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240 DEDu casse por Maria Canabal
O mais perfeccionista dos chefs escalou um exército de cozinheiros multiestrelados para cozinhar na celebração do 25º aniversário do Le Louis XV – o restaurante mais luxuoso do mundo e um dos maiores desafios de sua profícua vida profissional
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a Place du Casino, em frente à entrada do Hotel de Paris, em novembro passado, os manobristas interpretavam um número de balé de braços dados a faiscantes carros de luxo. Subindo uns poucos degraus da entrada surgia o esplêndido hall adornado por afrescos espetaculares. Lá, a estátua equestre de Luis XIV mantinha o joelho de uma das patas previsivelmente polido, sinal de uma tradição que perdura desde o século XIX: a de tocar a estátua nesse ponto para ter sorte no jogo. À direita, divisava-se a entrada do restaurante Le Louis XV, iluminado e mais brilhante que nunca - tratava-se do aniversariante da noite; motivo de toda a pompa e atenção do inabalável chef Alain Ducasse e de todo um público seletíssimo convidado para o acontecimento. Ali estava o homem cuja obsessão pelo perfeccionismo, um verdadeiro pleonasmo da exigência, levou-o a fazer e manter por 25 anos o Le Louis XV no pedestal de restaurante mais luxuoso do mundo. Prosseguindo. À esquerda, o célebre bar americano, onde toda Mônaco marca presença, via em vez de ser visto. O primeiro contato, os primeiros sorrisos; a cortesia extraordinária do diretor do hotel, que fazia questão de cumprimentar pessoalmente cada hóspede, especialmente os que vinham ao Hotel de Paris pela primeira vez: a magia subia como champanhe; o Hotel de Paris regia sua orquestra sinfônica de maneira particular para cada hóspede. Móveis preciosos, mármores, cúpulas de vidro da Belle Époque, peças de porcelana do século XIX, telas antigas, espelhos venezianos, banheiros reais: ali exprime-se o conceito de luxo em sua mais alta expressão. Vinte e cinco anos depois do encontro de Ducasse com Mônaco, o chef decidiu comemorar a data do que define como um acontecimento mágico e fundamental em sua vida. E Ducasse não é de fazer pouco: chamou seus colaboradores, amigos e companheiros de ofício do mundo todo. A alta sociedade dos chefs do planeta estava lá ao seu dispor: René Redzepi (Noma, Dinamarca), Alex Atala (D.O.M., Brasil), Joan Roca (El Celler de Can Roca, Espanha), Magnus Nilsson (Fäviken, Suécia), Pierre Troisgros (Maison Troisgros, França), Quique Dacosta (Quique Dacosta, Espanha), Pascal Barbot (L’Astrance, França), Daniel Patterson (COI, EUA), Andoni Luis Aduriz (Mugaritz, Espanha), Anne-Sophie Pic (Maison Pic, França), Nadia Santini (Dal Pescatore, Itália), David Chang (Momofuku, EUA), Massimo Bottura (Osteria Francescana, Itália), Tetsuya Wakuda (Tetsuya, Austrália), Elena Arzak (Arzak, Espanha) Joël Robuchon (França)... No total, mais de 240 compareceram, enfileirando 300 estrelas Michelin em seu céu de brigadeiro.
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Foram três dias de festividades em momentos às vezes descontraídos. Para a manhã do dia 18, Ducasse organizou um mercado efêmero para o qual convidou seus fornecedores, agricultores, pescadores e artesãos, com a intenção de alardear o esplendor do terroir mediterrâneo. O almoço foi servido nos balcões do mercado improvisado. E isso era apenas a introdução ao tema que o menu, guardado a sete chaves até o momento de ser servido, enfatizaria a seguir.
A ceia
Os produtos foram colhidos algumas horas antes. O chef queria o melhor da terra em sua forma mais pura, sem atalhos. O trabalho dos agricultores tinha de ser prolongado; os sabores preservados. Daí vem a filosofia e parte da fama de Ducasse. Sua mesa brilha com o verdadeiro sabor das frutas maturadas ao sol e dos vegetais crescidos na terra limpa e vizinha; dos dourados, pargos e polvos capturados nas redes de Gérard Ri-
desafio: alcançar estrelas O pleonasmo da exigência olha para trás e vê o desafio vencido. Era maio de 1987 quando o chef abriu o Louis XV. O Príncipe Rainier II havia depositado sua confiança nesse jovem chef de 30 anos, conferindo-lhe uma missão específica: transformar o Louis XV no primeiro restaurante de hotel a receber três estrelas Michelin. Também deu um prazo específico para a façanha: quatro anos. Era tudo o que nosso obcecado mais podia desejar – um desafio. Trinta e três meses depois, a missão já tinha sido cumprida. Ducasse fala do passado e da cozinha daquela época: “Já estávamos muito atentos aos terroirs da região e seus produtos. Era uma pequena revolução no mundo da alta gastronomia. Agora, nossa cozinha é ainda mais pura. Usamos poucas gorduras, pouco sal. A técnica está a serviço dos produtos”.
