Revista de Filosofia
Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia
ISSN 0104-8694 E-ISSN 1983-2109
Natal, v.18, n. 29, jan./jun. 2011
Princípios – Revista de Filosofia Editor responsável Eduardo Aníbal Pellejero (UFRN) Editor Adjunto Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UFRN)
E-ISSN 1983-2109
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CDU 1 (06)
ISSN 0104-8694
Revista de Filosofia v.18 n.29 jan./jun. 2011 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia
SUMÁRIO ARTIGOS Epicuro e o tema da amizade: a philía vinculada ao érôs da tradição e ao êthos cívico da pólis Miguel Spinelli
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Considerações historiográficas acerca da lógica dos estoicos Cleverson Leite Bastos e Paulo Eduardo de Oliveira
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Similitudes entre as filosofias de Rousseau e Platão Evaldo Becker
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Representação e autoridade política em Hobbes: justificação e sentido do poder soberano Delmo Matos
63
“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”: ou sobre a (des)obediência e a razão em Hobbes Rita Helena Sousa Ferreira Gomes
99
Princípios de economia política em Rawls: uma crítica ao neoliberalismo Leno Francisco Danner
117
Direitos humanos e dignidade política da cidadania em Hannah Arendt Iara Lucia Mellegari e Cesar Augusto Ramos
149
As respostas de Habermas e Rawls às objeções de tipo hegeliano à ética de Kant Charles Feldhaus
179
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Do bem supremo à ética do desejo: contribuições da psicanálise à discussão ética Luiz Paulo Leitão Martins e Vinicius Anciães Darriba
203
Henri Bergson e a crítica à psicologia científica Paulo César Rodrigues
231
A intuição na teoria do conhecimento de William Whewell Rita Foelker e Sonia Maria Dion
245
Entre o dizer e o mostrar: o lugar da secção do solipsismo na estrutura argumentativa do Tractatus Gerson Júnior
259
Descripciones definidas referenciales Pierre Baumann
285
Reconsiderando o verificacionismo Claudio F. Costa
299
Hume e as teorias morais vulgares Marco Antonio Oliveira de Azevedo
321
Analogia humeana entre a ação moral e o movimento mecânico: uma interpretação para a relação entre as paixões e a razão Andreh Sabino Ribeiro
339
Da Dissertação sobre as paixões, de David Hume Jaimir Conte
367
TRADUÇÕES Dissertação sobre as paixões David Hume Tradução de Jaimir Conte
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RESENHAS Descartes, entre o mundo e o homem Claudinei Aparecido de Freitas da Silva
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Epicuro e o tema da amizade: a philía vinculada ao érôs da tradição e ao êthos cívico da pólis Miguel Spinelli * Resumo: Central na chamada doutrina ética de Epicuro, o tema da amizade é neste artigo analisado sob três aspectos: a) vinculado aos princípios tradicionais (denominados de regra de ouro) com os quais várias culturas buscaram reger as relações amistosas; b) de como Epicuro, num sentido diferente do da Academia de Platão, levou para o Jardim a prática da philía como um teste de reconstituição da pólis; c) de como o conceito de utilidade (da opheleía) se vincula ao de interesse e ao de reciprocidade. Palavras-chave: amizade; egoísmo; interesse; reciprocidade; utilidade Abstract: Central to the so-called ethical doctrine of Epicurus, the theme of friendship in this paper is analyzed under three aspects: a) in regards to its link to the traditional principles (the so-called golden rule) with which several cultures have sought to govern friendly relations; b) how Epicurus, in a sense different from that of Plato’s Academy took to the Garden the practice of philía as a test for reconstituting the pólis; c) how the concept of utility (the opheleía) is linked to interest and reciprocity. Keywords: friendship; interest; reciprocity; selfishness; utility
1 Princípios tradicionais reguladores das relações amistosas A amizade concebida e intencionada por Epicuro não visa diretamente a dos homens raros, e sim a dos indivíduos comuns, cotidianos, que estão sempre bem dispostos a fazer algo em favor dos outros, mas não se esquecem facilmente de si mesmos. São raros os homens irrestritamente bons, que em tudo se movem por princípios de virtude, e que tanto na amizade quanto no amor são capazes de “amar o outro por ele mesmo” sob a justa medida que essa prática requer: nem demais e nem de menos para si, nem demais e nem de menos para o outro. A moderação (a justa medida) é em tudo para o humano a regra. Teoricamente ela é bem fácil de ser concebida, mas muito difícil de ser praticada: o motivo decorre de que permanecemos sempre em dúvida quanto ao justo que nos é devido, e, em razão disso, na maioria das vezes, tendemos antes para mais que para menos. O pior disso é que (na medida em que queremos nos emendar) o para menos (o moderar-se) em *
Professor de História da Filosofia Antiga do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. E-mail: migspinelli@yahoo.com.br [Artigo recebido em 18.04.2011, aprovado em 30.06.2011.]
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geral a nós se impõe como anulação, o para mais (na medida em que exageramos) desperta a frustração do querer, e, com ela, o nobre sentimento que, dessa vez, vamos nos emendar. O bom desse sentimento decorrente do exagero é que ele nos positiva o ânimo: dá força e, sobretudo, desperta a “emoção” de que estamos prestes a ser melhores. Sob todos os aspectos, é difícil estabelecer um marco de quando os homens se puseram a buscar para si uma justa medida (conceito que define o amor para si) e em que momento, e sob que termos, estabeleceram, na relação com o outro, sentimentos de amor ou de amizade: emoção e zelo recíproco na administração de interesses. Por certo tais sentimentos não afloraram tardiamente e inclusive antecederam a consciência da justa medida, que deve ter advindo como consequência da busca sincera no sentido de administrar tais sentimentos e interesses. O amor e/ou a amizade (enquanto sinônimos de relações amistosas 1 ) tiveram o seu início assim que os homens, sob impulsos afetivos ou de cordialidade, começaram a reciprocamente se carecer, e constataram que isso era muito bom, sobretudo útil, e se dispuseram a regular e preservar essa carência. Dos princípios tradicionais reguladores das relações humanas amistosas, temos alguns que circularam pelas diversas culturas e que nelas se alastraram feito ditames de um dever: um deles foi a chamada lei de talião, cujo nome foi convencionado a partir do latim, de lex talis (literalmente, tal lei), e expressava uma reciprocidade – para tal crime tal lei – tão ferrenha que resultou na máxima por todos conhecida: a do “dente por dente olho por olho” (pela qual ao agente da ação era aplicado como pena o mesmo crime por ele cometido). Talvez o princípio mais antigo, ou, pelo menos, o mais universal, aquele que mais se expandiu pelos diversos povos e culturas (em geral proferido em termos negativos) foi este: “não faça ao outro o que não quer para si”. O preceito, sob termos positivos, de “amar o outro como a si mesmo” também é antigo, faz parte da legislação do Levítico, concedida a Moisés como orientação para governar com justiça o seu povo 2 . O preceito foi nesse momento concebido como uma forma de governo, como um modo de regular as relações entre governantes e governados, e não, a rigor, a vida dos indivíduos entre si. 1
Cícero, no De finibus, registra que foi da palavra amor que derivou o nome de amizade – amare, e quo nomem ductum amicitiae (II, XXIV, 73). 2 Lv., 19, 18 – La Bible de Jérusalem. Paris: Les Éditions du CERF, 1974.
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Entre os gregos (no interior das póleis) consta uma máxima tradicional proferida para regular as relações dos cidadãos. A Pólis (cabe antes dizer), e esta era uma característica bem própria dela, não comportava uma rígida relação entre governantes e governados, e a razão disso é porque ela era constituída por uma comunidade de cidadãos, dentro da qual cada membro tinha a responsabilidade de preservá-la, e de, sobretudo, fazê-la prosperar. Daí o preceito – “dê ao outro o que lhe é devido” – sendo que esse outro não era o humano em geral, mas o cidadão em particular (aquele ao qual cabia preservar, para além do todo, interesses familiares e corporativos). Tal preceito teve longa vigência nas relações cidadãs, e também promoveu, no desenvolvimento histórico da Filosofia, muita discussão, em particular no sentido de determinar racional e verbalmente qual o devido que ao outro caberia ser dado. De início, foram os pitagóricos que filosoficamente desdobraram o conceito de devido, sob outros termos. Para o conceito de devido, eles conceberam um outro, o que convém, e, para o que convém, ainda um outro, o que é proporcional. Platão, na República (no livro I, que trata sobre a justiça), além de pôr em questão o princípio – “dê ao outro o que lhe é devido” –, saiu em busca de um melhoramento. A partir dos pitagóricos, e, sobretudo, por influência de Heráclito, que inventou para os gregos o conceito de logos comum como critério de verdade, Platão concluiu que o devido enquanto comum não era propriamente o logos (a palavra racionalmente proferida), mas o bem: pressuposto de que a razão humana carece para se ordenar e se arreglar. Platão definiu esse bem sob dois aspectos: como bem excelso (aquele que racional e verbalmente podemos conceber) e como bem moral (aquele que na vida prática podemos realizar). Trata-se, com efeito, de apenas um bem, que, por sua vez, nunca é restritamente um bem próprio, mas universal, e, portanto, comum. No contexto da filosofia grega, a questão que mais entrou em pauta nas discussões filosóficas, pelo que consta, foi a seguinte: se caberia a um homem amar (ser amigo, querer bem) mais a si mesmo que a um outro? Tal questão se fazia acompanhar desta outra: na medida em que se requer de alguém ser amigo de um outro não lhe cabe antes ser o melhor amigo de si mesmo, e, portanto, amar a si próprio acima dos demais? Só entre os parentes, de modo particular entre pais e filhos, era mais fácil admitir e, inclusive, observar o amor irrestrito: aquele amor que deseja para o outro
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Epicuro e o tema da amizade
um bem concedido em vista daquilo que ele é. Ampliado para além da parentela, esse amor (no sentido de pelo que eu sou ou em vista de mim mesmo) também era reconhecido como plausível nas relações de amizade. Nas relações para além da vida familiar (na qual sempre se inclui uns poucos amigos), para fora desse universo, imperava a lei. Nesse universo (dentro do qual se diluíam os vínculos afetivos), antes de amar irrestritamente uns aos outros, cada um se empenhava em amar (se proteger, se garantir) a si mesmo perante os demais. Foi, pois, nas relações extensivas com os outros, que os gregos proveram o debate sobre uma grande descoberta: a de que o homem ama a si mesmo acima de tudo. Num contexto tal como o da cultura grega em que não havia um conceito altruísta de indivíduo (entre eles o indivíduo era a Pólis, no máximo os pais, os filhos, os parentes e os “verdadeiros” amigos), resultava que o outro era alguém muito distante, sobretudo uma ameaça e um perigo. Para o outro, no espaço pouco conhecido no universo das relações na Pólis, os gregos inventaram a justiça da lei, fundada no seguinte princípio: dar a cada um aquilo que é devido pela lei. Distinto, por exemplo, dos antigos hebreus, os gregos tinham uma instituição abstrata, a Pólis, a preservar, e, nela, no universo dessa instituição, o outro era sempre aquele ao qual cabia por si mesmo necessariamente se safar. Daí um primordial elemento (um certo tipo de caracterização) que se impôs no universo das relações: o interesse (governado por princípios de utilidade ou do útil e do agradável, e, concomitantemente, por cuidado, zelo, por preocupação e até mesmo por intensa afeição). O conceito de interesse, os filósofos gregos o conceberam de pelo menos três modos: o interesse subjetivo (que cabe ao sujeito preservar a si mesmo); o interesse requerido pela lei (que coincide com o da Pólis, e que, sob pena, cabe a todos defender e preservar); e o interesse (nesse caso posto em pauta pelo filosofar) natural, que congregava o subjetivo em termos objetivos, ou seja, do sujeito enquanto humano, universalmente concebido. O interesse, por sua vez, colocou em questão o próprio teor conflituoso das relações: se me interesso pelo outro em favor apenas de meus interesses, prejudico os interesses dele, e, por suposto, ele (caso não reconheça em minha ação qualquer benevolência) logo me descartará; se me interesso pelo outro em vista dos interesses dele, prejudico a mim mesmo, tanto mais na medida em que ele, satisfeito, não venha a dispor para comigo
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de qualquer benevolência. Foi justo para dirimir esse conflito que a comunidade (a instituição) da Pólis criou a lei, relativa à qual surtiram dois modos de concebê-la: o retórico, que punha em pauta o como fazer o outro acolher os meus interesses (o que é bom, benevolente para mim) como se fossem interesses dele, e, sobre ele, me favorecer, levar vantagem; e o filosófico, que tinha por propósito o como conceber um interesse verdadeiro sobre o qual imperasse o bem (o benevolente) recíproco, sob uma medida justa, reconhecido, enfim, como bem comum. A Retórica, o filosofar retórico (no qual impera a capacitação em prover raciocínios estratégicos de escape ou fuga) teve muito mais sucesso entre os gregos (e também na posteridade) que a Filosofia, que o filosofar epistêmico. A principal característica desse filosofar, desde os seus primórdios, consistiu em delimitar racionalmente o que é ser verdadeiro (justo, devido), e, ao mesmo tempo, submeter esse suposto verdadeiro sob critérios nominais (verbais, discursivos) de verdades racionalmente proferidas, com validade universal. É certo que, na Filosofia, a questão primordial das relações recaiu sobre o império da justa medida do bem recíproco (conceito que remonta a Pitágoras); entretanto, juntamente com o conceito de justa medida (concebido no contexto das relações) foi o de bem (em dependência do qual a medida caberia ou conviria ser justa) que esteve em pauta. Assim que os pitagóricos se ocuparam em delimitar o que conceberam de justa medida, deram prevalência à racionalização do suposto como justo e o fizeram coincidir com o que é bom. Sob tal termo, eles não se ocuparam em investigar o bom para si, tampouco o bom para o outro, e sim, o bom para ambos (para todos), de tal modo que o bem por eles investigado (tarefa da qual participaram Sócrates e Platão) foi o que denominaram de o bem em si, noutras palavras: o bem universalmente considerado. Supondo que a justiça é sempre em relação a, os pitagóricos trouxeram para a discussão dois fundamentais termos para a explicitação do justo: o de reciprocidade e o de proporcionalidade. Em ambos os casos, eles puseram na pauta do filosofar dois referenciais (práticos) enquanto pressupostos do questionamento teórico relativo ao justo: o da lei (fonte do seguinte questionamento: qual a reciprocidade e a proporcionalidade do justo com o disposto na forma da lei?); o ser cidadão (base da seguinte questão: qual a reciprocidade conveniente em dependência da qual se possa
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delimitar, na relação de um cidadão com outro cidadão, a proporção justa para este e para aquele?). O tema da igualdade não ficou fora de pauta, porém não se constituiu em questão primordial da discussão filosófica; a igualdade entrou em questão na medida em que o ser cidadão foi sendo aos poucos reconhecido como indivíduo, não, todavia, em sentido político, mas antropológico. Em sentido político, o cidadão não era propriamente considerado como um um para si, e sim, como um um para a Pólis: um um requerido e voltado para o bem da administração dos negócios públicos (dos destinos e interesses da Pólis). Em sentido antropológico o um para si (o um em si mesmo, enquanto subjetividade isolada) era filosoficamente considerado do ponto de vista do universal humano (enquanto ser homem), unidade em decorrência da qual se predicava a igualdade. Daí que, sob esse aspecto, a igualdade considerada dizia respeito a uma unidade predicada da substancia (do ser homem), e, sendo assim, tanto em sentido político quanto em sentido antropológico, o indivíduo só era considerado ele mesmo (no sentido de alguém que é a si mesmo) justamente naquilo em que é igual aos demais: pela lei e pela substância (ser homem). Foi, portanto, em razão disto, ou seja, do fato de o cidadão não se constituir dentro da Pólis em uma unidade isolada (em um um para si), por, no máximo, ser um em referência ao todo do qual era o representante, que o tema da igualdade não abarcou o indivíduo em si mesmo. Não está aqui descartada a consciência de si no sentido de “este sou eu” (tal como, por exemplo, foi proferido no mito de Narciso 3 ). A questão aqui em pauta se dá em termos meramente subjetivos, ou seja, no reconhecimento pessoal de que “eu sou eu”, não em sentido público (como hoje até mesmo entre os populares se ouve) de que “cada um é cada um”: uma individualidade irrestrita, que, em seus limites e possibilidades, deve ser reconhecida e respeitada. Sob o aspecto antropológico, esta, todavia, é a questão (na qual se sobreleva o indivíduo humano enquanto interesse e vontade – em termos de querer, de escolher, de livremente praticar ou deixar de praticar certos atos), o humano foi considerado, na relação com os demais, não como
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Tratamos longamente desse tema no artigo “De Narciso a Epicuro: do emergir ao resgate da individualidade”, in: Revista Hypnos, São Paulo, n.25, 2010, p.129-263, retomado no livro “O Nascimento da Filosofia Grega e sua Transição ao Medievo”, Caxias do Sul: Editora Universidade de Caxias, 2010, p.95ss.
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(rigorosamente) igual, mas como diferentes, e, em muitos pontos, desiguais, no máximo semelhantes. Os indivíduos – este foi o pressuposto, decorrente de observação empírica – são, um para o outro, fontes de incontáveis conflitos; essa, aliás, foi a razão pela qual Heráclito (também ele um pitagórico 4 ) acabou pressupondo que o justo (sob os termos de uma harmonia ou ordem) nasce das diferenças, de modo que é a discórdia que gera a necessidade da justiça. Nas relações entre os indivíduos, todos sabemos, há mais divergências de interesses que convergências, e é sempre sob duras penas que as convergências se mantêm. Bem por isso, supostos como iguais, os indivíduos foram tidos pelos gregos como apenas semelhantes: são iguais por força da lei, mas diferentes por força dos desejos (vontades, gostos, prazeres) e, sobretudo, por força dos interesses (daqueles pelos quais o indivíduo sai em busca de sua própria felicidade ou de suas realizações pessoais). Quer dizer: são indivíduos diferentes (ninguém é igual) que se unem em amizade por ideais comuns (recíprocos): cultivar o bem estar e a vida feliz. Não havia entre os gregos, não tão explicito como hoje entre nós, uma doutrina que os tornassem homogêneos, ou mesmo algum poderoso meio de comunicação ou qualquer instituição que lhes nivelasse coletivamente a consciência. Não sendo assim, então o que os unia era a proximidade de vida, a cumplicidade, o companheirismo, a ajuda recíproca, e uma comunidade de intenções (a Pólis). Cada um, como observou Duvernoy, e isto de fato é o que propunha Epicuro, teria de ser (espontaneamente, sem qualquer coação, apenas por gosto de viver) modelo de felicidade para os outros: realizar esse modelo aos olhos dos outros, com o que se estimularia um encorajamento permanente de perseverança e, a par dele, uma compartilha nessa mesma perseverança 5 . Na medida em que a Pólis se constituía num um agregador de um múltiplo (em dependência da lei, que fazia da Pólis uma harmonia ou ordem), os cidadãos e os demais
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O grande teórico que fomentou o conceito da proporcionalidade como critério de justiça foi sem dúvida alguma Heráclito. Ele foi um pensador solitário, autônomo, mas não plenamente desvinculado dos ideais pitagóricos que, para ele, se constituíram em fonte estimuladora do seu pensar. Heráclito se valeu do pitagorismo tanto quanto o pitagorismo se valeu dele. 5 Duvernoy, J.-F., 1993, p. 129
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membros da Pólis agregados a esses mesmos cidadãos (a começar pelos familiares – mulheres, filhos, pais, escravos –, e, além deles, os que nas assembléias o cidadão representava), se constituíam num múltiplo, e, por força da lei, num todo, mas não propriamente num conjunto de unidades para si subjetiva e objetivamente consideradas. Nessa ocasião, o outro, rigorosamente falando, perante o qual o cidadão deveria irrestritamente se ocupar (no sentido de ocupar-se do outro por ele mesmo) era a Pólis, que a cada um, em nome dos ditames da lei, requisitava deveres e dotava de direitos. 2 A amizade na Pólis, na Academia de Platão e no Jardim de Epicuro Epicuro é de uma época (fruto do domínio de Alexandre) em que no mundo grego se deu a dissolução da Pólis, e no qual passou a prevalecer não mais a comunidade cidadã, mas um agrupamento disperso de indivíduos. Na medida em que a Pólis se desagregou (que foi dissolvida em sua própria ordem), perdeu a coesão e deixou de ser o outro para o qual convergia todo o empenho e zelo cidadão. Destituída de harmonia e de coesão, a Pólis perdeu a unidade e passou a abrigar uma multiplicidade de homens prontos para a desavença e o conflito. Não que não houvesse mais lei e poder, a questão não era essa, mas esta outra: não havia mais objetivos (ideais, esperanças) e interesses comuns a ser por todos visados e perseguidos, de modo que a lei perdeu a sua força (moral) de coesão em favor da de coerção. Ao tornar-se a lei, sobretudo coercitiva, o que na verdade em última instância se dissolveu foi justamente a philía (a reciprocidade de sentimentos e afetos, de camaradagem, de companheirismo) que transformava os cidadãos em agentes solidários, concordes e complacentes com o bem-estar da Pólis. Não sendo obrigados a ser amigos entre si (a amizade não se contrata), eram, entretanto, e conjuntamente, amigos (philíais) da Pólis, perante a qual administravam o interesse, o cuidado e a busca do útil sob o signo do bem comum. Assim como na Pólis, a base fundadora das “escolas filosóficas” gregas se deram sob focos de amizade. Elas surtiram como um efeito das relações que criaram vínculos, promoveram liames, e que, sobretudo, requisitaram a dissolução do egoísmo (característica da sofistica). Na Academia de Platão a amizade surtiu como uma exigência da própria discussão dialética, como um compromisso que compreendia um esforço
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(um liame) comum em busca da verdade. A amizade qualificava a discussão: entre amigos, disse Sócrates a Mênon, a contestação recíproca ganha em suavidade e o raciocínio se desenvolve mais serenamente 6 . Na Academia, a discussão de modo algum pretendia ser sofista, ou seja, empreendida no sentido de apenas praticar a arte ou a técnica do argumentar filosófico, de basear unicamente a discussão em virtuoses verbais e de raciocínio; ali, o primordial, consistia em buscar, mediante esforço comum, a verdade, compromisso alegado para o conjunto dos debatedores, e pelo qual a vitória não consistia em louvar um vencedor (subjetivamente considerado) das técnicas de argumentação. Daí por que a busca pela verdade criou, na Academia de Platão, parcerias, comprometeu indivíduos, dispondo-os, juntos, a sinceramente se empenhar na busca do melhor. De fato, o que ocorreu na Academia foi (em menor escala) o mesmo que se praticava na Pólis: um empenho sincero conjunto em vista da prosperidade, da justiça e do bem-estar de todos. Foi esse empenho que criou a parceria e o liame, que, a par disso, promoveu um novo conceito de interesse – o interesse comum –, e, com ele, a idéia da reciprocidade definida pelo conceito de zelo e de cuidado. Foi assim que na Academia, tal como na Pólis, a amizade se tornou necessária ao esforço comum, pelo qual corremos menor risco de se desencorajar: a amizade reanima, fortifica e sustenta os vínculos 7 . Isso é fato, e foi por essa razão que a ordem interna da sociedade fundada por Epicuro não se baseou numa ordem legal, de direito, e, sim, de amizade. O voluntário, nessa sociedade, gerido por relações de amizade, veio a ser bem distinto do voluntário, na Pólis, regido pela lei. Não sendo contratada, a amizade é uma espontaneidade que emerge entre os
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Platão. Mênon, 75d. Dois termos do dizer de Sócrates merecem destaque: o jogo entre dialégesthai, discutir, e dialektikôteron (literalmente = dialeticamente) raciocinadamente. O próprio Sócrates define esse portar-se intelectivo mediante dois outros verbos de ação: apokrínesthai (contestar, responder) e prosomologéô (consentir, manifestar) no sentido de declarar a própria opinião. A discussão dialética teria de ser, pois, dual e declarativa (essa era a requisição de Mênon a Sócrates), no sentido de que cada um deveria inevitavelmente trazer ao cerco do debate as próprias opiniões. Acompanhamos aqui palavras de Festugière: “L'amitié est necessaire à la dialectique, sans quoi celle-ci tournerait en éristique. Elle est nécessaire à l'effort commun, où l'on courrait le risque de se décourager. Durant l'ascension requise du futur gouvernant, l'amitié a dès lors un grand prix: elle reanime, elle fortifie, elle soutient l'élan” (Festugière, André-Jean., 1997, p.43).
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homens: “A amizade (constatou Epicuro) dança feito um mensageiro em volta da terra anunciando a todos nós o despertar para a felicidade” 8 . O emergir da amizade abre as portas do amor, e, todos sabemos, o amor se infiltra na amizade bem mais que a amizade no amor. Entre a amizade cultivada pelos acadêmicos e a que se estabeleceu entre os epicureus se deu sob base e termos distintos. Na escola do Jardim, distinto da Academia, a amizade (suposta por Epicuro) não veio a ser apenas um meio estimulador da discussão e da pesquisa, mas um fim em si, ou seja, ela era cultivada como um bem (ou valor) reconhecido em si mesmo. Enquanto “no sistema de Platão, o érôs ou a philía não tinha senão valor intermediário”, a essência da amizade requisitada por Epicuro “não era apenas, como nas outras escolas, um estimulante durante a pesquisa”, mas a principal ocupação 9 . Ali o cultivo da amizade não tinha, pois, mera função estratégica de boa convivência, mas representava uma força educadora dos desejos ou sentimentos (das epitymías 10 ), das malevolências da vida em comum (tàs phaúlas synêtheías 11 ) e também da prudência, do naturalmente admitido por todos como belo ou valioso e da justiça (phronísmôs kaì kalôs kaì dikaíôs 12 ). Daí que a amizade, entre os epicureus, vinha a ser reconhecida como um elo de sociabilidade: aquele mediante o qual eles mimavam um “imaginário”, ao mesmo tempo real e místico, de cuidados individuais e recíprocos, quer para consigo mesmo quer para com os demais membros da comunidade. De modo algum se tratava de uma amizade retórica, daquele tipo que promove a emoção como forma de subornar o enlace, e sim, filosófica, que caracteriza pela promoção do cuidado e da compartilha.
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Sentenças vaticanas, 52 “Ce qui caractérise le fond de cette amitié, c'est qu'elle n'est plus seulement un moyen, comme dans l'Académie, mais bien une fin en soi. Dans le système de Platon, l'érôs ou la philía n'a valeur que d'intermédiaire”; “... l'amitié n'était pas seulement, comme en d'autres écoles, un stimulant au cours de la recherche: elle devenait l'occupation première des élus” (Festugière, A.-J., 1997, p.42 e p.69). 10 Epicuro, inclusive, fornece a esse respeito uma regra: “Todos os desejos devemos sempre de novo submetê-los à seguinte questão: o vem a ocorrer caso se realize aquilo que espero alcançar com esse desejo, e caso ele não se realize” (Sentenças vaticanas, 71). 11 Sentenças vaticanas, 46 12 Máximas principais, VI 9
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“Mas, verdadeiramente (louvou Cícero), em uma só casa, e, além disso, pequena, quão grande número de amigos teve Epicuro, e quantos sentimentos de amor compartilhados!” 13 . Cícero, inclusive, reporta como sendo de Epicuro o seguinte parecer: “que a amizade não se separa do prazer, e a razão pela qual deve ser cultivada está em que, sem ela, não é possível viver com segurança, sem inquietude e agradavelmente” 14 . Bem por isso que a amizade pressuposta por Epicuro pretendeu que a Filosofia levasse aos homens, simultaneamente, duas coisas: “a paz para consigo mesmo e a amizade para com os outros” 15 . E assim ele não concebeu a amizade apenas como um elo unificador da escola (do Jardim), mas de toda a comunidade humana. Por sua vez, paz e felicidade vieram a se constituir no grande interesse (no útil ou proveitoso) que a amizade deveria prover nos humanos: no em si mesmo e no outro. A questão que se impôs a Epicuro foi bem realista: como compatibilizar o amor (a philía) pela Pólis, que inevitavelmente prosperava fundada no intercâmbio de interesses e em cálculos de utilidade, com o cultivo (não propriamente do desinteresse ou do altruísmo por um outro) da amizade com valor objetivo para si mesmo. Objetivo, por que deveria valer igualmente para todos, sem que o “para si mesmo” redundasse na trama de interesses e utilidades (subjetivamente) rasteiras, e sim, objetivamente humanas. Se as relações humanas, a fim de serem úteis e produtivas, tinham que ser relações de amizade, então aos epicuristas se impunha (por indicação de Epicuro) apenas um bom meio para a edificação de tais relações: indo ao outro sem que esse ir promovesse no outro desconforto, peso ou excesso. Tratava-se de levar ao outro um eu bem cuidado, e essa foi a grande razão pela qual a amizade se vinculou ao amor. Remonta, com efeito, a Aristóteles (com o qual Epicuro estreitou grandes afinidades) a constatação, feito uma confirmação de realidade, segundo a qual “fazemos amizades com vistas na
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“At vero Epicurus una in domo, et ea quidem angusta, quam magnos quantaque amoris conspiratione consentientis tenuit amicorum greges!” (De finibus, I, XX, 65). 14 “... amicitiam a voluptate non posse divelli ob eamque rem colendam esse, quod, <quoniam> sine ea tuto et sine metu vivi non posset, ne iucunde quidem posset” (De finibus, II, XXVI, 82). 15 “... l'auteur rapelle enfim que sa philosophie prétend apporter tout à la fois à l'homme la paix avec soi-même et l'amitié avec altrui” (Salem, J.. Démocrite, Épicure, Lucrèce: la vérité du minuscule. Fougères: Encre Marine, 1998, p.22).
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utilidade” 16 . Aristóteles também reconheceu e não teve qualquer constrangimento em dizer que a amizade “é mais necessária na adversidade” que na prosperidade. É na adversidade que carecemos de ajuda alheia (reconheceu), e esse é o “motivo pelo qual são os amigos úteis que buscamos” 17 . A primordial questão para Aristóteles, assim como para Epicuro, não estava em reconhecer no conceito de utilidade a definição da verdadeira amizade, e sim que a maioria (absoluta) das relações humanas de amizade se pautam primordialmente por esse conceito, e é ele, de alguma maneira (sobretudo na medida da consciência que o utilizado somos nós – que sou eu), que nos desperta para a reciprocidade na qual vem a imperar a gratuidade 18 . Consta em Cícero, ter dito Epicuro que, “no início, buscamos um amigo por causa da utilidade, depois, com o desenrolar da convivência (usus), passamos a amá-lo por ele mesmo, prescindindo-nos até mesmo de qualquer prazer” 19 . Essa é uma questão, a outra diz respeito à busca do útil universalmente válido: aquele pelo qual podemos “fazer uso” de nós mesmos, e, claro, do outro, e vice-versa (o outro que usa de si mesmo e de mim mesmo), mediante uma reciprocidade fundada nos elos do amor e/ou da amizade... Ninguém ama solitário e sozinho! Sócrates, no Tribunal, no exame derradeiro de seu magistério filosófico, disse ter dado a cada cidadão que desejava ser “o melhor e o mais sensato (béltistos kaì phronimôtatos)” o seguinte conselho: “que ele cuidasse 16
Ética a Nicômaco, IX, 10, 1170b 24-25 Ética a Nicômaco, IX, 11, 1171a 24 18 Ajuda-nos a entender o que disse Epiteto a respeito do que denomina de vontade da Natureza: “É possível compreender a vontade da natureza nas situações em que não somos movidos por interesses pessoais. Por exemplo, quando o escravo de um outro quebra um copo, diz-se prontamente: “são coisas que acontecem”. Daí, pois, quando é teu copo que se quebra, cabe comportar-se de maneira tal como perante o copo do outro que se quebrou. A mesma conduta cabe transferi-la para coisas mais graves. Morre o filho ou a mulher de um outro, todos, sem exceção, sabem dizer: “são coisas que acontecem aos humanos”. Quando, porém, se passa conosco, prontamente dizemos: “Oh como sou desafortunado”. É preciso, então, que nos lembremos, frente ao que nos ocorre, de nossa reação com o mesmo ocorrido aos outros” (Epiteto. Manual/Encheirídion. XXVI). 19 “... primo utilitatis causa amicum expeti, cum autem usus accessisset, tum ipsum amari per se etiam omissa spe voluptatis. hoc etsi multimodis reprehendi potest, tamen accipio, quod dant. mihi enim satis est, ipsis non satis. nam aliquando posse recte fieri dicunt nulla expectata nec quaesita voluptate” (De finibus, II, XXVI, 82). 17
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bem mais de si que dos próprios bens, bem mais do povo que dos interesses desse mesmo povo” 20 . Sócrates (e disto Epicuro se tornou herdeiro) antepunha o cuidado de si como prioritário a qualquer outro tipo de cuidado. Quem não cuida de si (isso, claro, na medida em que pode e deve se cuidar) fica perante, os demais, descuidado. Foi em vista desse descuido que Pitágoras ensinava aos seus discípulos a necessidade de cortar os fundos dos próprios fardos e (sobretudo) dos alheios que lhes pesavam sobre os ombros! Esse comportamento a todos ele requeria feito uma tarefa estritamente pessoal (subjetiva); pessoal por que o outro, nesse ofício, não poderia (ao menos não conviria) estar implicado: ser onerado com o que não lhe pertence. Todos, afinal, temos lá as nossas razões para nos lastimar e, quando preciso, para chorar! Carecemos, isto é evidente, de cuidado e de amor por si mesmo (da autárkeia), e isto, “amar a si mesmo” não é egoísmo. Se assim fosse, Jesus (de todos o mais altruísta, e que estendeu o preceito do Levítico para o consórcio das relações subjetivos) não teria dito: “ame ao outro como a si mesmo”. Ele não teria feito do “si mesmo” a referência do amor ao outro. Inclusive em Epicuro encontramos uma antecipação dessa prescrição, na medida em que configurou o “amor a si mesmo” sob os termos de um modelo (medida, referencial) orientador das relações de amizade. Antes dele, Aristóteles, imaginou este referencial: que “nas relações de um homem para consigo mesmo”, cabe ser, ele próprio, “o seu melhor amigo, e, bem por isso, amar a si mesmo acima de tudo” 21 . Aristóteles, aliás, não fez uma, mas várias vezes menção ao amor a si mesmo como móvel da impulsão do amor; impulsão (páthos) que, por si só, nada tem de negativo: “os que amam por amor da utilidade (dizia), amam em vista do que é bom para eles mesmos” 22 . A grande questão está, pois, em definir essa utilidade que, vem a ser negativa caso o para si mesmo e o amar a si mesmo careçam de justa medida (nos termos de uma mediania ou mesotês relativa a nós determinada mediante exercício da phrónêsis) e de reciprocidade. No universo das relações – eis a questão, válida tanto para Aristóteles quanto para Epicuro –, não há como o humano abrir mão de si mesmo: primeiro, porque não há como ir ao outro sem “ser a si mesmo” 20
Platão, Apologia de Sócrates, 36c Ética a Nicômaco, IX, 8, 168b 8-9 22 Respectivamente: VIII, 2, 1156a 13-14; IX, 8, 1168b 9-10 21
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(ou deixando de ser a si mesmo, quer se anulando, quer se dissimulando); segundo, porque abrir mão de si mesmo corresponde a excluir o outro para o outro da relação (trata-se de uma contradição). Não sendo solitária, então a amizade efetivamente só se dá no universo das relações; e, sendo assim (segundo a proposição de Epicuro), então, o conceito de “não pesar sobre o outro”, requer inevitavelmente uma consciência coletiva, ou seja, trata-se de um saber que carece de abranger a todos. Por decorrência deste “não pesar sobre o outro”, o ser egoísta não se aplica a quem ama ou cuida bem de si mesmo, e sim a quem toma a si mesmo (seus gostos, preferências, juízos subjetivos de valores, o que lhe convém) como parâmetro para os outros. Não é egoísta quem cultiva o amor por si mesmo, mas quem administra os seus interesses tomados como parâmetros para os demais, e que deles jamais abre mão frente aos outros, mesmo na clemência do infortúnio alheio: sacrifica uma vida, uma “amizade”, mas não um princípio. Por ser o egoísmo suporte do orgulho, da vaidade e da presunção, o egoísta abdica até de si mesmo, mas não de seus gostos ou de suas preferências. Ninguém é auto-suficiente o bastante para não carecer de um outro. Podemos e devemos contar uns com os outros, mas sem pesar-lhes a vida, de modo que a característica fundamental de tal consciência consiste em saber que não devemos sobrepor (salvo em inevitáveis e prementes necessidades) a nós mesmos como um peso para o outro. Por suposto ninguém basta em tudo a si mesmo, mas, na referência ao outro, devemos recorrer só ao estritamente necessário. Cada um, isto é, eu e meu amigo devemos cuidar bem de nossas próprias necessidades e gerir nossas apetências. Isso não compromete a amizade. Na medida em que Epicuro elegeu a amizade num nível prioritário das relações humanas, o primordial, enquanto auto-suficiência, ele o pôs no cuidado de si (na autárkeia), melhor dizendo, no gerenciamento de si por si, que, segundo ele, tem como “o maior fruto [...] a liberdade (a eleuthería)” 23 . A auto-suficiência de que fala não corresponde, em sentido egoísta, a um “bastar-se a si mesmo”, e sim, em ter a capacidade de viver sem depender de outrem, em ser, perante o outro, independente. De todos os sentidos da autárkeia o mais apropriado é este: o do contentamento consigo, da satisfação de ser capaz, por si mesmo, de gerenciar e conduzir a contento a própria vida.
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Forçosamente carecemos, em nossas relações humanas, de conquistar independência (autonomia e liberdade) particularmente no que concerne ao cuidado de si: à capacidade de se reger (no que se inclui, sobretudo, a provisão dos próprios princípios) sem maiores pesos para os demais. “O sábio (ensinou a esse respeito Epicuro – e, por sábio, ele indicava o detentor do aprendizado das relações humanas e não dos ditames da ciência), acuado pelas necessidades da vida, sabe mais partilhar dando que recebendo, tão grande é o tesouro da autonomia (autarkeías) alcançada por ele” 24 . A autonomia, com efeito, não nos vem de graça, ou por dádiva da natureza, e ser autônomo consiste não só em se desfazer de estruturas opressoras e alienantes externas, como também das internas, daquelas que nos levam a ser, para o outro, o seu opressor. Daí que a educação à compartilha (que já na antiguidade foi concebida como fundamento das relações familiares, sobretudo entre pais e filhos) se impôs como um mandado divino, revertido depois em mandamento bíblico: “honrar pai e mãe”. Cabia aos pais se ocupar com os filhos na infância, e, aos filhos, com os pais na frágil velhice. A solicitude e a reciprocidade são os conceitos fundamentais que definem a philía dos epicureus. Um amigo necessitado (mesmo quando ele não se ajuda – sendo que isto, o não se ajudar, é quase que inconcebível nas relações de amizade supostas por Epicuro) jamais se abandona com facilidade, tampouco, perante um amigo, cabe a postura da indecisão. “Nem os precipitados (sentenciou Epicuro) nem os indecisos merecem aprovação para a amizade; dá-se que até grandes riscos é requerido se expor em favor da amizade” 25 . E acrescentou: “Partilhemos com os amigos, não as lamentações, mas os cuidados” 26 . Tal compartilha, ele a denomina de sympátheia, termo com o qual expressou uma afinidade moral, em particular uma similitude (dentro de uma solicitude ou concórdia recíproca) no sentir (no páthos, nos termos de uma apetência) e no pensar que aproximam entre
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Sentenças vaticanas, 44. No texto grego autarkeías, ao invés de com capa vem grafado com khi, certamente um descuido. 25 Sentenças vaticanas, 28 26 Partilhar foi traduzido de sýmpathéô (verbo que, em grego, expressa a ação de colocar em acordo ou em reciprocidade o páthos, os sentimentos, as emoções, a impulsões, as paixões); cuidados de phrontízontes (expressão também das preocupações ou inquietações que atingem a mente <phrên> humana).
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si os indivíduos e os levam a se empenhar numa mesma direção (no caso, a posse da amizade e das requisições que ela comporta). Trata-se, pois, de um empenho que favorece a concórdia (homonoúsês), que vem a ser o interesse maior a que uma comunidade pode aspirar: “Maravilhosa é a visão do próximo (tôn plêsíon) quando já na primeira aproximação concorre para a concórdia, ou ao menos ativa algum interesse (spoudên, cuidado, zelo) nessa direção” 27 . Está visto, pois, que a noção de amizade (da philía) em Epicuro, é distinta de todo um utilitarismo reles que lhe atribuem. Ela até mesmo comporta perspectivas próprias da idéia cristã do amor, a ponto, por exemplo, de requerer que o verdadeiro amigo é aquele capaz de antepor o amigo a si mesmo, chegando, inclusive, a sacrificar a própria vida (o maior de todos os bens) em favor dele. Não se trata de se anular em favor do outro (do amigo) feito alguém que se compraz com a própria anulação 28 , ou então como quem aguarda recompensas extras dos deuses ou das divindades, e sim de um fazer em benefício da própria amizade a título de um dever inerente ao pacto de amizade. Quem, portanto, age em favor do amigo aguardando benefícios extras, assim o faz em vista de outros interesses, de modo que atraiçoa o dever e os interesses inerentes à própria amizade. Não é sem motivo que Cícero fez constar no De finibus que alguns epicureus costumavam atribuir a Epicuro a seguinte afirmação: que “os sábios fizeram entre si uma espécie de pacto pelo qual se obrigavam a ter, em relação aos amigos, o mesmo ânimo (amor) que cada um tem para consigo mesmo” 29 . Este, pois, era o pacto: é devido amar uns aos outros como a si mesmos. Foram, pois, esses pressupostos que tornam a ética de Epicuro distinta das demais. A idéia epicurista de “regrar a conduta” não deteve o mesmo sentido de regrar o agir moral em dependência de juízos apreciativos ou qualificativos da conduta humana do ponto de vista do bem e do mal 27
Sentenças vaticanas, 61 A anulação de si mesmo ou com o doar-se plenamente sem fazer questão de si mesmo, nada tem de malfeito, de prejudicial ou de negativo, caso aquele que se anula ou que se doa o faz em plena consciência de seu próprio fazer. Sabe, por um lado, o que ele próprio espera (não há ação sem intenção, e, toda intenção, comporta sempre uma esperança factível); por outro, sabe dos riscos (quer os calculados sobre os benefícios quer os que porventura se imporão por algum acaso). 29 “... inter se facere sapientis, ut, quem ad modum sint in se ipsos animati, eodem modo sint erga amicos” (De finibus, II, XXVI, 83). 28
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(referida aos deuses e/ou aos outros), e, sim, apenas do bem viver individual, subjetivo, relativo ao qual, o mal viver (de um ponto de vista estritamente existencial, não, a rigor, moral), deve ser totalmente excluído ou descartado. É a felicidade que está em questão, mas, não, primeiramente, a felicidade do outro, e, sim, a satisfação própria, da qual o outro (na proximidade da relação) inevitavelmente se torna partícipe. O outro nunca está excluído, caso contrário jamais poderíamos sequer falar em comunidade e em relações de amizade; ao contrário, ele está, sim, incluído, mas não para carregar os nossos fardos. Na medida em que se quer construir uma comunidade de amizade, eis a grande pressuposição de Epicuro, cujo princípio fundamental é este: não dá para pensar nem apenas só o que é bom para si nem apenas só o que é bom para o outro, a prosperidade da amizade requer a justa medida entre o bom para si e o bom para o outro. Daí que a felicidade, em última instância, posta em questão, é a do todo, a da comunidade inteira, na qual cabe aos homens (sem que cada um esqueça de si e pese aos demais, isso, claro, na medida em que pode zelar a si mesmo por si mesmo) cultivar juntos uma vida de serenidade e de paz. E aqui também se observa como a comunidade de amizade (caracterizada pela solicitude, reciprocidade e zelo) suposta no Jardim de Epicuro deveria se concluir numa comunidade de amor. Em vista disso, perante a afirmação corriqueira (comum entre os estóicos) de que o amor não comporta nenhuma utilidade caberia, enfim, perguntar: mas, e a felicidade (a satisfação, a alegria, o deleite) que o amor proporciona não conta nada? Será que alguém ama o outro pelo outro só para sofrer? A par disso, o que diziam os estóicos que o amor “não nasce em função de nenhuma utilidade, mas por si mesmo e espontaneamente” – esse amor combina com o érôs da paixão, com o páthos ebulitivo das impulsões, e não com a philía de Epicuro, que (porquanto nasça de algum interesse) é serena, e só germina ou prospera na reciprocidade mediante cultivo, inerente ao qual não se descuida da medida justa da utilidade ou dos interesses. Dá-se que tal descuido pode vir a ser fonte de insatisfação e de intranquilidade: por exemplo, os filhos que se descuidam do amor filial, os irmãos que põem inúmeros interesses acima da convivência recíproca, e assim os amigos, poderão se debater em algum momento, pela falta de cuidado, com uma vida de reinterante compunção e lamento.
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3 O egoísmo, o conflito de interesses e a utilidade (a opheleía) Assim como Epicuro fez dos deuses modelos para a ataraxia humana, também os tomou como modelos da relação do humano para consigo mesmo. Os deuses, no caso, são por Epicuro concebidos como deuses para si mesmos e não para os outros. Assim também relativo aos humanos: cada um de nós por natureza existe para si mesmo e não para os outros. Se nos dispomos espontaneamente para os outros, isso se dá em vista de atender necessidades e interesses naturais que são nossos (atinentes à nossa própria natureza). De um modo geral não há gratuidade na tendência ou inclinação decorrente de nossa natureza que nos incita à preocupação com o outro. Não quer dizer que, por natureza, somos egoístas; longe disso. O egoísmo, tanto quanto a falta de gratuidade, decorrem de uma carência de educação (para Epicuro sempre filosófica) e não de nossas inclinações (ou, como hoje diríamos, instintos) naturais. A felicidade (no universo das relações) consiste nisto: em estar em paz consigo mesmo, sem perturbação, de modo a se auto-determinar (frente ao outro) a partir de si, do uso e proveito das próprias potencialidades, em benefício próprio, que, por sua vez, remete inevitavelmente em benefício alheio: atinge e promove o outro que nos rodeia, ou, pelo menos, não lhe pesa ou perturba a vida, o que é (para o todo) um grande bem. A relação da amizade comporta, pois, essa pacificação de si, a fim de somar-se ao outro, sem lhe diminuir e lhe pesar a vida. Por natureza, não somos nem bons e nem maus. Epicuro, com efeito, supôs que tudo o que a natureza nos dá (inclusive as impulsões) vem como um bem, e em vista disso concluiu que de nossa natureza não temos nenhum mal a rechaçar. Dela o mal não emerge em nós. Somos nós, ao contrário, por desregramento, desvios e mau uso de tudo o que a natureza nos proporciona que sobrepomos o mal a todo o bem em potência que ela nos provê. Aqui, por natureza, Epicuro concebe algo dentro e não fora de nós, e que, para nós, é “mestra e guia”, e à qual devemos “ouvir a sua voz” 30 . Por esse “dar ouvidos à voz da natureza”, a educação filosófica requerida por sua doutrina apelou justamente para o conhecer-se a si mesmo, e, em dependência desse conhecer, saber as forças (os limites e as possibilidades) de
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Conforme expressões constantes em Cícero: “magistra ac duce natura”, “voce naturae” (De finibus, I, XXI, 71).
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nossas impulsões pelas quais dosamos a medida justa que nos damos a título de moderação. Não se trata, com efeito, de “impor” a nós mesmos ou a quem quer que seja (a supostos educandos) níveis de moderação. Afinal, todos sabemos que a ação ou empenho impositivo não educa: porque a educação se dá e parte sempre de dentro do educando e não de fora. É o educando quem, em última instância, se educa (em dependência, claro, do uso e do aproveitamento, positivo ou negativo de proposições recolhidas); daí a inevitável necessidade, primeiro, do despertar do conhecer-se a si mesmo (tarefa interminável e exclusivamente pessoal, mesmo quando mediada por alguma ajuda). É através do conhecimento de nós mesmos que podemos alcançar a medida justa (sem distúrbios) de nossa moderação; segundo, a necessidade de dar a nós mesmos meios e de (no suposto processo educativo) oferecer proposições e meios oportunizadores de educação. Dá-se que na ação de educar não se manifesta a mesma lógica das plantações: planta-se tal coisa e colhe-se tal coisa. Ela se dá, sim, mas isso na medida em que a ação de educar procede como a planta: aquilo que da semente vem a lume procede de dentro da semente, não de fora. Assim ocorre no educando caso ele faça com que o de fora (exterior) venha a ser (por acolhimento livre, espontâneo) o de dentro de si mesmo. Dá-se que o de fora (o que é exterior) só adquire sentido a partir de dentro; o externo, rigorosamente falando, vem a ser interno, na medida em que se dá como compreendido e assimilado. Daí, num terceiro plano, a necessária tarefa de igualmente oferecer (ao educando) meios para a prática do exercício racional ou do juízo. Nossas inclinações naturais (neutras enquanto impulsões) só alcançam algum benefício ou malefício em dependência da educação ou da falta dela. Daí que a educação do humano (porquanto se apóie em pressupostos ancestrais objetivos) carece de constante procura e renovação. A razão disso está em que nós humanos necessitamos continuadamente ou de reiniciar (no caso dos nascituros) ou de aprimorar (inclusive, nos reciclar) no processo educativo. Ninguém é educado a ponto de não mais carecer de educação, do mesmo modo como ninguém (seja um violinista, seja um pedreiro) alcança o melhor possível (humana e hipoteticamente disponível) a ser continuamente alcançado. Se assim fosse, se em tudo alcançássemos a plenitude, inclusive na Filosofia, então o filosofar resultaria sempre em um saber objetivo e acabado, ou seja, destituído de qualquer posterior exercício
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racional e crítico, e por suposto, sem possibilidade de melhoria, destituiríamos de nós mesmos a esperança (ou ilusão) de ser melhores. De mais a mais, um filosofar que dispensa o exercício racional e o pensar crítico, dispensa a si mesmo. Daí que tanto a Filosofia quanto a educação filosófica não têm um ponto de chegada: têm cumes, mas em nenhum deles alcança o seu auge. O auge da educação filosófica está exatamente em sua permanente capacidade de se reiniciar, de se aprimorar e de se reciclar, e, por consequência, em sua incapacidade de se concluir. É sem descanso o empenho humano na busca regulativa em benefício (em favor) de si mesmo, e, por suposto, da comunidade de suas relações. O bem e o mal (que a nós se impõem, que nos alcançam em decorrência de nossas escolhas) não estão em Epicuro desassociados do exercício do juízo. No caso do dito egoísmo, tal comportamento requer igualmente algum nível de consciência relativa ao que se pretende preservar ou defender em favor de si mesmo e em detrimento dos outros. Sem essa consciência, quer dizer, sem um juízo de valor, não há, rigorosamente falando, egoísmo. Não dá para se dizer, por exemplo, que os frangos e as galinhas sejam egoístas só por que não dividem entre si a minhoca. Uma minhoca no terreiro é fonte de entrevero, e aquele que pega rapidamente foge sem qualquer preocupação com os demais. Não sendo racionais (pelo menos no mesmo standard dos humanos) não exercitam sequer o mais primitivo cálculo racional da divisão ou partilha por interesse: reparto o meu bife na espera de que amanhã ou na carência o outro reparta comigo o bife dele 31 . Observa-se que, nesse caso, o indivíduo racional humano ainda não está assim tão esfomeado a ponto de portar-se “irracional ou naturalmente” feito os frangos e/ou as galinhas. E aqui cabe também destacar o que dizia Heráclito, que “o homem, por natureza, é desprovido de razão" 32 . Por natureza, não somos racionais do mesmo modo como também não somos virtuosos. Se fossemos por natureza racionais (dotados do pleno desempenho racional) não careceríamos de tantos anos de escolaridade: primeiro, para nos “adestrar” nos símbolos (caracteres, números, figuras) 31
São três modos de o humano dividir o bife: por necessidade (um filantropo sentimental que necessita extravasar a sua bondade); por interesse (porque espera que o outro, em algum momento, divida ou compartilhe o seu); por dever (por uma simples gratuidade derivada de uma sincera consciência moral). 32 DK 22 A l9; Apolônio de Tyana, Cartas, 18
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com os quais ciframos a linguagem racional; segundo, na gramática, na lógica, na sintaxe com o que exercemos o aprendizado do exercício racional vinculado ao exercício da linguagem (com o arranjo ordenado de caracteres, números, etc.). Não sendo por natureza racionais, somos então apenas facultados ou dotados da potência da racionalidade, que, aliás, em nós se debate constantemente com nossos limites e possibilidades humanas; limites e possibilidades que, desde os primórdios, coube à Filosofia ocupar-se em determinar em favor da chamada educação filosófica. São, portanto, dois termos que estão sempre presentes numa suposta ação egoísta: (o exercício do) juízo e (a adoção de um) valor (agregado à ação), e, ambos, num domínio coletivo. “Pois bem (escreveu o estóico Epiteto nas suas Diatribes), nunca vistes dois pequenos cães brincando juntos, se acariciando, a ponto de dizeres: ‘Não há amizade mais vívida’! Mas se queres saber o que é esta amizade, coloque um pedaço de carne entre eles, e tu verás. Coloque igualmente entre teu filho e tu uma parcela de terra, e verás que teu filho desejará logo te enterrar....” 33 . Em primeiro lugar (Epiteto não diz, mas cabe considerar), que cães e humanos são distintos, e o que é diferente não se compara. Os cães, distinto dos homens, não estão afeitos (ou pelo menos neles não é nada corriqueiro) a regulação ou o cálculo de interesses. Se bem que a doçura e a afabilidade natural deles, perante a benevolência humana, se dão espontaneamente como uma espécie de estratégia de suborno. Não havendo neles, todavia, regulação deliberada de interesses, a “amizade” entre eles, e também deles para com os humanos, não se define em dependência de uma cumplicidade amistosa, pela qual os amigos confraternizam os mais diferenciados momentos da vida, não só os bons, e, claro, cada um tirando ocasionalmente benefícios para si. Em segundo lugar, os interesses naturais que o ego (animal, quer dos cães quer dos humanos) tem por si próprio não qualifica ninguém (em sentido negativo) como egoísta; só o qualificaria na medida em que tais interesses venham a ultrapassar a esfera das necessidades naturais e a se converter (para além do necessário) em “excessos” particulares, que, nesse caso, são pelo indivíduo dados como modelo para os demais. Excessos vêm entre aspas em decorrência da dificuldade de se estabelecer níveis objetivos de excessos (e, claro, de moderação) para todos
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Epiteto. Diatribes. II, 22, 10
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os indivíduos. Claro que, dificilmente, um indivíduo será capaz de tomar de um só gole um garrafão de vinho e manter-se sóbrio, ou dizer-se moderado! Todavia, não dá para se estabelecer que, para todos, apenas um copo de vinho consista na moderação adequada (necessária); dá-se que, para uns, mesmo um copo é um excesso, enquanto que, para outros, pode ser a medida justa ou ainda uma carência (alguns tomariam um pouco mais). A moderação requer sempre algum cálculo (lógismos) natural, a exemplo do que Epicuro disse da coragem: “A valentia não nasce de uma disposição natural, e sim do cálculo da conveniência” 34 . O egoísmo se instala em nós como um defeito moral e não natural, ou seja, não em decorrência da ação antagônica, espontânea, de forças naturais. As supostas forças antagônicas que se dão em nós por natureza (e às quais Epicuro concebe sob dois termos: prazer e dor) têm, por princípio, sempre em vista algum bem (benefícios naturais), não algum mal (malefícios naturais). Por princípio, porque as nossas inclinações ou paixões (páthos), do ponto de vista de um suposto bem ou mal natural, são neutras, ou seja, não são nem boas e nem más: depende do uso consciente que fazemos delas ou do uso ou exercício de nossa liberdade (exercício que requer cálculo, logismós racional). Do mesmo modo (digamos, por princípio), a dor (para nós), ou melhor, a sensação de dor é um mal, e, a do prazer, um bem 35 . Mas disso não se segue que devamos rejeitar toda dor, que a nós se impõe naturalmente como um bem (imagina uma criança que, brincando, quebrasse o osso da perna e não sentisse dor); também não nos cabe acolher toda sensação prazerosa, que, por vezes, pode nos trazer mais males que bens 36 . Daí que é em base aos sentimentos de prazer e de dor que escolhemos (e escolhemos a título de um bem), e é no ato da escolha (ato que em si implica o acolher e o rejeitar) que para nós se impõe o que efetivamente vem a ser um bem ou um mal. Além disso, certos bens e certos males nós assim os reputamos por outros meios: imposições da ancestralidade ou da cultura ou dos usos e costumes, e que genericamente são denominados de males da vida, como a morte, por exemplo, que a bem da verdade em si e para nós não é um mal: em si, porque o que 34
dè andreían phýsei mê gínesthai, logismô dè tou symphérontos (Diógenes Laércio. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, X, 120). 35 Carta a Meneceu, 124 36 Carta a Meneceu, 129-130
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denominamos de morte é a condição sine qua non da natureza se regenerar; para nós, por que a morte relativa à qual temos grandes medos, ou seja, a nossa própria morte é apenas uma idéia não uma realidade, em razão de que, rigorosamente falando, não experimentamos a nossa morte: quando ela efetivamente em nós se dá, já deixamos de viver, e, não viver, é colocar-se numa situação de incapacidade tanto de promover quanto de padecer algum mal 37 . São teoricamente dois termos, complementares entre si, que especificam a doutrina de Epicuro a respeito da amizade: o de opheleía (de utilidade, no sentido de benefício) e o de chreía (no sentido de interesse, de auxílio, de serviço, de proveito), ambos admitidos dentro de uma concepção de necessidade recíproca. A opheleía concebida por Epicuro conserva os mesmos termos do benefício (do ser beneficiado ou do prestar auxílio sobretudo na adversidade) concebido na Ética a Nicômaco de Aristóteles 38 . Em “nosso exame da amizade (observou Farrington), descobrimos ser virtualmente impossível encontrar qualquer ponto na doutrina epicurista que não tivesse sido antecipado por Aristóteles, exceto a prioridade que Epicuro dá à amizade na atividade prática da vida” 39 . Duvernoy fala da opheleía de Epicuro como de uma “gratificação” decorrente do cultivo da amizade. No dizer dele, a opheleía é “a noção que justifica o enraizamento da amizade nas necessidades do indivíduo”, e “exprime o interesse que cada um de nós experimenta de entrar em amizade” 40 . São, portanto, duas coisas: uma, o interesse pela amizade, que, enquanto tal, é aguçado por necessidades; outra, as tais necessidades em dependência das quais os laços de amizade não só se fortificam como também se consolidam, e se qualificam, e, além disso, despertam e alimentam o desejo da reciprocidade. Amigos que não se necessitam não fortificam esse desejo, e, por consequência, afrouxam laços e sentimentos de amizade; do mesmo modo, amigos que não têm interesses recíprocos a compartilhar não são capazes de construir entre si uma relação
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Carta a Meneceu, 125 Ética a Nicômaco, IX, 11, 1171b 20ss 39 Farrington, B., 1968, p.109. Farrington observa também que “o tratamento que Aristóteles dá ao tópico da amizade em sua Ética oferece a base para a ética do Jardim...” (p.103). 40 Duvernoy, J.-F., 1993, p. 117 e 125. 38
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ética forjada em atitudes de cuidado quer para consigo mesmo quer para com o outro. “Amigo (sentenciou Epicuro) não é quem busca sempre o interesse (chreían), nem quem jamais une o interesse à amizade; o primeiro (acrescenta) faz da amizade um tráfico de favores, e, o segundo, elimina da amizade a boa confiança (euelpistían) de uma ajuda futura” 41 . Dizer, como habitualmente se diz, que Epicuro assenta a amizade numa clara perspectiva meramente utilitária (como se ser útil na reciprocidade seja algo desprezível), não corresponde ao que ele de fato concebeu sob o termo da amizade. Antes da utilidade (do ser útil, proveitoso), o que para ele mais importa entre os amigos é a confiança recíproca sobre a qual se apóia a esperança de alguma inevitável utilidade ou ajuda. Ora, se nem na premente necessidade podemos contar ou esperar pelo auxílio de nossos amigos (ou dos que dizem que nos amam) com quem iremos contar? “Mais que simplesmente usufruir o auxílio da ajuda (chreían... tês chreías) de nossos amigos (sintetiza Epicuro), importa a confiança que temos nessa ajuda (písteôs tês perì tês chreías)” 42 . É a confiança, mesmo que hipotética, de que podemos contar com a ajuda de nossos parceiros, que nos fortifica o ânimo de viver, e que em nós expande a serenidade e a paz nas direções incertas do futuro. Mais do que expressão do útil, a chreían a que se refere Epicuro (semelhante ao proposto por Heráclito e Parmênides 43 ) corresponde a uma necessidade decorrente de uma carência que se dá (ou se impõe) ao viver humano feito um auxílio ou ajuda indispensável para o bem viver 44 . Tratase, por um lado, de um recurso externo derivado de uma projeção da mente para o futuro em que, lá (por hipótese) não podendo exercer a contento o dever da autárkeia (do cuidado de mim mesmo por mim mesmo), então ponho desde já esperança numa ajuda externa, e, evidentemente, me disponho a 41
Sentenças vaticanas, 39; os parênteses foram acrescentados. Sentenças vaticanas, 34 43 Diz Heráclito no fragmento 80: "É preciso saber que a guerra é o comum (xynón), e a justiça, discórdia, e que todas as coisas nascem e morrem segundo discórdia e necessidade (érin kaì chreôn)" (DK 22 B 80; Orígenes, Contra Celso, VI, 42). Parmênides no frag. 1: "... é necessário (chreô) que tudo aprendas, tanto o coração inabalável da verdade bem redonda, como as opiniões dos mortais..." (DK 28 B 1,28-30; Sexto Empírico, Contra os matemáticos, VII, 111-114). 44 Carta a Pítocles, 87, Carta a Meneceu, 128 42
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zelar pelos que hoje dessa ajuda carecem; por outro, trata-se (fundado nesse primeiro pressuposto) de um apaziguamento interno decorrente de uma confiança presente cuja serenidade (apaziguadora) de hoje se estende até o futuro. A utilidade (sob o termo chreían) a que Epicuro aqui se refere tem o mesmo significado que o útil derivado da justiça, mais exatamente do justo (como ele diz) prescrito pela lei, e que, necessariamente, tem que ter por finalidade e ser favoravelmente acolhido como fonte de bem-estar da vida em comum. É a utilidade, o eficiente proveito (dentro um uso particular e público, comunitário) que confere ao justo (derivado da lei) valor de justiça, ou seja, que faz com que o legal venha a ser justo. Se o prescrito por lei como justo não for, por membros da comunidade (pròs allêlous koinônías), confirmado como útil (como proveitoso, valioso, que vem em auxílio, dado como eficiente, como devido) tal lei por certo não detém a natureza do justo 45 . A utilidade a que se refere Epicuro diz, pois, respeito a uma carência, que, como tal, atinge a todos subjetivamente como um dever, como uma precisão; o que a todos se impõe é isto: que é preciso, que é devido, que se faz necessário ao indivíduo humano, cujo maior dever consiste em zelar a si mesmo por si mesmo, que efetivamente se ocupe com esse zelo. O abrir-se para o amor e/ou para amizade é item primordial desse cuidado, sobretudo na medida em que tomamos consciência de que a vida nos atinge (a mim e aos outros) com urgentes adversidades 46 , que, sozinhos, não temos como sanar ou defrontá-las. Fruto dessa consciência, o interesse na amizade, bem como no amor, vem a ser um bem valioso na medida em que há apetência (sympátheia), intercâmbio, parceria, e, sobretudo, na medida em que esse mesmo interesse é acautelado pela reciprocidade. A reciprocidade, cabe lembrar, era o conceito com o qual os pitagóricos definiam (como já visto) as relações de justiça sob o conceito de proporcionalidade e não de igualdade 47 . Pode parecer estranho, mas a lógica da reciprocidade epicurista se deu aproximadamente nestes termos: amamos a nós mesmos, e, por esse amor (no sentido de uma plenitude), amamos os 45
Máximas principais, XXXVII Pensamos aqui na tàs anagkaías tou bíou chrêseis – “as urgências necessárias da vida” – como consta na Carta a Meneceu, 131.) 47 Aristóteles. Ética a Nicômaco, V, 5, 1132b 24ss.; tratamos dessa questão nos Filósofos PréSocráticos (Porto Alegre: Ed. da PUC, 2003), p. 110, 204. 46
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nossos amigos. De início isso promoveu grande escândalo; entretanto, o raciocínio era este: dado que o meu amigo é, para mim, um outro eu (mesmo), então me é devido (me cabe) amar nele a mim mesmo 48 . Quer dizer: na medida em que amo a mim mesmo em quem amo (numa reciprocidade sem subjugo), amo a quem amo amando a mim mesmo. Nessa relação, o eu e o outro se tornam inseparáveis, de tal modo que se torna impossível separar um do outro. A lógica é mais ou menos assim: quando choro a morte de um ente querido (pai, mãe, irmãos, ou a pessoa amada) não choro o morto enquanto morto (presente ou arraigado nele mesmo), mas o morto (enquanto presente ou arraigado) em mim. A dor da morte ou da simples ausência (sem contar outros tipos de separação) aflora em nós em decorrência desta triste cisão, qual seja: a daquela decorrente do levar (sob o sentido do nunca mais ou do por algum tempo) para longe do eu, o outro eu que se constitui na completude do eu em mim. Ser amigo é direcionar-se em favor de (de si mesmo e do outro) com autonomia recíproca. Claro que Epicuro, como já foi dito, concebe a amizade como um bem a ser cultivado por si mesmo (e assim deve ser), mas também em vista de algum benefício (a opheleía) na reciprocidade, sendo que o primeiro e o maior deles consiste em “calcular” bem a própria reciprocidade, a fim de que ela não pese mais para um lado que para o outro e reduza ao mínimo o conflito de interesses. A esse respeito, a doutrina de Epicuro é incompatível com a dissimulação e com o velamento (estratégico) das intenções, e não admite, sob qualquer hipótese, a anulação de si mesmo como um bem. Da amizade colhemos inclusive como benefício a serenidade e a fortificação de ânimo, de modo que é sempre muito útil ter amigos para se viver bem, e, com as relações de amizade, prover o deleite e a serenidade (ataraxía) da alma. Daí por que a amizade, segundo Epicuro (e em todos esses aspectos ele concorda com Aristóteles), não só é uma utilidade (opheleía) como também uma necessidade, e, em vista disso, uma parceria, um intercâmbio (koinônía) 49 . Não é justo (dizia ele) que amemos os lugares,
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“… on s'aime donc soi-même, non son ami. Cette thèse faisant scandale, quelques Épicuriens y apportèrent des tempéraments. Mon ami, disaient les uns, est un autre moimême: il n'est donc pas le moyen de mon bonheur, il en est un élément” (Robin, Léon, 1973, p.380). 49 Assim escreveu Aristóteles “Koinônía gàr he philía” (Ética a Nicômaco, IX, 12, 1171b 32).
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as cidades, os campos, os cavalos, os cães, os jogos, a caça, etc., e não nos amemos uns aos outros 50 . Suposta como um fim em si, Epicuro define a amizade sob os mesmos termos com que Aristóteles concebeu a felicidade: como um bem que é buscado não em vista de um outro bem ou fim, mas dele próprio 51 . “A amizade é buscada por si mesma”, disse Epicuro, mas acrescentou: “no entanto, o motivo originário dessa busca deriva da utilidade (da ôpheleía)” 52 . A amizade é útil, em primeiro, lugar, porque é um bem (se fosse um mal seria inútil, e ninguém a procuraria em vista dela mesma. Como diz o ditado: “cobra não se procura”); em segundo lugar, a amizade contém em si mesma bens humanos altamente desejáveis, quais sejam, o prazer e a felicidade... Por ser a amizade uma prática e/ou uma vivência: praticar a amizade é o mesmo que vivenciar uma vida prazerosa e feliz. É, aliás, sobretudo nesse sentido que Epicuro louva a amizade como um grande bem: “necessária à segurança e ao deleite da vida” 53 . De uma vida toda, pois, afinal, ninguém almeja na vida ser feliz apenas por um momento! Por ser inseparável de uma vida prazerosa, essa, dentre outras, é a razão pela qual a amizade deve ser constante e continuadamente praticada, porque, sem ela, não podemos viver com gosto, tampouco em segurança e sem inquietudes 54 . Daí que a amizade não tem por objetivo (como corriqueiramente se diz, como se fosse algo posterior) a aquisição do prazer ou o gozo da felicidade,
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Cícero não se vale dessas mesmas palavras, mas é o que deixa claramente entender: “... nulla sit utilitas ex amicitia, tamen ipsi amici propter se ipsos amentur. etenim si loca, si fana, si urbes, si gymnasia, si campum, si canes, si equos, si ludicra exercendi aut venandi consuetudine adamare solemus, quanto id in hominum consuetudine facilius fieri poterit et iustius?” (Cícero. De finibus, I, XX, 69). 51 Ética a Nicômaco, I, 7, 1097b 1-7 52 Sentenças vaticanas, 23 53 “Quant à l'amitié, ce qui en fait le prix, c'est qu'ele est nécessaire à la sécurité et à l'agrément de la vie” (Robin, Léon, 1973, p.380). 54 Seguimos de perto palavras de Carcopino, formulada por ele a partir de palavras de Cícero: “Pour Épicure, en effet, l'amitié est inséparable du plaisir qui est la fin naturelle de l'homme – amicitiam a voluptate non posse divelli (Épicure, ap. Cic., De fin., ii, 26, 82); et c'est la raison pour laquelle ses adeptes doivent la pratiquer – ob eamque rem colendam esse (ibidem): sans elle, on ne saurait vivre ni agréablement, ni en sûreté et sans inquiétude – cum sine ea tuto et sine metu vivi non posset, ne iucunde quidem posset (ibidem)” (Carcopino, Jérôme, 1947, p. 284). Analisamos essa obra de Carcopino em “Os Caminhos de Epicuro”, São Paulo: Loyola, 2009.
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porque tais sentimentos lhe são simultâneos. Se não fosse assim, Epicuro não teria dito a Meneceu que “o prazer é o princípio e o fim (a archê e o télos) da vida feliz” 55 . Não dá para ser feliz sem prazer de viver, porquanto seja possível usufruir de prazeres sem estar feliz de viver. De todos, a felicidade se constitui no maior dos interesses e também no dos benefícios que, da vida, nos dispomos a perseguir e a usufruir. Em todas as relações humanas (na amizade e em qualquer outro sentimento) Epicuro detectou busca de algum benefício e algum intercâmbio de interesse. Até mesmo no ato da procriação (no sentido de que os humanos geram filhos neles interessados como fonte de realização), e também nas relações familiares (que os filhos se constituem para os pais em fonte de felicidade, e em vista dela põem o máximo zelo e cuidado para com eles), Epicuro constatou um inevitável “comércio” de interesses. Foi Plutarco a esse respeito (aliás, não sem se escandalizar) quem registrou essa opinião de Epicuro: que “um pai tem para com o seu filho um amor interesseiro, e assim a mãe para com a sua cria, e as crianças para com os seus pais” 56 . Ora, só a hipocrisia supõe que existe apenas pura solicitude nas relações recíprocas, e, além disso, concebe o interesse nas relações como negativo: como se o interessar-se pelo outro interessando-se por si mesmo fosse uma tendência desprezível da natureza humana. Desprezíveis são proposições do tipo – “não vê o quanto me interesso por você”, “cuido dos seus interesses”, etc. –, o primeiro soa velada chantagem; o segundo promove receios, causa retração e medo, na medida em que tal disposição (a de cuidar de meus interesses) pode vir ser feita sob interesses que efetivamente não são meus. Nesses casos, a grande dificuldade se põe em vista de que a solicitude entre os homens pode ser apenas estratégia bem calculada de defesa e de imposição dos próprios interesses! Assertivas do tipo – “caso contigo para te fazer feliz” ou “case comigo para me fazer feliz” – escondem insondáveis cálculos de interesse! A grande questão, nesse caso, está sempre em saber sob que modelo de felicidade quem subjuga quem. O mesmo vale para proposições referidas ao interesse e ao cuidado que requerem igualmente reciprocidade, a fim de se evitar imposições ou sobreposições.
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Carta a Meneceu, 129 Plutarco. De amore prolis. 2, 495 A
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O certo é que as relações humanas de amizade (mesmo do amor) de modo algum dispensam o “comércio” dos interesses. Não só não dispensam como, efetivamente, é a regulação desses interesses que está na base das relações supostas como de verdadeira amizade ou de verdadeiro amor. A conotação utilitária que Epicuro concede à amizade tem um sentido positivo, natural: a solidão e a vida sem amigos é cheia de armadilhas e de medos, de modo que a própria razão convida a prover ou a procurar amizades 57 . É evidente que a amizade entre os homens não se reduz a mero exercício de solicitude, e, na medida em que se restringe, eis a questão, tal solicitude carece necessariamente da reciprocidade sem a qual a própria solicitude pode se converter em fonte de anulação para quem (mesmo na gratuidade) a exercita. “O sábio, mesmo que auto-suficiente (escreveu o estóico Sêneca ao seu amigo Lucílio), quer ter um amigo não apenas para exercitar (exerceat) a amizade, como também para que tão nobre virtude não fique sem cultivo”; ao que acrescenta, como se isto fosse algo negativo: ter amigos, mas “não como disse Epicuro em sua carta: ‘para ter alguém que o assista se doente, que o socorra no cárcere ou na miséria’...” 58 . Ora, esse pressuposto de Sêneca de que é necessário ter um amigo “para exercitar a amizade” e também “para não deixar sem cultivo tão nobre virtude”, de modo algum pode dispensar a solicitude recíproca. Quem não deseja ser socorrido quando doente ou no infortúnio? Está bem que Sêneca era detentor de uma grande fortuna econômica, mas, mesmo assim, teria de em algum momento carecer do socorro de algum amigo! Nos tempos de Epicuro, assim como hoje, nós humanos estivemos sempre carentes de amor e de amizade, sobretudo de acolhimento e de compreensão. Hoje, particularmente, é grande o número de pessoas que vivem a sós, apenas com seus gatos ou cachorros (aos quais na maioria das vezes os chamam carinhosamente de meu amor, de meu filhinho, de minha filhinha, etc.). Os cães têm inclusive primazia aos gatos, e a razão disso é o fato dos cães (por uma estratégia que lhes é própria) se manifestarem dóceis, 57 58
De finibus , I, XX, 66 “Sapiens etiam si contentus est se, tamen habere amicum vult, si nihil aliud, ut exerceat amicitiam, ne tam magna virtus iaceat, non ad hoc quod dicebat Epicurus in hac ipsa epistula, ut habeat qui sibi aegro assideat, succurrat in vincula coniecto vel inopi...” (Sêneca, Carta a Lucílio, I, 9, 8).
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carentes e solícitos para com os homens. Os cães agem perante os homens de modo semelhante a quando os homens querem especificadamente levar alguma vantagem, executar alguma conquista: se comportam com fineza e doçura, e não têm nenhum escrúpulo em exercitar o agir moral mediante estratégias bem calculadas. Cães e gatos suprem, para muitos, amores e/ou filhos que não tiveram, e dispensam, para outros, a companhia humana, esporadicamente buscada, porque todos sabemos que o esporádico reduz, e muito, a possibilidade do conflito das vontades. Conflito que, por sua vez, tem no intercâmbio de interesses prioritária fonte ou de insanável desentendimento ou de “tensa” harmonia ou ordem. O harmonizado nas relações humanas é sempre tenso, está sempre à mercê de permanente ajuste, sob cautela e sob cuidado, feito a harmonia na música: algumas notas, aqui e ali, podem comprometer e desafinar toda uma ópera! Referências ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea. Edited by Ingram BYWATER. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. CARCOPINO, Jérôme. Les secrets de la correspondance de Cicéron. t. II. Paris: L'Artisan du Livre, 1947. CICERO. De finibus bonorum et malorum. With an english translation by H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1999. DIELS, H. & KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. l8ª ed., (Unveränderter Nachdruck der 6. Auflage l95l). Zürich-Hildesheim: Weidmann, l989. DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. de Mário da Gama Kury, Basília: UnB, 1988. _______ Vite e dottrine dei più celebri filosofi. Testo greco a fronte, a cura di Giovanni Reale con la collaborazione di Giuseppe Girgenti e Ilaria Ramelli. Milano: Bompiani, 2005. DUVERNOY, J.-F. O Epicurismo e a sua tradição antiga. Trad. de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. EPICURO. Opere. Introduzione, testo critico, traduzione e note a cura di Graziano Arrighetti. Torino: Einaudi, 1973; _______ Lettres et Maximes. Texte établie par Marcel Conche. Paris: PUF, 1987; _______ Carta a Meneceu. Tradução de Álvaro Lorencini e Enzo del Carratore. São Paulo: Unesp, 1997.
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Considerações historiográficas acerca da lógica dos estoicos Cleverson Leite Bastos * Paulo Eduardo de Oliveira ** Resumo: O presente estudo pretende analisar algumas questões relacionadas à forma como a historiografia avaliou a contribuição lógica oferecida pelos filósofos estoicos. Trata-se, sobretudo, de dois posicionamentos em aberta oposição: uma primeira análise é essencialmente negativa e depreciativa, negando qualquer valor às elaborações estoicas no campo da lógica; de outra parte, existe uma revalorização da importância da lógica dos estoicos na história da Filosofia, de modo geral, e na história da Lógica, especificamente. A principal referência positiva aqui sublinhada é o trabalho do lógico Lukasiewicz. Pretende-se, assim, oferecer subsídios para uma reflexão que amplie a avaliação do potencial que a lógica estoica oferece aos estudiosos da Filosofia e da Lógica. Palavras-chave: filósofos estoicos; historiografia; Lógica; Lukasiewicz Abstract: This study aims to examine some questions related to how the historiography evaluated the contribution offered by logical Stoic philosophers. It is, above all, two open positions in opposition: an initial analysis is essentially negative and derogatory, denying any value to elaborations stoic in logic; the other hand, there is a revaluation of the importance of logic in the history of the Stoic Philosophy, in general, and in the history of logic, specifically. The main reference here emphasized is the positive work of the logician Lukasiewicz. It is intended, therefore, provide subsidies for a reflection that extends the evaluation of the potential that Stoic logic offers to students of Philosophy and Logic. Keywords: historiography; Logic; Lukasiewicz; Stoic philosophers
1 Introdução O presente estudo é um desdobramento de um trabalho mais amplo publicado sob o título “A Lógica dos Estoicos”. 1 Pretende-se analisar aqui não o conteúdo propriamente dito da lógica dos filósofos estoicos 2 , mas o *
Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR. E-mail: c.leitebastos@gmail.com ** Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC-PR. E-mail: oliveira.p@pucpr.br [Artigo recebido em 10.02.2011, aprovado em 20.06.2011] 1 Bastos; Oliveira, 2010. 2 A ausência de acentuação na palavra estoico (e em suas derivações) deve-se à nova regra estabelecida no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Contudo, nas citações com data anterior a este Acordo, esta palavra e suas derivadas constarão acentuadas.
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contexto historiográfico em que foi situada ao longo dos vários séculos de história da Filosofia e, sobretudo, de história da Lógica. Fato amplamente constatado é que a tradição filosófica ocidental privilegiou a lógica aristotélica, como se ela constituísse a única (e, talvez, a melhor) elaboração do pensamento lógico grego. Contudo, apesar do grande poder explicativo e racional da lógica de Aristóteles, sua abordagem não é única e nem, necessariamente, a mais fecunda. A intenção deste trabalho é contribuir para o resgate da tradição lógica dos estoicos, pouco conhecida e por isso mesmo pouco valorizada. Embora seja uma aproximação introdutória, acredita-se que as reflexões apresentadas servirão para uma abordagem inicial da questão, de modo a demonstrar o valor histórico da proposta lógica dos filósofos do Pórtico. O ponto de partida é a análise negativa que a lógica estoica recebeu, sobretudo nas escolas alemãs da historiografia da Lógica, representadas principalmente por Prantl e Zeller. Num segundo momento, apresenta-se a visão positiva que é dada à lógica estoica, destacando-se a posição do lógico Lukasiewicz. Na última seção deste estudo, são apresentadas algumas considerações acerca das fontes para a pesquisa sobre a lógica dos filósofos estoicos. 2 A lógica estoica na historiografia tradicional Durante mais de dois mil anos a lógica de Aristóteles dominou tão completamente o âmbito da lógica que Kant, em 1787, não teve dúvida em afirmar que ele era um campo do conhecimento fechado e acabado por não ter dado um passo sequer após os trabalhos do Estagirita. Um reconhecimento do trabalho dos estoicos teve início praticamente em meados do século XX, com o famoso trabalho de Lukasiewicz sobre a história da lógica das proposições, em 1934. Merecem ainda destaques os trabalhos de Bochenski, Prior e, sobretudo, a tese de Benson Mates sobre a lógica dos estoicos, publicada em 1961. A lógica formal dos estóicos tem sido severamente julgada pelos historiadores”. 3 Com esta expressão contundente, Brochard inicia, sem rodeios, sua análise da lógica estoica. De fato, o tema apresenta discussões sérias e dificuldades talvez apoiadas nos “diferentes humanismos nos quais se inspiram seus críticos”. 4 3 Brochard, 1966, p. 220. 4 Elorduy, 1972, p. 295.
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Note-se que a história da Lógica adotou dois posicionamentos opostos em relação à lógica estoica: primeiro, uma postura de crítica severa, reduzindo a lógica dos estoicos a um grau inferior de desenvolvimento em relação à lógica aristotélica; segundo, um posicionamento de valorização das peculiaridades da lógica dos estoicos e, inclusive, de sua posição de destaque diante da lógica peripatética, sublinhando seu avanço em alguns pontos específicos. Trata-se, portanto, de uma “visão negativa” e de uma “visão positiva” da lógica do Pórtico. 2.1 Uma visão negativa da lógica estoica É preciso sublinhar, desde o início, reafirmando o que disse Brochard, que a lógica estoica foi, de certa forma, desprezada pelos recentes historiadores da lógica, sobretudo pela historiografia representada pelas escolas de Prantl 5 e de Zeller 6 . Importa destacar que estes historiadores da filosofia foram pessoas destacadas em suas áreas, o que significa que sua influência foi grande no cenário filosófico. Portanto, sua visão negativa acerca da lógica dos estoicos deve ter sido fortemente impressa em muitas consciências. Alguns acenos de caráter biográfico podem ser úteis para a compreensão do contexto em que se desenvolveu o pensamento de Prantl e de Zeller. Karl von Prantl (1820-1888) tornou-se doutor em filosofia em Munique, onde assumiu a função de professor em 1859. Era membro das Academias de Munique e Berlim e estava fortemente influenciado e alinhado com a tradição hegeliana. Tornou-se reconhecido por suas valiosas contribuições para o estudo de Aristóteles, tendo publicado diversos trabalhos sobre a filosofia do Estagirita, sobretudo estes dois títulos: Aristoteles über die Farben (1849) e Aristoteles acht Bücher der Physik (1857). O trabalho pelo qual ele é mais conhecido é a sua história da lógica no ocidente, cujo título original é Geschichte der Logik im Abendland (1855– 1870). Sua paixão pela filosofia de Aristóteles, incluindo a lógica, pode explicar a visão depreciativa que tinha em relação à lógica dos estoicos. Segundo Elorduy, “Prantl defende a tese de que Crisipo não criou nada novo e que suas especulações carecem de qualquer valor”. 7
5 Prantl, 1855-70. 6 Zeller, 1852. 7 Elorduy, 1972, p. 295, nota 1.
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Eduard Zeller (1814-1908), por sua vez, completou seus estudos na Universidade de Tübingen, sob a orientação de Hegel. Foi professor de Teologia em Tübingen, Berna e Marburg. Depois, foi transferido para a Faculdade de Filosofia. Em 1862, tornou-se professor de filosofia na Universidade de Heidelberg, seguindo para Berlim por volta de 1872. Sua principal obra é a Philosophie der Griechen (1844-52), livro em torno do qual trabalhou por longos anos, ampliando-o e melhorando-o. Prantl e Zeller estão de acordo em retirar toda a originalidade da lógica estoica, reduzindo-a a um tipo de ‘catecismo’ onde se repete aquilo que Aristóteles disse, substituindo sem utilidade por uma terminologia nova àquela que serviu ao fundador da lógica. 8 Eles afirmam, ainda, que a ciência da lógica mais perdeu do que ganhou com esta transformação e, mais, sustentam que “a lógica estóica não passa de um vão e estéril formalismo”. 9 Corroborando a percepção de Brochard, Reale afirma: Na verdade, até o final do século passado [século XIX], embora reconhecendo a grande diferença de empenho entre o Pórtico e o Jardim no âmbito das pesquisas lógicas, foram valorizadas de modo nitidamente negativo os resultados desse empenho. O Pórtico teria simplificado e empobrecido as posições platônicoaristotélicas, teria simplesmente revestido com nova terminologia a lógica aristotélica, teria inoportunamente desenvolvido algumas partes desta em prejuízo de outras e, às vezes, as teria até mesmo distorcido. 10
Reconhece-se, assim, que “muitos doxógrafos e intérpretes apontam o mau uso de Aristóteles pela Stoá”. 11 Portanto, deve-se considerar que as acusações sobre os limites da lógica dos estoicos foram feitas sob a perspectiva da lógica aristotélica, desconsiderando-se, portanto, que “o novo horizonte ontológico do Pórtico devia necessariamente comportar uma mudança do horizonte lógico”. 12 Esse aspecto é de fundamental importância, ao nosso modo de ver, e deverá ser explorado senão aqui, em detalhes, ao menos como sugestão de um estudo posterior. Trata-se, em
8 Brochard, 1966, p. 220. 9 Brochard, 1966, p. 220. 10 Reale, 1994, p. 276. 11 Gazolla, 1999, p. 45. 12 Reale, 1993, p. 276.
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outras palavras, da necessidade de se traçar o fio condutor que une a perspectiva ontológica e a conseqüente reflexão lógica fundada na Stoá. A visão negativa atribuída à lógica estoica parece não ser exclusiva da historiografia dos dois últimos séculos. Brun mostra que “certas personagens, postas em cena por Cícero nas discussões filosóficas, afirmavam já que a lógica estóica não era senão um retomar desajeitado e inútil do que tinham dito os filósofos da Academia e do Liceu” 13 . Brun conhece a crítica feita por Prantl e Zeller: para eles, como escreve Brun, “a lógica estóica é apenas uma repetição mal feita da lógica de Aristóteles” 14 . Brun reconhece, também, a importante contribuição de Brochard para uma análise mais ampla e positiva da contribuição lógica dos estoicos: Victor Brochard parece-nos muito mais perspicaz quando reivindica, contra estes dois críticos alemães, o direito de falar de uma originalidade da dialética estóica que permanece fundamentalmente oposta, em intenção e em estrutura, à dos peripatéticos. 15
É precisamente esta “originalidade” que permite a construção de uma visão positiva da lógica dos estoicos, como segue. 2.2 Uma visão positiva da lógica dos estoicos A visão negativa parece ter sido considerada por muito tempo, pois nenhum outro trabalho, contemporâneo aos de Prantl e Zeller, surgiu para rebater suas teses desfavoráveis. É preciso reconhecer, contudo, que novos estudos puseram à luz que, na verdade, a lógica estóica é muito diferente da aristotélica, e que ela se move em direções até mesmo opostas, retomando elementos de matriz pré-aristotélica elaboradas no âmbito das escolas socráticas menores, particularmente da escola megárica. 16
O próprio empenho de Brochard, como se pode notar, é para determinar o lugar da lógica estoica na história da filosofia. “Nós queremos,
13 Brun, 1986, p. 35. 14 Brun, 1986, p. 37. 15 Brun, 1986, p. 37. 16 Reale, 1993, p. 276.
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somente, [...] apresentar algumas reflexões que poderão servir para mostrar, sob um outro aspecto, o verdadeiro sentido e o porte da lógica estóica” 17 . Em especial, os historiadores [da visão positiva] consideram o importante estudo de J. Lukasiewicz 18 , datado de 1934, no qual ele reconhece o caráter distintivo da lógica estoica em relação à lógica aristotélica, caráter este não restrito a pequenos detalhes e diferenças menores, mas a diferenças estruturais. Alguns elementos biográficos de Lukasiewicz podem ser importantes para a compreensão de seu trabalho: ele nasceu em 1878, na atual cidade de Lviv, na Ucrânia. À época, Lviv era conhecida como Lemberg e fazia parte da Áustria-Hungria. Na Universidade de Lviv, Lukasiewicz estudou matemática e filosofia. Em 1902, obteve seu doutorado e, em 1906, tornou-se professor de lógica e filosofia na mesma universidade. Quando as tropas russas deixaram Varsóvia, em 1915, a região passou a ser controlada pelos alemães e austrohúngaros. Então, Lukasiewicz foi convidado para a nova Universidade de Varsóvia, reaberta naquele mesmo ano. De seu trabalho com Leśniewski e outros lógicos e matemáticos poloneses, fundou-se a reconhecida Escola Lógica de Varsóvia (também chamada de Escola Polonesa de Lógica), da qual Alfred Tarski fez parte. Em 1946, Lukasiewicz foi convidado para trabalhar na Universidade de Dublin, na Irlanda, onde permaneceu até sua morte, ocorrida em 1956. Com relação à obra de Prantl, Lukasiewicz assinala que “Prantl, na verdade, detesta a lógica estóica”. 19 E mais: Por mais importante que seja incluir a obra de Prantl como recompilação de fontes e material, não tem valor algum como apresentação histórica dos problemas e das teorias lógicas. A história da lógica deverá ser escrita de novo, e por um historiador que tenha alcançado o domínio completo da lógica matemática. 20
As diferenças encontradas entre a lógica peripatética e a estoica revelam a originalidade desta. Lukasiewicz mostra que a principal diferença
17 Brochard, 1966, p. 220. 18 Veja-se a tradução para a língua espanhola na Revista de Occidente, Madrid, p. 87-107, 1975, sob o título “Para la historia de la lógica de proposiciones” (as nossas citações referemse a esta tradução). 19 Lukasiewicz 1934 [1975], p. 95, nota 23. 20 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 88.
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existente entre elas reside na própria estrutura formal: “A lei estóica de identidade é uma tese da lógica de proposições, enquanto que a lei peripatética é uma tese da lógica de termos”. 21 E Lukasiewicz reconhece, também, que, enquanto o silogismo aristotélico é uma tese lógica, o silogismo estóico é um esquema de inferência 22 . Isso é muito importante e, por si só, seria uma das principais diferenças entre a lógica de Aristóteles e a dos estoicos. Como afirma Lukasiewicz, “podemos, em minha opinião, concluir que os estoicos não eram apenas conscientes da diferença entre seu sistema lógico e o sistema aristotélico, senão também que estimavam corretamente as relações entre ambos”. 23 Ele afirma, ainda, que a “a lógica bivalente de proposições fundada pelos estóicos, desenvolvida pelos escolásticos e axiomatizada por Frege, tem se apresentado diante de nós constituída como um sistema completo” 24 . Diante de tal afirmação, tendo-se em conta o porte de Lukasiewicz no estágio de desenvolvimento da lógica no século XX, não nos restam dúvidas da importância da lógica dos estoicos no desenvolvimento posterior da ciência da lógica. Brochard é partidário dessa postura de valorização da lógica estoica. Para ele, os estoicos foram “os mais hábeis dialéticos da antigüidade”. 25 Destacam-se, além de Brochard, de Brun e de Lukasiewicz, os seguintes autores e obras entre os que valorizam ou retomam a avaliação positiva da lógica estoica: M. Mignucci 26 , I. M. Bochenski 27 , A. Virieux-Reymond 28 e, sobretudo, Benson Mates. 29 Deve-se considerar, também, os estudos de E. Husserl 30 dedicados à fundamentação da lógica científica, onde se apresentam importantes similaridades entre sua lógica (de caráter antipsicologista) e a lógica dos estoicos. 21 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 88. 22 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 90. 23 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 99. 24 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 107. 25 Brochard, 1966, p. 222. 26 Mignucci, 1965. 27 Bochenski, 1976. 28 Virieux-Reymond, 1949 e 1976. 29 Mates, 1961. 30 Husserl, 1929.
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Reconhecendo o caminho próprio percorrido pelos estoicos (e megáricos) Benson Mates afirma: Enquanto os peripatéticos se preocupavam com preservar o legado de Aristóteles, outro grupo filosófico, os estóicos e megáricos, desenvolviam forma radicalmente diversa de abordar a lógica formal. Estavam, em verdade, inventando o cálculo sentencial. 31
Assim, portanto, de acordo com Elorduy, pode-se considerar que o estudo da lógica estoica, sob a ótica de sua validade, é de interesse atual, com a condição de se realizar um esforço para entender as afinidades profundas existentes debaixo de terminologias totalmente diversas e sistemas heterogêneos. 32 3 Considerações sobre as fontes O estudo da filosofia do Pórtico e, especialmente, de sua construção lógica deve levar em conta, também, a questão das fontes. A esse respeito, considere-se, inicialmente, o que afirmam os historiadores da lógica W. e M. Kneale: As fontes principais para a lógica estóica são tardias. No segundo século d. C. Apuleio e Galeno incorporaram algum material estóico nos seus manuais de lógica e no século seguinte Sexto Empírico e Diógenes Laércio conservaram algumas partes interessantes da tradição. Sexto Empírico, que era um cético, ofereceu uma exposição da doutrina apenas para a refutar, mas no entanto a exposição é inteligente embora nem sempre completamente honesta. Diógenes, que escreveu uma série de boatos biográficos de filósofos eminentes, deu uma sinopse da filosofia estóica, incluindo a lógica, ao escrever a sua vida de Zenão. Uma vez que de uma maneira geral ele não é muito digno de crédito como expositor, foi uma circunstância feliz que ele aqui tivesse que usar um manual estóico preparado por Diocles de Magnésia, um autor do primeiro século d. C.. Sexto Empírico e Diógenes confirmam-se mutuamente em muitas passagens. Para outro conhecimento de lógica estóica temos que nos guiar por fontes fragmentadas do fim da Antigüidade. 33
31 Mates, 1967, p. 265. 32 Elorduy, 1972, p. 296. 33 Kneale e Kneale, 1962, p. 119. Considere-se, ainda, a lista exaustiva de fontes citada por Elorduy, 1972, p. 300 e 301 e a obra de Von Arnim, 1969, embora tais referências não sejam específicas aos temas da lógica. Ver, também, relação de obras citadas em Hirschberger, 1977, p. 218.
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Benson Mates considera Sexto Empírico o “principal informante da lógica estóica” 34 , convicção da qual Lukasiewicz também compartilha 35 , bem como I. M. Bochenski que faz, contudo, alguma ressalva a Sexto: “As condições em que nos encontramos para abordar o estudo da lógica megáricoestóica são muito menos favoráveis que para a lógica de Aristóteles e de Teofrasto. De Aristóteles dispomos dos escritos fundamentais em seu conjunto e de Teofrasto dispomos, ao menos, de fragmentos reconstruídos dentro do conjunto de suas obras por especialistas competentes que não tomaram posição categoricamente hostil frente ao citado autor. Para as doutrinas megárico-estóicas, ao contrário, temos que recorrer, fundamentalmente, às refutações de Sexto Empírico, adversário declarado”. 36
Parece ser uma constante a identificação de atitudes críticas nos próprios textos antigos: “Os doxógrafos, como foi dito, polemizam freqüentemente com as teses estóicas enquanto portadores de outras concepções filosóficas. Se, de um lado, sem a riqueza da doxografia, nada saberíamos sobre o estoicismo, de outro, é notória a dificuldade para discernir o significado de muitas das teses recolhidas”. 37
Benson Mates ainda faz referência a Cícero (apesar da crítica já acenada por Brun), de quem reconhece o mérito de tradutor de muitos conceitos lógicos do grego para o latim, além de indicar a importante contribuição de Boécio, de Marciano Capela e de Porfírio. 38 Ainda em relação às fontes, I. M. Bochenski apresenta o problema da “aristotelização” dos textos estoicos 39 , reconhecendo o empenho de Peirce, de Lukasiewicz e de Mates para oferecer a interpretação correta dos erros cometidos sobretudo por Prantl. “Podemos afirmar, portanto, com certa segurança, que no estado atual da investigação nos encontramos de novo em disposição de compreender esta lógica extraordinariamente
34 Mates, 1967, p. 266 e 271. 35 Lukasiewicz, 1934 [1975], p. 95. 36 Bochenski, 1976, p. 118. 37 Gazolla, 1999, p. 19-20. 38 Mates, 1967, p. 271 e 272. 39 Bochenski, 1976, p. 118-119.
