Princípios, Volume 03, Número 04, 1996

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PRINCIPIOS Revista de Filosofia

Departamento de Filosofia CCHLAIUFRN

Ano 3- - n. 4 - janeiro/dezembro 1996 ---

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ERRATA

NA CONTRA-CAPA, ONDE HA CONSELHO EDITORIAL, ACRESCENTEM-SE OS NOMES:

MARKUS FIGUEIRA DA SILVA TASSOS LYCURGO G. N. LYCURGO

...­


CONSELHO EDITORIAL Anlaoio Basilio Thomaz deMenezes Cinara Maria Leite Nahra ClAudio Ferreira Costa FernandaMachado de Bulh6es Hermano MachadoFerreiraLima JuanAdolfo Bonaccini Lia Alcoforado de Melo EDITORA RESPONSAVEL Lia Maria Alcoforado de Melo CAt-A ClAudio Ferreira Costa EDITORACAO ELETROmCA Regina Gonyalves de Melo Ende~o:

Deparf!lmento de Filosofia da UFRN. CCHLA. Campus Universi­ tario - LagoaNova. CEP: 59078-970 - Natal-RN

Publi~ anual ~ dO exemplar: R$ 5.00

Aceita-se permuta

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Catal~ DB publica9lO. UFRNlBiblioteca CeDtral "Zila Mamede". Divislo de Servi90S T6cDicos.

Princfpios / UFRN,CCHLA. _ Ano I, n. 1 (nov. 1994)_. _ Natal: UFRN. CCHLA, 1994 Anual Descri~ baseada em: ano 2, n. 3 (juIJdez. 1995)publicadapela EDUFRN - Ed. da UFRN. 1. Filosofia 015 - Peri6dicos

ISBN 0I04-8694

RNIUFIBCZM

97/09

CDUI (OS)


PRINCiPIOS

Ano 3, n. 4 jan./dez. 1996

Os paradoxos de Prior e 0 calculo proposicional deontico relevante Eo AngelaMaria Paiva Cruz

5

Habermas: introducao a metacritica da razao

instrumental AntonioBasilio Novaes Thomaz de Menezes

19

A filosofia marxiana: uma analise das teses de Marx sobre Feuerbach ; AntonioRufino Vieira

,

27

Natureza e lei natural nos ensaios de Montaigne CelsoMartins Azar Filho

51

Uma defesamoral do aborto Cinara Maria Leite Nahra

72

Processo primario e emocao estetica Claudio Ferreira Costa

86

A caminho de uma filosofia extra-moral Fernanda Machado de Bulhoes

103


PRINCiPIOS

Ano 3, n. 4 jan.ldez. 1996

Paradoxos de decisao social Glenn ~ Erickson & JohnA. Fossa

-

110

Espiritos e rel6gios Josailton Fernandes de Mendonca ..

121

Virtude e contemplacao na ethica nicomachea JuanAdolfo Bonaccini

130

Heraclito e Protagoras: 0 logos dojogo e 0 jogo do logos MarcosAurelio Monteiro da Fonseca

144

Verdade e metafisica: Descartes na rota da descoberta dos fundamentos da ciencia Roberto Lima de Souza

I

156

Schopenhauer, fil6sofo do absurdo (Traducao da l a parte do livro de ROSSET, Clement) MariaMarta Guerra Husseini

178

Erratas do artigo "Peculiaridades e Dificuldades do conceito de Idealismo Transcendental em Kant", aparecido no mimero anterior (Principios, ano II n. 3, jul./dez., 1995)

212


OSPARADOXOSDEPRIOR E 0 CALCULO PROPOSICIONAL DEONTICO RELEVANTE Eo1

Angela Maria Paiva Cruz Departamento de Filosofia da UFRN

Normative fragment of natural language make up sentences that express acts and describe norms. In this fragment there are criteria of logic thuth and rela­ tion of consequence between sentences which constitute a natural d.eontic logic. This paper adoptsa translation functionfrom the set of sentences of the normative fragment of natural language into the set of formulae in the formal language and claims that such function translates logically true sentences of the natural language into provable formulae of the formal calculus. With Von Wright's deontic calculus (1951), it does not fit and generates paradoxes, which areknown as Prior's paradoxes. Cruz's paraconsistent d.eontic proposi­ tional calculus, D 1 (1993) avoidssome paradoxes, exceptthat generated by the formula OB ~ O(A ~ B). One builds a relevant deontic propositional calcu­ lus that aims to avoidthese paradoxes and keeps intact all other fundamental features of d.eontic operators, since the formula B ~ (A ~ B) is improable'in somerelavantcalculi.

I Prine. I Natal I ADo 3 I n.4 I p.05-18 ~Jo<;;;·an;;;;;';;.;;/de=z;;;;.;..~1;;.;;99;.....;;6-JI I 1- ..


6

1. Introdu~io Os sistemas de 16giea deontica sao eonstruidos com 0 objetivo de estudar coneeitos normativos tais eomo: II obrigacao", "permissio", "proibicao", "indiferenca" e "comprometimento". Nesses sistemas devem ser preservadas eertas propriedades que valem no fragmento normativo da linguagem natural, como por exemplo a "verdade 16giea,,2 de uma sentence, Para que haja a preservacao de tais propriedades define-se uma fun~ao tradueao "t" eomo uma aplicaejo um-a-um que vai do eonjunto de senten­ cas do fragmento normativo da linguagem natural para 0 eonjunto de f6rmulas da linguagem do sistema formal, satisfazendo eertas condicoes eitadas em AQVIST (01:623). E pretende-se que a traducao "t" seja completamente adequada, ou seja, que "t" tra­ duza UIIl;R sentenea logieamente verdadeira numa f6rmula demons­ travel eta linguagem do sistema formal. Conforme AQVIST (01:639), nos sistemas classicos de 16giea deontica esta adequaeao nao se da3, gerando situacees eonflitantes que se denominam Paradoxos da Obrigaejo Derivada de Prior. Von Wright em 1956 eonstruiu sistemas de 16giea deontica diadica eomo forma de evitar os paradoxos, mas algunsdeles ainda persistem. Alem dos trabalhos de Von Wright, AQVIST (01:605­ 714) apresenta (ou faz referencia) as contribuicoes de W.H. Han­ son (1966), A.R. Anderson (1956), R. Hilpinen (1971), H.N. Castaiieda (1981), Van Frassen (1972), 1. Hintikka (1971) e ou­ tros, para a 16gica deontica. Contribuicoes mais recentes sao da­ das por WernerSteimer (1992) e Claudio Pizzi" (1991, 1993). Os sistemas de 16giea deontica paraeonsistentes construidos por L. Z. Puga (1985) eonstituiram uma motivacao para a formulaeao de A. M. P. Cruz (1993) de sistemas de 16giea deontica monadica e dia­ diea paraconsistente com a mesma pretensio de Von Wright. No


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entanto, urn dos paradoxos, mais precisamente aquele gerado pela formula OB ~ O(A ~ B) nio eevitado nestes sistemas. Em alguns sistemas de logica relevante como 0 sistema E de ANDERSON e BELNAP (02:30), a formula B ~ (A ~ B) nio e demonstravel. Tal fato sugere que a formula deOntica .acimacita­ da tambem nao 0 seja, numa Iogica deontica relevante. o aspecto nio extensional da "~" relevante e dos ope­ radores deonticos foi urn outro fator que contribuiu para 0 trata­ mento dos paradoxos em logica deontica relevante.

2. A logica relevante A 16gica deontica relevante introduzida por Ackermann (1956) e desenvolvida principalmente por ANDERSON e BELNAP (02:05) tern como programa a analise formal da nOyio de implicaejo 16gica, geralmente associada a "acarretamento" e expressa em locucees 16gicas como "se ... entao ...", "implica", etc. De acordo com DA COSTA (07:152), "a 16gica relevante tenta estabelecer as condicoes necessarias e suficientes para afir­ mar-se que urn enunciado A implicaum enunciado B". Os principais sistemas relevantes propostos por ANDERSON e BELNAP sao 0 E e 0 R que foram fonnulados de acordo com a seguinte lista de postulados: AI. «A ~ A) ~ B) ~ B ~ C) ~ (A ~ C» A2. (A ~ B) ~ A3. (A~(A~B»~(A~B) A4. AAB~A AS. AAB~B A6. «A ~ B) A (A ~ C» ~ (A ~ (B A C»

«B


8

A7. «(A --+ A) --+ A) /\ «B --+ B) --+ B» --+ «(A /\ B) --+ (A /\ B» --+ (A /\ B» A8. A--+AvB A9. B--+AvB AIO. «A --+ C) /\ (B --+ C» --+ «A v B) --+ C) All. (A /\ (B V C» --+ «A /\ B) v C) AI2. (A ~ ,..,A) --+ -A ~I3. (A --+ ,..,B) --+ (B --+ ,..,A) A14. -A--+A AIS. A --+ «A --+ A) --+ A) No sistema E os axiomas sao: Al - AI4. No sistema R os axiomas sao: Al - AIS. Para ambos, as regras sao:--+E: de A--+B e A infere-se B A[: de A e B infere-se A /\ B. No sistema E, a implicacao A --+ B deve satisfazer a duas condi~es que se denominam condieao de relevancia e condicao de necessidade que podem ser resumidas da seguinte forma: 1. relevincia: Se A ~ B e demonstravel, entio A e B tSm pelomenos umavariavel proposicional em comum; 2. necessidade: Se A --+ B e verdadeira, entio ela 0 e ne­ cessariamente, pois depende de fatores 16gico-formais. Em R, somente a condi~ao de relevincia e considerada.Em E define-se "A e necessluio" (que escrevemos DA) como sendo a abreviaeso de ( A --+ A) --+ A 0 sistema R e obtido de E por acrescimo do Axioma A --+ «A --+ A) --+ A). Deste modo, obtem­ se A --+ DA (por substituicao), donde se conclui que neste sistema nio h8. distin~o entreverdade e verdade necessaria. ANDERSON e BELNAP (02:349) apresenta varias consi­ deracoes segundo as quais 0 sistema R einteressante ou mais inte­


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ressante que outros sistemas relevantes. A mais importante a ser mencionada e que '" "R ou seus fragmentos tem multiples cone­ xoes com varies aspectos da logica: seminticas no estilo Kripke, fonnula~ao no estilo Gentzen e deducao natural, semanticas alge­ bricas, etc". Considerando que necessitamos de um sistema que nio demonstre formulas do tipo A ~ (B ~ A) que sao geradoras de paradoxos, 0 sistemaR nio e interessante para 0 nosso proposito. o sistemaE apresenta-se mais adequado.

3. A 16gica deOntica relevante Construimos urn sistema de logica deontlca relevante acrescentando 0 simbolo 0 (obrigatorio) aos simbolos primitivos do sistemaE e acrescentando os postulados que regem este simbo­ 10. Denominamos 0 novo sistemade Eo. 1. Linguagem e Axiomatica de Eo. 1. Simbolos logicos: -, 1\, V, ~,O. 2. Variaveis proposicionais: urn conjunto infinito enumera­ vel de variaveis proposicionais. 3. Simbolos auxiliares: ( ) (parenteses), DEFINICAO 1. (de formula proposicional e formula deontica). 1. Se A euma variavel proposicional, entio A euma formula pro­ posicional; 2. Se A e B sao formulas proposicionais, entao -A, AAB, A v B e A ~ B sao f6rmulas proposicionais; 3. Se A e uma formula proposicional, OA euma formula deontica; 4. Se A e uma combinacao booleana de formulas deonticas, entao A euma formula deontica;


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5. Se A e uma combinacao booleana de formulas proposicionais comformulas deonticas, entio A euma formula deontica; 6. Somente as formulas permitidas por (1) e (2) sao formulas pro­ posicionais e somente as formulas permitidas por (3), (4) e (5) sao formulas deonticas, DEFINICXO 2. (de outros simbolos)': PA=dcf -o""A FA=dcf O""A IA=dcf PA /\ P""A

(PA: permitido A) (FA: proibido A) (IA: indiferente A)

Postulados de Eo (axiomas e regras de inferencia): AI. «A~A)~B)~B A2. (1\ ~ B) ~ ~ C) ~ (A ~ C» A3. (A~(A~B»~(A~B) A4. A/\B~A AS. A/\B~B A6. «A ~ B) /\ (A ~ C» ~ (A ~ ( B /\ C» A7. «(A ~ A) ~ A) /\ «(8 ~ B) ~ B» ~ «(A /\ B) ~ (A /\ B» ~(A~B» AS. A~AvB A9. B~AvB AIO. «A~C) /\ (B ~ C» ~ «A vB) ~ C) All. (A/\ (B v C» ~ «A/\ B) v C) AI2. (A ~ ""A) ~ ""A Al3. (A ~ ""B) ~ (B ~ ""A)

«B

AI4.""""A~A

AI5. OA~A AI6. O(A ~ B) ~ (OA ~ OB)


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RI. (~E): De A ~ B e A infere-se B R2. (1\1): De A e B infere-se A A B R3. Regra de GOdel ou Osnecessitacao: Se ~ A, entio ~ OA. o simbolo "~" e a implica~io relevante que satisfaz as condieoes expressas anterionnente. _ Outros sistemas deonticos relevantes podem ser obtidos a partir do sistema E. seja por privilegiar P (permitido) como opera­ dor primitive, ou por acrescentar OUtrOS postulados para 0 (obrigatorio). No sistema Eo> os axiomas AI5 e AI6 e a Regra de O-necessita9ao constituem a contraparte modal do sistema. que se assemelha (pelo menosno aspecto sintatico) aquela contraparte do sistema modal aletico T proposto por Robert Feys (1937) e repre­ sentam normas ideais para 0 operador 0 6 . 2. Conseqii~ncia sintatica

DEFlNIc;AO 3. (de uma prova que A implica B): Uma prova que A...... An implica(m) B consiste de uma lista L de formulas­ bem-formadas Sr, ...• Sm. Sm = B. tal que. cada uma das quais. ou (a) euma das premissas AI, ...• An. ou. (b) eurn axioma, ou. (c) e uma consequencia de formulas anteriores por aplicacoes de regras de inferencia, tal que L satisfaz as condi~es (i) e (ii) a se­ ~:

.

( i ) asteriscos (*f podemser prefixados para os passos SI...... 'Sm, da prova, satisfazendo as seguintes regras. . (a) Se S, euma premissa, entao S esta com asterisco. (b) Se Sj e urn axioma que nao e uma premissa, entao S nao esta com asterisco. ( c) Se S, eumaconsequencia de Sj e Sj ~ S, por uma apli­ ca980 de ~E. entao Si esta com asterisco se pelo menos uma de Sj e Sj ~ Sj esta com asterisco, e de outro modo nao esta com aste- , risco.


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(d) Se Si e uma consequencia de Sj e Sk por uma aplicacao de 1\1, entao se Sj e Sk estao com asteriscos, enmo S, esta com asterisco, e se nenhuma delas esta com asterisco, entao Si nao em com asterisco. (ii) Em consequencia de (i), 0 passo final Sm (= B) esta com aste­ risco. ­ A no~o de teorema e definida de modo usual. E importante mostrar que as condicoes de relevincia e de necessidade do sistema E valem em Eo. Para isto enunciamos 0 lema abaixo:

DEFINI<;XO 4. (de extensao conservativa): Urn sistema K' euma extensao conservativa de urn sistema K se e somente se cada for­ mula A da linguagem de K que eteorema em K', eteorema em K. LEMA: I: Eo euma extensao conservativa de E. Demonstracao: Imediatapela analise dos postulados AI-Al3 e RI eR2.

Como consequencia do Lema I, a defini~ao de "urna prova que A implica B" em Eo e dada acrescentando a definicao dada acima, a seguinte clausula.' e) Se Si euma consequencia de Sj por uma aplica~ao de 0­ necessitacao, entao se Sj esta com asterisco, entao S, esta com asterisco. Enunciamos a seguir teoremas do sistema E. 0 primeiro deles eurn teorema da dedu~o apropriado para E. TEOREMA2. (Teorema da Implicacao): Se existe uma prova em E que AI, ... ,Au. implica(m) B, entao (AI, I\. .. /\ Au.)~ B e demonstravel em E. TEOREMA 3. Se A ~ B edemonstravel em E, entac A e B com­ partilham alguma variavel proposicional.


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Demonstraeao: Para essa demonstracao utilizamos as matrizes apresentadas em ANDERSON e BELNAP (02:33). TEOREMA 4: Se A eteorema de E, entao para cada atribuiy80 de valores para as variaveis em A, v(A) ~ +1 (onde v(A) e 0 valor assumido por A para uma atribuieao de valores a suas variaveis proposicionais). Para demonstrar 0 Teorema 4, utilizamos as seguintes ma­ trizes apresentadas em ANDERSON e BELNAP (02:238-9l

--=-i 1\

-5. -4

-3 -2 -1 +1

+2 +3 +4 +5 v

-5

-5 -4 -3 +5 +4 +3

-2 +2

-1 +1

+1 +2 +3 -1 -2 -3

+4

-5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5

-4

-3 -5

-2 -5

-1

+2 +3 -5 -5

-4

-4

-4

-4

-3 -2 -2 -5

-3 -2 -1 -5

-4 -4 -4 -4

-4

-3 -3 -3 -5 -4

-4

-4

-3 -3 -3

-3 -2 -2

-3 -2 -1

+1 -5 -5 -5 -5 -5 +1 +1 +1 "+1 +1

+4

-5

+2 +2 +2 +2

-3 -3 -3 -2 -3 -2 +1 +1 +2 +2 +3 +3 +3 +4 +3 +3

-3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5

-5 -5

-4 -4 -4

-3 -3 -3 -3 -2 -1 +3 +3 +3 +4 +5

-2 -3

-1 +1 -1 +1 -1 +2 -1 +3 -1 +4 -1 +5 +5 +1 +5 +2 +5 +3 +5 +4 +5 +5

+2 +2 +2 +3 +4 +5 +2 +2 +3 +4 +5

+3 +3 +3 +3 +4 +5 +3 +3 +3 +4 +5

+5 +5 +5 +5 +5 +5 +5 +5 +5 +5 +5

-4

-4

-3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5

-3 -2 -1

-5 -4 -4 -4 -4

-5 -4 -4 -4 -4

-3 -2 -1 +1 +2 +2 +2 +3 +3 +4 +4 +5 +5

-2

-2 -2

-1 +4 +4 +4 +4 +5

+1

-4

-4

-5

+4 +4 +4

+4 +4 +5 +4 +4 +4 +4

+5

+5 -5 +5 -5


14 ~

-5 -4

-3 -2 -1 +1

+2 +3 +4 +5

-5 +2 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5 -5

-4

+2 +2 -5 -5 -5 -4 -4

-5 -5 -5

-3 +2 +2 +2 -5 -5

-2 +2 +2 +2 +2 -5

-1 +2 +2 +2 +2 +1

-4 -4 -4

-4 -4 -4 -4

-4 -4 -4 -4

-5

-5

-5 -5

+2 +3 +4 +2 +2 +2 +2 -5 +2 +2 +2 -5 -5 +2 +2 -5 -5 -5 +2 -5 -5 -5 -5 +1 +2 +2 "+2 -5 +2 +2 +2 -5 -5 +2 +2 -5 -5 -5 +2 -5 -5 -5 -5 +1

+5 +2 +2 +2 +2 +2 +2 +2 +2 +2 +2

COROLAIuo 5. (Teorema da Implicacao) Se existe uma prova em Eo que AI, ... , An implica(m) B, entao (AI, I\. ../\ An) ~ B e demonstravel em Eo. COROLAIuo 6. Se A ~ B e demonstravel em Eo, entao A e B compartilham algomavariavel proposicional. Demonstracao: Consequencia imediata do Lema I. COROLAIuo 7: Se A e teorema de Eo, entio para carla atribui~io de valores para as variaveis em A, v(A) ~ +1 (onde v(A) e 0 valor assumido por A para uma atribuicao de valores a suas variaveis), Demonstraeao: Acrescentamos uma matriz para 0 conectivo 0 (obrigat6rio) e fazemos urna prova por indu~io no comprimento n da prova de A. Sejaa matriz: A OA

-5 -5

-4

-5

-3 -3

-2 -2

-1 -1

+1 +1

+2 +3 +4 +2 +3 +4

+5 +5

Base: n = 1. Neste caso A e urn axioma. Se A e um dos axiomas de At" - A14, entio v(A) ~ + I, pelo Teorema 3, considerando que segundo ANDERSON e BELNAP (02:239) "... as matrizes satisfa­ zem E". Se A eo axioma AI50u A16, obtemos v(A) ~ + 19. Passo indutivo: n » I. Neste caso precisamos provar que 0 corola­ rio vale quando:


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(a) A vem de f6rmulas anteriores por Rl ; (b) A vem de f6rmulas anteriores por R2; (c) A vem de formulas anteriores por R3 (Osnecessitacao). (a) Se v(B ~ A) ~ +1 e v(B) ~ + 1, entao v(A) ~ + 1, pela matriz do"~"

(b) Se v(C) ~ + 1 e v(B) ~ + 1, entao V(C A B) ~ + 1, pela matriz do "A". (c) Se v(B) ~ + 1, v(OB) ~ + 1, pela matriz do "0" Logo, dado que a propriedade vale para os axiomas e e preservada pelas regras de inferencia, entao por indu~o no com­ primento da prova de A, ela vale para todos os teoremas de Eo. TEOREMA 8. Em Eo nao sao teoremas as f6rmulas: 1. A~OA 2. O(A A ...,A) ~ OB ( expressa a trivi~ao do sistema pelo dilema deOntico) 3. ...,A~ (A~ OB) (paradoxo de Prior) 4. OB ~ (A ~ OB) (paradoxo de Prior) 5. O":-A ~ O(A ~ B) (paradoxo de Prior) 6. OB ~ O(A ~ B) (paradoxo de Prior) Demonstracao: Cada uma das formulas acima apresenta valor me­ nor que 1 (urn) para pelo menos uma atribuicao de valores, con­ forme mostramos a seguir: 1. v(A ~ OA) = ~5, quando, v(A) = -4. 2. v(O(A A ...,A) ~ OB» < 1, quando v(A) = ~3 e v(B) = -5. 3. v«...,A ~ (A ~ OB» < 1, quando v(A) = +2 e v(B) = 4. 4. v(OB ~ (A ~ OB» < 1, quando v(A) = -1 e v(B) = -3. 5. v(O...,A ~ O(A ~ B» < 1, quando v(A) = +1 e v(B) = 4. 6. v(OB ~ O(A ~ B» < 1, quando v(A) = -3 e v(B) = +2 Portanto, pelo Corolario 7, nenhuma delas eteorema de Eo.


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Conclusio De acordo com Teorema 8, temos os seguintes resultados:

1. A indemonstrabilidade da formula (1) expressa que 0 sistema Eo nio colapsa no sistema relevante E. 2. A indemonstrabilidade da formula (2) expressa que 0 sistema Eo nio etrivializavel pelo dilema deOntico. 3 A indemonstrabilidade das formulas (3), (4), (5) e (6) mostra que os Paradoxos de Prior sao evitados em Eo.

Trabalho apresentado no 2nd Workshop on Logic, Language, Information and Computation (WOLLIC'95). Iniciamos nossa investiga~o sobre os Pa­ radoxos Deanticos em 1992, quando da elaboracao da Disserta~o de Mes­ trado sob a orienta~o dos Professores Elias Humberto Alves (UNESP I MARiLlA) e Jose Eduardo de Almeida Moura (UFRN). 2 O. cnterio de "verdade 16gica" utilizado e 0 enteric de Bolzano (Aqvist, 01:634): uma sentenea a e lqgicamente verdadeira se e somente se (i) a e verdadeira e (ii) cada resultado de substituir uniformem.ente uma sentenca do ft'agmento por qualquer outra sentenea em a , everdadeira tambem. 3 Senteneas que do do logicamente verdadeiras traduzem-se em f6nnulas demonstraveis dos sistemas formais. 4 C18udio Pizzi, da Universidade de Siena (Italia), deu um tratamento aos paradoxos utilizando outro tipo de implica~o, diferente da implica~o rele­ vante, publicado no Notre Dame Journal of Formal Logic, v, 32, p. 618­ 636, 1991 e v. 34, p. 621-624, 1993, conforme correspondencia mantida comomesmo. 5 Cf. ANDERSON e BELNAP (02:111, 232-3), 0 sfmbolo "<:::>" nao e um conectivo. E um simbolo metalinguistico e A <:::> B significa que A -+ B e B-+A. 6 E possivel estabelecer algumas rela~s entre 0 sistema E e 0 sistema T apresentado em HUGHES e CRESSWELL (10:30). e, conseqnentemente 1


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entre Eo e T. No entanto, do nos deteremos nestas re~ neste traba­ lbo. 7 Umaf6rmula-bem-formada Sj esta com asterisco, se Si e relevante para 8m =B. 8 Em ANDERSON e BELNAP (02:239) e deixada ao leitor a demo~ desta proposi~o com as matrizes sugeridas. Entretanto, apOs a realiza~ de alguns testes procedimentais observamos que as matrizes Iiio verificam os Axiomas A9 e All. 0 axioma A9. B -. (A v B) apresentavalor -5 para a seguinte atribui~o de valores: v(A) = -5 e v(B) = -2. 0 axioma All. (A 1\ (B v C» -. «A 1\ B) v C) apresenta valor -5 para as seguintes atribui­ ~ de valores: i) v(A) = -2, v(B) = 1 e v(C) = -2, il) v(A) = -1, v(B) = 1 e v(C) = -2. Conforme nota 1, apresentamos este resultado no WOll.IC'95 ondeos participantes nio manifestaram 0 conhecimento de qualquer indica­ ~ anterior de que haveria algumafalha tecnica ou de outra nabJreza nestas matrizes. Ap6s aquele Congresso, estivemos investigando emv8rias fontes, alguma refer!ncia a tal falha, mas ate 0 presente momento nio conseguimos nenhuma info~ sobreela. 9 0 resultado do axioma A15 e uma tabela com 10 (dez) linhas, faci1mente obtida a partir das matrizes do "-."e do 0 (obrigat6rio). 0 resultado do axioma A16 euma tabela com 100 (cern) linbas obtida com as mesmas ma­ trizes acima citadas. A dimensio desta Ultima tabela inviabiliza a sua apre­ ~o neste trabalho.

Deontic Logic. In GABBAY, D.,.& GUENTHNER, F. Handbook ofphilosophical logic. Ro­ landa: D. Reidel Publishing Company, v.2, p. 605-714, 1984. 02. ANDERSON, A.R. & BELNAP, N.D. Entailment: The logic of relevance and necessity. v. L Princeton: University Press, 1975. 03. ANDERSON, A.R. & BELNAP, N.D. Entailment: The logic of relevance and necessity. v. n. Princeton: University Press, 1992. 01. AQVIST,

L.


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04. AVRON, A Whither Relevance Logic? . Journal of Philoso­ phical Logic. v.2L n. 3, p. 243-281, 1992. 05. BRADY, R T. Hierarchical Semantics for Relevant Logics. JournalofPhilosophical Logics. v.21, p. 357-374, 1992. 06. CRUZ, AM.P. Sobre a logica deonticaparaconsistente: pa­ radoxose dilemas. Joio Pessoa: UFPB, 1993 (Dissertacao de Mestrado). 07. DA COSTA, N. C. A. Ensaio sobre os fundamentos da logi­ ca. Sio Paulo: Hucitec, 1980. ., 08. DOSEN, Kosta. The First Axiomatization of Relevant Logic. Journal of Philosophical Logic. v. 21, n. 4, p. 339-356, 1992. 09. FRIEDMAN, H. & MEYER, R.K. Whither Relevant Arithme­ tic? The Journal ofSymbolic Logic. v.57. n. 3, p.826-831, 1992. 10. HUGHES, G.E. & CRESSWELL, M.J. An Introduction to Modal Logic. London: Methuen, 1968. 11. ORLOWSKA, E. Relational Proof System for Relevant Lo­ gics. The Journal ofSymbolic Logic. v.57. nA, 1992. 12. PUGA, L.Z. Uma Logica do Querer: Preliminares sobre urn Tema de Mally. SiCi> Paulo: PUC, 1985. (Tese de Doutora­ do). 13. RESTALL, G. Simplified Semantics for Relevant Logics (and some of their rivals). Journal of Philosophical Logic. v. 22, p. 481-511, 1993. 14. STANLEY, J. K. & MEYER, R.K. A structurally Complete Fragment of Relevant Logic. Notre Dame Journal ofFor­ mal Logic. v. 33. n. 4, p. 561-566, 1992. 15. STELZNER, W. Relevant Deontic Logic. Journal ofPhiloso­ phical Logic. v.2L n. 2, p. 193-216, 1992. 16. SYLVAN, R Process and Action: Relevant Theory and Lo­ gics. Studia Logica. v.5L sin, p. 379-437, 1992.


HABERMAS: INTRODU~AO A METACRITICA DA RAZAO INSTRUMENTAL*

Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes Departamento de Filosofia da UFRN

o presente trabalho tIata da re~ entre 0 conceito de critica e" 0 contexto da Modernidade como forma de introd~ a metaeritica cia razIo instnunental de Habermas. Estabelece a interface do nocleo de signifi~ nocional da metaeritica em Habermas com a comprenslo do desenvolvimento histOrico do conceito de criticaa partir do horizonte do problema da racionali­ ~o. Mostraa indissociabilidade da metacrltica com 0 conceito modemo de criticae a reelabo~o deste Ultimo pela prlmeira a partir do eixo de compre­ ensIo da tradi~o do ESCLARECIMENTO. A rel~io entre metacritica e a modemidade evidencia-se na esfera conceitual do nucleo de signific~o da metaeritica, que reside na compreensio do conceito de critica, tornado no contexto hist6rico do seu desenvolvimento, quando ele aparece pela primei­ ra vez, em termos filos6ficos, no seculo :xvn1, e se articula ao problema da racionalizacao.

I Prine. I Natal I Ano 3 I n.4 I p. 19-26

jan./dez. 1996

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o conceito de critica surge, na sua utiliza~o filos6fica, com 0 Dictionaire Historique et Critique de Pierre Bayle, em 16952. Descri~ao de um processo indefinido, 0 qual tudo esta submetido ao seu julgamento. 0 reino da critica se estende desde os dominios dos objetos propriamente filol6gicos e esteticos ate 0 conjunto dos objetos possiveis, os quais a razao pode julgar. A critica afirma por ela mesma a supremacia da razio como juiz, nos dominios de diferenci~ao entre as esferas religiosa e politica como limites extemos, que constitui a sua garantia, de que se the da a conhecer outras nonnas, que nao as suas pr6prias, tal como a ra­ do as faz conhecer. A critica aquilo que enuncia 0 direito, e em seguida instaura a ordem em conformidade com esse direito. Na sua ace~ao original, denota atividade, no sentido processual de julgamento, cujos pressupostos de racionalidade, universalidade e liberdade estao presentes como parametres de compreensao da critica, 'que atravessam a sua evolu~ao como conceito ate a sua formu1a~io na critica da razio instrumental. . Bayle, no emprego originario do conceito de critica, ja es­ tabeleceu algumas coordenadas que caraeterizam 0 conjunto de pressupostos da racionalidade, universalidade e Iiberdade como eixo de compreensio da critica que tomou-se relevante, a partir do seculo :xvm, na orienta~ao dada a critica modema. Ao entender a critica como um processo indefinido, Bayle utiliza-se do elemento constitutivo da razio como criterio de elaboracao da critica, ser­ vindo-se desse como um pressuposto necessario, Sua concepcao identifica, no campo pratico, 0 elemento de universalidade, relativo aos criterios de julgamento, na distincao que estabelece entre a satira e 0 libelo, que toma 0 homem e sua honra; e 0 autor e suas ideias, destacando a dimensao de universalidade sob 0 aspeeto nonnativo. Do mesmo modo, Bayle procura preservar a critica nas esferas da religiio e do Estado, situando-a num reino metafisica­ mente legitimado e universalmente reconhecido pela razao, que lhe garante a liberdade como um direito, e toma-a fonnulado urn

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principio da critica, no myel de fundamentacao da atividade racio­ nal, no asseguramento da legitimidade dos seus pr6prios julgamen­ tos. A critica moderna marca 0 aprofundamento dos pressupos­ tos evidenciados na concepcao de Bayle, que refletem a proto­ formulaeao dos parametres de compreensao do conceito e que, a partir de Kant, se consolida dentro do quadro de emergencia his­ t6rica da Modernidade no secuIo:xvm. Racionalidade, universa­ lidade e liberdade definem a triplice esfera de remetimento do conceito, assim como a mudanca do seu estatuto, tal como se en­ contra no Prefacio da Primeira Edi~io da Crftica da Razio Pura: lieu nao compreendo a que'stilo [da critical por uma critica de livros e de sistemas, mas aquela do poder da razilo em geral, por relar;lio a todos os conhecimentos, os quais ela pode se elevar: independente de toda experiencia'.3.

Nessa passagem, Kant confere a critica urn metodo e uma orienta~ao pr6prios, que revela-se sobre os parimetros daraciona­ lidade, universalidade e liberdade como principios da sua formula­ ~ao, no plano transcendental de uma fundamentaeao auto-reflexiva da razio, cujo 0 movimento de asseguramento dos seus pr6prios julgamentos, se insere dentro de urn contexto de diferenciaeao axiol6gica da cultura que caracteriza historicamente a Modernida­ de. Com isto, a evolucao do conceito de critica assinala nos seus pressupostos, a perda do .carater generico impresso por Bayle, e a sua substituicao, a partir de Kant, por urn carater transcendental que a vincula diretamente ao contexto de fundamen~io normati­ va das esferas de valores diferenciadas. A transcendentalidade da critica reflete a diferenci~ao axiol6gica das esferas, nos pressupostos de fundamentacao sobre os quais ela revela uma unidade formal, a partir da dissolu~ao das imagens unificadoras do mundo, num conceito de razao cindida

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que se estrutura como forma de compreensao. A cada esfera a critica assenta-se sobre fundamentos pr6prios. E a rela~ao das diferentes esferas da cultura com os seus eixos de fundamentacao ­ racionalidade, universalidade e liberdade - se estabelece no ambito de tema~ao de temas, como resultado de urn processo de raci­ onaliza9io que detennina a forma~ao das esferas auronomas da Ciencia, da Moral e da Arte. Dentro deste quadro, 0 conceito de critica, na acep~ao da rwo instrumental, articu1a os seus elementos em tome do proces­ so de racionalizacao da Modernidade que caracteriza a sua com­ preensao. Ele demarca, atraves da interpretacao do processo de racionalizacao, 0 problema da realizacao da rwo na hist6ria, to­ rnado sob 0 aspeeto dos pressupostos de dominacao e reific~ao que refletem a estrutura da rwo modema. E questoes como a racio~io das formas de vida, a universalizacao de padroes de conduta e a emancipacao, articu1am os aspectos de racionalidade, universalidade e liberdade, como parametres de compreensao, interconeetados no interior da critica, os quais visam analisar 0 advento da Modernidade como um todo, e diagnostica-Io em suas

consequencias, Q conceito de critica revelado pela critica da razao instru­

mental pressupoe uma critica da modemizacao, no interior dos seus parametres de analise, que tomam 0 processo de racionaliza­ ~o como urn todo, dentro de uma perspeetiva ontogenetica da subjetividade. Esta constitui urna retroproiecao do quadro de ra­ cionalizacao da sociedade modema, a partir do plano de formacao hist6rica da subjetividade, que se estende dos prim6rdios da civili­ za~o ate a sua configuracao no Esclarecimento. De tal forma que o programa do Esclarecimento coincide com 0 atavismo da subjetividade no processo de desencantamento do mundo. Ou, nas pr6prias palavras de Horkheimer e Adorno:


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o programa do Esclareoimento era 0 desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a ima­ ginafiJo pelo saber4. Nesse sentido, a critica identifica-se no interior do que se caracteriza como urn processo hist6rico, atraves de uma perspecti­ va evolutiva que superpoe 0 processo de formalizacao da subjeti­ vidade ao processo de racionalizaeao, a partir do modelo de racionalidade instrumental. Tal modelo compreende 0 processo de subjetiv~io, na forma hist6rica do Esclarecimento, a partir da perspectiva de reifica~io do pensamento, ou seja, da perda do seu estatuto de autonomia e a consequente submissio ao dado imedia­ to, decorrente do principio de dominacao que se encontra no plano estrutural da razio, sob a forma de uma razio cindida, cujo dis­ tanciamento cada vez maior das esferas do sujeito e do objeto as­ sinala 0 auto-aniquilamento da subjetividade. No plano da subjetividade, a razio, como instrumento da auto-conservacao da especie, e 0 elemento constitutivo do sujeito, cujo desenvolvimento marca 0 progressivo afastamento da nature­ za, verificado na tentativa de emancipacao do pensamento, da es­ fera do mito, como forma de dominio do meio circundante. Sua compreensio, dentro desses parametres, revela 0 plano negativo do processo de subjetiv~io, 0 qual caracteriza a degradacao do pensamento em mero procedimento tecnico de auto-conservacao da especie, que acaba por nivelar 0 sujeito as coisas, atraves do seu pr6prio principio de dominacao. Tal principio apresentana sua estrutura 0 carater reificador como a auto-demissio da razao frente ao dado imediato, que consiste no auto-aniquilamento da subjetividade pelos seus pr6prios mecanismos. Estes se encontram no interior do quadro de desaparecimento tendencial das potencia­ lidades da razio, no qual 0 empobrecimento da racionalidade e determinado pelo principio de dominacao constitutivo da subjeti­ vidade. Nessa medida, a rela~io entre a subjetiv~io unilateral, ou o enfraquecimento do sujeito no seu processo evolutivo, e a reifi-

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24 ca~ao, sob 0 aspecto de auto-mutilacao do pensamento, detennina

o enfoque da racionalizacao, a partir de uma perspectiva de pro­ gresso unilateral da racionalidade, como forma de compreensio da modemidade. E do seu diagn6stico de estreitamento da perspecti­ va emancipadora, e de domina~io absoluta, com 0 desaparecimen­ to das potencialidades da razio, indispensaveis para uma felicidade humana futura. A metacritica constitui uma reelaboracao do quadro refe­ rencial do conceito de critica na sua contextualizacao dentro da modemidade, a partir da perspectiva dos eixos da tradi~ao, que retletem a sua formulaejo e 0 seu contexto de desenvolvimento. Como tal, ela se estruturaem dois registros. 0 primeiro, da conti­ nuidade da tradi~ao critica, de redefinicao dos seus pr6prios ele­ mentos, na problematizacao da racionalidade, da universalidade e da emancipacao como temas. Onde a metacritica volta-se para 0 problema da compreensso da racionalidade, sob os aspectos de articu1a~o da critica, no exame da modemidade pela critica da rezao instrumental. E, 0 segundo, do exame da compreensao do fenomeno de racionalizacao, a .partir do interior da critica da razao instrumental. Onde a metacritica volta-se para a critica dos para­ doxos da reifica~o e da dominaeao, colocados sob 0 aspecto metodologico de criticada critica, como condi~o de possibilidade de supera~ao do quadro da razao instrumental, na interpretacao do problema da Modemidade, a partir da perspectiva da rea/iza¢o deformada da razao no historid. De modo que, a articu1a~o da metacritica em dois registros recoloca 0 problema da critica da modemidade sobre os seus eixos de sustentacao: a genese e iden­ tifica~o da razao com os processos de dominacao, e a compreen­ sio da racionaliza~ao como um procedimento de coisiflcacao. Inserida no ambito de construcao de uma teoria da racio­ na/idade6 , a reformulaeao do quadro referencial da critica da ra­ zio instrumental pela metacritica, constitui 0 eixo de construcao para uma Teoria da Modemidade, a partir do problema da racio­ I


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nalizaeao. Tomada dentro da perspectiva de razao comunicativa, a metacritica estrutura-se no duplo pressuposto: de asseguramento de um conceito de razao, atraves da pragmatica formal, da analise das propriedades gerais tin aflio orientada para 0 entendimento reciproco'; e de aplicacao do conceito de racionalidade comunica­ tiva as relactes sociais e aos conjuntos interativos institucionais". Aplicados ao quadro de interpretacao do problema da racionaliza­ ~io, tais pressupostos, constituem a condicao de possibilidade de elaboracao de uma Teoria da Modernidade. Esta, capaz de delimi­ tar, de modo analitico, atraves dos conceitos da teoria da comuni­ ca~ao, os fendmenos sociopatol6gicos compreendidos pela reifi~io, traduzidos na forma mais adequada de uma critica tin razao funcionalista para a velha critica tin razao instrumental que ja nQo podia continuar fasendo-se com os meios tin velha

Teoria Criticc/o Assim, os pressupostos da razio comunicativa se en­ contram presentes na compreensao da modernidade, como condi­ ~io necessaria da metacritica, enquanto nucleo da critica da razio instrumental, na reestruturacao do tema da dialetica tin ractonaii­ zafao socia". De modo que, a partir da perspectiva da razio co­ municativa, a metacritica se coloca no plano de articula~ao da critica, como urn conceito transcendental de leitura do problema da racionalizacao, estruturado sob 0 principio da ~ao orientada para 0 entendimento, como forma de compreensao do problema 0 qual traz implicitouma concepcao da modernidade.

N8B\S.

Trabalho apresentado na V Semana de Filosofia do Depto de Filosofia da

UFRN. 1 2

Jacob - Encyclopedie Philosofique Universelle; p. 517. Ibid.


26

3

4 5 6

7

Kant, Critica cia Razlo Pura; p. 5-6 (grifo do autor). Horkheimer/Adomo - Dia1~ca do Esclarecimento; p. 19. Habermas- Dialetieacia Racionaliza~o; 1988, p. 140. Op. cit; p. 148. Op. cit; p. 143.

8

Ibid.

9

Op. cit; p. 149.

10

Ibid.;grifo do autor.

JACOB, Andre (Org.). Encyclopedie Philosophique Universelle. v. n, Tome 1. Paris: P.U.F., 1990. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialetica do Escla­ recimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. KANT; Imanue1. Critica da RaziIo Pura. Lisboa: Calouste Gul­ benkian, 1985. HABERMAS, Jurgen. Ensaios Politicos. Barcelona: Peninsula, 1988.


A FILOSOFIA MARXIANA

UMA ANALISE DAS TESES DE MARX SOBRE FEUERBACH

Antonio Rufino Vieira Departamento de Filosofia da UFPB

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~ Tendo como rcferancia 0 pensamento de Ernst Bloch, analisaremos 0 signifi­ cado da filosofia marxiana a partir das Tesessobre Feuerbach. Em tais Teses podem ser observados elementos importantes para a compreensilo dos pressu­ pastos marxianos de filosofia, como 0 conceito [homeml, a rela~o teoria­ pratica, 0 conceito de trabalho e. fundamentalmente, a posi~o relativa a Filo­ sofia da praxis, repondo em pauta 0 problema do humanismo reale concreto.

Ernst Bloch (1885-1977) pode, juntamente com Luckaes, Gramsci, entre outros, ser apontado como urn renovador do mar­ xismo. Em um momenta em que se houve falar na "morte do mar­ xismo" em virtude da crise dos "socialismos reais", vale a pena retomarmos a esse pensador cuja reflexao nao se enquadrava nos estreitos limites do marxismo ortodoxo. Entendemos que Bloch visava a revigorar 0 marxismo contemporaneo ao analisar temas

I Prine. I Natal I Ano 3 I n.4 I p.27-50 I jan.ldez. 1996 I

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ate entio relegados ao ambito das filosofias idealistas, como a "consciencia antecipante", 0 "sonho", a ''utopia'', 0 conceito de "Reine da Liberdade", 0 "futuro", etc. Segundo ele, a utopia con­ creta, Dio sendo identificada em qualquer sentido negativo, tal como sonho irrealizavel, leva os homens a realizarem 0 melhor possivel, amedida que se engajam em sua construcso'.: Em sua obra principal, 0 Principio Esperance', Ernst Bloch realiza, entre outros temas, uma radical interpretacao das 11 Teses sobre Feuerbadi. Apoiando-nos na abordagem blochiana, versaremos sobre 0 significado da filosofia marxiana a partir destas Teses, pois nelas podem ser observados elementos importantes para a compreensao dos pressupostos marxianos de filosofia, como 0 conceito "homem", a relacso teoria-pratica, 0 conceito de trabalho e, fundamentalmente, a posi~ao relativa a Filosofia da praxis. 'A analise que Bloch faz das Teses sobre Feuerbach, ex­ plicitando 0 sentido de "transformaeao do mundo", problematiza a rela~o possibilidade-materia, a fim de que a manifesta~io do ain­ da-nao-ser se de em totalidade. Bloch concentra as 11 Teses em quatro grupos diferentes, tendo como referencia a tematica filoso­ fica e do a ordem numerica, 0 primeiro grupo reline as teses re­ lativas a teoria do conhecimento, concemindo a intui~io e a atividade (teses 5, 1, 3); 0 segundo, as teses antropol6gico­ hist6ricas, concernindo a alienacao e ao materialismo real e verda­ deiro (teses 4,6, 7, 9, 10); no terceiro, estio as teses relativas ao problema teoria-pratica (teses 2, 8); finalmente, 0 quarto grupo resume-se a palavra de ordem sobre a possibilidade da existencia da filosofia (tese 11). No primeiro grupo (5, 1, 3), estio as teses pelas quais Marx supera as epistemologias do idealismo e do materialismo anterior, as quais se fundam, respeetivamente, na contemplacao ou no ativismo. Marx fundamenta a teoria do conhecimento no cam­ po da praxis. Essa praxis so pode ser 0 trabalho realizado pelo


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homem livre. Toma-se necessaria uma pratica revolucionaria que modifique as estruturas opressoras da sociedade que alienam 0 homem (segundo grupo: 4. 6. 7. 9. 10). Todavia, a praxis revolu­ cionaria estaria fadada ao teorismo ou ao ativismo, caso um dos elementos. a teoria ou a pratica, fosse unico determinante desse processo; a revolucao justifica-se, portanto, porque teoria e prati­ ca estio dialeticamente interligadas (terceiro grupo: 2, 8). A Ulti­ ma tese (quarto grupo: 11) vern demonstrar que a filosofia e necessaria para manter 0 marxismo na exigencia da verdade. Se­ gundo Bloch, 0 conjunto das 11 Teses proclama:

E a humantdade socialtzada, em alianca com a natureza mediada com ela, que permite a transforma¢o do mun­ do, em vista de nele fazer t) seu lar (Heimat), isto 0 lugar .da identidade consigo mesmo e com as coisas (PE. I, 344-5).

e,

A analise blochiana das Teses sobre Feuerbach resume. e fundamenta a sua concepcao de utopia concreta, de antecipaeao, de esperanea, pois 0 problema da transformacao penneia a pr6pria situ~ao do homem no mundo. Nesse sentido, tais Teses oferecem subsidios para diversas questoea polemicas, como a rel~o mate­ rialismo cientifico - materialismo vulgar, a rela~ao teoria - pratica e, principalmente, repoem em pauta 0 problema do humanismo real e concreto. Segundo essas teses, ea propria atividade do ho­ mem que vern humaniza-Io; a atividade pratica confunde-se com 0 trabalho, estando, pois, a historia da libertaeao ligada a pr6pria libert~io do trabalho. .

1. Teses sobre a teoria do conhecimento - Teses 5, 1, 3 (pE, I, 307-316)

o defeito fundamental de todo materialismo anterior - in­ clusive 0 de Feuerbach - esta em que so concebe 0 objeto, a realidade, 0 mundo sensivel, sob a forma de objeto ou de

j

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peroepcao, mas nllo como atividade concreta, como pratica, nilo de modo subjetivo (Tese 1).

o posicionamento do materialismo vulgar, inclusive 0 de Feuerbach, leva a uma concepcao puramente ativista da historia, pensando ser 0 homem exclusivamente produto das circunstincias e da educaeao, mas "esquece que sao precisamente os homens que' modificam as circunstincias e que 0 educador tern ele proprio ne­ cessidade de ser educado'". ' o primeiro conjunto de teses cumpre a fun~io de demons­ trar que, segundo Marx, conhecer 0 mundo nio e afastar-se do real, mas, sublinhando-se a no~o de atividade subjetiva, apreende­ 10 e transtorma-lo atraves do trabalho. Vale ressaltar que uma das crfticas blochianas a utopia abstrata residia no fato de nela haver urn desconhecimento da no~io de trabalho livre, 0 que acarretou, de urn lado, urn idealismo abstrato e de outro, urn niilismo derro­ tista. A no~o de trabalho, tal como e apresentada em Marx, ja fora antecipada pelos materialistas anteriores a ele, inclusive por Feuerbach(pE,I,309); esse materialismo, porem, do se distancia­ va da pura contemplacao, desconhecendo que hA "uma rel~o de oscila~o constante entre 0 sujeito e 0 obieto, que se chama traba­ lho" (pE, I, 310). Essa no~io de trabalho permitea ultrapassagem da abstr~io: para conhecer; e necessario agir, e para agir, e ne­ cessario conhecer. Com isso, supera-se 0 sentido de alie~io que existe no trabalho. Pelo trabalho, 0 homem domina a natureza, objetivando-a; atraves desse processo, humaniza-se, pois, ao hu­ manizar a natureza, liberta-se. Esse fato, segundo Marx e Engels, faz com que haja uma diferenea qualitativa entre os homens e ani­ IDalS:

Essa distinr;llo so comeca a existir quando os homens tntci­ am a produr;llo dos seus meios de vida, passo em frente que e consequencta de sua organizar;llo corporal. Ao produzi­


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rem os seus meios de existencia; os homens produzem indi­ retamente a sua pr6priavida material. S

A categoria ''trabalho'' oferece, portanto, a chave para a compreensio do desenvolvimento do homem, enquanto homem. o trabalho e uma tarefa social, fonte criadora da sociedade (e, por degeneraeao, provoca a divisio da sociedade em classes; enquan­ to por revolucjo, e fonte de desenvolvimento da sociedade sem classes). E conhecida a famosa passagem do Prefacio Contribut­ ¢o a critica da Economia Politica, onde Marx: analisa as relaQCies entre consciencia e vida social, base economica e superestrutura.

a

Na produyiio social de sua existencia, os homens estabele­ cem relay{jes determinadas, necessdrias, independentes da sua vontade, relay{jes de produyiio que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forcas produtivas materials: 0 conjunto destas relay{jes de produyiio constitu: a estnaura economica da sociedade; a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura juridica e polltica e a qual correspondem determinadas formas de consci~ncia social. 0 modo de produ¢o da vida material condicuma 0 desenvolvimento da vida social, politica e intelectual em ge­ ral. Nlio e a consotencia dos homens que determina 0 seu ser; e 0 ser social que, inversamente, determina a sua

consctencia. 6

Tendo em vista ser a consciencia urn produto social.vela tambem historica; como ter consciencia significa conscientizar­ se de alguma coisa, a consciencia e a rel~io com outra coisa que Ilio ela mesma, com a realidade social. Esse principio inaugural do materialismo historico supera 0 humanismo de Feuerbach. Uma das duvidas levantadas acerca desse principio liga-se ao pr6prio metodo dialetico, pois tem-se a impressio de haver urn predominio unilateral do principio "ser social" (vida social) sobre a conscien­ cia. Como evitar urn tal tipo de interpretacao, precisamente contra :

e


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os fundadores do materialismo dialetico? Engels, em uma carta a Joseph Bloch, responde a essa questao, afirmando que 0 fator de­ terminante na hist6ria e a producao e a reproducao da vida real; mas 0 fator economico do e 0 unico determinante, pois, embora seja a base de sociedade, existem diversos outros elementos da superestrutura ~ue exercem igualmente a sua a~ao no curso das lutas hist6ricas. E preciso tratar a' rel~ao "ser social e consciencia" com muito cuidado, pois dela depende a compreensao da ciencia mar­ xista. Se for interpretada segundo parametres mecanicistas, che­ gar-se-a il conclusao de que a consciencia sO existe em fun~ao do ser social; mudando-se esta, mudaria mecanicamente aquela. Alem disso, a rela~ao "base economica - superestrutura" seria de­ terminada pelo primeiro elemento: mudando-se as condicoes eco­ nomicas, todo 0 arcabouco juridico, politico, ideologico, automaticamente softeria mudancas, acompanhando a nova ordem economica, Uma interpretacao desse tipo nao da importancia il superestrutura, aos modos de consciencia social, admitindo-a ape­ nas enquanto reflexo da base. Nao podemos esquecer que tal in­ terpretaeao pode ser reforcada pela nao menos famosa passagem extraida de A Ideologia Alemd. Os pensamentos da classe dominante silo tambem, em todas as epocas, ospensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem 0 poder material dominante numa dada sociedade e 8 tambem a potencia dominante espiritual.

