especificamente objetiva-se analisar o significado atribuído ao constitutivo criar e recriar na obra ‘Educação como prática da liberdade’, escrita por Paulo Freire (1967), na medida em que adentra no campo epistemológico sobre criatividade. Desta maneira, a discussão envolvendo criatividade e privilégios perpassam pelos campos tanto da educação popular quanto do pensamento freireano em educação. Muito das idéias produzidas por Paulo Freire, em grande parte as que deram base ao seu pensamento sobre educação, fora fortemente influenciado pelas suas experiências no Recife, no Movimento de Cultura Popular (MCP), e nas experiências pioneiras de alfabetização com adultos realizadas em Recife (Casa de Dona Olegarina) e em Angicos, interior do Rio Grande do Norte. No entanto, por conseqüência do contexto político imposto ao Brasil em 1964, pelo Golpe Militar, os escritos de Paulo Freire só tomaram forma de publicação a partir de seu exílio no Chile. É exceção sua tese de concurso público para o ensino da cadeira de História e Filosofia da Educação de Belas Artes de Pernambuco (Educação e atualidade brasileira) que mesmo tendo sido editada sob o formato de livro, não recebeu caráter comercial46. Quando no Chile, porém, retoma o texto dando-lhe forma para publicação que vai receber o título de ‘Educação como prática da liberdade’. Este livro vai se tornar a primeira grande obra de Paulo Freire que, para este ensaio representa o ponto de partida para a compreensão sobre os termos criar e recriar. Motivo pelo qual se articula os elos primários da reflexão que se propõe: educação popular e criatividade; ou, criatividade como um dos constitutivos da educação popular, esta numa dimensão macro da reflexão. Com isto posto, a direção das reflexões tomou a seguinte orientação: 1) localização e delimitação do conceito de educação popular adotado (Conceituando Educação Popular: um projeto escrito por várias mãos); 2) breve retrospecto acerca do conceito de criatividade 44

Dentre as características da educação popular, a que se refere à igualdade de oportunidades e democratização da educação denotam um campo vasto à reflexão sobre criatividade e privilégios. Neste sentido, a educação popular passa a ser reconhecida, neste contexto, como ambiente limite das reflexões em que pretende relacioná-la à criatividade. 45 A opção por Paulo Freire deve-se ao fato de suas idéias em educação terem sido assumidas como marco histórico acerca da Educação Popular no Brasil nos anos de 1960 a 70, tal qual afirma Carlos Brandão (2002). 46 Após a morte de Paulo Freire a Cortez Editora em parceria com o Instituto Paulo Freire retoma Educação e atualidade brasileira dando-lhe forma de publicação comercial (2001).


104 (Conceituando Criatividade: breve retrospectiva); 3) uma interpretação acerca das idéias de Paulo Freire quanto aos termos criar e recriar (Criatividade e educação: interpretando os termos criar e recriar em Paulo Freire; Criatividade e as primeiras idéias de Paulo Freire em educação), e 4) criatividade como um dos constitutivos da educação popular. Conceituando Educação Popular: um projeto escrito por várias mãos Favorecidos pela abordagem metodológica assumida na disciplina Teoria da Educação Popular/PPGE/UFPB (2004), as discussões em torno do conceito de educação popular tomou forma a partir da diversidade de histórias de vida enunciada por cada um dos protagonistas47 que a constituiu. Em sua continuidade, foram postos em debate conceitos identificados por cada um dos protagonistas e enriquecidos por leitura especializada, resultando na construção coletiva de um conceito que passa a ser utilizado como ponto de partida para a reflexão sobre a pertinência de criatividade como um dos constitutivos à educação popular. A estrutura desta definição, contudo, teve como intenção coletiva responder ao problema proposto: o que é educação popular? Deste problema foram extraídos vários enunciados (Quadro 1) e em seguida sintetizados como: fenômeno de apropriação e produção dos bens culturais (empoderamento); teoria de conhecimento que tem como ponto de partida a realidade, o cotidiano; metodologias que instrumentalizam o processo de democratização; campo pedagógico que detém um conteúdo, uma avaliação; teoria política que seja pela democracia, liberdade, ação transformadora e emancipadora, práxis.

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O termo protagonista é utilizado neste ensaio para identificar cada um dos doutorandos que constituem a segunda turma do Curso de doutorado em Educação Popular promovido pelo PPGE/UFPB.


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Quadro 1: Síntese dos conceitos atribuídos à educação popular Educação popular é aquela: que se volta para os setores /camadas populares; que se manifesta em diferentes lócus de atuação; que não tem ação exclusiva na escolarização, mas na compreensão do processo social e político que o sujeito se encontra.

Educação popular é difusa porque é um processo de construção permanente, buscando uma ação sóciotransformadora através do acesso aos saberes plurais. A transformação do indivíduo em sujeito requer uma aprendizagem cotidiana do pensar, do agir e do sentir.

Educação, mobilização, organização das classes populares. Instrumento do processo de democratização, a partir da criação e robustecimento de um poder popular e pode ocorrer em diferentes espaços formais e nãoformais.

É um processo e uma práxis político-educativa, dimensionada na perspectiva da apreensão/produção/reformula ção, expressão e socialização do conhecimento das classes populares, visando o desvelamento e interpretação da realidade, para a construção de uma ação coletiva organizada de intervenção, transformação das condições de exploração e dominação de trabalhadores(as). Educação popular comporta dimensões tais: cultura popular, diálogo, ética, autonomia, liberdade, libertação, felicidade e emancipação humana.

As reflexões elaboradas neste ambiente multifacetado de experiências e histórias de vida tomaram rumo de aproximação à resolução do problema (‘o que é educação popular’) na medida em que se sabia precisar o que não atendia ao conceito de uma educação que se fizesse popular. Neste sentido, o processo metodológico vivido na construção coletiva das soluções ao problema, em si, expressa uma dimensão didática favorável ao agir criativo, ao tempo em que representa uma investida diversificada de abordar o fenômeno (educação popular) enquanto instância de ensino e aprendizagem e diversidade cultural. A partir deste procedimento didático algumas inquietações puderam ser levantadas: Seria este procedimento uma das características da educação popular? Que constitutivos poderiam ser listados de maneira que exalte a essência de uma educação popular a partir do conceito desenvolvido? Que argumentos poderiam ser elaborados para consubstanciar cada um dos constitutivos listados como expressão articulada a educação popular? Diante destas inquietações o passo seguinte foi o de montar um conceito extraindo constitutivos consistentes à argumentação coletiva, como explicação do fenômeno educação popular (atentos à singularidade dos protagonistas). Conceito este que tomou a seguinte forma: Educação popular é um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituída de


106 uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processual, permeada de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade (Doutorandos do PPGE/UFPB, 2004).

Dentre os constitutivos propostos, criatividade (Quadro 2) vai emergir tardiamente, durante as reflexões de outros constitutivos que já se encontravam em debate. Este, assim como o processo pelo qual se deu a construção coletiva do conceito para educação popular, deve ser compreendido como ação flexível à produção de conhecimentos em que se faz pela reflexão autêntica dos protagonistas e que preserva a condição do agir criativo.

Quadro 2: temas levantados a partir do conceito construído Apropriação do produto da educação popular Autenticidade Autonomia Ação transformadora Aprendizagem (sentir, pensar e agir) Compromisso político Construção do sujeito Crítica Cultura Democracia Diálogo

Empoderamento Experiência Emancipação Saberes Trabalho Transitoriedade Totalidade Felicidade Igualdade Ideologia Identidade Incentivo ao desejo de saber Liberdade

Organização/sistema Pedagogia Pedagogia (metodologia própria) Práxis Prática Popular Poder popular Processo Produção do conhecimento (metodologia própria) Realidade Lócus

Para o debate em causa, ‘criatividade e educação popular’, trata-se de tema pertinente, uma vez que a expressão da criatividade dar-se, como sugere a literatura contemporânea, a partir do sujeito e de um contexto favorável para que o processo criativo seja desencadeado. Caso contrário quedaria num ambiente de fragmentação e obstacularização das idéias e iniciativas, tal como afirma Von Oech (1988) em Um toc na cuca, referindo-se às barreiras mentais contra a criatividade. Com isto, pelo momento, fica a intenção de verificar se o conceito construído coletivamente permite afirmar criatividade enquanto um dos constitutivos à educação popular. Conceituando Criatividade: breve retrospectiva Historicamente, o termo criatividade assumiu diversas faces. Na Antigüidade,


107 acreditava-se que os Deuses atribuíam poderes aos humanos tornando-os criativos. Desta maneira, criatividade, não sendo uma característica humana, encontrava-se associada a uma dádiva divina, a um Dom lançado por Deus (ALENCAR, 1986; KNELLER, 1978). Platão, de acordo com Wechsler (1993), através da sua teoria da imortalidade e das idéias, identificava o homem através de sua aproximação com a razão divina. Nesta direção Kneller (1978), comenta que o artista, no momento da criação, perde o controle de si e age guiado por um poder superior, divino. Em outras épocas, a exemplo da Idade Média, criatividade esteve associada aos conceitos de bruxaria ou como sinal de desajustamento e loucura. Neste sentido, Alencar (1986), refere-se aos trabalhos desenvolvidos por Witty e Lehman (1965), em que sugerem “a relação entre criatividade e doença mental ou entre (…) instabilidade nervosa” (Op.cit., p. 12). No entanto, estas idéias já se encontravam na Antigüidade. Naquele tempo, criatividade também esteve associada como estado de loucura: “Sua aparente espontaneidade e sua irracionalidade são explicadas como fruto de um acesso de loucura” (KNELLER, 1978, p. 33). Com isto, muitos artistas e cientistas foram interpretados como loucos, como lunáticos na medida em que, pela busca de sua superação, tendiam a “forçar ao extremo a própria natureza” (Ob.cit., p. 34), colocando-se numa nuance de limiar entre insanidade e “a resolução crucial de um conflito” (KNELLER, 1978, p. 34). Com a Modernidade, criatividade passa a ser identificada como conseqüência da produção humana. Estudiosos intrigados com questões ainda não esclarecidas, a exemplo dos “lampejos de inspiração” existentes em alguns “indivíduos privilegiados” (gifted ou talentosos48), ou dos estudos sobre características individuais, “traços” de personalidade, passam a valorizar respostas provenientes das práticas científicas, na tentativa de explicar o processo criativo como conseqüência da inteligência superdotada de alguns humanos (os gênios). Hoje, no entanto, criatividade como conseqüência da inteligência humana supera a dimensão de gênio e espalha-se como característica humana. Como conseqüência da capacidade inteligência, própria à espécie humana. De acordo com Brown (1989), pelo menos quatro abordagens foram dirigidas à identificação de aspectos relativos à criatividade e inteligência. Algumas das teorias mais antigas são desprezadas tendo em vista as novas descobertas. Dom, lampejo de idéias, loucura, 48

Estes termos estiveram comumente atrelados aos estudos que relacionam criatividade, produção criativa, características de personalidade com indivíduos classificados como gênios ou superdotados.


108 bruxaria são termos superados pelo entendimento de que “todo ser humano apresenta certo grau de habilidades criativas e que estas habilidades podem ser desenvolvidas e aprimoradas através da prática e do treino” (ALENCAR, 1986, p. 12). Nesta direção, criatividade deve ser compreendida como fenômeno humano mediado pela inteligência e influenciada pela aprendizagem. Este aspecto nos remete a Álvaro Vieira Pinto (1969), quando se refere à Teoria da cultura como produto da produção humana. Para ele, “cultura é, (...), o processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em idéias as imagens e lembranças (...) desse contato inventivo com o mundo natural” (Pinto, 1965, p. 123). Portanto, criatividade como cultura deriva das ações que o homem exerce no ambiente, deriva das idéias que os homens constroem, mediadas pelas “respostas originais aos desafios do ambiente” (Op.cit., p. 122). Tal como sugere Vieira Pinto, criar implica, de alguma maneira, em produção de cultura. Retomando Brown (1989) e a relação criatividade-inteligência, é no início do século XX que se verifica maior ênfase nos trabalhos que procuram explicar criatividade: a) como “um aspecto da inteligência”, a exemplo dos testes de Quociente de inteligência (QI) de Binet e o Modelo de Estrutura da Inteligência de Guilford; b) como “uma grande parte do processo inconsciente” - Brown (1989) menciona o trabalho de Henri Poincaré (1913) ao concluir que: “a consciência de fracasso na resolução de um problema, coloca em ação o processo inconsciente que leva a uma combinação randômica de idéias, algo que pode emergir como uma apropriada solução criativa” (BROWN, 1089, p. 5) -. Para Kneller (1978), também comentando Poincaré, atribui a esta relação entre consciência e inconsciência o conceito “novidade”. Neste sentido, expressa que “a novidade criadora emerge em grande parte do remanejamento de conhecimento existente – remanejo que é, no fundo, acréscimo ao conhecimento” (Op.cit., pp. 16 e 17); c) como “um elemento da solução de problema” – refere-se aos estudos que procuram identificar os passos desenvolvidos durante o processo de resolução de problemas. Para Brown (1989), são exemplos os estudos de Dewey (Problem solving em 1910); Wallas (Createve production em 1926); Rossman (Invention em 1931) e, d) como “um processo associativo” que está relacionado com os estudos que pretendem articular processo criativo à associação de idéias, experiências, fatos como conseqüência da cognição humana. Como expoente desta categoria de estudos, Brown vai identificar os princípios de criatividade


109 desenvolvidos por Spearman em 193149. Assim como Brown (1989), Guilford e Hoepfner (1971), vão afirmar que poucos foram os estudos envolvendo produção criativa e inteligência. Com isto, o desenvolvimento de pesquisa articulando inteligência e produção criativa, avançou lentamente. De acordo com estes autores destacam-se os trabalhos realizados a partir da análise fatorial elaborados por Garnett (1919), identificando a categoria “talento”; Hargreaves (1927), “fluência” e “originalidade”; Thurstone (1938), “fluência da palavra” e Fruchter (1948), que adicionou um fator de análise denominando-o “fluência associativa”. Além destes trabalhos, identificaram pesquisas que tomaram a direção de verificar o processo criativo de gênios. Semelhantemente, Wechsler (1993) vai referir-se à diversidade de significados associados à criatividade. Este aspecto, de acordo com a autora, aproximando-se de Brown (1989) trata-se de um “fenômeno complexo, (...), com múltiplas facetas”, o que tem motivado pesquisadores a compreenderem os “processos de pensamento criativo, modalidades da produção criativa, características da personalidade criativa, tipos de ambientes facilitadores da criatividade e combinações entre quaisquer dessas formas” (Op.cit., p. 1). Assim, explicar o processo pelo qual o homem expressa seu potencial criativo, inovador, parece ser tema de interesse atual. Contudo, nenhuma destas abordagens vai explicar criatividade como um dos constitutivos da Educação Popular. Muito provavelmente por deterem-se na busca de argumentos que comprovem a articulação entre inteligência e produção/produto criativo. De certa maneira, as pesquisas têm se dividido em dois grandes grupos. Um que discute aspectos relacionados aos processos criativos, estes procuram analisar os tipos de pensamentos que predominam na descoberta criativa, bem como os passos utilizados pelo indivíduo para se atingir a produção criativa. Outros lidam com o produto criativo, priorizam a originalidade, seja sob a perspectiva do produto frente ao próprio indivíduo, seja pela relevância que o produto exalta para o social. Este aspecto é fundamentalmente relevante na medida em que disponibiliza argumentos explicativos sobre a dimensão natureza e cultura, atribuindo reflexões acerca do significado do processo e do produto criativo no e com o social. Este último grupo, possivelmente, será o que mais irá se aproximar do debate acerca da criatividade e Educação Popular. Embora os resultados das pesquisas estejam ainda atrelados à identificação de características que apontem a direção do processo ou produto criativo. 49 “O modelo básico de Spearman implica em um processo ativo em que associações com uma idéia inicial pode ser liberada de sua própria relação e, assim, conduzir a alguma coisa completamente nova” Brown (1989, p. 5).


110 Todavia, frente ao propósito deste estudo, duas aborgens vão chamar a atenção: a educacional e a sociológica acerca de criatividade. Os estudos de Torrance vieram contribuir, em muito, com a relação entre criatividade e educação. Permitiram análises acerca de estratégias que proporcionam incentivos, desafios ao pensar e agir divergente. A escola convencional, segundo Torrance, “premia e reforça o raciocínio lógico e convergente, onde os alunos devem sempre encontrar a melhor e única resposta para o problema ao invés de possíveis soluções” (WECHSLER, 1993, p. 18). A educação posta desta forma distancia-se do incentivo à expressão de comportamentos criativos. Faz uso de modelos punitivos e de reforço de condicionamentos que conduzem à resposta certa, como maneira de melhorar a aprendizagem. Na opinião de Wechsler (1993), trata-se de modelos que causam efeitos temporários e que exigem contínuas repetições. O conteúdo da aprendizagem ao perder seu significado para o indivíduo que aprende, vai exigir constante reforço no sentido de preservar a memorização daquilo que seja o objeto da aprendizagem. De acordo com Von Oech (1988), este modo de agir provoca “bloqueios mentais”, não exige comportamento criativo, diferentemente, se faz através do incentivo à rotina, à praticidade. Contrário a esta perspectiva de educação, Torrance propõe que a aprendizagem seja estimulada através dos referenciais da criatividade, em que considera os interesses individuais e da motivação interna, com efeito, duradouro. Assim, Torrance avança propondo uma educação centrada no exercício de pensar divergente, no entanto não avança na discussão acerca dos significados das ações dos homens e mulheres que pensam divergentemente. Centra sua discussão na condução de estratégias que venham favorecer o agir criativamente. A contribuição de Torrance ao debate que envolve criatividade e educação é, sem dúvida, de grande relevância quando se pensa o cenário da educação formal. No entanto, referente ao debate acerca da Educação Popular, pode-se assumir que a indicação de estratégias favoráveis ao agir criativo seja um dos indicadores fundamentais à práxis pedagógica, contudo ainda não responde aos problemas que emergem quando nos colocamos frente à Educação Popular. Próxima a esta abordagem, a perspectiva sociológica e criatividade discute, fundamentalmente, os efeitos do ambiente no processo criativo. Para Wechsler (1993), “a questão que se coloca é a de como a sociedade, com suas regras e imposições, pode permitir o desabrochar da criatividade” (Op.cit., p. 20). Deve-se considerar que as regras sociais vão se


111 constituir em critérios de avaliação das produções, definindo sua legitimidade criativa. Ou seja, um produto criativo expressa seu significado através do reconhecimento social, quanto à sua utilidade. Este panorama pode ser reforçado através de Amabile (Apud WECHSLER, 1993) quando propõe que o estudo acerca da criatividade leve em consideração as referências “amplas da sociedade na qual o indivíduo está inserido” (Op.cit., p. 21). Em seus estudos demonstra que as pessoas podem sofrer diversos efeitos da relação no e com o ambiente, o qual pode ser estimulador, recompensador, assim como pode ser repressor, punitivo. Nesta mesma direção, Cuéllar (1997), fazendo crítica às prerrogativas desenvolvidas nas pesquisas sobre criatividade, comenta: “a humanidade tem obtido muito mais êxito em escrever sua imaginação nas artes, na ciência e na tecnologia do que na elaboração e na inovação em matéria de novos esquemas sociais” (Op.cit., p. 102). Este aspecto coloca-nos diante da reflexão sobre o modo de ser e estar de homens e mulheres na e com a sociedade. Ao mesmo tempo em que nos coloca frente ao debate acerca dos elementos sócio-culturais responsáveis pela exclusão de direitos de grande parte da população. Indica, ainda, a necessidade de construir argumentos que venham denunciar as disparidades sociais, anunciando proposições favoráveis à expressão da cidadania. Portanto, pensar criatividade sob o olhar do viver em coletividade, converge na direção da dimensão ética e política de atitudes humana, frente aos novos desafios de enfrentamento das desigualdades e formas de exclusão sociais. A educação, como meio de resistência, apresenta-se como instrumento impulsionador de reflexões que poderão conduzir a um processo de transformação social, nomeadamente rumo a uma cultura humana em contexto de humanização. Por conseguinte não será qualquer forma de produção ou produto criativo que atenderá ao contexto da educação quando desenhada sob as características da educação popular. Aspecto este que conduz à reflexão acerca da relação criatividade e educação popular. Criatividade e educação, assim posto, sugerem novas reflexões na busca de argumentos explicativos acerca das prováveis transformações no modo de ser e estar das pessoas na sociedade frente à diversidade cultural. Este aspecto, aqui, será abordado a partir das idéias freireana sobre educação. Criatividade e as primeiras idéias de Paulo Freire em educação


112 Paulo Freire (1967), nas primeiras linhas de ‘Educação como prática da liberdade’ aponta as conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade como fonte de explicação argumentativa acerca do processo de libertação humana. Por extensão, o processo de descoberta, que revela a ação de criar e recriar, pode ser explicado através destas mesmas conotações. Antes mesmo de adentrar na reflexão que indica criatividade como constitutivo da Educação popular, e mais especificamente o debate referente ao termo descoberta como expressão do agir criativo, Wechsler (1993), fundamentada na teoria do intelecto de Jean P. Guilford, vai afirmar que dentre as operações cognitivas, o pensamento divergente é o que proporcionará descobertas criativas. Em sua opinião, a produção divergente leva à “formulação de alternativas variadas a partir da informação dada, procura diferentes soluções para o problema” (WECHSLER, 1993, p. 12). Com isto, associa criatividade à solução de problemas como respostas diferentes e alternativas para um mesmo problema. Gardner (1996), também se referindo à produção divergente, a identifica como estrutura mental favorável ao processo criativo. Contrariamente, a esta perspectiva, a produção convergente permite a descoberta de respostas pré-definidas. Certamente que, para Paulo Freire, os propósitos de uma educação regida pela intensidade do pensar convergente, mesmo que estimulando práticas de aprendizagem pela resolução de problemas, trata-se de uma prerrogativa de modelos educacionais orientados pela prática pedagógica conservadora. Uma educação que se distancia da práxis libertadora e democrática; uma forma de educação que traduz a expressão da ‘educação bancária’50. Aprendizagem, neste sentido, sob o incentivo da descoberta de respostas universalmente certas decorre da capacidade humana de inteligência e, de certa maneira, encerra-se nela mesma. Distancia-se do contexto e das relações que homens e mulheres, em libertação, captam e são protagonistas. Torna homens e mulheres em “coisa adestrada”. Visto que, preservando a intenção da resposta certa, única possível, caminha na direção do que Freire (1967) chamou de “domesticação” do ser humano. Diferentemente de uma práxis libertadora, a educação bancária provoca a estagnação social. Diante do anunciado pela história políticaeconômica mundial, que acena na direção de alternativas para a solução de problemas emergentes, a educação bancária, fixa o tempo da aprendizagem ao tempo previsto para a 50

Educação bancária é termo utilizado por Paulo Freire (1970) para referir-se aos modelos de educação conservadores, tradicionais em sua estrutura e estética.


113 resolução do problema, identificando as velhas soluções, como extrato da nova aprendizagem. Impede o desenrolar da transformação social, em seu lugar massifica as soluções convergindo para a manutenção do contexto social. Noutra direção, homens e mulheres envolvem-se num processo criativo pela leitura da “palavramundo” e da “palavra-ação” como expressões de seu próprio “quefazer” social, ético, estético, político, cultural51. Tomam consciência de que ao aprender produzem cultura, estruturam valores políticos, educacionais, psicológicos, sociais ao mesmo tempo em que sofrem influência desta mesma produção. De um lado, convivendo numa e com uma sociedade que estimule o pensar divergente, supõe-se estimular, também, o desempenho criativo. De outra maneira, sendo esta sociedade repressora, a expressão do agir criativo, mesmo que estimulado sob a lógica do pensar divergente, tende a distanciar-se da práxis libertadora em que homens e mulheres se associam numa ação revolucionária pela transformação social. Na medida em que se relaciona, homens e mulheres estabelecem contatos com desafios que captam do mundo52 e que orientam seu agir. Nesta direção, Paulo Freire vai referir-se à pluralidade como conotação que exige, dos homens e mulheres, o respeito à diversidade histórica, cultural dos sujeitos em relação. Os desafios captados nas relações expressam uma pluralidade na sua singularidade. Portanto, os desafios tanto consagram elementos comuns aos homens e mulheres, como expressam uma singularidade que caracteriza a especificidade histórica de cada um e uma. O processo que conduz estes mesmos homens e mulheres, sob a dimensão da sua pluralidade, registra a diversidade cultural e histórica de cada um e uma. O agir criativo forçosamente remeterá todos e todas que se percebam protagonistas a uma ação respaldada na multiplicidade de respostas ao problema. A questão que se coloca como diferenciadora está posta no que Paulo Freire chamou de ‘vocação ontológica humana’: a condição de ser coletivamente mais. O processo criativo orientado pelo reconhecimento da pluralidade humana e dos desafios que os homens e mulheres captam e criam/recriam, estão condicionados pelo “jogo 51

Apesar do termo ‘cultura’ ser indicado por Paulo Freire a partir de Erich Kahler (Historia Universal del Hombre), Álvaro Vieira Pinto (1969) vai delimitar ‘cultura’ com significado que pode expressar as idéias que Paulo Freire efetivou ainda quando nos Círculos de Cultura, no MCP. Diz-nos Álvaro Vieira: “A cultura, criação humana resultante da resolução da contradição principal do homem, aquela existente entre ele e a natureza. (...) A cultura como produto do processo produtivo” (Op.cit., p. 119). 52 De acordo com Paulo Freire (1967, p. 39), “para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida”.


114 constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se” (Freire, 1967, p. 40) na trajetória de seu agir e pensar. Semelhantemente ao proposto por Jean P. Guilford, Paulo Freire entende que criar e recriar são condições humana e têm influência da capacidade inteligência. Neste sentido, os homens e mulheres agindo através da expressão do pensar divergente, investem sua ação escolhendo a melhor resposta (que não é negação das demais respostas). Testa sua aplicabilidade. Age com consciência diante do desafio. Decide. No entanto, Paulo Freire adentra, além dos condicionantes da inteligência humana, noutros que estão alicerçados no interior das relações que homens e mulheres desenvolvem. Pluralidade, como uma das cinco conotações da esfera humana, permite-nos refletir sobre a relação entre criatividade e privilégios, criatividade e cidadania. Este aspecto vai nos conduzir ao entendimento que Paulo Freire faz acerca do que é da natureza e o que é da cultura. Assim, a inteligência como capacidade humana apresenta-se no campo dos elementos da natureza, enquanto que os desafios que homens e mulheres captam da sua realidade, as idéias que formulam elaborando dinamicidade em seu agir criativo, são expressões da sua produção inteligente, portanto estão na esfera cultural. Como tal, o agir criativo denota a condição histórica pelas quais os homens e as mulheres são protagonistas. Não há privilégio em criatividade. Contudo, sob o olhar da diversidade cultural entre homens e mulheres, sob a maneira como homens e mulheres se posicionam em suas relações, o agir criativo pode sofrer opressão, decorrendo daí inibição de ações criativas. Na negação ou opressão da pluralidade humana o agir criativo é inibido, provoca a sectarização que massifica desapropriando homens e mulheres de sua ‘vocação ontológica de ser mais’, de ser coletivamente mais. Para Freire (1967), o homem na condição de “sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros. Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão” (Op.cit., p. 51). O agir criativo, em sintonia com a perspectiva educacional libertadora, diferentemente da sectarização, tem delimitada sua amplitude na expressão mais profunda do que Paulo Freire chamou de ‘radicalização’53. Se expressa na medida em que homens e mulheres assumem-se 53

“A radicalização, que implica no enraizamento que o homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e comunicativa. O homem radical na sua opção, não nega o direito ao outro de optar. Não pretende impor a sua opção. Dialoga sobre ela” (Freire, 1967, p. 50).


115 política e criticamente, centrados no reconhecimento que fazem como sujeitos revolucionários no exercício de sua cidadania, de sua cultura. Como homens e mulheres radicais vivem os seus tempos, não apenas estando neles, mas com eles. Transcendem como sujeitos revolucionários, conscientes de sua finitude terrena, ao mesmo tempo em que se reconhecem através de sua condição de estar sendo, e de sendo estar. Percebem-se em seu ‘inacabamento’ espiritual, que para Freire (1967) expressa a ligação entre o plano humano e o religioso, “cuja plenitude se acha na ligação com o Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domestificação, mas sempre de libertação” (Freire, 1967, p. 40). Daí pode-se especular sobre o motivo pelo qual Paulo Freire comumente associa a ação de criar à de recriar. O agir criativo/recriativo guardam íntima relação com a existência humana de quem cria/recria, de tal maneira que, homens e mulheres ao viverem seu tempo, vivendo discernem sobre seu tempo e suas atitudes. Criam, criando, na medida em que transitam conscientemente pela sua historicidade e cultura. O agir criativo/recriativo, assim, decorre de seu estar no e com o mundo. Transcendem, transcendendo, legitimados pelo reconhecimento social de suas ações. Por conseguinte, o agir criativo/recriativo exige dinamicidade, autenticidade e ação radical de todos e todas que se posicionam criativamente frente aos desafios que captam. As relações construídas, entre homens e mulheres que estando no mundo se fazem com ele, são relações que não se esgotam na passividade dos sectários. São relações forçosamente em movimento traduzindo a amorosidade entre os sujeitos e sujeitas em libertação. Não há privilégios entre os homens e mulheres que, em transcendência, comungam suas experiências criando/recriando soluções aos desafios que captam de sua realidade. Não se massificam como sectários, diferentemente agem como protagonistas que não se ajustam aos desafios, mas que os confrontam critica e sensívelmente às diversidades de seu tempo. A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas (FREIRE, 1967, p. 43).


