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Jornal do PI Novembro 2009 1€
Jornal dos Precários Inflexíveis para o lançamento da Petição à Assembleia da República sobre os direitos na Segurança Social dos trabalhadores a falsos Recibos Verdes
O Estado do Sítio Ou a Era do Precariado: o Princípio do Fim? editorial . Myriam Zaluar
Quase três anos passaram sobre o surgimento dos primeiros movimentos contra a precariedade laboral em Portugal. Um combate que se iniciou de forma tímida mas que, passo a passo, começa a tomar as proporções que o fenómeno exige. E ele – o fenómeno – é gigantesco. À medida que vamos rompendo a muralha de silêncio instalada desde há anos em torno do escândalo dos recibos verdes, dos estágios abusivos, dos contratos a prazo, das bolsas exploradoras dos nossos jovens cérebros, do proxenetismo laboral que representam as empresas de trabalho temporário, uma realidade brutal vai sendo desvendada. A precariedade atinge todos os sectores de actividade, todos os níveis de formação, trabalhadores jovens e menos jovens, famílias inteiras e outras que nem se constituíram ainda, embora já lhes tarde a vontade. Quando começámos a levantar a nossa voz dizendo que não aceitávamos continuar a pactuar contra o que nos queriam impingir como inevitável, sabíamos que éramos muitos. Mas nem todos chegámos à luta com a consciência da dimensão do monstro contra o qual nos rebelávamos. Foi como puxar pela ponta de um novelo e descobrir uma meada sem fim. Precariedade no sector privado e no público, nas pequenas empresas e nas multinacionais, no ensino, nas autarquias, na arquitectura, no jornalismo, nas artes do espectáculo, na formação. Onde quer que intuíssemos que poderíamos encontrá-la, ela lá estava, como pudemos provar na nossa recente campanha Autarquia Sem Precários. Onde quer que houvesse um simples exemplo, uma pequena história a vir ao de cima, ela lá estava, imensa, calada, à espera de um primeiro desabafo, de um leve murmúrio para soltar o seu grito, como no caso das Actividades de Enriquecimento Curricular. Sempre com o apoio tácito dos sucessivos governos, que a permitiram primeiro, a legitimaram
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em seguida, para finalmente a consagrar no Código do Trabalho. E enquanto o fenómeno vai crescendo, aparentemente inexorável, somos cada vez mais a despertar desta espécie de sono de belas adormecidas. Saímos do isolamento a que nos queriam votar e organizámo-nos. Falámos uns com os outros. Soubemos que não estávamos sós. E que temos razão. Com a campanha que ora se inicia e que marca a primeira grande acção conjunta dos movimentos de precários – à excepção das três edições do Mayday -, chegámos a um ponto de viragem. Eis chegado o momento em que a nossa voz já não pode deixar de se fazer ouvir. Já não basta trazer a palavra precariedade para os léxicos lusos e os precários para as páginas dos jornais e programas de TV. Já não basta dizer que estamos fartos de recibos verdes, de contratos a prazo, de trabalhar para aquecer. Que recusamos a treta da flexisegurança. Que queremos um futuro. Que não aceitamos viver pior que as gerações anteriores. Que queremos viver num país onde as pessoas sejam respeitadas e não usadas como meros instrumentos de criar riqueza – a riqueza só de alguns. Que queremos um estatuto para os artistas, para os cientistas, para os professores, para todos os trabalhadores. Que queremos o reconhecimentos dos direitos pelos quais lutaram os nossos pais e avós. Que queremos uma Autoridade para as Condições de Trabalho que actue. Queremos também aquilo de que nos obrigaram a desistir sem sequer que muitos de nós disso se apercebessem. Queremos uma carreira contributiva para todos. Queremos a Segurança Social para aquilo que ela nasceu: ser a base do Estado-Providência. Existe uma dívida sim. Uma dívida incomensurável. Está na hora de os verdadeiros devedores a começarem a pagar.