Tem-se a impressao de que ha uma certa incompatibilidade entre 0 homem que trabalha (sem deter, porem, os meios de pro­ du~a(») e a estnitura da sociedade, sendo ele totalmente determi­ nado pelas vicissitudes do sistema dominante. Segundo isso, parece que a mudanca possivel sO ocorrera quando a base econo­ mica softer radical transformacac. Como algo pode mudar, sem que haja antes uma mudanea a nivel humano? Como e possivel


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admitir admitir que a mudanea nas bases economicas swja do nada? Ou sera que ela se dA gradativamente? Por essas questoes, epossivel observarque nao etao facil considerar as relayoes "base economica - superestrutura", ''vida social - consciencia" de modo mecanico, sob cujo aspecto, na maioria das vezes, 0 pensamento marxiano einterpretado. Uma visao desse tipo levariaa conceber dois elementos estaticos, sem a real interdependencia, e nio de­ pendeneia, entre ambos os poles. Alem do mais, a polemica afir­ mayio "0 pensamento da classe dominante" poderia legitimar as fonnas dominantes, caso fosse feita urna interpretacao mecanicista, pois, possuindo 0 poder material e espiritual, nio permitiria 0 sur­ gimento de fonnas de pensamento diferentes. Nao haveria espaco para 0 novo, para 0 futuro. Certamente uma interpretaeao de tal quilate nio pode ser aplicada ao marxismo, pois desvirtua a pro­ pria percepcao de interdependencia entre os diferentes fatores; como ressaltaEngels: Desde que nos /imitemos a focalizar as coisas como se fos­ sem estattcas e inertes, contemplando-as isoladamente cada uma de per st, no tempo e no espaco, nlio descobriremos nestas coisas nenhuma contradiflio.9

A abordagem da realidade como coisa estanque faz com que se tenha, no maximo, urn conhecimento parcial dessa realidade e nunca sua totalidade. Por isso, os elementos ''vida social - cons­ ciencia", "base economica - superestrutura" interagem entre si:'·O que nio significa, contudo, que se negue certa predominancia do elemento economico na estrutura social. Nao e menos significativa a terceira tese, dirigida, segundo Bloch, "nio apenas contra Feuer­ bach mas tambem contra os marxistas vulgares" (pE, I, 331). Essa tese fomece os esclarecimentos necessaries sobre a reciprocidade entre os elementos citados, superando, assim, 0 materialismo me­ caniscista (0 que pensa ser 0 homem produto do meio). AD


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abordar a questao do primado do ser sobre a consciencia, afinna Bloch: Sobre 0 plano da teoria do conhecimento, este primada se traduz pela existincia do mundo exterior, independente da consciencia humana; sobre 0 plano hist6rico, pelo primado da base material sobre 0 espirito (pE, I, 312). -

Ele reconhece, todavia, que existe mediacao entre 0 sujeito e 0 o,bjeto, pois: A atividade humana e sua consctencia silo parte integrantes da natureza, e ali ocupam uma posifilo essencial; enquanto praxis subversiva; agindo na base mesmo do Ser material, que, por sua vez, condiciona, em primeiro lugar, a consci­ incia da gera¢o seguinte. (PE, I, 314-5)

Essas duas cita~oes de 0 Principio Esperanca corroboram a nossa interpretacao de que ha uma interdependencia entre 0 ho­ mem que age sobre 0 objeto (trabalho) e a vida social. De outra forma, ao se admitir formas estanques de pensamento, nenhuma mudanca qualitativa seria possivel. A praxis consiste, portanto, em atividade do homem que, conscientemente, transforma 0 mundo.

2. Teses sobre antropologia fJ.losofica - teses 4, 6, 7, 9, 10 (pE, I, 316-322) Ao analisar 0 grupo das teses antropol6gico-hist6ricas (teses 4,6, 7, 9, 10), Bloch discute 0 conceito de alienaejo, pondo em debate 0 "materialismo real e verdadeiro". Para ele, toda con­ side~ao sobre 0 significado de humanidade, de homem, de seus valores, tern de ter como base 0 conceito de alienayio (pE, I, 316). Assim sendo, 0 socialismo s6 e verdadeiramente cientifico quando e centrado sobre 0 homem, quando 'Visa, por meios con­ cretos, Ii supressio real de sua alienaeao" (pE, I, 318). 0 marxis­


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mo se constitui, portanto, como luta contra a desumanizacao existente no capitalismo, em razio de seu impulso, "luta de classes, materia de seu objeto; 0 marxismo e sempre 'promocao da hu­ manidade" (pE, ill, 482). 0 conceito de libertacao permeia todo o discurso marxiano, sem, contudo, haver a negayao de que a li­ bert~ao se de na natureza. Nesse sentido, a hist6ria humana e a hist6ria natural sao explicitadas pela tese "da naturaliza~io do ho­ mem e da naturalizacao da natureza" - tese essa constantemente mencionada por Bloch (pE, I, 247). Nos Manuscritos Economi­ cos e Filosoficos, assim se posicionava Marx:

o comunismo como um naturalismo plenamente desenvolvi­ do e humanismo e como humanismo plenamente desenvolvt­ do naturalismo. E resolufiio definitiva do amagonismo entre 0 homem e a natureza e entre 0 homem e seu seme­ lhante. E a verdadeira solufiio do conj1ito entre existenoia e essencia; entre objetivayiio e auto-afinnaf/io, entre tiber­ 10 dade e necessidade, entre indivlduo e especie.

e

Aqui elevantada uma questao, frequentemente escamotea­ da pelos marxistas positivistas, a saber, 0 humanismo concreto, que defende a ideia de que 0 conceito revolucionario esta a service da construcao da verdadeira sociedade socialista. E bastante di­ fundida a tese althusseriana dos "cortes epistemol6gicos" no pen­ samento marxiano; tese que pretende separar 0 que ea produeao intelectual do jovem Marx, do que foi produzido peloMarx madu­ roo Na primeira fase, encontrar-se-iam escritosfilos6ficos de cunho humanista; essa seria superada pela fase de maturidade, caraeteri­ zada por uma analise estritamente cientifica da realidade social, abandonando os ranees filosoficos". Essa posi~ao defende a ideia de que 0 humanismo marxiano sO seria admitido como uma das fases do desenvolvimento do pensamento de Marx, a dajuventude; rejeita que no periodo maduro houvesse qualquer tentativa de fun­ damentar uma filosofia humanista. Segundo Bloch, lui, porem, uma

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mistific~o da obra marxiana ao querer-se privilegiar uma epoca

sobre a outra; 0 humanismo marxista nao e apenas uma fase da juventude, posteriormente descartada. A propria humanidade e inimiga da desumanizaejo; assim sendo, 0 marxismo nao e, senao, luta contra a desumanizacao, que culmina no capitalismo ate 0 seu completo desaparecimento.

o marxismo autentico. e por razllo de seu impulso - luta de classes, materia de seu objetivo - nllo e outra coisa; nllo pode ser outra cotsa senllo promofllo da humanidade. (...j Este "imperativo categonco" material nllo esta limitado, de forma alguma, como ajirmam os secionadores de Marx, aos trabalhos de juventude de Marx; de nenhuma maneira este imperativo e prejudicado pelo fato de que Marx tronspos a conoepcao matertalista da historia 0 que ele anteriormente tinha chamado de "humanismo real". (PE. Ill, 482).

o humanismo concreto" pode ser sintetizado como sendo a re~io de uma comunidade autenticamente humana, que sO e conseguida quando todos os homens estio livresl 3• Bloch fomece mais elementos para a discussio sobre 0 humanismo concreto ao analisar 0 conjunto de teses antropologico-historicas. 0 conceito de "alienaeao" e a chave para a compreensao do humanum. 0 ge­ nero humano nao e uma abstraeao, inerente a cada individuo isola­ damente, considerado fora do contexto social e hist6rico. Afirma Marx na tese 6 que "a essencia humana nio e algo abstrato ineren­ te a cada individuo. E, em realidade, 0 conjunto das rela~oes 80­ ciais". Comentando esta passagem, Bloch destaca: Nllo existe 0 ser generico ftxo "homem", com propriedades esuuicas sobre as quais poder-se-ia fundar um direito natu­ ral; toda historta mostra, ao contrarto, uma transformafllo continua da natureza humana. (...j Para 0 marxismo, 0 humanum tem um valor de um jim historico e nllo de um principio de dedufllo a priori. 14


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Bloch demonstra que 0 humanum e 0 mundo hurnanizado sO serio conseguidos na experiencia do futuro; nio haveria senti­ do em que a naturaliza~ao do homem consistisse, apenas, em urn "mens sana in corpore sano"; em contrapartida, a humanizaejo da natureza nio consistira em domestica-la, 0 que seria uma "chatice". Assim sendo, pensa Bloch, 0 socialismo cientifico e de­ finido por sua luta pela supressao real da ali~o do homem (pE, L 318). No capitulo 55 do Principio Esperanca, "Karl Marx e a humanidade", Bloch tece comentarios sobre a rel~io entra de teoria de Marx e 0 humanismo, abordando 0 conteudo da materia da esperanea (pE, III, 477-501). 0 humanismo 000 e uma fase do pensamento marxiano, se entendido por humanizaejo nio uma essencia abstrata, mas "rosto humano em rea1iza~io" (pE, ill, 483). 0 Reino da liberdade, nesse aspecto, consiste na realiza~ao plena do humanum, "canon e medida de justica" (pE, III, 483). 0 Reino da Liberdade nio e, segundo Bloch, uma aspir~ quimeri­ ca ou urn "ceu sobre a terra", mas a mudanea do mundo a partir dele mesmo, "metamorfose do mundo alem da opressio" (pE, L 322). Bloch cita Marx a fim de precisar 0 conceito de "Reino da Liberdade", 0 qual s6 sera totalmente atingido com 0 homem so­ cializado.

o reino da liberdade so comeca de fato quando termina 0 trabalho imposto pela necessidade e pela coaflio dos fins externos; permanece, pois, conforme a natureza das coisas, mas alem da orblta da verdadeira produflio material. IS, . 3. Grupo de teses relativas a teoria - pratia - teses 2 e 8 (pE, I, 322-330) Bloch ressalta 0 problema da rela~ao entre teoria e pratica em sua analise das teses 2 e 8. Marx afirma na tese 2:


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A questiJo de se saber se 0 pensamento humano corresponde uma verdade objetiva niJo e uma questiJo teorica, mas sim prdtkll. E na pratica que 0 homem deve demonstrar a ver­ dade, isto e, a realidadee a jorfa, 0 carater terreno de seu pensamento. A discussso sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento, tsolado da pratica, e um problema pura­ mente escolastico.

Na tese 8, anuncia: A vida social e essencialmente pratica. Todos os misterios que levam a teoria para 0 misticismoencontram sua solUfllo racional na pratica humana e na compreensao dessa pratt­ 16 ca.

Nesse conjunto de teses, Marx defende a teoria de que 0 pensameato Ilio pode estar perdido em generalidades e abstracoes, mas sim Iigado a uma pratica. Desse modo, "a consciencia nunca pode ser mais do que 0 Ser consciente; e 0 Ser dos homens e0 seu processo da vida real".17 A rela~ao teoria - pratica e criadora e inovadora, pois somente quando se percebe a reaJidade como mo­ vimento, e que se compreende que a teoria do conhecimento nio se esgotanem numateoria pura da a~ao - "que nio se apoia sobre qualquer teoria economica elaborada e que nio seguiria 0 itinera­ rio de uma tendencia dialeticamente compreendida" (pE, I, 327) ­ nem muito menos, em divagacces "escolasticas". 0 objetivo de Bloch, quando discute 0 tema "teoria e pratica, e fundamentar uma valo~io teleologica" para a a~io do homem. Assim, a teoria orientaa praticae e por esta retificada.

4. A Filosofia marxista - tese 11 (pE, I, 330-338) Dar uma resposta para 0 sentido da praxis consiste em compreender a filosofia como tarefa, nio apenas admissivel, mas necessaria. Bloch considera que a tese 11 ea mais importante de


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todas elas, pois, contrariamente ao que se supee a primeira vista. nessa tese estio afirmadas a permanencia e a importincia da filo­ sofia como instrumento de transformacao e revolucao, E conheci­ da a tese 11: "os fil6sofos nada mais fizeram que interpretar 0 mundo de diferentes maneiras; trata-se, antes de transforma-lo" .19 Algumas versoes introduzem a conjun~ao "mas" entre os verbos "interpretar" e "transformar", dando a impressao de serem termos antagonicos. Todavia, Bloch, numa analise filol6gica, re­ ferindo-se ao texto original, mostra que ali tal conjun~ Ilio se encontra'", sendo, portanto, acrescimo que pode ser atribuido a Engels. quando da publicaeao, em 1888, das Teses sobre Feuer­ bach, como apendice a seu Ludwig Feuerbach e 0 jim ria filosofia

alemil: A conjunfllo mas (aber) introduzida aqui, nllopor contradi­ fllo, mas p6r alargamento da primeira parte da frase, nllo se encontrava no texto originalde Marx (PE. I, 334).

Com esta ressalva, Bloch visa mostrar que a critica de Marx afilosofia consistiu em ser fundada em uma ontologia do Ser que foi ate agora, e Ilio sobre 0 que Ilio e ainda, do que nio e ainda, do que esta, sem cessar, a re-fundar 0 ser. Assim sendo, alerta Bloch:

o queMarx repreende nos filosofos ate esse dia, ou melhor, o que ele denuncia neles como sendo uma barreira de clas­ ses, e 0 fato de que somente interpretaram 0 mundo de dife­ rentes maneiras - nllo que eles tivessem filosofado (PE. I, 334).

. Nesse aspecto, Bloch mostra que 0 termo "interpretar' s6 e

crititicavel na filosofia quando for dissociado da transforma~o. bem como 0 termo "transformar" e criticavel quando nio estiver ligado

ateoria. E preciso, portanto, eliminar as possiveis interpre­

~oes pragmatistas da l l", tese, a fun de destacar como a filosofia

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da revolueao se realiza. Bloch faz uma critica ferrenha contra 0

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pragmatismo que e 0 "Ultimo agnosticismo de uma sociedade des­ provida de toda vontade de verdade". Somente urn desconheci­ mento da "imensa riqueza da teoria marxista" permite a "cruel falsifi~o da 11a• tese, ao evocar 0 pragmatismo por seu meto­ do". Lembrando Marx, continua Bloch, ''urn pensamento Ilio e verdadeiro porque e util, mas e util porque e verdadeiro" (pE, I, 333). Interpretar a Ll", tese, como se ela contivesse urn certo pragmatismo, limitarla toda a riqueza da teoria marxiana; a praxis se' constitui no problema tipico da filosofia. Nesse campo, situa-se a consciencia ia de futuro, como dimensio da propria praxis. Ao refutar-se a identificacao pragmatica do verdadeiro com 0 util, identificado com 0 presente dado, ha a possibilidade de urna aber­ tura para 0 presente (tema da utopia concreta), permitindo-se uma vido mais ampla da propria realidade, nilo mais identificada com 0 simples factual. A novidade do marxismo, como filosofia, consiste na madanca radical do proprio fundamento fllosofico, Ilio mais voltado para a contemplaeao do ja existente. Segundo Bloch, .

o marxismo niIo seriauma transformafiIo no sentido verda­ deiro do termo se nao reconhecesse, antes dela e nela, 0 primado teonco-priuico da verdtuJeirajilosojia (pE, 1, 337). (...) A transformafiIo fllos6flca se efetuaessenoialmente no honzonte do devir totalmente fechado a comemplacao, a interpretacao, sendomelhorinteligivel grafDS ao marxismo (pE, I, 338).

A filosofia e real instrumento revolucionario quando nilo se esgota em atividades e transformacoes imediatas; contribui, por­ tanto, para que 0 futuro nilo seja apenas urn ideal abstrato, mas esteja carregado de esperanca concreta, realizando 0 possivel dia­ letico. E oportuno ressaltar que 0 problema da super~io da filo­ sofia constitui a realiz~io da "filosofia da revolueao, isto e da filosofia da transfonnafao, no sentido do Bern", 0 qual, "finalmente nio aparece senio no horizonte do devir e em si com a ciencia do Novo e a forca necessaria para a dirigir" (pE, I, 340).


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Nesse sentido, a filosofia converte-se em praxis revolucionaria, fundamento da utopia concreta. Ao caracterizar a filosofia marxia­ na dessa forma, Bloch deve investigar as bases te6ricas e praticas da propria revolucao. Ele entende que 0 trabalhador constitui na unica classe social que tern condi~es de superar as contradicoes teorico-praticas.

o trabalhador, doravante, nlJo tem mais 0 direito de buscar, de ensaiar outra coisa, senao a que se encontra ser possivel, que nlJo se trata, por sua vez, senao do passo seguime. A isto corresponde no ato revolucionario, 0 saber que 0 traba­ 21 lhador assalariado oprimido vai uti/izar. Seguindo a formula marxiana, Bloch tenta demonstrar que existe uma alianca entre a filosofia e 0 proletarlado. Para ele, a filosofia Ilio pode ser realizada efetivamente sem a supressao do proletariado e 0 proletariado Ilio pode se suprimir sem a supressao efetiva da filosofia (pE, I, 388). Essa aboli~io e 0 ultimo ato do comunismo. 0 processo de revolucao parte do principio de que 0 presente dever ser melhorado, 0 que Ilio significaria, porem, uma neg~ do passado (0 passado Ilio e urn museu para 0 marxis­ mo). No entanto, tratar 0 marxismo, Ilio apenas como metodo de . analise do presente, mas antes de tudo dirigido para 0 futuro, pa­ rece contradizer a concepcso de que Marx quase nada dedicou a analise do futuro; antes, permaneceu em uma critica esmagadora do sistema capitalista. Lenin, nessa linha de raciocinio, afi.rma:''.

o comunismo nasce do capitalismo por via do desenvolvi­ mento historico, que eobra da forfa social engentlrada pe/o capita/ismo. Marx nlio se deixa seduzir pe/a utopia, nlio procura inutilmente adivinhar 0 que nlJose pode saber. 22 Esta afi.rma~io de Lenin so pode ser interpretada em fun~io do engajamento com seus companheiros que buscavam minar as bases


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do sistema czarista (contrariando as suas pr6prias palavras de que o socialismo s6 se desenvolveria onde as formas capitalistas ja estivessem suficientemente desenvolvidas). Lenin, tipico politico revolucionario, precisava fazer com que a revolucao pennaneces­ se; nio esperou que as condicoes hist6rico-materiais estivessem maduras para tal, ou seja, para a revolucao acontecer como uma necessidade fatal. Lentn nOo esperou que as condifDes na Russia dessem per­ missOo para 0 socialismo no tempo /onginquo e c6modo de seus netos. Lenin ultrapassou as condicoes, ou melhor, aju­ dou 0 seu amadurecimento por objetivos concreto­ antecipadores, situados a/em de/as, obfetivos que sOo parte tambem do amadurecimento (pE, Il, 148).

A aparente contradieao entre a necessidade de 0 socialismo surgir da derrocadado sistema capitalista e a revolucoes socialistas que se realizam em lugares onde ainda nao estavam totalmente desenvolvidas as contradicoes capitalistas, coloca em questio 0 pr6prio sentido antecipador ao ainda-nao-ser, Se a consciencia fosse determinada pela vida social, ela nunca poderia lancar-se para 0 futuro, nem tao pouco planejar 0 amanhi concreto. De urn outro lado, se a vida social fosse determinada pela consciencia, ela tambem nao poderia construir antecipacoes concretas, pois the faltaria conteudo material. H8, porem, uma questao a ser ainda abordada, a saber: como 0 marxismo pode se constituir em condicao preparadora para 0 devir, sem, contudo, deixar de ser instrumento de critica concreta do presente? 0 conceito de revolucao, identificado pela busca do Novum, isto e, a realiza~ao do possivel dialetico, anima a classe trabalhadora por uma sociedade verdadeira. Nessa caminha­ da, no entanto, alguns desvios podem ocorrer, como cair em urn ativismo ou em urn teorismo revolucionario. Bloch analisa esse problema do cap. 17 de 0 Principio Esperanca, destacando 0 que


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denomina de "corrente fria" (elemento teorico-revolucionario) e "corrente quente" (elemento pratico-revolucionario), do marxis­ mo. Querendo apressar as condicoes pratica de uma revolucao, 0 revolucion8rio pode esquecer, ou deixar em plano secundluio, a propria ciencia dialetica marxista, sem reconhecer a dinimica in­ terna do movimento revolucionario. 0 caminho seria 'esclarecido em fun~ do fun, e 0 fun toma substancia no caminho. Para Bloch, deve haver uma alianca entre a "corrente fria" e a "corrente quente" na antecipacao concreta, pois, caso contrario, 0 tim e 0 caminho seriam duas coisas dissociadas, reificadas em seu isola­ mento.

Grafas a corrente fria, 0 materialismo marxista e, nlio so­ mente uma ciencia de condiflJes, mas, ao mesmo tempo, a ciencia da luta e da 0posiftio a todos os entraves e as dissi­ mulaflJes ideologicas das condiflJes de ultima instdncia; que slio sempre de natureza economica. Sobressaem, de outro lado, na corrente quente do marxismo, a intenflJo !i­ bertadora e a tendencia real materialisticamente humana. humanamente materialista; no jim das quais todas essas desmistijicQflJes slJo empreendidas (FE, 1,253). ;

Na rela~io dialetica entre "corrente fria' e "corrente quen­ te", encontra-se a fundamentacao para a propria praxis revolucio­ naria que, ao colocar urn fun explicito (0 reino da liberdade), tern de levar em conta 0 presente, sendo necessario, portanto, 0 seu real conhecimento, sem 0 qual todo e qualquer movimento cairia no utopismo, ao the faltarem bases concretas. A predominanciado elemento revolucionario-pratico-tatico sobre 0 politico-teorico­ estrategico pode levar ao ativismo revolucionario. Apesar do ob­ jetivo fundamental do socialismo ser eminentemente pratico - a libe~io do homem - nele estio contidos elementos teoricos, refeitos pela pratica, manifestando-se nas categorias de revolu~io politico-revolucionaria, A analise da rela~o dialetica entre as cor­ rentes quente e fria do marxismo cumpre a fun~io de denunciar os possiveis desvios dos militantes politicos que, ou se escondem na

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teoria pura, ou a negam em nome da pratica. 0 mote: "0 importan­ te e a a~ concreta", usado por alguns militantes de partidos de esquerda, contem em si um grande perigo, pois sugere simples­ mente a pratica pela pratica, num pragmatismo rudimentar; nega­ se 0 valor da teoria para 0 futuro, pois ao aceitar-se a tese dogma­ tica do ativismo, nega-se, tambem, a fun~ao transformadora do pensamento.

(;onclusao Refletir sobre a filosofia marxiana e refletir sobre a propria possibilidade de 0 homem assumir-se enquanto construtor de urn futuro onde, nio existindo as desigualdades sociais (notadamente a economica), reinara a liberdade em sua completitude. A tarefa da filosofia e aqui evidente, pois faz com que 0 homem se dirija para o Sumo Bem (entendido Dio em sentido idealista ou religioso, mas sim historico). Para compreender que coisa e 0 Sumo Bern, Bloch nega uma vi$lo historicista da historia (onde as engrenagens so­ ciais fizessem com que 0 presente fosse determinado pelo passado e, p6r conseqnencia, determinante do futuro). A raiz para a com­ preensao do materialismo historico, entendido como antecipacao concreta do ainda-nso-ser pode ser encontrada na no~lo de traba­ lho, no conteudo do homem trabalhando. Pe10 trabalho, 0 homem se humaniza, atraves de sua pr6pria hist6ria e nela se desenvolve, com urn aperfeieoamento cada vez maior, "ate ao homem sem classe, que representa e resume a Ultima possibilidade disposta na hist6ria que se desenvolveu ate aqui" (pE, I, 287). Longe de des­ conhecer a dinimica social da hist6ria, Bloch ne1a encontra os mo­ tivos segundo os quais 0 homem, ao fazer a hist6ria, lanea-se no desconhecido; isso e motivado Dio pelo simples prazer de investi­ ga~lo ou insatis~ quanto ao presente, mas porque ele se dirige para 0 Sumo Bem.

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4S Se~do Bloch, 0 Sumo Bern e 0 que e digno de ser dese­ jado, 0 "Unico Necessario", orientando todas as utopias do ho­ mem (pE, I, 26-7). 0 Sumo Bem e 0 objetivo final antecipado (0 Ultimum), realizado no "trabalho revolucionario concreto" (pE, I, 378): a utopia do Sumo Bem identifica-se com a luta pela liberta­ ~o da humanidade (pE, I, 379). A discussio sobre 0 conteudo do Sumo Bern esta presente na hist6ria da filosofia, pois "a orientacao para 0 unico Necessario animou igualmente todas as filosofias an­ teriores" (pE, I, 27). Todavia, embora 0 Sumo Bern seja identifi­ cado com a libertacao da humanidade, tim Ultimo, sendo, portanto, fonte de satisfa~ao constante, "0 lugar onde se encontra a fonte esta escondido no insignificante, ern algo sernpre representativo" (pE, m, 435).0 conteudo do Sumo Bem permanece, portanto, no "fermento do inc6gnito" (pE, I, 367). ' A a~ao humana, ao dirigir-se para 0 Novum, orienta-se pelo Bern Supremo, 0 qual e identificado com a liberdade: 0 homem concreto, que vive uma situ~ao de opressao, dela conscientizan­ do-se, visa a libertaeao. Torna-se necessario, porem, que ele per­ ceba que tal situa~ao existe n80 apenas a nivel individual, mas coletivo: 0 seu conflito individual esta inserido no conflito de clas­ ses. Assim, 0 homem somente adquire a capacidade de ultrapassar a aliena~o e a opressao quando percebe tal conflito. 0 homem toma consciencia de seu poder a partir da percepcao de que, atra­ ves do trabalho, pode interferir no mundo, transformando-o. A esseacia da perfectibilidade nada mais e do que a aboli~io da alie­ na~ no homem e na natureza (pE, I, 290), pois 0 homem e, sem cessar, transformado ern seu trabalho e por seu trabalho. Existe, portanto, urn aspeeto destruidor do Humanum na sociedade capi­ talista: todas as atividades. dos trabalhadores existem em fun~io dessa producao. Ate mesmo donnindo ou em lazer., 0 trabalhador descansa para uma nova jornada, vivendo em fun~o da burguesia ao recuperar suas forcas para produzir melhor (pE, Ill., 491). No momento ern que 0 trabalhador toma em suas mios 0 processo de

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46 transforma~io social,

abre caminho para 0 surgimento da nova sociedade, pois, ao tornar-se consciente de que Dio e objeto, mas sujeito da hist6ria, assume diretamente esse processo. Implica, porem, que 0 trabalhador destrua a alien~io, tornando-se ser para si. Bloch, seguindo totalmente a analise que Marx faz sobre 0 tra­ balbo alienado nos Manuscritos economicos e filosoftcos, afirma que 0 principio da desalienacao orienta 0 homem para a sua liber­ ta~io. E sintomatica a Ultima frase com a qual Bloch conclui 0

Pr:incipio Esperanca: A verdadeira ginese nllo se encontra no princfpio, IIUIS no final e comecara somente quando a sociedade e a exist8ncia se fa98ID radicais, isto e, quando ponham nUlo em sua raiz.. A raiz da hist6ria e, porem, 0 homem que t:rabalha. que cria, que modifica e supera as circunst!ncias dadas" (PE, ill, 501).

A forca que 0 trabalhador tern em suas mios deve ser on­ entada por ele mesmo como instrumento de real mudanca da so­ ciedade. E necessario, porem, que ele se assuma como sujeito desse processo, sem, 0 qual Dio havera mudaneas qualitativas, havendo, no maximo, reformas que impedem que 0 trabalhador se perceba como sujeito, pois mantem a situa~io de aliena¢o. 0 ho­ mem aspira, em suas lutas concretas, ao Sumo Bern, ao "Ultimo conteUdo desiderativo" (pE' ill, 432). Bloch, apoiando-se em Marx, assim formula 0 sentido dessa essencia de perfectibilidade: A essencia de perfectibilidade e, segundo a mais concreta das antecipaflJes, a de Marx, "a natura/izayiio .do homem, a humanizafiio do natureza. E a abolifiioda alienafiio no homem e na natureza, entrehomem e a natureza, ou ainda 0 acordo do objeto niioreificado e do sujeito manifestado, do sujeito niioreiftcado e do objeto manifestado (PE, I, 290). II


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Explicita-se, aqui, a interdependencia entre 0 homem e a natureza; somente enquanto livre, 0 homem pode, de fato, ter amplo dominio sobre a natureza. A formula marxiana: "a naturali­ za~o do homem e a humaniza~o da natureza" tem a forca de lembrar que 0 homem e um ser que transforma a natureza, bem como, que a natureza e a morada do homem. .

1

Para uma an3lise do conceito "utopia", aplicado ao marxismo, ver A. R VIEIRA, "A racionalidade etica da utopia ,marxiana", Revista de Filosofia,

Jolo Pessoa, Mestrado em Filosofia, agosto/93, n~, p. 77-84 Titulo original;' Das Prinzip Hoffanung, (1954-1959), em 5 partes. HA a ~o para 0 :franc& (Le Principe Esperance, Paris, Gallimard, 3 vol.) e para 0 espanhol (EI principio Esperanza, Madrid, Gallimard, 3 vol.). Para facilitar as ci~ de 0 Principio Esperance, abreviaremos como PE, seguindo-se a indica~o do volume e pagina - 0 volume I sera da edi~o francesa, os volumes IT e ill da edi~o espanhola. 3 Ver a ttadu~o para 0 ponugues em Ernst BLOCH, "Mudan\t8 de mundo: ou as 11 Teses sobee FeueIbach", In AdelmoGENRO FILHO (org.), Filosofia e prlais revolucionaria, SAo Paulo, Brasil Debates Ed., 1988, p. 30-60. Ver 0 resumo da analise blochiana das 11 Teses em: Pierre FURTER, Dia­

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letica da esperanca: uma interpretacao do pensamento utopico de Emst Bloch, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 120-122; S. ZECCm, Ernst Bloch: utopia y esperanza en el comunismo, Barcelona, Peninsula, 197~, p.

122-135. K. MARX, Theses sur Feuerbach, em K. MARX e F. ENGELS, Etudes Philosophiques, Paris, Ed. Sociales, 1947, p. 57. Segundo Engels, as Teses sobre Feuerbach sAo "simples notas tomadas ra­ pidamente no papel para ulterior trabalho, de modo algum destinado a im­ pressio, mas de um valor inestimAvel, par ser 0 primeiro documento onde est8 posto 0 germe inicial da nova conce~o de mundo" (F. ENGELS, Prefacio aEtudes Philosophiques, op. cit., p. 7-8). S Karl MARXe F. ENGELS, A Ideologic Alemii, Lisboa, Presence, 1980, vol. I, p. 19.

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aContribuiflIo a crltica da Economia Pollttca, Sio Paulo, Martins Fontes, 1977, p. 24. Em A Ideologia Alemli, I, p. 26, Marx e Engels, 13 anos antes, tinham posi~o identica: "Serlo antes os ho­ mens que, desenvolvendo a sua prod~o material e as suas re~ mate­ riais, transformam, com esta realidade que lhes e pr6pria, 0 seu pensamento e os produtosdesse pensamento. N40 e a consciencia que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciencia". 7 cr. F. ENGELS, Carta a Joseph Bloch, citada em L. sEVE, Une introduc­ tion alaphilosophie marxiste, Paris, Ed. Sociales, 1980,p. 167. 8 K. MARX e F. ENGELS, A Ideologia Alemli, vol. I, p. 55-6. No Manifesto '"Comunista os mesmos autores afirmam: "As ideias dominantes de uma epoca nunca foram mais que as ideias da classe dominante". 9 F. ENGELS, Anti-Duhring, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979,p. 102. 10 K. MARX, Manuscritos economicos e filosoficos, in FROMM, Erich, Con­ ceito marxista de homem, Rio de Janeiro, Zahar, 1983,p. 116-7. 11 Ver: Louis ALTHUSSER e outros, Ler 0 Capital, 2 vol., Rio de Janeiro, zabar, 1980; L. ALTHUSSER, A favor de Marx, Rio de Janeiro, zahar; ver taJnbem 0 debate entre L. ALTHUSSER e Jorge SEMPRUM e Francis COImN: Marxisme et humanisme, in La Nouvelle Critique, nO 164, marco de 1965,onde Althusser reassume sua tese, admitindo que sO se pode faiar de humanismo marxiano na primeira rase do jovem Marx, pois, "a partir de 1845,Marx rompe radicalmentecom toda teoria que fonda a hist6ria e a politicasobrea essencia de homem" (p. 7). 12 0 humanismo concreto, pensa acertadamente L. Basbaum, consiste na "revol~o Dio apenas do proletariado, mas de todos os homens, os subho­ mens, no sentido de transforma-los em homens" (L. BASBAUM, Huma­ nlsmoe alienaflio. S40Paulo, Simbolo, 1977,p. 92). 13 E assim que t.ambem pensa L. Goldmann quando diz: "0 humanismo ma­ terialista e dialeticoafirma assim comovalor supremo a realizaflio hist6ri­ ca de uma comunidade humana autentica que so pode existirentre homens inteiramente livres, comunidade que pressupOe a supresdo de todos os en­ traves sociais, juridicos e econ6micos a liberdade individual, a supressao das classessociais e da explo~o" (L. GOLDMANN, Dialetica e cultura, 2a. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979,p. 33). 14 E. BLOCH, Droitnaturelet dignit~ humaine, Paris, Payot, 1976,p. 196. IS K. MARX, El Capital, vol. m, Mexico, FeE, p. 759 (passagemcitada em PE, m, 483). Em sua analise sobre 0 trabalho do alienado, Marx afirma que "a liberdade {... } sO pode consistir no homem socializado"; para isso e necess3rio que 0 interc&nbio das materias esteja sob seu controle, havendo urn "menor gasto possivel de fo~ nas condi~s mais adequadas e mais 6 K. MARX, Prefiicio de 1859


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digoas de sua natureza humana" {...} 0 verdadeiro reino da liberdade {...} 56 pode flon:scer tomando como base aquele reino da necessidade. A condiyio fundamental para isso e a red~o da jomada de trabalho" (idem - grifo nosso).

K. MARX, Theses sur Feuerbach, (teses 2 e 8), p. 57 e p. 59; citadas em PE, I, 323, 329. 17 K. MARX e F. ENGELS,A Ideologia Alemti, vol. I., p. 25. . 18 S. ZECcm comenta, acertamente, a te~O entre teoria e pnitica: "quando a pr3xis se converte na prova decisiva para a teoria, reaIiza esse salto quali­ tativo que especifica 0 objetivo da teoria-pr3xis (livre de todo partidarismo pragmAtico exclusivamenteutilitarista), num sentido teleol6gico" (op. cit., p.134). 19 K. MARX, Theses sur Feuerbach; p. 59 (citada em PE, I, 331). 20 "Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpn:tier, es kommt darauf an, siezu verander" (K. Marx, Mega, I, 5, p. 535). 21 E. BLOCH, L'esprit de /'utopie, Paris, GaIlimard, 1977, p. 288. 22 V. I. LENIN, 0 Estado e a Revolucao, SOO Paulo, Hucitec, 1979, p. 104-5. 16

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NATUREZA E LEI NATlTRAL NOS ENSAIOS DE MONTAIGNE

Celso Martins Azar Filho Departamento de Filosofia da UFRJ

Trata-se de urn exame do conceito de lei natural na obra de Michel de Mon­ taigne (1533-1592) atraves, principalmente, de consi~ acerca da bist6­ ria das n~ de lei, natureza e lei natural que, auxiliando a compreender sua ambien~ no pensamento renascentista, apoiam a analise simult4nea de seu sentido nos Ensaios.

A natureza e 0 grande principio. Segui-Ia, segundo a filo­ sofia dos Ensaios, eo preceito soberano: 'Eu tomei, como ja disse alhures, bem simplesmente e de maneira crua no que me conceme, este preceito antigo: que nos Ilio saberiamos falhar em seguir a natureza, que 0 preceito soberano e de se conformar a ela". A importincia do referencial 'natureza' para 0 pensamento renascentista e facilmente reconhecivel: este serve de ponte entre os sujeitos e os objetos do conhecer, relacionando ser e pensamen-

I Prine. I Natal I ADo 3 I n.4 I p. 51-71 I jan.ldez. 1996 I .,

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to pelasvias da analogia, conveniencia e semelhanca, em urn. saber cuja estruturacao e ordenacao mesmas recebem 0 titulo de "naturais". A natureza foi a grande entidade metafisica da Renas­ cenca. Pelo menos desde 0 seculo :xn (em urn. movimento que deita suasraizes no seculo IX) a ideia de natureza comeca a softer, em suas expressoes te6ricas e artisticas, transformaeoes substan­ ciais, e 0 alto Renascimento alcanca brilhante equilibrio entre suas heraneas antigas e medievais. Porem, mais e mais certas contradi­ ~5es basicas se tornario evidentes, e a sustentacao dos paradoxais padroes vigentes, problematica, 0 termo 'natureza' sera, entio, repleto de significados que se permutam, opoem-se e superpoem­ se, pois a propria natureza aparecera, no esfacelamento de sua fei~io medieval em meio ao redespertar do mundo do antigo e ao descobrimento de Novos Mundos, espantosamente m6vel e varia­ da emseus '(...) meios infinitamente desconhecidos. Hi grande incerteza, variedade e obscuridade no que ela nos promete au ameaea' (Ensaios ill, 13, 1095). Palavra de multiplas e comple­ xas significa~es (e que, no periodo em questao, podera chegar a ocupar 0 mesmo lugar de Deus'), a natureza sofreu ao longo de sua historia profundas modificacoes semanticas, porque grandes mudaneas atravessou 0 re1acionamento e intera~io do homem com ela. Evitemos, pois, justificar 0 passado a partir deste futuro e projetar naquele nossos ideals, ou, ao menos, nio faze-lo de forma completamente inconsciente. Deve-se levar a serio 0 fato de Gior­ dano Bruno considerar-se urn. 'delineador do campo da natureza' (Acerca do Infinito, do Uoiveno e dos Mundos, Epistola pre­ ambular, I): uma vez que os quadros e conceitos transcendentes sob os quais se organizava a ideia de natureza aparecem rompidos e desgastados, a procura de sua ordenaeao imanente toma-se a preocupacao primeira. ·Compreender a posi~io e condi~io do ho­ memem urn. universo transfigurado: este e0 problema central para


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a filosofia renascentista. No seculo de Montaigne, longe estamos da natureza mecanica, a disposicao do homem, do seculo XVII; aqui, natureza e uma designa~io extensa e vaga, cujo peso moral toma ainda mais abstrata. E precisamente seu conteudo moral, investimento de motivos profundos e obscuros, em -- em virtude de progressiva falencia dos avatares teoricos tradicionais -- em mut~io, oferecendo de si uma imagem muito pouco estavel. No periodo medieval, discorrer acerca da natureza (em urn universo finito, hierarquicamente imovel, e expresso atraves do realismo lingUistico dominante) e, em geral, falar da necessidade nos termos metafisicos de causa, origem e finalidade. Isto toea diretamente a liberdade e consciencia do homem que, inscrito em urn universo definitivo, jll encontra sua natureza e seu papel dados de antemao. Desde antes do Renascimento estas estruturas come­ cam a ser abaladas por choques sucessivos, se propagando em uma 'descrenca" mais ou menos difusa. A obra montaigniana e a ex­ pressao mais original e acabada do ceticismo dai resultante, reen­ contrando 0 antigo sentido do tenno em urn olhar enriquecedor que, longe da mera negacao, reafuma a complexidade da 'natureza sobre suas sempre imperfeitas interpretacoes, Assim, tal ceticismo ebastante diferente, por exemplo, de certo dogmatismo do senso comum, 0 qual, em busca da evidencia completa de uma clareza total (talvez a pior ilusao), rejeita, absolutamente, 0 que filo com­ preende. Simplifica, ao contrario de Montaigne, cujo ceticismo considera possivel mesmo 0 que escapa ao pretenso bom senso.e e todo penetrado de uma especie de "temor metafisico": 'E precise julgar com mais reverencia esta infinita potencia da natureza, e com maior reconhecimento de nossa ignorincia e fraqueza' (Ensaios I, 27, 180). Se esta reverencia tem a intensidade de um sentimento religioso, ela filo e mais a consequencia do temor ao Deus criador medieval, mais sim da compreensao ensaistica do homem e da natureza.


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A natureza, nos Ensaios, e 0 principio de cria~io, movi­ mento e diversific~ao, tanto do desenvolvimento dos seres singu­ lares, como da economia do todo. Como tal, a natura montaig­ niana, traduzindo muito bem a no~iio grega de physis, for~a que gera e sustem, nio se opee ao "espirito" ou a hist6ria que silo, antes, compreendidos sob seu dominio". Contudo, MO· estA ai em questio a ideia de uma natureza que procedesse uniformemente, acionando sempre 0 mesmo efeito para cada causa ('Em coisas naturals, os efeitos nio se referem senio em parte as suas causas (...)'; Ensaios II, 12,531), mas a de uma natura creatrtx, variavel, mutante e inventiva, que sobrepassa qualquer enquadramento tOO­ rico. No devir natural, 0 conhecimento humano e seus objetos e sujeitos, originados e nutrldos pela mesmafonte, 810 (como todo 0 . resto) arrastados pela mesma corrente natural de infinitas possibili­ dades de metamorfose: 'Se a natureza encerra nos termos de sua marcba ordinaria, como todas as outras coisas, tamb6m as creneas, os juizos e opini6es dos homens; se tudo isso tem sua revol~o, sua ~, seu nascimento, sua motte, como as couves; se 0 ceo tudo agita e rola a sen talante, que autoridade segura e ma­ gistrallhe vamos atribuindo?' (Ensaios Il, 12 - 575).

'Si interminatam in omnes partes magnitudinem regionum videremus et temporum, in quam se injiciensanimus et in­ tendens ita longeque peregrinatur, ut nul/am oram ultimi vi­ deat in qua possit insistere: in hac immensitate injinita vis innumerabilium appareretformarum '.S '(...) Todas as coisas estio em flutua~o (fluxion), mudan~ . e vari~o perpetua' (Ensaios IT, 12,601).

As imagens do fluxo, movimento e muta~o da realidade multiplicam-se no texto montaigniano: 0 escoar incessante do de­ vir universal euma experiencia fundamental para a filosofia ensais­ tica. '0 Mundo nio e seniio baloucar (branloire) perene. Todas as coisas neles se movem (branlent) sem cessar: a terra, os rochedos


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de Caucaso, a piramides do Egito, e do movimento (branle) geral (public) e do seu particular". Do ponto de vista da consciencia individual. trata-se de urn mover extemo e intemo, cercado por inumeraveis outros movimentos: 'E nos. e nosso juizo, e todas as coisas mortais vic fluindo (coulant) e rolando sem cessar (...) eo julgador e 0 julgado estio em continua muta~o e movimento (branle)' (Eosaios IT. 12. 601). Esta natureza vertiginosa aparece como diversidade e vari~io: 'A natureza se obrigou a nada fazer que Dio fosse dessemelhante' (Eosaios Ill, 2. 804). Entretanto, mesmo em sua variabilidade a 'mere nature' nio perde sua unidade ('E uma mesma natureza que rola seu curso'- Eosaios IT, 12.467) e. ate poderiamos dizer sua "personalidade'", pois Montaigne fala dela como de uma pessoa proxima; e em sua obra a natureza fala, ordena, recomenda, sugere, guia, consola, estende a mio. d8, etc. Seu autor Dio se considerava, e nem pretendia que 0 homemfosse ou viesse a ser, mestre ou possuidor da natureza, mas muito mais seu protegido. 0 Renascimento retoma 0 saber antigo que. geral, e marcadamente na epoca helenistica, prescreve subordina­ ~io a medida natural. Prescri~io esta que se afigura tanto mais importante conforme nos apercebemos como aquela inten~io do vivere secundum naturam est&. implicada com a construcao mesma da linguagem ensaistica. E Dada mais natural, dado que a natureza Dio e. nos Ensaios, apenas algo de exterior ao homem, mas a pro­ pria forca que constitui sua individualidade (como a de cada ser singular). sendo-lhe acessivel desde seu interior mesmo. 0 natural e. entia. onde se cruzamliberdade e necessidade • e a perfei~iO Cia personalidade (ideal da sabedoria helenica e renascentista com­ partilhada por Montaigne) e a realizacao da lig~io intima entre homeme natureza: viver a proposito e reencontrar constantemente esta harmonia fundamental. Desde 0 seculo V (com 0 pelagianismo) esta virtude salutar autenome da natureza, sinal de resistencia da tradi~o paga, ocu­ para Agostinho em sua refuta~io: ela se opoe a sua doutrina da

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graca sobrenatural, central no cristianismo, para 0 qual a natureza e urn ens creatum, estritamente separada de Deus e irremediavel­ mente corrompida pelo pecado original. Este "paganismo", tendo se feito cada vez mais presente desde 0 seculo XII impoe-se nos seculos XV e XVI com forca inusitada. Suas fontes, helenisticas", sao as mesmas as quais se referem a natureza montaigniana: Deus e natureza sao, nos Ensaios, por vezes empregados como quase sinonimos (por exemplo, Ensaios IT, 12 e Ill, 13) e esta e repre­ sentante autonoma daquele. , A ideia eminentemente grega do crime como antinatureza -­ radicalizada pelo estoicismo" e reorganizada segundo as relacoes sobrenaturais que constituem e determinam 0 universo cristio -- e no~o comurn que atravessa a Idade Media e 0 Renascimento: III ser criminoso ou pecador'" era aftontar a ordem moral universal. Mas, no texto montaigniano, alem de nio mais encontrarmos ape­ los ao sobrenatural (como, em geral, a qualquer transcendencia), a compreensio do que seja contra a natureza sofre tor~o decisiva, tornando-se extremamente problematica, Seu ceticismo questiona precisamente a inteligibilidade daquela ordem natural, fazendo ressoar novamente a interrogaeao incisiva de Sextus Empiricus: Qualnatureza 111 As distin,~es dogmaticas e teol6gicas com rela­ ~io a natureza apagam-se nos Ensaios (ou antes, multiplicam-se em confrontos e combinacoes de plastico contraste) e 0 sobrenatu­ ral e absorvido pela natureza. Nada e, senio segundo a natureza (Ensaios IT, 30, 713). No entanto, se a natureza e mae e doce guia, a qual 'nio saberiamos falhar em seguir' (e rege, assim, 0 que e 0 que deve ser), em via procuramos nos Ensaios pela lei natural: 'Mas eles sao divertidos quando, para dar algoma certeza as leis, dizem que algumas hll fumes, perpetuas e imutllveis, que eles chamam naturais, que sio impressas no genero hurnano pela sua condicao de sua propria essencia' (Ensaios IT, 12, 579).

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Este e urn. trecho da "Apologia de Raymond Sebond': tra­ ta-se de uma investigacao acerca da natureza do homem e do co­ nhecimento. E neste mais longo dos Ensaios que 0 ceticismo montaigniano exprime-se de forma plenamente consciente de si mesmo, a partir de seu encontro -- que the confinna suas pr6prias impressOes -- com 0 texto de Sexto Empirico. Esta conjun~o sera crucial para desenvolvimento posterior do pensamento modemo. Para os dois seculos seguintes, Montaigne e Sexto Empirico serio os grandes r,resentantes de uma filosofia que nega a existencia de leis naturals' . Mas as coisas nao se passam tao simplesmente nos Ensaios: 0 que foi negado na Ultima cita~io nao foi exatamente a existencia de leis da natureza ('A natureza sempre as da mais feli­ zes do que aquelas que n6s nos damos'- Ensaios ill, 133, 1066), mas seu conhecimento imediato e seguro: 'Se n6s vissemos tanto no mundo como n6s do vemos, perceberlamos, como e de crer, uma perpCtua multipli~o e vicissitude dasformas. Nlo 113 nada de novo e de J;81'O em ~o a natureza, mas sim em re~ ao nosso conheci­ mento, que e um misenivel ftmdamento de nessas regras e que nos apresenta (represente) provaveImen.te uma muito falsa imagem dascoisas' (Ensaios II, 6, 908).