116

A capacidade criadora, definida por Paulo Freire, encontra-se diretamente associada ao significado que os homens e mulheres atribuem a sua integração ao mundo. E isso denota a compreensão de que sua radicalidade decorre de seu reconhecimento como sujeitos enraizados, autênticos e amorosamente críticos. A criticidade54, como conotação que explica a condição humana de estar no e com o mundo e com outros homens e mulheres (‘homem como ser de relações’), expressa a posição contrária à acomodação e ajustamento dos homens e mulheres há um tempo unidimensional e a uma cultura da qual não se fazem protagonistas. Criticidade é, assim, instância fundamental do agir criativo, visto que não há expressão de criatividade quando há exploração que nega o homem ou mulher em detrimento de outro ou outra. Agir criativamente exige integração, autenticidade nas ações, amorosidade. Opõe-se a qualquer forma de opressão ou ação desumanizadora que ‘coisificam’ e ‘domesticam’ o homem. Por isso, afirma Freire (1967), “salienta-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época” (Op.cit., p. 44). A importância da captação destes temas extraídos da realidade histórica e cultural pelo homem está na delimitação de sua afirmação enquanto sujeito ou objeto; enquanto ação humanizadora ou desumanizadora; enquanto sujeito radical ou indivíduo sectário. Demanda conseqüência tanto sob atitudes orientadas por ideologias conservadoras, de dominação e opressão, portanto antidemocráticas, como, em condição antagônica, atitudes de integração cujas relações humanas são construídas a partir do reconhecimento que homens e mulheres fazem quanto aos valores, aspirações, inquietações que captam dos desafios de sua época e cultura. De um lado, a atitude descrita transcorre sob influência de uma consciência que transita alienada e alienante entre homens e mulheres que se apresentam “incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto” (Ibid., p. 53). Neste caso, as relações entre os homens, emergindo como estruturas de controle e dominação, transformam as ações humanas em puro ativismo assistenciais. Conseqüentemente as relações tomadas pela imposição à força de uns sobre outros convergem na direção da exaltação de privilégios, rupturas na cidadania. O processo 54

Criticidade para Freire (1967, p. 61) “implica na apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade”.


117 criativo tende a ser inibido e transformado em mito ou fantasia proveniente do imaginário que uns fazem dos privilégios de outros. Por conseguinte, mesmo motivado pela expressão do pesar divergente, a ação, que é conseqüência da atitude, perde sua articulação com o contexto de humanização do humano entre e com os humanos. Por isto mesmo afasta-se da vocação ontológica humana e em seu lugar tende a massificar, a domesticar todos e todas que não detém o privilégio da decisão. Não há ação criativa/recriativa ou de descoberta criativa que não esteja insuflada pelos ares da historicidade e cultura dos sujeitos e sujeitas que se fazem protagonistas amorosamente radicais. Nesta direção, as conseqüências transitam sob a consciência crítica que homens e mulheres elaboram dos desafios que captam de sua realidade. Em reflexão homens e mulheres envolvem-se numa busca permanente de ser mais, transformando os desafios que captam em ‘quefazeres’ autênticos, em ‘inéditos viáveis’ construídos das ‘situações limites’ de cada um e uma. Este aspecto demanda do entendimento que Paulo Freire faz quando se refere ao processo de libertação nas relações humanas - “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52). Este processo que se faz ao fazer em comunhão, de modo incisivo, nos adverte quanto ao contexto da educação que se faz ao fazer libertação. Coloca-nos diante da vocação humana de ser, sendo e de estar, estando em libertação. O agir criativo, como conseqüência das relações que homens e mulheres constroem em sua existência, neste contexto, expressa atitude revolucionária de todos e todas que ousam, amorosa e criticamente, reconhecer-se em libertação. De tal forma que: Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engaja na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘convivência’ com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita ao nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (Op.cit., p. 52).

Por conseguinte, o agir criativo é conseqüência do ‘engajamento’ que homens e mulheres optam, negando ‘pseudoparticipações’ nas ações que decide. Engajamento, este, que se faz captando os desafios e agindo através da práxis libertadora. Neste sentido, criatividade não finda em si mesma como operação da inteligência humana. Mas a transcende pelo reconhecimento que homens e mulheres elaboram acerca da diversidade histórica e cultural de cada um e uma; a transcende na medida em que se posicionam dialeticamente através da ‘ação-


118 reflexão-nova ação’. Sob a conotação de temporalidade, o agir criativo pode ser explicado a partir do contexto situacional em que homens e mulheres agem. Diferente dos outros animais, o homem vive um tempo multidimensional. Produzem cultura ao existir num tempo que se faz passado, presente e futuro. Atribuem significado aos desafios captados de suas realidades, refletindo sobre e a partir delas de maneira a estabelecerem sua autonomia e autenticidade no agir criativo. Criatividade explicada sob a perspectiva expressa por Paulo Freire, superando os conceitos constituídos historicamente, cada um em seu próprio tempo, incrementa significados outros que vão além das iniciativas que a relacionaram como ‘dom’, loucura, bruxaria ou, noutra dimensão, como conseqüência da inteligência. Para Paulo Freire, criatividade associa-se ao processo de emancipação democrática dos homens e mulheres que se reconhecem como ser de relações. Por conseguinte, o agir criativo toma corpo na medida em que as relações humanas sejam orientadas pelo engajamento amoroso, autêntico de cada um e uma. O agir criativo expressa, em si, argumentos da pluralidade, da transcendência, da criticidade, da conseqüência e da temporalidade das relações humanas, entre sujeitos em libertação. Criatividade e educação, assim posta, orientadas sob o olhar de Paulo Freire, colocanos diante da inquietação de que não será qualquer expressão de criatividade que irá converter a ação humana em práxis emancipatória. Antes se torna fundamental esclarecer o contexto da educação em que o agir criativo tomará expressão. Criatividade como um dos constitutivos da educação popular Este tópico que poderia ser chamado de considerações finais toma, aqui, outro formato na medida em que se pretende exaltar a sua condição temporal frente ao conjunto de uma obra que se faz fazendo. Torna-se ousadia por se compreender em seu inacabamento, cuja estrutura expressa uma produção construída por várias mãos. Desta maneira, criatividade e educação popular, tema proposta para esta reflexão, ganha espaço argumentativo quando localizado no interior da produção (conceito de educação popular) desenvolvida pelos doutorandos do PPGE/UFPB (2004). Interage a partir da reflexão orientada pelo pensamento freireano sobre criar e recriar, indicando a esfera em que o conceito construído pode ou não expressar aproximação com o constitutivo criatividade.


119 Para tanto, o conceito construído fora subdividido (sem perder sua dimensão de totalidade) em partes que expressam, em si, um conjunto de conteúdos significativos à reflexão sobre criatividade como um dos elementos que constituem educação popular. Tomando as idéias de Paulo Freire como referência para a reflexão acerca de criatividade como um dos constitutivos da Educação Popular, como expressão da práxis educativa, meio de intervenção política de homens e mulheres em relação, criatividade foi identificada sob a condição que a faz transcender a esfera da inteligência humana. Implica em ação inteligente individual, pela sua condição natural, no entanto encontra-se, absolutamente engajada, num contexto histórico e cultural com o qual homens e mulheres interagem respeitando sua diversidade. Neste sentido, o conceito construído possibilita fazer uma inferência na direção do reconhecimento da Educação Popular como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem. Tal como Paulo Freire, entender educação popular, associando-a a produção e apropriação dos produtos culturais, indica abertura nas relações entre os sujeitos com o mundo e com outros sujeitos; indica cultura como conseqüência da produção humana, ao mesmo tempo em que afirma o reconhecimento de que produzir cultura exige, dos homens e mulheres, conhecimento e cidadania para tornar a produção uma ação de criação ou recriação centrada no que Paulo Freire definiu como ‘vocação ontológica do homem’, a busca de ser mais em comunhão. Implica em autonomia e consciência crítica, comprometida com o social para decidir a partir dos desafios que capam de suas realidades. A educação popular, assim, é constituída de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas. Como tal, o agir criativo deve responder aos princípios de uma teoria de conhecimento que explique o humano na sua condição humanizadora, frente aos aspectos da sua realidade. A educação, orientada por esta perspectiva teórica, torna-se popular na medida em que tem delimitado seu campo de intervenção numa ação que não se divorcia de sua dimensão teórica, portanto, uma ação que se faz em processo reflexivo, resultando numa nova ação, cuja sua expressão esteja fundamentada pelos argumentos da práxis em diálogo. Como educação popular, o agir criativo é expressão de homens e mulheres que se encontram protagonistas de suas decisões. De homens e mulheres que têm clareza de que suas ações iniciam com relações que elaboram e retornam sob a condição de respostas aos desafios que


120 captou. Por conseguinte, demanda conteúdos e técnicas de avaliação processual recorrentes às conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade, com as quais os sujeitos e sujeitas engajam-se produzindo cultura. Aprendem a tomar decisões mediante relações que constituem em seu universo comunicativo, dialogando com outros homens e mulheres, assim como dialogando com o mundo, com sua realidade. Os conteúdos, assim entendidos, são dotados de significado e geradores de novos conteúdos. A avaliação, em sua condição processual, responde, qualitativamente, aos desafios captados, os quais, para Paulo Freire, consagram-se sob a condição de ‘situações limites’ mediadas pelo ‘inédito viável’ de cada um e uma. Conteúdo e técnica de avaliação, articulados ao cenário da criatividade como um dos constitutivos da educação popular, aqui identificada, expressam maneiras de agir sob orientação do pensar divergente, amoroso, dialógico, conscientemente crítico. Encontram-se, o pensar e agir criativo de homens e mulheres, protagonistas de seu tempo, permeados de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Diferentemente, quedaria numa educação, outra, que não a popular. Por fim, entendendo a educação popular a partir do conceito analisado, pode-se deduzir que há uma relação implícita em seus conteúdos, os quais apontam o agir criativo na direção da práxis libertadora. Conseqüentemente, para que criatividade seja explicada sob a condição de constituinte da Educação Popular, há de se pensá-la sob os aspectos que a condicionam a esta particularidade, tais como sua aproximação com diversidade cultural que permeia as relações humanas; criatividade implica na capacidade humana de inteligência para pensar e tomar decisões, a partir da dinamicidade posta ao agir dialético frente à diversidade dos desafios captados. Agir criativamente implica num ato de amor ao homem, à mulher e ao mundo. A criação e recriação, produtos da cultura e da criação humana, expressam em si, como afirma Álvaro Vieira Pinto (1969) “duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Op.cit., p. 122). Guardam estreita relação com a condição em que homens e mulheres se posicionam no e com o mundo.


121 Há de se pensar, criatividade, sob a complexidade que constitui o universo das relações humanas, sem, no entanto, afastar-se do humano no processo de humanização da humanidade. Referências ALENCAR, E.M.L.S. (1986). Psicologia da Criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas. ALENCAR, Eunice M. L. S. de e VIRGULIM, M. R. Angela (1994). Criatividade: expressão e desenvolvimento. Organizadoras; Petrópolis/RJ: Vozes. BRANDÃO, Carlos Rodrigues (2002). A educação popular na escola cidadã. Petrópolis RJ: Vozes. BROWN, Robert T. (1989). Creativity: What are we to measure? In: Handboock of Creativity; Edited by John A. Glover; Royce R. Ronning and Cecil R. Reynolds. Chapter 1; 3-32. New York: Plenum Press. CUÉLLAR, Javier P. de (1997). Nossa diversidade criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Organizador: Javier Pérez de Cuéllar. Tradução de Alessandro Warley Candeas; revisão técnica de Lúcia Helena L. Morelli. Campinas, SP: Papirus; Brasília: UNESCO. FLEITH, Denise de S. (1994). Treinamento e estimulação da criatividade no contexto educacional. In: Desenvolvimento e Expressão da Criatividade; (Org. Ângela Virgulim e Eunice Alencar), Cap. 7 (pp 113-141). Petrópoles/RJ: Vozes. FREIRE, Paulo (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ____________ (1987). Pedagogia do Oprimido. 17a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. GARDNER, Howard (1994). Estrutura da mente, a teoria da inteligências múltiplas. Trad. Por Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. ____________ (1996). Mentes que criam: uma anatomia da criatividade observada através das vidas de Freud, Einstein, Picasso, Stravinsky, Eliot, Graham e Gandhi. Trad. Por Maria Adriana Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas. GUILFORD, J. P. (1967). The nature of human intelligence. New York: MacGraw-Hill. GUILFORD, J. P.

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EDUCAÇÃO POPULAR E DIÁLOGO: precisa a educação (popular) ser dialógica(?)

Antonio Roberto Faustino da Costa O diálogo é imanente à intersubjetividade, sendo portanto imprescindível à subjetividade ou o diálogo é imanente à subjetividade, sendo portanto prescindível a intersubjetividade

O “Outro” Descoberto

O fim das descobertas imperiais, “profecia” escrita no final do último milênio pelo professor Boaventura de Sousa Santos, parece bastante sugestiva para instaurar este “diálogo” Como supõe o título, a preocupação em pauta é dimensionar as razões e conseqüências das descobertas imperiais no segundo milênio depois de Cristo, o que coincide particularmente com a história dos impérios europeus, ou melhor, do império Ocidental. Apesar do ato da descoberta ser recíproco (quem descobre também é descoberto) e terem sido muitos os descobridores, o Ocidente acabou se tornando hegemônico. Não por acaso, restou ao descoberto assumir um ou mais desses três estigmas – o Oriente, a natureza e o selvagem. A descoberta imperial é constituída por duas dimensões: uma – empírica – o acto de descobrir, e outra – conceptual – a idéia do que se descobre. Ao contrário do que pode parecer, a dimensão conceptual precede a empírica: a idéia que se tem do que se descobre comanda o acto da descoberta e o que se lhe segue. O que há de específico na dimensão conceptual da descoberta imperial é a idéia da inferioridade do outro. A descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que é descoberto está longe, abaixo e nas margens, e essa `localização´ é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta. (SANTOS, 2002, p.23)

A construção da inferioridade, a partir de múltiplas estratégias de imposição econômica, política e cultural, é condição sine qua non, portanto, para consolidar a descoberta imperial. Começa pelo fato de que a descoberta do Oriente, onde até então nasceram as


124 civilizações e os impérios, constitui a mais importante do segundo milênio, não apenas do ponto de vista geopolítico, como sobretudo histórico-antropológico. Em outras palavras, marca a transformação do Ocidente em centro da história universal. Até o século XV, a Europa e o Ocidente como um todo “formam a periferia de um sistema-mundo, cujo centro está localizado na Ásia Central e na Índia. Só a partir de meados do milênio, com os descobrimentos, é que esse sistema-mundo é substituído por outro, capitalista e planetário, cujo centro é a Europa.” (SANTOS, 2002, p.25) Além de se tornar uma rivalidade civilizacional maior do que o conflito Norte-Sul, a formulação de que a Europa/Ocidente representa a consumação absoluta da história universal encontra em Hegel sua concepção mais bem elaborada. “A idéia bíblica e medieval da sucessão dos impérios (translatio imperii) transforma-se em Hegel no caminho triunfante da Idéia Universal dos povos asiáticos para a Grécia, desta para Roma e, finalmente, de Roma para a Alemanha.” (SANTOS, 2002, p.25) Se isso não se deu de forma “natural”, por um lado, coube às cruzadas dobrar o Oriente temível e temido através da guerra e da exploração comercial, enquanto, por outro, coube às futuras ciências e humanidades enquadrar o mesmo sob o signo do orientalismo, isto é, da não racionalidade, restando ao Ocidente dar conta do seu controle e assistência ao seu desenvolvimento. O desenvolvimento científico ocidental, igualmente, foi crucial à construção e consolidação da descoberta da natureza. Lugar da exterioridade, a natureza também constitui lugar de inferioridade e irracionalidade, pelo menos, até enquanto não se dispõe de conhecimento suficiente para domina-la e usa-la, plenamente, como insumo fundamental ao novo sistema capitalista que se expande a partir da Europa. Neste caso, recorre-se a estratégias de poder e dominação que transformam tanto a natureza como o selvagem que aí vive em “duas faces do mesmo desígnio: domesticar a `natureza selvagem´, convertendo-a num recurso natural. É essa vontade única de domesticar que torna a distinção entre recursos naturais e recursos humanos tão ambígua e frágil, no século XVI, como hoje acontece.” (SANTOS, 2002, p.33) A conversão, escravidão e genocídio de inúmeras populações ameríndias e africanas foram legitimados, portanto, por essa concepção dominante e extremamente apropriada à terceira e última grande descoberta do segundo milênio. “O selvagem é a diferença incapaz de se constituir em alteridade. Não é o outro porque não é, sequer, plenamente humano.” (SANTOS, 2002, p.29) Desta feita, muito antes de Hegel, foi Aristóteles quem deixou de


125 herança o estigma que irá marcar, milenarmente, os povos inferiores. Conforme sua teoria da “escravatura natural”, tendo a natureza criado uma parte superior para mandar e outra inferior para obedecer, é natural que o homem livre exerça domínio sobre o escravo, o marido sobre a mulher e o pai sobre o filho. Obedecer significa, justamente, privar-se da vontade e da razão e se deixar tutelar por quem as tem em pleno e legítimo usufruto. Em meados do século XVI, em pleno período do descobrimento da América, a máxima aristotélica vai nortear a chamada “disputa de Valladolid”, convocada pelo rei Carlos V e protagonizada por Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda que confrontam dois discursos paradigmáticos a respeito da natureza e dominação dos povos indígenas. Muito bem inspirado em Aristóteles, Sepúlveda defende veementemente a guerra contra os índios que não passariam de seres inferiores, animalescos, pecadores, em suma, “escravos naturais”. Como a integração à nova civilização resulta em benefício dos aborígines, se estes resistirem à justa dominação dos seres superiores, acabarão culpados pela sua própria eliminação. A inferioridade dos índios, contesta por sua vez Las Casas, é usada para justificar uma brutal exploração em nome da fé e dos bons costumes. Ao paradigma da descoberta imperial, construído e legitimado com base na violência civilizadora do Ocidente, contrapôs Las Casas a sua luta pela libertação e emancipação dos povos indígenas, quem considerava seres racionais e livres, dotados de cultura e instituições próprias, com os quais a única relação legítima era a do diálogo construtivo assente em razões persuasivas suavemente atractivas e exortativas da vontade (SANTOS, 2002, p.31).

Como provou a história moderna e contemporânea, prevaleceu o paradigma de Aristóteles/Sepúlveda, até porque se apresentava compatível com as necessidades da civilização ocidental e as vocações do capitalismo emergente, mais tarde, hegemônico e globalizado.55 Ainda que Boaventura de Sousa Santos em nenhum momento sugira e, por isso mesmo, possa até soar uma imprudência, o que interessa aqui insinuar, de modo especial, é a seguinte analogia: a descoberta da educação, do mesmo modo, representa uma descoberta imperial, no caso, da sociedade moderna ocidental sobre a criança e, por extensão, sobre o povo. O que implica dimensionar, desta feita, as reais possibilidades e limites do “diálogo

55

“Expulsa das declarações universais e dos discursos oficiais é, contudo, a posição que domina as conversas privadas dos agentes do Ocidente no Terceiro Mundo, sejam eles embaixadores, funcionários da ONU, do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional, cooperantes, empresários etc. É este discurso privado sobre pretos e índios que mobiliza subterraneamente os projetos de desenvolvimento, posteriormente enfeitados publicamente com declarações de solidariedade e direitos humanos.” (SANTOS, 2002, p.32)


126 construtivo” tão bem proclamado por Las Casas que, ao invés de Aristóteles, deveria ter em mente Sócrates, traduzido através de Platão.

O “nós” descoberto Conforme o professor José Francisco de Melo Neto, preocupado essencialmente com a verdade, a virtude e a conduta reta Sócrates é quem primeiro introduz a técnica de perguntar e responder, objetivando estabelecer de forma lógica o confronto de pontos de vista entre interlocutores. A arte do diálogo, que tem como base o método da argumentação (logos), vai encontrar sua forma mais elaborada na própria dialética. De légein a logos, de dialégein a dialégesthai (um agir que originará diálogo), há um processo de superação e manutenção de conceitos anteriores que irão fundamentar a análise da unidade entre pensamento e palavra, da unidade entre ato comunicativo e um ato reflexivo da intersubjetividade e subjetividade ou mesmo a busca de um horizonte que fundamenta a relação entre aquilo que se `diz´ e aquilo que se `é´. Com essa origem, dialética se confunde com a descoberta grega do logos e o seu exercício, em Platão, é o próprio ato de filosofar. (MELO NETO, 2003, p.6)

Nesses termos, a filosofia compreende uma atitude que não se confunde com afirmações categóricas, dogmáticas nem definitivas. Parte do pressuposto, não obstante, da necessidade de superação permanente dos conhecimentos e das certezas prévias por uma verdade mais profunda que se situaria na própria interioridade dos sujeitos. Dialógico, por excelência, esse procedimento acaba conduzindo “a educação para as bases, necessariamente, de uma episteme (ciência), distanciando-se do plano instável da doxa (opinião). Platão, com a herança socrática, marca a direção da luta crítica (dialética) com as formulações educativas de seu tempo e com a tradição histórica de seu povo” (MELO NETO, 2003, p.12). Na direção da episteme, torna-se fundamental à Plantão chegar à compreensão da virtude que expressa a totalidade e cuja essência ou equivalência é o saber. Na ausência deste estaria a grandeza socrática, cuja melhor tradução é o diálogo estabelecido com um escravo de Mênon, fazendo o primeiro “descobrir conhecimentos da geometria que nunca havia estudado.” (MELO NETO, 2003, p.18) Aristóteles/Sepúlveda, certamente, descobriria que o outro não se tratava apenas de um “homem simples e de pouca cultura”, mas um ser inferior, animalesco e irracional, que precisaria do conhecimento exterior, de uma civilização verdadeiramente humana, racional e superior (SANTOS, 2002).


127 Sócrates/Platão, por seu turno, vai levar o outro a descobrir que o saber se encontra no próprio interior de cada um, independentemente de ser homem livre ou escravo. O que importa, na verdade, é que a busca do conhecimento parte de um desejo imanente de descoberta que transcende a mera e simples assimilação passiva. Em Platão, a força de Sócrates está no diálogo, na condução dos encaminhamentos de suas questões. Em algum momento, se admite o ponto de chegada para uma compreensão definitiva do algo em discussão. No momento seguinte, pelo encanto de sua arte dialógica, deixa-se escapar o resultado aparentemente alcançado. Dirige-se no sentido de que cada um realize o seu próprio encontro. Assim, é que a nova paidéia não se encontra possível de `ensino´, algo aceito pelos sofistas, e, desse ponto de vista, mostra com razão a impossibilidade de que a educação humana seja encerrada, apenas, na instrução, a perspectiva sofística. (MELO NETO, 2003, p.23)

No caso de Sócrates/Platão, portanto, a estrutura interna do pensamento é essencialmente dialógica, pressupondo a necessidade de aproximação entre o escrito e o oral, onde vai estar necessariamente presente o contexto e/ou o outro. Daí se estabelecer, por excelência, uma relação intersubjetiva, demarcada, ao mesmo tempo, por um diálogo interior e um diálogo exterior. Através da técnica da pergunta e da resposta, que subentende a postura do ouvir, abre-se a perspectiva de surpreender a si próprio e ao outro com quem se dialoga, tendo entretanto como horizonte último e justo a plena verdade. Além de criar as possibilidades necessárias para a realização da maiêutica - a aprendizagem consigo próprio através do estabelecimento de um interlóquio com o outro, o pensamento socrático-platônico institui o diálogo como condição sine qua non para a razão política. Pode-se interpretar a filosofia de Platão como um `iluminismo ético´ e, portanto, denunciadora ao considerar uma autoconsciência marcada pelo conflito da idéia de autonomia do sujeito e uma ética do discurso, apoiado no diálogo pela dialética. E esta é uma ética que tem seus fundamentos em princípios da ação comunicativa – da intersubjetividade. Contudo, esta nova época de um reino da intersubjetividade, pautada, agora, em bases ao idealismo alemão, será realizada por Habermas, em sua teoria do agir comunicativo. (MELO NETO, 2003, p.41)

Adiando por enquanto a intersubjetividade de Habermas, parece útil fazer uma digressão para convocar a este “diálogo” Bakhtin e Vygotsky, especialmente, a partir de suas concepções acerca da subjetividade e da dialogicidade. Conforme a professora Maria Cláudia Santos Lopes de Oliveira, o elemento central da noção de linguagem de Bakhtin (1895-1975) “é a defesa do caráter dialógico das atividades discursivas, coerente com sua visão de mundo pluralista e polissêmica. Vygotsky (1896-1934), contemporâneo de Bakhtin, é um dos pilares da


128 psicologia sócio-histórica” (OLIVEIRA, 2003, p.85). Antes deles, apesar de Sócrates/Platão haver instaurado o diálogo como método filosófico para alcançar a verdade, vai ser a vez do pensamento fenomenológico-existencialista conceber o diálogo como o contexto em que a comunicação de consciências consegue se realizar. Nos desdobramentos da filosofia da linguagem, com a especial contribuição de Bakhtin, a idéia de diálogo é ampliada para comportar tanto a descrição de uma forma particular de interação comunicativa, como ainda um modo específico de enfocar a atividade discursiva, em que todo enunciado é visto como marcado, necessariamente, pelo outro. (OLIVEIRA, 2003, p.78)

Lançam-se Bakhtin e Vygotsky, por isso mesmo, contra a filosofia da consciência, também conhecida como filosofia do sujeito56. Sua origem remonta as duas principais correntes de compreensão moderna do conhecimento: de um lado, a tradição realista/empirista (de Locke e Hume) que concebe o conhecimento como constituído do mundo exterior para o mundo interior do sujeito, a quem não se atribui qualquer papel de intervenção; de outro, a tradição idealista/racionalista (Descartes e Kant) que separa o empírico da razão, cuja constituição tem como base estruturas forjadas a priori. Em ambas as vertentes, “o ato cognitivo é regido pelo postulado da equivalência entre o objeto real e o epistêmico. Em outras palavras, o objeto do conhecimento – de domínio seja dos sujeitos, seja da ciência – é o objeto reconstruído nos sujeitos na forma de uma representação mental.” (OLIVEIRA, 2003, p.75) O que acaba fazendo a filosofia da consciência é levar até as últimas conseqüências a concepção engendrada na Grécia clássica do conhecimento como representação, cuja função é estabelecer a relação entre o real e a consciência, trazendo até esta a realidade externa. O conhecimento, nesse sentido, diz respeito ao resultado do encontro entre sujeito e objeto, ou ainda, à correlação entre objeto real e objeto de conhecimento, na medida em que o sujeito internaliza “algo” em relação ao qual mantém o objeto relação de equivalência. Decorre daí a noção de sujeito da representação, cuja subjetividade reside no centro da vida emocional, do juízo e da consciência e cujas fronteiras entre o mundo subjetivo e objetivo, entre o eu e o outro encontram-se nitidamente demarcadas. Resumindo, esse sujeito é o que Taylor (1986) vai qualificar como monológico e desengajado, enquanto Bannel (1999) o define como desencarnado, porque despido de 56

Ao criar a figura conceitual do sujeito, explica o professor Jorge Luis Acanda, a filosofia moderna “manifestaba su rechazo a la ideología clerical-feudal y su interpretación del hombre como ser pasivo y subordinado a un orden invariable por divino. Con el término sujeto se quiso expresar la capacidad activa y transformadora del ser humano, el carácter racional de su actividad y su pensamiento.” (ACANDA, 2001)


129 referências sociais ou históricas. Sua mente, dotada de racionalidade irrestrita, geograficamente situada no cérebro, é capaz ainda de submeter o conhecimento produzido a critérios de objetividade e validade, condições para a aproximação à verdade. (OLIVEIRA, 2003, p.76)

Essa concepção de subjetividade tornou-se preponderante não só nos diversos campos tradicionais da ciência, como também do conhecimento cotidiano, objeto das humanidades e ciências sociais. No caso particular da educação e da psicologia, como o modelo se aplica muito mais ao sujeito adulto, pouco contribuiu não obstante para dar conta das especificidades inerentes ao processo de construção do conhecimento por parte das crianças e adolescentes. Essa crítica tem assento em Bakhtin e Vygotsky e chega à atualidade através das correntes teóricas que concebem a subjetividade - e o conhecimento aí incluído – como imersa na intersubjetividade57. Em sendo interativa e não podendo se reduzir as suas partes constituintes, a intersubjetividade constitui o contexto que se produz entre os sujeitos, ou seja, o território sociocultural concreto no qual os indivíduos interagem e se tornam sujeitos (OLIVEIRA, 2003, p.89), como já havia preconizado a concepção hegeliana: A diferencia de Kant, que entendía las estructuras que condicionaban la actividad racional del hombre como estructuras a priori, existentes desde siempre en la razón humana, Hegel las interpretó como estructuras históricas, que cambiaban con la evolución de la sociedad. Esas estructuras históricas condicionaban no sólo la actividad cognoscitiva, sino toda las formas de subjetividad social. (ACANDA, 2001)

Nessas circunstâncias, a subjetividade não mais se define pela sua dimensão interna (a consciência, as representações etc.), mas pela sua dimensão externa que remete, diretamente, às práticas sociais e aos significados compartilhados. O sujeito, agora, define-se pela sua experiência social, ação no mundo e transformação deste. Através da linguagem, participa de redes de ação e interação dialógica, cuja multiplicidade de forças sociais envolvidas no universo histórico-cultural o faz constituir, ao mesmo tempo, em sujeito singular e plural. O conhecimento, por sua vez, compreende uma “atividade semiótica e socialmente mediada de 57 As concepções de hegemonia de Gramsci e de saber/poder de Foucault (ambos de origem marxista) compartilham, do mesmo modo, da preocupação em compreender os sujeitos como resultados de processos históricos. “A la luz de estas concepciones, y de la propia experiencia histórica de este siglo que termina [século XX], pensar a los sujetos como intersubjetividad y precisar el perfil de su autonomía significa necesariamente reconsiderar el modo clásico en el que, hasta ahora, entendíamos la relación entre educación y estructuras de poder. El ser humano se objetiva a través de un conjunto de prácticas, discursivas y no discursivas. Estas prácticas están siempre mediadas por `instancias de verdad´, estructuras que valoran, le dan un sentido y una orientación a las diversas formas de objetivación de la persona. Esas `instancias de verdad´ son la esencia del poder, y por lo tanto de su reproducción.” (ACANDA, 2003)


130 interpretação da realidade e de si, por sujeitos integrados em contextos de co-participação social.” (OLIVEIRA, 2003, p.82) Importante é que os processos de significação gerados pelo compartilhamento ou interação dialógica não são prioridade nem propriedade privada dos interlocutores. Como reflexo até das práticas discursivas constituírem produções histórico-culturais, os discursos inscrevem-se e pertencem ao próprio campo mais amplo da intersubjetividade, informando inclusive sobre a totalidade das relações sociais aí envolvidas. A linguagem é, pois, um instrumento intersubjetivo e social. Através do discurso, os diferentes grupos e frações de grupo estabelecem entre si fronteiras simbólicas que os protegem e marcam uma posição diferenciadora em relação à parcela da sociedade por eles representada como o outro, o não-grupo. É contra o pano de fundo do estabelecimento de assimetrias sociais, de hierarquizações e estratificações que permeiam, com raras exceções, as relações entre interlocutores, fazendo do discurso a arena da disputa ideológica e de explicitação das relações de poder, que a capacidade retórica e argumentativa dos falantes se desenvolve, podendo chegar a ressignificar o jogo de forças no qual os sujeitos em interação discursiva se encontram. Refiro-me aqui ao que Garcez (1998), aliando-se a Bakhtin, denomina de competência enunciativa do falante a capacidade de manter-se no lugar de sujeito da enunciação, de `tomar a palavra´. (OLIVEIRA, 2003, p.84)