Desemprego – o melhor amigo da precariedade Sofia Roque
para o contrato-social. De todos os predicados da precariedade há um que a determina por excelência – o facto de se fazer sempre acompanhar da chantagem do desemprego, muitas vezes da sua certeza. A insegurança e a instabilidade de que falamos é a isto que dizem respeito - na sua fórmula absoluta, referemse ao desemprego. O desemprego atingiu em Setembro deste ano, segundo os dados do Instituto do Emprego e Formação profissional (IEFP) , 9,2 por cento da população activa. Os novos números disponibilizados em Novembro pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) , actualizam esta informação e indicam que o desemprego cresceu para 9,8%, isto é, existem 547.700 pessoas desempregadas (das quais 267.600 são homens e 280.100 são mulheres). A OCDE prevê que até ao final de 2010 em Portugal se chegue aos 11,7 por cento, com um total de cerca de 650 mil pessoas sem emprego. Recordese ainda que estes dados não levam em conta os milhares de desempregados que desistiram de ir aos centros de emprego. Segundo o IEFP, a não renovação de vínculos precários continua a ser o principal motivo de desemprego, justificando 42% das novas inscrições, mas os despedimentos também aceleraram, quer em termos homólogos (+4,6%), quer em comparação com o mês anterior (37,4%), abrangendo mais de 10 mil pessoas. Poderemos destacar três dados concretos do plano geral do desemprego como exemplo da complexidade e gravidade da situação e de áreas importantes que precisam de atenção e intervenção política específica, multidisciplinar, para lá das tão propaladas políticas de emprego. A situação dos desempregados a longo prazo é muito preocupante e corresponde a muitas mil pessoas que procuram trabalho há muito mais do que um ano, dois anos… e já não têm direito a subsídios de desemprego, restandolhes (àqueles que a elas têm direito) as prestações sociais que são tão míseras como sabemos. Muitas destas pessoas são pais e mães com filhos para sustentar ou com encargos com terceiros seus dependentes, por exemplo. Muitas destas pessoas já não têm esperança de melhorar as suas vidas.
Os números atingidos pela precarização do trabalho nos dias de hoje, em Portugal, valem pelo seu poder de evidência e são na verdade, avassaladores. É uma realidade dinâmica, em crescimento exponencial e divergente com o que se passa no resto da Europa. Estima-se que cerca de dois milhões de trabalhadores, ou seja, 40 por cento da população activa, estejam numa situação de vínculo laboral não permanente ou mesmo sem vínculo. Estas pessoas trabalham segundo variadíssimos modelos como os contratos a prazo, as bolsas, o trabalho temporário, o trabalho não declarado e a prestação de serviços mediante recibos verdes. Só nesta modalidade encontram-se 900 mil pessoas a trabalhar sem acesso a direitos básicos como prestações sociais, subsídios de desemprego, férias, 13.º mês, alimentação, transporte. São então 2 milhões de pessoas, muitas jovens mas também de meia-idade, que nunca conheceram outro tipo de relação laboral ou se vêem agora entregues ao que nunca julgaram poder acontecer, isto é, a dificuldade extrema de conseguir um emprego com direitos, que corresponda à sua formação, que não lhes vire a vida ao contrário, que não os torne colaboradores em vez de trabalhadores. Porque a precariedade não se cinge à fragilidade do vínculo, à ausência deste ou à sua ilegalidade. Diz também respeito à degradação das condições de trabalho, à hiper-dependência económica dos trabalhadores face aos patrões, à individualização, à autonomização das relações sociais. Este modelo económico proporciona o isolamento, a diferença, a desigualdade, a estigmatização, a exclusão. O emprego já não é necessariamente uma profissão e uma carreira, muito menos um lugar de inserção social e de identificação no colectivo. As mudanças não se explicam pela conjuntura ou pela crise, elas são estruturais e referem-se a um apuramento de um modelo económico baseado na ideia de indivíduo, na relação unipessoal entre trabalhador e patrão, no mérito, no Estado sem poder, na iniciativa privada, na anulação da política, enfim, assente na justificação mínima
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Não acreditam já num Estado que poderá fazer as escolhas certas e servir para a organização colectiva. Existem cerca de 170.000 pessoas nesta situação. Entre os jovens já em idade activa, os números também não são de ignorar. Do total dos desempregados, os jovens com idades compreendidas ente os 25 e os 34 anos representam 23%. Estes números preocupam porque se referem sobretudo a pessoas que começaram a trabalhar e enfrentam já uma situação de desemprego num período muito curto. Hoje em dia, o desemprego marca necessariamente o início da vida activa porque corresponde, na verdade, aos períodos que intervalam os sucessivos contratos precários, as prestações de serviços, os trabalhinhos que se vão arranjando. A precarização do trabalho associada ao desemprego manifesta-se de modo exemplar nos números de desempregados com qualificações superiores. Este é um sinal claro da mudança que se referia há pouco, no modelo e nas estruturas das relações de trabalho, do próprio mercado de trabalho. A formação já não é condição para a empregabilidade do mesmo modo que o era há uns anos ou gerações atrás. Cerca de 10% dos desempregados são pessoas com qualificações superiores, das quais 2/3 são mulheres. Associada ao desemprego está o problema da pobreza que tem vindo a crescer em várias faixas etárias e diferentes grupos sociais. Segundo a Rede Europeia AntiPobreza, em Portugal, 18 em cada 100 pessoas são pobres. Segundo a AMI, considerando o aumento dos pedidos de ajuda neste ano (80% deste aumento tem como causa o desemprego), os valores actuais demonstram uma nítida tendência para um crescente número de casos de pobreza persistente, sendo que a grande maioria destas pessoas encontra-se em plena idade activa, entre os 21 e os 59 anos de idade. O número total de pessoas que recebe subsídio de desemprego ascendeu, em Setembro, aos 348 mil, o que significa que existem 200 mil pessoas desempregadas sem apoios sociais. Do total de inscritos no IEFP, 32% não recebem qualquer tipo de ajuda. De facto, as políticas de Segurança Social estão muito aquém de responder às necessidades mínimas das pessoas, às mudanças que se vão desenhando no mundo do trabalho – estão de costas voltadas para o problema da