E em fun~io desta ccnstatecso que as oposicoes medievais, natureza x contralsobrelanti-natureza, serao substituidas na filoso­ fia dos ensaios pela antiga contraposicao natureza - arte. Isso traz para 0 centro da problematica geral do ceticismo ensaistico a criti­ ca do pensamento e do ato humano frente a natureza. Para Mon­ taigne, 0 homem sera 0 animal que tem 0 poder, para sua desgraca, de contradizer a natureza atraves de uma especie de ilu­ sao ontol6gica racional: 'Pode-se crer que haja leis naturais, como se va nas outras criaturas; mas em n6s elas estao perdidas, esta bela razilo humana metendo-se a tudo dominar e comandar, embru­

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lhando e confundindo a apar!ncia (visage) das coisas segun­ do a sua vaidade e inconstancia. "Nada resta portanto que seja nosso: 0 que chamo nosso e artificial" (Cicero, De fini­ bus)' (Ensaios Il, 12, 580) .

Paradoxalmente, 0 esforco de compreender e determinar a lei natural, da natureza frequentemente nos desvia. 'Os til6s0fos com grande razio, nos reenviam is regras da natureza; mas eIas llIo tem 0 que fazer de tao sublime c0­ nhecimento; eles as falsificam enos apresentam sua apa­ l"!ncia muito pintada e muito sofisticada, de onde nascem tantos diversos retratos de urn objeto (subject) do uniforme' (Ensaios nr, 13, 1037).

Nao e nada simples, portanto, seguir aquele preceito sobe­ rano iniciado no inicio. Pois, '(...) esta razao que se maneja a nos­ so talante, (...), nao deixa em nos nenhum trace evidente da natureza. Com esta fizeram os homens como os perfumistas com 0 oleo: sofisticaram-na com tantas argumentacoes e reflexoes (discours) chamados do exterior (du dehors), que ela se tomou variavel e particular a cada urn, e perdeu seu pr6prio aspecto (visage) constante e universal, (...)' (Ensaios ill, 12, 1049). Como, entao, seguir a natureza? Por urn lado, a via de um quietis­ mo naturalista simplista, que se contentasse em se reunir 'a espon­ taneidade instintiva do animais, recusando a interven~o racional , encontra-se, ao menos para n6s -- homens "civilizados" e distantes da felicidade do antigo Brasil canibal (tal como Montaigne 0 apre­ sentou no livro I, ensaio 31) -- fechada. Por outro 1000, persiste 0 problema de Ilio haver acesso racional direto ou garantido As leis naturais. Mantendo a questio em suspenso, sao oportunos certos comentarios paralelos. A lei de que Montaigne trata aqui, por certo, e aquela que n6s denominariamos moral. Mas, para 0 Renascimento, lei fisica e


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lei moral sao apenas extremos, bastante imbricados, do campo natural. A no~io renascentista de lei, como a de natureza, 1180 cor­ respondem as modemas e contemporineas: nio nasceu como compreensio cientifica (hipotetico-dedutiva) do que sejam leis da natureza, e muito menos nossa certeza instintiva no tocante a etas. Para 0 autor dos ensaios nio parecia possivel que qualquer norma humana tirinica pudesse limitar a potencia incomensurive1 de uma natureza animada, providencial, e em incessante metamorfose sob seus olhos. As leis que busca 0 Renascimento eram, em uma larga acep¢o, eticas, principalmente porque, 18, 0 problema moral ad­ quiriu dramatics complexidade, ja que mesmo a propria imagem do homem e do que seria 0 hurnano foi posta em questio: pela atluencia dos novos e antigos mundos, a diversidade hist6rico­ geografica da natureza humana torna-se mais e mais patente e a descoberta de "novos" tipos humanos no seculo XVI traz abaila a questio de se saber se conviria, ou nio, chama-los homens13• E mesmo 0 estatuto juridico das leis renascentistas e, no minima, curioso, dado que sob sua legisla¢o penal estabeleciam-se julga­ mentos formais mesmo para os animais. Alem disso, esta e uma epoca na qual a natureza pode interferir diretamente, por meio de pressagios ou sinais, na execucao das leis (e tal testemunhado por homens, entio, famosos por seu saber e habilidade), e onde os reis ainda curam'", Fala, nos Ensaios, urn moralista. Mas esta designa­ ~io tern aqui urn significado especial: Montaigne e urn estudioso dos mores (costumes) ou seja, estuda 0 homem atraves de uma compreensio empirica de seu modus vivendi, buscando isen~o dos juizos de valor rigidos. Trata-se de uma tendencia da filosofia helenistica que, recomposta, adquire for~a e formas mais definidas no renascimento italiano, para provar um florescimento mais constante na Franca (espalhando-se tambem pela Espanha, mais tarde na Inglaterra e, posteriormente na Alemanha)lS. Nio e uma filosofia moral nos moldes antigos, ou urn saber das nonnas morais em urn ambito universal ou metafisico. Interessa aos moralistas

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nio a cria~io de canones eticos ou de pedagogias para 0 "melhoramento" do homem, mas a observacao e a analise da fae­ ticidade concreta da condi~ao humana em suas diversas naturezas e costumes (em meios aos quais 0 "imoral' e apenas uma questio de referencial). Esta linha de investiga~o, que descende do mais puro humanismo (como herdeira direta de Petrarca),.recorre de prefer&1cia 'a forma literaria aberta (dando papeis importantes para a satira e a poesia), confrontando a ordem hierarquica e logi­ camente formalista do discurso tradicional acerca da natureza hu­ mana, e evitando toda sistematizacao e fundamentacao metafisica para.manter 0 problema moral em aberto. Ao que tudo indica, fo­ ram as re1~es entre os principes italianos que fomentaram e am­ bientaram 0 nascimento desta observacao tatica dos homens e s~es. Ela vicejou com vigor, em seguida, nas cortes renascen­ tistas em geral, mas especialmente, logo ap6s Montaigne, na fran­ cess". fA aboli~o das regras universais, que apreciamos na filosofia montaigniana, e caracteristica destemoralismo. . No Renascimento, os limites da natureza, dos seres e dos estados 810 incertos. A no~ao de lei e problematica, e mais ainda nos ensaios do Seigneur de Montaigne, que foi diplomata , prefeito e, certamente, juiz de muitas causas: ha tanta incerteza, diz ele, em interpreter as leis, como em faze-las (Ensaios m, 13, 1065). Esta conclusio nio e apenas juridica, mas filos6fica: desenvolve-se, ai, uma critica do universal em geral, que orienta a linguagem ensais­ tica, desde a cunhagem e 0 emprego de seus termos, ate a disposi­ ~io de sua argumen~o. Contudo, tal nio impedira Montaigne de ser urn moralista convicto e resolute'? quando julgar necessario (comecos, sem duvida, daquela filosofia moral que, como queriam os antigos, deveria ser parte primeira e principal de todo saber). Como 0 pode ser? Cetico em sua fundamentacao Ultima para leis ou principios ('Ora, nio pode haver principios para os homens se a divindade nio os revelou' - Ensaios II, 12, 540),0 ensaista busca­ ra apoio, em meio as revolucoes do mundo e do homem no auto­


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conhecimento, atraves de uma representaeao pictoria do 'eu'. Por este caminho, os Ensaios compreenderao urn estudo fenomenolo­ gico da consciencia moral'", podendo prescindir, tanto do esque­ matismo categorico e verticalizante do saber de seu tempo, como da cien.cia 'nova' exata (quejl1 se anuncia), em favor de uma com­ preensao estetica da personalidade que, atraves de sua capacidade plastica, procura unificar a contraditoriedade de transbordante fecundidade da natureza: ele busca, MO a lei, mas a atitude corre­ ta; Ilio apenas 0 conceito, mas a imagem sensivel" e Ilio somente compreender racionalmente a natureza, mas segui-Ia e realiza-la. 'Soubestes meditar e governar (manier) vossa vida? V6s

rea1izastes a maior empresa de todas, Para se mostrar e agir (exploiter) a natureza Ilio precisa de fortuna: e1a se mostra igualmente em todos os niveis e atras, como sem cortina. Compor nossos costumes enosso oficio, nio compor livros, e ganhar, Ilio batalhas e provincias, mas ordem e tranqUilida­ de em nossa conduta. Nossa grande e gloriosa obra-prima e viver a prop6sito' (Ensaios ill, 13, 1108).

o caminho escolhido por Montaigne para estudar 0 homem

enquanto ser moral visa se ajustar amobilidade de todas as coisas:

MO e possivel desligar 0 essencial das circunstancias, acidentes e

causalidades respectivas, e, por isso, 0 ensaista renuncia a uma defini~o Ultima de si mesmo ou do homem; ele deve escutar e experlmentar a si e ao mundo sempre de novo, desistindo de uma resolucao final em favor do ensaio. A consciencia da instabilidade da rmo ftente a inconstancia universal abre ao ensaista a dimen­ sao critica do juizo. Estar consciente da miseria da ratio humana, a qual falta uma luz natural (instintiva ou divina) que esclarecesse suas ideias ate a evidencia imediata, e afirmar sua dignidade pro­ pria. 'Pois que aprouve a Deus nos dotar de algoma capacidade de raciocinio (discours), a fim de que, como os animals, n6s

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62 do ffissemos servilmente sujeitados as leis comuns, mas que n6s nos aplicassemos por julgamento e liberdade voluntaria, n6s bem devemos dar um pouco a simples autoridade da natureza, mas Dio nos deixar tiranicamente levar por eta; somente a razlo deve ter a condu~o de nossas inc~. Eu tenho, de minha parte, 0 gosto estmnhamente insensivel (mousse) a estas propenslies que 510 produzidas em n6s sem a or~ e a interven~o de nosso julgamento' (Ensaios IT, 8, 387).

Encontramos aqui uma das respostas possiveis aquela inter­ rogayio acerca de como seguir a natureza: sequere naturam e seguir a razio. Porem, este nio era, para 0 ensaista, urn problema passivel de ser resolvido de uma vez por todas. Ou nio era a mes­ rna razio - ou urn mal usa dela -- a culpada de termo-nos desvia­ do da natureza ? Portanto, antes de suprimir superficialmente a questio, atentemos para 0 trecho citado: trata-se de passagem significativa, da qual, antes de mais nada, devemos anotar, a 000­ pera~io entre gosto, razio e julgamento; esta inclina~io sensivel e fundamental no pensamento ensaistico. Em seguida, notemos a liberdade da vontade. 0 trabalho do julgamento montaigniano e 0 ensaio: experimento e tentativa em urn discurso que nio se fecha; ele e 0 resultado da exigencia racional em uma vontade livre, e pode advertir a razio mesma a respeito da incerteza de SUBS pr6­ priasleis: 'To 1130 enxergas senao a ordem e 0 govemo deste pe­ queno porlo onde te alojas, se e que as enxergas: (...) : e uma lei municipal que alegas, tu do sabes qual e a uni­ versal' (Ensaios n, 12,523).

'No mais, quantas coisas M em nosso conhecimento, que combatem estas belas regras por n6s talhadas e prescritas 'a natureza?' (Ensaios n, 12,526).


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Preservemos, aqui, 0 paradoxa produtivo entre natureza e razio, ou entre a afirma~o e a nega~o das leis naturais: nos en­ saios, julgamento e duvida coexistem. Esta Ultima, pertencendo a atividade formal daquele (pois, e ela que -- possibilitando a refle­ xio no por as teses e contrapor as antiteses -- permite 0 movimen­ to do julgar), nio deve ser abandonada: 'Depois de ter estabele­ cido a duvida, querer estabelecer a certeza das opinioes humanas nio seriaestabelecer a duvida e nio certeza, (...)1' (Ensaios ill, 9, 964). Assim, a dilvida ensaistica, momenta necessario do exercicio da razio montaigniana, nio ecomparavel, nem a duvida preliminar aristotelica, nem a duvida metodica cartesiana. E pelo seu concur­ so, principalmente, que a constituicao da subjetividade cetica de Montaigne sera urn evento de singular importancia, divergindo da subjetividade racional do espirito cientifico modemo (que se devo­ tara a domina~io tecnica da natureza) ja em sua proto-historia, De uma parte, 0 destacamento reflexivo da razio frente as nonnas morais operado pelafilosofia dos ensaios, e decisivo para a forma­ ~o da no~o modema de sujeito e consciencia"; de outra, man­ tern sua diferenca, experimentando a verdade subjetiva mesma como caminho de uma rel~o mais completa e autentica do indi­ viduocomas coisas", Tendo se colocado de saidano elemento da impermanencia universal, Montaigne considera que, nada permanecendo 0 mesmo, nio e possivel a visio compreensiva do todo. 0 homem somente percebe partes e dados relativos, ou as coisas como inseparaveis da sua reflexio em urn olhar: aparencias. Dizer, aqui, que nos Ilio saimos do dominio subjetivo Ilio e pressupor urn universo objeto oculto, uma natureza fixa, substancial, ou uma essencia das coisas portadora, ela sim, de verdade e subsistindo independente de nos (e que, uma vez atingida dispense e disperse a subjetividade do pesquisador ante si mesma), mas expor uma visio da inter~io homem mundo que entende o aparecimento do sujeito e do objeto como tais somente no interior e no desenrolar deste relacionamen­


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to mesmo. 0 'eu', como toda natureza, sofre influencia do tempo em seu ser mesmo; e Dio e posslvel, dada nossa condicao, nem mesmo distinguir nitidamente nossa propria mudanca e movimen­ tos do fluxo das coisas. Nio poderia haver isolamento do sujeito: pois ele esti aberto arealidade fluxional desde dentro, atraves da ima gina 9io22. Parecer e 0 caminho do ser para 0 homem. Diante deste quadro, 0 mau uso da razio e aquele que ex­ elui a duvida, '(...); mas me tern a razlo ensinado que, oondeDar assim re­ solutam.ente uma ooisa oomo falsa e impossivel, e dar-se a vantagem de ter dentro da cebeca os term.os e limites da vontadede Deus e da potenclade nossa mae natureza: e que do hA no mundo mais notAvelloucura do que reduzi.-los a medida de nossa capacidade e suficiencia. Se chamamos monstros ou milagres isto onde nossa razlo nIo pode ir, quantos tais se apresentam continuamente a nossa vista? Consideremos atraves de que nevoas e de que maneira tate­ ante somos levados 80 conhecimento da maior parte das coi­ sas que temos as Inilos: certamente n6s descobriremos que e mais 0 costume (accoustumance) que a ci&1cia, 0 que nos priva de estranhamento. I

jam nemo, fessussatiatevidendi, suspicere in ooelidignaturlucida templa,

e estas coisas Ill, se nos fossem apresentadas como novas, nos as achariamos tanto ou mais incriveis que nenhumas outras, (...)23. A rmo que se deixa cegar e enrijecer pelo costume esta fora de si: epreciso diferenciar a lei humana da lei natural", tendo sempre em vista que afastar-se da natureza e afastar-se da rmo mal empregando-a. 'Eu aceito de bom coracao, e com reconhecimento, 0 que 8 natureza fez por mim, e me oongratulo com ela e louvo-a. Erra-secomessa grande e toda poderosadoadora em recusar


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seu dom, em anula-lo e desfigura-Io. Tudo bom, ela fez tudo bom' (Ensaios ill, 13, 1113). Devemos, pois, engajar-nos nesta busca do natural; sua pre-condi~ e a dUvida salutar que nos aconselba Montaigne. Tal e 0 naturalismo cetico do ceticismo ensaistico2S; e aqui esta uma de suas melhores de­ :fini~: 'Se entendessemos bem a diferen~ que M entre 0 impossive1 e 0 inusitado, e entre 0 que e contra a ordem do curso da natureza, e contra a opiniao comum dos homens, em Dio crendo temerariamente, nem tambem descrendo fa­ cilmente, observariamos a regra: Nada em excesso, ordenada por Quilon' (Ensaios 1,27, 180).

Se Montaigne recusa qualquer acesso racional garantido ao conhecimento do ser ('Nos nao temos nenhuma comunica9io com o ser, (...) '; Ensaios II, 12, 601), isto,nio significa invalidar qual­ quer concordancia entre ser e pensamento (que se realiza a nivel pessoal); 0 ensaista esta muito mais preocupado em viver as leis naturais do que em conhece-las; e 0 'nio' gnoseol6gico quanto. a elas e parte do 'sim' moral. 'Ehl pobre homem, ja tens bastante incOmodos necessaries, sem os aumentar por tua inve~: e es bastante miser8ve1 de condi~o, sem 0 ser por artel Tens fealdades reais e es­ senciais suficientes, sem foIjar imagin8rias. Achas que estas demasiado a teo gosto, se 0 teo gosto nlo vier a te desagra­ dar? Achas que cumpristes todos os deveres neeessarios a que a natureza te convida, e que ela tem em ti fique falha e ociosa, se to do te obriga a novos deveres? Tu do temes ofender suas leis universais e indubitaveis, e te vanglorlas das mas, particulares e fantasticas; e quanto mais particula­ res, incertase controversas, tanto mais nisto te esfo~. Pre­ ocupam-te e prendem-teas regras positivas de tua inven~o, e as de tua parOquia: as de Deus e do mundo do te tocam. Percorre um pouco os exemplos destas consi~: neles est3 toda tua vida,26.


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Ensaios III, 12, 1059. A edi~o dos Ensaios referida nas ci~ 8 de Pierre Villey (pUP, Paris, 1988). As tradu~ sao de responsabilidade do

8utor do presente artigo. Para 0 conforto do leitor, nos trechos citados dos Ensaios encontram-se referidas as suas respectivas fontes (segundo as in­ fo~ do mesmo Villeye de outroscomentadores) as ci~ feitaspelo . proprio Montaigne - uma vez que ele mesmodo 0 fez. 2 Ja na Apologia de Raymond Sebond(Ensaios n, 12) ocorrem fOrmulas qua­ se 8ssimUativas como 'de Dieu et de nature' (460). E, 80 longo dos Ensaios, cada vel: mais !requentemente se pode substituir um termo pelo outro com prejufzomfnimo para 0 sentido das frases que os contam (como nota Hugo Friedrich; op. cit, pg. 331). E Giordano Bruno: 'A natureza, ou e 0 proprio Deus, ou e 8 virtude divina que se manifesta nas coisas'(SummaTerminorum. IV, 101, in Opera Latine conscrlpta, ed. F. Fiorentino et a1., Napoles-Floren~ 1879-91). Dilthey (Hombre y Mundo en los Siglos XVI e xvn, trad de E. Imaz, Fon­ do de Cultura Economica, Mexico, 1944, pgs. 327-402) fala de um 'pantefsmo' renascentista que teria 'preparado' 0 de Spinoza. cr. t:ambem Robert Lenoble, Histoire de I'Idee de Nature, Albin Michel, Paris, 1969, pg. 223. 3 D~ toda especial que Qio provem ou procede por excluslo, mas por incluslo e n!o necessariamente acontece pela falta de fe, mas, frequente­ mente, pelo senexcesso; ou seja,uma descren~ em rela~o 8 ortodoxia e as expli~ Unicas em geral. cr. Lucien Febvre, Le Probleme de l'Incroyanceau 16 siecle,Albin Michel,Paris, 1968. 4 Manlel Conche (Montaigne et Ia philosophie, Ed. de Megare, Limoges, 1987; pgs. 130 e seq.) aponta para a influencia de Lucrecia e Epicuro na ideia ensafstica de natureza, e mostra como nos Ensaios, auaves da radicali­ za~o 0 proprio metodo epicUreo das explica~ mUltiplas, 8 doutrina epi­ curista e convertidaem. ceticismo. Os conceitos montaignianos basicos sAo, em geral, tradu~ bastantes pre­ cisas das palavras gregas e latinas empregadas pelos antigos (Hugo Frie­ drich, Montaigne, A. Francke VerlagAG, Berna, 1967, nota 82). S Ensaios ill, 6, 907. Ao pe da letra: 'Se a magnitude em todas as ~ intermin8vel do espacoe dos temposvissemos, na qual se ~ 0 espiri­ to e assim se estendo longe e longamente peregrina, sem que nenhum limite


67 veja no qual possa deter-se: nesta imensidao infinita mostrar-se-ia uma quantidadeincomensuravel de formas. ' Esta passageme uma ci~o modicidade uma fala do epicurista Velleius no De natura deorum (1, 20) de Cicero. As mndaneas que Montaigne af realiza sic muito significativas: ele adiciona 'et temporum' (e dos tempos) ao pri­ meiro perlodo, e troca 'atomorum' (de atomos) por 'formarum' (de formas). Entio, por um lado, 0 ensaista a:firma a infinidade do tempo ealude a mul­ tiplicidade de seus pianos; 0 que levara, segundo Butor (Essais sur les Es­ sais, Paris, Gallimard, 1968; pg.202) a uma imagem do mundo como concerto de hist6rias paralelas. E, de outro, em retendo a concepcao epicu­ rista da natureza comoprincipiode prolifera~o e fecundidade, separa-se do atomismo: porque a forma para ele 040 era um principio da natureza, mas sua pr~o; e por isso, ponto fundamental, Dio e a natureza ou 0 ser que projeta sua luz no espfrito, mas ao inverso(como diz 0 mesmotreeho citado) e 0 espfrito que se lanca na natureza. atraves dela Assim, Montaigne reen­ contra Epicuro por via obliquoa, pois os atomos sio chamados eles pr6prios de physise a intui~ e descritacomo salta (Epibole)pelo mestre do jardim. Cf. Lucreeio(De rerum natura, n, 1051 e seq., e especificamente 1045) so­ bre 0 v60 livre e espontmteo do espirito; e Epicuro (lean Brun; 0 Bpicuris­ mo; Ed. 70, Lisboa, 1987; pg.55) sobre as represen~ intuitivas. E Ensaios n, 2, 347, 348; n, 32, 725. 6 Ensaios m, 2, 804. Como nota Hugo Friedrich (op. cit., p. 151)" um dos termos maisfrequentes e mais significativos dos Ensaios e branle, branler e branloire. Diversas trad~ sio possiveis - movimento, agita~, hesita­ ~o, abalo, danea, etc. - todas elas ressaltam este motivo fundamental da con~ de mundo montaigniana que e a instabilidade. Por esta raza:o a trad~ adequada parece ser balance, balouear e, algumas vezes, apenas movimento. 7 Montaigne empreendeu esta personifica~o da natureza ja na sua ~o da TheologiaNaturalis de Sebond. Lucrecio, sabemos, faz 0 mesmo e, tam­ bem como Montaigne, chega, usando a prosopopeia (De rerum natura; m, V, 935-95 I), a dar voz apropria natureza. Se, aparentemente, as inumeraveis metMoras dos Ensaios sobre a natureza pareeemcontribuirpara tomar vaga sua n~o e ate mesmo realear um certo car8ter de transeencJencia divina (e aqui encontramosa raiz da piedade inte­ lectualmente cetica- a expressio e de Hugo Friedrich - do ensaista), muito ao inverso 0 que ocorree a multipli~ dos ~s afetivos com ela, atraves do enriquecimento das tonalidades expressivas da linguagem. A natureza esta presente principalmente Ii visio interior de Montaigne (cf. Ensaios Il, 10,407): por isso se exclui deliberadamente tudo que as ciencias


68 naturais poderiam fomecer em defini~' (e tal tambem pelo emprego re­ torcido de suas perspectivas e linguagem teeniea), pois para uma filosofia cujo fim b8sico 6 0 aperfei~ento da personalidade, 0 que importa 6 a consi~o da II3tUreZa enquanto fo~ que organizaa individuaIidade. on como a resultante da converg@ncia de fo~ interiores e exteriores em sua rem~ recfproca no individuo. A metMora montaigniana 6 a expres­ 510 disto. Ela serve tanto a critica da defini~o universal e -do conceito, como. por af mesmo, se autocrltica evitando 0 papel de iDstrumento de co­ nhecimento (ataeando implicitamente os neop1at6nicos; cf. Michael Baraz, I/&re et la connaissance selon Montaigne. JoseCorti. Tolouse, 1968. p. 63). 8 ·.As id6ias e autores belenisticos, seja em fun~o de seu cosmopolitismo. de Sua abso~o pelo cristianismo on de sen bilinguismo, tam peso determinan­ te na 6poca renascentista; atraves deles, boa parte das vezes, do lidos os textos c18ssicos. Segundo Arnaldo Momigliano (Os Limites da Hele~o. Zshar. Riode Janeiro. 1991; p. 17). 0 'homoeuropaeus' manteve-se intelec­ tua1mente condicionado por seus antepassados helenistieos, que ainda in­ tluenciamnossas atitudes para comas civiliza~ antigas. 9 Anaximandro foi 0 primeiro a transferira n~o de dike do mundo da polis ao muDdo da natureza. entendendo 0 devir como uma contenda judici8riana qual todos os seres 'devem reciprocamente softer 0 castigo de sua injusti~ na ordem do tempo' (fragmento 1. Diels - Kranz). Heraclito ja aludia (fr. 114. Diets - Kranz) a uma lei divina e. depois dele. outtos afirmaram uma lei nIo-escrita natural com ~o divina (por exemplo, Xenofonte - Me­ morabilia IV. 4. 5-25 - e Arist6teles - Ret6rica 1368 b. 1373 a-b), Mas somente com 0 estoicismo aparece a con~o de uma physis que funda­ menta 0 nomos (a lei. 0 costume). Esta filosofia da II3tUreZa como divina ratio. da physis como logos imanente, tem grande intlu@ncia no Renascl­ mento; e m.esmo Montaigne. que se inclinaraa uma posi~ em certospon­ tos diametralmente oposta. participa deste espfrito ne0-est6ico na primeira edi~ dos Ensaios (cf. PierreMichel. Montaigne. Ducros, Bordeaux, 1970. p.ll) 10 Como diz Tomas de Aquino - cuja obra ja representa uma abertura na postura ortodoxa crista caracteristica da alta Idade Media de considerar todonaturale terrenecomo desprezivel - pecado e0 que contrariaa lei da natureza (cf. E. Gilson, Humanisme et Renaissance. Vrin,Paris.p. 191). 11 Pynoneion Hypotyposeon, I. 98 (Loeb. London, 1993. p. 59). 12 E. por isso, 0 ensaista sofrer8 violenta oposi~o. por exemplo, dos defstas e de Rousseau (ver as notas de Pierre Villey a sua edi~o dos Ensaios; pg. 1169).


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Ja que, para conquistadores e escravocratas, esta uma diferen~ juridica bastante importante (ver Marcel Conche, op, cit., pg. 2). Note-se que Montaigne eum dos primeiros te6ricos a dar importhcia es­ peculativa aos grandes descobrimentos. Sobre as m1iltiplas possibilidades de mundos e homens, cf. Ensaios II, 12, 525. As for~ naturais enlacam-se em ~ imprevisiveis e inesgot8veis; a forma humana mistura-se a de outros seres naturais (0 que ressoa com certa tendencia da arie maneirista: cf. Hocke, Maneirismo, SAo Paulo, Perspectiva, 1986)· e varia do henna­ frodita a humanidade sem boca que se alimenta de certos odores. 14 Ver Lucien Febvre (op. cit, II) e Villey (op. cit, pg. 1234) sobre os reis taumaturgos. 1S Geralmente, 'moralistas' eum termo aplicado a certos escritoresfcanceses dos secwos XVII e XVIII. ~ a ~ larga, destituida de in~o normativa, tornou-se paralelamente bastante corrente, como mostra Hugo Friedrich (op. cit.; 190). VlStO com 't8tico', 0 moralista aparece, por exemplo, em Nietzsche (por exemplo, em Menschliches, Allzumenschli­ ches Il, afs. 5, 33, in Werke, edi~o de Karl Schlechta, Carl Hanser Verlag, Munique, 1977, p. 746 e 756) e Kant (Ober die MisseheUigkeit zwischen der Moral und der Polilik, in absicht auf den Ewigen Frieden, in Textos Seletos, Petr6polis, Vozes, 1985, p. 134); alem destas ocorrencias, que Hu­ go assinala, podemosver tambem em David Hume (Essays Moral, Political and Literary, Liberty Classics, Indianapolis, 1987, The Sceptic .; nota 6) 0 mesmodesignativo (ai com 0 significado mais geral de estudiosodos prin­ cipios morais) aplicado ao pr6prioMontaigne. o sentido de 'moralismo' que queremos reter e 0 de uma filosofia moral critica da moral enquanto saber de normas absolutamente fundadas (e, em ~o disso, talvez, 0 nome 'ciencia moral' tenha sido riscado dos Ensaios por adi~o manuscrita de seu autor). Quevedo, Guicciardini, La Bruyere, Bandello, La Rochefoucauld, Cervantes, Shakespeare, do alguns dos no­ mes que Hugo reline para figurar esta corrente da qual os Ensaios sao 'um cl8ssico; ali8s, Ilio M senio que recomendar as paginas deste autor acerca dos moralistas e, especialmente, a respeito da li~ de seu estilo com 0 aforismae a poesia (op. cit.; 13 e seq., 189 e seq., etc.) 16 F~ onde 0 inchamento e a esclerose da estrutura cortes40 absolutista tomara tal tipo de obse~o das rel~ hllmaMS quase uma necessidade de sobrevivencia. Cf.: NorbertElias, 0 ProcessoCivilizador; Rio de Janei­ ro, zahar, 1990, p. 53; Erich Auerbach; op. cit., pgs. 272, 273. 17 Cf.: Jean Larmat, Montaigne, moraliste 'certain' et 'resolu', in Claude Blum e Fran~is Moreau (Org.), Etudes Montaignistes, Paris, Honore Champion, 1984. 13

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cr.: G. Mathieu-eastellani, Montaigne - L'eeriture de l'essai, Paris, PUF, 1988; .zoe Samaras, Le dualisme de l'apparence et de l'essence chez Montaigne, in Etudes Montaigoistes (op. cit); Maurice Merleau-Ponty, Signes, Paris, 1960. 19 Um dos ~ mais caracteristicos da cultura e do pensamento renascentis­ ta ~ sua tendenciae materializar-see tomar expressio artistica. Comodisse Cassirer (Indivfduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, trad. argenti­ na. Buenos Aires, Emeee, 1951, p. 101): "Em uma epoca na qual as formas espirituais dominavamou informavam a vida em todos os seus aspectos. na .qual os pensamentos capitais sobre 0 lugar do homemno mnndo, sobreseu '., destino e sobre a liberdade, manifestavam sua intluencia ate nas peeas . [teatraisl festivas, em tal epoca, pois, 0 pensamento do podia limitar-se a 1icarencerrado em si mesmoe aspirava, portanto,a expressar-seem sfmbo­ losvisiveis." Issocaminba a par, como eobvio, com as intlu8ncias recfpro­ cas entre arte, ciancia e filosofia ocorridas nesta epoca, a respeito das quais h8 toda uma vasta literatura. 20 cr., por exemplo: Marcel Conche, La decouverte de la consciente morale chez Montaigne, Bulletin de la Soci~ des Amis de Montaigne, Paris, ja­ neiro:.junho 1981, pgs. 11-28. Este artigo ~ retomado em 'Montaigne et la Philosophie' (Cap. VI: La Conscience) ja citado. Arnold Hauser, OIl. cit., 46-47. 21 Montaigne se engaja em uma rel~o fundamentalmente estetica com a vida, da qual sua obra e0 medium. Em sua filosofia, 0 sentir (e sentire no latim possufa ta.mbmn as aawaes de julgar e pensar) e condi~o sine qua non dojuizo. E eprecisamenteisto que conferea linguagem dos Ensaiosas caraeterfsticas pelas quais Montaigne foi cbamado de cfil6sofo lirico' (ver HugoF., op. cit, pgs. 245-246). 22 Montaigne utiliza 0 termo 'ima~o' em seu sentido antigo: a phon/asia pode ser uma espCcie de instancia intermediariaentre a pe~o e 0 pen­ samento (entre aisthesis e noesis segundo Arist6teles - De anima, Ill, 427b-429a - e Plotino - Enn~es, IV, 4, 12), uma mistura de perceber e julgar (platlo, Theeteto, 194d-195d), ou ainda uma faculdade mediad.ora, caracterizada como capacidade imagetica(de natureza sensual e intelectu­ al) de impressionare alterar a alma. On seja: a phon/asia e a faculdade que lida com 0 pathos. Na filosofia ensaisticaa cfantasie' e a 'imagination', si­ n6nimas, exercem fun~s de memoria, sensibilidade e cria~o; e atraves da composi9fto e intermedia~ da fantasia que 0 homem se relaciona com o mundoe consigomesmo.

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e de Lucrecio (De rerum natura. II, 1038): 'Cansados, saciados de ver [0 espet3culo do am], ja ninguem se digna a erguer os olhos para os templos de luz celestes'. 24 Cf., por exemplo, Ensaios I, 27, 180; I, 36, 225. 25 Neste, 0 que est3 basicamente em questao nao e a simples ~ dog­ matica da inexist!ncia das leis naturais, mas a problematiza~ da atitude do homem frente a elas. Com rel~o a este ponto e ao naturalismo ensafs­ tico em geral. veja-se meu artigo Acerca do naturalismo de Montaigne (publicado em '0 que nos faz pensar', Cademos do Dept de Filosofia da PUC-Rio,novembro de 1994, n. 8). 26 Ensaios III, 5, 880. Cf. tambem ibidem II, 37, 766.

23 Ensaios I, 27, 179. A cita~o latina

BARAZ, M. L'etre et la connaissance selon Montaigne. Toulouse: Jose Corti, 1968. CONCHE, M. Montaigne et la philosophie. Limoges: Megare, 1987. FRJEDRICH, H. Montaigne, A. Bema: Francke Verlag AG, 1967. MONTAIGNE, M. Essais. Paris: Pierre Villey, P.D.F., 1988.


UMA DEFESA MORAL DO ABORTO

Cinara Maria Leite Nahra Departamento de Filosofia da UFRN

No presente artigo discute-se as ehamadas versees conservadora e liberal no que diz respeito ao posicionamento em re~o ao aborto. Filia-se a corrente liberal e defende-se 0 momenta do nascimento como linha divis6ria moral­ mente significativa, a partir da qual se considera errado matar um feto. Para fundamentar esta defesa mostra-se que esta diferen~ moral significativa que existe entre matar um feto antes do nascimento e ap6s 0 seu nascimento esta fundada em uma dife~ de es,tatuto onto16gico, tendo 0 feto um determina­ do estatutoonto16gico, e 0 hebe 0 estatuto de ser humano. Utiliza-se para fun­ damentar esta distin~ da difere~ estabelecida por Heidegger entre ente e ser. Fundamentalmente pretende-se sustentar no artigo a tese de que "urn feto nIo 6 um ser humano".

A discussao sobre a moralidade do aborto pressupoe, nesta analise, a resposta a duas questoes: 1) 0 que eurn ser humano? 2) A liberdade e urn valor hierarquicamente superior a vida? jan.ldez. 1996 I Prine. I Natal I Ano 3 I n. 4 l.......o;.;.p·_72_-S_S..........-.;;......;;..;;;";;;;;.;",,,;;;.;....;....;..._


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Para responder estas questoes sera, inicialmente, situada a discusslo contemporanea sobre a questao do aborto, seguindo os passos de Peter Singer no seu artigo "Tirar a vida: 0 embriao e 0 feto". Neste artigo Singer chama a aten~o para 0 fato de que a discussio do aborto vai abordar dois pontos de vista: 1) Ponto de vista conservador (contra 0 aborto)

2) Ponto de vista liberal ( a favor do aborto)

o ponto de vista conservador seria expresso no seguinte argumento: E errado matar urn Ser Hurnano

Um feto humano eum Ser Hurnano

E errado matar urn feto humano

(premissa 1) (premissa 2) (Conclusio)

A rea~io liberal a este argumento teria duas vertentes: Vertente 1 - Nega a segunda premissa, ou seja, estabelece que "Urn feto humano nio e urn ser humano". Vertente 2 - Nega a conclusao, ou seja, estabelece que ''Nao e errado matar urn feto humano". Inicialmente, sera analisado 0 argumento liberal em sua Vertente 1: Ve-se que a discussio liga-se ao problema do feto ser ou nio ser um ser humano, e a questio do aborto sera, entio, wna controversia a respeito de quando inicia a vida humana. 0 ponto de vista conservador estabelece que "lui uma continuidade entre 0 6vu10 fertilizado e a crianca" de modo que nio hi linha divis6ria moralmente significativa em nenhurn ponto deste processo. Nio havendo tallinha divis6ria devemos conferir ao embriio 0 status de crianea. o argumento liberal em sua vertente 1 estabelece que hi esta linha divis6ria moralmente significativa, podendo ser:

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a) 0 nascimento b) A viabilidade c) Os primeiros movimentos do feto d) 0 surgimento da consciencia Analisemos cada uma delas e as obje~oes conservadoras: a) Nascimento A linha divis6ria, que torna a morte injustificavel, e onascimento. Ate 0 momenta do nascimento 0 feto humano 010 e um ser humano. Quando nasce, 0 feto humano torna-se urn ser humano, e entio, sera injustificavel mata-lo. Obj~o conservadora: o feto/bebe e a mesma entidade tanto dentro quanto fora do utero, tendo as mesmas caracteristicas humanas. A localiza~ao de um ser dentro ou fora do utero nio deve configurar diferenea quanto ao erro que consiste em mata-lo, ou seja, nlo e moralmente significativa. b) Viabilidade

H0 tempo em que 0 feto jt pode sobreviver foni do utero. Enquanto ele nao e' viavel, ou seja, nio tem condicoes de sobreviver sem 0 corpo da mie, ele nao seria urn ser humano, e portanto, 010 seria moralmente errado abortar. Quando ele ja tem condi~es de sobrevivencia independentemente do corpo da mAe, ele ja viavel, 0 que significaria que ja seria um ser humane, e portanto seria moralmente errado abortalo, Obj~lo conservadora: a mais forte das obj~es seria a de que 0 ponto em que 0 feto pode sobreviver fora do corpo da mie varia conforme a tecnologia. Hoje, por exemplo, urn feto de 6 me­ ses pode sobreviver fora do utero, mas a 20 anos atris 010 podia. Isto significaria que ha 20 anos atras nio seria moralmente errado matar este feto e hoje seria?

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c) Primeiros sinais de vida E a epoca em que pela primeira vez a mie sente 0 feto mexer-se. Na teoria cat6lica tradicional acreditava-se ser este o momenta em que ele ganhava alma. Obje~o conservadora: na realidade pesquisas com ultra­ som mostram que 0 bebe ja comeca a fazer seus primeiros movi­ mentos muito antes que eles possam ser sentidos pela mae. A ca­ pacidade de movimento fisico, ou sua falta, nada tem a ver com 0 direito que alguem possa ter a continuidade da vida. 0 fato, por exemplo, dos paraliticos nao poderem mover-se nio implica que eles nio tenham 0 direito de continuar vivendo.

d) Consciencia E 0 momenta em que '0 feto adquire consciencia, que num estagio primario seria adquirir a capacidade de sentirpra­ zer ou dor. Obje~io conservadora: quando se da este momento? Nio se sabeao certo. o argumento liberal em sua vertente 2 admitiria que 0 feto e urn. ser humano, mas apesar disso consideraria 0 aborto admissi­ vel. Ha tresgrandes 1inhas de argum~ relativas a esta vertente: a) As conseqnencias de leis restritivas E 0 argumento de que as leis que proibem 0 aborto nio acabam com ele, mas apenas levam-no a ser feito clandestina­ mente. Em geral a mulher que quer abortar esta desesperada e procuraum abortador de fundo de quintal. Obj~io conservadora: trata-se de urn argumento contra as leis que proibem 0 aborto e nao contra 0 ponto de vista de que 0 aborto emoralmente equivocado. b) 0 ponto de vista utilitarista Esta baseado na concepeao de John Stuart Mill segundo 0 qual devem ser revogadas as leis que criam crimes sem

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vitimas. Entre estas leis estio aquelas que proibem os relaciona­ mentos homossexuais livremente consentidos, 0 uso de drogas, a prostituicjo, 0 jogo e outros, chamadoscrimes sem vitimas. Inclui­ se nesta r~ 0 aborto. Obj~io conservadora: 0 aborto Ilio pode ser chamado de urn crime sem vitimas. Justamente a discussio sobre 0 aborto e. em grande parte, uma discussio sobre se esta pratica produz ou Dio uma vitima. Segundo os conservadores esta vitima, sem duvi­ d~ eo feto.

c) Argumento feminista As mulheres tern 0 direito a decidir 0 que fazer com o pr6prio corpo. A base deste argumento e a de que 0 direito a liberdade e om direito hierarquicamente superior que 0 direito a vida. ,Obj~o conservadora: 0 direito a vida do feto, e superior ao direito de escolha da mulher. Isto posto, pode-se agora discutir as questoes iniciais que nos propomos a responder no inicio do artigo. Para assumirmos seja a posi~o conservadora, seja a posi9io liberal, inevitavelmente iremos nos deparar com nossas crencas sobre qual e 0 mais supre­ mo de todos os valores huinanos. Sio estas crencas que fundamen­ tario nossos julgamentos de valor sobre se 0 aborto e moralmente certo , ou moralmente errado. Vida humana ou liberdade? Vamos, inicialmente, super que 0 mais supremo de todos os valores e a vida humana e explorar todas as conseqaencias desta crenca, A posi9io conservadora, em suas diversas matizes, parece estar fundamentada nesta conviccao, a saber, que e a vida humana o mais supremo de todos os valores, aquilo que e impossivel sacri­ ficar em qualquer hip6tese. Analisemos 0 argumento dos conser­ vadores. Os conservadores, quando afirmam a primeira premissado argumento, a saber, que ''E errado matar urn ser humane", estio na realidade, assumindo uma crenca: a de que a vida humana e


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sagrada.' Se a vida hurnana e sagrada, isto significa que nio cabe aos homens tira-la, sob hip6tese alguma, ou seja, os homens nio estao moralmente autorizados a destrui-la. A Deus, e somente a Deus, cabe a destruicao e a cri~o da vida. Esta erenca esta fun­ damentada na concepeao tomista de que as leis da natureza estio fundadas nas leis divinas, sendo as leis de Deus inscritas na Terra, de modo que ao respeitar a lei da natureza estariamos respeitando a lei de Deus. Assim sendo, se Deus concede a urn casal 0 dom da procriaeao, nio cabe a ninguem interromper este processo, ou seja, seria moralmente errado faze-lo. Vamos analisar esta crenca. Sera que e sempre errado ma­ tar urn ser humano? Se e assim, seria errado 0 aborto mesmo nas condi~es admitidas pela legisl~o brasileira, a saber, em caso de - estupro ou quando a mae corre risco de vida. Uma pessoa que julga que nestes dois casos 0 aborto nio eerrado, estaria em con­ tradi~o com a crenca de que e sempre errado matar urn ser huma­ no, porque haveriam no minimo duas situ~es (gravidez fruto de estupro ou de risco de vida para a mae) em que nio seria errado matar. Ela faria, entio, de fato uma especie de hierarq~io do valor da vida, na qual, a vida de um ser humano ja plenamente desenvolvido (no caso a mae) teria mais valor do que urn ser hu­ mano nio plenamente desenvolvido (no caso 0 feto), e na qual urn atentado a liberdade de outrem (estupro) justificaria a destruicao de uma vida. Mas se e assim, entio, a crenca expressa na premissa 1 de que ''E errado matar urn SR" n80 vale incondicionalmente, 0 que significa que nio e nela que estio baseados aqueles que cha­ maremos de "conservadores leves". Ha aqueles, entretanto, ainda dentro da vertente conserva­ dora, que nio admitem excecjo para a regra de que "0 aborto e errado", e que chamaremos de "conservadores duros". Estes sim podem estar, de fato, fundamentados na crenca de que "E errado matar urn ser humano". Mas se e assim, estes deveriam admitir que a pr6pria morte por legitima defesa e errada. Se e errado sempre

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matar urn. ser humano, nenhum ser humane pode ser morto, inclu­ sive aquele que atenta contra a vida ou a liberdade de outrem. Sera que os "conservadores duros" estariam dispostos a permitir a violencia contra suas pessoas se a (mica op~lo for matar ou morrer, ou matar ou ser mutilado? Se e errado sempre matar um ser humano, nenhuma guerra se justificaria. Sera que os "conservadores duros" engrossariam as fileiras dos pacifistas que praticam desobediencia civil negando-se a partir para a guerra? Se e errado sempre matar um ser humane, a Santa Inquisieao, na qual seres humanos foram mortos e queimados pela Igreja, foi urn dos momentos mais monstruosos da hist6ria da humanidade. 0 que os "conservadores duros" teriam a dizer sobre isso? Se uma pessoa baseia sua conviccso de que Dio devemos abortar na crenca de que "E errado matar urn ser humano", ela deve ser, por coerencia, radical em seu pacifismo, abstendo-se de matar em legitima defesa, praticando desobediencia civil no caso de guerra e sendo implaca­ veis na condenacao as monstruosidades e mortes praticadas em nome da religiao. Associada a crenca de que "E errado matar um ser huma­ no", esta aquela de que "Urn feto humane eum ser humano", que corresponde a segunda premissa do argumento. Esta convi~lo e a de que desde 0 momenta da fecundacao ja. existe vida, ou pelo menos, ja existe vida potencialmente, de modo que 0 embrilo ja pode ser considerado um ser humane em potencial, e por isso, destruf-Io seria errado moralmente, que e a conclusao do argumen­ to. Analisemos: Se e errado destruir urn embrilo porque ele ja encerra po­ tencialmente vida, estamos assumindo que uma semente tem 0 mesmo estatuto de urn ser plenamente formado. Em tal caso, nada justificaria racionalmente a decisao de optar pela vida da mle, caso houvesse incompatibilidade entre uma gravidez e a vida da mie. Se e assim, porque optamos quase unanimemente pela vida da mie? Porque e claro, que na pratica, ninguem acredita que um embriio e


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um ser humano, e portanto, que tern 0 rnesmo estatuto ontol6gico deste. Mas admitamos 0 oposto, ou seja, que se opte pela vida do embriio. Neste caso chegariamos ao absurdo de admitir que urna semente tem mais direito a vida do que urn ser plenamente forma­ do. Como justificar isto? Atraves do argumento da potencialidade, ou seja, de que urn embriio teria, teoricamente, mais tempo de vida do que urn ser humano formado? Este argumento tern varias incongruencias. A maior delas e de que 0 valor da vida e dado pela quantidade potencial de vida, ou seja, 0 valor da vida emedi­ do pelo tempo potencial a ser vivido de modo que quanto mais novo 0 ser, maior seu potencial de vida, e portanto, maior 0 seu "valor". Tal crenca despreza completamente a historia, e 0 velho, estando associada a ideia de que urn See humano vale por sua ca­ pacidade produtiva. Oral 0 valor de urn ser Ilio pode ser medido por urn criterio fisico ou economico. 0 valor de urn ser deve ser avaliado por urn criterio moral. Os seres hurnanos se constroem pelos seus atos', pela sua historia de vida. Um embriio nio tem historia, urna mae tem. Uma semente eurn nada enquanto nio se efetiva no mundo, e pura potencia, Uma mae e ato e potencia, e passado e futuro, e projeto, e ser humano. A radicaliza~ao do argumento da potencialidade leva a ab­ surdos ainda maiores. E possivel pensar que todo espermatozoide, assim como todo ovulo, e urn ser humano em potencia, Deste modo, toda vez que urn homem e uma mulher deixam de praticar rela~es sexuais eles estao abortando" urn ser humano possivel, Deste modo, qualquer remmcia ao ato sexual entre urn homem e uma mulher seria imoral, pois urn ser potencial estaria sendo abortado. Por esta otica 0 celibato pregado pela Igreja Cat6lica para os padres, assim como 0 tabu da virgindade das freiras, tam­ bem seria imoral, pois ao se absterem da pratica de rela~es sexu­ ais, quantos possiveis seres Ilio estariam deixando de nascer, ou seja, nio estariam sendo abortados?

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Mas deixando de lade a potencialidade, imaginemos urn embriio que se desenvolve e vira feto. Suponhamos que passem 3,5 meses, e Ia est! 0 feto, ja com indicios de sua forma humana. Muda alguma coisa em reIa~io ao que foi colocado em reI~io ao embriio? Absolutamente nada. Entre 0 embrillo e 0 feto ainda dentro do utero materna a (mica diferen~a e a forma, que no caso do feto, se assemelha mais ao aspeeto humano. Isto, no entanto, Dio toma urn feto um ser humano, do mesmo modo que a seme­ 1lU,m~ entre a raea hwnana e os macacos Dio torna estes Ultimos seres humanos. 0 apelo aos nossos sentimentos e um recurso re­ t6rico, mas nio muda 0 estatuto ontol6gico do feto. Urn feto e urn feto, urn ser humane e urn ser humano, urn macaco e urn animal, nio humane.