Posta a importância da intersubjetividade, faz-se necessário chamar a este “diálogo” a contribuição de Habermas que visa superar, por seu turno, a filosofia da consciência herdada por Adorno e Horkheimer, principais teóricos da Escola de Frankfurt. Não é por acaso que a grande preocupação habermasiana relativamente à problemática da linguagem o aproxima tanto de Bakhtin e Vigotsky. “A manutenção do debate e da possibilidade de avanços sociais, além de seu otimismo para com a humanidade fazem Habermas encontrar na linguagem as condições para tal exercício, formulando uma teoria da intersubjetividade ou da ação comunicativa.” (MELO NETO, 2003, p.42) Antes de tudo, Habermas propõe a superação da razão instrumental por uma razão comunicativa, isto é, a transcendência do primado das teorias científicas por uma teoria crítica, capaz de confrontar a filosofia tradicional, criticar o sistema social, organizar a racionalidade humana e resgatar a sua dimensão emancipadora. Conforme a professora Barbara Freitag, isso implica uma ética discursiva que se define, por um lado, na contramão da teoria da moralidade de Kant, Durkheim e Piaget e, por outro, numa tentativa de síntese: “é kantiana ao aceitar a autonomia do homem como télos da moralidade, é durkheimiana quando reconhece a importância do social e é piagetiana quando admite que os princípios que orientam a ação moral não são inatos, mas objeto de uma construção psicogenética.” (FREITAG, 2003, p.61)


131 A proposição da razão comunicativa, em conseqüência, acaba instaurando a mudança do paradigma da consciência (estruturado na relação sujeito-objeto e preso ao domínio teórico ou prático dos objetos) para o paradigma da linguagem (estruturado na relação sujeito-sujeito e direcionado ao entendimento) (MELO NETO, 2003, p.48) que a define como uma prática social resultante das capacidades interativas, cognitivas e comunicativas dos sujeitos (OLIVEIRA, 2003, p.97) Desse modo, transforma a linguagem em ponto de partida e de chegada da reflexão e do conhecimento da sociedade sobre si mesma e o mundo dos objetos. Nesse sentido, a razão comunicativa é acima de tudo essencialmente dialógica. “Ela não mais se assenta no sujeito epistêmico mas pressupõe o grupo numa situação dialógica ideal. A verdade produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros integrantes do grupo.” (FREITAG, 2003, p.49) Superando a razão inata, subjetiva e monológica kantiana, Habermas postula uma transparência intersubjetiva que se baseia em um diálogo capaz de confrontar e avançar, progressivamente, as competências lingüística e cognitiva de cada sujeito participante. Assim como Bakhtin e Vygotsky, Habermas compartilha da abordagem pragmática que considera que a comunicação em seu conjunto constitui o eixo de atenção da linguagem. A pragmática compreende esta não só como meio de comunicação através do qual se estabelecem as interações sociais, senão também como contexto em que se produzem e negociam os significados. “Assim, a linguagem estará superando a sua função de representação (verdade dos fatos), enfocando a dimensão interativa (ego e alter, contraindo relações interpessoais – uma interação) e a função expressiva (intenção ou subjetividade dos falantes).” (MELO NETO, 2003, p.50) Através do diálogo, a língua tanto pode ser ressignificada como, dependendo justamente da circunstância, até transformada. Daí emergir a preocupação em dimensionar, desta feita, até que ponto as mudanças intersubjetivas podem provocar impactos em níveis mais expressivos da sociedade. Notadamente, quando se considera que a “elevação da consciência e a emancipação que, para Marx, seriam efeito do trabalho social, Habermas, à moda de Hegel, atribui às relações sociais lingüisticamente mediadas.” (OLIVEIRA, 2003, p.97)58

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Embora tenha colocado a interpretação dialético-materialista da produção no centro de sua concepção, Marx já assinalava algo extremamente importante: “Al producir su vida material, los hombres establecen entre ellos una red de relaciones sociales, que condicionan a la vez sus formas de subjetividad. Esas relaciones sociales son tanto


132 Apesar de J. Wertsch chamar atenção de que se trata de uma questão ainda pouco compreendida, ressalta Oliveira (2003, p.86), sobretudo com Habermas é possível tratar da subjetividade no âmbito das práticas interativas e discursivas, dimensionando a ação comunicativa além dos pequenos grupos. Sem incorrer no erro de Durkheim, confundindo as sociedades reais com o ideal de sociedade, mas evitando também o pessimismo pós-moderno a la Lyotard, Habermas defende a sobrevivência da razão comunicativa no contexto societário de hoje, exigindo a institucionalização do discurso (teórico e prático) em todos os níveis e em todas as áreas de sociedade, ou seja, a renegociação permanente, por parte de todos os membros da sociedade, da verdade do saber acumulado e da validade das normas estabelecidas, assim como da veracidade de todos os participantes do discurso. (FREITAG, 2003, p.58)

Aqui, em que pese soar idealista, a perseguição do consenso absoluto através do diálogo ganha importância cada vez maior, não devendo ser confundida com atitude ingênua de conformação ao status quo. Mas como condição fundamental para a existência de interação social e reabilitação da esfera pública, através de atos de fala capazes de - antes de se transformarem em atos de poder - constituírem atos de compartilhamento e compreensão em sentido filosófico. Considerando que a comunicabilidade, o diálogo e o consenso são imanentes à própria humanidade, Habermas acredita que cabe a uma “pragmática universal” colocar-se o desafio de construir as bases do “entendimento possível” em nível planetário, o que, em hipótese alguma, deve ser alcançado em decorrência de coerções ou injunções externas. Ao contrário, deve pressupor a colaboração recíproca, através da qual os sujeitos “interagem num processo de aproximação da verdade sobre o objeto do diálogo. Sua base é racional pois se baseia em convicções comuns. Com esta compreensão do entendimento se dará a chegada ao consenso – uma razão comunicativa.” (MELO NETO, 2003, p.53) A razão comunicativa, por assim dizer, resulta de um acordo racionalmente social, em que os interesses particulares são sobrepujados e as manifestações individuais de subjetividade superadas pelo princípio da cooperação de um saber coletivo e compartilhado. Esse processo de cooperação é conduzido pela argumentação que deve culminar no entendimento último sobre o mundo objetivo, social e subjetivo. “A comunicação indica que em cada situação definida, os participantes podem modificar sua definição inicial da situação, tornando-se parte de novas interpretações que os demais atores deram a ela, instalando a possibilidade do diálogo ilimitado.” (MELO NETO, 2003, p.60) (y simultáneamente) relaciones de los hombres con los objetos (relaciones objetuales) como relaciones de los hombres entre sí (relaciones intersubjetivas).” (ACANDA, 2001)


133 Habermas não esquece, porém, de reclamar condições gerais de simetria como essenciais ao estabelecimento da ação comunicativa: todos os sujeitos participantes em um discurso devem ter oportunidades iguais de empregar os atos de fala; todos devem ter oportunidades iguais de efetuar afirmações, problematizar, dar explicações etc.; todos devem ter oportunidades iguais de expressar seus desejos, sentimentos e atitudes; e todos devem ter oportunidades iguais de empregar atos de fala regulativos, como exigir e dar razão, proibir e permitir etc. A ação comunicativa, nesses termos, “torna-se um conceito normativo, um padrão ideal a ser buscado e um critério de evolução social. Uma sociedade organizada com bases neste tipo de ação, referenciada no diálogo, apresenta um alto nível de racionalidade, representando também maior avanço social.” (MELO NETO, 2003, p.61)59 Expressando a indissociabilidade entre o mundo objetivo das coisas (o cognitivoinstrumental), o mundo social das normas (o prático-moral) e o mundo subjetivo dos sentimentos (o prático-estético), o pensamento habermasiano aposta num processo educativo através da razão comunicativa, orientadora de relações humanas e sociais mais democráticas e em favor de um mundo melhor. Pressupõe, desse modo, uma intersubjetividade promovida pela prática do diálogo e uma pedagogia crítica mediada e consubstanciada na práxis. Uma práxis de um novo tipo que procura “elevar a humanidade à razão científica universal, de conformidade com normas de verdade, transformando-a numa humanidade renovada a partir de seus fundamentos...” [...] Uma teoria social que se reafirma por uma reinterpretação das necessidades históricas e práticas, dos fins, dos valores e das normas, orientando-se para uma práxis emancipadora. Contudo, este exercício praxeológico intersubjetivo, presente o diálogo, no campo da educação, será realizado na vasta experiência de Paulo Freire. (MELO NETO, 2003, p.62-63)

A teoria e a prática pedagógicas freireanas encontram no diálogo o alicerce para a experiência crítica e dialética entre educador e educando. Se não despreza do educador sua competência técnica e instrumental, leva-o a estabelecer como princípio ético por excelência a necessidade do entendimento democrático com o educando. “A práxis social com momento de processos educativos passa a se constituir como o fundamento do desenvolvimento histórico da sociedade, estando sempre presente o diálogo.” (MELO NETO, 2003, p.64)

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Não deixa de ter como horizonte a concepção habermasiana um modelo de sociedade muito próximo ao ideal socrático/platônico, no qual a educação é concebida “como um centro para a existência própria do Estado. Só o seu desenvolvimento gerará homens excelentes. Contudo, se há um Estado ideal ele, em si mesmo é completo, descaracterizando qualquer tipo de mudança. Seu progresso será expresso, unicamente, pelo desejo de sua conservação. O homem justo e a cidade justa são, profundamente, semelhantes. Atingindo esse ideal, Platão identifica a estrutura do Estado com a da educação. A realização do Estado estará, assim, condicionada à própria realização da verdadeira justiça.” (MELO NETO, 2003, p.33)


134 Central em Freire é a concepção de que ninguém se educa nem muito menos se liberta senão através de uma ação/produção cultural e coletiva. “Sem o diálogo torna-se impossível a comunicação entre falantes e ouvintes e a educação promotora da construção do ser humano transformador.” (MELO NETO, 2003, p.71) O diálogo aí inscrito, aliás, não pode ser qualquer diálogo, mas sobretudo aquele cuja exigência política o torna capaz de conduzir, inexoravelmente, à educação problematizadora que prepara o homem para a captação e intervenção no mundo, inclusive através do respeito e valorização dos atos de fala de cada sujeito participante no processo de interação. O diálogo, na ação pedagógica de Freire, é promotor da colaboração entre o eu e o tu, alimentando a possibilidade de que eu e tu se tornem sujeitos de seus próprios mundos. Há um diálogo que pelo ato da fala se torna comunicação, efetivando-se como instrumento de colaboração. O diálogo também funda a colaboração. Mas para realizar a colaboração, pela visão de que ninguém se liberta sozinho, o diálogo é orientado para que possa promover a união, na perspectiva da liberdade. O diálogo assume a dimensão de que só será se servir para unir para a libertação. (MELO NETO, 2003, p.78)

A união ou unidade, cuja base é o diálogo, deve levar necessária e concomitantemente à organização política e à ação cultural. O que implica uma organização comprometida com a transformação das estruturas sociais, evoluindo pari passu com uma ação dirigida à superação da cultura alienante e alienada. “Portanto, a prática pedagógica de Freire contém uma teoria da educação que vislumbra uma permanente e ilimitada experiência dialógica, voltada à tarefa histórica, de que os oprimidos possam não só se libertar como também libertar os seus opressores.” (MELO NETO, 2003, p.80) Como dizia o próprio Freire, para ser autêntica é imprescindível que a revolução venha a encerrar uma revolução cultural. O diálogo em Freire, por isso mesmo, é condição sine qua non para os sujeitos abandonarem o estágio de domesticação e atingirem um processo de conscientização, superando a consciência ingênua ou intransitiva por um estágio de consciência essencial a uma educação devotada à responsabilidade política e social. Cabe à educação e à pedagogia, nesse caso, manterem “a busca permanente pela consciência crítica60, sem deixar de priorizar o ato de conhecimento que se realiza via diálogo.” (MELO NETO, 2003, p.69)

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Conforme enfatiza a professora Edna Gusmão de Góes Brennand, o “que caracteriza a consciência intransitiva é a falta de motivação, ausência de compromisso, dificuldade de discernimento, interpretação simplista da realidade. Ao contrário, a consciência crítica desenvolve constantemente a capacidade de revisões e reinterpretações, a segurança na argumentação, a facilidade para o diálogo, abertura à transformação.” (BRENNAND, 2003, p.87)


135 A partir daí, instaura Freire a pedagogia do diálogo que elege como projeto apostar na liberdade como condição para o diálogo permanente entre homens e mulheres, visando o estabelecimento e fortalecimento de processos crescentes de autonomia individual e coletiva. Uma pedagogia que vai fornecer bases teóricas para a compreensão da educação não só como instrumento de elevação do padrão cultural, mas também, como meio de integração dos marginalizados sociais ao padrão médio do saber de sua sociedade e de seu tempo histórico, como instrumento de democratização e de formação da cidadania, daí a sua denominação de popular. (BRENNAND, 2003, p.61)

Lança Freire, em suma, as bases da educação popular, cuja metodologia toma como ponto de partida a emergência de uma consciência democrática que coloca em xeque o autoritarismo da educação tradicional e bancária, marcada pela distinção categórica dos papéis de sujeito e objeto no processo pedagógico. “Segundo Freire a razão se expande no diálogo. O seu caráter relacional dá força à exteriorização da razão subjetiva e permite ao indivíduo participar da construção de sua história de forma consciente, reflexiva.” (BRENNAND, 2003, p.91)

O “eu” descoberto O estabelecimento de relações dialógicas “entre os iguais e os diferentes” e “mesmo quando as relações de poder são assimétricas” tende a ser “componente fundante” da educação e, particularmente, da educação popular (MELO NETO, 2003). À luz de Sócrates/Platão, Bakhtin, Vygotsky, Habermas ou Freire, parte-se do pressuposto de que a atividade comunicativa representa, a um só tempo, “um território singular para a transformação dos sujeitos e da sociedade, contexto privilegiado de crítica da realidade social, assim como instrumento fértil na conquista de autonomia e de emancipação pessoal.” (OLIVEIRA, 2003, p.87)61 O grande desafio, no entanto, é tornar esse fundamento éticopedagógico capaz de transcender os microcontextos e fazer com que a ação dialógica estenda-

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Segundo Melo Neto (2003, p.82), o mérito de Platão, Habermas e Freire é ter conduzido “esta dimensão ativa do diálogo à radicalidade última. Todos mantiveram aquilo que constitui o papel da filosofia, isto é, o seu caráter próprio questionador para a busca de conclusões. Eles não toleraram que o diálogo, expresso por suas condições psicomotoras, afetivas, racionais ou outras fosse, meramente, discursivo ou desacompanhado de uma necessária ação eficaz.”


136 se às situações mais amplas da vida em sociedade, horizonte em relação ao qual a própria pedagogia do diálogo parece conter limitações: Consideramos fundamental e coerente no discurso de Freire a compreensão dos estágios da consciência, mas, ao nosso ver, ele se detém na discussão genérica da formação da consciência de cada indivíduo sem relaciona-la com sua inserção nos grupos onde estão inseridos. Freire não interpreta o desenvolvimento da consciência a partir das perspectivas sócio-morais e não reconhece que a capacidade de julgar passa por estágios de aprendizagem que vai da infância até a fase adulta tendo como ponto de referência as relações normativas. Possivelmente a tônica dada à questão da consciência individual é o fato desta ser o terreno onde ele visualiza a possível influência da educação, embora o seu objeto seja a educação de adultos onde o aprendizado básico para as interações lingüísticas já tenha sido adquirido em etapas anteriores. O discurso de Freire vai na direção de que a liberdade da consciência individual esclarecida e forte é o germe que permite alguma esperança. (BRENNAND, 2003, p.87)

Na verdade, quando se parte para contextos sociais cada vez mais amplos, a oportunidade de condições de interlocução também tende a se tornar complexa. A começar pelo fato de que, reconhece Oliveira (2003, p.98), “como a estrutura normativa da ação comunicativa é interdependente de um contexto institucional (portanto, ideológico), é de se supor a existência de contextos problemáticos, que dificultem a obtenção do consenso, favorecendo a instalação de crises.” Em que pese os inegáveis avanços políticos, a própria sociedade contemporânea não pode automaticamente ser confundida com uma civilização marcada pela expansão do regime democrático que pressupõe condições ideais para a competência comunicativa, as situações dialógicas e as práticas discursivas. Com efeito, ao constituir uma sociedade capitalista com todas as suas contradições econômicas e conflitos sociais, a solução dos seus graves problemas não pode se restringir à esfera da razão comunicativa ou da ética discursiva. Apesar de acreditar na sobrevivência desta em instâncias como a ciência, os parlamentos e os tribunais, Habermas reconhece a necessidade de outras formas de ação, como a própria ação instrumental, capaz de melhor equacionar problemas de natureza técnica. Nos casos em que nem a ação instrumental nem a comunicativa apresentam-se eficazes, “admite a ação estratégica, cuja função primordial consistiria em estabelecer as condições materiais e políticas para que a ação comunicativa e, no contexto dela, o discurso prático possam entrar em ação.” (FREITAG, 2003, p.53)62

62 Talvez, insista Habermas numa ação político-filosófica do tipo preconizado por Sócrates/Platão, “ao coincidir o poder político com o espírito filosófico. Daí seriam resolvidos os males da sociedade presente. Cria-se, assim, a tese platônica de que não acabará a miséria política do mundo enquanto os filósofos não detiverem o poder político, sendo capazes de governar o Estado por ele idealizado. Os filósofos deveriam tornar-se reis ou os reis resolverem as questões do Estado de forma filosófica.” (MELO NETO, 2003, p.35)


137 No caso particular da educação, como sugere Peters (2003, p.74), a situação de ensino e aprendizagem dialógica na sociedade de “massa” costuma ser mais a exceção do que a regra (inclusive, na própria universidade onde são formados os educadores63). O problema, aliás, quase sempre inquietou a educação popular, marcada em seus inícios por um estilo expansionista e um ritmo de campanha próximos à política e à metodologia de massa. O princípio ético e pedagógico de se colocar contra toda idéia de massificação acabou submetido, na prática, à “tensão entre a necessidade de atingir a massa e as exigências de um processo de conscientização.” (BEZERRA, 1980, p.30) A temporalidade da educação moderna, tradicionalmente marcada por uma terminalidade expressada através de séries letivas (semestres, anos) e avaliações baseadas em resultados definitivos (exames, certificações), é outro componente que não tende favorecer o diálogo, seja socrático-platônico seja habermasiano. No primeiro caso, o que importa não é chegar a desfechos, mas exercitar ad infinitum a argumentação (MELO NETO, 2003, p.11); no segundo, o “novo princípio regulador, a norma universal que também será a máxima moral de cada um, não é um dado a priori, mas o resultado último de um longo processo argumentativo, viabilizado pelo discurso prático.” (FREITAG, 2003, p.52) Soma-se a isso que a razão comunicativa, por excelência, é definida como a razão pública que compreende a dimensão mais ampla em que, por intermédio do discurso e da intersubjetividade, as ações sociais são examinadas e legitimadas (OLIVEIRA, 2003, p.97). Acontece que o campo tradicional formado pelas classes, instituições, movimentos e lutas sociais, inaugurado desde a modernidade, acabou na sociedade contemporânea cedendo lugar à mídia que assume status de campo político-ideológico exponencial e fundamental à expansão (LÈVY, 2003), reprodução ou transformação da esfera pública (HABERMAS, 2003), incluindo-se aí o projeto de radicalização democrática preconizado pela ética discursiva. A versão original da democracia, restrita ao “debate público de todos os cidadãos da polis na ágora” (FREITAG, 2003, p.58), ganha na contemporaneidade dimensão sem precedentes, passando a depender das configurações assumidas pela mídia como "sistema cultural e espaço de conflito" (GOHN, 2000, p.47). 63 O que contraria diretamente o Estado concebido por Sócrates/Platão que necessita conter um elemento capaz de continuar “a viver e agir conforme o espírito de seu fundador, conduzindo para a questão central do `diálogo´: a da educação dos educadores. Este está resolvido pelo governo dos filósofos. Guardiões com a melhor educação e que possuam o maior grau das qualidades de sabedoria prática, de talento e de preocupação com o o bem comum. Estes, por sua vez, expressarão o produto máximo da educação, tendo como conseqüência o papel de serem os educadores supremos das cidades.” (MELO NETO, 2003, p.32)


138 O problema nesse caso é que, além de não se ocupar a esfera pública como deveria para fazer face a todo um movimento de direita em favor do recrudescimento da educação conservadora, o espaço de debate em torno das políticas econômicas, sociais e educacionais raramente encerra condições ideais ou iguais de interlocução. Isto é, toda instituição, política e prática – e principalmente aquelas que agora dominam a educação e a sociedade em geral -, estabelece relações de poder nas quais algumas vozes são ouvidas e outras não. Embora não esteja predeterminado que as vozes ouvidas mais claramente serão também as vozes daqueles que têm a maior quantidade de capital econômico, cultural e social, o mais provável é que isso venha a acontecer. Afinal de contas, não existimos numa arena eqüitativa. (APPLE, 2003, p.244)

Além disso, apesar de assumir importância fundamental na sociedade, o fato de o processo pedagógico caracterizar-se como uma atividade com a intenção deliberada de prover ensino, fundando e diferenciando a educação de outros tipos de interação social (MOORE, 1986), também, parece entrar em conflito com a experiência dialógica64. Entendendo as interações como sistemas abertos, concordamos com Morin [...] ao declarar que, no contexto interativo “a ação escapa à vontade do ator, para entrar no jogo das interretroações recíprocas”, de tal modo que as conseqüências últimas de uma ação não são previsíveis e/ou controláveis. Ainda para Morin, “a estratégia de ação é a arte de atuar na incerteza” [...], ao modo de um jogo. (OLIVEIRA, 2003, p.91)

Não sem razão, a tendência da pedagogia é “abusar” daquela intencionalidade, da qual também não escapa a educação popular. Em seu anseio de transformar o outro, de imprimir as finalidades políticas, econômicas, sociais e culturais da educação65, muitas vezes, não usa

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“O termo `diálogo´ é usado aqui para descrever uma interação ou série de interações que possuem qualidades positivas que outras interações podem não ter. Um diálogo é intencional, construtivo e valorizado por cada parte. Cada parte num diálogo é um ouvinte respeitoso e ativo; cada uma elabora e adiciona algo à contribuição de outra parte ou partes. Pode haver interações negativas ou neutras; o termo `diálogo´ é reservado para interações positivas, onde o valor incide sobre a natureza sinérgica da relação entre as partes envolvidas. O diálogo em uma relação educacional é direcionado para o aperfeiçoamento da compreensão por parte do aluno.” (MOORE, 2002) 65 “A educação popular tem como princípio recusar a neutralidade de valores da educação convencional e afirmar que toda educação serve para propósitos possíveis de definição. Daí não ocultar que pretenda se constituir numa educação política não apenas porque busca formas de democratizar o poder político, mas também porque pretende contribuir para aprofundar processos de distribuição social do conhecimento disponível e provocar mudanças na sua forma de produção tendo em vista o desenvolvimento da solidariedade e da justiça social.” (BRENNAND, 2003,p.61-62)


139 exatamente a dimensão retórica e persuasiva da comunicação para educar66 nem, muito menos, para legitimar um discurso67. Notemos que o desejo de persuadir provém do desejo de reconhecimento, o que não deixa de lembrar, segundo Huisman, a dialética do mestre e do escravo de Hegel. O desejo de persuadir nada mais é, no fundo, do que o desejo de que o outro ou os outros reconheçam o conteúdo significativo da minha mensagem. Ele pode ser encontrado na disputa oratória, nos debates públicos, nas defesas de tese ou então na relação amorosa. (GAUTHIER et al, 1998, p.382)

O problema do reconhecimento, ao que tudo indica, encontra-se muito próximo ao problema da conversão. Considerando que a política pressupõe uma relação entre sujeitos iguais mediada pela persuasão, ressalta Lovisolo (1990, p.96), a forma que a educação popular dispõe para escapar à relação de poder encerrada pelo ato pedagógico é de supor que a potencialidade da conversão (conscientização) encontra-se no próprio educando. “Pela formação da consciência crítica, Freire anteviu o germe de um poder latente não exercitado pelas massas marginais que, não estando inseridas no processo de aquisição do saber médio do seu tempo, ainda guardam suas atitudes mágicas ou ingênuas: o diálogo.” (BRENNAND, 2003, p.89) Por isso mesmo, não se trata de uma educação para os sujeitos, ao estilo da educação bancária, possuidora de “um estranho humanismo que se reduz à tentativa de impedir que os indivíduos se descubram na sua experiência existencial em confronto com a realidade em constante devenir.” (BRENNAND, 2003, p.95) A educação popular, em contrapartida, pressupõe ser exercida plenamente com os próprios sujeitos, em que o educador assume a função de animar, facilitar ou colaborar com o “parto” do processo de descoberta e construção do conhecimento por parte do educando68. O risco aí implícito, já advertiam Bourdieu e Passeron (1982, p.30), é que: 66 Ainda que não equivalha ao princípio da dialética socrático/platônica (MELO NETO, 2003, p.17), “se todo ensino comporta uma retórica, ele permite que os alunos se tornem mestres de tal retórica, ao invés de suporta-la contra a vontade. O verdadeiro aluno é aquele que não está destinado a permanecer aluno. E o verdadeiro ensino, aquele que não se reduz a uma propaganda ou a um doutrinamento, aquele que ensina sua própria retórica, isto é, os meios e os métodos através dos quais ele ensina, para que o aluno possa assim tornar-se mestre.” (REBOUL apud GAUTHIER et al, 1998, p.383-384) 67 Na perspectiva de Bakthin, o discurso constitui “o produto híbrido e dinâmico de características pessoais dos interlocutores em jogo, bem como das características institucionais, sociais, políticas e culturais do contexto em que ele se produz.” (OLIVEIRA, 2003, p.93), 68 Não deixa de fundar grande influência aí o ideal dialógico de Sócrates/Platão: “A procura pelo saber é o desafio para Platão e é, exatamente, na ausência do saber, onde se encontra a grandeza socrática. A imagem que faz é a das dores do parto. Interpreta essas dores como expressão completamente nova de saber contida nas estranhas de Sócrates. Tem-se aquele conhecimento do interior da alma que está expresso no `diálogo´ de Mênon, consistindo na intuição das idéias. Platão, em Mênon, descobre a oportunidade de mostrar, através do diálogo com o escravo,


140 as contestações mais radicais de um poder pedagógico inspiram-se sempre na utopia autodestrutiva de uma pedagogia sem arbitrário ou da utopia espontaneísta que outorga ao indivíduo o poder de encontrar nele o mesmo princípio de sua própria “expansão”. Todas essas utopias se constituem um instrumento de luta ideológica para os grupos que, através da denúncia de uma legitimidade pedagógica, visam a assegurar-se o monopólio do modo de imposição legítima.