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interessante”. 40 Contudo, este otimismo de Bochenski não deve ocultar uma dificuldade ainda mais profunda, notada por Gazolla: A distância histórica entre os noticiadores e o primeiro estoicismo é um fator relevante. Cícero e Plutarco escreveram no século I d.C.; Sexto Empírico, cético e grande crítico da Stoá, no século III d.C., juntamente com Alexandre de Afrodísia; Estobeu é do século VI d.C., e muitos outros são da escola alexandrina, da neoplatônica e da peripatética. Pode-se supor que muitas das afirmações estóicas já aparecem para a doxografia lapidadas pelo tempo, quase perdidas em sua significação e sua força originárias. Isso confirma certo caráter de aventura do estudo das raízes do estoicismo. 41
Deve-se considerar, portanto, que “séculos de filosofia cristã tiveram, certamente, um peso muito grande na maneira de ler os textos antigos” 42 , incluindo os textos estoicos. É preciso, portanto, um esforço especial no sentido de beber da fonte original da filosofia estoica, para compreender seu valor original. 4 Considerações finais Embora de forma não exaustiva, o presente estudo pretendeu apresentar elementos para uma compreensão da situação de oposição que existe na historiografia dos séculos XIX e XX acerca do valor da lógica dos estoicos. As posições assumidas por Prantl e Zeller parecem ser completamente destituídas de sentido, tendo em conta as novas conquistas que os historiadores da Filosofia e da Lógica puderam obter a partir, sobretudo, do estudo pioneiro de Lukasiewicz. Os breves acenos à questão das fontes para o estudo dos estoicos apontam, também, a amplidão do campo aberto para novas investigações. Espera-se, desse modo, que este estudo possa suscitar novas pesquisas acerca do valor e da originalidade da contribuição dos estoicos para o campo da Lógica e para a própria Filosofia. 5 Referências bibliográficas BASTOS, Cleverson Leite; OLIVEIRA, Paulo Eduardo de. A lógica dos estoicos. Curitiba: Champagnat, 2010. BOCHENSKI, I.M. História de la Lógica Formal. Madrid: Gredos, 1976. 40 Bochenski, 1976, p. 119. 41 Gazolla, 1999, p. 21. 42 Gazolla, 1999, p. 15.
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BROCHARD, V. “La logique des stoiciens”. In: Etudes de Philosophie Ancienne et de Philosophie Moderne. Paris: J. Vrin, 1966. BRUN, J. O estoicismo. Lisboa: Ed. 70, 1986. ELORDUY, E. El Estoicismo. Madrid: Gredos, 1972. GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estóico: o duplo registro do discurso da Stoá. São Paulo: Loyola, 1999. HIRSCHBERGER, J. Historia de la Filosofía. Tomo I. Barcelona: Herder, 1977. HUSSERL, E. Investigações lógicas. Madrid: García Morente (ed.), 1929. KNEALE, W. e KNEALE, M. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenklan, 1962. LUKASIEWICZ, J. Z historii logiki zdan. Przeglad Filozoficzny 37 (1934), p. 417-437. Veja-se a tradução para a língua espanhola na Revista de Occidente, Madrid, p. 87-107, 1975, sob o título “Para la historia de la lógica de proposiciones”. MATES, B. Lógica elementar. S. Paulo: Ed. Nacional e Edusp, 1967. _______ Stoic Logic. Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1961. MIGNUCCI, M. Il significato della logica stoica. Bologna, 1965. PRANTL, K. Geschichte der Logik im Abendlande. Leipzig: S. Hirzel, 185570. 4 v. REALE, G. História da Filosofia Antiga. Vol III. São Paulo: Loyola, 1993. VIRIEUX-REYMOND, A. V. La logique et l’épistemologie des Stoïciens. Lausanne, 1949. _____. Pour connaître la pensée des Stoiciens. Paris: Bordas, 1976. VON ARNIM, J. Stoicorum Veterum Fragmenta. Stuttgart: Teubner, 1969. ZELLER, E. Die Philosophie der Griechen. Tübingen: Verlag Von Ludwig Friedrich Fues, 1852.
Similitudes entre as filosofias de Rousseau e Platão Evaldo Becker * Resumo: No presente artigo, trataremos acerca de algumas similitudes que podem ser percebidas entre as obras de Jean-Jacques Rousseau e Platão. Pretendemos examinar principalmente as proximidades existentes acerca da eloqüência ou do poder do discurso tendo como fim ações políticas. Visa-se demonstrar que ambos autores possuem tanto uma valoração positiva, quanto uma valoração negativa do discurso e da eloqüência. Para tanto, utilizaremos principalmente as obras: Ensaio sobre a origem das línguas e o Discurso sobre a desigualdade de Rousseau, e Fedro e Górgias, de Platão. Palavras-chave: Platão; política; retórica; Rousseau; similitudes Abstract: This article deals with some similitudes that may be perceived between the works of Jean-Jacques Rousseau and those of Plato. We intend to examine mainly the existent resemblances concerning eloquence and the power of discourse, as much as they have political actions as their ends. We aim at demonstrating that both authors attribute both positive and negative traits to discourse and eloquence. In order to achieve these goals, we shall use mainly the works Essay on the origin of languages and Discourse on the origin of inequality, by Rousseau, and Phaedrus and Gorgias, by Plato. Keywords: Plato; politics; rethoric; Rousseau; similitudes
Qualquer pessoa que tenha lido sumariamente algumas das grandes obras de Rousseau perceberá a presença de referências a Platão e de alguns posicionamentos convergentes entre as filosofias de ambos. Se a crítica aprecia diversamente a influência dos escritos platônicos na obra de Rousseau, ninguém questiona, ao menos seriamente, esta presença platônica em seus textos. Yves Touchefeu, no verbete Platão do Dictionnaire de Rousseau, afirma ser Platão um dos autores que Rousseau mais cita, sendo precedido em quantidade apenas por citações de Plutarco e da Bíblia. (Touchefeu, 2008, 728) As congruências percebidas entre as obras de Platão e Rousseau perpassam desde seus planos educacionais e estéticos, até as questões referentes à ética, política e linguagem. Nosso intuito aqui é apresentar *
Professor do Departamento de Filosofia da UFS – Universidade Federal de Sergipe. E-mail: evaldobecker@gmail.com [Artigo recebido em 09.05.2010, aprovado em 29.04.2011]
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algumas semelhanças existentes entre estas duas filosofias, principalmente no que concerne ao papel da retórica ou do discurso no ambiente político e ético de seu tempo. Rousseau é um dos poucos filósofos iluministas que reconhecem a importância do pensamento de Platão e sua dívida para com este. Roberto Romano em seu artigo: A transparência democrática: esperança e ilusões, comentando acerca de Rousseau e Diderot, afirma que: “os dois pensadores constituem uma anomalia no século XVIII, pois, ambos definem-se como leitores entusiastas dos textos platônicos”. Segundo ele: “Platão era geralmente ridicularizado naquele século, menos pelo enciclopedista e pelo autor do Emílio”. (Romano, 2001, 53) Não obstante a multiplicidade de pontes possíveis de serem estabelecidas entre as filosofias de Platão e de Rousseau, nos limitaremos aqui a traçar alguns pontos de convergência que podem ser percebidos no que diz respeito às suas compreensões acerca do papel da linguagem no que concerne a ação ético-política. Apesar de tanto Rousseau quanto Platão atribuirem uma valoração positiva e outra negativa acerca do papel da retórica no desenvolvimento político e moral das sociedades, geralmente as valorações positivas são negligenciadas por seus intérpretes, ressaltando-se com mais freqüência suas críticas à linguagem e ao papel do discurso. Em vários de seus Diálogos, Platão dirige uma crítica à prática discursiva ou retórica de seu tempo, procurando demonstrar sua total falta de consistência e coerência com aquilo a que se propunha fazer. No Protágoras, Platão questiona a proposição do sofista segundo a qual o jovem que se dedicasse a freqüentar suas aulas “desde o primeiro dia de conversação retornaria para casa melhor do que era, o mesmo acontecendo no dia seguinte e nos subseqüentes, acentuando-se cada dia mais o seu progresso”. (Platão, 2002, 62) Ao perguntar em relação à quê este ficaria melhor, a resposta dada é de que seria na “arte da política e de formar bons cidadãos”. Já no Górgias, Sócrates, ao interpelar o sofista de nome homólogo ao diálogo, sobre o conteúdo acerca do qual se referiam os discursos sofísticos recebe a resposta de que estes se destinariam a “deixar livres os homens em suas próprias pessoas, como também de torná-los aptos para dominar os outros em suas respectivas cidades”, consistiria ainda, segundo o sofista, em “por meio da palavra poderem convencer os juízes no
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tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política.” (Platão, 2002b, p. 135) Ou seja, a retórica seria a “mestra da persuasão”. No entanto, ao interrogar sobre que tipo de persuasão a retórica se referia; se àquela que é fonte de crença ou sobre a que é fonte de conhecimento, Górgias responde que seria evidentemente a que dá origem à crença; ao que Platão, nas palavras de Sócrates, conclui que, diferentemente do que se propõem os sofistas ou os oradores treinados por estes, “o orador não instrui os tribunais e as demais assembléias a respeito do justo e do injusto, mas apenas lhes desperta a crença nisso”. (idem, ibidem, p. 139) Para compreendermos melhor qual o sentido da crítica platônica aos sofistas e à retórica em geral, precisamos compreender qual o papel dos mesmos no cenário político da Grécia, no século V.a.C. Segundo Kerferd: As instituições de uma cidade democrática grega pressupunham, no cidadão comum, a faculdade de falar em público, o que era indispensável para quem quer que ambicionasse uma carreira política. Um homem que fosse arrastado ao tribunal por seus inimigos e não soubesse como falar era como um civil desarmado atacado por soldados. (Kerferd, 2003, 35)
O papel dos sofistas no período em questão era de extrema relevância para qualquer cidadão que desejasse se alçar à condição de político, o que pressupunha, nesse sentido, a capacidade oratória. Capacidade de persuadir o povo nas assembléias. 1 Como exemplo da
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As críticas platônicas em relação aos sofistas devem ser atenuadas tendo em vista sua unilateralidade. Durante muito tempo foram aceitas como inquestionáveis as descrições de Platão acerca dos sofistas e, nesse sentido, foram ouvidas somente as acusações do próprio inimigo para julgar os réus. Atualmente vários estudos procuram perceber a importância dos sofistas no período em questão, demonstrando que muitos deles, em suas teorias, se aproximam muito mais das ideias Socráticas, do que Platão pretendia demonstrar. Kerferd, em O movimento sofista, ressalta a importância dos mesmos em relação à teoria linguistica, doutrinas filosóficas e morais, doutrinas sobre os deuses, a natureza e a origem do homem, bem como análise literária, e matemática. Segundo ele, é preciso que se reconheça que os sofistas foram parte importante no progresso da Atenas de Péricles, importantes por si mesmos e também na história da filosofia. No entanto, em função do tempo e do recorte aqui proposto, nos ateremos básicamente às posições de Rousseau e Platão, no que se refere aos temas propostos, ressaltando, que tal questão mereceria um estudo mais pormenorizado, que ficará para outro momento. Indicamos também os livros Ensaios
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eficácia de sua “arte” Górgias afirma que em qualquer cidade que seja, se um médico e um orador “se apresentarem a uma assembléia do povo ou a qualquer outra reunião para argumentar sobre qual dos dois deverá ser escolhido como médico, não contaria o médico com nenhuma probabilidade para ser eleito, vindo a sê-lo, se assim o desejasse, o que soubesse falar bem”. (Platão, 2002b, 141) Tal seria, precisamente, a força da retórica, qual seja: a vantagem de não precisar uma pessoa aprender nenhuma arte, a não ser aquela, obtendo o apoio do povo para si; podendo defender-se perante os juízes caso fosse acusado e salvando sua própria vida e a de quem desejasse. Nesse sentido, segundo Kerferd, “os sofistas, supriam uma necessidade social e política”. (Kerferd, 2003, 36) No entanto, o que Platão critica é justamente a eficácia da retórica com vistas à uma melhoria das condições políticas. Platão, nas palavras de Sócrates, afirma ser ela, não uma “arte”, mas sim uma “rotina”, destinada a “produzir satisfação”. Segundo ele: “A retórica é o simulacro de uma parte da política”. (Platão, 2002b, 151) Isso porque a retórica trabalha baseada em crença e não em um conhecimento verdadeiro. Em debate com Górgias no diálogo homólogo, Sócrates questiona o sofista sobre sua capacidade de formar um orador, ao que o mesmo responde que quem se dispuser a seguir suas lições estará apto a, em matéria de saúde, ser mais convincente do que o próprio médico, porém isso somente “diante das multidões”, ao que Sócrates retruca: “Diante de ignorantes? Pois é de presumir que diante de entendidos não sejas mais persuasivo do que o médico”. E em seguida conclui, a partir da aquiescência de Górgias, que “nesse caso, o ignorante tem maior poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio”. (Platão, 2002b, 144) É justamente em função disto que Platão se nega a considerar a retórica como arte, 2 pois segundo ele, essa só visa a aprovação e não ao bem
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sofísticos e O efeito sofístico de Bárbara Cassin, que tratam nos esclarecem muito acerca dos sofistas e de suas relações com os filósofos do período. (Cassin, Bárbara, 2005.) Sócrates, no Górgias, afirma acerca da retórica que esta se trata de “uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz e corajoso e com disposição natural de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação. A meu ver, essa prática compreende várias modalidades, uma das quais é a culinária, que passa, realmente, por ser arte, mas que eu não considero tal, pois nada mais é do que empirismo e rotina. Como partes da mesma, incluo também a retórica, o gosto da indumentária e a sofística”. (Platão, 2002b,153)
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do povo, carecendo de razão, e “não se pode dar o nome de arte ao que carece de razão”.(Platão, 2002b, 153) Platão critica ainda, a forma como os oradores e políticos tratam os cidadãos quando falam ao povo sem a intenção de torná-lo mais virtuoso. Segundo ele, há duas maneiras de falar ao povo, “uma delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade ao auditório”. (Platão, 2002b, 212) Fica evidente, nesse sentido, que a crítica de Platão não se dirige à retórica em si, mas ao mau uso desta, ou até, à aceitação de um tipo equivocado, bastante diverso da “verdadeira Retórica”. Vejamos agora como Platão concebe a “verdadeira retórica” ou aquilo que ele considera como sendo efetivamente a “arte da palavra”. Apesar de no Górgias a ênfase ser negativa, visando prioritariamente um determinado tipo de discurso, isto é, aquele que pregava apenas a verossimilhança com a verdade, já se encontam nele elementos que indicam a existência de um outro tipo de discurso, um discurso comprometido não simplesmente com a bajulação do povo, mas com um desejo sincero de torná-lo melhor. Platão, nas palavras de Sócrates, afirma que o “orador honesto deverá dirigir seus discursos à alma dos homens, sempre que lhes, falar, e em todos os seus atos”.(Platão, 2002b, 214) Ainda, segundo ele, “para ser orador de verdade é preciso ser justo e ter o conhecimento da justiça”. (Platão, 2002b, 219) Werner Jaeger, na Paidéia afirma que “neste campo o que preocupa Platão é saber se para exprimir em palavras um pensamento é necessário o conhecimento da verdade”. (Jaerger, 1994, 1262) Para Platão, se um orador não conhece o assunto sobre o qual fala, mas apenas a forma indicada de falar dele, sua atitude será sempre uma atitude bajuladora e prejudicial. Além disso, para que se desenvolva a verdadeira arte da palavra, além do conhecimento acerca do assunto sobre o qual se fala, serão necessários também, saber como falar para cada pessoa, bem como o melhor momento para tal, ou até mesmo quando se deve calar. No Fedro, texto da fase madura de Platão 3 , o autor declara que a verdadeira 3
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arte de falar pressupõe o conhecimento acerca do que se fala, bem como, a estruturação do discurso de forma integrada, no qual suas partes sejam conhecidas e estruturadas de forma orgânica em um discurso coeso. Para tanto, segundo Platão, o mesmo deve ser construído através de um processo dialético. Nesse sentido: é preciso desculpar os que, por desconhecimento da dialética, não estão em condições de definir o que seja retórica. Com toda a sua ignorância, por haverem encontrado casualmente uns poucos conhecimentos, pensam que descobriram a retórica, e pelo fato de transmitirem a outras pessoas essas mesmas noções, estão convencidos de que lhes ensinaram toda a arte de bem falar. Quanto a disporem esses elementos com vistas à persuasão e à contextura do conjunto, consideram isso matéria secundária que os alunos descobrirão sozinhos, quando prepararem seus discursos. (Platão, 1975, 85)
Platão critica a superficialidade da arte retórica em voga no seu tempo, as implicações éticas decorrentes de tal superficialidade; e ainda a falta de zelo dos sofistas em perceber para quem ministram seus cursos, propiciando para pessoas sem a menor preocupação em tornar virtuoso o povo, elementos que permitirão às mesmas ludibriá-lo. Segundo Kerferd: “o que está errado é que os sofistas vendem sabedoria a todos os que se apresentam sem discriminação – ao cobrar honorários eles se destituíam do direito de escolher seus alunos. Isso, é dito, envolve prelecionar diante de todo tipo de gente”. (Kerferd, 2003, 47) Incluindo principalmente aqueles que não estão dispostos a empreender o longo caminho que supõe a aquisição da verdadeira arte de falar. No Fedro, Platão nas palavras de Sócrates afirma que: enquanto não se conhecer a verdade da constituição de cada coisa de que se fala ou escreve e não se puder definir cada uma por si mesma, e, depois de definida, dividi-la em espécies até atingir o indivisível; enquanto não se conhecer a natureza da alma e puder determinar que espécie de discurso convém a cada natureza, adornando-os de acordo com esse critério, para oferecer a uma alma complexa discursos também complexos e de variadas harmonias, e para almas simples
uma cultura que não se baseia na verdade mas sim na mera aparência. É certo que, separando bem , já se descobrem de vez em quando neste diálogo certas referências ao que poderíamos chamar a própria consciência retórica de Platão.” (Jaeger, 2003,1258).
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discursos igualmente simples, não se ficará em condições de manejar a arte da oratória. (Platão, 1975, 96)
Para todo aquele que quiser se tornar um orador de verdade são necessárias algumas condições essenciais, dentre elas, uma aptidão natural para bem falar, que deverá ser completada através de um longo processo de exercícios e dedicação à tarefa de filosofar. Sócrates, falando à Fedro, sobre a exigências necessárias para adquirir a “arte de bem falar” diz: “Se nasceste com o dom da palavra, chegarás a ser um orador ilustre à custa de estudo e exercício; porém, se te faltar qualquer dessas condições, no mesmo passo tua formação se ressentirá”. (Platão, 1975, 86) Além disso, os discursos devem ser dirigidos com o objetivo de conduzir as almas no caminho da virtude, pois o “homem de senso”, segundo Sócrates, não deverá “esforçar-se para agradar seus companheiros de escravidão.” Vejamos agora como Rousseau concebe o papel do discurso em relação à política e à transformação da sociedade. No seu entender, a questão da linguagem está diretamente ligada as origens e aos rumos da sociedade e da política. Rousseau atribui um grande papel à questão do sentimento presente na linguagem, até porque, segundo ele, são os sentimentos e as paixões morais os responsáveis pelo surgimento das línguas e pelo estabelecimento das sociedades. Assim como a história dos homens, a da linguagem também é uma história de decadência. De transparente e veraz que era em seu princípio, torna-se corrompida e estéril. A linguagem vai perdendo sua transparência e seu sentimento e segue o curso da civilização, ou seja: corrompe-se com o decorrer do tempo. Segundo Rousseau, todas as línguas acabam por “mudar de caráter e perder em força, ganhando em clareza na medida em que se desenvolvem”. (Rousseau, 1969, 81) Além disso, o próprio homem, a partir do momento em que passa a adquirir novas ideias e desenvolver novas paixões, e à medida que suas necessidades se modificam, utiliza-se da linguagem a fim de convencer seus semelhantes a agirem de forma a lhe favorecer. A linguagem e os homens modificam-se concomitantemente. No Segundo Discurso Rousseau descreve o estabelecimento da propriedade privada da seguinte maneira: O primeiro que tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores teria
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Evaldo Becker poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: fugi às palavras desse impostor: estareis perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de ninguém. (Rousseau, 1989, 84)
Nota-se que nessa passagem a palavra funciona como “discurso enganador”. É necessário o discurso ou artimanha para convencer os semelhantes a concordarem em cessar a violência e principalmente, para garantir o gozo e a fruição dos bens adquiridos 4 . Segundo Rousseau, “Todos correram ao encontro de seus grilhões [...] os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam tirar proveito deles”. (Rousseau, 1989, 100). Este é o momento em que, segundo ele, se instituem as primeiras desigualdades. Em seguida estas ampliam-se e são estabelecidos diferentes critérios de valoração entre os homens, tais como a eloquência, a beleza, a dança, o canto 5 , etc. Em tais condições surgem novas necessidades, como por exemplo, a de se sobressair sobre os demais, dando margem ao engodo e a mentira. A partir daí, escreve Rousseau: “ser e parecer tornaram-se duas coisas completamente diferentes, e dessa distinção surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que compõem seu cortejo”. (Rousseau, 1989, 96) As línguas já não expressam o verdadeiro sentimento, possibilitando a distinção entre o discurso e o sentimento que se esconde. Ocorre a cisão entre a fala ou o convencimento, e a ação por detrás do discurso. Achandose a linguagem e o homem corrompidos, é preciso então, estabelecer novos critérios para perceber a verdade e poder agir em sociedade. O homem em sociedade utiliza-se do discurso como de uma máscara para disfarçar suas verdadeiras intenções e atitudes. No Emílio Rousseau escreve:
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Acerca da necessidade da linguagem na formação das sociedades escreve Bento Prado Jr: “Na origem da sociedade civil, nenhuma força, sem as miragens que a linguagem pode produzir, poderia instituir sua dominação”. (Prado Jr, Bento, 1998.) No Segundo Discurso Rousseau escreve o seguinte sobre esta situação: “cada qual começou a olhar os outros e também querer ser olhado, e a estima pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mas hábil ou o mais eloqüente, tornouse o mais considerado; e assim foi dado, a um só tempo, o primeiro passo para a desigualdade e para o vício”. (Rousseau,1989, 91)
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Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo, ouvimo-los falar; eles mostram seus discursos e escondem suas ações; na história, porém, elas são reveladas e julgamo-los pelos fatos. Suas próprias palavras ajudam-nos a apreciá-los pois, comparando o que fazem com o que dizem, vemos ao mesmo tempo o que são e o que querem parecer; quanto mais se disfarçam melhor os conhecemos.(Rousseau, 1999, 312)
No momento em que a verdade se afasta do discurso, ou melhor, no momento em que o discurso dissimula a verdade, o critério para a percepção desta é a própria ação pública, no sentido de que esta não desminta o que a palavra afirma. Acerca dessa unidade entre palavra e ação, Rousseau afirma que: “para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno, é preciso agir como se fala”. (Rousseau, 1999, 12) Ou seja: no momento em que a palavra já não corresponde ao sentimento, no momento em que verdade e discurso não coincidem, tornase necessária a perspicácia para que se perceba nas ações o que se disfarçou pela eloqüência. Mas o processo de cisão é ainda mais profundo, e a própria eloqüência ou o poder de persuasão por meio do discurso acaba por ser atingido em seu âmago. Por mais clareza e racionalidade que demonstre o discurso, por mais que transmita as ideias, ele já não consegue sugerir ou motivar ações, principalmente aquelas que visem fins públicos. Tal discurso não prima mais pela liberdade, a verdadeira eloqüência – aquela que elevava os corações e que insuflava belas ações – praticamente desapareceu. Ao final do Ensaio, Rousseau critica as línguas modernas ao afirmar que estas não se parecem mais com as línguas de outrora que eram “favoráveis à liberdade”, pois eram sonoras, prosódicas e harmoniosas, enquanto que as línguas modernas seriam mais propícias “para o sussurro dos sofás” 6 A mesma ideia está presente também na seguinte passagem do capítulo XX do Ensaio, onde Rousseau escreve: Nos tempos antigos, quando a persuasão constituía uma força pública, impunha-se a eloqüência. De que serviria hoje, quando a força pública substituiu a persuasão! Não se tem necessidade nem de arte nem de figura para dizer – assim o quero-. Qual é o discurso, pois, que ainda resta a fazer ao povo reunido? [...]. E Qual é o
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Essai, 1969. p. 199. il y a des langues favorables à la liberté; ce sont les sonores, prosodiques, harmonieuses, dont on distingue le discours de fort loin. Les notres sont faites pour le bourdonement des divans. (Nossa tradução)
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Evaldo Becker interesse daqueles que os fazem, em persuadir o povo, se não é o povo quem distribui mercês? As línguas populares tornaram-se, também para nós, tão perfeitamente inúteis quanto a eloqüência. As sociedades tomaram sua última forma: nela nada se tem a dizer ao povo, a não ser – daí dinheiro-, diz-se por meio de cartazes nas esquinas ou de soldados nas casas. Para tanto não se precisa reunir ninguém; pelo contrário, convém manter os súditos esparsos – tal a primeira máxima da política moderna. (Rousseau, 1969, 199)
Como podemos perceber, é grande aqui a distância em relação à política grega. Rousseau descreve uma sociedade na qual a linguagem já não é mais dirigida ao povo, onde este não tem o poder de decisão. Platão sugere no Górgias, que, por mais que o povo fosse tratado como criança e “só pensarem em lhes ser agradável, sem se preocuparem, no mínimo, se desse jeito eles viriam a ficar melhores ou piores”, (Platão, 2002b, 211) os oradores e políticos ainda precisavam de seu apoio; coisa desnecessária na Modernidade, segundo Rousseau. Sempre que Rousseau procura demonstrar o poder de persuasão através do discurso e da eloqüência, e as belas ações motivadas por ele, sua atenção volta-se para os povos da antiguidade e particularmente os gregos. Mas mesmo lá, já é assinalada a corrupção da linguagem, corrupção esta que só fez se agravar com o passar do tempo, e que chega ao estado descrito na passagem acima. Estado este, no qual a voz se cala, onde a eloqüência e os argumentos já não fazem efeito. Então, a persuasão e a eloqüência cedem lugar à força; a liberdade se esvai e impera a violência. Este é o ponto culminante, onde homem linguagem e sociedade encontram-se corrompidos, onde impera o artifício, as máscaras e a violência. Bento Prado em seu texto A força da voz e a violência das coisas escreve que: “a violência não remete mais à préhumanidade, ao grau zero da História; ao contrário, ela é seu produto mais refinado, fim da História e fim do Discurso.” (Prado Jr, 1998, 17) Como podemos perceber, é veemente a crítica de Rousseau em relação a linguagem ou ao discurso. Mas então, qual a saída? A tentativa de reverter tal situação deveria passar invariavelmente por uma recuperação do próprio poder do discurso. Encontrando-se o homem, a sociedade e a linguagem corrompidos, o remédio é tentar recuperar o poder da palavra,
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ou melhor, da linguagem. Segundo Rousseau, “é preciso muita arte para impedir o homem social de ser totalmente corrompido”. 7 No livro IV do Emílio o autor afirma que: Um dos erros de nossa época é sempre empregar a razão sozinha demais, como se os homens fossem apenas espírito. [...] Querendo dar tudo ao raciocínio, reduzimos a palavras nossos preceitos; nada pusemos nas ações. A razão sozinha não é ativa; às vezes ela refreia, raras vezes excita e nunca faz algo grande. (Rousseau, 1999, 440)
A eloqüência, a retórica ou o discurso, possuem na obra de Rousseau tanto um caráter negativo, como no caso do ‘discurso enganador’, quanto um caráter positivo, quando os discursos são utilizados a fim de despertar a virtude dos cidadãos e motivar ações que visem um progresso da moral e da vida política e uma conseqüente redução do mal-estar percebido em sociedade. 8 Para além da linguagem está a força, nesse sentido o que Rousseau sugere por vezes é que se atribua maior papel à inflexão e ao sentimento presentes na linguagem. Estas qualidades do discurso poderiam se constituir enquanto indicativos do sentimento e da verdade. Sem conceder relevância ao sentimento e à inflexão o próprio discurso acaba por se tornar estéril. 9 A crítica à retórica sofista deve ser entendida como uma crítica ao conservadorismo do modelo político vigente na época, no sentido de que os tratados de retórica em voga na época, segundo Platão – visavam apenas à obtenção do sucesso através da persuasão do povo, no sentido de manter o status quo – haja vista que o orador nunca deveria falar algo que
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Emílio, 1999, p. 434. Sobre esse caráter positivo do discurso, escreve Starobinski: “A eloqüência, alterada pela influência da escrita e pelo ensurdecimento da língua evoluída, pode reviver na própria escrita ou no discurso solidamente argumentado: o efeito sobre o coração do ouvinte é então a garantia de um poder redescoberto, de uma comunicação reconstituída. E sabemos o quanto Rousseau a isso se dedicou” (Starobinski, 2001, p. 213.) 9 Conforme o autor afirma no livro I do Emílio, “Sendo a primeira lei do discurso a de se fazer ouvir, o maior erro que se possa cometer é falar sem ser ouvido. Vangloriar-se de não ter inflexão é vangloriar-se de tirar a graça e a energia da frase. A inflexão é a alma do discurso, dá-lhe o sentimento e a verdade . A inflexão mente menos do que a palavra; talvez por isso seja tão temida pelas pessoas bem educadas.” (Rousseau, 1999, 61). 8
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desagradasse o povo. Nesse sentido a retórica servia como instrumento de adulação e como prática política eficaz no cenário existente. Diferente disso, Platão, mediante as palavras do personagem Sócrates, pretendia que o orador honesto falasse à guisa de transformação, em função da verdade, sem simplesmente bajular o povo, pois tal atitude não possibilitaria uma melhora efetiva das condições políticas vigentes. Para ser “orador honesto” e político de verdade é preciso conhecer a justiça e é preciso falar ao povo sem adulação, mas com o objetivo de tornálo melhor. Em função de tais características é que Sócrates ao final do Górgias, afirma ser “um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política”, e que ninguém mais senão ele presentemente a pratica. “Visto nunca entabular conversação com qualquer pessoa com o intuito de adquirir-lhe as boas graças e só ter em mira o que é mais útil, e não o mais agradável”. (Platão, 2002b, 237) Para Rousseau um discurso verdadeiro também deve ser feito sem se ater ao jugo da opinião ou a mera aparência, deve ser motivado por um sentimento verdadeiro em conformidade com a consciência. Já no Segundo Discurso Rousseau incentivava os cidadãos a animarem “o zelo dos chefes dignos mostrandolhes sem temor e sem adulação a grandeza de sua missão e o rigor de seu dever” (Rousseau, 1989, 37) Tanto Platão quanto Rousseau escrevem em função de um dever ser, pois negam que a realidade presente de seu tempo estivesse de acordo com seu ideal ético-político. Parece-nos que é justamente em relação ao caráter ético que as posições de ambos se assemelham. 10 Para Platão, o discurso não deve ser baseado simplesmente na verossimilhança, assim como não pode ser um discurso bajulador; deve sim, ser fundamentado pelo
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Entretanto, embora possamos estabelecer inúmeras semelhanças entre as filosofias de Rousseau e Platão, as dessemelhanças entre elas também são muitas. Rousseau leu e admirou Platão, mas, apesar disso, suas teorias se diferenciam em inúmeros pontos. Podemos mencionar aqui, por exemplo, a defesa das ideias inatas em Platão, que não é partilhada pelo genebrino que nesse caso segue muito mais de perto as teorias de Locke e de Condillac, que defendem a ideia de que nossos conhecimentos provêem dos sentidos. Além disso, poderíamos contrapor à crítica platônica da democracia à defesa apaixonada de Rousseau por este regime. Tratamos acerca destas e de outras questões em nossa Tese de Doutorado intitulada “Política e Linguagem em Rousseau”, sobretudo no primeiro capítulo onde tratamos acerca da herança clássica de Rousseau. (Becker, Evaldo. 2008).
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conhecimento acerca do que se fala e pronunciado na intenção de tornar melhores e mais virtuosos aqueles para os quais é dirigido. Em Rousseau o discurso não deve apenas ser coerente logicamente, mas deve ser motivado por um sentimento verdadeiro, além disso, o mesmo deve coincidir com a ação. Ou seja, não pode ser desmentido na prática. Para ambos também: política, retórica, ética e moral, não podem ser avaliadas separadamente. Segundo Barros: “Tanto em Platão quanto em Rousseau, o político é inseparável do ético”. (Barros, 1995, p. 139) As atitudes individuais dos homens que compõem as sociedades devem visar ao bem público, sua linguagem deve estar a serviço da coletividade e não da manutenção de uma situação política corrompida que vise apenas a manutenção da corrupção existente. Rousseau e Platão almejam um futuro melhor, um porvir que seja diferente do que está estabelecido. Ambos veem na linguagem, a possibilidade de agir sobre os assuntos públicos, mas tal linguagem não pode apenas deter-se nas aparências, não pode ser um mero jogo de sedução, é preciso, como dirá Rousseau: “que ela não seja mera figura de retórica”, mas, que seja eivada de um desejo real de contribuir para o bem da coletividade.
Esta parece ser sua intenção nesta passagem dos Fragmentos políticos, com a qual finalizamos nosso artigo: Agrada-me pensar, que um dia algum homem de Estado venha a ser cidadão, que não mudará as coisas apenas para agir diferentemente de seu predecessor, mas para melhorá-las; que a finalidade pública não será para ele figura de retórica, mas que terá algum valor em seu coração. 11
Referências BARROS, Gilda Naécia de. Platão, Rousseau e o Estado Total. São Paulo: T.A.Queiroz, 1995. BECKER, Evaldo. Política e linguagem em Rousseau. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Filosofia da USP. 2008. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25092008-165413 CASSIN, Bárbara. Ensaios sofísticos. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Siciliano, 1990.
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Rousseau, Fragmentos políticos. Apud. Barros, Gilda Naécia 1995, p.178.
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_______. O Efeito sofístico. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira et Alli. São Paulo. Editora 34, 2005. JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2003. ROMANO, Roberto. O Caldeirão de Medeia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. Tradução de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri Nagle. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Ática, 1989. _______. Emílio, ou, Da Educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _______. Ensaio Sobre A Origem das Línguas. In: Obras J.J. Rousseau, v. II. Tradução de Loudes Santos Machado. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Editora Globo, 1962. _______. Oeuvres completes III e V, Paris: Éditions Gallimard, 1964. PLATÃO. Protágoras. In: Diálogos, Vol. III-IV.Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ed. Belém: Editora Universitária da UFPA, 2002a. _______. Górgias. In: Diálogos, Vol. III-IV.Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ed. Belém: Editora Universitária da UFPA, 2002b. _______. Fedro. In: Diálogos, v.5. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ed. Belém: Editora Universitária da UFPA, 1975. PORSET, Charles. Avertissement; Remarque. In: ROUSSEAU, JeanJacques. Essai sur l’origine des langues. Edição crítica de C. Porset. Paris: A. G. Nizet, 1970. PRADO JUNIOR, Bento. A força da Voz e a Violência das Coisas. In: Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Trad. Fulvia M.L. Moretto: Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998. STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: Ensaios. Tradução de: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Representação e autoridade política em Hobbes: justificação e sentido do poder soberano Delmo Mattos * Resumo: O objetivo desse artigo consiste em analisar as noções de representação e autoridade presente no argumento contratualista de Hobbes. Essas noções são fundamentais para o entendimento do modo como o poder soberano age em relação aos membros que o constitui. Assim, desmitifica-se a interpretação no qual evidencia o Estado político proposto pelo filósofo em questão contrário aos direitos individuais. Palavras-chaves: artificialismo; autoridade; poder; representação; soberania Abstract: The aim of this paper is to examine the notions of representation and authority in Hobbes’s argument. These notions are important to the understanding of how the sovereign acts in relation to its members. Thus, demystifies itself to the interpretation which highlights the political state proposed by the philosopher is contrary to individual rights. Keywords: artificiality; authority; power; representation; sovereignty
1 Introdução O tema da representação política é, desde sempre, uma das questões proeminentes das pesquisas relativas aos teóricos políticos da modernidade da contemporaneidade, como ilustra a série infinda de artigos, congressos e publicações de referência internacional que, testemunham a fecundidade e a riqueza argumentativa proporcionada por essa questão, assim como a sua atualidade nas discussões políticas contemporâneas 1 .
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Gama Filho (UGF).E-mail: delmomattos@hotmail.com [Artigo recebido em 09.02.2011, aprovado em 09.06.2011] Pode-se citar como exemplo da relevância do tema da representação política nos círculos acadêmicos é a publicação do livro de Hanna Pitkin, publicado em 1967 nos Estados Unidos, sob o título O conceito de representação. Esta publicação teve enorme impacto nos meios acadêmicos, não só pela inovação conceitual, mas também pelo momento político em que os movimentos de direitos civis dos negros questionavam seriamente as instituições representativas naquele país. Além de ser um dos mais influentes e mais citados trabalhos na literatura sobre o tema, o livro oferece ampla discussão do conceito de representação política e mostra seu caráter contraditório. Adotando a abordagem da filosofia da linguagem de Wittgenstein, Pitkin sustenta que, para se compreender o conceito de representação política, devem ser considerados os diferentes modos como o termo é usado.
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 63-98
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O que constitui a representação política? Como é tratado tal conceito pela modernidade e contemporaneidade política? Não restam dúvidas que, a sua forma mais abstrata ou geral, a ideia de representação não é mais que uma relação entre dois sujeitos na qual um, o representante, torna-se a imagem de outro, o constituinte. Em outros termos, o conceito de representação é, necessariamente, uma abstração e possui uma natureza mais ampla do que meramente se imagina. Etimologicamente, o termo advindo da raiz latina re-presentare origina-se do princípio de “tornar presente o que está ausente”. Nestes termos, sempre que haver uma situação que implique “delegação intencional” ou não, teremos algum tipo de representação, cujo espectro de amplitude varia desde formas mais diretas, explícitas e precisas, como uma procuração, até aquelas sutis e tênues, como as representações eminentemente simbólicas. Não obstante, por representação política, também, costuma-se entender um uma tipologia especial de representação que, em sua acepção contemporânea, possui uma estreita relação com a eleição dos representantes, que se materializaria em parlamentos com membros escolhidos mediante sufrágio periódicos. Partindo da constatação de que o povo não governa diretamente, coloca-se a questão de como selecionar os representantes adequados e de como controlá-los de modo que respondam satisfatoriamente aos interesses dos representados. Desse modo, não apenas as formas assumidas pelas instituições representativas, mas também questões relativas à participação e aos mecanismos de prestação de contas e sanção se configuram como temas recorrentes na teoria democrática, tendo ganhado importância relevante no cenário político contemporâneo. Certamente, quem se dispõe a se aprofundar no debate acadêmico constituído por uma gama de intérpretes e suas respectivas análises de cunho geral ou específico acerca das questões que envolvem a representação política depara-se decisivamente com o modelo de representação política proposto por Hobbes. Em princípio, a argumentação do filósofo insere-se em um amplo processo de transformação o qual passa a sociedade, principalmente, européia no século XVII. Tais transformações são reconhecidamente as do estado moderno originado a partir da dispersão de poder e da relativa anomia do feudalismo medieval.
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Neste contexto, todo aparato teórico de Hobbes está alicerçado na ruptura radical entre aquele homem submetido a uma autoridade transcendente, estigmatizado pela preponderância da fé, com aquele submetido a sua própria autonomia, caracterizado pelo primado da razão. Em linhas gerais, o homem criado por uma divindade cede lugar a um homem criador, cujo suporte ontológico não está mais ancorado na noção ou concepção de physis, mas sim na utilização da razão. Especificamente, o problema político ao qual Hobbes se deparava era o da ausência total de segurança sobre quem legitimamente representaria o Estado, com a incumbência de estabelecer as condições mínimas da paz e, ao mesmo tempo, assegurar e garantir as condições liberdade possível. Neste momento histórico ao qual atravessava a Inglaterra da época do filósofo alcançava-se a proeminência de uma discussão fortemente relacionada ao problema da representação e legitimidade do Estado. Neste período, os integrantes da câmara dos comuns começaram a expressar apreensões consideráveis acerca do modo como a coroa inglesa utilizava-se de suas prerrogativas. Tais reivindicações chegaram ao clímax no Parlamento de 1628, quando a “petição de direitos” fora apresentada a Carlos I. Segundo Skinner, “a intenção subjacente à petição era de fazer valer certas liberdades justas e legais dos súditos livres desse reino face das violações do passo, e de preservá-lo de inovações futuras” (2010, p. 10). Em outros termos, a preocupação era se realmente a causa eficiente do poder do Estado residiria fundamentalmente no povo, na medida em que o seu poder era resultado da soma dos poderes transferidos ou renunciados de cada homem. Com base neste pressuposto, alguns teóricos sustentavam que o poder dos príncipes é derivativo, ou seja, secundário. Logo, os representantes eleitos pelo povo, neste caso, o parlamento, possuíam “o direito absoluto de assumir as funções do Estado diante de uma possível ameaça à liberdade e à segurança do povo” (Cf. Skinner, 1999). No curso deste debate, a argumentação dos defensores do parlamentarismo fora contestada por aqueles que sustentavam que a figura do rei era o único capaz de exercer legalmente as funções relativas ao Estado, à medida que a sua legitimidade baseava-se preliminarmente em sua
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autoridade divina 2 . Em meio a este clima conflituoso nasce o argumento proposto por Hobbes de que, o legítimo portador da soberania do Estado não residiria na pessoa natural do monarca, nem em uma “associação livre de pessoas naturais”, mas na pessoa artificial do Estado sem qualquer vinculo com elementos exteriores a própria natureza humana (Skinner, 1999. p. 17). Esta constatação forneceu argumento suficiente para Hobbes fundar um deslocamento teórico a respeito da representatividade política inigualável diante dos teóricos políticos contemporâneos a ele aqueles que o precederam. Na verdade, a noção de pessoa artificial, tal como é expressa por Hobbes, permite oferecer uma nova solução para a querela que envolvia a unidade de um tipo particular de coletividade, o corpo político, distinta daquela que se encontra nos teóricos clássicos. Isso significa que a expressão pessoa artificial, contrariamente ao que fixara a tradição, não designa uma coletividade apenas, mas uma “instância representante”, na medida em que age em lugar de outro (Limongi, 2002, p. 267). Desse modo, Hobbes confere ao representante um sentido original ao fazê-lo ser portador de ações e, sobretudo, um elemento artificial engendrado pela união de vontades. Diante de tal constatação, procederemos a destacar o modo como o filósofo articula esse processo diante da lógica de sua argumentação contratualista. Sendo assim, em um primeiro momento, fornece-se os argumentos principais apresentados por Hobbes pelo qual justifica-se a necessidade da gênese e a instituição artificial do Commonwealth. Por sua vez, baseado nesse pressuposto, evidencia-se as indicações fundamentais da
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Segundo Skinner, “Quando a guerra civil irrompeu na Inglaterra em 1642, a iniciativa ideológica foi primeiramente tomada pelos adversários do regime de Carlos I. entre os defensores da oposição do parlamento à coroa, Henry Parker era talvez o mais influente entre aqueles que argumentavam que, ao menos em períodos de emergência nacional, “a suprema magistratura, tanto em questões de Estado como em questões de Direito”, deve permanecer com as duas Casas do Parlamento como representantes do povo essencialmente o soberano. “Toda a arte da Soberania”, declara Parker em suas Observations [Observações] de 1642, depende do reconhecimento de “que o poder é apenas secundário e derivativo dos Príncipes”. “A fonte e causa eficiente do povo”, de modo que os representantes eleitos pelo povo têm o direito de “julgar da necessidade pública sem o Rei, e lançar mão de qualquer coisa” quando a liberdade e a segurança do povo está em jogo” (1999, p. 15-16. Grifo do autor).
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forma, poder e finalidade sobre a qual o seu modelo teórico de Estado se constitui. Em um segundo momento, analisa-se a artificialidade do Commonwealth através do exame dos conceitos de autorização e representação política expressos na concepção hobbesiana de pessoa artificial proveniente do que se denomina de contrato social. Baseado nessa concepção será possível evidenciar e discutir os argumentos defensórios da estreita relação de dependência entre o Commonwealth hobbesiano e os homens que o confeccionam e impreterivelmente o compõem. Dependência esta que justifica o sentido e a finalidade das ações praticadas pelo poder soberano. 2 O artificialismo do Commonwealth: a geração do “homem artificial” e a justificação racional do poder soberano Em termos gerais, o caráter artificial conferido por Hobbes ao seu modelo de Estado pressupõe a lógica argumentativa da proposta de justificação racional do poder soberano. Esta empresa baseia, nomeadamente, pela submissão consentida da vontade de cada homem à vontade soberana do Estado através do dispositivo contratual onde os poderes de cada homem são transferidos a um terceiro não contratante, ou seja, o soberano. É, portanto, mediante esta transferência de poderes que Hobbes estabelece as bases metodológicas e argumentativas para o caráter artificial do Estado proposto por ele. No Leviathan, no De Cive e no The Elements of Law, Hobbes distingue duas espécies de Estado (Commonwealth), o primeiro diz respeito ao Estado político (Politicall Commonwealth) ou Estado por instituição e o segundo refere-se ao Estado por aquisição. O Estado por aquisição (Commonwealth by acquisition) distingue-se do Estado por instituição ou político pela forma como o poder soberano pode ser adquirido. Neste sentido é possível afirmar que, enquanto o Estado por aquisição é instituído exclusivamente por força natural, isto é, aquele em que o poder soberano é adquirido por imposição, o Estado por instituição, por sua vez, é aquele em que cada homem concorda voluntariamente entre si a se submeter a um homem ou uma assembléia com a finalidade de serem protegidos por este contra todos os outros homens (Cf. Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 228). Por uma questão de objetivo, não se tratará do Estado por aquisição tal como é expresso por Hobbes, mas sim do Estado por instituição ou
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político, de maneira que este fornece objetivamente a posição do filósofo acerca da artificialidade dos Commonwealth. Em vistas disso, o primeiro aspecto que podemos constatar do caráter artificial do Commonwealth parte essencialmente da leitura da introdução ao Leviathan, em que deparamos com a comparação estabelecida por Hobbes entre a geração e instituição do Commonwealth e a construção de um homem artificial, nos mesmos princípios que a natureza criou o homem natural (homo naturae). De acordo com Hobbes: Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto; que lhe é possível fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, porque não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, tal como um relógio) possuam uma vida artificial? Pois o que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? (Hobbes, 1968, Introduction, p. 81. Grifo do autor) 3 .
Após afirmar que a arte humana é capaz de imitar o produto mais racional da natureza, ou seja, o homem, Hobbes procede, também, na introdução ao Leviathan com uma detalhada comparação entre o homem natural e o homem artificial (Commonwealth), estabelecendo diferenças marcantes entre as partes que compõem o mecanismo natural do homem com as que compõem o mecanismo do homem artificial. Esta comparação, por sua vez, fornece os elementos teóricos suficientes para a conclusão no qual compara a concepção do Commonwealth com aquele Fiat pronunciado por Deus, no momento da criação do “homem natural”: E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos são as juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais ligados ao trono da soberania, todas as juntas e membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e prosperidade de todos os membros individuais são a força; [...] os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas, são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade
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Na tradução empreendida por Macpherson (1968), nota-se que ao invés de “homem artificial” lê-se “animal artificial” (artificial animal).
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artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é doença; e a guerra civil é a morte. Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao Façamos o Homem proferido por Deus na Criação (Idem., Ibidem. Grifo do autor).
Na verdade, o que o filósofo nos induz a acreditar é que o homem natural como imitador da natureza, isto é, daquele mecanismo natural instaurado por Deus é concebido como um arquiteto capaz não somente de imitar a obra divina, mas também de recriar e “aperfeiçoar a natureza com a intenção de corrigi-la através de um produto do seu próprio engenho e destreza” (Cf. Bobbio, 1991) 4 . Dessa forma, o caráter artificial do Commonwealth deve ser compreendido como um resultado ou um produto da arte (humana) cuja existência é absolutamente dependente da obra humana em oposição ao que é entendido como algo natural, isto é, o que toma forma independente da intervenção humana (Angoulvent, 1996, p. 68) 5 . Por conta disso, devemos considerar que a analogia artificialista empreendida por Hobbes não se constitui em uma mera referência alegórica ou metafórica, mas principalmente, como um recurso demonstrativo para determinar argumentativamente o Commonwealth, ou melhor, o corpo político, como uma construção artificial em oposição aquilo que é 4
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Segundo Bobbio, “umas das características do pensamento renascentista, pela qual é profundamente marcada a filosofia de Bacon – primeiro mestre de Hobbes -, é a transformação da relação entre natureza e arte em comparação com a concepção dos antigos: a arte não mais aparece como imitação da natureza, mas como igual à natureza, o que é índice de uma nova e mais alta avaliação das coisas feitas pelo homem, em geral, da industriosidade humana. Concebida a natureza como uma grande máquina, penetrar em seu segredo quer dizer atingir a compreensão das leis que regulam seu mecanismo. Mas, uma vez descoberto esse segredo, o homem é capaz não apenas de imitar a natureza, mas também de recriá-la, de aperfeiçoá-la, de acrescentar-lhe potência, construindo outras máquinas” (1991, p. 31). De acordo com Angoulvent, “O artificialismo caracteriza-se como a arte de imitar, sendo apenas a expressão de um complexo demiurgo, que impõe a realidade da superioridade de Deus, que cria, sobre o homem, que imita. É significativo constatar que o artificialismo é uma produção por criação. A técnica destrona a gênese. [...] Ele também pode aparecer como o supra-sumo da arte de imitar (chamada de artificialismo) pela imitação da melhor obra racional da natureza: o homem. O fruto da imitação que tem o homem natural como modelo é o homem artificial Leviatã, por ser de natureza e de força maiores do que o homem natural” (1996, p. 68).
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concebido naturalmente 6 . Certamente esta investida se dá na forma de uma caracterização da natureza humana em oposição à concepção clássica ou aristotélica, segundo a qual o homem é, devido à sua natureza, um animal político (zóon politikón) determinado por um instinto gregário que o conduz espontaneamente a conviver com seus semelhantes 7 . Esta consideração torna possível entendermos o motivo pela qual Hobbes justifica a necessidade de que este produto da arte humana possua uma estrutura e poder infinitamente superior ao próprio homem natural, de modo que não possa haver “nada na terra que se lhe possa comparar”. Esta é, portanto, a configuração fundamental do que Hobbes denomina de Leviathan (Commonwealth), o Deus mortal (Cf. Hobbes, 1968). Em virtude dessa configuração, a imagem descrita por Hobbes do Leviathan remete-nos diretamente a algo que possui um poder incomensurável e, em certo sentido ameaçador, tal como o “monstro bíblico” do livro de Jó 8 . Ao recorrermos aos versículos 40 e 41 do livro de Jó, na Bíblia Sagrada, é possível constatar que em todas as passagens nas quais esta figura é citada na Bíblia, seja em qualquer uma das suas formas, esta possui o poder de ameaçar “a todos os que o cercam”, observa, Batista (1995, p. 91) 9 . 6
É, portanto, neste sentido que o caráter artificial do Commonwealth deve ser concebido como um resultado ou um produto da arte humana que, na tentativa de imitar a sua própria criação por Deus (natureza) engendra na visão de Bobbio, “o mais complicado, talvez mesmo o mais delicado, certamente o mais útil dos engenhos, o que lhe permite sobreviver na natureza nem sempre amiga” (op. cit., p. 33). 7 Na Política, Aristóteles afirma ser a pólis (a cidade-estado grega) resultante de uma série de associações naturais, ou seja, como resultado de um processo natural de desenvolvimento, “tão natural como a união de homem e da mulher – com fim de preservar a espécie” (Aristóteles, 1997, I, Cap. 2, 1253b, p. 17). Uma associação humana qualquer é, segundo este, um todo composto por pelo menos mais de um indivíduo, que tem como fim um determinado bem. Como afirma Boutroux (1998, p.121), “em Aristóteles, segundo a ordem do tempo, a primeira destas associações corresponderia à família (oikía), que é, portanto, a união natural do homem e da mulher em vista de satisfazer a “necessidades cotidianas 8 Na verdade o Leviathan hobbesiano não tem nada de aterrorizador. Ver Ribeiro (1984). 9 Segundo Batista, “E essa imagem foi escolhida pelo autor justamente pela analogia entre o poder desse monstro mitológico e aquele que deve deter o Estado. Leviatã é também o próprio soberano se for ele concentrado em uma só pessoa, no caso de uma monarquia, ou a própria soberania, no caso de uma aristocracia ou de uma democracia, onde respectivamente poucos ou todos deteriam o poder” (1995, p. 91).
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De fato, no diálogo travado entre Deus e Jó nos referidos versículos da Bíblia, são reveladas as principais características do que este denomina de o “maior dos monstros marinhos”, isto é, o “Leviatã”, tal como Hobbes, em princípio, conceberá a configuração ou a imagem representativa do Commonwealth 10 .Vejamos a passagem da Bíblia aludida, Em volta de seus dentes está o terror. Da sua boca saem tochas. Dos seus narizes procede à fumaça como de uma panela que ferve, e de juncos que ardem. O seu hálito faz ascender carvões. O seu coração é firme como uma pedra. Quando ele se levanta, os valentes são atemorizados. Se alguém o atacar com a espada, essa não poderá penetrar, nem tampouco a lança, nem dardo, nem o arpão. Ele considera o ferro como palha, e o bronze como pau podre. Os bastões são reputados como juncos, e ele se ri do brandir da laça (1993, Livro de Jô, Vs. 41 e 42, v. 15-24).
No Capítulo XXVIII do Leviathan, Hobbes declara: Expus até aqui a natureza do homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao governo), juntamente com o grande poder governante, ao qual comparei (o poder do governante) com o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou Rei dos Soberbos. Não há nada na Terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o Rei de todos os filhos da Soberba (Hobbes, 1968, Cap. XXVIII, p. 362).
Diante desta passagem, ainda que, a comparação entre o monstro bíblico descrito por Jó e o Leviathan hobbesiano possa evidenciar características comuns, o intérprete alemão Carl Schmitt adverte que esta imagem, possivelmente, não é representada em sua totalidade na introdução da obra Leviathan. (Schmitt, 1996, p. 19). De fato, na introdução a esta obra, Hobbes menciona que o Estado ou Civitas (em latim) é um “homem artificial” “de maior estatura e força do que o natural”, algo semelhante a 10
Ainda para Batista, a figura do Leviatã é uma imagem extraída “do livro de Jó, Antigo Testamento, onde aparece como um animal da figura mitologia fenícia” (Idem., Ibidem., p. 90). Em nota ao Prefácio ao Behemoth, Ribeiro afirma que “enquanto o Leviatã é um dragão ou serpente, o Behemoth é na Bíblia um hipopótamo. (Ver Jó, cap. 40, v. 15-24). É importante notar que o texto bíblico não fornece elementos suficientes para valorar positivamente um dos monstros (no caso, o Leviatã hobbesiano, que é o poder de Estado, pacificador) e negativamente o outro (o Behemoth de Hobbes, que é a guerra civil)” (Ribeiro, Prefácio ao Behemoth, 2001, p. 10, nota 2).
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uma máquina artificial, sem mencionar, no entanto, qualquer analogia entre este e a figura representativa do “monstro marinho” descrito por Jó, na Bíblia (Hobbes, 1968, Introduction, p. 81) 11 . Não obstante, com base no capítulo XXVIII do Leviathan, constata-se que não é exatamente o Commonwealth que Hobbes compara com a representação do maior dos monstros marinhos descrito por Jó, mas sim a figura da pessoa do soberano, o portador do poder absoluto, seja ele um homem ou uma assembléia de homens. Com efeito, ainda que, de um modo geral, a representação com que Hobbes caracteriza o “Leviatã” de remeter-nos diretamente a pressupor que a figura da pessoa do soberano seja relacionada como portador de uma autoridade incomensurável 12 . Devemos entender que tal configuração é extremante racional e quando muito necessária à própria finalidade para a qual fora instituída, uma vez que o exercício da sua autoridade é o que garantirá o cumprimento do acordo firmado entre os homens, como também, é o fator primordial de que permite compreender a artificialidade que resulta a “unidade da multidão”. 13 11
Na Introdução ao Leviathan, Hobbes explica: “For by art is created that great LEVIATHAN called a COMMONWEALTH, or STATE (in Latin, CIVITAS), which is but an artificial man, though of greater stature and strength than the natural, for whose protection and defence it was intended […] (1968, Introduction, p. 81. Grifo do autor). 12 Além disso, a imagem original gravada na capa de cobre da primeira edição inglesa do Leviathan, o Commonwealth não é representado como o “mostro bíblico” de Jó, mas sob a forma de uma majestade ou de um “grande homem” (magnus homus). A explicação desta incoerência, de acordo com Schmitt, resume-se na constatação de que Hobbes, ora utiliza “magnus homus”, ora “magnus Leviathan” o que torna o “monstro” descrito por Jó e o “homem artificial” possuindo a mesma forma, isto é, uma majestade (ou monarca) ou um “grande homem “magnus ille Leviathan” (Idem., Ibidem.). Contudo, para Schmitt, ainda é possível entrever na introdução ao Leviathan três representações possíveis do “homem artificial”: “um grande homem, um grande animal e uma grande máquina forjado pela arte ou pelo engenho humano”. Por outro lado, adverte Schmitt que, ao lado da representação do Leviathan “como grande homem, do grande animal e da grande máquina”, surge uma quarta representação, a saber, a do “Deus mortal”, na qual a idéia do que é o Estado hobbesiano, atinge-se uma “totalidade mítica” composta por “Deus, homem, animal e máquina” (Schmitt, Idem., Ibidem.)12. 13 No De Cive, Hobbes define a “união” da seguinte forma: “Essa submissão das vontades de todos à de um homem ou conselho se produz quando cada um deles se obriga, por contrato, ante cada um dos demais, a não resistir à vontade do indivíduo (ou conselho) a quem se submeteu; isto é, a não lhe recusar o uso de sua riqueza e força contra quaisquer
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Em outros termos, o poder que emana da figura do soberano constitui-se, sobretudo, de um poder unificador exercido pela “força da espada” ou um poder visível, o que possibilita edificar em cada homem medo ou o temor (awe) de desrespeitar o acordo firmado e a observância das leis da natureza. Isto porque, explica Hobbes, não é a unidade de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer segurança suficiente para proteger ou conservar suas vidas, pois se fosse lícito supor que tal multidão na ausência de um poder comum fosse capaz de garantir a observância do acordo firmado, como também da lei da natureza, seria do mesmo modo evidente não haver necessidade alguma de confeccionar ou instituir o Commonwealth, “a fim de obter o estabelecimento da paz” (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 227-228). Hobbes explica essa questão da seguinte forma: Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou mesmo em resumo, fazer aos outros que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar apenas em sua própria capacidade, como proteção contra todos os outros (1968, Cap. XVII, p. 223-224 ).
Desse modo, o vínculo estabelecido entre a potência do Estado e o medo da punição que dele provém, possibilita entender que nenhuma união ou acordo firmado entre cada homem e cada um dos demais seria possível se não fosse a intervenção de um poder coercitivo suficientemente capaz de conter por meio da lei ou do medo da espada aquelas propriedades inerentes da natureza humana, sobretudo, a influência das paixões naturais na conduta destes (Limongi, 2002, p. 8). 14 outros (pois supõe que ainda conserve um direito a defender-se contra a violência); e isso se chama união. E entendemos que a vontade do conselho é a vontade da maior parte dos membros do conselho” (2002a, p. 96). 14 Na visão de Bobbio, “na mesma direção da concepção-agostiniana-luterana do Estado, também Hobbes concebeu o Estado como remédio para a natureza corrompida do homem; mas, na versão laica que ele deu a essa concepção, o estado de corrupção do qual se deveria
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Imediatamente sua parte, e uns confiam-nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não possui nenhuma garantia de que outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de algum poder coercitivo (1968, Cap. XIV, p. 196).
No entanto, o medo exposto na passagem em questão não deve ser apreendido como aquele que cada homem possui da morte violenta imposta pelos demais no contexto do estado de natureza, pois esse tipo de medo observa Hobbes, “não surge na natureza do homem antes da sociedade civil [...] ou pelo menos não em um grau suficiente para conduzir os homens a cumprirem as suas promessas” (1968, Cap. XIV, p. 200) 15 . Portanto, esse “medo específico” que Hobbes menciona é decorrente de um poder também diferenciado, ou seja, do poder que emana da pessoa do soberano composto pela soma dos poderes transferidos de cada homem. Isto explica o motivo pelo qual o filósofo se refere a este tipo de poder como o maior de todos os poderes humanos “composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil que detém o uso
sair não era o estado do pecado (no qual Hobbes não acreditava), mas o estado das paixões naturais, que era tarefa da filosofia descrever e classificar tal como se descrevem e classificam as partes do corpo. O Estado, portanto, não é como remedium pecati, mas como disciplina das paixões” (op. cit., p. 58) (Grifo do autor). 15 Cf. “Não é suficiente, para alcançar essa segurança, que cada um dos que agora erigem uma cidade convencione com os demais, oralmente ou por escrito, não roubar, não matar e observar outras leis semelhantes, pois a depravação da natureza humana é manifesta a todos, e pela experiência se sabe muito bem, bem demais até, em que pequena medida os homens se atêm a seus deveres com base na só consciência de suas promessas, isto é, naquilo que resta se for removida a punição. Devemos, portanto, providenciar nossa segurança, não mediante pactos, mas através de castigos; e teremos tomado providências suficientes quando houver castigos tão grandes, previstos para cada injúria que se evidencie que sofrerá maiores males quem a cometer do que quem se abstiver de praticá-la. Pois todos, por necessidade natural, escolhem o que a eles pareça constituir o mal menor” (Hobbes, 2002a, p. 103-104).
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de todos os seus poderes na dependência de uma só vontade” (Idem., Ibidem., Cap. XVIII, p. 237). Sobre isto, Hobbes é enfático: A única maneira de instituir um poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros (Forraigners) e das injúrias uns dos outros, lhes garantido assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viverem satisfeitos, é conferir toda a força e poder a um homem, ou uma assembléia de homens, a uma só vontade (Hobbes, Cap. XVII, p. 227-228).
Entende-se, com isso que, o poder do Estado é soberano à medida que se posiciona acima de qualquer outro poder que possa haver entre os homens, e somente nesta condição, este atinge de forma absoluta o propósito fundamental com vistas ao qual é instituído 16 . Sendo assim, é possível concluir que, no sentido expresso por Hobbes, somente um poder comum, ou de uma “autoridade irresistível”, o qual todos os homens estejam vinculados e ao qual devam prestar “obediência incondicional”, pode promover em beneficio destes mesmos as condições de segurança e o estabelecimento da paz – “Salus Populi” (“a segurança do povo”) - é o seu objetivo fundamental, afirma Hobbes no Leviathan (1968, Introduction, p. 81. Grifo autor) 17 . 16
Em princípio, a noção de soberania em Hobbes pode ser definida através daquela imagem representada na introdução da obra Leviathan que nos remete a algo que possui um poder colossal de modo que não se possa haver “nada na terra que se lhe possa comparar”, essa é a configuração essencial daquilo que Hobbes denomina de (Commonwealth), o “Deus mortal”. Diante disso, é possível determinar, em termos gerais, que a concepção de soberania está diretamente relacionada à idéia de algo que possui ou detém um “grande poder” ou um “poder supremo” e, ainda, um “poder soberano”. Segundo Bobbio, “Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo o poder inferior é subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice, deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – esse poder supremo – summa potestas, é o poder soberano” (1978, p. 95). 17 Contudo, o sentido ao qual Hobbes refere-se aqui por segurança, deve ser entendido, de uma forma geral, não apenas a preservação da vida em qualquer condição que seja, mas a segurança com vistas à felicidade na medida em que esta deva pressupor uma vida “minimamente digna” (Cf. Hampton, 1986). Sobre isto, em outras palavras, observa Hobbes, “mas por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também, uma indústria legítima (lawfull industry), sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio” (1968, Cap. XXX, p. 376).
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Em outras palavras, levando em conta que, segundo Hobbes, os homens não agem contra a sua vontade, a “força coercitiva” que emana do poder soberano possui única e exclusivamente a finalidade de influir na deliberação de cada homem com o intuito de apresentá-lo às razões suficientes do quanto é vantajoso cumprir as suas determinações e a agir de modo a obedecer de forma incondicional, sobretudo, às suas leis. Desse modo, por mais que seja paradoxal a forma sob a qual o Estado hobbesiano se constitua, ou seja, imbuído de um poder absoluto e de uma “força coercitiva” tamanha é de se supor que, em larga medida, sua confecção e instituição sejam absolutamente necessárias como condição suficiente da possibilidade de suprimir as controvérsias surgidas da aquisição de poder e mais poder (power after power), cujo resultado é o “estado de guerra” 18 . Hobbes não julga que o poder do Estado é apenas uma forma de coibir as nossas paixões egoístas e nossa irremediável imoralidade, O Estado não tem apenas uma função negativa. Ele é também a condição sem a qual os homens não chegam a poder estabelecer entre si relações racionais (op. cit., p. 11).
Diante dos argumentos explicitados de Hobbes sobre a artificialidade do Commonwealth, evidenciamos as indicações fundamentais acerca da forma, poder e finalidade sobre o qual o seu modelo teórico de Estado se constitui, assim como a justificação e a necessidade do poder absoluto. Em seguida, serão discutidos especificamente os níveis e as articulações presentes no argumento contratualista de Hobbes. Com isso, procura-se evidenciar o papel da vontade como pressuposto argumentativo da noção de representatividade política apresentada por Hobbes. 3 Níveis, articulações e estratégias do acordo: a unidade da vontade como pressuposto da representatividade das ações do soberano Com ficou estabelecido anteriormente, a analogia artificialista exposta por Hobbes em relação ao Commonwealth nada mais é do que um pressuposto 18
De acordo com Limongi,“o poder não é, como pudemos observar, uma simples força coercitiva de nossas paixões desregradas. Ele é, sem dúvida, um poder coercitivo, mas um poder fundado juridicamente e cujo emprego tem por finalidade nos retirar do plano das relações de puro poder e força, introduzindo-nos num campo de relações jurídicas e racionais. Ele visa, sem dúvida, regrar nossas paixões, mas não simplesmente de maneira a limitá-las e coibi-las pela força, como se ao Estado não coubesse nenhuma função moral, como se a coerção não tivesse nenhuma finalidade moral a cumprir” (2002, p. 57).
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teórico para assinalar a “pessoa jurídica do Estado” como algo não natural que, por sua vez, imita em um nível superior a organização exemplar do homem natural. Todavia, a expressão mais esclarecedora da concepção do Estado concebido como artifício, isto é, um produto artificial da vontade humana provém, sobretudo, de um suposto acordo estabelecido por cada homem no contexto do estado de natureza, tal como Hobbes deixa subentendido nas suas principais obras de filosofia política 19 . Com efeito, a natureza deste suposto acordo designado de contrato ou pacto é expressa substancialmente através de uma “fórmula estruturante básica”. Cito Hobbes: Cedo e transfiro o meu direito (jus) de governar-me a mim mesmo a este homem, ou esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, a multidão assim unidade numa só pessoa se chama Estado (Commonwealth), em latim civitas (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 227. Grifo do autor).
Uma vez identificado a fórmula pelo qual o contrato é expresso torna-se necessário compreender exatamente o seu conteúdo percorrendo toda uma discussão de níveis e distinções que a constitui. Em uma leitura atenta constata-se que ela enfatiza dois aspectos fundamentais que qualifica o conteúdo e a forma do contrato firmado por cada homem tendo em vista a instituição de um poder comum artificialmente engendrado, a saber: (1) o primeiro diz respeito à “transferência de direitos” e o (2) segundo refere-se à “autorização” ou ao “consentimento” das ações de cada homem em particular a “um único homem ou uma assembléia de homens”. Antes de tudo, é preciso ressaltar que tais aspectos quando articulados e contextualizados na proposta argumentativa do filósofo 19
Vale ressaltar que o caráter artificial do Commonwealth parte de um programa mais amplo da reflexão filosófica e política hobbesiana, observa Bobbio (Idem., p. 32), pois, “precisamente com base na consideração do Estado (Commonwealth) como automa”, Hobbes estabelece a divisão precisa entre o âmbito da filosofia civil e a filosofia natural. No De Corpore, esta divisão é apresentada da seguinte forma: “São duas as partes da filosofia; pois há dois tipos principais de corpos, muitos diferentes entre si, que se oferecem enquanto tais à investigação de sua geração e propriedades. Um deles, por ser obra da natureza, é chamado de corpo natural, o outro é denominado de República (Commonwealth), é produto das vontades e do acordo dos homens. E desses brotam as duas partes da filosofia, chamada natural e civil” (Hobbes, 1966, I, Cap. I, art. 9).
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delineiam fundamentalmente o processo pelo qual a multidão constitui-se, de forma não natural, isto é, artificialmente, em um “corpo político”, ou o Commonwealth em sentido estrito (Cf. Hobbes, 1968, Cap. XIX, p. 131). Este primeiro estágio, constituinte do primeiro nível do acordo, é deduzido com base na percepção dos homens da inviabilidade e hostilidade presentes no estado de natureza e na sua conseqüência, o estado de guerra. Assim sendo, surge aos homens que se encontram neste estágio a necessidade crescente de “auxílio mútuo” como a primeira e mais elementar medida para ultrapassar o medo da morte ocasionada pela utilização irrestrita do direito natural ou da liberdade natural. Não obstante, o ponto de partida da efetivação deste “auxílio mútuo” deve pressupor a vontade ou o consentimento de cada um dos homens, conforme fica explícito que a eficácia de uma união entre eles será tanto mais possível quanto maior for o número daqueles que dirigirem suas ações para um fim comum. Neste ponto torna-se relevante sublinhar que a vontade expressa por cada homem, ou seja, a vontade particular está relacionada ao processo de deliberação, pois como relata Hobbes é o último desejo anteriormente aderente à ação e, como tal, procede da esperança e do medo (Hobbes, 2002a, p. 103). Dito isso é possível compreender que a forma pela qual Hobbes expressa o consentimento é a que diz respeito à possibilidade de que as “vontades de muitos” concorram para uma e mesma ação ou efeito, ou seja, que por vontade todas as ações humanas encontram-se dirigidas a um mesmo fim 20 . Por sua vez, esta determinação engendra o que o filósofo denomina de consenso cuja conseqüência direta é formação da união. Nestes termos, uma vez que a “vontade de muitos” seja dirigida a um fim comum, diz Hobbes, “[...] isto é mais do que consentimento ou concórdia, 20
Cf. “Quando a vontade de muitos concorrem para uma e a mesma ação e efeito, esse concurso é denominado consenso, pelo qual nós não devemos entender uma vontade de muitos homens, pois todo homem têm várias vontades, mas muitas vontades para a produção de um efeito. Mas quando as vontades de dois homens diferentes produzem certas ações que reciprocamente se anulam uma a outra, a isto se dá o nome de contenda. Estando as pessoas umas contra as outras, batalha. Ao passo que as ações que procedem constituem auxílio mútuo. Quando muitas vontades estão envolvidas ou inseridas na vontade de uma ou mais pessoas em consenso (o que, quando puder acontecer, será daqui por diante declarado), então esse envolvimento de muitas vontades numa só ou maior é chamada união” (Hobbes, 2002b, I, Cap. XII, p. 85).
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é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem como todos os homens” (Hobbes, Leviathan, Cap. XVII, p. 223). Com base neste pressuposto, é perfeitamente possível vislumbrar que a possibilidade do contrato em Hobbes reside, sobretudo, no consentimento ou na vontade de cada homem se unir resultando como requisito final para a segurança daqueles que estabelecem tal união a necessidade de um poder comum ou absoluto, por meio do qual “cada homem possa conservar a paz entre si mesmos e unir suas forças quando necessário contra um inimigo comum” (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 224) 21 . Pois, segundo Hobbes, O fim último [isto é] a causa final e designo dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com a própria conservação e com uma vida mais satisfeita (O grifo é nosso) (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 223).
Em linhas gerais, a tradição contratualista moderna considera os contratos são instrumentos ou dispositivos artificiais que se baseiam na transferência ou renúncia mútua de direitos, ou seja, da liberdade natural pertencente aos homens. Esta renúncia ou transferência desemboca numa limitação da liberdade que, por sua vez, é conseqüência direta da expressão da vontade de cada um para realizar interesses que demonstram acima de tudo a preservação da vida e a sua manutenção confortável e digna. 21
Ao recusar o pactum societatis como incapaz de fundamentar uma “sociedade estável”, Hobbes afirma que é necessário estipular um acordo preliminar que visa a instauração das condições necessárias para remover as causas da insegurança que constituem o estado de natureza. Portanto, ao contrário do pactum societatis, Hobbes engendra a necessidade do pactum unions (pacto de união), que é um “pacto de submissão”, cujos contratantes são os homens associados entre si que estabelecem o compromisso recíproco de se submeterem a um terceiro não contratante em que resulta um poder comum através do qual ocorre a passagem do estado de natureza para a sociedade civil. Aqui já é possível vislumbrar o desenho, com a ajuda dos diversos elementos lógicos requeridos, da figura teórica de uma “sociedade política”, na medida em que a união estabelecida resulta naquilo que se convencionou denominar “corpo político” (Body politic), e que podemos defini-la como uma “multidão de homens unida como uma pessoa para a sua paz, defesa e bem comum” (Cf. Bobbio, 1991).
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Sobre isto, Hobbes se expressa do seguinte modo: A única maneira de instituir um poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros (Forraigners) e das injúrias uns dos outros, garantido-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a força e poder a um homem, ou uma assembléia de homens, a uma só vontade (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 227-228) .
Esta passagem do Leviathan está relacionada à fórmula geral do conteúdo do contrato social e pressupõe o primeiro estágio da consecução do pacto ou acordo que cada homem estabelece consigo mesmo e pelo qual obriga a obedecer às ordens de certo homem ou conselho, dispondo a sua própria força e todos os seus meios a este tendo em vista a sua proteção e segurança 22 . Diante de tais termos, a unidade expressa como uma “vontade de muitos” possibilita que a vontade de certo número de homens seja compreendida como a vontade de um “único homem” e que esta, por sua vez, seja a expressão da vontade de cada homem, conforme a vontade desse “único homem” subentende-se como a expressão da vontade daquele que consentiu este único homem a realizar suas ações. Sendo assim, é possível afirmar que, para Hobbes, uma multidão de homens transforma-se numa pessoa artificial a partir do momento em que esta é representada por uma assembléia ou unicamente por um homem, mas que esta representação seja por consentimento de todos aqueles que participam de tal multidão. No entanto, a única forma de se conceber a unidade daquela multidão é mediante a sua representação política, constituída em uma “pessoa artificial”, pois, segundo Hobbes, é a unidade do representante e não a unidade do representado que possibilita que uma pessoa seja una (Person one) (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 220). Nestes termos, designar um homem ou uma assembléia de homens como representante legítimo é antes de tudo conceber esta representação como capaz de reduzir as diversas 22
O termo segurança deve ser entendido, de uma forma geral, não apenas como a preservação da vida em qualquer condição que seja, mas como a segurança com vistas à felicidade na medida em que esta deve pressupor uma vida minimamente digna (Cf. Hampton, 1996). Sobre isto, em outras palavras, observa Hobbes, ―, mas por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também, por uma indústria legítima (lawfull industry), sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio (Hobbes, 1968, Cap. XXX, p. 376).
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vontades contidas na multidão em uma única vontade expressa na pessoa representante do poder soberano. Esta determinação, portanto, configura o segundo estágio da realização efetiva daquele acordo ou contrato, pois expressa a exigência lógica de “totalidade contida na unanimidade”, ou seja, trata-se de obter de todos o que cada homem obteve de si próprio e estender para aos demais a conseqüência disso. De acordo com Hobbes, A realização da união consiste nisso, que todo homem, pela convenção, obrigue a si mesmo a um mesmo homem, e a um e o mesmo conselho, por meio de quem todos são nomeados e determinados a fazer aquelas ações que o dito homem ou conselho deverá ordená-lo a fazer e a não fazer, que ele ou eles deverão proibir, ou ordená-los a não fazer. [...] É por isso que aquele que comanda pode, pelo uso de todos os seus meios e força, habilitar-se pelo terror a moldar a vontade de todos aqueles pela unidade e a concórdia, entre eles mesmos. (2002b, I, Cap. XIX, p. 131).
O segundo estágio do contrato é o primeiro na ordem de constituição propriamente da “verdadeira unidade” no qual é possível vislumbrar a caracterização, da figura teórica do que Hobbes denomina sociedade civil ou o que para os gregos significa a pólis, ou seja, a cidade, e que para o filósofo em questão pode ser caracterizada como uma “multidão de homens” unidos como uma pessoa mediante um poder comum ou absoluto para assegurar a paz e a defesa do “bem comum” (Cf. Idem., Ibidem.). Com base nisso, podemos inferir que, por um lado, no que diz respeito à união, evidencia-se um acordo que Hobbes concebe como prévio que constituirá a sociedade civil, pacto este que se efetiva em cada homem para consigo mesmo e consiste na disposição para renunciar a liberdade e o direito natural, por outro lado, e, conseqüentemente, todos os membros dessa união estão obrigados logicamente a pactuar e a cumprir a condição para que se estabeleça tal poder comum ou absoluto (2002b, I, Cap. XV, p. 101). Segundo Hobbes, Uma das leis naturais inferidas desta primeira e fundamental é a seguinte: que os homens não devam conservar o direito que têm, todos, a todas as coisas, e que alguns desses direitos devem ser transferidos, ou renunciados. Pois, se cada um conservasse seu direito a todas as coisas, necessariamente se seguiria que alguns teriam direito de invadir, e outros, pelo mesmo direito, se defenderiam daqueles
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Delmo Mattos (pois todo homem por necessidade natural, empenha-se por defender o seu corpo e as coisas que julga necessárias para protegê-lo). Disso se seguiria a guerra. Age, pois contra a razão da paz, isto é, contra a lei da natureza, todo aquele que não abre a mão de seu direito a todas as coisas (2002a, p. 39).
Nestes termos, abrir mão do direito a todas as coisas é agir em favor da paz conforme aquele preceito ditado pela reta razão. Enquanto as concepções tradicionais de lei da natureza a posicionam tendo vistas a um fim supremo como aquilo que é considerado como um bem em si mesmo, em Hobbes, ao contrário, esta é posicionada na aquisição da paz e da segurança. Não obstante, a instauração da paz surge no seio da reflexão hobbesiana como conseqüência direta da necessidade de garantir aos homens os meios de obterem o fim maior que perseguem segundo prescreve a primeira lei da natureza. Desta lei fundamental da natureza, que prescrevem aos homens que “procurem a paz e a sigam”, Hobbes deriva a segunda lei da natureza, a saber: Que um homem esteja de acordo, quando outros estão assim também, tanto quanto a sua paz e defesa ele pense ser necessário, renunciar este direito a todas as coisas; e contentar-se com a mesma liberdade em comparação com os outros homens do mesmo modo que ele permita [aos] outros homens em comparação a si mesmos. Porque enquanto todo homem conservar seu direito, de fazer qualquer coisa que ele queira; todos os homens se encontrarão na condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecerse como pressa (coisa a que ninguém é obrigado), e não dispor-se (sic) para a paz [...] (1968, Cap. XIV, p. 190).
No conteúdo da segunda lei da natureza encontra-se subentendida a conseqüência direta da inviabilidade da liberdade natural, na medida em que desta se deduz as indicações de que caso fosse possível o estabelecimento da paz, cada homem deveria renunciar o seu direito e a sua liberdade natural em favor de um poder capaz de fornecer as condições necessárias de segurança. Por outro lado, esta também introduz um elemento fundamental que merece ser destacado, pois nesta se encontra em linhas gerais a lógica do que vem a ser o contrato ou acordo. Tal elemento fundamental diz respeito à “renúncia do direito original”, ou àquilo que denomina-se restrição ou limitação da liberdade natural. Neste momento poderíamos fazer a seguinte indagação: como se efetiva a transferência da liberdade e do direito natural
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segundo a argumentação hobbesiana do contrato social? Qual é a relação desta transferência e limitação da liberdade com o processo de autorização das ações para um ente artificial? Pra responder as indagações propostas será necessário analisar o processo de constituição da “pessoa artificial” que constitui o Commonwealth, através dos conceitos de “autorização” e “representação política” decorrentes do contrato firmado entre cada homem no contexto do estado de natureza. Esta análise é decisiva aos objetivos aqui perseguidos, pois fornece argumentos suficientes para demonstrar a estrita relação de “dependência e necessidade” entre o artifício e seus construtores pelos quais é possível determinar exatamente o sentido ou a finalidade das ações praticadas pelo poder soberano. 4 Autorização, dependência lógica e representação política: Os pressupostos da “pessoa artificial” e o princípio regente das suas ações De posse das considerações apresentadas no tópico anterior, é possível conceber que o Estado (Commonwealth) é gerado e constituído quando uma multidão de homens institui um representante e aceita todos os seus atos e decisões como se fossem os seus próprios. Em decorrência disso, surgem todos os direitos e faculdades do poder soberano ou daqueles a quem tal poder é confiado, isto é, “um homem ou uma assembléia de homens” (Hobbes, 1968, Cap. XVII, p. 228-229 ). Contudo, o representante que por vontade cada homem decide acatar seus atos e decisões como se fossem os seus próprios constitui uma pessoa ou pessoa artificial, em que Hobbes enfatiza ser o representante legítimo do que denomina de Commonwealth. Isto explica o motivo pelo qual as três definições atribuídas nas três obras principais do projeto filosófico de Hobbes Leviathan, no De Cive e nos The Elements of Law, encontramos sempre subtendido a relação conceitual entre o que este define por Commonwealth com a concepção de pessoa artificial. Assim, no The Elements of Law, constata-se a seguinte definição do Commonwealth: Uma multidão de homens unidos como uma pessoa por um poder comum, para a paz, defesa e vantagem comuns dos mesmos (2002b, Cap. XIX, p. 131).
Por sua vez, no De Cive, esta definição toma a seguinte forma:
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Por fim, no Leviathan, tal caracterização é apresentada nesses termos: Uma pessoa, de cujos atos cada indivíduo de uma grande multidão, com pactos recíprocos, faz-se autor, a fim de que ela possa usar a força e os meios de todos, conforme creia oportuno, para a paz e a defesa comum (1968, Cap. XVII, p. 228).
A analogia estabelecida entre o que Hobbes concebe por pessoa artificial e o representante legítimo do Commonwealth remete diretamente ao que entende-se por representação política. Assim, através da concepção hobbesiana de representação política torna-se possível evidenciar a estrita relação de dependência entre o artifício e os seus construtores mediante os quais se explicam o sentido e a finalidade das ações do poder soberano 23 . O primeiro passo na demonstração desse argumento consiste em identificar como Hobbes define e o que entende por pessoa ou pessoa artificial. No Leviathan, Hobbes se expressa sobre isto da seguinte forma: Uma pessoa é aquela cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com verdade ou por ficção (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 217).
Após esta definição Hobbes utiliza à distinção presente entre pessoa artificial e pessoa natural para demonstrar, o que concebe por representação política. Assim, uma pessoa natural é aquela cujas palavras e ações são consideradas como sendo próprias dela, em contrapartida, uma pessoa artificial consiste naquela cujas palavras e, sobretudo, as suas ações são consideradas como uma representação das palavras e ações de outro 24 . 23
De acordo com Bobbio, “o tema da representação é um tema central na filosofia política de Hobbes, já que a pessoa moral por excelência é o Estado. Ora, esta definição, por assim dizer, é prenunciada pelo que se lê no capítulo XVI do Leviatã [...]” (1991, p. 164). 24 Cf. “When they are considered as his own, then is he called a natural person: and when they are considered as representing the words and actions of another, then is he a feigned or artificial person..The word person is Latin, instead whereof the Greeks have prosopon, which signifies the face, as persona in Latin signifies the disguise, or outward appearance of a man, counterfeited on the stage; and sometimes more particularly that part of it which
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Depois dessa explicitação, Hobbes procura ressaltar a especificidade concernente à concepção de pessoa artificial utilizando como recurso demonstrativo o cenário teatral 25 . Assim, como em um palco de teatro em que o ator representa um personagem, no âmbito político, também, uma pessoa pode ser representada por outra. Contudo, diferentemente do teatro, é necessário, no âmbito política, “que aquele aquém se atribui as palavras e ações tenha antes consentido que estas sejam consideradas como sendo suas” (1968, Cap. XVI, p. 217). Desse modo, a especificidade de uma pessoa artificial ou o Commonwealth em relação à pessoa natural está na “não identificação entre ator e autor, entendendo por ator aquele que age em nome de outro e, por autor aquele que fornece ao ator a autoridade de agir em seu nome” (Zarka, 1995, p. 212). De acordo com esta consideração, na relação de representação política entende-se que o ator é aquele que, por direito e consentimento, possui autoridade de agir em nome do representado, e o autor é aquele cuja função nesta relação é de conferir ao representante a autoridade de agir em seu nome. Em vista disso, ao equiparar o direito de um de agir com o direito de possuir palavras e ações de outro, Hobbes acaba por ressaltar o que concebe por autoridade 26 .
disguiseth the face, as a mask or vizard: and from the stage hath been translated to any representer of speech and action, as well in tribunals as theatres. .So that a person is the same that an actor is, both on the stage and in common conversation; and to personate is to act or represent himself or another; and he that acteth another is said to bear his person, or act in his name (in which sense Cicero useth it where he says, Unus sustineo tres personas; mei, adversarii, et judicis- I bear three persons; my own, my adversary's, and the judge's), and is called in diverse occasions, diversely; as a representer, or representative, a lieutenant, a vicar, an attorney, a deputy, a procurator, an actor, and the like” (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 227-228. Grifo do autor). 25 No The Elements of Law, Hobbes explica esta questão da seguinte forma: “Portanto, quando alguém disser que um grupo de homens realizou alguma ação, deve-se entender com isso que cada homem em particular naquele momento consentiu com a ação, e não, apenas, que a maioria o fez” (2002b, Cap. I, Parte II, p. 135). 26 Cf. “[…] author no less than if he had made it himself; and no less subjected him to all the consequences of the same. And therefore all that hath been said formerly (Chapter XIV) of the nature of covenants between man and man in their natural capacity is true also when they are made by their actors, representers, or procurators, that have authority from them, so far forth as is in their commission, but no further. And therefore he that aketh a covenant with the actor, or representer, not knowing the authority he hath, doth it at his
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Porque aquele a quem pertencem bens e posses é chamado proprietário, em latim, Dominus, e em grego Kyros; quando se trata de ações é chamado autor. E tal como o direito de posse se chama domínio, assim também o direito de fazer qualquer ação se chama autoridade (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 218).
Com base nisso, por “autoridade” deve-se entender aquele que por direito pratica qualquer ação ou, em outros termos, uma ação praticada por autoridade, deve-se sempre entender que foi realizada por consentimento daquele a quem pertencia tal direito de praticá-la. Ora, se quem pratica uma ação com autoridade pratica por consentimento de outro, então, devemos pressupor que, esse outro pratica uma ação por autoridade através daquele a quem consentiu praticar a referida ação (Cf. Bobbio, 1991) 27 . Esta dedução explica as seguintes palavras de Hobbes: Dado que uma multidão naturalmente não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como uma só, mas como muitos autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome. [Pois] cada homem confere a seu representante comum sua própria autoridade em particular, e a cada um pertencem todas as ações praticas pelo representante, caso lhe haja conferido autoridade sem limites (1968, Cap. XVI, p. 220).
Se for assim, é possível afirmar que, para Hobbes, uma “multidão de homens” transforma-se numa pessoa artificial a partir do momento em que esta é representada por uma assembléia ou unicamente um homem, mas que esta representação seja por consentimento de todos aqueles que participam de tal multidão (Cf. Pikin, 1964). Desse modo, a única forma de se conceber a unidade daquela multidão é mediante a sua representação, constituída em uma pessoa artificial, pois, segundo Hobbes, é a unidade do representante e “não a unidade do representado que possibilita que uma pessoa seja uma (Person one)” (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 220). own peril. For no man is obliged by a covenant whereof he is not author, nor consequently […] (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 218. Grifo do autor). 27 Segundo Pitkin (1964, p. 330), “A person, then, is performer of actions or speaker of word, like the driver of a car. But the question of ownership-of the action or the vehicleremains open. Explicitly, Hobbes defines it in both cases in terms of having a right; the “right of ownership” over the car, the right to do the action. But if we consider the kind of situation in which it becomes important who owns car, we see there is more to ownership than rights”.
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Nestes termos, designar um homem ou uma assembléia de homens como representante legítimo é o mesmo que dizer que esta representação é capaz de reduzir as diversas vontades presentes na multidão a uma única vontade expressa na pessoa representante do poder soberano. Por esta razão, aquele que se diz ser portador de tal pessoa, seja este um homem ou uma assembléia de homens, é denominado por Hobbes de soberano, a quem pertence o poder soberano 28 . De outro modo, todos aqueles destituídos de tal poder soberano, são denominados de súditos ou cidadãos. Sendo, portanto, as ações praticadas pelo poder soberano ações, também, daqueles que consentiram praticá-las, temos que aceitar a premissa de que o soberano ao agir não age contra a vontade daqueles que lhe consentiram agir. Ora, se o soberano não age contra a vontade de quem consentiu a agir, isto implica que suas ações só fazem sentido se forem direcionadas em beneficio daqueles que consentiram à autoridade agir em seu nome. Desse modo, esta objeção contradiz em larga medida os defensores do argumento de que o poder soberano age de forma arbitrária, entendendo aqui por agir de forma arbitrária uma ação praticada sem o prévio consentimento ou uma ação praticada contra a vontade de quem consentiu que fosse praticada em seu nome. Disso reside a pressuposição de que a relação de “representação política” deixa transparecer uma nítida relação de “dependência e necessidade”, entre as ações do Estado e a vontade dos súditos ou cidadãos que o constituem. Tal consideração torna-se ainda mais evidente, se recorrermos à explicação hobbesiana acerca da gênese artificial do Estado. Como mencionamos anteriormente, esta gênese é deduzida por Hobbes pelos requisitos enunciados na fórmula que deduz a concepção de contrato social. Através daqueles requisitos, podemos inferir o ato que constitui a confecção do Estado, mediante a expressão da vontade daqueles que consentiram em
28
Na visão de Polin, “Persone naturelle et agent physique done coincider em fait, mais demeurent distincts em droit. Hobbes met à profit cette distintion em tenant pour personne artificielle, l’agent physique. L’acteur, don’t les paroles et les actions represent les paroles ou les actions de lácteur. L’artilice est double ici: il évoque, d’une part, la persona, le déguisement ou le masque de l’acteur qui souligne aussi bien l’artilice que la lection de l’ideé de personna; mais il situe également la notion de personne dans la societé artilicielle, instituée par l’homme artiste et constructeur, l’artificer di Leviathan” (1953, p. 223).
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delegar parte dos seus poderes e direitos em favor de uma “entidade artificial” (Commonwealth) personificada na pessoa do soberano” 29 . Neste processo, a transferência parcial dos seus poderes e direitos de cada homem, por meio do contrato social firmado assinala a efetiva autorização através do qual o “autorizado é gerado e as suas ações passam a representar, de maneira absoluta, a vontade dos autores da representação” (Bernardes, op. cit., p. 47) 30 . É, portanto, neste sentido que a pessoa artificial instituída através de um acordo firmado entre cada homem é resultante da vontade humana e que, nas palavras de Bernardes, “não possui a sua existência independente” daqueles que o confeccionam, “pois a sua gênese depende incondicionalmente da existência destes desde aquele momento específico da sua confecção – o contrato social – assim como pela finalidade com a qual este foi confeccionado e que determina o sentido de suas ações: a preservação da vida de cada homem que o constitui e como súditos ou cidadãos o compõe” (Idem, Ibidem, p. 46). Este argumento nos remete impreterivelmente ao contexto da física hobbesiana, uma vez que envolve a questão da “identidade e unidade” de um corpo finito ao qual o filósofo deduz o “axioma da identidade” (Cf. Hobbes, 1966). Em conformidade intelectual com o advento das novas concepções da ciência da sua época, adota como princípio a sentença de que todo corpo busca manter um equilíbrio constante de suas diferentes partes mantendo a sua identidade. Derivada da concepção mecanicista em que Hobbes postula que tudo o que há no universo são corpos e movimento, o “axioma da identidade”, aplicado à sua teoria política, converte-se no modelo explicativo para a questão da “autopreservação humana”. Sabemos que o ser humano, sob o aspecto do mecanicismo hobbesiano, deve ser concebido como um sistema complexo, no qual a sua identidade depende 29
Cf. “Cf. “When the actor doth anything against the law of nature by command of the author, if he be obliged by former covenant to obey him, not he, but the author breaketh the law of nature: for though the action be against the law of nature, yet it is not his; but, contrarily, to refuse to do it is against the law of nature that forbiddeth breach of covenant.And he that maketh a covenant with the author, by mediation of the actor, not knowing what authority he hath, but only takes his word; in case such authority be not made manifest unto him upon demand, is no longer obliged: for the covenant made with the author is not valid without his counter-assurance” (Hobbes, 1968, Cap. XVI, p. 218219). 30 Ver Hobbes (1968) e Terrel (1994).
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necessariamente de “um certo nível de distribuição permanente de energia para todas as suas partes, alimentando assim o sistema como um todo” (Barbosa Filho, 1989, p. 63). Considerando a relação entre os “corpos vivos”, animados e finitos sob a perspectiva do “axioma da identidade”, inferimos que a manutenção da vida de um corpo animado supõe o seu esforço para obter uma quantidade de força ou de poder a fim de distribuílos por suas partes constitutivas de modo que as conservando, preserva-se a si mesmo como uma unidade idêntica durante o período da sua existência 31 . Dessa forma, o poder de autoconservação constitui-se por uma aptidão natural de obtenção e distribuição permanente de energia que os corpos finitos dispõem. Disso segue que a relação do incremento deste poder é proporcional ao incremento da “capacidade de distinção e identidade de uma coisa particular”. Com efeito, o movimento que um “corpo animado” realiza no sentido de preservar-se, enquanto uma “unidade idêntica” é o mesmo que preservar a sua identidade como um “ser finito”, pois, segundo Barbosa Filho “essa tendência faz parte da definição de que é ser uma coisa distinta e identificável” (Idem., Ibidem., p. 64) 32 . A relação que o Estado concebido como um “corpo artificial” (constructo) mantém com a matéria que o compõe como súditos ou cidadãos é a mesma que um “corpo animado” mantém com as partes que o constituem. Neste sentido, o Estado como qualquer “corpo animado” ao necessitar manter a sua “identidade e unidade” tende a preservar da melhor 31
Cf. […] they will have the same idea of the thing as the idea by virtue of which they would call it a ‘body’, now that we have imposed names on things. Coming nearer, they will see the same thing somehow changing its position, and they will have a new idea of it, by virtue of which they now call such a thing ‘animated’. Then, standing close up, they would see its shape, hear its voice, and perceive other things which are signs of a rational mind, and would have yet a third idea, even if it had not yet been given a name – that is, the same idea on account of which we say something is ‘rational’. Finally, when they conceive the whole thing as a unity, which is now seen completely and [4] distinctly, this last idea is a compound of the preceding ones. This is how the mind makes compounds of the above ideas, in the same order as the individual names body, animated, and rational are in language compounded into the single name rational-animated-body, or human-being (Hobbes, 1966, I, Cap. I, art. 3). 32 De acordo com Barbosa Filho: “[…] quanto maior for o poder de autoconservação da coisa particular face às causas exteriores, mais realidade terá a coisa e mais claramente ela poderá ser distinguida como possuindo natureza e uma individualidade definida” (1989, p. 63).
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forma possível o movimento interno e específico que o compõe, isto é, a vida 33 . Em outros termos, o que queremos enfatizar é que a finalidade última do Estado coincide formalmente com a finalidade fundamental de cada um que o constitui, uma vez que a manutenção da sua existência depende necessariamente da vida daqueles que o compõem 34 . Nas palavras de Hobbes no Leviathan: A tal ponto que este condicionamento [bens e riquezas] é como se fosse a corrente sangüínea de um Estado, pois é de maneira semelhante que o sangue natural é feito dos frutos da terra; e, circulando, vai alimentando pelo caminho todos os membros do corpo do homem [...] e também nisto o homem artificial conserva sua semelhança com o homem natural, cujas veias recebem o sangue das diversas partes do corpo e o transportam até o coração; e depois de vitalizá-lo o coração volta a expelir o sangue por meio das artérias, a fim de vivificar e tornar possível o movimento a todos os membros do corpo (1968, Cap. XXIV, p. 300).
Diante desta passagem, há de se considerar que o esforço que o Commonwealth realiza para a distribuição de força ou poder entre as suas partes constitutivas (os súditos ou cidadãos) se efetiva na forma de “garantias individuais” que promovem as condições pelas quais cada um pode conservar da melhor forma possível e mais dignamente a sua vida. Desse modo, a renúncia do estado de natureza, no qual se encontravam os homens e, posteriormente a instauração do Commonwealth e a efetivação da sua soberania, representa um abandono daquela “condição miserável” em que nenhum destes realmente poderia ter a esperança de uma vida segura, próspera e confortável 35 .