A defesa que aqui se faz do aborto, parte de dois pontos. 0 primeiro assume a tese liberal em sua vertente 1, negando a pre­ missa de que um feto e urn ser humano", e estabelecendo que a linha divis6ria moralmente significativa, e que torna moralmente errada a destrui~ de urn corpo, e 0 momenta do nascimento. Pretende-se mostrar, refinando esta tese liberal, que esta distin~o moral esta re1acionada a uma distin~io ontoI6gica, tendo 0 feto urn determinado estatuto ontologico, e 0 beb8 outro estatuto, compIe­ tamente diferente. o segundo ponto assume em parte 0 argumento feminista (defendido por alguns liberais em sua vertente 2). Pressupoe-se que a liberdade e urn valor hierarquicamente superior a vida, mas tal tese, no contexte da discussio do aborto, Dio e independente do que se mostrar no ponto 1, ou seja, que 0 feto nio e urn ser humano. Vai-se primeiro discutir 0 ponto 1, tentando provar a tese de que "um feto Dio e urn serhumane". Inicialmente se vai discu­ tir 0 conceito de "ser". Para isso, utilizer-se-a dos conceitos des­ envolvidos pelo fil6sofo Martin Heidegger'. Este autor nos dira, jll no inicio da obra "Ser e Tempo", que "0 ser e 0 conceito mais


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geral e 0 mais vazio, e como tal, resiste a toda tentativa de defini­ ~io". Ele segue adiante afinnando, entretanto, que "a impossibili­ dade de definir 0 ser Ilio nos dispensa de questionar sobre seu sentido, ao contrario, conduz a isto imperiosamente". Heidegger continua, distinguindo "ente"e "ser". 0 "ente" nos dizemos de muitas coisas, e em diversos sentidos. . E ente tudo isto que nos falamos, tudo que pensamos, tudo isto em rela­ ~o a que nos comportamos de tal ou qual modo; isto que nos somos e como somos eainda ente. 0 ser se encontra no fato de ser como, no ser tal, ele se encontra na realidade, no ser adiante, no fundamento subsistente, no valor, na existencia, no "existir", Gianni Vattim04 salienta a questao da "diferenea ontologi­ ca" que Heidegger vai trabalhar no texto da Bssencia do Funda­ mento. Diferen~a ontol6gica, para Vaitimo e"aquela pelo qual 0 ser se distingue do ente e 0 transcende'". Pode-se aqui, arriscar uma interpretacao. 0 ser heideggeri­ ano e muito mais do que 0 ente. 0 ente efatico, 0 ser eexisteneial. o ente e tudo que e, 0 ser e somente aquilo que existe, tendo como uma das caracteristicas da existencia 0 questionamento. Voltando ao ser e tempo, Heidegger nos diz "Este ente que nos somos e que tem entre outras possibilidades de ser aquela de questionar, nos colocamos em nossa terminologia sob 0 nome de Dasein'". E afirma adiante7 : "0 Dasein se entende a si mesmo, sempre, a partir desua

existencia., umapossibilidadede si mesmo, posslbilidade de ser ele proprio ou de niio ser. Estas possibilidades, ou bem o Dasein escolhe, ou cai nelas , ou ja cresce nelas. Tomar em suas mdos ou niio faze-lo, estas maneiras de existir, pertence DO Dasein e somente a ele decidir: A questilo da existencta so se clarifica passando pelo proprio ex/stir".

A essencia do Dasein e aquilo que Heidegger chama de "ser no mundo". 0 "ser no mundo" e a ccnstituicao fundamental


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do Dasein. 0 Mundo mais imediato .do Dasein quotidiano sera, segundo Heidegger, 0 Mundo ambiente, expressio que reafinna uma referenda a espacialidade. 0 Dasein se realiza, entio, no es­ paco e no tempo. 0 fundamento ontol6gico do Dasein e a tempo­ ralidade. E dira Heidegger "A quotidianidade, entretanto, e 0 ser entre 0 nascimento e a morte". 8 . Pode-se agora, ir alem de Heidegger, mas utilizando seus conceitos. 0 Dasein heideggeriano, nada mais e do que um recurso lingUistico adotado pelo autor para designar "ser humane", para alem dos compromissos que este termo toma na metafisica tradici­ onal, onde confunde-se "ente" e "ser", "ontico" e "ontologico". 0 Dasein e 0 ser humano, visto nao apenas pela sua constitui~o biol6gica ou natural, ou como produto da cria~io divina. E 0 ser humano que se realiza em um espaco e num tempo determinado, a saber, entre seu nascimento e sua morte, que se questiona, que escolhe,' e que sabe que e finito. E 0 ser humano que se realiza dentro destes limites, nos limites da finitude humana. E 0 ser no mundo que se coloca como projeto, e que tem na realiza~io deste a imica possibilidade de se realizar, realizaeao esta que se dil na hist6ria. Voltando, entao agora, a questao do aborto, utilizando 0 instrumental heideggeriano, pode-se abordar a primeira questio proposta, sobre a diferenca entre 0 estatuto ontol6gico do feto e do bebe, que trara consequencias morais diferentes para a morte de um ou de outro. o feto nao e ainda um "ser no mundo", nao se distinguedo projeto de quem 0 gera. 0 feto faz parte do projeto de outro, nao e ainda um projeto pr6prio. 0 "mundo" do feto, nao e ainda 0 Lebenswelt (mundo da vida), 0 "mundo" do feto, e ainda 0 "mundo" da sua mae, faz parte deste. o nascimento e 0 momenta em que surge 0 "ser no mun­ do", e a morte, 0 momenta em que este "ser no mundo" se acaba. No momenta do nascimento e como se fizesse a magica da exis­


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tencia, transfonnando-se 0 entao feto, em projeto proprio. Aquilo que era "ente", se faz "ser", 0 feto se faz bebe, e se abre para a existencla, transformando-se em "ser humano". Como "ser huma­ no", ele passa, entia, a ter direitos, entre os quais, 0 direito a ter sua vida preservada. Como ser humano, torna-se absolutamente condenavel moralmente a sua destruicao por outrem, . o embriao e 0 feto, assim como urn corpo de urn homem depois da morte, sao entes, e nio ser. Nao se questionam, nio tern existencia, nio tem projeto. IS. urn bebe, e ele proprio urn ser no mundo. Foi jogado na existencia, jogado no mundo, e cabera a ele construir 0 seu projeto, exprimido no espaco e no tempo, tendo como limite a sua propria finitude. Um feto humano, pois, nio e urn ser humano, ja um bebe, no exato momenta em que vern ao mundo, em que nasce, torna-se tal. Cumprido, entao, 0 proposito de mostrarque"urnfeto nio e urn ser humano", a partir da distin~ entre ente e ser, que fun­ damentar-se-ia uma distin~o no estatuto onto16gico do feto e do bebs, culminando em uma distin~o moral extremamente relevante entrea destruieao (ou morte) do feto por quem 0 gera, e a destrui­ ~ao (ou morte) de urnbebe, vai-se agora analisar 0 segundo ponto proposto, ou seja, 0 argumento feminista de que cabe a mae deci­ dir sobre se deve ou nio abortar, nio caracterizando 0 aborto como errado, fundamentado na pressuposicao de que a liberdade e urnvalorhierarquicamente superior a vida o que significa dizer que a liberdade e urn valor hierarqui­ camente superior a vida? Significa, simplesmente, que 0 direito a livre-escolha de um individuo, no tocante a todos os atos em que nio haja prejuizo a liberdade de outrem, e superior a urn suposto dever de viver. Esta formulacao implica, por exemplo, que se urn individuo desejamorrerdeve ser garantido a ele este direito, ja que a liberdade de urnindividuo x que nao causa com seus atos prejui­ zo a nenhum y, e 0 valor supremo a ser respeitado na vida em so­ ciedade. Do mesmo modo, se urna gestante entende que sustentar I

. I


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urna vida potenciallhe e prejudicial, a sua liberdade de nio faze-Io (ou seja, nio sustentar 0 feto, aborta-lo) deve ser garantida. Mas nio existiria no caso do aborto urn prejuizo a liberda­ de de outro, sendo este "outro" justamente 0 feto? Ora! Mostrou­ se, justamente, no ponto 1 desta defesa do aborto, que urn feto nio e urn ser humano. Se urn feto nao eum ser humano, nio ha, pois, urn "outro" a quem se esteja causando prejuizo; nio ha. inva­ sio da liberdade de urn Y qualquer, a medida em que este Y nao existe. Se 0 ato do aborto de urn feto nao prejudica a liberdade de ninguem, 0 errado ejustamente impedir que urn aborto seja feito. Ao impedir 0 aborto esta-se, ai sim, atentando contra a liberdade de quem decide pelo aborto, e portanto, sendo imorais ao atentar contra a liberdade enquanto valor supremo. E para isto que 0 argumento por analogia de Judith Thomson, considerado um argumento feminists", chama a aten~. argumento do violinista basicamente 0 seguinte: imagine que urn famoso violonista sofre de uma doenca renal e so pode ser , salvo por urna imica pessoa ligando-se 0 aparelho circulatorio do violonista a esta pessoa. Voce e esta pessoa, e entao, uma socie­ dade dos amantes da musica the sequestra e liga seu corpo ao do violonista. 0 tempo em que voce deve permanecer ligado ao vio­ linista e de 9 meses, e ele entao tera sua vida salva. Voce tem a obriga~ao moral de permitir que 0 violonista fique ligado a seu corpo durante este tempo? Para Thomson, nio existe esta obriga­ ~io moral. Se voce consentir, este eum ato de pura generosidade, mas nio de obrigacao moral. 0 errado moralmente, no caso, seria obrigar a pessoa a manter-se presa ao violinista. 0 errado nao e negar-se a submeter-se a algo ao qual se foi obrigado, a qual nio se consente voluntariamente. Tal e 0 caso do aborto. A maternidade nio pode ser 00­ tendida como uma obrigacao, ela tem de ser entendida como urna op~ao. E errado obrigar alguem a gerar urn filho. Por outro lado, uma vez que este filho tenha sido gerado; urna vez que ele esteja

o

e


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no mundo, e absolutamente errado eximir-se de responsabilidades para com ele. Entenda-se, entao, 0 tempo em que 0 feto pennane­ ce no utero materno como um tempo para reflexio sabre 0 que significa lancar alguem no mundo da vida, produzir urn ser huma­ no. E como se a gestante estivesse sendo avisada: "Pense bem, voce realmente tem condicoes? Ainda ha tempo para voltar atras. Depois de cruzada a linha do nascimento filo hci retorno possivel, mais urn ser humano estara no mundo".

~;

e sagrada e explorada por Ronald Dworkin em seu livro "Life's Dominion". Para ele toda a controversia sobre a questio do aborto esta fundada nesta discussio. 2 Arist6teles na Etica a NicODlaCO, livro II nos diz que e pelos atos que prati­ camos em nossas ~ com os hom.ens que nos tornamos justos ou iqjus­ tos, pelo que fazemos em presenea do perigo e pelo habito do medo ou da ousadia nostornamos valentes ou covardes. 3 Heidegger, Martin - Etre et Temps- Gallimard. 4 Vattimo, Gianni - Introduzione a Heidegger. S Op. cit p. 66. 6 Etre et Temps p. 31. 7 Op. cit p. 37. 8 Op. cit P 285. 51 Etica Prcitica-Peter Singer- Martins Fontesp. 156. 1 A co~o de que a vida humana

DWORKIN, Ronald. Life's Dominion. New York: Vintage Books, 1994. HEIDEGGER ,Martin. Etre et Temps. Paris: Gallimard, 1989. SINGER, Peter. Etica Pratica. Sao Paulo: MartinsFontes, 1993.

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PROCESSO PRIMARJ:o E EMO~AO ESTETICA

Claudio Ferreira Costa Departamento de Filosofia da UFRN

Freud explains not only the neurotie symptoms and dreams as products of the primary process; worksof art are also products of it Althoughtbeing the pro­ duct of a primary process can't be a sufficient condition for the identification of an artwork. it can be conceived as a necessary condition of it; a condition that works as well in the creation of artworks as in its correct apprehension by

us.

Costuma-se dizer que a psicanalise filo se ocupa do fato estetico em si mesmo. Isso e amplamente verificado a urn primeiro exame dos ensaios dedicados por Freud ao assunto. Neles, 0 que se busca e, preferencialmente, uma compreensao da psicologia individual do artista por intermedio do exame de sua obra. Exem­ plos disso sao "Dostoievski e 0 parricidio", "0 Moises de Miche­ langelo", "Uma recordacao infantil de Goethe" e 0 estudo sobre Leonardo da Vmci. Tambem pode ser encontrada a analise, filo do artista, mas de urn personagem especifico de sua obra, como e 0

I Prine. I Natal I Ano 3 I n.4 I p.86-102 I jan.ldez. 1996


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caso de Hanold, figura central da Gradiva de Jensen. Em qualquer dos casos, porem, 0 objetivo principal naa vai alem da ambi~io de encontrar, na obra de arte, evidencias confinnadoras da teoria psi­ canalitica. Justifica-se assim a frequente afinna~ao de que a psica­ niilise se ocupa, quase que exclusivamente, do conteudo da obra de arte e nio de sua forma. Nas notas esbocadas a seguir, gostaria de demonstrar a possibilidade de que a obra de arte, em ao menos alguns de seus aspectos mais genericos, seja susceptivel de uma compreensio psicanalitica feita sob 0 exclusivo ponto de vista de sua forma. Penso que isso possa ser concebido a maneira de um estudo intro­ dut6rio ao reconhecimento de uma dimensao da estetica compre­ endida pe1a teoria psicanalitica, ainda que, como veremos, dentro de limites bastante estritos. Afinal, 0 fenomeno estetico apresenta uma variedade de dimensoes: uma dimensao semio16gica, outra psicologica, outra sociologica, outra hist6rica... .e nio seria de todo surpreendente se este multiple fenomeno - a arte - caso viesse a ser compreendido em seus limites ultimos, foreasse a estetica especulativa a revelar-se aquilo que ela freqtientemente dil a im­ pressao de ser: por meio de "metaforas", uma tentativa de dizer aquilo que ainda nio sabemos.

n Uma primeira caracteristica descoberta pela psicanalise na obra de arte e que esta Ultima costuma apresentar-se como resul­ tado do que Freud chamou de processo primario. Neste aspecto, a arte compartilha seu lugar com 0 sintoma neur6tico, 0 sonho, 0 devaneio, 0 pensamento infantil e primitivo, a religiao e a mitolo­ gia, que para Freud tambem sao resultantes do processo primario. Essa nio seria, portanto, uma caracteristica distintiva suficiente para uma demarcacao psicanalitica dos limites da obra de arte en­ quanta tal, mas uma caracteristica necessaria a sua existencia. Se,

.t

I


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como estrategia inicial, admitirmos a inclusao da obra de arte entre os efeitos do processo primario, pode se extrair dai uma sugestio inicial urn tanto 6bvia: a obra arte, tanto para a sua producao como paraa sua apreciacao, pressupoe a dimensao inconsciente ou pre-consciente do psiquismo hurnano.

m Pode-se definir 0 processo primario como 0 pensamento no qual as cargos (Besetzungen) ou intensidades afetivas nio se en­ contram estritamente ligadas as representacoes que Ihes sao cor­ respondentes, mas pennanecem relativamente livres. Nesse caso, as cargas podem desligar-se das representacoes inconscientes para fixar-se a outras representacoes (de um ou de outro modo associa­ das as primeiras), as assim chamadas representacees substitutivas, as quais sao por si mesmas passiveis de se tornarem conscientes. Ao se ligarem a tais representaeoes substitutivas, as cargas afetivas inconscientes podem penetrar na consciencia, obtendo com isso uma especie de liberacao ou descarga afetiva. Tal descarga, por sua vez, produz prazer ao fazer baixar 0 nivel detensio endopsi­ quica ' o processo primario e. de acordo com Freud, essencial­ mente caracterizado por dois mecanismos fundamentais: a conden­ sa¢o e 0 deslocamento. Ao esclarecer 0 deslocamento nos sonhos, Freud diz que ele se manifesta de duas maneiras: "na pri­ meira delas, urn elemento latente e substituido, 1180 por uma parte componente de si mesmo e sim por algo mais remoto - isto e. por uma alusio; e, na segunda, 0 acento psiquico e transferido de urn elemento importante para urnoutro sem importancia, de modo que o sonho se apresenta centrado de forma diferente e insolita'". Ge­ neralizando, podemos dizer que 0 essencial daquilo que Freud chama de deslocamento e que a carga psiquica de uma representa­ ~o (ou grupo de representacoes) RI passa para uma representa­


89 ~io (ou grupo delas) R2, que se toma consciente. Exemplo de Freud: uma paciente de religiao judaica sonha que da seu pente a alguem; a representacao desse ato vem no lugar da representacao de sua uniio com urn homem nio judeu, 0 qual ela secretamente deseja. A representaeao do pente, que e substitutiva, e associada a representaeao inconsciente de sua uniao comurn homem nio judeu devido a urn epis6dio no qual ela e advertida de nio usar certo pente que fora antes usado por urn empregado da casa, para "nio misturar as racas", A represeatacao substitutiva recebe, em cir­ cunstincia da vigencia do processo primario, a carga afetiva da representacao inconsciente, passando entio aconsciencia. A condensacao, por sua vez, e apresentada como uma es­ pecie de tradu~io abreviada ou fundida do conteudo latente. Se­ gundo Freud, ela se realiza no sonho das seguintes maneiras: "l) determinados elementos latentes sao totalmente omitidos; 2) ape­ nas urn fragmento de alguns complexos do sonho latente transpa­ recem no sonho manifesto e, 3) determinados elementos latentes que tem algo em comum, sio combinados e fimdidos ,em uma mesma unidade no sonho manifesto'". Tambem para a no~o de condensacjo podemos sugerir uma formula generalizadora: na condensaeao, a carga psiquica do conjunto de repreeeetacees (ou da representaeao composta) RI. R2. R3... e concentrada em uma representaeao (ou representacao parcial) RI. que se torna consci­ ente. Exemplo: se a paciente do sonho anterior tivesse sonhado ter encontrado 0 anel usado pelohomem a quem deseja, a representa­ ~io do anel pode estar no lugar da completa repreeentacso desta pessoa, condensando em si as cargas afetivas referentes aUltima. A diferenca entre os dois mecanismos considerados pode ser ilustra­ da por meio do seguinte diagrama:

.,


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Deslocamento:

Condensaeao:

., 0 deslocamento, por permitir urn aparentemente completo desaparecimento da representacao inconsciente, foi considerado por Freudcomo sendo necessariamente urn produto da censura. A condensaejo, por sua vez, tanto poderia ser efeito da censura como simples resultado de causas mecanicas e economicas'. IV

Pode-se adicionar as consideracoes anteriores a sugestio de que a tntensidade da emOfilo estetica tambem depende dos doisprincipais mecanismos do processo primario. No caso do deslocamento pode-se supor que a intensidade da emo~io estetica se deva ao fato de a obra de arte tomar possi­ vel 0 desenvolvimento e a descarga de intensidades afetivas que ter-se-iam acumulado emtomo de representacoes reprimidas. Nes­ se caso, uma intensidade afetiva ligada a uma representacao RI e longamente acumulada sera liberada 80 ser cedida 8 uma represen­ ta~!o R2, passivel de ser tomada consciente. Simbolizando com uma seta a passagem da carga psiquica de uma representaeao para outra, e com urn trace obliquo a instancia censora pela qual ela passa, podemos esquematizar tal passagem comose segue: I RI >>-----f---~) R2 7


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Podemos tambem aventar a hip6tese - interessante para 0

caso de producoes esteticas - de que uma intensidade afetiva 00­ arctada em seu desenvolvimento pudesse ter seu potencial desen­ volvido ao ser cedida a representacoes que, ao se tomarem conscientes, se associasse a toda uma complexa teia de representa­ ~es.

Ji no caso da condensaeao, a intensidade da emo~ este­ tica deve resultar, nao da descarga de uma intensidade afetiva acumulada e necessariamente vinculada a representacoes incons­ cientes, mas, por razOes predominantemente economicas, da con­ centraflio de cargas psiquicas provenientes de diferentes represeatacoes (geralmente apenas pre-conscientes) sobre uma menor quantidade de elementos ou representacoes substitutivas. Isso pode ser ilustrado pelo seguinte esquema, no qual a censura nao esta necessariamente presente:

Desse modo a emo~io estetica, aquilo que desde Arist6te­ les tem sido vagamente chamado de catarse, ainda que sob urn ponto de vista estritamente quantitativo, pode ser abstratamente justificada pela teoria psicanalitica. Ela deve resultar da libe~io de cargas psiquicas intensificadas, quer devido ao seu represamen­ to, ao serem repetidamente ligada a representaeoes reprimidas no trabalho psiquico inconsciente (ou talvez tambem pela possibilita­ ~o de seu desenvolvimento nao-coarctado), no deslocamento, quer atraves de sua conceatracao em urna unica represen~o (ou grupo delas), na condensacao,


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Tais suposicoes, podem afigurar-se estranhas a que Ilio es­ tiver habituado a ver na urn sistema teorico explicativo das dimen­ soes afetivas da mente. Elas se encontravam, contudo, pressupos­ tas nos proprios comentarios de Freud, 0 que justifica, por exem­ plo, a sua observacao sobre Hamlet em "0 'Moises' de Michelange­ 4 10" , onde ele sugere que 0 enigma do efeito produzido seja explicavel pelo envolvimento do tema edipiano. Apenas que tais consequencias, engendradas pela propria teoria, Ilio obtiveram de Freud umaconsideraeao mais particularizada.

v Falamos do aspecto quantitativo da emo~ao estetica, Com efeito, cabedistinguir explicitamente entre urn aspecto quantitativo e urn aspecto qualitativo da mesma. 0 primeiro, 0 unico ao qual efetivamente me refiro, diz respeito tao somente a imensidade da emocao estetica. Sob 0 aspecto da intensidade, a emocso estetica Ilio se distingue de outras: emocoes podem ser mais ou menos intensas, independentemente de sua tonalidade propria. Chamo de qualidade da emo~ao as suas caracteristicas peculiares, que nos permitem identificar uma 6mo~ao e diferencia-la de outras. Ela pode ser muito especifica, digamos, 0 sentimento de uma suave melancolia evocado por uma tela de Jean-Francois Millet. Mas eta pode ser, emurn nivel mais geral, aquilo que distingue 0 sentimen­ to estetico do sentimento proveniente de outros resultados (nao esteticos) do processo primario (e. g., 0 sonho, 0 chiste ou 0 sin­ toma neurotico), e ainda de outras. Para exemplificar: a qualidade das emocoes envolvidas na apreciaeao de obras de arte singulares, digamos, a envolvida na tela de Max: Ernst, L'oeil du silence, ou no poema de Malllarme, L 'apres midi d'un faune, psicanalise so surge como efeito, nao so, como veremos, de condensacoes, mas de determinadas condensaeoes; a misteriosa beleza e a injustifica­ da juventude esculpidas no rosto da Pieta de Michelangelo podem


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ser efeito de urn deslocamento, mas isso nio e por si s6 suficiente para que possamos compreender a razio pela qual a emo~ resul­ tante toma-se investida de qualidades esteticas, Ao Divel essencial da qualidade da emo~ao, que pode bem ser 0 elemento mais dis­ tintivo do que pertence a arte, a consideraeao dos dois mecanis­ mos fundamentais do processo primario nio chega a ser por si s6 esclarecedora.

vl

o que dissemos ate aqui parece ser facilmente aplicavel as artes plasticas, representadas em urn meio espacial, como no caso da pintura, onde diferentes imagens se fundem ou se aludem umas as outras. Como explicar, no entanto, a emo~o estetica muito mais intensa, que e proveniente da apreciaeao de obras de arte representadas em uma sequencia temporal, como e 0 caso da lite­ ratura e da mUsica? Pois bem: tambem aqui a intensidade da emo­ ~o estetica pode ser explicada como devendo-se ainterveneao de mecanismos do processo primario. Aqui as representacoes presen­ tes na consciencia em urn dado momenta devem obter a sua carga afetiva de outras representacoes, que nao se encontram atualmente na consciencia, mas cujas lig~es com ela tenham sido ativadas ou reforcadas, quer porque a obra de arte jiL as tivesse evocado em momentos anteriores de sua sequencia temporal, quer porque ela as antecipe como possibilidade para momentos ulteriores da mes­ rna sequencia. Essa sequencia ou processo temporal no qual se desenvolve urn processo de recep~o estetica pode ser tambem toscamente ilustrada em urn esquema como 0 que se segue: Nivel consciente

R

N~vel pre-.conscient Rl

e mconsciente

R2

R3

R4

R5

R6


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Neste esquema, na linha superior' vern simboJizadas as re­ presentacoes disposta em sua sequencia temporal, RI, R3, R4..., na ordem em que elas poderiam se apresentar, por exemplo, em urn texto literario; na linha inferior, RI, R2, RJ ... encontra-se sim­ bolizada a seqiiencia temporalmente disposta de representaeoes inconsclentes, reprimidas ou Ilio, cujas cargas afetivas'Jhes foram cedidas. As setas que se entrecruzam e convergem conjugam as represeetacoes de uma multiplicidade de maneiras, simbolizando a passagem das cargas afetivas das representaeoes inconscientes (mas gera1mente Ilio atualizadas) para as representaeoes que em urn dado momento se tomam conscientes. Nao obstante, como mostra a figura, esta passagem nao se da, como anteriormente, apenas em urn "eixo paradigmatico" no qual, por exemplo, uma representacao como R6 recebe sua carga apenas de representaeoes inconscientes a ela proximamente relacionadas, como poderia ser 0 caso de'R4. Aqui, a passagem de intensidades afetivas da-se tam­ bern ao longo de urn "eixo sintagmatico" em que a carga de outras representaeoes inconscientes, cujos correlatos representacionais simb6licos conscientes foram ou serao atualizados em tempos dis­ tintos (i.e., rnaterializando-se em diferentes regioes do enredo, da melodia etc.) e de algum modo transferida para representacoes atualmente presentes na consciencia, Em tal caso, a intensidade das emo~es esteticas parece dever-se predominantemente a uma certa forma de concentracao de intensidades afetivas (condensacao) que, pelo Sell modo peculiar, distinguiremos pelo nome especifico de superdeterminadio (Uberdeterminierung), com isso nos referimos, pois, a determinacao de conteudos psiquicos a partir de sequencias de representacees inconscientes.

vrr

o que dissemos toma-se evidenciavel na analise feita por Freud da Gradiva de Jensen, onde 0 leitor deve vincular-se repre­


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sentacionalmente (0 que e essencial a. compreensio das multiples rel~oes inconscientes entre as viuias regioes do texto), conscien­

temente ou nio, a algumas expectativas que mais tarde serio reali­ zadas, e a outras, como confirmacoes de expectativas antecipadoras criadas por passagens anteriores. Semelhante pro­ cesso de superdeterminacao mostra-se particu1annente evidente se tomannos como exemplo urn genero literiuio fortemente coeso, como e 0 caso da tragedia. Desde a cena inicial da tragedia de Sofocles, quando Bdipo fala ao povo, ja. podemos pressentir que estamos pr6ximos do cu1pado. Este pressentimento inicial torna-se mais intenso com 0 desenvolvimento da a~io dramatics, que ter­ mina pelo cumprimento da profecia. Pode-se encontrar em Edipo Rei a concretizaeao de urn esquema como 0 precedente, em que 0 conteudo inicial remete nossa aten~io a. possibilidade de outros, pennitindo, nessa antecipacao inconsciente, uma intensifica~o afetiva que se reforca a cada passo do desdobramento evolutivo da a~io dramatica, Identicamente, as cenasfinais da tragedia parecem retirar toda a sua eficacia do que, em retrospecto, nossa mem6ria reteve das cenas precedentes - 0 que justificaria a elevada intensi­ dade catartica a elas inerente (mas nio, obviamente, a sua "qualidade"). Edipo Rei ilustra e exemplifica a f6rmula ideal da unidade literiuia: em meu principios esta meu :tim. Nio sO na literatura, mas supostamente tambem na musica, urn processo semelhante poderia ser concebido. Em tal caso, seria talvez possive1 pensar na superdeterminacao como caraeterizada pela condensaeao de emocoes relativas a diferentes combinacoes de sons, as quais seriam unificadas como partes componentes de sequencias de combinacoes que constituissem unidades me16dicas mais .abrangentes (e.g., 0 cora na frase final da cantata de Bach "Mensch, wo gehet du hin"). Assim, a emo~o que se impoe a. au­ di~io das primeiras notas de uma melodia pode ser resultante de algoma forma de superdeterminacao premonitoriado que vira a seguir. Por outro lado, a conclusio de uma sequencia me16dica

-I

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mais abrangente pode tambem ser superdeterminada por intensida­ des afetivas inerentes a sequencias de sons anteriores, por ela abrangidas. Tais seriam as razoes pelas quais sentimos menor pra­ zer diante de uma melodia da primeira vezque a ouvimos, a menos que jt tenhamos urna grande familiaridade com 0 seu estilo: nlo sabemos, pelo reconhecimento de uns poucos sons iniciais, formar uma ideia do que a eles se podera suceder, e nao podemos relacio­ nar premonitoriamente a conclusao com aqueles sons iniciais, dado que a aten~lo que lhes haviamos concedido nao supes semelhante possibilidade. A maior intensidade da emo~io em fonnas de arte representadas em urn processo temporal unificado se deve a efica­ cia catartica dessa superdeterminacao.

vm Combaseno quejt foi dito, poderiamos ir urnpouco alem, sugerindo a existencia de dois generos fundamentais de emo~io estetica, conforme esta Ultima se derive primariamente de conden­ sa~es ou deslocamentos. Um primeiro genero de emo~o estetica e aquele caracteri­ zado por obras de arte primariamente fundadas no mecanismo de deslocamento. Ele 6 mais conveniente a expressao de conteudos inconscientes recalcados, uma vez que, como observou 0 pr6prio Freud, 0 deslocamento e in totum um produto da censura. 0 gene­ ro de emo~ estetica fundado no deslocamento, se identifica aproximadamente com 0 sentimento apolineo, de maneira similar aquela pela qual esse sentimento foi reconhecido pela filosofia alemi, de Schelling a Nietzsche. Esse sentimento, tendo como pressuposto mecanismos culturais de repressao, se caracteriza pela sustenta~o dos ideais classicos de perfei~o, modulacao e disci­ plina espiritual, por isso mesmo s6 podendo ser alcancado por


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intermedio de urn mecanismo que permita um completo ofasta­ mento das representacbes perturbadoras - 0 que e0 caso do des­ locamento. Do 1000 oposto temos urn segundo genero de emo~iio es­ tetica, caracterizado por obras de arte primariamente fundadas no mecanismo de condensacao. Estas obras de arte sao mais propicias Ii expressio de conteudos inconscientes (pre-conscientes) niio ne­ cessariamente recalcados. 0 genero de emo~ estetica e aqui fundado na condensacao; e 0 caso da emocao dionisiaca, caracte­ rizada pelo sentimento obscuro, rudimentar e grotesco, uma vez que e propria da livre manifesta~o de conteudos inconscientes, a qual sO e em certa medida possibilitada por urn mecanismo que admita a conscientizacao geralmente parcial das pr6prias represen­ ta~es perturbadoras, como e 0 caso da condensacao, Isso explica tambem 0 carater mais intenso do sentimento dionisiaco. A inten­ sidade afetiva liberada pela condensacao deve ser maior, dado que aqui a carga psiquica que se associaa uma multiplicidade de repre­ senta~es se concentraemuma unica. IX

Para trazer algoma evidencia a favor das hip6teses aqui aventadas, apresentarei agora alguns exemplos de condensacao e deslocamento predominantes em artes plasticas, literatura e musi­ ca. No que diz respeito Ii condensaeao, a pintura modema, es­ pecialmente em seus estilos cubista e surrealista, oferece um cam­ po de exemplificacao bastante claro. Por caracterlzar-se pela omissio de detalhes e simplificaeao das formas, 0 cubismo funda­ menta-se predominantemente na condensacao; urn elemento toma o lugarde uma multiplicidade de elementos. Tambem encontramos a condensacao ainda mais evidente no surrealismo. Se considerar­ mos, por exemplo, obras de Salvador Dali como Espana, Meta-

.t

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morphose de Narcisse e Apparition of face and fruit dish on a beach, 0 que encontraremos sera a mistura e a fusao de fragmen­ tos smpreendentes e incoerentes do mundo real. No que se refere a Ultima tela citada os mesmos traces admitem duas interpretacoes alternativas completas, condensado-a em si. Por isso 0 cubismo e 0 surrealismo costumam revestir-se de urn carater dionisiaco imanen­ te: 0 surrealismo de Dali e conhecido pela facilidade com que pe­ netra no dominio do insolito e do grotesco; as telas cubistas e expressionistas de Picasso, Ilio fosse a consagraeao de sua arte, teriam side consideradas escandalosas e ofensivas ao born gosto. Se atentarmos, por exemplo, para a versao picasseana do Almoco na re/va, veremos que, apesar de uma certa amenizacao causada pela economia de detalhes caracteristica da condensacao, e urn elemento erotica espontaneo, grosseiro e insublimado, 0 que emerge das figuras, cumprindo assim com uma inten~io satirica e destrutiva do autor. De maneira semelhante, em outras epocas, obras como as de Hieronimus Bosch, Pieter Breughel e algumas telas de Goya - urn born exemplo e Satumo devorando seusfilhos cujo efeito emocional revela-se obviamente dionisiaco - usavam de tais recursos. Em Bosch e Breughel, por meio de formafoes mistas proporcionadas por uma multidio de aparicoes perturbadoras; na citada tela de Goya, pela sobreposicao de urn repelente jogo de cores auma monstruosa cena de canibalismo ancestral. Os casas predominantemente fundados no deslocamento sao mais dificeis de ser analisados, pois sendo 0 deslocamento obra da censura, a rela~o mantida com 0 conteudo psiquico inconsci­ ente costuma ser muito melhor dissimulada do que aquela mantida na condensacao. Tal seria, contudo, 0 caso do simbolo falico visto por Freud na Virgem eo menino de Leonardo da Vinci. Como evidente resultado da censura, nada poderia despertar nessa tela qualquer repiidio moral, pois que nem publico nem autor puderam percebe-lo, mas somente a perspicacia talvez demasiado imaginosa de O. Pfister.


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Tambem e possivel aventurar alguns exemplos em artes cuja forma de representacao envolve sequeacias temporais de acontecimentos, como a Iiteratura e a masica, Nesses casos, como vimos, passado memorizado e futuro espectado 810 capazes de serem condensados no presente em um processo de superdetermi­ ~. No que diz respeito aIiteratura, e possivel conti'astarmos a poesia simbolista de Rimbaud, altamente polissemica e portanto rica em condensaeoes (os conflitos passionais que produzem Une Saison en Enfer servem, no plano emocional, como uma sintese abstrata potencialmente aplicavel a uma grande multiplicidade de si~s concretes), com a poesia de Dante ou T. S. Eliot, menos polissemicos e comparativamente mais apoiados em deslocamen­ tos. A essas diferencas corresponderiam, como consequencia, 0 predominio do sentimento dionisiaco em Rimbaud e 0 predominio do sentimento apolineo na poesia casta de Dante e Eliot. Tambem na masica poderia ser insinuada a hip6tese de uma oposi~o semelhante. As obras de Berlioz e Beethoven, por exemplo, nos soam comparativamente mais dionisiacas - e, por suposto, mais extensamente apoiadas nos mecanismos de conden­ ~o - do que as obras de Mozart e Bach, mais marcadas pelo purltanismo classisista, razAo de se fundarem mais no deslocamen­ to. A prop6sito, se a musica e por excelencia efeito de algum modo de superdeterminacao, deveria sS-lo tambem especialmente da condensacao, 0 que justificaria 0 fato de ter sido frequentemen­ te considerada como essencialmente dionisiaca. Nio temos, po­ rem, urn claro indicio de como poderiamos explicar a ocorrencia de tais mecanismos em uma forma tao pouco compreendida de expressao artistica.

x Um leitor critico poderia, neste ponto, opor-nos uma varie­ dade de contra-exemplos. No que diz respeito a condensacao, ele

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poderia contra-argumentar observando que nio e dificil encontrar pinturas cubistas e surreaJistas apolineas, ou que uma poesia de Mallarme, POT exemplo, apesar de nio ser propriamente dionisfaca, parece capaz de condensar em suas palavras uma imensa polisse­ mia virtual, sem nisso permitir uma libera~ao de conteudos in­ conscientes reprimidos. Ja no que diz respeito ao deslocamento, poderia ser tambem contra-argumentado que na literatura erotica "dionisiaca" de nossa epoca, que reune escritores como 0 Henry Miller de Tropic of Cancer, formas de deslocamento sao constan­ temente empregadas em urn plano ret6rico, como recurso satirico e humoristico. Uma resposta a essa obje~ao seria a de que nossas conside­ ra~es anteriores constituem uma esquematizacao muito simplifi­ cada do que realmente ocorre. Em uma obra de arte tao complexa como urn romance ou uma poesia hi uma diversidade de niveis nos quais os mecanismos do processo primario podem de diversos modos desempenhar 0 seu papel. Pode ser sugerido que os meca­ nismos de condensaeao e deslocamento, em suas varias formas, possam, em urn romance, se superpor, articu1ando entre si em uma diversidade de pIanos seminticos, sendo os mais superiores identi­ ficadores da singularidade da obra de arte em seu aspecto qualita­ tivo, e de algum.a forma dependentes dos niveis mais inferiores, responsaveis pelo tonus geral das emocoes, E neste Ultimo plano que se fundamentam os sentimentos dionisiaco e apolineo, que nio sao privilegio exclusivo da obra de arte. Aplicando essa distin~ aos contra-exemplos acima, diriamos que em um segundo nivel, aquele no qual emerge a singularidade de sua escrita, a poesia de Mallarme se caracteriza por condensacoes; mas em urn primeiro nivel, mais basico, no qual se realiza a escolha de seu universo semantico, sua poesia ji havia realizado, pelo recurso a abstracao, uma previa elimina~ao de quaisquer expressoes alusivas a coisas tais como, digamos, formas insublimadas de erotismo. Diriamos que esta Ultima escolha poderia ser por si mesma entendida como


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constituindo-se de deslocamentos previos, subentendidos anteri­ ormente ao proprio texto. Algo assim poderia ser dito a respeito de uma literatura como a de Henry Miller. No plano superficial de sua retorica, encontramos deslocamentos chistosos; mas ao nivel mais primiuio da escolha de seu universo semantico, a condensa­ ~ao desempenhou urn papel no sentido de converter 0 seu texto em urn escandaloso mostruario de materiais psiquicos socialmente reprimidos. XI

Nada do que foi sugerido ate aqui consiste, e verdade, em pressupostos exclusivos da obra de arte, podendo em certa medida ser tudo isso encontrado em outras 'manifestaeoes do processo primario, como 0 sintoma neurotico, 0 sonho, 0 devaneio, 0 chiste, o mite e a religiao. Permanece assim inexplicado 0 que para a es­ tenca reaImente importa: 0 aspecto qualitativo, verdadeiramente individualizador do fenomeno estetico. Um sonho, 50 costuma interessaraquele que 0 sonhou. A obra de arte, ao contrario, apa­ renta-se mais com urn sonho que todos aqueles capazes de com­ preende-la se comprazeriam em ter sonhado. Contudo, mesmo que uma explica~o do aspecto meramente quantitativo da emo~o estetica seja obrigatoriamente insuficiente, essa dimensio psic6lo­ gica do fate estetico poderiaservir comobase necessaria ao estudo dos elementos que em adi~o a ela confeririam qualidade estetica a emocao.


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1

S. Freud: Introductory Lectures on Psycho-Analysis, Obms Comp1etas, vol

IT, p. 174. 2 S. Freud: Ibid, p. 171. 3 1. Lacan (Cf. nA instincia da letra no ineonscienteou a razIo desde Freud") foi talvez quem mais claram.ente compreendeu 0 qulo centrais eram as no­ ~ de des1ocamento e conde~o. NAo obstante, a .sua tentativa de substi­ .tuf-laspelas n~ de metMora e metonfmia nAo sO nada acrescenta ao que Freud tinba a dizer, mas e resttitiva e intrinsecamente inadequada. Ela e intrinsecamente inad.equada por raz6es que 1180 posso considerar aqui; e e restritiva porque aplica-se normalmente apenas b linguas naturais. A lin­ guagem do inconsciente e, entretanto, muito mais ampla, incorporando en­ tre seus sipos imagens mentais, comportamentos neur6ticos etc. As n~ de condensat;lo e de des1ocamento dAo conta de tudo isso de um modo per­ fejtamentenatural; jli as ~ sugeridaspor Lacan, sO sao capazes de raze­ 10 se forem impropriamente estendidas para alem de sua apli~ alingua­ 4

gem natural. Op. Cit., vol xm, p. 212.

c

FREUD, S. The Standard Edition of the Complete Psychological Works ofSigmund Freud London: 1. Strachey, 1975. _ _ _ _. - Die Traumdeutung, Frankfurt am Main, 1987. LACAN, 1. "A instdncia da tetra no inconsciente ou a razio desde Freud", em Escritos, Sao Paulo 1978.


A CAMINHO DE UMA FILOSOFIA

EXTRA-MORAL

Fernanda Machado de Bulhbes Departamento de Filosofia da UFRN

Compreendendo a Metafisica como umaforma de conceber a realidade a partir da ~ na dicotomia de valores - Bemx Mal, Verdade x Mentira, Alma x Corpo, etc. - Nietzsche pretende lancar 0 pensamento fil0s6fico para longe des muros metafisicos. Questionando a filosofia, nlo em seu conteUdo, em sua verdade, mas em sua vontade, Nietzsche inicia e anuncia um modo de filosofar que est8 alem da oposili3o de valores, uma filosofia que est8 alCm do Bem e do Mal.

Segundo Nietzsche, a historia da filosofia, desde Socrates e Platio, tern. como motor urn certo tipo de vontade: a "vontade de verdade". Alcancar a verdade a qualquer preco, como se esta fos­ se uma luz no fim do tunel, e a meta de todo filosofo. Para Ni­ etzsche a "vontade de verdade" e indissociilvel cia crenca na verdade. 0 filosofo cre que a verdade existe em. si mesma, cre em seu carater absoluto, por isso move-se em sua dir~o, sendo que,

I Prine. I Natal I ADo 3 I n.4 I p. 103-1091 .

,

jan./dez.1996

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neste seu caminho, 0 falso, 0 erro, 0 engano, devem ser afastados. Esta forma de pensar, que acreditana existencia de wna verdade em si, e denominada por Nietzsche como modo de pensar metafi­ SICO.

o pensamento metafisico, que tanto impregnou a filosofia, pergunta: "Como poderia algo nascer do seu oposto? 'Por exem­ plo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ~o desinteressada do egoismo? (...) Semelhante genese e impossivel ... as coisas de valor mais elevado devem ter origem que seja outra, propria - nio podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, deste turbilhao de insinia e cobical Devem vir do seio do ser, do intransit6rio, do deus oculto, da "coisa em si" - nisso e em nada mais deve estar sua ceusa,"! Em outras palavras, a postura metafisica, procurando um fundamento ontol6gico para a verdade, concebe duas realidades radicalIi1ente distintas, dois mundos que se excluem mutuamente: de urn lado, 0 mundo sensivel, fugaz, eremero, transit6rio, passa­ geiro, onde a realidade escapa como se fosse llgua entre os dedos, esse e 0 Mundo que nos engana, pois sempre nos mostra mudan­ cas e difereneas; do outro lado, 0 mundo que s6 pode ser compre­ endido pelo intelecto, mundo estavel, perene, identico, onde a realidade se mantem a mesma, por isso pode dar garantias, susten­ tar certezas e verdades. Esses mundos distintos possuem valores distintos: um vale mais do que 0 outro. A verdade, a razio, 0 ser, valem mais do que 0 vir-a-ser, a mentira, 0 corpo. Isto significa que 0 modo de pensar metafisico trata a realidade a partir de uma perspectiva moral, e e esta perspectiva moral que e responsavel pela diferenea de valor atribuida a realidade. Na medida em que produz juizos de valor moral, uma realidade e identificada com 0 Bem e a outra com 0 Mal. Para Nietzsche, a hist6ria da filosofia, calcada na crenca metafisica - crenca na oposicao de valores - e marcada pela luta entre 0 Bem e 0 Mal, entre a racionalidade e os instintos. Esta

uma


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hist6ria apresenta, apesar de suas rupturas, uma continuidade. Isto e, lui urn "mesmo" que se perpetua, e este "mesmo" consiste na desvalorizaeao dos instintos em prol da razio. Nessa hist6ria as pulsoes vitais devem estar subordinadas a uma outra instincia, onde se encontra 0 " sujeito" consciente, supostamente livre e res­ ponsavel, Livre para que? Para agir corretamente, isto e; de acordo com 0 Bem ja dito pela moral. Tudo que se passa com 0 corpo, toda a virilidade dos impulsos inconscientes, deve estar sob 0 co­ mando de preceitos morais conscientes. A severa critica que Nietzsche faz ao saber filosofico­ cientifico consiste, basicamente, na denimcia de que toda constru­ ~io te6rica expressa algo que e mais "primitivo" que a propria racionalidade: os instintos. Segundo Nietzsche a atividade da consciencia faz parte das atividades instintivas: II ••• " estar consci­ ente" nio se opoe de (algum) modo decisivo ao que e instintivo ­ em sua maior parte, 0 pensamento consciente de urn fil6sofo _e secretamente guiado e colocado em certas tri1has pelos seus instin­ tos. Por tras de toda a logica e de sua aparente soberania de mo­ vimento existem valoracoes ou, falando mais claramente, exigencias fisiologicas para a preservacao de uma determinada especie de vida."2 Isto significa que: alem de nio existir uma sepa­ r~ao radical entre razio e corpo, 0 corpo constitui uma instincia mais fundamental que 0 raciocinio. A critica de Nietzsche pretende mostrar que a suposta neutralidade do saber filosofico-cientifico encobre juizos de valor que por sua vez nio sao racionais, no sentido em que nio 810 ob­ tidos por uma cadeia, dedutiva ou indutiva, de raciocinios. Sao, por assim dizer, manifestacoes pre-racionais, Por isso, Nietzsche, ao inves de examinar 0 que tal fil6sofo diz, 0 conteudo do seu dis­ curso, ele se dedica a trazer a tona os valores encobertos e, tam­ bem, em avaliar esses valores que, de fato, determinam a sua fala. o que the interessa e saber que tipo de impulso move 0 fil6sofo, quais sao suas "verdadeiras" inten~es. Para Nietzsche, nio ha

-,


106

duvida de que as verdadeiras intencoes sao morais: "... se tomou claro que as inten~es morais (ou imorais) de toda filosofia consti­ tuiram sempre 0 germe a partir do qual nasceu a planta inteira. De fato, para ex:plicar as mais remotas ~es metafisicas de urn fil6sofo e bom (e sabio) se perguntar antes de tudo: a que moral isto (ele) quer chegar?". Ou seja, uma produeao teorica esconde uma avali~ moral, av~o moral que e decorrente de urn "estado fisiologico", de urn modo de viver. E como se houvesse tres camadas superpostas: formulacao te6rica, avalia~o moral e os .' estados em que se encontram os impulsos vitais. Para Nietzsche e evidente que todas as teorias, por mais que sejam hem argumentadas, sao criayoes que devem ser compre­ endidas, apenas, como simomas. Juizos sobre a vida " ... somente como sintomas merecem ser levados em consideracao: em si tais julgamentos Ilio passam de idiotices .., (mesmo porque) ... 0 valor da vidanao pode ser apreciado. Nio pode ser apreciado por urn vivo, porque e parte e ate objeto de litigio e Ilio juiz; nem pode ser apreciado por urn morto, por outras razoes. ,,4 Do mesmo modo que a cabeca pretende dominar 0 corpo - porque se esquece de que ela e corpo, e e apenas uma de suas partes - a razio acredita ser capaz de dizer 0 que a vida e pois se esquece de que ela e ape­ nas uma de suas manifestacoes. Interpretando as cri~es filos6ficas como sintomas, 0 fato de a filosofia ter como raiz intencoes morais, Ilio e urn bom sinal. na verdade, indica adoecimento, fraqueza. Porque? Por que a mo­ ral e fiuto de uma depreciacao da vida. Isto e. a moral. tendo como principio valores - Bem e Mal - considerados universais e imutaveis, quando avalia a vida, que e sempre mutante e singular. (fa avida urn sentido que ela nio tem. o imperio da moral sobre a vida impoe preceitos que do alto dizem as diretrizes que 0 homem na terra deve seguir. Toda proposicao moral se apresenta num tom imperativo. "A f6rmula geral que serve de base a toda religiio e a toda moral pode ser


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expressa assim: "Faea isto e mais isto, nio faca aquilo e mais aquilo - e entio seras feliz, do contrario...".5 Dar ao homem urn ideal que deve ser seguido e perseguido, em geral com muito sa­ crificio, para que 0 individuo se tome "melhor" e 0 que faz toda proposta moral", Mas, a moral nio sO oferece urn projeto de aperfeicoamento - foreado - como faz mais: promete lima recom­ pensa ou urn castigo. Se a ~io e conforme 0 Bern, ou seja, se a a~io for virtuosa, 0 sujeito ganha; caso contrario, 0 sujeito perde. "0 essencial e inestimavel em toda moral e 0 fato de ela ser uma demorada coercao...".7 Coagir, impor, determinar valores, e a "praxis" da moral. Toda moral ao impor urn juizo universal a urn individuo vai contra a manife~o da vida. Pois, quando alguem e submetido a leis, normas, supostamente validas para todos, sua force que lhe e peculiar, e inibida. Perdendo 0 proprio, perdendo 0 que e mais singular, 0 individuo se enftaquece. A moral, fundamentada num "Bern" abstrato e ideal, que esta ern desacordo com as atividades instintivas, que 810 concretas e singulares, nio serve para avaliar 0 que vive, nio tanto por ser uma falsa avalia~o, mas por ser pre­ judicial a saade. Em suma, a moral, sempre na tentativa de tornar 0 homem "melhor", acaba por enfraquece-lo, jil que valores univer­ sais e absolutos tendern a paralisar a circula~io da vida - e disso nunca podernos nos esquecer: a vida circula. Aos olhos de Nietzsche 0 discurso filos6fico e uma avalia­ ~o da realidade feita a partir de valores morais. 0 que deveser avaliado sao esses valores que norteiam 0 discurso. Por isso, Ni­ etzsche nio poe em questio 0 conteudo do pensar filosofico, 0 estatuto epistemo16gico da verdade. As c~es filosoficas sio interpretadas apenas como sintomas ou de forca ou de ftaqueza, de saade ou de doenca, Por isso, para ele pouco importa a de­ monstracao 16gica dos raciocinios, pouco importa se hi verdade ou nio nos argumentos. Sua pergunta e sobre 0 valor da vontade de verdade que move 0 fil6sofo. 0 que realmente quer esta vonta­

.,

I


108

de? Por que querer a verdade e Ilio a mentira, a incerteza, 0 enga­ no, a m8scara? Talvez "... se deva atribuir a apareneia, a vontade de engano, ao egoismo e a cobica urn valor mais alto e mais fun­ damental para a vida. Talvez! - Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos "talvezes"? Para isto sera preciso espe­ rar 0 advento de uma nova especie de filosofos, que tenhamgosto e pendor contraries aos daqueles que ate agora existiram - filoso­ fos do perigoso "talvez" a todo custo..... ,,8 ., Esses novos fil6sofos, batizados por Nietzsche com 0 nome de'tentadores, fazem da filosofia urna tentacjo, uma atividade se­ dutora e perigosa. 0 gosto que os diferencia dos outros fil6sofos nio permite que eles sejam dogmaticos , que venham impor suas verdades, pois muito provavelmente eles terio e amario suas ver­ dades, suas "mascaras". "Ofenderia seu orgulho, e tambem seu gosto, se a sua verdade fosse tida como verdade para todos (...) " meu juizo e meu juizo: dificilmente urn outro tern direito a ele ­ poderia dizer urn tal fil6sofo do futuro. E preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitos. "Bem" nio e mais bem quando aparece na boca do vizinho. E como poderia haver urn "bem comurn"? 0 que pode ser comurn sempre ted pouco valor. ,,9 Esta nova especie de fil6sofos, que Nietzsche ve surgindo, sio amigos do perigo, da incerteza tanto quanta sio amigos do mundo "fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, ... turbilhio de insinia e cobieal". Esses "fil6sofos do futuro" nio acreditam na existencia de uma verdade em si, mas admitem que os homens nio poderiam viver sem suas verdades, sem suas creneas, suas fi~es 16gicas, ja que "tudo 0 que e profundo ama a mascara". Eles con­ sideram que "... tudo 0 que hi de mau, terrivel, tirinico, tudo 0 que h8. de animal de rapina e de serpente no homem serve tao bern a eleva.;io da especie homem "quanto seu contririo...,,10 Isto mostra a "imoralidade", quer dizer, a nio-moralidade, desses no­ vos fil6sofos. Mas, 0 tenno que melhor expressa 0 Iugar que ocu­ I


109

pam e "alem do bem e do mal". Os fil6sofos do futuro sao estes que levam a filosofia para fora do terreno da moral, fazendo do pensar filos6fico urn ato extra-moral.