Insiste-se, de todo modo, em trabalhar efetivamente com os educandos, pois isso concorre para transforma-los em sujeitos de sua história, vindo servir ainda “à trajetória dos frutos de tal conversão” (BRANDÃO, 1984, p.175). Configurando ademais propostas de natureza incrementalista ou gradualista, cabe aos educadores tão somente “potenciar” a construção e elaboração do mundo pelos próprios educandos (LOVISOLO, 1990, p.169) Nesses termos, o confronto entre saberes cede lugar ao diálogo entre culturas ou à síntese cultural, ou mesmo, a uma experiência de pesquisa participante “que toma como objeto do conhecimento, os conhecimentos científicos e populares existentes sobre a realidade social” (SOUZA, 1989, p.39). No máximo, concebe-se que os “conhecimentos são cooperativos, pois dependem sempre da mediação de um outro com quem o aprendente, face ao conhecimento em elaboração e a partir de matrizes semióticas, estabelece uma relação triádica.” (OLIVEIRA, 2003, p.105) O desenvolvimento dessa relação tem como destino, justamente, conduzir a lógica da distribuição de atitudes (poder) e competências (saber) a seu ápice de equilíbrio e expansão (BRANDÃO, 1985, 1988). Com efeito, pretende-se não somente redimir o papel da ciência no mundo contemporâneo, como também dissipar ou relativizar a assimetria das relações de poder e dos valores do saber no processo de interação. Postulando um processo de aprendizagem mútuo, a relação educador-educando é concebida como análoga à situação em que qualquer antropólogo aprende diretamente com o próprio povo sobre a sua cultura69. No entanto, o que o aluno pode aprender do e com o educador – a consciência crítica – é uma coisa que o educador já possui, ou pelo menos possui os mecanismos para a sua geração. O educador, de fato, pode aprender sobre os modos de pensamentos dos alunos, sobre suas formas de aprendizagem, sobre os modos e padrões de seu grupo cultural. Porém, que o conhecimento está no interior de cada um. Em si mesmo está a raiz desse conhecimento.” (MELO NETO, 2003, p.21) 69 “Este projeto civilizatório, pautado pelo diálogo, apresenta-se como aquilo que pode ser feito pela geração que educa e a geração educanda, em processo educativo onde distinções entre educador e educando jamais ultrapassam as formalidades e atribuições dos papéis sociais, porque na realidade, pelo apresentado, cada educador se educa como cada educando educa. Um projeto exigente da ação voltada à própria humanização do homem e que precisa ser construído coletivamente.” (MELO NETO, 2003, p.81)


141 não é para aprender essas coisas que o educador se faz educador; ao contrário, é para transmitir ou elaborar juntamente com os alunos suas consciências críticas ou ensina-los a ler, coisa que ele já sabe. A educação popular, então, não pode ser comparada – como, por vezes, pareceria ser sua pretensão – a um encontro entre especialistas, entre cientistas, ou entre políticos que se realiza para trocar pontos de vista. Aqui, podemos pensar que existe igualdade e até supor que cada um aprende com o outro ou conjuntamente, porquanto a qualidade que está sendo trocada é a mesma, e os que trocam possuem a mesma autonomia70. Esta, evidentemente, não é a situação entre o educando e o educador, ou a situação existente entre o agente e o grupo de educação popular. (LOVISOLO, 1990, p.143)

Não obstante, descobre ainda a educação popular que - assim como os educadores os educandos também são intelectuais ou filósofos, na acepção socrático/platônica que aproxima a filosofia do amor ou da busca eterna e incessante de Eros pela perfeição e felicidade. Busca esta que conduz à verdadeira educação, isto é, à educação pela filosofia71. Há pouco mais de trezentos anos atrás, essa busca já fora na verdade retomada e aprofundada pelo próprio iluminismo que definiu a si mesmo como um movimento filosófico destinado, essencialmente, ao aperfeiçoamento do indivíduo e da sociedade. “La problemática del sujeto, por lo tanto, resulta ser un punto de confluencia entre la teoría de la educación y el pensamiento filosófico.” (ACANDA, 2001) O perigo aí existente é o educador acabar se tornando altamente etnocêntrico, valorizando no educando (cujo saber tem formas próprias de expressão) aquilo que valoriza na sua própria cultura. “Pelo pensar crítico, resultante da consciência crítica, supera-se aquele pensar ingênuo e nada promotor da ação humana na natureza, pondo fim a todo tipo de mistificação do conhecimento e das explicações do mundo.” (MELO NETO, 2003, p.68) O que remete a um dos paradoxos mais freqüentes à educação popular que é o fato de a valorização e construção do saber do educando efetuarem-se nos marcos conceituais e metodológicos da própria tradição científica ocidental (LOVISOLO, 1990, p.162). Para Freire, todas as crianças têm o direito de ser formadas de acordo com o avanço da ciência, sem o obstáculo da ideologia autoritária que marca e sufoca. As crianças, jovens e adultos das classes populares, não podem continuar seguindo a vida, indiferentes aos 70

“Nas últimas etapas do desenvolvimento mental, diria Piaget, é parte indissociável da equilibração majorante a construção da capacidade de confrontar os próprios conhecimentos com os dos outros, submetendo-os à avaliação social, com o objetivo de promover a coordenação dialógica de pontos de vista, ou seja, o consenso. A autonomia intelectual exige do sujeito que seus conhecimentos passem pela prova do outro, das estruturas normativas da sociedade e da linguagem. O pensamento formal é, assim, sócio-cêntrico, construído sobre a base da ação cooperativa mediada pela linguagem.” (OLIVEIRA, 2003, p.105) 71 “Os deuses, por sua vez, não aprendem pois trazem consigo a sabedoria. Já os ignorantes e tolos, sem nada saberem, se julgam possuidores de elevados conhecimentos, restando ao filósofo a situação intermediária entre a sabedoria e a ignorância, reconhecendo a sua própria ignorância e procurando adquirir o conhecimento.” (MELO NETO, 2003, p.27)


142 acontecimentos de seu tempo e seu espaço. Precisam ser desafiados pelas idéias que combatem e que defendem. Evidentemente que, fora dos padrões de educação livresca e autoritária, mas por uma educação denunciante da opressão e anunciante da liberdade, isto é, uma educação para a participação. (BRENNAND, 2003, p.100)

Desde que superado o autoritarismo, resta portanto aproximar a linguagem teóricoconceitual à realidade concreta dos educandos e consubstanciar o rigor científico como base da consciência crítica. No diálogo autêntico estabelecido através de uma relação horizontal pautada na liberdade de expressão, educadores e educandos devem atuar como sujeitos e sua reflexão conjunta conduzir à criticidade racional. “A apropriação que as classes populares possam fazer das teorias não pode realizar-se senão a partir do próprio pensamento ingênuo, mas em direção à superação.” (BRENNAND, 2003, p.93) Na verdade, parafraseando Lovisolo (1990, p.141), por mais que a relação esteja baseada no diálogo ou na intersubjetividade, não se elimina que é a cultura acadêmico-científica que, por intermédio dos educadores, educa os educandos. No fundo, a educação popular acaba refletindo algo caro à tradição cultural do Ocidente que é valorizar e pretender conciliar coisas opostas (LOVISOLO, 1990, p.139). “Por isso, não dicotomizo as duas dimensões: senso comum do senso filosófico, na expressão de Gramsci. Começa-se do concreto para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Não compreendo conhecimento científico ou crítico que não se submeta ao teste da realidade.” (FREIRE apud BRENNAND, 2003, p.92) Não resta dúvida, acentua Brennand (2003, p.93), “que é a partir do diálogo entre o pensar ingênuo e o pensar racional que uma razão aberta pode se instaurar. Esta razão agrupará as necessidades da correção racional, mas, também, a emergência do simbólico.” O problema aí é que, pelo próprio fato de a razão comunicativa reclamar, por excelência, manifestar-se de forma racional, o que tenderá a prevalecer no final das contas como “razão aberta” será o pensamento racional investido de dialógico. É como se pretendesse conduzir, até as últimas conseqüências, o que a lógica capitalista impõe como caráter dual da modernidade: “por un lado impone la racionalización y por el otro provoca el desarrollo de la subjetividad.” (ACANDA, 2001) Conforme explica Chaui (1989, p.20-21), essa contradição decorre principalmente de uma espécie de “oscilação incessante” que ora concebe a cultura popular sob o ponto de vista ilustrado, ora romântico e, nos “casos mais interessantes”, sob uma perspectiva de conciliação.


143 Trata-se, nesses casos, de uma tentativa de encontrar a conciliação entre saberes em meio à própria dicotomia dos marcos do pensamento ocidental – iluminismo versus romantismo. Por um lado, defende-se que o importante é recolher do tipo ideal romântico as afirmações sobre o ser (“ingênuo”) e, por outro, do tipo ideal ilustrado, as asserções referentes ao dever ser (“crítico”) (LOVISOLO, 1990). A bem da verdade, reside aí uma matriz conceitual transformada em economia política e simbólica que determinou a definição do ser civilizado e do ser selvagem. “Se é verdade que dominaram as visões negativas do selvagem, não é menos verdade que as concepções pessimistas do `Nós´, de Montaigne a Rousseau, de Las Casas a Vieira, estiveram na base das visões positivas do selvagem, o `bom selvagem´.” (SANTOS, p.2002, p.30) A pretensão, em todo caso, é fazer prevalecer um ser mais perfeito e plural, capaz de atuar plena e conscientemente sobre a realidade onde está inserido. Ademais, reconhece a educação popular que o educando ao qual destina sua proposta de desencantamento do mundo não lhe é exterior mas, pertencendo ao mesmo contexto, apenas caracteriza-se por uma outra lógica ou temporalidade cultural. Assim, a comunidade territorial e lingüística, entre esse outro interior e a intelectualidade dos educadores, forma dois mundos num mundo que deveria ser apenas um. A relação etnologia/história condiciona a argumentação da educação popular, dando-lhe características próprias nos seus intentos de conciliar os dois mundos, sociedades ou culturas, transformados em relação entre educadores e educandos e, em linguagem políticosocial, entre intelectuais e povo. Quando o modelo do relacionamento rejeita explicitamente a destruição ou domínio de uma sociedade sobre outra, de uma cultura sobre outra, impõese como única via transitável a conciliação, embora ela seja paradoxal e, de fato, inconciliável. (LOVISOLO, 1990, p.90)

Ao invés exatamente de acabar se instituindo através de um diálogo livre entre educador e educando em que ambos se colocam como intérpretes, pesquisadores e decodificadores da realidade (BRENNAND, 2003, p.89), tal conciliação é posta em xeque por uma relação contraditória que estabelece uma intersubjetividade desigual a priori. De uma parte, tem-se a presença do educador, representante de uma instituição (ainda que seja a educação popular) “que dispõe da autoridade dum saber reconhecido e valorizado pela sociedade, e da outra, a presença daqueles que não têm esse saber e que vivem a experiência secular de não achar lugar para o saber que lhes é inerente.” (MUÑOZ, 1981, p.86) Não por acaso, o fato de o educador se predispor a desvendar o mundo com os educandos não tende a implicar, necessariamente, a modificação substancial da assimetria do saber.


144 Nem mesmo parece ser solução imputar ao educador a função apenas de especialista de um método de ensino capaz de tornar o educando sujeito de sua própria aprendizagem. Apesar de conter “um potencial de mudança que vai desnudar as regras constitutivas que silenciosamente estruturam os métodos pedagógicos” (BRENNAND, 2003, p.97), no final das contas, continua sendo o educador que detém o saber sobre os métodos e procedimentos essenciais ao dialógo. “De porta-voz de verdades, transformou-se num dominador de métodos.” (LOVISOLO, 1990, p.141) A maneira forte ou autoritária de se relacionar com o educando é, pois, substituída por uma maneira suave que, através da participação e de métodos não diretivos, fomenta a relação dialógica. O que parece não escapar tão facilmente à “relação de interdependência que constitui em sistema as técnicas de imposição da violência simbólica, características do modo de imposição tradicional assim como daquele que tende a substituí-lo na mesma função.” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p.31-32) Talvez tomando como base a crítica socrático/platônica à idéia sofística de conceber a educação como instrução (MELO NETO, 2003, p.23), o próprio Brandão (1986, p.160) já insinuava suspeitar de descoberta tão cara à educação popular: Até que se prove o contrário, fazendo variar apenas o conteúdo da opressão, qualquer modalidade de prática de mediação entre o poder e os outros será uma forma consagrada de exercício legítimo do próprio poder. A exigência de novas idéias e práticas emergentes de troca de poder e saber entre os homens tornará a recriar o imaginário e o trabalho de outros modos de pensar e viver a educação, até quando – quem sabe? -, em um mundo plenamente humano, a própria educação deixe de ser necessária, pelo menos nos limites em que até hoje temos conseguido imagina-la.

Nos limites de hoje, sugere Acanda (2001), urge acima de tudo compreender a distinção entre indivíduo, sujeito e subjetividade, a partir do próprio reconhecimento de que todo indivíduo encerra uma subjetividade, porém nem todo ele – por conta disso – logo constitui um sujeito. A interpretação dialética concebe o sujeito como uma totalidade, resultante de relações sociais caracterizadas pela sua capacidade de ação e autoprodução. Precisamente la intención de la filosofía crítica y de una teoría crítica de la educación ha de ser la de revestir a todo individuo con la capacidad de ser sujeto, es decir, de conformar consciente y autónomamente su vida, capacidad de la que usualmente no disfruta, o lo logra sólo en un sentido muy limitado. Es preciso reconstruir la subjetividad de modo tal que incluya esos poderes trascendentes al individuo como condiciones constitutivas de la individualización y a la vez como resultados de la interacción de los individuos. La autonomía de los individuos ha de entenderse no en oposición a, sino como forma organizacional particular de las fuerzas sociales que, por otro lado, condicionan su subjetividad. Ello implica la necesidad de desarrollar un concepto de sujeto basado en una


145 teoría de la itersubjetividad (lo que, por otra parte, no es otra cosa que continuar el programa marxiano, aunque algunos no quieran admitirlo).

Considerações Continuar o programa marxiano, ao que tudo indica, implica assumir posturas que exigem suspeitar ou descobrir-se a si mesmo. Em primeiro lugar, rever e repensar a problemática das identidades como central na luta contra a opressão, tanto econômica quanto sobretudo cultural. “Pero debemos tener en cuenta que la tarea de fondo no es la de defender las identidades ya existentes, sino la de reconstruirlas en consonancia con un proceso liberador y desenajenante.” (ACANDA, 2001) Em segundo lugar, desprender-se das formas de subjetividade e identidade não só impostas pelas instituições dominantes conforme reputa o mesmo Acanda, como também por aquelas instituídas graças a nossa argumentação e cooperação72. Se, como sujeitos críticos, chegamos à conclusão de que o mundo que está aí e a sua educação são opressores e alienantes, só nos resta mesmo denunciá-los e transforma-los. Quando conseguirmos engendrar com os educandos condições objetivas e subjetivas de experenciar esse desafio, muito bom. Caso não, continuando convictos de nossa missão, que nos lancemos ostensivamente à vanguarda de um movimento capaz de descobrir a eles os melhores e mais avançados instrumentos que a ciência e o pensamento universal acumularam ao longo de sua história e que ajudaram, inclusive, a consubstanciar experiências coletivas contra-hegemônicas. Caso ainda assim não formos bem sucedidos, que sejamos fortes para admitir e superar (mesmo contra “nossos” princípios éticos) o caráter “contraditório” do povo que, às vezes, não tem nem muito menos almeja possuir verdade ou razão (BRAUDILLARD, 1985, p.28). Se, em todo caso, um dos caminhos a trilhar seja o do diálogo, que não percamos a oportunidade de abusar da democracia, mesmo em sua versão moderna ou contemporânea. Caso isso não se mostrar plenamente possível, que utilizemos a autonomia que conquistamos para descobrir a cidadania daqueles que (comparativamente a nós) ainda se encontram na 72

“A racionalidade dialógica, pública e constituída no plano das interações discursivas contextualizadas, por meio das quais os sujeitos em interação se auto-constroem, ao mesmo tempo em que constituem e transformam a realidade, ganha corpo em duas formas complementares de interação dialógica: a argumentação e a cooperação.” (OLIVEIRA, 2003, p.101)


146 menoridade de sua autodeterminação. Como o conhecimento é intersubjetivo e a subjetividade é produto dessa intersubjetividade, evidentemente, o conhecimento não consta a priori nem, muito menos, precisa apenas ser “descoberto” no próprio sujeito educando. Pois, resulta justamente da relação que este estabelece com o mundo e com os outros, incluindo os sujeitos educadores. O que implica a descoberta de um outro, por excelência diferente, a cuja formação agregaram-se instrumentos e procedimentos que não podem mais facilmente ser descolados nem desprezados. Pelo contrário, precisam urgente e organicamente ser valorizados, capitalizados e, sobretudo, socializados.

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148 SOUZA, João Francisco de. Movimento popular: espaço de educação para uma hegemonia e produção de conhecimento. In: GROSSI, Francisco Vío; SOUZA, João Francisco de. Educação popular para uma democracia latino-americana. Santiago: Conselho de Educação de Adulto de América Latina, 1989. p.23-44.


149

EDUCAÇÃO POPULAR E PRÁXIS: a ação política e educativa dos trabalhadores e das trabalhadoras do MST Rita de Cássia Curvelo da Silva

O objetivo central deste trabalho dimensiona-se na perspectiva de aportar alguns elementos que possam subsidiar a análise da práxis política dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST73 enquanto fundamento para a construção e o aprofundamento de saberes, visando à autotransformação dos sujeitos dessa práxis e à ação transformadora da realidade. Considero, em especial, os aprendizados construídos nos processos de mobilização, organização e ação coletivas do Movimento, ou seja, nas diversas formas de luta por terra, reforma agrária e por um novo modelo de sociedade74. Para tanto, estou me embasando no pressuposto de que a práxis cotidiana, as atividades de formação política e as lutas coletivas engendradas por trabalhadores e trabalhadoras rurais integrantes de organizações populares, em suas diferentes configurações, são espaços multidimensionais de aprendizado75 e constituem processos singulares da educação de segmentos organizados das classes sociais subalternas76 do campo.

73

Fundado em 1984 no I Encontro Nacional dos Sem Terra, em Cascavel, Estado do Paraná, o MST está atualmente organizado em 23 Estados do país e no Distrito Federal, reunindo 1 milhão e 500 mil assentados e assentadas e aproximadamente 500 mil pessoas que vivem em acampamentos. 74 O MST, para assegurar a sua continuidade e o alcance de seus objetivos, optou pela combinação de formas diferenciadas de luta (MORISSAWA, 2001): ocupação de terras, acampamentos permanentes e provisórios, marchas pelas rodovias, vigílias, jejuns e greves de fome, ocupação de prédios públicos, acampamentos nas capitais, acampamentos diante de bancos, manifestações e passeatas nas grandes cidades. 75 O termo aprendizado (produção de saberes) é aqui empregado no sentido da aquisição e/ou ampliação de um instrumental lógico-racional e de uma base afetivo-volitiva que propiciam o desenvolvimento intelectual, afetivo, volitivo e atitudinal das pessoas, construções essas resultantes da interação entre pensamento e prática (práxis). 76 As classes subalternas, expressão utilizada como sinônimo de classes subordinadas, dominadas ou exploradas, compostas de uma grande diversidade de grupos, aglutinam trabalhadores/as assalariados/as dos serviços urbanos, trabalhadores/as rurais – pequenos proprietários, assalariados e sem-terras –, integrantes do tradicional operariado industrial, subempregados, desempregados e trabalhadores em potencial, os quais, por não possuírem os meios de produção, estão sob o domínio econômico, político, cultural das classes detentoras do capital.


150 Em suma, tenho defendido que homens e mulheres, ao se inserirem em movimentos sociais populares, constroem e aprofundam saberes, em diferentes dimensões: intelectual, afetiva, volitiva e prática. Mas o que são movimentos sociais? As concepções e conceitos referentes a movimento social, no contexto da produção teórica no campo das ciências sociais, como observa Scherer-Warren (1996, p.18), variam desde a afirmação de que “toda ação coletiva com caráter reivindicativo ou de protesto é um movimento social, independente do alcance ou significado político ou cultural da luta”, ao extremo de considerar movimento social como “apenas um número muito limitado de ações coletivas de conflito, aquelas que atuam na produção da sociedade ou seguem orientações globais, tendo em vista a passagem de um tipo de sociedade a outro”. Nesta produção textual, tomo como referência a conceituação de Calado (1999, p.136): “organizações coletivas empenhadas na luta em defesa de seus interesses econômicos e sócio-culturais, buscando construir sua identidade, de forma processual, tendo como referência oposta a conduta dos que eles situam como seus adversários ou inimigos”. Para subsidiar as reflexões propostas, concernentes aos movimentos sociais enquanto espaços educativos, e mais especificamente sobre o MST como sujeito pedagógico que em suas práticas sociais concretiza processos de educação das pessoas engajadas nas diferentes formas de luta do Movimento, estou me baseando nas concepções de práxis e de educação popular explicitadas, respectivamente, por Adolfo Sanchez Vázquez (1990) e Ivandro Sales (1999). Essa opção deveu-se à aproximação das formulações dos autores com o significado (relações objetivas) e o sentido (relações contextuais e subjetivas) atribuídos no texto ao significante práxis e à unidade semântica educação popular.

1. Práxis e Educação Popular 1.1. Anotações Sobre o Conceito de Práxis

A concepção de práxis, na ótica de Vázquez (1990), vem sendo objeto de reflexões e teorizações desde a sua inserção na tradição filosófica grega, especialmente no


151 pensamento de Platão e Aristóteles77, até a consolidação da “filosofia da práxis” marxiana78, uma nova prática da filosofia e uma filosofia da prática. O pensamento de Marx fundamentou a produção teórica em áreas diversas do conhecimento durante o século XX, especialmente através das análises do marxismo desenvolvidas por Lênin, Lukács, Gramsci e Sartre e, mais recentemente, por meio das idéias de Vázquez. Neste texto, considerarei as reflexões deste último, em razão da importância, abrangência e atualidade de seus escritos acerca da práxis enquanto categoria central necessária à abordagem dos problemas do conhecimento, da história, da sociedade, do próprio ser humano. Vázquez, na obra Filosofia da práxis (1990) define práxis como atividade prática material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano e afirma que “Toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis” (VÁZQUEZ, op. cit., p.185), uma vez que existem outras formas de atividade, inclusive as biológicas ou instintivas, que constituem atos determinados casualmente, sem a intervenção da consciência no sentido da formulação de um resultado ideal, de uma finalidade: configuração na consciência de uma realidade ainda inexistente. Dessa forma, a elaboração de finalidades e a produção de conhecimento, na indissolúvel unidade pensamento/ação, são resultantes da

77

Embora o termo práxis tenha sido utilizado por Platão – filósofo que isola a teoria das atividades práticas materiais, menosprezando o prático em relação ao teórico –, o conceito de práxis encontra na obra de Aristóteles sua máxima expressão, representando, para esse pensador, uma síntese das ações éticas, econômicas e políticas, uma prática que pressupõe a inseparabilidade entre o agente, o ato ou ação e o resultado: a ação tem seu fim em si mesma, não produz objetos exteriores ao sujeito. Na concepção aristotélica, a práxis difere da poiesis (fabricação, produção), porque nesta o agente, a ação e o produto da ação são termos distintos e separados: a finalidade da ação está fora dela, numa obra, artefato ou objeto.

78

Os traços fundamentais da “filosofia da práxis” são delineados por Marx nas Teses sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2002a), nas quais o filósofo alemão define sua filosofia como a filosofia da transformação do mundo e eleva a práxis à condição de fundamento de toda relação humana e a atividade prática como fundamento, critério de verdade e finalidade do conhecimento. Em A ideologia alemã, Marx e Engels (2002b) apresentam a teoria da práxis revolucionária, práxis que é condicionada histórica e socialmente pela produção humana. No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels (2004) explicam a forma como deve dar-se essa conversão da teoria em atos, respondendo, desse modo, a necessidades práticas, ou seja, uma teoria embasada no conhecimento da realidade, destinada a guiar uma revolução concreta – a revolução proletária – e também uma teoria da organização da revolução, da passagem da teoria à ação.


152 atividade da consciência, o que permite ao ser humano conhecer para agir e se conhecer agindo. Sendo a práxis uma atividade teórico-prática, ideal/material, apresenta-se como atividade de um sujeito prático numa vertente dupla e simultânea: como uma atividade subjetiva, da consciência, e como atividade objetiva, exercida sobre uma realidade, independente da consciência. A atividade prática caracteriza-se pela ação de um ser humano sobre uma matéria, objetivando a transformação do mundo exterior, este independente da consciência e da existência do sujeito prático. Nessa perspectiva, a atividade subjetiva, no plano meramente psíquico ou espiritual, por não se objetivar materialmente, não se configura como práxis. Então, embora a atividade teórica – que se opera apenas no pensamento – possa propiciar conhecimentos imprescindíveis à transformação da realidade, ela não é por si mesma uma forma de práxis, pois, como expressam Marx e Engels (2003, p.137): “Idéias não podem executar absolutamente nada. Para a execução das idéias são necessários homens que ponham em ação uma força prática”. Para Vázquez, o que existe é uma unidade indissolúvel entre teoria e prática, numa relação de autonomia e dependência mútuas. A práxis é o fundamento da teoria: os conhecimentos teóricos e as categorias lógicas são gestados e impulsionados a partir dos conhecimentos empíricos historicamente acumulados, do progresso técnico determinado pela produção e das necessidades práticas fundamentais da humanidade. A prática material produtiva gera novas perspectivas à atividade científica e ao aperfeiçoamento da técnica, num processo em que se juntam e se incorporam mutuamente teoria e prática. Dentre as formas fundamentais de práxis, o filósofo espanhol, naturalizado mexicano, destaca: a práxis produtiva – transformação da natureza pelo trabalho humano, autoprodução e autotransformação do sujeito; a práxis artística, da produção ou criação de obras de arte – produção tanto material quanto espiritual de uma nova realidade, a partir da necessidade humana de expressão e objetivação; a práxis científica, manifestada pela atuação do pesquisador sobre um objeto material, realizando uma atividade experimental que tem por finalidade o desenvolvimento de uma teoria; a práxis social, que no sentido restrito é a práxis


153 política – cuja forma mais elevada é a práxis revolucionária – de grupos ou classes sociais visando à transformação da sociedade. Partindo da convicção de que o grau de consciência de um sujeito acerca do processo prático e o grau de humanização de um produto criado através de uma atividade prática origina níveis diferentes de práxis, Vázquez identifica as práxis criadora e reiterativa e as práxis espontânea e reflexiva. Na práxis criadora, a formação ou transformação de uma matéria não se reduz a uma duplicação, mas representa a criação de um produto novo, imprevisível, único e irrepetível, pré-existente de modo ideal, mas com existência real tornada possível apenas pela intervenção da consciência e da prática de um sujeito, numa unidade indissolúvel entre o objetivo e o subjetivo. Na práxis criadora “O objeto não é mera expressão do sujeito; é uma nova realidade que o transcende” (VÁZQUEZ, 1990, p.255). A práxis reiterativa ou imitativa se apresenta como uma execução que se reproduz em objetos produzidos conforme um modelo ou uma lei previamente traçada, permanecendo imutável o idealizado: há plena correspondência entre planejamento e realização, ou seja, o resultado real equivale ao resultado ideal. Embora a práxis imitativa contribua para ampliar o já criado, nela não há produção de mudança qualitativa na realidade humana, o que a coloca numa posição de inferioridade em relação à práxis criadora. Por tudo isso, inexiste um lugar no âmbito da práxis revolucionária – como práxis social criadora –, para uma práxis imitativa. A transformação radical das relações sociais e da sociedade impõe a necessidade de que o aspecto criador da práxis humana seja determinante. “Na práxis total humana, inovação e tradição, criação e repetição se alternam e às vezes se entrelaçam e condicionam mutuamente. Mas a práxis determinante é a práxis criadora” (VÁZQUEZ, op. cit, p.279). Há uma estreita relação entre o nível da práxis de um sujeito e a atividade da sua consciência. Logo, a intervenção da consciência no processo prático (consciência prática) é tanto mais elevada quanto mais reflexiva e criadora for o modo de expressão da práxis. Mas


154 mesmo em uma práxis reiterativa, as intervenções da consciência, embora debilitadas ou tendentes ao desaparecimento, não podem ser excluídas. Vázquez difere a consciência prática – “que atua no início ou ao longo do processo prático, em intima unidade com a plasmação ou a realização de seus objetivos, projetos ou esquemas dinâmicos”, buscando a materialização de um resultado ideal em um produto real – da consciência da práxis – a “consciência que se volta sobre si mesma, e sobre a atividade material em que se plasma” (ibid. p.283-284) – a consciência que se sabe a si mesma. Embora distintas, essas consciências não se fragmentam, mas mantêm uma estreita vinculação, na medida em que a consciência da práxis manifesta-se na autoconsciência prática. A análise do papel desempenhado pela consciência na atividade prática permitiu a Vázquez especificar a existência de uma práxis criadora e de uma práxis repetitiva; o grau de manifestação da autoconsciência prática, por sua vez, propiciou a distinção de dois outros níveis da atividade prática humana: a práxis espontânea, em que o sujeito prático tem uma baixa ou ínfima consciência da práxis, e a práxis reflexiva, ou seja, ação de sujeitos com elevada consciência da práxis. A correspondência entre os níveis prático-criador e repetitivo e as práxis reflexiva e espontânea assume peculiaridades de acordo com a forma específica de práxis. O espontâneo não se opõe ao criador nem o reflexivo ao repetitivo. Em se tratando da práxis revolucionária, os problemas do espontâneo e do reflexivo são de suma importância, vez que uma atividade verdadeiramente revolucionária do proletariado exige uma elevada consciência da práxis: a atuação da consciência na produção de uma teoria revolucionária que fundamente o processo prático de transformação da sociedade. Nessa perspectiva, a práxis revolucionária tem um aspecto objetivo, a possibilidade de transformação efetiva da sociedade, e um aspecto subjetivo, a consciência dessas possibilidades objetivas – consciência da práxis. Apenas quando adquire uma consciência do seu ser, de sua condição de coisa ou mero meio de produção, o sujeito pode agir para transformar radicalmente a sociedade capitalista, por meio da luta de classe. Essas formulações apresentadas por Vázquez, consideradas em relação aos objetivos propostos para a construção deste texto, suscitam algumas problematizações que


155 tentarei discutir tomando por base as relações entre o MST, as formas de práxis manifestadas nos seus processos organizativos e a geração e aprofundamento de saberes resultantes da atividade teórica e prática, subjetiva e objetiva, dos atores sociais que protagonizam as lutas do Movimento. Nesse sentido, as questões centrais que requerem uma explicação, ainda que provisória, assim podem ser postas: a práxis política dos Sem Terra pode ser identificada com práxis social revolucionária, produtora de conhecimentos e ação emancipadora dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais que constituem os sujeitos históricos desse movimento social79? Em que sentido as ações concretizadas nas formas de luta do MST (práxis política) se configuram como processos de Educação Popular?

1.2. Educação Popular Como Processo de Construção e Aprofundamento de Saberes Embora no campo da Educação Popular, como é sabido, haja uma pluralidade de perspectivas, concepções teóricas e conceitos acerca dessa modalidade educativa, há concordância nas abordagens de diferentes autores (CALADO, 1999, 1998; GOHN, 2001, 1994; MELO NETO, 1999; SALES, 1999; WANDERLEY, 1994), no sentido de que a Educação Popular se manifesta em um imenso leque de espaços formais e não-formais e numa multiplicidade de dimensões sociais nas quais são tecidas as relações cotidianas em diferentes esferas do mundo concreto e da subjetividade humana. Nessa perspectiva, compreendo a Educação Popular como uma prática que, independente dos espaços – formais, governamentais, não governamentais, alternativos – nos quais se concretiza, se afirma como uma metodologia orgânica, coletiva e cooperativa que potencializa as condições de captação, apreensão e leitura crítica da realidade e de intervenção dos protagonistas dessa ação educativa na esfera social (econômica, política, cultural), objetivando transformá-la.

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Estabeleceu-se, nos últimos anos, uma polêmica entre teóricos que estudam os movimentos sociais no campo, uns defendendo, como Navarro (1997, 2002), ser o MST um movimento reformista, com improváveis potencialidades revolucionárias, e outros, a exemplo de Petras (1997) e Carvalho (2002, 2004), abordando o Movimento Sem Terra como um movimento cujas táticas são reformistas, como a luta por terra e reforma agrária, mas subordinadas a uma estratégia revolucionária, um projeto de construção de uma sociedade socialista.


156 É nesse sentido que Ivandro Sales (1999, p.115) expressa sua concepção de Educação Popular, ponto de vista que serve de referência e fundamentação para as análises explicitadas neste texto: A Educação Popular é um modo de atuar e tem uma perspectiva: a apuração, organização, aprofundamento do sentir/pensar/agir dos excluídos do modo de produção capitalista, dos que estão vivendo ou viverão do trabalho, bem como dos seus parceiros e aliados em todas as práticas e instâncias da sociedade.