precariedade. A própria sustentabilidade da Segurança Social está dependente de um olhar atento para as várias formas de trabalho precário e às possibilidades contributivas a elas associadas, às mudanças que vão sendo feitas na legislação laboral no sentido da precarização em geral do trabalho. Porque a ideia da redistribuição justa da riqueza é indissociável da possibilidade garantida de se auferir um salário e um salário justo, poder cumprir com obrigações sociais como o pagamento de impostos e depois poder daqui auferir direitos, apoios sociais, concretizar o Estado Social e solidário. Construir e manter este Estado é uma escolha, de facto. O modelo laboral que impõe a precariedade impõe também o desemprego para lá das crises e das flutuações da realidade económica. Um contrato a prazo, um falso recibo verde, uma bolsa, a ausência de um contrato ou qualquer vínculo são o varão que proporciona o equilíbrio impossível na corda bamba constante que é a vida precária. Ninguém acredita neste varão e todos sabem que mais tarde ou mais cedo poderão cair no desemprego. Trata-se de uma chantagem porque, impondo-se o trabalho sem direitos como única alternativa, tudo será melhor do que o desemprego. Mas os precários são pessoas e como todas as outras também preferem viver a morrer. As escolhas são outras e são possíveis - por exemplo, queremos ou não um país onde se legisla para a exploração.
1-Dados referentes a Setembro de 2009, disponíveis em http://www.iefp.pt/estatisticas/MercadoEmprego/InformacaoMensal/Documents/2009/Inf.%20Mensal_Setembro2009.pdf 2-Dados referentes ao terceiro trimestre de 2009, disponíveis em http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0000587&contexto=pi&selTab=tab0
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Porque não responde o novo Código Contributivo aos problemas dos recibos verdes? Tiago Gillot
Em final de mandato, o Governo anterior aprovou apressadamente um novo enquadramento legal para as contribuições para a Segurança Social. É a Lei nº 362/X e tem aplicação a partir de 2010. O novo Código Contributivo foi sendo anunciado como uma resposta aos problemas das centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras a recibos verdes. O resultado final é uma decepcionante continuidade num estilo que escolhe a propaganda como forma de comunicação, mas que deixa tudo na mesma e foge às questões decisivas.
É verdade que não poderíamos esperar outra coisa. A governação de Sócrates continuou a desenrolar a passadeira vermelha em que os patrões desfilam a sua prepotência e se sentem autorizados para todos os atropelos aos direitos de quem trabalha. É por isso que a forma final deste Código Contributivo cristaliza uma das maiores fraudes do país: 900 mil pessoas a quem não é reconhecido sequer o direito a ter um patrão. Os falsos recibos verdes são um roubo massivo, uma forma de sobre-exploração que se generaliza e escandaliza. A cada “remendo” que o Governo anuncia, a cada promessa para almofadar o descontentamento que cresce, corresponde uma nova operação de marketing que vai legalizando o impensável. É o caso da participação dos patrões em 5% nas contribuições para a Segurança Social dos trabalhadores a recibos verdes, prevista neste Código e anunciada pomposamente como “medida de combate à precariedade”. O Governo sabe que, enquanto diz “penalizar os empregadores”, está na realidade a poupá-los de cumprir as suas obrigações. A verdade é que o recibo verde é barato, baratíssimo, para os patrões, que assim se vêem dispensados de celebrar – como deveriam – contratos de trabalho e respeitar direitos que ficam por cumprir. A lei torna-se numa hipótese de não haver lei. A lei é o faroeste. Mas uma outra promessa central – e bem mais importante para muitas vidas – justificava a atenção e as esperanças: os descontos dos “trabalhadores independentes” passariam a ser proporcionais aos seus rendimentos. Era uma medida aguardada e urgente, uma vez que a intermitência nos rendimentos é a condição duma grande parte destas pessoas e uma das suas maiores dificuldades. No entanto, o que fica nesta lei é ainda pior do que já tínhamos: passa a haver apenas um regime de contribuição, com base em 70% dos rendimentos… do ano anterior! Fica assim na lei a marca da maior insensibilidade de todas: a não de querer responder às dificuldades mais marcantes que resultam da condição de trabalhar sob o peso da caderneta de recibos verdes. Sócrates
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recusa-se a perceber o que é a precariedade, porque não a quer enfrentar. Todas as outras alterações são demasiado ténues e não respondem ao essencial. Referências ainda por concretizar a um apoio em situação de doença ou uma eventual isenção em “início de actividade” são pormenores que não resolvem a enorme injustiça nas contribuições para a Segurança Social e nos direitos que faltam a estas pessoas. Aqui se acumula uma dívida: uma gigante dívida social, que precisa de ser recuperada pela resposta de todos e todas nós. E essa resposta só pode ser acabar com a enorme fraude dos recibos verdes, por mais que nos pintem a coisa com todas as cores.