1

NIETZSCHE, Alemdo Bem e do Mal. Cap. 1 § 2.

Op. Cit, 3. 3 Op. Cit § 6.

2

4 CrepUsculo dos idolos, "0 Problema de sOcrates", § 2.

NIETZSCHE, - Crepusculo dos idolos, "Os.quatro GrandesErros", § 2. Ibid. "Aqueles que querem tomar a humanidade melhor": "Em todos os tempos quis-se inelhorar 0 homem; a rigor, isto e 0 que chamamos de mo­ ral". 7 NIETZSCHE, Alemdo Bem e do Mal, Cap. 5, § 188. 8 Op. Cit, Cap.I, § 2. 9 Op. Cit., Cap.I, § 43. 10 Op. Cit., Cap.I, § 2. 11 Op. Cit, Cap.2 , § 44.

S 6

NIETZSCHE, Friedrich - Alem do Bem e do Mal, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1992. _ _ _ _ _,. - Crepusculo dos Idolos. Sio Paulo: Hemus, 1976. MACHADO, Roberto - Nietzsche e a Verdade, Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

.

,


PARADOXOS DE DECISAO SOCIAL

Glenn ~ Erickson, PhD Departamento de Filosofia, UFSM

John A. Fossa, PhD Departamento de Matematica, UFRN

Os mais importantes paradoxos de decis«o social, ou seja. de vo~o, s«o apresentados. A apresenta~o indica tanto a origem dos paradoxos discutidos quanto uma breve discuss«o daS mais importantes tentativas de os resolver. 840 coDSiderados paradoxos em que e regra de vo~o preveruma igualdade de peso entre os eleitores, bem como paradoxos com regras altemativas de vo~o. A demoaacia tem se finnado entre a grande maioria dos povos como a IDaDeiIa mais justa de organiza9lo social e, especia1rnente emse ttatando da esco­ lha dasautoridades de uma democracia representativa, equase axiom3tico 0 usoda regra da igua1dade de peso de cads eleitor, emboraoutras regras tambem sejam usadas em clubes, iDstitui~ financeiIas e outrostipos de agrupamentos. E bas­ tame conhecido, porem, que tanto 0 proprio conceito de demoaacia quanto a refe­ rida regra de escolha do sao isentas de problemas e, em especial, geram certos paradoxos. Assim, passa-se em revista aqui alguns dos mais importantes parado­ xos eleitoIais, sem a pretenslIo de HresoIve--los", mas com 0 intuito de ampliar a discussao criticae, portanto, fortalecer pr3ti.cas politicas desejaveis.

I Prine. I Natal I Ano 3 I D.4 I p. 110-121 I jan./dez.1996


111

1. Paradoxo de Condorcet Atribuido ao Marques de CONDORCET (1973), este paradoxo econsiderado 0 precursor dos recentes paradoxos eleitorais. Consideremos tres altemativas, A, B e C, a serem postas em ordem de preferencia por tres eleitores (ou tres grupos eqUinumericOs), E 1, ~ e E3, e seja 0 resultado da elei~ as seguintes ordens (10, 2°, 3j: E 1: (A, B, C) B2: (C, A, B) ~: (B, C, A).

De acordo com 0 resultado, a maioria prefere A a B na proporcao de doispara urn; mas a mesma proporcsoprefere B aCe C a A Assim sendo, nio podemos determinar a altemativa vencedora daelei~. Wtlliam V. GEHRLEIN (1983) caracteriza este resultado como uma ~ "sem-vencedor" e a:firma que eta depende da existencia de uma "maioria ciclica". 0 paradoxa revela uma ~ de mecanismos eleitorais democr8ticos, mas, em termos prtticos, esta ~ sO produzira muita preocup~ se maiorias ciclicas puderem ser geradas com certa facilidade. Gehrlein ainda mostra que a probabilidade de geraruma maioria ciclica aumenta com 0 aumento do niunero de altemativas, mas diminui com 0 aumento do niunero de eleitores.

2. Paradoxo de Anscombe Este .exemplo de urn paradoxa eleitoral foi discutido pela primeira vez por G. E. M ANSCOMBE (1976). 0 paradoxo eque, em uma elei~ em que urn conjunto de propostas deveria ser selecionadas pela regra de maioria simples, a maioria dos eleitores podera discordar comumamaioria dos resultados daelei~. Isto e, a vontade da maioria podera ser fiustrada pela pr6pria vontade da maioria! A seguinte tabela, seguindo GORMAN (1978, p. 46) ilustra

.,

I


112

como este resultado paradoxa! e possivel ernuma elei~ simplificada em que cinco e1eitores deliberam sobre tres propostas: Propostas

E

A

B

C

Eleitor

1

sim

sim

Nao

Eleitor

2

Nao

Nao

. Nao

Eleitor

3

Nao

Sim

sim

r

Eleitor

4

sim

Nao

sim

e s

Eleitor

5

sim

Nao

Sim

1

e i t 0

De acordo com a tabela, ve-se que propostas A e C foram

aprovadas, enquanto a B foi reprovado. No entanto, Eleitor 1 e a favor de B e contraC, discordando assim com 0 resultado da e1ei~ em doisdos tres casos. 0 mesmo ocorre comEleitor2, que e contra ambas A e C, e com Eleitor 3, que e contra A e a favor de B. Portanto, a maioria dos eleitores (tres dos cinco) discordam com a maioria dosresultados (doisdos tres). Deveria ser claro que 0 paradoxo nao surgequando hi apenas uma proposta a ser votadana elei~o. Esta consideraeao, porem, nao reduz 0 impacto do paradoxo porque ele poderaocorrer sempre que haja uma serie de propostas a ser escolhidas, independenternente de serem votadas simultaneamente ou 080. Assim, 0 efeito cumulativo das propostas aprovadas e implernentadas atraves de varias e1ei~es durante urn certo periodo de tempo podera ser uma sociedade que seria rejeitada pela maioria dos e1eitores. 0 pior e que, embora 0 resultado paradoxa! possasurgira partir da mani~o deliberada de


113

um "tirano" ou de um grupo "experto", e perfeitamente possive1 que

acontece por acaso. M P. T. LEAHY (1977) alega que 0 resultado nio e paradoxa! desde que 0 nUmero total de satisfeitos item por item e sempre wna maioria. Por exemplo, natabela acima, os e1eitores 4 e 5 concordaram com todos os resultados e os primeiros ti'& e1eitores concordaram com urn resultado cada. Portanto, hA nove itens satisfeitos contraapenas seis insatisfeitos. Quando lembramos, porem, que os primeiros tres e1eitores - sendo e1es mesmos a maioria ­ poderio achar 0 resultante simplesmente intoleravel, vemos que a observ~ de Leahy eirre1evante. Segundo Carl WAGNER (1983), o paradoxo nio podesurgir quando hi urnvoto preponderante de, no minhno, tres-quartos do e1eitorado em cada proposta.

3. Paradoxo de escolha social Proposto primeiramente pelo economista Kenneth ARROW (1963), este paradoxo e tambem denominado Teorema de Arrow, Teorema da Impossibilidade, ou Paradoxo do Voto. Relacibnado ao Paradoxo de Anscombe, 0 presente paradoxo implica que, do ponto de vista te6rico, os mecanismos democraticos de escolha social nio sao avaliados com base em preferen.cias individuais. Em particular, Arrow mostrou que nenhum mecanismo de escolha social, baseada em preferen.cias individuais, pode satisfazer as seguintes "quatro principios: 1. Racionalidade Coletiva: o mecanismo pode ser aplicado coerentemente a qualquer conjunto finito de preferencias individuais sobre qualquer conjunto finito de escolhas. 2. Principio de Pareto: Qualquer preferencia uninime dos eleitores deve ser preservada pelo mecanismo. 3. Nio-ditadura:

·1


114

o mecanismo Dio deve operar para sempre produzindo a escolha de qualquer dado individuo. 4. Independencia deAlternativas Irrelevantes: Somente as preferencias individuais relevantes as escolhas em questao podem ser consideradas pelo mecanisme. Para Arrow, porem, estes principios sao condieoes minimas para uma teoria racional da democracia. Assim, 0 paradoxo nos leva a conclusao de que mecanismos de escolha baseados em preferencias individuals, se racionais, n80 saodemocraticos, Arrow fonnalizou os referidos principios usando a logica dos predicados de primeira ordem e, entio, deduziu que se urn individuo detennina 0 resultado do mecanismo para qualquer par de escolhas, ele tambem determinaIi 0 resultado para todas as outras escolhas e, assim, 0 individuo sera urn ditador. Mas, sempre segundo Arrow, os principios (1), (2) e (4) implicam que ha urnindividuo quedeterminara a escolha de algum par de escolhas. Portanto, este individuo sera Urn ditador, 0 que contradiz 0 terceiro principio. Conseqaentemente, os quatro principios sao conjuntamente inconsistentes. Nio apresentaremos aqui 0 argumento fonnal de Arrow. Observa-se, porem, que 0 paradoxo fotya a descartar pelo menos urn dos principios basicos de Arrow. Desde que os comentadores sao virtualmente uninimes em caracterizar principios (2) e (3) como irrefutaveis, centra-se a aten~ sobre condicoes (1) e (4). Pode-se argumentar contra 0 Principio de Racionalidade Coletivo que preferencias individuais nio sao logicamente bern comportadas. Em particular, a transitividade e duvidosa desde que urn eleitor possa preferir X aYe Y a Z, mas ainda preferir Z a X; a conectividade e tambem duvidosa porque nem sempre temos uma preferencia entre certas escolhas. 0 proprio Arrow sugeriu que uma maneira de evitar o paradoxa seria de avaliar as preferencias dos eleitores, nio somente qualitativamente, mas quantitativamente.


115

4. Paradoxo dos novos membros Em algumas institui~, 0 voto de todos os membros nio sao iguais. Uma sociedade financeira, por exemplo, pode conceder pesos diferentes 80S votos dos membros dependendo do tamanho do investimento de cada urn. Neste caso, podera surgir urn membro dominante ou de influSncia preponderante. Segundo a sabedoria politica tradicional, uma maneira eficaz de diminuir a influSncia de urn membro dominante e aumentar 0 niunero de eleitores. Acontece, porem, que a amp~ de urn corpo eleitoral por urn ou mais novos membros podera, de fato, aumentar 0 poder eleitoral de alguns dos ve1hos membros. Este resultado paradoxal depende de uma analise de indices de poder eleitoral definidos na teoria dos jogos. Os deta1hes, poren, sao muito teenicos e nio serio apresentados aqui (ver, por exemplo,1. RAANAN, 1976). Sera suficiente observar que, embora o paradoxa seja inevitivel ern determinadas ~ Amnon RAPOPORT e Ariel COHEN (1984) tern mostrado que ele nio traz maiores consequencias para sociedades que t&n pelo menos cinco membros. ;

5. Paradoxo de Ostrogorski

o paradoxo de Ostrogorski pode ser formu1ado da seguinte maneira: Em uma elei~ disputada por dois partidos, a maioria .dos eleitores poderio preferir todas as posi~ do partidoperdedor 8$. do partido vencedor (ver RAE e DAUT 1976 ou SHELLEY 1984). A seguinte tabelamostracomoesteresultado paradoxal pode ocorrer:


116

PropostBS ••

E l. e i t

00

0

A

B

C

El.eitor

1

Him

Him

NAo

El.eitor

2

NBO

NBO

Nao

El.eitor

3

NBO

Him

Him

El.eitor

4

sim

Nao

siID

Eleitor

5

Him

Nao

Sim

0

r e

a

Na tabe1a, Ve-se 0 resultado de uma elei~o entre partido V (vencedor) e partido P (perdedor), em que ha tres questOes (Ql, <a e . (3) sobre as quais os dois partidos discordam. E1-Es sao os cinco eleitores - ou, comoja se viu nos paradoxos anteriores, cinco blocos eqiiinun\ericos de eleitores. Cada linha databela registra a preferencia de urn eleitor referente a posi~o dos partidos sobre cada questio, bern como seu voto na elei~. Assirn, por exemplo, 0 eleitor E 1 concorda com partido V sobre questoes Ql e <b e com partido P sobre Q3; consequentemente, vota no partido V. . A Ultima linha mostra a posi~ preferida pela maioria dos votantes sobre cada questio. Por exemplo, a posi~ do partido V sobre questio Ql e preferida pelos eleitores Br e ~, enquanto a posi~ do partido P sobre a mesma questio e preferida por E3, ~ e Es e, portanto, a maioria prefere a posi~ do partido P sobre esta questio. A tabela mostraque embora a maioria acatea posi~ do partido P sobretodas as quest5es, 0 partido V ganha a elei~o por urn voto de tres a dois. Observa-se que aqui se trata de uma democracia racional em que 0 voto dos eleitores e detenninado exclusivamente pela sua posi~ sobre as questOes em disputa. Mas, mesmo assirn, 0 resultado pode contrariar a vontade da maioria sobretodas as questoes em disputa, 0 que nos levaa crerque os mecanismos de decisso social democraticos nem sempre cumprem sua tarefa de escolher segundo a vontade da maioria.


117

6. Paradoxo de Sen Discutido primeiro por Amartya SEN (1970), este paradoxa mostra que 0 conceito de uma sociedade "liberal paretiano" e inconsistente, pois qualquer sociedade que admite 0 Principio de Pareto e urn grau minimo de liberdade pessoal nio pode ter urn mecanisme raciona! de decisio social. Comojll se viu na discussio do Paradoxo de Escolha Social, 0 Principio de Pareto requer que 0 mecanisme de decisio social escolha qualquer owao que seja de preferencia uninime dos individuos da sociedade. 0 requisito de liberdade pessoal requer que algumas o~es sejam oompletamente determinadas pela preferencia do individuo: uma condi~ minima seria a existencia, para cada individuo, de urn par de owoes entre as quais a escolha fosse determinada pela preferSncia do individuo em qu~.

,

Jonathan BARNES (1980) ilustrou 0 paradoxa com 0 seguinte exemplo de uma sociedade (clube) consistindo de apenas doismembros, A e B. Pela condieao minima requerida pela'liberdade individual, a sociedade deveria respeitar a escolha de A entre urn par, diga-se (x, Y), bem como a escolha de B entre outro, diga-se (u, v). Sejam (v, Y, X, u) as preferSncias de A em ordem decrescente e (x, u, V. y) as de B, tambem em ordemdecrescente. Assim, 0 mecanismo de escolha deveria preferir: 1. y a x (pelaliberdade de A) 2. x a u (peloPrincipio de Pareto) 3. u a v (pelaliberdade de B) 4. v a y (peloPrincipio de Pareto). Devido a circularidade destas preferencias, porem, 0 mecanismo de escolha nio pode estabelecer uma ordem linear entre as quatro o~es, como seria necessario para 0 mecanismo ser raciona!. Portanto, 0 mecanismo nio pode ser racional.


118

Barnestenta resolver 0 paradoxa por observarque talvez nio seria necessario que carla individuo escolhesse entre cada par de op¢es e, portanto, 0 ciclo de preferencias poderia ser rompido. Mas, o paradoxa afirma que 0 mecanismo de escolha nio e racional precisamente porque nio pode estabelecer a ordern linear para todas as confi~ possiveis de preferencias individuais e, assim, a ob~ de Barnes eirrelevante. Pode ser, ou por acaso ou pela improbabilidade estatistica, que as confi~ ciclicas ainda Ilio ten,ham ocorrido na pratica, Mas, se for assim, observaSEN (1970, p. 155-156), a garantia maior da hOerdade individual poderia repousar, nio nas regras de escolba social, mas no desenvolvimento de valores individuais de respeito para com as escolbas do outro. 0 conflito apontado pelo paradoxa ocorre ern sociedades nas quais tais valores nio se obtSm e nas quais escolbas entre pares de o~es baseadas ern valores liberais entrain em conflito com aquelas baseadas no Principio de Pareto. De fato, 0 delineamento da esfera de hberdade individual da esfera de responsabilidade coletiva tern sido uma preocupacao constante da teoria politica. Contudo, hil ainda urn outro tipo de resposta a este paradoxo, a saber, tentar invalidar uma ou outra das premisses, Neste sentido, pode-se, por exernplo, atribuir direitos a individuos somente condicionalmente.

Conclusio Observamos que varies dos paradoxos aqui relacionadas contem certos equivocos. No Paradoxode Ostrogorski, por exemplo, conclui-se que "a maioria" prefere as posi~es do partido perdedor. Mas, uma investi~ cuidadosa da tabela que acompanha a descri~ do paradoxa mostra que esta "maioria" e composta de individuos diferentes para cada questio. Isto e, os eleitores E3, E4 e Es concordam com partido P sobre QI, mas sao ~, ~ e Es que concordam com partido P sobre questio (h, enquanto EI, E.t e Es


119

concordam com P sobre Q3. Alem do mais, poderiamos alegar que El, ~ e E3, na maioria, sao satisfeitos desde que suas preferencias venceram em dois dos tres casos. Selia, porem, muito prematuro afirmar que estas observacoes resolvem 0 paradoxo, pois, afinal, nenhuma das posi~es do partido vencedor tem a preferen.cia de qualquer maioria. Nio e claro, portanto, se 0 paradoxo pode ser "resolvido" apenas pela expli~ de como a referida si~ e geradaatravesda composir;io de forcas minoritarias.

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120

I

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ESPOOTOS E RELOGIOS1

Josailton Fernandes de Mendonca Mestrando em Filosofia da UFPB/CAPES

~,

o que se pretende neste artigo e mostrar antes de tudo que a revolu~ galile­

ana e fruto de uma mudan~ de menta1idade, de vido de mundo, decorrente da propria crise por que passava 0 paradigma aristoteIico. Um bam exemplo desta mudanea e das dificuldades de livrar-se dos quadros tradicionais do pensamento :fi10s6fico. e 0 matematismo (universo de precislo) e a crenea galileaoa em oIbitas circulares, respectivamente. Com efeito, conic podeni Galileu ser um dos fundadores da fisiea modema, se esta e fundamentada no principio de mercia e na prepondedncia da reta em rela~o ao circulo? A resposta

e apresentada a partir da analise do raciocinio de Galileu no tocante

a ideia de movimento.

1. Galileu e 0 heliocentrismo Segundo Koyre2 , lui na hist6ria da filosofia varies Platoes e varies platonismos. Nomeadamente lui dois tipos diferentes: urn platonismo misto de mistica e magia; e urn platonismo matematico. E neste tipo que Koyre qualifica Galileu. E esse platonismo e re­ levante na compreensao da estrutura do pensamento cientifico

I Prine. I Natal I Ano 3 I n. 4 I p. 121-129 I jan.ldez. 1996 I I


122

modemo, hajavista que fundara uma nova mentalidade cientifica, uma novaforma de pensar a natureza. Mas esse afluxo a Platao, ou mais generalizadamente, aos antigos (e importante considerar que Arist6teles nio perseverou nos meios academicos medievais sem adversaries, principalmente durante 0, periodo, conhecido na hist6ria como de transiQao para 0 capitalismo), remota a Copemico, que, segundo consta na histo­ riografia da ciencia viveu alguns anos na Italia, durante a fase aurea do renascimento, tendo ali obtido conhecimentos matemati­ cos, e entrado em contato com essas "...especulacoes plat6nico­ pitag6ricas, entio em voga...,,3 Assim, ao constatar-se 0 platonismo inerente ao pensa­ mento de Galileu, observa-se igualmente 0 seu copemicanismo em relR9ao a astronomia. De fato numa carta a Benedetto Castelli, Galileu entreoutras coisas, diz 0 seguinte: "... e ¢r ser alem disso muito provtrvel e rQZotrvel que"0 sol, como instrumento e ministro da natureza, quase como corafllo do mundo, gere nllo somente luz, como evidente­ mentegera, mastambem 0 movimento de todos os planetas quegiramem tomo de si... ,,4 ,

De fato em todo 0 processo movido contra ele, a t6nica era sempre a mesma, isto e ,0 fato de defender, ensinar a imobili­ dade do sol como centro do universo ao redor do qual gira os planetas e a terra.S Portanto pode-se dizer que a base da cosmologia galileana e 0 sistema copernicano, mais precisamente a teoria heliocentrica. Deve-se recordar que as luas de Jupiter e as fases de Venus, des­ cobertas por Galileu pareceram confirmar a hip6tese de Copernico. ParaKoyre,


123

'~s obrasde Galileu slio umaflsica copernicana; flsica que tem de defender a obra do grande astronomo - 0 movimento da ten-a - contraas objefiJes antigas e os ataquesnovas",6

2. 0 problema das Orbitas Circulares Contudo, GaIileu desejava uma expli~ mecinica para o modelo cosmol6gico geometrico do heliocentrico, dai sua preo­ cup~io maior em estudar 0 movimento dos planetas em tomo de uma 6rbita circular. Com rela~o a este aspecto do pensamento de

Galileu, diraKoyre: "0 movimento circular dosplanetas concebido como espon­ ttlneo, provava para Aristoteles as diferentes natureza da ten-a e dos ceus. Pelo comrario, concebido como um mode­ 10 derivado, demonstra para Ga/i/eu que os dois possuem uma natureza comum. Com efeito, as caracteristicas priv...i­ legiadas do movimento circular - movimento em volta do centro- explicam-se justamente pelofacto do gravidade". 7

Deve-se salientar, no entanto, que a persistencia pelos movimentos circulares ira constituir-se num obstaculo ao pensa­ mento GaIileano, e mostra bem as dificuldades que tinha para li­ vrar-se dos quadros tradicionais da representacao do mundo. Para a hip6tese aristotelica 0 unico movimento possivel para os ceus era 0 movimento circular, posto que a materia consti­ tutiva do universo e incorruptivel, e assim sendo nio tem motive para mudar, para decompor-se como 0 que ocorrre na regiio sublunar, que dado a sua natureza instavel est! sujeito a dissolu~o e a decadencia, Mas a materia que constitui os ceus js estA fixada no seu espaco, e deve girar enquanto permanece no mesmo lugar. o movimento circular para Galileu nio. e nem natural nem violento, contrariamente ao pensamento aristotelico. Mas e urn movimento espontaneo. 0 movimento retilineo, com efeito, impli­

·1


124

carla nurn movimento infinito. Isso afinna-o Galileu expressamen­

teo "NlJo pode haver movimento rectillneo natural. Com efeito, o movimento rectilineo ~ infinito por sua propna natureza, e porquea linha reta ~ infimta e indetermtnada ~ imposstvel que qualquer movimento tenha por natureza, 0 principio de se mover em linha recta, isto ~, para onde ~ Imposstvel che­ gar) pois nlJo hQ termono injinito".8

Determinando 0 universo como finito, 0 movimento circu­ ., lar ocupa urn lugar privilegiado na realidade fisica, segundo 0 pensamento gaIileano. Ora, a defesa do movimento circular se constitui nurn serio problema para a concepcao do principio de mercia. Donde se pode questionar 0 seguinte: como podera ser Galileu 0 fundador ou pelo menos urn dos fundadores da fisica moderna, se esta e fundamentada no principio da inercia e na preponderancia da reta em rel~ao ao circulo? A resposta a esta questio envolve a analise do raciocinio de Galileuno tocante a ideia de movimento.

3. 0 problema do Movimento e da Gravidade A principio ver-se que a fisica de Aristoteles, muito embora falsa, e bem elaborada e parte da no~ao de senso-comum, tendo por caracteristica a distin~o de movimento natural e movimento violento, crenea na existencia de naturezas bern detenninadas (por exemplo, e da natureza terrestre ser imovel, da mesma forma que e da natureza do corpo grave cair, com 0 movimento que the e intrinseco), crenca na existencia de urn cosmo que e principio de ordem em virtude dos quais os seres reais formam urn todo bern ordenado, 0 movimento natural para quando seu fun eatingido, 0 movimento eurn processo essencialmente passageiro, muito embo­ ra etemo para os moveis sublunares, existe urn movimento unifor­ me e portanto natural para os orbes celestes. Suprima-se a causa


125

do movimento e este cessara.. A causa do movimento natural (0 motor) ea sua propria natureza de COrp09. Segundo Koyre, 0 pensamento de Galileu, contrariamente ao de Aristoteles, fundamenta-se na ideia de que 0 real fisico nun­ ca e dado aos sentidos, mas apreendido pela razio. 0 movimento nio afeta 0 movel, o qual permanece indiferente face "a qualquer movimento que 0 anime, somente afeta as rel~oes entre 0 movel e 0 objeto que nao se mova. Estabelecendo como principio a relatividade optica do movimento, Galileu vai mais alem, ao fixar a impossibilidade de perceber 0 movimento em que nos mesmos participamos, logo tambem fica estabelecido a relatividade fisica do movimento. Isso ira firmar-se como urn ponto de grande relevincia para 0 pensa­ mento galileano. Koyre esclarece melhor as consequencias destes principios afirmando: "Com efeito se (...) 0 movtmento enquanto tal I, como qUe nulo e niio existente para as coisas que dele partictpam to­ das em conjunto, se, em particular, na terra dotoda de mo­ vimento de rotafiIo tudo se passa exatamente do mesma maneira que na terra imovel, dito de outra maneira, se 0 prtncipio da relatividade do movimento fosse universal e absolutamente valido, se, em particular, 0 fosse para 0 mo­ vimento circular "a volta do centro ", 0 movimento da rota­ filo da terra, tal como qualquer outro nilo poderia produtir forca centrlfuga. A existencia desta e evidente na flsica de Aristoteles e de Ptolomeu: para estes 0 movimento circular (..) so e natural para corpos celestes e para esferas privadas de gravidade, de maneira nenhuma para corpos graves. Ora Galtleu fez-nos ver que niIo e nada assim e que ejus­ tamente para os graves que 0 movimento circular possui um carater privilegiado". 10

A queda e 0 movimento natural de todos os corpos, posto que todos sao graves. Nenhum corpo, segundo Galileu e privado de peso. Alills, contra Aristoteles, Galileu Ilio admite a existencia

. t


126

nos corpos de uma qualidade chamada "leveza". E por isso que 0 movimento para cima 1180 e um movimento natural, mas esponti­ neo. Neste sentido afinna Koyre: "'ft'a/quer movimento de ascen­ faO eum movimento de extrusdo". 1 o peso ea unica propriedade natural dos corpos, juntamen­ te com a gravidade sao a fonte de todo movimento. No que diz respeito a este ponto e bom salientar 0 seguinte: primeiramente que 0 peso euma propriedade empirica do corpo, da mesma forma que a gravidade, se bem que, Galileu 1180 faz uso destas palavras, mas fala em corpos graves querendo designar, segundo Koyre, uma qualidade do senso-comum.. Segundo Koyre, 0 que constitui a essencia do ou da mate­ ria, aquilo sem 0 qual ele nio pode ser pensado, sao para Galileu tal como para Descartes e pelasmesmas razees, as SUBS proprieda­ des matematicas, 0 mimero, a figura, 0 movimento. A gravidade 1180 se encontra ai incluida, ela ocupa lugar intermediario entre 0 ser do real matematico e 0 nada das aparencias sensiveis. A gravi­ dade age constante e naturalmente, implica isto em dizer que a gravidade fundamenta e explica, segundo Galileu, a faculdade que o corpo possui de receber e annazenar movimento. Neste sentido afirma Koyre:

"E 0 mesmo corpo em virtude da mesma gravidade, que re­ cebe a impulsiJo linear da rotafiJo terrestre e que tende para 0 centro da terra". 12 Mas 0 impetus e retilineo somente num instante, como 0 movimento nio pode dar-se somente num instante, e alem do mais, nenhum movimento real podera ser retilineo, a gravidade opoe-se­ the. Com efeito , "0 movimemo retilineo so seria possivelpara um corpoprivado de gravidade". 13 Ocorre nessa argumentacao a manifestacao de duas ideias que precisam ser esclarecidas mais pormenorizadamente: primeiro e que Galileu 1180 poderia conceber a ideia de gravidade no sentido


127

newtoniano do tenno - porque ele Ilio tinha a ideia de massa, ou melhor para Galileu gravidade e massa se confundem . A gravida­ de para ele e algo a que 0 corpo esta submetido, algo, como diz, Koyre, pertencente ao pr6prio corpo. Em segundo lugar, a ideia de impetus em Galileu euma funy80 da velocidade. Urn corpo priva­ do de velocidade DBO poderia receber impetus. Assim' esta claro que a incapacidade de Galileu de fonnular 0 principio de mercia deveu-se principalmente a tres grandes concepcoes: 1) a ideia de cosmo, de urn mundo ordenado; 2) a ideia de finitude do espaco; 3) a incapacidade de conceber 0 corpo fisico como estando privado do carater constitutivo da gravidade. Contrariamente a Descartes e Newton cujas fisicas explicam 0 real pelo impossivel, Galileu, segundo Koyre, explicara aquilo que epor aquilo que n80 e. Para Koyre a impossibilidade do movimento inercial DBO e 0 mesmo para Galileu, Descartes e Newton. Para este Ultimo, 0 movimento retilineo no espaeo e im­ possivel porque os corpos estao submetidos a ayao de outros cor­ pos que lhes edificam a traietoria ou mesmo os impede. Para Newton urn corpo somente poderia mover-se em linha reta se esti­ vesse sozinho no espaco, Para Descartes vale a mesmaimpossibili­ dade devido a causas exteriores. Com a unica diferenea entre ele e . Newton, enquanto para este, Deus poderia realizara condicao de movimento inercial. Para Descartes nem mesmo Deus seria capaz de afastar os obstaculos que impedem este movimento. Enfim para Galileu a impossibilidade n80 e exterior, mas inerenteao proprio corpo, e e por si proprio que este se recusa 80 movimento retilineo. 0 seu peso 0 arrasta para baixo.

4. Conclusio De qualquer maneira, apesar dos elementos falsos do pen­ samento cientifico galileano, nio e sem rwo que a tradiyao hist6­ rica ira qualifica-lo como 0 pai da ciencia classica, :E na sua obra,

,


128

com efeito, que pela primeira vez na hist6ria do pensamento hu­ mano se realiza a ideia do matematismo fisico. E mais, apesar de nao haver fonnulado precisamente 0 principio de inercia, Galileu, colocou as bases para sua formul~ao modema, ja que este principio nao e algo que se possa descobrir atraves de metodos puramente observacionais ou fotogreficos, Exige sim, confonne lembra Butterfield, urn tipo de raciocinio diferente do usual na escolastica, urn mudanea de mentalidade, urn autentlca conversao, e como toda conversao e urn processo, pode­ seconcluir dizendo que tal tern inicio em Galileu.

1

0 titulo faz refer!ncia a duas co~ distintas de universo: um govema­ do por Inteligencias sublimes (Espfritos) e outre mec4nico, matematizado,

2

rigoroso, isto e, 0 universo aristotelico e 0 universo galileano. Cf. Galileu e Platio, pp. 43 a 49, onde K0yr6 traea as linhas gerais do pla­

3

cr. HerbertButterfield em "As Origens da Ciencia Moderna", p. 35.

4

Os Documentos do Processo de GalileuGalilei, p. 45.

tonismo galileano. 5 Vide a este respeito, a obra a que faz referencia a nota4 acima.

AlexandreK0yr6, EstudosGalilaicos, p. 263. Idem, p. 308. B Cf. Idem, apud Galileu, p. 260. s Para Burterfield, p6r exemplo, "Um universo construido sobre 8 IllCClinica de Arist6teles deixava ja uma porta entreaberta 80s espfritos. Era um uni­ verso no qual DUlos invisiveis tinham de estar em constante opera~o e lnte­ ligencias sublimes tinham de fazer girar as esferas planetarias"( As Origens da CienciaModema, p. 18). 10 Alexandre Koyr6, p. 326. 11 Idem, p. 299. 12 Idem, p. 334. 13 Idem, p. 335. 6

7


129

BUTTERFIELD, Herbert As Origens da Ciencia Moderna. Lis­ boa: Edi~es 70.1992. EVORA, Fatima R R A Revolu~ao Copernicana-Galileana, Vol.Il. Campinas: Centro de L6gica , Epistemologia e Hist6ria da Ciencia, 1988. 134 p. PAGANI, Sergio e LUCIANI, Antonio Os Documentos do Pro­ cesso de GaIileu Ga1ilei. Trad. Antonio Angonese . Petr6polis: Vozes. 1994.311 p. KOYRE, Alexandre Estudos Ga1ilaicos. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicacoes Dom Quixote. Decima primeira edi~o. 1986.426 p. Ga1ileu e Platio. Trad. Jose Trindade Santos. Lisboa: GRADIVA 89 p. , VLASTOS, Gregory 0 Universo de Platao. Brasilia: EUB 1975. 115 p. VASCONCELOS, JUlio C. R. Urn Teorema de Inercia e 0 Con­ ceito de Velocidade dos Discorsi de Ga1ileu, em Cademos de Hist6ria e Filosofia da Ciencia, UNICAMP. Centro de Logica Epistemologia e Hist6ria da Ciencia, Serle 3.v.3. n.1/2 Jan.­ Dez. 1993. P 67 a 73. I

.t


VIRTUDE E CONTEMPLA<;AO NA ETHICA NICOMACHEA*

Juan Adolfo Bonaccini Departamento de Filosofia UFRN/CNPq

o presente ensaio busca pensar reIa~s possiveis entre ~tica e metafisica

tentando defender a ideia de sua unidade indissolUvel mediante uma especula­ ~o inspirada em Arist6teles.

The present essay, through a special treatment of Aristotle's thought, tries to defend the idea of the indissoluvable unity of ethics and metaphysics by maintaining that they are aspects of one and the same thing.

If... a Filosofia difere da Dialetica pelo carater da sua capacidade e da Sofistica pela escolha previa de vida ... " Metajfslcll, 1004b 23-25.

I Princ. I Natal I ABo 3 I n.4 I p. 130-143 I jan./dez. 1996


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o titulo ambiguo e vasto desta apreeentaejo pode suscitar expectativas nao condizentes com os desejos do autor. E por isso interessante esclarece-lo, ainda que na penumbra, mediante urn subtitulo. 0 subtitulo reza: especulacao a respeito da rela¢o en­ tre etica e a metcfisica a partir de Aristoteles. A palavra "especnlacao" nos exime da ardua e honrosa tarefa de falar dos dez livros da obra mencionada no titulo, e da responsabilidade de imputar nossa compreensao das coisas ao proprio Arist6teles ­ tarefa antes reservada a helenistas e filol6gos. Especular vem do verba latina specio, que traduz 0 verbo grego donde provem 0 substantivo theoria. Nesse sentido indica ver, observar, contemplar, indagar e ate mesmo buscar a verdade: tal 0 sentidode theoria no livro ex (alfiI. menor) da obra de Arist6­ teles chamada til meta til physikil (993a 30ss.) desde Andronico de Rhodes. Porem, existe tambem uma acep980 mais tardia; pois do mesmo radical de specio vem speculum (espelho); nesse sentido "contemplar" <iii refletir-se no pr6prio espelho da alma, espelhar­ se e dizer 0 que contemplamos em tal espelhamento. Trata-se de uma apropriacao mais modema, que nio deixa de ser sugestiva, Desta compreensao origina-se 0 que sera nossa presente especula­ ~ao e apreende-se melhor 0 sentido do "a partir de Arist6teles" presenteno subtitulo. Nao se trata aqui, por conseguinte, de fazer 0 percurso do conceito de virtude, desde sua primeira apari980 no livro I da E. N.l , percorrendo toda a malha das consideraeoes tecidas por Arist6teles atraves do exame acurado das virtudes particulares. Tampouco nos deteremos nas virtudes que mereceram maior dedi­ ca980 da parte de Arist6teles, como e 0 caso da justiea, da sabe­ doria etica, da amizade ou da coragem. Tentaremos apenas pensar o conceito de virtude a luz de suas implicaeoes metafisicas e as implicaeoes praticas (da pnWs) do conceito de theoria que carae­ teriza a filosofia. Nisso consiste 0 intuito, apartir do caminho que Arist6teles encetou. .t


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Mas isto nio pode ser feito sem mais nem menos. Parece que deve ser feito partindo, ademais, de uma questao; e de uma questio que nio pode ser qualquer uma; de uma questio que se deve configurar como sendo urn problema. Vamos entao, aos poucos, ouvir 0 que ela problematiza, esta questio que nos ocupa. Uma certa tradi~ao nos ensinou que filosofia e.a mais alta sabedoria', e que se constitui naquilo que 0 grego chamou theo­ riAi. Epocas posteriores, desde urn inconsolavel abismo hist6rico e·.animico, viram na excelsa execu~o de urn. theoreo apenas urn refUgio ascetico a1ienado da vida comum. Como se a theoria fos­ se apenas e tio-somente uma mera visio transcendental do preten­ samente imperecivel, em oposi~ao a pnixis. Como se theoria e pnixis guardassem nos nossos tempos a ambiencia que evocavam no dialeto atico e no fil6sofo de outrora: nada mais descabido. 0 que se entende por "teoria" hoje em dia parece estar mais perto do que 0 grego chamava teehne; urn saber "pragmatico" cujo hori­ zonte primordial tinha em vista operar urn instrumento, gerar urn objeto ou obter urn resultado previamente estipulado: urn saber de carster instrumental. E 0 que 0 grego tinha por prUis esta terri­ velmente longe do que hoje provoca esta palavra, ap6s 0 fim da chamada ''filosofia classica alema". E verdade que ji nio podemos afagar a ingenuidade de pe­ netrar no sentido inexoravel e ao mesmo tempo equivoco destes termos, tio vulgarizados nos manuais. Seu sentido esvaziou-se virando lugar-comum ou misterio indecifravel, No entanto, uma vez que 0 pensamento supoe nio apenas aptidio e vocacso, mas tambem coragem, parece que podemos (e devemos) nos arriscar tentando urn esclarecimento. Em que pese ser certo que a theona nio se oponha a pnixis nem a poiesis, mas, em qualquer caso, mais a esta Ultima do que a primeira, devemos incursionar ao mesmo tempo pelos caminhos de tradi~ao e da especulaceo.


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o uso de tais tennos varia 0 suficiente para nio guardar urn sentido univoco. Especulemos, portanto. Montados nos ombros da tradi~o. A questio levantada conceme hoje a moderna re1~ entre teoria e pratica, as vezes transportada sem rigor a rela~o grega entre theoria e prUis, que decerto nio diz 0 mesmo que aquela. Tal questio impoe-se de modo bastante peculiar. Enquanto certos pensadores pretendem abandonar a esteira da metafisica por via da analise da linguagem, da epistemologia ou da 16gica, outros pre­ tendem "salvar as aparencias" recuperando 0 questionamento da tradi~o fllosofica europeia sobre problemas eticos. Neste sentido colocam a questio nos seguintes tennos: etica como fIlosofia primeira - e a tese de Levinas, Apel e Dussel, para citar sO alguns nomes. A questio, creio eu, nio e nova. 0 que e novo e 0 pres­ suposto, qual seja, que etica e filosofia primeira sao coisas diversas que devem ser ligadas pelo pensamento atual, sob 0 ponto de vista (evidentemente kantiano) do primado do conhecimento pratico sobre 0 te6rico. Etica como filosofia primeira? 0 que se menciona com isto? A sentenca aparentemente trivial merece meditayio no sos­ sego da alma. Etica como filosofia primeira? Vejamos se a prosa do grego nio nos socorre na resposta. Nos primeiros livros da obra que a tradi~io denominou "Metofisica", Arist6teles discorre acerca da essencia do filosofar", Refere-se afilosofia de varies modos: sabedoria, filosofia primeira, ciencia do ser enquanto tal, teologia. Dois interessam aqui sobre­ tudo: sophia (Sabedoria) e prote philosophia (Filosofia Primei­ ra). Cada urn destes tennos exigiria urn esclarecimento especial, mas por ora vamos nos conformar com seu enunciado. A primeira - sophia - serviu para caracterizar 0 fil6sofo como urn sabio, para Arist6teles, aquele capaz de conhecer os primeiros principios e as primeiras causas de todas as coisas e de agir de acordo com a vir­ tude mais perfeita", A segunda - prote phDosophia -, cuja refe­

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rencia explicita aparece na questio levantada acima, indica que 0 filosofar eprimeiro. De que prius, entretanto, de que primeiridade nos fala Arist6teles? Trata-se da prioridade da filosofia. Mas ela nio e primeira somente porque 0 fil6sofo conhece 0 que e pri­ mordial, os primeiros principios e as primeiras causas, 0 fundamen­ to de todo ser e de todo devir. A filosofia e primeira, tambem, porque e a atitude primeira do homem frente ao caos (chaos) do universo, face a aporia que se impoe no ser. Nela, na filosofia, universe e homem se encontram; a humanidade busca sua ordena­ ~io, sua taxis; seu lugar natural no mundo. Essa atitude, dizia Arist6teles - e antes dele Plati06 -, e antes de tudo surpresa, espan­ to ante 0 ser das coisas e a beleza do kosmos. A filosofia torna-se entio primeira, enquanto episteme theoretike, no sentido de pro­ curar e proporcionar a sabedoria que conhece os primeiros princi­ pios e as primeiras causas, tao s6 porque existe esta outra prioridade admiravel do espanto7 que se dA no humano. A anteri­ oridade do assombro primordial sofrido pelo homem face ao exis­ tente, com pavor ou curiosidade, 0 conduz em busca do que e primeiro. Do que e uno, dirao depois os neoplatonicos. o que uma certa tradi~ao parece nio ter visto, e 0 que chama a aten~o, e 0 teor etico desta atitude, a urn mesmo tempo de entrega e despojamento, e de a~ao, de pergunta, de incisiva intromissao do pensar naquilo que assusta e assombra simultanea­ mente. E a filosofi~ ~rimeira ja, desde sempre, uma etica? Tal 0 que queremos sugenr . Contra nossa hip6tese pode-se argumentar, aparentemente, que em Arist6teles existe uma distin~ao conceptual marcada entre a "filosofia pratica" e a "filosofia te6rica". E varias passagens da E. N. parecem apoiar tal a:firma~8. Pois, salienta Arist6teles que nesse ramo da politica, ciencia pratica suprema, nio se pode exigir o mesmo rigor que se exige noutras disciplinas. Na Etica nio se parte diretamente dos primeiros principios da demonstraeao, mas de experiencias e opinioes acerca do agir; e s6 entia, feito isso, se


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parte em busca dos principios", Conforme a distin~io "classica" do livro VI • ja implicita nas primeiras duas linhas do livro I ., 0 dominio da etica conceme a pnixis, onde as ~es sao imanentes, isto e, tSm 0 seu :fim nelasmesmas e nio na fabric~ de urn obje­ to ou na obteneao de resultado mediante a apli~o de uma arte determinada'"; nem mesmo na visao direta dos prineipios primei­ ros. Na etica, na praxis, as ~es sao imprevisiveis por depende­ rem de escolhas, de modo que nossos juizos sobre elas serio somentedialeticos. Sendo a premissas contingentes, as conclusOes sao meramente provaveis, 0 dominio da a~o humana e de certo modo 0 do imponderavel, do ponto de vista dos principios. Em contrapartida, a metafisica, ciencia do ser enquanto ser, a sabedo.. ria que parte dos primeiros principios e conhece com sucesso as causas de todas as coisas. Chega inclusive a vislurnbrar a causa primeira, 0 primeiro motor, im6vel, que poe em marchatudo que e ca6tico em dir~ a uma ordem harmonica. Por isso e chamada tambem de Theologia. ­ De modo que etica e metafisica parecem ser incompativel­ mente diversas. A tradi~ entendeu que s6 a metafisica;era uma filosofia prlmeira enquanto episteme suprema dos prlmeiros prin­ cipiose das primeiras causasde todas as coisas. Todavia, 0 pr6prio Arist6teles nos diz em sua metafisica que os homens comeeam a filosofar sempre porque se espantam. Assim, 0 principio da filosofia nio e uma filosofia, uma epoca ou uma cultura determinadas, mas uma atitude frente ao ser e urn p6tlaos. De sorte que a especulacao, a contemplaeao, ou seja,' a theoria na qual consiste por excelencia a sophia, nio e so uma episteme entre as demais epistemai : e um certo tipo de vida que recai no imbito da pnixis; sob a "legislacjo"de uma etica. Na pro­ pria E. N., no livro I, Arist6teles sugere isso quando divide as opinioes acerca da felicidade: ela esta na vida dos prazeres, na vida de honras, na vida de neg6cios e riquezas ou na ''vida contemplati­ vi'? Sobre isso Aristoteles Ilio se posiciona ainda: introduz a

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136 no~iio de virtude, que doravante vai ocupar toda a cena da mica.

S6 no Ultimo livro nos mostra como virtude, felicidade e contem­

pl~iio encontrarn seu ponto de contato de modo inevitavel".

Consideremos brevemente 0 argumento de Arist6teles na E. N. para visualizar a questio com maior clareza. A eticacomeca por ser colocada como uma ciSricia dos fins que conduzem ao :fun supremo da vida humana. Niio interessa aqui saber como Arist6teles chega a isso. Basta apontar que ele concorda em parte com as opinioes comuns, que dizem ser a feli­ cidade esse fun Ultimo e supremo. Todo 0 problema consistiriL, em principio, em definir a felicidade. Na discussio com as opinioes comuns, porem, que veem a felicidade na riqueza, nos prazeres, nas honras, etc., Arist6teles refuta algumas e salvaguarda outras. Tenta chegar a um principio comum. Assim e que formula uma conclusao mais ou menos paradigmatica: a felicidade euma ativi­ dade executada pela parte racional da alma de acordo com a virtu­ de mais perfeita, e durante toda a vida -algumas condicoes contingentes como a beleza. fisica e uma minima posse de bens capaz de garantir relativa despreocupacao ao cidadio estao des­ consideradas nessa defini~io, embora Arist6teles reconheca sua importincia. Doravante 0 problema deixara de ser a felicidade para que sua condi~o essencial - a virtude - tome conta da etica. A virtude, ensina Aristoteles, implica urn esforco por parte do agente; nio se e virtuoso sem esforco. Em que consiste a vir­ tude? Grosso modo, em agir conforme a regra que a raz80 pro­ poe, a reta razao (orthos logos). Essa regra prescreve buscar em cada si~o a justa medida (meson, mesotes), 0 equilibrio entre os extremos. Todo 0 problema se volta entia para 0 inimo: Aristoteles define genericamente a virtude como uma certa dispo­ si~io animica, urn habito apoiado no carater regular de certas a~es e disposicoes e na educacao do carater, uma hem. Con­ quista-se a felicidade, agora, quando se consegue ter constancia, isto e, ser fume noma certa disposicao animica que consiste na


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pondera.yio racional dos extremos possiveis em toda situa~ao mo­ ral de decisio. 0 que significa que s6 somos felizes se somos vir­ tuosos, e que so seremos virtuosos se soubermos deliberar e escolher racionalmente, de modo equilibrado, aplicando a regra de buscar 0 justo meio entre 0 excesso e a falta. 0 homem virtuoso, dessa forma, nio peca por falta nem por excesso porque sabe esco­ lher 0 que e melhor 12 • Age como deve, quando deve e onde deve. Nio faz, por conseguinte, senio 0 que deve fazer. Age sempre como deve 13• Este dever, contudo, esta longe do dever moral cristio ou kantiano. Nao se trata de obedecer mandamentos biblicos nem de seguir uma regra formal que prescreve agir de acordo com maxi­ mas universalizaveis. Consiste, antes disso, em obedecer reta razio. Obedecendo a razao, 0 que distingue 0 homem de tudo que 1180 e humano, .0 homem realiza sua missio ontologica, 0 seu er­ go014. Nao segue uma norma universal, mas sim a ordem do todo segundo a sua natureza peculiar, que varia e e diferente da dos outros. Segue a sua missao, porque cada urn tem a sua justa me­ dida; e 0 que eexcesso e falta para urn pode nio se-lo para outro. Se, porem, nio obedece a uma regraformal universal,obedece no entanto a urn sentido superior que einerente a todo homem e con­ slste em tentar espelhar a harmonia do universo na vida pratica, no comercio com os outros, atraves da ponderacao dos extre­ mos.Segundo essa missao, a retidao da razio obriga 0 homem a imitar no plano das paixoes e das a~es humanas a mesma ordem sempitema que se espelha no kosmos, a aparente desordem das paixoes e emoeoes deve tender mesma beleza e harmonia do kOsmos mediante a retidao que 0 logos introduz, como que tra­ cando urn caminho, na sinuosidade da pnixis. Cada urn de acordo com a sua peculiaridade, e todos segundo a natureza racional do homem. De modo tal que a virtude consiste no espelho da perfei­ ~o cOsmica, daquilo que e divino (0 que pode nascer, mas do morre). Emular a ordem do kosmos e precisamente 0 que faz 0

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homem que obedece a medida de sua razio; fazendo assim con­ quista 0 mais pr6prio e 0 mais divino que lhe e dado; a felicidade da virtude". Acontece, porem, que com isso 0 homem nio e s6 feliz, mas tambem sJibio. Resta saber em que medida. Arist6teles chega a dividir as virtudes em morais e intelec­ tuais, ou, mais precisamente, em eticas e dianoeticas, As primeiras sao em certo modo subordinadas as segundas. E todas elas a vir­ tude intelectual fundamental, a Saber, a phronesis ou sabedoria euca. Esta sabedoria e precisamente 0 saber que possui 0 homem quando realiza sua missio mais alta, qual seja, 0 dever de ser feliz e virtuoso ao mesmo tempo. Nao se pode ser feliz sem esforco, semvirtude; tampouco se pode ser virtuoso sem realizar 0 que h8. de melhor em n6s: nio se pode, portanto, a1can~ a virtude sem se ser, em algum modo, sabio. Afinal, nao seria sabio quem fosse dono de sua vontade e artifice de suas decisoes? Nio seria sabio quem soubesse escolher a melhor a9io, omitir a pior, em cada momenta de sua vida, da maneira mais sensata e equilibrada? Parece que Arist6teles, como S6crates, ve na virtude urn certo tipo de conhecimento. Esse conhecimento, essa sabedoria, os latinos chamaram de sapientia ou prudentia. Ora, caberia perguntar 0 que isso tudo tern a ver com a nossa questio inicial? Ocorre que, alem dos primeiros tres Iivros, que colocam 0 problema, e de certas observacoes que Arist6teles fomece quando da analise das virtudes, a questao do seu argumento se decide, ao nosso ver, no Iivro X16• Nele Arist6teles retoma a questio da feli­ cidade enquanto atividade virtuosa dizendo que dentre todas as virtudes existeuma virtude que e a maiorde todas e que proporci­ ona a maior felicidade; a felicidade que corresponde a urn tipo de vida cujo carater e justamente superior a vida das riquezas, das honras e dos prazeres; dira entio que a maior virtude e a contem­ pl~io, e a melhor vida, a mais feliz, e aquela que consiste em seu


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exercicio: a vida contemplativa. Portanto, a contemplaeao do que

nio morre, do que e bela e harmonioso, e algo que se eseree,

Contemplar a verdade do kGsmos e contemplar 0 verdadeiro e imatavel, 0 que e divino. Contemplar 0 divino - divino aqui e adjetivo - eqiiivale entio a atividade mais virtuosa que 0 homem pode alcanear em sua condi~o mortal. Nio parece entio dificil compreender que a sophia, que consiste em contemplar e buscar a verdadel6b - no conhecimento especulativo dos primeiros principios e das primeiras causas'" -, seja a mesma atividade que a phronesis, e que no homem sabio, no fil6sofo, a filosofia primeira se identifique por principio com 0 ex:ercicio da virtude, uma vez que ex:ercer a virtude eprecisamente contemplar 0 que e divino. Contemplar a verdade - que e 0 que faz a theoria - entende-se entio como uma pnixis caracteristica do homem feliz, daquele que age de acordo com a virtude mais c perfeita. Todavia, se assim for, como compreender a disparidade apontada por Arist6teles entre 0 conhecimento que constitui urn methodos, partindo dos primeiros principios, e 0 conhecimento meramente provavel da ciencia politica dirigida ao individuo, isto e, a etica, cuja investigacao acerca do carater parte em busca dos . primeiros principios desde premissas contingentes? Assim como a metafisica ea episteme mais elevadae rigorosa, a etica, pertencen­ te a pnixis, mergulharia na conjectura dos raciocinios dialeticos ... Tal distin~o, forcosa, parece acabar com nossa esperanea de uni­ ficar sophia e pbronesis a partir do Estagirita, Mas, por sua vez, incita-nos a questionar; 000 sera que essa distin~o pertenceria em Arist6teles a16gica, ciencia das regras corretas do raciocinio e da demonstr~io, e que fora da 16gica, ou apesar dell, a ontologia do ser enquanto ser (a metafisica) nada e senao uma "etica da verda­ de"? Nio consiste ja 0 imperativo da sabedoria e do amor ao sa­ ber, que econtemplacao e busca da verdade das coisas e do ser de todas as coisas, precisamente no ideal pnitico da virtude, de

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sorte que Dio se contempla a verdade sem a virtude nem se alcan­ ~ a virtude mais perfeita - ousamos dizer, a theoria, a philoso­ phia sem a sabedona"?