Em sua abordagem do conceito de Educação Popular, Sales (op. cit., p.111122) enfatiza a produção do saber, diferenciando saber e conhecimento ao sustentar que o conhecimento é apenas uma das dimensões – a dimensão intelectual – do saber, este entendido como entrelaçamento dialético entre o sentir, o pensar, o querer e o agir das pessoas, grupos, categorias e classes sociais. O saber inclui intelecto, afetividade, vontade, prática, dimensões humanas que mutuamente se influenciam e se reforçam. O saber é, portanto, cultura: envolve a realidade objetiva e subjetiva das pessoas. No confronto de saberes, nas nossas ações e omissões, assumimos a condição de educadores(as), sendo nossas relações interindividuais e intersubjetivas, necessariamente, relações pedagógicas. É por essa razão que, nos movimentos sociais – em especial no MST, objeto das reflexões aqui apresentadas –, a educação não se restringe aos muros da escola, mas estende-se a todos os processos de aprendizagem gerados pela experiência cotidiana de luta organizada, situando-se, preferencialmente, no universo da educação informal ou da educação não-formal. A primeira, segundo designação de Afonso (1989, p.87), “abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, constituindo um processo permanente e não organizado”, inexistindo, portanto, intuito, planejamento ou estruturação prévia, resultando esse tipo de educação de processos espontâneos; a segunda, dimensionada pela intenção de dados sujeitos no sentido do alcance de objetivos formulados e consecução de qualidade pretendida, para Gohn (2001, p.97 e seq.), se materializa em “ações e práticas coletivas organizadas em movimentos, organizações e associações sociais”, envolvendo, entre outros aspectos, “a aprendizagem dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos” e a “aprendizagem e o exercício da organização para a solução de problemas coletivos cotidianos”. A prática educativa que no MST poderíamos designar pelo nome de Educação Popular não desconsidera a escola como lugar de formação das pessoas, sendo este um espaço


157 importante dentro da intencionalidade pedagógica do Movimento, de constituir-se como sujeito educativo que produz novas relações humanas e humanizadoras. Para os Sem Terra, no entanto, é nas ações de luta pela terra e em outras lutas sociais – que dimensionam a práxis política do Movimento (CALDART, 2000b) – que são forjados cidadãos com maior aprofundamento do seu saber, mais capacitados, então, para a transformação do atual modo de organização da sociedade. Em resumo, no MST, a Educação Popular pretendida é aquela que deve configurar-se como “produção de uma cultura ou de um modo de sentir/pensar/agir mais coerente. É a formação de bons lutadores” (SALES, 1999, p.119), de sujeitos que experienciam uma práxis de resistência à exploração e à expropriação do modo capitalista de produção e que lutam por justiça social e pela dignidade humana.

2. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Como Espaço de Educação Popular Os movimentos sociais são espaços singulares de construção e reinvenção de saberes

(ANDRADE,

1997;

CALDART,

2000,

1997;

GRZYBOWSKI,

1987;

NASCIMENTO, 1996; SCHERER-WARREN 1996). Nesta perspectiva, a inserção de um sujeito nas lutas pela conquista de direitos civis e políticos, individuais e coletivos (práxis política), contribui para o desenvolvimento de competências discursivas, reflexivas, morais e políticas; para a ampliação de competências e habilidades nos domínios cognitivo e afetivo; para a compreensão crítica do mundo e conseqüente expansão da consciência; para o empreendimento de ações transformadoras, individuais e coletivas. O Movimento Sem Terra é um movimento de massas, pois incorpora enormes contingentes populacionais; de caráter sindical: uma luta inicialmente corporativa, pela terra; popular, ou seja, aberto à participação de todos, tanto da totalidade dos membros da família camponesa quanto daqueles que na sociedade desejem lutar por reforma agrária; e político, pela junção dos interesses particulares e corporativos com os interesses de classe: luta dos(as) trabalhadores(as) rurais contra os latifundiários e contra o braço governamental do Estado capitalista. Seus modos de organização e ação coletivas dimensionam a produção de um processo educativo e a emergência de pedagogias da construção de novos saberes e da formação de novos sujeitos sociais. As formas de luta pensadas e concretizadas pelos Sem


158 Terra são espaços educativos: o MST se configura como “uma coletividade em movimento que é educativa, e que atua intencionalmente no processo de formação das pessoas que a constituem” (CALDART, 2000a, p.199). A partir desses pressupostos – o MST como sujeito pedagógico que desenvolve ações organizativas que resultam em processos educativos – pode-se indagar: que aprendizados são construídos pelos Sem Terra enquanto sujeitos de práticas sociais, engajados nas diferentes formas de luta do Movimento? Qual o significado dos saberes gestados pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais para a concretização de uma práxis dimensionada na perspectiva da transformação da sociedade e da emancipação social desses sujeitos? As lutas populares são espaços de aprendizagem política que tornam possível tanto a criação de novas formas de conhecimento quanto a vivência de novas relações sociais e interindividuais, implicando na superação de estereótipos e estigmas e na construção de pessoas que, aceitando-se a si mesmas, alteram a sua auto-imagem e auto-estima. Nesse sentido, afirma Guimarães (2001, p.118): “Os movimentos sociais promovem processos pedagógicos pelos quais o confronto com o outro, diferente, possibilita a formação da própria identidade”. O Movimento Sem Terra, devido ao caráter educativo que lhe é intrínseco, pois as práticas sociais vivenciadas nas formas de luta dos Sem Terra são também processos pedagógicos, assume a condição de espaço privilegiado de aprendizagem e formação da identidade dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais. Propicia a construção e a sedimentação de uma identidade coletiva: um movimento e uma organização social e política de massas80, e de uma identidade individual: de ser Sem Terra, sujeito histórico que, através das vivências coletivas cotidianas, permanentemente se transforma e se constrói enquanto artífice de uma organização de luta popular, mas também por ela condicionado. Nas atividades práticas do MST surgem novos atores políticos que, nas relações sociais e na interação grupal, mediados pelo diálogo e pela reflexão, definem sua identidade de classe e gestam novos projetos de transformação, pautados na utopia de construção de um mundo socialmente justo e popularmente soberano.

80 O MST, inicialmente apenas um movimento social de massas, institucionalizou-se devido à ausência de solução para a questão agrária brasileira, estruturando-se, também, como uma organização social e política popular.


159 Há, também, uma estreita relação entre a participação dos indivíduos nas ações coletivas e a compreensão de que são sujeitos de direitos sociais, políticos, econômicos e culturais. Tornam-se, então, protagonistas da luta pela aquisição e/ou expansão desses direitos. Nessa perspectiva, o MST tem contribuído para a construção da cidadania ativa81 dos brasileiros, processo que sempre passou pela organização da sociedade, através das lutas do povo para exercer poderes. A práxis dos integrantes do Movimento Sem Terra gera a aprendizagem política dos direitos de cidadania, representando, na história social recente do Brasil, um claro avanço ao processo de democratização do país. Outra dimensão educativa dos movimentos sociais populares é que estes têm se convertido em agentes de politização e aprofundamento da consciência dos seus integrantes. Nos processos coletivos, os protagonistas das lutas sociais adquirem a consciência de sua situação de exclusão social e de opressão e ascendem da consciência de sua alienação à consciência de sua liberdade. “Essa consciência é adquirida através de um longo processo teórico e prático de luta contra sua exploração, ao fim do qual o oprimido – nesse caso o trabalhador – chega à consciência de sua alienação e por sua vez, à de sua libertação” (VÁZQUEZ, 1990, p.77). As diferentes ações coletivas do MST, por exemplo, propiciam a consolidação de uma cultura de resistência à situação de opressão da consciência dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e a organização de uma práxis de libertação da sociedade opressora, vez que a liberdade é uma condição ontológica absoluta da realidade humana, cujo exercício pleno se concretiza na práxis social, no agir humano sobre a materialidade de um mundo objetivo, resultante das muitas práxis que historicamente o criaram. Acreditando que é possível superar, através da práxis, a contingência humana, os Sem Terra concretizam ações voltadas para o atendimento às suas necessidades objetivas, as condições básicas de produção de sua sobrevivência, e subjetivas, as motivações sociais, e, nesse processo, se autoproduzem, constroem o seu próprio ser. Ser definido pela ação e que é liberdade: “O ato é a expressão da liberdade” (SARTRE, 1997, p.541). Os Sem Terra se libertam em seu fazer, em suas ações intencionais sobre um mundo concreto. Também as práticas cotidianas dos movimentos contribuem para a criação de novas relações sociais, com destaque para a efetivação de estratégias para a democratização de 81

Cidadania, neste texto, refere-se à participação ativa de pessoas e grupos que, através de suas ações, assumem a condição de sujeitos na conquista, manutenção e ampliação de direitos civis, políticos e sociais assumindo, portanto, a condição de protagonistas da sua própria história.


160 processos da vida comunitária e consecução da autonomia em relação a outras instâncias e organizações externas. Ressalta Scherer-Warren que nos acampamentos coletivos “as relações comunitárias, com ênfase na solidariedade e na cooperação, desenvolvem-se enquanto um modo de vida e enquanto forma de luta” (1996, p.73). Nesse sentido, os Sem Terra, nas vivências cotidianas, praticam atos solidários, de auxílio a outras pessoas, visando ao atendimento das necessidades dos(as) assentados(as) e acampados(as) e ao bem-estar da comunidade e da sociedade. Na luta, produz-se um intenso sentimento de lealdade para com os(as) companheiros(as) e uma constante preocupação em defendê-los(as) das ameaças externas que com freqüência incidem sobre os(as) militantes do Movimento. Nas ações práticas do MST, valores humanistas e condutas éticas são adquiridos e/ou consolidados: a solidariedade e a cooperação, a justiça, o companheirismo, a beleza e a dignidade são apropriados e/ou sedimentados, por serem considerados elementos indispensáveis à construção de novas relações sociais e interpessoais e para a formação de homens e mulheres novos, humanizados. É preciso explicitar, porém, que, para certas pessoas que fazem parte dessa Organização, a solidariedade e o companheirismo manifestam-se apenas na fase de acampamento e nas ocupações. Depois da conquista da terra, verifica-se uma tendência ao individualismo e ao isolamento, pois muitas das famílias assentadas têm dificuldade em aceitar formas de produção diferentes das tradicionais e resistem em se organizar nas associações coletivas, reproduzindo muitas vezes aquilo que o MST quer combater. As lutas sociais possibilitam, ainda, a apropriação de novos conhecimentos por parte de seus protagonistas, por serem um “verdadeiro canteiro da aprendizagem da economia, da política, da sociologia e das capacidades de comunicação, da leitura e da escrita” (NASCIMENTO, 1996, p.39) e um campo propício ao desenvolvimento progressivo de competências cognitivas e à ampliação da competência lingüística e das habilidades de comunicação. Ao se defrontarem com situações-problema diversas nas mobilizações coletivas e em outros espaços vivenciais cotidianos, os(as) trabalhadores(as) rurais Sem Terra adquirem, por exemplo, conhecimentos lógico-matemáticos – no planejamento agrícola e na comercialização da produção; conhecimentos sobre História e Economia – na medida em que refletem sobre o seu próprio passado e analisam a conjuntura econômica, social e política do


161 presente; Geografia – no planejamento da ocupação, na participação nas marchas; Direito – nos confrontos com a polícia e nos conflitos com a justiça. Desenvolvem suas capacidades de solucionar problemas práticos; constroem relações interdependentes e autônomas; ampliam suas habilidades de intercomunicação verbal e de interação social. Esses conhecimentos adquiridos contribuem para que os atores sociais engajados na práxis política do MST aprofundem as suas possibilidades de decifração do mundo e leitura crítica da realidade, bem como de autoconhecimento e autocompreensão: um entendimento da realidade e de si mesmos que possibilita a transformação do mundo e dos seres humanos, através da passagem do pensamento à ação. “O homem age conhecendo, do mesmo modo que (...) se conhece agindo” (VÁZQUEZ, 1990, p.192). Ao agir sobre o mundo, os Sem Terra, sujeitos da história, conhecem a realidade em sua pluralidade: compreendem sua posição na sociedade e atingem a consciência de sua situação de classe, da realidade social em sua essência e em suas profundas contradições e da necessidade de encontrar solução para essas contradições através da luta por sua libertação. O conhecimento se transforma em ação: ação sobre uma realidade para transformála. Essa consciência de classe, segundo Lukács, (apud REALE; ANTISERI, 1991, p.808) é a unidade da teoria e da práxis dos trabalhadores e das trabalhadoras, “o ponto em que a necessidade econômica de sua luta de libertação converte-se dialeticamente em liberdade”. Mas nem sempre o sujeito transcende do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”. A aproximação das pessoas em relação ao MST raramente é uma escolha do sujeito, mas, na maioria das vezes, resulta da busca de satisfação de necessidades de sobrevivência. Dessa forma, ao conquistarem a terra, transformam o assentamento em réplica da grande propriedade, reproduzindo a divisão social do trabalho e o sistema capitalista, contrariando as propostas e orientações do Movimento, que empreende uma luta permanente para romper com a lógica do capital. Outra das possibilidades de aprendizagem decorrentes da inserção do indivíduo nos movimentos sociais é apontada por Marta Kohl de Oliveira (1995, p.158) quando ressalta a influência cultural sobre os modos de funcionamento cognitivo dos indivíduos. Esse tipo de atividade [militância em partidos, movimentos da sociedade civil, organizações sindicais, etc], por envolver o engajamento do indivíduo em projetos coletivos que transcendem os dados da experiência concreta


162 individual, favorece o desenvolvimento de uma perspectiva metacognitiva, isto é, que se debruça sobre o real como objeto de reflexão e não apenas de ação. A relação intensa do sujeito com algum tipo de utopia parece promover seu desenraizamento dos dados contextuais do momento e do espaço presentes.

Através da militância política, ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento da capacidade de descontextualização, do controle da própria produção cognitiva e da metacognição das pessoas jovens e adultas. A ação política, especialmente nos contextos urbanos, contribui para a aclaração do processo de letramento e elevação do nível de alfabetismo desses atores sociais (RIBEIRO, 1999; RATTO, 1992, 1995). Na zona rural, a participação dos(as) camponeses(as) nas atividades organizativas dos movimentos sociais do campo contribui para a apreensão crítica da realidade e conseqüente socialização política desses sujeitos, na medida em que Os movimentos permitem aos trabalhadores, em primeiro lugar, o aprendizado prático de como se unir, organizar, participar, negociar e lutar; em segundo lugar, a elaboração de uma identidade social, a consciência de seus interesses, direitos e reivindicações; finalmente, a apreensão crítica de seu mundo, de suas práticas e representações sociais e culturais (GRZYBOWSKI, 1987, p.59).

Mas a forma de organização das famílias do campo e a tradição patriarcal dominante na cultura camponesa reduzem o poder de participação: a luta separa-se da vida íntima, vez que os pais de família participam das ações organizativas, mas, muitas vezes, impedem a participação de suas mulheres e filhos. Por outro lado, no imaginário de muitas mulheres, cabe exclusivamente ao homem o envolvimento em atividades políticas. A despeito dessas limitações, é nesse aprendizado prático que os Sem Terra assumem seu papel de agentes históricos, agudizando suas percepções e ampliando suas possibilidades de desvelamento e explicação da realidade. Como protagonistas de uma práxis dimensionada na perspectiva de transformação do mundo e adoção de um novo modelo de sociedade, esses sujeitos vivenciam novas relações interindividuais e sociais, num processo contínuo de organização para a ação transformadora. Em suma, no que diz respeito à dimensão educativa dos processos de luta dos movimentos sociais, pode-se afirmar que a militância política impulsiona a construção de saberes, na medida em que: 1) contribui para a aquisição de conhecimentos e conseqüente ampliação da capacidade cognitiva e lingüística; 2) instiga o aprofundamento da consciência; 3)


163 gera a construção e sedimentação de valores; 4) origina a formação da identidade social; 5) suscita o desejo de lutar pela conquista de direitos; 6) promove a organização e a ação coletivas. Quanto aos Sem Terra, por meio de sua atividade prática e teórica, esses sujeitos engendram a transformação do mundo objetivo, processo que resulta também em sua autoprodução e em sua libertação, numa unidade entre circunstâncias e atividade humana: a transformação das circunstâncias que condicionam o ser humano não pode separar-se da autotransformação do homem, que modifica as circunstâncias, unidade que define a práxis revolucionária. Por meio de uma práxis contínua e incessante, o sujeito e o objeto se transformam (MARX; ENGELS, 2002a, p.100). A práxis política dos integrantes do MST assume, portanto, o significado de ação prática dimensionada pelo intento de humanização e de emancipação dos trabalhadores e trabalhadoras rurais que integram esse Movimento: uma práxis que objetiva a transformação dos sujeitos, da sociedade e das relações sociais pela ação humana.

3. Considerações Sobre a Educação Popular na Práxis Organizativa do MST O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desenvolve processos de organização e de ação coletivas que se configuram como práxis social, concretizada pelo estabelecimento de um vínculo orgânico entre a teoria e a prática. O MST desenvolve uma práxis política que, enquanto ação crítico-prática, é atividade voltada para a transformação das relações de opressão sociopolítica ou cultural e para a afirmação da essência humana dos integrantes desse movimento popular. Embora seja um movimento que busca reformas como ponto de partida, por meio dos seus variados processos de organização e ação política, luta pela concretização da utopia de uma sociedade sem classes, justa e igualitária, na qual a felicidade humana seja possível. Nessa perspectiva, tem um sentido revolucionário. No longo processo teórico e prático de luta contra a exploração a que foram (e ainda são) submetidos, os trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra adquirem consciência de sua alienação e, de forma coletiva, organizam uma luta consciente pela sua emancipação.


164 Realizam um ato revolucionário, na medida em que são, simultaneamente, sujeitos de conhecimento e agentes produtores da sua consciência através dos seus atos. Mas essa consciência não é adquirida de forma espontaneísta, unicamente pela participação nos processos organizativos do Movimento. Tal aquisição tem a prática social como ponto de partida, mas se realiza pelo vinculo indissolúvel entre ação e pensamento, notadamente através de atividades de formação política promovidas pelo MST: cursos nos quais se estuda História, teorias políticas diversas (com ênfase para Marx, Engels e os marxistas clássicos – Lênin, Rosa Luxemburgo, Mao Tsé-tung...), além da realização de análises da conjuntura social (econômica, política e cultural) brasileira e mundial. Essa educação política, portanto, não se resume apenas às práticas desenvolvidas ou unicamente aos cursos freqüentados: sustenta-se, também, na permanente conexão entre teoria e prática, interpretação da realidade e ação coletiva para transformá-la. Desse modo, os Sem Terra têm a possibilidade de construir conhecimentos através da sua inserção nas lutas e da formação teórica e, assim, fundamentar e desenvolver suas práticas e agir sobre as circunstâncias que os condicionam, buscando modificá-las. Nesse processo, transcendem a mera interpretação da realidade e convertem a simples teoria em atos, em ação transformadora sobre o mundo objetivo: uma práxis política essencialmente reflexiva e criadora. Mais que apenas a concretização da reforma agrária, o MST define objetivos mais amplos e profundos, de consecução de uma mudança radical na estrutura social brasileira, de pobreza e desigualdade, portanto, injusta e excludente. Em sua experiência imediata – práxis social – desenvolve-se a produção de saberes transformadores da sociedade e humanizadores dos próprios sujeitos que participam dos processos de luta do Movimento: um processo singular de educação que, penso, pode ser qualificado como popular.


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EDUCAÇÃO POPULAR E AÇÃO TRANSFORMADORA: a ação do perguntar humano Tânia Rodrigues Palhano

Introdução A ação transformadora e a Educação Popular como tema central neste trabalho, nos leva a fazer algumas reflexões sobre o agir humano em torno da atividade da aprendizagem. Pretendemos compreender a interação da ação transformadora e a educação popular no processo constante de aprendizagem no que tange ao mundo humano quanto às relações sobre a natureza e a relação com os outros homens no tocante aos interesses sociais. Apontamos no termo “ação transformadora”, o adjetivo que acompanha a palavra ação, entendida como movimento, como mobilidade, onde toda ação impele para a mudança, mas nem toda ação é transformadora. Ao se tomar a ação como um processo que decorre da atuação do sujeito, vai resultar de uma modificação da realidade seja ela transformadora ou não. A ação transformadora compreendida como um constituinte da educação popular, indica a elaboração de dois questionamentos, que servirá como base de reflexão para nossas discussões. Quando é que a ação é transformadora na Educação Popular? E, quando identificamos a ação como transformadora e social e útil na Educação Popular? Como eixo de nossas discussões, além de percorrermos o conceito de ação transformadora e o conceito de educação popular, abordaremos a questão da cultura com ênfase no ser humano como ser de relações, ser que transforma através de suas ações. Tratamos do mundo humano como o mundo do pensar, do refletir, do perguntar em busca do conhecimento da realidade social aliada a capacidade do aprender identificada no ser humano. Como indicações para estas questões nos baseamos em textos de Vieira Pinto (1979); e Freire (1983), (1994). Assim nosso trabalho percorre três eixos como guia de nossa compreensão: a cultura dada pelo ser humano como ser de relações; o mundo humano como o mundo do perguntar para transformar, dado pela aprendizagem; e a ação como transformadora e social e útil na educação popular.


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A cultura como ação do homem A ação do homem sobre o mundo ocorre no momento em que, como sujeito cognoscente atua na natureza e percebe que como ser de relações82, ele está no mundo e com o mundo. E nas relações que o homem como sujeito cognoscente estabelece com o mundo na captação de dados objetivos de sua realidade, ele desafia o mundo transformando-o, agindo a partir de seu contexto. Nas relações do homem com o mundo ele rompe com o mundo natural, transcendendo ao contexto de sua realidade. Para Corbisier (1986, p.125), entre o animal e o contexto em que vive não há ruptura, não há solução de continuidade83. O animal não atua sobre o mundo como agente transformador da natureza. Neste sentido, o peixe nasce sabendo nadar, o pássaro sabendo voar e os gatos e cachorros sabendo andar e correr, daí a integração no contexto natural ser completa. Assim, enquanto o animal não precisa saber o que são as coisas, porque sabe por instinto o que precisa para a sua sobrevivência e da espécie, o homem pergunta, questiona porque tem necessidade de superar os limites impostos pela natureza, e agindo a modifica libertando-se das condições naturais de seu contexto, assim transcende do mundo da natureza para o mundo da cultura. Cultura não significa aqui, apenas aprimoramento intelectual, neste sentido, culta não é apenas uma pessoa que estudou e se formou. Como lembra Lara (1989, p.16), cultura é, antes de tudo, a maneira de ser de um povo, diversa da maneira de ser de outro povo, porém, é qualidade humana e produção humana. [grifo nosso]. Para entendimento da cultura no marco da produção lembramos Vieira Pinto (1979), em sua Teoria da Cultura, o qual define a cultura como criação do homem por produzir a própria existência, diferentemente do animal. Diante deste ponto de partida, aponta-se o caráter de hominização da cultura, como já vimos anteriormente, e aqui ressaltada por Vieira Pinto (1979), em que ao longo do processo da formação do homem, como ser biológico as transformações do organismo lhe foram permitindo, em virtude do desenvolvimento da ideação reflexiva a capacidade de abstrair da realidade material do objeto para produzir idéias, e daí, a atuar sobre a natureza atos até então desconhecidos no passado da espécie. 82

Paulo Freire. Educação como Prática da Liberdade. Neste texto Corbisier (1986) faz uma relação entre o comportamento do homem e do animal, destacando o homem como sujeito cognoscente. 83


170 Conforme leitura do autor já mencionado, apresentamos alguns outros aspectos que dão base para a definição de cultura, no marco da produção humana. A cultura é coetânea do processo de hominização, ou seja, a criação da cultura e a criação humana são duas faces de um mesmo processo que passa de orgânico na primeira fase a social na segunda, estando os dois aspectos interligados e se condicionando mutuamente em qualquer fase. A cultura também, é o processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar e as idéias que oriundas destas experiências, as quais antes permaneciam coladas às realidades sensíveis, assim os instrumentos artificiais e as idéias produzidas pelo humano são duas ordens de realidade da cultura desde os seus primórdios. Vale salientar, ainda em Vieira Pinto (1979), que a cultura é uma manifestação histórica do processo de hominização, e com este se desenvolve coetâneamente, até o caráter de “humano” se apresentar como um conteúdo de valor ético. Por fim, a cultura constitui-se por efeito da relação produtiva que o homem em surgimento exerce sobre a realidade ambiente. Assim, a teoria da cultura está calcada, na que nos mostra a cultura indissociável do “processo de produção”, entendido como produção da existência em geral. A cultura por um lado, é um bem de consumo, que a sociedade obrigatoriamente, mediante a educação distribui a seus membros, e por outro lado é um bem de produção, um meio de operar sobre a natureza para a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Vieira Pinto (1979, p.124), nos lembra que em várias sociedades estes dois aspectos não se encontram igualmente distribuídos. Daí resulta a situação em que apenas uma parte, um grupo minoritário por ser o detentor da cultura enquanto bem de produção, forma a classe daqueles que têm o privilégio de conceber as finalidades sociais, e por isso aparece como “culto”, enquanto o restante, as massas, que somente manejam os bens de produção sem os possuir e só escassamente absorvem os bens de consumo, adquirem a enganosa aparência de parte “inculta” da sociedade.

Um dado interessante lembrado por Vieira Pinto (1979), é que em meio a um universo de especulações, o ser humano “revela-se incapaz de fazer o objetivismo histórico da cultura”, assim, “a multiplicidade dos produtos culturais desnorteia a visão do pesquisador”, conduzindo-o a explicações ingênuas, o qual não conduz à compreensão da natureza da cultura. Assim,


171 A cultura aparece, no estado atual, como um infinito complexo de conhecimentos científicos, de criações artísticas, de operações técnicas, de fabricação de objetos, máquinas, artefatos e mil outros produtos da inteligência humana, e não sabe como unificar todo esse mundo de entidades subjetivas umas e objetivas outras, de modo a dar a explicação coerente que una num ponto de vista esclarecedor toda esta extrema e diversificada multiplicidade. É esta definição perseguida por Dewey, perdida na multiplicidade de fatores, ressaltada como explicação ingênua, por Vieira Pinto (1979). Este, a considera um caminho impraticável, para conduzir à explicação racional do fenômeno da cultura, e indica o ponto de vista genético, ligado a uma filosofia existencial e servido pela lógica dialética, para que se descubra a verdadeira realidade da cultura e seu fundamento no processo de produção. Em Dewey84 (1970, p.100), a palavra cultura é definida por todo o “complexo de condições que regula os termos em que os seres humanos se associam para a vida em comum”. Ditado desta forma, o entendimento da cultura em Dewey, não conduz a compreensão da natureza da cultura, quando compreendida como coetânea ao processo de hominização e firmada ao processo de produção. Este, ao falar de cultura, dá ênfase as atividades funcionais do ser humano independente de qual seja a constituição inata da natureza humana. As atividades funcionais são “aquelas que respondem pelas instituições e regras e, em suma, moldam o padrão destas últimas, são criadas por todo o corpo de ocupações, interesses habilidades, crenças que constituem uma dada cultura”. (DEWEY, 1970, p.101). Para exemplificar a definição de cultura no âmbito da complexidade, Dewey85 (1970) aponta “a idéia de cultura que se fez familiar pelo trabalho dos antropólogos, aponta para a conclusão que, sejam quais forem os elementos constitutivos nativos da natureza humana, a cultura de um período e grupo é a influência determinante de seu arranjo e organização”. Aproximando-se cada vez mais da denominação da cultura no estado atual como um complexo de entidades, Dewey (1970, p.115), nos recorda que “o estado de cultura é o estado de interação de muitos fatores, os principais dos quais são a lei e a política, a indústria e o comércio, as artes de expressão e a comunicação, e de moral, ou dos valores que os homens prezam e dos modos como os estimam”, e por fim o sistema de idéias gerais utilizados pelos

84 85

DEWEY, 1970, p. 100. Ibid., p.111


172 homens para justificar e criticar as condições fundamentais sob que vivem – a sua filosofia social. Tal definição, portanto é aqui apresentada apenas por causa da ênfase que ela põe à visão de cultura, perdida na multiplicidade de fatores, ressaltada por Vieira Pinto (1979). Este, a considera um caminho impraticável, para conduzir à explicação racional do fenômeno da cultura, e indica o ponto de vista genético, ligado a uma filosofia existencial e servido pela lógica dialética, para que se descubra a verdadeira realidade da cultura e seu fundamento no processo de produção. Dessa forma, a cultura não pode ser criação de um mundo de idéias, por ser uma realização do homem coetânea à realização de si mesmo pela ação produtiva. Assim, “o homem produz a cultura por uma necessidade existencial para se apropriar dela, pois é por meio dela que chega a postular as finalidades de sua ação”. (VIEIRA PINTO: 1979, p.126) Porém, no decurso histórico observa-se que em certa fase, a cultura surge separada ao deixar de ser um bem geral consumível e produtivo ao alcance de todos os homens, em igualdade, para se tornar privilégio de uso de alguns. Os bens culturais sofrem uma divisão, por um lado os que representam o aspecto de produção da cultura fica em poder de grupos minoritários da coletividade, resultando para estes uma acumulação de riquezas. E por outro lado, os bens que corporificam as forças produtivas põem a seu serviço outros grupos sociais, que formarão a grande maioria das comunidades. E nas palavras de Vieira Pinto (1979, p.128): Quando tal divisão se dá, a cultura deixa de ser um bem igualitário nos dois aspectos e o conhecimento, particularmente as técnicas de fabricação, assim como os instrumentos de operação sobre a realidade, entre os quais se contém particularmente as próprias mãos humanas, ficam vinculados ao ato de produzir bens de consumo, que não serão consumidos pelos que os produzem diretamente, mas apropriados pelo outro grupo, minoritário, que por possuir a propriedade da cultura no aspecto produtivo enriquece-se espiritualmente ainda mais ao acumulá-la no aspecto consuntivo.

Torna-se evidente que: O grupo dos que trabalham e quase nada consomem da cultura que especializando-se no manejo dos instrumentos materiais, das técnicas produtivas,


173 perde contato com o outro lado da cultura, as idéias, o saber, a ciência, que ficam na cabeça dos privilegiados, enquanto as ferramentas ficam nas mãos dos trabalhadores. Os que detém a exclusividade dos bens ideais da cultura, porque já possuem a propriedade, também exclusiva, dos instrumentos materiais da produção, apropriam-se do poder de ditar a destinação do concebido, de definir a finalidade das idéias.(VIEIRA PINTO; 1979, p. 129).

O pensar humano e a atividade do perguntar Após esse passeio sobre a definição de cultura em Vieira Pinto, que é crucial no entendimento de nossas discussões, voltamos ao cerne da questão, no caminho da compreensão da ação transformadora. No que se refere a esta compreensão, identificamos que na divisão histórica do trabalho nas formas intelectual e manual, ao se projetar objetivamente o trabalho manual para a classe trabalhadora, esta permanece incapacitada para engendrar idéias porque se acha privada de definir a finalidade, de dar a destinação das coisas que produz86. Por essa razão, se as classes trabalhadoras não têm autonomia de criar por si mesmas as idéias que consideram adequadas para exprimir sua percepção de si, da natureza e de sua situação social, suas ações não poderão ser transformadoras. Torna-se evidente que, mesmo que o ser humano possua a capacidade do pensar, se este pensar não tiver o caráter reflexivo, embora exerça um pensar constante e em natural sentido reivindicatório, será necessário o indagar, o perguntar, o refletir no sentido de ver reconhecidas como expressão da cultura as idéias que elaboram. Ao refletir o homem pergunta, e a sua pergunta é uma ação, pois a pergunta supõe a ignorância daquilo que se precisa saber, daquilo que se desconhece e precisa conhecer. O homem pergunta porque ignora e sabe que ignora. Em Corbisier (1986, p.127): Na origem, na raiz do perguntar, encontramos, portanto, a ruptura, a cisão, a contradição. Não sei, preciso saber e porque sei que não sei, pergunto, na expectativa de que a resposta possa trazer-me o conhecimento que não tenho e preciso ter. A pergunta, conseqüentemente, implica a resposta, isto é, o seu contrário, a resposta sendo o contrário da pergunta. A resposta porém, não é estranha, ou exterior à pergunta, mas é o conteúdo da própria pergunta, que nela se encontra como possibilidade e expectativa. A resposta está na pergunta como sentido e razão de ser, pois não teria sentido perguntar por perguntar, sem esperar resposta. E também não teria sentido formular perguntas que não podem ter respostas. 86

Vieira Pinto (1979), no Cap. VI Teoria da Cultura ressalta as idéias como formas de produção.