O ensino da precariedade. Primeiro estranha-se, depois entranha-se Ricardo Vicente
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Competitividade e modernidade são palavras que enchem o discurso político dominante, entre patrões e governantes, relativamente ao ensino como ao trabalho. O Ensino relaciona-se directamente com o trabalho, porque qualifica as pessoas, possibilitando o crescimento das suas competências. Mas a qualificação não se resume apenas ao trabalho, o Ensino é um pilar fundamental na estruturação de uma sociedade, motivo pelo qual este não pode estar subordinado às apregoadas “necessidades do mercado de trabalho”.
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Actualmente, os fundamentos políticos dominantes que regem o mercado de trabalho – apregoando a competitividade, o mérito “reconhecido”, a individualização das relações de trabalho e a flexibilidade dos trabalhadores – e que se traduzem na prática no aumento da submissão à exploração pela chantagem da precariedade e do desemprego, estão cada vez mais entranhados no ensino. As diversas reformulações do ensino superior marcam este percurso. Começam com o aparecimento e crescimento das propinas, que tanta gente têm excluído de um Ensino Superior que se diz Público. Agrava-se com o Processo de Bolonha, que surge com os argumentos da modernidade, mobilidade, competitividade e uniformização, e culmina com o novo Regime Jurídico dos Institutos de Ensino Superior (RJIES) onde as universidades públicas se podem constituir em universidades públicas de direitos privados, e, os professores e alunos vêem a sua representatividade fortemente reduzida nos orgãos de gestão, substituídos por entidades privadas de “mérito reconhecido”. Deste modo as universidades passam a ter uma lógica empresarial, e o ensino, a par do trabalho, submete-se cada vez mais à lei da oferta e da procura. O Estado, a pouco e pouco, desresponsabiliza-se do seu financiamento e as classes mais baixas da sociedade encaram o ensino superior como sendo uma miragem. Mas ainda assim, o mercado não se esqueceu destes. Quem quiser sonhar com as possibilidades conferidas pelo ensino superior pode sempre recorrer a um
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empréstimo, hipotecando a sua vida ainda enquanto estudante. É fácil fazê-lo, os bancos iludem facilidades de pagamento e até já têm um balcão de atendimento dentro das diversas faculdades. Estas já não fornecem cartões de estudante próprios: quem quer ter um e usufruir dele tem de se dirigir a esse balcão e fornecer os seus dados ao banco. Só com muita sorte é que sai de lá sem uma nova conta bancária. A outra solução é submeter-se a um trabalho temporário, onde reina a precariedade, e conseguir ser um trabalhador estudante dentro de uma universidade que não tem, nem pretende ter, uma estrutura capaz de o receber. Durante o percurso escolar, os estudantes têm de competir entre si. Os que tiverem melhores notas têm mais possibilidades de encontrar trabalho e fugir ao desemprego. Também os professores estão sujeitos a estas regras: são submetidos a avaliações e têm de lançar quatro artigos científicos por ano. Se não, lá vêm as consequências. Assim, a Escola deixa de ser um espaço de construção e participação colectiva integrando os seus diversos actores para ser entregue à ferocidade do mercado. Com todo este percurso, desmoronou-se gradualmente o movimento estudantil e agora, neste contexto, parece cada vez mais difícil que este se reorganize (embora seja cada vez mais urgente), porque ainda está em refluxo, e a identidade colectiva está cada vez mais fragilizada. Esta fragilização, reflecte-se depois no “mercado de trabalho”, onde prosperam as mesmas regras, às quais estes novos trabalhadores já foram introduzidos.