• ..:Vers&:s deste trabalho Coram lidas no nEncontro de Estudos Cl8ssicos (SBECIRN ­

Deptode Filosofia UFRN) , em maio de 1995, e no mEncontro Nacional de Estu­ dos C18ssicos ( SBECIRJ - Depto de Filosofia UFRJ) a fins de outubro do mesmo ano, em cujas Atas apareceu publicada uma primeira versllo do texto. As aulas de Etica que miDistrei 199412 e 1995/1 no curso de grad~ em Filosofia da UFRN, em Natal,e uma c:onversa que mantivecom 0 Prof. Enrique Dussel , por ocasiAo de um c:ongresso no Rio de Janeiro, em setembro de 1994,sAo responsaveis em parte pelamedi~ do presente ensaio. 1 Citaremos a EthicaNicomacbea desse modo. 2 MetafiSica, 980a - 983b. Cf. comE. N. 114Ia-b; 1143b-1144a. Ver tambem, em Platio, Teeteto, 145e. ' 3 Sobrea rela9io entre Filosofiae c:ontemp~llo da verdade cr. Metafisica, 993a30; 993b20-21; 1003a 21. PlatAo ja seguia esta tradi~llo (0 ideal da vida c:ontemplativa como ess!ncia do filosofar), que segundo Cicero (Tuscul., Livre IV, 1-3) e Di6genes Laercio (Vidas, vm, 8) remonta a Pitagoras. Vide Teeteto, 173e-173d; Banquete, 210a-bI212a; RepUblica, 540a-c. 4 Vernota2 ecf. comE. N., 1177a-1179a. 5 Pelomenos se interpretannos 0 legado da Metaflsicacomoinseparavelmente ligado aodaE.N. 6 Teeteto, 155d 7 cr. MetatIsica, 988b. 7b Considerando as ~ dos tennos sophia, sophOs, phren, phoneo, phronesis, theolVO e theoria, v8-se que 0 que caracteriza a sophia, a phronuis e a theoria e sempreuma comp.reensio, uma sabedoria;um conhecimento, um pensamento, uma retlexlo, ou c:ontemp~llo, sAo relativos de um modo ou de outro aos ~ voeabu­ los. Como se 0 que eles expressavam girasse em volta de um imicoponto, em tor­ no do qual gravitassea semanticapossivelde cada uma destas palavms gregas.Cf. Benselers Griecbisch-Deutsches Schulworterbuch. Leipzig. Teubner. 131911., pp. 836-7; p.973; pAIS, respectivamente. Isso nlo prova Dada, naturaJmente, mas dB. uma indi~ possivel de leitura que combina comnossomodode ver as coisas. 8 E.N. 1141a-b/1143b-1l44a I


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Sobre isto veja-se: Vanier, J. Le bonheur, principeet fin de la moralearistotelicien­ De. ParislBruges. Descle de Brouwer, 1965.Veja-sesobretudoas pp. 33-68.

Compare-se E. N., I e VI com Metafisica, 1050a. 0 que, de algum modo, ja esta presente em Platio. Ver Filebo. 59a-648, por exemplo, 12 Cabe lembrar que os gregos do possufam nO9&> de pecado. Trata-se portanto, aqui, de uma expressIo da nossa lingua. 0 homemgregoe livre ou eseravo;jamais 10 11

pecador.

Este argumento e desenvolvido por Aristbteles, basicamente, nos primeiros ~ livros da E. N. 14 Sobre 0 termo ~on veja-seE. N., 1094a11098a; Ethica Eudemia, 1219a. Compa­ re-se com Metafisica, 10508, e com PlatAo, Republica, 353a. Sob nossa inteira responsabilidade, quando referidoao homem, no ambito da E. N. traduzimos ~on 13

pormiss6o.

Esta in~ inspira-se no propriotexto de Aristbteles e no trabalho de Leon Oll6-Lapnme, Essai sur la moraled'Aristote, Paris, Belin et fils. 1881. Veja- se as pp.21ss/35ssf77ss. 16 0 que e discutivel, basicamentepor duas raz(les: desvalorizaria em certo modo os eusinamentos do livro VI , e passaria por alto 0 papel fundamental da amizade (Phylia) oa etica aristotelica. Como justificativa poderiamos alegar que, em pri­ meiro lugar, raz<les de ~ impediram 0 devido tratamento desses lisros, sem que isso signifique 0 serem esquecidos; em segundo, que tais ensinamentos fo­ ram tacitamente levadosem contaoa presente exposi940; e em terceiro, que em se tratando de uma ~ acerca das relayl5es entre etica e metafisica, i.e, de um pequenoensaio filo56fico em torno de um grande problema, e n!o de um es­ tudo filo16gico ou meramente historiognUico sobre Aristbte1es, podemos tranqui­ Jamente ouviressesreclamos sem preocu~. 16b Metafisica, 993a 30-b21. 17 Metafisica,981b27 - 30. 18 Este texto pode ser consideradocomouma tentativa de repensar uma problematica que abordamos noutro lugar (cf. "Aeercado paradoxo da filosofia moral", in: Sin­ tese NovaFase, v.23, n.73, 1996;pp.253-263) sob a den~io de''paradoxo,4a filosofia moral". Todavia e preciso fazer algumas ressaivas. Em primeiro lugar, aqui se pressl1lX5e tacitamente wna dif~ entre etica e moral, enquantoque no artigo acima citadopartia-se deliberadamente da sua identifica940. E que do ponto de vista da filosofia moral contemporanea, hem como do ponto de vista do SCDSO comum - do qual se partiu naquele artigo para melhor evidenciar0 paradoxo- n!o se faz diferen~ entre etica e morale amiUde aparecemem textos,jornais e discur­ 80S comose fossem uma coisa 56. Mas do ponto de vista fil0s6fico pode-seestabe­ lecer uma distin940 relevante. A etica reporta-se ao ethos, ao modo de ser que efetiva no agir ~ regu1ares de car8ter e conseqoanci8, independente do fato destes traeos serem ou n!o a vio~ de proibi~i5es e a ~io de um. deverser moral. A tese da indissociabilidade de 15

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etica e metafisica constituiria neste sentido um modo possivel de equacionar 0 pa­ radoxo da filosofia moral a medida que a busca da verdade e simultaneamente contemplativa e pritica. par essa via seria possivel pensar conjuntamente a ~ao entre morale filosofia moral, entre etica e etica filos6fica (segundo as express<5es aplicadas sinonjmamente naquele trabalho), fugindo das dificuldades paradoxais que lA apareciam. De qualquer modo, e precisoreconhecer que na ~cia 0 para­ doxo persiste porque a "etica da verdade" que camcteriza a filosofia do parece chegar a se constituir num ethos universal. Se 0 fosse, porem, tomSr-se-ia ou um conjunto de deveres e proibi~ morais ou um conjunto de deveres e proibi~(5es regulados pela ~§o do Estado. E deixaria de ser dtica para ser moral ou di­ reito. ..,A compreensIo destas ressalvas requer como condi~§o 0 conhecimento do artigo acimacitado.

ARIST6TELEs. Metafisica. Edici6n trilingue por V. Garcia Ye­ bra. Madrid: Gredos. 21982. _ _ _......:. L'Ethique Nicomaque. Intr., trad. et comm. par RA Gauthier et 1.Y.Jolif. Louvainl Paris. 1958.. (2 Tomes). _ _ _ _. Etique aNicomaque, Nouvelle trad. avec introd., no­ tes et index par 1. Tricot. Paris.Vrin.1959. _ _~_. Etica a Nic6maco. Ed. Bilingue y traducci6n de M. Araujo y J. Marias. Instituto de Estudios Politicos . Madrid. 1959. - - - -. The Eudemian Ethics. On Virtues and Vices. Transla­ ted by R Rackham. London/Cambridge:MA 1935. BENSELER, G.E.; Schenkl, K. Benselers Griechisch-Deutsches Schulworterbuch. LeipzigIBerlin. 131911 (erweiterte und viel­ fach verbesserte Auflage). BONACCINI, IA "Acerca do Paradoxo da Filosofia Moral", in: Sintese -NovaFase, v.23, n.73, 1996, p.253-263.

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CICERON, M.T. Tusculanes. Texte etebli par G. Fohlen et tra­ duit par J. Humbert. Paris. "Les Belles Lettres". 1931 (2 To­

mes). LAERCIO, D. Vidas de los Fil6sofos mils Dustres. Trad. directa del Griego y Prologo por Jose Ortiz y Sanzo Madrid. Aguilar. 1946. (Essa edici6n parece ser a 1& da Aguilar, mas "a tradu~o edo seculo XVIll). OLLE-LAPRUNE, L. Essai sur la morale d' Aristote. Paris. Belin et fils. 1881. PLATAO. Banquete, Fedon, Sofista, Politico. Coleeao "Os Pensa­ dores". Sio Paulo. Abril. 21978. _ _ _. A Republica. Trad. e notas de M.H. da Rocha Pereira. Lisboa. C. Gulbenkian.1972. _ _ _. Philebe, Texte etabli et traduit par A Dies. Societe D'edition. "Les belles lettres". Tome IX, 2DlO partie. Paris. 1941. ~:-:--~. Teeteto e Cratilo. Trad. de C.A. Nunes. Vol.IX. Be­ lem, Universidade Federal do Para. 1975. -, TAMINIADX, J. Lectures de I 'ontologie fundamentale. Greno­ ble. 1.Millon.1989. VANIER, 1. Le Bonheur, principe et fin de la morale aristotelici­ enne. Paris/Bruges. Descle de Brouwer. 1965.


HERACLITO E PROTAGORAS: 0 LOGOS DO JOGO E 0 JOGO DO LOGOS

Marcos Aurelio Monteiro do Fonseca Departamento de Filosofia da UFRJ

o objetivo do texto e pensar a n~o de L6gos em Heraclito e Protagoras. Desde Plat!o aponta-se para a influencia que 0 primeiro teria exercido sobre o pensamento do Sofista. Assim, 0 que se pretende e verificar como Protago­ ras apropria-se da n~o de L6gos na forma como aparece no pensamento do Efesio e atribui a ele um novo sentido. Para tanto, parte-se da famosa maxima que Di6genes Laertios atribui a Protagoras que diz que, "em rela~o a qual­ querassunto, M duas ~ contradit6rias". 1. Parece ser de ambigiiidade a rela~ao entre a filosofia pre­ socnitica e a sofistica: ao mesmo tempo em que esta herda a tradi­ ~ao iniciada pelos primeiros fil6sofos, promove um desvio de sua orientacao, trazendo novos problemas para a reflexao filos6fica.· Toda tentativa de compreender esta relacao, deveria levar em consideracao seu carater ambiguo e isto significa detenninar 0 sentidodesta heraneae ruptura promovida pela avalanche sofistica.

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Trata-se de pensar um vinculo possivel entre 0 pensamento de Heraclito e a filosofia de Protagoras. Desde Platio ate os co­ mentadores contempoIineos, discute-se as influencias do primeiro sobre 0 segundo. Muitas vezes tratou-se de ressaltar a :fili~o da doutrina do homem medida a teoria do fluxo incessante e a da harmonia entre contraries afirmadas pelo pre-socratico de Bfeso. Entende-se, a principio, que as Antilogias e a referida doutrina tern uma fonte comum que e 0 Logos heraclitico. B esta problematica, tic crucial para 0 pensamento de HerAclito, que deve fomecer uma via de acesso acompreensio do problema do Logos em ProtBgoras. o prop6sito e pensar uma possivel li~ entre 0 Logos de Heraclito e a celebre afirm~io que Diogenes Laertios atribui a Protagoras que diz: "em relacao a lfIo1quer assunto, lui duos aflrmtlfOes comraditorias'", Proposicao que Untersteiner consi­ dera ser uma condensaeao da tematica geral das Antilogias, que poderia ter sido 0 titulo de uma obra que tratava de varies assun­ tos2 • 0 que se pretende e demonstrar que Protagoras apropria-se do tema do Logos da maneira como se apresenta em Hericlit03 e, abandonando a enfase de carater fisico-naturalista, atribui a este um sentido lingUistico que procura afirmar a autonomia e preemi­ nencia do Logos. o que importa quando se levanta esta questio edeterminar como 0 Logos de Heraclito fomece 0 fundamento para a tematica central da filosofia do sofista de Abdera que edoutrina do homem­ medida. 0 Logos e 0 modo como aparecem e se articulam as coi­ sas. Esse arranjo surge como unidade de opostos permutaveis e reversiveis. Jogo de crianca: mudanca de disposi¢es, intercam­ bios, pennutas. 0 Logos e 0 Cosmos porque este, como unidade do mUltiplo, e 0 modo proprio do dar-se, do vir a luz e do articular dos entes. B daqui que se pode comecar a tecer 0 fio que vai de Heradito a Protagoras. Logos, como conjunto de elementos per­ mutaveis, articula Cosmos. Medida e conjunftBo de elementos que se arranjam como num jogo. E desta maneira que se tentara com­


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preender as Antilogias de Protagoras em sua rela~io com a doutri­ na do homem-medida.

2. 0 Logos do jogo

o comum e0 logos". 0 modo eo sentido do melhor arran­

jo, Coisas ao acaso, bela e0 Cosmos. 0 vir-a-ser euma estrutura­ ~io

de elementos diferenciados, que no vigor do aparecer, arraniam-se em todo harmonioso. A senda para 0 pensamento se abre no escutar e no compreender a reuniio de tudo como unidade e diferenca, Para se ter um conjunto, e necessario que os seres se entrechoquem e permutem os lugares em constante movimentacao. Heraclito buscando 0 sentido deste aparecer e articular dos entes, diz Logos. E 0 primeiro verbo. 0 que exprime 0 uno-mUltiplo em sua forma mais simples e direta: nele Dio se anula nema unidade e nem a niultiplicidade. _ Logos, imanencia detenninante que nio pode ser confuncii­ da com 0 simples entendimento, mas que 0 ultrapassa. Porem, este ultrapassar Dio e urn estar alem disto que se apresenta como fenemeno, mas sim, urn estar inserido em tudo como modo unificador das. coisas singulares. MaS, Logos e 0 vi­ do vir-a-ser dos entes e a rela~o de atra~o e repulsio que eles mantem entre si no movimento de presentificarem-se como unidade e diterenea, 0 modo de articulaeao dos entes, estrutura 0 "arranjo mais bela" . S6 h8 conjun~io entre elementos singulares, como uma sinfonia que e 0 resultado do acordo de notas de diferentes tons. Assim, os fenomenos Dio podem ser pensados como unidades isoladas (desta maneira Diohaveria Cosmos), mas devem ser com­ preendidos num conflito que ea propria condi~io para que as coi­ sas possam permanecer na presence. 0 modo desta disposi~o e Logos.

gor


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Esse "monte de coisas" de repente arranja-se como distri­ bui~ proporcionada e simetrica. "0 sol nQo

ulITapassard as medidas, se 0 fizer, as Erineas, ajudantes de Dike, 0 encontra­

rao ,,e;. Um elemento nio pode prevalecer sobre outros , pois isso tornaria impossivel 0 arranjo. 0 Uno nio e tambem, 0 resultado de uma sintese dialetica mas, em Heraclito, a unidade e recolhida como diferenea e disposi~lo de entes no ato do movimento de presentifica9lo. As coisas estio distribuidas proporcionalmente, nenhuma excedendo as medidas (MelTon), vibrando no limite da tensao que constantemente existe entre elas. 0 Cosmos e a totali­ dade dos fenomenos que se arranjam segundo 0 Logos, sendo este a unidade dos entes no modo de articularem-se na forma e no sen­ tido de seu desvelamento. Resta definir como as coisas estio distribuidas no aparecer, de maneira que etas singularizam-se como elementos diferencia­ dos? Qual e a forma desta diferenciacao? De que maneira mantem­ se 0 MelTon de cada ente e do todo? Os entes surgem e se harmo­ nizam a partir da desarmonia subjacente neste aparecer. Os ele­ mentos estlo em urn perpetuo movimento que lanca uns contra os outros. Bssee 0 sentido e modo da conjun~io: " ...0 todo e 0 nito todo, 0 convergente e 0 divergeme, 0 consoante e 0 dissonan­ te, e de todas as coisas um e de um todas as coisas. ,,7 E desta maneira que os entes sao e estio no desvelamento e ecomo devem ser recolhidos pelo pensamento: "queme-frio, guerra-pas; sacie­ dade-fome'". 0 MelTon e uma garantia de manuten~io do conflito como constituinte da conjun~o mais bela e como a possibilidade de diferencia~o e unifica~ de todas as coisas. A duplicidade e 0 modo de ser do C6sm~. Os entes se articulam como pares de opostos e esta oposi~io nio euma sim­ ples recusa entre forcas antiteticas, mas deve ser entendida como choque que leva a passagem de urn contrario a outro 10 • Ooutro e o mesmo sao urn sO, como eo caminho para cima e para baixo!'. A rel~lo entre os opostos e de intercimbio e reversibilidade.


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Cada ente muda de lugar com 0 seu contrario num movimento de troca e mudanca de disposiejo que e 0 vigor proprio dos entes no vir-a-ser, Dizem os fragmentos: "0 frio se esquema; 0 quente se esfria; 0 Umido seca; 0 seco se umidifica. 12 Nao Ita 0 quente e 0 frio como forcas antiteticas, exigindo uma conciiiaejo, uma sinte­ se, para que se pudesse pensar numa conjun~io possivel. Mas, quente e frio sao um na diferenea de suas disposicoes e no inter­ cambio de suas posicees. 0 equilibrio e a medida sao sempre ten­ sos; sempre no limite e no movimento de urn oposto a outro. o Cosmos e essa unidade do multiple que se sustenta e en­ contra seu sentido originario na tensao dos opostos. "De coisas lancadas ao acaso, 0 arranjo maisbe/o, 0 Cosmosr". Articula~ao entre elementos opostos, num movimento de intercimbio e re­ versibilidade. E como num jogo, onde 0 movimento de uma imica peea detennina uma nova contiguraeao e suscita om novo lance. Este e Logos concebido como produtor de Mundo. 0 Metron de­ termina 0 instante em que uma disposicao, esgotando seus limites, transmuta-se em seu oposto. Desta maneira, esta garantida a justa

proporcao. . Escutando 0 sentido do vir-a-ser e com8reendendo que este e0 Logos "e sabio concordar que tudo e um 4: multiplicidade de contraries, pluralidade que dilacera 0 ser em combates inesgo­ taveis. A unidade reside no momenta de maior radicalidade quan­ do 0 ser perfaz todo seu caminho, no instante do pensamento. "Pensar e serresne tudo't",

3. 0 jogo do Logos Para muitos pre-socraticos, especialmente Heraclito, a na­ tureza e ambigua, pois presentifica-se como combinacao de con­ trarios, correndo como urn rio, do uno ao multiple. Nela, nao se encontram principios que sejam identicos a si mesmos. 0 Um he­ raclitico e 0 instante de equivalencia entre a multiplicidade de fe­


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nomenos. 0 Mundo eplural e isso etambem atestado pelo carater politeista da religiio grega". 0 divino manifesta-se como uma multiplicidade de deuses que representam aspectos distintos e manifestam suasvontades de forma ambigua e obscura. Ora, 0 que falar da natureza se ela manifesta-se de mUltiplas formas, .se ela "ama esconder-se ,,?17 Para Heraclito, 0 Cosmos e uma conjun~io possivel de elementos que, no movimento de intercimbio, assume disposi~5es distintas, associando-se num unico vigor. A esistencia e tragica porque e dilacerada em unidades de opostos, e por isso mesmo inocente, pois esta e a unica forma possivel de se pensar 0 urn. Esta talvez seja a heranea heraclitica no pensamento de Prctagoras, mas tambem 0 ponto onde ocorre 0 desvio: se tudo e movimento e mudanca de disposi~io, aquilo que se manifesta e diz everdadeiro, ja que nio ha natureza ou principio para onde 0 dizer remete, mas isto que e proferido indica uma rel~ de ele­ mentos permutAveis, que e 0 proprio Logos. Para Heraclito, como ja foi visto, 0 Logos e 0 modo de ti~io dos elementos, numa rela~o de proporcao e simetria que garante 0 Metron de cada coisa. 0 Cosmos e 0 efeito possivel do de proporcao e simetria que garante 0 Metron de cada coisa. 0 Cosmos e 0 efeito possivel do movimento das pecas no jogo de troca entre os entes. Este e 0 problema que 0 sofista toma ao pre­ socratico: 0 Logos e 0 vigorda disposi~io e associ~o de elemen­ tos permutaveis, o Logos heraclitico fornece a pista que permite compreen­ der a ~io que Diogenes Laertios atrlbui a Protagoras.. Se nada e identico a si mesmo, se 0 uno e 0 mUltiplo sao semelhantes e se 0 que vigora e 0 movimento que mudaurncontrario em outro, nio epossivel compreender nem a existencia de naturezas simples entendidas como principios do vir-a-ser e nem afirmar que 0 ser e, exclusivamente, a unidade. Nio se pode querer que 0 discurso remeta aqualquer realidade que the seja extrinseca. A comb~ entre os elementos define a disposieso e a posi~o das coisas. Se

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I I

existem dois discursos contraditorios para todo assunto, Ilio e porque 0 real e, em si mesmo, contraditorio, mas sim, porque ele e produzido como possibilidade da associacao entre os elementos do discurso. Estes sao capazes de urn niunero de associacoes que tornam impossiveis 0 erro e a contradicao. Tudo que e proferido tern a sua validade propria. A "verdade" seria entao,- um efeito tragi!, uma medida possivel, articulada em momento oportuno que produz urn precario consenso (Homologiay. . 0 Logos remete para si mesmo, para as multiplas possibi­ lidades de conjun~ao entre seus elementos. Articula unidade feita de diferenea'" que varia conforme a ocasiao. E a possibilidade de trocas entre os componentes da linguagem que permite esta poli­ fonia discursiva: essas partes Ilio sao im6veis, mas intercambia­ veis, cujos movimentos produzem artefatos distintos. 0 real e da ordem do discurso, pois 0 Logos sendo "produtor de mundo "19, determina as disposi~es das coisas, na medida em que se conju­ gam seus elementos. Desta maneira, alcanca-se 0 sentido da afu­ ~io atribuida a Protagoras: mediante 0 discurso, muda-se 0 aparecer das coisas, fazendo com que elas se adaptem a ocasiao. Se 0 real e urn efeito do discurso nao existe ~io que seja contraditoria pois, todas as .opinioes diversas sobre 0 mesmo as­ sunto t~ a mesmavalidade ja que sao efeitos de uma combinacso possivel. 0 ser e 0 Ilio ser sao formulas possiveis do jogo do Lo­ gos, sao efeitos do dizer", 0 sofista interessa-se pelos resultados produzidos pela linguagem, desinteressando-se, completamente, pelo seu antecedente ou referente. Essas colocacoes sao esclarecidas ainda mais quando se percebe a importancia que Protagoras atribui a educa~ao. Esta constitui-se como Sophia cujo objetivo e, alem de formar 0 cida­ dao dentro das convencoes sociais (Nomos), permitir que 0 disci­ pulo possa, mediante uma Techne adquirida como Paideia, mudar as posi~s das peeas do jogo conseguindo, desta maneira, mudar a disposi~o da alma de outrem, produzindo Homologia. Mudar as


lSI

aparencias significa produzir discursos bem proporcionados que possam servir de medida para avaliar a realidade das coisas. 0 discurso sabio e este que joga as aparencias, mudando-as, toman­ do-as outras e, desta maneira, produzindo persuasio. Assim, com­ preende-se por que e possivel fazer com que a opiniio que uma plateia possa ter sobre determinado assunto. E por isso, que 0 "discurso e um senhormuitopoderoso "21, que conseguiu que He­ lena fosse para Tr6ia, pois ela nada pode fazer contra seu poder de encantamento. Protagoras apropria-se do Logos Heraclitico e atribui a ele urn outro significado. Para ele, 0 Logos eurn conjunto de elemen­ tos artieulaveis produtor de Metron , determinando urn sentido, urn lugar e uma utilidade para as coisas no universo humane. o sofista nio pretende nem descrever 0 universo fisico e muito menos fazer apologia do ser unico. E preciso conceber a Iingua­ gem como uma cadeia de significantes, cujas re~es mUltip~, produzem iniuneros efeitos. Cada significante remete a outros, criando uma sene de possibilidades e produzindo significados. Nio hi limites para 0 jogo da argumenta~o. Qualquer assunto pode ser cia mesma maneira atacado e defendido. Em Heniclito, 0 Cos­ mos e urn efeito de uma brincadeira de crianea. Em Protagoras, 0 Logos e urn produtor de mundo. "0 tempo e uma crtanca, jogan­ do 0 jogo de pedras, vigencia de crianfQ,,22.

4. Logos e jogo

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A interpreta~o que Platio da doutrina de homem medida no Teeteto23 e muito determinante nas analises do pensamento de Protagoras, Neste dialogo, a maxima do sofista e encarada sob 0 prisma do relativismo gnosiol6gico e do subjetivismo. As coisas 810 como aparecem para cada urn, desta maneira nio e possivel afirmar que elas possuam uma identidade propria, mas que 0 ser delas depende cia forma como cada urn. as sente. AparSncia e sen­

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sa~io se eqUivalem, pennitindo que cada homem sejaa medida das

coisas. Esta interpretacao muito contribuiu no sentido de construir uma imagem negativa da sofistica, ja que se a afirma~io de Prota­ goras enuncia algo sobre 0 ser das coisas e iguala este a sensa~o e a aparencia, ela s6 pode estar no degrau mais baixo do conheci­ mento, incapaz de conceber uma ciencia do ser. Esta doutrina manteria a razio presa ao nivel das coisas sensiveis, na ambigUida­ de da aparencia. .' No Teeteto, Platio tambem relaciona a proposieao de Prot8.goras com a teoria do vir-a-ser e da mistura de todos os ele­ mentos, principalmente, na forma como aparece emHeraclito. A analise precedente pretende compreender a doutrina do homem medida, numa trama que liga 0 Logos heraclitico, as An­ tiologias e a proposicao do sofista, 0 Logos e 0 vigor da articula­ ~io de elementos diferenciados nom todo harmonioso que, para.0 sofista, indica uma preeminencia do discurso como produtor de mundo. Esses elementos nio podem ser tomados, isoladamente, mas sempre formando uma cadeia de trocas e intercimbio. 0 indi­ viduo e urn dos elementos desta cadeia, que assume disposicoes distintas, dependendo das r.el~oes mantidas com os outros elos. Neste caso, 0 individuo nio poderia ser a medida das coisas na forma como que elas aparecem para ele, mas e1as podem ocupar posi~es distintas nos arranjos discursivos, nio podendo ser consi­ deradaem si mesmas, mas na relaeao e no Iugarocupado na cadeia significante. As coisas sao reveladas pelas manipulaeoes lingiiisti­ cas promovidas pelos homens nas Polis. Isto, que de alguma forma diz-se que e, s6 pode ser para 0 homem, s6 ganha sentido no uni­ verso humano. Os fenomenos existem se tiverem urn lugar neste arranjo e nio existem se ai nio estiverem incluidos". Isto implica que as coisas sao determinadas numa ordem que indica seu senti­ do, Iugar e utilidade. 0 individuo nio pode ser a medida das coi­ sas, pois estas s6 adquirem sentido, lugar e utilidade. 0 individuo


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nio pode ser a medida das coisas, pois estas sO adquirem sentido no seio das rela¢es sociais e 0 fio que tece as partes que formam o tecido social e 0 Logos. As coisas sao em fun~io do homem, e este sO na cadeia de relaeees sociais e lingiiisticas, em que 0 indi­ viduo eurn de seus elos. Somente a convencao pennite firmar determiiladas rela­ ¢es, possibilitando a vida humana na Polis. Uma cidade e ao mesmo tempo, identidade e diferenca, urn Cosmos com sua estru­ tura pr6pria. Por outro lado, isso nio pennite afirmar que a rela­ ~o Nomos - Physis ocupe a posi~ao central de toda essa problematica, mas sim ressalta 0 lugar do Logos como produtor de conven~o e de coisas. Isso tambem faz do pensamento de Prota­ goras urn discurso sobre a cultura e 0 poder, 0 que ebem atestado pela tradi~o que ensina que os sofistas possuiam uma dupla maes­ tria porque eram professores e homens de poder". 0 Logos e constituidor do ser do homem, como unidade e diferen~. S6 ele desvela pois ele, no movimento que vai do diferenciado ao indife­ reneiado, mostra-se como medida do homem e dos outros entes.

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LAERTIOS, DiOgenes. Vidas e doutrinas dos fi16sofos ilustres. Tradn~o Mario cia Gama Knory. Brasilia: UNB. 1988. p. 264.

2 UNTERSTEINER, Mario.

Les Sophistes. Traduit par Alonso Tordesillas.

Paris: LibrairiePhilosophique. J. Vrin, 1993. p. 30. .' 3 Ibid p. 51. 4 HERACLITO. Fragmentos. Edi~o bilingiie com trad~, introd~o e notas de Emmanuel CameiroLeio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. Frag.2. S Ibid Frag. 112. 6 Ibid trag. 91. 7 HERACLITO. In:- Col~o os Pensadores. Trad~o de Jose CavaIcante de Souza et al.: sao Paulo: Abril Cultural. 1989. Frag. 10. S Ibid Frag. 67. 9 UNTERSTEINER, Mario. Op. cit. p. 48.

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I

10 DUPREEL, Eugene. Les Sophistes. Protagoras, GOrgias, Prodicus et Hippi­

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as. Neucbatel: Editions du Griffon, 1980. p. 40. 11 HERACLITO. Op. cit. nota 4 Frag. 60. 12

Ibid Frag. 124.

13 Ibid. Frag. 124.

14 Ibid. Frag. 50. IS

Ibid Frag. 113.

16 UNTERTEINER, Mario. Op. cit. p. 45-48.

HERACLITO. Op. cit nota 8. Frag. 123 CASSIN, BaIbara. Ensaios Sofisticos. Trad~o Ana LUcia de Oliveira et 'al. 810 Paulo: Siciliano, 1990. p. 12. 19 Ibid p. 11. 20 Ibid nota 20. 21 OORGIAS, Eloge d'HeIene, IN: _DUMONT, J. P. Les Presocratiques. Paris: Gallimard. 1988. pp. 1032-1033. 22 HERACLITO. Op. cit nota 4. Frag. 52. 23 PLATON. Theetete. Traduction, Notices et notes par Emile Cbambry. Paris: FJammariom, SID. 151 a _ _152 d. 24 EMPIlUCUS, Sextus. Hypotyposes pyrroniennes, IN, _Dumont, J. P. Op. cit nota 22. p. 990-991. ­ 2S CASSIN, Barbara. Op. cit. p. 7. 17

18

BATTISTINI, Yves. Trois Prisocratiques: Heraclito, Parmenide, Ernpedocle.Paris:~ard, 1988 BURNET, John. 0 Despertar da Filosofia Grega. Tradueao de Mauro Garna. Sao Paulo: Siciliano, 1994. CASSIN, Barbara. Ensaios Sofisticos. Tradu~ao de Ana Maria Lucia de Oliveira e Lucia Claudia Leao. Sao Paulo: Siciliano, 1990. DUMONT, 1. P. Les Presocratiques, Paris. Gallirnard, 1988 DUPREEL, Eugine. Les Sophistes: Protagoras, Gargis, Prodicus, Hippias. Neuchatel: Editions du Griffon, 1980.


ISS

HERACLITO. Fragmentos. Edi~io bilingne com tradu~o, intro­ du~o e notas de Emmanuel Carneiro Leao. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. KIRK, G. S., RAVEN, J. E. Os fil6sofos Pre-Socraticos, tradu~ de Carlos Alberto Louro Fonseca et al: Lisboa: Funda~io Ca­ louste Gulbenkian, 1979. LAERTIOS, Diogenes. Vidas e doutrinas dos filosofos ilustres. Tradu~, introducao e notas de Mario da Gama Kwy. Brasi­ lia: UNB, 1988. PLATON. Protagoras. Traduction, notices et notes par Emile Cbambry. Paris: Flammarion, sid. ____--". Cratyle. Traductions, notices et notes par Emile Chambry. Paris: Flammarion, sid. _ _ _ _. Theetete, Traduction, notices et notes par Emile Chambry. Paris: Flammarion, sid. NEVES, Maria Helena de Moura. A vertente grega da gramatica Tradicional. Sio Paulo: Editora Hucitec, Brasilia: Editora versidade de Brasilia, 1987. Os Pre-Socraticos, Traducao de Jose Cavalcante de Souza et al: Sio Paulo: Abril Cultural, 1989. Coleyio os Pensadores [Heraclito]. RAMNOux, Clemence. Urn Episode de la Rencontre est-oest. Zoroastre et Heraclite. In: - Etudes Presocratiques. Paris: Editions Klincksieck, 1970. . Nouvelle Rehabilitation des Sophistes. IN:- Etudes --Pf-e-s-ocra-ti"ques. Paris: Editions Klincksieck, 1970. "" ROSSET, Clement. A Anti-natureza; elementos para uma filosofia tragica, Traduzido por Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaco e Tempo, 1989. UNTERSTEINER, Miuio. Les Sophistes. Traduit et pr&enre par alonso Tordesillas. Paris: Librairie Philosophigue J. Vrin, 1993.

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VERDADE E METAFISICA: DESCARTES NA ROTA DA DESCOBERTA DOS FUNDAMENTOS DA ClENCIA*

RobertoLima de Souza Departamento de Filosofia da UFRN II n y a veritablement que Dteu seul qui sott parfaitement sage, c 'est d dire, qui ait l'entiere conaissance de la verite de toutes chases; mais on peut dire que le hommes ont plus ou moins de sagesse d raison de ce qu'tls ont plus ou moins de connaissences des verites plus importantes.

(Rene Descartes- Principes, preface)

Este artigo trata fundamentalmente de dois grandes aspectos da filosofia de Descartes: a metafisica como fundamento da Ciencia e a pr6pria conCCWlo eartesiana de Ciancia. Na abordagem da primeira questao - forrna1rnente a prim.eira parte deste artigo - procura-seevidenciar a metafisica como forjadora de uma co~o de verdade e como alicerce para 0 conhecimento certo e indubitavel, ponto de partida para se fundar as ciancias. Esta primeira parte apresenta, inicialmente, a con~o metafisica de verdade em Descartes; a seguir, 0 papel da dUvida como artificio metodo16gico para a depurac;!o das crencas e busca da verdade; 0 Cogito como primeira certeza e as consequen-

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jan.ldez. 1996


157 cias da existancia de Deus comoverdade primeira. Na abordagemda segunda questlo, do apresentados alguns aspectos da Ciencia tal como entendja Des­ cartes. Esta segunda parte buscaprincipalmente ofereceruma explici~ dos fundamentos metafisicos e apresentar a vislo unitaria cia Ci&1cia, al6m de destacar aspectos fundamentais do metodocartesiano.

1. A Metafisica e 0 fundamento da Ciencia ·Cartesiana Iniciando as suas MeditafOes, Descartes deixa-nos explici­ to 0 objetivo a que etas se propoem: estabelecer algo de firme e constante nos Ctencias. (I Meditaeao, § 1). Para alcanca-lo, vai perseguir 0 caminho da duvida universal e buscar desfazer-se das andgas opini6~, ja que se apercebera de que, desde os primeiros anos, recebera muitasfalsas opinioes como verdadeiras e de que aquilo que, depots "fundara" em principios tiio mal assegumdos, 1140 podiaser senaomui duvidoso e incerto. (I Medi~, § 1). 0

seu objetivo, pois, e 0 de buscar os fundamentos Ultimos cia cien­ cia, os principios sobre os quais a mente humana nio seja capaz de lancarduvidas. Assim sendo, pode-se melhor compreender que, para Des­ cartes, a primeiraparte da filosofia - a verdadeira filosofia - devera ser, pois, a metafisica, isto e, a busca dos principios do conheci­ mento dos quais irao decorrer a pr6pria fisica e as ciencias da vida, considerando-se que, fundados os principios, toma-se suficiente racionarpor ordem para a consecucao de todo 0 resto.

1.1. A concep~o metafisica de verdade em Descartes Alguns autores consideram que, para Descartes, verdade significa, sobretudo, validade ou eficacia do processo cognitivo, cujo exito consiste em se desfazer do erro. Outras vezes, encon­ tramos, em Descartes, verdade tomada como correspondencia, ou

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seja, adequ~io a coisas existentes. No entanto, a concep~io de verdade em Descartes nao se restringe tio somente ao aspecto da validade ou coerencia intema entre os enunciados, nem simples­ mente ao aspecto da correspondencia a objetos reais ou existentes. Fundamentalmente, a sua concepcao de verdade se encontraligada a uma tradi~o que entende verdade como reve/afllo ou manifes­ ta¢o. Essa tradi~o que possui duas vertentes principais, uma empirista e outra teol6gica ou metafisica, tern, de fato, como ca­ racteristica, a enrase que edada aevidencia tanto como dermi~io quanto como criterio de verdade, e evidencia, entio, nada mais e que reve/Clflio e manifeslafllo. A vertente empirista (que nlo trataremos aqui), remonta a Sextus Empiricus, e, ai, as pr6prias sensa~6es sio consideradas evidencias das coisas. Ja a vertente teol6gica ou metafisica oferece uma interpre­ t~io do conceito de verdade como correspondencia, surgindo dai o conceito de verdade como manifestacao. Remonta a Plotino-0 conceito de verdade como principio metafisico ou teol6gico que encerra a mesma substancialidade do principio que nela se manifes­ ta, ou seja, de Deus. Este conceito de verdade como manifest~lo, que foi uma constante na filosofia patristica e escolastica, foi tam­ bem 0 que levou, mais tarde, Descartes a formular 0 conceito de verdades eternas, baseando-se na evidencia como criterio para 0 discernimento do Verdadeiro do falso, conforme se encontra na Quarta Medit~o. A evidencia do cogito, por exemplo, (que adi­ ante consideraremos) e, para Descartes, uma evidencia originaria, uma vez que, atraves dela, se manifesta ou se revela ao sujeito pensante a sua propria existencia, Tudo 0 que se manifesta, pois, por esta via, vai ser considerado por ele como verdadeiro. Toda­ via, no imbito dessas verdades, encontram-se aquelas que, por decreto divino, do estabelecidas e garantidas pela imutabilidade. A estas, Descartes chama de Verdades etemas. (Cf. Prlncipios da Filosofia, I, 49).


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Perseguir essas verdades, que sao de natureza metafisica, se constitui a grande tarefa cartesiana para fundamentar a Ciencia. Descobri-Ias e coloca-las em ordem de forma a estabelecer outras verdades e 0 grande desafio, e, neste contexto, e 0 metodo que vai desempenhar relevante papel.

1.2. 0 artificio metodologico da duvida Utilizando-se do criterio de demonstrabilidade e iniciando pela revisao dos principios que apoiavam as suas antigas opinioes, Descartes vai percorrer 0 universo das coisas que podem ser pos­ tas em duvida com 0 objetivo de nele encontrar algo que the possa escapar como indubiUivel e certo. Somente depois de encontra-lo e que ira, raciocinando por ordem, partir para a busca da constru­ ~ao do edificio da Ciencia. Como nao poderia deixar de ser, e so­ bre as coisas que ja conhecemos que inicia, pois, 0 exercicio da duvida, Para estende-la e depois radicaliza-la, utiliza-se, no trajeto de depuraeso de suas creneas, de uma estrategia de argumentos e contra-argumentos profundamente analitica, a fim de que alternati­ va alguma deixe de ser considerada. Assim, tudo 0 que the pareca dubiUive1 sera descartado como falso. Para 0 exercicio dessa duvida universal, que comanda principalmente as tres primeiras Meditaeees, nio se faz necessario provar serem falsas todas suas amigas opinioes, mas suficiente, para rejeiUi-Ias, que elas sejam passiveis a Menor suspei~o de dil­ vida. Neste caso, 0 duvidoso sera colocado ao mesmo nivel do falso por uma decisao metodol6gica e nio logica, uma vez que, do ponto de vista estritamente logico, 0 falso s6 pode equivaler ao falso da mesma forma que 0 verdadeiro sO pode equivaler ao ver­ dadeiro. Essa estrategia empregada por Descartes constitui-se em uma aplica~ao do primeiro dos seus quatro preceitos metodol6gi­ cos, os quais sao minuciosamente observados ao longo das suas

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160 Medi~es

que nos oferecem, assim, urn rigoroso exemplo do exercicio do metodo, Recordemos, pois, esses preceitos: 10) Jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu nOo conhecesse evidentemente como tal, e de nada incluir em seus juizos que nao se apresentasse tdo clara e tOo distintamente a meu espirito que eu ndo tivesse nenhuma ocasiao depo-lo em duvida; 20) Dividir cada uma das dificuldades que eu em­ minasse em tantas parcelasquantaspossiveis e quantasne­ cessariasfossem para melhor resolve-las; Conduzir por ordem meus pensamentos, come­ fando pelos mais simples objetos e maisfaceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, comopor degraus, ate 0 conhe­ cimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os quenOo se precedem naturalmente unsaos outros; 4°) Fazerem todaparte enumerafiJes tdo completas e revisoes tdogeraisque eu tivessea certeza de nada omitir.

n

(Discurso do M6todo - 28 • parte).

Convem, pois, atentar para 0 fato de que tais principios, longe de se constituirem, para Descartes, em meros enunciados teoricos, convertem-se, efetivamente, na praxis de todo 0 seu pro­ cedimento metodologico. Assim procedendo, Descartes constroi inicialmente 0 ar­ gumento dos erros dos sentidos e 0 argumento do sonho. Pelo primeiro, sao atingidas as coisas que conhecemos atraves dos sen­ tidos, jA que nos apercebemos de que, algumas vezes, eles nos enganaram, e, assim, e prudencia 1100 se confiar em quem jti nos enganou alguma vez. (I Medita~ao, § 3°). No entanto, ha muitas coisas sensiveis que poderiam escapar a duvida que e laneada por este argumento: 000 aquelas que estao distantes de nos, mas as que nos sao proximas, como 0 nosso proprio corpo. Em contra­


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partida a esta Iimi~io, 0 argumento do sonho possibilitara que a dilvida seja estendida a todo conhecimento sensivel. Constata Descartes, ap6s examinar que, muitas vezes em sonho, nos enganamos ao imaginarmo-nos tal como em vigilia, que

niio hQ indicios concludentes nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidameme a vigiliado sono. (I Medi~io, § 5°). Este argumento estende a dilvida sobre as coisas sensiveis a respeito das quais aparentemente nio poderiamos nos enganar, a saber, aquelas que estio perto de n6s. Desta maneira, portanto, atingido 0 segundo grau da duvida, e, de tudo isso, decorre serem mais duoitaveis as coisas que conhecemos pelos sentidos. o argumento do sonho, todavia, possui as suas limita~oes:

e

it preciso pelo menos se confessar quif as coisas que nos slio re­ presentadas durante os sonhos slio como quadros e pimuras que niiopodem ser formados seniio asemelhanca de a/go real e ver­ dadeiro. (I Medi~io, § 6°). Esta passagem estabelece, pois, , 0 limite ao arbitrio da composieao: mesmo que urn pintor represen­ tasse coisas falsas, ou seja, que nio se adequam a objetos existen­ tes na natureza, pelo menos essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeca, maos e todo 0 resto do meu corpo niio slio imaginartas, mas verdadeiras e existentes. (I Medi~io, § 6°). Desta forma, a composicao e que efalsa por ser imaginaria, mas nio os seus componentes. E mesmo que a ima~o do pintor fosse de tal forma extravagante que representasse coisa "purameme ficticia e absolutamente falsa", ainda assim a cor seria verdadeira. ' Como se observa, em Ultima analise, haveria algo que nio seria puramente composieao e, por conseguinte, escaparia ao ar­ gumento do sonho. Todavia, 0 que estabelece essencialmente 0 limite a esse argumento 0 fato de que, mesmo que as coisas ge­ rais possam ser imaginarias, nio se pode duvidar da verdade das naturezas simples (figura, quantidade, espaeo, tempo) que sao objetos da matematica e da geometria, pois "quer estejamos dor­

e

,t


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mindoau acordados, dois mais tresjazem sempre cinco" (I Moo. § 8). Percebe-se que Descartes, ao percorrer 0 universe das coi­ sas sobre as quais se pode lancar duvida, faz usa da estrategia de partir do complexo para 0 simples, para depois subir do simples ao complexo. Desta forma, partiu do estado complexo para urn me­ nos complexo (meu corpo), dai para as coisas gerais e destas para as naturezas simples. Vemos, assim, que 0 Fi16sofo estabeleceu, de forma mais ou menos implicita, uma classifica~io das ideias, divi­ dindo-as em compostas e simples. Nas compostas, se incluem as adventicias (que vem de fora) e as ficticias (imaginaries); nas sim­ ples, se incluem as sensiveis (como a cor) e as intelectuais (da in­ teligSncia). Isto posto, constata-se, portanto, que ji a estas alturas, as ideias compostas sic mais passiveis de duvida: as adventicias pelo argumerito dos erros dos sentidos e as imaginarias pelo argumento do sonho que, por sua vez, tambem atinge uma outra parte das ldeias adventicias. Quanto as ideias de natureza simples que, a partir de agora, Descartes vai tomar como ponto de partida, mo se tomaram ainda passiveis do mesmo tratamento. Em fun~io disto, Descartes afirma nRO concluir mal, talvez, se disser que as ciencias que dependem "da considerafao das coisas compostas" (a fisica, a astronomia e a medicina entre outras) "sao muito duvidosas e incertas" (I Moo. § 8) mas que as ciencias que tratam de coisas muito simples e muito gerais (a matematica e a geometria entre etas) possuem "a/go de certoe indubitdvel". o texto sugere, pois, que as naturezas simples sao verda­ deiras e que as ideias compostas podem ser verdadeiras ou falsas. Hi de se notar, todavia, que houve uma mudanca de registro quanta ao criterio de verdade que vinha sendo empregado ate en­ tio. Tinha-se anteriormente 0 criterio da adequacao, ou corres­ pondencia da ideias ao objeto. A partir de agora, 0 criterio de verdade para as coisas simples e muito gerais e 0 da verdade in­


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trinseca, ou seja, que elas tratam de coisas simples sem a preocu­ pa~io de existirem ou Dio na natureza. Nio se trata mais da ver­ dade exterior, mas a verdade em si mesma: do plano do existente se passou para 0 plano do possivel. Pois, como exemplo disso, urn quadrado tern quatro lados e a soma dos ingulos de urn triingulo e 1800 , quer existam ou Dio quadrados e triangulos na natureza. Da mesma forma, haja ou nio 'corpo' a sua ideias de extensio esern­ pre verdadeira, por ser intrinseca as naturezas simples. Os argu­ mentos anteriormente utilizados operaram contra as coisas sensiveis, razio por que se tomou impossivel a dubi~io corn rel~io as naturezas simples. Descartes parte agora, por meio dos dois Ultimos argumentos (do Deus Enganador e do Genio Malig­ no) do para a instala~io da duvida sobre os sentidos, mas sobre a intel~o enquanto tal. Atraves .desses argurnentos, instala-se a duvida metafisica, ja que anteriormente tratava-se apenas de uma duvida natural. '; No argumento do Deus Enganador, 0 objeto da duvida sio as coisas gerais e as naturezas simples, sendo, todavia, 0 objeto especifico as verdades matemilticas. Ao nivel da possibilidade: a) admite urn Deus todo poderoso; b) ern sendo poderoso, pode permitir que MO existam nem naturezas simples nem coisas gerais, mas que tenhamos 0 sentimento delas apesar de do existirem; c) e, se os outros se enganam, as vezes, ate nas coisas que julgam saber com maior certeza, Deus pode ter querido que nos engane­ mos todas as vezes que fazernos a adi~o de dois mais tres, A $9­ berana bondade de Deus vern surgir como obj~io a £ e, desta fonna, pode ser que Ele MO tenha a inten~ de me enganar. Ern obj~o a esta obj~o, conclui 0 paragrafo nona afirmando: "todavia se repugnasse sua bondade fazer-me de tal modo que

a

eu me enganasse sempre, pareceria tambem ser-lhe comrdrio que eu me enganasse algumas vezes e, no entanto, niio posso duvidar queEle mopermita. "


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Convenhamos, entretanto, que essa suposi~ao do Deus En­ ganador possui valor apenas metodologico, pois, nenhuma certeza adviria como certeza. objetiva, nao fosse provada, como veremos adiante, a existencia de Deus e que ele nio enganador. Prosseguindo, Descartes faz ver que mesmo uma obje~ a existeacia de urn Deus poderoso e enganador nao invalida a pos­ sibilidade de que eu me engane sempre, pois mesmo assim, qual­ quer que seja 0 autor a quem atribuirem a minha origem, quanto menos poderoso ele for tanto mais razao ha para que eu seja im­ perfeito e, conseqiientemente, me engane sempre. Em forea disso, prossegue Descartes, "sou obrigado a confessar que, de todas as opinioes que recebi outrora em minha . crenca como verdadeiras, nao hil nenhuma da qual nOo possa duvidar". (I Moo. § 10). E, no paragrafo seguinte, nos alerta de que, apesar disso, ""ao basta ter feito tais consideracoes, epreci­

e

so lembrar-me delas; pois essasantigas opinioes me voltam ami­ "de ao pensamemo". ~ Considere-se agora, a partir do texto, que a limi~o posta nio mais atinge 0 objeto do conhecimento, vez que nada mais resta para ser considerado, e, portanto, nao se trata de limita~ao a qualquer dos argumentos anteriores, mas 0 proprio sujeito que duvida. E em rela~o a 'mim', 0 sujeito do conhecimento, que se estende, pois, 0 ato de duvidar. Assim, 0 processo dubitativo vai ser levado as ultimas consequencias. E pela hipotese do genic maligno que Descartes vai radica­ lizar a duvida: Poderia existir urn genic maligno todo poderoso que se empenhasse em enganar-me, pondo-me na mente, pensa­ mentos de uma clareza e simplicidade e de uma evidencia indubita­ vel, mas, nio obstante isto, falsos. Desta forma, enganar-nos­ iamos em todos os juizos, inclusive naqueles que parecem estar fora de toda suspeita, como as verdades matematicas, Este Ultimo argumento, embora nio possuindo objeto especifico, ou seja, algo particular sobre 0 qual ainda nao se tenha exercido a duvida, pode


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abarcar todos os objetos de reflexao dos demais, pois atinge 0 'eu', sujeito da dilvida. Alem do mais, embora esgotada comple­ tamente pelos argumentos anterlores, a serie de dubita~es, 0 que e duvidoso pelo metodo, passa a ser considerado definitivamente como fa1so . - E a radicalizacao da duvida: A duvida hiperb6lica.