174

Diante de um propósito a realizar o homem utiliza sua consciência, pensa e pergunta sobre sua realidade, e como homem social na sua prática age coletivamente com a finalidade da utilidade social transformadora. Ao perguntar o homem estabelece a comunicação entre os homens. De indivíduos isolados ao agir coletivo para a transformação da realidade social. Pela ação do homem na natureza a cultura é produzida, e tem uma história. E no processo histórico a cultura vai assumindo formas e modalidades variadas. No que se refere a ação do homem modificando a realidade de seu contexto, expressamos a seguir duas impressões para entendimento do assunto em foco, com contribuição em Freire e na cultura do povo grego, respectivamente. No enfrentamento com a natureza, Freire (1994, p.132) evidencia que o homem atua sobre esta pela necessidade de sobrevivência, e pela sua ação a transforma. Ao sentir sede o homem tem necessidade de água, então ele faz um poço para suprir esta necessidade. Como ele fez o poço? De onde partiu a idéia da construção do poço? Ele o fez na medida em que, relacionando-se com o mundo fez dele objeto de seu conhecimento. Submetendo-o pelo trabalho a um processo de transformação. Nesta relação do homem com a natureza, há o questionar, o agir, embora sejam relações de dominação sobre a natureza. No mundo do refletir e do agir dos gregos, conforme as epopéias, dos discursos narrativos de Homero e Hesíodo87, identifica-se a cultura do mito que dá possibilidade ao homem de viver e de lutar contra tudo o que lhe é adverso. Desafiam o mundo natural com a produção do sobrenatural, a fim do enfrentamento com a realidade de seu contexto. Na unidade dinâmica do mundo grego revela-se a contradição que em Lara (1989, p.29), reside na não permissão dos mitos para a conceituação e a vivência da história, como processo humano e criativo, mas, sem os mitos os grupos humanos sucumbiriam. Por outro lado, “os mitos traçavam caminhos de existência significativa e caminhos de comportamentos válidos”. Pelo mito “sente-se pulsar o questionamento que, mais tarde, a razão explicitará melhor”. Nesta perspectiva, a virada cultural dada pela ação do povo grego na transformação da realidade vai ocorrer dois séculos após, ou seja, V e IV a.C., quando a partir do contexto do sócio-político, conforme Lara (1989, p.31), começa a imperar o discurso personalizante pela elegia, pela lírica e pela comédia o caráter laico e humanista da cultura vai se impondo, a partir 87

Ler a Odisséia e a Ilíada em Homero e Os trabalhos e os dias em Hesíodo.


175 de situações concretas da vida, em que explicitam-se sentimentos pessoais, cantam-se os prazeres do sensível e do amor. Um aspecto que evidenciamos na virada cultural dada pela ação do povo grego na transformação da realidade é que, por serem relações entre os homens e não sobre a natureza, apresenta-se então o questionar, o perguntar nas relações de aprendizado entre os sujeitos. Para que o homem através de suas ações transforme a realidade social é necessário que aja coletivamente, e não como indivíduos isolados. A ação comunicativa entre os humanos, dada pelo questionar, pelo perguntar, se torna um eixo primordial na crença de que o mundo humano possa superar sua situação de prisioneiros do mundo coisificado. Ao perguntar, ao indagar o homem estabelece a comunicação entre os homens, que parte da indagação e da pergunta a si mesmo. Daí quanto mais se pergunta mais intensa é a comunicação e o diálogo entre os homens, pois, a curiosidade em torno do objeto do conhecimento não se esgota. A educação deve estar fundada no processo de interação entre os homens, e em sua interação com a realidade. Nessa perspectiva é necessário sentir e perceber que a prática humana exerce uma ação transformadora no processo histórico da realidade. Nas relações de educação entre os homens, para que a ação entre os sujeitos seja transformadora, utiliza-se a palavra pelo método do diálogo, a educação não se restringe ao processo de produção, transmissão e reprodução do conhecimento, mas no sentido produção ou reprodução, conforme Sales (1999, p.112), de modos de sentir, pensar e agir. Ressaltando-se o modo de pensar do homem, Gramsci (1978), procura a vinculação entre o pensar como senso comum e o pensar filosófico como senso crítico, não há um desprezo ao senso comum, porém uma reflexão sobre. Ao refletir sobre o senso comum o sujeito pensa a partir do prático concreto eleva a uma ordem intelectual teórica para depois retornar ao já pensado, ou seja a realidade refletida. A crítica ao senso comum é válida no sentido de não cair no praticismo, tal qual o ponto de vista do pragmatismo. Em Vásquez (1977, p.211), o praticismo do pragmatismo se põe em evidência, principalmente, em sua concepção da verdade; do fato de nosso conhecimento estar vinculado a necessidades práticas, o pragmatismo infere que o verdadeiro se reduz ao útil, assim, o pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o que acaba por dissolver o teórico no útil.


176 A palavra pragmatismo refere-se à qualidade do que é pragmático, voltado para a ação. Pragma do grego, quer dizer prática, enquanto saber provindo da experiência. A pragmática é dada pela ação humana movida pela inteligência, a fim de adaptar nossos objetivos e desejos à situação em que vivemos. Para o marxismo, conforme, Vásquez (1977, p.213), a utilidade não é colocada num plano subjetivo e estritamente egoísta, mas sim da utilidade social. Assim, o conhecimento verdadeiro é útil na medida em que com base nele, o homem pode transformar a realidade. O conhecimento é útil na medida em que é verdadeiro, e não inversamente, verdadeiro porque útil, como afirma o pragmatismo. A diferença entre o marxismo e o pragmatismo no que concerne ao modo de conceber a verdade determina, por sua vez, seus diferentes critérios de verdade. Como lembra Vásquez (1977, p.213): O pragmatismo e o marxismo dão um significado muito diferente à prática: num caso, ação subjetiva do indivíduo destinada a satisfazer seus interesses; no outro, ação material, objetiva, transformadora, que corresponde a interesses sociais e que, considerado do ponto de vista histórico-social, não é apenas produção de uma realidade material, mas sim a criação e desenvolvimento incessantes da realidade humanas. A ação transformadora pela educação popular Historicamente a educação faz parte da vida de todos os povos e sociedades se entendida como criação humana, e como apropriação da cultura. No processo da aprendizagem a educação realiza-se em qualquer lugar e qualquer pessoa. Ao possuir a capacidade de aprender, a pessoa pode realizar a educação pela pergunta, pela reflexão, pela sistematização agindo como profissional ou como especialista em educação para a transformação ou adaptação da realidade social. Para Melo Neto (2004, p.121), no trato com a natureza material e suas lutas para sobrevivência, “o humano descobriu a sua capacidade de aprender, estabelecendo nesse momento o fato pedagógico, isto é, a condição de aprendizagem que traz consigo”. Assim, ao tempo em que o homem descobre que aprende, funda-se também a arte do ensinar. O aprendizado ocorre a partir de teorias pedagógicas, como campo específico de atuação dos pedagogos. Utiliza-se métodos e técnicas mais apropriadas ao bom aprendizado. Essas técnicas ajudarão a pensar agir e descrever o mundo com base nas relações humanas e o próprio mundo, como expressão dialética de um movimento de análises e novas sínteses que externarão, possivelmente, através da


177 história e da crítica, os anseios gerais ou locais das transformações necessárias. (MELO NETO, 2004, p. 122). A pergunta é um recurso utilizado como técnica para o aprendizado desde os gregos. Destacamos em Sócrates, o questionamento das coisas humanas com os cidadãos atenienses, e nos sofistas o perguntar, limitado a arte do bem falar. Em Sócrates a vivência com os cidadãos atenienses no questionamento das coisas humanas procuravase saber o que é a piedade, a impiedade, o belo, o feio, o justo, o injusto, a sabedoria, a coragem, um homem virtuoso. Para Sócrates estes questionamentos devem ser buscados na filosofia. Para Jaeger (2001, p.522), Sócrates “era um grande conhecedor de homens, cujas perguntas certeiras serviam de pedra de toque para descobrir todos os talentos e todas as forças latentes, e a quem iam pedir conselho, para a educação dos filhos, os cidadãos mais respeitados”. Ao contrário de Sócrates, os sofistas eram mestres ambulantes, que ensinavam pelo dinheiro e versavam suas disciplinas sobre a virtude do cidadão grego, restrito a habilidade da retórica, da argumentação da arte do bem falar. Dirigem-se a um pequeno grupo de cidadãos, filhos de aristocratas e desejosos pela instrução. Na busca da compreensão da Educação Popular, entendemos que o perguntar socrático aproxima-se mais desta compreensão do que a instrução dos sofistas. Em Rodrigues (1999, p.22), “o objeto da Educação Popular pode encontrar-se em qualquer lugar onde se reúnam regularmente as pessoas. O que a caracteriza não é um geografia limitada e restritiva, mas a interação transformadora entre seus participantes e que aconteça sistematicamente em qualquer local onde costumam se reunir”. Ainda em Rodrigues (1999), “além do logos, o objeto específico de pesquisa e vivência da Educação Popular, encontra-se na práxis, em processos concretos em propostas reais de formação, de vivências e de relações interpessoais inovadoras, entre indivíduos envolvidos em experiências empíricas e observáveis, entre pessoas que convivem em grupos e na escola”. Para que o popular não seja redundante a uma manifestação populista, ou a uma educação demagógica, a ação popular deve ser acionada pela necessidade do conhecimento da direção em que está apontando o algo que se postula popular. Para Melo Neto (2004, p.158), “é preciso saber quem está sendo beneficiado com aquele tipo de ação. Algo é popular se tem origem nas postulações dos setores sociais majoritários da sociedade ou de setores comprometidos com suas lutas, exigindo-se que as medidas a serem tomadas beneficiem essas maiorias”.


178 Ao entendermos a Educação Popular88 como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, com metodologias e técnicas incentivadoras da participação das pessoas e estimuladora das transformações sociais, percebe-se que esta compreensão, está longe de ser um processo de reprodução do conhecimento. Em Freire (1983, p.81), a educação é uma situação gnosiológica, ao contrário de uma narrativa verbalista, a qual não possibilita aos educandos a superação do domínio da mera “doxa” e o acesso ao “logos”. Sobre o “doxa” e o “logos”, lembramos Gramsci (1978), que distingue o senso comum do senso crítico, como o pensar fragmentário e o pensar crítico ou filosófico. Onde ele aponta que a filosofia não pode ser considerada como uma especialidade restrita a círculos de filósofos, pois, “popularmente todos são filósofos, na medida em que todos pensam, ainda que fragmentariamente” (GRAMSCI: 1978, p.91). Assim, deve-se ter clareza da distinção senso comum, como pensar fragmentário e do pensar reflexivo como visão de conjunto. Por essa razão, todas as pessoas são educadoras, por terem a capacidade do aprendizado. Para Freire, a tarefa do educador, então é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza e não a de dissertar sobre ele. A educação é dada como uma situação gnosiológica. É a problematização do mundo do trabalho, das obras, dos produtos, das idéias, das convicções, das aspirações, dos mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo da cultura e da história, que resultando das relações homem-mundo, condiciona os próprios homens seus criadores. (FREIRE, 1983, p. 83).

Paulo Freire (1983) fala de uma educação problematizadora, isto é, uma educação que coloca problemas, ao invés de resolvê-los; que enfatiza, não a possibilidade de solução de problemas, permitindo uma boa adaptação do homem ao seu ambiente, isto é, às condições sociais vigentes, mas, sim a importância de questionar essa realidade através da identificação de seus problemas e contradições, da discussão crítica deles, de maneira que torne o homem capaz de entender suas determinações, criticar sua vida e mudá-la através de suas ações. A educação é útil, quando tem por objetivo aquilo que tem uso e a utilidade social como fim de seus atos. Entre o utilitário e o útil, a diferença vai residir no caráter do uso, entre o particular e o social. Entendemos que embora haja campos teóricos que não contribuam para a interação da ação transformadora e a educação popular, temos como verdadeiro no trato sobre a natureza e nas relações com os outros homens, a ação do homem como transformadora e social e útil, partindo da capacidade do aprender do ser humano como necessidade existencial. 88

Este conceito é elaborado, a partir de discussões realizadas na disciplina Teoria da Educação Popular (2004), ministrada pelo professor doutor José Francisco de Melo Neto, com a participação de alunos e alunas da 2ª Turma de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB.


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REFERÊNCIAS CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo I. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986 ______, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo II- Parte Primeira-Filosofia Grega. São Paulo: Civilização Brasileira, 1983 DEWEY, John. Liberalismo, Liberdade e Cultura. São Paulo: Nacional/USP, 1970. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ______. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MELO NETO, José Francisco de. Extensão Universitária, Autogestão e Educação Popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. RODRIGUES, L. D. Como se conceitua Educação Popular. In SCOCUGLIA, A. C. e MELO NETO, J. C. (orgs). Educação Popular, outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. ROSSI, Wagner . Caminhos da Educação Socialista. Rio de Janeiro: Moraes, 1982. SALES, I. C. Educação Popular: uma perspectiva, um modo de atuar (alimentando um debate)... In SCOCUGLIA, A. C. e MELO NETO, J. C. (orgs). Educação Popular, outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.


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PROCESSOS DE EMPODERAMENTO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO POPULAR

Não há ação empoderante neutra. Ela sempre tem um ponto de partida Cristhiane Amâncio

Iolanda Oliveira

Este artigo discute o conceito de empoderamento em processos educacionais com o objetivo de analisar componentes que favorecem os processos de empoderamento na educação popular. Para desenvolver tais pontos, o artigo traça um breve panorama de variantes de modalidades de empoderamento e dos argumentos construídos em torno destas. Em seguida, apresentamos algumas evidências de no âmbito da educação popular desenvolvem-se processos que diferem das modalidades de empoderamento do Estado, associado a um movimento amplo e homogêneo de caráter "neoliberal" na transferência de papeis e responsabilidades para grupos da sociedade, num discurso suficientemente elástico para obter o apoio das mais variadas matizes ideológicas. Para demonstrar a relevância efetiva da problemática da palavra empowerment que remonta o ano de 1648, consideramos importante revisitar e discutir as origens sociais deste termo que na língua inglesa significa "the process of giving somebody the power of act" (Oxford Advanced Learner's Dictionary, 1995) que se traduz com o processo de dar a alguém o poder de agir. Na língua portuguesa, não encontramos esse termo, o que dificulta a tradução da palavra para o nosso idioma, aspecto este dispensável que justifica o múltiplo aspecto dado a esta categoria.


181 Uma vez que o conceito inicial de empowerment tem mais de três séculos, essa expressão como esclarece Carvalho (2004, p.3) foi incorporada “na lutas pelos direitos civis, no movimento feminista e na ideologia da ação social presentes nas sociedades dos países desenvolvidos na segunda metade do século XX”. Esse termo complementa o autor na década de 70 passa a ser utilizado pelos “movimentos de auto-ajuda, nos 80, pela psicologia comunitária e na década de 90, pelos movimentos que buscam afirmar o direito da cidadania sobre distintas esferas da vida social” (Ibid. p.4) No caso brasileiro, essa expressão emerge com força no movimento feminista em que o empoderamento compreende a alteração radical dos processos e. estruturas que reduzem a posição de subordinada das mulheres como gênero. Logo, um processo de empoderamento envolve tanto componentes individuais como coletivos. Experiências no interior dos movimentos sociais têm mostrado que processos de participação possibilitam processos de empoderamento que diferem daquele aplicado, por exemplo, nas empresas em que não se assume uma forma de gestão participativa ou partilhada entre os membros. Na empresa o empowerment é apenas uma via que permite melhorar a qualidade, a produtividade e, consequentemente, o serviço prestado aos clientes. No fundo, trata-se de um processo de empowerment que consiste na delegação de responsabilidade conferindo autonomia aos funcionários de modo que o processo requer alterações comportamentais que afetam os gerentes e os funcionários. Neste caso, a ênfase se desloca para mudança de mentalidade individual, e conseqüentemente na forma que o indivíduo se relaciona com o contexto, ou seja, como um “sentimento de maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do pertencimento a distintos grupos (CARVALHO, 2004, p.4)”. Aspecto esse que se revela compatível com aplicação deste termo no processo de gestão empresarial onde quem tem poder delega-o, baseado na confiança. Diferente da visão processada na empresa o empoderamento nos movimentos sociais passa a definido como um mecanismo de autonomia das pessoas, organizações e/ou comunidades inseridas em processos coletivos e sociais. A tônica segundo Vasconcelos (2004) ocorre em termos do “aumento do poder e da autonomia pessoal e coletiva de


182 indivíduos e grupos sociais submetidos a relações de opressão, discriminação e dominação social”. Essa é uma concepção que encontra intercessão no campo da educação popular em que o tema do empoderamento tem sido objeto de inúmeras discussões. No entanto, ainda são poucos os estudos que se debruçam sobre os desafios, limites e perspectivas deste processo. Sob a influência de Paulo Freire2, os teóricos do empoderamento comunitário3 conforme Carvalho (2004) vem preconizando “a efetivação de um modelo pedagógico que assuma a educação como uma prática da liberdade”. O empoderamento transforma-se, neste contexto, em um ato político libertador que se contrapõe à concepção bancária de educação. O autor esclarece ainda que o empowerment education, se torna um projeto, que poderia ser igualmente denominado de “educação popular” e/ou “educação para a transformação”. Considerando que esta perspectiva pedagógica, toma os indivíduos como cidadãos portadores de direitos e do “direito a ter direitos”, distanciando-se do projeto behaviorista que tende a representar os marginalizados como pessoas dependentes que devem ser ajudadas, socializadas e treinadas. Em que pesem educação ter sido construída num terreno fértil das utopias de independência, autonomia e libertação, existem muitas intervenções realizadas neste campo que evidenciam perspectivas e os limites deste processo em sua dimensão coletiva. Para o educador Paulo Freire (1993, p.96) “não há prática educativa, como de resto nenhuma prática que escape a limites. (...) ideológicos, epistemológicos, culturais”. Nestes termos Freire busca clarificar que uma perspectiva explicitamente crítica, progressista tem por coerência engendrar, estimular e favorecer.

2

Paulo Reglus Neves Freire um dos pensadores notáveis que influenciou o movimento chamado pedagogia crítica.

3 Empoderamento comunitário é aquele onde uma determinada organização desenvolve um trabalho prático e teórico sobre empoderamento.


183 estruturas leves, disponíveis à mudança, descentralizadas. (...) com as estruturas pesadas, de poder centralizado (...) não há como pensar em participação popular (...) A democracia demanda estruturas democratizantes e não estruturas inibidoras de presença participativa da sociedade civil no comando da res-pública. (Ibid, p. 75)

Nestes termos um projeto de transformação demanda não discursos vazios contra a pobreza, mas uma “postura ativa de enfrentamento das determinações macro e microssociais da iniqüidade social, colocando em questão diferenciais de poder entre populações e entre homens e mulheres.” (CARVALHO, 2004, p.12) Nessa perspectiva, podemos estabelecer que o empoderamento na perspectiva a educação popular é visto apenas como instrumental capaz de fortalecer as interações, comunicação e as relações em seu caráter dialético e contraditório, que os permitem ligar os fios com as relações de poder na quais os agentes se envolvem em coletividades sociais. Assim os processos de empoderamento na educação popular são constituídos via ressignificação e repolitização do sentido deste termo cujas ações voltam-se para mudança concreta dos fatores sociais e estruturais em que as classes populares encontram-se inseridas. Este aspecto permite-nos definir, em termos genéricos, o empoderamento como um processo, e um resultado, de ações concretas nos diferentes âmbitos da educação popular, ou seja, processo indica a ação de avançar, via um conjunto seqüencial e peculiar de ações e acontecimentos que geram mudanças. Definição esta, que difere das visões de empoderamento, que vem de forma crescente assumindo uma perspectiva formal de programas do sistema oficial e das empresas privadas na área de gestão empresarial. Para demarcar bem essa diferença retomemos algumas idéias de Paulo Freire acercado do poder e da liberdade. Ao relacionar esses termos o educador busca demonstrar que a atitude opressora se impregna em opressores e oprimidos, busca revelar a configuração do uso e abuso do poder não apenas em suas estruturas, mas em sua materialização.


184 Trata não da negação de que há estruturas objetivas promotoras de poder, mas de uma recuperação da consciência, ou melhor, do olhar da esfera da subjetividade em que o poder se materializa em formas concretas das práticas cotidianas.

Ao referir-se a

variantes do poder político e dos argumentos em torno deste, Freire (2003, p. 161) aponta que: De forma alguma, há intenção de diminuir a importância e a eficácia do poder de Estado. Creio simplesmente que, de tanto se insistir em seu papel, e em seu papel exclusivo, corre-se o risco de não se dar conta de todos os mecanismos e efeitos de poder que não passam diretamente pelos aparelhos de Estado, que muitas vezes o sustentam, reproduzem e elevam sua eficácia ao máximo.

Freire propõe ações concretas de combate ao autoritarismo (poder) e práticas da liberdade “que condenem o cinismo do discurso (neoliberal) e a exploração da força de trabalho do ser humano, as quais se sabem afrontadas na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe ( FREIRE, 1996, p.17). Assim, esse é um dos elementos que distancia a concepção de educação popular das concepções expressas na noção de empowerment, concebida, por exemplo, nas políticas e programas de corte neoliberal, com a ideologia política da responsabilidade pessoal para sugerir que as pessoas façam uso de recursos próprios e da comunidade antes de recorrer às instituições estatais. Nessa perspectiva, o liberalismo econômico, por sua vez, introduz mecanismos de mercado e transfere poderes administrativos e financeiros à comunidade escolar por meio de estruturas de gestão colegiadas e representativas. Segundo Beckman (1993), através dos argumentos desta proposta, é possível identificar a crença de que é necessário desestatizar a escola pública e submetê-la ao controle da comunidade, reduzindo, inversamente, o poder dos vários agentes do Estado sobre a instituição educacional. Essa política da descentralização reflete a noção de empoderamento associado à criação de estruturas independentes e autogeridas, ou seja, a capacidade de determinado grupo ou indivíduo de controlar seu próprio ambiente e uma disposição psicológica compatível com o autogoverno, o que implica uma série de valores positivos pela sociedade neoliberal.


185 Isso difere da abordagem educacional pregada por Paulo Freire em que ele desenvolve as bases de uma educação e de uma pedagogia política de raiz democrática e emancipatória que propiciasse ao educando a leitura da palavra, através da leitura crítica do mundo, em que a criticidade fosse, conscientemente, construída. Desse modo, vê-se que a alfabetização, para o autor, ganha um profundo significado de mudança, dando sentido novo ao alfabetizado, e isso pode ser captado quando ele afirma que: “A alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novos caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer a sua palavra.” (FREIRE, 2005, p.21). Portanto, para Paulo Freire (2002 p. 194) temos muito espaço fora do sistema escolar, “mas podemos criar espaços dentro dele, a fim de ocupar esse espaço” o qual não é estático, mas dinâmico e em transformação contínua. Abre-se a possibilidade para a superação da cultura silenciosa, que é uma forma de resistir. O conhecimento desse silêncio (por exemplo, dos alfabetizandos) mostra que os educadores que atuam em diferentes sistemas escolares têm um árduo papel para vencer o silêncio e devolver aos homens e às mulheres de diferentes gerações a expressão de representação concreta de suas idéias, valores, concepções e esperanças sem aceitar as coisas como são e deter-se ante os obstáculos.

Conclusão

O que me parece mais importante como resultado deste estudo foi constatar que a expressão empoderamento pode encobrir as fragilidades do sistema e criar um conjunto ilusório de ações/estratégias que parece apontar no sentido de que desencadeia uma ação transformadora. O reforço a um outro conceito de educação surge, como vimos acima, nas pedagogias libertadoras, que vem associada à tomada de consciência, à mobilização coletiva e à radicalização da democracia. O mais importante, nestas perspectivas, é


186 garantir a mudança efetiva das estruturas de poder no interior das escolas, quebrando os padrões hierárquicos e autoritários da relação, posto que a perspectiva de empoderamento suscitada leve apenas à desconcentração de poder dentro das estruturas burocráticas existentes. Em que pesem as expectativas criadas em torno dessas propostas, o fato é que, na prática, a efetiva reversão de padrões prévios de segregação racial e de classes no interior do sistema educacional tem sido fruto da pressão e radicalização de grupos e minorias étnicas insatisfeitos com o sistema público. Assim, acredito que é assustador constatar que os atuais desejos de efetiva reversão de padrões prévios pouco difere daqueles de períodos anteriores, em que o problema do acesso à educação era inalterado. Tal aspecto serve como referência para pensar o desejo como elemento estruturador do projeto de educação popular que deve nos mover a uma educação pública, porque a própria educação se constitui em práxis social e, sociologicamente, tem características e dinâmicas específicas, e sua principal proposição é compor a base do Estado, sendo essa uma condição sine qua non da sua existência.

Referências CARVALHO, Sérgio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no Projeto de promoção à saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(4): 1088-1095, julago, 2004. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia - saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ____. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 9a. São Paulo: Cortez, 2002. ____. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993. ____. Pedagogia do oprimido. Editora Paz e Terra 1970, 23ª Edição, 1996.


187 VASCONCELOS, E M . O empoderamento na construção da cidadania: a clínica, a moradia e o trabalho. Boletim da Rede de Educação Popular e Saúde, Recife, n. 7, p. 23, dez. 2004.


188

CULTURA E EDUCAÇÃO POPULAR: a apropriação dos entes da cultura Maria das Graças de Almeida Baptista

O presente trabalho tem por objetivo abordar a apropriação do produto da cultura, a partir da relação trabalho-educação, destacando-se a forma que o trabalho, enquanto categoria filosófica, passou a assumir ao longo da história da humanidade e buscando-se responder a seguinte questão: como reconstruir essa categoria de forma que a educação possa vir a ser entendida pela escola, pelos professores, enquanto apropriação e produção da cultura, apropriação do trabalho humano, em uma escola unitária? A educação popular, especialmente na escola, depende que essa e outras questões sejam respondidas. Para o desenvolvimento desse trabalho e, sem a pretensão de esgotar a discussão sobre o mesmo, toma-se como fundamentação teórica o materialismo histórico e dialético em Marx, enquanto concepção que compreende os fenômenos como a cultura, o trabalho, enfim, o processo de apropriação dos bens materiais e espirituais como construção histórica, como atividade racional do homem, em constante movimento, perpassado que está pela contradição. Nesse sentido, parte-se do pressuposto que a apropriação do produto da cultura em educação popular encontra-se mediatizada pelo trabalho, portanto, partir-se-á dessa categoria e, nesse caminho, praxis, cultura e apropriação serão incluídas de forma a melhor explicitá-lo. Salienta-se ainda que, ao apresentar essas categorias, buscar-se-á destacar a especificidade de cada uma delas e mostrar como essas categorias estão dialética e necessariamente interligadas. Em relação à categoria trabalho, pretende-se situá-la enquanto fenômeno que explica o processo de transformação da natureza através da ação humana e de apropriação (ou não) do resultado dessa ação. Em relação à categoria praxis, buscar-se-á explicitá-la enquanto fenômeno que melhor define a ação humana consciente sobre a realidade. Uma prática de elevação da condição humana, ou seja, de emancipação de toda a capacidade criadora humana. Em relação à categoria cultura, buscar-se-á analisá-la como mediação entre a


189 ação e a idéia humanas, compreendendo-a não como produto das idéias, mas enquanto fenômeno que tem como base o processo de transformação da natureza, o processo de produção, enfim, o trabalho. Enfim, em relação à categoria apropriação, buscar-se-á explicá-la enquanto ação efetiva do homem sobre a realidade concreta que, ao objetivar-se, gera novas funções, novas necessidades, novas faculdades na atividade e na consciência humana, enfim, novas idéias, novas ações, novas idéias, em um eterno devenir. Portanto, a importância de compreender-se a dinâmica e a importância desse processo para o desenvolvimento de uma educação essencialmente popular.

Trabalho de acordo com o princípio fundamental do materialismo histórico – dizia Plekhanov – a história é obra dos homens (Vázquez, 1968, p. 38).

O trabalho, a vida produtiva, é a vida da espécie. É através do trabalho que os homens agem sobre o mundo objetivo, transformando-o e transformando a si mesmo, e se situam como sujeito do conhecimento e da história. O homem, tendo em vista a sua própria natureza, busca transformar a natureza de forma a torná-la menos hostil à sobrevivência da espécie humana. Nesse processo o homem foi criando instrumentos, buscando servir-se deles para atingir determinados objetivos, ou seja, ele foi dando aos objetos o status de instrumento. Além desse aspecto, a cada novo instrumento criado, novos instrumentos foram sendo necessários, ou os próprios instrumentos já criados foram adquirindo uma nova função, uma função diferente da função para a qual haviam sido criados89. Nesse processo, o homem não só transforma a natureza, mas transforma a si mesmo. Nesse sentido, o trabalho se evidencia pelo seu caráter livre e consciente, ou seja, ele deve significar uma ação consciente, objetiva e intencional do homem sobre os objetos. No entanto, essa significação não condiz com a perspectiva com a qual, hoje, o trabalhador compreende e se relaciona com essa atividade, o que implica necessariamente em questionar-se

89 Por outro lado, o trabalho é um processo de consumo, tanto por consumir produtos para gerar outros produtos, como por utilizar-se de produtos enquanto meios de produção de novos produtos.


190 o por quê dessa mudança e por que as pessoas se tornaram mais criaturas do que criadores do produto de seu trabalho, em que, segundo Marx (1996, p. 47), “a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado”. Responder a esse questionamento torna-se fundamental quando se aborda o tema educação, e mais especificamente a educação popular, considerando que a apropriação da cultura como processo de construção de novos sujeitos sociais implica em um processo de não passividade e de não subjugação frente ao conhecimento acumulado historicamente. No processo de trabalho, desde o seu primórdio, o homem torna-se capaz de produzir não apenas objetos materiais, mas de produzir a si mesmo e a outros homens, de produzir conhecimento, o que caracteriza a dimensão social do trabalho. Dessa forma, o homem, enquanto sujeito desse processo, constitui-se tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada. Segundo Melo Neto (2004), esse movimento torna a existência natural do homem a sua própria existência humana. A natureza, por sua vez, se torna humana para ele. A sociedade, como conseqüência, é expressão do produto da união entre a natureza e o homem, realizando um naturalismo no próprio homem e um humanismo na própria natureza (op. cit., p.70).