Investigação Científica: até quando? Diana Neves Hugo Evangelista
Em pleno século XXI continua-se a pensar que os bolseiros são uns privilegiados. Porque estudam na área que escolheram e são pagos para isso. Porque gerem o seu tempo e plano de trabalho. Porque fazem o que gostam. Fazer o que se gosta é um privilégio? Desde quando? Quando é que começámos a pensar que ser feliz no trabalho é uma excepção e não deve ser uma razão primordial para trabalharmos? Estudamos, sim. Investigamos. Tentamos tirar Portugal da cauda da Europa e mostrar um Portugal tecnológico, inovador e interessado em investir no conhecimento e cultura. Com capacidades. O que Portugal nos dá realmente em troca de isso? A consequência do discurso “não se queixem que vocês até fazem aquilo que gostam”, dá-nos direito a não recebermos qualquer subsídio (desemprego, férias, doença, etc), a não termos direito a uma segurança social equivalente ao que ganhamos, a pagarmos propinas, a termos as responsabilidades de um investigador que trabalha e o enquadramento laboral de um estudante. Bolseiros e Bolseiras que trabalham durante anos sem que tenham os direitos mínimos de um trabalhador ou a perspectiva de ter um contrato de trabalho. Pedem-nos regime de exclusividade nos contratos das bolsas, quando estas não são actualizadas há mais de 8 anos e por vezes tardam em ser depositadas. Como querem que sobrevivamos nos meses que a bolsa está retida em burocracias da FCT? O descontentamento dos bolseiros tem vindo a notarse em vários momentos, tanto com acções individuais como com mobilizações mais ou menos participadas. Dessas destaca-se a “Fuga de Cérebros” no Aeroporto de Lisboa, onde um pequeno grupo de bolseiros simulou a saída do país
por não se sentirem respeitados em Portugal. Mais exemplos encontram-se em blogs como o “Mind this gap” em que descrevem a tristeza da realidade em Portugal ser esta e só encontrarem boas condições no estrangeiro, onde realmente lhes dão valor.Nestas últimas semanas de governação antes das eleições, o Ministério da Ciência fez um grande esforço publicitário para mostrar a importância do investimento na Investigação. Na prática, o investimento nos últimos 4 anos foi feito apenas no aumento no número de bolseiros, levando a que se produza mais trabalho científico à custa de mais pessoas na precariedade, mantendo no essencial a desvalorização do estatuto de bolseiro. E é sempre disso que se trata. Respeito. Respeito pelo trabalho científico. Respeito pelos investigadores que decidiram dedicar a sua vida a responder às questões que a sociedade coloca. Respeito pelas necessidades permanentes que os Bolseiros e Bolseiras preenchem. Respeito pelos direitos que nos são devidos. Quando vamos passar a ser o motor contestatário da sociedade, fazendo ver que enquanto formos bolseir@s e precári@s temos as nossas vida adiadas? Até quando? Quando cada bolseiro decidir exigir à FCT aquilo a que tem direito, essa não será uma vitória única mas sim uma vitória de todos.
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Ironia dos tempos que correm Ana Feijão deitar “dinheiro à rua” e até é um favor porque as pessoas gostam mesmo é de ganhar sabedoria (mais do que o ordenado). No fim, confirmam-se as desconfianças do patrão: as pessoas não servem, venham outras! Também há por aí quem diga que a contratação colectiva está demodée, que as pessoas são uma por uma e os direitos colectivos até desvirtuam o esforço individual. E até parece um jogo divertido aquele que se joga em muitas empresas, com gráficos e com bonequinhos que representam indivíduos (em tom de vudu) que sobem e descem pelo gráfico a fora e que se ultrapassam e que passam rasteiras. E também é por outras coisas que trabalhar por si está mais na moda. Por exemplo, aquela coisa gira que inventaram chamada “banco de horas” (que até podia dar para sentar e descansar, mas parece que o banco é outro ou tem picos...). Dizem, quem o inventou, que faz parte da flexibilidade e que ajuda a responder às necessidades da empresa e do mercado e do patrão, dizem que é bom porque se os trabalhadores e as trabalhadoras que trabalharem até às dez da noite ou até às duas da magrugada (depende das necessidades, claro) recebem (sem juros) esse tempo em horas de descanso, que até podem ser durante a semana (e claro que por esta lógica, a coisa das horas extraordinárias e dos horários nocturnos e dos fins-de-semana também já deram o que tinham a dar). Na verdade, o que está in e é moderno é a Precariedade. A outra senhora disse que se podia apagar a palavra precariedade do dicionário, mas diz-se que ela também não percebe muito de estilo.