1.3. A evidencia do cogito: a primeira certeza Uma vez exercida a duvida met6dica e radical, pretende Descartes seguir a mesma via, (a de considerar como falso tudo quelhe seja duvidoso), ate "ter encontrado a/go de certo ou, pelo

menos, se outra coisa niio for possive/, ate que tenha aprendido certamente quenao ha nada no mundo de certo". (IT Moo. § 1).

Estabelecendo uma recapitulacao de todas as coisas de cuja inexistencia estava persuadido, considera, entretanto, que nao 0 esta de que nao exista, , o ponto de partida para isso e a reflexio: "eu pe/o menos serei a/guma coisa", que vai ser submetida aos mesmos movimen­ tos da dilvida: Nio posso ser alguma coisa porque neguei que ti­ vesse sentidos ou qualquer corpo. Esse movimento e superado pelo fato de, indagando, aventar a possibilidade de poder existir independentemente dos sentidos, ou do corpo. Passa entio a sub­ mete-la a outro movimento em que se persuadira de que nada existe no mundo. E se interroga se tambem nao se persuadira de que nio existia. - A este ponto comeca a se esbocar 0 cogito ',.., :

"certameme niio, eu existia semdUvido, se eque mepersuadi, ou, apenas pensei a/guma coisa". (IT Moo. § 4). Vencido mais esse momento, e ao ser submetida ao Ultimo recurso dubitativo do Ge­ nio Maligno, que essa assertiva mais se fortifica, exatamente por ser essa hip6tese a radicalizadora da duvida, "Nao ha, pois, dUvi­

do a/guma que eu sou se ele me engana; e por mais que ele me engane, niiopoderajamaisfazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar nela". (IT Moo. § 4).


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Superados, pois, todos os movimentos da duvida, conclui Descartes a primeira certeza: "apos (...) ter examinado todas es­ sas coisas, cumpre, enfim, concluir e ter por constame que esta proposi¢o 'eu sou, eu existo' e necessariamente verdadeira to­ das as vezes que a anuncio ou que a concebo em meu espirito ". (llMed. § 4) Esta primeira certeza, no entanto, ainda esta sujeita a limi­ ta~o de Ilio ser valida para todo e qualquer tempo, senio enquan­

tofor pensada ou proferida. A este ponto, reputamos de grande importincia uma refle­ DO sobre os fundamentos que garantem a certeza do 'cogito', ou seja, as rames pelasquais se excetua a toda dilvida. o pressuposto da duvida e a separ~o sujeito/objeto que se fez presente no exercicio de todos os seus movimentos. Em sendo assim, h8. uma dicotomia em que de urn lado, se situam as verdades existenciais, ou seja, as verdades que estio fora do 'ell' e, de outro lado, 0 proprio "eu' sujeito da dilvida. Considerando­ se, no entanto, que 810 as primeiras que constituem a esfera que a dUvida concebe, e que se dA mais a separacao sujeito/objeto da dilvida, e de se concluir que 0 leu' substincia pensante, fica exclu­ Ido dessa estrutura, graeas a identidade existente, aqui, entre sujei­ to e objeto da dilvida (0 eu pensante). Ademais, parte do sujeito a decisio de duvidar, e 0 que se poe em duvida e sempreurn conte­ udo, ao passo que 0 puro pensar e conteudo de si mesmo. E esta coincidencia exatamente 0 que torna 0 "cogito" - verdade subjeti­ va - parametro para ocriterio de ideia clara e distinta. Desta for­ ma, Ilio s6 0 cogito, mas todas as verdades claras e distintas passam a ser admitidas como verdadeiras, desde que 010 situadas fora do ambito do pensamento. 0 cogito, sendo a evidencia pri­ meira, se toma, como criterio, que fomece, das ideias claras e dis­ tintas, naquilo que garante, ja, a possibilidade de fundar as cieocias.


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1.4. A existencia de Deus e suas conseqiiencias Nao pudesse a filosofia cartesiana romper os limites de verdade puramente subjetiva do 'eu existo e meus pensamentos', fosse talvez embalde a fundamentalidade da certeza conquistada pelo cogito. . Ora, a verdade das ideias claras e distintas possui a sua ga­ rantia no proprio pensamento, mas somente a descoberta de uma ideia clarae distinta que se garanta a si mesma fora do pensamento eque podera garantir tambem a verdade objetiva da exist&cia do objeto pensado. Descartes considera haver urn pensamento e urn unico, que, distinguindo-se das demais ideias clarase distintas, possui, em si mesmo, umaexistencia objetiva. E aideia de Deus. De tal forma 6 esse pensamento que nele n80 apenas encontramos 0 pensar em urn ser de cuja existencia nada sabemos, mas uma tal dimensao em si mesmo e de caraeteres tais que, segundo os quais, Deus alem de ser objeto de meus pensamentos, existerealmente fora de mim. Provar a existencia de Deus, de urn Deus veraz,'assume, pois, uma importancia fundamental para garantir a verdade objeti­ va e, consequentemente, a objetividade da ciencia, As nossas ideias sao como que "imagens das coisas". Entre elas, ha umas mais ricas em conteudo que outras. Ora, nos eensi­ nado pela "luz natural", ou seja, a evidencia das ideias c1aras e distintas revelada pelo cogito, que deve haver pelo menos tanta realidade na causa quanto no efeito. Dai, se essa ideias de perfei­ ~io 6 0 proprio infinito, ou seja, se contem ja, em si, 0 mUimo absoluto, entio e1a Dio pode ter provindo de nos, mas de algo que contenha pelo menos tanta realidade quanta esta ideias, Dai, ela s6 pode ter provindo do proprio maximo absoluto que cbamamos de Deus. Este 6 urn rapido esboco da prova cartesiana da existencia de Deus pelos efeitos.


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Dutravia seguida por Descartes para perseguir este mesmo objetivo e a analise da origem de "minha existencia". Analisa ele as viuias altemativas que possam encerrar a origem do meu ser, mas mesmo admitida a hip6tese de ter sempre existido, nio pode ser negada, ainda assim, a cria~o. Gracas ao argumento da desconti­ nuidade do tempo, e que se toma possivel mais esta prova: "a : Todo 0 tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes,' b - cada uma dessas partes nlio depende de maneira alguma das outras; c - e assim, do fato de ter sido um pouco an­ tes, nlio se segue que eu deva ser atualmente, a nlio ser que neste momento alguma causa me produza e me erie por assim dizer, novamente, isto e, me conserve ". Desta forma fica estabe1ecida a equacao, cujos termos slo conserv~ e cri~o, jli que ambas sao, em tudo, dependentes de uma mesma causa. Por outro lado, "a minha origem" nio pode ter sido de' mim mesmo. Se assim fosse, nio teria eu me negado as perfeicoes que conheco. Necessario se faz, pois, que tenha sido de urn ser perfeito, que, em sendo perfeito, Ilio pode ser enganador, jli que 0 engano e uma forma de carencia e, por conseguinte, in­ compativel coma ideia de perfei~ao. Deste modo, a objetividade das nossas ideias fica estabe1e­ cida, e tambem, de forma aparente, a constante certeza de seu conteudo. Descartes busca agora, numa inversao da abordagem do problema metafisico, explicar a possibilidade do erro. Tal inverslo se dlipelofato de que 0 erro Ilio vem a ser, em absoluto, algo real e dependente de Deus. Trata-se de uma carencia em mim, no sen­ tido de que, sendo a minha vontade, isto e, poder de julgar, livre e infinita, ocorre que eu me engane quando aplico a coisas que estio alem do meu entendimento. Em contraste com uma infinita perfei­ ~Io, 0 erro tem 0 nada como principio metafisico e a liberdade, que esta em mim, como principio psicologico. 0 fato de 0 erro ter o nio-ser como principio metafisico, isenta, por assim dizer, Deus


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da carencia que me e propria. Deste modo, sao ex:plicadas as mi­ nhas razOes de lancar duvida e, passo a passo, vio sendo elas su­ peradas: mudan~a de estrategia para fundamentar as ciencias. Afasta-se a duvide metafisica representada pelo Genio Ma­ ligno e, consequentemente a duvida hiperbolica com respeito as essencias matematicas, pelo criterio das ideias cIaras .e distintas. Da certeza da verdade objetiva dessas essencias, e possive1 extrair a terceiraprova de que Deus Existe. A estas alturas, falta a clari.fica~ao do aspecto da duvida hi­ perbolica, no que conceme as coisas materiais, originada pela confusio dos erros dos sentidos. Este aspecto se torna por demais relevante por ser indispensavel para uma ciencia da natureza cor­ porea bem fundamentada. Sem isto, tais ciencias nio poderiam ultrapassar 0 campo das demonstracoes geometricas que nio con­ sideram a existencia das coisascorporeas, Podemos estar seguros da distin~ao entre corpo e alma, isto e, aquilo que pensa, ja que nos e dado compreender essa sepa­ ra~o de forma clara e distinta, como podemos, da mesma forma, compreender 0 poder de Deus de separarambos. Ora, nos e dada por Deus a ideias de corpos existentes, atraves dos sentimentos que se constituem, em nos, numa certa faculdade que possibilita 0 conhecimento das coisas sensiveis. Nisto Ele nio nos poderiaenganar, salvo se por Ele nos fosse dada tambem a faculdade que tornasse possive1 0 conhecimento dessas ideias em sua causa verdadeira e eminente. Todavia, somos incli­ nados por Deus a crer que tais ideias sao oriundas das coisas cor­ poreas. Em assim sendo, torna-se necessario reconhecer que etas existem. Somente a naturezageometrica dessas coisas corporeas e0 que pode ser observado e captado como algo de claro e distinto, ao tempo em que das suas qualidades temos apenas a ideiaconfusa que nos e fomecida atraves dos sentidos. 0 sentimento, tal como definido por Descartes, possibilita uma experiencia reve1adora de

j


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que a nossa alma, ainda que distinta do corpo, confunde-se e mis­ tura-se intimamente com ele. Emboraseja incompreensivel a nosso entendimento a uniio alma/corpo, nio pode ser, de forma alguma, ate pelo fato de pare­ cer possive!, uma limi~io Ii infinitude de Deus, ja que Ele e todo poderoso a nio ser nas coisas contraries a sua essencia. Disso, decorre que a nossa natureza e que e incompreensivel a medida que somos composicao de alma e corpo. No entanto, encerra-se, nanossa natureza, 0 que a faz subsistir. A perfei~o que the e con­ veniente foi provida por Deus, e esta perfei~io e que nos faz cor­ rigir, atraves do entendimento, os erros inevitaveis que nos advem dos sentidos ao captar falsas aparencias das realidades. Estabe1ecido, assim, 0 reconhecimento de que a nossa na­ tureza e debit e imperfeita, e desde que rejeitemos, atraves do en­ tendimento, os erros a que estamos sujeitos, conquistaremos a possibilldade de uma ciencia certa. Desta forma, 0 erro de sofisticar a razio pelos sentimentos e 0 de sofisticar a natureza pela razio, foram ambos afastados su­ cessivamente por Descartes: 0 primeiro, desmascarado atraves das tres prlmeiras Medita~oes, e 0 segundo, refutado atraves das tres ultimas,

2. Considera~oes sobre a concep~ao cartesiana de ciencia Em toda a primeira parte, foi nossa preocupaeao constante ressaltar a aspecto da busca dos fundamentos da ciencia que se encerram na metafisica. Ressaltou-se, ai, a rota analitica na perse­ gui~io desse intento. Destacou-se igualmente a fundamenta~o geral da possibilidade do conhecimento certo e objetivo, 0 trajeto sintetico, Em suma, foi considerada a estrategia analitico-sintetica com que Descartes, raciocinando por ordem, descobre e estabelece os fundamentos da Ciencie em geral.


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Nesta segunda parte, 0 objetivo principal e procurar ex­ plicitarar, tendo como referencial principalmente 0 processo sinte­ tico, os fundamentos metafisicos da Ciencia que possibilitam cada ramo da Ciencia em particular. Essa visio se toma importante para as consideracoes que serio feitas na Ultima parte sobre a vi­ sao cartesiana da ciencia: a concepcao de cieacia unitaria e enci­ clopedica e em que 0 metoda exerce relevante papel.

2.1. Explicita~o dos fundamentos metafisicos da . esencsa

...

E na V Meditayio, depois de se apoiarna conclusio da 3& , que Descartes estabelece 0 fundamento da Matematica: "E con­ quanta niio 0 tivesse demonstrado, todavia a natureza do meu espinto e tal que niio me poderia impedir de julga-Ios verdadei­ ros, enquanto os concebo clara e distimamente. E me recordo de que, mesmo quando estava ainda fortememe ligados aos objetos dos sentidos, tivera, entre as mais constantes verdades, aquelas que eu concebia clara e distintameme, no que diz respeito as fl­ guras, aos numeros e as outras coisas quepertencem aaritmetica e ageometrta". (V Moo. § 6). Pela prova da distin~ da alma e do corpo, como tambem pela prova da existencla do corpo, Descartes fundamenta os prin­ cipios da rlSica e de uma parte da Mediana; pela prova da uniio entre alma e corpo, os principios da Teoriadas Paixoes, ou seja.a psicologia, bem comouma outra parte da medicina e uma parte da moral. E neste ponto, que Descartes determina 0 metodo para depurare conduzir bem os sentidos. Os fundamentos da ciencia fisica sio estabelecidos por Descartes sob dois pontos de vista: Primeiramente, ao considera-la como ciencia essencialmente geometrica e matematica, fundamen­ tando-a, entio, pela distin~io real entre a substincia do corpo e a substincia da alma, onde concebe nio haver, no corpo existente,


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nadamais que nio seja puro entendimento geometrico; Em segui­ da, fundamenta-a como ciencia distinta da geometria especulativa, especificando-lhe um objeto diferente dos objetos matematicos, a saber, nio mais as rel~oes necessaries entre as coisas extensas possiveis, mas as relacces necessarias entre as coisas extensas existentes. Se a percep~io nio tivesse nenhum valor objetivo, se nio fosse revista completamente a existencia dos corpos, a distin­ ~!o entre a geometria e a fisica seria, por si mesma, semvalor ob­ jetivoe se tornaria, por assim dizer, ilus6ria. Reconhecendo aos sentidos um valorobjetivo em rela~!o a existencia das coisas materiais, a VI Medi~!o, ao mesmo tempo em que determina, justifica tambem a intervencao da experiencia na fisica, como instrumento para determinar e isolar, entre uma infinidade de objetos geometricos possiveis, aqueles que estao realmente enquadrados dentro do universo das coisas realmente existentes.

2.2. A unidade da ciencia e aspectos do metodo cien­ tffico em Descartes A concepcao cartesiana de uma ciencia unica e universal pode bem ser compreendida pela celebre figura da arvore do co­ nhecimento, em cujas raizes se encontra a metafisica, em cujo tronco, a fisica e cujos ramos silo as varias ciencias que dela deri­ vam, a saber, sobretudo, a medicina, a mecanica e a moral. m de se constatar, nessa imagem, a ausencia de uma figu­ ra~iio da matematica. Na realidade, 0 que ocorre e que 0 estatuto desta ciencia assume uma posi~iio singular no confronto com as demais ciencias, Consideremos, pois, que a matematica - tiio enal­ tecida por Descartes - niio se encontra ao nivel da metafisica, que e o fundamento da ciencia e the fomece os principios, nem tampou­ co ao nivel das outras ciencias. Em sendo ciencia da extensiio, 0 conhecimento das coisas sensiveis fica por ela condicionado, e,


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desta forma, poder-se-ia dizer que talvez fosse meIhor enquadra-la dentro da ci&cia fisica. A matematica, porem, tomando como objeto aquilo que existe de mais simples nas coisas e 0 que nelas hi de mais imediatamente acessivel as ideias claras e distintas, tern a fun~o de exercer, no sistema da ciencia cartesiana, 0 papel de modelo de dedu~o rigorosa, que e, pois, 0 exercicio imediato do

metodo.

E atraves deste metodo que se tornara possivel, depois de "encomrar as pnmeiras causas e os verdadeiros principios" de­ duzir deles "as rasbes de tudo aquila que se e capaz de saber"

(principes - preficio). Nesse sentido, Descartes e ainda urn classi­ co na concepcao de ciencia, pois para os classicos, somente com isto e que se pode ter ciencia, Todavia, para se chegar a estes principios - aspecto ausente na filosofia aristotelica - nio se faz suficiente a utj1jza~ pura e simples da dedu~io, pois esta apenas explicita verdades basicas assim ja consideradas nas premissas, mas a utiliza~o do metodo de intui~io. A dedu~o, sim, mas sO depois de fundamentados os principios a partir dos quais extraira as outras info~es. Como vemos, 0 metodo cartesiano explora, pois, a intui~o e a dedu~:

"t necessario comecar pela pesquisa destas primeiras causas,

isto e, dosprincipios; e que estesprincipios devem ter duos con­ difOeS: a primeira eque eles sejam tlioclarose tao evidentes que o espirito humano 000 possa duvidar de sua verdade, quando ele se aplique a considera-los com aten¢o; a segunda e que sefa deles que dependa 0 conhecimento das outras coisas, de sorteque eles possam ser conhecidos sem elas; mas nao reciprocamente, elas sem eles", (principes - Prefacio). Quanto ao conteudo, ha a exigencia de que para ser perfei­ to, 0 metoda deve ensinar duas coisas: 1 - Que eosine a discernir, ou seja, nio supor verdadeiro 0 que seja falso; e 2 - Que ensine a fazer dedu~io. A rigor, nio se trata de uma inven~ cartesiana, pois Descartes ja encontra dois produtos resultantes da apli~io


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desse metodo, ou seja, a algebra e a geometria, deduzidas da anaIi­ se dos antigos (metodo da matematica classica). E desta forma que a matematica vai se relacionar intima­ mente no sistema cartesiano, como fonte do metodo: H8, portanto, uma outra ciencia, raiz de todas as outras e a que ele chama de matematica universal, isto e, que vai ser a fonte de como fazer a producso de todasas outras ciencias, Assim, para se chegar aos principios, e requerida a analise do que ocorre com as outras matematicas, ou seja, em que elas se furidamentam. Para isso, Descartes observa os elementos presentes em todas elas: ordem e medida. 0 essencial dessa matematica sem aplic~o exclusiva ou peculiar, mas aplicavel a qualquer ciencia, institui urn metodo universal desvinculado de algum tema particu­ lar de conhecimento. Por outro lado, as outras ciencias via ser matematicas, na medida em que incluam ordem e medida. A or­ dem constitui-se na sequencia de verdade que deve ser mantida. Hi de se considerar, no entanto para uma melhor compreensio da filosofia cartesiana, que, com efeito, hi em Descartes duas ordens que sao opostas: a) a ordem da amilise que e a ordem para des­ cobrir principios, ou seia; a ordem da inven~ e portanto a "ratio Cognoscendi" que se detennina de conformidade com as exigenci­ de nossa certeza; b) a ordem sintetica - que e ao contrario, aquilo que se institui entre os resultados da ciencia. E portanto a ordem da "ratio essendi", segundo a qual, as coisas se dispoes em si, quanto sua dependencia real. Para melhor ficar aqui clarifica­ do esse pensamento, podemos ilustrar dizendo que 0 cogito e a primeira verdade pela ordem da analise, mas pela ordem de sintese a existencia de Deus e 0 primeiro principio, como causa primeira de todas as realidades. Ainda em rela~o a ordem, 0 principal segredo e que as coisas podem ser classificadas em series independentes do ser. Essa concepcao cartesiana vai de encontro aos moldes classicos aristotelicos, em que as ciencias via ser vincu1adas a cada genero,

as

a


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sem a passagem em ciencia de urn para outro. Desta forma, segun­ do a concep~ classica, do h8. urn principio da matematica que se deduza da fisica. Para Descartes, ao contrario, a ordem vai ser independente do ser, ou seja, nio serio ciencias estanques, mas interligadas entre si. Isto detenninado pelo racionalismo e unida­ de enciclopedica da ciencia. Descartes concebe que e pela "fecunda~o" de uma cien­ cia por outra, que se possibilitam as descobertas. Clarifiquemos esta ideia, atraves de urn apanhado das cien­ cias cu1tivadaspor Descartes, dividindo-as em dois grupos:

e

1. as ci~ncias ja bastante desenvolvidas, por ter sido esta li­ g~io imediatamente fecunda, como e 0 caso da geometria e cia 8lgebra de cuja uniio surgiu a geometria analitica e da geometria analitica e da fisica, de cuja uniao surge a dinimica, ou ao menos 0 seu primeiro esboco sobre a lei da conservacao da energia; 2. as ciencias menos desenvolvidas, embora as li~es, nesse campo tivessem sido menos fecundas ao menos de imediato. Exemplo disso ea psicologia.

Ha de se atentar tambem que, nesse campo das ciSncias cu1tivadas por Descartes, do se ateve ele pura e simplesmente a . metodo te6rico. Em suas "Regles", Il, adianta que "nao se pode chegar ao conhecimento que nlio por duas vias: g experiencia ~ g deduflio ". Isto nos demonstra que Descartes, no dominio da ciencia, nio se utilizou exclusivamente da dedu~io sem se referir experi­ ~ncia, ja que nesse campo, prima pela "unidade do teoria { do

a

pratice/'.

m de se convir, igualmente, a estreita li~ que Descarte

estabelece entre ciencia e tecaiea, negada por certas tendencias voltadas para uma ciencia desinteressada. A ciSncia eartesiana, ao contrario, liga-se ao aspecto de sua aplic~io para 0 bem estar do homem. E no prefacio dos seus "Principios" que afinna: "Enfim


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este estudo e mais necessario para regrar os nossos costumes e condusir-nos nesta vida do que 0 usa dos nossosolhospara guiar os nossospassos". A ciencia para Descartes vai ser a sabedoria humana que permanece em diferentes objetos de estudo - E a sabedoria univer­ sal, da qual a Filosofia e 0 estudo. A no~iio de ciencia em Descar­ tes, era 0 de ciSncia una, ou filosofia, cujo metodo fosse, ao mesmo tempo, de descoberta e de prova. Esse ideal de metodo que predominou ate 0 seculo XVII e ate mesmo no seculo XVIII se'viu esfacelado a partir do seculo XIX, em particular, a partir do Positivismo Logico, quando cada ciencia foi procurando a sua propria racionalidade, e os conceitos foram cada vez mais se es­ pecializando e se independentizando em seu contexto particular. Numa circunstincia destas, evidentemente, 0 ideal de uma ciencia universal, de urn metodo que nio fosse apenas de provas irrefuta­ veis ou' que recorresse a qualquer conceito que transpirasse algo ­ de metafisico, evidentemente que Ilio poderia ter vez. A importincia da metodologia eartesiana se reafirma, em especial, a partir do momento em que, nas cieneias da cogni~iio, 0 aspecto heuristico dos procedimentos metodologicos passa a ser considerado como e1ementp racionalmente reconstrutivel do pro­ cesso para a compreensio dos mecanismos articuladores da mente humana. Na filosofia da mente, na inteligencia artificial, nas teorias computacionais, em todos esses ramos, e inegavel a importincia dos principios da metodologia analitica.

• Este artigo nasceu da nossa interve~o na Mesa Redonda sobre 0 Problema da Verdade em Descartes (IV Semana de Filosofia - UFRN, 1996) e se ba­ seia largamente no trabalho originariamente apresentado no mestrado de L6gica e Filosofia da Ci8ncia, ao Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (UNlCAMP, dezembro de 1977).


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1 DAVIS, Philip J. & HERSH, Reuben. 0 SOMO de Descartes. Tract. Mario C. Moura. Rio de Janeiro: Francisco Alves ., 1988. 2 DESCARTES, Rene. Regras para a direfao do espirito. Lis­ boa: Estampa, 1971. 3 . Principios da filosofia. Trad. Alberto Ferreira. Lisboa: Guimaries, 1984. 4 . Oeuvres scientifiques ( extails par Marc Sproa­ no). Paris: Larousse, 1956. 5 . Obra escolhida. Sao Paulo: Difel (Classicos Gamier), 1973 ' 6 . Discurso do metoda. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior.Coleeao Os Pensadores , Sao Paulo: ­ Abril, 1973. 7 . MeditafOes. Trad. 1. Guinsburg e Bento Prado JUnior. Col~ilo Os Pensadores, Silo Paulo: Abril, 1973. 8 GOUHIEN et al. Descartes. Paris: Les Editivas de Minute, 1957. 9 GuEROULT, Martial. Descartes seion l'ordre des raisons. Paris: Aubier / Editions Montaigne, 1953. 10 HEMILTON, Octave. EI sistema de Descartes. Buenos Ai­ res: Losada, 1949 , 11 KOYRE, Alexandre. Consideracoes sobre Descartes. Trad. Helder Godino. Lisboa: Presenca, 1963. 12 LAKATOS, I. Historia de la ciencia y sus reconstrucciones racionales. Traducido por Diego Ribas Nicolas. Madrid: Tecnos, 1974. 13 RONAN, Colin A. Historia ilustrada do ciencia (4 vol ), vol. m. Trad. Jorge Eneas Fortes. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.


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SCHOPENHAUER, FILOSOFO DOABSURDO (Schopenhauer, philosophe de I'absurde) publicado em co-edicao por Quadrigel Presses Universitaires de France, 1994 (2 a • Edi~io) Traduzido por : Maria Marta Guerra Husseim, Departamento de Filosofia da UFRN T~~ da e. parte do livro de ROSSET, Clement

o objetivo destes dois ensaios e 0 de propor uma releitura de Schopenhauer a luz das duas maiores caracteristicas da sua filoso­ fia: de um lado, sua abordagem da filosofia geneal6gica (Marx, Nietzsche e Freud), e do outro lado a intui~io do absurdo, que assegura a filosofia de Schopenhauer sua profunda unidade (seu "pensamento unico"). Tratar-se-a portanto de encontrar na teoria da vontade os elementos de uma ruptura definitiva com uma de­ terminada filosofia classica, e 0 verdadeiro ponto de partida de uma vasta reviravolta filos6fica da qual 0 marxismo, 0 nietzschia­ nismo e a psicanalise representam, no presente, os principais resul­ tados; e de demonstrar alem disso que os pr6prios termos desta teoria conduzem Schopenhauer, nio a uma filosofia geneal6gica, mas a uma filosofia do absurdo da qual encontramos numerosos ecos na literatura e no pensamento contemporineos. Estes dois temas, que representam uma contribuicao es­ sencial a hist6ria das ideias, sio suficientes para fazerem de Scho-

I Prine. I Natal I Ano 3 I D.4 I p. 178-211 I jan.ldez.1996


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penhauer um pensador de primeira linha. 0 descredito considers­ vel no qual caiu sua filosofia parece ter tido oiigem principalmente no manifesto esquecimento dessas caracteristicas maiores, que se acompanha, em quase todos os estudos schopenhauerianos, do evidenciamento exclusivo das caracteristicas secundarias; pessi­ mismo, idealismo estetico, moral da piedade e da remmcia. No caso de Schopenhauer, essa indigencia coloca um problema parti­ cular. E digno de nota que a intluencia cada vez mais consideravel dos fil6sofos genea16gicos, bem como 0 interesse manifesto con­ temporaneamente pelas expressoes literarias e esteticas do absur­ do, ·do tenham provocado uma renovacao do interesse pela sua obra. Sabemos com que amargura ele se surpreendia constante­ mente, ap6s a publica~o do Mundo como vomade e representa­ fao, de que a filosofia continuasse sell caminho habitual como se ele nada tivesse escrito. Nos nossos dias, essa amargura seria ainda mais cruel pela visio da filosofia trllhando os caminhos por ele .tracados, sem qualquer referencia a seu nome. Esta situa~io para­ doxal, feita sob medida para levar aos extremos a vaidade ferida de Schopenhauer, pede alguns esclarecimentos. Na origem desta ingratidio podemos invocar, numa primei­ ra analise, algumas razoes superficiais que t@m contudo sua impor­ tancia. Muito da incompreensio e do desprezo provem do simples desconhecimento do autor. A imagem usual legada por uma certa tradicao, saida principalmente de uma popularidade equivoca que beneficiou Schopenhauer h8. uns SO anos atras, representa hoje urn pano de fundo que mascara sua obra e a apresenta sob urn pre­ conceito desfavoravel, Basta consultar os numerosos estudos sobre Schopenhauer surgidos entre os anos de 1890 e 1910, para perceber a que ponto a @nfase era invariavelmente conduzida para os aspectos mais detrataveis de sua filosofia, bem como sobre os aspectos equivocados da sua personalidade; os quais ate agrada­ ram durante urn certo tempo, mas parecem hoje dos mais suspei­ tos: somente interessava 0 morallsta de salio, 0 homem dos mil

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sarcasmos, asceta e generoso em seus livros, egoista e gozador na vida particular; homem bizarro e caprichoso, vaidoso ate a lou­ curs, de humor sombrio e moroso. Sao estes os breves traces do her6i romAntico, especie de Rene alemao, que terla tirado das suas crises de tedio suas teorias filosoficas disfareadas em poemas. Esta imagem pennaneceu suficientemente forte para que hoje urn serio historiador da filosofia tenha colocado a seguinte questio: a vida cotidiana de Schopenbauer estaria de acordo com a sua moral?' (qUERLOT). Para explicar semelhantes desprezos, teremos ocasiao de invocar tambem algumas razees mais profundas relacionadas com a si~o de "bastardo" ocupada por Schopenhauer na hist6ria da filosofia. A sua melhor origina1idade encontra-se muitas vezes en­ cerrada na epiderme de urna filosofia "p6s-kantiana" e afogada em analises pseudo-classicas que fazem 0 merito dos historiadores da filosofia. Como demonstrou recentemente Gardiner (P. GARDINER, Artur Schopenhauer, Penguin Books, 1963), ele foi ao mesmo tempo urn mal sucedido continuador de Kant, e urn mal sucedido inovador no terreno da psicologia: a apari~ao de temas revolucionarios nem sempre encontra nele sua expressao mais ri­ gorosa. Muitos dos erros .e incoerencias observadas podem ser postos na conta deste "insucesso" que trai a urn sa tempo a ex­ pressao kantiana e a expressao geneal6gica. Nosso proposito aqui sera portanto 0 de dar creditos a Schopenhauer. Para fazer justica a sua filosofia e medir a impor­ tincia da sua contribuicao, certamente teremos de esquecer alguns aspectos. Por tras de urn moralismo de fachada, de uma estetica de inspira~o suspeita e de um pessimismo fora de moda, encontram­ se os elementos essenciais de uma conversdo que esm na origem de todo urn futuro filos6fico. Continua verdadeiro que depois de Schopenhauer alguma coisa rompeu-se em definitivo no seio da filosofia ocidenta1; que ele, quer queiramos ou nao, permanece urn precursor muito mais revolucionario do que 0 que costumamos


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reconhecer, e ate mais do que ele pr6prio pensava. Sem. duvida, Schopenhauer nio foi nem Freud, nern Marx nem Nietzsche; en­ tretanto seu pensamento contem em potencia um sem nUmero dos temas freudianos, rnarxistas e nietzschianos. Portanto, ao inves de rejeita-lo desdenhosamente como e de bom tom nos meiosfilos6fi­ cos contemporaneos, n6s nos dedicarernos a destacar Sua origina­ lidade; tentando mostrar como e porque a ruptura que ele audaciosamente introduziu na filosofia nao foi completada por ele pr6prio, mas somente e timidamente comecada.

As ci~oes de Schopenhauer sao extrafdas dos livros mencionados

pelas seguintes 8brevia~oes:

1. De la quadruple racine du principe de raison suffisame, trad. J. A CANTACUzENE, Paris: Germer Bailliere, 1882 2. Le mantle comme volome et comme representation, tradu~ao de A. BURDEAU, nova edi~o revistae corrigida por R. ROOS, P.U.F., 1966 3. Essai sur le libre arbitre, trad. De S. REINACH, Alean, 1977...... 4. Le fondement de la morale, trad. A. BURDEAU, Germer Balliere, 1879

Q.R.

Mantle

L. A F. M

Para os Parerga et Paralipomena:

1. Aphorismes sur la sagesse dans la vie, trad. de I.-A CANTACUzENE, revista e corrigidapor R ROOS, P.U.F., 1964 P.P., Aphorismes


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2. Philosophie et Philosophes, trad. A . DIETRICH, Alean, 1907 P.P., Philosophes 3. Methaphisique et esthetique, trad. A . DIETRICH, Alean, 1909........................................ P.P.,Methaphisique 4. Philosophie et science de la nature, trad. A. DIETRICH, P.P., Alcan, 1911 -Science) 5. Ethique, droit et politique, trad. A . DIETRICH, Alean, 1909 P.P., Ethique 6.. Sur /a religion, trad. A . DIETRICH, Alcan, .'. 1906......................................................... P.P., Religion 7. Essai sur les apparitions, trad. A .DIETRICH, Alean, 1912.......................................... P.P., Apparitions

Capitulo Primeiro A INTUn;A.o GENEALOGICA Filosofar ate um determinado ponto e nlio mais, e uma meta medida que constitui 0 caroter fundamental do ra­ cionalismo. (parerga et Paralipomena)

Talvez ignoremos ainda tudo sobre a maneira como as ideias podem agir sabre as ideias. (FOUCAULT, M. As palavras e as coisas). Os materiais entregues pelos historiadores da filosofia nio nos permitem jamais representar claramente wna genealogia das ideias filos6ficas, principalmente quando se trata, como aqui, do vir a ser da ideia genealogica. Dizemos que Berkeley e Hume influenciaram Kant, que sem Hegel Ilio teria sido possivel a diale­ tica marxista; mas Ilio podemos dizer como as ideias de uns agi­ ram sabre as ideias dos outros. Tudo 0 que podemos afirmar 6 que entre alguns pensadores existem elementos comuns cuja aparicao


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podemos detectar numa detenninada epoca. Mas 0 rigor nos con­ vida a substituir os ambiciosos relatos de intluencia por simples co~es cronol6gicas. E portanto uma constata~o desta or­ dem a que tentamos fazer aqui: trataremos de demonstrar que Schopenbauer foi 0 primeiro fil6sofo a ter ordenado seu pensa­ mento em tomo de uma ideia genealogica, da forma que eta deve­ ria em seguida inspirar as filosofias nietzschianas, marxista e freudiana, bem como, em larga escala, toda a filosofia modema. Nio se trata de pretender que Schopenhauer seja a fonte na qual Nietzsche, Marx e Freud tenham ido beber para construirem suas

filosofias. Por genealogia deve ser entendida aqui a perspectiva ni­ etzschiana que visa estabelecer rel~es entre dois termos de urn mesmo fenomeno, sem qualquer preocupacao hist6rica ou dialeti­ ca: 0 ato de nascimento genealogico Ilio se situando portanto em urn tempo anterior, mas numa origem subjacente que apenas difere da sua expressio atual pela sua faculdade de nio se exprimir - dife­ renca segundo a linguagem, Ilio segundo 0 tempo. 0 que a genea­ logia distingue, por exemplo, entre uma determinada metafisica e determinadas motiv~es afetivas, nio euma :filia~io cronologica, mas antes urn engendramento mais fundamental, que liga uma manifesta~io qualquer a uma vontade secreta que consegue reali­ zar seus projetos ao preco de uma serie de transfo~es que cabe ao genealogista decifrar. Desta forma, instaura-se uma critica sistematica da filosofia, todo pensamento expresso tornando-se passivel de justifi~io atraves de uma lnterpretacao genealogica decidida a nio ater-se apenas expressio em foco, mas a procu­ rar uma origem alem da palavra. Esta concepcao de genealogia pertence propriamente a Nietzsche, que foi 0 primeiro a introduzi-la de maneira explicita na investig~io filos6fica; e Ilio e aqui 0 lugar de nos estendermos sobre a riqueza da sua significa~io2. Significaeao too fecunda que nos permite perguntar-mo-nos se outros pensadores , usando ou­

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tros vocabulos e conduzindo suas reflexoes sobre questoes tao distanciadas das preocupacoes nietzschianas, Ilio revelam contudo uma mesma inten~ geneal6gica. Assim, podemos estabelecer uma "filosofia genea16gica" da qual participariam fil6sofos tao distanciados quanta Nietzsche, Marx e Freud: esses trSs procedi­ mentos respectivos, para ficannos s6 com esses fil6sofos, tendo em comum um mesmo valor cntico (ruptura com as an8lises do tipo idealista) e urn mesmo valor metodol6gico (pesquisa do oe,uJ.to sob 0 manifesto). Com efeito, parece que uma tal "filosofia genealogica", nascida na segunda metade do seculo XIX, tenha se imposto progressivamente Ii reflexao contemporinea, a ponto de hoje quase se confundir com a filosofia, simplesmente. Pelo menos, ecerto que a perspectiva genea16gica tomou-se de algum modo inevitive1: nao existe mais nenhuma "busca" da verdade que possa sustentar-se sem tomar-se imediatamente suspeita de duplicidade. Qual e a re~ao entre Schopenhauer e esta filosofia genea­ 16gica? Existe somente uma relacao? Um exame da obra permite­ nos responder afirmativamente. A desproporcao entre a riqueza das filosofias de Nietzsche, de Marx ou de Freud e a relativa pe­ quenez do edi.ficio Schopenhaueriano nao deve mascarar uma certa concordincia, nem fazer esquecer a existencia, em Schopenhauer, de uma intui~io geneal6gica tanto mais importante quanta ela se manifesta desde 1819, ano do aparecimento da primeira versiio do Mundo como vontade e represemaciio. De tal forma que Schope­ nhauer, ainda que Ilio "inspire" de maneira decisiva os genea1ogis­ tas da segunda metade do seculo, e ja, Ii sua maneira e sobretudo na sua linguagem, urn fil6sofo genealogista. Portanto, e sem que­ rer fazer de Schopenhauer 0 verdadeiro fundador da filosofia ge­ neal6gica - exatamente porque n6s ignoramos como as ideias dele agiram sobre aquelas de Nietzsche, de Marx e de Freud - resta-nos ainda reconhecer-lhe 0 primor de uma intui~io que estava destina­ da a desenvolvimentos que ele proprio, Schopenhauer, sequer di­ mensionava; e a fazer de 1819 a verdadeira data de uma ruptura


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filos6fica cujos claroes maiores s6 deveriam manifestar-se mais tarde. Assim se justifica 0 titulo glorioso que 1. Oxenford conce­ deu a Schopenhauer, cujo artigo trouxe em 1852 a gloria ao solitario desconhecido: urn fil6sofo iconoclasta.' 1- DESLUMBRAMENTO E CAUSALIDADE

o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer e uma re­ flexio sobre a ideia de causalidade, que se apresenta, numa pri­ meira abordagem, como materia de deslumbramento. "Ter 0 espirito filosofico, diz Schopenhauer, e ser capaz de deslumbrar-se com os acontecimentos habituais e com as coisas de todos os dias, de'tomar como objeto de estudo 0 que existede matsgeral e de matstrivial". (Monde, 852).

Dentre esses acontecimentos habituais, a experiencia da causalidade ocupa urn lugar privilegiado. A causalidade "ordinaria" e "de todos os dias" e 0 principallugar do misterio, uma vez que tal fenomeno extraordinario acaba sempre por ser interpretado de maneira fisica e causal, reunindo-se ao curso natural de todas as coisas. E assim que 0 sabio "explica" urn fenomeno - colocando-o no seu lugar na serie dos fenomenos existentes, no conjunto de uma natureza da qual ele conhece as leis e preve 0 que vira, mas cuja existencia e as formas sob as quais e1e se manifesta nao sio menos passiveis de serem objeto do deslumbramento filos6fico. m portanto dois niveis bem distintos de deslumbramento, urn dos quais podemos chamar de deslumbramento cientifico por oposi­ ~ ao deslumbramento filos6fico. 0 primeiro se interessa pelos fenomenos na natureza, na medida em que eles sejam uma exce~io aparente ao conjunto de suas leis; enquanto que 0 segundo surge na simples presenca do curso natural das coisas que sio passiveis, para 0 sabio, de uma explic~io final. Esses dois deslurnbramentos variam urn em rel~io ao outro nwna proporcao inversa, e este e


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um dos leitmotif de Schopenhauer, que acentua a insuficiencia Ultima de qualquer explicacao cientifica para 0 deslumbramento filos6fico, 0 qual toma a propria natureza como enigma, no ponto em que 0 sabio a abandona, tendo desvendado suas leis e seus me­ canismos. "Toda ciincia nllo e apenas acidenta/mente insuficiente (isto e, em re/afllo ao seu estado atual), mas essencialmen­ te (isto e, para todo 0 sempre)" (Philosophes. p. 129).

o deslumbramento Schopenhaueriano pode reportar-se

inteiramente a uma angustia diante da ausencia de causalidade. Esta intui~i04 decisiva de ondejorra a obra de Schopenhauer, tem sua origem em David Home. No Tratado da natureza humana (1739) Home procedeu a uma celebre critica da ideia de conexio causal na ordem fisica, demonstrando que era impossivel reduzir esta conexio a uma dessas rela~es de ideias que servem de fun­ damento paras as certezas matematicas: h3. uma ruptura intrans­ ponive1 entre necessidade fisica e necessidade Iogica, Esta distin~o e retomada e desenvolvida na primeira obra de Schope­ nhauer, a dissertaeao de 1813 intitulada Da qu&drupla raiz do principio da raziio suficieme, que e 0 primeiro testemunho da desilusio Schopenhaueriana diante da ideia da necessidade cau­ sal. Este ensaio contem principalmente a ideia de que em favor do desenvolvimento das ciencias fisicas e quimicas, todas as ideias tornaram-se dissimuladamente causais - residindo ai· a razio pela qual seus contemporineos haviam perdido 0 sentido do deslum­ bramento. Est! ai tambem a razao pela qual 0 deslumbramento schopenhaueriano se quer sempre desmistificador: ele visa destruir a representacao confusa de uma especie de causalidade difusa , onipresente, subjacente a toda representacao, Schopenhauer con­ sidera muito forte a tendencia que leva a subsumir em causas mais ou menos aparentes tudo 0 que existe. Assistimos a invasio da categoria de causalidade a partir do progresso das cienclas mate­


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maticas e fisicas. Esta invasao e inevitavel na medida em que a categoria de causalidade e, segundo Schopenhauer, a unica estru­ tura das representacoes, a (mica forma real de entendimento : sa­ causalidade as doze bemos que ele reduziu unicamente categorias kantianas, onze das quais seriam como que ''falsas jane­ las numa fachada" (Monde, 560). A invasio da causalidade repou­ sa sobre uma confusio, em favor da qual representamos pelo principio da "razio" uma sO e mesma forma de opera~o intelec­ tua1, que e de fato muito diferente conforme 0 dominio ao qual se aplique. Schopenhauer distingue quatro dominios: 0 das repre­ sentafOes empiricas, 0 unico no qual 0 principio da razio reveste­ se da forma de causalidade; 0 das nOfOes abstratas, onde 0 prin­ cipio da rado nio e mais que a rel~io de urn conhecimento com SUBS consequencias; 0 das percepfOes a priori, que se interessa pela sensibilidadepura, qual seja a intui~io a priori do espaco e do tempo, e por fim a do ser enquanto vontade, onde 0 principio da razio constitui a motivacao, ou ainda aquilo que Scbopenhauer chama de a "causalidade vista do interior". 0 principio da razio, que e 0 de explicar porque tal coisa e, tem portanto uma quadrupla raiz; 0 que equivale a dizer que existem de fato quatro diferentes principios da razao. Dito de outra maneira, existem quatro formas diferentes de necessidade - porque 0 principio da rado suficiente nio emais que 0 proprio suporte da ideia de necessidade. Existe portanto uma necessidade fisica • a qual desenca­ deia necessariamente dois fenomenos, e que rege as mudancas e 0 vir a ser nas representacoes do mundo. Ha uma necessidade log;­ ca, aquela que liga necessariamente urn principio sua conse­ qiiencia; e uma necessidade que Schopenhauer muito impropria­ mente chama de necessidade matematica, a qual afeta as formas a priori das representacoes: heranca direta dos ensinamentos da Es­ tetica transcendental. Por fun, h8. a necessidade que Schope­ nhauer, chama de necessidade moral, para distingui-la da necessidade fisica, e que dita as regras ao mesmo tempo no do­

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minio dos atos voluntaries, quer no homem, quer no animal, e tambem no dominio de todas as forcas que se manifestam na natu­ reza. Schopenhauer estima que quando e necessario, isto e: que para melhor explicar 0 Mundo e a existencia, os fil6sofos confun­ dem, no momenta da sua demonstracao, essas quatro diferentes formas de necessidade. Concluindo sua dissertacao, Schopenhauer solicita que exijamos sempre dos fil6sofos que expliquem sob que forma de necessidade eles pensam quando falam de "razao", a cqnfusao dos quatro aspectos do principio da razio suficiente permanecendo sempre como um meio tacit de serem. construfdos sistemas teleol6gicos contestaveis: "Temos demasiados exemplos onde as palavras causa e ra- . zilo silo confundidas e empregadas indisttntamente uma pela outra, ou ainda ondefalamos em geral de umarazilo e do que efundado sobre umarazao, de umprincipia e do que decorre de um principio, de uma condifllo e de um con­ dicionado, semprecisar antes, justamente taNezporque n6s nos damos conta , no interior da consciencia, do emprego injustificado quefazemos dessas nocses". (Q.R,p.243).