Não há, portanto, separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual. Quando o trabalhador, no processo de trabalho, transforma o objeto em matéria prima, imprime uma finalidade e objetiva satisfazer a uma necessidade. Essa ação é perpassada pelas condições sociais objetivas em que se realiza tal ação – trabalho. Melo Neto enfatiza que, o humano imprime sobre a natureza o seu desejo de realização. É capaz de realizar aquilo que anteriormente passara por sua consciência, sem, contudo, deixar de entender a anterioridade da realidade sobre a consciência. Estabelece-se nesse tipo de trabalho, uma intencionalidade (op. cit., p. 76).

Em determinado momento da história, especificamente com o surgimento da propriedade, o homem vai aos poucos se separando do processo de produção dos instrumentos necessários à transformação da natureza, ocorrendo a separação entre a atividade corporal e a atividade espiritual. Marx (1996, p. 44), em a Ideologia Alemã, destaca que, “a divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual” e define três formas de propriedade (op. cit., p. 29) que se diferenciam tendo em vista as diversas fases de desenvolvimento da divisão do


191 trabalho: a tribal (familial, patriarcal, coletiva e escravocrata), a divisão do trabalho ainda está pouco desenvolvida; na Antiguidade, a comunal e estatal (várias tribos formando uma cidade – por contrato ou por conquista –, privada coletiva, escravocrata, separação entre a cidade e o campo aumenta), a divisão do trabalho está mais desenvolvida. Ao lado e subordinada a essa começa a se formar a móvel e a imóvel (a propriedade coletiva perde espaço para a propriedade privada); na Idade Média, a feudal ou estamental (campo, estrutura hierárquica da posse da terra e vassalagem armada, príncipes, nobreza, clero e pequenos camponeses – servos –, escravos) e a propriedade corporativa (cidade, organização feudal dos ofícios, industrial e comercial, mestres, oficiais e aprendizes e plebe de trabalhadores assalariados), pequena divisão do trabalho. Nas sociedades capitalistas, com a afirmação da divisão social do trabalho, os homens vão perdendo o contato com o produto final de seu trabalho. Dessa forma, o trabalho, enquanto marca do homem sobre a terra, assim como, o produto derivado do trabalho, enquanto resultado de sua ação, deixam de ser vistos como parte de um mesmo processo, o processo de produção, a produção da atividade humana. A vida produtiva deixa de ser a vida da espécie. A esse respeito, Melo Neto (2004) enfatiza, a produção da atividade humana – o trabalho – se torna estranha a sim mesmo, ao homem e à natureza; e torna-se estranha tanto à consciência do homem como à possibilidade de realização da vida humana. Numa situação como essa, perde-se o significado de trabalho social como expressão genuína da vida comunal (op. cit., p. 69).

Nesse sentido, o trabalho torna-se alienado quando o objeto, o produto do trabalho, torna-se uma força independente e quando o próprio trabalho não pertence mais ao produtor. No trabalho alienado, o homem distancia-se do produto de seu trabalho, do ato de produção e dos outros homens, individualizando-se. Portanto, o trabalho alienado aliena o homem tanto de sua própria natureza humana (atividade vital), quanto de sua vida humana (relação com os outros). Nas sociedades capitalistas, além de distanciar-se do produto de seu trabalho, o trabalhador se perde no produto, torna-se escravo do próprio objeto, enfim, o trabalhador passa a ser dominado pelo produto, pelo capital, segundo Marx. O produto passa a gerar necessidades que devem ser satisfeitas pelo próprio produto. Além desse aspecto, nesse tipo de sociedade, a força de trabalho é tida como mercadoria e é negociada como tal. No entanto, é através do trabalho “que o homem humaniza os próprios sentidos” (op. cit., p. 81). O produto


192 do trabalho deve expressar a conclusão do processo do trabalho humano sobre a natureza e só terá sentido se satisfizer a uma necessidade humana, sua consciência formada com base nas relações sociais promovidas pelo trabalho se torna condição da natureza social do homem. Sua existência está condicionada e só tem sentido enquanto consciência social, portanto, condicionada e posta em existência pela sociedade (...) o trabalho se mantém como categoria fundante, mantendo a sua centralidade quando se busca a construção de um mundo humanizado (op. cit., p. 81).

Quando se reconhece a determinação econômica histórica, reconhecem-se as relações de dominação, de poder, de classe, e se busca superá-las não com pensamentos e atitudes idealistas, mas com uma teoria que permita desvelar essa dominação permitindo aos homens agirem de forma a unir a teoria à prática. O trabalho passa a ser compreendido enquanto expressão e produção de sua humanidade, enfim, enquanto ação do homem no mundo. Ação essa que também se circunscreve no âmbito da apropriação cultural. Nesse sentido, faz-se necessário analisar o conceito de praxis, como forma de distinguir a ação consciente do homem, da ação do homem comum, do homem prático que termina por traduzir-se em uma ação alienada.

Praxis atividade material do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo humano (...) atividade humana que produz objetos, sem que por outro lado essa atividade seja concebida com o caráter estritamente utilitário (Vázquez, 1968, p.3, 5).

Vázquez afirma que, “a praxis é a categoria central da filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua transformação. Tal filosofia não é outra senão o marxismo” (op. cit., p.5) É à luz da categoria da praxis que se devem abordar os problemas do conhecimento da história, da sociedade e do próprio ser, o homem comum e corrente é um ser social e histórico; ou seja, encontra-se imbricado numa rede de relações sociais e enraizado num determinado terreno histórico. Sua própria cotidianidade está condicionada histórica e socialmente, e o


193 mesmo se pode dizer da visão que tem da própria atividade prática. Sua consciência nutre-se igualmente de aquisições de toda espécie: idéias, valores, juízos e preconceitos, etc. Nunca se enfrenta um fato puro; ele está integrado numa determinada perspectiva ideológica, porque ele mesmo – com sua cotidianidade histórica e socialmente condicionada – encontra-se em certa situação histórica e social que engendra essa perspectiva (op. cit., p. 8).

Por outro lado, Kosik, ao analisar as diferentes modificações históricas a que foi submetido o conceito de praxis, destaca que, para a filosofia materialista, a praxis, enquanto conceito central, na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, com ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade (humana e não-humana, a realidade na sua totalidade). A praxis não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade (Kosik, 1989, p. 202).

O pressuposto gnosiológico do materialismo dialético é “a mediação trabalho/praxis dentro da qual ocorre a relação dinâmica sujeito-sujeito, sujeito-objeto, sujeito-mundo”. Na concreticidade, ressalta o autor, “a praxis é a ação consciente dos sujeitos que une a teoria, compreensão da realidade, à prática (trabalho criativo), transformação do mundo. Essa ação consciente tem como condição a transformação desses mesmos sujeitos” (apud Baptista, p. 13). Analisando a busca dessa ação consciente, que se daria através de uma filosofia da praxis, Gramsci tece as seguintes considerações: uma filosofia da praxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultura existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do ‘senso comum’ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que ‘todos’ são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de ‘todos’, mas de inovar e tornar ‘crítica’ uma atividade já existente) e, posteriormente, da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como as ‘culminâncias’ de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, do senso comum popular (1995, p. 18).

Segundo Gramsci, “o senso comum é um ‘amálgama’ de diversas ideologias tradicionais e da ideologia da classe dirigente que tem como traço fundamental o fato de ser uma concepção fragmentada, incoerente, inconseqüente” (apud Baptista, p. 64). Portanto, para que se dê uma verdadeira praxis humana é necessário abandonar e superar a consciência


194 comum construindo uma “consciência filosófica da praxis” (1968, p.11). Mas o que é uma concepção filosófica da praxis? E qual a sua importância para a educação? Vázquez destaca que, para o homem comum e corrente, as coisas apenas são e existem na medida em que satisfazem necessidades imediatas de sua vida cotidiana. O homem comum está preso à satisfação das necessidades básicas, o prático para ele corresponde à dimensão do prático-utilitário. o ponto de vista da consciência comum coincide como ponto de vista da produção capitalista e das teorias econômicas – como as dos economistas clássicos (...) o prático é o produtivo, e produtivo, por sua vez, é o que produz um novo valor ou mais-valia (...) esse homem comum e corrente não deixa de ter uma idéia da praxis, por mais limitada ou falsa que ela nos possa parecer (op. cit., p. 12, 14).

No entanto, continua Vázquez, o homem comum não compreende que esses seus atos práticos contribuem, para escrever a história humana – como processo de formação e auto-criação do homem – nem pode compreender até que grau a praxis necessita da teoria, ou até que ponto sua atividade prática se insere numa praxis humana social, o que faz com que seus atos individuais influam nos dos demais, assim como, por sua vez, os destes se reflitam em sua própria atividade (op. cit., p. 15).

Contudo, o homem comum não vive em um mundo a-teórico. Seu cotidiano encontrase condicionado historicamente, ou seja, sua consciência, e conseqüentemente seus atos (individuais), refletem a forma como sua consciência tem sido formada, ou seja, idéias, valores, juízos que determinam uma concepção de mundo apolítica que, em última instância, o afasta de uma praxis revolucionária. Em sua atitude natural, o homem comum e corrente mostra também certa idéia – por mais limitada e obscura que seja – da praxis; uma idéia a que continuará aferrado enquanto não sair da cotidianidade e ascender ao plano reflexivo que é o plano próprio, em sua forma mais elevada, da atitude filosófica (op. cit., p. 10-11).

Vázquez e Gramsci atribuem à filosofia da praxis a única filosofia (teoria) capaz de formar sujeitos conscientes e coletivos, a partir da análise histórica e dialética da ação humana sobre a realidade. Gramsci destaca que é através da filosofia da praxis que se pode trabalhar uma vasta camada de intelectuais, dando “personalidade ao amorfo elemento de massa”


195 (Gramsci, 1995, p. 71) e Vasquez enfatiza que, uma verdadeira significação dos atos e objetos só pode ser apreendida, por uma consciência que capte o conteúdo da praxis em sua totalidade como praxis histórica e social, na qual se apresentem e se integrem suas forma específicas (o trabalho, a arte, a política, a medicina, a educação, etc.), assim como suas manifestações particulares nas atividades dos indivíduos ou grupos humanos, e também em seus diversos produtos (op. cit., p. 15).

O aperfeiçoamento da consciência é, segundo Vázquez, a própria história do pensamento humano, condicionado pela história do homem ativo e prático, é a história da passagem de uma consciência ingênua ou empírica da praxis à consciência filosófica que capta sua verdade, não uma verdade fixa e imutável, mas uma verdade em constante movimento e transformação, “é impossível à consciência comum, abandonada à suas próprias forças, superar sua concepção espontânea e irreflexiva da atividade prática e ascender a uma verdadeira concepção – filosófica – da praxis” (op. cit., p. 16). Para os marxistas, a praxis social (produção) encontra obstáculos provenientes do predomínio social da propriedade privada, do dinheiro e do Estado. A filosofia da praxis vincula, segundo Vázquez, “praxis e revolução, isto é, a prática produtiva (transformação da natureza mediante o trabalho humano) com a prática revolucionária (transformação da sociedade mediante a ação dos homens), como duas formas inseparáveis da praxis total social” (op. cit., p. 37). A esse respeito, Kosik (1989) adverte para a “obscuridade conceitual das definições de praxis e trabalho: o trabalho é definido como praxis, e a praxis, nos seus elementos característicos, é reduzida a trabalho” (op. cit., p. 202). Segundo o autor, a praxis compreende – além do momento laborativo – também o momento existencial: ela se manifesta tanto na atividade objetiva do homem, que transforma a natureza e marca com sentido humano os materiais naturais, como na formação da subjetividade humana, na qual os momentos existenciais como a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso, a esperança etc., não se apresentam com ‘experiência’ passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo da realização da liberdade humana. Sem o momento existencial o trabalho deixaria de ser parte da praxis (op. cit., p. 204).

Os marxistas como Lênin, Gramsci e Vázquez destacam que, nas sociedades capitalistas, essa praxis dar-se-ia em grandes organizações de massa como grupos, sindicatos, partidos, dando unidade à massa e formando as mentalidades necessárias à superação das


196 contradições inerentes de forma criadora, revolucionária.90 Segundo Vasquez, “para que essas ações se revistam de um caráter criador, é necessário, também hoje mais do que nunca, uma elevada consciência das possibilidades objetivas e subjetivas do homem como ser prático, ou seja, uma autêntica consciência da praxis” (op. cit., p. 47). Nesse sentido, torna-se mister questionar o papel da escola, enquanto instituição educativa, enquanto aparelho de hegemonia, nessa superação, assim como o papel da educação e, mais especificamente tendo em vista o objetivo da presente reflexão, da educação popular na construção dessa concepção filosófica da praxis, dessa ação consciente no mundo. Portanto, a cultura, enquanto processo de constituição da própria humanidade, deve ser repensada em sentido amplo, ou seja, em relação ao processo de produção (ação no mundo) dos bens materiais e espirituais.

Cultura processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em idéias as imagens e lembranças, a princípio coladas às realidades sensíveis, e depois generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural (Vieira Pinto, 1979, p. 123).

A história do homem é a história da própria cultura. O processo de hominização dá-se através da cultura, assim como a cultura traduz esse processo, a princípio orgânico e posteriormente social. A cada fase do desenvolvimento humano, a cultura projeta o nível desse desenvolvimento, que só foi capaz de ocorrer devido a essa ação do homem sobre a sua realidade, com os desafios e obstáculos presentes em cada momento histórico. A cada momento desse desenvolvimento, a cada criação humana, o homem foi aperfeiçoando-se e transformando a realidade e a sua própria existência. Essa transformação do modo de existência tornou o homem um ser produtor, a princípio inconsciente e depois consciente, de si mesmo. A complicação do modo de vida do homem em surgimento impõe-lhe a necessidade da ação coletiva na realização do seu ser, o que significa a passagem à etapa social 90

A exemplo do MST hoje.


197 da produção da cultura e sua diversificação por efeito da aquisição cada vez mais vultosa de conhecimentos (Vieira Pinto,op. cit., p. 122).

Se o homem constitui-se em sua humanidade através da relação produtiva que estabelece com a realidade, se a cultura é o processo de produção da existência humana de forma geral, portanto, a compreensão da cultura pressupõe a compreensão do processo de produção, ou seja, do próprio processo de trabalho humano. Vieira Pinto afirma que, esse processo pode ser entendido em seus dois sentidos, enquanto produção do homem por si mesmo e produção dos meios de sustentação da vida para o indivíduo e a prole. Nesse sentido, a cultura, enquanto processo produtivo, possui uma dupla natureza, de bem de consumo, enquanto resultado, simultaneamente materializado em coisas e artefatos e subjetivado em idéias gerais, da ação produtiva eficaz do homem na natureza; e de bens de produção, no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida, de subjugação da realidade pelas idéias que a representam, constitui a origem de nova capacidade humana, a de idealizar em prospecção os possíveis efeitos de atos a realizar, conceber novos instrumentos e novas técnicas de exploração do mundo, e criar idéias que significam finalidades para as ações a empreender (Vieira Pinto, op. cit., p. 124). (grifo nosso).

Essa compreensão, acerca da dupla realidade da cultura e de seu fundamento no processo da produção, desenvolvida através do objetivismo histórico da cultura possibilita, segundo Vieira Pinto (op. cit., p. 126), compreendê-la em sua totalidade e inferir que “o homem é ele próprio um bem de produção”, “o homem deve ser um bem de produção de si mesmo, de si mesmo” e “sua ação sobre a realidade deve ser utilizada apenas em benefício, de cada homem, para torná-lo mais humanizado na sua compreensão do mundo e nas relações com os semelhantes”. Por outro lado, se o homem tornar-se um bem de produção para outro, se converte “em instrumento de utilização alheia, desaparece a dignidade que o caracterizava como produtor de si mesmo pela mediação da cultura que fora criando e acumulando, e se estabelece um regime de convivência injusto e desumano”, surgem, então, “as desigualdades de função no processo da hominização comum ou, materialmente falando, no processo de produção social dos bens de que todos necessitam e que deveriam estar ao dispor de todos”. Surgem, enfim, as classes sociais! Vieira Pinto (1994) conclui que, a cultura por ser um processo histórico, nas sociedades divididas em classes, a cultura tem necessariamente base de classe (...) Onde existem classes em antagonismo, as concepções ideológicas e os produtos


198 materiais da arte não podem deixar de refletir a situação individual de quem os produz (...) entendemos por cultura o conjunto dos bens materiais e espirituais criados pelos homens ao longo do processo pelo qual, mediante o trabalho, exploram a natureza e entram em relações uns com os outros, com o fim de garantir a satisfação de suas necessidades vitais (op. cit., p. 40).

A cultura, assim entendida, compreende tanto, os bens culturais materiais, os instrumentos materiais, artificiais de transformação da realidade (máquinas, ferramentas, técnicas, operações manuais), como os bens espirituais, ideais, subjetivos da cultura (idéias, saber, ciência, criações artísticas e ideológicas). Esses bens culturais devem ser compreendidos como dialeticamente relacionados, pois fazem parte do mesmo processo de hominização, de existência humana. Contudo, com a divisão social do trabalho e o surgimento das classes sociais, essa relação é alterada, ocorrendo o processo de alienação, ou seja, o aleijamento na posse, na propriedade dos bens culturais, o grupo social minoritário valoriza mais a apropriação desta segunda ordem de bens culturais [ideais], que é exclusiva dele, porque a primeira lhe parece firmemente assegurada em suas mãos. Por isso enaltece a posse da idéias e de produtos ideais da cultura, e se julga ‘culto’ apenas por este aspecto, enquanto os bens culturais materiais, que exigem a operação direta sobre o mundo físico e, portanto, o emprego da força muscular, são impostos pelas classes dominantes às grandes massas que, por não ter a propriedade deles e só escassamente consumir o que produzem, são consideradas ‘incultas’, porque apenas lhes toca o trabalho produtivo nas modalidades mais duras e grosseiras. A falta de propriedade jurídica, social, dos bens de produção termina por se converter numa ‘propriedade’ existencial do trabalhador, que, por isso, aparece ‘inculto’ aos olhos dos que detêm o usufruto da cultura (Vieira Pinto, 1979, p. 129).

Apropriação da cultura

A partir da análise das categorias trabalho, praxis e cultura, compreende-se que o homem produz e reproduz a cultura por uma necessidade existencial, para se apropriar dela, para expressar e criar a realidade. No entanto, de acordo com a estruturação social presente em cada sociedade, o homem em vez de apropriar-se da cultura, de dominá-la, pode vir a alienar-se a ela, ao transformá-la em uma realidade acima dele, reificando-a. Nesse sentido, a cultura deixa de ser um bem consumido e produzido por todos para tornar-se privilégio de alguns, deixa de ser uma propriedade comum do grupo, deixa de ser um bem coletivo e os bens culturais passam, então, a sofrer uma divisão. Esse processo pode ser


199 explicado, segundo Vieira Pinto (1979), através da análise histórica de desenvolvimento da divisão do trabalho. Concomitantemente à divisão social do trabalho, começa a ocorrer a diferenciação na apropriação, este processo, que, por ser de distribuição da cultura, não deveria significar sua discriminação, se vê corrompido pela introdução da desigualdade na apropriação do conhecimento e dos bens materiais dele resultante entre grupos sociais, que se destacam, divergem e a seguir se contrapõem uns aos outros (op. cit., p. 127).

Como já exposto, o processo de humanização, segundo o materialismo histórico, só tem sido possível através do trabalho. O primeiro ato histórico do homem é a produção de meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, para a sua sobrevivência, criando uma realidade humana, o que implica a transformação tanto da natureza quanto do próprio homem (Duarte, 2000, p. 117). Essa atividade humana objetivada torna-se, segundo Duarte, objeto de novas apropriações pelo homem, gerando necessidades de novo tipo, necessidades sócio-culturais, levando o homem a novas objetivações e novas apropriações91. Essa objetivação refere-se não apenas à produção de objetos físicos, mas também de “produtos que não são objetos físicos como a linguagem, as relações entre os homens, o conhecimento, etc.” (op. cit., p.118). (grifo nosso). Ao transformar o objeto em um instrumento, enfatiza Duarte (op. cit., p. 120), o homem não apenas utiliza esse objeto, mas lhe atribui uma nova função, uma nova significação, que é dada pela atividade social, ou seja, ele se torna um meio para alcançar determinadas finalidades dentro da prática social; por outro lado, esse processo de apropriação possibilita não apenas o surgimento de novas necessidades, novas funções, mas também de “novas forças, faculdades e capacidades”, na atividade e na consciência do homem. A esse respeito, Vieira Pinto (1979) aponta a função de mediação da cultura nas relações entre o homem e o mundo.

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Nesse sentido, o homem, ao apropriar-se dos conceitos científicos (cultura), começa a tomar “consciência dos conceitos e operações do próprio pensamento”. No entanto, um conceito científico só poderá ser absorvido, desenvolvendo-se de forma descendente, se o desenvolvimento de um conceito espontâneo tiver criado uma série de estruturas, por outro lado, os conceitos científicos irão fornecer estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos. Por outro lado, o desenvolvimento dos conceitos científicos não modifica um ou outro conceito espontâneo isoladamente, mas “o conceito espontâneo, ao colocar-se entre o conceito científico e o seu objeto, adquire toda uma variedade de novas relações com outros conceitos e ele mesmo se modifica em sua própria relação com o objeto” (VIGOTSKI, 2000, p. 279; 358). Portanto, no processo de apropriação da realidade, na produção dos bens culturais, o homem vai transformando os bens culturais, dando-lhes nova função e, nesse processo de hominização, vai desenvolvendo novas faculdades e capacidades, transformando seus conceitos e, consequentemente, transformando a sua própria existência.


200 Só o homem na sua atividade construtiva cria cultura, porque só ele, ao mesmo tempo em que opera sobre a natureza e obtém produtos do engenho, cria no pensamento idéias que representarão a realidade, a própria ação que pratica, e que por isso podem tornar-se guias e princípios para a organização dessa atividade (op. cit., p. 136).

A materialidade e a dialética desse processo é revelada por Vieira Pinto ao afirma que, “se a cultura é simultaneamente ação e idéia, enquanto ação significa a mediação entre duas idéias e, enquanto idéia, a mediação entre duas ações” (op. cit., p. 136). Isto implica analisar a cultura como uma abstração gestada na realidade concreta, realidade enquanto geradora dessa necessidade de abstrair para transformar, através de uma nova ação, a realidade e superar os obstáculos postos ao homem. Essa ação sobre a realidade gera abstrações de nova ordem, em um constante movimento e em um eterno devenir. Mesmo a produção de algo já existente pode suscitar, segundo Duarte (2000, p. 122), o aparecimento de novas formas de utilização, que possibilitarão o seu desenvolvimento. Compreender os processos de produção do conhecimento socialmente novo ou de apropriação dos conhecimentos já existente como processos históricos, implica, para o autor, analisá-los na relação histórica entre sujeito e objeto, onde cada indivíduo, cada geração deve apropriar-se do que é criado pelos seres humanos. No entanto, torna-se importante frisar que, se nas sociedades capitalistas os processos de objetivação e apropriação da cultura podem ser processos sociais alienantes ao refletirem a reprodução de relações sociais alienadas e alienantes, por outro lado, considerando que os fenômenos sociais refletem as contradições presentes nessas sociedades, esses processos também podem vir a se constituir em processos de libertação humana e social.

Apropriação do produto da cultura em educação popular

Gramsci (1995), ao tratar da hegemonia da cultura ocidental sobre toda a cultura mundial, destaca que, o que é importante é o nascimento de uma nova maneira de conceber o homem e o mundo, bem com fato desta concepção não mais ser reservada aos grandes intelectuais, mas tender a se tornar popular, de massa, com caráter concretamente mundial, modificando (ainda que através de combinações híbridas) o pensamento popular, a mumificada cultura popular (op. cit., p. 127).


201

Será que os efeitos da universalização da cultura, enquanto construção de novas concepções (libertárias), estão totalmente mortos como afirmam Horkheimer, Adorno, Marcuse? Será que a própria indústria cultural, ou seja, os instrumentos e as idéias utilizados para veicular uma determinada concepção de mundo, não contém em si elementos de sua própria negação? Será que essa concepção não é qualitativamente superior à concepção “mumificada” expressa através da “cultura popular”? A esse respeito e considerando a importância dos intelectuais de novo tipo no processo de construção das novas concepções, Gramsci escreve, “se leva em conta o processo cultural que se encarna nos intelectuais, não se deve tratar das culturas populares, para as quais é impossível falar de elaboração crítica e de processo de desenvolvimento” (op. cit., p. 126). Em cada momento histórico, a classe dominante define o tipo de sociedade, o tipo de educação, o tipo de escola, o tipo de educadores, o tipo de homem e de ideologia, enfim, de trabalho, de praxis, de cultura que deseja difundir. Dessa forma, a superestrutura fornece o cimento ideológico necessário à sua dominação (isto ocorre em toda a superestrutura, inclusive em outras instituições educativas e com outros sujeitos sociais)92. No entanto, é claro que enquanto reflexo (e não só isso!) do modo de produção contraditório, a superestrutura também contraditória possibilita o surgimento dessas e de outras reflexões que, não sendo dominantes, necessitam ser trabalhadas, dentro dessa mesma superestrutura, de forma que uma educação emancipatória possa vir a ocorrer. A educação popular, enquanto práxis (e, também, não só isso!), precisa estar ligada à 93

vida , ou melhor dizendo, ao trabalho. Assim, voltamos à questão inicial: a reconstrução histórica da categoria trabalho, enquanto vida não enquanto domesticação. No entanto, para isso precisamos pensar diferente, qualitativamente diferente, histórica e dialeticamente (e só por isso diferente!), do que o que se espera que se pense! Por fim, deixa-se a seguinte reflexão: o trabalho, apesar da alienação com que tem se caracterizado, ainda expressa essa necessidade humana de criação, ou seja, por mais alijado que esteja do processo de trabalho, da criação da cultura no sentido amplo, o homem, em seu existir, necessita não somente economicamente, mas existencialmente desse ato de criação. 92

Ver, por exemplo, A indústria cultural em A dialética do esclarecimento de Horkheimer e Adorno. Dewey (1979), Gramsci (1985) e Vieira Pinto (1986) denunciam a separação entre a escola e a vida produtiva e política, denunciando o caráter classista e retórico da escola e atribuindo essa situação a razões políticas e não pedagógicas. 93


202 Dessa forma, o trabalho, enquanto espaço de contradição, ainda é sinônimo de liberdade, de ação sobre a realidade, de presença do homem no mundo, independentemente das condições históricas em que tem ocorrido essa ação e mesmo que, ao alienar-se, subjugue-se às relações de produção alienantes. Portanto, parece caber a uma educação emancipatória, em primeira instância, repensar esse processo de alienação!