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Os tempos modernos já lá vão. O trabalho em série e a conquista das 8h de trabalho diárias são coisas obsoletas. A modernização das condições e relações laborais trouxe conceitos novos como flexibilidade, autonomia, externalização, subcontratação, individualida-de, competição, empreendedorismo... Há quem diga que já ninguém quer o “emprego para a vida”, que é bom é mudar de local de trabalho e mesmo de trabalho porque isso faz acumular experiência e conhecimento; por isso há quem permita o fácil despedimento, numa época em que a contratação diminui enquanto aumenta o desemprego. Dos contratos sem termo chegamos agora aos magníficos contratos de um ano, aos belos contratos de meses, aos razoáveis contratos de 3 meses ou 1 mês até ao aceitável contrato de 1 semana ou 1 dia, passando pelos “assim-assim” falsos recibos verdes e as falsas avenças (“melhor do que nada”, não é o que dizem?) Há quem diga que hoje as pessoas procuram o que é barato, já agora, o que é barato e bom; por isso há quem permita aos empregadores terem acesso a subordinados a baixo custo e por isso também há quem considere razoável que as pessoas aceitem vender-se baratinhas. Ah, e não basta ser-se baratinho, é preciso também investir na formação e dominar uma série de ferramentas infindáveis e ser-se autónomo e em-preendedor, pelo menos para se ser melhor do que as outras pessoas que se vendem tão baratinhas quanto... É por causa do baratinho e da necessidade de autonomização das pessoas que trabalham, que também se fala muito por aí de estágios e “coisas” ocupacionais. É que esta coisa do trabalho custa caro ao patrão e sem ter a garantia de que as pessoas se desenrascam, não vale a pena
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Arquitectura em derrocada... quando o mercado paralelo se torna o único Sara Gamito Rui Maia
A arquitectura apresenta-se hoje como uma actividade consagrada às elites que exploram. De facto, trabalhar como arquitecto a tempo inteiro acaba por se aproximar mais a um hobby prestigiante do que de uma possibilidade real de emprego. Isto porque poucos são os que podem subsistir com os rendimentos auferidos do próprio trabalho. No campo relativamente circunscrito e anónimo de muitos ateliers instaurou-se, sem reservas, a prática de condenar os trabalhadores ao pagamento de salários irrisórios através de falsos recibos verdes e de os submeter a formas consecutivas de exploração. Uma situação que muitas vezes se arrasta até ao limite da esperança num contrato de trabalho que possa garantir a sobrevivência autónoma do trabalhador, contrato esse que raramente chega a ser concretizado. A garantir a arquitectura portuguesa encontramos uma maioria de recém-licenciados, remetidos a estágios incessantes, que almejam atingir o momento de preencher o primeiro falso recibo verde. “Por sorte”, temos ainda os arquitectos empregadores, uma minoria de privilegiados que garante a sua riqueza não só através da exploração dos seus trabalhadores, mas também pelo consórcio informal, ou não, com as grandes empresas construtoras e pela obtenção de projectos públicos fornecidos pelos governantes pela “porta do cavalo”. Nas faculdades, onde a formação começa, a relação de subordinação e o ensino da derrota vai percorrendo o seu
caminho e atingindo os seus objectivos. Os professores, na maioria donos de ateliers de arquitectura, são muitas vezes empregadores e desde logo preparam a sua futura massa trabalhadora para o inevitável estágio, quase sempre não remunerado, e para o privilégio que é trabalhar para os grandes arquitectos e ateliers. A noção do trabalho “por projectos” é usada para justificar o pagamento a recibos verdes e a ausência de relação contratual. Como se não houvesse uma relação trabalhador-empregador na esmagadora maioria dos casos, como se o jovem licenciado tivesse alguma autonomia quando trabalha num atelier, como até se em outras áreas onde ainda vão sendo enquadradas legalmente relações laborais também não se trabalhasse “por projectos”. Em arquitectura o mercado de trabalho vive quase completamente à margem da lei, o resultado fica à vista de todos, a perda quase completa de direitos dos trabalhadores e a normalização da exploração sem limites.