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Lembro que para Hobbes, a vida nada mais é do movimento. Hobbes considera o ser humano como um ser natural, e como tal está condicionado às mesmas leis e aos princípios que regem os fenômenos naturais porque compartilha certos aspectos e propriedades gerais com os objetos da classe dos corpos em geral: o princípio universal dos corpos, isto é, o movimento. Contudo, Hobbes divide a classe dos corpos em geral em dois subconjuntos distintos caracterizados pelo subconjunto dos corpos inanimados e animados. Considerando, portanto, os seres humanos como pertencente a um subconjunto da classe dos corpos animados, caracterizado pelos corpos finitos e racionais. 35 De acordo com Lebrun, “Segurança e a possibilidade de gozar ao máximo, em paz, de todas as “comodidades da vida”, são estes os dois objetivos que os homens abandonam o estado de natureza e se tornam cidadãos” (1984, p. 36-37). 34
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Por esta razão, a instância do domínio (Dominium) justifica-se pela própria finalidade pela qual foi constituído, ou seja, no poder de restringir pela sua potência aquela liberdade absoluta incompatível com a fruição de uma felicidade efetivada mediante o estabelecimento da paz e da segurança garantidas pelo Estado. Desse modo, o sentido que Hobbes atribui ao poder soberano, ainda que absoluto, não se refere ao “deleite do príncipe, mas ao beneficio comum” (Heller, 1968, p. 89). Disso segue que o princípio pelo qual Hobbes fundamenta o seu absolutismo político nos remete ao modelo de soberania que acreditava ser imprescindível à formulação de um Estado que pretendesse ser realmente eficaz para cumprir a tarefa ao qual fora instituído, a saber, a instituição da paz. Sendo assim, para que a soberania alcance de maneira eficiente o seu desígnio principal, deve satisfazer certos requisitos ou não pode ser qualificada propriamente como soberania. Disso resulta a constatação de que a lei é o instrumento de excelência do poder do Commonwealth constitutivo do soberano representante. É, portanto, através desta que o soberano atua como “juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas” (Hobbes, Cap. XVIII, p. 232-233). Não obstante, ainda que, o conteúdo da lei deva ser de livre determinação, por não haver limite que impeça o exercício da sua autoridade, isto não implica que tal autoridade seja exercida de forma imprudente e arbitrária. Com efeito, a determinação da lei civil é um dos principais argumentos utilizado por aquelas interpretações que qualifica o Estado, tal como Hobbes concebe como portador de uma “autoridade desmedida”, despótica e cruel. Contudo, se recorrermos ao que Montesquieu concebe por “governo déspota” torna-se possível vislumbrar a distância que separa o modelo de Estado hobbesiano do que, pelos menos classicamente, se concebe por despotismo ou “Estado despótico” 36 . Segundo Montesquieu um “governo despótico” é aquele em que, Um só indivíduo, sem lei e sem regra, submete tudo à sua vontade e a seus caprichos. Este indivíduo é um homem a quem os seu cinco sentidos dizem sem
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De acordo com Polin, “La souveraineté absolue ou l’obéissance absolue ne sont pás dês fins en elles-mêmes. Il ne s’agit pás conférer au Souverain la toute-puissance pour l alui conférer et pour lui en donner la jouissance” (op. cit., p. 111).
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Delmo Mattos cessar que ele é tudo e os outros nada são, é um príncipe embriagado de prazeres, naturalmente preguiçoso, ignorante, voluptuoso. Quanto mais extenso o seu império, tanto menos ele pensa no governo, e se entrega às paixões brutais (2002, p. 45-51).
Diante do comentário de Montesquieu, em princípio, não há como se aceitar que os traços marcantes do “despotismo clássico” se enquadram, veementemente, no modelo de Estado proposto por Hobbes. Neste modelo teórico, dificilmente podemos identificar referências concernentes a “quanto mais extenso o seu império, tanto menos ele pensa no governo, e se entrega às paixões brutais”, ou ao “predomínio de caprichos grosseiros” e também, “o predomínio do bem do monarca em detrimento ao bem comum” (Cf. Montesquieu, 2002). Nesta perspectiva, o despotismo em seu sentido clássico, como define Montesquieu, aquele governo “sem lei e sem regra”, contradiz o que por competência ou princípios cabe ao Commonwealth hobbesiano, isto é, fazer boas leis na medida em que são necessárias ao bem do povo. Pois o bem deste é a suprema lei, afirma o filósofo (Hobbes, 2002a, p. 199). Em uma passagem bastante esclarecedora do Leviathan, Hobbes enfatiza o objetivo conferido às leis como instrumento regulador das ações humanas: O objetivo das leis não é coibir o povo de todas as ações voluntárias, mas dirigi-lo e mantê-lo num movimento tal que não se firam com seus próprios desejos impetuosos, com sua precipitação, ou indiscrição, do mesmo modo que as cercas (Hedges) não são colocadas para deter viajantes, mas sim para conservá-los no caminho (1968, Cap. XXX, p. 388).
Desse modo, a extrema autoridade conferida ao poder soberano através da “força da sua lei” não pressupõe que as suas ações sejam praticadas de forma descabida e arbitrária, visto que a sua autoridade não pode ser, por regra, contraditória com a riqueza e a prosperidade daqueles que estão sob o seu domínio, pois nestas que reside a “sua força e a sua glória” (Ribeiro, 1984, p. 133). Em conformidade com esta justificativa, do mesmo modo, no Leviathan, Hobbes deixa transparecer ao lado de um dos propósitos fundamentais pelo qual o Commonwealth é gerado e instituído, ou seja, a “segurança do povo”, também a necessidade do Commonwealth
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em ater-se no seu compromisso quanto à promoção da justiça entre os seus membros 37 . Sobre isto, afirma Hobbes: A segurança do povo requer [...] da parte daquele ou daqueles que detêm o poder soberano, que a justiça seja administrada com igualdade a todos os escalões do povo, ou seja, que tanto aos ricos e poderosos quanto às pessoas pobres e obscuras seja feita justiça das injúrias contra elas praticadas, de tal modo que os grandes não possam ter maiores esperança de impunidade quando praticam violências, desonras ou quaisquer ofensas aos de condição inferior, do que quando faz o mesmo a um deles (1968, Cap. XXX, p. 385) 38 .
Por esta razão, temos que aceitar a premissa de que o absolutismo político hobbesiano está relacionado, sobretudo, a defesa intransigente da unidade do poder político como um instrumento de realização da ordem e da paz contra a desordem resultante de um Estado fragmentado ou a iminência de sua dissolução 39 . Em outros termos, é a defesa do princípio da unidade do Estado em detrimento dos ordenamentos exteriores e superiores (principalmente o clero), bem como do princípio da unitariedade do Estado em detrimento da divisão interna das funções que são próprias do poder
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No De Cive, Hobbes trata esta questão da seguinte forma: “Assim, como o domínio foi constituído para proporcionar a paz, e a paz foi procurada para o bem da sociedade, todo aquele que, numa posição de autoridade, agir contra as razões da paz – ou seja, contra as leis da natureza – estará usando seu poder para um fim que não é o da segurança do povo. E ainda, tal como a segurança do povo dita a lei através da qual os príncipes aprendem qual é o seu dever, também ela lhes ensina uma arte que haverá de proporcionar benefícios a eles próprios; pois o poder dos cidadãos é o poder da cidade, isto é, daquele que tem a regra suprema da cidade” (2002a, p. 198). 38 Segundo Hobbes, “The sovereignty is the soul of the Commonwealth; which, once departed from the body, the members do no more receive their motion from it. The end of obedience is protection; which, wheresoever a man seeth it, either in his own or in another's sword, nature applieth his obedience to it, and his endeavour to maintain it. And though sovereignty, in the intention of them that make it, be immortal; yet is it in its own nature, not only subject to violent death by foreign war, but also through the ignorance and passions of men it hath in it, from the very institution, many seeds of a natural mortality, by intestine discord (1968, Cap. XXI, p. 272). 39 Para Lebrun, “não há comunidade sem unificação – não há unificação sem soberania -mas também não há soberania sem poder absoluto [...]” (1984, p. 33-34).
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soberano, o que Hobbes pretende defender contra a ameaça prevista pelo “estado de guerra” resultante da diluição da autoridade representativa 40 . Embora haja uma nítida direção das ações do poder soberano provocando uma salvaguarda aos direitos individuais dos súditos e cidadãos uma tensão entre ambos é perfeitamente prevista. Tal tensão perfaz toda a lógica argumentativa da teoria hobbesiana como uma consequência lógica que subjaz o acordo firmado por cada homem, uma vez que a multidão transfere seus poderes e parte dos seus direitos ao soberano o direcionando-o para uma posição acima dos próprios homens que o constituíram, à medida que por consentimento, o exercício do seu poder não pode encontrar impedimentos de nenhuma outra natureza. É, portanto, somente nestes termos que, podemos inferir o sentido ao qual Hobbes atribui a soberania como um poder que se situa, por definição, acima de qualquer outro poder e, por ser constituído assim, é um poder ilimitado ou absoluto. Disso segue que o princípio pelo qual Hobbes fundamenta o seu absolutismo político nos remete ao modelo de soberania em que acreditava ser imprescindível à formulação de um Estado que pretendesse ser realmente eficaz para cumprir a tarefa ao qual fora instituído. Desse modo, para que a soberania alcance de maneira eficiente o seu desígnio principal, deve satisfazer certos requisitos ou não pode ser qualificada propriamente como soberania. Diante disso, fica evidente o quanto é inviável a remissão que certas interpretações fazem a respeito do Commonwealth hobbesiano, ao vinculá-lo indevidamente a um tipo de Estado déspota ou autoritário. Como bem assinalamos anteriormente, o absolutismo atribuído à teoria política de Hobbes não diz respeito a um modelo de Estado que seja contrário a qualquer forma de – garantias aos direitos individuais ou a liberdade humana propriamente dita. De fato, se nos determos aos propósitos teóricos ao qual o filósofo propunha fundamentar, ainda que, tenha idealizado o seu modelo de Estado sob o domínio da obrigação ou do medo, não era fundamentalmente o seu intento forjá-lo como supressor absoluto do livre
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Segundo Ribeiro, “[...] Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no estado de natureza, quando vivo no pavor de que meu suposto inimigo me mate. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante” (op. cit., p. 71).
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gozo de certos direitos individuais, pois estes mesmos são imprescindíveis à manutenção da soberania no seu modelo de Estado. 5 Referências AIRAKSINEN, Timo, Hobbes on the passions and powerlessness, Hobbes Studies, 6 (1993), 80-104 and (revised version), in Homo Oeconomicus, v. 19, p. 543-567, 2003. ANGOUVELVENT, Anne-Laure. Hobbes e a moral política. Campinas: Papirus, 1996. ARISTÓTELES. Política. Trad. Introdução e notas de Mario da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Editora UNB, 1997. _______ Ética a Nicômacos. 4. ed. Brasília: UnB, 2001. CONSTANT, Benjamin, ‘The Liberty of Ancients Compared with that of the Moderns’, in Political Writings, edited by Biancamaria Fontana (Cambridge, 1988). BARNOUW, Jeffrey, The psychological sense and moral and political significance of “Endeavour” in Hobbes, in Bostregni, Daniela (ed.) 1992, p. 399-416. BREDEKAMP, Horst, Thomas Hobbes Visuelle Strategien: Der Leviathan: Das Urbild des modernen Staates: Werkillustrationen und Portraits, Berlin, 2003. BERNARDES, Júlio. Hobbes a liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes, Rio de Janeiro: ed. Campus, 1991. BARBOSA FILHO, B. Condições de autoridade e autorização em Hobbes. Revista de filosofia política. Porto Alegre, n. 4, p. 63-75, 1989. BAPTISTA, Ligia Pavan. O Estado da paz na teoria política hobbesiana. In: Cadernos de História e Filosofia da ciência. Campinas, São Paulo, Série 3, v. 5, n. 1-2, p. 87-103, jan.-dez. 1995. DISCH, Lisa. (s/d), “Representation ‘do´s and don´ts’: Hanna Pitkin’s the concept of representation”. Disponível em: http://www.univparis8.fr/scpo/lisadisch.pdf. Acesso em: 12 out. 2008. HAMPTON, Jean. Hobbes and the Social Contract Tradition, Cambridge, 1986. _______. Political Philosophy. Bouder: Westerview Press, 1997.
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“Manda quem pode, obedece quem tem juízo” ou sobre a (des)obediência e a razão em Hobbes Rita Helena Sousa Ferreira Gomes *
Resumo: Partindo do dito popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo” o presente artigo tem como objetivo defender a tese de que o Estado hobbesiano sustenta-se tanto pela força quanto pela razão. Dentro desta perspectiva, será analisada a noção de desobediência e, ao final, mostrar-se-á que o adágio referido só pode ser tido como verdadeiro de acordo com a filosofia política de Thomas Hobbes após feitas certas ressalvas. Palavras-chave: desobediência; poder; razão Abstract: Taking as reference a popular saying, this article aims to defend the thesis that Hobbes’ State bases itself on force and in reason. On that perspective, it will analyse the notion of disobedience and, in conclusion shows that the saying can be true according to Hobbes’ philosophy, but it has to be added of some explanation. Keywords: disobedience; power; reason
Introdução Há um dito popular que reza: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. A “sabedoria” do povo reproduz nesta afirmação um tema de interesse constante dos estudiosos da política: as relações entre poder, obediência e razão. As relações estabelecidas entre poder, obediência e razão, podem ser entendidas de diversos modos, variando, em geral, de acordo com o referencial teórico que o pensador político adota. Nesse sentido, é possível associar o “espírito” do que se entrevê naquele ditado com certas teorias defendida por alguns filósofos. Estranhamente, os pensadores que possuem uma doutrina que se coaduna com tal percepção popular são, normalmente, mal vistos e mal falados por esse mesmo povo. Thomas Hobbes, então, é um desses filósofos. Mal visto e ridicularizado por seus contemporâneos 1 , mal compreendido por muitos e estigmatizado pelo senso comum no nosso tempo. Apesar disso, sabem os *
Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará – Campus Sobral. E-mail: ritahelenagomes@yahoo.com.br [Artigo recebido em 05.12.2010, aprovado em 20.06.2011] 1 Sobre as críticas a Hobbes em seu século vide: Bowle, 1969.
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 101-118.
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que se dedicam a lê-lo com atenção, sua filosofia política é preciosa, porque coloca em evidência algo da realidade e, por isso mesmo, sempre atual 2 . Mas, será verdade que a máxima do senso comum é respaldada pelo filho de Malmesbury? E, sendo-o, será que ela pode ser tomada como representando na totalidade a compreensão hobbesiana acerca das relações entre poder/(des)obediência/razão? Neste breve artigo temos a intenção de destacar que, de fato, Hobbes concorda que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, porém, para fazer jus à teoria política do inglês, faz-se necessário somar à ideia popular uma outra: “também quem manda, e logo pode, deve ter juízo”. Em outras palavras, o objetivo maior desse artigo é mostrar que a associação de Hobbes a uma imagem de Estado que se mantém pela força da espada é verdadeira, porém, incompleta, uma vez que também a razão desempenha um papel fundamental para a conservação do Leviatã. Razão, Estado e desobediência Designar um lugar de relevo para a razão no constructo político hobbesiano é também reconhecer ao pensador de Malmesbury a filiação 3 ao seu tempo. Sabe-se que a partir do Renascimento a velha ordem religiosa, política e cultural começa a ruir. A secularização das instituições não se separa da dessacralização que ocorre na filosofia e nas demais esferas humanas. O homem assume, gradualmente, o centro das atenções, tornando-se – ou quem sabe melhor seja dizer: reconhecendo-se – como agente. No século XVII, como era de se esperar, há um agravamento das mudanças que se apresentaram na Renascença. É o tempo da revolução científica, da valorização da matemática, da física quantitativa, da ascensão da poiésis e da techne ao primeiro plano. É a modernidade com sua ênfase na razão que vê neste século o seu raiar.
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Talvez seja exatamente por falar de algo tão real e atual que Hobbes, assim como Maquiavel, carregue o fardo da “má-fama” até nossos dias. Poderíamos, certamente, destacar que em Hobbes, assim como em outros grandes gênios de sua época, há simultaneamente uma “filiação” e uma “desfiliação” relativa ao seu entorno. Os grandes filósofos do século XVII refletem em suas obras o momento de transição em que viviam, estando consoantes com seu tempo ao captarem tão bem as crises que os circundavam e, além dele, quando de suas respostas não-tradicionais.
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Hobbes, indubitavelmente, partilha dos ideais modernos. Embora tenha estudado os clássicos, seu encantamento por contemporâneos que a história tornaria ilustres (como é o caso de Galileu) deixa clara sua escolha teórica. Ademais, não é raro encontrar em suas principais obras provas de suas divergências com a “tradição” e de sua admiração pelas “novas descobertas”: tudo isso, afirmo, são sinais claros e argumentos manifestos a provar que aquilo que foi escrito, até hoje, pelos filósofos morais em nada avançou no conhecimento da verdade. E, se foi acolhido pelo mundo, não foi tanto por trazer alguma luz ao entendimento, mas por agradar às afeições, dado que pela bem-sucedida retoriquice de seu discurso eles confirmaram os homens em suas opiniões apressadamente aceitas. (Hobbes 1998, Epístola Dedicatória, p. 6)
O fascínio pela geometria que, com seu método e rigor, afasta de si as contradições e disputas pautadas no ego dos debatedores, leva nosso inglês a acreditar que é possível construir uma filosofia civil enquanto ciência rigorosa 4 . É na geometria, então, que Hobbes buscará o modelo para estruturar seu pensamento político 5 . Contudo, como nos explicita Macpherson em sua Introdução ao Leviatã (1985, p. 25-30), não bastava o caminho euclidiano para que Hobbes edificasse sua ciência política. As proposições, a partir das quais o método geométrico deveria ser posto em prática, foram fruto da aplicação das ideias de Galileu e de seu método resolutivo-compositivo. Seja pela geometria, seja pela influência galilaica, o que convém ressaltar é que a filosofia hobbesiana, em especial suas ideias políticas, designa uma função basilar para a razão. É do correto cálculo empreendido pela razão que são extraídas as conseqüências que justificam o formato do Estado de nosso pensador. Além disso, mesmo as hipóteses iniciais não estão a salvo do crivo racional. O britânico não parte de premissas escolhidas ao acaso, essas são encontradas após criteriosa decomposição da realidade. Tal decomposição (parte resolutiva do método de Galileu) é impossível sem a 4
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Skinner (1999, p.430) reforça essa posição ao afirmar que “... Hobbes identificou sua principal realização no fato de haver criado, pela primeira vez, uma ciência objetiva da virtude, uma ciência fundamentada nas leis da natureza e, por conseguinte, no supremo imperativo moral de buscar a paz.” Recomenda-se, para uma análise mais refinada do uso da matemática no século XVII, a leitura da primeira parte da obra de Domingues, 1991.
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recorrência à razão. Como bem pontua Sorell (1986, cap.III) é a razão, pela via do discurso, que possibilita a ordenação dos eventos que experienciamos, cabendo a ela não a simples reprodução, mas o rearranjo, a distinção daquilo que vivenciamos confusamente. Não é suficiente para provar o que aqui nos propomos, entretanto, marcar que o método empregado por nosso filósofo para erigir sua ciência política tem como referencial a razão. É preciso encontrar no interior de sua teoria a relevância ao papel efetuado pela racionalidade para que possamos, definitivamente, afastar o fantasma da “pura força” associado ao Estado de Thomas Hobbes. Nosso empreendimento, portanto, tangenciará posturas de autores consagrados, como é o caso de Skinner. Em sua obra “Razão e retórica na filosofia de Hobbes”, Skinner nos apresenta uma profunda reflexão acerca da crença hobbesiana no “poder da razão” na condução da vida política, tratando especialmente de sua relação com a eloquência. Em sua análise dos escritos do filosófo de Malmesbury, o famoso intérprete irá apontar para uma mudança de Hobbes no tocante à retórica, passando da rejeição e condenação de seu uso para o acolhimento da mesma como instrumento necessário à política. Embora as questões propostas por Skinner sejam relevantes para pensarmos o papel da racionalidade no Estado hobbesiano, nosso foco nesse artigo é outro e, em certo sentido, mais simples. Preocupanos sublinhar que não é possível entender a filosofia política de Hobbes sem dar o devido lugar à razão. Nessa perspectiva, nossa tarefa é anterior àquela skinneriana – e, por esse motivo falamos somente em tangenciamento – haja vista que ele parte do pressuposto de que a razão ocupa posição destacada no mundo político, só por isso sendo cabível compará-la a outro meio de preservação do Estado: a retórica 6 . Dada nossa meta, então, deixaremos de lado muitas da elocubrações skinnerianas – e de outros importantes comentadores - e nos
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Mesmo que a conclusão da obra citada de Skinner seja em favor de uma percepção hobbesiana de que a razão é incapaz de triunfar sozinha quando da manutenção do Estado, isso não deve ser tomado como um contra argumento a nossa tese principal. Afinal, não nos parece correto inferir que Skinner esteja apontando para uma exclusão da racionalidade nos escritos maduros de Hobbes, mas sim para uma redefinição do papel da razão no seio do Estado. A razão continua a atuar, ainda que se aceite que a retórica também tem uma função a desempenhar.
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ancoraremos de forma especial no tema da desobediência, tendo em vista que nele está em primeiro plano o relacionamento entre soberano e súditos. Na análise deste tópico é fácil verificar qual o lugar que nosso filósofo destina ao uso da força e da coação física e, em contrapartida, descobrir qual a função devida à racionalidade para o bom andamento da sociedade civil. Recorrer ao problema da (des)obediência possui ainda uma justificação histórica e teórica forte. No desenrolar da história da filosofia política a temática da obediência/desobediência foi objeto de inúmeras considerações. Todos os grandes pensadores da política dedicaram-se (e até hoje se dedicam) a estudar os limites do poder político. Desde a Antiguidade os filósofos viram-se diante da necessidade de fundamentar (em bases metafísicas ou convencionais) a obediência e, consequentemente, foram obrigados a refletir também acerca de seu oposto. À (des)obediência vinculam-se questões essenciais para a filosofia política: Qual a finalidade do Estado? Há algo maior do que o Estado ao qual o governante deve prestar contas? É legítimo rebelar-se contra o Estado caso esse não cumpra com suas funções? Se resta algum direito aos cidadãos (súditos) de resistirem a seu soberano, qual é a fonte de tal direito e que tipo de resistência ele legitima? Tais indagações urgiam, mais uma vez, por respostas e adaptações quando na Inglaterra os fatos começaram a anunciar a possibilidade de uma guerra civil. Foi por causa da efervescência despertada por questões “acerca do direito de dominação, e da obediência que os súditos devem” (Hobbes 1998, prefácio, p.18) que Hobbes passou a enfronhar-se decisivamente na filosofia política, adiantando seus estudos do que era último na ordem lógica para o primeiro lugar na cronologia. A (des)obediência, assim, não figura como apenas mais um item em meio a outros na reflexão política hobbesiana, mas é ponto central. No referido Prefácio do autor ao leitor em Do Cidadão, Hobbes não nos deixa dúvidas sobre sua porta de entrada (e seu objetivo principal) na esfera da análise política: a desobediência - que é “precursora de uma guerra que se aproxima” (Idem). Avizinhar-se da temática da (des)obediência em Hobbes para descobrir sobre sua construção política parece-nos, diante disso, não apenas sensato ou historicamente interessante, mas necessário. Justificada nossa estratégia, passemos propriamente ao escopo desse artigo, a saber: estudar a importância da razão no Estado proposto por Thomas Hobbes a partir da questão da (des)obediência.
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Como se sabe, a entrada no estado civil hobbesiano, hipoteticamente, é marcada pela realização do pacto fundador feito por cada um dos cidadãos (futuros cidadãos) com cada um dos demais. Esse pacto, que se estrutura colocando o soberano como beneficiário não-participante do acordo, é resultado do atendimento aos apelos da lei natural que ordena – no sentido da consciência, porém não efetivamente – a criação de uma instituição reguladora e forte capaz de garantir a paz que, por seu turno, implica na garantia de um ambiente mais seguro e propício para a prolongação de uma boa vida. Muito embora o Estado necessite da congregação de grande força para efetivar sua tarefa primordial, não podemos deixar passar desapercebido que, antes de tudo, ele é fruto da boa utilização da razão. É a razão, no formato de lei natural, que indica aos homens o porquê e o como devem ceder. Paradoxalmente, é a razão, que se reconhecendo como insuficiente para assegurar sozinha a manutenção da paz, que exige a presença da espada 7 . Em outras palavras, pode-se dizer que, tendo a razão calculado, com base na observação da natureza humana e nos desejos de adquirir e conservar uma “boa vida”, que a igualdade de direitos e poder gera uma terrível guerra 8 e que, os homens são facilmente conduzidos por paixões desagregadoras, faz-se necessário a construção de um artifício dotado simultaneamente de um imenso poder – representado, em geral, pelas forças armadas e outras esferas coercitivas – e de racionalidade – manifestada, principalmente, nas leis do soberano que, através delas expressa sua vontade 9 . Duas concepções destacam-se nas articulações postas acima: poder e leis naturais. Por poder Hobbes nomeia os “meios que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro” (1974, cap.X, p.57). O poder, assim definido, não é um fim em si mesmo, mas um instrumento pelo qual se atinge (ou que predispõe a atingir) um bem. O bem maior para
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Um estudo interessante desse “paradoxo” da razão nos mais diversos âmbitos da filosofia hobbesiana foi feito por Malherbe (2000). 8 Interessa lembrar que em Hobbes a guerra não se caracteriza exclusivamente pela luta em si, mas pela disposição em travar tal disputa. 9 “Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã que se chama Estado, ou Cidade... no qual ... a recompensa e o castigo (...) são os nervos...[e] a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais...” (Hobbes 1974, Introdução, p.9)
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o filósofo do Leviatã, por seu turno, é a paz que afasta o risco de uma morte violenta e permite uma vida mais cômoda. Não obstante, para que a paz seja implantada o poder que se requer é o maior de todos, poder composto pela união de poderes de vários homens 10 . Ora, mas o maior de todos os poderes não é natural, é construído pela artificial união dos indivíduos, pela edificação de uma vontade única que transforma uma multidão em povo. Tal criação não sendo obra da natureza, só se faz pela via do consentimento dos envolvidos que submetem seus poderes pessoais (naturais ou instrumentais) aos ordenamentos e desejos de outrem. As investigações hobbesianas sobre o poder e, particularmente sobre o poder estatal, apontam para um esforço dos indivíduos, esforço impulsionado por um desejo (viver bem) e guiado pela razão. Para que a união dos poderes coloque-se, portanto, precisamos antes ter ouvido à lei natural. Hobbes inicia o famoso capítulo XIV de sua obra magna criticando a tradição que confudia jus e lex. Para ele, é evidente que direito e lei natural não significam a mesma coisa. Enquanto o direito afirma uma liberdade, a lei apresenta uma obrigação. Tomadas as meras definições, Hobbes impõe uma contraposição entre direito natural e lei natural. O direito natural implica na liberdade de fazer uso de tudo o que parecer necessário à manutenção da vida, enquanto a lei natural nos coloca diante de uma obrigação 11 de se esforçar quando da possibilidade de efetivar uma instância na qual a vida seja melhor preservada. A lei natural denuncia o perigo de cada um manter seu direito natural num ambiente de plena igualdade, ou seja, dita que é por causa de um direito tão abrangente e, simultaneamente, distribuído entre todos que o caos se põe e, em vista disso, sugere uma 10
Na parte desse artigo intitulada “Manda quem pode, obedece quem tem juízo?” retomaremos o tema do poder. 11 Que tipo de obrigação implica a lei natural hobbesiana? Eis uma questão que suscitou e suscita inúmeros e controversos debates entre os estudiosos. Basicamente são duas as respostas: a) a lei natural obriga apenas interiormente, sendo uma obrigação em sentido fraco, ou seja, uma obrigação prudencial, vez que não exige cumprimento efetivo, e, b) a lei natural, sendo também lei divina é lei propriamente dita e sua obrigatoriedade tem sentido forte. Warrender (1957) é o expoente da segunda corrente, afirmando que, quando existem as condições favoráveis (segurança) as leis naturais se impõem de modo efetivo e não apenas como conselhos. De nosso lado, como se poderá notar pela condução desse artigo, alinhamo-nos com os defensores da primeira corrente.
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significativa diminuição do mesmo - desde que os demais também o façam em troca da instalação de um mecanismo que garanta uma vida mais promissora. A lei natural, portanto, é um arauto da razão e sua mensagem é: “faça-se o Leviatã!”. Há, no entanto, que se ter um cuidado: não é de reles oposição a relação que se pode traçar entre lei e direito naturais. Apesar de definidas a partir das diferenças entre obrigação e liberdade, lei natural e direito de natureza tem uma raíz em comum: ambas ocupam-se em preservar a vida. O direito natural revela a liberdade natural que temos para usar de tudo, bem como decidir o que fazer para manter a vida, a lei natural aponta o que é mais adequado para que efetivamente consigamos viver melhor. A lei natural é lei da racionalidade, conselho que brota de uma avaliação concreta do real, ditame que desvela a inutilidade e o alto risco de mantermos um direito que, numa situação de pura natureza, é, via de regra, vazio. Em nome desta razão travestida dos ditames da lei natural é que cada indivíduo abre mão de seu direito sobre todas as coisas (desde que os demais contratantes também o façam na mesma medida), autorizando um terceiro (o Leviatã) a governá-lo em tudo que diga respeito ao público 12 . Há algo, entretanto, de que não se abre mão: o direito de defender sua própria vida quando esta se encontre sob ameaça. Eis o ponto específico que obriga nosso autor a admitir a existência de uma desobediência legítima. Porque o contrato fundamenta-se, em última instância, numa lei da razão que visa prioritariamente à conservação da vida individual, é que sempre será legítimo a cada homem em particular lutar por sua vida quando esta estiver em perigo. Mesmo quando o cidadão é justamente perseguido (como ocorre com os criminosos), ainda lhe assiste o direito de defesa da própria vida e de seus membros; direito este que o legitima até a matar o rei, caso essa seja a maneira encontrada para garantir a sua sobrevivência 13 .
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Ressalte-se aqui que é o próprio soberano quem decide o que é ou não relevante para a esfera pública. 13 Pode-se indagar se o direito de resistência dado ao cidadão hobbesiano é um simples resquíscio da lei natural ou se é produto da própria civilidade, tendo seu sustentáculo na esfera jurídica. A resposta desse questionamento, contudo, extrapola os limites desse escrito.
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Vale sublinhar que, segundo o pensador de Malmesbury, o direito de defender a própria vida dado ao súdito 14 não exclui o direito do Estado de buscar, por todos os meios, puni-lo ou mesmo tirar sua vida. Em Hobbes, convivem lado-a-lado o direito do cidadão de resistir e o direito do soberano de punir. Neste caso, o mais interessante é perceber que ambos estão ancorados num mesmo princípio: a defesa da vida. No cidadão, esse direito reflete a justificada vontade de manter a integridade do seu corpo e sua vida, apesar dos erros (voluntários ou não) cometidos contra as leis do Leviatã. No soberano, o direito indica o meio de assegurar sua conservação que, por sua vez, é a preservação do campo no qual a vida individual encontra o refúgio da luta de todos contra todos, permitindo uma existência da coletividade – com os benefícios decorrentes desta – sem as mazelas típicas do estado de natureza. Se há, porém, desobediências legítimas concedidas aos cidadãos 15 , mas temíveis e devastadoras são aquelas ilegítimas. Nosso inglês, realista como era, nunca se esqueceu que o perigo da guerra intestina rondava sempre o Estado. Pautando nisso é que devemos compreender os capítulos de suas obras dedicados ao ofício do soberano 16 que, convenientemente, são antecedidos por capítulos que tratam das causas da dissolução do estado civil. Ao escrever sobre as tarefas que cabem aos representantes do Leviatã, Hobbes não está dando-lhes ordens. Entender assim tais páginas seria admitir que nosso filósofo está sendo deveras incoerente com o que 14
Observe-se que esse direito é destinado ao súdito no singular, ou seja, não há legitimidade para a união de súditos para derrubar o Estado, o que caracteriza uma facção. Apesar disso, Villanova (2007, p. 56) chama atenção para uma polêmica passagem do Leviatã (cap.XXI, p. 270) que parece admitir a conjunção das forças de cidadãos perseguidos pelo soberano. 15 Hobbes pontua uma série de situações em que são justificadas a desobediência ao soberano. De modo geral, elas versam sobre o direito de defender a própria vida -que, certamente, é a primeira e mais fundamental das justificativas da desobediência – e em como os súditos devem proceder em caso de modificações no controle do Estado. Há ainda que se destacar o direito de não guerrear quando não houver o cidadão diretamente assumido esse compromisso. Neste ponto, contudo, podemos encontrar argumentos no próprio texto hobbesiano que revelam que a legitimidade desta desobediência (uma recusa em lutar quando convocado pelo soberano) pode ser questionada tomando como parâmetro o interesse maior de garantir a vida do homem artificial. 16 No Do Cidadão essas ideias aparecem no capítulo XIII (parte II) e no Leviatã no capítulo XXX (segunda parte).
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prega em sua teoria. Não cabe a um súdito, o que ele era e se reconhecia sendo, decidir acerca de assuntos públicos e, menos ainda, apontar deveres àquele a quem transferiu o direito de governar em tudo que julgar necessário para boa conservação da sociedade civil. Longe disso, o que o britânico traça naqueles capítulos é uma conclusão racional - e, portanto, acessível igualmente a todos os indivíduos – retirada de um estudo minucioso da natureza humana e da observação dos fatos históricos. Nesta perspectiva, pois, é que a expressão “deveres de quem governa” usada no título do capítulo de Do Cidadão não deve ser entendida como uma obrigação em sentido forte, como são as obrigações dos cidadãos frente às leis civis. O dever de que fala Hobbes aí se refere a uma obrigação que nos permitimos chamar de prudencial 17 . Quer dizer: as ideias apresentadas durante o capítulo XIII de Do Cidadão 18 , bem como as leis naturais, não impõem efetivamente seu cumprimento. Porém, caso se queira alcançar o resultado indicado pela reta razão,“deve-se” seguir suas orientações. A obrigação racional é idêntica àquela que diz, por exemplo, X deriva de Y, logo, se se quer obter X, necessariamente deve-se primeiramente fazer Y. Em resumo podemos afirmar que, se tratamos em alguma instância de um dever do soberano, esse dever só pode ser de caráter racional. O Estado não terá com quem prestar contas caso opte por agir em sentido contrário ao requerido pela reta razão, pois ele é absoluto. Nem mesmo
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Essa posição é contestada por Foisneau (2000) em sua defesa de que a ciência política de Hobbes se apoia numa teologia da onipotência. Sob sua ótica, a lei natural fundada nos mandamentos de um Deus todo-poderoso é obrigatória e não prudencial. Dentre outras implicações dessa interpretação está a inversão, ao nosso ver, de tomar o viver como uma obrigação e não como um direito, bem como, parece permanecer inexplicável a questão: Se Deus é onipotente e ordena no sentido forte o cumprimento das leis naturais, porque Hobbes nos fala da necessidade de sairmos do estado natural e artificialmente garantir a efetivação das leis? 18 Importa notar que Janine Ribeiro adiciona um relevante comentário quando de sua tradução desta parte do Do Cidadão. Ele ressalta a mudança da terminologia utilizada por Hobbes no capítulo que equivale a este no Leviatã. Tal modificação, segundo o intérprete, indica o amadurecimento de Hobbes da noção daquilo que se pode dizer ao soberano. Daí a exclusão do termo “deveres” que, na melhor das hipóteses, pode gerar confusão na interpretação dos leitores.
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Deus intervém cobrando do representante estatal efetivamente o cumprimento das leis naturais (que também são divinas) 19 . Não ouvir os conselhos da reta razão, todavia, implica em sérias conseqüências também para o Leviatã. A desrazão do comandante da cidade é diretamente proporcional ao risco de dissolução do Estado o qual governa. Torna-se mais evidente, portanto, porque Hobbes insiste em inserir em seus textos uma parte que verse sobre o cargo do representante do estado civil. Em tais capítulos não se está mostrando uma lista de afazeres escolhidos ao bel-prazer do autor, mas, ao contrário, se está chamando atenção para atitudes e ações que quando mal-conduzidas aumentam sensivelmente a possibilidade de desintegração da sociedade. Assim como numa demonstração geométrica, nestes livros pertencentes aos estudos hobbesianos, quem fala não é Thomas Hobbes, mas a razão. Indubitavelmente, alguém poderá objetar que nem todos os filósofos políticos irão concordar com as ideias de nosso pensador e que, também eles, pautaram-se na racionalidade para desenvolver suas teorias. A estes críticos, no entanto, restará compreender que, para desmentir as conclusões hobbesianas, é preciso atacar suas bases. Partindo das premissas das quais partiu Hobbes e, respeitando-se as regras para delas fazer corretas deduções, chegaremos igualmente a suas conclusões, a não ser, é claro, que se possa encontrar um erro lógico no desenrolar da demonstração feita pelo filho de Malmesbury, o que, até onde enxergamos, não ocorreu. Dentre os diversos encargos que pesam nos ombros do representante estatal interessa destacar aqui a importante tarefa de educar os súditos. A educação constante é função da qual o Estado, caso deseje conservar-se sem maiores turbulências internas, não pode descuidar. De nada adianta reprimir firmemente, dividir com justiça os bens ou bem proteger a nação de inimigos externos, se aos cidadãos não for ensinado o motivo que justifica a existência do maquinário estatal. O homem, tal qual o desenha Hobbes, é um ser preocupado primeiramente com seu próprio bem-estar e insaciável quanto aos desejos. Logo, é preciso sempre lembrá-lo que as exigências e limitações que lhe 19
Zarka (1995, cap. VII) sublinha que sendo a lei natural também lei divina, ou seja, comando de Deus, estamos diante da justificação hobbesiana de sua obrigatoriedade interior. Dentro dessa interpretação, pois, pode-se afirmar que o soberano tem uma obrigação moral, mas não jurídica perantes seus súditos.
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impõem o Leviatã são, no final das contas, de grande interesse dele. Longe da rígida ordem que o soberano instaura não há, como irão pensar os súditos não-instruídos e desacostumados a bem conduzir sua razão 20 , maiores benefícios e mais proximidade com a felicidade; reina, isso sim, um campo onde todos têm uma vida miserável, seja porque factualmente nada conseguem dominar, seja porque quando tem algo sob seu poder, não podem dizê-lo seu. Não é à toa que a célebre descrição de nosso escritor da existência no estado de natureza é tão assustadora: “... E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”(Hobbes 1974, cap. XIII, p. 80) Além desse ensinamento fundamental, cabe aos reis 21 a vigilância quanto às doutrinas pregadas (quer pelas igrejas e seitas, quer pelas universidades) em seu território. Quão confuso e pouco eficaz seria ter teorias que de alguma forma se opõe ao ensinamento fundamental sendo ministradas aos súditos em paralelo aos esforços de educação do governo? A proibição e o combate das falsas doutrinas mostra-se, então, tão necessária à manutenção da boa saúde do homem artificial quanto a espada. O destacado papel da educação na preservação do estado civil coaduna-se à crença hobbesiana de que as ações humanas procedem de suas opiniões. A opinião ocupa, desta forma, posição de relevo na dissolução do Estado. No Do Cidadão ela será identificada à disposição interna para iniciar qualquer movimento, inclusive o que gera a guerra civil. Nesse 20
Vale lembrar que em Hobbes a razão não é uma faculdade plena de conhecimentos, mas sim um método, um cálculo. Daí a afirmação: “... a razão não nasce conosco como a sensação e a memória, nem é adquirida pela experiência, como a prudência, mas obtida com esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam ciência.” (Hobbes 1974, capítulo V, p.34) 21 Ao usarmos o termo “reis” (ou, em outras passagens, “rei”) não estamos afirmando que o Leviatã tenha, necessariamente, que ser uma monarquia. Verdadeiro é que, segundo o filósofo britânico, essa é a melhor das opções dentre os regimes, porém, as demais são tão válidas quanto ela. Assim, permitimo-nos utilizar termos diretamente filiados à tradição monarquista, bem como faz Hobbes, mas os mesmos, nesses casos, devem ser compreendidos como sinônimos de soberano, ou ainda, daquele(s) que ocupa(m) o cargo de soberania.
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mesmo livro, portanto, a opinião de que pertence aos indivíduos particulares o conhecimento do bem e do mal é vista como a primeira e maior causa que leva os homens a tornarem-se sediciosos: de forma análoga, numa república cujos súditos comecem a fazer tumultos, três coisas se apresentam a nosso olhar: primeiro, as doutrinas e paixões contrárias à paz, que dão às mentes dos homens uma certa conformação e disposição; depois, a qualidade e condição daqueles que incitam, reúnem e dirigem os outros, assim já conformados, a tomar em armas e renegar sua lealdade; finalmente, a maneira pela qual isso é praticado, ou seja, a facção em si mesma. (Hobbes 1998, cap. XII, p.181)
Desta feita, o mau-uso da razão e, conseqüentemente, a sustentação e defesa de ideias e opiniões errôneas pelos súditos naquilo que diz respeito ao coletivo não pode ser subestimado pelo Estado. Assim, é preciso contrastar ao brilho da força característica do soberano – que seduz nossos olhos e encanta nosso desejo de poder – a imensa responsabilidade que o torna, pelo menos, parcialmente culpado quando do adoecimento ou morte do Leviatã. Na prática, portanto, não basta ao governo cobrir-se com o manto da legitimidade, urge que ele seja eficaz 22 . É a eficiência em inflar continuamente a vitalidade no homem artificial – o que inclui o cuidado com as opiniões dos cidadãos por meio da educação - que previne a pior de todas as desobediências: a ilegítima. Quando os súditos se unem para, pegando em armas, derrubar o soberano e não para defenderem a própria vida individual, eis o estabelecimento do caos e o início da horrenda guerra civil. Obviamente, não se pode simplesmente culpar o representante estatal pela guerra intestina. Também os cidadãos devem ser responsabilizados por seus erros, afinal, cada um tem a capacidade de calcular com base na reta razão quais os caminhos contrários à paz. Interessa-nos, entretanto, realçar que, no mais das vezes, as atitudes dos cidadãos em muito refletem a postura assumida pelo soberano.
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Apesar de Hobbes não usar a noção de eficácia em seus escritos, a partir da leitura de suas obras e da compreensão de seus objetivos, acreditamos que a mesma pode ser aplicada neste caso sem prejuízos teóricos para a interpretação do autor.
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Com base nisto pensamos ser correto asseverar que a um soberano de ações desarrazoadas corresponde, na maioria dos casos, cidadãos que agem em desacordo com a razão; e, logo, a um soberano racionalmente conduzido associam-se, em geral, súditos de comportamento saudável à manutenção e crescimento do Estado. Parece, por fim, ficar comprovado que soberano e súditos são duas faces da mesma moeda, componentes inseparáveis de uma só figura que pode ser bem exemplificada pelo desenho do frontispício do Leviatã. Em linhas gerais, pois, enquanto a desobediência legítima encontra respaldo nos ditames racionais, aquela desobediência ilegítima pressupõe, em última instância, um soberano “defeituoso”, a saber, que age contra ou à revelia da razão. A desobediência ilegítima, assim, se apresenta como a conjunção de dois erros: um cometido pelo soberano que ensurdece aos ditames da razão, o outro, pelos súditos que esquecem da obrigação antes assumida para com o primeiro de obedecê-lo em tudo que não fira o direito de conservar a própria vida. A racionalidade, então, se mostra como a chave-mestra para garantir a durabilidade do Estado e é sob o signo da razão que devem operar soberano e, conseqüentemente, súditos: “Muito embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal, contudo, se os homens se servirem da razão da maneira como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males internos”. (Hobbes 1974, cap. XXIX, p.196) Contudo, se a racionalidade desempenha uma tarefa sem a qual a perpetuação do Estado é impossível, não é correto inferir que sozinha ela seja suficiente para afastar o fantasma da falência por questões internas. O projeto político hobbesiano supõe que as várias facetas da estrutura do Leviatã funcionem bem e com harmonia. Mesmo com excelente educação, ainda é indispensável que o Estado disponibilize a seus cidadãos os meios necessários à conservação da vida, que os dê acesso ao conforto e esperança de usufruir as comodidades decorrentes da indústria. Além disso, a ameaça da punição pelo soberano deve estar sempre no horizonte do Estado. Educar, bem como estar pronto para punir, são atribuições centrais da soberania. Isoladamente, contudo, elas são inúteis para a aquisição da paz, meta essencial do Leviatã. Educação e punição, portanto, caminham lado a lado no constructo hobbesiano.
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Cremos, então, estar evidente que taxar o Leviatã hobbesiano de sustentar-se exclusivamente, ou mesmo excessivamente, pela coação da espada, é uma interpretação parcial, vez que não faz jus à filiação do autor a sua época, ao seu método e, sequer, às suas palavras. Manda quem pode, obedece quem tem juízo? Feito este percurso vemos que se é possível relacionar o dito popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo” com a filosofia política hobbesiana, isso não se faz sem algumas ressalvas. De fato, há uma associação na teoria hobbesiana entre poder e direito de mando. Há um parágrafo no capítulo do Leviatã dedicado ao Reino de Deus por Natureza (Cap. XXXI, p.216) em que o autor inglês afirma indiscutivelmente tal vinculação. Naquela passagem Hobbes esclarece que Deus tem o direito de governar o mundo, não por tê-lo criado ou por sua graça, mas por ser onipotente. O direito divino de nos afligir ou nos recompensar, portanto, deriva não de nosso comportamento, mas do irresistível poder pertencente a Deus. Entre os homens tal como a natureza os fez, entretanto, não há diferença significativa de poder. O equilíbrio do poder implica no igual direito de todos para desfrutar de todas as coisas. Daí ser a igualdade o fator que dissocia os homens e os leva a ter que artificialmente construir uma saída para o horrendo estado natural. O artifício, pois, não pode se sustentar a não ser instaurando o desequilíbrio. Fundar o desequilíbrio, fundar um poder que se destaque em meio aos demais, eis o que se encontra nas raízes do contrato hobbesiano. Não é sem justificativa a escolha de Hobbes para nomear seu Estado: Leviatã. Um monstro, imenso, temível, poderoso, tal como descrito no livro de Jó: “Não há nada igual a ele na terra, pois foi feito para não ter medo de nada, afronta tudo que é elevado, é o rei dos mais orgulhosos animais”. (Jó 41, 24-25) Quando do capítulo XVII, nosso autor chama atenção à necessidade do poder para garantir a durabilidade do Estado. Sob esta ótica, ele enfatiza novamente a artificialidade da sociedade humana que, diferentemente de certos animais (como as formigas e abelhas), faz-se contratualmente. Por tal via os homens demonstram em palavras seu desejo de fazerem o que for preciso para alcançar a paz. Mas, apenas as palavras são insuficientes para afastarem o fantasma da desconfiança que cada sente pelos
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demais 23 . É preciso assegurar que os homens cumpram com o que pactuaram e, para tanto, urge que exista a “espada”. Disso decorre que o poder deve ser entendido como componente essencial do Leviatã, do qual é impossível abrir mão sem causar sua própria ruína: Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar a vontade de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e a ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. (Hobbes 1974, cap. XVII, p.110)
Está claro que na filosofia hobbesiana o mando pressupõe o poder. Todavia, a veracidade dessa asserção não nos legitima a identificar o Estado hobbesiano com o simples poder. Longe disso, há uma dimensão racional na base do contrato fundador do Leviatã. Na passagem acima transcrita, por exemplo, vemos que o poder e a força do Estado advém da autoridade que cada indivíduo o confere. O poder, por não ser natural, só é obtido por uma via apontada pela razão. O desequilíbrio se introduz na medida em que os homens, escutando os ditames racionais, abdicam de parte do seu direito natural em vista de outro (ou outros), submetendo a eles seu poder. Eis a grande modificação que Hobbes implementa no Leviatã: o conceito de autoridade. O poder do soberano é gigantesco porque não somente recebe de todos o aval para executar as ações que lhe convier, mas, principalmente, porque congrega seus poderes pessoais, usando deles quando necessário. São os homens, cada um com seus poderes corporais e intelectuais específicos, que são a matéria do Estado, formando-lhe o corpo, tal qual visualizamos no frontispício da obra magna hobbesiana. Ora, fundamentar o Estado no contrato, na autoridade, enfim, no aceite racional e voluntário é ir além do próprio poder da espada. Ao poder efetivo, Hobbes, adiciona uma obrigação racional. Não basta a força para que os cidadãos obedeçam (o “poder” do ditame popular), faz-se necessário ajuntar a ela a racionalidade do comando. Daí que o comando de matar-se, ferir-se, abster-se de comer e outros do gênero sejam legitimamente 23
A figura do tolo exerce um papel fundamental neste sentido, a saber, há sempre a possibilidade de entre os indivíduos que estabeleceram o pacto haver um (ou mais) que acredita ser mais vantajoso descumprir o acordo do que cumpri-lo. “Os tolos dizem em seu foro íntimo que a justiça é coisa que não existe...” (Hobbes 1974, cap.XV, p.90)
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desobedecidos. Também é pela necessidade de mostrar sua origem racional que se deve compreender a importância que a educação assume no estado civil hobbesiano. Se a segunda parte do adágio é verdadeira – “obedece quem tem juízo” - ela o é em sinal de uma razão, que num hipotético estado de caos, indicou ao homem que ele deve, para seu próprio bem, submeter-se às decisões de outrem e auxiliá-lo na conquista e manutenção da paz. Os cidadãos de Hobbes obedecem porque tem juízo, juízo (leia-se razão) que os indicou que obedecer ao Estado é o caminho para estabelecer a paz, que diz ser a obediência (na maioria dos casos) benéfica ao seu desejo mais fundamental e, finalmente, que o priva de confrontar o monstro poderoso que é o Leviatã. No entanto, e essa é a tese principal desse artigo, também o poderoso mandante não se deve furtar de “ter juízo”. A razão que sustenta seus pilares pode não lhe ser requerida obrigatoriamente por uma força exterior, mas o é interiormente. O Leviatã é um monstro racional, a conjunção do poder e do juízo que, uma vez desvinculados faze-no trilhar o triste e aterrorizante caminho até a guerra civil.
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Princípios de economia política em Rawls: uma crítica ao neoliberalismo Leno Francisco Danner *
Resumo: o trabalho pretende refletir sobre a concepção de justiça política de John Rawls, especificamente no que diz respeito à sua formulação de princípios de economia política que se contraporiam de maneira direta ao liberalismo político e econômico clássicos (John Locke e Adam Smith, respectivamente), mas que também se contraporiam, e essa será a tese perseguida aqui, à posição neoliberal de Hayek. Palavras-Chave: estado de bem-estar social; Laissez-Faire; neoliberalismo; Rawls Abstract: the paper aims present Rawls’s conception of political justice, specifically his formulation of principles of political economy. They critic directly classical political and economic liberalism and – it will be our thesis here – Hayekian neo-liberalism either. Keywords: Laissez-Faire; neoliberalism; Rawls; Welfare State
1 O ponto de partida do liberalismo econômico clássico Adam Smith concebe a sociedade como uma associação jurídica entre indivíduos livres e iguais, mas egoístas, marcada pela competição entre eles em torno à acumulação da propriedade e da riqueza, que se dá no mercado, por meio do trabalho (cf. Smith, 1999, v. I, cap. II, p. 94-95). Chamo a atenção, em primeiro lugar, para esse ponto de partida, a saber, de que a sociedade é (a) uma associação jurídica (b) entre indivíduos livres e iguais (juridicamente falando) e egoístas, (c) que competem entre si (d) em torno à acumulação da propriedade e da riqueza, (e) no mercado, (f) por meio do trabalho. Contrariamente à tradição política clássica, que encontra em Aristóteles o filósofo por excelência (cf. Aristóteles, 1999, Livro I, p. 141-142), Adam Smith não concebe a sociedade como uma comunidade natural ou como uma comunidade de cultura, que pressuporia tanto que as instituições públicas e as relações de poder e hierarquias sociais que elas legitimam estão
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Professor de Filosofia na Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Doutorando em Filosofia pela PUC-RS. E-mail: leno_danner@yahoo.com.br [Artigo recebido em 31.10.2010, aprovado em 30.06.2011]
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justificadas de antemão (por causa dessa anterioridade ontológica da própria sociedade em relação aos indivíduos, que somente podem ser pensados a partir daquela) quanto que a identidade da sociedade e dos próprios indivíduos fosse constituída pela própria cultura, ou seja, que fosse uma identidade cultural. Nesse sentido, em Adam Smith, a sociedade é marcada por uma identidade jurídica. Ora, é interessante de se perceber, tal como vejo ao interpretar o liberalismo clássico, que é essa percepção de que a sociedade é uma comunidade natural que embasa a tirania pública – em termos de totalitarismo político, ou de absolutismo político – no que diz respeito aos indivíduos, ou pelo menos que embasa a naturalidade das instituições sociais, das relações de poder e das hierarquias sociais que ela legitimam (que geralmente definem-se pelo lugar de nascimento dos próprios indivíduos). E isso não é sem razão: é que, na medida em que a sociedade é entendida como uma comunidade natural, como uma comunidade de cultura, haveria exatamente uma justificativa cultural como ponto de partida dessa mesma sociedade: sua organização, seus fins, as relações sociais e as formas de poder que ela (a sociedade enquanto comunidade natural e de cultura) embasa de antemão seriam explicadas pela sua (da própria cultura, da própria comunidade) ancestralidade, que, numa genealogia mítica, remeteriam à própria divindade e ao homem primigênio, fundador dessa mesma comunidade. Portanto, em relação à dinâmica interna e à reprodução das relações entre os indivíduos nessa comunidade, haveria um modelo hierárquico de organização social e de poder a ser reproduzido ao longo do tempo, no qual o lugar de nascimento determinaria as prerrogativas ou a falta delas em termos daquilo que os próprios indivíduos poderiam esperar da sociedade, em termos das relações que eles travariam (e com quem travariam), bem como a própria auto-compreensão daqueles mesmos indivíduos. A própria ideia de uma comunidade natural aponta para o fato de que o indivíduo está subsumido no interior do horizonte público, cultural, no sentido de que ele estaria atrelado àquelas determinações, que remeteriam, como disse acima, à ancestralidade que se perde nas brumas do tempo e que, por isso mesmo, ganharia conotações de mito. As genealogias da nobreza, tal qual abordadas no Medievo e no Antigo Regime (ou absolutismo monárquico) procuram exatamente explicitar como o sangue azul desenvolveu-se ao longo do tempo, mostrando que a estirpe desse sangue azul remete ao próprio início do mun-
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do – o que denota não apenas a sua ancestralidade, mas também, e fundamentalmente, seu direito legítimo ao poder. As sociedades pré-modernas são sociedades tradicionais, no sentido de que pressupõem a naturalidade (ou seja, o caráter de antemão justificado e, por isso mesmo, inquestionado) da hierarquia social e da dominação, exatamente a partir do apelo às tradições culturais que fundam a própria sociedade e que determinam sua reprodução ao longo do tempo, bem como legitimam aquelas relações hierárquicas de dominação. Nelas, o presente é visto como uma eterna repetição das relações hierárquicas passadas, que determinam não apenas a absoluta legitimidade do poder e das hierarquias, mas tudo aquilo que os indivíduos particulares podem esperar de acordo com o lugar onde nascem. Nessas sociedades tradicionais, marcadas por um modelo imutável de hierarquia social e de domínio, o lugar de nascimento definirá exatamente quem o indivíduo vai ser e o tipo de relações que ele vai travar – mas o lugar de nascimento determinará de uma vez por todas o próprio status do indivíduo; contra o berço, nada se pode fazer, em termos de sociedades tradicionais (destino). Contra esse modelo de sociedade tradicional, a modernidade política, que no meu entender se inicia com Locke (cf. Locke, 2001, cap. I, p. 82-83) e com Rousseau (cf. Rousseau, 1999, v.I, p. 50-51), aponta de maneira enfática para a ideia de que a sociedade é uma associação (portanto, possui um caráter secundário) de indivíduos livres e iguais. Todo o contratualismo moderno remonta a origem da sociedade e do poder a um contrato, ou seja, a uma associação jurídica entre indivíduos iguais em tudo (força, capacidades intelectivas) e livres, que instituem um poder político-jurídico objetivo, cuja função consiste em realizar de maneira imparcial a justiça (cf. Hobbes, 1979, cap. XIII, p. 74-77; Hobbes, 1979, cap. XVII, p. 103-106; Locke, 2001, cap. IX, p. 156-159; Rousseau, 1999, v.II, cap. VI, p. 69-71; Kant, 2003, §§ 41-42, p. 150-152). O objetivo desse poder consiste em proteger os direitos individuais fundamentais dos próprios indivíduos: ele deve proteger a propriedade (vida, liberdade e bens), no sentido lockeano, desses mesmos indivíduos (inclusive contra o próprio Estado, isto é, contra si mesmo). A questão central, aqui, para a qual eu chamo a atenção (na medida em que, no meu contexto, ela é importante para este trabalho), está em que, na modernidade política, a ideia de individualismo, enfeixada no conceito de direitos individuais fundamentais, substitui, se contrapõe à ideia de socie-
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dade enquanto comunidade natural, enquanto comunidade de cultura, que pressuporia aquelas hierarquias sociais e mesmo as relações de dominação daí advenientes como de antemão justificadas, sendo que, em tal situação, o lugar de nascimento determina o nosso próprio lugar na sociedade, a nossa posição social – e determinaria nosso lugar de uma maneira absoluta. Nesse sentido, na medida em que aponta para a não-naturalidade da cultura e da sociedade, bem como das hierarquias daí advenientes, que seriam, no dizer de Rousseau, convenções, e na medida em que afirma a universalidade e o caráter basilar dos direitos individuais fundamentais, a modernidade política derruba a clássica teoria da sociedade e da política, que pressupunha a legitimidade da dominação exatamente por entender a sociedade como comunidade natural e de cultura, de antemão perpassada por aquelas hierarquias imutáveis em termos de poder e de dominação. A modernidade política, conforme expressa pelo contratualismo de Locke e de Rousseau, começa exatamente com o individualismo, isto é, com a ênfase nos direitos individuais fundamentais como o ponto de partida da própria sociedade (mas a modernidade cultural não termina com isso – vejase, no que diz respeito a essa questão, que não será tratada aqui, as críticas de Hegel e de Marx ao liberalismo e a defesa, por parte desses pensadores, da necessidade de direitos sociais e políticos como condição da efetividade dos direitos individuais). Esses direitos individuais fundamentais, escorados no fato de que todos os indivíduos são iguais em todos os aspectos relevantes (por exemplo, força e inteligência), apontam de maneira direta para o caráter convencional da organização da sociedade, das estruturas de poder e mesmo da cultura, que doravante apenas teriam legitimidade na medida em que fossem justificadas para todos os indivíduos (universalismo moral, juridificação). Nesse contexto de perda da naturalidade (novamente: do caráter de antemão justificado e, portanto, inquestionado) da sociedade e da cultura, e de afirmação de um puro e simples individualismo (ou seja, de afirmação dos direitos individuais como base da própria sociedade), a sociedade, em termos de teoria política moderna, passa a ser entendida efetivamente como uma associação jurídica entre esses indivíduos livres e iguais, em vista da proteção recíproca e de cada um em particular. Note-se bem a contraposição em relação à concepção clássica de sociedade e de poder político: para os modernos, a sociedade é uma associação jurídica, entre sujeitos de direito
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livres e iguais (juridicamente falando), cuja identidade (tanto da sociedade quanto desses mesmos sujeitos entre si) devém desse pacto jurídico-político, não sendo, como nas sociedades tradicionais, uma identidade de cultura. Da mesma forma, as hierarquias em termos de poder e as próprias desigualdades sociais justificadas com base no sangue e no nascimento ficam de antemão deslegitimadas, na modernidade política. O ponto de partida da sociedade moderna é exatamente a liberdade e a igualdade entre todos, concebidas em termos jurídicos. Desse modo, cria-se – e essa é uma das grandes especificidades da modernidade política e cultural – uma contraposição entre esfera pública e esfera privada que delimita o próprio sentido da esfera pública em sua relação com a esfera privada: aquela tem o seu sentido fundamental em proteger e promover os direitos individuais básicos dos indivíduos. Esse é o seu papel básico (esse e somente esse). E a esfera privada de vida é um horizonte que pertence exclusivamente aos próprios indivíduos, um horizonte no qual eles podem seguir sua vida do jeito que quiserem, sem qualquer possibilidade de intervenção externa (inclusive do próprio Estado) em relação à sua liberdade crítica e criativa. Ora, o Estado liberal clássico foi erigido exatamente com base no direito privado, ou seja, o sentido da esfera pública liberal clássica estava justamente na defesa do direito privado (voltarei a isso mais adiante, especificamente no que diz respeito a John Locke e, principalmente, a Adam Smith). Todos são livres e iguais, de acordo com a teoria política moderna. Mas o que isso significa? Em que consiste, por exemplo, a igualdade entre todos? Quais as suas implicações? Porque, como disse acima, os modernos recusam as hierarquias e desigualdades sociais justificadas como imutáveis e determinadas pelo nosso lugar de nascimento, conforme repassadas, justificadas pelas sociedades tradicionais. Mas, nesse contexto, o que significa a afirmação de que todos são livres e iguais? Tal afirmação de igualdade jurídica entre todos implica em que não haveria mais desigualdades sociais e relações de poder hierárquicas de uns em relação aos outros? Nesse ponto, gostaria de me concentrar no liberalismo clássico de John Locke (liberalismo político clássico) e de Adam Smith (liberalismo econômico clássico). Partindo exatamente desta ideia de que o fato de os indivíduos possuírem as mesmas capacidades os torna iguais, e defendendo que esta igualdade em termos de capacidades constitui o cerne da igualdade jurídica entre todos esses indivíduos, Locke tem condições de defender tan-
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to que o ponto de partida da fundação do poder político – que já não se caracteriza, como nos clássicos, por uma relação entre pai e filhos, senhor e escravos, patrão e empregado – é constituído por um acordo mútuo entre esses mesmos indivíduos, que funda uma associação jurídica com vistas à defesa mútua, quanto que, agora, o fator de distinção social não é mais o nascimento (na medida em que o ponto de partida da sociedade foi a igualdade jurídica entre todos os indivíduos, iguais em termos de capacidades), mas sim o desenvolvimento daqueles talentos individuais por parte dos próprios indivíduos em termos de trabalho (cf. Locke, 2001, cap. II, p. 83) . No caso de Locke, fica clara a ideia de que é o mérito pessoal, no que diz respeito ao exercício e ao desenvolvimento das capacidades por parte de cada indivíduo, a partir do trabalho que esse mesmo indivíduo realiza, que garante tanto a legitimidade de tudo aquilo que ele conquista em termos de riqueza quanto as distinções sociais que daí advêm. Interessantemente, o ponto de partida da sociedade (ponto de partida que é uma questão política, jurídica) é o mesmo para todos (igualdade entre todos, recusa das distinções sociais e de poder por causa do nascimento e do sangue), mas o ponto de chegada (que já não é mais uma questão política nem jurídica) depende dos próprios indivíduos, na medida em que é pelo mérito pessoal em termos de trabalho que esses mesmos indivíduos, ao desenvolverem os seus talentos naturais, aos poucos adquirem maior status econômico e, consequentemente, social e político. Nesse contexto, as desigualdades sociais e políticas surgem, certamente. Mas são todas legítimas pelo fato de que encontraram seu fundamento exatamente no próprio trabalho. O trabalho gera desigualdades sociais na exata medida em que é por meio dele que os indivíduos, equiparados em termos jurídicos, iguais em todas as capacidades relevantes, desenvolvem suas capacidades pessoais em um grau maior ou menor uns em relação aos outros – ou seja, as desigualdades ou, num outro sentido, o status social advêm do maior ou menor desenvolvimento das capacidades dos próprios indivíduos, sendo, portanto, uma questão privada (e não pública), ligada ao mérito ou ao demérito de cada indivíduo em particular. Não seriam mais as instituições e os códigos culturais e políticos que determinariam, de acordo com o sangue ou o lugar de nascimento, o caráter legítimo, natural, das desigualdades, ou seja, não seriam as instituições (e instituições injustas, dotadas de um poder absoluto) que determinariam a legitimidade das desi-
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gualdades (de antemão dadas e justificadas), mas sim o próprio indivíduo em particular, a partir do modo como desenvolve (ou deixa de desenvolver) os seus talentos. Enquanto questão ligada à individualidade de cada um e, portanto, enquanto questão privada (e de responsabilidade privada), as desigualdades que surgem do trabalho e do desenvolvimento dos talentos naturais por parte de cada indivíduo são todas legítimas (até porque não foram gestadas nem justificadas por instituições deficitárias). Nesse sentido, basta que o Estado garanta a integridade dessa esfera produtiva privada e o respeito aos direitos individuais fundamentais para que tais relações entre agentes privados percam qualquer caráter coercivo e apresentem esse ponto de partida caracterizado em termos de igualdade jurídica (ou seja, a igualdade jurídica imunizaria relações de poder injustificadas, tendentes a gerar desigualdades sociais, econômicas e políticas injustificadas). A justiça punitiva, em relação a essa questão, seria suficiente, em termos de função pública, no que diz respeito a garantir tanto a equiparação jurídica como ponto de partida da sociedade (ponto de partida esse que perderia o caráter de desigualdade injustificada geradora, reprodutora de todas as outras desigualdades ao longo do tempo), já que imunizaria essa mesma sociedade de desigualdades injustificadas em termos de poder, colocando todos os indivíduos em igualdade e deixando-lhes a liberdade para se desenvolverem em iguais condições jurídicas, quanto para garantir a própria legitimidade de todas as desigualdades que surgissem em termos de esfera privada produtiva, desigualdades essas definidas pelos próprios indivíduos, a partir do maior ou menor desenvolvimento de seus talentos no trabalho. Sob nenhuma hipótese a função do Estado seria maior do que essa (de realizar justiça punitiva), na medida em que uma intervenção política na esfera privada violaria os direitos individuais fundamentais, que teriam uma anterioridade ontológica em termos de fundação da sociedade político-jurídica e que definiriam o seu (da sociedade político-jurídica) sentido e, principalmente, o seu limite – garantir a integridade da esfera privada produtiva (cf. Locke, 2001, cap. I, p. 82). Ora, para Adam Smith, o poder político tem sua gênese justamente com o objetivo de proteger a propriedade privada (cf. Smith, 1999, v.II, Parte II, p. 315). O poder político, portanto, começou, segundo este autor, com a necessidade de se legalizar o caráter privado – e não mais público – da propriedade. Interessantemente, a sociedade é concebida, por Adam Smith, na esteira de Locke, conforme já dito de passagem acima, como uma associ-
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ação de indivíduos livres e iguais, e egoístas, marcada pela competição em torno à produção e à acumulação privada da riqueza e da propriedade entre esses mesmos indivíduos egoístas, no mercado, por meio do trabalho. É importante se perceber, em primeiro lugar, a centralidade do mercado e, em segundo lugar, como consequencia, o caráter fundamental do trabalho, que seria o único critério definidor não apenas do status dos próprios indivíduos, mas também a questão mais primordial da sociedade, na medida em que seria por meio do trabalho, no mercado, que a produção da riqueza social teria lugar. É do mercado, nesse sentido, que a dinâmica da sociedade como um todo é erigida; e é do trabalho nesse mesmo mercado que a riqueza social é produzida. Mas, e isso é interessante, Adam Smith parte das constatações de que (a) a propriedade é privada, de que, consequentemente, (b) o mercado é uma esfera distinta e regida por mecanismos não-políticos e (c) o trabalho é uma questão de responsabilidade individual, ligado ao e determinado pelo maior ou menor desenvolvimento dos talentos por parte de cada indivíduo. Ora, o trabalho individual paulatinamente confere um status privado à propriedade e à própria riqueza, na medida em que cada indivíduo, por meio de seu esforço pessoal em termos produtivos, produziu riqueza, que passa necessariamente a pertencer a quem a produziu. Esse mesmo indivíduo elaborou qualitativa e quantitativamente a natureza em estado bruto, transformando-a em valor, que, uma vez comercializado, pertence ao próprio indivíduo, torna-se algo dele, ligado à sua esfera mais íntima e deixando, por conseguinte, de ser algo público e de direito público. O trabalho, ao transformar qualitativa e quantitativamente a matéria bruta em produto de valor, confere a esse mesmo valor um caráter privado, que, portanto, aponta para ele (esse produto do trabalho) como pertencente ao indivíduo que o produziu, e somente a ele – sobre esse produto do trabalho individual a sociedade já não tem mais direito algum, mas somente o próprio indivíduo. Desse modo, se pode perceber que a esfera do mercado é uma esfera ligada eminentemente à privacidade de cada indivíduo e, exatamente por isso, como estando de antemão fechada à interferência pública. O mercado, agora como esfera privada, é regido por mecanismos não-políticos, ou seja, pelo direito privado; e, na medida em que o mercado, entendido enquanto esfera produtiva marcada pelas relações de contrato jurídico entre indivíduos livres e iguais, e egoístas, que competem entre si, na medida em que,
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como dizia, o mercado é central para a própria sociedade e entendido enquanto esfera privada, o direito privado e a garantia de proteção e de promoção do direito privado passam a ser a questão central para o Estado, determinam o próprio sentido e o próprio limite desse mesmo Estado. Destaco exatamente essa associação entre esfera produtiva e direito privado como central para compreendermos a posição liberal: a produção individual da riqueza transforma essa mesma riqueza num direito individual (lembremos, nesse contexto, do conceito lockeano de propriedade: vida, liberdade e bens). Consequentemente, enquanto direito individual, o direito à propriedade (em termos de riqueza e de meios de produção) é um direito individual básico, fundamental, como o próprio direito à vida e à liberdade. Ora, os direitos individuais fundamentais, como disse acima, representam a inovação moderna em termos de fundação do poder político, contra a ideia clássica de comunidade natural. Nesse sentido, na medida em que o direito à propriedade é entendido como um direito individual tão básico quanto a vida e a liberdade, está claro que o Estado e o sentido e até o limite desse mesmo Estado são definidos em termos de proteção e de promoção da vida e da liberdade, sim, mas também da propriedade. Essa compreensão de que a esfera produtiva possui um caráter fundamentalmente privado é decorrente da própria percepção, no caso de Adam Smith, de que a sociedade é uma associação de indivíduos egoístas, iguais em todos os aspectos relevantes (força e inteligência) e, exatamente por serem iguais em todos os aspectos relevantes, também iguais juridicamente, que competem entre si no mercado com o objetivo de acumularem a riqueza e a propriedade. Isso é importante, no caso do liberalismo econômico de Adam Smith: porque, no que diz respeito à essa posição, a competição entre esses indivíduos egoístas é positiva no sentido de que é óbvio, em primeiro lugar, que cada indivíduo se relaciona com os demais (especialmente em um contexto em que a sociedade deixou de ser uma comunidade natural) buscando o seu interesse pessoal (e, por isso, esse mesmo indivíduo é egoísta – pediria a gentileza de não entendermos de maneira pejorativa esse termo, até porque, para Adam Smith, ele possui um sentido positivo); e, em segundo lugar (mas isso já não me pareceria tão óbvio), essa busca individual pela consecução do próprio interesse leva o indivíduo, na medida em que quer tirar proveito dos demais, a oferecer, em troca daquilo que quer usufruir dos demais, seus próprios talentos e serviços aos outros indivíduos. Ou
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seja, a lógica do mercado é a satisfação dos interesses individuais de cada indivíduo (egoísmo), que se relaciona com os demais no sentido de usufruir deles aquilo de que ele (o indivíduo em particular) necessita (competição, exploração). Ora, mas muito mais do que apontar para um sentido negativo dessas mesmas relações produtivas marcadas pelo egoísmo, pela competição e pela exploração, Adam Smith quer mostrar que elas não apenas servem de estímulo ao trabalho, e sim de que elas também levam os indivíduos a desenvolverem suas potencialidades em um grau cada vez maior, a fim de subsistirem no mercado: cada indivíduo quer usufruir dos talentos dos demais, mas, para isso, também deve deixar-se usufruir pelos demais, desenvolvendo seus talentos particulares, que serão utilizados pelos outros indivíduos para a satisfação dos seus (desses outros indivíduos) interesses. Em assim sendo, o mercado, dada essa dinâmica interessantíssima, estabiliza-se e, ao estabilizar-se (na medida em que também é a esfera central para a dinâmica da própria sociedade), estabiliza a sociedade como um todo. E essa lógica interna em termos de egoísmo e de competição, de oferta e de procura, na medida em que se autorregula, regula, pela sua centralidade, a sociedade como um todo. Ora, é aqui que aparece a questão da mão invisível e do laissez-faire (cf. Smith, 1999, v.I, Parte II, p. 263 e seguintes; Smith, 1999, v.I, Livro II, cap. II, p. 668). O mercado, enquanto esfera privada, não-pública, rege-se por valores instrumentais – egoísmo, competição, exploração, acumulação, oferta e procura, etc. – que seriam suficientes para garantir a satisfação dos interesses de cada indivíduo que entrar nesse mesmo mercado, bem como para garantir a produção da riqueza social, regulando-se, em termos de produção e de distribuição da riqueza, de oferta e de procura, e regulando a sociedade como um todo; estabilizando as expectativas individuais e, consequentemente, estabilizando as expectativas da sociedade como um todo. Nesse contexto, segundo penso, Adam Smith acreditaria que a garantia política da igualdade jurídica entre todos os indivíduos bastaria para que essas relações de produção transcorressem de maneira legítima, sem violar a integridade física e psicológica dos próprios indivíduos. A competição entre esses indivíduos egoístas, no caso desse pensador, começaria a partir da horizontalidade das relações entre esses mesmos indivíduos, horizontalidade essa decorrente da equiparação jurídica entre eles. E o ponto de chegada dependeria exclusivamente dos próprios indivíduos.
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O ponto de chegada é uma questão individual, e não pública (ao passo que o ponto de partida efetivamente seria uma questão pública): isso é muito importante no que diz respeito à legitimidade da acumulação da riqueza e da propriedade, ou seja, no que diz respeito ao surgimento de desigualdades econômicas, sociais e mesmos políticas. É que, também no caso de Adam Smith, a derrubada daquelas estruturas sociais e políticas e daqueles códigos culturais que legitimavam a naturalidade das desigualdades sociais e de poder em termos de sangue e de lugar de nascimento, por parte das modernas sociedades ocidentais, implicava na equalização jurídica entre todos os indivíduos, a partir da afirmação do caráter universal dos direitos individuais fundamentais. Doravante, as desigualdades, se surgissem (e elas certamente surgiriam), deveriam encontrar fundamento diverso que aquele do sangue e do lugar de nascimento. Entre os modernos de uma maneira geral, e entre os liberais clássicos em particular, tal fundamento consistiu exatamente no desenvolvimento dos talentos naturais individuais por meio do trabalho, no mercado. As desigualdades econômicas, sociais e políticas que paulatinamente surgissem, numa situação de equalização jurídica entre todos, encontrariam seu sentido e também sua legitimidade no fato de terem sido produzidas por meio do maior ou menor desenvolvimento dos talentos naturais individuais dos sujeitos de direito equalizados entre si. São desigualdades, e isso é muito importante para a organização do próprio poder político público, ligadas ao desenvolvimento dos talentos naturais de cada indivíduo e por parte de cada indivíduo, ou seja, são desigualdades originadas na esfera privada e como esfera privada – são responsabilidade dos próprios indivíduos em seu sentido privado mais radical. Essas desigualdades não seriam – numa situação de equalização jurídica entre todos – causadas por meio de intervenções administrativas, por causa de déficits nas instituições ou mesmo pelo caráter de classe dessas mesmas instituições: por isso, não são desigualdades públicas, passíveis de crítica e de resolução públicas; são desigualdades privadas, responsabilidades dos próprios indivíduos, cujo fundamento consiste no maior ou menor desenvolvimento dos talentos desses mesmos indivíduos (e, por isso, são legítimas, não podendo ser corrigidas pelas instituições). Nesse sentido, as percepções (a) de que a sociedade é uma associação jurídico-política entre indivíduos egoístas, que competem entre si, no mercado, em torno à acumulação da propriedade, que acontece por meio do
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trabalho; (b) de que o objetivo dessa associação jurídico-política é a defesa mútua e a proteção e o fomento do direito privado; (c) de que o mercado é uma esfera privada, não-pública, marcada por interesses instrumentais (egoísmo, competição, exploração, lucro), que se autorregula e se auto-estabiliza e, consequentemente, por sua centralidade, regula e estabiliza a sociedade como um todo; (d) de que a competição entre indivíduos egoístas, numa situação de equalização jurídica entre todos, tem o efeito benéfico de levar concomitantemente à satisfação dos interesses pessoais e à estabilização das expectativas sociais; (e) de que, também pressupondo-se essa equalização jurídica entre todos, caberia a cada indivíduo em particular a responsabilidade por sua vida, ou seja, de que as hierarquias e mesmo desigualdades entre esses mesmos indivíduos seriam resultados do desenvolvimento dos talentos naturais de cada indivíduo e por parte de cada indivíduo, o que aponta para a legitimidade dessas desigualdades; diante de todas essas percepções, como dizia, o modelo estatal que se desenha com o liberalismo econômico clássico consiste fundamentalmente em um Estado cuja função básica está em realizar justiça punitiva, garantindo o respeito e o fomento do direito privado. Este Estado não intervém na esfera privada, representada pelo mercado em primeiro lugar, como está claro, porque ela é uma esfera não-pública, privada, determinada exclusivamente pelo trabalho individual, pelo desenvolvimento dos talentos individuais e, portanto, em segundo lugar, porque as desigualdades e hierarquias que surgem nesta esfera privada são desigualdades privadas, determinadas, como eu disse, pelo desenvolvimento dos talentos naturais de cada indivíduo e por parte de cada indivíduo, e não surgidas de déficits nas instituições públicas (lembro novamente que Adam Smith entende o mercado como uma esfera privada, marcada por atividades privadas, e não como uma esfera pública, no sentido de ser regulada por valores políticos, que encontrariam nas instituições políticas o seu fundamento). O fundamento e o limite do Estado é a proteção e o fomento do direito privado (a vida, a liberdade e os bens, grosso modo, de acordo com a própria percepção liberal clássica) – e para isso bastaria a realização da justiça punitiva. 2 A reformulação do liberalismo clássico por Rawls Ora, Rawls procura deixar claro que sua intenção teórica consiste exatamente na reformulação do liberalismo clássico. No que se segue, vou tentar mos-
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trar como essa tarefa fica esclarecida a partir dos próprios princípios que Rawls coloca como centrais em sua teoria da justiça como eqüidade. É claro, e com isso eu gostaria de delimitar ainda mais meu tema, que essa reformulação aponta (a) para a reformulação da teoria ética utilitarista e (b) para a reformulação do liberalismo político e econômico clássicos, que mantêm, sim, relações estreitas (na medida em que, como quer Rawls, o utilitarismo apontaria para critérios de distribuição social calcados na ideia de maximização do bem-estar social para o maior número), mas que, no meu entender, podem ser separadas em termos de análise filosófica. Nesse sentido, quando falo em reformulação do liberalismo clássico por Rawls, tenho em mente, para o que aqui me interessa, a sua crítica aos princípios do liberalismo político e econômico clássicos (John Locke e Adam Smith), e não a análise do liberalismo em um sentido mais amplo (englobando, por exemplo, já no século XIX, Jeremy Bentham, John Stuart Mill, Henry Sidgwick, etc.). Essa minha hipótese de trabalho pode ser corroborada pelas próprias afirmações de Rawls de que esse liberalismo reformulado (pelo próprio Rawls) pode responder convincentemente às críticas de Hegel e de Marx ao liberalismo (sobre a análise e a resposta de Rawls em relação à crítica de Hegel ao liberalismo, e sobre a análise e a resposta de Rawls em relação à crítica de Marx ao liberalismo, conferir, respectivamente: Rawls, 2005, p. 419-427; Rawls, 2003, § 45, p. 210-211 e § 52, p. 250-253; sobre a crítica de Hegel ao liberalismo, conferir: Hegel, 1988, § 13, p. 175 e p. 389; Hegel, 1997, §244, p. 208; sobre as críticas de Marx ao liberalismo, conferir: Marx, 2004, Primeiro Manuscrito, p. 110-111 e seguintes; Marx, 1988, p. 133 e seguintes). Ora, Hegel e Marx têm em mente, em suas críticas, exatamente a teoria política liberal e a economia política liberal elaboradas respectivamente por John Locke e por Adam Smith, especialmente pelo segundo, de modo que não considero descabido, ao falar de reconstrução do liberalismo clássico por Rawls, centrar minhas análises, em termos desse mesmo liberalismo clássico, exclusivamente em Locke e Adam Smith. Segundo penso, e aqui já é uma tese, e não mais uma delimitação, pressupondo-se essa minha hipótese (embasada nas próprias afirmações de Rawls), pode-se distinguir perfeitamente alguns princípios de economia política como constituindo o próprio cerne da concepção de justiça política em Rawls. É o que procurarei mostrar, defender no que se segue.
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A teoria da justiça como eqüidade, segundo Rawls, começa do seguinte princípio básico: a sociedade é compreendida como um sistema equitativo de cooperação entre indivíduos livres e iguais ao longo do tempo para benefício recíproco, mútuo. Nas palavras do próprio Rawls: Na justiça como eqüidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para a vantagem de todos. A estrutura básica é um sistema público de regras que define um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de produzir uma quantidade maior de benefícios e atribuindo, a cada um, certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos (Rawls, 2002a, § 14, p. 90).
Ora, na medida em que a sociedade é entendida como um sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais ao longo do tempo para a vantagem recíproca, nós podemos perceber – e muito claramente, por sinal – que a teoria de Rawls difere diretamente do ponto de partida tomado pelo liberalismo clássico e sua noção de sociedade enquanto associação jurídica de indivíduos egoístas, livres e iguais, voltados à competição em torno à acumulação da propriedade e da riqueza, com vistas à proteção mútua. Enquanto, neste, o objetivo da associação jurídico-política consiste fundamentalmente em garantir a integridade de uma esfera econômica privada submetida a uma dinâmica própria, restringindo-se (no caso do poder político) à realização da justiça punitiva e à defesa e ao fomento do direito privado, a justiça como eqüidade, exatamente por começar com a ideia de cooperação entre pessoas livres e iguais, aponta para a produção social da riqueza e, consequentemente, como ainda procurarei mostrar ao longo do texto, para o caráter público e em poderosa medida político da esfera econômica da sociedade – que não poderia ser desligada desse seu aspecto político (e que, no caso do Estado de bem-estar social, até depende dele). Nós podemos perceber que aos poucos começa a tomar forma a ideia, muito cara a Rawls, de que a mera garantia da igualdade jurídica entre os cidadãos não é suficiente para a igualdade material entre esses mesmos indivíduos; desigualdades acentuadas de poder econômico e político anulariam aquela igualdade jurídica tão cara à eqüidade política de uma sociedade democrática. Ou seja, não basta a justiça penal para garantir a estabilidade da sociedade e a efetividade dos direitos individuais fundamentais; também é necessária a justiça material.
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Mas esse ponto de partida, como eu dizia, já aponta para a distribuição equitativa da riqueza socialmente produzida como uma questão importante tanto em termos de organização da sociedade quanto em termos de organização do poder político, como uma sua (da sociedade de uma maneira geral e do poder político em particular) função. É que, pelo fato de a produção dessa riqueza social ser decorrente de um sistema cooperativo entre pessoas livres e iguais – e somente por causa desse sistema cooperativo – um mínimo de distribuição social (que especificarei mais adiante com o conceito de um mínimo social em termos de bens sociais primários) entre todas as pessoas se coloca como absolutamente necessário. Para Rawls, e isso também é muito importante, a sociedade, entendida enquanto sistema cooperativo entre pessoas livres e iguais, aponta para a ideia de que as pessoas precisam umas das outras, na medida em que a afirmação de um individualismo e uma competição pura e simples destruiriam não apenas os vínculos de solidariedade social (tão necessários à estabilidade e à justiça política em uma sociedade democrática!), mas também aquele comprometimento recíproco que os cidadãos democráticos assumem em termos de realizarem justiça mútua. Cito Rawls: As pessoas precisam umas das outras, pois é apenas com a cooperação ativa dos outros que o talento de cada um em particular pode ser realizado e, por conseguinte, em grande parte, com os esforços de todos. Somente nas atividades da união social o indivíduo pode ser completo (Rawls, 2002b, p. 377).
A sociedade é concebida, seguindo esse raciocínio, como uma “[...] união social de uniões sociais” (Rawls, 2002b, p. 375). Para entendermos essa afirmação, utilizarei o exemplo apresentado por Rawls. Numa orquestra, segundo Rawls, se pode observar que cada indivíduo se especializa em um instrumento em particular até à perfeição. Esse indivíduo sabe que até é possível que consiga tocar bem todos os instrumentos (embora isso seja muito difícil), mas de nenhum modo é possível que ele toque todos os instrumentos ao mesmo tempo. Assim, numa orquestra, cada indivíduo é responsável pelo manejo – e pelo manejo que leva à perfeição – de um instrumento em particular e, em conjunto, a orquestra elabora uma bela e harmoniosa música. Ou seja, apenas por causa do indivíduo a música tocada pela orquestra não teria sido possível e, inversamente, sem cada indivíduo em particular a orquestra não teria sido possível. Da mesma forma se dá em
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relação ao bem-estar (justiça social, estabilidade, riqueza material, etc.) da sociedade como um todo e de cada indivíduo em particular (direitos básicos, felicidade individual, etc.): o primeiro não pode ser conquistado se não levar em conta o segundo, e vice-versa. “O bem-estar de cada um”, diz Rawls, “depende de um esquema de cooperação social sem o qual ninguém teria uma vida satisfatória” (Rawls, 2002a, § 16, p. 110). A cooperação social, portanto, aponta para o benefício recíproco e para a colocação do respeito mútuo e mesmo para a realização de esforços construtivos entre todos enquanto os elementos centrais da própria esfera pública política. E aponta, como procurarei mostrar no que se segue, para a consideração das estruturas políticas, sociais e econômicas a partir das quais a legitimação e mesmo a gênese das hierarquias e desigualdades entre os indivíduos têm o seu lugar. Ora, o conceito de estrutura básica da sociedade, elaborado por Rawls, tem por objetivo exatamente apontar para a necessária consideração daquelas instituições que, por meio de suas regras e procedimentos, desempenham um papel central no que diz respeito a originarem e legitimarem variadas formas de status e de desigualdades dos indivíduos entre si. Rawls define do seguinte modo o conceito de estrutura básica da sociedade, que seria o objeto central no que diz respeito à realização da justiça política: A estrutura básica da sociedade é a maneira como as principais instituições políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema de cooperação social e a maneira como distribuem direitos e deveres básicos e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social. A constituição política com um judiciário independente, as formas legalmente reconhecidas de propriedade e a estrutura da economia (na forma, por exemplo, de um sistema de mercados competitivos com propriedade privada dos meios de produção), bem como, de certa forma, a família, tudo isso faz parte da estrutura básica. A estrutura básica é o contexto social de fundo dentro do qual as atividades de associações e de indivíduos ocorrem. Uma estrutura básica justa garante o que denominamos de justiça de fundo (Rawls, 2003, § 104, p. 13-14).
Atente-se bem para este ponto: a estrutura básica da sociedade, considerada enquanto o objeto central da justiça política (e, nesse caso, da teoria política de Rawls), é constituída por um conjunto de instituições políticas e sociais a partir das quais a sociabilidade é regulada, regida. Isso implica em considerar que essas instituições adquirem um papel fundamen-
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tal no que diz respeito a gerarem e legitimarem diferenças de status, de poder e mesmo de riqueza ao longo do tempo entre os indivíduos e destes entre si. Isso significa, em primeiro lugar, que as desigualdade sociais, políticas e econômicas entre os indivíduos (que sob muitos aspectos são geradas aos poucos pelas diferenças de talentos entre os indivíduos) encontram na configuração dessas instituições a principal base a partir da qual elas surgem e se reproduzem ao longo do tempo. Nesse sentido, em segundo lugar, diferentemente do liberalismo clássico, para o qual a justiça punitiva e a proteção e o fomento do direito privado seriam as tarefas básicas do Estado, que deixava a economia seguir a sua (dessa mesma economia) dinâmica interna, a teoria política de Rawls enfatiza a necessidade de regulação e de estruturação conveniente dessas instituições que, desreguladas ou tendo por base interesses e privilégios de classe, tendem a originar e legitimar desigualdades injustificadas que, reproduzindo-se ao longo do tempo, levam ao controle oligárquico tanto do poder econômico quanto do poder político e tendo como consequencia a marginalização e a miséria de amplos setores sociais que, sem possuir sequer representação política conveniente, acabam ficando incapazes de influir na esfera política em termos de mudanças sociais profundas – e, assim, a dominação e a injustiça perpetuam-se ao longo do tempo. Nós conseguimos perceber aos poucos, aqui, a emergência de uma questão importante, para Rawls, a saber: a prioridade do direito público no que diz respeito à organização das instituições políticas e sociais, incluindo o mercado e a distribuição da propriedade e da riqueza. A questão, neste ponto, é clara: os direitos individuais fundamentais (que seriam o cerne da teoria liberal) não podem encontrar efetividade desligados de direitos políticos e sociais efetivos, o que significa que é necessário o controle público, a partir do direito público, da esfera do mercado, em termos de distribuição da riqueza, em termos de se impedir a acumulação ilimitada da propriedade e a formação de oligopólios, etc., bem como no que diz respeito a uma maior democratização da própria esfera política (como se pode perceber, Rawls, nesse ponto, é fiel às críticas de Hegel e de Marx ao liberalismo). Ele diz: A estrutura básica compreende, primeiramente, as instituições que definem o contexto social e inclui, também, as operações que ajustam e que compensam continuamente as inevitáveis tendências a distanciar-se da eqüidade do contexto – por
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Leno Francisco Danner exemplo, o imposto sobre a renda e a herança, com vistas a igualar o acesso à propriedade. Essa estrutura aplica, igualmente, por meio do sistema das leis, outro conjunto de regras que regem as transações e os acordos entre os indivíduos e entre as associações (a legislação dos contratos, etc.). As regras relativas à fraude e à violência fazem parte do conjunto de medidas (Rawls, 2000, p. 17).
Trata-se, enfim, com a colocação da estrutura básica como a questão central da justiça política, da afirmação – e é isso que importa deixar claro, para o que aqui me interessa – do caráter político, público, das instituições e em especial das instituições econômicas, que não poderiam ser concebidas como possuindo um caráter meramente privado, desligado da própria esfera política. Nesse sentido, a regulação pública, política, dessas instituições é necessária, sob pena de que, deixadas ao sabor da ideologia do laissez-faire, tais instituições originem e legitimem desigualdades sociais injustificadas que, ao longo do tempo, tendem a se acentuar. Aqui, há uma contraposição direta ao liberalismo clássico e à questão do laissez-faire, tanto no fato de que este mesmo liberalismo concebia uma esfera econômica de caráter não-político, que, a partir de uma dinâmica interna própria (mão invisível), tinha condições de estabilizar-se e de autorregular-se e, consequentemente, de estabilizar e de regular a sociedade como um todo, quanto da consequente defesa (ainda por parte do liberalismo clássico) de um Estado mínimo, restrito às funções de realização da justiça punitiva e garantidor da proteção e do fomento do direito privado, Estado mínimo que não interferia na dinâmica interna do mercado (na medida em que as próprias desigualdades sociais encontravam seu sentido no maior ou menor desenvolvimento dos talentos individuais por parte de cada indivíduo, não sendo, portanto, desigualdades causadas por déficits nas instituições políticas, econômicas e sociais). No caso da teoria política de Rawls, a justiça distributiva e o controle e regulação políticos da esfera econômica e da esfera social, bem como das próprias instituições políticas, são tarefas centrais da agenda política democrática, em termos de justiça política. É da esfera política que partiriam as determinações no que diz respeito à produção e à distribuição da riqueza material, um mínimo de planificação em relação aos mercados, temperadas com políticas de inclusão social (refletirei mais sobre isso logo adiante). Ora, afirmando-se essas duas ideias básicas em termos de sua teoria política, a saber, a ideia de sociedade enquanto sistema equitativo de coope-
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ração entre pessoas livres e iguais ao longo do tempo para benefício recíproco e a ideia de estrutura básica da sociedade enquanto objeto central da justiça política, Rawls oferece dois princípios de regulação das instituições políticas e econômicas e orientadores da questão da distribuição dos bens sociais primários (bens sociais primários que ainda esclarecerei logo adiante), princípios esses que seriam, portanto, o terceiro ponto importante (e de importantes consequencias) que eu gostaria de salientar enquanto caracterizador da teoria de Rawls em sua contraposição ao – e mesmo reformulação do – liberalismo clássico. Os dois princípios da teoria da justiça como eqüidade são os seguintes: (a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de direitos e de liberdades básicas iguais, que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e a posições acessíveis a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades, e, segundo, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio de diferença) (Rawls, 2003, § 13, p. 60).
Em relação ao sentido destes dois princípios, eles, grosso modo, estabelecem a distribuição exatamente igual daqueles direitos e liberdades básicos elencados no primeiro ponto (a); e admitem apenas aquelas desigualdades sociais e econômicas que não violam a eqüidade em termos de acesso, por parte de todos os cidadãos, aos cargos públicos e políticos, e que melhoram a situação dos menos favorecidos (b). É a partir deles que a regulação da estrutura básica da sociedade, centrada naquelas instituições políticas e econômicas basilares para a justiça das relações sociais, deve se dar. São princípios de economia política, como já salientei acima de passagem, e sua função básica consiste em orientar a regulação daquela estrutura básica. Diz Rawls: O objeto dos princípios de justiça social é a estrutura básica da sociedade, a ordenação das principais instituições sociais em um esquema de cooperação [...]. Esses princípios devem orientar a atribuição de direitos e de deveres nessas instituições e determinar a distribuição dos benefícios e dos encargos da vida social (Rawls, 2002a, § 10, p. 57).
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Como disse acima, esses princípios de justiça são princípios de economia política exatamente porque seu objetivo é a estruturação política da esfera política e econômica, seja em termos de garantia política dos direitos e das liberdades básicas entre todos, seja em termos de estruturação econômica (direcionada, planificada politicamente, sob muitos aspectos) das instituições ligadas à produção e à distribuição da riqueza social (o mercado de uma maneira geral). Também esses princípios contrapõem-se diretamente à economia clássica, de laissez-faire, especificamente em dois pontos básicos: é que a economia liberal clássica recusa (a) a planificação política tanto no que diz respeito à acumulação da propriedade e da riqueza quanto no que diz respeito à própria regulação do mercado, enfatizando não apenas o caráter não-público, privado, da esfera econômica e de sua dinâmica, mas também o fato de que ela tem condições de regular-se e de estabilizar-se, e recusa (b) esta função política de garantir a distribuição equitativa da riqueza social, ou seja, neste caso, recusa que a distribuição da riqueza social seja uma função das instituições políticas e seja politicamente orientada (aliás, em termos de liberalismo clássico, a questão da distribuição social não se coloca). Como se pode perceber no caso de Rawls, esses dois princípios básicos de justiça política apontam de maneira direta para a regulação política da esfera econômica e para a distribuição, por parte das instituições políticas, da riqueza socialmente produzida como condições absolutamente necessárias para a efetividade dos direitos e das liberdades básicas entre todos, especialmente em relação aos menos favorecidos. Desse modo, aparecem mais duas ideias importantes enquanto caracterizadoras da teoria política de Rawls, a saber: as ideias de bens sociais primários e de um mínimo social (constituído exatamente por aqueles bens sociais primários) como direitos básicos de todos os cidadãos. Ora, a própria percepção de cidadãos enquanto possuindo um status de livres e iguais, que possuem, como quer Rawls, a capacidade de ter um senso de justiça (senso de razoabilidade) e a capacidade de terem e de formularem uma concepção de bem (senso de racionalidade), ou, no mesmo sentido, a ideia de cidadãos como pessoas no pleno desenvolvimento e uso de suas capacidades, exige certo conjunto disso que Rawls chama de bens sociais primários, ou seja, como o próprio nome já indica, bens sem os quais é impossível termos um desenvolvimento sadio e efetivo, e sem os quais nossa igualdade e liberdade uns frente aos outros não adquire efetividade. Uma questão-chave de uma
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sociedade democrática, que busca a equalização material entre os cidadãos (ainda que mínima) como condição da eliminação progressiva dos poderes de classe e mesmo das desigualdades sociais que apontam para a acumulação do poder econômico e político por parte dos grupos hegemônicos e a concomitante marginalização dos grupos mais fracos, uma questão-chave, como dizia, consiste exatamente na garantia universal desse conjunto básico de bens sociais primários, que Rawls descreve como segue: (I) os direitos e as liberdades básicas: as liberdades de pensamento e de consciência, bem como todas as demais. Esses direitos e essas liberdades são condições institucionais essenciais para o adequado desenvolvimento e exercício pleno e consciente das duas faculdades morais (nos dois casos fundamentais); (II) as liberdades de movimento e de livre escolha de ocupação sobre um fundo de oportunidades diversificadas, oportunidades estas que propiciam a busca de uma variedade de objetivos e que tornam possíveis as decisões de revê-los e de alterá-los; (III) os poderes e as prerrogativas de cargos e de posições de autoridade e de responsabilidade; (IV) renda e riqueza, entendidas como meios polivalentes (que têm valor de troca) geralmente necessários para atingir uma ampla gama de objetivos, sejam eles quais forem; (V) as bases sociais do auto-respeito, entendidas como aqueles aspectos das instituições básicas normalmente essenciais para que os cidadãos possam ter um senso vívido de seu valor enquanto pessoas e serem capazes de levar adiante seus objetivos com autoconfiança (Rawls, 2003, § 17, p. 82-83).