Referências BAPTISTA, Maria das Graças de A. Ideologia e educação: contradições e mudanças: um estudo sobre a concepção do mundo de docentes e discentes. João Pessoa, UFPB, 1999. DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teria vigotskiana. Campinas: Editora Autores Associados, 2000. GAMBOA, Silvio A. S. A dialética na pesquisa em educação: elementos de contexto. In: FAZENDA (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1989, p. 91116. GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. MARX, Karl. A ideologia alemã. 10. ed. São Paulo, Editora Hucitec, 1996. MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária, autogestão e educação popular. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1968. VIEIRA PINTO, Álvaro. A questão da universidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1994. _____. Teoria da Cultura. In: Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


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RELAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO POPULAR FREIREANA MEDIADA PELA SUBJETIVIDADE DA SEXUALIDADE Roseana Cavalcanti da Cunha Para início dessa interlocução entre dois campos do saber, as questões intersubjetivas e os desafios da atualidade no processo educacional constituem-se num engendramento do malestar na cultura. Ao falar de duas manifestações do desejo que sugerem um encontro no desencontro, um enlaçamento em tarefas impossíveis, quero lhes falar, do lugar do desejo de construção de novos saberes. Penso ser esse movimento, uma necessidade epistemológica, que caracteriza o cotidiano educacional na sua reinvenção. O trabalho proposto é uma tentativa de pensar na relação entre a psicanálise e a educação popular freireana, tendo como referencial teórico a Psicanálise em Freud e Lacan, a Educação Popular em Paulo Freire, dialogando através da subjetividade da categoria sexualidade. A realidade educacional brasileira revela a cultura mundial de estigmatização, exclusão e estereótipo impostos pela ordem mundial consumista, capitalista que altera o viver dos sujeitos que tecem o contexto educativo. Contudo, o mundo global impõe pensamentos e ações iguais em todos os contextos sociais trazendo como imperativos a semelhança, o grupo, a padronização, refletindo na sociedade as inumeráveis contradições que incidem nos sistemas educacionais e nos espaços educativos em que as normas e os valores definidos se cruzam, tendo como resultado os mecanismos de aceitação ou exclusão. Como não excluir a diferença, a singularidade e as exceções? Neste contexto, como lidar com as subjetividades no interior do processo educativo? Parece que há uma questão realizada pelo trabalho pedagógico dentro de uma prática coletiva que precisa ser resgatada, que é a particularidade do sujeito. Até que ponto considerá-las? Percebo que as subjetividades estão se produzindo num movimento do individual para o coletivo e do coletivo para o individual, sendo a sua essência permeada nas relações construídas no fazer diário, produzindo história inserida na cultura. A presença de pais e


204 professores singulares, comprometidos com o viver atravessa a vida dos educandos num movimento de inscrição nas suas subjetividades. E mais, particularmente, uma subjetividade constituída por outra especificidade na categoria sexualidade, inerente à condição humana, sobretudo, considerada difícil de ser discutida pela grande maioria dos educadores. Sexualidade e Psicanálise A categoria sexualidade toma uma dimensão mais social, no apagar das luzes do século XIX, quando surge a teoria freudiana. Esta teoria propõe a discussão da existência e manifestação da sexualidade, ainda que de forma diferente, durante toda a vida humana. Freud nos mostra que a anatomia não determina a sexualidade do sujeito, mas que ela tem conseqüências psíquicas para cada um de maneira particular e não de uma forma universal. A escolha do sexo, fazer-se homem ou mulher, supõe que, além da determinação biológica, indica uma implicação subjetiva. A educação, manifestada na amplitude das relações cotidianas, tem o seu rebatimento no plano da subjetividade, onde não há possibilidades de mensuração nem de quantificação, mas de afirmação da essência da experiência humana. Freud aponta a psicanálise como a terceira grande ferida narcísica, que o saber ocidental sofreu. Esta produziu o golpe psicológico ou o descentramento da razão e da consciência, tirando-as do lugar sagrado onde se encontravam. A primeira, produzida por Copérnico, considerada como o golpe cosmológico, afirmava que não somos o centro do universo. Fez desmoronar a crença no domicílio do homem como o centro estacionário do universo. A segunda, com Darwin, vista como o golpe biológico, trouxe a teoria da evolução, derrrubando a presunção arrogante da posição do homem no topo da Criação. Considerado um marco no ideário da Modernidade, o cogito cartesiano “penso, logo existo” institui uma nova instância, a subjetividade, que possibilita ao homem o seu distanciamento da natureza pela via do pensamento. Perguntando pelo sujeito do desejo que o racionalismo recusou, a psicanálise aponta para a divisão no uso da palavra “eu penso”, “eu sou”. Em Freud, o sujeito é o que sabe, mas não sabe que sabe “eu sei, mas não sei que sei”. Assim, a Psicanálise ocupa no século XX, o lugar de escuta, como uma teoria e uma prática que falam do homem enquanto sujeito singular. Afirmando a clivagem inevitável a que é submetido, constitui-se como uma das práticas mais eficazes de dialetização do discurso individual, operando o descentramento do sujeito, que desde Descartes ocupava um lugar


205 privilegiado de conhecimento e verdade. “E é esse sujeito do conhecimento que a psicanálise vai desqualificar como sendo o referencial privilegiado a partir do qual a verdade aparece. Melhor ainda, a psicanálise não vai colocar a questão do sujeito da verdade, mas a questão da verdade do sujeito” (GARCIA-ROZA, 1988, p. 23). Lacan identifica como sujeito do enunciado (sujeito do significado)94, o sujeito social, portador do discurso manifesto e aquele outro sujeito da enunciação (sujeito do significante)95, excêntrico em relação ao sujeito do enunciado, ou seja, não é expresso no enunciado. Produz uma fenda entre o dizer (eu falo) e o ser ( eu sou). Por conseguinte, Lacan inverte a expressão máxima de Descartes: “Penso onde não sou, portanto sou onde não penso”, denunciando a pretensa transparência do discurso, perseguida pelo cartesianismo e a suposta unidade do sujeito. Portanto, “o sujeito do enunciado não é aquele que nos revela o sujeito da enunciação, mas aquele que produz o desconhecimento deste último. Dito de outra maneira, o cogito não é o lugar da verdade do sujeito, mas o lugar do seu desconhecimento” (GARCIA-ROZA,1988, p. 23),

propondo assim, explicitar a lógica do inconsciente96 e o desejo que a anima. Para a psicanálise, que considera o inconsciente, a morte e a sexualidade como cernes

da alma humana, através da singularidade da experiência subjetiva, o homem se distancia do animal, quando entende que não se nasce macho ou fêmea. O sujeito torna-se homem ou mulher. No inconsciente, o sexo só é abordado por meio da linguagem e não pela união do óvulo com o espermatozóide, gerando assim, os impasses diante do mesmo, confrontando os seres humanos com um real específico na diferença entre os sexos. A teoria freudiana, sendo herdeira do romantismo e de uma filosofia da liberdade crítica, em Kant97 e do Iluminismo, coloca a subjetividade no centro da discussão. Questiona o sujeito a não se ver mais como senhor do mundo, mas com uma consciência de si além das causalidades mecânicas, uma subjetividade transcendental. Foi de certa forma, um avanço da civilização contra a barbárie, associando uma filosofia da liberdade a uma teoria do psiquismo, sendo capaz “de dar uma resposta humanista à selvageria surda e mortífera de uma sociedade depressiva que tende a reduzir o homem a uma máquina desprovida de pensamento e de 94

Segundo Joel Dor (1989), refere-se à natureza do representante que presentifica o sujeito em seu enunciado. Participação diretamente subjetiva, que atualiza um representante como sujeito do enunciado num discurso (Id. Ibid, op. cit). 96 Aquele que sai pela boca quando menos se espera, demonstra ter um peso muito maior que todas as intenções conscientes. “É intemporal, seus conteúdos não somente não estão ordenados no tempo, como não sofrem a ação desgastante do tempo”(GARCIA-ROZA, 1988, p. 183). 97 Que afirma unidade do eu como o que torna possível o diverso. 95


206 afeto” (ROUDINESCO, 2000, p.70). Assim, “como Sócrates, ele atualizou a idéia de que é no diálogo que o sujeito descobre o que está recalcado” (op.cit. p.93). Freud surpreende o mundo acadêmico e científico da época ao afirmar a existência da sexualidade infantil, rompendo com o paradigma de sua inocência. Seu texto sobre a teoria sexual infantil, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905, que chocou a sociedade científica da época, causou um corte epistemológico no pensamento reinante sobre a sexualidade na infância. Aponta para o discurso sobre a pulsão98 sexual e a descoberta do Édipo99. Esse processo precedido pela curiosidade primária, pulsão de conhecer, tanto epistemologicamente, como pelas outras buscas de saber, não é diferente daquela que mantém o pesquisador no laboratório tentando o desvendamento de enigmas. Desse trabalho epistêmico, procede elaborações de saber com um viés simbólico, inconsciente e imaginário que procura recobrir o real ao qual se refere. As idéias pedagógicas da época, concebiam a criança na visão de Rousseau, com uma natureza infantil ingênua. A infância era exaltada como período da manifestação da essência humana. Portanto, poderia ser modelada, cumprindo o processo educativo sua função adaptativa. Caminhando na contramão dessas idéias, a noção de pulsão em Freud, como algo que sempre escapa ao controle, descarta a possibilidade plástica e adaptativa da educação. Freud rompe também com a teoria da hereditariedade-degenerescência100, convocando “em torno do desejo toda a antiga ordem do poder” (ROUDINESCO, 2003, p.93), que pretendia controlar e gerar o cotidiano da sexualidade. Com isso, há um movimento na sociedade na tentativa de libertar o sexo das coerções corporais e penais impostas nos séculos anteriores, passando a sexualidade de socialmente reprimida para uma sexualidade admitida, mas sempre cercada pela culpa. Portanto, a psicanálise foi “ao mesmo tempo o sintoma de uma mal-estar da sociedade burguesa, ... e remédio para esse mal-estar” (op.cit. p.93). Para Lacan, a sexualidade vai sendo construída através do processo de “sexuação”, em que cada sujeito subjetiva seu sexo levando em conta as identificações do sujeito e o falo101, 98

Satisfação acéfala no real. “Representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente” (FREUD, 1915, Vol. XIV, p 142). 99 Constitui o momento estrutural fundamental da história de um sujeito, drama inconsciente, determinando suas escolhas, tornando-o sujeito societário, entrando no registro simbólico da Cultura e da Linguagem, mediado pela interiorização das regras sociais. 100 Oriunda do darwinismo social, foi uma referência importante para todos os saberes do final do século XIX, que pretendia submeter a análise dos fenômenos patológicos ao exame dos estigmas, tendo como conseqüência a decadência da civilização. 101 Ordenador significante para os dois sexos.


207 disposto na dialética da demanda de amor, da experiência do desejo, relacionado com a ordem do logos, visto que é perpassada pela linguagem e pela mesma subvertida. No reconhecimento de um conceito mais amplo de sexualidade legitimado na segunda metade do século XX, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), entende-se sexualidade como algo que transcende a divisão, que se estrutura subjetivamente numa dialética ética e cultural se inscrevendo na civilização, deixando em aberto outros campos do saber, como indica a OMS. A sexualidade humana forma parte integral da personalidade de cada um. É uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado de outros aspectos da vida. Sexualidade não é sinônimo de coito, e não se limita à presença ou não do orgasmo. Sexualidade é muito mais do que isto. É energia que motiva encontrar o amor, contato e intimidade e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas tocam e são tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e integrações e, portanto, a saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada como direito humano básico. A saúde mental é a integração dos aspectos sociais, somáticos, intelectuais e emocionais de maneira tal que influenciem positivamente a personalidade, a capacidade de comunicação com outras pessoas e o amor ”(Organização Mundial de Saúde, 1975).

Em outras palavras, entende-se sexualidade numa trilogia: vida, prazer e comunicação. Vida, porque o sujeito é falado antes de nascer e as expectativas em relação ao sexo e a sua sexualidade estão postas no desejo dos pais, manifestadas durante sua vida e morrendo quando não há possibilidade de expressá-la. Já o prazer, pode ser sublimado nas mais diversas formas de estar no mundo, mas também na relação com o outro, estabelecida pela via do desejo enquanto homens e mulheres sexuados. Por fim, a comunicação, essencial no processo dialógico de construção para o ser mais, oportunizando falar da sua história através da sua palavra, contribui na vinculação da cultura e a história, como diz Freire (2003) “criando, recriando e decidindo”, para se reconhecer no mais. Contudo, as discussões acerca da sexualidade nos espaços educativos ainda são cercadas de uma censura muito sutil, num discurso considerado da ordem da indecência, num campo que durante muito tempo se pretendia assexuado e imune a qualquer forma de manifestação sensual.


208 Diálogo entre a Educação e a Psicanálise No Brasil a discussão sobre psicanálise e educação tem início nos anos de 1920 do século XX. Conforme Abrão (2003), a introdução do tema da psicanálise de crianças aconteceu por intermédio da educação, sendo precedida pelo seu nascedouro na Europa com as propostas de Melanie Klein e Anna Freud. Num primeiro período, os trabalhos foram mais teóricos, num segundo período avançaram na aplicação desses conhecimentos até a higiene mental escolar, sendo vinculados ao Instituto de Pesquisas Educacionais do Distrito Federal a convite de Anísio Teixeira, nos anos de 1930. O terceiro período é marcado pela migração do instrumental teórico a serviço da profilaxia para a esfera psicoterapêutica passando a ser compreendidos no meio científico, com a formação nas Universidades, nos anos de 1950. Num último período, que compreende meados dos anos de 1970 até hoje, a formação e a ampliação da atuação clínica trouxe produção teórica, regulamentação dos cursos e reconhecimento oficial. Esta interlocução tem-se mostrado numa existência profícua e duradoura num processo revolucionário e criativo, com novas possibilidades de intervenção. Em relação à Educação, Freud (1932) coloca sua implicação com os processos civilizatórios e os mecanismos subjetivos associados à cultura, ao processo de formação e de desenvolvimento tanto individual como coletivo. Aborda o tema da educação em aproximadamente oitenta tópicos, mesmo sem nunca ter-se aprofundado nessa questão. Entretanto, reconhece o valor social do trabalho realizado por seus amigos que se empenham na educação e salienta que: Nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse e despertou tantas esperanças, e nenhuma, por conseguinte, atraiu tantos colaboradores capazes, quanto seu emprego na teoria e prática da educação (FREUD, 1925, vol XIX, p.341).

Indica que há três grandes profissões impossíveis: educar, analisar e governar. Sua cota de aplicação à educação foi muito leve, considerava-se inteiramente ocupado com a segunda. A psicanálise e a educação se aproximam na característica da impossibilidade, nessa articulação enigmática do mal-estar que espreita o que é escrito e a ação pela sua imprevisibilidade,


209 entendendo a impossibilidade não como impraticabilidade ou impotência, mas como construção incessante em torno da falta. Assim, como o psicanalista comprova a impossibilidade de acesso direto ao saber inconsciente, o educador nunca saberá o resultado do ato educativo, em que sempre algo escapa diante da falta102 estruturante na subjetividade do sujeito que nunca poderá ser tamponada, enquanto resultado de uma produção intersubjetiva, pois o inconsciente do educador e do educando se interpõe entre a medida pedagógica e os resultados obtidos. E afirma que: o trabalho da educação é algo sui generis: não deve ser confundido com a influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela. A psicanálise pode ser convocada pela educação como meio auxiliar de lidar com uma criança, porém não constitui um substituto apropriado para a educação. Tal substituição não só é impossível em fundamentos práticos, como também deve ser desaconselhada por razões teóricas (FREUD, 1925, vol. XIX, p. 342).

Para a psicanálise, o saber está sempre em construção, sendo a educação um processo em transformação contínua, abre perspectivas para a potencialização da criatividade. Processo este, realizado pelo trabalho pedagógico, a partir da particularidade do sujeito, numa prática coletiva em que o educador não se prevaleça de seu papel e se desprenda de seu narcisismo, impedindo que coloque o educando como seu espelho. Neste sentido, Mrech (2005, p. 22) afirma que “o educar e o ensinar, implicam o professor e o aluno como sujeitos, na construção de algo novo”. Portanto, o poder do educador sobre o educando pode ser avassalador diante da subjetividade e criatividade deste último. Conforme aponta Mrech (2003, p.26) não podemos esquecer que “A educação é um processo contínuo de mudança. A Educação é um vir-a-ser. Nós não somos o que vivemos ontem e nem seremos o que viveremos e perceberemos amanhã”.

Tanto no sistema educativo, como nas escolas ou fora delas, as mudanças

continuam em relação aos relacionamentos, às emoções, a construção de saberes não se tratando apenas “de levar aos professores um saber ou explicações de como eles poderiam ensinar mais e melhor.” (Op. Cit., p. 26), mas que seja vislumbrada a abertura para escutar as diferenças, revelando a singularidade de cada escola, de cada educador, de cada aluno, através 102

Buraco do ser que pode empurrar o sujeito na direção do diferente (COUTO, 2003, p. 88).


210 da ética e do respeito. Freud declara o seu interesse em estudar os processos emocionais e admite em Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar, que: É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores (FREUD, 1914, Vol. XIII, p.286).

Aponta para a impossibilidade de o mesmo método educativo possa ser bom de maneira uniforme para todas as crianças e deduz que: a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila da não interferência e o Caríbdis da frustração. A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios (FREUD, 1933, vol. XXII, p. 182).

Com esta concepção, deixa a possibilidade para o aluno se inserir no mundo da cultura, da sociedade. Conforme Couto (2003, p. 82) abre-lhes as condições do humano quando se depara “entre o Sila e o Caribde – entre o desejo e a Lei – possibilidade e limite”. Nessa relação educador-educando, o planejamento didático concretiza o previsível posto nos conteúdos, que colidirá com o imprevisível na enunciação de dois desejos colocados em mediação, o desejo de ensinar e o desejo de saber. Portanto, a responsabilidade do educador faz-se presente ao exercer a função de despertar no educando, a curiosidade de pensar o que fazer com o que aprendeu. Ponto de Encontro entre Lacan e Freire A dialética hegeliana é pensada por Lacan, nas construções sobre a subjetividade, sobretudo ao desejo, transparece no sistema educativo, numa relação mestre-escravo, remetendo a concepção da dialética do Senhor e do Escravo, onde só há lugar para um ou


211 outro, ou ainda, onde só um se afirma enquanto sujeito, em função da desqualificação do outro. O reconhecimento de um pelo outro não é o reconhecimento de dois saberes, mas apenas do saber do Senhor, sendo o saber do escravo alienado ao seu saber. Também pensada por Paulo Freire a dialética hegeliana toma um novo sentido(1981), quando se refere à concepção de educação “bancária” como o ato de depositar e transferir valores e conhecimentos aos educandos, colocando-os numa dimensão que denomina de “cultura do silêncio”, deixando de ser construção de saber, ou “experiência feito” para ser experiência transmitida. Aponta para a posição do educador com sua antinomia necessária, que reconhece a razão de seu existir na ignorância dos educandos que “alienados por sua vez, à maneira do escravo na dialética hegeliana, ... mas, não chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador” (FREIRE, 1981, p. 67). A questão do saber popular colocada por Paulo Freire, (1979, p.28), enquanto protagonista da mudança, desponta para a implicação subjetiva, intransferível para cada um. Pelo viés do desejo, da vontade de saber, “O homem deve ser o sujeito de sua própria educação”.

Reflete também no compromisso do profissional com a sociedade, sua

responsabilidade no seu fazer diário construindo e vivendo um processo de transformação. E se o homem é capaz de perceber-se, enquanto percebe uma realidade que lhe parecia “em si” inexorável, é capaz de objetivá-la, descobrindo sua presença criadora e potencialmente transformadora desta mesma realidade. O fatalismo diante da realidade, característico da percepção distorcida, cede seu lugar à esperança. Uma esperança crítica que move os homens para a transformação (PAULO FREIRE, 1979, p.28).

Encontramos, nas histórias singulares da massa populacional, uma riqueza de significantes, que não pode ser perdida; é um saber onde há sabedoria, aparecendo como um articulador de mudanças na construção do conhecimento de uma coletividade para o exercício da cidadania. E o educador tem a oportunidade de vivenciar junto nessa tarefa humanista que é emancipar e libertar pela construção do conhecimento. Assim, “não é possível minimizar, desprezar, o saber de experiência feito, (...) é a partir dele que se alcança o mais exato” (FREIRE, 2001, p.30). Portanto, afirma que ensinar exige respeito aos saberes dos educandos e deixa a inquietação com uma pergunta: “Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como


212 indivíduos?”(FREIRE, 1996, p. 30).

Reconhece-se o valioso agalma103 do saber popular

como construtor de um poder ético que poderá privilegiar a transformação social, através do respeito à linguagem, a forma de expressão e a “leitura de mundo” como nos diz Paulo Freire. A partir desses pontos colocados na relação educador-educando em seus lugares de senhor/escravo, saber popular/saber científico, na construção do saber, observa-se a importância de considerar a questão do sujeito para compreender a realidade na escola hoje. Reconhecer o lugar do aluno na condição de interrogante remete o professor ao lugar que faz faltar o saber, distante da posição que traz a resposta pronta. Conceder ao aluno um espaço como sujeito, na sua relação com o saber, constitui-se numa tarefa com dimensões axiais de inserção na cultura e no simbólico, internalizando a vida e a diferença. No entanto, a realidade atual mostra o desmoronamento dos sistemas simbólicos coletivos e os diversos espaços fora da escola que dirão como a felicidade está próxima, cada um pode construí-la, se possível expor aos olhos de todos, inclusive a sexualidade. Contraponto Na contramão de uma concepção de educação bancária, desarticulada das questões sociais, como a sexualidade, entendemos que a educação popular permite a problematização do tema em questão, como indica Freire. A minha posição é a da comunhão entre o senso comum e a rigorosidade. (...) Partindo de que é necessário que as massas populares se apropriem da Teoria, fazendo-a sua também, este processo não pode realizar-se senão a partir do próprio pensamento ingênuo. É dele que se tem de proceder, para superá-lo. É preciso que a rigorosidade não recuse a ingenuidade, no esforço de ir além dela. É neste sentido que falo de uma virtude ou qualidade fundamental ao educador-político e ao político-educador na perspectiva que defendemos. A virtude de assumir a ingenuidade do outro para com ele ultrapassá-la. A assunção da ingenuidade do outro implica também a assunção de sua criticidade. No caso das massas populares, elas não são apenas ingênuas. Pelo contrário, são críticas também e sua criticidade está na raiz de sua convivência com a dramaticidade de sua cotidianeidade (FREIRE e FAUNDEZ, 1988, pp.59-60).

O desafio de exercer a cidadania ao se falar de algo que historicamente sempre foi 103

Termo usado por Alcibíades para designar o precioso que o ingrato envoltório de Sócrates encerra (Lacan, 1967, p.257).


213 censurado está posto. Primeiro, ao tentar vencer as dificuldades intrínsecas a cada educador que construiu sua história ao longo de um período de opressão e silêncio, em relação a sua própria sexualidade. Segundo, ousar romper a barreira da desinformação cultural minimizando as angústias referentes ao seu desconhecimento, perpetuando à condição de alienação. Terceiro, legitimar essa discussão como meio de construção da subjetividade humana nos espaços educacionais num processo formativo continuado. Com este entendimento, podemos dizer que a produção cultural que o cidadão dispõe acerca da sexualidade encontra-se permeada de um contexto histórico com a construção de mitos, preconceitos e desinformação, como também do educador, em que os valores construídos rebatem diretamente na sua posição diante do mundo, na sua ação política. Dessa forma, remetemos esta idéia a Pinto (1979, p. 135), quando se refere à cultura como “um produto do existir do homem, resulta de vida concreta no mundo que habita e das condições, principalmente sociais, em que é obrigado a passar a existência”. Para tanto, a idéia trazida por Freire, sobre a inconclusão do ser, abrindo novos caminhos de compreensão diante da sua incompletude e da possibilidade de escolhas, num movimento incessante de construção, possibilita a implicação subjetiva, a mediação pela palavra, articulando as experiências vivenciadas ao contexto cultural. por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa , propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, (...) uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção (FREIRE, 2003, p.67).

Nesse sentido, a educação pode ser resultado, de um processo educativo libertador, construído sobre a base do diálogo, em que o sujeito possa falar de si, sem medo de ser feliz. Como nos fala Freire, para o sujeito irromper é preciso acontecer rupturas epistemológicas, desequilibrar certezas e convicções, fazendo com que cada um descubra diante da contingência sua capacidade criadora e a esperança crítica que move para a transformação. Portanto, para a subjetivação acontecer do ponto de vista educacional é necessário se trabalhar numa perspectiva crítica, dialógica, humanista e aberta às questões da realidade de seus educandos. Esta perspectiva é encontrada na educação popular freireana.


214 Quanto à psicanálise, como revela Souza (2003, pp. 145-146) pode auxiliar à educação ao recomendar o estímulo à liberdade de pensamento, um cuidado em relação ao autoritarismo e as falsas verdades, ou seja, a psicanálise traz à tona uma questão: como fazer o aluno aprender “sem correr o risco de perder o prazer da curiosidade?”. Ou ainda, “o que faz uma criança ser capaz de pensar ou o seu oposto , o que impede uma criança de pensar”? Freud ao longo de sua obra fala do impossível do educar, da incompletude do ensinar, quando se refere a educação como a aposta na diferença, no imprevisto onde o educador faz laço no desencontro, no seu avesso. Aproximações conclusivas O reconhecimento da expressão cultural referente à sexualidade oportuniza a abertura do diálogo, representando a existência de homens e mulheres, partilhando uma ciranda coletiva de vida, prazer e comunicação, sem os quais a vida não teria o seu brilho. A interlocução e a interface da psicanálise com outros campos do saber, sobretudo, com a educação popular freireana oportunizam um olhar diferenciado sobre a sexualidade. É um processo de construção, possibilitando o sujeito a vir-a-ser, construindo seu conceito individual e coletivamente, consolidando o seu saber e oportunizando a participação na comunidade numa ação sócio-política, enquanto protagonista da sua história. Assim, a Psicanálise e a Educação podem emancipar as pessoas, tornando-as autônomas, capazes de refletir sobre suas ações, de responsabilizar-se por elas, trazendo uma contribuição na abertura de um leque maior de possibilidades no exercício de sua cidadania. A saída do lugar de onipotência para o lugar de claudicante na vivência das vissicitudes do processo educativo, revela condição “sine qua non”, na internalização subjetiva dos interditos da cultura. A lei simbólica (limite), necessária ao funcionamento das sociedades humanas, à qual nenhuma civilização escapa, revela-se como inevitável na assunsão do desejo rumo ao conhecimento, ou seja, numa educação que vê o educando como sujeito desejante. Sendo assim, esta reflexão é, na verdade, a abertura para novas interrogações e inquietações, apostando na interlocução e no diálogo como mediador para superação das situações imprevisíveis que a sociedade contemporânea apresenta, enquanto imperativo das contradições e da incompletude humana na tecitura de saberes. Enfrentar as surpresas do cotidiano, suportar o inexorável, mesmo que seja o do não


215 saber, nos impulsiona a participar da dança do viver com a elegância do desejo de querer saber, sem se queixar, sem se fechar sobre si mesmo, mas abrindo um leque de opções que tornam possível essa conversa. REFERÊNCIAS: ABRÃO, Jorge Luis Ferreira. Um Inventário das Relações entre Educação e Psicanálise no Brasil: Perspectiva Histórica. IN: OLIVEIRA, Maria Lúcia (org.) Educação e Psicanálise: história, atualidade e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. COUTO, Maria Joana de Brito D’Elboux. Psicanálise e Educação: a sedução e a tarefa de educar. São Paulo: Avercamp, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. ______ Educação como prática da liberdade. 27ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. ______ Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª edição, São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______ A educação na Cidade. 5ª edição, São Paulo: Cortez, 2001. FREIRE, P. e FAUDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. 3a edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Obras psicológicas completas, Vol. VII (1901-1905). 1a edição, Rio de Janeiro: Imago, 1989. ______ Algumas Reflexões sobre a Psicologia do Escolar. Obras psicológicas completas, Vol.XIII (1913-1914). 1a edicão, Rio de Janeiro: Imago, 1989. ______ Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn. Obras Psicológicas Completas, vol. XIX (1923-1925). 1a edição, Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______ Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Obras Psicológicas Completas, vol. XXII (1932-1936). 1a edição, Rio de Janeiro: Imago, 1976. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. FREUD e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. MRECH, Leny. Psicanálise e Educação: novos operadores de leitura. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. ______ (org.) O impacto da Psicanálise na Educação. São Paulo: Avercap, 2005. PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.


216 ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a Psicanálise?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ______ A Família em Desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. SOUZA, Audrey Setton Lopes de. Psicanálise e Educação: Lugares e Fronteiras. IN: OLIVEIRA, Maria Lúcia (org.) Educação e Psicanálise: história, atualidade e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.


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AS/OS AUTORES/AS

AGOSTINHO DA SILVA ROSAS Possui graduação em Licenciatura Plena em Educação Física pela Universidade de Pernambuco (1984), especialização em Educação Física Não Formal pela Universidade Federal de Pernambuco (1988) e mestrado em Mestrado em Ciências do Desporto e da Educação Física pela Universidade do Porto (1995). Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Assessor de Projetos de Iniciação Científica da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, Profssor Assistente da Universidade de Pernambuco, Sócio voluntário do Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas e Conselheiro suplente da Prefeitura da Cidade do Recife. Tem experiência na área de Educação Física , com ênfase em Metodologia de Ensino. Atuando principalmente nos seguintes temas: Tomada de decisão, Estilos de Ensino, Teoria Unificada de Ensino, Criatividade. (agrosas@uol.com.br) ANTÔNIO ROBERTO FAUSTINO DA COSTA Doutorando em Educação, mestre em Biblioteconomia e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba. Tem experiência na área de Comunicação e Educação e suas interfaces: jornalismo, educação a distancia e tecnologia educacional. (robertofcosta@uol.com.br) IOLANDA OLIVEIRA Graduação em FILOSOFIA pela Universidade Federal da Bahia (2000) e mestrado em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (2003). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. Tem


218 experiência na área de Educação Popular, método Paulo Freire desde a década de 70, atuando principalmente nos seguintes temas: Representação Política e Movimentos Socias no Campo e Relação de Poder no espaço escolar. (ioland2@ig.com.br)

JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO Graduou-se em Química pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB - 1977) e Especializouse em Química pelas Universidades: Universidade Estadual da Paraíba/Universidade Federal de Penambuco(UFPE), em 1979. Graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB - 1997), com mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (UnB 1984) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - 1996). Realizou programa pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP - 2003). É professor titular da Universidade Federal da Paraíba, com experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular, desenvolvendo atividades nos seguintes campos: Fundamentos Filosóficos e Análises de Experiências da Educação Popular em Movimentos Sociais e em programas e projetos de Extensão Popular, em especial, aqueles voltados à economia solidária popular. (meloneto@hs24.com.br) JOSÉ LUIZ FERREIRA Possui graduação em Licenciatura Plena Em Educação Física pela Universidade Federal da Paraíba (1986) e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (1996). Atualmente é professor da Universidade Federal de Campina Grande. Tem experiência na área de Educação Física e em Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação rural, relações de gênero, pedagogia e educação física. (zeluiz@ch.ufcg.edu.br) MARIAS DAS GRAÇAS DE ALMEIDA BAPTISTA


219 Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (1984), graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (1985) e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (1999). Atualmente é Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação, Sociedade, Ideologia, Contradição, Dewey, Piaget, Gramsci e Vigotski. Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos sobre a Criança - NUPEC/UFPB e Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular - EXTELAR/UFPB. (mgabaptista2@yahoo.com.br) MARIA DO AMPARO CAETANO DE FIGUEIRÊDO Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (1987), graduação em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (1987) e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (1996). Atualmente é professor assistente da Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é doutorando em Educação, na Universidade da Paraíba. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular. (mariadoamparoc@yahoo.com.br) NELSÂNIA BATISTA DA SILVA Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba, mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, Especialista em Psicologia Social. Tem experiência na área de Psicologia social e educação Popular. (nelsania@hotmail.com) RITA DE CÁSSIA CURVELO DA SILVA Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual de Santa Cruz (1989) e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (2000). Atualmente é doutorando em educação pela UFPB e professora assistente da Universidade Estadual de Santa Cruz e professora do Ensino Médio no Colégio Estadual de Itabuna. Tem experiência na área de


220 Educação, com ênfase em Educação Popular, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino aprendizagem, educação popular, educação de pessoas jovens e adultas, movimentos sociais e mst. (ritacurvelo8@yahoo.com.br) RONNEY DA SILVA FEITOZA Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas (1991), mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1996). e atualmente, cursa doutorado em Educação Popular, Comunicação e Cultura (UFPB). É professora assistente da UFAM, desde 1991. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação de Adultos, atuando principalmente nos seguintes temas: educação; políticas públicas; educação popular; movimentos sociais e alfabetização. (ronneyfeitoza@yahoo.com.br) ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA Possui graduação em Licenciatura Plena em Psicologia (1982), graduação em Psicologia (1988) pela Universidade Estadual da Paraíba/UEPB, especialização em Educação pela Universidade Federal de Campina Grande/UFCG (2002) e em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo/USP (2003), mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba/UFPB (2007). Psicanalista, Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise-EBP-Delegação Paraíba; Membro do Centro Paulo Freire-Estudos e Pesquisas-Recife/Pernambuco; Membro do Grupo de estudos Paulo Freire-GESPAUFCampina Grande/Paraíba; Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão PopularEXTELAR/PRAC/UFPB-João Pessoa/Paraíba. Professora na Universidade Estadual da Paraíba/UEPB, com experiência na área de Psicologia, Psicanálise e Educação, com ênfase em Psicologia Social, Psicanálise e Educação Popular. (rose-ana@uol.com.br)

TÂNIA RODRIGUES PALHANO


221 Possui graduação em Filosofia, Licenciatura Plena (1985) e Bacharelado (1986) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialização em Pesquisa Educacional (1987) e Cultura Afro-brasileira (1988), pela Universidade Federal da Paraíba. Mestrado em Educação (2002) pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Doutoranda em Educação e professora da Universidade Federal da Paraíba, com experiência na área de fundamentos da educação, com atuação em Filosofia da Educação. (taniap@hs24.com.br)


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