No jantar, sua mensagem em porções miraculosas de sabor, delicadeza e respeito à natureza calaram fundo todos os jovens e ambiciosos chefs presentes
naldi, um dos últimos pescadores de Mônaco. Nos fins de semana, ele esquadrinha mercados de Nice e da vizinha Itália em busca dos melhores produtos dos Alpes Marítimos e do Piemonte; vistoria os mercados da Cours Saleya, em Nice, para encontrar o coalho de ovelha e os queijos de cabra, o aipo e os feijões brancos das colinas de Lantosque. Em Ventimiglia e San Remo, abastece-se de verduras para as saladas silvestres, de ervas frescas, camarões do Golfo de Gênova, alcachofras e farinha de castanha. “Nada me dá mais prazer do que a mudança de estações e a expectativa dos produtos que virão: as favas e os ensopados em fevereiro, a caça e os cogumelos no outono, os cítricos do inverno”, diz. Como contraponto a todo luxo, a cozinha de Louis XV deriva da raiz camponesa e caracteriza-se por uma exigência que dispensa quantidade e variedade em benefício da qualidade. Essa Pureza à mesa: o evento durou três dias e teve almoço servido no mercado e jantar de gala no salão do restaurante, sempre privilegiando produtos regionais
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Os convocados: abaixo, a equipe composta por representantes de diferentes gerações e nacionalidades. Ao lado, o mestre discursando
Um toque de história simplicidade oculta a complexidade da execução que luta por reter o controle total sobre o frescor e sabor das matérias-primas brutas. Por isso, tudo é feito dentro do restaurante. A cada ano, cerca de quatro toneladas e meia de chocolate cru são trabalhadas pelo seu mestre-chocolateiro. É a imagem da Provença, uma cozinha da terra, do azeite e da produção maternal, verdadeira – o exato oposto de uma cozinha de tendência. “Um restaurante sempre será um teatro”, diz Alain Ducasse. A ceia de gala teve uma coreografia digna de Lyle Beniga. Os gestos, suaves, fizeram honra à gastronomia francesa. Os pratos tinham adornos de peixes, executados pelo artista Jean-Pierre Guilleron, com a técnica japonesa gyotaku. Ducasse, que já foi tido como timoneiro do foie gras e da trufa, vê-se mais natural. “Essa é a cozinha da verdade, da diversidade e do compartilhamento. Ela mostra que todos podem encontrar um lugar onde deitar suas raízes.” No jantar, sua mensagem em porções miraculosas de sabor, delicadeza e respeito à natureza calaram fundo todos os jovens e ambiciosos chefs presentes. Tudo ficará gravado para sempre na memória dos convidados como uma virada na página da história gastronômica. Para muito melhor.
René Redzepi, Dinamarca
O Hotel de Paris foi erguido em 1864 no planalto árido de Spellugues, quando o cassino Monte Carlo mal começava a tomar forma. A recém-construída casa de jogos em estilo Belle Époque era então o pináculo das enormes expectativas depositadas no lugar. Com o apoio do príncipe Carlos III, o multimilionário François Blanc lançou-se num desafio desproporcional: transformar um pedaço de terra seco que só dava limoeiros e oliveiras em uma meca do jogo e do excesso. O resultado superou todas as expectativas. Para os jogadores que vinham de todas as partes da Europa conhecerem a nova cara do principado, Blanc mandou construir o Hôoel de Paris usando como modelo o Grand Hotel do Boulevard des Capucines, em Paris. Na visão de Blanc, a elite internacional se encontraria em seus salões: reis, príncipes, chefes de estado, ministros, oligarquias governamentais, industriais, das ciências e das artes. Essa ambição do milionário deu início à epopeia jet-set do Hotel de Paris, que segue viva, enriquecida por um destino mais que novelesco e que fez esse palácio entrar nas páginas da história do Principado de Mônaco.