Estas conclusoes da Quadrupla Raiz merecem aten~ao porque elas contem a chave do deslumbramento de Schopenhauer diante da ausencia de causalldade. E por ter confundido no seu espirito no~es vizinhas mas distintas que 0 homem modemo tor­ nou-se surdo ao pr6prio estranho, que e a existencia, na medida em. que ela e sem causa nem razao, Em nenhuma outra parte a confusio e tao flagrante quanto entre 0 primeiro e 0 quarto domi­ nio, isto e, entre as no~es de causa e de fOTfa. E este talvez 0 tema mais infatigavelmente debatido por Schopenhauer, 0 da sua cautela em rela~io Ii insuficiencia de toda forma de etiologia - ou ciencia das causas, A etiologia nao informara jamais nada alem das relacoes que regem os fenomenos, ou da ordem segundo a qual podemos prever sua manifestacao. Uma causa infonna sobre tudo o que interessa Ii modificacjo dos fenomenos, mas nao sobre sua


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essencia, nem sobre as foreas naturais gracas as quais essas mu­ dances se efetuam. '~ etiologia:.. nos ensina que , apartir da lei de causa e de efeito, tal estado da materia produz tal outro, e depots desta expliCDfiIo sua missiJo esta encerrada: Assim ela se limita a nos demonstrar a ordem regular segundo a qual os fenlJme­ nos se produzem no tempo e no espaco, e a demonstra-Io para todos os casos posstveis... Mas sobre a ess§ncia Intima de niIo importa qual desses fenomenos, e-nos imposslvel formular a menor conclusao; nos a nomeamos forfll natu­ ral, e a deixamos fora do dominio das expliCDfiJes etiologi­ cas '" A forfa mesma que se manifesta, a natureza intima desses fen{)menos constantes e regulares, e para ela [a ci­ §ncia} um segredo que nao,mais Ihe pertence, quer no caso mais simples, quer no mais complicado; porque... a Jorfa que faz cair uma pedra ou que atrai um corpo contra 0 ou­ tro, na sua essencia; niJoe menos desconhecida e misteriosa para nos que aquela que produz os movimentos e 0 cresci­ mento do animal. "(Mande, 137-138).

As limita¢es da etiologia, que e condenada a permanecer no dominio das rela~es que regem os fenomenos semjamais con­ seguir atingir a sua esseacia, epara Schopenhauer urn constante objeto de desilusio. A ideia de causalidade e uma miragem que prometesemcessar mais do que ela na realidade traz como con­ tribui~o. Ela eurn jogo de espelhos no qual 0 homem modemo terminou por se deixar aprisionar, guardando secretamente intata sua fe numa ciencia etiologica "completa" da natureza, mas que apenas remete de aparencia em aparencia, A filosofia, diante da ciencia etio16gica completa da natureza, deveria experimentar a mesma impressao de urn homem que houvesse caido, sem saber como, numa companhia completamente desconhecida, cujos mem­ bros, urn ap6s 0 outro, lhe fossem apresentando incessantemente alguns dentre eles como urn parente ou urn amigo deles, para que os conhecesse. Assegurando que estava encantado, nosso fil6sofo


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contudo estaria a ponto de perguntar: - Que diabos tenho eu em comurn comtoda essagente? " (Monde, 138). A ideia de causalidade, indevidamente estendida fora da (mica esfera na qual ela seja valida, matou portanto a capacidade de deslurnbramento - urn deslurnbramento que renasce intato assim que a causalidade retorna aos seus dominios, abandonando todos aqueles que ela falsamente havia trazido ao conhecimento. Entao, todo ser aparece sob os auspicios do "incausado", do "sem ra­ zao", do totalmente "inexplicavel" e, sobretudo, enfim, do niio necessario. E aqui que a desmistificacao da causalidade toma sua verdadeira dimensao. " De acorda comminha conviccao , [est! escrito no celebre capitulo do Monde sobre "A necessidade metafisica da hu­ manidade"] , a jilosojia nasce do nosso deslumbramento a respeito do mundo e da nossa propria existencia, que se im­ poem ao nosso intelecto como um enigma cuja solufiio n(io cessadesde entiio de preocupar a humanidade. lsto niio po­ dena ser assim, e eu chamo a atenfiio dos meus leitores sobre este ponto antes de tudo, se 0 mundo fosse uma "substdncia absoluta" no sentido do spinozismo e das for­ mas contempordneas do pantefsmo, quero dizer: se 0 mun­ do fosse UIrUI existincia absoluttunente necess4ria." (Monde,863).

Este ponto e efetivamente de suma importincia. 0 pensa­ mento de Schopenhauer supoe, nas suas premissas, uma exigencia radical de necessidade: a necessidade e experimentada em profun­ didade como a (mica condi~ao de urn mundo coerente. Faltando esta condicao, 0 mundo mergulha no absurdo. E necessario des­ fazer-se das imagens modemas do absurdo, de esquecer os roman­ ces de Kafka ou de Celine, para poder perceber a exata dimensao do que hA de estranho neste pensamento que poderia hoje ser to­ mado como urn lugar comurn. Pensamento de desapontamento, que sugere que antes desta tomada de consciencia da contingencia,


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tudo aparecia sob 0 signo de uma necessidade, certamente confu­ sa, mas cuja propria imprecisio a defendia de uma investig~io critica. A existencia e para 0 homem e para 0 mundo uma necessi­ dade, isto se sabe; mas furtivamente acrescenta-se ao seu espirito a crenea de que esta necessidade, relativa, substitui ela propria wna necessidade superior; que ela e necessaria em si, 'como se o' mundo, ele mesmo, e ate a simples no~o de existencia, nio fos­ sem mais que as unicas formas possiveis que pudessem revestir toda concepcao de ser - ainda como se 0 contrario de ser fosse necessariamente impossivel. Consequencia da decepeso schope­ nhaueriana, torna-se visivel que 0 mundo e 0 homem apenas sao necessaries na medida em que sao dados - magra e precaria ne­ cessidade. Acaso, na realidade, de uma existencia que se dB. alem, Dio sabemos vinda de onde nem porque, e que nos nos esforca­ mos em vic para ligar a qualquer causa ou fun para superar a con­

tingencia,

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Este golpe de espada, pelo qual eo te abro 0 peito, e para ti uma necessidade na medida em que tu 0 sofrestes; mas ele na realidade nio existe, porque eo bem poderia Dio te ter ferido. E desta maneira que Schopenhauer ve a questio da necessidade no dominio do ser. Esta descoberta da impossibilidade humana de pensar efetivamente a realidade e provavelmente a sua intui~o mestra . A necessidade e independente de nosso espirito e inaces­ sivel nossa experiencia. A ausencia absoluta de necessidade abandona num mundo estranho e angustiante um homem que ela privou dos meios inte­ lectuais para decifra-lo. Tal e 0 destine paradoxa! do homem mo­ demo: quanto mais as ciencias fisicas e naturais lhe tomam familiar o Mundo em que habita, familiares suas relacoes, familiares as causas que presidem suas modificaeoes, tanto mais este mesmo mundo mergulha na contingencia, Nio existe interpretaeao filos6­ fica capaz de preencher 0 vazio original criado pelo desapareci­ mento da categoria de necessidade. 0 progresso das ciencias, e de

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uma maneira geral 0 progresso da "luzes" herdadas do seculo pre­ cedente, apenas tornaram mais evidente esta ausencia secreta. A neg~ao da necessidade, fonte do deslumbramento Schopenhaueriano, 0 transforma num fil6sofo inatual, estranho a seu tempo. A desagradavel animosidade que 0 opunha a Hegel e "aos da sua turma" significa uma oposicao profunda e 'irredutivel. A filosofia de Schopenhauer surgiu numa epoca na qual a fe em uma razio diretora e ordenadora de todas as coisas, longe de se enfraquecer, como que se exacerbou atraves da grande esperance que 0 seculo XVIII atrelou ao desenvolvimento do racionalismo, culminando com as construcoes de Hegel, que via no vir-a-ser do Mundo a realiza9io progressiva do Espirito Absoluto, ao ponto de assimilar a realidade com a racionalidade. "Eu sou desprovido de qualquer intuiflio racional"(Monde, 53), diz ironicamente Scho­ penhauer em uma das suas muitas investidas contra Hegel. Esta expressio vai talvez mais longe do que ele proprio supunha. Eta . define a originalidade da expressio schopenhaueriana, que reside nesta surdez em rela9io das pseudo-evidencias admitidas por seus contemporineos. Ele nio se posiciona apenas contra, mas comple­ tamente alheio ao movimento intelectual da sua epoca. Falta-lhe a representaeao de qualquer metafisica teleologica,: a ideia de uma natureza em evoIU98.0, de uma humanidade no seu vir-a-ser hist6­ rico, enfim: todas essas ideias colocadas no centro das preocupa­ 96es dos seus contemporaneos e dos seus predecessores. Esta lacuna alia-se contudo a uma fascinada admiracao diante da perfei­ 910 teleologies dos mecanismos bio16gicos. Esta inatualidade de Schopenhauer, numa certa medida, mantem-se ate hoje, malgrada a fama passageira alcancada durante um certo tempo pelos aspec­ tos mais fracos de sua doutrina, em favor de um modo pessimista de ver a vida que fez sucesso nos ultimos anos do seculo XIX. E de justica esclarecer que em Schopenhauer 0 deslum­ bramento filos6fico nao e apenas uma inquietude diante da contin­ gencia, Ele nasce tambem de uma meditacao sobre 0 sofrimento e I


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sua inutilidade: aparece aqui 0 tema bastante conhecido do pessi­ mismo desabusado diante da vi crueldade da experiencia humana. Que 0 ser fosse sem necessidade era ja um problema angustiante; mas que ele seja alem de tudo doloroso e miseravel, acentua a sua ausencia de razio de ser:

"E 0 conhecimento das coisas da mortee a cOnsiderafilo da dor e da mis~ria da vida. que dilo 0 maisforte impulso ao pensamento jilos6jico e it explicafiio metaflsica do mundo. Se nossa vidafosse injinita e sem dor, provavelmente nin­ gu~m se perguntaria por que 0 mundo existe, nempor que ele temprecisamente tal particular natureza; ao contrario, todas as coisas se compreenderiam por si mesmas." (Monde, 852).

Convem distinguir esses dois niveis de surpresa - diante do ser sem necessidade, e diante da dor sem necessidade - que 0 filo­ sofo nesta passagern parece confundir um pouco. Para sermos corretos, e sempre 0 primeiro nivelque nele determina 0 segundo. Nio e porque primeiro ele tern a intui~o de um Mundo desprovi­ do de necessidade que Schopenhauer atinge a visibilidade dolorosa de um mal sem causa, portanto sem justificativa. E necessario compreender a importancia desta prioridade, que ilumina a obra deste fil6sofo de modo diferente das analises demasiado apressa­ das que transformam Schopenhauer num fil6sofo obscurecido pelo espetaculo do mal e do sofrimento. Esta indigna~io pessimista e apenas a consequencia da primeira intui~io. Que demonstremos a ele qualquer causa para 0 mal, (ainda que fosse a inexplicavel ma­ vontade de um deus), e ele nio mais se queixaria. A dor sO se tor­ na injustificavel na medida em que ela e sem causa, nem mesmo maligna. 0 "mal" nio e menos justificavel que 0 bem; ele e apenas mais desagradAvel. A dor deve portanto ser interpretada como uma experien­ cia da contingencia. Todos os textos schopenhauerianos consagra­ dos a descricao dos males sofiidos pela humanidade devem ser


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lidos neste contexto, entre os quais a seguinte pagina que se tor­ nou celebre: "0 deslumbramento filosofico e no fundo uma esiupejaflJo dolorosa; a filosofia comeca, como a abertura do D. Juan, por um acorde menor... E 0 mal moral, e 0 sofrimento e a morte que conferem ao deslumbramento ftlosoftco sua qua­ lidade e sua imensidade oaracteristicas... 0 punctum p,.,,~ ens da metajlsica, 0 problemaque preenche a humanidade de umainquietude que nem 0 ceticismo nem 0 crttictsmo sa­ beriam acalmar, consiste em se perguntar, nlJo somente porque 0 mundo existe, mas tambem por que ele e cheio de tantas misertas" (Monde, 865-866).

Tudo bem, mas nada de "estupefacao dolorosa" sem pri­ meiro a intui~o da contingencia, que a fez nascer. A indigna~o diante da dor nio e mais que urn ponto particu1armente senstvel, 0 aspecto mais nevralgico desta angustia geral diante da ausencia de necessidade, que permanece a preocupacao maior de Schope­

nhauer.

o deslumbramento schopenhaueriano, nascido de uma desi­ ludo diante da ausencia de causalidade, resulta ria representacao de urn Mundo opaco. Quando abandonamos 0 dominio das repre­ senta95es "exteriores" e quando pretendemos interrogar a causali­ dade ''vista do interior", isto e, quando procuramos as motivaeoes, nlo encontramos exatamente nada. Nio existe motiv~, ou mais exatamente, todas as forcas naturais , animais e humanas apa­ recem como inteiramente mudas em face da causalidade. Nio e mais que por uma falsa analogia com a causalidade que cremos compreender, por exemplo, 0 gesto de urn animal, dizendo que ele e "motivado" por urn desejo. Da mesma forma, acreditamos com­ preender por que a ma~i e atraida pela forca da gravidade quando pensam.os na teoria newtoniana, esquecendo que justo neste ponto em que representamos confusamente urn motivo, existe apenas urn sistema de causalidade abstrata: "Sobre a natureza desta forea,


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dizia Newton, hypothesesnon jingo". As rel~oes que regem os fenomenos nio ensinam nada quanto sua "natureza intima". Sem dilvida, podemos nos interrogar acerca do sentido desta natureza intima, que faria falta a interpretaejo cientifica do Mundo. "Mas, Madame, teriam as coisas urn fundamento?" e 0 que dizem que Bergson teria replicado a uma Dama que lhe perguntou, logo ap6s o termino de uma conterencia, se ''teria ido verdadeiramente ao fundo das coisas". S6 resta [concluir] que a expli~o causal e incapaz de satisfazer inteiramente a interrog~o filos6fica, e que, "natureza intima", ou nio, [ela] e um ponto de vista interrogativo e deslumbrado a partir do qual 0 Mundo e as forcas que nele rei­ nam, assim "explicadas" pela causalidade, nio podem deixar de aparecer como opacas. De resto, Schopenhauer nio se atem quer a deficiencia do sabio quer a suficiencia do fil6sofo quando se ere fundado para deduzir, partir das causas que presidem mu­ dancas nas ordens fisica e biologica, [que as mesmas] nio t~ nenhuma rel~io com a ordem dos fins no Mundo. . Ele retoma incessantemente ao tema da impenetrabilidade de todas as coisas quando cessamos de considerar 0 mundo sob os auspicios da causalidade. A ideia central e de que, em todos os fenomenos da natureza, toda causa subentende umajorfIJ, for~ esta que nio emais que uma interpretaeao abstrata, e que nio (fA conta de resolver 0 problema. Esta ideia de for~ e fundamental em Schopenhauer: sob todas as representacoes do mundo, quer seja sob seu aspecto mineral ou vegetal, animal ou humano, esco~­ de-se uma forea, urna BUV<XI..I.1C;, uma especie de obscuro principio motor, sem a qual nada do que e seria. Tudo e for~a, na medida em que tudo etendencia em dire~io a qualquer coisa; tanto a pe­ dra que "tende" ao solo quanto a planta [que tende] em dir~ilo a agua e 0 animal em dir~o ao seu alimento. Todas as for~as sao "qualidades ocultas", tio impenetraveis quanto a ''virtude flogisti­ ca" pela qual Stahl queria explicar a combustio, ou a virtus dor­ mitiva de Moliere. Elas silo irredutiveis a toda e qualquer

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causalidade real: elas estao la, dadas sem dificuldade, sem rmo explicativa ou justificativa. Elas se omitem de dar sobre elas mes­ mas duas informa¢es essenciais: sua origem e sua qualidade. Na medida em que a causalidade pennanece muda a respeito dessas duas questees, e evidente que 0 mundo permanece incompreensi­ vel. Vem dai a ideia de urn substratum sempre inexplicado, de urn inevitavel resto de misterio, cada vez que a inteligencia, remontan­ do de causa em causa, redescobre a forca que escapa a toda cau­ salidade: .. "Existe sempre um res/duo para 0 qualniJo existe qualquer explicafiJo, e que, pelo contrario, toda explicafiJo supoe, isto e: forfas naturais, um modo determinado de atividade no interior das coisas, uma qualidade, um carater do fen6­ meno, alguma coisaque e semcausa... "(Monde, 165-166)

A no~ilo de for~ natural reteve constantemente a aten~lJo de Schopenhauer, nilo apenas no plano filosofico, mas tambem sobre 0 plano biol6gico, onde ele a estudou apaixonadamente, quer atraves das suas proprias observacoes, quer atraves dos tra­ bathos cientificos do seutempo. Dai a forma desabusada dos Parerga et Paralipomena, ja citadaacima: "Toda ciencta niJo e tnsuficiente acidentalmente (quer di­ zer, em conseqaencia do seu estado atual) , mas essencial­ mente (isto e: para todo 0 sempre). II

Toda ciencia e toda a filosofia, pois tanto uma quanta ou­ tra serio sempre incapazes de explicar esse alem da causalidade, esta "causalidade vista do interior" como a chama Schopenhauer na QuQdrupla Raiz, que seriaa motivacao. Por que existe 0 ser, ao inves de nada? Por que este ser tem tendencias? Questoes absur­ das, mas sobretudo questoes deslocadas em urn mundo onde a causalidade Dio passa de uma miragem: 0 mundo e mudo. Scho­


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penhauer Dio espera mais nada em materia de explica~ do ser, tanto dos fil6sofos quanto dos sabios. Toda tentativa de explica­ rrio metafisica cai a seus olhos no dominic da ilusio, particular­ mente manifesta em todas as formas de cosmologia religiosa e de teleologia teol6gica, que the causam horror. E que elas esquecem, ou ignoram, 0 deslumbramento originario que surge no espirito capaz de lanrrar urn olhar novo sobre todas as coisas - porque elas supoem sempre, 0 que quer que seja que elas digam, uma certa forma de necessidade presente no Mundo da existencia, 0 deslurn­ bramento schopenhaueriano, pelo contrario, quer operar UDUi. xa9apcnc; ineuravel, levando sem cessar 0 espirito seguinte in­ tui~o; de tudo 0 que existe, de tudo aquilo que 0 homem pode conhecer ou aproximar-se, nio hi uma s6 coisa da qual ele possa dizer que ela terla mais chances de existir que uma outra, mais razio de ser sob esta forma que sob qualquer outra, mais valor, enfim, [neste] que em urn outro "mundo" desconhecido - nada, ate mesmo 0 simples conceito de existencia , que ele Dio podera jamais compreender porque ela [a existencia] existe de prefe­ rencia ao nada, ou ainda de preferencia a qualquer norrio inacessi­ vel a seu espfrito, 0 qual Rio sera nem do ser nem do nada, e que ele jamais conhecera.

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IT - 0 PRIMADO DA VONTADE E A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE Esti entendido que nos Rio compreenderemos jamais .a natureza das forcas que reinam no Mundo. Mas isto nio nos impe­ de de descrever estas forcas, e nem mesmo de, de uma determina­ da maneira, chegarmos a conhece-las, E aqui que intervem a celebre teoria da Vomade, S que conduz Schopenhauer por cami­ nhos novos, ate entio proibidos. Em que medida e de que maneira, podemos penetrar nesta terra incognita da qual as representacoes causais Dio die jamais

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nada alem de uma imagem exterior? Como poder colher "do inte­ rior" uma motiv~ao que parecia condenada a permanecer impene­ travel? Este momento essencial da filosofia de Schopenhauer, esta intrusio no desconhecido, encontra-se ja esbocada na sua disserta­ ~o de 1813. Analisando a "quarta classe de objetos", aquela que se refere as ~es do "eu que deseja", Schopenhauer observa que a experiencia intima da nossa pr6pria vontade nos permite collier em pleno voo uma forca de motivacao que, em todos os outros casos, p~ece obscura para a consciencia: "Nosnilosaberlamos nadasobre os movimentos e as afiJes dos animais e dos homens, e nos os verlamos indistimamen­ te provocados por suas causas (os motivos) de umamaneira inexplicavel, se 0 acesso nilo nos tivesse sido oberto para chegara compreender 0 que se passa no interior: nos sabe­ mos, com efeito, a partir da experiencia intima feita sobre nos propnos, que 0 que acontece al ~ um ato de vomade, provocado por um motivo que consiste numa simples ideta. A injlu§ncia do motivo nilonos ~ portanto conhecida somen­ te do exteriore de forma mediata, como acontece com todas as outrascausas, mas completamente do interior, imediata­ mente e consequememente em toda a extensao da sua afilo. Aqui, nos nos encontramos por assim dizerpor tras dos bas­ tidores, e penetramos 0 mist~rio de como, segundo sua es­ senciaintima, a causaproduz 0 efeito" (Q.R, p. 282).

Tal e0 privilegio do qual nos beneficiamos quando nos in­ terrogamos sobre os movimentos do nosso corpo: ao inves de as­ sistirmos de fora 0 que acontece, como e 0 caso da queda de uma pedra ou do gesto de urn animal, em se tratando dos nossos ges­ tos fazemos a experiencia pessoal da motivacao. Bsta af 0 unico vies pelo qual podemos surpreender 0 misterio desta motiva~o oculta que preside a todas as relaeoes de causa e efeito e que sen­ timos presente em todas as forcas naturais. A motiva~ao se deixa entio surpreender como "em flagrante". Com efeito, que outra experiencia invocar para penetrar no dominio desconhecido? A


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experiencia da propria vontade, que preside a atividade, sera a (micavia de acesso: "Sera de qualquer maneira uma via subten-6nea, uma co­ municafifo secreta, que por uma especie de traififo nos in­ troduzira de repente na fortaleza, contra a .qual vieram fracassar todos os ataques dirigidos do exterior" (Monde, 890).

E a boa logica de Schopenhauer, acuada diante do misterio pela profunda impenetrabilidade de toda rel~ao causal, vindo a conceder tanta importancia ao conceito de vontade. E que a expe­ ri&1cia da nossa propria vontade e0 unico dominio onde a intui~o da for~ natural torna-se acessivel a nosso espirito e pode ser to­ mada como obieto da experiencia, Nao que esta experiencia venha por fun ex.plicitar a for~ inexplicavel; mas a torna de repente proxima e presente. Como diz Schopenhauer, ela nio no-la t011)8. clara, mas visivel: ela e a ''visibilidade'' do inexplicave1. (Monde, 184) "Meu corpo, nota ele ainda, 000 e mais que minha vomade tomada visivel'' (Monde, 149). 0 gesto da mao em dit~io ao copo abre de repente urn acesso direto ao misterio de todas as foreas que reinam no universe; a forca que leva a beber e move 0 brace eurn raro exemplo de motiva~o que podemos tirar dire­ tamente da consciencia. "0 conceito de vontade e 0 unico, dentre todos os conceitos possiveis, que nao tem sua origem no fentJmeno, em uma simplesrepresentaqao intuttiva; mas vem la do fundo, da consciencia imediatado individuo, na qual ele se reconhe­ ce a si proprio, na sua essencia; tmediatamente, sem ne­ nhumaforma, nem mesmo aquela do sujeito e do objeto, uma vez que aqut 0 conhecedor e 0 conhecido coincidem" (Monde,154).


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E sobre esta experiencia intima da sua pr6pria Vontade que repousa a teoria schopenhaueriana da vontade. Uma manifes­ ~o da vontade, desde que ela chega a consciencia no momento mesmo em que se manifesta, e como uma "imagem" isolada de todas as forcas complexas que regem 0 Mundo. Uma das causas mais imediatas da incompreensio face a Schopenhauer reside no proprio tenno de vomade pelo qual ge­ ralmente traduzimos a no~io alemi de WiIIe. Como observa P. Godet na introducao do seu livro de extratos de Schopenhauer", e preferfvel traduzir Wille por Querer, melhor que por vontade, para chamar a aten~io do leitor sobre 0 emprego inabitual e muito am­ plo de uma no~o que ultrapassa folgadamente tudo aquilo que habitualmente entendemos pela ideia de vontade, a qual supoe sempre uma parte de consciencia, enquanto que 0 Wille schope­ nhaueriano engloba todas as forcas do mundo e da natureza, quer elas sejam conscientes, semi-conscientes inconscientes ou ate to­ talmente cegas, como no caso da pedra que cai. A no~io de ener­ gia moral, por exemplo, e completamente desconhecida a ideia da Vontade schopenhaueriana. Quem possui uma ''vontade forte" e tio detenninado, sua maneira, pela Vontade, quanta 0 desfibra­ do. Aqui, como alias em muitas outras passagens, Schopenhauer foi urn mau "nomeador"; e a potencia revolucionaria do tema ficou oculta sob uma bagagem conceitual tradicional. A ''vontade'' scho­ penhaueriana Rio e precisamente "desejada": nio premeditada, Rio inteligente, Ilio consciente, mas instintiva e inconsciente. E importante pois compreender a Vontade no seu carater global, tomado na intui~io da sua unidade e da sua identidade.

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"Nao ~ apenas nos fenomenos em todo semelhantes a si proprio, nos homensenos animals, que ere [0 homem) en­ contrara, como essencia intima, esta mesmavontade; mas um pouco mats de reflexiio 0 levara a reconhecer que a universalidade dos fenomenos, tiio diversos pe/a represen­ tafiio, tem uma so e mesma essencia; a mesma que /he ~ inttmamente, imediatamente e melhor que qualquer outra


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conhecida, aquela que enfim , na sua manijestOfiJo mais aparente, leva 0 nome de vontade. Ele a vera na forfa que faz crescer e vegetar a planta e eristalizar 0 mineral; que dirige a agulha imantada para 0 norte; na cOmDflIo que ele experimenta ao contato de dois metais heteroge­ neos... " (Mande, 152).

E com propriedade que podemos falar, por oposi~ ao "panlogismo" hegeliano, de urn "panthelismo" schopenhaueriano. Nio apenas tudo e Vontade, como tambem nio h8. mais que uma s6 e unica Vontade, presente quando a pedra cai e presente quan­ do 0 individuo se propoe a obter uma satisf~io [de um seu dese­ jo]. Todosos fenomenos disseminados na natureza, tanto a atr~io dos corpos celestes quanta a vontade e as aspir~es da pessoa, representam apenas partes de uma mesma e unica Vontade, da mesma maneira que todas as celulas do organismo estio a service desta entidade indivisivel que e 0 corpo. 0 resultado disto e que. a individualidade nio passa de uma ilusio, em rel~o da grande Vontade da qual ela e uma celula inconsciente - 0 que nio signifi­ ca, de resto, que todos os individuos sejam iguais; pelo contrario, Schopenhauer insiste com frequencia sobre 0 carater nativo e irre­ dutivel das diferencas humanas; mas todos os individuos partici­ pam, cadaqual a sua maneira, de uma Vontadeidentica. Schopenhauer explicita esta identidade da Vontade na sua celebre an8lise do principium individuatioms. 0 principium indi­ viduationis, em favor do qual todas as coisase todos 0 sereslevam uma existencia separada e aparentemente independente, somente existe e somente tern sentido no mundo fenomenico. Da mesma forma que 0 principio de causalidade, ele e a forma sob a qual a forca da Vontade se manifesta para cada homem, Vontade que Schopenhauer, acreditando integrar sua teoria no quadro do pen­ samento kantiano, assimila pelo contrario a coisa-em-si. Como 0 principio de causalidade, ele e uma aparencia subjetiva que nio interessa a realidade "noumenal". Esta intui~io da identidade final


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de todas as vontades no seio da Vontade e urn dos aspectos mais caracteristicos do pensamento de Schopenhauer; sabemos que ela constitui 0 fundamento da sua moral, que repousa sobre a intui~ao da piedade, isto e: sobre 0 sentimento de uma identidade radical, compreendida e verdade alem das aparencias, nas asplracoes de todo ser humano. 0 fil6sofo em quem vimos urn dos mais perfeitos egoistas dos tempos modernos e ao mesmo tempo aquele a quem devemos provavelmente a intui~o mais profunda da comunhao humana - comunhio da qual Nietzsche se faz eco na Origem da tragedia, quando ele aproxima 0 culto dionisiaco do desvelamento do "veu de Mala", que dissipa 0 velho mite da individualidade. "Quase todos os homens pensom incessantemente que eles silo isto e silo aquilo, ('tte; avepco'Jtoc;) , com os coroldrios dai resultastes. Mas que eles silo um homem (0 avepco'Jtoc;) , e quais corolonos resultam deste Jato, e 0 que eles pensam muito pouco • e este entretanto e 0 ponto principal" (p. P., Ci!ncia da natureza, p. 130).

Esta f6rmula dos Parerga pareceria banal se ela apenas in­ vocasse uma defesa contra as armadilhas da subjetividade e outras "potencies enganadoras" analisadas pelos classicos franceses, de Pascal a La Rochefoucauld. Mas 0 corolario principal resultante da qualidade d'''O' av9pco7t0'C;", e antes de tudo a intui~ao da inani­ ~ao radical da pessoa enquanto pessoa, da uniao indissohrvel que liga cada vontade Ii Vontade global e remete de volta a pessoa toda inteira ao seio de urn cosmo do qual ela tinha saido apenas em aparencia, Outro corolario desta qualidade, [e] uma desilusao em profundidade, na medida em que esta Vontade na qual a pessoa se desagrega, se ela e rica de comunhao humana, revela tambem a inutilidade de toda vontade, pois como veremos mais claramente a seguir,a Vontade de que ela e a imagem e por defini~io sem cau­ sa nem objetivo.


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Esta teoria da Vontade manifesta uma oposi~io direta a tradi~o intelectualista da filosofia anterior e contemporanea de Schopenhauer, desde Platao ate Hegel. 0 primado da Vontade sobre as represeatacces intelectuais representa uma ruptura de inestunavel importincia na hist6ria das ideias. Nio que esta ruptu­ ra seja inteiramente nova: os fil6sofos e os escritores classicos ja tinham analisado tal ou qual aspecto do primado da "paixio" sobre o "julgameato"; mas Schopenhauer e 0 primeiro a fundar e a sis­ tematizar este primado da Vontade sobre 0 "Espirito". Antes, tra­ tava-se somente de "acidentes" do espirito, de casos singulares onde 0 espirito, vitima do amor-pr6prio ou de qualquer outra po­ tencia afetiva, perdia momentaneamente sua supremacia de direito. Para Schopenhauer, pelo contrario, a supremacia de direito retorna aVontade, que governa tudo, e sempre: 0 que era exce~o toma­ se a regra. Esta e a primeira das inversoes de valores que iria ins­ taurar a filosofia de Nietzsche, e Schopenhauer, muito consciente da sua originalidade, explica-se ele mesmo de maneira precisa a este respeito: "Eu vou comecar - escreve ele noinicio dos Suplementos no segundo livro do Mundo - por produzlr uma serie de fatos

psicologicos dos quais resulta que na nossa pr6pria consci­ 8ncia a vontade se apresenta sempre como 0 elemento pri­ mario e fundamental , que e incontestavel a sua predomindncia sobre 0 intelecto, que este e absolutamente secundario. subordinado, condicionado. Esta demonstra~lJo e tanto mais necessaria quanta [se sabe que] todos os filo­ sofosanteriores a mim, do primeiro ate 0 ultimo, colocam 0 verdadeiro ser do homem no conhecimento consciente, ou ainda como pensante; e e apenas de uma maneirasecunda: ria e derivada que ele e concebido e representado como um ser de vontade. Este velho erro fundamental partilhado por todos, este enonne trpt11TCTV Y'BY&r", este fundamental txnepav trpcrrspuv precisa ser, antes de tudo, banido do dominio da filosofta, e e por este motivo que eu me esJorfo


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por estabelecer nitidamente a verdadeira natureza da cot­ sa" (Monde, 894).

A filosofia de Schopenhauer e a primeira a colocar como absoluto 0 condicionamento das fun~oes intelectuais pelas fun­ ~Oes afetivas; a primeira a considerar como superficial e como "mascara" todo pensamento cujos termos pretendam permanecer sobre 0 plano da coerencia logica e da "objetividade". "Tudo 0 que se opera por intermedio da represent(JflJo, isto e, do imelecto, - e istofoi desenvolvido ate a razllo - e apenas uma brin­ cadeiradiante daquilo que emana diretamente da vontade" (P. P. , Ci&1cia da natureza. p. 29)

A filosofia da vontade inaugura a era da suspeieao, que busca 0 mais profundo sob 0 [explicitamente] expresso, e 0 desco­ bre no 'inconsciente. 0 que [se] pretendia emanar do intelecto puro e justamente aquilo sobre 0 que se conduz a analise critica das motiva~oes secretas. Falando estritamente, nio hA qualquer raciocinio intelectual que possa ser compreendido a partir dele mesmo: ele pede para ser interpretado, apartir de urn novo ponto de Vista, que e a questio da origem. Este deslocamento do ponto de vista e precisamente 0 ponto de ruptura com a filosofia classica, e 0 ponto de divergencia radical em rela~o filosofia de Kant, a qual Schopenhauer, sem se conscientizar suficientemente da revo­ lu~io que introduzia, obstina-se em querer perpetuar. Nio ha ne­ nhuma rela~io, ainda que ele tivesse podido pensar, entre 0 mundo das "coisas em si" e 0 mundo da Vontade. Schopenhauer nio e mais, como ele proprio se acreditava, 0 ultimo dos fil6sofos classi­ cos, mas sim 0 primeiro dos fil6sofos genealogicos. Se ele nio perscruta as profundezas psicologicas com a penetracao dos fil6sofos genealogicos, ele se sobressai pelo menos na analise critica da superficie enquanto tal: a "seriedade" filos6fi­ ca, que dissimula a inevitavel parcialidade de urn engajamento afe­

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tivo sob urn jogo de conceitos de carater abstrato e objetivo, en­ contra assim em Schopenhauer urn primeiro .caricaturista, antes de encontrar na pessoa de Nietzsche urn anaIista. A critica a escola hegeliana encontra-se neste nivel. E em via que se lhe reprovaria por ser mais injurioso que convincente: Schopenhauer Rio entra em discussio real com seus adversaries, contentando-se em englo­ ba-les numa critica generalizada da superficialidade do ''falante'' que sabe 0 que <liz, mas ignora por que fala. 7 0 ''falante'', quer ele seja fil6sofo ou sabio, constroi seu discurso em tomo de empres­ timos cuja origem e valor ele ignora; ele se da como livre e original o que ec6pia e determinado: do mesmo modo que 0 erudito esteril criticado por Schopenhauer, podemos dizer que "sua cabeca se

assemelha a um banco cujoscorrentistas sliomuito mats numero­ sos que os fundos reais" (Monde, 755). A tagarelice aparece as­ sim como urn importante problema filosofico, se entendennos por isto toda palavra esquecida de suas proprias raizes. Nada mais uti! que' a palavra para expulsar da consciencia as razOes secretas que fizeram falar. Assim e tambem a "tagarelice" que se da conta da inutilidade do dialogo, e das resistencias opostas pela palavra a toda mensagem que fere em profundidade algumas motiva~es afetivas: "0 espinto original...levara algum tempo sem compreender as ra­ ziJes da oposiflJo dosseusadversarios, ate que um belo dia ele se dt!l conta que, enquanto ele se dirigia a seus conhecimentos tratava na verdadede suas vontades. "(Monde. 928). ,.

Do mesmo modo Freud, dando-se conta de que a oposicso suscitada pela psicanalise estava inserida no mesmo contexto das reslstenclas psiquicas que ele exatamente comecava a curar nos neur6ticos. 0 que importa Rio e portanto a expressio das ideias, mas a sua origem. Esta intuifao genealogica consuma a ruina de uma [certa] forma de racionalismo fundado sobre a liberdade e a independencia do inteleeto. Nietzsche reconhece que a verdadeira


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descoberta de Schopenhauer foi a de ter destronado 0 racionalis­ mo como interpreta~o do homem. "Filosofar ate certo ponto, e

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nQo mais, umameia medidaque constitui 0 carater fundamental do racionalismo", escreveu Schopenhauer (p.P., Religilio, p. 118) Urn certo ponto e do mais, porque 0 racionalismo se atem a pala­ vra, e do aseende jamais ao problema da origem. Sem se dar conta, Schopenbauer e 0 primeiro a criticar 0 mito da "objetividade" racional. Nio se trata de conhecimento puro, de interesse cognitivo, de curiosidade intelectual. Em todos os casos, abusca racional e posta em movimento pela vontade. Desde Schopenhauer, sabemos que e a vida dos homens que determina suas consciencias, e nio 0 contrario; que 0 que esta [oculto] por tras da inteligencia e mais rico que a propria inteligencia. A tese de Schopenhauer segundo a qual "a inteligencia obedece avontade" representa portanto 0 ponto de partida de urna filosofia genealogica (Marx e Nietzsche), bern como de uma psico­ logia do inconsciente (Freud). Uma e outra, alias, estio presentes enquanto esboco na sua filosofia. Urn pouco dissimuladas, mas presentes sob 0 aparelho conceitual pseudo-classico. A leitura do capitulo XIX dos Suplementos ao livro IT do Mundo, intitulado "Do primado da Vomade 110 auto-consciencia", e suficiente para dar uma ideia precisa dessas intui~oes genealogicas em Schope­ nhauer. Para sustentar sua tese, Schopenhauer multiplica as anali­ ses psicol6gicas, que ele agrupa em doze "ordens de razio". Entre essas analises, figura urn estudo da teimosia (Monde, 929) e da astucia dos tolos (ibid, 921) que merecem uma men~io particular. Ele parece ter sido 0 primeiro a colocar 0 problema filos6fico da tolice, pesquisando seus caracteres fundamentais nio em uma fra­ queza das fun~es intelectuais, mas num determinado uso das fun­ ~oes afetivas : e assim que se explica a "engenhosa" tolice de alguns testemunhos de incompreensio. Igualmente de grande im­ portancia genea16gica e a analise do ressentimento (ibid, 928 e seguintes), anunciadora da critica nietzschiana dos sentimentos


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morais, e a do falseamento das ideias e dos sentimentos pela von­ tade. (ibid, 907), que parece ter influenciado Sartre no seu 0 Ser e oNada. Paralelamente a sua moral tradicional, simples heranea de Kant a qual somente se acrescenta uma celebre teoria da piedade, Schopenhauer elabora uma critica original da moraljudaico-cristi, na qual 0 carater pre-nietzschiano se manifesta. Esta critica, bem como aIi8s 0 conjunto das intuicoes geneal6gicas de Schope­ nhauer, e talvez por influencia do despeito provocado pela incom­ preensio da qual ele era objeto nos meios filos6ficos, se acentua sobretudo na segundametadeda sua obra, e aparece principalmen­ te nos Sup/ementos ao Mundo enos Parerga et Paraltpomena. Seguindo nisto Spinoza, a quem alias ~le desconhece inteiramente, Schopenhauer ere pulverisar 0 mito da liberdade moral: e 6 a favor de uma dessas inconsequencias caraeteristicas da sua obra que ele tenta integrar esta critica da liberdade no contexto da moral kanti­ ana. (Cf. 0 Ensaio sobre 0 livre arbitrio). Os dois pilares da moral judaico-cristi, sobre os quais investe a critica de Schopenhauer, sio de um lado este mito da liberdade moral, e do outro otema de uma compensacao ao final da hist6ria humana: 0 motor do senti­ mento cristae aparece portanto como uma potencia de ressenti­ memo face a dor. E em Schopenhauer que Nietzsche encontra as premissas de uma genealogia critica da moral, 0 ressentimento sendo frequentemente invocado por Schopenhauer nio apenas como fundamento do cristianismo judaico, mas ainda como a ~ de defesa por excelencia do mediocre contra 0 genio, do. fraco contra 0 forte: "0 forte sucumbe sob os artificios dos fracos" e urn aforismo de Schopenhauer (Opusculos diversos, em P.P., AparifOes).

A afinidade espiritual que liga no plano psicol6gico Scho­ penhauer a Freud foi atestada pelo proprio Freud desde 0 inicio da suaobra'', Em fevereiro de 1914 Freud declara que Schopenhauer foi 0 unico pensador antes dele a formular e estabelecer os princi­

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pios fundamentais da psicanalise. Freud apoia-se principalmente nas analises schopenhauerianas da loucura (principalmente no Mundo, livro I, paragrafo 36, e Suplementos, IT, capitulo XXXII): "0 que Schopenhauer diz sobre a maneira pela qual nos nos tensi­ onamos para nos recusarmos a admitir uma realidade penosa e rigorosamente igual a minha doutnna da repressao'". A an8lise da loucura e, efetivamente, onde encontramos uma das mais mani­ festas intuiQ<Ses geneal6gicas de Schopenhauer. Como a tolice, e como todo fenomeno intelectual, a loucura Ilio e estudada apenas no plano do intelecto, mas interpenetrada a partir da atividade in­ consciente da afetividade. Se 0 louco e incapaz de uma coerencia logice, e porque ele nio tern nem a vontade nem sobretudo a forca de se retemperar na realidade cotidiana. A loucura e uma saida "economica" para a afetividade, a qual ela poupa 0 espetAculo da realidade. Como Freud, Schopenhauer fundamenta sua analise sobreulna fuga da afetividade parafora do principio de realidade: '~ loucura assim nascida toma-se 0 Lethol O de sofrimentos intoleraveis: Foi 0 ultimo recurso da natureza tomada pela angUstia, isto e, da vontade".

Da mesma forma, se 0 louco esquece facilmente e cria la­ cunas no lugar de algumas lembrancas importantes, e porque suas exigencias afetivas, que se encarregaram de apagar a Iembranca, 0 conduziram para as exigencias intelectuais: "0 imelecto renunci­ ou a suanatureza, para conformar-se a vomade". o esquecimento e, como em Freud, urn fenomeno dinimi­ co, motivado afetivamente, completamente igual a repressao. Fil­ tragem da memoria, censura, repressao, sao portanto conside­ radosja por Schopenhauer como a principal origem das neuroses. o homern sao de espirito e precisamente aquele que nio tem ne­ cessidade de esquecer, e Schopenhauer chega a esta formula rigo­


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rosamente Freudiana de que '~ verdadeira saade do espirito consiste na peifei¢o da remimscencta". 11 E igualmente notavel que esta afinidade entre Schope­ nhauer e Freud nio se limita ao papel dos fatores inconscientes na vida psiquica, Em 1914, Freud acabava de ler Schopenhauer e de ai descobrir a prefigura~o da teoria da repressio. Em seguida, pareceque esta leitura teve uma influencia direta sobre seus escri­ tos posteriores, nos quais Schopenhauer e citado com frequencia. E assim que a doutrina do tnstinto de morte e das compulsiJes de repeti¢o apresentam uma analogia manifesta com a tese schope­ nhaueriana da neg~io do futuro e da repeticao absurda da vonta­ de, que estudaremos mais adiante. Este parale1ismo aparece particu1armente no primeiro dos Ensaios depsicandlise, intitulado Alem do principio de prazer, no qual Freud propoe a ideia do "retorno do mesmo" como fator essencial da modifi~o. Alem do mais, 0 pr6prio Freud vai se explicar abertamente sobre esta influSncia em um texto mais tardio.12 As duas prlncipais caracte­ risticas da filosofia de Schopenhauer estao portanto ambas presen­ ; tes em pleno cora~o da psicologia freudiana. De uma maneira geral, parece que a teoria do primado da Vontade e rica de uma serie infinita de prolongamentos, que se confundem com a melhor parte da hist6ria de psicologia posterior a Schopenhauer. A ideiade que nao existeintelectual "em si", nem pensamento que nio esteja ligado a motiva~es inconscientes, tem nele sua origem. A multiplicidade e as trapalhadas dos empreSti­ mos afilosofia classica nio nos devem fazer esquecer esta origina­ lidade decisiva. Se a teoria da "representaeao" vem de Kant, a da "Vontade" e completamente nova; os unicos precursores de Scho­ penhauer neste campo nao sao filosofos, mas dois fisiologos fran­ ceses do tim do seculo XVIII e do comeco do seculo XIX. Cabanis e Bichat. As teorias "vitalistas" desses dois medicos­ fil6sofos rompiam, como sabemos, com as interpretaeoes mecani­ cistas e quantitativas da fisiologia empirista. A genialidade de


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Schopenhauer foi ter descoberto a dimensio dessas consideraeoes fisiologicas, introduzindo-as nos dominios da filosofia. Desde en­ tio, sucedeu ao racionalismo urn voluntarismo irracional: e Scho­ penhauer quem inaugura urna critica da razio classica, opondo-lhe essa intui~ iconoclasta do todo-poder do desejo, mesmo nos dominios do pensamento. Intui~io terrive1, contra a- qual nio cessaram de lutar, desde Schopenhauer, todas as filosofias ciosas de salvaguardar a independencia da razao e a autonomia da liber­ dade, nio como alegam a si mesmas por serena busca de objetivi­ dade, mas por uma secreta vontade moral. Nio e por acaso que Sartre mantem na sua filosofia 0 mito da responsabilidade integral, nem que a maior parte das ideologias progressistas se recomendam o racionalismo. Schopenhauer 0 tinha previsto, e descoberto antes de Nietzsche: para bem servir vontade, Dada mais que as

a

uti!

ideias,

M GUERLOT, na sua Introdu~o a recente reedi~o da Metaflsica do Amor e daMetaflsica daMorte (colI. "lOllS", 1964). 2 Sobre Nietzsche e 3 genealogia, ver particu1armente DELEUZE, G., Ni­ etzsche e afilosofia; (Presses Universitaires de France, 1961; 28 • Ed, 1967) e Nietzsche, as vie, son oeuvre, avec un expose de as phl/osophle (Presses Universitaires de France, 1965). 3 "Iconoclastia na filosofia alema", artigo publicado em IS52 na Westminster Review. - Falarernos sempre da "intui~o" Schopenhaueriana no sentido bergsonia­ no do termo, e do no sentido kantiano, que e0 mais utilizado nos textos de Schopenhauer. 4 N.T. - Traduzo por "teoria da Vontade" por ser assim. que se consagrou essa teoria schopenhaueriana; contudo, para ser fiel realmente 30 pensamento do 1


211 fil6sofo, 0 mais proprio seria traduzi-la por "Teoria do Desejar", Penso que tal ~o facilitaria inclusive a exata compreenslo do conoeito, pois es­ taria mais proxima cia palavra alemi wille ( do verba wollen) usada por Schopeuhauer. . s 0 pensamento de Schopenhauer, Payot, p. Vll. 6 Este tema do falante encontra-se tambem na analise bergsoniana do homo loquax ( 0 pensamento e 0 movente) . 7 Ver a este respeito FAUCONNET, A. Schopenhauer precursor de Freud, artigo publicado no Mercure de France em dezembro de 1933. 8 FREUD, Contribuifiio a histaria do movimemo psicana/ltico, tomo IV das Obras Completes, edi~ de 1922 ( sublinhado por Freud). - N.T. - Letho epara os gregos da antigUidade 0 rio do esquecim.ento. 9 Todas essas formulas 540 extratos dos Suplementos ao Mundo, capitulo XXXII (/Jonde, pp. 1130-1134). 10 Novas conftrlncias sobre a psicana/ise, Gallimard, p. 147.


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Erratas do artigo "Peculiaridades e Dificuldades do conceito de Idealismo Transcendeatal em Kant", aparecido no nUmero anterior (Princtpios, ADo II n.3, juL/dez., 1995): 1) ObIiterou-se a Bibliografia, que se fomecea seguir: Allison, H.E. Kant's Transcendental Idealism. New HavenlLondon: "Yale University Press.1983.

Hartmann, N. A Filosofia do Idealismo Alemao. Tradu9io de Jose Gon~ves BeIo. Lisboa: CalousteGulbenkian. 1983 (2a ed.) Hegel, G

.W.F. Enzyklopaedie der philosophischen Wissenscbaften im Grun­ drisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1970. (Theorie Werkausgabe, Band 8) Vol. I A Logica, _ _ _ _,., Phaenomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Mei­ . ner.1988 (Neu herausgegeben von Hans Friedrich Wessels und Hein­ rich Clairmont; Gesammelte Werke, Band 9) Jacobi, F.H.; Schulze, G.EL; Maimon, S. Et AlIii. R.ecep9io da Cri­ tica da Razio Pura. Antologia de escritos sobre Kant I 1786-1844. Org. Fernando Gil. Lisboa: CalousteGulbenkian.1992. Kant, I. Kritik der reinen Vemunft. Hamburg: Felix Meiner.l956 (hrsg.VOD R Schmidt) -:-:--.........---:-:--=-.• , Werkausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1968.

(in Zwolf Banden, hrsg. Von Wilhelm Weischedel)Lebrun, G. "A Aporetica da Coisa em Si", in: Sobre Kant. RRodrigues Torres Fi­ lho (org.). Sio Paulo: DuminuraslEdusp.l993., pp.51-68. Paton, H.J. Kant's Metaphysic of Experience. LondonlNew York: Allen & Unwin. 2 1951 (la ed. 1936). II Volumes.


213

Rescher, N. "Noumenal Causality", in: Kant's Theory of Knowledge. Ed. By L.W.BeckDordrecht (Holland): Reidel. 1974.,pp. 175-83.

Rivelaygue, J. Leeons de metaphysique allemand. Paris: Grassel. 1990. IT Tomes. Strawson,P.F. The Boundsof Sense. London: Methuen & Co.1966 Seidl, H. "Bemerkungen zu Ding an sich und transcendentalen Ge­ genstand in Kants Kritik der reinen Vernunft" , in: Kant-8tudien, 63 (1972), pp. 306-314. Verneaux, R. Le vocabulaire de Kant. Paris: Aubier- Mon­ taigne.1967. 2) Todas as vezes que aparece 0 nome Jakobi devem ser substituidas por "Jacobi". 3) Na pag.99, aparece "incognocivel" em vez de "incognoscivel"; 4) a nota de rodape n. 17 contem: a) urn erro de digi~ e outro b) de conteUdo: ­ a) as pags. do artigo de Horst Seidl citadas sio308-9ss, e ~ 305-4; b) 0 erro de conteudo e 0 seguinte: Allison deve ser somado ao grupo que defende implicita ou explicitamente que a coisa em si e condi­ ~ do fim8meno; Prauss 1180. Ainda na mesmapig., houve outra oblite~; 0 texto correto da nota n. 18 e 0 que segue: 18 A235ssIB294ss. Ver sobretudo A249, onde Kant identifica nIJu­ meno e coisa em si; A250ss; A253ss, onde 0 objeto transcen~tal e distinguido do nIJumeno. Em B307, porem, 0 nIJumeno em sen~ do negativo e identificado a coisa em si: A dejini ¢o do objeto transcendental em B304 parece indicar 0 mesmo que 0 conceito de noumeno em semido negativo, e em A366 Kant havta tdentiftcado 0 objeto transcendental a coisa em si; cf com A372. Note-se ainda que 0 nsumeno so pode ser pensado pelas categorias (nlJo esque­ matizadas), portanto, a julgar por A247-81B304-5, como objeto transcendental. Cf. Allison, op.cit. pp.242ss.


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