A teoria de Rawls, como ele mesmo explicita, resolve aquele velho problema da formalidade dos direitos e das liberdades básicos, conforme a crítica ao liberalismo por parte de Hegel, de Marx e de toda uma tradição socialista, exatamente pela formulação desses bens sociais básicos (cf. Rawls, 2002b, p. 381). Note-se bem que eles são um conjunto básico de bens, necessário ao desenvolvimento integral das capacidades de cada indivíduo/cidadão (ou, como já dito, garantidor da efetividade dos direitos e das liberdades básicas entre todos). Eles apontam diretamente para a consideração de políticas materiais como condição fundamental para a efetividade daqueles direitos e liberdades básicos. Quer dizer, na falta dessas políticas materiais, não há possibilidade de efetividade dos direitos e liberdades básicos. E, consequentemente, a teoria de Rawls aponta de maneira direta para a percepção de que esses bens sociais primários, enquanto fundamentais para a garantia da efetividade dos direitos e das liberdades básicos, devem ser objeto de garantia institucional, política. As instituições devem garantir a universalidade desses bens sociais primários a todos os cidadãos. Aparece,
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então, a ideia de um mínimo social, ou seja, de uma renda mínima como condição para os indivíduos erguerem-se pelo desenvolvimento de suas próprias capacidades, impedindo-os (essa renda mínima) de caírem na marginalização. Esse mínimo social encontra sentido na ideia de que, “[...] abaixo de certo nível de bem-estar material e social, bem como de treinamento e de educação, as pessoas simplesmente não podem participar da sociedade como cidadãos, e muito menos como cidadãos iguais” (Rawls, 2002b, p. 213; cf., também: Van Parijs; Vanderborght, 2006). Rawls também, contra o liberalismo clássico, aponta para a consideração de que as desigualdades naturais não podem servir para legitimar desigualdades acentuadas e/ou injustificadas entre os indivíduos. Os mais bemdotados em termos de talentos naturais não podem erigir um sistema de cooperação no qual eles tirem mais vantagens do que aquilo que é legítimo em relação aos menos favorecidos. Ora, no liberalismo clássico, as desigualdades sociais e econômicas são justificadas exatamente com base no maior ou menor desenvolvimento dos talentos por parte dos próprios indivíduos – desenvolvimento e, como consequencia, vantagens daí advenientes que, em princípio, poderiam ser ilimitados. Essas desigualdades seriam legítimas porque fariam parte da esfera econômica privada e, em uma situação de garantia estatal da igualdade e da liberdade entre todos como ponto de partida da sociedade, seriam sempre legítimas, exatamente porque surgiriam a partir do, por causa do desenvolvimento das capacidades por parte dos próprios indivíduos, e não por déficits nas instituições públicas. Em assim sendo, elas seriam todas legítimas e impediriam, inclusive, a própria intervenção política no sentido de equalizá-las. No caso de Rawls, fica claro que o desenvolvimento dos talentos naturais é legítimo na medida em que ele contribui para aumentar o grau de desenvolvimento e de justiça da sociedade. Nesse caso sim esses indivíduos têm todo o direito de esperarem recompensas maiores, já que colocaram seus talentos naturais ao serviço da sociedade. Entretanto, e isso é muito importante, o desenvolvimento desigual dos talentos naturais sob hipótese alguma justifica desigualdades sociais, políticas e econômicas tendentes a instaurar zonas de marginalização e de privilégios entre os grupos sociais e entre os próprios indivíduos. Diz Rawls: A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas nasçam em alguma posição particular da sociedade. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com esses fatos. As
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sociedades aristocráticas e de castas são injustas porque fazem dessas contingências a base de referência para o confinamento em classes sociais mais ou menos fechadas ou privilegiadas. A estrutura básica dessas sociedades incorpora a arbitrariedade encontrada na natureza. Mas não é necessário que os homens se resignem a essas contingências. O sistema social não é uma ordem imutável acima do controle humano, mas um padrão de ação humana. Na justiça como eqüidade, os homens concordam em se valer dos acidentes da natureza ou das circunstâncias sociais apenas quando isso resulta no benefício comum. Os dois princípios são um modo equitativo de se enfrentar a arbitrariedade da fortuna; e, embora sem dúvida sejam imperfeitas em outros aspectos, as instituições que satisfazem esses princípios são justas (Rawls, 2002a, § 17, p. 109).
Por tudo isso, está claro – e esta é a ideia central que gostaria de explicitar, como consequencia de tudo o que trabalhei até aqui em relação à teoria política rawlsiana – que Rawls recusa de maneira peremptória a ideia de mão invisível, base do próprio liberalismo econômico clássico. Conforme ele mesmo diz, “[...] a mão invisível, antes de socializar seus frutos, possui uma tendência oligopolista e excludente” (Rawls, 2002a, § 12, p. 77). Neste aspecto, Rawls rejeita tanto o capitalismo de laissez-faire quanto, sob muitos aspectos, o capitalismo de regulação estatal, ou seja, o modelo de Estado de bem-estar social (do qual tratarei de passagem na próxima seção). E rejeita esses modelos pelo seguinte motivo: Permitem desigualdades muito grandes na propriedade de bens não-pessoais (meios de produção e recursos naturais), de forma que o controle da economia e, em grande medida, também da vida política permaneça em poucas mãos (Rawls, 2003, § 41, p. 195).
Ora, em se tratando da organização da estrutura básica da sociedade, enquanto questão basilar para a justiça política e da justiça política, Rawls afirma que o controle político das desigualdades sociais e econômicas é absolutamente fundamental no que diz respeito à questão da justiça política e mesmo à estabilidade e justiça da sociedade, na exata medida em que, deixado por si mesmo (laissez-faire), o mercado tende a originar de maneira progressiva desigualdades econômicas que levam, concomitantemente, à concentração do poder econômico e político em poucas mãos, de um lado, e, de outro, à marginalização de amplos setores sociais. Ele diz:
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Leno Francisco Danner Uma razão para controlar as desigualdades econômicas e sociais está em impedir que uma pequena parte da sociedade domine a restante. Quando esses dois tipos de desigualdades são grandes, tendem a produzir desigualdade política [...]. Esse poder possibilita que uns poucos, em virtude de seu controle da máquina do Estado, promulguem um sistema de direito e de propriedade que garanta sua posição dominante na economia como um todo. [...] Deve-se evitar o monopólio e seus equivalentes, não só por seus efeitos nefastos, entre os quais a ineficiência, mas também porque, sem uma justificação precisa, eles tornam os mercados iníquos. O mesmo pode ser dito de eleições influenciadas pela predominância de uma minoria abastada na vida política (Rawls, 2003, § 37, p. 184-185).
Rawls teme a concentração da propriedade e da riqueza exatamente porque ela leva diretamente à concentração do poder político. Nesse sentido, Rawls seria defensor, por assim dizer, de uma dispersão ampla da propriedade e da riqueza, ou, o que é o mesmo, de uma equalização material sob muitos aspectos radical, na medida em que tanto aquela dispersão da propriedade e da riqueza quanto um mínimo de equalização material entre todos são questões fundamentais para a igualdade de direito e de fato entre os indivíduos e, nesse caso, para a própria efetividade das liberdades políticas, fundamentais em se tratando de garantir uma democracia deliberativa radical, que possa enfrentar politicamente esses problemas sociais, econômicos e políticos. Nas palavras do próprio Rawls: “[...] a ampla dispersão da propriedade [...] é, ao que parece, uma condição necessária à manutenção das liberdades iguais” (Rawls, 2002a, § 43, p. 306). E complementa: “[...] uma grande desigualdade de riqueza e de propriedade é incompatível com o valor equitativo das liberdades políticas” (Rawls, 2002a, Prefácio à Edição Brasileira, p. XVIII). O que Rawls quer deixar claro é exatamente o caráter social da propriedade, contra a posição do liberalismo clássico (tanto na variante política de Locke quanto na variante econômica de Adam Smith), para o qual a propriedade diz respeito de maneira fundamental à esfera privada, não-pública: no liberalismo clássico, a propriedade (dos meios de produção, que é à qual estou me referindo com o conceito de propriedade) é um bem privado, e não-público, o que significa dizer que ela, na medida em que é equiparada à própria vida e liberdade dos indivíduos, torna-se alto tão fundamental quanto aquelas, isto é, um direito individual que sob hipótese alguma pode sofrer intervenção pública e cuja produção tem um sentido meramente privado. A percepção, no caso de Rawls, de que a propriedade
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dos meios de produção “[...] deve ser social” (Rawls, 2003, § 32, p. 161) aponta de maneira direta tanto para a necessidade de controle e de regulação públicos da acumulação da propriedade e da riqueza quanto para a distribuição equitativa da riqueza socialmente produzida. Isso implica, e no fim das contas essa é a pretensão como que central da própria teoria política de Rawls, em que a propriedade dos meios de produção deva ser socializada, ainda que não de maneira radicalmente igual – esse seria um dos objetivos básicos da ordem política. Ele diz: Parti do pressuposto de que o objetivo dos setores do governo é estabelecer um regime democrático no qual a posse da terra e do capital (incluindo os demais meios de produção) é distribuída de forma ampla, embora, presumivelmente, possuída desigualmente (Rawls, 2002a, § 43, p. 309).
3 Rawls: uma crítica ao neoliberalismo Margaret Thatcher disse, quando primeira-ministra da Grã-Bretanha, em fins da década de 1970, que “[...] a sociedade não existe, apenas homens e mulheres individuais” (citado por Harvey, 2008, p. 32). Ora, essa afirmação, que não é isolada de um contexto de crise do Estado de bem-estar social e de ascensão do neoliberalismo e mesmo da realização de reformas neoliberais (que começaram na Inglaterra exatamente com Thatcher e, logo depois, nos EUA, com Ronald Reagan), essa afirmação, como eu dizia, reflete duas ideias centrais do neoliberalismo, tal qual formulado por Friedrich August von Hayek, desde meados de 1940: a ideia de evolução espontânea da sociedade e a ideia de que a sociedade não é um indivíduo. No que se segue, vou refletir sobre elas e sobre suas consequencias. Para Hayek, o que caracteriza tanto o mercado em particular quanto a sociedade de uma maneira geral é a sua impessoalidade, ou seja, a sua complexidade, que impede a identificação de uma base, ou de um grande sujeito ou mesmo de uma estrutura básica a partir da qual a dinâmica social como um todo encontrasse seu sentido e pudesse ser coordenada, planificada. A dinâmica social é determinada, se é que se pode falar assim, pelas inumeráveis vontades individuais, e não por um planejamento interno e centralizado, levado a cabo a partir de um centro e de uma instituição em particular (que tivesse tentáculos por toda a sociedade). Nesse sentido, a sociedade desenvolveu-se a partir de uma espécie de evolução espontânea, não-programada, não-planejada, que pode ser caracterizada como o conjun-
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to das ações individuais, marcadas fundamentalmente pela busca, por parte de cada indivíduo, da satisfação de seu interesse pessoal, o que o leva a relacionar-se com os outros em um processo de produção e de competição em torno à produção. Essas ações individuais – isso é muito importante – têm como fim imediato a satisfação de suas necessidades privadas; e, portanto, sob hipótese alguma possuem essa consciência dos efeitos macro-estruturais que cada uma delas aos poucos instaura. Ora, paulatinamente essas relações entre indivíduos foram necessitando de regras e de valores específicos, bem como de instituições que os protegessem e fomentassem, o que apontou para o desenvolvimento das sociedades em termos de legislação, de organização política, cultural, etc. Mas é interessante de se perceber que essa evolução deu-se exatamente de maneira impessoal: não havia um visionário (e, no caso, os indivíduos não eram esses visionários) que, dada essa sua capacidade privilegiada, organizasse e conduzisse o progresso social a partir de um centro. A evolução aconteceu de maneira inconsciente, pela atuação ao longo dos séculos desses indivíduos que perseguiam fundamentalmente os seus interesses privados nas relações com os demais (cf. Hayek, 1995, p. 37-42). Nesse sentido, há uma ligação intrínseca entre esta ideia de uma evolução espontânea da sociedade, causada pela competição entre indivíduos egoístas em torno à acumulação da propriedade, e a ideia de que a sociedade não é um grande indivíduo, tal qual expressa logo no início desta seção por Margaret Thatcher. Ora, somente se pode falar dos indivíduos singulares, na medida em que somente eles existem efetivamente. O ideal de comunidade, ou mesmo de vínculo comunitário, tal qual eu havia refletido no início deste trabalho, é algo que a própria modernidade política, na perspectiva liberal, deslegitimou, na medida em que o individualismo, centralizado em torno ao caráter basilar dos direitos individuais fundamentais, concebeu a sociedade como uma associação jurídica entre aqueles indivíduos livres e iguais em capacidades, e profundamente egoístas e competitivos entre si (os conceitos de individualismo e de competição não devem ser entendidos, aqui, em um sentido moral negativo, pejorativo, até porque, na doutrina liberal, eles não possuem tal conotação). Ou seja, na perspectiva liberal clássica, o ideal tradicional de sociedade enquanto comunidade natural e de cultura é substituído exatamente pela ideia de sociedade enquanto associação jurídica voltada à defesa mútua. Uma associação, e não mais uma comunidade natural – essa nova concepção de sociedade impede que se
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possa encontrar uma estrutura central a partir da qual as orientações públicas se espalhassem por toda a sociedade, orientando e mesmo centralizando os mais diversos âmbitos sociais. Nesse contexto, a afirmação da ideia de impessoalidade do mercado e mesmo das estruturas políticas e econômicas aponta para o fato de que aquela conotação (não apenas técnica, mas também) moral negativa, no sentido de que o mercado conduziria a desigualdades cada vez maiores entre os indivíduos, à concentração da propriedade em poucas mãos e, como consequencia, a marginalização de amplos setores sociais, tal conotação moral negativa do mercado não possui qualquer fundamento. Diz Butler: [...] afirmar que o sistema impessoal da ordem do mercado pode ser justo ou injusto equivale a dizer que uma pedra pode ser moral ou imoral. O uso da expressão ‘justiça social’ baseia-se, pois, em um total equívoco a respeito do que é a verdadeira justiça (Butler, 1987, p. 98; grifo meu).
Reivindicações por justiça social seriam ilegítimas, infundadas, exatamente pelo fato de que se supõe tanto que as instituições ou mesmo a sociedade possam ser entendidas como um grande sujeito quanto que, exatamente por elas (a sociedade e as instituições) serem entendidas como um grande sujeito, se possa exigir reparação moral (em termos de justiça distributiva) pelos problemas e injustiças que elas tenham gerado. Isso também é um equívoco: [...] a crença na ‘justiça social’ tem origem em uma concepção errônea de sociedade. Supõe que a sociedade é organizada intencionalmente. Daí, em geral, a impressão de que a sociedade é um tipo de pessoa que pode distribuir as recompensas que nos dá. No entanto, a sociedade não é uma pessoa (Butler, 1987, p. 94).
Interessantemente, esse é o fundamento teórico – em termos de conteúdo normativo – por meio do qual o neoliberalismo ataca o Estado de bem-estar social, que a partir da década de 1970 em diante começa a dar sinais de esgotamento no que diz respeito ao fim para o qual ele fôra projetado, a saber, a regulação econômica e a realização dos direitos sociais de cidadania. Nesse sentido, como já explicitei de passagem acima, a questãochave para Rawls, muito mais do que uma crítica direta ao liberalismo clássico, consiste em uma contraposição ao modelo neoliberal, que, por sua vez, retoma algumas daquelas teses clássicas (o caráter impessoal e não-político
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do mercado; o individualismo; a ideia de mão invisível ou, no contexto de Hayek, de evolução espontânea da sociedade; a recusa de que a sociedade seja um agente moral, uma espécie de grande indivíduo). Ora, e essa minha hipótese poderia ser justificada, segundo penso, pelo fato de que a reformulação da economia de laissez-faire já nas primeiras décadas do século XX – por parte de John Maynard Keynes a partir da década de 1930, nos EUA, sob o governo de Franklin Delano Roosevelt; e pelos países europeus depois da Segunda Guerra Mundial, no seu (desses países destruídos pela guerra) processo de reconstrução – apontou para a insuficiência da economia de laissez-faire, tanto no sentido de que, com a crise de finais da década de 1920, a ideologia liberal de um mercado autorregulado e auto-estabilizado caiu por terra quanto no sentido de que o mercado não teria condições de garantir nem a satisfação das necessidades básicas de todos nem a efetividade dos direitos fundamentais individuais para todos. Nesse sentido, a instauração do Estado de bem-estar social, com uma programática calcada no “keynesianismo em um só país” e marcado pela tentativa de conciliação entre capital e trabalho, partia da crença de que o mercado capitalista, quando deixado por si mesmo (laissez-faire), levaria à concentração monopolista da propriedade e da riqueza em algumas mãos e na consequente e concomitante marginalização de grandes contingentes populacionais. Mas é no momento em que esse modelo de Estado de bem-estar social é posto em xeque por fatores internos (no caso, déficit fiscal e queda da taxa de acumulação por parte dos capitalistas privados, pelo desemprego estrutural, etc.) e por fatores externos, ou seja, pela transnacionalização do capital (que põe por terra o princípio básico viabilizador da política econômica keynesiana, a saber, a necessidade de uma economia nacional como única condição para a efetividade, para a possibilidade do controle por parte do Estado de bem-estar social dessa mesma economia – os capitais transnacionais e a economia globalizada fogem do controle dos Estados nacionais, principalmente dos mais fracos), é nesse momento em que de fato o neoliberalismo se torna hegemônico e, portanto, inspirador da progressiva desestruturação do Estado de bem-estar social. Em relação a isso, penso que Rawls apontaria, sim, para déficits por parte do Estado de bem-estar social, especificamente por não atuar no verdadeiro combate às causas das desigualdades sociais e da monopolização da
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propriedade e do capital, a saber, nas próprias estruturas econômicas deficitárias. O Estado de bem-estar social, sob muitos aspectos, procurou “corrigir” os problemas de marginalização social por meio de políticas assistencialistas, sem resolver exatamente o problema da concentração da propriedade e do capital enquanto a verdadeira causa das desigualdades sociais. Mas, interessantemente, o Estado social sob muitos aspectos não pode ser ultrapassado. E eu, pelas várias passagens que utilizei sobre Rawls e de Rawls, procurei apontar para a questão da justiça distributiva, para a questão da regulação política das estruturas de mercado, no sentido de evitar a concentração monopolística da propriedade e da riqueza (que levaria diretamente à concentração do poder político), para a necessidade de ampla dispersão da propriedade e da riqueza, assim como para a íntima associação entre direitos políticos (segunda geração) e direitos sociais (terceira geração) com os direitos individuais fundamentais (primeira geração), no sentido de que os últimos somente seriam possíveis pelos dois primeiros, tudo isso, conforme procurei apontar, nos faz perceber que, de fato, em Rawls dificilmente se pode ultrapassar esse ensinamento das democracias sociais contemporâneas – este da íntima conexão entre direitos políticos e direitos sociais e direitos individuais fundamentais, o que pressupõe o controle e a regulação públicos da propriedade e da riqueza –, que o Estado de bem-estar sob muitos aspectos, e não obstante todas as suas contradições, procurou realizar. E isso contra o neoliberalismo, cujos reflexos, como podemos observar, não terminaram neste início de novo século, em que uma globalização econômica completamente desregulada decreta a falência de países e a marginalização, para não dizer a morte, de grandes contingentes populacionais, e isso em uma situação de riqueza sem precedentes. Marx ficava impressionado com a grande contradição do capitalismo moderno, que teria revolucionado a produção da riqueza material, mas que, paradoxalmente, o crescimento dessa mesma riqueza material era acompanhado pelo crescimento, na mesma proporção, da marginalização de amplos setores sociais. Ora, a retomada das críticas à formalidade dos direitos fundamentais na filosofia política contemporânea mostra que este espanto de Marx pode ser vivenciado por cada um de nós!
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Direitos humanos e dignidade política da cidadania em Hannah Arendt Iara Lucia Mellegari* Cesar Augusto Ramos**
Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar o tema dos direitos humanos e cidadania sob a perspectiva da filosofia política de Hannah Arendt. O artigo retrata, em sua primeira parte, a ilusão fundacionista dos direitos humanos ante a situação dos apátridas e refugiados, situação que leva a autora a formular o conceito de cidadania como o direito a ter direitos. Na sequência, analisa os elementos que configuram sua teoria política, tais como: liberdade, ação, pluralidade e espaço público, os quais, articulados entre si, permitem a formação de um conceito de cidadania baseado na real participação dos cidadãos na organização política de uma comunidade, em contrapartida a um conceito meramente formal de cidadania. Para, finalmente, abordar o sistema de conselho, instância em que a cidadania é compreendida como ação vivenciada no espaço público, favorecendo, assim, a possibilidade de efetivação dos direitos humanos, exercidos como dignidade política dos cidadãos. Palavras-chave: ação; cidadania; direitos humanos; espaço público; liberdade Abstract: This article aims at addressing the issue of human rights and citizenship from the perspective of Hannah Arendt’s political philosophy. Firstly, the article explores the human rights foundational illusion upon the situation of stateless persons and refugees, a situation which leads the author to formulate the concept of citizenship as the right to have rights. Further, it analyses the elements of her political theory, such as: freedom, action, diversity and public space, which, interconnected to each other, allows the creation of a concept of citizenship based on real participation of the citizens in the political organization of a community, in contrast to a merely formal concept of citizenship. Finally, it addresses the system council where citizenship is understood as action experienced in public space, thus favoring the possibility of realization of human rights, exercised as the political dignity of citizens. Keywords: action; citizenship; freedom; human rights; public space
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Mestranda em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: iaramellegari@uol.com.br ** Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: cauramos@uol.com.br [Artigo recebido em 11.01.2011, aprovado em 01.05.2011]
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 149-178
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Hannah Arendt, diante da ocorrência do fenômeno totalitário e da situação vivenciada pelos apátridas e refugiados – pessoas destituídas de cidadania e, por isso, desprovidas de direitos humanos – questiona a validade fundacional de tais direitos, os quais foram erigidos sob a égide de conceitos filosóficos abstratos e universais. Calcados na ideia da natureza humana e considerados como verdade evidente para servir de parâmetro para avaliar o estatuto ético-político da comunidade política – mas da qual independem, uma vez que foram concebidos como pré-políticos – os direitos humanos não foram suficientes para socorrer o homem ante a crise do Estado-nação e as políticas totalitárias. Os direitos humanos, universalmente consagrados e juridicamente positivados nas Declarações, não se mostraram eficazes na proteção de homens necessitados de seu amparo jurídico político, evidenciando toda a sua fragilidade diante de seu primeiro grande embate fático – a situação dos apátridas que ficaram à mercê da sorte e da violência. A partir desta constatação histórica, Arendt vai pensar a natureza política de tais direitos e a possibilidade de sua efetivação em outras bases. Diante da situação inusitada experimentada pelas minorias étnicas, refugiados e desnaturalizados, aqueles que restaram sem pátria – os apátridas – e, por isso, sem direitos, Arendt vai questionar as teorias jusnaturalista e positivista, ao observar que os seus fundamentos filosóficos e jurídicos, tais como, os direitos naturais, o universalismo e o positivismo jurídico não foram suficientes para garantir de forma eficaz os direitos humanos, conforme previstos nas Declarações de Direitos, frustrando as promessas modernas de emancipação e felicidade de homem. Mister se faz, pois, de início esclarecer que o tratamento do tema dos direitos humanos nessa autora requer especial atenção, uma vez que ela não os tematiza a partir das teorias filosóficas clássicas, pautadas na busca de uma fundamentação para os mesmos que, em última análise, reduz-se à triangulação ético, moral e jurídica, como habitualmente ocorre quando o assunto é direitos humanos. Ao contrário, Arendt vê a possibilidade de efetivação dos mesmos sob a perspectiva da teoria política, e cuja motivação histórica decorre de suas observações da situação precária vivenciada pelos apátridas e refugiados e, certamente, também da influência de sua própria experiência pessoal como refugiada:
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a de quem perdeu o lar e, com ele, a familiaridade da vida cotidiana, perdeu a profissão e, dessa maneira, a segurança de ter alguma utilidade no mundo, perdeu o uso da língua materna e, com essa privação, a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos e a expressão espontânea dos sentimentos (Arendt, 1978 p. 55-56).
Tampouco, os direitos humanos são entendidos como discurso ideológico, usados como meio de legitimação de políticas menos comprometidas com a participação popular. Eles são vistos como exigência e proteção da cidadania, único meio de preservar o respeito aos direitos e a dignidade política do cidadão. Assim, o conceito de cidadania em Arendt assume papel fundamental, pois é a partir dele que a autora pretende uma possível forma de efetivação dos direitos humanos. Tal perspectiva está longe da busca de um fundamento absoluto para os mesmos. Por conseguinte, é desse contexto fático histórico político que irradiará a reflexão que permeará toda sua obra, o qual, associado aos conceitos de liberdade, ação, pluralidade e espaço público – elementos de sua teoria política que se articulam e permitem a elaboração de um conceito de cidadania participativa – é possível garantir o respeito aos direitos humanos como dignidade política dos cidadãos. I Na perspectiva de Arendt, a crise dos direitos humanos esteve diretamente relacionada à crise do Estado-nação. Sedimentada sobre a nacionalidade, a cidadania e os respectivos direitos humanos não alcançavam aquelas pessoas desprovidas de uma nacionalidade. 2 Nesse contexto, o mais desolador, pelas nefastas consequências que adviriam tais
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O nacionalismo serviu como princípio para a formação de uma identidade coletiva que constituiu a base político ideológica da integração e unificação dos agrupamentos humanos. Os ideais de autodeterminação nacional provocaram as Revoluções Americana e Francesa, a unificação de alguns povos europeus e a formação de novos Estados no século XIX, de tal forma que o artigo terceiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, por exemplo, proclama que o princípio de toda soberania reside essencialmente na nação (grifo nosso). O Estado-nação e o nacionalismo forneceram, assim, a base para a estruturação da cidadania moderna – fundada na igualdade cívica – e partir dela se originaram os direitos humanos. A antiga igualdade cristã de todos os homens perante Deus podia ser agora ampliada para a igualdade diante do Estado e da sociedade.
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como a desnacionalização, a perda de asilo e a perda total dos direitos, era que a população nacionalmente frustrada estava firmemente convencida – como aliás, todo o mundo – de que a verdadeira liberdade, a verdadeira emancipação e a verdadeira soberania popular só poderiam ser alcançadas através da completa emancipação nacional, e que os povos privados do seu próprio governo nacional ficariam sem a possibilidade de usufruir dos direitos humanos (Arendt, 2006, p. 306). Os direitos do homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inexequíveis – mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles – sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãs de algum Estado soberano. A esse fato, por si já suficientemente desconcertante, deve acrescentar-se a confusão criada pelas numerosas tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no sentido de defini-los com alguma convicção, em contraste com os direitos do cidadão, claramente delineados (Arendt, 2006, p. 327).
Os direitos do homem que haviam sido proclamados como “inalienáveis”, porque se supunha serem independentes de todos os governos, não se efetivaram, pois, na medida em que deixavam de ter um governo próprio, os seres humanos restavam sem nenhuma autoridade para protegê-los e sem nenhuma instituição disposta a garanti-los. Os direitos “inalienáveis” já nasceram com o paradoxo contido na sua declaração, isto é, se referiam ao ser humano abstrato que não existia em parte alguma, enquanto os homens concretos permaneciam sem proteção e entregues a todo tipo de arbitrariedade. Os direitos do homem, solenemente proclamados pelas Revoluções Francesa e Americana, como fundamento para as sociedades civilizadas, jamais haviam constituído questões práticas em política. Foram tratados de forma marginal pelo pensamento político da primeira metade do século XX por que se supunham independentes da cidadania e da nacionalidade. A própria expressão “direitos humanos”, naquele contexto de apátridas e refugiados, “tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia” (Arendt, 2006, p. 302). Com efeito, na medida em que a cidadania só existia de fato quando vinculada a uma nacionalidade, os direitos humanos atrelados ao conceito de cidadania tornaram-se inexequíveis na realidade do Estadonação. Uma vez retirada a nacionalidade, a cidadania não podia ser
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exercida, ocasionando, assim, o colapso da ideia universalista de direitos humanos. Em consequência, a negação do direito à cidadania resultou na negação do direito a ter direitos, e homens nessa situação são simplesmente homens em sua condição natural, em estado de natureza; e, nesse sentido, apenas animais humanos, podendo ser facilmente descartados. Não havia mais nenhum país no qual pudessem ser assimilados, nenhum lugar onde pudessem formar uma nova comunidade e, o mais inusitado, não por falta de espaço, mas por falta de vontade política (Arendt, 2006, p. 327). Ninguém atentou para o fato de que a humanidade, “concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas, via-se expulsa de toda família de nações” (idem). Os sem cidadania, saliente-se, além de serem muitos, não eram perseguidos por algo que tivessem feito ou pensado, “e sim em virtude daquilo que imutavelmente eram – nascidos na raça errada (como os judeus na Alemanha), ou na classe errada (como os aristocratas na Rússia)” (Arendt, 2006, p. 328). Em outros termos, os homens não eram julgados por suas ações boas ou más, legais ou ilegais, mas por suas características étnicas. A culpa era definida, nos regimes totalitários, “não a partir de sua conduta no mundo, mas a partir de sua certidão de nascimento, tomada como justificativa suficiente para a perseguição, internação e assassinato” (Duarte, 2000, p. 46). Tal prática resultou na destruição do nexo jurídico entre ação e consequência, bem como na impossibilidade de distinguir entre culpados e inocentes, visto que ambos possuíam o mesmo destino. A calamidade dos que não têm direito decorre do fato de que já não pertencem a qualquer comunidade, de não existirem mais leis para eles, não possuíam direitos, sendo desprovidos de proteção pelos governos, uma vez que nasceram na raça errada ou vinculados pelo governo errado. Sem a condição legal da cidadania, nos moldes em que ela fora concebida pela comunidade das nações, o homem não era reconhecido como um ser humano digno de direitos; e, como tal, não pertencia a nenhuma comunidade política – não era ninguém. Criou-se uma condição de completa privação de direitos humanos antes mesmo que o direito à vida fosse ameaçado. A negatividade dos direitos pela ausência de lei para os “sem lugar” deu-se inicialmente pela privação total dos direitos, depois
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pela ameaça à vida e, por fim, o internamento no campo (Arendt, 2006, p. 321). Por essa razão, para a autora, o fundamento da possibilidade de qualquer direito é o direito de pertencer a uma comunidade política. Porque só assim, o cidadão pode assegurar todos os chamados direitos do homem sem perder a sua qualidade essencial de homem. Apenas a perda da própria comunidade, isto é, de um “lugar no mundo que torne as opiniões significativas e as ações eficazes” é que o expulsa da humanidade, a despeito de ser objeto do amparo abstrato e universalista dos direitos do homem. O grande perigo que advém de pessoas forçadas a viver fora do mundo comum é que são devolvidas, em plena civilização, à sua elementaridade natural, à sua mera diferenciação. Falta-lhes aquela tremenda equalização de diferenças que advém do fato de serem cidadãos de alguma comunidade, e no entanto, como já não se lhes permite participar do artifício humano, passam a pertencer à raça humana da mesma forma como os animais pertencem a uma dada espécie de animais (Arendt, 2006, p. 335).
O que Arendt mostrou com profunda sagacidade é que não bastava ser humano para possuir direitos, pois nessa condição os homens podiam não ser reclamados, não serem percebidos, por isso insistiam em suas nacionalidades, o último vestígio da sua antiga cidadania, como derradeiro laço remanescente e reconhecido que os ligaria à humanidade. A desconfiança em relação aos direitos naturais e a preferência pelos direitos nacionais advêm precisamente da compreensão de que os direitos naturais são concebidos até pelos selvagens. Somente os direitos e a proteção que a nacionalidade outorgava parecia atestarem o fato de que ainda pertenciam ao mundo civilizado. Sua crítica baseia-se no fato de que a concepção tradicional tomada na proclamação dos direitos humanos tomou como base o homem em seu estado de natureza singular, não considerando que tais direitos dependeriam da “pluralidade humana” sob a suposição de que eles permaneceriam válidos mesmo que o homem fosse expulso da comunidade humana. O que ficou evidenciado, no caso dos apátridas e dos reclusos nos campos de concentração, foi que a natureza humana não pode ser o fundamento de qualquer direito ou política. Ao contrário, deixam-no à mercê da própria sorte, da caridade e não sob a tutela do direito. Nessa situação, o homem não passa de um simples
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animal vivente podendo ser facilmente dominado, como ocorreu no caso dos sem pátria confinados nos campos de concentração. Algo mais fundamental do que a liberdade e a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença a uma comunidade em que nasceu, e quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime, receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados de seus direitos humanos. São privados não de seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes) bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer (Arendt, 2006, p. 330).
O resultado de sua reflexão iluminou de maneira solar que o homem privado de cidadania e, por essa via, de sua nacionalidade, vínculo que lhe assegura pertencer a uma comunidade humana, a uma nação, resta sem o amparo dos direitos humanos, uma vez que ele sequer conquistou ainda o direito a ter direitos. Estes direitos, não obstante à declaração de universalidade, não operaram a seu favor, pois se referiam ao homem cidadão pertencente a um povo, e quando ele como indivíduo isolado encontrou-se fora de uma sociedade politicamente organizada, não havia direitos para ele, sendo facilmente descartado. Nesse contexto social e histórico, Arendt critica o jusnaturalismo e apresenta seus limites. A concepção jusnaturalista, na tentativa de buscar uma fundamentação dos direitos humanos na natureza universal do homem, sofre um grande abalo quando posta em confronto com a situação fática de indivíduos que não possuíam um vínculo com um Estado na condição de cidadãos que os mantivesse ligados a uma nação da qual pudessem receber proteção jurídica e política. Os direitos inalienáveis do homem de nada serviram, uma vez que os direitos universalmente contemplados na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto falavam do homem, a rigor, omitiam a condição preliminar da cidadania. O termo “direitos do homem” enfatizava o caráter de universalidade pautado na crença da razão humana3, enquanto, o termo 3
As Declarações modernas de direito, seguindo a dimensão universalista e abstrata, elegeram os direitos do homem sob as premissas de liberdade e igualdade de todos, uma
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“direitos do cidadão” enfatizava o caráter de particularidade. De uma parte intentava elevar o homem a uma esfera transcendental, acima da comunidade; e de outra, a transformação da titularidade da soberania que saíra das mãos do monarca para as mãos do povo (cidadãos), mas a prendia à particularidade da nacionalidade, a via que de fato garantiria a efetivação da tutela jurídica. No jusnaturalismo, que inspirou o constitucionalismo, os direitos do homem eram vistos como direitos inatos e considerados como verdade evidente, por isso, dispensavam a persuasão e o argumento. A transcendência era sua característica, pois estavam acima de qualquer dúvida. Seriam, na tradição do pensamento que remonta a Platão, uma medida de conduta humana que transcende a polis, da mesma maneira como “um metro transcende todas as coisas cujo comprimento pode medir, estando além e fora destas” (Arendt, 2007, p. 149). Nesse sentido, ao analisar as relações entre verdade e política, Arendt observa que Jefferson, quando redigiu a Declaração de Independência dos EUA, insistiu na existência de verdades evidentes, pois almejava que o consenso básico da Revolução estivesse acima da disputa objeto de discussão. Entretanto, ao sustentar que tais verdades eram evidentes por si mesmas, mostra que, para o próprio Jefferson, os direitos inalienáveis, baseados no pressuposto de que todos os homens são criados iguais, não eram evidências nem consistiam em um absoluto transcendente. Representavam, sim, uma conquista histórica e política – uma invenção – que exigia o acordo e o consenso entre os homens que estavam organizando uma comunidade política. Jefferson declara que certas ‘verdades são evidentes por si mesmas’, pois desejava colocar o consenso básico entre os homens da Revolução acima de discussão e de argumentação; como axiomas matemáticos, elas deveriam expressar ‘crenças humanas’ que ‘não dependessem, de seu próprio arbítrio, mas guiassem involuntariamente a evidência proposta à sua mente.’ Ao dizer, porém, ‘Sustentamos que essas verdades são evidentes por si mesmas’, ele admitia, embora talvez sem ter consciência disso, que a asserção ‘Todos os homens são vez que os homens nascem livres e iguais e, por isso, devem ser respeitados em sua integridade física e política. Esses direitos concebidos pelos jusnaturalistas clássicos, como Hobbes, Rousseau, Grócio e, sobretudo, Locke, estavam ancorados na natureza do homem e, portanto, poderiam ser embasados em argumentos cogentes, universalmente válidos e irrecusáveis para qualquer ser de razão.
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criados iguais’ não é evidente por si mesma, mas exige acordo e consentimento – essa igualdade, para ser politicamente relevante, é questão de opinião, e não ‘a verdade’ (Arendt, 2007, p. 149).
A teoria jusnaturalista se baseia num conceito contemplativo e universalmente abstrato do bem e do dever, numa visão metafísica e atemporal de humanidade. “O homem, nessa visão, é uma ideia eterna e imutável que não se encontra em lugar algum. Essa ideia de Bem e Humanidade foi pensada para dar suporte à ordem, ao todo, à sociedade e ao Estado” (Aguiar, 2001, p. 272). O direito, contudo, deve ser construído no “artifício humano”, nem exclusivamente sobre a natureza humana do homem, tampouco sobre o formalismo vazio do positivismo legal, mas sobre a condição política do homem como cidadão que se dá entre iguais no espaço público. A nudez abstrata do ser humano não constitui um substituto para o caráter artificial de todo o ordenamento legal consentido por homens que o criam e o respeitam. O direito, tal qual a política, está relacionado e atua diretamente na construção do mundo comum, aquele vivido por uma pluralidade de homens envolvidos e preocupados com a edificação de uma comunidade política que se opõe ao reino da natureza, onde se pressupõe que tudo é “dado” pelo nascimento. A igualdade de todos, para a autora, não é algo dado ao ser humano ao nascer, ideal consubstanciado na afirmação abstrata de que “todos os homens nascem livres e iguais.” Ela é obtida por meio da organização política dos homens. A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais: tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais (Arendt, 2006, p. 335).
A política bem como o direito baseia-se na suposição de que o homem pode produzir igualdade através da organização, por que ele pode agir sobre o mundo comum e mudá-lo e, assim, construir a vida política juntamente com os iguais. Nesses termos, avalia a autora, não é verdade a declaração de que todos os homens nascem livres e iguais em direitos, como propôs a Declaração de 1789, e posteriormente confirmada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, de 1948. A
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igualdade não é dada, mas sim construída pela organização humana. O direito à igualdade não resulta, portanto, de uma essência presente em todos os homens decorrente da natureza humana e, por isso, anterior e externo à comunidade política como apregoado pela tese fundacional do jusnaturalismo. Mas, tampouco resulta do positivismo jurídico que formalmente a estabelece, tendo por base também o pressuposto jurídico, não menos abstrato, da igualdade, e, nesse sentido, positivismo é herdeiro da tradição jusnaturalista. O positivismo contenta-se com a validade formal das normas jurídicas, quando todo o problema situa-se numa esfera mais profunda, correspondente ao valor ético do direito em cada comunidade em particular. Valor passível de eleição através da cidadania como ação política livre que pode vir, pelo consenso, instaurar direitos e deveres que possam ser efetivamente respeitados e obedecidos, uma vez que emanados do enraizamento comunitário do estatuto da cidadania. O direito, que sempre se caracterizou como um qualificador de conduta ligado ao senso de justiça, passa a ser definido pelo que determina a lei: só é direito o que nela está prescrito, oscilando segundo a sua vigência, e, ocasionalmente, pelos ditames do justo. De modo que o direito sob o aspecto da positividade torna-se comando, controle e não mais qualificador de condutas, uma vez que reduz seu conteúdo ao que foi estipulado pela norma jurídica. Se o jusnaturalismo permite manter uma ideia dos direitos humanos, ainda que sujeita a contradições e equívocos, o positivismo jurídico no seu limite supõe sua inutilidade, pois, levado ao extremo pode conduzir ao totalitarismo, já que o soberano pode fixar através da lei o que é o direito, o que equivale a dizer o que é justo ou injusto, o que deve ou não ser feito (Martinez, 1999, p. 57). O problema da teoria positivista, como as experiências totalitárias do século XX cruamente demonstraram, é a sua incapacidade, em razão de sua formal recusa, de encontrar um fundamento ou razão justificativa para o direito e de, ao defini-lo somente pela lei, recair em mera tautologia: é justo o que é legal, é legal o que é justo. Trata-se, como observou Bobbio, “dos possíveis horrores do positivismo jurídico, ou seja, dele comportar a reductio ad Hitlerum, e também a redução a Stalin” (Bobbio, 1995, p. 225) quando se
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transforma em uma ideologia mediante a visão extremista que afirma o valor absoluto de obediência à lei enquanto tal. Aí se põe uma questão importante do fundamento dos direitos humanos, pois sua validade deve assentar-se em algo mais profundo e permanente que a ordenação estatal, ainda que esta se baseie numa constituição formalmente promulgada. A ausência de uma razão justificativa baseada nas experiências humanas pode conduzir a um regime de terror por autoridades estatais investidas segundo as regras constitucionais vigentes, que exercem seus poderes dentro da esfera formal de sua competência, mas que não encontram outra razão de justificativa ética, senão a sua própria subsistência. Isto significa que, a rigor, a afirmação dos direitos humanos é incompatível com uma concepção puramente positivista do direito. Não resta dúvida que os direitos do homem inscritos nas Declarações representavam um anseio muito compreensivo de proteção e que, por isso, a positivação das declarações nas constituições que se iniciavam no século XVIII tinha como objetivo conferir aos direitos nelas contemplados uma dimensão permanente e segura. Essa dimensão seria o dado da estabilidade, que serviria de contraste e tornava aceitável a variabilidade, no tempo e no espaço, do direito positivo que depende da vontade do legislador em contextos particulares e diversos. Contudo, sabese que o processo de positivação das declarações de direitos não desempenhou esta função estabilizadora, pois desde o século XVIII até nossos dias, o elenco dos direitos do homem contemplados nas constituições e nos instrumentos internacionais foi se alterando com as mudanças sociais e históricas. A crítica, no entanto, não tem como objetivo destruir essa ou aquela teoria sobre os fundamentos dos direitos humanos, cujos argumentos resultaram na concepção de cidadania presente até nossos dias. Tampouco, pretende ignorar os benefícios que as leis positivadas asseguram aos direitos humanos. Até porque Arendt concorda que não se pode prescindir da ideia liberal de obediência à lei e da importância de normas de conduta e para a convivência civilizada entre os homens. O enfoque arendtiano desloca-se para a necessidade de correção tanto dos excessos de um racionalismo abstrato (jusnaturalismo), quanto aos de um positivismo puro, os quais tornam a cidadania impermeável à sua
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necessária capacidade concreta de ação. O que ela vai propor, portanto, é um conceito radical de cidadania, por meio do qual efetivamente ocorra a participação dos cidadãos na construção da dimensão política dos direitos humanos. II A partir da cidadania como prerrogativa política do direito a ter direitos, Arendt, além de ter demonstrado a necessidade de um vínculo político jurídico com uma comunidade (Estado), vai criticar a concepção jurídica de cidadania como mera intitulação de direitos, na medida em que essa concepção evidenciou ser incapaz de proporcionar a real participação dos cidadãos na esfera pública. A ideia arendtiana de cidadania é eminentemente política, pois assenta-se na capacidade de agir e de participação do indivíduo na vida pública, e não na mera prerrogativa de ser sujeitos de direitos formalmente estatuídos, indo além da sua mera proteção jurídica. Em outras palavras, a cidadania, ou o direito a ter direitos só é possível no âmbito do espaço público motivado pela ação como atividade própria do viver político de homens que se realizam como cidadãos, isto é, como agentes políticos. Somente a liberdade de agir que traz a possibilidade do novo vir ao mundo num espaço público, único espaço destinado aos feitos humanos, permite a construção e organização de uma comunidade capaz de garantir a efetivação dos direitos. É nesse espaço mediante a ação política que os homens podem construir o direito que regula a vida em sociedade e que, por isso, precisa ser respeitado. Em Arendt, política, cidadania e direito são conceitos afins e retratam, cada um a seu modo, formas de realização da liberdade. Por isso, a ideia de liberdade assume papel fundamental na teoria política, revestindo-se de uma importância ímpar, razão pela qual, Arendt afirma, de modo enfático, que “a raison d’être da política é a liberdade e seu domínio de experiência é a ação” (Arendt, 1979, p. 192). A filósofa propõe um específico conceito de liberdade que não se enquadra nem na concepção negativa de liberdade, entendida como ausência de impedimento para que alguém faça ou deixe de fazer o que bem lhe aprouver – concepção defendida pela corrente liberal –; e nem se coaduna plenamente com o sentido positivo de liberdade na pressuposição da total autonomia da vontade e independência do indivíduo. Tais concepções, ainda que aparentemente diversas, carregam em seu bojo a
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liberdade como fenômeno adstrito à vontade do indivíduo, seja em relação à sua autonomia, como liberdade interior, seja como proteção de direitos subjetivos, contexto em que a liberdade aparece como um direito individual natural, devendo receber do Estado garantia e proteção da liberdade de escolha de interferências indevidas.4 Para Arendt, a liberdade é um fenômeno que vai além da sua mera manifestação volitiva – como fenômeno da vontade ou como direito subjetivo que requer a proteção jurídica da livre escolha. A noção política de liberdade em Arendt opõe-se, pois, à chamada liberdade interior: “o espaço íntimo no qual os homens podem fugir à coerção externa e sentir-se livres. Esse sentir interior permanece sem manifestações externas e é, portanto, por definição, sem significação política” (Arendt, 1979, p. 192). Antes mesmo que liberdade se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade ela era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a afastar-se de casa, a sair para o mundo e a encontrar-se com outras pessoas em palavras e ações. Se a liberdade pôde tornar-se a fonte de inúmeras perplexidades teóricas, isto se deve ao fato de que: a tradição filosófica, [...] distorceu, em vez de esclarecer, a própria ideia de liberdade, tal como ela é dada na experiência humana, ao transpô-la de seu campo original, o âmbito da política e dos problemas humanos em geral, para um domínio interno, a vontade, onde ela seria aberta à auto inspeção (Arendt, 1979, p. 191).
A liberdade é um fenômeno eminentemente político, pois ela ocorre na ação livre entre os indivíduos, isto é, na associação de uns com os outros que fundam um espaço onde ela possa aparecer e se manifestar-se. Ela é um acontecimento mundano, diz respeito às relações entre os 4
Estas duas concepções de liberdade foram estabelecidas por I. Berlin no seu ensaio Dois conceitos de liberdade. No sentido negativo, a liberdade é compreendida como ausência de impedimentos, barreiras ou restrições externas para que alguém possa fazer ou deixar de fazer aquilo que tem desejo de fazer. A concepção positiva de liberdade, inspirada em teóricos como Rousseau, Kant e outros, opera com a ideia de autonomia da vontade e de independência do sujeito como condição básica para a realização do ser humano na autodeterminação de suas ações. Nesse sentido, a liberdade decorre de um desejo do indivíduo de ser seu próprio senhor – inclusive no campo da política – em termos de uma vontade fundamentada na autonomia.
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homens num espaço público entre “iguais”, e não um problema metafísico. Tanto é assim que o conceito de liberdade não desempenhou nenhum papel na filosofia grega. “Não há preocupação com a liberdade em toda a história da grande Filosofia, desde os Pré-socráticos até Plotino, o último filósofo da Antiguidade” (Arendt, 1979, p. 191). Foi com o aparecimento da experiência da conversão religiosa, primeiramente com o apóstolo Paulo e depois com Santo Agostinho, que o conceito de liberdade pôde penetrar na história da filosofia. Quando os cristãos primitivos, sobretudo Paulo, descobriram uma espécie de liberdade que não tinha relação com a política, isto é, com o mundo exterior, é que ela tornou-se assunto metafísico. [...] o aparecimento do problema da liberdade na filosofia de Agostinho foi, assim, precedido da tentativa consciente de divorciar da política a noção de liberdade, de chegar a uma formulação através da qual fosse possível ser escravo no mundo e ainda assim ser livre (Arendt, 1979, p. 193).
Tanto na antiguidade grega quanto na romana, a liberdade era um conceito exclusivamente político, na verdade, a quintessência da cidadeestado e da cidadania, enquanto a tradição filosófica do pensamento político posterior desenvolveu-se em oposição à polis, uma vez que o modo de vida filosófico era visto em oposição ao bíos politikós. A liberdade e, por conseguinte, a própria ideia central da política como a entendiam os gregos, era algo que dificilmente podia ser objeto de especulação como fenômeno da vontade, pois pertencia à polis. [...] a polis e a res publica eram os espaços em que a liberdade, a igualdade e a ação podiam ser exercidas, assegurando a existência de um palco estável capaz de sobreviver à fugacidade dos atos e palavras humanos memoráveis, preservando-os e transmitindo-os às gerações futuras (Duarte, 2000, p. 213).
A liberdade política de que nos fala Hannah Arendt é, deste modo, espacial e relacional, na medida em que necessita do espaço público para o aparecimento das singularidades, e, também, da presença de outros homens que dê sentido à aparência, no viver conjunto de cidadãos livres. A razão de existir da polis era a preservação de um espaço público onde os homens podiam relacionar-se pela ação e pelo discurso do “ser vivo dotado de fala.” A vida política grega está fundada na crença de que somente o
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que aparece e é visto possui plena realidade e sentido autêntico para o homem. Se entendemos então o político no sentido da polis, sua finalidade ou raison d’être seria estabelecer e manter em existência um espaço em que a liberdade, enquanto virtuosismo, pudesse aparecer. É este o âmbito em que a liberdade constitui uma realidade concreta, tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que são comentados, relembrados e transformados em estórias antes de se incorporarem por fim ao grande livro da história humana (Arendt, 1979, p. 201).
Os impérios bárbaros ou qualquer forma de governo baseada numa relação vertical de mando e obediência não são políticos stricto sensu, pois lhes falta a condição de liberdade de ação entre iguais. Se a razão de ser da política é a liberdade, é porque nela e por ela manifesta-se a expressão da ação livre no plano da igualdade real, construída, e não da igualdade genérica que pressupõe, abstratamente, que todos os homens em geral são livres e iguais. A isonomia vivida na polis não trazia a priori a conotação de igualdade universal de todos os homens perante a lei, tal como a concebemos hoje, mas sim que todos os cidadãos gregos tinham “o mesmo direito à atividade política.” Podiam livremente conversar uns com os outros sem que esse discurso se traduzisse em comando pelos que falavam e obediência por parte dos que ouviam. A isonomia, para Arendt “não significa igualdade de condição, mas a condição que torna os homens iguais” (Kateb, 1984, p. 15). Mas, o mais significativo nessa relação era o fato de que a isonomia, mediante o seu significado político, instaurava uma igualdade artificial entre homens desiguais por natureza. Daí que a igualdade era um atributo da polis, e não uma qualidade natural dos homens, isenta de toda forma de desigualdade e coerção. A igualdade, longe de ser relacionada com a justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade; ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não existiam governos nem governados (Arendt, 2008, p. 42).
Segundo a autora, a liberdade dos modernos em seu sentido positivo original de fundação do espaço público para o exercício da política se emasculou. Se nas experiências políticas da antiguidade,
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liberdade e política são conceitos que se identificam, nos modernos a liberdade recua para o interior da consciência e se afasta da política. Com efeito, o homem moderno não somente separou liberdade da política como trouxe a liberdade para dentro de si, na linha da autonomia da vontade. A concepção dos modernos, em oposição aos antigos, separa a liberdade da política não somente porque a remete ao âmbito da filosofia, mas porque a concebe sob o prisma da liberdade individual, para agir de acordo com seus interesses pessoais: quer sob o aspecto negativo de liberdade como não impedimento, quer sob seu aspecto positivo ligado à autonomia da vontade. Desse modo, a liberdade transcorre fora do relacionamento entre os homens e, acompanhada do crescente individualismo – em oposição à aptidão pública exercida na comunicação intersubjetiva – intensifica a concepção de liberdade como algo que se refugia no interior da consciência do indivíduo, assumindo, assim, contornos especificamente subjetivos de uma faculdade natural e privada inerente a todo homem: a vontade. “A liberdade é transportada para o interior da consciência, resultado dessa autonomia do sujeito pensante onde ninguém interfere a não ser o próprio produtor, o homem está diante de si mesmo” (Arendt, 2008, p. 293). Reclusa à dimensão da subjetividade moderna, ela perde importância como fenômeno político, adquirindo o estatuto cada vez mais significativo de um direito natural, sob a tutela de um bem jurídico que oblitera a sua experiência política como ação intersubjetiva. Esta não ocorre mais no campo político do espaço público, mas se desloca para a esfera privada de indivíduos atomizados e que postulam a liberdade para o exercício de suas iniciativas particulares. A partir desse fechamento subjetivo da ação política em torno da proteção jurídica da liberdade como direito individual, a cidadania moderna se configurará mais na proteção das liberdades individuais, resultando em desinteresse pelo bem comum. De fato, a cidadania moderna, resultado de lutas contra o Antigo Regime, inspirada nos ideais de liberdade e igualdade de todos perante a lei, e impulsionada pelas ideias de liberdade e autonomia do indivíduo, se traduzirá numa cidadania de cunho formal, representada pela conquista de direitos individuais e subjetivos e não na capacidade de participação real na vida política objetivando um bem comum.
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No seu significado liberal,5 a cidadania passa a ser entendida como postulação de direitos se esvazia: somente os bens eleitos de forma individual e segundo a defesa de direitos e interesses subjetivos serão o foco das ações dos cidadãos sem nenhum atrelamento a qualquer virtude cívica a ser alcançada. Circunscrita a esses direitos, a função precípua da cidadania passa a ser a defesa da Constituição, cujo escopo específico é a proteção e a garantia de tais direitos. A cidadania assim entendida é considerada passiva, uma vez que o seu estatuto conceitual não está vinculado a nenhuma forma de participação política como bem constitutivo, já que ela representa apenas a garantia de que os direitos individuais não serão violados ou ameaçados por outros indivíduos e, sobretudo, pelo poder Estatal. Mas, segundo Arendt, esse ponto de vista liberal, ainda que necessário e irrenunciável, é limitado e altamente desestimulante à ação política, sem a qual, a efetiva defesa dos direitos individuais, sobretudo, a liberdade corre o risco de soçobrar diante de práticas visivelmente autoritárias ou aparentemente democráticas. O homem moderno quer estar livre da política para bem exercer sua liberdade na busca dos próprios interesses. Esse ideal, corroborado pela expressão liberal corriqueira de que “quanto menos política mais liberdade,” exige tão-somente a proteção das liberdades individuais representadas pelos direitos subjetivos. Em outros termos, a política passa a ser um instrumento para assegurar a liberdade da própria política, na medida em esta que deve abster-se de interferir no âmbito das atividades privadas dos indivíduos e, ao mesmo tempo, garantir a efetiva segurança dos direitos individuais, os quais, paradoxalmente, necessitam da ação pública estatal (jurídica) para sua proteção. Por isso, Arendt critica a doutrina política do liberalismo, visto que esta pensa as relações entre política e liberdade de maneira negativa, a partir da concepção de que quanto menor for o espaço destinado à política, tanto maior será o espaço da liberdade.
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O ponto central das ideias liberais – para além das diferenças teóricas que se apresentaram no curso da história, de Locke a Rawls, – é representado pelos princípios que estabelecem a limitação do Estado, a soberania do povo (exercida por intermédio de representantes), a valorização do indivíduo e suas liberdades e a neutralidade do Estado relativamente às condições e opiniões em matéria de religião e de moral.
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Para a filósofa, a política, enquanto espaço privilegiado para a manifestação da liberdade e, consequentemente, de realização da cidadania se traduz pela categoria, por ela denominada, da ação.6 Trata-se de uma categoria eminentemente política, na medida em que traduz a presença da liberdade não como fenômeno circunscrito ao domínio interno da vontade, ao pensamento, enfim, “ao diálogo comigo mesmo,” mas como a capacidade de começar sempre algo novo no espaço público da pluralidade em constante presença e dialógica com os outros. A ação só é possível num ambiente de liberdade onde ela possa aparecer e se manifestar, pois somente neste espaço pode haver ação humana livre como realização de algo novo. “Os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa” (Arendt, 1979, p. 199). Através da analogia do agir humano no sentido aristotélico da práxis, Arendt revela sua concepção de ação política livre de um fim ou uma meta específica. Isto é, a ação é livre em si mesma, seu sentido encontra-se em seu próprio exercício e não nos motivos que a orientam: “para que seja livre, a ação deve ser livre, por um lado, de motivos e, por outro, do fim intencionado como efeito previsível” (Arendt, 1979, p. 198). Para a filósofa, a esfera pública é autônoma, não está adstrita a uma finalidade específica de algum bem antecipadamente previsto, como a boa organização. A rigor, do ponto de vista político, esta não precede a ação, mas é seu produto, vale dizer, é no agir que se obtém o resultado, pois, a ação não é a consequência de uma causa determinada previamente. 6
Segundo Arendt a condição humana se circunscreve no âmbito do labor, trabalho e ação. Para a atividade do labor a autora utiliza a expressão animal laborans que designa o homem em cuja atividade não requer a presença de outros, é feita em completa solidão e nesse sentido não seria propriamente humana, e sim uma atividade compartilhada pelo animal humano. O labor é atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano e tem a ver com as necessidades vitais de manutenção da vida. Por exemplo, a produção de alimento. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, ele produz coisas, nitidamente diferente do ambiente natural e, embora, se destine a sobreviver e a transcender todas as atividades humanas, a condição humana do trabalho é a mundanidade. Exemplo de trabalho é a fabricação de coisas, mesa, casa, etc. A ação é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação de coisas ou matéria. É a condição humana da pluralidade, uma vez que homens, no plural, habitam a terra (Arendt, 2008, p.15).
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O que não significa que motivos e objetivos não sejam fatores importantes na ação política, mas sim que eles não são seus fatores determinantes, de modo que a ação é livre na medida em que pode transcendê-los. Arendt não nega o fato, por si só evidente, de que as ações possuem seus próprios objetivos, vale dizer, linhas e diretrizes em relação às quais nos orientamos de forma estratégica. Ocorre que, distintamente de um fim, que pode ser justificado antecipadamente pela própria previsão dos resultados, os objetivos das ações não são determinados enquanto tais, pois podem mudar constantemente no seu aperfeiçoamento concreto, pelo fato de que eles são negociados com outros que têm objetivos diversos. Do contrário, a ação se descaracteriza, deixa de ser livre e perde a capacidade de inovação, isto é, passa a ter caráter exclusivamente instrumental, na medida em que articula meios para alcançar fins previsíveis de acordo com um jogo de poder e barganha dos contendores. Visando apresentar o significado (político) da ação, Arendt defende a participação política livre como elemento constituinte de qualquer comunidade política e democrática. Nenhum critério superior, por mais técnico que possa ser, pode substituir ao agir (e a liberdade) do cidadão, razão pela qual o significado da ação política repousa na noção de pluralidade. Mediante esse conceito é possível contrapor-se à posição contemplativa e passiva de cidadania, estimulando a necessidade de se considerar a diversidade dos cidadãos, dos seus interesses e perspectivas na constituição da comunidade política. A ideia de pluralidade remete para uma dimensão em que é possível conjugar a diferenciação e igualdade no espaço comum de uma cidadania não abstrata. Em razão do pluralismo surgem relações políticas, promessas e pactos que demandam a necessidade da esfera pública, pois, quando não existe diferença o espaço público torna-se supérfluo. Arendt, ao rejeitar as concepções essencialistas da política, e ao destacar a pluralidade na sua concepção do político, abre espaço para que se compreenda a política não está dissociada do dissenso. Em outros termos, o comum não é uma propriedade social homogênea que prescinde da presença do outro, mas o mundo forjado pela diversidade da ação da palavra. O elemento, mediante o qual a ação se configura, é o discurso, vale dizer, ela se apresenta como interação discursiva. O discurso só tem sentido no âmbito da pluralidade de palavras de atos com os quais nos
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inserimos no mundo humano como algo que sempre surge de novo. Se a ação corresponde ao nascimento, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, ou seja: viver como ser distinto e singular entre iguais. Nenhuma outra atividade humana, portanto, precisa tanto do discurso quanto a ação política. Nas demais atividades, o discurso desempenha papel referente à comunicação e informação que, por mais importantes que sejam, podem ser feitos em silêncio, substituídos por uma linguagem de sinais, ou pela linguagem do computador. Mas na ação e no discurso, os homens se mostram o que efetivamente são: revelação ativa de suas falas no palco da ação política. Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato, só é possível se for ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer (Arendt, 2008, p. 191).
Próprio do âmbito político, o discurso leva em consideração a opinião, a diversidade e a persuasão como modo de fala. Não se trata, propriamente, de um discurso lógico, de cunho filosófico, que tende à demonstração da verdade na busca de fundamentos absolutos. O pensamento filosófico opera na solidão do pensamento contemplativo, afastado da vida dos negócios humanos: é um diálogo do eu consigo mesmo, enquanto o pensamento político é um diálogo do eu com os outros e, portanto, exige a presença real de outras pessoas para se pôr em ação. Por isso, Arendt defende que a faculdade mais adequada na esfera da pluralidade humana da ação é a capacidade de formular juízos políticos. Na Crítica da Faculdade de Julgar de Kant que ela encontra uma forma adequada para exprimir o juízo político, uma vez que este consiste na capacidade do sujeito de pensar no lugar do outro, o que Kant denominou de “mentalidade alargada.” A eficácia desse juízo: repousa em uma concórdia potencial com outrem, e o processo pensante que é ativo no julgamento de algo não é, como o processo de pensamento do raciocínio puro, um diálogo de mim para comigo, porém se acha sempre e fundamentalmente, mesmo que eu esteja inteiramente só ao tomar minha
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decisão, em antecipada comunicação com outros com quem sei que devo afinal chegar a algum acordo (Arendt, 1979, p. 274).
O juízo político é a faculdade de ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista, mas na perspectiva do outro, ou de todos os que estejam presentes no ato. É uma faculdade fundamental do homem enquanto ser político na medida em que lhe permite se orientar em um domínio público. Por isso, o discernimento de quem julga está arraigado naquilo que se costuma chamar de senso comum (sensus communis), na perspectiva de um juízo político reflexivo, o qual possibilita a interação dos sujeitos. III Se o ideal grego de liberdade e cidadania não pode ser revivido, e se a concepção liberal da autorreferência do direito esvazia a participação do cidadão na atividade política, qual a proposta de Arendt para uma cidadania de real participação dos cidadãos que possibilite efetivamente a observância dos direitos humanos, sem cair na limitação de uma cidadania de cunho formal? Arendt, cabe ressaltar, não recusa a conquista histórica dos direitos cívicos e políticos representados pela igualdade, liberdades individuais, direitos sociais, bem como a importância da tutela jurídica dos mesmos. O que ela critica é a forma instrumental de como a cidadania é concebida, uma vez que esse modo demonstrou ser insuficiente para assegurar sua plena realização. A cidadania moderna na concepção liberal representa um enfraquecimento da cidadania em relação ao conceito arendtiano, na medida em que ocorre um desinteresse, quando não um impedimento do exercício ativo da política pelos cidadãos. Limitação que, em grande parte, decorre do sistema da representação política como único meio de participação na esfera pública. A questão que envolve a representação é que ela se transforma num mecanismo político de substituição da participação, pois, ao fazer-se representar, o cidadão sai da cena política e o representante o substitui, até porque é da natureza da representação fazer-se substituir, de modo que a participação acaba ocorrendo de forma indireta. Este é, na opinião de Arendt, um dos problemas cruciais presente nas políticas contemporâneas, pois, os representantes não passam de porta-vozes da vontade de seus
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eleitores, uma vez que substituem a ação direta dos mesmos. A cidadania assim exercida acarreta problemas sérios e intransponíveis revelando um de seus limites, pois, na prática, o mecanismo político da representação desconfia da capacidade política do povo, o qual, não obstante seu voluntarismo, acaba abdicando do poder e não toma parte das decisões políticas. Nesse sentido, os cidadãos são excluídos da ação política, na medida em que a participação no poder, na esfera pública, ocorre de forma passiva e indireta, por meio do sistema da representação política. Os representantes são minorias advindas dos partidos políticos que decidem em nome da maioria. Em outras palavras, governar tornou-se assunto de poucos especialistas imbuídos de administrar a coisa pública. Ou, o que é pior, e não raro acontece, o governo passa a ser formado por demagogos ou corruptos que se aproveitam do cargo para a realização de seus próprios interesses. O sistema representativo traz no seu bojo a crença de que os cidadãos não são capazes de gerir a coisa pública, aqual deve, por isso mesmo, ser confiada a especialistas. O problema desse sistema é que o representante se torna um mero defensor dos interesses privados dos seus representados, mas com o poder de governar, enquanto o representado torna-se “livre” apenas na condição de eleitor. Desse modo, a deliberação ativa de assuntos de interesse geral é praticada por uma minoria que monopoliza o governo, comprometendo substancialmente a participação de todos os cidadãos de forma igualitária e abrangente nas decisões sobre questões políticas que importam a todos. Assim, a ação política, na ótica de Arendt, se desconfigura, quer em virtude de uma prática entre iguais que se desfaz em razão da relação de verticalidade que se instaura entre governo e governados, entre os que mandam e os que obedecem; quer pelo caráter de exclusão que ela assume, uma vez que a ação do cidadão é excluída do espaço público que passa ao domínio de uma minoria com poder de decisão. Mesmo que exista comunicação entre representantes e eleitor, entre nação e parlamento [...], essa comunicação nunca é entre iguais, mas entre aqueles que aspiram a governar e aqueles que consentem em ser governados. De fato, faz parte da própria natureza do sistema partidário substituir a fórmula ‘governo do povo pelo povo’ por ‘governo do povo por uma elite emanada do povo” (Arendt, 1988, p. 221).
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Desconfigurada a ação, ela passa a ser secundária em prol do exercício de mecanismos administrativos que, embora, lícitos e necessários a neutralizam, resultando num governo de minoria seja pela desigualdade dos participantes, seja pelo desejo dos que aspiram governar e os que aceitam ser governados. Este tipo de governo, ainda que supostamente democrático, na medida em que o bem-estar do povo e a felicidade individual sejam seus objetivos primeiros, “pode ser considerado oligárquico, no sentido de que a felicidade e a liberdade públicas se tornam, mais uma vez, privilégio da minoria” (Arendt, 1988, p. 215). Dessa maneira, os partidos políticos, enquanto instituições, não podem ser vistos como órgãos efetivamente populares, já que detêm o “monopólio” da ação política. Por conseguinte, esta concepção de cidadania se afasta do sentido republicano da efetiva participação na política. Operando pelo ideal da representação, a cidadania torna-se suscetível à pressão de grupos que procuram a salvaguarda e a defesa de seus interesses ou de grupos de interesses (os lobbies), descaracterizando o sentido público da política. Se a representação é, em certa medida, inevitável nos Estados complexos da atualidade, o modo de representação política pensado por Arendt assume um contorno diverso, na linha do juízo reflexionante, ou seja, na forma de um “julgamento compreendido como atividade que opera por meio de um procedimento de pensar que se coloca no lugar de outrem, constituindo, assim, um sentido comum que pode ser aplicado à política” (Ramos, 2010, p. 283). Assim, é possível aceitar um conceito de representação apenas quando se forma “uma opinião considerando um dado tema de diferentes pontos de vista, fazendo presente em minha mente as posições dos que estão ausentes; isto é, eu os represento” (Arendt, 1979, p. 299). Significa, portanto, colocar-se no lugar do outro, mas com aspectos que se identificam com o meu modo de pensar sobre determinado tema em ações recíprocas de representação. Como afirma Arendt, esse processo de representação não adota cegamente as concepções efetivas dos que se encontram em algum outro lugar, e por conseguinte contempla o mundo de uma perspectiva diferente; não é uma questão de empatia, como se eu procurasse sentir como alguma outra pessoa, nem de contar narizes e aderir a uma maioria, mas de ser e pensar em minha própria identidade onde efetivamente não me encontro (idem).
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O representante não pode ser visto como simples porta-voz formal de opiniões, muitas vezes alheias ou, então, presentes apenas na forma de empatia sentimental, mas de uma reflexividade de sujeitos que, de forma vicariante, se colocam no lugar uns dos outros. Quanto mais posições de pessoas eu tiver presente em minha mente ao ponderar um dado problema, e quanto melhor puder imaginar como eu sentiria e pensaria se estivesse em seu lugar, mais forte será minha capacidade de pensamento representativo e mais válidas minhas conclusões finais, minha opinião (idem).
É na atitude de pôr-se no lugar do outro que a representação política deixa de ser mero instrumento de substituição formal, dissociada de interesses comuns, e voltada para interesses próprios, de grupos ou de indivíduos. A forma mais razoável de conciliar a ação política, a cidadania e a representação reflexiva consiste, concretamente, em buscar uma alternativa que seja capaz de possibilitar a participação dos cidadãos de forma ativa. Arendt a encontra no sistema de conselhos. Para nós é difícil aceitar sua viabilidade, uma vez que estamos acostumados a pensar que os acontecimentos da política de modo conservador, isto é, como coisas que acontecem da forma como sempre aconteceram, inviabilizando, muitas vezes, formas diversas de pensar as questões políticas. É preciso, como diz a filósofa, vencer o medo dos homens diante “das coisas nunca vistas, dos pensamentos nunca pensados, das instituições nunca antes experimentadas.” Os conselhos surgiram sempre de maneira espontânea, através de ações capazes de instaurar uma nova ordem política. O que se repetiu nos eventos revolucionários modernos não foi um determinado conjunto de intenções ou planos que pudessem ser simplesmente retomados a cada vez, mas a súbita e surpreendente renovação do interesse pela participação direta de cada cidadão nos negócios públicos do país, resgatando-se, assim, a própria dignidade da política (Duarte, 2000, p. 307). Assim, Arendt está convencida de que os conselhos podem representar o esforço para o exercício de uma efetiva cidadania, uma vez que proporcionam o acesso do cidadão às atividades públicas através nos diversos segmentos da sociedade. Diante da dificuldade da participação direta dos cidadãos nas modernas e enormes sociedades de massa, e da
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inadequação do sistema partidário representativo, os conselhos (de bairro, profissionais, de fábricas, educacionais, culturais, etc.) possibilitam uma fragmentação da sociedade em espaços públicos múltiplos, permitindo a participação dos cidadãos de forma mais direta. A essência dos conselhos, independentemente das circunstâncias e diferenças históricas em que aparecem, tem sido, segundo Arendt, sempre a mesma, ou seja: queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter a possibilidade de determinar o curso político de nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois ali só há lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; nele, a maior parte de nós é apenas o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional da opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. Lá também ficará claro qual de nós é o mais indicado para apresentar nossos pontos de vista diante do mais alto conselho seguinte, onde nossos pontos de vista serão esclarecidos pela influência de outros pontos de vista, revisados, ou seus erros demonstrados (Arendt, 2010, p. 200).
Desse modo, o sistema de conselhos, como entende Arendt, não nega a representação política, mas define as bases sobre as quais ela pode operar no contexto das atuais democracias parlamentares. Não se trata, ademais, de incluir todos os cidadãos diretamente, o que seria praticamente impossível, mas de multiplicar os espaços públicos onde mais pessoas possam participar da política, em diversos níveis. Eles constituem uma alternativa democrática ao sistema de partidos. Dessa maneira, a participação efetiva e direta do cidadão, mediante a discussão dialógica das opiniões, pode garantir que interesses e direitos sejam escolhidos e levados adiante por seus representantes. Nesse contexto, observa autora, a representação que ocorre no sistema de conselhos se distingue das “elites” no modelo representativo partidário, pelo fato de que no sistema de conselhos o espaço público, no qual os participantes elegem os seus representantes, pode ser constituído potencialmente por todos que estejam efetivamente interessados na coisa pública, sem que seja preciso fazer parte dos meandros das negociações
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internas das máquinas partidárias e do monopólio de nomeações. Em outros termos, a elite dos conselhos, em suas várias instâncias federativas, seria “auto escolhida” a partir da própria participação política de seus membros na consideração de suas próprias virtudes políticas e dentro do respeito às leis, suprimindo, dessa forma, o caráter oligárquico associado a qualquer elite. Ademais, esse “elitismo” nos conselhos advém, como não poderia ser diferente, do fato de que em nenhum país o espaço público pode ser amplo o suficiente para abrigar a todos, bem como da condição humana de que nem todos querem participar ativamente da cena política. “Nem todos querem ou têm que se interessar pelos assuntos políticos. Deste modo, é possível um processo auto seletivo que agruparia uma elite política verdadeira num país” (Arendt, 2010, p. 201). Processo auto seletivo, no qual o cidadão que se retira de forma ativa e autônoma, muito diferente de processo de exclusão que se dá de forma passiva e sem oportunidade de participação. Dessa forma, ocorre uma alteração na relação entre os que exercem o poder e os que são governados, e a política deixa de ser uma “profissão” e torna-se independente das práticas “eleitoreiras” tal como a compreendemos em nossos dias. Assim, no sistema de conselhos bem desenvolvido, Arendt admite a possibilidade do surgimento de uma estrutura política, piramidal, em que a autoridade decorre da base da pirâmide e não do topo, conciliando igualdade e autoridade de um modo mais amplo e democrático. Em primeiro lugar, esta nova estrutura política assentada por conselhos permite uma forma de politização da cidadania impedindo a organização da população por partidos políticos demagógicos em movimentos massificados e pseudo políticos, como ocorreu no sistema totalitário nas versões nazista e estalinista, em que se verificou a total inobservância da cidadania e, por via de consequência, dos direitos humanos. Em segundo lugar, esta forma de governo estimula a participação de todos os cidadãos no exercício da atividade política, e aqueles que optam pela não participação em quaisquer das instâncias políticas, seriam autoexcluídos de toda capacidade decisória, mas essa exclusão seria voluntária e não simplesmente decorrente das regras impositivas do jogo partidário. Como diz Arendt, “qualquer um que não esteja interessado nos assuntos públicos terá simplesmente que se satisfazer com o fato de eles
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serem decididos sem ele. Mas deve ser dada a cada pessoa a oportunidade” (Arendt, 2010, p. 201). Nesse contexto de interesse na participação das atividades políticas, esta seria a única forma de governo que permitiria o exercício de ações políticas por parte daqueles cuja felicidade não se restringe à fruição privada da liberdade. Por fim, as decisões são deliberadas no plano da horizontalidade entre os efetivamente iguais, e não no plano da verticalidade onde a relação é de desigualdade. Estabelece-se, assim, um governo que se forma de “baixo para cima”, e a “elite” política que daí emerge nasce do consenso de todos os participantes, obtido pela persuasão que é própria do discurso político no contexto da pluralidade de opiniões e da discussão de ideias. A cidadania, assim exercida, perde seu caráter instrumental e escapa à concepção de direitos políticos preexistentes, uma vez que os direitos e deveres são resultado da ação humana através do diálogo e do consenso. Ela se consolida diante da pluralidade representada pelo embate de ideias e interesses, mesmo porque Arendt não nega a ideia de conflito enquanto resultado das visões plurais que os homens têm no espaço público do viver junto. Todavia “a dimensão conflituosa não pode ser um campo de batalha de interesses parciais e antagônicos, prevalecendo o lucro, o partidarismo e a ânsia de domínio” (Ramos, 2010, p. 291). Os conselhos, portanto, não obstante às divergências de opiniões a seu respeito, podem ser concebidos, segundo Arendt, como “ilhas de liberdade” na contemporaneidade. Eles podem representar as bases de fundação de uma forma de governo autenticamente republicana com vistas à possível transformação do Estado. É, pois, na liberdade de ação no espaço público que os conselhos permitem a efetivação da cidadania, pois, ao apontar a insuficiência do seu conceito liberal, Arendt propõe um espaço para a real participação dos cidadãos na construção de seus direitos. Uma cidadania baseada na ideia de ação, mas também de fabricação no sentido de construção dos direitos humanos, sobretudo a liberdade e a igualdade, que advêm do artifício humano como resultado da vontade coletiva que instaura, legitimamente, direitos, e não como produto ditado por princípios abstratos e elaborados por uma razão autorreferencial. Daí porque os direitos humanos, para Arendt, resultam da ação. Não derivam nem do comando de Deus nem da natureza individual do homem, caso em que existiriam com a presença de um só homem no
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mundo, o que colide frontalmente com o seu conceito de pluralidade, pois viver é estar entre os homens. A possibilidade de eficácia dos direitos humanos passa, portanto, pela via política, meio da renovação do sentido e do alcance de um conceito democrático de cidadania. Com base nessa perspectiva política, a cidadania – compreendida como a liberdade que se manifesta através da ação livre dos indivíduos no espaço público – permite e estimula uma busca permanente de direitos jurídicos e políticos conquistados ao longo da história como algo que toda a comunidade política elege como direitos e, por isso, luta por respeitá-los. A efetiva afirmação destes direitos passa pela forma política da cidadania no reconhecimento da condição do direito a ter direitos, entendida como o vínculo que o cidadão mantém com uma comunidade política, mas, sobretudo, como pleno exercício da ação política, consubstanciado pela efetiva participação nas diversas instâncias em que o espaço público pode se multiplicar, oportunizando a todos os cidadãos igualdade de condições de participação. Somente mediante essa politização da cidadania é possível alcançar a efetivação dos direitos humanos, restaurando a dignidade da política em seus espaços de liberdade. Mediante a criação do sistema de conselhos, a realização dos direitos humanos torna-se plausível, uma vez que se abre espaço para a participação dos cidadãos na esfera política. Em nossa sociedade massificada e globalizada, eles podem proporcionar pela mediação de instituições profissionais, culturais, públicas, a verdadeira participação de todos. Nessa perspectiva, os direitos humanos podem ser respeitados, pois estarão respaldados pelo fato de que foram erigidos a partir da participação de todos, possuindo legitimidade e força jurídica para o seu cumprimento. O sistema de conselhos, ainda que não desenvolvido plenamente, não deve ser motivo de abandono ou taxado de extemporâneo (ou anacrônico), por padecer de um programa político bem fundamentado. Ao contrário, deve ser um estímulo e um incentivo para “novas” reflexões e possibilidades políticas em constante aperfeiçoamento. Isso se traduz na oportunidade de se pensar a novidade que pode estimular a criação de formas alternativas para o exercício da política e da cidadania e, consequentemente, uma via plausível para a afirmação dos direitos humanos.
Direitos humanos e dignidade política da cidadania...
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Ante o que, e a título de conclusão, permite-se dizer que, diante da burocratização e redução da atividade política a critérios puramente administrativos, e para além das limitações de uma cidadania de cunho formal, Arendt se propõe o desafio de se pensar uma forma política de reconquista da cidadania pelos cidadãos. Desafio esse que procura no presente uma reatualização do ideal da participação política ativa nos assuntos públicos, sinalizando para a possibilidade da recuperação da dignidade da ação política contra os mecanismos de dominação, ou contra a sua domesticação e controle na seara regrada das sociedades democráticas de massa. Somente assim, os direitos humanos, para além do fato de serem inscritos e previstos legalmente, tornam-se instrumentos efetivos de proteção e de respeito. A questão é contemporânea e pertinente, pois, com exceção de alguns avanços, a realidade mostra que milhões de pessoas em esfera nacional e internacional estão excluídas do acesso aos direitos humanos. A reflexão arendtiana mantém-se atual, visto que o nosso sistema jurídico político padece ainda de incongruências que impedem a ação política plena dos cidadãos. Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2004. AGUIAR, Odílio. Filosofia e política no pensamento de Hannah Arendt. Fortaleza: UFC Edições, 2001. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _______. Crises da república. Trad. J. Wolkman. São Paulo: Perspectiva, 2010. _______. Da revolução. Trad. Fernando Vieira e Cairo N. de Toledo. São Paulo: Ática, 1988; Brasília: Ed. UnB, 1985. _______. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1979. ______. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _________. The jew as pariah. N York: Grove Press, 1978.
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As respostas de Habermas e Rawls às objeções de tipo hegeliano à ética de Kant Charles Feldhaus *
Resumo: O presente estudo pretende examinar em que medida as reformulações da ética kantiana, empreendidas por Habermas e Rawls, poderiam responder às objeções de tipo hegeliano desfechadas contra a ética de Kant. A concepção de justiça desenvolvida por Rawls em seu livro A Theory of Justice e reformulada em Political Liberalism tem sido alvo de críticas de pensadores das mais diversas vertentes, inclusive comunitaristas, entre as principais objeções encontram-se a de que está comprometido com um conceito atomista de pessoa e uma concepção contratualista de sociedade. Habermas, em seu livro Erläuterungen zur Diskursethik procura examinar se as objeções de tipo hegeliano se aplicam quer a ética de Kant quer a ética do discurso. Palavras-chave: ética; justiça; universalidade; virtude Abstract: This study aims to examine to what extent the reformulation of Kantian ethics, undertaken by Habermas and Rawls, could answer the objections of the Hegelian kind unleashed against the ethics of Kant. The conception of justice developed by Rawls in his books A Theory of Justice and Political Liberalism has been the target of criticism from thinkers in various domains, including communitarians, among the main objections are that it is committed to a atomistic concept of person and to a contractarian conception of society. Habermas himself, in his book Erläuterungen zur Diskursethik looks for to examine whether the objections of Hegelian kind apply to the Kant's ethics or the ethics of speech. Keywords: ethics; justice; universality; virtue
Introdução A ética kantiana tem sido alvo das mais diversas objeções desde a sua elaboração na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, na Crítica da Razão Prática e na Metafísica dos Costumes, basta lembrar as objeções de Hegel na Fenomenologia do Espírito e nos Princípios da Filosofia do Direito. Hegel acusa Kant de defender uma concepção moral formalmente vazia, universalmente abstrata, incapaz de motivar, e pior ainda, que tolera condutas claramente imorais. Mas, as objeções não se restringem a isso,
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Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina – UEL. Email: charlesfeldhaus@yahoo.com.br [Artigo recebido em 06.02.2011, aprovado em 06.05.2011]
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 179-201
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John Stuart Mill em seu livro Utilitarism, sustenta que a ética kantiana é incapaz de mostrar qualquer tipo de contradição envolvida na universalização de máximas claramente imorais, sem recorrer às consequências das ações, incorrendo assim numa incoerência interna. 1 Schopenhauer, em Os Fundamentos da Moral, sustenta que a ética kantiana comete em muitas situações ou uma petição de princípio ou uma contradição in adjecto, além das objeções diretamente relacionadas com as formulações do imperativo categórico (vazio, incapaz de derivar deveres, um comprometimento velado com o egoísmo, o recurso à noção de fim em si mesmo – a qual seria um contra-senso –, o comprometimento com uma concepção de vontade sem causa – o que também seria um tipo de contrasenso). Entretanto, a ética kantiana, como uma das principais correntes da ética normativa tem angariado adeptos no pensamento filosófico contemporâneo. Tanto Jürgen Habermas quanto John Rawls consideram-se herdeiros do pensamento de Immanuel Kant, não obstante, existam grandes diferenças entre suas posições normativas e a de Kant. Habermas desenvolve uma concepção normativa denominada ética do discurso, na qual procura integrar as contribuições de vários ramos do pensamento humano e superar o paradigma da consciência, particularmente evitando as éticas que ele denomina de monológicas. Por ética monológica, Habermas entende uma concepção ética que exige dos seres humanos que raciocinem de modo individual e privado acerca da conduta a seguir, sem uma participação ativa dos concernidos pela norma ou regra moral controversa. Desse modo, Habermas desenvolve uma ética dialógica, a qual exige um discurso real entre os concernidos, que deve ser orientado apenas pela força do melhor argumento. Em outras palavras, Habermas recorre a um conceito intersubjetivo de razão baseado na reconstrução das pressuposições lingüísticas a que todo falante se compromete ao entrar na interação lingüística.
1
A incoerência interna resultaria da defesa explícita de uma ética eminentemente deontológico, uma ética do dever, que se baseia no dever ser, mas que somente é capaz de discriminar na prática as ações morais das imorais, caso recorra a elementos teleológicos como algum tipo de finalidade natural do ser humano numa ordem teleológica maior do mundo. Mill, J. S. Utilitarism, p. 446.
As respostas de Habermas e Rawls às críticas de tipo hegeliano à ética de Kant
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1 MacIntyre e as objeções de tipo hegeliano às éticas de tipo kantiano Os comunitaristas e neoaristotélicos criticam as éticas de tipo kantiano e os liberais em geral porque estes estão comprometidos com uma concepção atomista de pessoa e uma concepção contratualista de sociedade. Nesse ponto é possível apontar outra diferença significativa entre a ética do discurso na versão habermasiana e a ética kantiana. A ética kantiana parte de uma concepção de pessoa ainda presa ao paradigma da filosofia da consciência, à filosofia do sujeito, ao passo que a ética do discurso situa-se dentro do paradigma linguístico iniciado por Wittgenstein. A ética do discurso adota uma concepção intersubjetiva de autonomia e pessoa. E, para Habermas, essa guinada linguística isentaria à ética do discurso de acusações, às quais, éticas de tipo kantiano são suscetíveis, como é o caso da objeção da impotência do dever na visão de Habermas. As críticas de MacIntyre, não obstante, não se restringem às éticas de tipo kantiano, mas ao liberalismo e à modernidade também. O neoaristotélico realiza um diagnóstico do contexto moral atual buscando evidenciar que o projeto do Iluminismo de fundamentar a moralidade independente da tradição leva ao que ele denomina de ethos emotivista, uma situação na qual os enunciados normativos somente podem ser compreendidos como a expressão de atitudes e sentimentos, o que por sua vez leva ele a afirmar que nos encontramos diante do seguinte dilema: Aristóteles ou Nietzsche, ética de virtudes ou perspectivismo moral. Para MacIntyre, a alternativa mais adequada é o retorno a um tipo de aristotelismo. É preciso evitar uma abordagem ética ahistórica, que tem sido a tendência predominante nos debates entre os filósofos morais contemporâneos, e procurar justificar as decisões morais em concepções de ética normativa que sejam histórica e socialmente situadas. A incapacidade das principais correntes da ética normativa de decidir racionalmente as questões morais, entre as quais sem dúvida MacIntyre inclui o kantismo, se deve em grande parte à abstração do meio social e cultural. 2 Para MacIntyre, não é adequado separar o estudo histórico do estudo conceitual da moralidade, e a explicação dele para essa incapacidade das teorias morais atuais chegarem a um acordo sobre questões éticas fundamentais, é que isso 2
MacIntyre, A. After Virtue, p. 11.
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se deve em grande medida pela perda (ou ausência) do pano de fundo que dava sentido aos termos e enunciados normativos originariamente. 3 A falta do contexto social e cultural leva ao que ele denomina de incomensurabilidade dos argumentos rivais na esfera moral. Os comunitaristas, e MacIntyre não é exceção quanto a isso, criticam os liberais e as éticas de tipo kantiano por estarem comprometidas com uma concepção de pessoa inadequada e incapaz de decidir questões morais básicas. Segundo MacIntyre, a modernidade e o liberalismo conduzem a uma concepção de pessoa ou de eu (sujeito moral) emotivista. Os enunciados morais são compreendidos apenas como expressões de sentimentos ou descrições de estados mentais daqueles que estão proferindo essas proposições, o que permite aos diferentes sujeitos morais afirmarem posições éticas completamente contrárias, mas, ao fazerem isso, não incorrem em qualquer tipo de contradição. Isso acontece porque um sujeito moral isolado da sociedade, da cultura, do contexto e das circunstâncias particulares é um ponto de partida infrutífero para decidir questões morais básicas, segundo os comunitaristas. Habermas, por sua vez, tentando responder a esse tipo de objeção recorrente às éticas de tipo kantiano, procura desenvolver uma concepção de pessoa que integra o meio social no processo de formação da identidade do sujeito moral. O agente moral não nasce pronto, mas antes precisa passar por todo um processo de socialização. 4 Desse modo, Habermas parece escapar da objeção a que Kant e Rawls não conseguem (ao menos, não o de A Theory of Justice, dado que nessa obra Rawls ainda desenvolve uma concepção de justiça que denomina de abrangente e que adentra no âmbito moral, não apenas no político), de um comprometimento com uma concepção de pessoa atômica e préexistente à sociedade.
3 4
MacIntyre, A. After Virtue, p. 10. É importante ressaltar que, embora Habermas desenvolva uma concepção de autonomia e sujeito moral com forte ênfase ao processo de socialização na formação da identidade, em textos como O Pensamento Pós-metafísico. Em textos mais recentes, particularmente em Die Zukunft der menschlichen Natur, ele caminha em direção a uma concepção de sujeito moral e autônomo que integra elementos biológicos e culturais, em outras palavras, o sujeito moral é resultando tanto de sua biologia (genoma) quanto da socialização (integração social).
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MacIntyre corretamente aponta que a ética de Kant recusa a felicidade, os desejos e a religião como base adequada às crenças morais e, com isso, o filósofo de Königsberg separa radicalmente as esferas da felicidade e da moralidade. 5 A racionalidade prática kantiana não emprega nenhum critério externo a si mesmo e os princípios morais devem ser universais, categóricos, e consistentes. Em outras palavras, ao averiguar a moralidade das máximas, é preciso considerar se esses princípios subjetivos do querer podem e devem ser adotados por todos os seres racionais independentemente das circunstâncias; se podem ser obedecidos de maneira consistente por todos os seres racionais finitos (seres humanos) em toda ocasião. 6 Entretanto, afirma MacIntyre que “é fácil observar que muitas máximas imorais e não-morais triviais são justificadas pelo teste de Kant de modo bastante convincente – em alguns casos de modo mais convincente – do que as máximas morais que Kant aspira sustentar”. 7 Além disso, MacIntyre concorda com Hegel, o qual afirma que a fórmula da humanidade contém claramente um conteúdo moral. 8 Portanto, a segunda formulação do imperativo categórico, que procura trazer mais perto da intuição, o aspecto da matéria do critério moral kantiano, não seria formalmente vazia para os hegelianos e neoaristotélicos. 2 A justiça como equidade e as objeções de tipo hegeliano Rawls, por sua vez, desenvolve uma visão moral contratualista que pretende alçar a um grau mais abstrato e elevado o contratualismo clássico de Hobbes, Locke, Rousseau, e Kant. A situação hipotética (ou real dependendo do contratualismo clássico à que se faz referência) dos clássicos do pensamento político é denominada na reformulação de Rawls de posição original. Em Rawls, as partes que têm a tarefa de decidir a questão: quais são os melhores princípios de justiça para regular a estrutura básica da sociedade são encobertas pelo que ele denomina de véu de ignorância. Em outras palavras, elas ignoram várias informações acerca de sua posição na sociedade e sobre sua sociedade, as quais, segundo Rawls, tendem a influenciar as decisões humanas em direção a interesses particulares e não a interesses 5
MacIntyre, A. After Virtue, p. 44-45. MacIntyre, A. After Virtue, p. 45. 7 MacIntyre, A. After Virtue, p. 46. 8 MacIntyre, A. After Virtue, p. 46. 6
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generalizáveis e com isso as afastar da imparcialidade do juízo, o que essa privação de informação pretende garantir. A concepção de justiça como equidade de Rawls, em particular sua descrição do procedimento de justificação ou fundamentação das regras morais e jurídicas, a posição original, assim como o imperativo categórico da ética de Kant, tem sofrido constantes ataques por parte de pensadores vinculados ao que se costuma denominar de comunitarismo (na política) e ética de virtudes (na moral). Entre os principais críticos dessa vertente da ética normativa estão Michael Sandel, Michel Walzer, Charles Taylor e Alasdair MacIntyre. É importante frisar que a grande maioria das críticas desses comunitaristas à concepção normativa neokantiana de Rawls, são dirigidas ao pensamento liberal em geral e não somente à vertente de Rawls. Não obstante, grande parte dessas críticas ecoa as críticas dirigidas por Hegel à ética de Kant. 9 Uma das principais divergências de posição entre os comunitaristas e os neokantianos diz respeito à concepção de razão envolvida na reflexão moral e qual seu potencial na descoberta e justificação das regras morais. Para os comunitaristas, a moralidade é enraizada na prática de comunidades reais, ao passo que para Kant e os neokantianos, a moralidade se baseia em princípios universais que podem ser descobertos pela razão humana, seja de modo monológico, seja de modo dialógico. Além disso, Kant e os neokantianos procuram apresentar um critério normativo que serve como procedimento de teste para a validade ou correção normativa das máximas ou regras de conduta. A concepção de sujeito moral é outro ponto de divergência radical entre comunitaristas e neokantianos. A filosofia prática de Kant pressupõe um sujeito agente dotado de liberdade num sentido transcendental e cuja identidade é formada com independência do contexto social. Essa concepção do eu ou sujeito moral, para os comunitaristas e para os defensores da ética de virtudes, é um tipo de abstração que torna o sujeito incapaz de deliberar e tomar qualquer tipo de decisão racional, em outras palavras, tal sujeito carece de motivação moral (a impotência do dever) e é incapaz de tomar qualquer decisão moral (abstração do contexto). Entretanto, para Sandel, 10 Rawls claramente pretende situar-se em uma 9
Kukathas, C. & Pettit, P. Rawls and Its Critics, p. 95. Kukathas, C. & Pettit, P. Rawls and Its Critics, p. 98.
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posição intermediária recorrendo ao artifício de representação da posição original, uma vez que as partes que são encarregadas de escolher quais são os melhores princípios de justiça para ordenar as principais instituições da sociedade decidem apenas com base em uma racionalidade instrumental, mas cuja privação de informação garante a imparcialidade do juízo. Porém, para Sandel, 11 Rawls somente obtém o resultado esperado recorrendo a elementos que superam a concepção de sujeito atômico, pois no fundo Rawls estaria recorrendo a uma concepção intersubjetiva do eu. Com certeza, a concepção normativa desenvolvida por Rawls em Political Liberalism contém elementos que apontam na direção de uma guinada intersubjetiva no pensamento do norte-americano, particularmente a introdução da noção de consenso sobreposto [overlapping consensus] com base em razões públicas aponta para uma fundamentação intersubjetiva da escolha realizada na posição original. Não obstante, a divergência principal do comunitarista em relação à concepção de sujeito relacione-se principalmente com uma divergência radical no ponto de partida, Rawls, como um reformulador do contratualismo clássico, compreende a sociedade, ou ao menos as regras ou princípios que regem essa sociedade, como oriundo de um acordo hipotético entre representantes ou partes (como ele frequentemente as denomina), que são dotados de duas capacidades: a capacidade de formar e empreender uma concepção de bem (um plano racional de vida) e a capacidade de desenvolver um senso de justiça, na medida em que percebe as instituições sociais como justas; Sandel, 12 por sua vez, compreende a sociedade como preexistindo aos indivíduos e a reflexão moral como possível apenas na medida em que se participa de certas práticas sociais e não como uma reflexão independente do contexto. De maneira análoga ao imperativo categórico que procura garantir autonomia e dignidade (liberdade e igualdade no tratamento), a posição original tenta situar as partes que estão decidindo em uma situação de simetria e liberdade na escolha. O véu de ignorância privaria as pessoas daquelas informações que as permitiriam decidir de maneira heterônoma, a saber, o conhecimento de sua posição social, de sua dotação natural, do tipo 11 12
Kukathas, C. & Pettit, P. Rawls and Its Critics, p. 103-4. Kukathas, C. & Pettit, P. Rawls and Its Critics, p. 104.