Andoni Luis Aduriz, Espanha
“Servir um jantar perfeito para 400 pessoas foi tão impressionante quanto as palavras de Ducasse. Ele falou que nossa missão como chefs é respeitar o planeta.“
“É um momento histórico. É um privilégio estar aqui. Estou rodeado por meus mitos, dos chefs que li nos livros, de chefs inacessíveis, semideuses da cozinha”.
Quique Dacosta, Espanha
Elena Arzak, Espanha
O Menu
“Ducasse reuniu 250 chefs, mas acima de tudo juntou-nos. Não há nenhum limite, nenhum ranking ou listas. Há felicidade, criatividade. É um momento único.”
Verduras cruas da horta, coloridas e crocantes Verduras laminadas evocavam a abundância do mercado da Riviera: trompetas de Albenga, abobrinhas, cenouras, rabanetes vermelhos e negros, beterrabas, aipo, erva-doce, alcachofras, nabo branco, alface, chicória, endívias vermelhas, salsa. Para acompanhar, pesto de azeitonas.
“Eu gosto da maneira de cozinhar do Ducasse, sua obsessão pelo produto e pelo produtor. Tudo o que aprendo me ajuda muito na minha carreira.”
Couvert mediterrâneo Uma coreografia divina depositava em cada mesa um quarteto de pãezinhos. Focaccia, tabatière, baguette e pão preto acompanhados de um pratinho de azeite de oliva de montanha recém-prensado. Jovem, ardente e opaco.
Camarão de San Remo, gelatina e caviar Provenientes da pesca artesanal do Golfo de Gênova, camarões marinados com uma nota discreta de limão de Menton. Chegaram sobre um leito de coral com gelatina sabor de mar e a força aromática do caviar do rio Amour. Pequenos casulos dourados, firmes e com sabor de amêndoas.
Tom Aikens, Reino Unido “Único. Realmente algo muito especial. Inesquecível”.
Brett Graham, Reino Unido “Apenas um chef no mundo pode fazer isso.”
Trigo silvestre de Haute-Provence, alcachofras espinhosas e trufa de Alba Com sabor primitivo, o cereal dourado mescla-se com a delicadeza da alcachofra e da trufa branca. Servidos em um prato fundo com colher, é um gesto à comida da infância.
Claude Bosi, Reino Unido
“Isto é magia. O poder de convocatória a este nível só Ducasse tem. A qualidade de tudo é extrema, e sua generosidade, única. Foi meu professor. Parabéns pelos últimos 25 anos.”
Pescado de pesca local e caldo de sabores marinhos Filés de salmão vermelho, dourado, Saint-Pierre, polvo... Tudo regado com um caldo de pescado de arrecifes com açafrão. A pesca local compareceu à festa com toda força de sua simplicidade. Um prato cheio de sol, o tempero mais apreciado por aqui.
Tortinha de caça e acelgas do país, salada de trufa e molho de ensopado A tortinha, fina e crocante, concentrava sabores selvagens. No recheio, a caça desfiada se mesclava às acelgas. O molho foi extraído de um caldo feito dos ossos e engrossado com miúdos. A salada foi temperada com vinagrete de trufa.
Alex Atala, Brasil
“Impressionou-me muito vê-lo como um defensor do planeta. Ducasse representou sempre a cozinha do caviar, foie gras e trufas. Hoje, falamos da natureza, de limitar as gorduras, usar pouco sal, dar nobreza a produtos humildes, mas milenares.”
Cookpot de maçã e marmelo com sorvete de leite de Rocagel O marmelo silvestre da Provença e as fatias de maçã foram intercaladas em um cookpot. Em uma tacinha pequena, o sorvete de leite da fazenda da princesa Grace em Rocagel chega à mesa com um pontinho sagaz de sal.
Harmonia etílica. Na larga tradição de alianças e combinações dos vinhos, vieram a calhar os anos de experiência e dedicação de Gérard Margeon, chef sommelier de todos os restaurantes de Alain Ducasse, e Noël Bajor, chef sommelier do Louis XV. Eles escolheram para a ceia garrafas de vinícolas e enotecas de poucos produtores, uma seleção especial. Reservas preciosas. Cada uma expressando a paciência, o trabalho e o talento de seus produtores: Dom Pérignon Vintage Rosé 2000, Dom Pérignon Vintage Rosé 1995, Dom Pérignon Oenothèque Vintage 1993, “Y” 2009, Château Cheval Blanc 2004, Saint-Emilion, Premier Grand Cru Classé A, Château d’Yquem 1988 e conhaque Hennessy Paradis Impérial Rare.
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