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A dívida fora-da-lei e os que se juntaram para acabar com ela Ricardo Moreira
Hoje, hoje mesmo em Portugal, quase um milhão de pessoas são obrigadas a trabalhar a falsos recibos verdes. É gente que é sobre-explorada, que não tem nenhuma protecção no desemprego e quase nunca tem apoio quando está doente ou quando decide ter filhos; não tem direito subsídios de férias ou de Natal, trabalhando sem horários e quase sempre com baixos salários. Estas pessoas são ainda sujeitas à enorme chantagem de poderem ser dispensadas de um dia para o outro. Além disto, e como se não bastasse, são obrigadas a pagar sozinhas, dos seus magros salários, as contribuições para a Segurança Social; o que não aconteceria se o seu contrato fosse reconhecido como manda a lei. Os patrões, sabendo da inércia da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), aproveitamse desta ilegalidade para baixarem os custos com a mão de obra. Para muitos e muitas o dinheiro não chega mesmo para tudo e as contribuições para a Segurança Social são deixadas para trás criando uma dívida que se vai acumulando e que representa o tamanho da injustiça a que estes/as trabalhadores/as são sujeitos/as. Fraude – Não existe outra palavra para uma situação que deixa a parte mais fraca, os/as trabalhadores/as, com a obrigação de pagar uma contribuição à Segurança Social que não lhes devia ser imputada e oferece aos patrões a oportunidade perfeita para reduzir os custos com os recursos humanos e ainda despedir à discrição. Da dívida social, da dívida que os patrões, em primeiro lugar, e a sociedade têm para com estas pessoas pouco se fala; esta dívida de solidariedade para com aqueles/as que menos ganham e que menos direitos é um problema escondido. Assim, sucessivos Governos vão deixando acumular estas dívidas sem nunca criar uma campanha para as executar, sabendo que nesse momento este enorme escândalo lhes custaria muito a resolver. Mas até o Estado, e, logo, todos nós, fica a perder com esta situação, pois não só a credibilidade da Segurança Social fica minada – porque estas pessoas contribuem e não podem usufruir da protecção social que lhes é devida e, logo, perdem a confiança, mas as receitas também são menores fazendo com que todo o sistema fique condenado a longo prazo. Para acabar com a hipocrisia de uma dívida que é fora-da-lei, quatro movimentos de trabalhadores/as precários/as juntaram-se para lançar uma petição que force a Assembleia da República a mudar esta situação injusta que afecta mais de 900 mil pessoas. O APRE (Activistas Precários), o FERVE (Fartos destes Recibos Verdes), os Intermitentes do Espectáculo e dos Audiovisuais e os Precários Inflexíveis perceberam que apenas criando pontes entre si conseguiriam realizar esta campanha de recolha de assinaturas nas ruas e na internet. Desde o primeiro momento que os Precários Inflexíveis compreenderam a importância desta campanha e temos feito todos os esforços para a convergência pioneira
dos primeiros movimentos de precários/as em Portugal, a fim de levar a cabo uma campanha que pode levar ao fim de uma dívida injusta e que vai levar a que os falsos recibos verdes, e a impunidade com que são usados pelos patrões sem escrúpulos, sejam mais uma vez discutidos pela sociedade.
Ilustração Pedro Rodrigues É uma oportunidade de ouro para, juntos, conseguirmos contribuir para o fim dos falsos recibos verdes, o que irá mudar a vida de milhões de pessoas e, por isso, os Precários Inflexíveis apelam a que todos/as recolham o máximo de assinaturas para esta petição que será o começo do fim para esta injustiça.
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FERVE :: Dois anos a Ferver Cristina Andrade
Há cerca de dois anos, surgiu o FERVE, acrónimo de Fartos/as d’Estes Recibos Verdes. Pretendíamos então agir em duas vertentes: por um lado, contribuir para a criação de uma espaço de partilha e de denúncia de situações de trabalho que configurassem a utilização indevida de recibos verdes, algo que designámos como ‘falsos’ recibos verdes; por outro lado, queríamos contribuir para a construção de um debate social alargado acerca desta que é uma das vertentes do trabalho precário. Em 2007, se fizéssemos uma pesquisa na internet sobre recibos verdes, a informação que encontrávamos era quase nula, o que sabíamos não ser consonante com a dimensão real dos ‘falsos’ recibos verdes na realidade laboral portuguesa. De facto, num universo de cerca de cinco milhões de trabalhadoras/es, quase um milhão são-no por via dos falsos recibos verdes. Como tal, parecia-nos existir um silenciamento desta realidade, cuja representatividade no discurso social, político e mediático não era compatível com a dimensão que assumia. Sentíamos as consequências desta invisibilidade no nosso quotidiano, visto sermos, também nós, trabalhadoras/es a recibos verdes. Há vários anos. Sentimos que era chegada a hora de fazermos ouvir a nossa voz, na primeira pessoa e sem intermediários. Assim, através da construção de um blogue e de um endereço de correio electrónico, passou a ser possível a partilha de experiências na primeira pessoa. Mesmo que publicadas quase sempre sob anonimato, a partilha destas histórias de vida permitiu que se começasse a construir um espírito de grupo, motivado pelo vínculo contratual e não pela experiência profissional per si, e colaborou também para a consciencialização individual e colectiva acerca da sua própria realidade