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de sociedade na qual vivem, de seu plano racional de vida, da sua família de origem, entre outros elementos. 13 Além disso, depois da escolha dos princípios de justiça na posição original, os quais para Rawls, em síntese, seriam o princípio da liberdade e o princípio da igualdade, os mesmos funcionariam tal como o imperativo categórico como teste da moralidade (ou até mesmo da moralidade política) de regras de conduta. Eles também podem ser considerados imperativos categóricos, no sentido kantiano, e não imperativos hipotéticos, uma vez que a validade dos mesmos não depende ou supõe qualquer desejo ou objetivo particular. 14 Não obstante, as partes ao escolherem os princípios na posição original tenderão a escolher aqueles princípios que garantirão uma melhor gama de bens primários sociais, não obstante, a limitação da informação não permitirá que a escolha seja influenciada por interesses ou por objetivos particulares. Rawls considera que a suposição do desinteresse mútuo entre as partes na posição original tem base na noção de autonomia tal como entendida por Kant. 15 Em síntese, para Rawls, a posição original pode ser compreendida como uma interpretação procedimental da autonomia e do imperativo categórico da ética de Kant. 16 Apesar de buscar traçar aproximações com a filosofia de Kant, Rawls também procura mostrar que existem diferenças significativas, particularmente no que diz respeito à concepção do eu [self] e à condição da vida humana. O eu numênico da filosofia kantiana torna-se um eu coletivo na justiça como equidade e os seres humanos vivem em uma situação de escassez moderada. 17
13
Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 252. Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 253. 15 Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 253-4. 16 Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 254. É importante frisar que é uma leitura da ética de Kant e não de sua filosofia prática como um todo porque a concepção de autonomia à que Rawls se refere é à desenvolvida pelo filósofo alemão na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e não à de A Metafísica dos Costumes, embora o objetivo de Rawls seja aplicar essa visão de autonomia às questões de justiça social e à moralidade política e não às questões morais propriamente ditas. 17 Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 256. Essa segunda diferença em relação à filosofia de Kant é questionável se de fato existe, mas se pode dizer que novamente aqui faltou a Rawls ter prestado atenção ao texto kantiano que trata especificamente de questões de moralidade política, a saber, a Doutrina do Direito, a primeira parte de A Metafísica dos Costumes. 14
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Em Political Liberalism, Rawls procura traçar diferenças entre o construtivismo moral de Kant e o construtivismo político da justiça como equidade. Segundo Rawls, 18 existem quatro diferenças entre a filosofia moral de Kant (um tipo de construtivismo na leitura de Rawls) e o liberalismo político: 1) a doutrina de Kant é uma visão moral abrangente [comprehensive moral view] na qual o ideal de autonomia ocupa um papel eminentemente regulativo, o que torna a visão kantiana inadequada para servir de base pública de justificação dos princípios de justiça; 2) no liberalismo político uma visão política é autônoma quando baseada apenas em valores políticos e não em valores morais, os quais devem ser construídos e não entendidos como uma ordem pré-existente de valores tal como faz o intuicionismo racional; 3) a concepção de pessoa e sociedade em Kant têm bases em seu idealismo transcendental, a separação entre coisa em si e fenômeno, ao passo que em Rawls essas concepções têm bases apenas no domínio do político; 4) as duas visões têm objetivos distintos: a justiça como equidade busca encontrar uma base pública de justificação para as questões de justiça política tendo como pano de fundo o fato do pluralismo razoável de concepções abrangentes; a filosofia crítica teria como principal objetivo a defesa da fé razoável. 19 Assim como Habermas busca reformular a ética de Kant recorrendo a um conceito intersubjetivo de autonomia, Rawls afirma que a justiça como equidade [justice as fairness] pode ser interpretada num sentido kantiano, 20 principalmente na medida em que é compreendida como uma escolha racional de princípios que devem orientar nossa conduta (o imperativo categórico e a posição original). O imperativo categórico consiste num teste de averiguação da racionalidade no querer de certas regras de conduta, um teste que procura alcançar a imparcialidade no juízo prático. A posição original, também, pode ser compreendida como tal tipo de teste, uma vez que a maneira como Rawls constrói essa situação hipotética de escolha dos princípios de justiça, que devem regular as principais instituições sociais, tem de visar à imparcialidade privando os 18
Rawls, J. Political Liberalism, III, § 2, p. 99. A base dessa leitura da filosofia de Kant pelo estadunidense parece agora ser não mais a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, mas a Crítica da Razão Pura em que o filósofo alemão procura delimitar a esfera do conhecimento e a esfera da crença racional. 20 Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 251. 19
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representantes, que tem a responsabilidade de fazer essa escolha, de informações que permitiriam os mesmos decidirem baseados apenas em interesses particulares. Da mesma maneira que a ética de Kant preza por regras morais que sejam universais e generalizáveis, a justiça como equidade condiciona a escolha dos princípios de justiça àqueles que respeitem essas duas restrições, além de outras, obviamente. A ética de Kant parte de uma concepção dos seres racionais compreendidos como livres e iguais. Todos os seres humanos são portadores da dignidade e todos os seres humanos são capazes de ser autônomos. Rawls, em A Theory of Justice, ainda parte de uma concepção moral de pessoa no sentido da teoria ética de Kant, mas, em Political Liberalism, restringe a concepção de pessoa ao âmbito do político e sustenta que a ética de Kant seria um tipo de visão que não se restringe a essa esfera e, por isso, poderia ser compreendida como uma concepção abrangente de bem. Além disso, em Political Liberalism, Rawls desenvolve, mesmo que de modo bastante sumária, uma resposta às objeções de tipo hegeliano tentando mostrar que as mesmas não se aplicam à justiça como equidade. As objeções de tipo hegeliano, à que ele faz referência são aquelas dirigidas à teoria do contrato social e não à ética de Kant especificamente: a) a confusão da sociedade e do Estado com uma associação privada entre pessoas (o que se chamou anteriormente de uma concepção contratualista de sociedade); b) a permissão que o conteúdo das leis públicas (leis do Estado) seja determinado pelos interesses particulares e contingentes dos indivíduos, com isso identificando a sociedade civil e o Estado; c) a ausência de reconhecimento da natureza social dos indivíduos; Rawls afirma que é preciso distinguir o acordo a respeito da escolha dos princípios de justiça, que se aplicam à maneira como se organiza a estrutura básica da sociedade, dos acordos privados que ocorrem dentro da própria estrutura básica da sociedade. A justiça como equidade claramente traça essa distinção, razão pela qual não pode ser legitimamente acusada de confundir o Estado com as associações privadas, e como já foi defendido, esse acordo acerca dos princípios não diz respeito à decisão de ingressar na sociedade, mas antes, de escolher quais são os melhores princípios para regular as principais instituições de uma sociedade que já existe e, na qual, o indivíduo somente entra pelo nascimento e somente sai com a morte. Com isso, Rawls responde às objeções a) e b) ao mesmo tempo, pois a visão da sociedade não
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é contratualista e o conteúdo das leis não seja determinado pelos interesses privados e contingentes dos indivíduos, mas sim pelos princípios de justiça que são acordados sob as condições que procuram garantir a imparcialidade da decisão. Se a sociedade não é uma associação privada, mas algo no qual somente se entra com o nascimento e somente se sai com a morte, o indivíduo já percorre um processo de socialização pelo qual precisa possuir uma concepção de bem e um senso de justiça, as duas capacidades do sujeito rawlsiano. 21 3 A ética do discurso e as críticas de tipo hegeliano Habermas, em seu livro Erläuterungen zur Diskursethik, devota-se às objeções de tipo hegeliano às éticas de tipo kantiano e, além disso, procura examinar, mesmo que brevemente, se essas mesmas objeções se aplicam a sua reformulação do imperativo categórico de Kant, qual seja, a ética do discurso. 22 Para Habermas, as éticas de tipo kantiano são fortes no que diz respeito à fundamentação de normas, mas débeis no que diz respeito à aplicação de normas. O que inclusive o leva a sustentar que a ética do discurso exige como complemento um princípio de adequação para lidar com a questão da aplicação de regras morais e jurídicas aprovadas pela interpretação discursiva do princípio moral e pelo princípio da democracia. Além do mais, as objeções de MacIntyre e de grande parte dos comunitaristas às éticas baseadas em princípios, especialmente às de tipo kantiano, não se restringem à incapacidade do critério normativo resolver problemas de aplicação e serem capazes de discriminar precisamente quais as regras de ação (máximas ou leis jurídicas) são normativamente corretas e quais não. O desacordo tem uma base mais profunda, diz respeito inclusive a possibilidade de fundamentar qualquer concepção normativa universalista e abstrata da moral. Para um comunitarista como MacIntyre, os valores têm uma história e são socialmente encarnados, ao passo que um universalista geralmente procura avaliar normas que sejam válidas independentes do contexto, se bem que a posição habermasiana seja um pouco mais complexa 21
Rawls, J. A Theory of Justice, § 40, p. 252; Rawls, J. Political Liberalism, VII, §10, p. 285286. 22 Habermas não é o único partidário da ética do discurso, Karl Otto Apel também desenvolve uma concepção normativa da ética discursiva, mas que se diferencia em muitos aspectos da elaboração de Habermas.
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do que essa simples dicotomia pode sugerir. Ele defende uma posição normativa que integra elementos do contexto e elementos universalistas. No direito, por exemplo, Habermas integra a concepção de liberdade dos antigos (liberdade positiva) com a concepção de liberdade dos modernos (liberdade negativa). Em outras palavras, Habermas desenvolve uma ética normativa e uma concepção procedimentalista do direito, que busca manter as pretensões universalistas das éticas de tipo kantiano, sem, todavia, deixar de prestar atenção ao contexto de aplicação, tanto que uma das noções fundamentais de seu arcabouço teórico é a noção de mundo vivido [Lebenswelt] e a exigência central de que os afetados pelas normas controversas tenham direito de voz no diálogo racional sobre o melhor rumo de conduta a seguir, discurso esse que deve ser orientado apenas pela força do melhor argumento. Segundo Habermas, 23 as objeções às éticas de tipo kantiano podem ser resumidas nas seguintes: o privilégio deontológico do dever, o qual, por sua vez, conduz à abstração dos motivos necessários; o privilégio cognitivista, uma vez que concede atenção principal às questões de fundamentação de normas, não obstante, com o ônus de deixar de lado as questões de aplicação de normas; 24 o privilégio formalista do geral sobre o particular, que implica o compromisso com um conceito atomista de pessoa e com um conceito contratualista de sociedade, o que, por conseguinte, leva a uma abstração da Sittlichkeit. Para Habermas, esse emaranhado de objeções procura colocar em dúvida, o que também parece ser o objetivo principal da reformulação da tradição aristotélica da ética normativa realizada por MacIntyre, a possibilidade de uma conceitualização da moral e da justiça independente do contexto. Diante dessa situação, Habermas afirma que somos confrontados com um dilema: retornar ao aristotelismo, tal como fizera MacIntyre, ou tentar modificar a concepção normativa kantiana levando em consideração as objeções que de fato são legítimas. 25 Habermas escolhe, obviamente, a 23
Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 87. Essa objeção à ética de Kant pode ser considerada infundada, uma vez que se leva em consideração que o principal objetivo da Die Metaphysik der Sitten diz respeito às regras de aplicação. 25 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 87. O dilema original de MacIntyre inclui Aristóteles (ética de virtudes) e Nietzsche (perspectivismo moral), no entanto, se pode 24
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segunda alternativa, particularmente porque, segundo ele, as tentativas de desenvolver uma filosofia prática de espírito aristotélico, sem recurso, porém, a premissas metafísicas, depara-se com dificuldades intransponíveis. A solução de Habermas consiste em desenvolver uma teoria moral kantiana, mas reinterpretada em termos intersubjetivistas. 26 A reformulação discursiva da ética kantiana, segundo Habermas, é mais promissora do que as éticas neoaristotélicas como a de MacIntyre, dado que os discursos práticos a respeito de normas controversas apresenta “uma forma de comunicação mais exigente e que transcende as formas concretas de vida”. 27 A formulação mais sistematizada dessa teoria kantiana reinterpretada de modo intersubjetivista é apresentada por Habermas em seu livro Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Segundo Habermas, a ética do discurso ainda permanece uma ética formalista como fora a ética de Kant, uma vez que não dá “nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo”. 28 O princípio do discurso contém o seguinte enunciado: “Toda norma válida encontraria o assentimento de todos os concernidos, se eles pudessem participar de um discurso prático” 29 . Ao avaliar se as éticas de tipo kantiano e a sua própria reformulação discursiva são suscetíveis às objeções hegelianas, Habermas busca traçar diferenças importantes entre a sua concepção normativa e a de Kant. A primeira característica distintiva da ética do discurso em relação à ética de Kant, diz respeito ao comprometimento de Kant com um tipo de dualismo sustentar que Habermas não considera o perspectivismo moral como uma alternativa viável por não compartilhar as premissas de tal visão moral. Mesmo MacIntyre parece considerar essa visão perspectivista inaceitável, ao escolher a alternativa neoaristotélica. Se poderia sustentar que ambos considerariam a explicação da natureza dos enunciados morais do emotivismo e do pespectivismo moral como inadequada. Enunciados normativos não se tratam de uma mera descrição de estados mentais e não expressam apenas sentimentos e emoções, mas antes, apontam para algo diferente, o caráter deontológico de tais enunciados (dependente de uma tradição de pesquisa moral para MacIntyre; embutido no próprio uso da linguagem voltada ao entendimento, diria Habermas). 26 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 92. 27 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 18. 28 Habermas, J. Moralbewusstsein und kommunikativen Handeln, p.132. 29 Habermas, J. Moralbewusstsein und kommunikativen Handeln, p. 132.
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ontológico, o qual é abandonado completamente pela ética do discurso; a segunda característica distintiva diz respeito ao caráter monológico das éticas de tipo kantiano (aqui se pode incluir o próprio Kant e Ralws de A Theory of Justice) em contraste com o caráter dialógico da ética do discurso. Em outras palavras, a decisão acerca do melhor curso de ação a seguir não é efetuada de maneira privada e in foro interno, buscando se verificar que máximas passam no teste da universalização (fórmula da universalidade), do respeito à dignidade humana (fórmula da humanidade) e do respeito à autonomia da vontade (fórmula da autonomia), mas antes, são os próprios concernidos pelas normas controversas, os quais participando ativamente num diálogo real, em que deve prevalecer apenas a força do melhor argumento (um tipo de discurso público organizado de maneira intersubjetiva) decidirão qual o melhor curso de ação a seguir; e finalmente, a ética do discurso não pretende evitar a questão central da fundamentação do princípio supremo da moralidade recorrendo a um fato da razão hiperfísico (o que Kant chamou de o fato da razão), mas antes, atacar diretamente tal problema com base num exame dos pressupostos gerais da argumentação, do uso da linguagem orientada ao entendimento. 30 Entretanto, apesar de considerar que a “ética kantiana reformulada” não seja suscetível a maior parte das objeções de tipo hegeliano, Habermas reconhece que “problemas subseqüentes” criados por essas objeções às éticas de tipo kantiano, não encontram fácil solução até mesmo na ética do discurso. 31 Essa dificuldade de resolver certos problemas normativos, até mesmo por parte da ética do discurso, se deve em grande medida, segundo Habermas, 32 ao fato que toda a ética deontológica, cognitivista, formalista e universalista, se vincular a um conceito restrito de moral, ao custo de abstrações enérgicas no que diz respeito ao contexto particular. Isso inclusive leva Habermas a cogitar, cedendo algum terreno às éticas neoaristotélicas, como a de MacIntyre, se não seria preciso recorrer à faculdade da razão prática similar à noção aristotélica de prudência com forte vínculo ao contexto, a fim de lidar de maneira mais adequada com as questões de aplicação de normas. 30
Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 19-20. Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 28. 32 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 28. 31
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Kant, em seu pequeno opúsculo O Suposto direito de mentir por amor à humanidade, por exemplo, defende explicitamente que mentir é sempre errado, independente das circunstâncias e das consequências da ação de dizer a verdade. Habermas, por sua vez, acredita que a ética do discurso, embora ainda pretendendo ser uma ética universalista, não estaria comprometida com a posição que se deve sempre dizer a verdade, e inclusive afirma que “uma informação não verdadeira, que salve a vida de outra pessoa, é tão necessária quanto o homicídio em legítima defesa”. Em outras palavras, Habermas parece endossar a posição de Richard Hare, em Moral Thinking, que regras tais como não mentir, não matar, etc; têm validade apenas prima facie e não de modo absoluto e incondicional. Ou seja, é possível introduzir exceções orientadas por princípios nas obrigações gerais de conduta moral, sem abrir espaço à livre discricionariedade. 33 Richard Hare buscou atacar o suposto problema do universalismo abstrato das éticas de tipo kantiano distinguindo o pensamento moral em dois níveis: o intuitivo e o crítico. As regras ou obrigações morais como não matar, não roubar, não mentir, entre outras são regras com validade apenas prima facie. Quer dizer, em geral elas devem ser cumpridas, mas podem aceitar exceções, desde que bem definidas, e essa exceções são avaliadas pelo nível crítico que diz respeito ao princípio da ética normativa de Hare que 33
O próprio MacIntyre tem uma interpretação sugestiva da posição de Kant sobre o dever moral perfeito de não mentir em seu livro Ethics and Politics. Selected Essays – Trufulness and Lies: what can we learn from Kant –, ele compreende à luz de alguns fatos sobre a vida do próprio filósofo, como o episódio a respeito da censura religiosa, no qual o filósofo de Königsberg foi proibido de manifestar-se sobre assuntos de religião por supostamente estar deturpando a religião cristã, quando desenvolve uma teologia racional na qual os próprios ensinamentos das escrituras tinham que passar primeiramente pelo crivo do imperativo categórico para só então serem considerados exemplos genuínos de modelos de comportamento a serem seguidos. Kant, nessa situação, afirmou que não se manifestaria mais sobre assuntos de religião, mas não se retrataria de nada do que tinha escrito até então no livro A Religião dentro dos limites da simples razão, não obstante, pouco tempo depois, o imperador da Prússia veio a falecer e Kant, por esse motivo, considerou-se livre da obrigação de deixar de manifestar-se sobre questões de religião, o que de fato fez em seu livro O Conflito das Faculdades. Tendo como pano de fundo esse evento, MacIntyre interpreta que a posição de Kant acerca da mentira é de que não podemos explicitamente dizer algo não verdadeiro, mas podemos recorrer a uma linguagem ambígua e deixar ao ouvinte tirar suas próprias conclusões, que se forem equivocadas, a culpa é do intérprete e não de quem proferiu a informação.
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pretende unir kantismo e utilitarismo. Habermas sustenta que é possível distinguir intuitivamente entre Moralität e Sittlichkeit, entre moralidade e eticidade, sem se comprometer com as conotações negativas de tipo hegeliano aplicadas à Moralität, segundo a qual, a mesma corresponde à moral abstrata e hipotética que serve de critério normativo para avaliar inclusive os valores compartilhados que constituem os costumes ou a eticidade, a Sittlichkeit. 34 Assim como a racionalidade instrumental e a estratégica coloniza o Lebenswelt, gerando déficit de moralidade e legitimidade, em certas circunstâncias, a racionalidade comunicativa pode corrigir a Sittlichkeit, o Lebenswelt moral. O diálogo real, no qual somente deve prevalecer à força do melhor argumento, pode corrigir aquelas intuições morais que precisarem ser modificadas. Quanto à posição kantiana sobreviver à objeção de que autorizaria regimes totalitários por seus próprios meios, é oportuno enfatizar, na mesma direção do que pensa Christine Korsgaard, 35 que seja aplicado ao caso da mentira apresentado em O Suposto direito de mentir por amor à humanidade, não apenas a primeira formulação do imperativo categórico, a saber, a fórmula da universalidade, mas também as duas outras formulações principais da humanidade como um fim em si mesmo e a da autonomia. A fórmula da humanidade não permitiria usar a pessoa de outrem como um meio de aliviar o possível sofrimento advindo da descoberta do assassino de minha mentira a respeito do paradeiro de meu amigo (escondido em minha casa). Essa interpretação, além do mais, é endossada pelo próprio texto kantiano, basta levar em consideração o que Kant explicitamente afirma na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a saber, que cada uma das diferentes formulações do imperativo categórico tenta trazer mais próximo da intuição a ideia do critério ético expresso pela lei moral, o qual, para seres finitos, se apresenta na forma de um imperativo categórico. 36 É possível sustentar que uma melhor compreensão e aplicação da própria fórmula da universalidade também permitiria mentir caso as consequências de dizer a verdade forem desastrosas, desde que a exceção
34
Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 35. Korsgaard, C. The Right to Lie: Kant on Dealing with the Evil. In: Creating the Kingdom of Ends, p. 133-158. 36 Kant, I. IV, Grundlegung, p. 436. 35
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fosse claramente orientada por princípios e não apenas uma exceção para si mesmo, como Kant afirma que ocorre quando da transgressão da lei moral. A concepção normativa ética de MacIntyre exige das éticas de tipo kantiano não apenas mostrar que as objeções a sua concepção de pessoa e a sua capacidade de discriminar efetivamente os casos moralmente corretos dos incorretos, mas também está em jogo uma objeção de fundo relativa à possibilidade de fundamentar uma concepção normativa da ética independente do que ele denomina de tradição de pesquisa, ou ainda mostrar que o liberalismo, do qual Habermas e Rawls sem dúvida são partidários, não pode ser compreendido como uma tradição de pesquisa cuja principal característica é a impossibilidade de se alcançar qualquer acordo ou consenso acerca de questões éticas básicas. Habermas está claramente preocupado em evitar essa acusação, principalmente quando se devota à crítica de que a ética do discurso poderia ser compreendida como uma concepção normativa convencional e restrita a uma cultura específica. Ele defende que a base de sua ética discursiva, as pretensões de validade embutidas no uso comunicativo da linguagem, não pode ser entendida como convencional, mas antes como pressuposições inevitáveis do uso orientado ao entendimento da linguagem. 37 É possível sintetizar, com base em Erläuterungen zur Diskursethik, o diagnóstico de Habermas acerca da aplicabilidade das objeções de tipo hegeliano e dos comunitaristas à ética de Kant, à justiça como equidade 38 e à ética do discurso no seguinte quadro: Objeção
Ética de Kant
Ética do Discurso
Formalismo vazio I 39 Formalismo vazio II 40
Não se aplica Aplica-se
Não se aplica Aplica-se
37
Justiça como Equidade Não se aplica Não se aplica 41
Habermas, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, p. 100. No que diz respeito à justiça como equidade e à objeção relativa à concepção de pessoa e sociedade, a avaliação das objeções são do autor do artigo e não de Habermas. 39 A acusação de que o imperativo categórico é tautologicamente vazio e incapaz de discernir o moralmente correto do incorreto. 40 A acusação de que o imperativo categórico distingue entre forma (estrutura) e matéria (conteúdo) dos juízos morais e, por isso, desenvolve uma ética meramente procedimental ou processual. 38
196 Universalismo abstrato I 42 Universalismo abstrato II 43 Universalismo abstrato III 44
Charles Feldhaus Não se aplica
Não se aplica
Não se aplica
Aplica-se 45
Não se aplica
Não se aplica
Aplica-se
Aplica-se
Aplica-se 46
Impotência do dever I 47 Impotência do dever II 48
Aplica-se Aplica-se
Não se aplica Aplica-se
Não se aplica Não se aplica
Terrorismo da pura convicção Concepção atomista de pessoa Concepção contratualista
Não se aplica
Não se aplica
Não se aplica
Aplica-se 49
Não se aplica
Aplica-se 50
Não se aplica
Aplica-se a TJ, mas talvez não a PL Não se aplica 51
41
É possível sustentar que a justiça como equidade adentra, conforme as críticas de Dworkin e Habermas, no campo dos conteúdos, os quais não ficam totalmente na dependência do procedimento que visa à imparcialidade (a posição original). Dworkin acusa a justiça como equidade de somente alcançar os princípios de justiça porque já os pressupõe no ponto de partida, por conseguinte, a posição original não funciona como o verdadeiro teste da correção das regras de conduta, mas sim as próprias intuições que Rawls já possui; Habermas, por sua vez, defende que Rawls adentra no campo dos conteúdos não a título de alguém que apenas contribui na argumentação, mas a título de especialista. 42 A acusação de que a exigência de normas universais e gerais levaria a inobservância e a repressão da estrutura pluralista das sociedades existentes. 43 A acusação de desenvolver uma ética processual inflexível e rigorista, que não atenta para as consequências das ações moralmente aprovadas pelo teste de máximas. 44 A acusação que a ética de Kant é forte em fundamentação de regras morais, mas fraca na aplicação de tais regras. 45 De fato, a ética de Kant tende a desconsiderar as consequências como marca de valor moral, o que não implica, todavia, que sejam completamente irrelevantes para sua visão normativa. 46 Rawls distingue entre teoria ideal e teoria não ideal, e o que ele desenvolve em A Theory of Justice e em Political Liberalism diz respeito apenas à teoria ideal, a teoria não ideal não foi abordada por ele. Norman Daniels em Just Health Care é um pensador que tenta adentrar no campo da teoria não ideal quando aplica a justiça como equidade às questões de assistência saúde. 47 A acusação de que a ética de Kant separa dever e inclinação, obrigação moral e motivação, e por isso é incapaz de motivar a conduta que o teste de máximas aprova. 48 A acusação de que a ética de Kant realiza um exame meramente hipotético da correção normativa das máximas sem levar em consideração os motivos e instituições existentes. 49 É importante ressaltar, em À Paz Perpétua, Kant introduz um princípio da publicidade para tentar compatibilizar a moral e a política numa ordem internacional que sugere uma leitura intersubjetiva da autonomia e não uma meramente atômica ou monológica.
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de sociedade
Segundo Habermas, 52 a acusação que as éticas de tipo kantiano somente autorizariam afirmações tautológicas mediante definições formais ou processuais contidas no princípio moral (imperativo categórico) é inválida, uma vez que tanto o imperativo categórico de Kant quanto o princípio do discurso não se restringem a uma exigência de consistência lógica, mas recorrem a um ponto de vista moral extremamente substancial. O respeito à universalidade (a não contradição no pensar ou no querer das máximas), o respeito à dignidade da pessoa humana, e o respeito à autonomia das decisões dos seres racionais finitos no caso da ética de Kant; e, os conteúdos avaliados e aprovados pelo debate real em que deve valer apenas a força do melhor argumento na ética de Habermas; todavia, entendida de outro modo, Habermas considera que tanto a ética de Kant, quanto a ética do discurso são suscetíveis à objeção do formalismo vazio, a saber, quando se atenta que as éticas de tipo kantiano, e a ética do discurso nisso não é uma exceção, precisam distinguir entre a estrutura e os conteúdos de um juízo moral. Ou seja, a ética de Kant e Habermas consiste num procedimento de teste à justificação de regras de conduta, que de fato pretende apresentar a estrutura formal dos juízos dotados de moralidade ou imoralidade. Os conteúdos de fato precisam surgir da vida, das situações à que os agentes se deparam. Além disso, à objeção do formalismo vazio hegeliana subjaz uma questão retomada pela ética neoaristotélica de MacIntyre, qual seja, “saber se será de todo possível formular conceitos como justiça universal, correção normativa, ponto de vista moral [...] independentemente da visão do bem viver [...] concreta”. 53 Em outras 50
Quanto à concepção do contrato social em Kant, é importante ressaltar que o filósofo alemão não acredita que a sociedade de fato seja o resultado de um contrato social. Para ele, as primeiras organizações sociais foram reunidas pela força e não pelo consentimento, por conseguinte, o contrato originário é apenas uma ideia regulativa da razão, e não um fato histórico. 51 Ao contrário dos contratualistas clássicos, que interpretam a situação hipotética como uma decisão acerca da escolha de ingressar ou não em uma sociedade civil ou Estado, em Rawls esse acordo diz respeito apenas à escolha dos princípios que irão regular a estrutura básica da sociedade. 52 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik , p. 21. 53 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 22.
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palavras, é possível fundamentar o ponto de vista moral independente de toda tradição de pesquisa moral. Habermas acredita que sim e recorre a um exame das pressuposições lingüísticas do uso da linguagem voltado ao entendimento e inclusive pretende refutar o cético moral recorrendo ao que ele denomina de uma contradição performativa, ou seja, mesmo o cético moral precisa assumir algumas pretensões embutidas na linguagem, as quais contradizem o conteúdo expresso em sua posição de recusa da possibilidade de fundamentar regras morais e, com isso estaria ao mesmo tempo negando e afirmando os valores morais, o que envolve um tipo de contradição. Para Habermas, 54 nem a ética do discurso nem a de Kant são afetadas pela objeção do universalismo abstrato, uma vez que a exigência de normas que sejam gerais é uma exigência das sociedades modernas marcadas pela pluralidade de orientações axiológicas ou concepções de vida boa. Sociedades desse tipo somente podem ser reguladas por regras de conduta que visam ao interesse geral e evitam recorrer aos interesses particulares. Noutro sentido, contudo, entendida como a acusação de um comprometimento com uma ética rigorista, e incapaz de levar em consideração as consequências das ações e os efeitos secundários resultantes do cumprimento geral de uma norma justificada pelo procedimento de decisão (imperativo categórico e princípio do discurso), Habermas acredita que a objeção é válida no que diz respeito à ética de Kant, mas não à ética do discurso. 55 Ora, quando interpretada em outro sentido, para Habermas, a objeção se aplica tanto à ética do discurso quanto à ética de Kant, a saber, 54 55
Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 23. Habermas parece aqui estar se referindo particularmente ao comprometimento de Kant com a validade universal, sem exceções de certos deveres, considerados de obrigação perfeita ou incondicional como o dever de não mentir, o de não suicidar-se, entre outros. Ele acredita que nesse particular a ética do discurso se sairia melhor diante da objeção porque num diálogo real entre os concernidos pela norma ou regra de conduta controversa poder-se-ia levar em consideração às particularidades de cada situação. Além disso, o princípio da universalização que serve de princípio ponte na ética do discurso contém referência explícita às consequências e aos efeitos colaterais, por conseguinte, as consequências do cumprimento das normas têm que ser levadas em conta. Não obstante, embora não seja o objetivo principal mostrar que a ética de Kant também não é suscetível a esse tipo de objeção, convém ressaltar que a despeito da posição de Kant em seus textos sobre a mentira, por exemplo, não é óbvio que se siga da aplicação de todas as diversas fórmulas do imperativo categórico a proibição de mentir para salvar a vida de outra pessoa, inclusive da própria fórmula da humanidade tal derivação é no mínimo controversa.
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no sentido de que as éticas de tipo kantiano priorizam as questões de fundamentação 56 e deixam em segundo plano as questões de aplicação. A aplicação de regras, conforme defendem os neoaristotélicos, 57 exigiria o recurso a um tipo de faculdade reflexiva do juízo semelhante à phrónesis ou à sabedoria prática aristotélica. Habermas, por sua vez, recusa-se a retornar a essa pretensa junção entre fundamentação e aplicação, preferindo recorrer a um princípio de adequação complementar ao princípio do discurso. Quanto à objeção da impotência do dever, Habermas afirma que a ética do discurso estaria sujeita a esse tipo de objeção ao passo que a ética do discurso, não. 58 A ética de Kant seria suscetível a esse tipo de crítica porque parte do dualismo entre razão e sensibilidade, dever e inclinação, para Habermas, um tipo de dualismo ontológico, que é abandonado completamente pela ética do discurso. Além disso, o conceito de autonomia de Kant é proveniente da filosofia da consciência, de um sujeito que decide monologicamente ou in foro interno sobre a moralidade ou não das normas controversas, ao passo que a ética do discurso assumiria uma concepção de autonomia intersubjetivista baseado na guinada lingüística empreendida por Wittgenstein. Poder-se-ia acrescentar que a ética de Kant é forte no que diz respeito à fundamentação das normas morais, mas é fraca no que diz respeito à motivação. Kant, no fundo, é um internalista que acredita que o reconhecimento da norma ou regra de conduta como moralmente correta deveria ser suficiente para incitar ao cumprimento da regra. Não obstante, em outro sentido da objeção, Habermas acredita que ela se aplica tanto à ética de Kant quanto à ética do discurso. 59 Ambas as correntes da ética normativa, dissociam as condutas e as normas problemáticas dos contextos práticos substanciais, a fim de submetê-las a uma apreciação hipotética (testes do imperativo categórico e da situação ideal de fala), sem levar em consideração os motivos e as instituições 56
Embora seja inegável que Kant priorize a questão da fundamentação de regras de conduta ao tentar identificar o princípio supremo da moralidade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, também é inegável que ele explicitamente afirma que tal estudo precisa ser complementado por regras de aplicação, o que teria sido o objetivo principal de Kant em A Metafísica dos Costumes, que procura desenvolver um conjunto de regras ou princípios que levem em consideração o que ele denominou de uma antropologia moral. 57 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 24. 58 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 25. 59 Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 25.
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existentes. Entretanto, esse é um trabalho necessário e inevitável de qualquer tentativa de fundamentar a ética visando à secularização das normas. Além do mais, a reformulação discursiva da ética kantiana não pode deixar à razão na história (Deus) a tarefa de incorporar os princípios morais nas formas de vida concretas, esse trabalho deve ser realizado por esforços coletivos dos movimentos sociais e das coletividades, em outras palavras, pelo uso do discurso real num espaço de deliberação pública em que deve valer apenas a força do melhor argumento. 60 Nenhuma das duas éticas também se expõe à crítica de promover a justificação ou ao menos o encorajamento indireto de condutas totalitárias. 61 Para Habermas, qualquer tipo de atitude totalitária é incompatível com quaisquer morais universalistas. No caso da ética de Kant, esse tipo de objeção é alimentado, por exemplo, pelo testemunho de pessoas que colaboraram com Auschwitz e quando indagadas no tribunal de Nuremberg afirmaram que nada mais fizeram do que cumprir o seu dever e por reformulações do exemplo de Kant no texto O Suposto direito de mentir por amor à humanidade em que o assassino é substituído por um soldado da Gestapo que procura por judeus escondidos nos sótão e, de fato, se está abrigando um judeu nesse lugar. Para resumir, defende-se aqui (embora não seja o tópico central do presente trabalho) que esse tipo de derivação não se segue do critério moral de Kant, o imperativo categórico, a despeito da evidência textual em contrário. Considerações finais
É possível sustentar que Habermas não se compromete com uma concepção atomista de pessoa, dado que reformula de modo intersubjetivo, o conceito de autonomia kantiano, o que também teria sido feito por Rawls em Political Liberalism, ao recorrer não mais a uma concepção moral de pessoa, mas sim a uma restrita ao âmbito do político. Também é discutível se de fato Rawls se compromete com um conceito contratualista de sociedade, uma vez que a escolha dos princípios não é uma decisão sobre ingressar ou não no Estado 60 61
Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 26. Habermas, J. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 26.
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como fora nos contratualistas clássicos, mas de que princípios de justiça devem organizar as principais instituições da sociedade. As principais críticas de tipo hegeliano às éticas de tipo kantiano podem ser resumidas nas seguintes: de defenderem uma concepção normativa da ética formalmente vazia, que autorizaria inclusive ações evidentemente imorais; de defenderem uma moral universalmente abstrata, dado que não leva em consideração o contexto e as consequências das ações e a Sittlichkeit, levando a um tipo de rigorismo moral; de defenderem uma moral de difícil aplicação e débil no que diz respeito à motivação e à aplicação das regras; e, finalmente, de defenderem uma ética que inclusive promoveria formas de conduta totalitárias. Pretendeu-se mostrar aqui em que medida as reformulações contemporâneas realizadas pela ética do discurso de Jürgen Habermas e pela justiça como equidade de John Rawls da ética de Kant poderiam responder às objeções de tipo hegeliano. Referências DANIELS, N. Justice and Justification: reflective equilibrium in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. DUTRA, D. J. V. Razão e Consenso em Habermas. A teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005. HABERMAS, J. Comentários à Ética do Discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. HABERMAS, J. Erläuterungen zur Diskursethik, Frankfurt: Suhrkamp, 1991. HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983. KANT, I. Kants Werke. Akademie Berlin, Walter de Gruyter & Co., 1968. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70.
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Do bem supremo à ética do desejo: contribuições da psicanálise à discussão ética Luiz Paulo Leitão Martins* Vinicius Anciães Darriba** Resumo: No seminário de 1959-60, o psicanalista Jacques Lacan anuncia sua decisão de abordar ali o tema da ética da psicanálise. Para uma clara compreensão da contribuição freudiana, ele resgata, como contraponto, a referência aristotélica da Ethica Nicomachea. Nessa obra, Aristóteles está em busca de um bem mais excelente, e este corresponde à felicidade. Ele pode ser alcançado pelo uso da atividade racional aliado à prática da virtude. Se, para Lacan, a investigação aristotélica comporta certa idealidade, o registro psicanalítico funda-se a partir da realidade. Para isso, ele retoma a noção freudiana de das Ding. Como objeto da primeira experiência de satisfação, das Ding fundará todo o encaminhamento do sujeito. Na estrutura neurótica, entretanto, o reencontro com das Ding é excessivo; o sujeito não o pode suportar. É por trás dessa realidade sem predicação que é das Ding que Lacan encontrará a realidade que ordena, a saber, a lei da interdição do incesto. É nessa dimensão que o sujeito, em análise, é convocado a advir. O presente estudo, portanto, tem como objetivo realizar esse percurso – do bem supremo aristotélico à ética do desejo –, apontando as contribuições da psicanálise à discussão ética. Palavras-chave: Aristóteles; bem supremo; ética; Lacan; psicanálise Abstract: At the 1959-1960 seminar, the psychoanalyst Jacques Lacan points out his decision of addressing the theme of ethics of psychoanalysis. In order to have a clear understanding of the Freudian contribution, he rescues, as a contrast, the Aristotelian reference of Ethica Nicomachea. In this work, Aristotle is looking for a supreme good, and this corresponds to happiness. It can be reached by the use of rational activity combined with the practice of virtue. If, for Lacan, the Aristotelian investigation includes certain ideality, the psychoanalytic register is founded on the reality. For this, he takes up the Freudian notion of das Ding. As object of the first experience of satisfaction, das Ding will found all the forwarding of the subject. In the neurotic structure, although, the reencounter with das Ding is excessive; the subject cannot bear it. It is beyond this reality with no predication which is das Ding that Lacan will find the reality which orders, namely, the law of prohibition of incest. It is in this dimension that the subject, under analysis, is invited to come. The present study therefore aims to make this course – from the Aristotelian supreme good to the ethics of desire – pointing out the contributions of psychoanalysis to the ethical discussion. Keywords: Aristotle; supreme good; ethics; Lacan; psychoanalysis Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: lplmartins@gmail.com ** Professor adjunto da Universidade Federal do Paraná. E-mail: vdarriba@centroin.com.br [Artigo recebido em 05.02.2011, aprovado em 30.05.2011] *
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p.203-229
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Introdução A articulação entre a psicanálise e a filosofia não se encontra de início já justificada. Se abordarmos a questão a partir da perspectiva freudiana, na qual a psicanálise não está localizada em outro campo senão o da ciência, a filosofia e suas reflexões têm pouco a contribuir à práxis analítica. Sigmund Freud demonstra isso explicitamente em seus textos. Há, entretanto, uma controvérsia. Se por um lado tem-se um Freud cientificista, preocupado com questões práticas e eminentemente clínicas e que rejeita a empreitada filosófica, por assim dizer, demasiada abstrata, por outro lado o precursor do movimento psicanalítico em sua metapsicologia, por exemplo, não abre mão de conceitos formulados a partir da via especulativa. Perguntamo-nos, então, se a proposição da relação entre a psicanálise e a filosofia é legítima e, ao mesmo tempo, se aquilo que é produzido a partir da discussão, pertinente. Antes de tudo, é necessário fazer uma pontuação: os campos são distintos. A psicanálise ocupa-se de uma demanda clínica; suas investigações e seus resultados são úteis a um ofício próprio que é o do analista. A filosofia, numa acepção abrangente, vai se preocupar com os fundamentos; questioná-los, submetê-los à crítica, avaliá-los constituem tarefa filosófica. Isso posto, por que o diálogo? Por que a aproximação? Conforme assinala Bertrand Ogilvie (1987/1991), é possível que um objeto ou um conceito visado pela teoria psicanalítica tenha participação na investigação presente na filosofia, e, portanto, a reflexão desenvolvida em cada campo pode servir de problematização, de questionamento, de referência ao outro. Não se trata de submeter a psicanálise ao juízo filosófico, tampouco de desenvolver uma leitura psicanalítica da filosofia e de seus problemas, atribuindo algum tipo de valor ou de hierarquia; trata-se, porém, do reconhecimento da relação e das contribuições evidentes na possibilidade de interlocução entre os campos. A esse respeito, segundo Charles Shepherdson (2003), nenhum personagem na história da psicanálise fez mais para levar a teoria freudiana a dialogar com a tradição filosófica do que Jacques Lacan. Se os psicanalistas pós-freudianos desenvolveram suas problematizações teóricas a partir de elementos já presentes na obra de Freud, Lacan, por sua vez, partiu de uma outra perspectiva. Para Ogilvie, o médico psiquiatra francês de formação tradicional colocou para si mesmo uma série de questões teóricas novas, não
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partindo da psicanálise, mas da filosofia. E é com base nessas questões que ele vai encontrar em Freud subsídios para o desenvolvimento de sua elaboração teórica. A interrogação imposta por Ogilvie a si mesmo no que se refere à significação dessa teoria para a filosofia expõe razões importantes, particularmente no caso de Lacan, diz-nos o autor: Porque este [Lacan] se refere explicitamente a conceitos ou a autores filosóficos que designa como pontos de partida, apoios obrigatórios ou índices, e porque a psicanálise, analisando a trama fundamental de certas teses características, pode levar a ser revista a interpretação das posições filosóficas que as sustentam (Ogilvie, 1987/1991, p. 10).
No presente trabalho, intentaremos apresentar uma contribuição do campo psicanalítico, considerando sobretudo a revisão da teoria freudiana desenvolvida na experiência intelectual de Jacques Lacan, à discussão filosófica em torno da dimensão ética. A questão da ética na psicanálise Antes de Jacques Lacan não é evidente que a descoberta freudiana tem alguma relação com a discussão geral em torno da ética. Surpreendentemente, conforme nos parece, no início do seminário dos anos de 1959-1960 o psicanalista francês anuncia sua decisão de abordar ali o que, segundo ele, consistiria no instrumento mais adequado para introduzir o que toda a obra freudiana e a experiência psicanalítica traziam de novidade, a saber, o tema da ética da psicanálise. Imerso num contexto mais geral, o da reflexão teórica sobre a experiência ética – aquela que se refere ao enigma de nossa própria ação, o qual é exposto por Lacan pela seguinte questão: “que devemos fazer para agir de maneira reta, correta, dada nossa condição de homens?” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 30) –, Freud, Lacan o intenta demonstrar, não vem aí apenas como um sucessor. Sua referência constitui-se como de um peso incomparável, colocando os problemas até então mantidos constantes no interior de toda elaboração ética sob outros fundamentos. Se a psicanálise trouxe alguma coisa entendida como sendo da ordem de uma originalidade, de uma novidade, para o psicanalista Lacan, esse elemento, visando uma compreensão mais precisa de seu sentido, deve ser abordado sob o aspecto da ética. E o que propriamente seria isso? Ou seja, em outros termos, o que Lacan propunha ao trazer para o público de
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seu seminário que a psicanálise evidencia uma particularidade no campo da ética, e localizar nesse ponto a originalidade de Freud? Há na vivência do sujeito o que Lacan define como uma experiência moral. Essa experiência, em sua referência à sanção, coloca o sujeito em uma espécie de relação com sua própria ação que, para além de uma lei articulada, enseja aí uma certa tendência; um ideal de conduta, visto como um bem, é almejado. Em relação a esse ideal, o sujeito é convocado a enquadrar-se, conformar-se. Nesse sentido, para o psicanalista, o sujeito que procura análise o faz primordialmente por uma questão de ordem moral, a dimensão ética de sua ação é convocada por seu discurso. É diante dessa demanda que a práxis cotidiana da psicanálise se defronta. O que a experiência psicanalítica aponta é justamente para a existência, além do que se apresenta para o sujeito como um sentimento de obrigação, de um sentimento onipresente de culpa. O cumprimento fervoroso das normas ou a sua relativização, ao dar vazão ao que o pensamento libertino chamou de homem do prazer, são incapazes de atenuar essa fácies desagradável da experiência moral que é sentida pelo sujeito sob a forma da culpa. Se alguns tentam amortecer, atenuar esse sentimento, certamente não é isso que psicanálise lacaniana realizará. A psicanálise, entretanto, não se limita apenas a esse aspecto da experiência moral. A elaboração lacaniana retomará a fórmula freudiana que diz: Wo Es war, Soll Ich werden1, entendendo estar situado aí um imperativo mais original, aludido pela experiência moral, para dizer: Esse (eu), com efeito, que deve advir lá onde isso estava, e que a análise nos ensina a avaliar, não é outra coisa senão aquilo cuja raiz já temos nesse (eu) que se interroga sobre o que quer. Ele não é apenas interrogado mas, quando progride em sua experiência, coloca para si mesmo essa questão, e a coloca para si precisamente no lugar dos imperativos frequentemente estranhos, paradoxais, cruéis que lhe são propostos por sua experiência mórbida (Ibidem, p. 16).
Onde isso estava, o sujeito é convocado a advir. A atividade analítica o interroga acerca do seu desejo. E onde a moral poderia estar alocada numa perspectiva inteiramente diversa da do desejo, a elaboração psicanalítica localiza a sua gênese não em outro lugar senão no próprio desejo. É nesse 1
Sugere-se a tradução: “onde isso era, devo eu advir”. Lacan (1965-1966/1998, p. 878) traduz da seguinte maneira: “[...] lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir.”.
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contexto que, para uma compreensão adequada do peso dessa experiência, a freudiana, Lacan resgata a ética aristotélica como um contraponto. Esse registro que é tão representativo no interior da reflexão ética e que serve ao psicanalista para discernir o caráter avesso da posição freudiana na articulação. Dessa forma, dedicar-nos-emos brevemente ao estudo desse filósofo, localizando o tema da ética em seu sistema, para apresentarmos, em seguida, o comentário lacaniano a seu respeito. Aristóteles e sua formulação ética Longe de um sistema de pensamento fechado, estático, Aristóteles é dinâmico, com textos que nos dão a impressão de estarem sempre em desenvolvimento. Encontram-se por vezes contradições ao longo de seus trabalhos. Ademais, há uma dificuldade em se fazer uma cronologia de seus textos; a maior parte dos teóricos é cética quanto a essa possibilidade. É difícil fazer perceber quais ideias são repetidas e quais foram acrescentadas em um desenvolvimento posterior. Segundo a leitura de Jonathan Barnes (1995), em muitos casos Aristóteles parece estar em busca de respostas, na tentativa de encontrá-las; em outros, nos quais a verdade lhe parece estar à mão, em sua posse, ele, suspendendo-a, permanece questionador, duvidando. Conforme Barnes (1995, p. 25), “o sistema aristotélico é dividido em ciências”. As ciências teóricas estão dedicadas à descoberta de verdades, constituindo-se pela teologia, pela matemática e pela ciência natural; as ciências práticas, às ações, ao modo de elas operarem, agregando as disciplinas da ética e da política; e, finalmente, as produtivas que, ocupadas com a fabricação de coisas e objetos, são representadas pela poética e pela retórica. Percebe-se: a ética, em Aristóteles, é localizada não em outro campo senão no das ciências práticas. Diz-nos Aristóteles por ocasião de sua Ethica Nicomachea: Considerando que o presente estudo, diferentemente dos outros ramos da filosofia, tem um objetivo prático – já que não estamos pesquisando a natureza da virtude a fim de conhecer essa natureza, mas a fim de podermos nos tornar bons, sem o que nossa investigação seria inútil – é necessário, consequentemente, que encaminhemos nossa investigação para o âmbito da conduta e indaguemos como agir corretamente (Aristóteles, 2009, p. 69).
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Conforme observa Hutchinson (1995), o legado deixado por tal filósofo, transmitido por Diogenes Laertius, revela-nos um homem preocupado com assuntos pessoais e com a educação moral de seus filhos. Aristóteles ressalta a importância dos amigos e dos familiares e expõe regras sociais próprias de um cavalheiro: a generosidade, a dignidade no serviço ao próximo e o bom juízo de um homem verdadeiro e fiel. A ética de Aristóteles intenta ser prática, ser uma ética para a vida. Apesar da existência de alguns fragmentos sobre ética em textos isolados, existem apenas duas obras completas, fechadas, sobre o tema em Aristóteles. São elas, Ethica Eudemia (EE) e Ethica Nicomachea (EN). A primeira, tida pela maior parte dos estudiosos como a mais antiga, é composta por sete livros, podendo o último ser dividido em dois; a segunda compõe-se de dez livros, sendo três destes idênticos a três de EE (Ibidem, p. 197). Aqui abordaremos EN, pois é a essa obra que Lacan faz referência. Logo na primeira seção do livro I da EN justifica-se o tema, a sua importância. Toda a investigação e toda a arte visam a um bem, defende Aristóteles (1984/1995), bem esse utilizado na acepção de ser aquilo a que todas as coisas tendem. Podem existir, entretanto, bens subordinados, isto é, aqueles que são buscados em função de outros e que muitas vezes correspondem a atividades, sendo os bens fundamentais aqueles cuja busca se dá em função deles mesmos. Estes últimos devem ter precedência em relação aos bens subordinados. Apresenta-se um porém. Segundo Aristóteles: Se, portanto, entre as finalidades colimadas por nossas ações, houver uma que desejamos por si mesma, ao passo que desejamos as outras somente por causa dessa, e se não elegemos tudo por causa de alguma coisa mais (o que, decerto resultaria num processo ad infinitum, de sorte a tornar todo desejo fútil e vão), está claro que essa uma finalidade última tem que ser o bem e o bem mais excelente (Aristóteles, 2009, p. 38).
Levando-se às últimas consequências, entre os bens fundamentais deve subsistir um ao qual todas as coisas tendem e no qual o termo de sua busca localiza-se em si mesmo. Esse bem, essa finalidade última e nunca subordinada, é denominado por Aristóteles de bem supremo. Posto isso, Aristóteles pergunta em seguida: “Não será então o conhecimento desse bem mais excelente muito importante do ponto de vista prático para a conduta na vida? Não nos tornará ele melhor capacitados para atingir o que
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é adequado?” (Ibidem, p. 38). O tema está introduzido e justificado. Trata-se da elucidação do que Aristóteles chama de bem mais excelente, ou seja, do fim, propriamente dito, a que as coisas tendem, e de sua aplicação ao modo de vida do investigador. Esse bem, para Aristóteles, consiste na felicidade2. O problema aristotélico está localizado, portanto, em definir, em delimitar o que seja essa felicidade. Para falar da felicidade humana é necessário antes determinar em que consiste a função do homem. Tal como o olho, a mão, o pé e cada parte do corpo são dotados de uma função própria, a suposição de o homem possuir uma função que lhe é própria é introduzida. Aristóteles conclui: a atividade própria ao homem é aquela atribuída ao componente racional, e, mais propriamente, à acepção que se refere ao seu exercício ativo, ou seja, o pensamento. Para Hutchinson (1995), a alma, em Aristóteles, é superior ao corpo, e aqueles que vivem segundo o seu exercício tornam-se semelhantes aos deuses; viver segundo o corpo, tal qual os brutais, é equiparar-se às plantas e aos animais. Um bom homem é aquele que faz uso daquilo que lhe é próprio, de sua racionalidade, e o utiliza sob o modo da excelência. Essa excelência, para Aristóteles, consiste no uso da atividade da alma em consonância à virtude, e, se há mais de uma virtude, à melhor e mais completa entre elas. Deve-se acrescentar, ainda, que essa atividade deve ocupar “uma vida inteira” (Aristóteles, 2009, p. 50), visto que um só dia, ou um curto período de tempo, vivendo virtuosamente não faz um homem feliz. Entretanto, em que consiste a atividade racional em Aristóteles? E a virtude? Há na alma, diz-nos Aristóteles no livro I, duas partes distintas, opostas uma à outra; uma racional e outra privada da razão. Uma subdivisão do elemento irracional é a parte, presente em todos os seres vivos, inclusive nas plantas, responsável pelas faculdades de nutrição e de crescimento. A outra, em relação a qual é participante, em certo sentido, a racionalidade, consiste no elemento apetitivo, desiderativo, identificado pelos impulsos e desejos. A participação da racionalidade em relação a esse elemento desiderativo se dá no fato de tal elemento, nas pessoas temperantes e 2
Ευδαιµονια (eudaimonia: felicidade): trata-se de um termo grego cujo conceito é mais abrangente que o nosso. Segundo Edson Bini (2009, p. 40), ευδαιµονια circunscreve também as noções correlatas de bem-estar e prosperidade, além de, em Aristóteles, caracterizar-se não como um estado passivo sentimental, mas como uma atividade.
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continentes, obedecer ao princípio racional; ele pode ser persuadido pela razão. Enquanto o princípio racional impele o homem para a direção certa, o elemento desiderativo luta contra a razão, oferecendo-lhe resistência (Aristóteles, 1984/1995). A professora Sarah Broadie traz uma contribuição ao discutir a questão comparando a natureza animal à natureza do homem. Os animais, segundo Broadie (1991, p. 354), agem como se o bem correspondesse ao prazer, ou, pelo oposto, o prazer, ao bem; tais seres, por assim dizer, “acreditam” que o que é dotado da qualidade de bom é desse modo por se apresentar também como prazeroso. O homem, capaz de teorizar sobre as coisas e abstrair para além dos fatos, pode, por meio de uma série de questionamentos, descolar a característica do prazer daquilo que é supostamente, em um primeira momento, visto como um bem, e direcionar ao objeto em questão à luz da razão um juízo. O bom julgamento, aquele que revelará se o objeto é desejável propriamente, habilitará o homem a decidir se a qualidade do bem pode ser atribuída ao objeto ou à ação em questão. A atividade da alma exclusiva do homem, que lhe é própria, a que Aristóteles faz referência quanto à felicidade, é aquela relativa ao componente racional, capaz de dirigir a conduta humana. No livro II, para definir a virtude, Aristóteles utiliza-se de uma outra proposta de divisão da alma. Diz que na alma se encontram três espécies de coisas: as paixões, as faculdades e as disposições (Aristóteles, 1984/1995). A virtude deve ser identificada a uma delas. Por paixões entende-se os sentimentos acompanhados de prazer ou sofrimento, tais como os apetites, a cólera, o medo, a inveja, o ódio, o desejo e outros; por faculdades, as coisas em razão das quais somos capazes de sentir as paixões, a saber, a faculdade de encolerizarmo-nos, de magoar-nos e outras; e, finalmente, por disposições, as coisas em razão das quais nossa posição em relação às paixões é boa ou má, positiva ou negativa. As virtudes só podem ser disposições. A virtude do homem bom será a sua disposição que o torna bom e que o faz desempenhar bem, isto é, com excelência, a sua função. É também presente em Aristóteles uma outra construção. A disposição pode ser formada a partir dos hábitos3. Em outros termos, pode-se dizer que é 3
No livro II de EN, o termo εθος (ethos: hábito) encontra-se em relação a ηθος (éthos: caráter). O tradutor Edson Bini (2009, p. 67) atribuirá a essa diferença uma variação morfológica pouco significante, considerando o caso como o de vocábulos congêneres.
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pela prática da virtude que o homem se torna virtuoso, que ele obtém um caráter marcado pela virtude. Para esclarecer essa exposição, cito trecho em que Aristóteles toma como exemplos a temperança e a coragem: O mesmo ocorre com as virtudes. Tornamo-nos moderados nos abstendo dos prazeres e, ao mesmo tempo, estamos melhor capacitados a nos abstermos dos prazeres quando nos tornamos moderados; coisa idêntica acontece com a coragem: tornamo-nos corajosos nos treinando no desprezo e resistência aos terrores e estaremos melhor capacitados a resistir aos terrores quando tivermos nos tornado corajosos (Aristóteles, 2009, p. 70).
Em alguns casos, entretanto, as proposições relativas à conduta podem se dar de uma forma excessiva ou diminutiva, ou seja, inadequada quanto ao modo, ao objeto, às pessoas e ao motivo. Na aritmética, explicanos Aristóteles, no que é contínuo e divisível pode-se tirar uma parte maior, menor ou igual, sendo este o meio entre o excesso e a falta. Localizada no ponto da equidistância entre os extremos, a mediana aritmética é única e a mesma para todos os homens. De outra maneira, a mediana relativa à virtude não é única, nem a mesma para todos, pois pode ser que dez minas4 de alimento sejam demais para uma pessoa, e não para outra; muito pouco para Milo5 e demais para um atleta principiante. O termo médio, nesse caso, é definido não em relação ao objeto, mas em relação à pessoa, sob o modo da particularidade. Quanto à aplicação dessa mediana às disposições, explica-nos Aristóteles: Há, então, três disposições – duas destas, vícios (um de excesso e outro de deficiência) – e uma virtude, que é a observância da mediana; e cada uma delas, de uma certa forma, se opõe a ambas as outras, pois os estados extremos são os opostos tanto do estado mediano quanto dos outros [que estão em reciprocidade], e o estado mediano é o oposto de ambos os extremos […] quer no caso das paixões, quer naquele das ações (Aristóteles, 2009, p. 82).
Percebe-se, ademais, na Ética de Aristóteles a defesa de um certo desenvolvimento quanto ao virtuoso. É a prática da justiça que torna o homem justo e é pelo fato de ser justo, de ter essa disposição, que ele é capaz 4 5
Antiga peça monetária grega. Personagem lendária, famosa por ter ganhado por seis vezes consecutivas os jogos olímpicos e por ter atravessado um estádio carregando um touro adulto nas costas. Era conhecida por ter, certa vez, devorado um boi inteiro num só dia.
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de praticar a justiça. Seriam alguns homens naturalmente justos e outros naturalmente injustos, ímpios? A definição da virtude moral poderia ser feita por aquilo que é natural ao homem? Não, responde-nos Aristóteles. A natureza dá a capacidade de a virtude ser gerada no homem, devendo tal capacidade ser aperfeiçoada pelo hábito; adquirimo-las pelo exercício, ele diz. Sendo assim, como identificar a presença da virtude? A presença da temperança ou da coragem? O prazer e a dor que sobrevêm aos atos são os sinais indicativos das disposições morais. Com efeito, “um homem é moderado se abstém-se de prazeres do corpo e considera a própria abstinência prazerosa; é um desregrado se a experimenta como aborrecida” (Ibidem, p. 71). A referência a uma educação desde a tenra infância que ensine o deleite e o aborrecimento frente às coisas certas é a marca da ética aristotélica. Para Aristóteles, é por causa do prazer que praticamos boas e más ações, assim como é por causa do sofrimento que deixamos de praticar ambas. Nossas ações são medidas pelo critério do prazer e do sofrimento. Por isso, o prazer deve estar associado às boas ações, e o sofrimento, às más. Uma educação desse tipo, correta, formará, na cidade-estado, homens bons, isto é, em conformidade à virtude. Desde o início, o que se percebe é que a marca da proposta aristotélica de uma ética consiste na ideia de uma intervenção política. Em última instância, a aplicação da atividade racional à virtude deve ser objetivada no plano social, legislativo, de uma cidade-estado. Diz-nos Aristóteles: Temos que tentar determinar, ao menos em esboço, no que consiste exatamente esse bem mais excelente e de qual das ciências teóricas ou práticas é ele o objeto. Seria, assim, de se concordar ter que ser ele o objeto da ciência, entre todas, de maior autoridade – uma ciência que fosse, preeminentemente, uma ciência maior. E parece ser esta a ciência política, […] na medida em que, portanto, as ciências restantes se prestam ao uso desta e, visto que ela, ademais, estabelece leis quanto ao que as pessoas deverão fazer e quais coisas deverão se abster de fazer, […] o bem humano tem que ser a finalidade da ciência política. […] Assegurar o bem de uma nação e de um Estado é uma realização mais nobre e mais divina (Aristóteles, 2009, p. 38-39).
Superior à investigação da ética da felicidade e sua aplicação à vida de um homem é sua aplicação à sociedade, naquela época ao Estado,
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formando homens melhores, de bom caráter e felizes. Em última instância, esse é o objetivo da Ética aristotélica, e a finalidade para a qual todas as outras tendem. Um comentário da Ética à luz de Jacques Lacan A proposição aristotélica quanto ao que é próprio desse ser, que é o homem, localiza essa propriedade em sua razão, sua atividade racional. O exercício excelente dessa atividade, em consonância à virtude, levaria à sua finalidade última, desejada e visada em razão de todas as demais: a felicidade. A pergunta que nos cabe é: qual é a posição da psicanálise, tal como Lacan a interpreta, frente à investida aristotélica? O que se enseja nessa elaboração, a aristotélica, que Lacan afirma encontrar na psicanálise seu avesso, sua inversão? Quanto à felicidade, Lacan aponta, não há duvida para Freud de que seja aquilo que o homem busca, o seu objetivo. Conforme o psicanalista, “o pensamento de Aristóteles referente ao prazer tem algo que não é contestável, e que se encontra no polo diretivo da realização do homem, uma vez que se há no homem algo divino é o fato de pertencer à natureza” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 23). A questão é avaliar o quanto essa natureza é diferente daquela que a experiência da psicanálise pôde entrever, e o que se encontra nesse mundo de preparado, de orientado, para que essa felicidade seja alcançada. Em Freud, a referência do projeto de felicidade como propósito da vida humana é inequívoca. A problemática desenvolve-se na medida em que o seu programa se encontra “em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias” (Freud, 1930[1929]/1996, p. 84). Se a felicidade de Aristóteles comporta uma disposição final para a qual as coisas tendem, ou seja, dá-se como uma via alcançável, na psicanálise ela não é possível; para essa felicidade não há absolutamente nada preparado. O sujeito apreendido na experiência freudiana é aquele que suporta a realidade da falta, seu universo mórbido. Na filosofia aristotélica, conforme já dissemos, a alma é constituída por duas partes, a irracional e a racional, sendo o domínio desta sobre aquela almejado. A parte racional deve impor à outra ordens, de modo que a escuta e a obediência a tais ordens caracterizam a continência e a
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temperança, as quais possibilitam a vida conforme a virtude. A virtude, por sua vez, consiste na disposição equilibrada, harmoniosa, em relação às coisas; o vício, ao contrário, ocorre nos extremos, na desarmonia, em uma relação para além do desejável, do ordenado. A psicanálise lacaniana fala de uma realidade que ordena, que comanda; uma realidade que se encontra em algum lugar além do sujeito e que governa o conjunto da relação deste com o mundo. Essa realidade, na psicanálise, nada tem de racional, nem pode ser racionalizável. Ao contrário, fora desse discurso, e de qualquer possibilidade de articulação, sua realidade é aquela do desejo (Wunsch), de um desejo imperioso que, sob o modo da urgência, revela-se para o sujeito como alguma coisa que quer. Segundo Aristóteles, as características presentes no polo que corresponde à parte irracional, a saber, aquelas que comportam os chamados desejos bestiais, ligados às faculdades, presentes nos animais, de voracidade, de sexualidade e de brutalidade, não são constitutivas da ordem natural humana, do que é próprio a essa espécie. Ele exclui dessa ordem todos os desejos, localizando no que ele chama de exercício ativo da razão a especificidade humana, exercício este que deve ser diretivo na elaboração de uma sabedoria prática, de uma disposição moral. Os casos bestiais, tais como: o caso da “criatura sob forma de mulher [...] que rasgava os ventres das mulheres grávidas e devorava seus filhos6, ou de certas tribos nas costas do Mar Negro [...] que se deleitam com carne crua ou carne humana” (Aristóteles, 2009, p. 213), longe de marginais, para a psicanálise, que os inclui em sua ética, revelam algo constitutivo do sujeito. A dimensão do desejo, na psicanálise, é eleita a um lugar de centralidade, a partir do qual a própria dimensão moral passa a subsistir. Apesar dessa eleição, o que Freud intenta demonstrar, segundo Lacan, é que “tudo o que vai em direção à realidade exige não sei que temperança, baixa de tom do que é, propriamente falando, a energia do prazer” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 23). Em seu desejo, a dimensão do não querer, do não poder, não se encontra ausente. O sujeito da psicanálise é guiado pelo desejo, o qual é permeado pela instância crítica, colocando o mesmo sujeito em uma situação em que ele rodeia, circunda o objeto; ele censura-o, rejeita-o, não o quer. Dessa forma, na psicanálise, o que é localizado inteiramente fora da dimensão moral na experiência aristotélica, ou seja, o desejo, o prazer, se 6
Aqui, Aristóteles parece fazer referência à personagem Lâmia da mitologia grega.
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encontra não só no centro, mas como que fundante da experiência dita moral, ou seja, no princípio de uma ética. “A ética em Aristóteles é uma ética do caráter” (Ibidem, p. 20), diznos Lacan, e a finalidade de toda ela é a educação, a formação de homens bons que sirvam à cidade-estado virtuosamente. Sua diferenciação entre o ser vivo inanimado e o animado objetiva a demonstração da possibilidade de habituação do último. Essa possibilidade, referida sob o termo de ethos, é o que fundamenta a educação desse ser. Além disso, há um outro ethos, universal, do cosmos, ao qual o sujeito deve adequar-se. Sobre essa relação, diz-nos Lacan: Esse ethos [em referência ao hábito do homem], trata-se de obtê-lo, conforme ao ethos, ou seja, a uma ordem que é preciso reunir, na perspectiva lógica que é a de Aristóteles, num Bem Supremo, ponto de inserção, de vínculo, de convergência, em que uma ordem particular se unifica num conhecimento mais universal, em que a ética desemboca numa política, e mais além, numa imitação da ordem cósmica (Ibidem, p. 33).
Qual é o problema da ética de Aristóteles, portanto? Trata-se de uma conformação do sujeito a algo que não é sequer contestado. Se essa é uma ética universal, um hábito a que tendem a maior parte dos seres vivos, como é que a maioria, conforme o próprio Aristóteles a situa, se dirige na direção inversa, que é a do desejo? Se a ética de Aristóteles preconiza uma dimensão do hábito, isto é, do bom e do mau hábito, a psicanálise inscrevese em outro registro, aquele dos traumas e de sua persistência. A repetição em essência é da ordem do inconsciente, e ocorre na operação do desejo, de suas vicissitudes. Lacan localiza como um fator importante na elaboração dessa ética – que se dá sob a forma escolástica da frieza, da aridez – o enaltecimento da figura do mestre antigo7. Tal figura ideal, que representa uma condição humana distante, fora do trabalho dos escravos, consiste em um tipo social privilegiado, para não dizer ocioso; conforme Lacan o apresenta, inclui não sei que ideal de contemplação, de abstração. Com a queda dessa figura, corroborada por Hegel e também pelo movimento do utilitarismo, a ética aristotélica deixou de ter o seu peso anterior, e a 7
A palavra em francês usada por Lacan é maître; corresponde ao mesmo tempo ao paralelismo entre senhor e escravo, amo e criado e mestre e discípulo. É o termo utilizado para designar uma posição privilegiada, daquele que detém o saber, na Antiguidade (N. do tradutor. In: Lacan, 1959-1960/1997, p. 21).
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discussão ética adquiriu um novo rumo. Não obstante, uma explanação que aborde tais contribuições e a forma como se deu a dissolução da figura do mestre não foi intentada aqui. Se a ética aristotélica, na defesa da felicidade como o bem mais excelente, fala-nos da ação virtuosa nos termos de uma justa e excelente medida, que corresponde ao meio termo, à mediana, nisso ela comporta uma certa idealidade. A psicanálise, para Lacan, propõe uma outra via – a ética a partir do real, a partir da lida do sujeito com uma certa realidade, que insiste em reaparecer. Diz-nos Lacan no seminário em questão: “é em torno do termo de realidade, do verdadeiro sentido dessa palavra [...] que se situa a força da concepção de Freud, a qual é preciso medir com a persistência do próprio nome de Freud no desenvolvimento de nossa atividade analítica” (Ibidem, p. 50). Essa realidade, o que é? Como ela pode ser explorada? A retomada lacaniana de Freud e a introdução de das Ding Há em Freud, segundo Lacan, um dualismo conceitual que atravessa toda a sua obra. Apesar de encontrarmos uma série de oscilações, de mudanças e transformações, tal referência permanece inalterada em seu fundamento. Trata-se de uma oposição originária entre o princípio do prazer (Lustprinzip) e o princípio da realidade (Realitätsprinzip). Para a elucidação dessa oposição, Lacan resgata o esboço freudiano do Projeto para uma psicologia científica (Entwurf einer Psychologie, 1950[1895]). Esse manuscrito de 1895 tinha como objetivo constituir uma psicologia para o uso de neurologistas. Freud escreve-nos sua intenção: “prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 347). Esquecido e renegado por Freud, tal texto traz-nos algo que não se traduz apenas, como Lacan o diz, por uma “pobre contribuiçãozinha a uma fisiologia fantasista” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 50). Sua correlação com diversas das formulações psicanalíticas posteriores, elaboradas a partir da práxis clínica freudiana, revela-nos uma espécie de embasamento da teorização de Freud. O funcionamento desse aparelho neurônico freudiano se dá em dados opostos a uma adequação. Por sua própria natureza, há uma tendência ao erro. O princípio do prazer, introduzido nos termos de um
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princípio de inércia, aquele que visa à liberação, ao escoamento, bem como à barragem de uma quantidade de energia de origem interior ou exterior, regula-se sob uma espécie de automatismo. Esse mecanismo é operado pelos chamados processos primários. Nesses processos, a reação é imediata, sem correções ou alterações de percurso. A incidência da energia externa, ou seja, uma estimulação exógena, é desviada rapidamente por meio de uma via de escape ainda em , no sistema perceptivo. Pouca ação do que Freud chama de Ego (Ich) ocorre. Quanto à energia interna, a dos estímulos endógenos, caracterizada como “as grandes necessidades”, o aparelho esforça-se por permitir sua escoação, sua satisfação. Para além do que se coloca no exterior como objeto, ou seja, aquilo por meio do qual seria possível a satisfação de tais necessidades, esse organismo quer, sem demoras, alucinar o objeto desejado. A catexia, tal como Freud defende, corre livremente, sem impedimentos, segundo o caminho mais facilitado, que são aqueles já trilhados anteriormente. É necessário, entretanto, em oposição a essa tendência, a existência de um outro princípio, uma instância de realidade, que atue no sentido de correção, de ajuste. O princípio da realidade, nesse esquema de funcionamento, é introduzido como o que se opõe ao que se apresentava como a tendência fundamental do aparelho psíquico. Conforme Lacan, tal princípio opera sob o modo de “rodeio, precaução, retoque, retenção” (Ibidem, p. 40). O objeto desejado precisa ser encontrado na realidade; se não o for, a alucinação desencadeada será causa de desprazer. Por outro lado, se a instância de realidade, apresentada nos termos de uma correção, de uma chamada à ordem, incidir cedo demais, colocar-se-á como impedimento à satisfação da necessidade, e a pressão deverá ser suportada – outro desprazer. Nessa oposição, nesse conflito, percebe-se a referência da relação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade que entrega ao sujeito um suporte, que não se caracteriza de outro modo senão o da inconstância. Quanto a isso Lacan nos diz: “o conflito é introduzido aqui na base, na origem mesmo de um organismo que parece, afinal, vamos dizê-lo, sobretudo destinado a viver” (Ibidem, p. 40). Tal organismo definitivamente não é adequado: sofre de uma inadequação, diria Lacan, radical. Posto isso, ao tentar reconstituir o que seria a relação ou, em outro termo mais preciso, a oposição entre os dois princípios, o que se percebe é que, conforme nos diz Lacan:
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Luiz Paulo Leitão Martins e Vinicius Anciães Darriba No pareamento do princípio do prazer com o princípio de realidade, o princípio de realidade poderia parecer como um prolongamento, uma aplicação do princípio do prazer. Mas, opostamente, essa posição dependente e reduzida parece fazer surgir mais além alguma coisa que governa, no sentido mais amplo, o conjunto de nossa relação com o mundo (Ibidem, p. 31, grifo nosso).
E essa coisa o que é? Lacan vai buscá-la em Freud, na noção de das Ding presente no texto do Projeto (1950[1895]) e no artigo A negativa (Die Verneinung, 1925). Das Ding aparece pela primeira vez no Projeto na seção 16 da primeira parte. Após introduzi-la, Freud a reutilizará em outras passagens subsequentes. Tal modo de exposição é comum no Projeto: um conceito uma vez usado ou apresentado serve de referência, de base para os posteriores, reaparecendo em diversos outros momentos. O avanço de cada linha significa um desenvolvimento, e o acréscimo de novas noções é feito a partir de noções anteriores, sem as quais não seria possível a construção seguinte. Para se entender, contudo, o vínculo entre das Ding e a ideia de catexia do objeto de desejo, presente no contexto dessa seção, a 16, é importante retomar um conceito lançado por Freud em uma parte ainda anterior, a saber, o da experiência, o da vivência de satisfação (Befriedigungserlebnis). Conforme dissemos, para a satisfação “das grandes necessidades”, considerando a ação do princípio de realidade, é necessária uma ação específica a ser realizada no mundo externo (p. ex. no caso da fome, o consumo de alimentos). Essa ação específica, entretanto, só pode ser realizada, efetuada, mediante uma ajuda alheia, um objeto. Com tal ajuda, uma descarga permanente, enfim, seria possível, e a cessação do estado de tensão, de urgência, alcançada. Freud denomina tal experiência pelo termo de vivência de satisfação. Essa experiência, supostamente uma primeira, anterior a qualquer outra, produz em pallium, ou seja, no grupo de neurônios mnêmicos mais próximo de , a catexização de um complexo de neurônios, nos quais serão impressas imagens mnêmicas do objeto percebido. Ora, em um novo aparecimento do estado de urgência, tais neurônios serão ativados e um objeto tal qual o impresso como uma imagem mnêmica será buscado na realidade a fim de que mais uma vez livre-se da tensão no aparelho, e assim obtenha-se a experiência de satisfação primordial. Esse estado de tensão
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produz uma atração positiva para o objeto desejado, por sua imagem mnêmica. Nos termos freudianos, “eis aqui a atração de desejo primária” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 374). A partir deste ponto, Freud passa a discorrer sobre possíveis combinações desse encontro entre o objeto de desejo, representado, e o objeto percebido na realidade. Na segunda das combinações, em que o objeto percebido difere parcialmente do objeto desejado, Freud lança mão de certa suposição, e é em tal suposição que irá aparecer o conceito a que nos referimos, e a que atribuímos tamanho valor. A ideia é a de associar a imagem do objeto de desejo a certos neurônios denominados arbitrariamente por neurônio a e neurônio b, e a imagem do objeto percebido, a um neurônio a e outro c. Nesses termos, o objeto protótipo de satisfação, ou o objeto de desejo primordial, aquele por meio do qual todos os objetos subsequentes seriam avaliados, é associado por Freud a um complexo de neurônios em pallium, a + b. Aqui é exposta uma decomposição, uma divisão, à qual o autor irá apegar-se em diversos outros momentos de seu texto e, posteriormente, no artigo sobre A Negativa (1925). A divisão é feita em dois componentes: o primeiro (a), chamado de a coisa (das Ding), é o que se mantém constante, invariável nas relações objetais, e o segundo (b), chamado de seu predicado, é aquele que varia, responsável pela dessemelhança indicada na segunda das correlações possíveis. Freud prossegue sua exposição acrescentando ser a diferença entre b e c responsável pela fundação da atividade do juízo, a qual visaria ao reencontro do objeto primordial, ou seja, à identidade dos predicados. Percebe-se, portanto, que é na relação de b com c que comparações entre complexos podem ser feitas, visto que a, a coisa, permanece inalterada, como um ponto de intersecção. Tal ponto escapa ao juízo e corresponde ao excluído da atividade do pensamento, ao inassimilável. Conforme o psicanalista, esse elemento que é das Ding – e o fato de Freud não se referir a ele por um outro nome, por um outro significante, não deve passar despercebido – carece de significado, permanece assim estranho ao sujeito. Ele subsiste enquanto “resíduos que fogem de serem julgados” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 386). A ilustração do encontro da criança com o seio materno trazida por Freud serve-nos aqui para exemplificar o que seria ou onde estaria das Ding
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na relação de objeto, de um modo geral. Nessa ilustração supõe-se poder ser impressa na memória da criança uma situação em que, no ato de mamar, com um movimento da cabeça, a imagem frontal do seio transforma-se em uma imagem lateral. No encontro da imagem lateral em um momento posterior pode ser deduzido que a imagem frontal será reencontrada com um mesmo movimento da cabeça na direção contrária. É interessante notar que enquanto um elemento do binômio, o predicado (b ou c), varia conforme a perspectiva na qual a imagem é percebida, na da imagem frontal, b, e na da lateral, c, o outro, a coisa (a), permanece presente nas duas situações descritas. Nesses termos, não é possível restringir a localização de a nem à imagem frontal, nem à lateral, nem a qualquer outro elemento perceptivo. Antes é um componente comum, constante, presente em todas as percepções do objeto “semelhante” àquele desejado, conforme aponta Garcia-Roza (1991). Essa perspectiva de das Ding é retomada em outro texto de Freud, este publicado e aceito por seu autor: A negativa (1925). Em um determinado momento do texto, para a definição de duas funções principais atribuídas à atividade do juízo, Freud lança mão do termo coisa (das Ding) e aí encontramos outra contribuição. Segundo Freud (1925/2007, p. 148), a função de emitir juízos refere-se, basicamente, a duas espécies de decisão: (1) decidir se um objeto tem ou não uma certa característica, denominada por coisa, e (2) confirmar ou refutar se a representação (Vorstellung) psíquica dessa coisa tem existência na realidade8. O filósofo Jean Hyppolite em seu Comentário do presente texto dá nomes aos tipos de juízo: há um juízo de atribuição e outro de existência (Hyppolite, 1954/1998, p. 898). A primeira espécie de decisão sobre a qual Freud discorre é aquela na qual o sujeito, diante de um objeto que a partir da presença ou da ausência de uma certa característica é tido como bom ou mau, útil ou prejudicial, deve decidir se – expresso conforme Freud o faz, na linguagem dos impulsos orais – deseja comê-lo ou cuspi-lo, mantê-lo fora. Por trás do juízo de atribuição, o que é que existe? O que está aí emaranhado? Responde-nos Hyppolite, existe o “eu quero me apropriar”, ou o “eu quero 8
Hyppolite traduz: “a função do juízo […] deve, de uma coisa, dizer ou desdizer uma propriedade, e deve, de uma representação, declarar ou contestar sua existência na realidade” (1954/1998, p. 898).
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expulsar” (Ibidem, p. 898). O sujeito precisa se decidir quanto a isso. À introjeção Freud corresponde o ato de confirmar, e à expulsão, o de negar (Freud, 1925/1996). Vemos em Freud que “o ego-prazer original deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto é mau” (Ibidem, p. 267). A definição referente à qualidade do objeto, que é tido como bom ou mau, deve se dar, conforme fora apresentado, mediante a presença ou não de uma certa característica acoplada ao objeto. Essa característica é abordada no próximo tipo de decisão, e está ligada a um suposto primeiro objeto de satisfação, a partir do qual todos os subsequentes são medidos. A segunda espécie de decisão está engendrada na movimentação do interesse proveniente do ego-prazer inicial para o ego-realidade definitivo (Freud, 1925/2007, p. 148). A afirmação quanto a um objeto possuir um atributo qualificado como bom necessita da confirmação, pela via perceptiva, de que tal objeto tem existência externa, na realidade. Conforme Freud: A experiência ensinou à psique que não é somente importante saber se uma coisa (objeto de satisfação) possui uma qualidade 'boa', isto é, se merece ser acolhida no Eu, mas, também, se ela está presente no mundo externo, de modo a que seja possível apoderar-se dela conforme surja a necessidade para tal (Ibidem, p. 149).
Para fazer tal avanço, aquele presente entre a primeira e a segunda espécie de decisão, Freud traz a ideia de que, a princípio, não era necessário averiguar se o representado equivalia à realidade, pois, em sua origem, o representado e a percepção coincidiam na mesma coisa. Pergunta-nos Hyppolite (1954/1998, p. 899), esse “a princípio”, esse “em sua origem”, o que querem dizer? Para o filósofo, não querem dizer outra coisa senão “era uma vez” – expressão usada em referências mitológicas. Para Freud, há um grande mito fundante na relação do sujeito com o mundo. O que é sentido pelo sujeito como uma questão de dentro e fora tem origem nessa referência. O que Freud quer demonstrar com a relação representação/percepção é que tal antítese entre o conteúdo subjetivo e o objetivo surgiu desde que a representação, por meio do pensamento, pôde reproduzir, pela via imaginativa, o objeto percebido sem que o mesmo ainda estivesse presente na realidade. Essa capacidade do pensamento de imaginar, isto é, de presentificar o objeto percebido, é entrevista por Freud. Entendida nesses
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termos, a segunda função do juízo, a de existência, não visa propriamente encontrar um objeto externo idêntico ao representado: trata-se de reencontrar na realidade o objeto uma vez percebido, caracterizado por das Ding, por meio do qual uma satisfação fora obtida; em outros termos, convencer-se de que ele ainda está lá (Freud, 1925/2007, p. 149). Lendo o Projeto com a Negativa, a partir de Lacan, temos que o elemento estranho, indizível, do objeto, que é a coisa, ocupa um lugar de centralidade no encaminhamento do sujeito. É a partir dele que o sujeito buscará o reencontro na realidade do objeto perdido, por meio do teste de realidade, e encaminhará o sistema perceptivo, mediante cargas de investimento, à ação que permita a liberação da tensão, o fim do adiamento, e, por meio da atividade do juízo, decidirá quanto à introdução ou à expulsão do objeto percebido. Há um outro aspecto de das Ding a ser explorado. Conforme dissemos, o estabelecimento do objeto perdido como aquele visado funda um certo encaminhamento do sujeito. Para Lacan, é na trama das representações, segundo as leis do que Freud chama de trilhamento (Bahnung) mnêmico, que essa busca se dá. Para expor esse outro aspecto de das Ding, é preciso resgatar o que há no Projeto sob o termo de um pensamento ou juízo prático – ideia que se relaciona à identidade entre o objeto da catexia do desejo e o da realidade. Intencionalmente, por meio do que Freud chama de catexização colateral, o processo de pensamento intenta a um conhecimento que lhe seja prático; ele quer estar preparado para uma oportunidade real de ação, frente a condições favoráveis de satisfação, adquiridas pela via perceptiva. A imagem motora atua como auxiliar da ação específica. Na inexistência das referidas condições reais, a lembrança, seguindo como um processo primário, pode levar à descarga, no modo da alucinação do objeto. A alucinação do objeto produz prazer excessivo, sentido como desprazer. O princípio do prazer, o da inércia, precisa regular esse movimento. É aí que Lacan vai atribuir ao princípio do prazer a função de governar a busca pelo objeto; ele deve impor ao sujeito limites, rodeios, os quais conservarão a distância do sujeito em relação ao objeto desejado. Das Ding, segundo o funcionamento do princípio do prazer, impõe sua lei invisível ao sujeito de modo que a sua busca seja mantida a uma certa distância. Aquilo que o sujeito vê como sua meta, o fim de seu desejo, ele o
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evita. O seu ultrapassamento, Freud o diz nos termos da dimensão das vias de condução, dimensão do seu diâmetro, o organismo não pode suportar. Nesse contexto, o sujeito, portanto, faz sintomas, sintomas de defesa, organizados em torno do que poderia ser dito como defesa primária. O sujeito se defende no nível do inconsciente por meio da articulação significante. Sua gravitação, sua distância em relação a das Ding, é operada no nível das representações, organizado segundo leis da condensação e do deslocamento. No nível do discurso, a enunciação do recalcado, regida pelos níveis de prazer e desprazer, ocorre sob a forma da negativa, tal como nos é revelado no artigo freudiano da Negativa. O sujeito mente e é por meio desse modo que ele diz a verdade sobre o que está presente. Existe um conteúdo recalcado (Verdrängung)9 que, em seu caminho para a consciência, para o discurso organizado, racionalizado, só pode emergir sob a condição de que seja negado. O analisando, no contexto clínico, manifesta tal conteúdo, rejeitando-o. Deve-se, Freud nos instrui, desprezar a negativa e considerar a temática geral da enunciação, o seu conteúdo. Lacan oferecenos uma interpretação para o que se coloca sob o termo de Verneinen, que significa negar. Verneinen representa “o modo paradoxal pelo qual se situa, no discurso pronunciado, enunciado, no discurso do Bewusstwerden, o que está escondido, verborgen, no inconsciente, o modo sob o qual se confessa o que, para o sujeito, se encontra, ao mesmo tempo, presentificado e renegado” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 83). É na partícula não que Lacan localiza a verdadeira distinção entre a enunciação e o enunciado. Para o autor, a introdução desse termo – não – na fala é a indicação de que o sujeito fala verdadeiramente, articula-se. É nesse momento que ele deixa de ser falado, pelo discurso do Outro inconsciente. A esse respeito diz-nos Lacan, “o homem que, no ato da fala, reparte com seu semelhante o pão da verdade, partilha a mentira” (Lacan, 1953-1954/1998, p. 381). Temos, portanto, como corolário dessa exposição, que das Ding se situa no centro do sujeito, em torno do qual o mundo subjetivo do 9
Verdrängung significa “recalque”. Segundo Luiz Alberto Hanns, com o sentido do que é desalojado, empurrado para o lado de fora, a palavra implica um contínuo esforço no sentido de manutenção do estado de afastamento, de distância de certo conteúdo/objeto (Freud, 1925/2007).
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inconsciente, organizado em relações significantes, encontra-se emaranhado; mundo governado pela estrutura significante que de representação a representação caminha sob a lei do prazer e do desprazer. O bem desse sujeito, enquanto metafórico, é indicado sob essa forma da regulação do aparelho, como aquilo que o mantém; sua composição se dá na trama significante, lá onde o sujeito absolutamente não domina, no sistema de direções, de investimentos, que regulam sua conduta. A ética da psicanálise Diz-nos Freud, “suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada [pela criança] seja a do seio materno” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 381). É por essa forma, como suposição, que Freud anuncia já no Projeto um objeto que permeará como herdeiro sua obra e se colocará como central, no que diz respeito a ser objeto de desejo, em sua evocação da tragédia de Édipo Rei, de Sófocles, e sua elaboração do complexo de Édipo. O sujeito deseja sua mãe, e entra em rivalidade com seu pai, visto ser este objeto de desejo materno. Para Freud, o desejo original incestuoso coloca-se como um desejo proibido, impossível de se concretizar. Nesses termos é que em Freud se pode encontrar algo em torno do qual se formula o que se coloca como fundamento moral; referimo-nos à descoberta de uma lei fundamental, primordial, gerada pelo próprio desejo. A articulação presente na psicanálise, a partir de sua experiência cotidiana, localiza a gênese da dimensão moral enraizada não em outro lugar senão no próprio desejo. A dimensão do desejo, nessa perspectiva, inclui o caráter da lei, do imperativo moral. O que tentamos articular até o presente momento, com base em das Ding, é que o que ocupa o lugar dessa coisa, desse Outro pré-histórico impossível de ser reencontrado, é a mãe, o objeto do incesto. Eis o desejo, em seu fundamento. Se o desejo mais fundamental constitui-se como o do incesto, a lei que estrutura a distância do sujeito em relação a essa efetivação, essa realização do desejo, que é a lei da interdição do incesto, deve ser presentificada, constituindo o campo, o princípio, da consciência moral. Nos termos de Lacan: O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito
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pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto (Lacan, 1959-1960/1997, p. 87-88).
Essa é a descrição do que se dá na relação do sujeito com o mundo, a qual é essencialmente da ordem de uma ética, que a experiência psicanalítica pôde favorecer, e com a qual lida em seu trabalho cotidiano de análise. Lacan inicia a seção IV de seu seminário, intitulada Da Lei Moral, com o que seria a sua síntese do que fora dito até então. Sob a figura da personagem chamada por ele de simplório, Lacan explica das Ding e sua relação com o mundo subjetivo. Das Ding é o elemento central desse mundo, em torno do qual, no nível do inconsciente, as relações significantes operam. Tais relações orientam profundamente o sujeito e suas possibilidades de funcionamento em sua lida com o mundo. Pois bem, esse das Ding que está no centro, encontra-se aí justamente no sentido de estar excluído (Ibidem, p. 91). Essa é a posição primeira do sujeito em relação a algo que lhe é exterior, estranho, e se apresenta a ele como um Outro préhistórico. Há, entretanto, um bem em questão. Um bem-estar (Wohl) localizado na obra kantiana, da Crítica da razão prática (Kritik der praktischen Vernunft, 1788), em que o sujeito se regula, se harmoniza, no nível do que diríamos, com Freud, do princípio do prazer. A língua alemã, diz-nos Immanuel Kant, tem a sorte de contar com expressões diversas em referência a palavras ou ideias presentes em outras línguas apenas sob um termo, como no exemplo latino da palavra bonum. Bonum possui o sentido de bom e de bem-estar (Gute e Wohl), do mesmo modo que malum de mau e mal-estar/infortúnio (Böse e Übel). Para o intento kantiano naquela passagem, o de diferenciar bom de bem-estar, a diferenciação alemã lhe é útil. O bom se constitui como meio para o bemestar, o prazer, e o mau, para o mal-estar, o desprazer. Conforme Kant: O Wohl ou Übel sempre significa somente uma referência a nosso estado de agrado ou desagrado, de prazer e dor, e se por isso apetecemos ou detestamos um objeto, isto ocorre somente na medida em que ele é referido à nossa sensibilidade e ao sentimento de prazer e desprazer que ele produz. Mas o Gute ou Böse significa
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Luiz Paulo Leitão Martins e Vinicius Anciães Darriba sempre uma referência à vontade, na medida em que esta é determinada pela lei da razão a fazer algo de seu objeto (Kant, 1788/2008, p. 96-97).
O que nos interessa aqui é esse bem-estar, esse deleite ligado ao que o princípio do prazer, sob a forma metafórica, atribui ao bom objeto. Esse objeto da ordem de um bem, conforme Lacan o situa, é qualificado como tal apenas enquanto atributo. Diz-nos Lacan, “o que qualifica as representações na ordem do bem encontra-se tomado [...] no sistema de decomposição que lhe impõe a estrutura dos trilhamentos inconscientes” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 92). O bem-estar, porém, pode ser encontrado e ao seu modo pode designar o referido bem em questão. Com das Ding como objeto do desejo e sua interdição por ação da lei em relação a qual é fundamento, o princípio do prazer opera sob conforto, e resolve-se a tensão pelos chamados engodos bem-sucedidos freudianos. Lacan o diz: Da estrutura inconsciente que se regula segundo a lei do Lust e do Unlust, segundo a regra do Wunsch indestrutível, ávido de repetição, da repetição dos signos. É por meio disso que o sujeito regula sua distância a das Ding, fonte de todo Wohl a nível do princípio do prazer, e que fornece desde logo […] o bom objeto (Ibidem, p. 93).
A lei moral vista nesses termos estrutura o modo de conduta do indivíduo, regula sua distância a das Ding. Por que a busca pela análise, então? É nesse ponto que a ética da psicanálise – pois, para Lacan, a psicanálise tem uma –, que se caracteriza como uma ética do desejo, esboça uma contribuição. Se para alguns a pergunta “agistes em conformidade com teu desejo?” pode provocar receios e temores, por ser entendida como liberal demais, na psicanálise, ela constitui-se como o verdadeiro móvel da prática clínica. O analista interroga o analisando a respeito do que ele quer, e a essa questão ele é convocado a responder. Essa relação é descrita de uma forma esclarecedora por Lacan, nos seguintes termos: Essa presença [a do analista], que é a relação mais pura de que o sujeito é capaz para com um ser, e que é tão mais vivamente sentida como tal quanto menos qualificado é esse ser para ele, essa presença, momentaneamente liberta na extremidade dos véus que a recobrem e a eludem no discurso comum, na medida em que ele se constitui como discurso do se [on] precisamente para esse fim, essa
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presença é assinalada, no discurso, por uma escansão suspensiva, amiúde conotada por um momento de angústia (Lacan, 1953-1954/1998, p. 374).
O encontro entre analista e analisando, essa relação pura descrita por Lacan, deve ser visado, almejado, na clínica. Conforme Lacan, o sujeito começa a análise falando de si mesmo sem falar com vocês – em referência a seus ouvintes psicanalistas –, ou falando com vocês sem falar de si. Quando puder falar de si com vocês, ter-se-á o sinal demonstrativo do término da análise. Trata-se de uma enunciação que leva em conta essa presença, que é a do analista. Mas ele fala do quê? Qual é sua demanda mais fundamental? E a que é chamado a responder? Já demos a responda: ele fala de seu desejo. Situado no próprio início da análise, o eu é colocado em questão sobre o que quer. Diz-nos Lacan, “ele não é apenas interrogado mas, quando progride em sua experiência, coloca para si mesmo essa questão, e a coloca para si precisamente no lugar dos imperativos frequentemente estranhos, paradoxais, cruéis que lhe são propostos por sua experiência mórbida” (Lacan, 1959-1960/1997, p. 16). Essa experiência, favorecida pela análise, que retorna sempre ao mesmo lugar, é da ordem de um Real. Conclusão Retomemos a pergunta: afinal, em que consiste a contribuição freudiana? O que sua ética inaugura em relação à discussão histórica em torno da ética? Encontramos em Aristóteles um exemplo que nos mostra a constância com que a problemática conflitual entre prazer e lei moral se mantém na discussão ética. Segundo Lacan: Por que, afinal, foi preciso que os éticos voltassem sempre ao problema enigmático da relação do prazer com o bem final, naquilo que dirige a ação humana enquanto moral? Por que sempre voltar a esse mesmo tema do prazer? A exigência interna que coage o ético a tentar reduzir as antinomias que se ligam a esse tema provém de quê? – [responde-nos à luz da ética da psicanálise] do fato de o prazer aparecer, em muitos casos, como o termo oposto ao esforço moral, e de ser preciso, no entanto, que ele encontre aí a referência final, aquela à qual o bem que orienta a ação humana deve, no fim das contas, reduzir-se (Ibidem, p. 49).
Todos os fabricantes de éticas lidaram com o mesmo problema. O interesse lacaniano de se fazer um estudo da sucessão da reflexão ética desdobra-se a partir da percepção da constância de certas questões tidas como centrais em referência à moral. Criticada por Lacan, tida como ideal,
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essa oposição presente primeiramente em Aristóteles e depois em toda reflexão ética adquire novos fundamentos com o discurso psicanalítico. A moral concebida num lugar totalmente distinto daquele do desejo passa, com Freud, a ser localizada, em sua origem, no próprio desejo. É da energia do desejo que a instância da moral se depreenderá e passará a atuar nos termos freudianos como censura. E é nesse ponto que Lacan entrevê na obra freudiana algo que por sua articulação permitirá ir tão mais distante do enunciado precedente quanto ao problema moral. “O passo dado por Freud”, diz-nos Lacan, “é o de mostrar-nos que não há Bem Supremo – que o Bem Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Tal é o fundamento, derrubado, invertido, em Freud, da lei moral” (Ibidem, p. 90). É a partir desse novo fundamento que a ética da psicanálise, conforme Lacan a propõe, será estabelecida. A questão ética na práxis analítica estará em torno do desejo do analisando, em relação ao qual ele, como sujeito, será convocado a advir. Conforme Lacan: Temos de explorar o que o ser humano, ao longo dos tempos, foi capaz de explorar que transgredisse essa Lei, colocando-o numa relação com o desejo que ultrapassasse esse vínculo de interdição, e introduzisse, por cima da moral, uma erótica (Ibidem, p. 106).
Foi nosso objetivo, nessa retomada da passagem teórica de Freud a Lacan, esclarecer o ponto de enunciação da articulação ética na discursividade psicanalítica. Utilizamo-nos principalmente do referencial lacaniano em nossa interpretação. Ao fim do trabalho, intentamos que o presente texto surja como uma contribuição ao campo mais geral da reflexão ética, que é o da filosofia, no qual a psicanálise assume um lugar singular e de valor indiscutível, e, num sentido mais particular, ao campo de produção e articulação teórica em psicanálise. Referências ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Trad. David Ross. In: BARNES, J. (ed.). The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University Press, v. 2, 1984/1995. _______. Ética a Nicômaco. 3. ed. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2009. BARNES, Jonathan. Life and Work. In: BARNES, J. (ed.). The Cambridge
Do bem supremo à ética do desejo
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Henri Bergson e a crítica à psicologia científica Paulo César Rodrigues* Resumo: O que se pretende examinar com este estudo é a relação visivelmente polêmica que Bergson estabelece, desde seus primeiros trabalhos, com a psicologia de seu tempo. Trata-se, mais exatamente, de investigar a denúncia bergsoniana dos problemas metodológicos presentes na pesquisa científica em psicologia, em particular na psicofísica do século XIX. Ao acompanhar a argumentação crítica do autor, espera-se determinar as intenções filosóficas que animaram semelhante polêmica, bem como compreender o valor teórico das formulações de Bergson. Palavras-chave: intensidade; psicofísica; psicologia; qualidade; quantidade Abstract: This study intends to examine the relation, which is clearly polemic, that Bergson establishes, since his early works, with the psychology of his time. More precisely, this study is concerned with the investigation of the Bergsonian complaint of methodological problems present in scientific research in psychology, particularly in the psychophysics of the nineteenth century. By observing the critical argument of the author we expect to determine the philosophical intentions which inspired such controversy, as well as understand Bergson’s theoretical formulations. Keywords: intensity; psychophysics; psychology; quality; quantity
A crítica que Bergson endereça à psicologia científica pode ser lida como uma reação ao naturalismo radical que cada vez mais impregnava o ideário do século XIX, sobretudo as disciplinas que se aglutinavam entusiasticamente em torno do método das ciências naturais. É certo que essa crítica aparece de maneira bem definida no contexto bergsoniano: como crítica a uma categoria que se manifesta no núcleo das confusões de um tipo específico de psicologia, isto é, a categoria “grandeza intensiva”, tal como foi utilizada pela psicofísica oitocentista. Mas o objetivo da argumentação de Bergson não é exatamente o de nutrir um debate epistemológico em torno da cientificidade da psicologia. Sua ambição é a de determinar a especificidade da consciência e daí extrair as consequências que julga relevantes para seu itinerário filosófico. Contudo, desde sua primeira publicação importante, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência1, de *
Professor adjunto de Filosofia na UFCG – Universidade Federal de Campina Grande. Email: paulocr3@gmail.com [Artigo recebido em 20.01.2011, aprovado em 15.06.2011] 1 Doravante, a obra será chamada unicamente de Ensaio.
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 231-243
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1889, é possível encontrar uma preocupação acentuada com os procedimentos da psicologia. Aliás, o interesse por essa área do conhecimento foi alimentado por uma viva percepção de que as “ciências do espírito” não podem, pura e simplesmente, aderir ao receituário metodológico da Física sem desnaturar seu objeto de investigação. Bergson parece ter percebido que a tentativa de universalização do método das ciências naturais, anunciada em todas as letras meio século antes dele por Auguste Comte2, exige que se justifique de maneira consistente uma espécie de naturalização da consciência, isto é, exige que se demonstre que os fenômenos psíquicos podem ser assimilados tal como os fenômenos naturais. É por isso que a psicologia ocupa um lugar de destaque neste cenário epistemológico, pois, para universalizar com legitimidade teórica o método das ciências naturais, estendendo-o também para as chamadas ciências humanas, é preciso antes naturalizar a consciência. É preciso demonstrar que não há distinção entre o físico e o psíquico, de modo que as ações humanas (estejam elas no nível psicológico, moral, social etc.) seriam decorrências causais de processos fisiológicos determináveis experimentalmente. Em última análise, seriam manifestações de relações físico-químicas. Assim, ao problematizar as pretensões da psicologia positiva, denunciando, em seu interior, a presença de noções híbridas que acabam por confundir o qualitativo com o quantitativo, o psicológico com o fisiológico, Bergson recupera uma ideia compartilhada por muitos filósofos: a de que o “espírito”3 não exibe a mesma natureza da matéria. Com efeito, a psicologia se emancipou da metafísica e passou a reivindicar o título de ciência empírica ou natural logo na primeira metade do século XIX. As primeiras manifestações da psicologia científica se deram como psicofísica e psicofisiologia. Na História da psicologia, de Ferdinand Mueller, encontra-se uma sucinta definição desses dois empreendimentos: a psicofísica se atribuiu a tarefa de determinar a relação existente entre um fenômeno físico, considerado como excitação causal, e o fenômeno psíquico (a sensação) dele resultante, com a finalidade de chegar a leis. [...] a psicofisiologia, com base no reconhecimento de certas relações de concomitância entre estados 2 3
Refiro-me ao texto Curso de filosofia positiva, editado por Comte de 1830 a 1842. A palavra “espírito” é utilizada aqui sem nenhuma conotação religiosa, podendo ser substituída livremente por psiquismo, consciência ou, como preferem os contemporâneos, mente.
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psíquicos e estados fisiológicos (glandulares, nervosos, cerebrais) veio destronar, de maneira geral, a psicofísica (Mueller, 1968, p. 346-7).
Ao que tudo indica, a preocupação dos primeiros psicólogos experimentais era a de encontrar uma maneira de descrever os fenômenos psicológicos a partir de um referencial empírico, portanto passível de ser observado e controlado externamente. Consciente ou inconscientemente sensíveis às críticas positivistas endereçadas aos procedimentos introspectivos, tais psicólogos localizaram na “excitação causal” ou nos “abalos orgânicos” a pedra de toque dos fenômenos psicológicos, inspecionando-os experimentalmente4 e, por que não dizer, quantitativamente. O anseio de orientar a psicologia para o “caminho seguro de uma ciência” induziu muitos pesquisadores a introduzirem a medida no domínio da vida interior. A psicofísica realizou exemplarmente tal tarefa, rebatendo, ao mesmo tempo, a posição de Kant, segundo a qual a psicologia jamais poderia tornar-se uma ciência justamente porque seus objetos não podem ser submetidos à medida e ao cálculo5. Assim, a ciência psicológica do século XIX desenvolveu um novo repertório conceitual e um novo procedimento de pesquisa para afastar sua disciplina da especulação metafísica e aproximá-la da ciência positiva, chegando ao ponto radical de matematizar os fenômenos do “sentido interno”. Aquela que é possivelmente a primeira tentativa de conferir cientificidade às teorias psicológicas se desenvolveu a partir de um estudo quantitativo das sensações simples (tácteis, visuais e auditivas). Semelhante empreendimento ficou conhecido como psicofísica e gozou de um relativo sucesso no século XIX. As sensações simples (por exemplo: a sensação de luz, de calor etc.), por serem as mais facilmente controláveis nos testes 4
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É evidente que o psicólogo científico não está interessado apenas em descrever estímulos físicos ou fenômenos neurofisiológicos. Trata-se, na verdade, de uma estratégia teórica para abordar os fatos psicológicos a partir de sistemas empíricos e, portanto, controláveis pelo método das ciências naturais. Kant observara, nos Princípios metafísicos da ciência da natureza, que “[...] a doutrina da natureza só conterá autêntica ciência à medida que ela possa ser aplicada à matemática. [...] A psicologia empírica encontra-se ainda mais separada que a própria química do nível da ciência da natureza propriamente dita, primeiramente porque a matemática não é aplicável aos fenômenos do sentido interno e suas leis, pois teria que levar em conta, em tal caso, somente a lei de continuidade do fluxo de mudanças do mencionado sentido interno. [...]” (Kant, 1989, p. 31-2).
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empíricos, constituíram inicialmente os objetos de estudo privilegiados desse tipo de pesquisa. Deste modo, tais sensações, como experiências psicológicas elementares, passaram a ser medidas com precisão em testes por assim dizer laboratoriais. Os psicofísicos estavam engajados na tarefa de medir os fenômenos psicológicos simples (sensações) na expectativa de determinar leis gerais que pudessem descrever as regularidades encontradas na experiência interna. Para isso, aplicavam com rigor os procedimentos da pesquisa experimental. Um dos resultados que obtiveram foi a chamada “lei Weber-Fechner”, segundo a qual a quantidade de excitação causal cresce ou decresce de modo contínuo, ao passo que o efeito percebido pela consciência, isto é, a sensação, muda apenas de modo descontínuo, o que quer dizer que a percepção de uma mudança na sensação depende de um aumento ou de uma diminuição da quantidade de estímulo físico, os quais devem corresponder à quantidade inicial do estímulo. Engajados nesse empreendimento, os primeiros psicólogos do século XIX realizaram um conjunto significativo de experimentos que aparentemente davam conta de descrever quantitativamente os fenômenos do espírito, adaptando-os enfim aos parâmetros metodológicos das ciências da matéria. Contudo, o que é notável nesse tipo de psicologia não é seu potencial nomotético ou sua fertilidade preditiva, mas sua obsessão pela quantificação, pela mensuração exata dos fenômenos internos visando o estabelecimento de leis psicológicas (pensadas à maneira das leis físicas), bem como sua adesão prematura à hipótese do paralelismo psicofisiológico. Diante disso, ao examinar criticamente as teorias produzidas pelos psicofísicos, Bergson identificou um conjunto de problemas lógicos e metodológicos que, segundo ele, precisam ser resolvidos para que a psicologia justifique sua opção pela ciência e seu afastamento da metafísica. Num certo sentido, todos esses problemas se encontram interligados. Quantificação dos dados, determinação de leis e paralelismo psicofisiológico assentam-se na mesma confusão entre o qualitativo e o quantitativo, já que é ela que vai permitir medir os estados de consciência, determinar regularidades e fundar a legitimidade teórica da relação causal entre estímulo físico e experiência interna. A polêmica de Bergson, portanto, tem sua origem na categoria “grandeza intensiva”, tal como foi explorada pela psicofísica, uma vez que é essa noção híbrida que torna possível pensar a qualidade psicológica a partir da quantidade de excitações físicas.
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O ponto de partida da crítica de Bergson é, então, a ambiguidade de um conceito que mistura noções distintas. Ao pensar a “grandeza intensiva”, o psicólogo estabelece relações entre termos inconciliáveis, isto é, entre o qualitativo e o quantitativo. Evidentemente, na noção de grandeza representamos relações entre o mais e o menos, o maior e o menor; numa palavra, representamos relações entre continente e conteúdo, de modo que ela pode ser bem aplicada à descrição dos fenômenos naturais, isto é, ao mundo dos objetos e suas relações. Bergson mesmo reconhece a adequação entre o mundo material e os procedimentos de medida e cálculo, típicos da investigação científica. O evidente sucesso da física matemática, que floresceu na modernidade, decorre dessa adequação. Porém, na noção de intensidade, Bergson assevera, representamos vagamente a ideia de uma certa nuança qualitativa presente em nossas experiências. Quando nos expressamos, mesmo na linguagem comum, que sentimos uma dor mais intensa hoje do que ontem, é a uma certa qualidade da experiência que nos referimos. Tal apreciação não resulta, seguramente, de um cálculo das vibrações nervosas que são transmitidas para o cérebro, comparando-as com as de ontem e verificando uma diferença quantitativa entre elas. As experiências psicológicas, mesmo aquelas diretamente ligadas ao corpo, são vividas como experiências qualitativas, muito embora sua verdadeira natureza seja constantemente traída pelo modo como nos expressamos, uma vez que o senso comum utiliza palavras que indicam grandeza ou quantidade para falar sobre estados que raramente admitem esse tipo de descrição. Já o psicólogo positivo acaba por transferir o vocabulário comum para o âmbito científico, encontrando na ideia de grandeza intensiva uma maneira de falar sobre a qualidade (a única realidade que a consciência vivencia) através de noções quantitativas. A noção de grandeza intensiva cumpre com dignidade esse papel. Ela permite distinguir estados de consciência em termos de mais ou de menos, maior ou menor; enfim, permite pensá-los numa escala de “diferenças de grau” e não à luz das “diferenças de natureza”, como seria recomendável na filosofia de Bergson. Como não ver nesse procedimento uma transposição da maneira de pensar do senso comum para a ciência psicológica? Esse é, aliás, um dos pilares da crítica que Bergson endereça à psicologia, que remonta ao problema da
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linguagem6. Tudo se passa como se houvesse continuidade entre a apreciação comum dos fenômenos conscientes e a apreciação especializada da ciência psicológica, continuidade essa garantida pela utilização inadvertida da linguagem cotidiana. Todavia, convém dizer que a função teórica da noção de grandeza intensiva é justamente esta: viabilizar a medida em psicologia. Ao estabelecer uma conexão segura entre qualidade psicológica e quantidade de causas objetivas, a psicofísica força seu ingresso no reino encantado da ciência empírica. Contra as tendências especulativas e apriorísticas da psicologia tradicional, os psicofísicos propõem uma nova leitura dos fenômenos da consciência sem perceber que instalam uma confusão entre o físico e o psíquico no próprio coração de sua produção teórica. Indiferentes a essa confusão, os primeiros investigadores pensaram ter encontrado o verdadeiro antídoto contra o introspectivismo e pavimentado um caminho positivo para descrever os dados da consciência como fatos naturais. O psicólogo alemão Wilhelm Wundt, por exemplo, disse pioneiramente no livro Elementos de psicologia fisiológica que “[...] nada se passa em nossa consciência que não encontre seu fundamento sensorial em processos físicos determinados” (Mueller, 1968, p. 349). Eis o ideal de uma psicologia positiva exemplarmente expresso. Com efeito, a ideia de que o conteúdo da vida psíquica pode ser completamente determinado por “processos físicos”, sejam eles externos ou orgânicos, está na base de um conjunto de teorias que floresceram no século XIX e que levaram a sério a possibilidade de ancorar a consciência no nível físicobiológico. Em última análise, para boa parte desses psicólogos oitocentistas, a consciência representa um nível de realidade dotado das mesmas propriedades do nível físico-químico, por exemplo. Seus fenômenos não possuem nenhuma marca distintiva em relação aos demais fenômenos da natureza, de modo que a vida psicológica inteira poderia ser descrita como decorrência causal dos movimentos elementares da matéria, seja a matéria intracerebral, seja o torvelinho de estímulos do ambiente. 6
É o que testemunham as linhas iniciais do Ensaio: “Nós nos exprimimos necessariamente por palavras, e pensamos frequentemente no espaço. Em outros termos, a linguagem exige que estabeleçamos entre nossas ideias as mesmas distinções nítidas e precisas, a mesma descontinuidade que existe entre os objetos materiais Esta assimilação é útil na vida prática e necessária na maior parte das ciências” (Bergson, 2001, p. 03).
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Assim, ao quantificar a intensidade dos estados de consciência, o psicólogo introduz “diferenças de grau” num domínio da realidade que não se acomoda facilmente a esse tipo de apreciação, deformando a própria natureza do psiquismo no exato momento em que o esquematiza em quadros conceituais artificialmente produzidos pela inteligência. Porém, é notável que a psicologia consiga, com semelhante procedimento, ajustar seu campo de estudo aos métodos da pesquisa experimental. Notável também que a ideia de intensidade dos estados de consciência já representa, sozinha, a aplicação da quantidade no nível psíquico. Na verdade, a noção de intensidade surge no texto de Bergson como a principal responsável pela tradução do qualitativo em quantidade. É ela que permite uma espécie de taxionomia psíquica, agrupando os estados de consciência em gêneros psicológicos que só podem se relacionar entre si mediante o esquema do mais e do menos. Enfim, a intensidade acolhe a noção de grandeza sem levar em conta o aspecto puramente qualitativo dos fatos de consciência. Uma vez estabelecida a noção de grandeza intensiva, encontra-se aberto o caminho para interpretar um estado de consciência nos esquemas espacializados do pensamento científico; ou ainda, para ler a diferenciação qualitativa da vida interior como variação quantitativa, tal como esta pode ser determinada no mundo natural. O cerne da noção de grandeza intensiva está, portanto, no fato de se reproduzir no interno a estrutura do externo. O senso comum e posteriormente a própria ciência positiva representam a intensidade psicológica no mesmo esquema de inteligibilidade com o qual representam os objetos físicos no espaço, isto é, organizam a sucessão contínua da vida interior numa forma de justaposição que é, em última análise, o espaço abstrato do pensamento analítico. Deste modo, ao pensar a intensidade psicológica, os psicofísicos encontram uma única diferença em relação aos objetos externos, a saber, a intensidade psíquica possui um aspecto contraído. Ela tem a estrutura da extensão, só que ainda não se estendeu. É nesse sentido que podemos dizer que a intensidade promove a quantificação do qualitativo. Bergson afirma: Nós associamos então a uma certa qualidade do efeito uma certa quantidade da causa; e, finalmente, como acontece para todas as percepções adquiridas, colocamos a ideia na sensação, a quantidade da causa na qualidade do efeito. Neste momento preciso, a intensidade, que era apenas uma certa nuança ou qualidade da sensação, torna-se uma grandeza (Bergson, 2001, p. 31).
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Percebe-se, então, que a confusão conceitual instalada no coração da psicofísica transfere para a interioridade as mesmas relações encontradas na exterioridade, tornando homogêneos o mundo natural e a vida psicológica; enfim, afirmando uma espécie de paralelismo psicofisiológico7 ou, ainda mais radicalmente, a naturalização da consciência8. Tudo se passa como se os diversos níveis da realidade (físico, químico, biológico, fisiológico e psicológico) não apresentassem nenhuma especificidade, de modo que o psicólogo científico poderia descrever seus fenômenos dentro dos mesmos quadros conceituais e dos mesmos procedimentos metodológicos adotados, por exemplo, pelos físicos9. Ora, se a noção de grandeza intensiva é o próprio fundamento da quantificação em psicologia, e se a quantificação é a operação pela qual deformamos a real natureza da vida interior, então, pode-se dizer que ela será igualmente encontrada como pano de fundo de todos os demais erros desse empreendimento teórico chamado psicofísica. O anseio de dar um tratamento quantitativo para os fatos de consciência configura o erro basilar do qual todos os demais erros da psicofísica derivam. Bergson apontou, em particular, dois problemas na argumentação da psicologia experimental, isso ainda no primeiro capítulo
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A tese do paralelismo psicofisiológico foi investigada detalhadamente em dois ensaios compilados no livro A energia espiritual. Na conferência “A alma e o corpo”, Bergson diz: “A única hipótese precisa que a metafísica dos três últimos séculos nos legou sobre esse ponto é justamente a de um paralelismo rigoroso entre a alma e o corpo, com a alma exprimindo certos estados do corpo, ou o corpo exprimindo a alma, ou a alma e o corpo sendo duas traduções, em línguas diferentes, de um original que não seria nem um nem outro: nos três casos, o cerebral equivaleria exatamente ao mental” (id., ibid., p. 844). Já no último texto do livro, a saber, “O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica”, Bergson acrescenta: “Sobre as origens totalmente metafísicas dessa tese, aliás, não há dúvida possível. Ela deriva em linha direta do cartesianismo. Implicitamente contida (com muitas restrições, é verdade), na filosofia de Descartes, extraída e levada ao extremo por seus sucessores, ela passou, por intermédio dos médicos filósofos do século XVIII, para a psicofisiologia de nosso tempo” (id., ibid., p. 960). Por naturalização da consciência entende-se, geralmente, a atitude teórica que reduz a consciência aos fenômenos da substância cerebral, isto é, a consciência está inteiramente ancorada no sistema nervoso, sendo da mesma natureza de qualquer outro fenômeno físico. “Fatalmente, deveria chegar o momento onde, familiarizados com esta confusão da qualidade com a quantidade e da sensação com a excitação, a ciência buscaria medir uma como mede a outra: tal foi o objetivo da psicofísica” (id., ibid., p. 49).
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do Ensaio. Trata-se, como dizem os lógicos, de dois tipos de “falácias nãoformais”. O primeiro erro lógico identificado nos procedimentos teóricos da psicofísica é o “acidente convertido” ou a “generalização precipitada”, embora Bergson não tenha usado explicitamente esses termos. Tal erro se apresenta da seguinte maneira: quando a psicofísica estabelece experimentalmente uma relação entre excitação física e sensação psicológica, ela só considera os casos simples (sensação de luz, de calor, de dor, de pressão, de peso etc.), casos onde há uma inequívoca relação causal entre os dois âmbitos, isto é, entre o físico e o psíquico. Num segundo momento, o psicofísico estende as conclusões obtidas nesses domínios de exceção para a totalidade da vida consciente (incluindo aí os “sentimentos profundos”, como uma saudade, uma angústia, a compaixão etc.). É exatamente nisso que consiste a “generalização precipitada” que Bergson tanto repudia. Ao que tudo indica, o psicólogo não respeita as diferenças que se pode encontrar entre os diversos níveis da vida consciente, amalgamando-os a todos e assimilando-os do mesmo modo. Os fenômenos conscientes, sejam superficiais ou profundos, trazem igualmente a marca da passividade, de modo que todos os seus matizes podem ser lidos dentro da escala das diferenças de grau. Nessa maneira de representar a consciência, todos os seus estados são entendidos tão-somente como um conjunto de elementos petrificados e justapostos, de modo que o psicólogo poderia inferir as causas de cada um deles fora do âmbito psicológico, isto é, no ambiente ou nos processos orgânicos. Enfim, a consciência, para esse tipo de psicologia, não é uma dinâmica qualitativa dotada de espontaneidade, uma maturação que designa um progresso, mas uma série sucessiva de estados subjetivos impermeáveis uns aos outros e regidos pela mesma causalidade mecânica que encontramos no mundo da matéria inerte. Bergson, entretanto, mantém-se convicto de que o sucesso da psicofísica, e também o da psicofisiologia, dependem de uma demonstração empírica da correspondência entre o estado psicológico e a causa física. De fato, tal demonstração foi realizada pelos psicofísicos em inúmeros testes empíricos. Porém, os testes empíricos só estabeleceram essa relação nos estados mais superficiais da consciência. Aliás, o filósofo francês jamais negou que os estados superficiais da consciência pudessem ser conhecidos e controlados externamente pela pesquisa experimental. Numa passagem do
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Ensaio, ele observa que: “É incontestável que uma sensação mais intensa de luz é aquela que foi obtida ou que se obterá em meio a um maior número de fontes luminosas” (id., ibid., p. 07). Sem dúvida, todos admitirão que em tais casos a relação entre causa física e efeito psicológico é tão explícita que dificilmente alguém se convenceria do contrário. Mas, por outro lado, o que é contestável é a generalização dessa relação causal, aplicando-a para explicar em termos globais a vida consciente. Para Bergson, o fato dessa relação se estabelecer em alguns casos simples não implica que os casos complexos ou profundos também exibirão a mesma estrutura ou a mesma dependência em relação à causa física. Assim, a “generalização precipitada” figura como um deslize frequente da psicologia científica. De resto, esse primeiro tipo de erro lógico acaba evoluindo para um segundo tipo, ainda mais grave e mais nocivo às pretensões teóricas dos psicólogos positivos, a saber, a “petição de princípio”. Neste ponto Bergson estabelece que a psicologia, quando almeja a cientificidade, precisa demonstrar empiricamente suas proposições; enfim, precisa realizar experimentos para provar que as hipóteses que formula estão corretas. No caso específico da correspondência entre a quantidade de estímulos físicos e a intensidade das sensações, verifica-se um impasse que não é de fácil solução. Segundo Bergson, para provar essa correspondência entre causa física e efeito psíquico, a psicofísica precisa, de antemão, aceitar como verdadeiro o postulado teórico que a fundamenta. As experiências fotométricas, por exemplo, cumpriam exatamente esse papel. Com efeito, nenhuma experiência de mensuração seria encorajada sem a admissão prévia do postulado segundo o qual há uma espécie de simetria entre a realidade física e a psicológica. A bem dizer, elas exigem o postulado, pois, para medir a intensidade de uma sensação através da quantidade de estímulos, já é preciso supor que há uma relação entre uma coisa e outra. Em outros termos, para demonstrar empiricamente que há correspondência entre causa física e estado de consciência, a psicofísica precisa postular que há correspondência entre a causa física e o estado de consciência. Aí está, explicitamente, a “petição de princípio” da psicofísica. Seu postulado teórico aceita justamente aquilo que deseja demonstrar empiricamente. Bergson enuncia a “petição de princípio” nas seguintes palavras: toda a psicofísica está condenada por sua própria origem a girar num círculo vicioso, pois o postulado teórico sobre o qual ela repousa a condena a uma
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verificação experimental, e ela não pode ser verificada experimentalmente sem que se admita de início seu postulado (id., ibid., p. 48).
Todo problema parece estar na própria natureza da relação entre quantidade e qualidade, grandeza e intensidade, no intercâmbio confuso que se estabelece entre níveis distintos de realidade. Ao que parece, a psicologia científica confunde a experiência interna com a experiência externa, assimila a primeira pela segunda. Iludida por uma espécie de obsessão empirista, os psicofísicos, e também os psicofisiólogos, acabam comprometendo a descrição da consciência, uma vez que usam a mesma estrutura conceitual e o mesmo esquema metodológico da física para fazer psicologia. Quando Bergson pergunta: não podemos colocar em princípio que todo estado de consciência corresponde a uma certa agitação de moléculas e átomos da substância cerebral, e que a intensidade de uma sensação mede a amplitude, a complicação ou a extensão desses movimentos moleculares? (id., ibid., p. 08),
não é surpreendente que sua resposta seja esta: “[...] mas é a sensação que é dada à nossa consciência, e não este trabalho mecânico” (id., ibid.). Nota-se, aqui, que a tarefa da psicologia é a de descrever diretamente as experiências da consciência, de modo que ela deveria voltar seu olhar para o conteúdo da vida psicológica e não apenas para sua interação com o ambiente ou com a base orgânica (corpo). Em última análise, é esse retorno aos “dados imediatos” que fará da psicologia um verdadeiro estudo dos fatos de consciência. Ao renunciar a consciência em si mesma, os psicofísicos só podem produzir um simulacro de psicologia sobre um simulacro de consciência. Enquanto a psicologia estiver apegada a uma metodologia inadequada à real natureza de seu campo de investigação, ela se prenderá a um falso realismo, sempre infiel à experiência imediata da consciência10. Seu 10
Acerca desse ponto, Bento Prado Jr., em sua célebre interpretação da filosofia de Bergson, fez duas observações críticas importantes, colocando aspas no suposto realismo empírico da psicologia científica: “Se a causa objetiva pode ser pensada e calculada, ela não pode, por definição, dar-se imediatamente à consciência. Se a psicologia recorre aos quadros da física para ordenar os seus dados, ela o faz confundindo planos lógicos diversos. Esta confusão, entre o que se dá à consciência e sua causa objetiva, reproduz-se no próprio interior da consciência, na confusão entre consciência da intensidade e intensidade da consciência” (Prado Jr., 1989, p. 80). E ainda: “O ‘realismo’ da psicofisiologia é, em última instância,
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objeto de estudo será sempre construído teoricamente ao invés de ser vivido internamente. E para Bergson, é preciso dizer, a consciência só revela seus segredos numa apreensão que é antes de tudo um contato, uma simpatia ou coincidência com o conteúdo movediço da vida interior. Nesse sentido, a crítica levantada por Bergson visa, no fim das contas, restaurar os direitos de uma psicologia filosófica ou, melhor dizendo, fundar uma psicologia que seja a porta de entrada da metafísica, ostentando a distinção radical entre o universo da extensão e a duração, a exterioridade e a interioridade. Contudo, em Bergson, nunca se tratou de propor uma destruição completa da psicologia empírica para dar voz novamente ao filósofo. Ao contrário, Bergson sempre reconheceu o lugar desse tipo de pesquisa. O que ele pretendeu, na verdade, foi corrigir seus excessos naturalistas, limpando-a de um certo dogmatismo científico muito presente no final do século XIX. No fundo, o que separa Bergson de um tipo de psicologia aderente ao naturalismo radical é a tese filosófica segundo a qual há dois níveis de consciência, que ele chama de “eu superficial” e “eu profundo”. O primeiro nível pode ser descrito pela psicologia científica, uma vez que se trata da consciência organizada espacialmente, engajada no universo da matéria, adaptada à vida social e aos objetos que povoam a exterioridade. Já o segundo nível constitui o campo de estudo da metafísica, ou seja, o estudo da consciência desvinculada do interesse prático, da consciência como dado imediato, acessível apenas através de uma interiorização intuitiva; numa palavra, através de um retorno a si que a descobre como “mudança interna” 11. O compromisso da filosofia é, então, justamente o de fornecer princípios metafísicos mais precisos para orientar a um ‘idealismo’, à medida que produz a consciência a partir de objetos pensados e inacessíveis à experiência direta. A passagem da causa objetiva ao seu pretenso efeito é um salto de uma a outra dimensão da experiência: é um salto, já que a passagem, ela mesma, jamais pode dar-se à experiência (id., ibid., p. 113). 11 Em Matéria e memória, no Avant-propos de la septième édition, Bergson declara: “Sem contestar à psicologia, tampouco à metafísica, o direito de se erigir em ciência independente, estimamos que cada uma das duas ciências deve pôr problemas à outra e pode, numa certa medida, ajudar a resolvê-los. Como poderia ser diferente, se a psicologia tem por objeto o estudo do espírito humano enquanto funcionando utilmente para a prática, e se a metafísica é esse mesmo espírito humano fazendo um esforço para se libertar das condições da ação útil e se assumir como pura energia criadora?” (Bergson, 2001, p. 167).
Henri Bergson e a crítica à psicologia científica
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pesquisa experimental a partir dos fatos empíricos e dos dados que recolhe no campo da experiência imediata da consciência. É o que Bergson fez no Ensaio. É o que ele novamente irá fazer em Matéria e memória, tematizando as patologias da memória e examinando a estrutura da “lembrança pura”. Fica evidente, por fim, que a ambição do filósofo francês, desde seu primeiro livro, foi a de rebater o naturalismo radical que pretendia reduzir todos os fenômenos a um único tipo de inteligibilidade, tornando-os perfeitamente assimiláveis por meio de um materialismo mecanicista. Matéria e memória e A evolução criadora vão prolongar essas críticas e estendê-las ao domínio da psicofisiologia e da biologia evolucionista. Enfim, a filosofia de Bergson foi uma reação a uma certa concepção da realidade como um conjunto de elementos acabados, petrificados e inertes. Uma realidade que não cria absolutamente nada novo; numa palavra, uma realidade morta e impermeável ao tempo. Por isso, também, o bergsonismo pode ser lido como um grande ritual filosófico para exorcizar o “demônio de Laplace”12. Referências BERGSON, Henri. Oeuvres. 6a ed. Paris: PUF, 2001. COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Col. Os Pensadores). KANT, Immanuel. Principios metafísicos de la ciencia de la naturaleza. Tradução de Carlos Másmela. 2a ed. Madrid: Alianza Editorial,1989. 165 p. MUELLER, Ferdnand. História da psicologia: da antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Nacional, 1968, (Coleção Atividades pedagógicas). PRADO JR., Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
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Trata-se da famosa passagem do texto Teoria analítica das probabilidades (1812), na qual Laplace cogita ser possível prever todos os fenômenos futuros e explicar todos os fenômenos passados apenas através do conhecimento da posição, da direção e da velocidade de todas as partículas materiais do universo, bastando para isso submeter esses dados ao cálculo (o que sem dúvida exigiria uma capacidade sobre-humana). Enfim, nessa representação da natureza, o universo não é mais que um conjunto gigantesco de partículas materiais em movimento.
A intuição na teoria do conhecimento de William Whewell Rita Foelker* Sonia Maria Dion** Resumo: Para o filósofo inglês William Whewell, a multiplicidade de observações e o refinamento dos resultados alcançados no decorrer dos séculos, através de uma forma elaborada de indutivismo, nos permitem compreender a ciência progredindo rumo às verdades necessárias e universais, além dos limites do psicologismo e do ponto de vista particular. A intuição ocupa nesse processo um papel crucial, o qual vem recebendo dos comentadores diferentes interpretações. O estatuto epistemológico da intuição e em que medida ela se insere no processo de descobrimento de verdades são questões que analisaremos neste artigo. Palavras chave: ciência; epistemologia; intuição; Whewell Abstract: To the English philosopher William Whewell, the multiplicity of observations and the refinement of results reached during the centuries, through an elaborated form of inductivism, allows us to understand science as developing towards necessary and universal truths, beyond the limits of the psychologism and particular point of view. Intuition holds a crucial role in this process that has received different interpretations from commentators. The epistemological status of intuition and in what proportion it is placed in the process of discovering truths are issues we will analyze in this paper. Keywords: epistemology; intuition, science; Whewell
Introdução William Whewell, além de filósofo, foi cientista, historiador da ciência e mestre do Trinity College de Cambridge, tendo produzido sua obra científica e filosófica no ambiente cultural da Inglaterra vitoriana. Bird (2008, p. 67) considera que foi graças a ele que a história da ciência encontrou seu lugar na vida acadêmica, a partir do século XIX, pois até então ela sempre fora utilizada apenas como introdução aos textos filosóficos.
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Mestranda em Filosofia, Universidade São Judas Tadeu. Bolsista CAPES. E-mail: rfoelker@gmail.com ** Doutora em Educação, Professora do Programa de Mestrado em Filosofia, Universidade São Judas Tadeu. E-mail: prof.sdion@usjt.br [Artigo recebido em 23.07.2010, aprovado em 10.06.2011]
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 201, p. 245-258
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Um traço marcante de seu pensamento epistemológico advém do fato de ser ele um pós-humeano que afirma que a ciência indutiva pode produzir verdades universais e necessárias, diferentemente do empirismo dominante no período, o qual, por intermédio de Locke e Hume, apontava os sérios problemas de justificação empírica da indução. Whewell concebeu um modelo de ciência indutivista sofisticada, na qual os elementos ideais também desempenham uma função decisiva. Mesmo incorporando a crítica de Hume à indução, pois concordava com as falhas do método em fornecer evidências científicas, a solução de Whewell foi eminentemente original, sem pender para o idealismo que predominava na filosofia alemã. Chibeni (2006), Fisch (1985a), Morrison (1990) e Snyder (2004), reconhecem as virtudes confirmatórias de seu critério de consiliência de induções,1 embora discordem de que ela conduziria ao encontro de verdades científicas necessárias, como pretendia Whewell. Neste artigo consideraremos o papel da intuição em sua epistemologia, e em que medida ela se insere no processo de descobrimento de verdades, tendo em vista que seu estatuto tem sido interpretado de diferentes maneiras pelos comentadores. Segundo Snyder (1994), Whewell pretende que o termo se refira a uma apreensão “imediata”, mais que “não racional” de uma ideia. O intuito da autora é afirmar que uma verdade necessária pode ser conhecida a priori, imediatamente, apenas pelo fato de se ter apreendido distintamente o sentido da Ideia Fundamental – conceito que examinaremos adiante – da qual ela deriva. A intuição de uma verdade necessária ocorreria uma vez que o conteúdo da Ideia se tornasse claro e distinto para o cientista. Na ausência de tal distinção, não haveria intuição. Embora concorde com Snyder (1994) quanto ao imediatismo, Morrison (1997) entende que este está relacionado a um “aspecto estrutural” do conhecimento humano (cf. 1997, p. 430), caracterizando a intuição segundo Whewell como uma forma de psicologismo. Assim, a necessidade e universalidade das afirmações da ciência estariam fundadas 1
Consiliência de induções é a “capacidade de uma teoria unificar classes de fenômenos conhecidas, mas até então tidas como desconexas” (Chibeni, 2006, p. 227). O exemplo clássico de teoria consiliente é aquele que reúne sob uma mesma lei – a da Gravitação Universal – fenômenos como a atração entre os planetas, a queda dos corpos e o movimento dos pêndulos.
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num estado psicológico, um estado de consciência “imediata”, fornecido por nossa intuição. As duas autoras consideram o imediatismo a qualidade mais importante da intuição, no entanto, Snyder (1994) crê que sua principal característica é o apriorismo das noções adquiridas no estudo e trabalho contínuo do cientista, como base para intuir verdades. Morrison (1997) localiza a intuição na psicologia do conhecimento humano, o que, segundo ela, distingue a posição de Whewell do transcendentalismo kantiano, mas também se distancia do empirismo de seus antecessores, por se basear na noção de um “sexto sentido”2. Seria o imediatismo o caráter principal da intuição para Whewell? Acreditamos, que a leitura do texto original de Whewell, em particular de Aphorisms concerning ideas, science, and the language of science (1840), permite uma interpretação que difere da apresentada pelas duas autoras e pode encontrar apoio em outros trechos do próprio filósofo. Para sua apresentação iniciaremos tratando de alguns tópicos da teoria do conhecimento de Whewell, que são essenciais para compreender a questão e, em seguida, passaremos à análise do papel que ele atribui à intuição na busca do conhecimento. Da antítese às ideias fundamentais Um dos pontos de partida da compreensão do pensamento de Whewell, no que concerne à sua epistemologia, é o estudo daquilo que ele próprio denomina “antítese fundamental da filosofia”. Sua definição e explicação surgem logo nas primeiras páginas de The philosophy of the inductive sciences founded upon their history (1840), e pode ser entendida, para uma primeira aproximação, como a tese que busca explicar como os elementos formais e materiais do conhecimento se fundem numa experiência unificada. De fato, falar em elementos formais e materiais já implica em subverter de algum modo a noção da antítese. Whewell enfrenta o tema da dicotomia criada por autores como Aristóteles e Kant – entre elementos materiais e formais – e Locke – entre sensação e reflexão, mostrando que tais oposições são concebíveis na filosofia, mas que na experiência de conhecer seus polos são inseparáveis.
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Sobre o tema ver Morrison (1997), p. 432.
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Para ele, a distinção entre pensamentos e coisas está longe de ser clara e definida, como presume o senso comum. Pois, a fim de que a experiência faça sentido, para que se consiga ordenar e compreender os dados dos sentidos, meras sensações são insuficientes. É preciso que a atividade mental imponha sobre os dados percebidos um conceito, uma relação. Nas palavras do filósofo: Nós vemos e ouvimos e tocamos coisas externas, e desse modo percebemo-las pelos nossos sentidos; mas ao percebê-las, nós conectamos as impressões dos sentidos de acordo com relações de espaço, tempo, número, semelhança, causa etc. (Whewell, 2010, p. 25)3.
E, a partir daí, torna-se cada vez mais claro no decorrer da obra que, em sua filosofia, os elementos do conhecimento que se costuma estudar separadamente são, de fato, partes de uma mesma e única ação de conhecer. Ele explicará cada um dos desdobramentos de sua antítese, como ela se aplica a termos como pensamentos/coisas, verdades necessárias/verdades experienciais, dedução/indução, teoria/fato, ideias/sensações, reflexão/sensação, subjetivo/objetivo, matéria/forma, tornados conceitos distintos para fins de estudo e reflexão, mas que, na prática, são faces de uma mesma moeda, impossíveis de serem isoladas. Whewell prossegue seu raciocínio, acrescentando mais uma premissa: Agora pelo menos alguns desses tipos de conexão, como espaço, tempo, número, podem ser contempladas em separado das coisas às quais elas são aplicadas; e, assim contempladas, eu as chamo de Ideias. (2010, p. 25)
Segundo ele, Ideias Fundamentais são as leis do pensamento ou leis da atividade mental, por meio das quais a mente fornece estrutura ou forma a uma multiplicidade de sensações, expressando as relações entre elas. Eu denomino espaço, tempo, causa etc, Ideias, porque elas são relações gerais entre nossas sensações, apreendidas por um ato da mente, não pelos sentidos simplesmente. Essas relações envolvem algo além do que os sentidos sozinhos poderiam fornecer. Pelo sentido da visão nós vemos várias sombras e cores e formas diante de nós, mas os contornos pelos quais eles estão separados como objetos 3
Os trechos citados de Whewell e seus comentadores foram traduzidos do inglês por Rita Foelker.
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distintos de formas definidas, constituem o trabalho da própria mente. E novamente, quando nós concebemos coisas visíveis, não apenas como superfícies de certa forma, mas como corpos sólidos, dispostos a várias distâncias no espaço, nós de novo exercemos um ato da mente sobre eles. Quando vemos um corpo se mover, vemo-lo mover num caminho ou órbita, mas essa órbita não é, ela própria, vista; ela é construída pela mente. [...] Tais atos do pensamento, tais Ideias, se inserem em nossas percepções de coisas externas. (Whewell, 2010, p. 25)
Butts (1965) vislumbrou nas Ideias Fundamentais uma forte semelhança com a noção de ‘categorias’ kantianas, mas de fato, embora Whewell admita a influência de Kant sobre seu pensamento, elas são bastante diferentes. Em Stanford Enciclopedia of Philosophy, seis diferenças importantes são mencionadas (cf. Snyder, 2006). Por exemplo: supridas pela própria mente, as Ideias resultam de sua constituição particular e atividade, razão pela qual não são inatas, como as categorias, e tampouco sua origem independe completamente da experiência, como propôs Kant em seu sistema. Também as Ideias não existem em número definido, como as categorias, podendo ainda haver outras a serem descobertas. Uma distinção importante entre ambas é o fato de não se constituírem as Ideias Fundamentais em ‘condições da experiência’, mas em condições do próprio conhecimento, conforme escreve Whewell em Demonstration that all matter is heavy (cf. Whewell, 1841, apud Butts, 1965, p. 163). Necessidade, segundo Whewell, e pretensões da ciência Até o momento, as noções de antítese fundamental da filosofia e Ideias Fundamentais foram sintetizadas. Sua compreensão é o primeiro passo para esclarecer o que Whewell entende por ‘conhecer’. Uma característica peculiar do seu indutivismo é a tese de que a experiência não é suficiente para atingir o conhecimento. Segundo Whewell, conhecer é conhecer verdades necessárias, contudo, “experiência não nos conduz a verdades universais e necessárias: – não às universais, porque não tentou todos os casos: – não às necessárias, porque necessidade não é matéria sobre a qual a experiência possa testificar (2009 [1840a], p. 3). Estas palavras resumem uma ‘definição negativa’ de verdade necessária, aquela que nos diz o que alguma coisa não pode ser. Mais difícil é compreender o que positivamente seria uma verdade necessária, segundo Whewell, e como se chega a conhecê-la.
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As Ideias, como vimos, são os elementos internos que nos possibilitam relacionar os eventos do mundo externo, pois são capazes de conectar os dados que, sem elas, seriam apenas informações desprovidas de ordem e sentido. Cada Ideia Fundamental origina certas concepções, as quais se ajustam aos casos particulares de cada ciência. Concepções são modificações da Ideia Fundamental, que permitem ao cientista aplicá-la na interpretação dos fenômenos. A concepção de “causa como força”, que serve para interpretar os fenômenos mecânicos, é um exemplo. A concepção aplicada aos fenômenos de maneira apropriada poderá conduzir à afirmação de uma lei empírica, a qual irá coligar4 fatos ou fenômenos por meio da relação presente na Ideia. Uma Ideia em si mesma, no entanto, jamais é conhecida diretamente, mas apenas por meio dos axiomas que dela derivam. “A Ideia é descoberta, mas não totalmente revelada, comunicada, mas não transfundida, pelo uso que dela fazemos na ciência” (2010, p. 73). Desta forma, o axioma “todo efeito tem uma causa”, expressa uma verdade universal e necessária contida na Ideia de Causa, mas a própria Ideia está além de nossa compreensão e raciocínios. Por sua vez a experiência, tomada em sentido amplo5, não nos oferece o acesso a verdades universais e necessárias, mas tem o poder de nos levar à “intuição” das mesmas. “Verdades são fincadas em nossas mentes pela experiência, assim como as sementes são fincadas no solo” (2010 [1860], p. 345). Quando se adquire o conhecimento de uma verdade necessária, duas condições são preenchidas: (i) ela é derivada da experiência e (ii) sua negação é não apenas falsa, mas conceber o seu contrário distintamente é impossível (cf. Butts, 1965, p. 164). Verdades necessárias, segundo Whewell, não são, portanto, analíticas, no sentido kantiano, mas 4
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Coligação dos fatos é a operação mental que reúne um número definido de fatos empíricos, superinduzindo a partir deles uma concepção que os une e permite serem expressos por uma lei geral. Butts (1965) claramente identifica dois sentidos para o termo ‘experiência’ nos textos whewellianos. Num primeiro sentido, mais específico, trata-se da observação e experimento científicos. Mas ele também o utiliza em sentido mais geral, como sinônimo de ‘percepção’. É neste segundo sentido que a experiência conduz à distinção entre verdades contingentes e necessárias.
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pressupõem experimentos e observações, sendo informativas sobre o mundo. Aliás, segundo o filósofo afirma em On the philosophy of discovery, “o Progresso da Ciência consiste na transferência de fatos, do lado empírico para o lado necessário da antítese [fundamental da filosofia]” (2010 [1860], p. 303). O fundamento da necessidade O fundamento da necessidade para Whewell teria caráter teológico, segundo Snyder (1995), pois não podemos compreender a noção whewelliana de verdade necessária sem entender como a Ideia de um Deus Criador e Mantenedor das leis da Natureza participa de sua teoria do conhecimento. Butts (1965) compartilha dessa concepção, ao afirmar que os pressupostos contidos no “inquestionável, literalmente ontológico Cristianismo teísta” (id., p. 180) são a última grande influência no pensamento whewelliano acerca do conhecimento. Já Fisch (1985b) discorda desse entendimento. Para ele, a necessidade é estabelecida por outro meio e Whewell não utiliza Deus para justificar sua concepção de conhecimento, porém, ao contrário: aplica sua concepção de conhecimento para postular a existência de Deus (cf. 1985b, p. 312-313). E o conhecimento da verdade deriva então de duas fontes: a verdade contingente surge da observação e correspondência com o mundo, e a verdade necessária provém da atividade de uma “elite científica” com “mentes treinadas” e concepções (no sentido whewelliano) suficientemente claras e distintas para intuí-la (cf. id., p. 305). Qualquer que seja o fundamento das verdades necessárias, porém, o ser humano não as recebe prontas e acabadas. O acesso às verdades necessárias é progressivo (cf. Whewell, 2010 [1860], p. 354), e a possibilidade de desvendá-las se relaciona ao lugar especial que o ser humano ocupa na Criação e à gradativa ampliação de nossa capacidade de acessá-las, por meio do estudo e da disciplina intelectual. Ao propor explicações6 para as Ideias, os cientistas constroem concepções sobre elas, e a realização dos experimentos vai permitir determinar se tais concepções coligam os fatos de maneira correta, ou se a 6
Explicação na epistemologia whewelliana é o processo de desdobrar o sentido de uma Ideia ou concepção.
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concepção precisa ser melhor formulada. Aqui entram os critérios de predição, coerência7 e consiliência de induções (v. nota 2). Quando uma teoria passou pelos três critérios, ela pode ser considerada uma verdade experiencial ou contingente. Se ela falhar, significa que a concepção não expressava a Ideia Fundamental de forma correta e precisa ser reformulada. Contudo, uma vez que a Ideia é interpretada corretamente, seus axiomas deixam de ser mera teoria para serem fatos que já podemos conhecer a priori e que, portanto, constituirão a partir dali nossa visão de mundo e nossos pressupostos científicos. E dado que os fatos observados revelam axiomas que podemos conhecer sem mais apelo à experiência, há uma possibilidade aventada pelo próprio filósofo de que, a partir de certo ponto, uma ciência bem articulada, como a Mecânica, possa se desenvolver apenas por dedução dos axiomas conhecidos. Isto afirma Butts (cf. 1965, p. 172). Snyder (cf. 1994, p. 804) entende que a possibilidade se estende a todas as ciências. Desde que as concepções presentes nas Ideias Fundamentais são informativas sobre o mundo e, simultaneamente, verdades necessárias sobre ele, a ciência possibilita aclarar e tornar distinto seu significado, a fim de que elas sejam usadas para coligar os fatos em proposições necessárias e universais. Whewell, contudo, observa que “na contemplação do universo, embora compreendamos muito, sempre há de ter algo que não compreendemos” (2010 [1860], p. 306). Ainda assim, é função da ciência buscar verdades necessárias, para se atingir um real entendimento do mundo. E cabe-nos saber não apenas o que é verdade, mas por que é verdade. Afinal, as coisas são como são, não por acaso, mas em consequência das Ideias Divinas que elas expressam. Segundo o filósofo, nenhuma filosofia da ciência pode estar completa se não for também uma filosofia do universo; e nenhuma filosofia do Universo pode satisfazer homens zelosos, se não incluir uma referência ao poder pelo qual o universo se tornou aquilo que ele é. (2010 [1860], p. 354) 7
“O que Whewell chama de ‘coerência’ é baseado na ideia de que teorias científicas mudam com o tempo como resultado de novas investigações. Se uma teoria se torna mais coerente (unificada, simples), ficamos mais convencidos da sua verdade.” (Achinstein, P. , apud Psillos, S.; Curd, M., 2008, p. 341, tradução de Rita Foelker)
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Dessa forma, o fundamento das verdades necessárias encontra-se no pressuposto da existência real das Ideias Fundamentais e na capacidade intuitiva dos seres humanos. O estatuto da intuição Whewell considera que certas verdades são alcançadas por meio da intuição, mas trata-se de uma “realização difícil e rara” para a qual a mente humana precisa estar preparada por meio de um trabalho extraordinário, dada a “clareza e sutileza” que ela exige. (2010 [1860], p. 339). Para esclarecer seu funcionamento, lemos em seu Aforismo XXXIX: Intuitiva é o oposto de razão discursiva. Na intuição, obtemos nossas conclusões ao nos demorarmos em um aspecto da Ideia Fundamental; no raciocínio discursivo, nós combinamos vários aspectos da Ideia, (i. e., vários axiomas) e raciocinamos a partir de sua combinação. (2009 [1840a], p. 7, itálicos do autor)
Estas intuições originam os axiomas das ciências. O meio pelo qual tais ideias se tornam a fundação da Ciência é que, quando elas são clara e distintamente consideradas na mente, dão origem a inevitáveis convicções ou intuições, as quais podem ser expressas por Axiomas, e esses Axiomas são as fundações das ciências respectivas de cada Ideia. (…) A Ideia de Força Mecânica (uma modificação da Ideia de Causa) quando claramente desenvolvida na mente, da à luz os Axiomas que são os fundamentos da ciência da Mecânica. (Whewell, 2010 [1860], p. 336-337)
O caráter progressivo da intuição transparece claramente na asserção seguinte: “Há verdades científicas que são vistas por intuição, mas esta intuição é progressiva” (Whewell, 2010 [1860], p. 344). A abrangência dessa característica é observada por Butts: O caráter desenvolvente ou progressivo da intuição da necessidade era um aspecto fundamental das quatro teorias de Whewell: (1) sua teoria da verdade necessária; (2) sua teoria do raciocínio matemático; (3) sua teoria do desenvolvimento histórico da ciência; (4) sua teoria da educação. (1965, nota 16, p. 168)
Segundo Snyder (1994), tal intuição é progressiva porque nossas ideias precisam ser ‘explicadas’ (cf. nota 7) antes que possamos conhecer seus axiomas a priori. Butts (1965) considera a justificação desse aspecto
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progressivo o principal problema enfrentado por Whewell, juntamente com o problema de como garantir que as Ideias intuídas não sejam vazias, mas, ao invés disso, apreendam de fato uma porção da realidade (cf. 1965, p. 178). Estas considerações devem ser suficientes para efetuarmos alguns ajustes em certas visões de comentadores. A concepção de Snyder (1994) e Morrison (1997), quanto ao imediatismo ser a principal característica da intuição segundo Whewell, precisa ser revista em virtude da própria distinção que o filósofo efetua, entre intuição e razão. Como se vê, na citação acima do Aforismo XXXIX, o filósofo utiliza a racionalidade – não o imediatismo – como elemento para diferenciar a apreensão intuitiva do raciocínio discursivo, o que conduz à conclusão plausível de que a intuição é uma faculdade humana nãoracional. Também a afirmação de que se trata de um mero aspecto da estrutura cognitiva do ser humano, como quer Morrison (1997), parece desconsiderar a visão do próprio filósofo. Diz Morrison: As muitas observações de Whewell sobre a mente como fonte da necessidade das ideias que são vistas como verdades por intuição, parecem sugerir uma forma de psicologismo que simplesmente localiza a necessidade na mente e está despreocupada ou inconsciente da necessidade de qualquer outra justificação que pudesse estabelecer a necessidade das ideias. (id., ibid.)
A concepção whewellliana, contudo, parece melhor traduzida nos escritos de Butts (1965). Segundo ele, Não pode haver verdade científica empírica que não esteja condicionada pelos axiomas necessários expressando Ideias Fundamentais, e não pode haver intuição de necessidade sem uma experiência das coisas que irá interpretar e tornar compreensíveis os axiomas necessários. Eu penso que devemos aceitar que uma identificação buscada nos termos da antítese fundamental nos leva muito além da filosofia crítica de Kant. Pois se nós levarmos Whewell a sério, cada uma de suas Ideias Fundamentais deverá ser tida não só como princípio constitutivo do conhecimento, mas também como realidade não subjetiva, extramental. (Butts, 1965, p. 176)
Diferente de Morrison (1997), Butts (1965) desvenda o pano de fundo do realismo metafísico por trás da afirmação de Whewell sobre o
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objeto de nosso conhecimento. Para ele, a ciência trata de entidades que realmente existem fora da mente, e assim são as Ideias, da forma como ele as concebe. O que Morrison (1997) propõe, com seu psicologismo, não necessitaria de uma base realista. De fato, se concordarmos com ela e mantivermos uma atitude antirrealista, teremos de considerar que Whewell desenvolve um raciocínio circular em torno, por exemplo, da Ideia Fundamental de Causa e da assunção de Deus como Causa Primeira. Ele seria expresso da seguinte maneira: Deus colocou em nossas mentes a Ideia Fundamental de Causa. A Ideia Fundamental de Causa torna a existência de Deus (causa primeira) uma necessidade. Ou seja, estando a Ideia de Causa em nossa mente, expressa pelo axioma “todo efeito tem de ter uma causa”, seríamos, por esse motivo, obrigados a considerar que a Criação é o efeito de uma causa: a ação de um Criador. E que a harmonia e unidade observadas na Natureza seriam resultado da ordem que Ele estabeleceu. Ora, mas se foi “Ele” quem colocou em nossas mentes o germe da Ideia de Causa, refletindo os princípios e leis presentes na Criação, isso de fato nada provaria sobre Deus, nem sobre uma Causa Primeira. Teríamos apenas de nos perguntar, com Fisch (1985, p. 242): “Nossa intuição espelha algum mérito (ainda inarticulado) de nossa teoria, ou ela apenas reflete a agradável surpresa de haver afortunadamente conjecturado direito?” Algum esclarecimento em torno do assunto é possível se voltarmos ao início e revisitarmos alguns conceitos de Whewell. O binômio ideia/sensação, em sua interação obrigatória e inseparável, garante que as Ideias não podem ser vistas como puros objetos da mente, mas resultam de nossa percepção (cf. nota 6) do mundo. A luz nos revela ao mesmo tempo a existência de objetos externos e nosso próprio poder de ver. O exercício de nossos sentidos revela para nós, simultaneamente, o mundo externo e nossa própria ideia de espaço, tempo, e outras condições sem as quais o mundo externo não poderia ser, nem observado, nem percebido. (Whewell, 2010, p. 76)
Sobre o valor da experiência, diz ele que “experiências veem que as asserções são verdadeiras, mas não veem quão profunda e absoluta é a sua verdade (id., ibid., p. 74). A profundidade e universalidade pertencem à Ideia, cujo poder resulta de sua própria natureza e não pode ser entendida
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por meio de uma explicação verbal (cf. id., ibid., p. 77). Somente os axiomas – definidos por Whewell como enunciados das condições necessárias e evidentes impostas sobre nosso conhecimento pelas Ideias Fundamentais (id., ibid., p. 66) – podem ser objetos do raciocínio, combinados e comparados. Ideias, cujo conteúdo está além da possibilidade de verbalização e das argumentações conceituais, só podem ser intuídas. A intuição, porém, como temos visto, não é um fenômeno gratuito e espontâneo, ela surge do contato entre concepções e observações, que impedem que nos percamos em especulações vãs, o que resolve o problema apontado por Butts (1965, p. 178), ou seja, a dificuldade de justificar o caráter progressivo da intuição. A experiência sozinha pode mostrar o que é verdadeiro, não, o que é necessário. Isso quem faz é a intuição que, como poder não racional, não se põe contrária à razão, mas como faculdade humana além da razão. Como escreve Whewell, somos levados pelas ciências materiais [...] às fronteiras de uma região mais elevada e a um ponto de vista de onde temos a prospecção de outras províncias do conhecimento, no qual outras faculdades do homem são consideradas além das intelectuais, outros interesses envolvidos além das especulações. (id., ibid,. p. 708)
Podemos interpretar a intuição como esse convite para aprendizagens mais elevadas, para descobertas mais amplas e profundas sobre as leis da Natureza que se encontram além da possibilidade das nossas especulações e de nossa apreensão intelectual presente, e que pressupõem o realismo metafísico na ciência. Visto haver leis naturais, a existência e ação reais de Deus, para Whewell, são certezas “científicas”. Afirma ele que não podemos conceber “um Universo governado por leis gerais de outra forma que não concebendo uma Deidade inteligente e consciente que originalmente as contemplou, estabeleceu e aplicou” (Whewell, 2009 [1836], p. 301). Diante deste cenário, e do evidente realismo científico presente nas visões do filósofo, vemos que a disputa entre os dois meios de justificação da necessidade – o teológico, segundo Snyder (1994) e Butts (1965), e o epistemológico, segundo Fisch (1985b) – pende a favor de Fisch. Como diz ele (1985b, p. 313),
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as meditações teológicas de On the Philosophy or Discovery, não devem ser consideradas relativas a uma “ansiedade filosófica sobre a questão da justificação final daquelas proposições cuja necessidade houver sido intuída”, como Butts considerou [cf. Butts, 1965, p. 174], mas como a admiração por parte de um homem extremamente religioso pelo fato de que a mente é percebida como capaz de construir o aparato conceitual requerido para a interpretação bem sucedida da natureza.
Assim, vê-se também como a filosofia de Whewell se apresenta confiante nas faculdades humanas que lhe permitem construir os passos de uma ciência que desvenda de fato o Universo. Conclusão Vimos que o debate na literatura, acerca do estatuto da intuição segundo a teoria do conhecimento de William Whewell, se refere a visões segundo as quais prevalece o imediatismo ou os aspectos psicológicos do ser humano. Este estudo propôs-se a indicar outro caminho possível, baseado na existência de verdades inacessíveis às capacidades racionais e intelectuais do ser humano – contudo ao alcance de seu poder intuitivo – e também no realismo metafísico, implícito nessa noção de intuição. Mostramos que esta visão encontra suporte nos escritos do próprio Whewell, e concorda com os conceitos mais fundamentais de seu pensamento filosófico. “Sua filosofia da ciência é também uma análise do entendimento humano”, como bem observa Flohr (s/d, p. 2) e, em seu interior, a faculdade intuitiva revela sua função heurística no desenvolvimento das ciências. Por tudo o que vimos, a intuição segundo Whewell pode ser considerada uma faculdade não racional do ser humano, que lhe permite perceber verdades que estão fora do alcance de suas capacidades intelectuais e além das conceituações racionais. Referências ACHINSTEIN, P. Evidence. In: PSILLOS, S.; CURD, M. The Routledge Companion to philosophy if science. London, New York: Routledge, 2008. BIRD, A. The historical turn in the philosophy of science. In: PSILLOS, S.; CURD, M. The Routledge Companion to philosophy if science. London, New York: Routledge, 2008.
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Rita Foelker e Sonia Maria Dion
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Entre o dizer e o mostrar: o lugar da secção do solipsismo na estrutura argumentativa do Tractatus Gerson Júnior∗ Resumo: A distinção entre o dizer e o mostrar ocupa um lugar central no desenvolvimento da crítica da linguagem empreendida pelo primeiro Wittgenstein. Partindo do pressuposto que o sistema de numeração do Tractatus assinala (apesar de todas as controvérsias existentes) certa estrutura argumentativa do livro, o presente texto possui dois objetivos: (1) situar o grupo de proposições que versam sobre o tema do solipsismo (5.6 à 5.641) dentro dessa estrutura; e (2) mostrar que o local onde essas proposições se encontram faz parte de uma estratégia argumentativa de Wittgenstein, uma vez que é nela onde encontramos o clímax da distinção entre aquilo que pode ser dito e aquilo que deve ser mostrado. Palavras-chave: dizer; mostrar; solipsismo; Tractatus; Wittgenstein Abstract: The distinction between saying and showing is central in the development of critical language made by the early Wittgenstein. Assuming that the numbering system of the Tractatus points (despite all the controversies) to certain argumentative structure of the book, this text has two goals: (1) locate the group of propositions that deal with the issue of solipsism (5.6 to 5641) within that structure, and (2) show that the place where these propositions are part of an argumentative strategy of Wittgenstein, since it is where we find the climax of the distinction between what can be said and what should be shown. Keywords: say; show; solipsism, Tractatus; Wittgenstein
Introdução Numa carta escrita em 19/08/19, e endereçada à Russell (que tinha acabado de ler “duas vezes e com cuidado” uma cópia manuscrita do Tractatus), Wittgenstein afirmou que o “ponto principal” deste seu livro “é a teoria do que pode ser ‘dito’ por proposições, isto é, pela linguagem, (o que equivale ao que pode ser pensado), e o que não se pode dizer por proposições, mas apenas pode ser ‘mostrado’”. Este era também, para ele, “o problema cardinal da filosofia”1. Que a distinção entre o dizer e o mostrar ocupa um lugar central no desenvolvimento da crítica da linguagem empreendida pelo ∗
Doutorando em Filosofia pela Universidade de Lisboa. E-mail: gjkoine@yahoo.com.br [Artigo recebido em 25.02.2011, aprovado em 30.06.2011] 1 Wittgenstein apud Condé, 1998, p. 60. Mais detalhes sobre o conteúdo dessa carta, (Cf. Monk, 2005, p. 15-33.
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 259-283
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Tractatus é algo que se pode constatar sem grandes dificuldades. Pois, conforme já anunciado no prefácio pelo seu autor, o livro pretende traçar um limite na linguagem, isto é: pretende delimitar o campo daquilo que, com sentido, poderá ser dito, e, conseqüentemente, remeter ao silêncio tudo aquilo que está além dessa demarcação, ou seja, aquilo que só poderá ser mostrado. Todavia, a maneira como Wittgenstein expôs suas idéias para alcançar esse objetivo é algo totalmente incomum, ou pelo menos inovador. Como se sabe, o Tractatus não foi escrito com um formato de um livro “normal”, mas consiste em proposições organizadas por um sistema numérico inventado pelo seu autor. Porém, considerando a hierarquia numérica estabelecida nesse sistema e o modo como as proposições estão arranjadas nela, é possível perceber que certos temas e questões abordados no livro se encontram dispostos estrategicamente na obra, e esta disposição dá origem a uma determinada estrutura argumentativa que, ao que tudo indica, foi propositalmente elaborada pelo seu autor com vistas a melhor elucidar o seu “ponto principal” acima mencionado. Um desses temas é o solipsismo, e o presente texto tratará especificamente sobre o local das proposições que versam sobre essa questão filosófica nesse livro, tendo como objetivo mostrar que a localização da secção do solipsismo, numerada de 5.6 a 5.641, está situada de forma tal que desempenha um papel essencial e específico no desenvolvimento argumentativo do seu autor. 1 A distinção entre o dizer e o mostrar e a teoria pictórica da linguagem A distinção entre o dizer e o mostrar perpassa todo o Tractatus, desde o prefácio até a sua consagrada advertência final da proposição 7. Esta distinção – que segundo David Stern2 é a chave para se entender todo o Tractatus, uma vez que é a partir dela que compreendemos a raiz dos problemas filosóficos que o livro pretende resolver – consiste, essencialmente, na diferença entre o que pode ser dito (descrito) pela linguagem e o que só pode ser mostrado (o que está além dos limites da linguagem). Contudo, essa diferença é uma conseqüência natural da teoria
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Cf. Stern, 2004, p. 41.
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pictórica da linguagem3, e só será mais bem compreendida se compreendermos primeiro em que consiste tal teoria. 1.1 A teoria pictórica da linguagem Após discorrer sobre as asserções ontológicas, que se situam principalmente, mas não exclusivamente, entre as proposições 1 – 2.063 do Tractatus, Wittgenstein trata sobre o conceito de figuração, sobretudo na secção 2.1 – 2.225. Nela encontramos uma investigação e exposição acerca da afiguração lógica do mundo por meio das proposições da linguagem, ou seja, a maneira como os fatos no mundo podem ser figurados. Esse caráter figurativo da proposição é o que se denomina teoria pictórica, que é a característica mais distintiva e original da abordagem que Wittgenstein faz da linguagem, na primeira fase do seu pensamento. Em contraste com o que se costuma pensar, essa teoria não é apenas uma mera analogia entre uma proposição e uma figuração. Nela, a proposição é considerada como sendo realmente um tipo de figuração, onde os elementos da figuração e daquilo que é afigurado se correspondem isomorficamente. De acordo com as anotações dos Tagebücher 1914 - 1916, é possível datar a gênese dessa teoria. Em setembro de 1914, enquanto prestava serviço no regimento de artilharia do exército austro-húngaro, Wittgenstein leu, numa revista, determinada reportagem sobre um processo judicial em Paris referente a um acidente automobilístico, onde, diante do tribunal, o acidente foi reconstituído por bonecos e carros em miniaturas, os quais se tornaram, naquele momento, um modelo do acidente. Naquela ocasião, esse modelo reconstruído com brinquedos pôde representar, figurar, o acidente ocorrido4. Esse fato fez Wittgenstein pensar uma relação semelhante entre linguagem e mundo. Para ele, “Na proposição um mundo é como que formado experimentalmente. (Como no tribunal em Paris, em que um acidente de carro é representado por meio de bonecos etc.)”5.
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Nas palavras de Wolfgang Stegmüller, essa distinção é uma conseqüência necessária do transcendentalismo lingüístico wittgensteiniano (Cf. Stegmüller, 1977, p. 423 - 429). 4 Para detalhes desse episódio, (Cf. Monk, 1995, p. 117). 5 Registrado nos Tagebücher 1914 – 1916, em 29/09/1914 (Cf. Wittgenstein, p. 1990, v. 1, p. 94 – 95). Esta mesma idéia é claramente expressa no aforismo 4.031 do Tractatus. A versão do Tractatus usada nesse trabalho é: Wittgenstein, 2001. Doravante, as citações dos aforismos tractarianos serão feitas na seguinte forma: TLP, seguida do número do aforismo.
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No Tractatus, o mundo é uma totalidade composta de fatos e, segundo seu autor, “nós fazemos (para nós) figuras dos fatos”6. Entretanto, para que o ato de afiguração lingüística do mundo seja realizado, algumas condições devem ser satisfeitas. A primeira e mais importante delas é que “deve haver algo de idêntico entre a figuração e o afigurado, a fim de que possa ser, de modo geral, uma figuração do outro”7. Como fica evidente, a figuração (proposição) é o que representa o afigurado (fato). O “algo idêntico” que deve existir entre a figuração e o afigurado, para que aquela possa ser uma figuração desse, é “a forma de afiguração”8, que nada mais é do que “a forma lógica”, isto é, “a forma da realidade”9. É exatamente por isso que “a figuração pode afigurar toda realidade cuja forma ela tenha”10. Por definição, “a forma de afiguração é a possibilidade de que as coisas estejam umas para as outras tal como os elementos da figuração”11. Como exemplo, podemos destacar a forma espacial de afiguração, que é a possibilidade de que os elementos do afigurado estejam em uma relação espacial uns com os outros, tal como os elementos da figuração. Se os elementos da figuração estão numa relação de estar um em cima do outro, então isso expressa a possibilidade de que os elementos do afigurado estejam na mesma relação, pois os elementos da afiguração devem corresponder tal qual aos elementos do afigurado. Há diferentes formas de afiguração: umas são espaciais; outras, coloridas, etc12. Contudo, toda figuração deve ter uma forma comum com o afigurado para que a primeira seja uma figuração do último. Essa forma comum entre ambos é a forma lógica de afiguração. Uma vez que os fatos são concatenações lógicas de estados de coisas13 e, portanto, de objetos irredutíveis14, a figuração desses fatos, realizada pelas proposições, deve, obrigatoriamente, ser uma figuração lógica: “Se a forma
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TLP, 2.1: Wir machen uns Bilder der Tatsachen. O prof. Luiz H. L. dos Santos traduz esta frase simplesmente como: “Figuramos os fatos”. Diferentemente dele, porém, preferimos traduzi-la da maneira apresentada, pois julgamos expressar melhor o sentido da frase. 7 TLP, 2.161. 8 TLP, 2.17. 9 TLP, 2.18; 2.2. 10 TLP, 2.171. 11 TLP, 2.151. 12 TLP, 2.171. 13 TLP, 2; 2.034. 14 TLP, 2.01; 2.03.
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de afiguração é a forma lógica, a figuração chama-se figuração lógica”15. E é só em virtude de ter essa forma lógica comum entre linguagem e mundo que torna possível a figuração do mundo por parte da linguagem16. Importante, ainda, é destacarmos que a idéia wittgensteiniana de afiguração lingüística envolve a existência de objetos simples. Para ele, uma figuração representa uma combinação de elementos, isto é, uma combinação de objetos17. Cada um dos elementos da figuração está, na figuração, no lugar de um dos objetos do afigurado18. Essa correlação existente entre os elementos da afiguração e os objetos no mundo é exatamente o que se denomina de relação afiguradora19: aquilo que garante o isomorfismo entre a figura e o afigurado, possibilitando assim que os fatos sejam afigurados pela linguagem. Ou seja, é essa relação que estabelece a estrutura isomórfica da afiguração, fazendo com que os elementos da figuração representem os objetos do afigurado. Para que haja essa representação, a multiplicidade lógica dos elementos da figuração deve ser a mesma da combinação de objetos que ela representa20. Além disso, a figuração precisa ter elementos simples que correspondam aos objetos do mundo21 e que os representem na figuração. Esses elementos simples que representam lingüisticamente os objetos são os nomes22: “o objeto é o significado do nome”23. Sendo assim, a significação lingüística de um nome está necessariamente ligada à existência de um objeto que ele nomeia. Portanto, se os objetos não existissem, os nomes não teriam significado algum, e isso tornaria impossível a figuração lingüística do mundo por meio da proposição. A figuração lógica dos fatos é, para Wittgenstein, o pensamento24; e o pensamento é definido por ele como sendo “a proposição com sentido”25. 15
TLP, 2.181. TLP, 2.18. 17 TLP, 2.14. 18 TLP, 2.13 - 2.131; 2.1514. 19 TLP, 2.1513. 20 TLP, 4.04. 21 TLP, 2.13; 2.1514. 22 TLP, 3.202. 23 TLP, 3.203. 24 TLP, 3. 25 TLP, 4. 16
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A proposição dotada de sentido, portanto, é uma figuração lógica do fato que ela descreve, e todo o pensamento é expresso “sensível e perceptivelmente” na proposição26. O sinal por meio do qual o pensamento é expresso é denominado, no Tractatus, de “sinal proposicional”27. Esse sinal consiste em que seus elementos, as palavras, estejam uns para os outros de uma maneira determinada28. O que faz de uma proposição a figuração de um fato é que ela obedece a uma determinada projeção. Essa relação projetiva existente entre os signos proposicionais da linguagem e os fatos do mundo que eles podem e pretendem expressar é estabelecida, segundo Wittgenstein, pelo “método de projeção”29. Esse método de projeção, portanto, determina os usos possíveis dos sinais proposicionais, relacionando-os aos seus respectivos objetos e possíveis fatos correspondentes. Segundo o Tractatus, “o método de projeção é pensar o sentido da proposição” e, sendo assim, é por meio do pensamento que as linhas de projeção vão da proposição ao fato. O sinal proposicional em sua relação projetiva com o mundo é a proposição30; e é exatamente nessa expressividade sensível do pensamento que a proposição torna-se “uma figuração da realidade”: “um modelo da realidade tal como pensamos que seja”31. Assim como no pensamento os elementos da afiguração correspondem aos elementos do afigurado, na proposição, os elementos do sinal proposicional correspondem aos elementos do pensamento32. Visto que a “figuração pode afigurar toda realidade cuja forma ela tenha”33, a figura proposicional, portanto, pode projetar figurativamente o mundo, a realidade, pois a forma de afiguração, que é a forma lógica, a forma da realidade, também é compartilhada pela linguagem. Assim, toda figuratividade lingüística do mundo repousa sobre esse isomorfismo determinado pela forma lógica da afiguração34. Esses
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TLP, 3.1. TLP, 3.12. 28 TLP, 3.14. 29 TLP, 3.11. 30 TLP, 3.12. 31 TLP, 4.01; 4.021. (destaque nosso). 32 TLP, 3.2. 33 TLP, 2.171. 34 TLP, 4.015. 27
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traços estruturais comuns entre a linguagem e o mundo possibilitam que “a figuração se enlace com a realidade”35. Os resultados desse enlace ficam evidentes quando relacionamos os elementos que estruturam o mundo e a linguagem, e percebemos o paralelo que existe entre eles. Assim como “mundo é a totalidade dos fatos”, “a linguagem é a totalidade das proposições”36. Os fatos, que constituem o mundo, são desmembrados em estados de coisas37; já as proposições, que constituem a linguagem, são desmembradas em proposições mais simples, chamadas de proposições elementares38. Do mesmo modo que os estados de coisas são uma vinculação lógica de objetos39, as proposições elementares são um encadeamento, uma vinculação lógica de nomes40. E, por fim, da mesma maneira que os objetos são os elementos simples e irredutíveis que constituem o mundo, os nomes são os sinais simples empregados na proposição41; e são também irredutíveis, porque não podem mais ser desmembrados: são sinais primitivos42. Esses isomorfismos entre: mundo/linguagem, fatos/proposições, estados de coisas/proposições elementares, objetos/nomes, são necessários para a linguagem exercer sua função descritiva do mundo através das proposições. A razão disso é porque “a possibilidade da proposição”, diz Wittgenstein, “repousa sobre o princípio da substituição de objetos por nomes”43, mas isso só é possível se essa estrutura isomórfica entre o mundo e a linguagem existir. Diante disso, percebe-se que a teoria pictórica da linguagem pressupõe uma elaborada ontologia atomista de objetos irredutíveis, que nos leva ao estabelecimento dessas relações pictóricas44. Por serem simples, os objetos só podem ser nomeados; e “o nome substitui, na proposição, o objeto”45. Como os objetos nunca estão isolados, 35
TLP, 2.1511. TLP, 1.1; 4.001. 37 TLP, 2; 2.04. 38 TLP, 4.21. 39 TLP, 2.01. 40 TLP, 4.22; 4.221. 41 TLP, 3.202; 4.24. 42 TLP, 3.26. 43 TLP, 4.0312. 44 Sobre isso, (Cf. Martire, 1982, p. 449-452, In: Leinfellner; Kraemer; Schank (eds.), 1982.) 45 TLP, 3.221; 3.22. 36
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eles sempre formarão determinados estados de coisas. “Se um estado de coisas é pensável” (lembremo-nos que o pensamento é uma figuração lógica), “significa dizer que ele pode ser afigurado” e, portanto, descrito46. Assim, um estado de coisas é descrito pela proposição elementar47. Quando o estado de coisas que a figuração representa existe, a figuração é correta ou verdadeira, caso contrário, ela é incorreta ou falsa. E, para sabermos se uma figuração é verdadeira, deve-se compará-la com a realidade. Por isso, não se pode saber a priori se uma figuração é verdadeira48. Por possuírem a mesma forma lógica, a configuração dos nomes nas proposições, formando as proposições elementares, corresponde à configuração dos objetos nos estados de coisas49. Assim, dadas as descrições (por meio das proposições elementares) de todos os estados de coisas e, exatamente por isso, de todos os fatos, também estariam dadas todas as proposições que descreveriam esses fatos. Como a totalidade dos fatos é o mundo50 e todas as proposições que descrevem esses fatos constituem a linguagem51, o mundo, portanto, estaria dado pelas descrições de todas as proposições da linguagem52. Em síntese, e de acordo com a teoria pictórica da linguagem, a essência da proposição, portanto, é ser uma figuração do mundo; e, especificar essa essência é especificar a essência de toda a descrição e, também, a essência do mundo53. Nesse sentido, conceber a proposição como figura é compreender a função essencial e única da linguagem: a sua capacidade de descrição. Todavia, em sua função descritiva, a linguagem possui limites, cujas demarcações estão definidas na doutrina tractariana da distinção entre o dizer e o mostrar. 1.2 A distinção entre dizer e mostrar Como exposto acima, a linguagem é a totalidade das proposições que descrevem os fatos no mundo. Essa descrição dos fatos por meio de proposições com sentido é exatamente o que a linguagem pode dizer. E, 46
TLP, 3.001; 3.1. TLP, 4.023. 48 TLP, 2.223 - 2.225. 49 TLP, 3.21 50 TLP, 1; 1.1. 51 TLP, 4.001. 52 TLP, 5.526. 53 TLP, 5.4711. 47
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limitada à sua função descritiva, a linguagem não pode dizer nada além dos fatos afigurados pelo pensamento, e tudo o que pode ser dito, só pode ser dito através da linguagem. O pensamento, sendo figurações lógicas dos fatos, está delimitado pelo espaço lógico, isto é, está delimitado pela totalidade das possibilidades de vinculação lógica dos objetos que poderão compor os fatos. Sendo assim, não podemos pensar nada que esteja fora dessas combinações lógicas dos objetos que constituem o mundo. A implicação disso é que, pelo fato de não poder existir um mundo ilógico54, também “não podemos pensar nada de ilógico, porque, do contrário, deveríamos pensar ilogicamente”55. Essa correlação essencial entre pensamento e mundo permite concluir que o que pode existir no mundo é o que se pode pensar. Neste caso, o mundo pode ser isso ou aquilo, mas seu espaço de manobra, que é o mesmo do pensamento, é limitado pelas fronteiras do espaço lógico. Da mesma forma que o mundo e o pensamento, a linguagem, por ser a descrição desses fatos afigurados pelo pensamento, também está delimitada por essas fronteiras lógicas, pois os nomes que a compõem e que substituem os objetos na proposição são necessariamente regidos pelas determinações lógicas da “gramática lógica” ou “sintaxe lógica”56 que compartilha sua forma com o espaço lógico. Neste caso, linguagem, mundo e pensamento possuem os mesmos limites, determinados pelo espaço lógico. Porque não pode haver outros “nomes” além da totalidade dos nomes já existentes, e, por isso, não pode haver outra “linguagem” além da linguagem que é regida pela sintaxe lógica, tudo o que pode ser dito, então, só pode ser dito por essa única linguagem cujos limites estão traçados por aquilo que pode ser descrito: os fatos afigurados. Em outras palavras, desde que os fatos estão delimitados pelo conjunto de todas as vinculações lógicas dos objetos que os compõem, o dizer, então, está delimitado pelo conjunto de todas as vinculações lógicas dos nomes que substituem, na proposição, esses objetos. Sendo assim, o que pode ser dito está estabelecido pelo limite da função descritiva da linguagem, a saber: pelos limites lógicos de vinculação dos nomes que a constituem e que formam as proposições que descrevem o mundo afigurado pelo pensamento. 54
TLP, 3.031. TLP, 3.03. 56 TLP, 3.325; 3.344. 55
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A distinção entre o dizer e o mostrar já é prenunciada por Wittgenstein quando ele está tratando da própria possibilidade da afiguração. Como visto, “a figuração pode afigurar toda a realidade cuja forma ela tenha”57. Todavia, a estrutura comum entre a figura e o afigurado, “a figuração não pode afigurar; ela a exibe”58. Somente a linguagem que figura o mundo diz algo. Mas a linguagem que diz o mundo não tem a capacidade de dizer a própria estrutura que a permite figurar o mundo. Essa estrutura da linguagem mostra-se no dizer o mundo. Por exemplo, quando dizemos que “a carteira está em cima da mesa”, diz-se um possível estado de coisas; e, se esta afirmação for verdadeira, mostra tal situação. Além da proposição com sentido mostrar uma situação do mundo, ela também mostra a estrutura de toda a linguagem. Esta estrutura, que pelo fato de não poder ser afigurada também não poderá ser descrita pela linguagem, é a forma de afiguração, ou seja, a condição de possibilidade da própria afiguração. Da mesma maneira, por ser uma figura, a proposição pode descrever toda a realidade cuja forma ela tenha, mas a forma lógica compartilhada entre ela e a realidade, ou seja, sua forma de afiguração, ela não pode descrever: isso não pode ser dito. Como visto, segundo o Tractatus toda figuração lingüística do mundo é proporcionada pela relação projetiva entre linguagem e mundo, que consiste nas relações internas estabelecidas entre o símbolo proposicional e os objetos simbolizados pelos nomes que compõem esses símbolos. Neste caso, a linguagem descreve o mundo porque a relação projetiva coloca fatos lingüísticos em correspondência com fatos no mundo: a proposição constitui uma figuração porque é um fato (lingüístico) utilizado para representar outro fato. Porém, por não ser um fato no mundo, a projeção em si, que estabelece essas relações internas, não pode ser afigurada e, portanto, não pode ser descrita. O que constitui uma proposição como tal, não se deixa representar; não se deixa dizer. Isso se mostra no próprio ato do entendimento da proposição, ou seja, no ato da projeção: a proposição não pode descrever a maneira como ela descreve a realidade. A forma lógica comum entre a linguagem e a realidade “se espelha na proposição” e, por isso, não pode ser representada por ela. Para que a linguagem pudesse descrever o modo como 57 58
TLP, 2.171. TLP, 2.172.
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ela descreve, a realidade deveria se instalar fora da lógica, quer dizer, fora do mundo59. “O que se exprime na linguagem”, diz Wittgenstein, “nós não podemos exprimir por meio dela”. A proposição, portanto, apenas “mostra a forma lógica da realidade”60. Ela, ao descrever um fato no mundo, “mostra como estão as coisas se for verdadeira. E diz que estão assim”61. Em outras palavras, em sua função descritiva, a linguagem apenas diz que as coisas no mundo estão articuladas de uma determinada maneira. No entanto, ela jamais pode dizer como essas coisas se articularam e muito menos como a proposição consegue afigurar os fatos, pois ela não pode descrever a estrutura lógica comum entre a proposição e o fato afigurado, entre ela e o mundo. Isso apenas se mostra. Desse modo, se tentássemos dizer a forma lógica da linguagem, nunca diríamos algo de significativo, pois não há como a linguagem figurar a própria forma da afiguração. Os nomes que utilizaríamos para tal figuração não teriam significado, uma vez que não teríamos objetos que correspondessem a esses nomes. Então, se pudéssemos descrever a figuração, teríamos que sair da própria linguagem. Todavia, isso é impossível; pois, não podemos dizer nada sem a linguagem ou fora dela. Sendo assim, o que pode ser dito está reduzido ao campo da linguagem descritiva: só dizem algo as proposições que representam, que figuram o mundo. No mundo só há fatos; e, na linguagem com sentido, só há proposições que figuram esses fatos. Entretanto, nem tudo pode ser dito; e, além da estrutura comum entre a linguagem e o mundo – a forma de afiguração –, há um conjunto de coisas que, segundo Wittgenstein, só podem ser mostradas. Essa afirmação (como era de se esperar) não ficou isenta de severas críticas e talvez incompreensões. O próprio Bertrand Russell ficou perplexo ao descobrir “que o Sr. Wittgenstein, no final de contas, consegue dizer uma porção de coisas sobre o que não pode ser dito”62. Essa perplexidade pode ser justificada pelo fato de que ao asseverar que certas coisas não podem ser ditas, Wittgenstein apresenta a existência de uma esfera que está além dos fatos no mundo; e o mais interessante em tudo isso, é que o autor do Tractatus parece concentrar nesse campo das coisas inefáveis aquilo que, de 59
TLP, 4.12. TLP, 4.121. 61 TLP, 4.022. 62 Cf. Russell, In: Wittgenstein, 2001, p. 127. 60
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fato, tem valor e importância para a vida63. “Há por certo o inefável”, diz ele; mas “isso se mostra, é o Místico”64. “O Místico não é como o mundo é, mas que o mundo é”65. Os fatos no mundo apenas descrevem como as coisas estão e apontam o caráter contingente das configurações variáveis e instáveis dos objetos; mas não descreve que elas são, ou seja, aquilo que determina as condições essenciais da existência das coisas e, conseqüentemente, de sua representação lingüística66. É nesse campo do inefável, do Místico, onde o autor do Tractatus situa as proposições da lógica67, da matemática68, da Ética69, da Estética70, o sentido da vida71, e também a verdade do solipsismo72. Assim sendo, percebe-se que a distinção entre o que pode ser dito e o que apenas se mostra se constitui um ponto de relevância para a interpretação e compreensão de toda filosofia do jovem Wittgenstein. Já no prefácio do Tractatus ele nos advertiu para isso, dizendo que “poder-se-ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente”73. Como apontamos, só podemos dizer os fatos no mundo: somente eles têm esse privilégio. O que se Mostra, o Místico, não se constitui como fato no mundo e, portanto, é aquilo sobre o que nada podemos falar. “O que pode ser mostrado”, diz Wittgenstein, “não pode ser dito”74. Por isso, diante daquilo que se Mostrar, a melhor
63
TLP, 6.41. TLP, 6.522. 65 TLP, 6.44. 66 Está longe de ser novidade a alegação de que Wittgenstein se apropriou de certos conceitos schopenhauerianos na elaboração e exposição de sua primeira filosofia. Argumenta-se, inclusive, que até mesmo na segunda fase de seu pensamento essa influência é patente (Cf. 1969, p. 285-302; e: Janik, 2005, p. 53-70). É em “O mundo como vontade e representação” (Schopenhauer, 2001) que Schopenhauer trata da distinção entre o Wie e Was que, ao que tudo indica, influenciou diretamente a distinção wittgensteiniana do como e do que o mundo é. Sobre isso, (Cf. Faustino, 2006, p. 69-83). 67 TLP, 6.11; 6.13. 68 TLP, 6.21. 69 TLP, 6.4 - 6.421. 70 TLP, 6.421. 71 TLP, 6.41. 72 TLP, 5.62. 73 TLP, prefácio. (destaque nosso). 74 TLP, 4.1212. 64
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atitude é a de “calar-nos”75. Essa remissão ao silêncio obrigatório é necessária simplesmente porque para qualquer tentativa de dizer algo sobre aquilo de que nada pode ser dito, teríamos que ir além da linguagem enquanto descrição dos fatos no mundo, ou seja, teríamos que ir além da própria capacidade descritiva da linguagem. Isso, segundo Wittgenstein, constituir-se-ia um sem-sentido manifesto, pois ultrapassaria os limites da linguagem, da lógica, do mundo. É a tentativa de traçar o limite entre o que pode ser dito pela linguagem e o que só deve ser mostrado que dirige a exposição do conteúdo de todo o Tractatus, e, como veremos a seguir, no enredo argumentativo para se alcançar esse objetivo a secção sobre o solipsismo desempenha um papel importante no desenvolvimento da argumentação de Wittgenstein. 2 O sistema numérico e a estrutura argumentativa do Tractatus Basta um primeiro e simples contato com suas páginas iniciais e logo perceberemos a excentricidade do Tractatus, se comparado com as obras filosóficas da tradição ocidental. O leitor que pensar encontrar nessa obra a estrutura de um livro que segue os padrões tradicionais, com introdução, desenvolvimento e conclusão, ficará, sem dúvida, frustrado. Quanto a isso, o próprio Wittgenstein já havia nos advertido que a sua obra “não é, pois, um manual”76. Essa afirmação deixa-nos, no mínimo, cientes de que a leitura do Tractatus não será tão simples quanto parece e, portanto, não será realizada sem grandes esforços. Essas dificuldades aumentam ainda mais quando consideramos que, com exceção de seu prefácio, todo o conteúdo do livro foi escrito num estilo de exposição completamente singular, a saber: com proposições regidas por um sistema numérico hierarquicamente ordenado, criado por seu próprio autor. O que levou Wittgenstein a escrever seu livro com este estilo inovador, não sabemos, absolutamente. O que sabemos é que o livro é guiado por uma organização numérica interna, de peculiaridade e complexidade extremas. Com essa hierarquia numérica, Wittgenstein pretendeu dispor essas proposições de tal maneira que determinasse o peso lógico de cada uma delas e a importância que elas têm na sua exposição. Se de fato soubéssemos o que 75 76
TLP, prefácio. TLP, prefácio. (destaques nossos).
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Wittgenstein intencionou com esse peso lógico e em que consiste essa importância de cada uma das proposições tractarianas, talvez encontrássemos um percurso de leitura que facilitasse a compreensão do Tractatus. Mas não é esse o caso e, ciente das dificuldades que seus leitores encontrariam na leitura da obra, o seu autor mostra, em nota explicativa no início do livro, a maneira pela qual o seu sistema de numeração deve ser entendido. Diz ele: Os decimais que numeram as proposições destacadas indicam o peso lógico dessas proposições, a importância que têm em minha exposição. As proposições n.1, n.2, n.3, etc. são observações relativas à proposição n° n; as proposições n.m.1, n.m.2, etc. são observações relativas à proposição n° n.m; e assim por diante77.
Todavia, apesar dessa informação, é questionável que Wittgenstein tenha sido de todo consistente com essa sua sugestão sobre a maneira de ler o Tractatus, e pelo menos duas razões nos levam a essa conclusão. A primeira delas é que a nota explicativa acima não nos fornece dados suficientes para darmos conta de como devemos interpretar a numeração de todos os grupos de proposições do Tractatus. Uma prova disso é que não demora muito e o autor do livro desrespeita a sua própria convenção numérica, inserindo elementos não contemplados na sua sugestão de leitura. Esse flagrante é imediatamente constatado logo na primeira página do livro, quando, sem dizer o motivo, Wittgenstein introduz, de forma inesperada e variada, o algarismo zero (0) no seu sistema de numeração78. Em segundo lugar, e de certa forma ligada à primeira razão, se considerarmos rigorosamente essa nota explicativa, teremos que re-considerar a relevância que Wittgenstein dá a determinadas proposições do Tractatus. Por exemplo, para sermos coerentes com a sugestão da nota explicativa teríamos que aceitar que o Grundgedanke tractariano, a despeito de todo destaque que Wittgenstein lhe atribui, ocupa, por causa da sua numeração (4.0312), uma posição hierarquicamente inferior a muitas outras proposições de menor importância e, portanto, não é tão fundamental assim. Como fica evidente, essas declaradas inconsistências constituem uma barreira e aumentam ainda mais as dificuldades para a leitura e compreensão do livro. Quanto a isso, curioso também é sabermos que existe uma nota explicativa no Prototractatus que é completamente diferente da 77 78
TLP, nota. Como exemplo, temos as proposições: 2.01; 2.0201; 3.001; 4.0031; 5.101; 6.1201.
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apresentada acima, mas que talvez seja mais esclarecedora. Diz Wittgenstein: “os números indicam a ordem e a importância das proposições. Assim, 5.04101 segue 5.041 e é seguida por 5.0411, cuja proposição é mais importante que 5.04101”79. Em sua interpretação, Margutti Pinto conclui que as proposições de forma, por exemplo, 2.0X constituem explicações do conteúdo apresentado em 2. Já as de forma 2.X, em vez de explicarem algo, avançam a argumentação no sentido de articulála com a proposição subseqüente. Mesmo assim, embora seja uma possível elucidação, o enigma quanto ao sistema de numeração tractariano permanece velado. Essas obscuridades quanto ao sistema de numeração do Tractatus torna impossível determinarmos um único e definido caminho de leitura da obra80. Contudo, não podemos negar que, embora enigmática, a sugestão de Wittgenstein no Tractatus é, pelo menos, orientadora. Segundo ele, “As proposições n.1, n.2, n.3, etc. são observações relativas à proposição n° n”. Dessa forma, as proposições de numeração decimal são observações referentes às proposições principais (1 – 7), respectivamente. Obviamente, porém, é indispensável compreendermos que estas “observações” não estabelecem nem implicam quaisquer relações de premissa/conclusão entre as proposições. A certeza disso decorre do fato de que, como é dito pelo próprio autor, os decimais apenas indicam o peso lógico das proposições e, portanto, a ordem e a importância que elas têm em sua exposição. Em sendo assim, levando em conta a proposta da nota explicativa no início do livro, não teremos muitas dificuldades de indicar, pelo menos, quais proposições são mais importantes do que as outras, no enredo da obra. Além disso, julgamos que essas informações, apesar das sérias implicações e controvérsias existentes, já nos oferecem uma determinada maneira de ler toda a obra, e já nos fornecem um conhecimento mínimo suficiente para tentarmos esboçar uma possível estrutura argumentativa do Tractatus que, segundo cremos, resulta dessa organização hierárquico-numérica de suas proposições. 79 80
Wittgenstein, 1971, p. 35. A informação da nota explicativa possibilita mais de um percurso de leitura da obra. Se distribuirmos, por exemplo, as proposições numa hierarquia de níveis como faz Granger, poderíamos ler, primeiro, somente o 1° nível, que são as proposições principais (1 - 7); ou então, leríamos a proposição 1, seguido do 2° nível dessa mesma proposição, seguido do 3° nível, e assim por diante. Maiores detalhes sobre esses percursos de leitura, (Cf. Granger, apud Pinto, 1998, p. 287.
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2.1 A estrutura argumentativa do Tractatus Por estrutura argumentativa do Tractatus queremos dizer a estrutura resultante da maneira como Wittgenstein dispôs, distribuiu e ordenou o conteúdo do seu primeiro texto filosófico. Segundo cremos, essa organização teve como conseqüência a formação de uma concisa cadeia argumentativa, através da qual se pode constatar que alguns temas abordados nesse livro foram precisa e estrategicamente situados. Essa maneira de apresentação permite que cada um desses temas ali tratados desempenhe um papel dentro do livro e se tornem peças- chaves para a compreensão da obra como um todo. Além disso, acreditamos também que essa arrumação foi arquitetada de tal forma que ainda nos é permitido estabelecer uma intrínseca relação entre esses temas, ligando-os uns aos outros como os elos de uma corrente, e tornando coeso todo este conjunto. É isso que tentaremos mostrar a partir de agora. Como fica evidente para qualquer leitor do Tractatus, apesar do esforço de Wittgenstein em sugerir um percurso de leitura pelas informações contidas na nota explicativa, as relações entre as proposições nele contidas são mais complicadas do que o que se poderia imaginar ter em mente com a simples numeração ali existente. Todavia, as teses principais do livro podem ser claramente identificadas, e nos dão boas indicações para desenharmos um possível primeiro esboço da estrutura argumentativa que subjaz à exposição das proposições tractarianas. Baseado nas diretrizes fornecidas pela sua nota explicativa, o Tractatus é constituído de sete teses fundamentais. Essas proposições são numeradas com um único algarismo que vai de 1 a 7, e todo o restante do livro, como observa Urbano Zilles81, poderia ser simplesmente constituído de “explicações”, cujo objetivo seria o de elucidar as idéias contidas nessas proposições principais. A maioria dos intérpretes das obras de Wittgenstein concorda que estas proposições podem ser divididas em quatro subgrupos: O primeiro, contendo as duas primeiras teses, trata do que os comentadores wittgensteinianos chamam de “a ontologia do Tractatus”. Nelas estariam expressos os fundamentos ontológicos e lógicos que irão alicerçar toda a proposta filosófica do livro, bem como toda a estrutura que constitui o mundo. O cerne desta ontologia está nos conceitos de fato, estado de coisas, e objetos. 81
Cf. Zilles, 1994, p. 33-34.
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No segundo subgrupo, constituído unicamente da terceira tese, Wittgenstein tece algumas considerações de ordem epistemológica, expondo, sobretudo, o seu entendimento sobre o que é o pensamento. Neste caso, o destaque é dado à relação entre o mundo e os pensamentos sobre ele, bem como ao percurso por meio do qual essa relação se estabelece. Da quarta à sexta proposições, formando assim o terceiro subgrupo, encontramos o local onde é tratado, mais diretamente, a estrutura da linguagem. Na primeira delas, Wittgenstein inicia sua investigação sobre a linguagem analisando e apresentando como as proposições tornam-se veículos de expressão dos pensamentos, cuja base constitui o núcleo da teoria pictórica da linguagem. Nas outras duas proposições, 5 e 6, o autor aborda a estrutura interna da linguagem. No desenvolvimento dessas proposições, ele trata de como devem estar estruturadas todas as proposições elementares da linguagem com sentido, demarcando, com isso, a distinção entre o dizer e o mostrar, ou seja: o limite do que pode ser claramente dito por meio de proposições, e aquilo que, por não poder ser dito, só deverá ser mostrado. Na última proposição: “sobre aquilo de que não se pode falar, devese calar”82, Wittgenstein, em uma única frase, exprime todo o sentido da sua primeira e grande obra filosófica. Esse desfecho, que já é declarado no prefácio do livro, condensa toda a crítica da linguagem apresentada no Tractatus. Assim, o que pode ser dito, pode ser dito claramente pela linguagem; e, no caso daquilo de que não se pode falar, o melhor é ficar calado, pois, qualquer tentativa de dizê-lo desembocará num sem-sentido declarado. 3 Entre o dizer e o mostrar: local do solipsismo na estrutura argumentativa do Tractatus Estabelecida esta divisão geral das principais teses tractarianas, podemos, agora, situar o grupo de proposições que versam sobre o solipsismo no Tractatus, mostrando que ele está situado de tal forma que cumpre uma função especifica no desenvolvimento argumentativo desse livro. Wittgenstein trata do tema do solipsismo na secção aforística numerada de 5.6 à 5.641 e, levando em consideração as informações contidas na nota explicativa no início do livro, todas as afirmações dessa 82
TLP, 7.
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secção fazem parte do desenvolvimento da idéia contida na tese 5. Essa proposição, como vimos, encontra-se no subgrupo que trata da estrutura interna da linguagem e, juntamente com as proposições 6 e derivadas, constitui a parte final do desenvolvimento do arcabouço teórico pelo qual Wittgenstein espera alcançar o clímax de toda a sua proposta filosófica tractariana, a saber: a distinção entre o dizer e o mostrar, entre o que pode ser dito e o que deve ser mostrado. Desde o prefácio do livro, onde essa frase também é enunciada, Wittgenstein, de maneira sutil e engenhosa, já nos fornece vários indícios de que sua exposição desembocaria nessa “conclusão”. Porém, talvez por estarem muito próximas da proposição 7 e, conseqüentemente, do final do livro, é com as proposições 5 e 6 que essa ilação do que pode ser dito e o que deve ser mostrado ganha maior clareza e vigor. A prova disto está no fato de que é com a exposição dessas teses que o que outrora parecia “um gigantesco quebra-cabeça lógico, formado pelo entrecruzamento de inúmeros entimemas”83, agora começa a ganhar sentido diante das conclusões que nos são apresentadas pela aplicação, à linguagem, dos resultados obtidos de toda o arcabouço teórico desenvolvido anteriormente no livro. A tese 5, juntamente com todas as proposições que a explica, constituem o maior bloco de proposições no Tractatus. O enunciado fundamental dessa proposição é que toda “proposição é uma função de verdade das proposições elementares”84, e o seu cerne é delimitar as estruturas lógicas que deverão, internamente, compor toda e qualquer proposição com sentido. Delimitar as estruturas lógicas internas de todas as proposições com sentido é o mesmo que determinar como essas proposições deverão ser construídas para que possam dizer algo com sentido; e, qualquer tentativa de dizer algo fora dessa estrutura, não passa de um sem-sentido.