profissional. Assim, foi possível colaborarmos na denúncia de diversas situações: RTP-Porto, manipuladores de bonecos do Contra-Informação, juristas da Autoridade para as Condições de Trabalho, enfermeiros, de jornalistas, professores/as das Actividades de Enriquecimento Curricular ou amas da Segurança Social. No último trimestre de 2007, lançámos uma petição a ser entregue à Assembleia da República solicitando a neutralização dos ‘falsos’ recibos verdes. Em dois meses, recolhemos mais de 5000 assinaturas válidas, que foram entregues na Assembleia da República, no dia 31 de Janeiro de 2008. Em Dezembro de 2008, mês em que o Ministério das Finanças e Administração Pública (MFAP) emitiu 200 mil multas às/aos trabalhadoras/es independentes, por não entrega da declaração anual de informação fiscal (IES-DA). A denúncia, feita pelo FERVE, rapidamente se alastrou ao país. Sucederam-se comunicados, cartas de reclamação e protestos. Em cinco dias, o Governo recuou, anulando as
multas e alargando o prazo de entrega da referida declaração. A relação com a comunicação social também se revelou muito importante. Passámos rapidamente de um cenário em que nos perguntavam se ‘isto era uma coisa a sério’ para um cenário de respeito pela nossa actividade, que nos levou a sermos participantes da acção. O FERVE manteve também, ao longo deste tempo, uma relação com todos os partidos com assento na Assembleia da República, solicitando audições e sendo recebido por todos os grupos parlamentares para expor a realidade dos falsos recibos verdes e a perspectiva do FERVE sobre este problema. Várias das nossas denúncias deram origem a acções parlamentares, não obstante os partidos da chamada “alternância governativa” terem sido os menos receptivos em relação à nossa existência e propostas. Em Junho de 2009, o reconhecimento do trabalho desenvolvido levou a que fossemos chamados pela Comissão
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convocado uma assembleia pública, no Porto, de onde sairia a organização do MayDay nesta cidade. Dois anos após o aparecimento do FERVE, num momento em que a expressão “falsos recibos verdes” está ganha, pareceu-nos apropriado e pertinente reflectir acerca do trabalho feito ao longo deste percurso, bem como perspectivar cenários para actuações futuras, num contexto em que a precariedade alastra, abrangendo cerca de dois milhões de trabalhadoras/es. Neste sentido, lançamos recentemente o livro “2 anos a FERVEr: retratos da luta, balanço da precariedade” que conta com a colaboração de activistas contra a precariedade, sindicalistas, investigadores/as, escritores e jornalistas, além de dez testemunhos ilustrados.
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de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, da Assembleia da República, para sermos ouvidos, na especialidade, sobre a proposta do Código Contributivo e aí apresentámos diversas propostas para introduzir mecanismos de justiça e de protecção social para os/as trabalhadores/as nesta situação. Mas o percurso do FERVE fez-se também de outro tipo de acções. Em 2007, soubemos que se preparava a organização do primeiro MayDay em Lisboa, trazendo para Portugal a parada de trabalhadores/as precários/as que vinha já acontecendo noutros pontos da Europa. Assim, participámos no MayDay de 2007 e 2008 e, em 2009, encetámos um novo patamar de intervenção, tendo
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CONTACTOS ÚTEIS
ferve http://fartosdestesrecibosverdes.blogspot.com/ abic http://www.abic-online.org/ porta 65 http://porta65.blogspot.com cgtp http://www.cgtp.pt sinttav http://www.sinttav.org/ finanças 707 206 707 CAT DGCI:Centro de Atendimento Telefónico
Francisco VanZeller Ilustração Rui Estrela
Costumam atender sempre e normalmente esclarecem bem a dúvida ou sabem dizer para quem devemos contactar para obter
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essa info.
Plataforma dos Intermitentes do Espectáculo e Audiovisual http://www.ac.eu.org/ http://mindthisgap.blogspot.com/ http://chainworkers.org/ http://www.generation-precaire.org http://www.stal.pt/ http://www.recibosverdes.org/ Apesar de não estar fundamentado com legislação esclarece
Paulo Morgado de Carvalho Ilustração Rui Estrela
bastantes questões básicas relacionadas com os recibos
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CONTACTOS INÚTEIS
Vieira da Silva Ilustração Rui Estrela
FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia "Utilize o contacto telefónico como último recurso e em circunstâncias excepcionais" site FCT Telefone (10 às 17h, dias úteis): +351 21 392 43 10 nunca atendem e demoram anos a responder aos emails. justificam-se com falta de recursos humanos. Não consideram que os atrasos no pagamento das bolsas seja uma circunstância excepcional pois é regra geral para qualquer bolseiro. é então um contacto a ser utilizado antes do bolseiro pegar fogo à instituição.
Instituto da Segurança Social, I.P. 808 266 266, dias úteis das 8h00 às 20h00 - nunca atendem... e quando atendem vão passando de secção em secção até que te dizem que vão passar ao primeiro sítio para onde falaste...
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Jornal do PI Novembro 2009 1€
Ilustração Rui Estrela
www.precariosinflexiveis.org precariosinflexiveis@gmail.com Jornal dos Precários Inflexíveis para o lançamento da Petição à Assembleia da República sobre os direitos na Segurança Social dos trabalhadores a falsos Recibos Verdes