83
É assim que o prof. Margutti Pinto define, em dado momento, o Tractatus. (Cf. Pinto, 1998, p. 311). 84 TLP, 5. (destaque nosso). Essa idéia de utilizar o conceito de função na análise das proposições já tinha sido revigorada por Frege e Russell. Porém, muitas das considerações teóricas desses pensadores sobre o assunto estavam, segundo Wittgenstein, cheias de equívocos. Alguns desses equívocos são claramente apontados no Tractatus (Cf. TLP, 5.02; 5.13 - 5.132; 5.4 - 5.42; 5.473 - 5.4733; 5.52 - 5.525; 5.53 - 5.5302; 5.54 - 5.5422; 5.55 5.553).
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Por outro lado, no grupo de proposição 6, que se inicia logo após a secção do solipsismo, temos o que podemos chamar da aplicação prática dos resultados obtidos de toda a elaboração teórica do Tractatus. Nela, depois de traçar os limites do que pode ser dito, conforme exposição da tese 5, Wittgenstein irá apresentar, de maneira prática, alguns exemplos daquilo que só poderá ser mostrado. Esses exemplos são claramente expostos na compreensão wittgensteinianas das proposições da lógica, da matemática, da ética, da estética e do Místico. A primeira aplicação prática dessas conclusões é apresentada no entendimento das próprias proposições da lógica. Para o autor do Tractatus, pelo fato de serem tautologias, as proposições da lógica não dizem absolutamente nada, mas apenas mostram as propriedades formais que as constituem85. Depois disso, Wittgenstein estende sua análise para as proposições da matemática86. Essas, segundo ele, não exprimem pensamentos; e, portanto, não podem ser expressas pela linguagem. Pelo fato de a matemática ser um método da lógica87, suas proposições, juntamente com as proposições da lógica, têm a finalidade de mostrar a lógica existente no mundo: essas, pelas tautologias; aquelas, pelas equações88. Porém, ambas não dizem nada sobre o mundo. Posteriormente, avançando na sua exemplificação daquilo que não pode ser dito, o autor do Tractatus apresenta também, como inexprimíveis, as proposições da ética e da estética. Para ele, a ética é transcendental: condição de possibilidade, tanto quanto a lógica e a estética. É pelo fato de não se poder falar da vontade enquanto portadora do ético89 que a ética não se deixa exprimir: não pode haver proposições na ética90. Por fim, as considerações tractarianas sobre a vontade como portadora do ético abrem as portas para o que talvez fosse inesperado nesse livro: uma discussão sobre o Místico. Pelos registros do Tractatus, percebe-se que as observações wittgensteinianas sobre o Místico não são simplesmente adendos desarticulados com o restante do livro. Pelo contrário,
85
TLP, 6.1; 6.11; 6.12. TLP, 6.2; 6.21. 87 TLP, 6.234. 88 TLP, 6.22. 89 TLP, 6.4 - 6.4321. 90 TLP, 6.42. 86
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Wittgenstein dá considerável importância a esse assunto porque nele está manifesto o ápice de toda a sua distinção entre o dizer e o mostrar. Entretanto, independente das reações que essa afirmação pode causar entre os leitores do Tractatus, como aconteceu inclusive com Russell, percebemos que é falando sobre o Místico que Wittgenstein afirma, categoricamente, a existência de uma esfera inefável, destacando, como está no texto, que ele deveria apenas ser mostrado e, por isso, jamais dito. Essa tentativa de estabelecer um limite do interior da própria linguagem para aquilo que pode ser dito e, conseqüentemente, o que só deverá ser mostrado, é a essência de toda a proposta filosófica do Tractatus. Porém, é no mínimo admirável o fato de que a discussão sobre esse limite tenha levado Wittgenstein a ocupar-se sobre o problema filosófico do solipsismo. O próprio Russell reconheceu ser “uma discussão um tanto curiosa” discorrer sobre o solipsismo a partir das considerações feitas sobre os limites da linguagem. É óbvio que não é sem razões que o autor do Tractatus opta por essa maneira singular de tratar este tema, e o motivo principal disso é porque é discutindo o solipsismo que ele concentra, de maneira clara, o fulgor de sua proposta filosófica e, por isso, a localização desse tema, na obra, faz parte de sua estratégia argumentativa. Se seguirmos Granger91, ao dividir a hierarquia numérica tractariana em níveis, a tese 5, é explicada, em seu segundo nível, por seis proposições. Dessas, a última, a proposição 5.6, é a que mais diretamente nos interessa, pois é ele que abre a discussão do solipsismo nesse livro. Sendo assim, a discussão sobre o solipsismo no Tractatus se encontra no final da exposição da tese 5 e imediatamente antes da tese 6. Esse fato claramente revela que esse tema está localizado entre as coisas que podem ser ditas e aquelas que só devem ser mostradas. Ou seja, o solipsismo, portanto, se encontra precisamente no clímax da exposição da doutrina do dizer e mostrar e, reconhecendo essa verdade, alguns comentadores das obras de Wittgenstein fazem consideráveis observações acerca do assunto. Para Anscombe, por exemplo, a apresentação do problema do solipsismo no Tractatus é a mais notória das coisas que Wittgenstein diz que devem ser mostradas92. Para ela, a discussão do solipsismo neste livro está no auge dos esforços wittgensteinianos para distinguir as chamadas verdades 91 92
Reler a nota 80. Cf. Anscombe, 1971, p. 166.
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lógicas, tratadas em todo desenvolvimento da tese 5, e as verdades que devem, apenas, ser mostradas, como visto no desenvolvimento da proposição 6. Essas considerações de Anscombe parecem ser razoáveis e estão em sintonia com o próprio texto tractariano. A razão disso se evidencia pelo fato de que podemos constatar que o solipsismo (melhor dizendo, a sua verdade) é utilizado no Tractatus como o primeiro exemplo das questões importantes que devem ser mostradas, já mesmo no final da exposição da proposição 5, onde Wittgenstein ainda está tratando daquilo que pode ser dito. Em outras palavras, ao inserir a secção do solipsismo o autor do Tractatus adianta e prepara seus leitores para o assunto que posteriormente ele irá desenvolver. Além de Anscombe, uma segunda apreciação sobre a questão é feita por Max Black. Para Black93, a discussão sobre o solipsismo no Tractatus é usada por Wittgenstein simplesmente para ilustrar o tipo de confusão que pode ser gerada quando não se entende a diferença entre o que pode ser dito, e o que deve apenas ser mostrado. Neste caso, Wittgenstein estaria usando a complexidade de se entender o solipsismo apenas como um recurso didático, visando exemplificar o que pode ser gerado quando não se compreende, corretamente, a distinção entre dizer e mostrar. Segundo Black, portanto, esta secção tractariana, exceto a sua utilização como exemplo, não possui nenhum conteúdo significativo para o entendimento do corpo teórico do Tractatus. Ele mesmo chega a afirmar que, o que Wittgenstein considerou nessa secção é tão irrelevante, que fora rejeitada posteriormente94. Não menos importante do que essas considerações é a exposição quanto à localização técnica do solipsismo no Tractatus defendida por H. O. Mounce95. Categoricamente, Mounce não concorda com a opinião de Black, pois acredita que a discussão do solipsismo no Tractatus não pode ter sido usada simplesmente como um mero exemplo, e a sua justificação para isso é que Wittgenstein, nesse pequeno grupo de proposições, destaca inúmeros conceitos-chave utilizados em todo livro e, para Mounce, isso não ocorreria se esses conceitos fossem frutos de uma simples ilustração, como defendeu Black. Conceitos importantes, como os de: mundo, vida, limites 93
Cf. Black, 1971, p. 308. Cf. Ibidem, p. 308. 95 Cf. Mounce, 1981, p. 89-90. 94
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do mundo, sujeito e até mesmo a analogia do olho e do campo visual, que são tratados na secção do solipsismo, também são usados por Wittgenstein em proposições posteriores, e estão no cerne do pensamento Místico do autor do Tractatus. O exemplo dado pelo próprio Mounce para discordar de Black é a proposição 6.431196, onde Wittgenstein salienta que a vida não tem fim, mas é única, dada pela minha linguagem; e tem um limite, que é o mesmo de meu mundo. Percebe-se, com essa proposição, que vários conceitos tractarianos, outrora tratados, foram retomados; e isso acontece, não porque eles são simplesmente exemplos e ilustrações, mas porque eles se constituem como conceitos importantes no pensamento tractariano. Desse modo, para Mounce, a discussão sobre o solipsismo é estrategicamente apresentada na secção em que ela se encontra porque nela o autor do Tractatus estaria adiantando muitos desses termos utilizados no desenvolvimento da sua concepção Mística, imediata e posteriormente apresentada neste livro. Considerações finais Não iremos aqui discutir os méritos e os limites envolvidos em cada uma dessas opiniões. Contudo, tendo em conta as esclarecedoras observações nelas apresentadas e as considerações apresentadas no presente artigo, passaremos ao objetivo pretendido inicialmente, a saber: perceber a importância do local da secção do solipsismo no Tractatus. Diante do exposto, podemos afirmar que a localização da discussão sobre o solipsismo no Tractatus desempenha um papel importante na estrutura argumentativa desse livro por, pelo menos, três motivos intimamente ligados. Primeiro, o grupo de proposições que trata sobre esse tema filosófico é relevante para o desenvolvimento da argumentação de Wittgenstein porque expressa, de maneira prática, o que ele chamou de problema cardinal da filosofia, ou seja, a distinção entre dizer e mostrar. Sendo assim, a discussão sobre o solipsismo no Tractatus serve, – pelo menos na estrutura anteriormente apresentada –, como um nítido divisor de águas entre aquilo que pode ser dito e aquilo que deve apenas ser mostrado. A razão disso é porque é nessa secção onde o seu autor apresenta os limites 96
“A morte não é um evento da vida. A morte não se vive. Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita, mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente. Nossa vida é sem fim, como nosso campo visual é sem limite”.
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daquilo que de fato podemos dizer ao estabelecer, com maior clareza, os limites da linguagem. Concomitante e conseqüentemente a isso, é tratando sobre a verdade do solipsismo onde Wittgenstein aponta o primeiro exemplo de algo filosoficamente relevante que só deve ser mostrado. É nesses termos que o solipsismo se constitui, por assim dizer, um divisor de águas entre o que pode ser dito e o que deve ser mostrado. Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que serve como esse divisor entre o dizer e o mostrar, acreditamos que a secção do solipsismo no Tractatus, como bem observa Hans-Johann Glock97, assinala o ponto de intersecção entre as duas partes que constituem esse livro: a Lógica, que estabelece os limites daquilo que pode ser dito pela linguagem; e a Mística, onde se situam as coisas que, segundo Wittgenstein, só poderão ser mostradas. Nesse caso, a discussão sobre o solipsismo é o ponto de encontro entre essas duas partes e, sendo assim, ela serve como uma ponte entre essas partes por revelar de que maneira elas devem ser entendidas e relacionadas. Em outras palavras, isso implica dizer que é na discussão do solipsismo onde verificamos mais claramente que não podemos tratar da Lógica do Tractatus (o que pode ser dito) sem levar em consideração a Mística (o que deve ser mostrado) ali envolvida, e vice-versa. Isso evidencia que, apesar de distintas, estas partes estão em estreita e intrínseca relação, de modo que o entendimento errado de uma poderá comprometer a compreensão da outra. Assim, ao mostrar, com as proposições do solipsismo, como essas partes devem ser entendidas e relacionadas, Wittgenstein prepara e alerta seus leitores para o fato de que as coisas que posteriormente são apresentadas no livro, ou seja, aquelas que só devem ser mostradas, não podem ser entendidas separadamente da parte lógica anteriormente desenvolvida no livro. Por fim, em terceiro lugar, podemos destacar também que é tratando da questão do solipsismo no Tractatus que Wittgenstein introduz, no seu enredo argumentativo, alguns importantes conceitos ainda não abordados em seu livro, mas que servirão para discussão e compreensão de secções aforísticas posteriores. Ou seja, é na secção do solipsismo onde o autor do Tractatus apresenta e antecipa alguns conceitos necessários para o entendimento de temas tratados na parte final de seu livro como: a sua
97
Glock, 1998, p. 338.
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concepção de ética, de estética e o que ele chama de Místico, isto é, aquela parte que não pôde ser escrita, simplesmente por não poder ser dita. Conclui-se, então, que a secção das proposições que tratam do solipsismo no Tractatus, devido à sua localização, se reveste de uma importância singular na obra. Isso, dentre outras coisas, implica dizer que o entendimento da abordagem sobre o solipsismo nesse livro é indispensável para a compreensão de toda a obra, e conseqüentemente da filosofia da primeira fase do pensamento de Wittgenstein. Referências ANSCOMBE, G. E. M. An introduction to Wittgenstein’s Tractatus: themes in the philosophy of Wittgenstein. London: Hutchinson, 1971. (Wittgenstein studies). BLACK, Max. A Companion Wittgenstein’s Tractatus. Cambridge: Cambridge University Press, 1971. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein: linguagem e mundo. São Paulo: ANNABLUME Editora, 1998. ENGEL, S. Morris. Schopenhauer’s impact on Wittgenstein. Journal of the history of philosophy. Inglaterra, v. 7, p. 285 - 302, jul. 1969; FAUSTINO, Sílvia. A experiência indizível: uma introdução ao Tractatus de Wittgenstein. São Paulo: Editora UNESP, 2006. GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Trad. de Helena Martins; e rev. técnica de Luiz Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. (Dicionário de Filosofia). JANIK, Allan. The opaque self or how Arthur Schopenhauer influenced Ludwig Wittgenstein. Porto, série II, n. 1, p. 53 - 70, dez. 2005. MARTIRE, Joseph E. The ontological implications of Wittgenstein`s “picture theory”. In: LEINFELLNER; KRAEMER; SCHANK (Eds.), Language and ontology: proceedings of the 6º international Wittgenstein Symposium. Vienna: Hölder-Pichler-Tempsky, 1982, p. 449 – 452). MONK, Ray. How to read Wittgenstein. New York: W. W. Norton & Company, 2005. (How to read). MONK, Wittgenstein: o dever de um gênio. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia de Letras, 1995. MOUNCE, H. O. Wittgenstein’s Tractatus: an introduction. Oxford: Basil Blackwell Publisher, 1981.
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¿Descripciones definidas referenciales? Pierre Baumann* Abstract: Este trabajo cuestiona la tesis de que las descripciones definidas tienen una semántica referencial. Se discuten dos posibles definiciones de “significado referencial”, y se arguye que las descripciones definidas no son referenciales a partir de ninguna de las dos. También se examina brevemente la explicación reciente de Devitt (2004, 2007) sobre la referencialidad de las descripciones, y se señalan algunos problemas con esta explicación. Sugerimos (aunque no demostramos) que los problemas de precisar en qué sentido exactamente son referenciales las descripciones definidas apuntan a la incoherencia de la noción misma de referencia semántica y abogan en favor de una concepción pragmática de la referencia. Palabras clave: descripciones definidas; distinción atributivo/referencial; distinción semántica/pragmática; referencia Abstract: This paper questions the claim that definite descriptions have a referential semantics. Two possible definitions of “referential meaning” are discussed, and it is argued that definite descriptions are not referential according to either one. Devitt’s (2004, 2007) recent account of descriptions’ referential meaning is also briefly examined, and some problems with it are pointed out. It is suggested (though not shown) that the troubles with specifying exactly in what sense definite descriptions are referential point to the incoherence of the very notion of semantic reference and support instead a pragmatic understanding of reference. Keywords: attributive/referential distinction; definite descriptions; reference; semantics/pragmatics distinction
1 Introducción Hace 106 años Russell articuló la tesis de que las descripciones definidas tienen una semántica cuantificacional. Posteriormente Strawson (1950) disputó esta tesis, sosteniendo que la función principal de las descripciones definidas es de facilitar la referencia a objetos. En años recientes, algunos filósofos, motivados por el intento de Donnellan (1966) de sintetizar las posiciones encontradas de Russell y Strawson, han argüído que las descripciones definidas son ambiguas: tienen un significado cuantificacional russelliano y también un significado referencial. *
Departamento de Filosofía. Universidad de Puerto Rico, Recinto de Río Piedras. San Juan, Puerto Rico. E-mail: pdbaumann@gmail.com [Artigo recebido em 19.03.2011, aprovado em 30.6.2011.]
Natal, v.18, n.29, jan./jun. 2011, p. 285-298
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En este ensayo argumentaré que el planteamiento de que las descripciones definidas tienen un significado referencial es ininteligible. Examinaré dos definiciones posibles de “significado referencial” y trataré de mostrar que las descripciones definidas no son referenciales a partir de estas definiciones. Empezaré por dar un poco de trasfondo y luego pasaré a discutir las definiciones. 2 Trasfondo Por “descripción definida” entenderemos un sintagma determinante (SD) del español compuesto de un sustantivo o sintagma nominal precedido del artículo definido singular “el” o “la”, como “el libro” o “la mesa”. Dejamos fuera entonces frases que contengan los artículos plurales “los” y “las”, construcciones posesivas como “su libro” (que suelen ser analizadas como descripciones definidas, por ejemplo, “el libro de ella”) y el interesante caso del artículo definido abstracto “lo”. Nos concentraremos únicamente en sintagmas de la forma sintáctica “el/la F” en posición de sujeto de la oración. La teoría semántica “oficial” de las descripciones definidas en la filosofía del lenguaje es la Teoría de las Descripciones de Russell. La teoría de Russell trata del artículo definido inglés the; Russell no nos dice si su teoría puede extenderse a expresiones de otros idiomas. Siguiendo a Ezcurdia (2002), sin embargo, supondremos aquí que la teoría de Russell sí aplica al español y que las diversas objeciones a esta teoría también se traducen al español. Según la teoría de Russell, presentada por primera vez en 1905 en su artículo “On Denoting”, una oración con una descripción definida en posición de sujeto – es decir, una oración de tipo “el F es G” – significa “Existe una sola cosa que es F y G.” Pese a las apariencias sintácticas, la oración tiene una “forma lógica” que consiste de una conjunción de tres oraciones. La primera oración es “Existe algo que es F”; la segunda es “Una sola cosa es F”; y la tercera es “Lo que sea F también es G.” En el lenguaje de la lógica de primer orden: (∃x)[Fx & ((∀y)Fy → y = x) & Gx]. Según este análisis lógico, “el F” tiene una semántica cuantificacional; el significado del artículo definido se representa por medio de cuantificadores. Desde un punto de vista sintáctico, el artículo definido “el/la” es un determinante. Se podría interpretar a Russell en “On Denoting” como
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proponiendo que el artículo definido ha de asimilarse sintáctica y semánticamente a otros determinantes, tales como “todo”, “cada”, “muchos”, “pocos”, “una” “unos”, “algunos”, “ninguno”, etc., los cuales forman un SD cuantificacional cuando se combinan con un elemento nominal. Estos otros determinantes especifican cuántos objetos tienen una propiedad dada; de modo análogo, arguye Russell, el artículo definido le atribuye una propiedad a un único objeto arbitrario. Para Russell, pues, las descripciones definidas no son expresiones referenciales; “el F” no representa o denota un objeto particular que tiene la propiedad de ser F.1 Una oración con una expresión referencial en el sujeto tendría la forma lógica Ga (donde a es una constante que denota un objeto en el universo del discurso), y el valor semántico o vericondicional de esta expresión sería el objeto denotado. En cambio, una oración con una descripción definida en el sujeto tiene según Russell la forma lógica que acabamos de mencionar, y el valor vericondicional de la descripción sería un conjunto compuesto de una propiedad (la propiedad expresada por el elemento nominal) y una relación que toma esa propiedad como argumento (expresada por el artículo definido). La idea básica de Russell, de que “el F” le atribuye una propiedad a un único objeto arbitrario, no depende en modo alguno de su representación en lógica de primer orden, como ha demostrado Neale en su libro Descriptions de 1990. Neale nos enseña cómo la idea de Russell puede expresarse de manera alterna por medio de la Teoría de los Cuantificadores Generalizados (Generalized Quantifier Theory).2 En esta teoría “el F es G” se representaría de esta manera: [el x: Fx] Gx. Y las condiciones de verdad de la oración se especificarían como sigue:
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Russell llama “frase denotativa” (denoting phrase) a cualquier expresión cuya representación en lógica de primer orden involucre cuantificadores – como las descripciones definidas según él. Russell denomina el objeto que posee la propiedad mencionada por el elemento nominal de una descripción definida (es decir, el objeto que “satisface” o “realiza” la descripción, para el cual la descripción resulta verdadera) la “denotación” (denotation) de la descripción definida. Nosotros no emplearemos la terminología de Russell aquí; “denotación” tendrá en nuestra discusión el significado que normalmente tiene en semántica formal: “valor vericondicional”. 2 Esta posibilidad se anticipa en (Barwise & Cooper, 1981), uno de los escritos fundacionales de la TGC y el que la da a la teoría su nombre.
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[el x: Fx] Gx es verdadera syss |F-G| = 0 y |F| = 1 Las cláusulas veritativas de oraciones con otros cuantificadores se darían del mismo modo:3 [todo x: Fx] Gx es verdadera syss |F-G| = 0 [algún x: Fx] Gx es verdadera syss |F ∩ G| ≥ 1 [pocos x: Fx] Gx es verdadera syss |F ∩ G| < |F-G| [ningún x: Fx] Gx es verdadera syss |F ∩ G| = 0 Una de las ventajas de esta alternativa es que la TCG es una teoría matemáticamente elegante y muy fructífera. Es la principal teoría de la cuantificación en los lenguajes naturales. Las descripciones definidas serían entonces un tipo de cuantificador restringido más, con una interpretación basada en nociones matemáticas conocidas. Otra ventaja es que la TCG es compatible con la lingüística chomskyana, al mantener la distinción sintáctica entre sujeto y predicado, algo imposible para la versión lógica de Russell. Ahora bien, puede que la teoría de Russell sea la teoría oficial, pero no es la única. En años recientes, filósofos tales como Wettstein (1981), Reimer (1998), Devitt (2004, 2007) y Amaral (2008), entre otros, han defendido la tesis de que las descripciones definidas son semánticamente ambiguas: tienen un significado cuantificacional russelliano, pero también un significado referencial. Estos autores se inspiran en el artículo de Donnellan de 1966, “Reference and Definite Descriptions”, donde Donnellan contrasta dos usos de las descripciones definidas, un uso que él llama “atributivo” y un uso referencial. Es importante notar que en ese artículo Donnellan mismo no sostuvo la tesis de la ambigüedad semántica de las descripciones definidas; de hecho, él dice explícitamente que no se trata de una ambigüedad semántica y sugiere tentativamente que tal vez se la podría caracterizar como una ambigüedad pragmática. (Donnellan, 1966, p. 298) Los autores mencionados van más allá y hablan de un significado atributivo y uno referencial (y no de usos). Vale la pena repasar uno de los ejemplos de Donnellan para fijar la distinción atributivo/referencial. Supongamos que nos topamos con el cuerpo brutalmente asesinado de Smith. Si decimos “El asesino de Smith
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Compare (Neale, 1990, p. 43).
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está loco” en esta situación, lo que expresamos es que el individuo que mató a Smith, quienquiera que sea, está loco. Desconocemos quién es el asesino de Smith; no nos estamos refiriendo a alguien en particular. Estamos atribuyéndole dos propiedades, ser asesino de Smith y estar loco, a un objeto arbitrario. Tal uso atributivo de la descripción “el asesino de Smith” corresponde al análisis cuantificacional de Russell. La oración tendría las condiciones de verdad estipuladas por Russell. Supongamos ahora que estamos presentes en el juicio de Jones, quien ha sido acusado de asesinar a Smith. Jones se está comportando de manera muy extraña en el banquillo. Si decimos “El asesino de Smith está loco” en este caso, lo que expresamos es que Jones, el individuo ahí al frente, al cual nos referimos, está loco. En otras palabras, la frase “el asesino de Smith” sirve aquí para referirnos a Jones. Según Donnellan, nuestro enunciado es verdadero en este contexto si Jones está loco. Donnellan subraya que logramos decir algo verdadero aun si Jones no es el asesino de Smith o si Smith no fue asesinado, sino que se suicidó. La teoría de Russell no da cuenta de este uso referencial, y, como señalan los partidarios de la tesis de la ambigüedad, el uso referencial no es nada excepcional; al contrario, es sumamente frecuente. La frecuencia del uso referencial – un hecho innegable – es uno de los argumentos principales para pensar que existe un significado referencial, y no sólo un uso referencial. (Véase [Devitt, 2004].). Sin embargo, la frecuencia de uso no es una condición suficiente para postular una propiedad semántica, como ha señalado Bach (1998). Por ejemplo, las construcciones de tipo “¿Me puedes X?” (como ¿me puedes pasar la sal?) se usan con mucha frecuencia – quizás en su mayoría – para pedir o solicitar, pero no por este motivo concluiríamos que el verbo “poder” tiene un sentido exhortativo en adición a su sentido literal, “tener la capacidad de hacer algo”. Para la discusión a continuación es más pertinente otro argumento referencialista: que la descripción “el F” es ambigua porque las oraciones que la contienen pueden tener dos tipos de condiciones de verdad diferentes.4 La idea aquí es la siguiente. Del mismo modo que la oración 4
Este argumento está implícito en muchos autores, pero se formula explícitamente en (Searle, 1985, p. 141).
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“Juan tiene un gato” tiene dos tipos de condiciones de verdad diferentes, dependiendo de si “gato” significa “felino” o “palanca”, el referencialista sostiene que toda oración que contenga “el F” tiene dos tipos de condiciones de verdad diferentes, dependiendo de cómo se intreprete “el F”. Si se interpreta según su significado cuantificacional oficial, la oración tendrá las condiciones de verdad estipuladas por Russell; si se interpreta según su significado referencial, las condiciones de verdad incluirán un objeto específico al cual se hace referencia mediante la descripción definida.5 Para poder justipreciar este argumento, primero hay tener claros los términos que figuran en él. En particular, se tiene que definir la noción de “significado referencial.” En la próxima sección consideraremos dos definiciones posibles de “significado referencial”. Como mencioné al principio, “el F” parecería no tener un significado referencial a partir de estas definiciones. 3 “Significado referencial” Según una primera interpretación de “significado referencial” – llamémosla la interpretación fregeana – el significado de una expresión clasificada como referencial (p.e. nombres propios, demostrativos, pronombres personales) determina o identifica un objeto específico como su referencia. Saber el significado de la expresión, o ser competente con la misma, implica poder identificar el objeto denotado por la expresión. Según esta interpretación, por ejemplo, el nombre propio “Gabriel García Márquez” determina o identifica un individuo particular, Gabriel García Márquez. Un hablante competente del español que tenga este nombre en su idiolecto debe saber cuál individuo específico constituye la referencia del nombre. Esta definición es cónsona con la idea de Frege de que “el sentido determina la referencia” (y con la interpretación de Dummett de este principio según la cual el sentido fregeano de una expresión referencial ofrece un “criterio de identificación” de la referencia de la expresión [Dummett, 1973, p. 110]).
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Y no sólo cuando se usa una descripción equivocada (misdescription) para referirse a algo, como en los casos que discute Donnellan, sino en general, cada vez que se utiliza una descripción referencialmente.
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Tal definición fregeana tiene mayor plausibilidad en el caso de los nombres propios. En el caso de los demostrativos y los pronombres es evidente que la referencia cambia según las circunstancias y el significado de estas expresiones no identifica un objeto en particular. Pero aun en el caso de los nombres propios no está claro que el significado (si alguno) de un nombre identifique un objeto en particular, por dos motivos. En primer lugar, muchos individuos pueden tener el mismo nombre. ¿Cuál sería el individuo específico supuestamente denotado por el nombre “Juan”, por ejemplo? Es probable inclusive que haya más de un Gabriel García Márquez en el mundo. Algunos autores, como Kripke (1980) y Kaplan (1990), niegan que exista tal cosa como “tener el mismo nombre”. Según ellos, cada nombre ha de considerarse como una palabra distinta e individualizable según el objeto que tenga el nombre. Ellos señalan que en vez de ver a “gato” como una sola palabra con dos significados, muy bien podríamos decir que hay dos palabras, “gato1” y “gato2”, con significados diferentes, pero que suenan y se escriben igual. Análogamente, muy bien podríamos suponer que existe una serie de nombres “Juan1”, “Juan2”, “Juann”, idénticos fonológica y ortográficamente, que correspondan a un número n de Juanes, en vez de un solo nombre “Juan” compartido por muchos individuos. A mi juicio esta tesis de la homonimia de los nombre propios es bastante cuestionable, y en otro lugar la he criticado. (Véase [Baumann, 2010].) Katz (2001) y Bach (2002) también han hecho críticas, en mi opinión, decisivas. Pero aun si la tesis es cierta, la tesis trata de nombre propios, y no de descripciones definidas. Lo que hay que determinar aquí es si una descripción definida, un tipo de expresión más compleja sintácticamente que un nombre propio y también más general, porque incluye un elemento nominal general, identifica con exclusividad un objeto entre otros objetos. Parecería obvio que una descripción definida común y corriente, como “la mesa”, puede utilizarse para referirse a objetos distintos. (Y el que pueda utilizarse para esto de por sí no demuestra que tenga un significado referencial, como dijimos arriba.) El significado de “la mesa” no identifica una mesa en especial. Otras descripciones menos comunes y corrientes, como “el autor de Cien años de soledad” y “el único número primo par”, las cuales sí parecen denotar un objeto específico, lo harían sólo por un
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accidente metafísico, y no porque así lo dicta su significado. En el mundo actual sólo hay una obra llamada Cien años de soledad y un autor que la escribió, y un solo objeto – el número 2 – al cual nos podríamos referir utilizando la descripción matemática antes mencionada. Pero existen mundos posibles donde hay más de una obra llamada Cien años de soledad, y otros donde Gabriel García Márquez la escribió junto con otro autor desconocido. Asimismo, si yo le pongo “Único Número Primo Par” a mi perro, la descripción “el único número primo par” (la concatenación de sonidos) cesaría de identificar con exclusividad el número 2.6 En conclusión, parece que las descripciones definidas no satisfacen la condición fregeana: el significado de una descripción definida por sí solo no determina una referencia específica. (Otro problema distinto con la definición fregeana tiene que ver con la noción de “sentido” misma y cómo es que el sentido determinaría la referencia. Este problema se ve también con más claridad en el caso de los nombres propios. Según las propuestas clásicas de Frege (1892/2000; ver nota al calce nº 2) y Russell (1912, 1919), el sentido de un nombre propio es un “modo de presentación” del referente que ha de representarse como una descripción definida. Para Russell en efecto los nombres propios comunes y corrientes como “Homero” y “Bismarck” son descripciones “disfrazadas” o “abreviadas”. Esta caracterización de la noción de sentido da pie al siguiente argumento: Los nombres propios son descripciones definidas. Las descripciones definidas son cuantificacionales. Por lo tanto los nombres propios son cuantificacionales – y no referenciales. Russell, claro está, no tendría poblema alguno con esta consecuencia.) Veamos ahora una segunda interpretación de “significado referencial”. Según esta segunda interpretación, que podría denominarse formalista, ya que así es que se define la noción de referencia en la semántica formal (por ejemplo, en el libro de texto de Heim y Kratzer [1998]), una expresión es referencial si y sólo si tiene un objeto como valor vericondicional. No se requiere, pues, que sea un objeto específico, en el 6
Cabe recordar en esta coyuntura la tesis de Kripke (1980, p. 48-9) de que muchas descripciones definidas no matemáticas no son rígidas. (Y las matemáticas son sólo rígidas de facto y no de jure.) Si no son rígidas de jure, entonces no pueden ser expresiones referenciales, ya que la rigidez presupone una semántica referencial.
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sentido de que el usuario del lenguaje deba poder identificarlo entre otros objetos meramente en virtud de entender la expresión. El requisito es simplemente que sea un objeto el aporte de la expresión a las condiciones de verdad de la oración que la contiene, y no otro tipo de entidad – por ejemplo, una propiedad. Para cumplir con esta condición la expresión tiene que tener un significado que mencione, independientemente de cualquier contexto donde pueda ser utilizada la expresión, algo que pueda caracterizarse como un objeto. El pronombre personal “yo” cumpliría con esta condición, por ejemplo. El significado de este pronombre, “el individuo que está hablando o escribiendo”, menciona algo que puede fácilmente caracterizarse como objeto: el individuo que está hablando o escribiendo. Y el significado de este pronombre es invariable: es decir, no varía de contexto a contexto, a pesar de que el pronombre puede denotar individuos distintos en contextos distintos. “Yo” no identifica a un individuo en particular. Es gracias al significado invariable del pronombre que alguien puede entender la oración “Yo tengo sed de conocimiento, ¿y tú?” (escrita, supongamos, en la pizarra de un salón desierto), sin que esta persona sepa quién escribió la oración. Se puede entender esta oración sin saber quién es el “yo” aquí. Como señala Kaplan (1989), el significado o “character” de “yo” puede verse como una función que va desde el contexto discursivo al contenido vericondicional de la oración emitida. Esta función toma como argumento un elemento del contexto extra lingüístico – el hablante – y lo inserta dentro de las condiciones de verdad de la oración. La función selecciona objetos distintos en contextos distintos, dependiendo de quién es el hablante o escritor. Nos toca ver, entonces, si el alegado significado referencial de “el F” funciona del mismo modo, es decir, si “el F” tiene un significado referencial que no cambia de contexto a contexto pero que permite que distintos objetos con la propiedad F representen el valor vericondicional de la frase en contextos distintos. Para mayor precisión conviene considerar una propuesta concreta en torno al significado referencial de las descripciones definidas. He escogido la explicación que ofrece Michael Devitt, por ser ésta
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una reciente y clara.7 Devitt caracteriza el significado referencial como sigue: “the core of the referential meaning of a [definite] description...is its referencedetermining relation to the particular object that the speaker has in mind in using the description.” (2004, p. 280) Según Devitt, existe una convención o regla semántica que dice que “el F” se utiliza para denotar el objeto que el hablante tiene en mente. Así que el significado referencial de “la mesa”, por ejemplo, se podría expresar de este modo: “‘la mesa’ denota la mesa que el hablante tiene en mente”. Para Devitt la relación que determina la referencia de una descripción definida (la reference-determining relation) está fundada en la percepción. Este supuesto es dudoso por varios motivos, pero no podemos detenernos aquí a examinar estos problemas. El ingrediente esencial de la definición de Devitt, ingrediente que figura también en las propuestas de otros autores,8 es la idea de que el significado referencial está constituido en parte por la intención del hablante de referirse a un objeto en particular. Esta idea me parece problemática por las siguientes razones. En primer lugar, me parece que este tipo de definición confunde dos niveles de análisis distintos, el semántico y el pragmático. El concepto de intención es un concepto que le pertenece a la pragmática; la intención (o las intenciones, porque puede haber más de una) es parte del contexto en sentido amplio. La definición estaría violentando la distinción ampliamente reconocida entre significado lingüístico por un lado e intención del hablante (o speaker meaning) por otro. Una cosa es el significado invariable de una expresión vista como elemento sincrónico del sistema lingüístico y otra cosa son los propósitos de los hablantes al utilizar la expresión en contextos particulares. El problema, en otras palabras, es que la definición estaría
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Existen diversas explicaciones del significado referencial de “el F”. Otra propuesta reciente interesante es la de Amaral (2008), la cual traza la referencialidad de la descripción definida al artículo definido y apela a evidencia multilingüística para concluir que el artículo tiene un significado referencial. No podemos examinar todas las teorías referencialistas existentes aquí; nos concentraremos únicamente en la de Devitt, sin pretender que las críticas que esbozaremos arriba necesariamente apliquen a todas las otras teorías referencialistas. Por ejemplo, Amaral caracteriza el significado referencial como sigue: “The referential [meaning]… of a definite description may be understood thus: if the definite description is referential, its meaning is partly constituted by the object the speaker has in mind.” (2008, p. 289, nota al calce nº 2)
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introduciendo ilícitamente un elemento contextual variable en el significado lingüístico invariable de “el F”. Si la definición de Devitt fuera correcta, no sería posible entender el significado de “la mesa”, por ejemplo, sin saber cuál es la mesa que el hablante tiene en mente, a qué mesa en particular pretende referirse. Esto resulta bastante implausible, especialmente cuando vemos que es perfectamente posible entender términos referenciales paradigmáticos, como el pronombre “yo”, sin saber quién es el individuo denotado. En segundo lugar, la definición de Devitt contiene ella misma una descripción definida, a saber, “el hablante”. Esta descripción o bien tiene un significado cuantificacional russelliano o tiene un significado referencial. Si es el significado referencial el operante en la definición, presuntamente tendría que interpretarse como sugiere Devitt: “el hablante que el hablante tiene en mente.” Como esta glosa también contiene una descripción definida, estaríamos entonces ante una regresión infinita. Si, por el contrario, es el significado russelliano el indicado, entonces tendríamos la curiosa situación de que uno de los significados de una expresión ambigua depende de manera esencial del otro significado. (Bach [2004] también ha elaborado un argumento diferente que demostraría que el alegado significado referencial dependería del significado cuantificacional.) Si se tratara de eludir este problema utilizando el pronombre “yo” en vez de “el hablante” en la definición – por ejemplo “la mesa que tengo en mente” – la estrategia no funcionaría, ya que al definir este pronombre nos veríamos obligados a utilizar descripciones definidas o indefinidas, que a su vez tendrían que interpretarse cuantificacionalmente o referencialmente, con los resultados que acabamos de describir. Concluyo que la segunda definición, en términos de una regla que involucre la intención del hablante, no es adecuada. ¿Habrá otras maneras de definir el término “significado referencial”? En la lingüística existe otro modo de entender el término “referencial” basada en la noción de “referencia discursiva” (discourse reference) de Karttunen (1976). Sin embargo, ésta es una noción muy distinta y por definición intralingüística – no envuelve objetos fuera del lenguaje mismo. Por ende, tal noción no es pertinente para nuestra discusión. Las dificultades que hemos encontrado al tratar de definir el término “significado referencial” en el caso de las descripciones definidas
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apuntan, en mi opinión, a un problema mayor: la posibilidad misma de definir el concepto de significado referencial en general. Yo comparto la opinión de varios filósofos y lingüistas, empezando por Strawson, de que la referencia es un concepto pragmático y no semántico. No hay tal cosa como referencia semántica. Demostrar esta tesis pragmatista, sin embargo, requiere demostrar, para cada expresión clasificada como referencial, dos cosas: primero, que la expresión admite una interpretación literal no referencial, y, segundo, que la noción de significado referencial es incoherente con respecto a ella. Otra evidencia importante sería la posibilidad de interpretar literalmente de manera “referencial” sintagmas nominales que según el consenso filosófico no son referenciales, sino que tienen otra semántica. En otros trabajos he intentado evidenciar la tesis pragmatista en el caso de los nombres propios y ciertas frases cuantificacionales del inglés. (Véase, por ejemplo, [Baumann, 2010]). A pesar de que demostrar la tesis general pragmatista sobre la referencia está más allá del alcance de este artículo, tal tesis pragmatista estaría apoyada indirectamente por los argumentos que hemos aducido aquí para cuestionar la idea de que las descripciones tienen una semántica referencial. 4 Conclusión He argüído que la idea de que las descripciones definidas son expresiones referenciales no es una clara. Hay dos maneras de definir el concepto de referencia semántica, una manera fregeana según la cual el significado de una expresión referencial determina o identifica un objeto particular, y una manera formalista según la cual las expresiones referenciales son aquellas que contribuyen un objeto a las condiciones de verdad de las oraciones que las contienen. Para ser referencial en este segundo sentido la expresión tiene que tener un significado lingüístico que envuelva algo objetual. Las descripciones definidas no son referenciales bajo ninguno de los dos conceptos. En particular, vimos que el intento reciente de Devitt de articular un significado referencial compuesto en parte por la intención del hablante parecería fracasar por dos razones: 1) porque mezcla lo pragmático con lo semántico y 2) porque al tratar de explicar los términos que aparecen en la definición nos enfrentamos o bien a una regresión infinita o si no a una fundamentación extraña del significado referencial en el cuantificacional.
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Reconsiderando o verificacionismo Claudio F. Costa* Resumo: O objetivo desse artigo é mostrar que o princípio da verificação não está tão morto quanto geralmente se acredita. Retornando à metodologia e assunções de Wittgenstein, que afinal foi quem primeiro sugeriu o princípio, respostas às principais objeções são sugeridas. Palavras-chave: significado; verificabilidade; Wittgenstein Abstract: The aim of this paper is to show that the principle of verification isn’t as death as it is usually considered. This is made, first, by coming back to the methodology and assumptions of the later Wittgenstein, the originator of the principle. With this in mind, answers to some main objections to this principle are developed. Keywords: meaning; verifiability; Wittgenstein
Meu objetivo aqui é apresentar alguns argumentos em defesa do que chamo de verificacionismo semântico, que consiste na sugestão de que o sentido representacional de frases declarativas seja constituido por regras de verificação. Essa doutrina costuma ser hoje vista como uma relíquia da filosofia da primeira metade do século XX. Afinal, ela foi defendida pelos filósofos do círculo de Viena, não tendo resistido ao acúmulo de argumentos contrários, tanto de dentro quanto de fora do círculo. A origem do verificacionismo semântico Um primeiro ponto a ser observado é que, diversamente do que alguns pensam, a idéia de que o significado de um enunciado é o seu modo de verificação não se deve aos filósofos do positivismo lógico. O autor da idéia foi Wittgenstein, como os próprios membros do círculo de Viena sempre reconheceram.1 Com efeito, se consultarmos a obra desse filósofo, veremos que ele já formulava o princípio em suas conversações com Waismann de *
Professor do Departamento de Filsosofia da UFRN. E-mail: oidualc1@oi.com.br [Artigo recebido em 03.02.2011, aprovado em 30.06.2011] 1 Como nota Hans-Johann Glock em seu Wittgenstein-Lexikon: “o princípio foi primeiramente defendido pelo círculo de Viena, mas seus membros o atribuem a Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”, p. 354.
Natal, v.18, n.29, jan./jul. 2011, p. 299-320
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1929, mantendo-o em seus escritos na década seguinte. Além disso, não há sequer evidência explícita de que ele tenha mais tarde abandonado o princípio em troca de uma concepção puramente performativa do significado como função do uso. Pois parece até mais plausível que o verificacionismo e a tese posterior de que o significado é função do uso sejam compatíveis entre si.2 É sempre bom consultarmos o que disse o verdadeiro autor de uma idéia. Se compararmos o verificacionismo wittgensteiniano com o verificacionismo do Círculo de Viena, perceberemos que há contrastes marcantes. Um primeiro deles é que Wittgenstein não parecia estar preocupado em utilizá-lo como uma arma para o combate à metafísica, como queriam os membros do círculo. O objetivo maior parece ter sido alcançar uma Uebersicht, ou seja, esclarecer um princípio constituidor da função semântica de nossa linguagem representacional. Outra diferença marcante é que Wittgenstein não se preocupou em precisar seu princípio por meios formais, diversamente do que membros do círculo, de Ayer a Carnap, tentaram. Não estou objetando contra isso. O que me parece, contudo, é que tal empreendimento deve ser aqui respaldado por uma consideração suficientemente detida de como a linguagem natural realmente funciona, tendo sido a desconsideração disso o que teria precipitado as distorções que acabariam por tornar o princípio aparentemente inviável. Dito isso, quero começar examinando algumas considerações de Wittgenstein sobre o princípio da verificação. Depois disso irei examinar as algumas objeções ao princípio no intuito de demonstrar que elas são mais frágeis do que aparentam. Verificacionismo wittgensteiniano Eis algumas das declarações de Wittgenstein apresentando o princípio da verificabilidade:
2
Como escreveu Moritz Schlick, o mais brilhante intérprete de Wittgenstein no período: “Stating the meaning of a sentence amounts to state the rules according to which the sentence is o be used, and this is the same as stating the way in which it can be verified. The meaning of a proposition is the method of its verification.” Schlick, 1938, p. 340
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Uma frase (Satz) que não se deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).3 São duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condições, então elas têm o mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam diferentes). Determino sob que condições uma frase pode ser verdadeira ou falsa, então determino desse modo o sentido da frase. (Esse é o fundamento de nossas funções de verdade.)4 Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento muito bem definido para saber se a frase é verificada.5 O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira ou falsa, assim determino o sentido da frase.6 O sentido de uma frase é o método de sua verificação.7
O que chama atenção em frases como essas é o seu caráter fortemente intuitivo. Elas parecem expor lugares comuns acerca de nosso uso linguístico, corroborando a sugestão wittgensteiniana de que teses filosóficas são triviais por explicitarem aquilo que todos nós sempre soubemos. Os enunciados do princípio seriam, aliás, o que Wittgenstein chama de “frases gramaticais”, ou seja: enunciados explicitadores de regras que estão no fundamento das práticas linguísticas constitutivas de nossa linguagem factual. Há vários pontos a serem observados aqui. Um primeiro é que a regra de verificação deve ser ao menos a parte do conteúdo de uma sentença declarativa que tem sido chamada de sentido cognitivo ou descritivo ou factual ou, como prefiro chamar aqui, de sentido representacional. Um segundo ponto que poderia ser notado é que a regra de verificação vem associada tanto à verificação quanto à falsificação do enunciado. E a razão disso é que essa regra verifica o enunciado ao ser aplicada a um fato – entendido aqui como o fazedor da verdade independente do sujeito, seja ele o que for – falseando-se quando, pela inexistência desse fato, ela não se demonstra a ele aplicável. Considere o enunciado “Frege usava barba”. Aqui 3
Wittgenstein, 1985, p. 245. Wittgenstein, 1985, p. 244. 5 Wittgenstein, 1985, p. 47. 6 Wittgenstein, 1985, p. 244. 7 Wittgenstein, 1985, p. 226, 227. 4
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a regra de verificação se aplica a um fato no mundo, logo a frase é verdadeira. Considere agora o enunciado “Russell usava barba”: aqui a regra de verificação não se aplica a nenhum fato no mundo, logo a frase é falsa. (Similarmente, não existem fatos negativos: a frase “Napoleão não usava barba” não se aplica ao fato negativo de ele não usar barba. Pois “Napoleão não usava barba” quer dizer o mesmo que “É falso que Napoleão usava barba”, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que “A regra de verificação para o enunciado ‘Napoleão usava barba’ não se aplica”.) Um outro ponto acentuado por Wittgenstein é que geralmente existe uma variedade de maneiras de se verificar (falsificar) um enunciado, cada maneira constituindo um diferente aspecto do seu significado. Como ele notou: A consideração do modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge ganhou a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, obviamente não é o significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não é a disjunção ‘eu vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se excluirmos qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós alteraremos o seu significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós excluíssemos da verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se excluíssemos todos os meios de verificação, isso destruiria o significado. É claro que nem toda espécie de verificação é realmente usada para verificar “Cambridge venceu” nem qualquer verificação dará o significado. As diferentes verificações do vencer a corrida de botes têm diferentes lugares na gramática de “ter vencido a corrida de botes”.8
Usando o vocabulário wittgensteiniano podemos dizer que a regra verificacional se aplica quando temos a cognição, a tomada de consciência de um fato. Essa cognição pode ser direta, pela satisfação de constelações criteriais de algum modo constitutivas do fato, ou indireta, pela satisfação de critérios que nos permitam inferir esse mesmo fato. A regra de verificação de um enunciado é como uma árvore cujos ramos são sub-regras capazes de verificar o enunciado sob diferentes aspectos. A investigação precisa e detalhada da estrutura das regras de verificação em diferentes espécies de enunciados é um empreendimento que me parece importante e que nunca foi levado a termo. No que se segue quero limitar-me, porém, a responder às principais objeções ao princípio da verificabilidade assim entendido. 8
Wittgenstein, 2001, p. 29.
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A objeção da inverificabilidade do próprio princípio A primeira e mais notória objeção ao princípio da verificabilidade é que ele é autodestrutivo. O argumento é o seguinte. O princípio da verificabilidade deve ser tautológico ou sintético. Tautológico, ou seja, analítico,9 ele não pode ser, pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece claramente informativo. Além disso, enunciados analíticos são autoevidentes e a sua negação é incoerente, o que não é o caso do princípio da verificabilidade. Por conseguinte, ele é sintético. Mas se é sintético, então ele precisa ser destituído de sentido, posto que quando tentamos aplicar o princípio da verificabilidade a ele mesmo, descobrimos que ele é inverificável. Como conseqüência, o princípio é destituído de significado pelos seus próprios standards. Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o princípio da verificabilidade de fato não tem valor-verdade, pois ele não passa de uma recomendação metodológica, uma prescrição, uma proposta.10 A.J. Ayer defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma opção mais convincente... Todavia, um ouvinte de outra 9
Entendo uma proposição analítica como sendo aquela cuja verdade decorre da combinação dos sentidos de suas expressões constitutivas. Enganou-se Quine (em “Two Dogmas of Empiricism”) ao rejeitar essa definição por ela se basear no conceito demasiado vago de significado. Vaguidade só é vista como defeito quando confundida com imprecisão. Vago ou não, esse conceito cumpre aqui com a sua função de produzir uma definição perfeitamente inteligível e em si mesma irretocável (R.G. Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228; ver também H.P. Grice e P.F. Strawson em “In Defense of a Dogma”). Também me parece falaciosa a rejeição de Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade através de sinonimidade e necessidade, em razão da excessiva proximidade semântica entre os vários conceitos envolvidos (significado, sinonimidade, necessidade...), o que produz, segundo ele, uma quase-circularidade na definição. Afinal, em nossas definições é natural e mesmo indispensável que os conceitos usados pertençam a um mesmo campo semântico. Cadeira, por exemplo, se define como “banco com encosto”, mas tanto o conceito de cadeira, como o de banco e o de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa definição é quase-circular. A crítica de Quine ao conceito de analiticidade só parece convincente por ser confundida com a constatação da vaguidade da fronteira entre o analítico e o sintético, ou a de que alterações em nossas práticas linguísticas podem tornar frases analíticas dispensáveis, relativizando-as por isso. Mas essas constatações já foram feitas, por exemplo, por Wittgenstein. 10 Essa posição foi aceita ou defendida por Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A.J. Ayer (ver C.J. Misak: Verificationism, p. 79-80).
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convicção poderia responder que simplesmente não sente a necessidade de aceitar nada nem de optar por coisa alguma... Na verdade, a resposta de Ayer não parece apenas ad hoc. Ela vai contra a sugestão wittgensteiniana de que aquilo que estamos fazendo é tão somente analisar as intuições subjacentes à nossa linguagem natural em busca de princípios gerais nela embutidos. Por isso, impor à nossa linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e mesmo confusivo como meio de esclarecer o significado. Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de Wittgenstein de que tal princípio deveria exprimir nosso entendimento do que é efetivamente caucionado pela linguagem cotidiana, de modo a formar uma frase gramatical expressiva de uma condição que precisa ser satisfeita pela totalidade de nossa linguagem factual. Ora, uma vez que admitimos que o princípio faz explícitas intuições lingüísticas pré-existentes, tornamonos autorizados a pensar que ele é analítico, ou seja, que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade entre as expressões ‘significado (representacional) de uma frase’ e ‘modo como o o seu valor-verdade é estabelecido’. Assim, tomando p como uma frase assertiva qualquer, podemos definir o significado cognitivo de p através da seguinte proposição analítico-conceitual: (Df.) Significado representacional de p = a regra de verificação para p.
Contra isso se poderia insistir em objetar que sendo analítico, o princípio de verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua negação ser incoerente, o que não parece ser o caso. Em busca de uma resposta gostaria de primeiro remontar a uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke. Esse filósofo distinguiu entre conhecimento sensitivo (sintético ou empírico) e relações de idéias (verdades analíticas); as últimas, por sua vez, foram distinguidas como provendo conhecimento intuitivo ou demonstrativo.11 As frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação claramente contraditória. Mas nem todas as frases analíticas são intuitivas. A frase “A soma dos três ângulos de um
11
John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.
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triângulo é igual a dois ângulos retos” exprime conhecimento demonstrativo, mas apesar disso exprime uma relação de idéias (frase analítica). O conhecimento demonstrativo é o que se baseia em demonstrações cujas premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, ou seja, por verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente informativo, ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio da verificabilidade não poderia ser algo como uma frase analítica demonstrativa? Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema da geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal, em casos como os teoremas da geometria, é fácil percorrer outra vez os caminhos já pré-determinados que conduziram a sua demonstração. Mas não há um caminho similar para se demonstrar o princípio da verificabilidade. Acredito que a chave para uma resposta possa surgir quando comparamos o princípio da verificabilidade com enunciados que tal como ele nunca foram demonstrados e que não parecem à primeira vista demonstráveis, mas que através de análise se revelam verdades demonstrativas encobertas. Isso acontece, por exemplo, com enunciados complexos da linguagem ordinária, que não são imediatamente verdadeiros, mas que a uma análise demonstram ter a forma de tautologias. Um caso menos trival é o do enunciado: Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto).
Esse enunciado não é analiticamente intuitivo. Na verdade ele já foi visto e até hoje é visto como um exemplo standard do que poderia ser um juízo sintético a priori.12 Mas se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro que (i) cores podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem ocupar a mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes, parece daí se deduzir o caráter analítico do enunciado “Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde”. Eis como esse argumento pode ser melhor organizado: 12
Ver, por exemplo, Bonjour, 1998, p. 100 ss.
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Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo. Uma superfície delimita um lugar. (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo. Cores são coisas que ocupam superfícies. (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a mesma superfície ao mesmo tempo. Vermelho e verde são cores diferentes. (5,6) O vermelho e o verde não podem ocupar a mesma superfície ao mesmo tempo.
A mim, pelo menos, as premissas 1, 2, 4 e 6 são (em contextos adequados) intuitivamente analíticas. Por conseguinte, a conclusão também deve ser analítica, ainda que não pareça. A sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da verificabilidade seja uma verdade analítica demonstrativa encoberta não-trivial, podendo ter o seu caráter autoevidente esclarecido através de elucidação de seus pressupostos. Não pretendo demonstrar esse ponto nesse artigo, mas ele me parece razoavelmente plausível. A objeção do holismo verificacional Uma objeção sofisticada é a proveniente da generalização da tese de Duheim feita por W.V-O. Quine. Segundo Quine, “nossos enunciados sobre o mundo externo não fazem frente à experiência sensível individualmente, mas em um corpo corporativo”.13 A implicação antiverificacionista disso é clara: como o que é verificado é todo um sistema de enunciados, e nunca um enunciado isoladamente considerado, não faz sentido pensar que o enunciado tem uma regra de verificação distintiva ou intrínseca, que possa ser identificada com o seu significado. Em meu juízo, se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de que nenhum enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do sistema é correta. Ela constitui o que poderíamos chamar de
13
Quine, 1961, p. 41.
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um holismo formal ou estrutural. Mas a conclusão insinuada por Quine, de que isso destrói o verificacionismo – devido ao que poderíamos chamar de um holismo verificacional – nada tem de segura, uma vez que nesse último caso precisaremos levar em conta a variedade de formas de interdependência vigente entre os enunciados que formam o sistema. Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é retirada do fato bem conhecido pelos filósofos da ciência, de que enunciados observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses auxiliares para poderem ser verdadeiros. In abstracto isso é correto; afinal, nossas crenças são interdependentes. Mas se desse holismo formal ou abstrato se segue um holismo verificacional em um nível mais concreto é outra questão. Em meu juízo, a tese de Quine é equívoca porque embora no final das contas o sistema de enunciados realmente deva se confrontar como um todo com a realidade, os seus enunciados não se confrontam nem conjuntivamente nem simultaneamente com a realidade. Um exemplo conhecido pode esclarecer o que quero dizer. Sabemos hoje que Galileu descobriu a verdade do enunciado: (1) “Júpiter tem luas” pela observação telescópica. Seus contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados da observação telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas filósofos da ciência hoje notam que eles não estavam de todo destituídos de razão. Pois uma assunção auxiliar para a aceitação da verdade do enunciado “Júpiter tem luas” é que o telescópio seja um instrumento confiável. Ao aperfeiçoar o telescópio Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do telescópio, segundo a qual o seu poder de ampliação resulta do seu comprimento focal dividido pela distância focal da ocular. Mas para que essa assunção auxiliar fosse garantida, faltava ainda no tempo em que Galileu construiu o seu telescópio, a comprovação de outras assunções auxiliares, como as que constituem as leis da óptica.14 Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i / sen r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida por Snell, em 1626, enquanto as observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas outras hipóteses auxiliares assumidas, a verificação feita por Galileu de que o planeta Júpiter tem luas pode ser apresentada como resultado do seguinte argumento indutivo:
14
Salmon, 2002, p. 276.
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1. Observação telescópica de quatro astros orbitando Júpiter. 2. (Lei da ampliação do telescópio) 3. ((sen i / sen r = n2/n1)) ______________________________________________________
4. Conclusão: O planeta Júpiter tem luas. Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça secundariamente o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria bem mais o argumento. Da consideração da inclusão dessas e de outras premissas constitutivas de hipóteses auxiliares comprovadas, o holista verificacional conclui que 4 não possui uma regra de verificação independente, constitutiva de seu sentido. Mas há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que esses enunciados não são simultaneamente verificados. O enunciado 4 foi verificado como conseqüência direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se realizou pela observação diárias que Galileu fez das variações das posições dos quatro astros alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se deu simultaneamente à verificação dos enunciados 2 e 3. Na verdade, a inferência da conclusão 4 com base em 1 em boa medida pressupõe uma anterior verificação da premissa 2, que por sua vez em alguma medida pressupõe a verificação da premissa 3 (o que é indicado pelos parênteses). Ora, por serem anteriores e pressupostas, torna-se claro que as verificações de 2 e 3 são independentes da verificação de 4 por 1. Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o enunciado observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de raciocíno própria do procedimento verificacional não é O A1 + A2... + An Logo P
Mas sim: O (assumindo a prévia verificação de A1 + A2... + An) Logo P
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Essa pressuposição de uma verificação prévia das hipóteses auxiliares é o que em meu juízo faz toda a diferença, pois permite-nos separar a regra de verificação de P, que o associa P diretamente às observações associadas a O, das regras de verificação das verificação das hipóteses auxiliares, que são assumidas como já tendo sido aplicadas. Além disso, podemos claramente distinguir o que verifica cada hipótese auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser verificada através de simples medições empíricas; e a lei da refração foi estabelecida com base em medições empíricas da relação entre variações do ângulo de incidência da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade que em um nível formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da verificação de outros, no nível dos procedimentos cognitivos concretos a verificação dos enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que nos permite isolar os procedimentos verificacioinais inerentes ao próprio enunciado em questão e identificá-los com aquilo que estamos querendo dizer com ele. Ou seja: o que nos permite distinguir modos de verificação específicos é que os diferentes enunciados auxiliares devem ser verificados anteriormente ao procedimento verificacional que conduz à conclusão, servindo de pressupostos para a inferência. Isso nos permite distinguir e individuar o procedimento através do qual cada enunciado é cognitivamente verificado, o modo (regra) de verificação de cada enunciado, o que torna o holismo inofensivo como crítica ao verificacionismo semântico. Por abstrair esse ponto, o argumento de Quine produz a impressão equívoca de que toda verificação é holística e que o significado do enunciado não pode ser identificado com a sua regra de verificação. Finalmente, cumpre notar que como cada enunciado tem um sentido que lhe é próprio, torna-se outra vez razoável identificar o sentido do enunciado com o seu modo de verificação, posto que ambos são individuados pelo enunciado e não pelo sistema de enunciados. A conclusão inescapável é que o holismo verificacional não se sustenta, pois a simples admissão do holismo formal, i.e., do fato dos enunciados estarem sempre em alguma medida inferencialmente enovelados uns nos outros, não é suficiente para nos fazer concluir que as suas regras verificacionais não possam ser distinguidas umas das outras de modo a serem identificadas com os significados representacionais de seus respectivos enunciados.
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O exame do que acontece concretamente quando um enunciado é verificado nos mostra que mesmo assumindo o holismo formal (que a mim, ao menos, parece correto), as regras de verificação são distinguiveis umas das outras na mesma medida dos significados dos enunciados correspondentes – uma conclusão que apenas sugere a esperada correlação entre o significado representacional do enunciado e o seu modo de verificação. O problema da assimetria existencial-universal Outra objeção é a de que o princípio da verificabilidade só se aplica conclusivamente a frases existenciais, mas não a frases universais. Para verificarmos uma frase existencial como “Algumas peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça de cobre que se expande ao ser aquecida; mas para verificarmos conclusivamente uma frase universal como “Todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, precisaríamos vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro e em seu passado, o que é impossível. É verdade que a universalidade absoluta é uma ficção e que, quando falamos em frases universais, estamos sempre tendo em vista um certo universo de discurso. Mas apesar disso o problema permanece. Pois como o próprio caso da expansão de metais exemplifica, o universo de discurso costuma ser muito mais amplo do que tudo o que podemos efetivamente experienciar, impossibilitando uma verificação conclusiva. Assim sendo e também pelo fato de que as leis científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu a alguns se perguntar se não seria melhor admitirmos o sentido representacional das frases universais como sendo constituido por regras de falsificação ao invés de regras de verificação; seria essa a resposta correta?15 Penso que não. O problema é que, como já notamos, não parece existir uma regra de falsificação do enunciado, assim como certamente não existe uma força desassertiva, nem uma regra de desidentificação do nome ou uma regra de desaplicação do predicado. Podemos, por exemplo, falsificar o enunciado “Todos os corvos são pretos” com a verificação da frase “Esse corvo é albino”. A regra de verificação desse último enunciado é tal que, se aplicada, falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”. Mas se o significado do enunciado universal fosse uma regra capaz de falsificá-lo,
15
Ver Hempel, 1950, p. 41-63.
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e a regra de verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é, quando aplicada, o que falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”, então parece que devemos admitir que esse último enunciado é sinônimo de “Esse corvo é albino” (ou que o último seja ao menos parte do sentido do primeiro). Mas isso é absurdo: a regra de verificação para corvos albinos não tem nada a ver com o significado da afirmação de que todos os corvos são pretos. Parece, pois, que devemos admitir que o significado do enunciado universal é realmente a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece inevitável o retorno do problema da inconclusividade da verificação desses enunciados. Não é necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que a objeção da inconclusividade é falha, emergindo do fato de que nos enganamos quanto ao reconhecimento da forma lógica dos enunciados universais. Basta um breve exame para mostrar que eles são simultaneamente probabilistas e conclusivos. Considere outra vez a frase: O cobre se expande ao ser aquecido.
A sua forma não é: Afirmo que é absolutamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas,
onde o ‘absolutamente certo’ significa ‘sem possibilidade de erro’. Essa forma seria apropriada para verdades formais como Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,
pois aqui não pode haver erro (exceto erro procedimental, o que está fora de consideração). Mas essa forma não é apropriada a verdades empíricas sobre as quais não vige a certeza resultante das próprias convenções conceituais adotadas. A forma lógica da frase em questão é outra. Ela é a da certeza prática expressa por Afirmo que é praticamente certo que toda peça de cobre se expande ao ser aquecida,
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onde ‘praticamente certo’ significa ‘com uma probabilidade suficientemente elevada para que a possibilidade de erro possa ser negligenciada’. Se aceitarmos essa paráfrase, uma frase como “O cobre se expande ao ser aquecido” se torna conclusivamente verificável, pois podemos claramente encontrar evidências indutivas protegidas por razões teóricas que tornem de modo conclusivo praticamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal não é “├ todo S é P” (usando o sinal fregeano de asserção), mas: ├ é praticamente certo que todo S é P,
e enunciados dessa forma são conclusivamente verificáveis. Conseqüentemente, o significado da frase universal também pode ser a sua regra de verificação. A objeção da indireticidade Outra objeção comum é a de que a regra de verificação de frases com conteúdo empírico exige tomarmos como ponto de partida observações diretas e intersubjetivamente possíveis dos fatos. Contudo, muitos enunciados não dependem da observação direta para serem verdadeiros, como é o caso de “A massa do elétron é de 9,109 vezes 10 Kgs elevado à trigésima primeira potência negativa”. Isso nos força a admitir que muitas regras de verificação são indiretas. Como notou W.G. Lycan16, se não fizermos isso seremos conduzidos a um instrumentalismo grotesco, no qual aquilo que é real deve ser reduzido ao que é intersubjetivamente observado, não existindo mais coisas como eléctrons e suas massas... Mas se fizermos isso, como decidir quais são as observações diretas e quais as indiretas? Não se trata de uma dessas distinções desesperadamente confusas? Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com exigências inadequadas. Nossas frases assertivas são proferidas em práticas lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se distinguir a observação direta da observação indireta deve ser sempre relativo a uma prática lingüística que estamos tomando como modelo. Podemos ser confundidos pelo fato de que nas (i) práticas 16
Lycan, 1999, p. 121-122.
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observacionais cotidianas a verificação direta costuma ser considerada aquela resultante da observação virtualmente interpessoal de objetos sólidos opacos e de tamanho médio, suficientemente próximos, sob iluminação adequada, por observadores em condições normais e com os sentidos desarmados... Por ser a forma mais usual de observação, ela tende a ser vista como um modelo default para a observação direta, a ser contrastado com, digamos, a observação indireta através de sintomas perceptualmente acessíveis, através de instrumentos óticos, através de espelhos etc. Mas é um erro tentar generalizar esse contraste para outras práticas linguísticas. Para esclarecer esse ponto, quero considerar primeiro (ii) a prática linguística do bacteriologista. Nessa prática o que está em causa é a descrição de bactérias vistas ao microscópio. Nela, ver bactérias ao microscópio é o modelo da observação e verificação direta. Mas o bacteriologista pode dizer que verificou indiretamente a presença de um vírus devido a alterações que ele constatou nas células que ele viu ao microscópio, usando como modelo de observação direta a observação microscópica. Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista são todas indiretas, a não ser que tenha em mente a forma standard de observação, o que não seria usual. Mas até isso é possível, contanto que esteja claro que modelo estamos usando. Se a prática for (iii) a de um trabalho paleontológico, então a descoberta de restos fósseis será uma maneira direta de se verificar a existência desses seres em um passado remoto, posto que a observação ao vivo é descartada. Por comparação e contraste com esse modelo, o paleontólogo pode falar de verificações indiretas. Assim, se ele sugere terem vivido hominídeos em certo local apenas por ter encontrados lesões provocadas por instrumentos em ossadas fósseis de animais, essa constatação poderá ser considerada resultante de uma verificação indireta na prática paleontológica, em contraste com o encontro de restos fossilizados de hominídeos. Claro que tanto na prática linguística da bacteriologia quanto na prática da paleontologia, qualquer das verificações pode ser dita indireta se comparada com as verificações que cotidianamente fazemos de objetos opacos de tamanho médio próximos a nós (modelo da prática (i)). Mas isso só será problemático se houver dúvida sobre o modelo usado. Se a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de uma frase pelo próprio falante será dita direta, ainda que
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subjetiva, enquanto que a determinação da verdade por outros, com base no comportamento, será geralmente tida (por não-behavioristas) indireta. Não há aqui uma maneira fácil de comparar com a prática de observação de objetos físicos de tamanho médio para considerar qual delas é a mais direta, visto que elas pertencem a domínios verificacionais muito distintos. A conclusão me parece ser a de que não há dificuldade real em se distinguir entre verificações diretas e indiretas, se tivermos clareza sobre a prática lingüística com relação a qual essa verificação está sendo considerada. Basta que os falantes compartilhem entre si os pressupostos da prática lingüística em relação a qual o proferimento é avaliado e estarem cientes do modelo de comparação empregado para se tornarem capazes de alcançar acordo sobre se a verificação é direta ou indireta. Contra-exemplos empíricos Outra espécie de objeção diz respeito a enunciados que possuem sentido, mas que não parecem possuir regra de verificação. Em minha opinião, esse tipo de objeção demanda consideração caso a caso. Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, em uma circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de se demonstrar corajoso. Se adicionarmos ao exemplo a assunção de que o único meio de verificar se João era corajoso seja pela observação de seu comportamento, esse enunciado se torna logicamente inverificável. Sendo assim, segundo o princípio da verificação esse enunciado não tem significado. Contudo, ele parece ser perfeitamente significativo! A resposta é que o enunciado “João era corajoso” nas circunstâncias consideradas apenas aparenta ter significado. Ele pertence ao conjunto dos enunciados que apenas aparentam ter significado. No caso, trata-se de uma frase que possui um sentido gramatical, dado pela combinação do nome próprio não vazio com um predicado. Mas não há critério para aplicarmos ou não o predicado. Assim, o enunciado não tem função na linguagem e nada é capaz de dizer. Ele faz parte do conjunto de enunciados tais como “O universo duplicou de tamanho durante essa noite” e “O mundo inteiro surgiu cinco minutos atrás”. Esses enunciados apenas aparentam ter algum sentido representacional, pois possuem sentido gramatical e são capazes de sugerir imagens e produzir ilações em nossas mentes. Mas a rigor eles nada dizem.
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Wittgenstein considerou um caso paralelo em Sobre a Certeza. Considere a constatação “Você está diante de mim agora”, dita em circunstâncias normais por uma pessoa que se encontra diante de outra. Ele sugeriu que tal frase apenas aparenta ter sentido, dado que somos capazes de imaginar situações nas quais ela teria algum uso, alguma função na linguagem, por exemplo, uma situação em que estivesse tão escuro que fosse difícil ao interlocutor identificar o falante.17 Aplicando isso ao caso de João, somos facilmente capazes de imaginar situações contrafactuais na quais ele teria ou não teria demonstrado coragem, ou de pensar nisso como uma possibilidade. Nas circunstâncias supostas, porém o enunciado não possui o menor sentido. O que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também é necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de Java viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado foi plenamente verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de datação. A verificação observacional direta de acontecimentos passados é fisicamente e praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de verificação cuja aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão, nem sequer do que queremos dizer com a frase. Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa pedra pousou uma águia há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou mais de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não há nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como se diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e pelo que sabemos não é sequer fisicamente realizável (não podemos voltar ao passado). Mas é difícil admitir que enunciados empíricos, cuja verificabilidade é apenas lógica, sejam verificáveis no sentido próprio do termo, no sentido de possuir um sentido representacional. Pode ser que a a distinção entre verificabilidade lógica e empírica seja uma distinção entre níveis de verificabilidade que se pressupõem, correspondendo a níveis de significação. Mas se a verificabilidade for apenas lógica e o enunciado empírico, ele não possui realmente sentido. Não sabemos o que fazer com ele. Ele não é capaz de
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Ver Wittgenstein, 1983, sec. 10.
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cumprir com a função própria de um enunciado empírico, que é a de representar um estado de coisas real ou possível. Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a diferença de que a verificação direta é fisicamente possível. O proferimento “Daqui a 7 dias irá chover” é indiretamente verificável pela metereologia, mas será diretamente verificável em uma semana. O enunciado “Daqui a cerca de onze bilhões de anos o sol irá se expandir e engolirá Mercúrio” é uma frase que podemos ao menos indiretamente verificar com base no que sabemos do destino de estrelas como o sol. Já para uma frase como “O primeiro bebê a nascer em Montes Claros em 2040 será do sexo feminino” temos uma regra de verificação que só poderá ser aplicada no futuro e de forma direta, o que nem por isso a invalida enquanto tal. Esses enunciados são não só logicamente, mas também fisicamente e em certa medida praticamente verificáveis; o primeiro indiretamente e o segundo diretamente, mas em um tempo futuro. Vemos que não há uma fórmula geral e única para o procedimento verificacional. Parece que a espécie de regra de verificação exigida varia com o enunciado em sua inserção na prática linguística na qual ele é realizado, sendo geralmente a confusão entre casos diversos, pertencentes a práticas diversas, aquilo que pode levar-nos a crer que existem enunciados que possuem sentido representacional e que apesar disso são inverificáveis. Contra-exemplos formais É possível estender a aplicação da tese verificacionista aos enunciados formais da lógica, da matemática e da geometria. Nesse caso a regra verificacional são os procedimentos (combinações de regras) formais que demonstram a sua verdade, acrescentando-lhe sentido representacional dentro do sistema formal no qual é considerado. A principal diferença com relação à verificação empírica é que no caso da verificação formal, dispor da regra de verificação já é o mesmo que aplicá-la, posto que os critérios a serem satisfeitos são os próprios axiomas já estabelecidos pelo sistema. Um muito falado contra-exemplo a essa sugestão é a conjectura de Goldbach. Essa conjectura pode ser enunciada como g = Todo número inteiro par acima de dois resulta da soma de dois números primos.
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A objeção é a de que essa conjectura é plena de significado representacional, embora nunca se tenha conseguido prová-la, embora o procedimento verificacional formal para g não tenha sido ainda encontrado. Logo, o seu significado não pode ser uma regra de verificação! A resposta a esse argumento é simples demais e advém da observação de que a conjectura de Goldbach é apenas uma conjectura. Ora, o que é uma conjectura? Não é uma afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da plausibilidade de algo. A conjectura de Goldbach tem a forma É plausível que g.
Mas “É plausível que g”, melhor dizendo, [Afirmo que] suponho que g,
ou ainda (usando o sinal fregeano da asserção) “├ é plausível que g”, é algo diferente de Afirmo que g
ou “├ g”. Ora, a regra de verificação do reconhecimento da plausibilidade é muito diferente da regra de verificação da afirmação. Se nosso caso fosse o de “Afirmo que g”, a saber, uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra de verificação seria realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso caso é [Afirmo que] é plausível que g,
no qual a regra de verificação consiste tão somente em um procedimento verificacional que apenas sugere que g possa ser provada. Ora, esse procedimento verificacional, essa regra, de fato existe. Ela consiste simplesmente em considerar exemplos de números pares aleatoriamente dados e verificar se eles podem resultar na soma de dois números primos. E essa regra verificacional não só existe como tem sido aplicada até hoje sem exceção a todos os números inteiros pares considerados, o que fornece grande parte da base que temos para formular a conjectura de Goldbach. Se
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uma exceção tivesse sido encontrada a conjectura teria sido provada falsa, pois “├ ~g” é incompatível com [Afirmo que] é plausível que g.
Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. O que não é verificável nem foi verificado é a afirmação de g, que não faz realmente sentido, posto que ainda não dispomos de um procedimento matemático que a verifique. O erro consiste na confusão de uma suposição com uma afirmação, de uma conjectura com um teorema. Note-se que a conjectura de Goldbach tanto pode ser demonstrada verdadeira como também falsa. Ela será verdadeira se for demonstrada verdadeira. Ela será falsa se for encontrado um contra-exemplo: um número par acima de 2 que não resulte da soma de dois primos. A conjectura será falseada pela não-aplicação da regra que nos manda buscar a soma de dois números primos de modo a resultar no número par em questão. Um caso contrastante é o do último teorema de Fermat. Segundo esse teorema, que chamarei de f = não existem três números positivos x, y e z que satisfazem a equação “xⁿ + yⁿ = zⁿ” se n for superior a 2.
Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995 Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém poderia aqui objetar que mesmo antes de sua demonstração f já era chamado de “o teorema de Fermat” e que portanto fazia sentido como teorema mesmo sem que tivéssemos uma demonstração. Há, porém, um erro nessa objeção. Pois com ela se esquece que ‘o teorema de Fermat’ é uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema equivocamente, apenas devido ao fato de que antes de sua morte Fermat escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia colocá-la no papel, já que a margem de seu caderno era muito estreita para cabê-la. (Hoje sabemos, aliás, que essa observação de Fermat não pode ter sido verdadeira, simplesmente porque a matemática da época não lhe provia de meios para demonstrar a sua conjectura.) Seja como for, a verdade é que f era uma conjectura da forma [Afirmo que] é plausível que f,
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até que Wiles a demonstrou, só depois disso tornando-se realmente um teorema. Quando dizemos “[Afirmo que] é plausível que f”, o significado completo disso (que muito poucos realmente conhecem) deve incluir a demostração encontrada por Wiles, que nada mais é do que a aplicação de uma complexa combinação verificacional de regras. Há muito mais a ser considerado sobre essas questões. Espero, contudo, que essas poucas considerações sejam suficientes para convencê-lo de que o princípio da verificabilidade talvez fique mais próximo de ser reabilitado se for proximado através de uma metodologia que não viole a tecitura sutil da linguagem natural. Referências BONJOUR, L. In Defense of Pure Reason (Cambridge: Cambridge University Press 1998). BRIDGMAN, P.W.: The Logic of Modern Physics (New York: McMillan 1927). COSTA, C.F.: “A verdadeira teoria da verdade”, in Cartografias Conceituais: Uma abordagem à Filosofia Contemporânea (Natal: Edufrn 2008). _______ “O verdadeiro portador da verdade”, in Cartografias Conceituais: Uma abordagem à Filosofia Contemporânea (Natal: Edufrn 2008). _______ “Fatos empíricos”, in A Linguagem Factual (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1995). DUMMETT, M.: Truth and Other Enigmas (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1978). GLOCK, Hans-Johann: Wittgenstein Lexikon (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1996). HACKER, P.M.S.: Insight and Illusion (Oxford: Oxford University Press 1986) HEMPEL, C.G.: “Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11, 1950, 41-63. KENNY, A.: Wittgenstein (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1973). LYCAN, W.G.: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction (London and New York: Routledge 1999) QUINE, W.V.: “Two Dogmas of the Empiricism”, in From a Logical Point of View, originalmente publicado em Philosophical Review 60, 1961, 20-43.
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Hume e as teorias morais vulgares Marco Antonio Oliveira de Azevedo* Resumo: Quais são as teorias vulgares da moralidade criticadas por Hume na famosa passagem is-ought? Quais eram seus defensores? Neste ensaio, trato de algumas diferenças entre Hume e Hutcheson que podem iluminar algumas respostas. Hume, ao contrário de Hutcheson, combateu toda forma de separação da natureza humana em componentes naturais e divinos. O conceito de simpatia cumpre uma função essencial nesse aspecto. Há bons indícios de que o jovem Hume adotou no Tratado uma estratégia abertamente crítica a todas as teorias morais defendidas pelos pensadores, religiosos e moralistas de sua época. Isso inclui o voluntarismo contratualista, as éticas racionalistas, bem como as concepções religiosas influenciadas pelo dogmatismo evangélico escocês. Nisso Hume distanciou-se de Hutcheson, pois sua crítica também incluía as visões influenciadas pelas teorias do direito natural com referência na providência divina. A passagem is-ought sinaliza essa intenção. Todavia, todo esse ímpeto juvenil resultou numa série de maus resultados pessoais, o que o levou, na maturidade a mitigar sua agressividade filosófica e a adotar, em seus escritos, uma atitude mais equilibrada. Palavras-Chave: filosofia moral escocesa; Hume; Hutcheson; ser e dever; teorias vulgares da moralidade Abstract: Which are the vulgar moral systems criticized by Hume in the famous Treatise’s isought passage? Which are their representatives? Is this essay, I will deal with some differences between Hume and Hutcheson that can illuminate an answer. Hume, contrary to Hutcheson, fought all kinds of divisions of human nature in natural and divine components. The concept of sympathy has an essential function in his approach. There are good evidences that the young Hume adopted in Treatise an open strategic criticism to all influential moral theories of his time: the contractual voluntarism, the rationalistic ethicists, and the religious conceptions under the influence of the dogmatic Scottish evangelism. In this way, Hume has got some distance from Hutcheson, yet his criticism included the approaches influenced by the natural law theories with reference in the divine providence. The is-ought passage signalizes this strategy. Nevertheless, his juvenile impetuosity resulted in a lot of personal misfortunes. It will make Hume to mitigate his philosophical aggressiveness in his maturity, adopting in his posterior writings a more balanced stance. Keywords: Hume; Hutcheson; Is-ought; vulgar systems of morality; Scottish Modern Moral Philosophy * Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. E-mail: marcooa@unisinos.br / mazevedo@via-rs.net. [Artigo recebido em 17.02.2011, aprovado em 30.06.2011]
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Introdução Ao finalizar a primeira seção do primeiro capítulo do Livro III do Tratado da Natureza Humana, Hume fez marcar sua ambição: subverter com seu sistema “todas as teorias morais vulgares” (the vulgar systems of morality). A passagem tornou-se famosa; é conhecida como a passagem “ser e dever” (the is-ought passage), e é tomada como forte evidência da condenação de Hume a toda e qualquer tentativa de inferir conclusões morais apenas e tão somente de enunciados sobre fatos. Há muita controvérsia sobre o que Hume, afinal, pretendia afirmar.1 Em especial, discute-se se Hume pretendia de fato negar passagens de um “ser” a um “dever”. Contudo, além disso, discute-se muito também sobre a quem, afinal, Hume se referia com sua expressão algo pejorativa. Afinal, a quem Hume estava se referindo quando afirmou que sua teoria subverteria todas as teorias morais vulgares? Em toda teoria da moralidade com que me deparei até aqui, sempre notei que o autor prossegue por algum tempo raciocinando da forma usual, estabelecendo a existência de um Deus ou fazendo observações com respeito às ocupações dos homens, quando, repentinamente, surpreendo-me por descobrir que, ao invés das usuais cópulas das proposições, ‘é’ e ‘não-é’, não encontro nenhuma proposição que não esteja conectada com um ‘deve’ ou um ‘não-deve’. Tal mudança é imperceptível, mas é da máxima importância. Pois, como esse ‘deve’, ou ‘nãodeve’, expressa alguma nova relação ou afirmação, ele deveria necessariamente ser observado e explicado e, ao mesmo tempo, dada uma razão para o que parece inteiramente inconcebível: como essa nova relação pode ser deduzida de outras que lhe são inteiramente diferentes. Como os autores comumente não usam tal precaução, pretendo recomendá-la aos leitores. Estou persuadido de que essa mínima atenção subverteria todas as teorias morais vulgares, permitindo-nos ver que a distinção entre o vício e a virtude não é fundada meramente nas relações entre os objetos, nem é percebida pela razão (T 3.1.1.28; SBN 469).2 1 Tweyman, Stanley (Ed.), David Hume, critical assessments. v.IV. Londres e Nova York:
Routledge, 1995. 2 As passagens do Tratado serão indicadas por meio da sigla “T”, seguidas do número do
livro, da parte, da seção, dos parágrafos e páginas da conhecida edição Selby-Bigge revisada por Nidditch (Clarendon Press, 1978). Essa é a convenção empregada pela Hume Studies (veja: http://humestudies.org/notes.htm). As traduções das passagens foram feitas tendo como referência a edição Past Masters, em CD-ROM das Complete Works of David Hume. Conforme seu editor, o texto da edição Past Masters foi extraído da edição de 1911 da Everyman’s Library Edition (e comparada, após, com a edição Selby-Bigge/Nidditch). Outras passagens extraídas da edição Past Masters terão como referência as seguintes obras (e respectivas siglas): TLDH – The letters of David Hume (Oxford: Clarendon Press, 1932);
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Alasdair MacIntyre é da opinião que, com essa expressão, Hume se referia particularmente às teorias religiosas popularmente difundidas em seu tempo.3 Nicolas Capaldi foi um dos que rejeitou essa tese. Para ele, Hume referia-se, de um modo amplo, a todas as teorias que em seu tempo sustentavam que as distinções morais existiam de modo independente da natureza humana e de nossos sentimentos.4 Capaldi lembra-nos que Hume parte da comparação entre a visão vulgar e a visão filosófica acerca da existência dos objetos da percepção. O homem vulgar acredita que tem uma percepção imediata de objetos continuamente independentes; mas alguns filósofos modernos (notadamente, Galileu e Locke) já haviam mostrado que nossas percepções dependem da mente, inferindo, de forma algo descuidada, contudo, a existência de objetos externos do mero fato de termos tais percepções (numa espécie de inferência de causa e efeito). Os filósofos morais, no entanto, acabaram estabelecendo conclusões análogas às do homem vulgar com respeito à moral, sustentando a existência de relações morais independentes entre os objetos. Segundo Capaldi, Hume rejeitaria todas essas visões, embora algumas apenas “parcialmente”. Ele aceitou, por exemplo, parte da crítica filosófica de que nossas percepções dependem de nossa mente; também aceitou parte da visão do homem vulgar (tanto é que, para Hume, o senso comum é o que nos imunizaria contra os devaneios da especulação abstrusa). Capaldi conclui que a crítica de Hume dirigia-se, portanto, a todas as teorias e interpretações, filosóficas ou vulgares, acerca da moralidade que assumiam ou afirmavam a existências de relações morais independentes das percepções humanas (no caso da moral, do que Hume entendia como uma percepção de reflexão interna, os sentimentos morais). Assim, se houvesse “relações morais” independentes, então os sistemas MOL - My own life (extraído da edição 1898 de Green and Grose); EMP – An enquiry concerning the principles of morals (extraído da edição de 1898 de Green and Grose, cuja página será indicada). As traduções das passagens do Tratado foram, todavia, cotejadas com as d e Débora Danowski (São Paulo: Editora Unesp, 2000). 3 MacIntyre, A. C. Hume on ‘is’ and ‘ought’. Philosophical review, LXVIII, 1959, p. 451-68;
reimpresso em: Tweyman, 1995, p. 485-99. 4 Creel traça uma comparação entre as interpretações de MacIntyre e outros autores,
incluindo Capaldi, bem como Atkinson (Atkinson, R. F. Hume on ‘is’ and ‘ought’: a reply to Mr. MacIntyre. Philosophical Review, 70, 1961; republicado em: Tweyman, 1995, p. 500-7), que julgou que Hume empregou a expressão ‘teorias vulgares’ apenas em sentido “pejorativo” (Ver: Creel, R. E. The ‘is-ought’ controversy. In: Tweyman, 1995, p. 516-29).
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morais, filosóficos ou vulgares, corresponderiam a teorias acerca de medidas racionais e eternas sobre o que é certo ou errado.5 Da visão do homem vulgar, os filósofos morais teriam chegado a uma teoria moral igualmente “vulgar” de que há tais relações morais objetivas. Em apoio a sua interpretação, Capaldi lembra as seguintes passagens do Tratado. Primeiro, a referência de Hume à filosofia moderna, no parágrafo imediatamente anterior à passagem is-ought (IO), onde, segundo Capaldi, Hume contrasta a visão do homem comum, que acredita na independência objetiva dos objetos de suas crenças, com as teses dos filósofos modernos, que sustentam que há propriedades dos objetos, as qualidades secundárias, que existiriam apenas em nossa mente. Bem compreendido, o que Capaldi afirma sobre a opinião de Hume é que as teorias morais vulgares não deram atenção a essa descoberta dos filósofos naturais, nem extraíram dela certas conclusões adequadas. No que diz respeito à moral, trata-se do papel peculiar dos sentimentos na formação de nossos juízos. Se nossos conceitos morais fossem derivados de relações objetivas (tomadas como primárias, em analogia ao modelo que atribui qualidades primárias aos objetos da percepção externa), isto é, de relações completamente independentes de nossa configuração mental (mais especificamente, de nossos sentimentos), as mesmas ações recriminadas aos humanos também teriam de ser recriminadas mesmo quando realizadas por outros seres vivos. Teríamos de condenar moralmente leões e aves de rapina, o que, afirma Hume, seria um absurdo. Assim, os filósofos modernos, que supõem a existência real das assim chamadas “qualidades primárias” (a versão filosófica do pensamento do homem vulgar), seriam parceiros dos filósofos morais vulgares que supõem a existência de qualidades morais objetivas. Para Hume, entretanto, a distinção entre qualidades primárias e secundárias não pode ser entendida como uma distinção entre aspectos reais e aspectos imaginários (ou entre aspectos presentes nos objetos e aspectos postos neles por nossas faculdades criativas). Tanto a percepção de objetos externos como o senso moral dependem, respectivamente, de nossas sensações e sentimentos, isto é, da estrutura e constituição de nossa mente. Se retirarmos dos objetos concebidos qualidades derivadas de nossas
5 Capaldi, N. Hume’s rejection of ‘ought’. In: Tweyman, 1995, p. 534 e 540-1 (ver
especialmente a nota 4).
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sensações (as qualidades secundárias), nada restará, isto é, nem mesmo os objetos realmente dotados supostamente apenas de qualidades primárias (T 1.4.4.6; SBN 227).6 Penso que a conclusão de Hume, em linhas gerais, é a seguinte: sem qualidades secundárias, não poderia haver, para nós, qualquer “realidade objetiva”; e, paralelamente ao que ocorre com os objetos do entendimento, sem os traços gerados (e “dourados”) por nossos sentimentos internos, não poderia haver, igualmente, virtude e vício (como no caso do entendimento, o ceticismo com respeito à moral seria a consequência desastrosa). Capaldi aponta ainda outra evidência textual interessante em favor de sua interpretação. Trata-se de uma passagem da famosa carta de Hume a Hutcheson, de 16 de março de 1740. Ao final dessa carta, Hume consulta Hutcheson em um “assunto de prudência”: Devo consultá-lo em uma questão de prudência. Concluí um pensamento com as duas seguintes sentenças. Quando se declara qualquer ação ou caráter vicioso, não se quer dizer nada além de que, dada a constituição de sua natureza, tem-se um sentimento de culpa diante dessa contemplação. O vício e a virtude, portanto, podem ser comparados a sons, cores, calor e frio, os quais, segundo a filosofia moderna, não são qualidades nos objetos, mas percepções na mente. E essa descoberta na Moral, assim como aquela na Física, deve ser vista como um poderoso avanço das ciências especulativas, embora, também como aquela, tenha pouca ou nenhuma influência na prática.7 Isso não se acha apresentado de modo um pouco forte? Desejo sua opinião sobre isso, embora não possa prometer que me conformarei inteiramente a ela. Sendo fiel comigo mesmo, não posso evitar concluir que, sendo a moralidade, de acordo com sua opinião assim como com a minha, determinada meramente pelo sentimento, ela concerne somente à natureza e à vida humanas. Isso tem sido frequentemente usado contra o senhor, e as implicações são muito graves. Se o senhor fizer alguma alteração em suas apresentações, asseguro-lhe, há muitos que desejam que considere integralmente esse ponto, caso sua opinião seja de que a verdade se encontra no lado popular. A não ser que a prudência comum, seu caráter e situação o proíbam de tocar no assunto. Se a moralidade fosse determinada pela razão, esta seria igual para todos seres racionais; porém, nada, a não ser a experiência, pode nos assegurar que os sentimentos são os mesmos. Que experiência temos com respeito a seres superiores? Como podemos atribuir a eles 6 A propósito, algo que Kant reverberará posteriormente ao defender que espaço e tempo são
apenas formas puras da intuição. 7 Trata-se da mesma passagem referida anteriormente, mas que aparecerá no Tratado com a
omissão da palavra ‘particular’ e a substituição de mighty por considerable (T 3.1.1.27; SBN 468).
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Marco Antonio Oliveira de Azevedo quaisquer sentimentos? Eles implantaram tais sentimentos em nós para a condução da vida, assim como nossas sensações corporais, que eles próprios não possuem. Não espero nenhuma resposta a essas dificuldades no espaço de uma carta. É suficiente para mim que tenha a paciência de ler uma carta tão longa como esta.8
Para Capaldi, essa carta também permite reforçar a opinião de que, com a expressão “teorias morais vulgares”, Hume tinha em mente indistintamente todos os filósofos morais que em sua época não atentaram para certas consequências das teses sustentadas pela filosofia natural dos modernos. Ora, essa interpretação é certamente plausível. Porém, por que Hume expressaria claramente sua preocupação numa carta a Hutcheson, cuja influência direta ele tanto reconhecia? Note-se que Hume insiste em afirmar que, seguindo a doutrinas de ambos, a moral concerne apenas à natureza e à vida humanas. Por que ele chama a atenção de Hutcheson sobre isso? Penso que uma leitura mais atenta da carta de Hume a Hutcheson permite-nos a seguinte interpretação. Na carta, Hume adverte Hutcheson de que se ambos tivessem sustentado, ao lado dos racionalistas, que a moralidade é determinada pela razão (ao menos “parcialmente”), certamente suas teorias não teriam gerado tanto rumor. Contudo, da tese de ambos, de que a moral é determinada pelos sentimentos, segue-se a grave consequência de que ela não pode, e jamais poderia, dizer respeito a seres de que não temos ou podemos ter experiência empírica alguma. Ora, isso exclui fontes tradicionais, como, por exemplo, a Providência Divina (da qual não podemos ter informação com base em evidências empíricas, senão que por meio da graça divina). Essa era justamente a “consequência” temida e criticada pelos adversários de ambos. O que poderia ser mais “grave”? Que mais poderia subverter completamente, e todos, os sistemas morais vulgares? Contudo, o fato é que Hutcheson sempre manteve certa ambiguidade com respeito à essa consequência de sua teoria, que Hume entretanto percebia com notável clareza. Hutcheson nunca chegou a se afastar completamente “do lado popular”, do lado daqueles que criticavam, não surpreendentemente, tanto Hume como ele próprio de heresias contra certas “verdades teológicas”. 8 TLDH, Vol 1, Letter 16, To Hutcheson [40], p. 39-40.
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De fato, a preocupação de Hume com um assunto de “prudência” revela, implicitamente, sua dúvida sobre a atitude de Hutcheson diante da celeuma. Afinal, que razões (pessoais) impediriam Hutcheson de extrair todas as consequências de sua teoria? Não obstante, o fato é que Hutcheson não chegou a extraí-las. Hutcheson nunca chegou a afirmar explícita e peremptoriamente que a investigação moral não pode se estender à vontade e ao desígnio de seres dos quais não podemos ter qualquer experiência empírica. Para Hume, essa extensão somente seria possível caso fosse aceitável que a moralidade pudesse ser determinada, senão unicamente, ao menos também pela razão. O problema é que, nesse caso, a fonte da moralidade seria a mesma para todos os seres racionais, e isso incluiria Deus. E sendo a vontade de Deus, por definição, uma vontade racional, nada nos impediria de conhecê-la – nosso acesso a ela não seria empírico, e sim racional. Contudo, como a moralidade deriva apenas de nossa natureza, e já que não temos nem poderíamos ter qualquer experiência de tais “seres superiores” – o que certamente inclui a divindade –, como poderíamos atribuir a Deus (ou a quaisquer “seres superiores”) sentimentos que somente reconhecemos com o auxílio da experiência? E caso Deus não fosse dotado de tais sentimentos, teria Ele implantando em nossa natureza traços subjetivos que ele próprio não possuiria? Como poderíamos saber? Ao dizer a Hutcheson que não pretendia uma resposta “numa carta tão breve”, penso que Hume estava obliquamente assinalando uma preocupação vital sobre seu próprio futuro intelectual: se Hutcheson voltasse atrás em suas teses, Hume acabaria política e intelectualmente isolado. De fato, em 1737, um tribunal eclesiástico presbiteriano acusou Hutcheson de ensinar heresias, no caso, de ensinar que o padrão do bem moral era a promoção da felicidade dos outros e que poderíamos obter conhecimento do bem e do mal sem (e antes de) ter qualquer conhecimento de Deus. Essas eram as acusações a que Hume estava se referindo em sua carta. Bem, Hume era um jovem filósofo de 28 anos de idade (um filósofo, digamos, em “início de carreira”). Mas sua carta a Hutcheson mostra, de certa forma, que o jovem e impetuoso filósofo, que adiante reconhecerá certa precipitação quando da publicação dos dois primeiros volumes do Tratado, não era de fato ingênuo. Capaldi tem razão ao afirmar que Hume pretendia subverter todas as teorias morais vigentes em sua época. Mas sua atenção certamente se
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dirigia às versões teológicas. Isso explica porque “parte” das teorias modernas era tida como aceitável. Portanto, MacIntyre tinha razão quando afirmou inicialmente que a subversão dos sistemas morais vulgares dirigiase, em verdade, às doutrinas teológicas; mais precisamente, Hume referia-se a todos os sistemas e teorias morais amparadas em conceitos teológicos, o que afetava evidentemente todas as teorias da moral e do direito natural da época, já que todas elas tinham na providência divina seu principal pressuposto. Para tanto, recorro a seguinte evidência circunstancial, ou pelo menos a seguinte “curiosidade”: por que razão tanto a passagem IO do Tratado, como a abordagem de Hume do conceito de simpatia, deixaram de receber uma nova apresentação na “versão madura” do livro III, isto é, na segunda Investigação? As seguintes hipóteses parecem inicialmente plausíveis: ou a consideração de Hume na passagem IO e o conceito de simpatia deixaram de ter um papel central em sua teoria; ou Hume optou apenas por uma mera mudança de estilo. Mas há uma terceira hipótese: a de que uma medida de prudência o fez mudar de estratégia. Apesar de sua plausibilidade, a primeira explicação não se sustenta, pois Hume nunca abandonou o conceito de simpatia, mesmo em sua fase madura. A segunda explicação também não se sustenta, pois sua mudança de estilo não foi uma mera escolha “estética” – havia coisas mais importantes a serem preservadas, pois seu futuro pessoal como autor era o que estava em jogo. Hume e os moralistas escoceses Como assinalei, a primeira hipótese não parece verdadeira (mas não terei aqui como argumentar em favor disso – embora não seja difícil mostrar como o conceito de simpatia persiste na obra de Hume, explícita e implicitamente). As duas outras, porém, merecem ser exploradas. Afinal, Hume sempre mostrou preocupações com questões de estilo. Em sua abordagem crítica à prática especulativa, Hume disse que a filosofia lhe proporcionava uma forma peculiar de prazer, e que essa era a “origem de sua filosofia” (Cf. T 1.4.7.15; SBN 270). Essa referência hedonista deve ser interpretada em conjunto com o autorreconhecimento de que seu amor pela fama literária era sua paixão dominante.9 Hume, não obstante, também declarou que experimentou uma sensação desagradável pela má recepção da
9 MOL, Para. 21/21, p. 7.
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crítica e do público ao Tratado. Por outro lado, manifestou expressamente a opinião de que a segunda Investigação foi incomparavelmente a melhor de suas obras.10 Os motivos de seu descontentamento com sua primeira grande obra possivelmente guardam relação com a crítica de Hutcheson ao Tratado. Hutcheson disse que o livro III do Tratado falhou em não ter sido suficientemente enfático ou caloroso na defesa da virtude humana. Isso impressionou Hume sobremaneira: “O que mais me afetou em suas considerações foi sua observação de que ali há falta de um certo calor na causa da virtude”.11 Foi no contexto da defesa de seu ponto-de-vista que Hume lembrou sua famosa comparação entre o anatomista e o pintor. O Tratado foi, para Hume, um livro, talvez, exageradamente “anatômico”. E essa foi uma de suas diferenças em relação a segunda Investigação, que foi um livro mais “caloroso” para com a virtude.12 No Tratado, o conceito de simpatia foi apresentado como parte de um assunto, ou como um estudo de filosofia abstrusa, isto é, como um trabalho de dissecção “anatômica” da mente humana. O princípio natural da simpatia é descrito no Tratado, de forma esquemática, como uma espécie de “mecanismo natural”, capaz de explicar o modo como os princípios mentais de associação transferem vivacidade às idéias ou evidências morais que derivamos da contemplação de nosso caráter ou do caráter dos demais. Na segunda Investigação a simpatia volta a ter lugar, porém, agora sob uma abordagem mais sutil. A abordagem anatômica acha-se implícita na descrição de Hume da comunicabilidade das emoções humanas, agora apresentadas como uma forma de “contágio ou simpatia natural”. Segundo Box, a preferência de Hume pela Investigação sobre os princípios da moral é compreensível. Nela Hume realizou a união bem sucedida entre dois tipos
10 MOL, Para. 10/21, p. 4. 11 [What affected me most in your Remarks is your observing, that there wants a certain
Warmth in the Cause of Virtue.] TLDH, Vol 1, Letter 13, To: Hutcheson [39], p. 32. Fiz acima uma tradução “literal” intencionalmente. ‘Warmth’, no entanto, poderia ser traduzida por ‘entusiasmo’, mas isso causaria confusão já que ‘entusiasmo’ é uma palavra com significado peculiar para a época. Talvez ‘paixão’ seja uma tradução menos literal e mais adequada. 12 Box, M. A. The suasive art of David Hume. Princeton (New Jersey): Princeton University
Press, 1990, p. 239.
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de filosofia (a anatômica filosofia abstrusa ao estilo do Tratado misturada à filosofia ardente e entusiasmada de Hutcheson). Hume buscou, com sua segunda Investigação, uma espécie de casamento harmonioso entre a filosofia especulativa e a retórica. Simplificou os assuntos abstrusos, tornando-os mais acessíveis, fazendo com que seu texto se tornasse agradável tanto ao leitor comum como ao sábio.13 Creio, porém, que há outro aspecto mais relevante que a preferência declarada de Hume pelo “estilo” da segunda Investigação. Após a publicação do Tratado, Hume parece ter efetivamente abrandado sua postura. A passagem IO é reveladora do estilo agressivo do Tratado, algo que deve ter contribuído para seu relativo fracasso editorial (e político). Nessa passagem, Hume ironiza seus adversários e se apresenta, algo vaidosamente, como capaz de subverter suas teorias completamente (Atkinson, aliás, tem alguma razão ao afirmar que Hume foi “pejorativo” ao referir-se aos “sistemas vulgares da moralidade”14). Como não era ingênuo, Hume sabia perfeitamente quais consequências poderiam advir. Não foi certamente à toa que buscou “aconselhamento” de Hutcheson. Seu objetivo era buscar um forte aliado acadêmico.15 Porém, a aliança intelectual de Hume com Hutcheson mostrava resistências pelo menos num ponto. O conceito de simpatia, tal como Hume o introduziu no Tratado, representava uma mudança radical nos pressupostos metafísicos da teologia moral tradicional. Sigo aqui a sugestão de Jennifer Herdt.16 Segundo Herdt, o conceito de simpatia é o elemento chave na estratégia de Hume em tornar supérfluas as suposições teológicas ainda presentes no naturalismo de Hutcheson. Embora saibamos que a abordagem de ambos sobre a moral seja semelhante, Hume sempre se empenhou em conferir um caráter original à sua teoria. Esse foi, afinal, o espírito newtoniano do Tratado. As dessemelhanças entre Hume e Hutcheson não poderiam, portanto, deixar de ser meros detalhes. Elas estão no cerne de alguns conceitos-chave da inovação teórica pretendida por 13 EPM, Sec. 7, Para. 2/29, p. 231. Ver, a propósito: Box, 1990, p. 246 e p. 253. 14 Atkinson, 1995, p. 236. 15 Hume tinha muitos aliados “não intelectuais” (algo que a carta a Hutcheson sugere); seu
problema era seu isolamento acadêmico. 16 Herdt, Jennifer A. Religion and faction in Hume’s moral philosophy. Cambridge University
Press, 1997, p. 60.
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Hume. Hutcheson, por exemplo, concluiu que a causa do sentimento de satisfação que consiste na aprovação moral é, sempre, um sentimento de benevolência desinteressado. Hume, por sua vez, modificou essa visão, pois sua abordagem move-se para além de uma análise da “pureza das motivações particulares”.17 Virtudes são traços ordenados do caráter que provocam efeitos previsíveis sobre os outros. Hume, entretanto, não tomava a benevolência universal como uma motivação natural plausível. Essa sua diferença com Hutcheson se expressa, por exemplo, na seguinte passagem: Em geral, pode-se afirmar que não há tal paixão na mente dos homens como o amor à humanidade, meramente como tal, independentemente de qualidades pessoais, de utilidades, ou da relação com cada um. É verdade que não há nenhum humano, e realmente nenhuma criatura sensível, cuja felicidade ou miséria não nos afete, em alguma medida, quando postas próximas a nós e representadas em cores vivas. Porém, isso procede meramente por simpatia, e não prova que haja tal afeição universal pela humanidade, uma vez que essa preocupação se estende para além de nossa própria espécie (T 3.2.1.19; SBN 481).
Não há, enfim, senso moral fora da “natureza e vida humanas”; porém, também não faz sentido falar em “amor natural” a todas as criaturas humanas. Muito menos amor à espécie, a qual seria, para Hume, uma entidade abstrata – restando claro que não faz sentido para Hume que alguém possa literalmente amar entidades abstratas, entidades que não são obviamente portadoras de estados mentais (salvo por mera fantasia ou superstição). Com efeito, a exigência de tratarmos a toda e qualquer pessoa com civilidade e, nesse sentido, com afeição, somente pode ser explicada como uma virtude ou dever artificialmente inculcado.18 O argumento de Hutcheson a favor da benevolência universal era parte, mesmo que 17 Herdt, 1997, p. 61. 18 Há muito debate sobre o que Hume entendia por ‘virtude artificial’. Cabe aqui apenas o
seguinte comentário. Como não há, para Hume, nenhuma propensão natural à benevolência pública, e como não faz sentido tomar a benevolência privada como motivo original para a realização de atos de justiça, segue-se que a justiça só pode derivar-se de algum artifício, isto é, de uma conveniência, e não de algum motivo natural, isto é, de alguma paixão naturalmente implantada em nossa mente (T 3.2.1.12-19; SBN 482). Com efeito, a admiração que temos pela justiça não precede, e sim sucede sua existência (como tal, contingente). De todo modo, esse amor (artificialmente derivado) pela justiça não faz dessa virtude, ou do senso de sua moralidade, uma realidade ou graça transcendente. Sua existência se explica naturalmente, por recurso ao conceito de virtude como artifício.
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mitigada, de uma teoria moral que ainda podia ser interpretada como um argumento em apoio à Providência divina (isto é, a visão de que Deus nos concedeu certas faculdades num ato de graça). E mesmo que tenha sido acusado de favorecer o ateísmo, a teoria do senso moral de Hutcheson ainda podia ser interpretada como uma das variantes modernas, uma variante sentimentalista, das teorias do direito natural. Essa vinculação de Hutcheson às doutrinas do direito natural não é muito enfatizada pelos estudiosos de Hume. Segundo Herdt, possivelmente porque os livros mais lidos de Hutcheson não tratem propriamente desse assunto (no caso, An essay on the nature and conduct of the passions and affections e o famoso An enquiry into de original of our ideas of beauty and virtue). Porém, no notável A system of moral philosophy19, Hutcheson mostra-se, lembra Herdt, um aluno atento de Gershom Carmichael, um reconhecido continuador da teoria do direito natural moderno. Foi Carmichael que traduziu as obras de Pufendorf e que introduziu o direito natural moderno na Escócia. Carmichael não seguiu completamente Pufendorf. Uma de suas críticas fundamentais dirigia-se contra a tendência de secularização do direito natural. Carmichael, seguindo Pufendorf, não considerava que a revelação era uma parte da jurisprudência natural; porém, sustentava que a religião natural era absolutamente essencial, tendo buscado, lembra Herdt, “deduzir a lei natural da existência e natureza da divindade tal como conhecida pela religião natural”. A religião natural, aliás, não era uma disciplina disponível aos primeiros filósofos do direito natural moderno.20 Hutcheson seguiu escrupulosamente esses ensinamentos. Segundo Herdt, Hutcheson sustentou em A system of moral philosophy que é somente mediante o conhecimento da Providência divina que estamos finalmente aptos a compreender as sugestões do senso moral e reconciliar nossa felicidade privada com o bem estar geral.21 19 Hutcheson, Francis, Philosophiae moralis institutio compendiaria with a Short Introduction
to Moral Philosophy. Luigi Turco (ed.). Indianapolis: Liberty Fund, 2007. 20 Herdt, 1997, p. 28. 21 MacIntyre expõe longamente as relações de Hutcheson com seus educadores evangélicos:
estudou filosofia com Gerschom Carmichael e teologia com John Simson, cuja influência, segundo MacIntyre, também é evidente. MacIntyre explica-nos que a filosofia de Hutcheson não inclui apenas uma teologia racional: é uma teologia racional do mesmo tipo que a filosofia que Simson ensinava. “Ao referir-se a Deus como o governante do universo,
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Nisso tudo há uma forte diferença com Hume. No Tratado, Hume procurou introduzir a simpatia a fim de: [C]obrir este hiato entre o privado e o público, fornecendo uma abordagem de por que aprovamos coisas que não redundam em nosso benefício pessoal ou servem a nossos interesses privados, mantendo ainda uma conexão inteligível entre o progresso humano e a moralidade. A simpatia, tal como Hume a emprega no Tratado é, assim, destinada a resolver tanto o problema da nossa capacidade de ter interesses (interestedness) e [o problema] da inteligibilidade [dos conceitos morais], sem invocar, em nenhum momento, como Hutcheson e os filósofos do direito natural moderno inevitavelmente fizeram, uma divindade providencial.22
Esse “hiato”, que aparentemente separa o interesse público do privado, e que separaria o interesse mundano do homem comum (egoísta, segundo os voluntaristas e epicuristas da época) da pureza divina, é apenas um hiato “aparente”, uma decorrência do preconceito de todas essas visões ou “teorias morais vulgares” contra as consequências do naturalismo. Mas, para Hume, não pode haver incompatibilidade entre os interesses pessoais louváveis e o interesse comum. De fato, nem todos os interesses humanos são louváveis; contudo, a benevolência não poderia ser, segundo Hume, dissociada da natureza e da vida pessoal de cada um; nossa identidade pessoal não é dissociada de nossa identidade comum, assinalara Hutcheson.23 Hume opôs-se a esse tipo de dissociação vulgar, como também rejeitou a oposição vulgar correlata entre paixão e razão. Combateu Hutcheson escreve que ‘a única utilidade das palavras, ou da escrita, é revelar a vontade do governante. Na lei positiva, a vontade divina deve ser revelada dessa forma. Mas há outro modo primário através do qual Deus revela sua vontade, no que diz respeito à nossa conduta, e, da mesma forma, propõe os motivos mais interessantes: através da constituição da natureza, dos poderes da razão e da percepção moral, que deu à humanidade, revelando assim uma lei com suas funções, efetivamente e através de palavras ou de seus escritos; e, ainda, de um modo mais nobre e divino’ (A system of moral philosophy. Londres, 1755, v.I, p. 268-69). Observemos que o contraste não está entre a razão e a revelação, mas entre os modos da revelação divina” (MacIntyre, A., Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991, p. 282). 22 Herdt, 1997, p. 28-9. 23 “This therefore is the sum of all social virtues, that with an extensive affection toward all,
we exert our powers vigorously for the common interest, and at the same time cherish all the tender affections in the several narrower relations, which contribute toward <the utility and> the prosperity of individuals, as far as the common interest will allow it” (Hutcheson, 2007, from: Chapter V: Our duties toward mankind.)
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com isso toda forma de dualismo metafísico que propunha separar a natureza humana em componentes naturais e divinos, impuros e puros. E essa é sua maior subversão aos sistemas teóricos e morais de sua época. E, com razão, ela atinge de certo modo inclusive a Hutcheson.24 Na época da publicação do Tratado, Hume acreditava estar protegido do risco de sofrer alguma séria represália de seus inimigos, principalmente de certos líderes evangélicos dogmáticos, por causa do conteúdo “herético” de sua obra. No contexto da publicação do Tratado, o conflito entre os moderados, muitos deles amigos de Hume, e os evangélicos puritanos, já havia levado os primeiros aos tribunais eclesiásticos por acusação de heresia. Um deles foi justamente contra Hutcheson. Hume temia essas acusações, porém, nunca foi formalmente acusado, e isso parece dever-se a suas boas relações com vários moderados proeminentes, a quem contava como amigos (referindo-se ao incidente que levou Hutcheson a um tribunal herético, em sua carta, Hume disse-lhe que “havia muitos” que desejavam que considerasse “esse ponto”, numa óbvia alusão a seus amigos moderados). Entretanto, embora somente Hutcheson tenha sido acusado, foi Hume que não conseguiu alcançar um de seus maiores objetivos na vida, uma cátedra de filosofia. Inclusive, em uma de suas primeiras tentativas (trata-se da tentativa de suceder John Pringle na cátedra de Ética e Filosofia Pneumática da Universidade de Edimburgo, em 1744), Hume sofreu oposição inclusive do próprio Hutcheson, que, enfim, acabou sendo indicado para a posição, apesar de ter dela declinado.25
24 Mossner afirmou algo diferente, ao sugerir que o princípio de simpatia era um dos elos
entre Hume e Hutcheson. Isso se deve a uma menção elogiosa de Hutcheson a Hume em uma carta em que relata, com respeito ao Tratado, que “este princípio de simpatia é de uma natureza tão insinuante e poderosa que adentra em todos os nossos sentimentos e paixões, que frequentemente toma lugar sob a aparência de seu contrário” (em: Scott, W. R. Francis Hutcheson: his life, teaching and positions in the history of philosophy. citado por: Mossner, E. C. The life of David Hume. Austin: University of Texas Press, 1954, p. 135). Herdt, todavia, salienta que, em seus escritos, Hutcheson não fez emprego desse termo, e que, no contexto de uma discussão sobre o amor de pais a filhos, ele efetivamente nega que a simpatia ali tenha algum efeito. Para Hutcheson, é o amor parental o que, de modo antecedente, permite a satisfação dos pais com o sucesso de suas crianças. Hume, todavia, sustentou que esse fenômeno devia-se à simpatia (Herdt, 1997, p. 51). 25 Mossner comenta esses incidentes e a insatisfação de Hume, inclusive com respeito à
atitude de Hutcheson (Mossner, 1954, p. 153-62).
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Subversão anglicizante? As evidências e explicações coerentes acima apresentadas levam-me a concluir que Hume, ao referir-se na passagem IO às teorias morais vulgares, tinha o objetivo de reforçar a confiança de que sua teoria era capaz de superar (em poder explanatório) as visões altamente influenciadas pelo pensamento religioso e popular de sua época, incluindo calvinistas, luteranos e, sobretudo, evangélicos presbiterianos, a quem ele devia boa parte de sua formação cultural. Não se tratava, obviamente, de uma tentativa de mostrar como essas visões populares poderiam ser corretamente fundamentadas. E nisso Hume se distanciava bastante de Hutcheson, pois buscava um fundamento naturalista da moral que não dependesse absolutamente de qualquer referência à Providência divina ou a poderes sobrenaturais; uma fundamentação oposta às explicações e fundamentações “populares”. O conceito de simpatia cumpria um papel marcante nesse aspecto, tal como assinalou Herdt. Neste sentido sua teoria foi certamente inovadora. Sua subversão às teorias morais vulgares mantinha, de todo modo, coerência com sua crítica não somente às teorias filosóficas racionalistas, mas também às teorias filosóficas do direito natural fundadas, velada ou explicitamente, em teorias da providência divina, a que as visões populares se achavam cultural e tradicionalmente vinculadas. MacIntyre aventou essa hipótese em seu artigo26 sobre a passagem IO e também em After virtue.27 Não obstante, em Whose justice? Which rationality?, acrescentou que sua crítica à interpretação tradicional da passagem IO, de que nela Hume estava atacando especificamente os filósofos racionalistas (como o fez nos parágrafos anteriores da mesma seção), contrasta com uma interpretação oposta igualmente aceitável. Segundo MacIntyre, em IO Hume tinha em mente o livro pietista The whole duty of man, que apresentava um catálogo de vícios, aos quais Hume, como a maioria dos jovens de sua época, havia sido introduzido. Hume afirmou que sempre teve em mente, ao escrever o livro III do Tratado, o catálogo de virtudes de Cícero e não o do The whole duty of man. 28 26 MacIntyre, 1995, p. 485-99. 27 MacIntyre, A. C. After virtue, London: Duckworth, 1981. 28 A evidência disso estaria na carta de Hume a Hutcheson, de 17 de setembro de 1739, em
que Hume agradece os comentários feitos sobre o livro III do Tratado e onde se refere à crítica de Hutcheson de que o livro é pouco caloroso na defesa da virtude. Nessa carta
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Para MacIntyre, Hume tinha em mente as doutrinas cristãs de sua época, às quais desenvolvera manifesta aversão. MacIntyre, porém, acrescenta que a interpretação de D. D. Raphael29 também é aceitável, a saber, de que a intenção principal de Hume era a de expressar sua concordância com o ataque de Hutcheson a Samuel Clarke. Hutcheson, na seção II de Illustration on the moral sense, impressa juntamente com seu Essay, em 1728, refere-se ao ‘deve’ como “outra palavra infeliz em moral”. Mas essa é apenas uma evidência circunstancial. Ela aponta para a tese de que Hume, acompanhando Hutcheson, com sua crítica referia-se sobretudo às teorias racionalistas.30 Podemos aceitar essa interpretação: em seu diálogo com Hutcheson, a crítica aos racionalistas é um de seus pontos fortes de acordo. Mas, nesse caso, talvez seja melhor concluir que a intenção (embora não explicitada) de Hume (e, nesse aspecto, dirigida implicitamente a Hutcheson) tenha sido a de reunir, numa expressão geral de sentido pejorativo, todas as seguintes teorias: as racionalistas e as de inspiração teológica (muitas delas certamente imbricadas), além das teorias voluntaristas (como as de Hobbes e Pufendorf). Isso explicaria porque Hume critica o sentido em que Hutcheson empregou o termo ‘natural’, por levar a interpretações ambíguas e permitir concluir que existe algo como uma “causa final”. Hume pergunta a Hutcheson: “... qual é o fim do homem? É ele criado para a felicidade ou para a virtude? Para esta vida ou para a próxima? Para si ou para seu mestre? Sua definição [a de Hutcheson] de natural depende da solução dessas questões, que são sem fim e estão algo fora de meus objetivos”. Hume complementa lembrando o famoso livreto de sua infância: “Desejo, sobretudo, tomar meu catálogo das virtudes de Dos Ofícios de Cícero, e não do The whole dyty of man. Eu realmente tive este último livro em vista em todos os meus raciocínios” (TLDH, v.1, Letter 13, To Hutcheson [39], p 33). Se Hume teve em vista o livro de Cícero, é porque também teve, como contraste, o catálogo evangélico como seu oposto. Na EPM Hume fará novamente e referência ao The whole duty of man e mencionará sua preferência pela descrição das virtudes feita por Cícero (EPM, Nota 72, Para. 3/3, p. 285). 29 Raphael, D. D. “Hume’s critique of ethical rationalism”. In: Todd, W. B. Hume and the
enlightenment, Edimburgo, 1974; referido por MacIntyre, 1991, p. 334. 30 Na segunda Investigação Hume explicitamente ataca Montesquieu, autor do O espírito das
leis, e também o padre Malebranche, Cudworth e Clarke (e, segue Hume, “entre outros”), que partem de teorias que, referindo-se a Montesquieu, supõem que o direito funda-se inteiramente em “rapports ou relações”, um sistema que, segundo Hume, “jamais poderá ser reconciliado com a verdadeira filosofia”, ou que, referindo-se a Malebranche, Cudworth e Clarke, propõem “uma teoria abstrata da moral”, excluindo o sentimento e pretendendo fundá-la exclusivamente na razão (EPM, Nota 12, Para. ½, p. 190).
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Hume menciona explicitamente todas as teorias “morais vulgares”, e não apenas as teorias. Isso também explicaria a menção que ele faz, no início da passagem, a dois tipos de inferência de um ‘deve’ a um ‘é’: as que partem do estabelecimento do ser de um Deus, e as que partem de observações relativas às ocupações humanas. Teorias tradicionais da providência divina é que apelam à idéia da existência do criador, e de seu direito “natural” sobre todas as criaturas; mas não foram os racionalistas, e sim os voluntaristas que se dedicaram a falar de fatos relativos às ocupações humanas e deles buscaram derivar conclusões morais. Portanto, o que Hume pretendia mostrar é que nenhuma das teorias morais em voga, vulgares ou sofisticadas (assim elencadas na passagem IO sob um mesmo título genérico) era capaz de provar como suas inferências são possíveis, nem mesmo como seus conceitos sobre a natureza e a vida humanas podem ser inteligíveis. Também nenhum catálogo de vícios e virtudes apresentado dogmaticamente poderia substituir essa falta de explicação, pois isso levaria a uma busca de explicações metafísicas sobre a finalidade da existência humana que somente encontram fundamento no contexto da idéia em uma providência divina. Algo que Hume criticou no Tratado, e que, estrategicamente, evitou considerar na segunda Investigação). Hume nunca abandonou suas convicções “antissupersticiosas”, embora tenha, na maturidade, tentado buscar uma posição mais sutil e “imparcial” sobre o assunto, tal como fez ao abordar o tema da religião nos Diálogos sobre a religião natural. Assim, na maturidade, Hume mudou de postura. Ao abandonar a “pregação” antimetafísica e ao assumir uma posição mais neutra, Hume também optou por manter certa equidistância com respeito às polêmicas de ordem política, como as divergências entre Tories e Whigs, tal como fez em seu famoso e prestigiado livro sobre a história da Inglaterra. Seu novo espírito moderado passará a assumir contornos bastante ampliados (o que levou muitos intérpretes, MacIntyre entre eles, a sustentar que Hume estava mais próximo dos Tories que dos Whigs, mais próximo, portanto, dos conservadores anglicanos e defensores da realeza que dos reformadores ou influenciados por ideais republicanos). Mas, para MacIntyre, esse comportamento “moderado” é, na verdade, indício de uma mudança na própria identidade cultural do filósofo escocês. É o que dá a entender ao identificar em Hume uma “subversão anglicizante”. Para o escocês MacIntyre, Hume nunca havia, de fato, se
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identificado com a tradição escocesa. Assim, a natureza humana pintada por Hume seria nada mais que a “a natureza humana inglesa do século XVIII” (MacIntyre, Op Cit, 1991, p. 318). Hume, segundo MacIntyre, “tinha que argumentar contra concepções da ordem social e de suas potencialidades derivadas da teologia e do direito escoceses do século XVII”. Assim: O Tratado era um documento político, e não apenas naquelas partes em que questões de governo e de adesão política são discutidas explicitamente. Se tivesse sido lido amplamente na época de sua publicação e aceito dentro da Escócia – como de fato não foi – teria subvertido, entre as classes cultas do país, algumas das lealdades fundamentais essenciais para a manutenção de um identidade escocesa específica.31
Em síntese, o grande adversário de Hume seria o pietismo especificamente escocês. Embora isso tenha seja possível, o fato é que parte dessa atitude anglicana e “subversiva” de Hume amenizou-se posteriormente. Seu anglicismo maduro contrasta claramente com sua atitude “juvenil”. Em sua fase madura, Hume optou por uma atitude claramente cosmopolita, nesse sentido, moderna (e não apenas “anglicana”). Antes de pretender rebelar-se contra o paroquialismo pietista escocês, parece mais provável que seu intento posterior tenha sido o de tornar-se reconhecido (e admirado) como um homem de paixões moderadas, descentrado, não obstante, dos preconceitos vulgares que impediriam alguns intelectuais de avaliarem com imparcialidade suas próprias tradições e seus vínculos a certas concepções populares ou vulgares. Talvez isso explique porque em sua obra madura Hume tenha deixado de fazer novas referências pejorativas aos sistemas ou teorias tradicionais ou vulgares da moralidade. O jovem de emoções infladas tornou-se, enfim, um homem moderado e equilibrado, a perfectly wise and virtuous man32, digno, como tal, da admiração de seus amigos e até mesmo de vários de seus críticos.
31 MacIntyre, 1991, p. 321. 32 Expressão empregada por Adam Smith em uma carta enviada a William Strahan e escrita
logo após a morte de Hume (republicada em Hume’s life, de 1777) – TLDH, Vol 2, Appendice L, §3, Smith to Strahan [76], p. 450 – também comentada por Mossner (1954, p. 604-5).
Analogia humeana entre a ação moral e o movimento mecânico: uma interpretação para a relação entre as paixões e a razão
Andreh Sabino Ribeiro *
Resumo: O objetivo deste artigo consiste em apresentar a analogia que David Hume (1711 – 1776) estabelece entre a ação moral e o movimento mecânico como indicativo claro de sua compreensão acerca da relação entre a razão (direção) e as paixões (força) na conduta humana. Estendendo-se desde a epistemologia moral de Hume até sua moral social, a noção que carrega a referida analogia serviria para endossar a tese de que o filósofo escocês almejava ser uma espécie de “Newton das ciências morais”. Isto significava pensar a filosofia moral dentro dos limites da natureza e permitir-lhe uma autonomia investigativa, especialmente em relação à instância religiosa. O próprio projeto filosófico de Hume seria performático da imagem do movimento, enquanto formado por uma composição indissociável entre o impulso do conteúdo de tendência sentimentalista, na esteira de Shaftesbury e Hutcheson, e o direcionamento metodológico do rigor empirista de origem baconiana-newtoniana. Palavras-chave: Filosofia moral e filosofia natural; Hume; Paixões; Razão Abstract: The aim of this paper is to show the analogy that David Hume (1711 - 1776) makes between moral action and the mechanical movement as a clear indication of his understanding of the relationship between reason (direction) and passions (force) in human conduct. Stretching from Hume's moral epistemology to his social theory, the notion that carries this analogy would serve to endorse the view that the Scottish philosopher was trying to become a sort of "Newton of the moral sciences." This meant thinking about moral philosophy within the limits of nature and allowing an independent research, especially in relation to the religious tradition. Hume´s philosophy could be also a performative image of the movement, while an inseparable composition made of the impulse of the contents of sentimental trend, according to Shaftesbury and Hutcheson, and the direction of the empirical methods come from Francis Bacon and Isaac Newton. Keywords: Hume; Moral philosophy and natural philosophy; Passions; Reason.
Introdução Comumente se apresenta David Hume como um filósofo que privilegia as paixões em detrimento da razão no concurso do conhecimento e do *
Professor do Departamento de Filosofia da UERN e Mestre em Filosofia pela UFC. E-mail: andrehnj@yahoo.com.br Artigo recebido em 20.04.2011, aprovado em 30.06.2011.
Natal, v.18, n.29, jul./dez. 2011, p. 339-365
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comportamento humanos, tendo como slogans passagens como: “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões” (Hume, 2009: 451) e “a razão é inteiramente inerte, jamais podendo impedir ou produzir qualquer ação ou afeto” (Hume, 2009: 498). Contudo, a intenção do autor não é de inverter a relação tradicionalmente aceita de primazia da faculdade racional sobre a passional, como se ele trouxesse uma oportunidade de revanche às paixões contra a razão. A própria relação de disputa é suprimida por ele, uma vez que cada faculdade desempenha uma tarefa de ordem diferente. Rejeita-se ainda que as paixões sejam auto-suficientes, como se a atividade racional fosse reduzida às paixões ou que a importância da sua função fosse prescindível. Assim, Hume, ao chamar atenção para a importância do papel das paixões na moralidade, não isola, não confunde e nem sobrevaloriza a faculdade passional diante da racional. Um dos meios de expressão disto reside na analogia que o filósofo formula entre movimento mecânico e ação moral. Diz: A natureza humana se compõe de duas partes principais, requeridas para todas as suas ações, ou seja, os afetos e o entendimento; e certamente os movimentos cegos daqueles, sem a direção deste, incapacitam o homem para a sociedade. Mas podemos considerar separadamente os efeitos resultantes das operações de cada uma dessas duas partes que compõem a mente. Pode-se conceder aos filósofos morais a mesma liberdade concedida aos filósofos naturais; estes últimos muito frequentemente consideram um movimento qualquer como composto e consistindo em duas partes separadas, embora ao mesmo tempo reconheçam que, em si mesmo, esse movimento é simples e indivisível (Hume, 2009: 533-534).
É aqui onde fica mais explícito como o autor vê esta relação entre razão e paixões. Destarte, em várias outras passagens esta mesma noção é sustentada, desde a epistemologia moral até a moral social, ainda que não faça alusão a este trecho ou mesmo se utilize de todos os termos analógicos em questão. Importa que se perceba, o que pretendemos defender, como Hume preserva o entendimento de que a ação moral é um composto de dois elementos inseparáveis e complementares (jamais em disputa!): a razão (que fornece a direção) e as paixões (que consistem na força). Tal modo de encarar o assunto deve-se muito ao fato da elevada admiração de Hume pela filosofia natural – como à época chamava-se a física – que alcançava grandes êxitos e tinha em Isaac Newton seu maior
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nome. Por isso, na primeira seção do artigo destacaremos pontos convergentes e divergentes entre estas duas áreas do conhecimento humano em sua acepção setecentista a partir do trabalho de Hume. Em seguida veremos como especificamente a imagem do movimento mecânico insere-se no âmbito das investigações morais humeanas enquanto epistemologia. Posteriormente, prosseguiremos na teoria social de Hume tomando como chave de leitura a analogia entre movimento mecânico e ação moral. 1 Filosofia natural e filosofia moral Ao longo da introdução do Tratado da Natureza Humana (1739-1740) 1 , o experimentalismo recebe de Hume uma saudação gloriosa. Francis Bacon aparece como o referencial inconteste a todos que seguem por esta trilha, uma espécie de “novo Tales”. Comenta Hume: Não é de espantar que a aplicação da filosofia experimental às questões morais tenha tido que esperar todo um século desde sua aplicação à ciência da natureza. Na verdade, sabemos que o mesmo intervalo separou a origem dessas ciências: o tempo transcorrido entre TALES e SÓCRATES é quase igual ao que transcorreu entre LORD BACON e alguns filósofos recentes da Inglaterra, que deram início à construção de uma nova base para a ciência do homem (Hume, 2009: 22).
Para Hume, seus predecessores 2 haviam contribuído com esforços salutares, ainda que deficientes, de empreender o que ele mesmo pretendia levar a cabo com o maior êxito possível. Por conseguinte, sua empreitada consistia em alcançar um rigor e uma complexidade maiores, comparável ao trabalho de Isaac Newton em filosofia da natureza. Independentemente de ter cumprido ou não, a pretensão de Hume, desde sua primeira obra, era ser o “Sócrates baconiano” 3 e o “Newton das ciências morais”. 1
O Tratado da Natureza Humana é a obra-prima de Hume. A maioria de suas teses é reapresentada em novo estilo por livros posteriores, como a Investigação sobre o Entendimento Humano (1748) e a Investigação sobre os Princípios da Moral (1751). Serão estas as três principais fontes deste artigo. 2 Seriam estes os nomeados por Hume: Locke, Shaftesbury, Mandeville, Hutcheson e Butler (Hume, 2009, p.22). 3 Kreimendahl (2007, p.9) afirma que para os próprios pensadores do século do XVIII em geral seu tempo era tido como socrático, ou seja, que o teor principal da época fosse o foco na moralidade. Hume participa de uma das vertentes deste movimento e dentro dele se porta com um caráter peculiar. Talvez com maior honestidade pudéssemos falar de Hume como "um Sócrates baconiano", ao invés de "o", apesar de não deixarmos de perceber um
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O que havia em Francis Bacon que agradava a Hume? A partir de Bacon o domínio do homem sobre a natureza torna-se possível, devido à distinção feita entre fato e valor. Fato é o que provêm da própria natureza e que por isso depende de um método autônomo suficiente que, por ser racional e imparcial, permite conhecer a verdade ou falsidade dos assuntos condizentes. Já o valor permaneceria sob os cuidados da autoridade, no caso, a religiosa. Bacon não desmerece a importância da teologia, deseja apenas destituí-la de seu habitual mando sobre a natureza. A luta de Bacon em última instância é contra o hábito, especificamente o que impede o desenvolvimento da ciência enquanto equivocadamente insiste inserir o valor em meio a assuntos naturais. A credibilidade da ciência estava em jogo. Ela necessitava de um aparato imparcial, encontrado exclusivamente na razão que segue o método rigoroso no trato com a natureza, apartando-se de quaisquer interferências subjetivas. A distinção que Bacon estabelecera entre fato e valor incorre em uma dicotomia entre disciplinas naturais e disciplinas morais, permitindo que estas últimas permanecessem sob a égide da tradição religiosa enquanto aquelas seguiriam autonomamente (Mariconda, 2006: 453). Hume reassociará filosofia natural e filosofia moral. Vai mais além de Bacon, ou digamos, dá continuidade ao processo de laicização do mundo. Para Hume cabe aplicar um método autônomo e suficiente inclusive sobre a moral. No entanto, não se trata de verdade e falsidade neste meio porque as distinções e as motivações morais não são de origem racional (relação entre ideias e questões de fato) (Hume, 2009: 498), caminho escolhido por alguns de seus antecessores e contemporâneos para desenvolver uma moral científica. Neste campo, os maiores adversários teóricos de Hume serão os racionalistas morais, dentre eles Samuel Clarke e John Locke, para os quais a razão seria o único meio pelo qual o homem pode acessar as distinções morais, presentes nas diferenças necessárias e eternas entre as coisas. As questões morais possuiriam uma autoevidência certo tom intencional de aprimoramento dos seus predecessores, como se reclamasse a si um “baconianismo” mais autêntico. Fica destacado que este “socratismo” remete-se ao filósofo da antiguidade pelo o acento nas preocupações com a moralidade, único ponto de concordância entre as inúmeras matizes setecentistas, pois algumas, como a humeana, distanciar-se-ão de uma perspectiva intimista e racionalista.
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capaz de certeza como os raciocínios a priori da matemática, pois certo e errado seriam meras relações formais (Locke, 1999: 778; Clarke, 1996: 39). Para Hume, o fato dos assuntos morais é bem peculiar, emerge dos sentimentos. Aliás, nem se trataria dos fatos mesmos, antes do valor que recebem dos homens instintivamente. Hume desenvolve uma concepção de homem com maior inserção na natureza como um todo, já que de Deus mesmo não se poderia dizer quase nada 4 , nem pressupor que o homem seja sua imagem, o que invalida a autoridade bíblica sobre o comportamento humano. Desse jeito, a natureza adquire mais voz. Além de continuar dizendo de si, pronuncia-se imperiosamente sobre o homem. Enquanto Bacon teoriza sobre este método ideal para se conhecer cada vez mais e melhor a natureza, Newton vem a ser o que melhor dá provas de que este método é eficaz, coroando a Revolução Científica iniciada por Copérnico. Newton chamara a atenção do seu século e o seguinte, dada sua força explicativa e confirmações experimentais, o que respaldavam uma rejeição de teses metafísicas. Fora ele o grande sintetizador, conciliador e aprimorador de várias teorias físicas anteriores. Incorporou em um todo harmônico a mecânica de Galileu e a astronomia de Kepler, demonstrando ser possível estender a todo universo a ideia de lei natural, anteriormente aplicada apenas em fenômenos particulares. Assim, estaria demarcado com segurança e precisão o modo de proceder em filosofia da natureza. A natureza parecia abrir seus segredos, cedendo as leis de sua regência aos homens. Porém, Newton mesmo não filosofa, não teoriza sobre o ser ou o conhecimento ou o agir, ainda que tenha manifestado o desejo de que sua concepção mecânica de natureza seja considerada pelos filósofos, expressando-se assim: Oxalá pudéssemos também derivar os outros fenômenos da natureza dos princípios mecânicos, por meio do mesmo gênero de argumentos, porque muitas razões me levam a suspeitar que todos esses fenômenos podem depender de certas forças pelas quais as partículas dos corpos, por causas ainda desconhecidas, ou se impelem mutuamente, juntando-se segundo figuras regulares, ou são repelidas e
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As características e a vontade de Deus, mesmo que existam, não são conhecidas pelo homem e muito menos influem sobre seu agir, por escaparem da esfera da experiência. Será esta a tese principal de Fílon, um personagem dos Diálogos sobre Religião Natural (1779) e geralmente considerado como o porta-voz do pensamento de Hume nesta obra.
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retrocedem umas em relação às outras. Ignorando essas forças, os filósofos tentaram em vão até agora a pesquisa da natureza. Espero, no entanto, que os princípios aqui estabelecidos tragam alguma luz sobre esse ponto ou sobre algum método melhor de filosofar 5 (Newton, 1996b: 152). E se a filosofia natural, em todas as suas partes, através da adoção desse método, vier enfim a ser aperfeiçoada, os limites da filosofia moral também serão ampliados. Pois, assim como podemos saber pela filosofia natural qual é a causa primeira, o poder que Ele exerce sobre nós e os benefícios que Dele recebemos, nosso dever para com Ele e para com nossos semelhantes há de se evidenciar pela luz da natureza (Newton, 1996a: p.80)
De tão confiante no seu método, crê Newton que a filosofia natural possa extrapolar seus limites convencionais. O físico entende a filosofia da natureza como determinante para a filosofia moral, assim como para a teologia. Estabelece deste modo a física como “filosofia primeira”. Porém, persiste a ideia medieval de que o comportamento humano está atrelado a um Ser Divino, ainda que “revelado” à luz da ciência natural, do qual se deduziria a nossa obrigação moral. Uma vez que a filosofia da natureza pudesse alcançar o conhecimento da causa primeira do movimento físico, compreenderia o poder divino sobre os homens e, por conseguinte, a ação devida destes para com o criador e entre si. Desta maneira, teria Newton rascunhado algumas indicações de como seria uma filosofia moral decorrente de seu prestigiado trabalho. A possibilidade do desdobramento estaria mais conformada a uma deontologia de significado religioso, justificada por “leis naturais”. Embora não acatando por completo este modo de pensar, Hume encontra aí um ensejo e passa a lutar contra a ignorância da “força” que nos “move”, em sentido moral e não físico. Hume estabelece uma analogia entre física e moral e não uma derivação desta a partir daquela, como sugerido por Newton a seus sucedâneos. O interesse humeano repousa principalmente sobre o método newtoniano que, grosso modo, consistia em decompor o mundo (análise), a partir do máximo de fenômenos particulares, para (re)compô-lo teoricamente (síntese), em um mínimo de princípios.
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Itálicos nossos.
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Vale destacar, ao menos de passagem, que há uma querela acerca do grau de fidelidade de Hume ao método newtoniano, que variaria desde a clássica leitura de um Hume como o “Newton das ciências morais”, na esteira de John Passmore, Anthony Flew e Norman Kemp Smith (Noxon, 1973: 28-29), até o Hume anti-newtoniano de Peter Jones, para quem o filósofo moral não teria tido um conhecimento direto e profundo do físico, chegando a contrapor-se a ele quando prefere um projeto humanístico alinhado ao filósofo romano Cícero (Coventry, 2005: 115-117). Kemp Smith (1964: 56-57.59.71) assinala que seriam duas as influências de Newton sobre Hume: 1) a compreensão do processo metodológico como análise (com o objetivo de determinar as experiências fundamentais) e síntese (que pretende explicar as experiências derivadas a partir das fundamentais) e 2) a construção de uma estática e mecânica da mente, ou associação de ideias, tomando como modelo a teoria gravitacional. Todavia, a relação de Hume com Newton não seria de dependência, nem tão somente analógica, mas de expansão, subordinando a filosofia natural deste a sua filosofia moral. Hume não simplesmente criaria um modelo paralelo, consoante ao de Newton. Ele tomaria a teoria deste como uma oportunidade para pensar algo mais amplo. O próprio método newtoniano é utilizado por Hume para tornar a teoria da atração universal – acreditando que a estaria corrigindo ou pelo menos defendendo a interpretação fiel dela – um caso particular da sua teoria de associação de ideias (Hume, 2009: 677). Uma posição mais cautelosa parece ser a de Jane McIntyre (1994: 15), ao frisar que mesmo não sendo Hume um newtoniano ortodoxo ou o precursor do newtonianismo em moral, espaço mais certamente ocupado por Samuel Clarke, alega que seria inegável o esforço de Hume em aproximar, de um modo não meramente metafórico, sua teoria moral do método de Newton. Quanto a este nosso artigo, consideramos que por maior ou menor que tenha sido a real influência newtoniana sobre Hume, este não reproduziu integralmente o método do físico. Houve uma reelaboração apropriada aos novos fins. Ao menos no tocante à imagem do movimento, Hume teria preferido restringir-se à analogia. Ressalte-se ainda que o mais importante para este texto é, aceitando que o próprio Hume de fato assumia o projeto de ser o “Newton das ciências morais” e a despeito de
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tê-lo cumprido ou não, compreender o peso do significado desta autointitulação para a realização de sua filosofia. Porquanto, propõe-se Hume a observar as ações humanas, assim como Newton observou os fenômenos físicos, e chegar a um princípio comum, que por sua vez se remeta a outros princípios mais simples, dos quais todo o resto depende (Hume, 2009: 684). A perspectiva de Hume, no entanto, não é deontológica ou de fundo religioso, como poderia pretender Newton quando especula sobre a provável aplicação de seu método em filosofia moral. Hume abstém-se de questões acerca da normatividade, sobre as quais os filósofos morais frequentemente apressam-se em tratar, para provocar um ousado exame de “como agimos?”, o que soa “como nos movemos?” em sentido equiparado ao da investigação da física newtoniana sobre a força que move os corpos. Estabelece-se então uma concordância entre o filósofo da moral com o da natureza a partir da ideia de movimento, guardadas as devidas peculiaridades. De fato o que importa para Hume é a descrição do movimento, o qual só pode ser particionado teoricamente. Todavia, os objetos da filosofia moral não são os eventos em si, como acontece com a mecânica – o que nos indica que não há correspondência perfeita entre estes dois campos de investigação, posto que a imagem do movimento mecânico serviria apenas de analogia para a moral – mas sim os juízos ou as distinções que deles fazemos, a influenciar nossa própria ação. A perspectiva da investigação moral humeana é a do espectador da ação e não a do agente. Por isso será oportuna a diferenciação entre distinção moral e ação moral, como trará a próxima seção. Para Hume, os princípios fundamentais da moral estão na própria estrutura mental humana, que compreende a razão e as paixões. Força, direção e movimento são palavras-chave para Hume, assim como o foram para Newton. Só sabemos como agimos (“movemos”) se sabemos como sentimos e pensamos (onde estão a força e a direção do movimento). Nisto consiste a revolução newtoniana de Hume: lutar contra a ignorância que nos move através de um método suficiente e autônomo. Na mente, e apenas nela, encontramos a lógica (ou “lei”) a partir da qual se pode fazer uma teoria moral. Herdando e adaptando as concepções de natureza e homem encontradas em Bacon e Newton, Hume propugna uma moral com pretensões científicas, o que proporcionaria um abandono
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de modelos éticos pautados na eternização de parâmetros de conduta e distantes da felicidade humana. 2 Motivação e julgamento morais David Hume é um cientista cujo objeto específico é a natureza humana. Interessa saber como os homens agem ou tem agido e não como devem agir 6 . Almejava, deste modo, explicar como e porque se desenvolveu no decorrer da história o fenômeno da moralidade, sem recorrer a ideias ou faculdades inatas implantadas em nós por Deus. Sua teoria moral é construída a partir de hipóteses causais, encontradas e justificadas exclusivamente nos limites da experiência humana (Mackie, 1980: 6). Como os filósofos da natureza, Hume persegue a regularidade, condição para que se possa fazer ciência e utilizar-se do método experimental. Apesar da enorme variabilidade natural e cultural do comportamento humano, subsiste algo de constante e universal, que demarca e valora a diferença entre as ações morais (Hume, IPM, 2004: 226). Argumenta: A humanidade é tão semelhante, em todas as épocas e lugares, que, sob esse aspecto, a história nada tem de novo ou estranho a nos oferecer. Seu principal uso é apenas revelar os princípios constantes e universais da natureza humana, mostrando os homens nas mais variadas circunstâncias e situações, e provendo-nos os materiais a partir dos quais podemos ordenar nossas observações e familiarizarnos com os móveis normais da ação e do comportamento humanos (Hume, IEH, 2004: 123).
Hume não quer determinar quais são as qualidades morais a serem aprovadas, porém quais as causas que nos levam a consenti-las. Quer dizer, uma vez que todos naturalmente julgamos o comportamento humano, por meio de qual critério realizamos isto? Tal pergunta conduziria à descoberta da “verdadeira origem da moral”, que por si define os exatos papéis desempenhados pela razão e o sentimento neste ambiente. Os resultados da 6
Guimarães (2007: 212-213) considera que Hume nas obras “Ensaios morais, políticos e literários” e “História da Inglaterra” acresça a seu espírito de investigador newtoniano o de “educador moral”, esboçando uma sutil normatividade. Ainda assim, estas iniciativas não acontecem sob a forma de prescrição direta, antes, imbuídos da força motivadora das paixões, destinam-se a incitar estímulos responsáveis por condutas que contribuem com a ordem social e a felicidade geral.
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investigação não poderiam vir propriamente da observação dos atos morais, mas da distinção que deles fazemos, o que nos influenciaria, ao menos parcialmente, na nossa própria conduta. Não importa a descrição dos eventos, e sim a análise do “complexo de qualidades mentais que constituem aquilo que, na vida cotidiana, chamamos de mérito pessoal”, ou seja, os julgamentos morais. As palavras de apreço e reprovação formam os casos particulares a serem catalogados pela razão do investigador, que procura regularidades a fim de sintetizá-las em máximas gerais (e não últimas!) ou princípios naturais e universais da moralidade, “o fundamento da ética” (Hume, IPM, 2004: 230). Hume destaca que há aí a ligação entre duas questões distintas. Uma é a da motivação moral e a outra é a do julgamento. Ele trata a primeira no livro 3 do Tratado apenas em função da segunda, que lhe parece mais importante e mais complexa. Conforme o tipo de atividade moral (motivação e julgamento) definem-se os arranjos entre nossas atividades mentais (razão e sentimento). Seguiremos primeiramente a compreensão destas em âmbito da motivação para então passar ao nível do julgamento ou distinção moral, obedecendo a própria lógica humeana. O entendimento ou razão pode ser exercido de dois modos. Um enquanto demonstração, isto é, a partir da relação entre ideias. Executar tal habilidade não provoca qualquer movimento, quer físico, quer moral. Por exemplo, a matemática por si não influencia a mecânica e a aritmética não define a ação de um comerciante. Isto porque não é a razão demonstrativa mesma que provoca o interesse pelas operações numéricas a que chegou, contudo as realiza para que sirvam a uma finalidade já determinada passionalmente. O outro modo de uso do entendimento acontece pela probabilidade. A partir da experiência ou questões de fato formamos um raciocínio acerca da relação entre objetos ou eventos. Assim, a razão provável descobre uma conexão entre eles, oferecendo às paixões os meios pelos quais possa evitar a dor e buscar o prazer em cada ação. Se fôssemos indiferentes aos objetos também não nos interessaríamos por eles ao descobrir relações causais entre eles. Porque temos prazer e desprazer pelos objetos, igualmente nutrimos prazer e desprazer pelo o que lhes causam. São as conexões causais descobertas pela razão provável que nos interessam e não ela que nos cria um interesse pelos objetos. Evidencia-se, desta maneira, que o poder da razão não é gerador e sim condutor (Hume, 2009: 449-450).
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A razão, seja enquanto demonstração (inferência dedutiva), seja enquanto probabilidade (inferência indutiva), requer relação de acordo ou desacordo entre as partes para operar. Quer dizer, seus objetos são de realidade representacional, referem-se a coisas. Diz-se que uma ideia é verdadeira quando corresponde a objetos ou outras ideias e que é falsa quando não há correspondência. Hume concordaria com os racionalistas morais quanto à imutabilidade das distinções dos valores das ações caso a questão moral consistisse em relações de ideias. No entanto, as paixões, assim como as ações, fogem desta determinação, por se constituírem cada uma como realidade original, para a qual inexiste a que referirem-se. Assim, não faria sentido considerar paixões e atitudes como verdadeiras ou falsas. Por isso nenhuma ação pode ser racional nem irracional, considerando que estes adjetivos designem uma decisão que pudesse originar-se de um uso ou desuso da razão (Hume, 2009: 498). Não é quando usamos ou não usamos a razão que distinguimos o bem do mal morais ou que nos motivamos a agir conforme um ou outro. Para Hume, de fato, não deixamos de usar a razão para julgar o comportamento humano, ao menos na maioria dos casos. Portanto, a presença da racionalidade não seria critério de demarcação dos valores morais, nem do interesse por nenhum deles. Entretanto, para Hume também não faria sentido considerar uma ação racional se o que se entende por isso é que seja a faculdade racional a responsável por fazer uma distinção sozinha ou provocar algum interesse sequer. Se há uma recusa em se falar de verdade ou falsidade na moralidade, porque nenhuma ação e paixão tem a que referirem-se, não é o suficiente para se dizer que a razão não coopere com as paixões na consecução da moralidade de alguma maneira. O que cabe então à razão? Seu papel consiste em: 1) despertar uma paixão quando leva à mente informações concernentes ao interesse da mesma paixão e 2) descobrir, pela conexão entre causa e efeito, os meios pelos quais uma paixão possa atingir seu fim. Estas operações da razão são juízos e, como tais, passíveis de erro e involuntárias, e nunca morais (Hume, 2009: 499). Como a (observação e a consequente) distinção moral influencia a (motivação ou produção da) ação moral, onde a razão é inativa, a distinção moral também não pode originar-se da razão, o que não implica que ainda permaneça inerte neste âmbito. O livro 2 do Tratado prova que a razão não produz uma ação sequer. O livro 3 qualifica esta ação como moral
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e deduz que se a produção (moral) sofre influência da distinção (moral) esta também não pode vir da razão. Contudo, a razão poderia até ser “causa” de uma ação, ao menos enquanto se considere que esta causa limite-se a dirigir uma paixão, o verdadeiro e único propulsor direto da ação. A razão, com suas probabilidades, calcularia o modo pelo qual as paixões atingiriam o que apelam (Hume, 2009: 501-502), ainda mais se o objeto requerido por elas não traz prazer imediato. Veremos na próxima seção como este caso denota uma evidente união indissociável entre a razão e as paixões, ao mesmo tempo em que se resguardam as mesmas funções para as respectivas faculdades mentais. Se a moralidade consistisse em certas relações determinadas haveria de admitir-se, por exemplo, que animais e até objetos inanimados fossem passíveis de virtude e vício, o que seria absurdo. Ademais, para que existam estas relações teriam elas que se situarem exclusivamente entre a ação humana e os objetos externos, caso contrário se concluiria que alguém poderia ser culpado por um ato contra si mesmo ou que objetos inanimados disponham da mesma possibilidade. Mesmo que estas relações fossem demonstráveis, careceria ainda mostrar como elas se ligam à vontade, já que as leis morais as quais sustentariam se impõem como imutáveis, universais e de efeitos necessários, a despeito das particularidades dos indivíduos, o que não se tem como provar a priori (Hume, 2009: 503-505). Simples casos de relações iguais e causas diferentes também refutariam a tese racionalista. Uma árvore que brota abaixo de outra e que vem posteriormente a sufocar e destruir esta apresenta a mesma relação de um filho que mata o pai, no entanto, provocada por leis da matéria, ao passo que a causa do ato humano é a vontade, o que faz toda a diferença e demarca a presença da moralidade (Hume, 2009: 506-507). Aqui está outro indício de que a insistente correspondência que Hume estabelece entre filosofia natural e filosofia moral, como na analogia entre movimento mecânico e ação moral, não poderia ser perfeita. Ao menos neste aspecto, a relação entre a instância física e moral restringe-se ao analógico, o que não desabilita pensarmos a partir desta imagem para compreendermos a configuração da razão e das paixões no mundo humano. O “movimento” moral é dotado de uma natureza particular, porque causado por uma vontade, ainda que pertencente à natureza geral. A volição é determinada pelo sentimento, que será decisivo não só na motivação, como também no
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julgamento moral, ainda que não exclusivamente como naquela. Por isso o objeto analisado pela filosofia moral não são os eventos em si, como acontece com a filosofia da natureza, mas a distinção ou o juízo que pronunciamos sobre isto. Nosso juízo precisa de uma observação de regularidade, consideramos o comportamento humano como determinado por uma vontade, que por sua vez é movida por paixões que temos não como aleatórias, mas frequentes, senão constantes. Perguntamo-nos pelo o que move a conduta alheia e a nossa, pois para avaliá-las precisamos saber dos motivos, que atribuímos ao que chamamos de caráter, na verdade uma percepção na mente do observador que crê referir-se a princípios duradouros. Deveria existir uma necessidade para que julguemos uma causalidade. É neste sentido que para Hume há liberdade apenas da ação e não da vontade, pois a indiferença de escolha seria o mesmo que acaso e por isso ninguém seria responsável por seus atos 7 (Hume, 2009: 437-448). Vale notar que, para Hume, a necessidade, seja moral, seja física, não teria uma carga ontológica, mas epistemológica, uma vez que seria a própria natureza, através do hábito, a obrigar-nos a perceber o mundo desta maneira 8 . 7
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A liberdade é mesmo essencial à responsabilidade por uma ação? Albieri (2003: 113-122) defende que em Hume há um determinismo fraco da natureza sobre a vontade ou um compatibilismo entre necessidade e liberdade. A vontade, causada por circunstâncias, comandaria a ação humana. Contudo, tal conexão não é objetiva, como se presume que fosse no mundo físico, pois nem sabemos se ultrapassa os limites de nossa mente. O que Hume quer negar é uma indiferença da vontade, como se ela não se inclinasse naturalmente a qualquer alternativa, e não uma espontaneidade da ação, perfeitamente conciliável com certa regularidade, que é necessária à avaliação moral. A esta não cabe quem possa iludir-se por uma indiferença de escolha, como o próprio agente. Já o espectador, que sempre tem expectativas diante do agente, julga-o centrando-se no caráter (regularidade da conduta) e nos motivos (causas ou determinações). Para Paul Russell (1999: 5-8), neste sentido, a causação ou necessidade é até requerida à liberdade e, portanto, à responsabilidade. O julgamento moral ultrapassaria a esfera da intenção, tornando-nos responsáveis não apenas pelo que controlamos. Tal redefinição empreendida por Hume na noção de necessidade seria importante não somente para resolver a controvérsia entre liberdade e determinação, mas principalmente para assegurar a condição de possibilidade de realização de seu projeto de uma ciência do homem de acordo com o método experimental. Sobre este interessante assunto indicamos o trabalho de doutoramento de Fernão Cruz (2007: 188), concluindo que “a homogeneidade dos campos da necessidade física e da necessidade moral é uma notícia auspiciosa. Livres da carga ontológica que pesava excessivamente sobre a causalidade os
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Hume investiga o julgamento sobre as ações não somente porque aquele as move, mas também porque nos faria exigir ou esperar que os demais agissem deste mesmo modo. Fato é que todos valoramos as ações uns dos outros, com “alguma pretensão de validade objetiva”, o que nos possibilita não nos fecharmos em gostos pessoais. “A moral vincula os envolvidos num jogo de exigências mútuas. Portanto, o fato de que haja uma moral não está apenas na existência de juízos de valores, mas sobretudo em que estes juízos sejam exigências para os implicados” (Brito, 2001:14). O espectador é também expectador. A avaliação da conduta de nossos semelhantes, além de nos influenciar a agir de determinado modo, cria a mesma expectativa quanto à ação de todos. Sendo assim, a moralidade não pode ser entendida independentemente do convívio social, ao mesmo tempo que se ampara em instintos naturais e não em uma realidade transcendente. Quando Hume conclui que “a moralidade, portanto, é mais propriamente sentida do que julgada” (Hume, 2009: 510), deparamo-nos com uma confessa dívida sua aos teóricos do senso moral, Shaftesbury e Hutcheson. Ambos acreditam irresolutamente na existência de uma faculdade natural humana de percepção especificamente moral. Os homens seriam dotados de sentidos não só para perceber as características externas dos objetos, como também as qualidades morais das pessoas a partir da observação de suas ações. A realidade objetiva das distinções morais revelarse-ia por este aparato natural, o senso moral, um veículo alternativo ao proposto pelos racionalistas morais. A virtude e o vício não se confundiriam com a percepção que se tem deles (o prazer e o desprazer), porque as qualidades morais tem realidade objetiva e por isso exigindo no homem a existência de um sentido específico e inerente a ele para atingi-la. Os sentimentos morais de prazer e desprazer apenas ocasionariam esta revelação, oportuna a um fim próprio do homem de acordo com uma ordem universal (Shaftesbury, 1996:13-36; Hutcheson, 1996:163-182). filósofos e moralistas que consultarem a experiência poderão comentar o campo de fenômenos que pretendem estudar considerando a variações de suas regularidades, sem abrir mão da cientificidade de seus saberes. Pois, se a necessidade em geral não é mais concebida à imagem da necessidade matemática, e a ciência não está mais obrigada a reconstituir conexões reais entre os objetos, é possível comentar a anomalia do ponto de vista da gradação que separa a prova da probabilidade, e o raro do freqüente”.
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Hume teria se fiado a este modelo quanto à recusa da suficiência da razão na distinção moral e à defesa que jamais ficamos indiferentes perante a ação alheia, sem convencer-se de demais comprometimentos. Hume não preconiza um senso especificamente moral, muito menos uma habilidade que nos desvele qualquer realidade, inclusive objetos morais, para além das nossas próprias percepções do mundo (Hume, 2009: 510). Desta maneira, a moralidade é fenômeno mental – já que o valor das ações depende da avaliação do espectador – como igualmente é social – porque é em sociedade e de modo contínuo que os homens sentem e pensam, condicionando suas ações e julgamentos entre si. Por isso Hume formula uma teoria moral que abrange tanto o aspecto epistemológico (como desenvolvido na parte 1 do livro 3 do Tratado) quanto o social (que corresponde as partes 2 e 3 do mesmo livro). Embasados por esta natureza comum, que Hume chama de simpatia, nossas mentes estariam como em uma espécie de conexão, que permitiria a agradarmo-nos e a reconhecermos a utilidade de condutas para nossa sobrevivência e convivência, demarcando assim a fronteira entre virtudes e vícios. Vejamos como isto se processa a partir da ótica analógica sugerida. 3 Paixões propulsoras e razão diretiva Hume concebe a mente como um feixe de percepções, sejam como ideias, sejam como impressões. Dentre as impressões, temos as de sensação, que são imediatas, como o frio e o calor, a dor e o prazer. Hume nem as investiga por suas causas serem físicas, fora do horizonte de preocupação do filósofo moral. Por isso começa seu tratado sobre a natureza humana com as ideias, que são cópias ou versões pálidas das primeiras sensações. Quando uma experiência se associa a uma ou mais ideias lhes dá uma vivacidade que geram impressões de reflexão (Hume, 2009: 25-31). Nestas se encontram os sentimentos. É a partir daqui que Hume esclarecerá sua acepção de “senso moral”, ou de “sentimento moral”, como preferirá chamar na segunda Investigação, denotando a independência do sentido destas expressões para o correspondente nas filosofias de Shaftesbury e Hutcheson. Hume entende que jamais ficamos indiferentes perante a ação alheia. As artes provariam isto. Um ator, por exemplo, que bem interpreta seu papel, provoca sentimentos no seu espectador (Hume, 2009: 510). Neste sentido, virtude é a ação que causa prazer e vício é a que gera
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desprazer. Como tão-somente impressões, as qualidades morais, em última instância, ligam-se ao prazer e ao desprazer, e em se tratando especificamente de impressões de reflexão, este prazer e este desprazer não são imediatos, surgem depois de uma colaboração racional às nossas impressões. Contrariando Shaftesbury e Hutcheson, seus precursores na proposição da existência de um senso moral, Hume argumenta que este mecanismo natural da constituição humana não requer um sentido interno distinto e independente dos demais. Virtude e vício só existem indissociadamente dos sentimentos morais, subordinados a nossa disposição natural de aprovação (prazer) e reprovação (desprazer) de conduta, como enunciada desde o livro 2 do Tratado, que versa sobre as paixões: “o desprazer e a satisfação não são apenas inseparáveis do vício e da virtude; constituem sua própria natureza e essência. Aprovar um caráter é sentir um contentamento diante dele. Desaprová-lo é sentir um desprazer” (Hume, 2009: 330). Porém nem tudo que agrada é virtuoso, mas o que agrada em certas condições. Se fosse de qualquer maneira valeria para esta tese a mesma crítica que Hume fizera aos racionalistas sobre estabelecer a distinção moral de acordo com uma determinada relação imutável. Todo objeto ou ação que nos causasse prazer seria chamado de virtuoso, mas não é o caso. O prazer a que Hume se refere é bem peculiar. Apesar de utilizarmos o mesmo signo linguístico, “prazer”, Hume acredita estarmos lidando com percepções diferentes. Explica: “como a satisfação é diferente, isso nos impede de confundir nossos sentimentos relativos a cada um deles, e nos faz atribuir a virtude à pessoa, mas não ao objeto” (Hume, 2009: 511). Por isso o que importa é o sentimento que subjaz à linguagem. O prazer de observar uma ação considerada boa não tem a mesma carga semântica que o prazer de tomar um bom vinho ou ouvir uma boa música, por exemplo. Ademais, o prazer a que se refere, o sentimento moral, é uma aprovação a despeito de interesse particular, não se encerrando em um subjetivismo e exigindo uma reflexão prévia (Hume, 2009: 512). Outra característica que favorece a clareza do significado deste prazer preciso é que este distingue as qualidades morais a partir das paixões indiretas de orgulho, humildade, amor e ódio, encontradas apenas nos seres
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humanos e referentes à avaliação de si e dos outros 9 . Mesmo que coisas inanimadas mantenham iguais relações que as de agentes morais, não poderiam ser julgadas moralmente, pois em seu movimento não há uma intenção ou vontade. Ora, a virtude e o vício se acompanham dessas circunstâncias. Devem necessariamente se situar em nós ou em outrem, e excitar prazer ou desprazer; devem, portanto, gerar uma dessas quatro paixões, o que os distingue claramente do prazer e da dor resultante de objetos inanimados, que frequentemente não têm conosco nenhuma relação (Hume, 2009: 512).
Seguindo um padrão científico, de inspiração newtoniana, Hume procura uma unidade mínima que explique o surgimento dos sentimentos morais. “É necessário, portanto, reduzir o número desses impulsos primários e encontrar alguns princípios mais gerais que fundamentem todas as nossas noções morais” (Hume, 2009: 513). Para executar tal tarefa Hume presume haver uma natureza humana, porém não tem em mente fundamentar seus argumentos em uma essência, uma realidade última, supra-sensível e necessária, rejeitada por ele justamente por escapar do domínio da experiência. Diante de uma polissemia do vocábulo “natural”, conserva principalmente em seus trabalhos a simples noção de algo observável de modo regular, comum, habitual (Hume, 2009: 514). Já que Hume procura considerar a moral como ciência, persegue uma certa constância de comportamento, denominada de caráter. Não se trata de uma uniformidade absoluta, como se todos agissem do mesmo modo sob as mesmas circunstâncias, mas a “observação da diversidade de condutas em diferentes homens capacita-nos a extrair uma maior variedade de máximas, que continuam pressupondo um certo grau de uniformidade e regularidade”. Isto faríamos inclusive na vida ordinária, “caso contrário nossa familiaridade com as pessoas e nossas observações de sua conduta não nos poderiam jamais ensinar suas disposições, ou servir para guiar nosso comportamento em relação a elas” (Hume, IEH, 2004, 122-123.125-126).
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Destoando de significados tradicionais, Hume considera orgulho o prazer que o indivíduo tem quando se auto-avalia positivamente e humildade o desprazer de uma auto-avaliação negativa. Estes mesmos valores atribuídos a outrem, ele os denomina, respectivamente, de amor e ódio (Cf. Hume, 2009, 363-365).
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Crê o filósofo que o caráter apresenta-se por seu signo, que é a ação, existindo numa relação de dependência a princípios duradouros. Para que a ação repercuta em sentimentos peculiares da avaliação moral, sendo capaz de referir-se aqueles princípios, não é tomada isoladamente pelo espectador. Nesta situação é que se percebe a força da simpatia 10 , “como cordas afinadas no mesmo tom, em que o movimento de uma se comunica às outras, todos os afetos passam prontamente de uma pessoa a outra, produzindo movimentos correspondentes em todas as criaturas humanas” (Hume, 2009: 615). Os sentimentos morais surgem da simpatia depois que há um reconhecimento dos efeitos produzidos por uma ação. Poderei, então, perceber estes efeitos como agradáveis ou desagradáveis de acordo com as paixões surgidas no paciente em decorrência da ação recebida do agente. Aprovarei (me agradarei com) o sentimento agradável em mim espelhado do sentimento agradável no paciente, o que implica uma aprovação do agente causador deste. Sinto então amor por ele, como causa do efeito agradável no paciente porque este sentimento agradável se espelha para mim e me agrado de senti-lo e de quem o gerou. Caso eu fosse o próprio agente causador o sentimento seria de orgulho. Caso sentisse um sentimento desagradável em mim recebido por simpatia de um sentimento desagradável no paciente, o agente causador deste seria objeto de meu ódio. Na situação de eu mesmo tê-lo produzido sentiria humildade. A simpatia diz respeito a nossa disposição natural e universal para dividirmos os mesmos sentimentos, o que possibilita a formação de um gosto padrão comum, inclusive o moral, no qual encontramos referência, mas não obrigação para a ação. Hume não quer dizer que a simpatia garante uma ação virtuosa e nem que seja responsável para que ajamos virtuosamente, porém ela nos condiciona naturalmente a julgarmos quando alguém age ou não deste modo, o que não deixa de influenciar parcialmente nossa vontade, assim expresso nessa passagem: “Embora o coração não tome inteiramente o partido dessas noções gerais, nem regule todo seu amor e 10
Fica advertido que a palavra simpatia, como usada por Hume, recebe um sentido técnico, não indicando qualquer sentimento de apreço de um indivíduo por outro, e sim a capacidade natural que todos os homens teriam de sentir o que sente seu semelhante. Atualmente poderíamos chamar esta disposição de empatia, mas preferimos resguardar o próprio termo do filósofo em questão.
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ódio pelas diferenças universais abstratas entre o vício e a virtude [...] essas distinções morais têm ainda assim uma considerável influência” (Hume, IPM, 2004: 298). Quer dizer que a avaliação viria acompanhada de um desejo correspondente, posto que o espectador não é apático diante da situação julgada. O amor, sentimento que indica aprovação de um que causou o sentimento agradável no paciente, outro que não o próprio espectador, segue-se da benevolência, a vontade que o espectador tem de tornar feliz quem ama, ou seja, agradar quem o agrada (Hume, 2009: 631). A simpatia é fonte da moralidade 11 , mas não é a única, visto que age em determinadas circunstâncias da convivência humana. Destarte, uma ação é virtuosa não somente por ser desejável e agradável, afetar o íntimo e causar interesse no espectador, mas também porque tende à utilidade. A utilidade é meio para aquisição de um fim e não causa interesse por si, mas em vista do fim. É a simpatia que causa interesse pelo fim e, por conseguinte, interesse pelo meio, a utilidade. Tudo que tender ao fim será útil e o útil só será desejável porque e em vista do nosso interesse natural por aquele fim. A razão do espectador descobre a tendência de uma ação à utilidade, porém preferida por ele graças ao princípio da simpatia (Hume, 2009: 657-658). Por isto Hume escapa do egoísmo e do subjetivismo morais, nos permitindo, conforme Malherbe (2007: 761): tornar concreto o ser interior de outrem a partir dos sinais exteriores que ele nos oferece [...] e experimentar a impressão dele quando não temos experiência própria. Assim, podemos primeiro compreender outrem como um agente moral, e depois por simpatia, podemos apreciar a ação aprovada ou censurada sem levar em conta nosso interesse particular, mas experimentando indiretamente o benefício que outrem recebe.
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Na segunda Investigação a simpatia parece não mais gerar da parte afetiva, ao menos sozinha, a distinção moral. Surgem em parceria, e não como substituição, outros conceitos como o de “sentimento humanitário”, mais extensivo a todos na sociedade. Hume diferencia sentimento moral de sentimento humanitário apesar de possuírem a mesma origem, serem governados pelas mesmas leis e sofrerem a atuação dos mesmos objetos (Hume, 2004: 306). O sentimento humanitário precederia o moral, transformando-se neste com o surgimento de um objeto útil ao coletivo e que não se oponha ao interesse pessoal. Em meio às relações sociais o sentimento humanitário, que parece “frágil e delicado”, promove o sentimento moral, frequentemente suplantando a força das paixões egoístas. O sentimento mais geral torna-nos conscientes não apenas do benefício que consiste o interesse coletivo, como das vantagens do próprio sentimento moral (Hume, 2004: 350-351).
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Para Hume, a moralidade não se reduz a instintos originais, porém imprescinde de um aparato natural que se associa aos artifícios da razão para fabricá-la. Por mais que uma virtude seja artificial, ou seja, não derivada diretamente de uma motivação interna, o senso ou o juízo que se tem dela é natural. Tudo é naturalmente aprovado desde que tenda à utilidade de todos, ainda que seja uma instituição. Quanto maior for o interesse atrelado a uma prática, tanto mais será seu valor constante dentro do sistema moral, ainda que sua motivação não seja (imediatamente) natural, como no caso da justiça (Hume, 2009: 658-659). A razão que contribui com as paixões no julgamento moral é a razão provável, a descobrir uma conexão entre os eventos. Ela é capaz de estabelecer um meio pelo qual se possa atingir o fim desejado, a partir das relações de causas e efeitos. Logo, a utilidade como critério de avaliação moral aponta para a indispensabilidade da razão, como confesso por Hume. Como se supõe que um dos principais fundamentos do louvor moral consiste na utilidade de alguma qualidade ou ação, é evidente que a razão deve ter uma considerável participação em todas as decisões desse tipo, dado que só essa faculdade pode nos informar sobre a tendência das qualidades e ações e apontar suas conseqüências benéficas para a sociedade ou para seu possuidor (Hume, IPM, 1997: 367).
A utilidade é naturalmente agradável porque estão em jogo os interesses de todos, os particulares e os coletivos, interligados pela simpatia. Portanto, não são apenas os nossos interesses pelos quais causam a aprovação de uma conduta. Uns podem ser mais sensíveis que outros, mas ninguém é realmente apático. Por mais egoísta que alguém seja “é inevitável que deva sentir, nos casos em que seus interesses não estão em jogo, alguma propensão ao bem da humanidade, e fazer dele o objeto de sua escolha sempre que isso não lhe trouxer maiores consequências” (Hume, IPM, 2004: 293-294). Assim, a utilidade configura-se como o principal fundamento da moral enquanto influenciar sobre a consideração pelo interesse coletivo, porque afeta “princípios benevolentes” ou de “humanidade e simpatia”, causas da aprovação e reprovação das ações. A virtude nos toca quando a qualidade mental é trazida para perto. Como a força do amor próprio é maior que a força do amor ao outro e ao coletivo “é necessário que nós, em nossos serenos juízos e discursos concernentes ao caráter das pessoas,
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negligenciamos todas essas diferenças e tornemos nossos sentimentos mais públicos e sociais” (Hume, IPM, 2004: 297). Ou seja, cabe à razão vir em socorro dos esforços insuficientes da natureza em prol do bem coletivo. A razão surge para dirigir a força cega e frágil das paixões, que aqui reconhecemos como benevolentes, ao “corrigir essas parcialidades pela reflexão e preservar uma norma geral de vício e virtude fundada principalmente na utilidade geral” (Hume, IPM, 2004: 298). Isto incorre em um domínio da razão sobre o sentimento? Hume insiste que há uma base natural de preferência dos nossos julgamentos morais e sua propensão é não somente afetiva, como também em favor da coletividade, sempre buscando distinguir o útil do nocivo. A utilidade diz respeito às adaptações às necessidades circunstanciais, são as vantagens que a razão encontra como meio de aquisição do interesse determinado pelas paixões, que é prazeroso. O meio torna-se de certa forma também prazeroso porque antecipa o fim desejado. A utilidade, neste sentido, é uma espécie de marca pela qual identificamos as formas de vida como as que garantiriam nossa preservação. Ela tem sinalizado para nós o modo de podermos adaptar-nos às situações diferenciadas da vida na história e em todo o mundo (Hume, IPM, 2004: 415-438). Dentre as nossas aptidões naturais, a mais importante é a que melhor nos capacita para viver, como assim será também quanto às virtudes de utilidade pública. As que melhor possibilitam a convivência são as preferidas. Quando, porém, a natureza não garante por si a saciedade das necessidades humanas, cabe à razão encontrar modos para atender a estes apelos. Desta maneira é que podem ser compreendidos a origem e o motivo da lei e dos demais artifícios que perduram na sociedade ao longo dos tempos e detém nossa aprovação natural e oriunda do sentimento. A razão tem o importante e indispensável papel de nos fazer identificar a tendência à utilidade das ações, mas ficaríamos indiferentes à escolha de qualquer uma, caso não fôssemos impulsionados pelo sentimento. O próprio cálculo racional só é feito porque já tivemos o interesse de realizá-lo e em vista de um fim não determinado pela razão e sim por uma paixão. O poder da previsibilidade da razão reside na descoberta das relações de causa e efeito, encontrando (e não determinando!) o que seja útil. A razão é forçada a auxiliar as paixões seguindo um critério que recebe da natureza, a utilidade, não tendo
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autonomia para modificá-lo. Destaca-se que a utilidade não está em desacordo com a simpatia, assim como a razão não se rivaliza com as paixões e o artifício não nega a natureza. Como afirma Brito (2001: 21), “embora a razão seja imprescindível para nos ajudar a discernir na trama dos acontecimentos, como alcançar o que para nós é útil, a utilidade, ela mesma, não se define senão contra o pano de fundo de nossos interesses e inclinações”. Como naturalmente sentimos uma afeição desigual, preferindo o eu, para depois agradar aos mais próximos e, por fim, aos demais, a solução aos riscos da avidez não está na natureza mesma, mas no seu prolongamento, que é o artifício. “Mais corretamente falando, a natureza oferece, no juízo e no entendimento, um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos” (Hume, 2009: 529). Embora adotada pelo homem, a sociabilidade não contraria a sua natureza, antes possibilitada por ela. Descobrindo que a sociedade é útil ao seu interesse, o homem empenha-se com a razão a produzir consciente, mas não independentemente, um projeto de sustentação da vida social, tornando-a também seu interesse. Percebendo que esta forma inventada de organizar-se, apesar de necessária, não se sustenta por si, a razão procura mecanismos para conseguir isto. Surge a justiça, com o propósito de transformar o naturalmente instável (e ameaçador da ordem estabelecida) no mais estável possível artificialmente (Monteiro, 1975: 51-52). Nenhuma paixão sozinha mantém a ordem social, seja o interesse público, que é muito fraco, seja o interesse particular, que apesar de forte tende a romper com o coletivo. A maior ameaça à vida social não seria o embate entre razão e as paixões, mas o choque corriqueiro entre algumas destas. Aí então se vê melhor a contribuição da razão. Como mostrado que para Hume é impossível uma rivalização da razão com qualquer paixão, caberá àquela conduzir os interesses para o fim definido pelo interesse público. É certo que nenhum afeto da mente humana tem ao mesmo tempo a força suficiente e a direção adequada para contrabalançar a ganância e para tornar os homens bons membros da sociedade, fazendo que se abstenham das posses alheias. A benevolência para com os estranhos é fraca demais para isso [...] Não há uma só paixão, portanto, capaz de controlar a afeição motivada pelo interesse, exceto essa própria afeição, por uma alteração de sua direção. Ora, tal alteração deve necessariamente ocorrer à menor reflexão, pois é evidente que a paixão se satisfaz
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muito melhor se a contemos que se a deixamos agir livremente (Hume, 2009: 532).
Não se trata de decretar a bondade ou maldade natural de uma paixão, mas de encaminhar, o tanto quanto possível, paixões naturalmente contrárias no rumo de um mesmo fim jamais determinado pela razão mesma. A força cega dos afetos guia-se pelo entendimento. Este não podendo ser contrário àqueles, manobra-os adequadamente para impulsionarem a vida que agrada ao indivíduo e ao coletivo. Tudo que contribuir para a conservação da sociedade interessa e agrada cada indivíduo. Melhor do que outra conduta a justiça tem cumprido isto, que se origina de um acordo tácito que preserva a propriedade privada e assim conjuga interesse público com o particular. A artificialidade da justiça guarda uma naturalidade importante e irrenunciável. Como toda virtude, sua origem, mesmo que longínqua, está numa paixão. Sendo aprovada esta prática pela comunidade dos homens, pelo mesmo processo de avaliação a que se submetem as qualidades não forjadas circunstancialmente, reveste-se de natural. O sentimento moral dedicado será o mesmo. A única diferença que esta virtude tem em relação às naturais é que o seu mérito é devido ao seu conjunto e não a cada ato particular como acontece nestas. O vantajoso da justiça é a totalidade das regras que a compõem. Um único ato de justiça, se não referido pelo seu conjunto, pode prejudicar a sociedade e/ou o indivíduo (Hume, 2009, 537538). O que faz a razão aqui é orientar o interesse particular, mais fortemente do que o interesse público, por ser mais contíguo, para concordar com a paixão mais fraca. “O impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela” (Hume, 2009: 450). Por isso compete à razão formular leis, distanciando-as de instintos originários, mas não à revelia dos sentimentos. Contrariamente, a razão os pressupõe para conduzi-los do modo mais proveitoso. Assim, convergem dever e prazer. As regras de justiça são provas da obediência da razão às nossas paixões, servem para que estas mesmas em quaisquer situações nos motivem a agir em prol da ordem social. Para que a razão rivalize com as paixões teria de configurar-se como força e força antagônica, o que jamais acontece. A determinação de uma vontade dá-se tão-somente pelas paixões, sejam violentas ou calmas, estas de tão sutis é que poderiam ser confundidas com a razão.
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O sentimento moral é apenas uma das forças determinantes sobre a vontade, classificada por Hume como uma paixão calma (Hume, 2009: 310). Outra força a ser considerada na determinação da vontade seria o interesse particular, que é uma paixão violenta, frequentemente preferido por sua contiguidade a nós (Hume, 2009: 574). Tendo então origens distintas para a determinação da vontade presenciamos uma tensão entre as forças-paixões. Uma solução dada por Hume diz respeito à contenção da paixão violenta, reconhecida por ele como o artifício mais eficaz (Hume, 2009: 455). Assim, o Estado, ao garantir a prática da justiça, formulando leis de estabilidade de posse, cumpriria este papel de refinado artifício de satisfação das paixões (Hume, 2009: 565). 4 Considerações finais A atitude de Hume é sempre em prol de uma naturalização da moral a partir do método, para torná-la científica e livrá-la da tutela da tradição religiosa. Entendemos que o mesmo esforço acontece quanto ao conteúdo da moral. Assim, embora Hume se simpatize com o sentimentalismo de Hutcheson e Shaftesbury, trata de “purificá-lo” por meio do seu experimentalismo típico, permitindo-se discordar livremente de certas posturas cruciais deste modelo. Parece que a própria postura investigativa humeana seria performática de sua analogia entre a ação moral e o movimento mecânico. O impulso de matérias herdadas dos sentimentalistas morais encontra sua orientação na revisão do método experimental oriundo de Bacon e Newton. A idéia baconiana de submissão à natureza para conhecer e conhecer autonomamente alia-se em Hume à viabilidade newtoniana de que o que a natureza diz de si mesma são leis universais. Hume estende e redefine isto do universo físico para o moral, da natureza para o homem. Como o único meio pelo qual se poderia ouvir a natureza é o experimentalismo, Hume a ele recorre para não fantasiar sobre a vida dos homens. Busca as “leis” próprias do mundo humano que não só se equiparam às do mundo natural, como as antepõem. No homem, e apenas nele, encontramos a lógica (ou “lei”) a partir da qual se pode fazer uma teoria moral. Só sabemos como agimos (“movemos”) se sabemos como sentimos e pensamos (força e direção, compostos indissociáveis da ação moral). A naturalização que Hume empreende sobre a teoria moral,
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encerrando-a dentro dos limites da experiência, leva-o a concluir que a moralidade não é, mas torna-se natural, porque ainda que se caracterize como uma invenção, se compromete em satisfazer os interesses humanos, o que constitui a força do dever na sociedade. É incontestável que para Hume a razão não motive qualquer ação, uma vez que seja incapaz de fornecer uma preferência à vontade. Porém, a exclusão efetiva da razão nos negócios morais parece acontecer apenas em seu aspecto abstrato, posto que a relação de causalidade entre os eventos, informada pela razão provável, seria um instrumento útil às paixões para apreciar as ações e, desta maneira, alcançar o requisitado por elas. Ainda assim, Hume também se recusa a aceitar que a moralidade surgisse de uma razão provável, ou seja, que as distinções morais derivassem de uma inferência indutiva. O que acontece é uma cooperação entre a razão, especificamente a razão provável, e as paixões. Enquanto estas impulsionam, aquela direciona a força que não procede de si. Como há uma constante atividade racional nos julgamos morais, a influência da razão sobre a ação é indireta, o que leva à conclusão de que a expulsão da razão da motivação não é absoluta, por ser readmitida sua presença ali via distinção. Por isso, compreendemos que Hume não exclui nenhuma das faculdades da mente, razão e sentimento, nem a nível mental, nem social, nem na origem nem no desenvolvimento da moralidade. Ademais, sempre exercem respectivamente as mesmas funções e em cooperação. A perspectiva de complementar a epistemologia moral com a moral social, a fim de elucidar a presença das faculdades mentais na moralidade, dá abertura a uma continuidade temática que não se esgota aqui. Concluindo que razão e paixões estão indissociadamente ligadas por uma constituição natural de direção e força, deparamo-nos com a realidade de disputa entre paixões, que a razão se presta a solucionar, ou ao menos arrefecer. A rivalidade, que Hume desmente haver entre razão e paixões, transpõe-se para o círculo destas, que nunca deixarão de exigir (e por que não depender?) os préstimos daquela, conforme os ditames do império da natureza. Referências ALBIERI, Sara. Caráter e ação moral: a teoria compatibilista de David Hume. Metacrítica, v.1, n.2, p.113-122, 2003.
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Da Dissertação sobre as paixões, de David Hume Jaimir Conte*
A Dissertação sobre as paixões de David Hume foi publicada originalmente em 1757 num volume intitulado Quatro dissertações. O volume incluía também a História natural da religião e os ensaios Da tragédia e Do padrão do gosto. Numa carta ao editor Andrew Millar, escrita em 1755, Hume mencionou que havia escrito quatro dissertações curtas: “História natural da religião”; “Das Paixões”; “Da Tragédia”; e “Algumas considerações prévias sobre Geometria e Filosofia Natural”, que ele havia guardado alguns anos a fim de aprimorá-las o máximo possível. (Cf. Greig, 1932, v.1, n.11, p. 223). Hume concluiu a dissertação sobre a Geometria em 1757, mas na última hora decidiu não publicá-la. Mais tarde, em 1772, numa carta a William Strahan, esclareceu que decidiu não publicar este último ensaio em virtude do conselho do matemático, e também amigo, Lorde Stanhope, que o convenceu de que “havia algum defeito no argumento ou na sua perspicácia” (Greig, 1932, v. 2, n.465, p. 235). Tendo desistido de publicar o ensaio sobre a Geometria, o desejo final de Hume parece ter sido o de publicar apenas os três ensaios restantes. O editor Andrew Millar, porém, advertiu que os ensaios não eram suficientes para formar um volume, o que levou Hume a mudar de planos e a adicionar dois outros textos, compondo assim um volume intitulado Cinco dissertações. Os textos acrescentados foram os ensaios Do suicídio e Da imortalidade da alma. Depois que alguns exemplares impressos foram distribuídos, os rumores da inclusão destes dois últimos ensaios, considerados ofensivos às visões religiosas predominantes, ocasionaram duras críticas, especialmente do teólogo e bispo de Gloucester William Warburton (1698-1779), que pressionou o editor Andrew Miller a convencer Hume sobre os perigos de sua publicação. Na mesma carta a William Strahan, mencionada acima, referindo-se aos ensaios, Hume disse: “Eles foram impressos, mas logo me
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Professor do Departamento de filosofia da UFSC. E-mail: conte@cfh.ufsc.br
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arrependi; e o Sr. Millar e eu, de comum acordo, consentimos em suprimilos, e eu escrevi um novo ensaio sobre o Padrão do gosto para preencher o seu lugar”. Como os exemplares estavam impressos, os ensaios Do suicídio e Da imortalidade da alma foram literalmente cortados e, em seu lugar, para completar o volume mutilado, foi incluído o ensaio Do padrão do gosto. O livro foi finalmente publicado em 1757 sob o título inicial de Quatro dissertações. Em 1758, os ensaios das Quatro dissertações foram incluídos numa edição que reunia as obras de Hume em um único volume com o título de Ensaios e tratados sobre diversos assuntos. O ensaio Das paixões foi renomeado para Dissertação sobre as paixões e colocado entre a Investigação sobre o entendimento humano e a Investigação sobre os princípios da moral. Dado que essas duas últimas obras decorriam do esforço de Hume de reescrever, respectivamente, o livro I, “Do entendimento”, e o livro III, “Da moral”, do Tratado da natureza humana, e que a dissertação retomava, embora de maneira extremamente resumida, o livro II, “Das Paixões”, a edição de 1758 republicava assim, mais ou menos reescritos, os três livros do Tratado, publicados em 1739-40. Diferentemente, porém, das duas Investigações, a Dissertação sobre as paixões é mais propriamente uma seleção e edição de certos parágrafos do que todo o livro II do Tratado reescrito. Conforme assinala Immerwahr, “Na verdade, dos 119 parágrafos da Dissertação, 75 são tomados praticamente palavra por palavra (com pequenas alterações editoriais) do Tratado. Outros 13 parágrafos são resumos ou paráfrases de parágrafos do Tratado. A maioria dos 31 parágrafos restantes são transições ou resumos mais gerais de materiais do Tratado II”. (Immerwahr, 1994, p. 227). Comparando-se a Dissertação sobre as paixões com o livro II do Tratado nota-se, de fato, a existência de extratos literais do Livro II, com algumas pequenas alterações, e que, além disso, a dissertação reproduz somente os elementos fundamentais da teoria das paixões, excluindo dela quase todos os elementos e raciocínios que constituíam seu suporte. Talvez isso explique porque a Dissertação sobre as paixões não recebeu, historicamente, a mesma atenção das demais obras filosóficas de Hume, sendo às vezes completamente negligenciada e menosprezada. Segundo Kemp Smith ela é, “por consenso geral a menos satisfatória de todas as obras de Hume” (Kemp Smith, 1941, p. 535).
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Embora a Dissertação sobre as paixões tenha sido negligenciada devido à sua falta de originalidade, ela deveria ser apreciada, segundo Immerwahr, à luz dos outros ensaios que compunham as Quatro dissertações. Immerwahr assinala que há duas mudanças no texto da Dissertação sobre as paixões em relação ao texto anterior do Livro II do Tratado que são particularmente significativas e argumenta que ambas as mudanças são destinadas a apoiar os argumentos dos outros ensaios inseridos nas Quatro dissertações. A primeira mudança marcante diz respeito ao tratamento que Hume oferece das paixões diretas (tais como alegria e tristeza, medo e esperança). Enquanto no Tratado Hume dá maior ênfase às paixões indiretas (tais como orgulho e humildade, amor e ódio) e discute as paixões diretas num capítulo separado da Parte III, na Dissertação das paixões Hume discute logo no início do ensaio as paixões diretas, mantendo quase em sua totalidade o texto do Tratado II. Em contrapartida, o tratamento que ele oferece sobre as paixões indiretas é feito no final, e de modo bastante reduzido. De fato, Hume inicia a dissertação com algumas poucas observações introdutórias e logo em seguida se refere às paixões diretas, afirmando que nenhuma delas “parece encerrar alguma coisa curiosa ou digna de nota, exceto a esperança e o medo” (DOP, 3). Segundo Immerwahr o que chama a atenção no que diz respeito à esperança e o medo é que na História natural da religião Hume explicou que essas emoções particulares são a fonte da religião popular. Immerwahr afirma então que “a decisão de Hume de enfatizar e colocar no início o material sobre as paixões diretas pode claramente ser vista como uma tentativa de fazer o material do Tratado II relevante para o problema prático da origem da religião” (Immerwahr, 1995, p. xiv), que é a questão central da História natural da religião, incluída em seguida no volume das Quatro dissertações. A segunda maior mudança entre a Dissertação e o livro II do Tratado, argumenta Immerwahr, também visa fortalecer a relação do seu tratamento das paixões com o assunto do ensaio Da tragédia, também incluído no volume das Quatro dissertações. No livro II do Tratado, lembra Immerwah, Hume explora a questão de como paixões contrárias afetam umas às outras quando são experimentadas simultaneamente. Esta doutrina, que aparece como um assunto secundário no livro II Tratado, é mantida sem modificações na dissertação. A visão de Hume é que em alguns casos, o
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conflito de duas paixões contrárias torna a mais forte das duas paixões ainda mais intensa. Como Hume explica na dissertação “A paixão predominante sobrepuja a inferior e a converte nela mesma” (DOP, 6.1). Este material é também reordenado, aparecendo agora na seção final da dissertação. Immerwahr, argumenta ainda que a teoria da paixão predominante é importante porque ela é o fundamento filosófico para o ensaio Da Tragédia. Na medida em que Hume apresenta essa teoria no final de Dissertação das paixões, ele a converteria numa espécie de “introdução técnica” para o ensaio Da tragédia, que é introduzido logo em seguida nas Quatro dissertações. Lida sem perder de vista os demais ensaios que compunham as Quatro dissertações, a Dissertação sobre as paixões, então, seria mais do que meramente um resumo drástico do Livro II do Tratado. Referências GREY, J. Y. T. (ed.) The Letters of David Hume (Oxford: Clarendon Press), 1932, 2v. HUME, David. Four Dissertations. I. The natural history of religion, II. Of the passions, III. Of tragedy, IV. Of the standard of taste. IMMERWAHR, John (ed.); Key Texts, Thoemmes Press, (1995). (Edição Facsímile da edição publicada originalmente em 1757 por A. Millar). _______ A Dissertation on the passions; The natural history of religion: a critical edition. Tom L. Beauchamp (ed.); Oxford: Oxford University Press, 2007. (The Clarendon Edition of the Works of David Hume, v. 5). IMMERWAHR, John. “Hume’s Dissertation on the Passions”. Journal of the History of Philosophy, v.32, n.2, April 1994, p. 225-240. KEMP SMITH, Norman. The Philosophy of David Hume (London: Macmillan and Co., 1941), p. 535.
TRADUÇÃO Dissertação sobre as paixões David Hume Tradução: * Jaimir Conte
Seção 1 /121/ 1. Alguns objetos produzem imediatamente uma sensação agradável por causa da estrutura original de nossos órgãos, e, por isso, são denominados BONS; enquanto que outros, por causa de sua imediata sensação desagradável, são chamados de MAUS. Assim, o calor moderado é agradável e bom; o calor excessivo doloroso e mau. Alguns objetos, porém, por serem naturalmente conformes ou contrários à paixão, provocam uma sensação agradável ou dolorosa, e, por isso, são chamados de bons ou maus. O castigo de um adversário, ao satisfazer o desejo de vingança, é bom; a enfermidade de um companheiro, ao afetar a amizade, é má. /122/ 2. Todo bem ou mal, onde quer que surja, produz diversas paixões e afetos, de acordo com a perspectiva segundo a qual é contemplado. *
Tradução realizada com base nas seguintes edições: 1. Four Dissertations/David Hume, edited by John Immerwahr. (Facsimile da edição de 1757 publicada por A. Millar, Thoemmes Press, 1995); 2. A Dissertation on the passions; The natural history of religion: a critical edition/David Hume; edited by Tom L. Beauchamp. (The Clarendon Edition of the Works of David Hume. Oxford: Oxford University Press, 2007); 3. The Complete Works of David Hume. 1882-1886, edited by Green T.H. & Grose, T. H. (Edição eletrônica in CD-ROM, Série “Past Masters”. Charlottesville: InteLex Corporation, 1992). A paginação entre // corresponde à paginação da edição de 1757, reproduzida na edição da Thoemmes Prees, 1995, editada por John Immerwahr.
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Quando um bem é certo ou muito provável, ele produz ALEGRIA. Quando um mal se encontra na mesma situação, surge a TRISTEZA ou o PESAR. Se tanto o bem como o mal são incertos, dão origem ao MEDO ou a ESPERANÇA, segundo o grau de incerteza esteja de um lado ou de outro. Do bem considerado em si mesmo surge o DESEJO, e do mal, a AVERSÃO. A VONTADE se exerce quando a presença do bem ou a ausência do mal podem ser alcançados por meio de alguma ação da mente ou do corpo. 3. Nenhuma dessas paixões parece encerrar alguma coisa curiosa ou digna de nota, exceto a esperança e o medo, que, por derivar-se da probabilidade de um bem ou mal qualquer, são paixões mistas que merecem nossa atenção. /123/ A probabilidade nasce de uma oposição de possibilidades ou de causas contrárias, o que não permite que a mente se decida por um dos lados, senão que é incessantemente movida de um para outro, e induzida num momento a considerar um objeto como existente, e num momento distinto como o contrário. A imaginação ou o entendimento, chame-se como se quiser, oscila entre os pontos de vista opostos e, ainda que talvez se incline mais frequentemente para um lado do que para o outro é impossível, devido a oposição de causas ou possibilidades, que repouse em algum deles. Os prós e contras da questão prevalecem alternadamente, e a mente, ao contemplar os objetos à luz de causas opostas, encontra tal contraposição que destrói toda certeza ou opinião estabelecida. Suponhamos, pois, que o objeto a respeito do qual temos dúvidas produz desejo ou aversão; é evidente que, segundo a mente se volte para um lado ou para outro, deverá sentir uma impressão momentânea de alegria ou de pesar. Um objeto cuja existência nós desejamos proporciona satisfação quando pensamos naquelas causas que o produzem e, pela mesma razão, suscita tristeza ou desagrado a partir da consideração oposta. Assim, da mesma maneira que o entendimento, /124/ em questões prováveis, se encontra dividido entre os pontos de vista contrários, o coração há de encontrar-se dividido entre emoções opostas. Assim sendo, se considerarmos a mente humana, observaremos que, no que diz respeito às paixões, ela não é similar a um instrumento de sopro, que, na execução de todas as notas, imediatamente deixa de produzir som
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quando cessa o sopro, mas antes se parece mais com um instrumento de cordas, no qual, depois de cada toque, as vibrações continuam mantendo algum som, que, gradual e insensivelmente diminui. A imaginação é extremamente rápida e ágil, mas as paixões, se comparadas, são lentas e obstinadas. Por esta razão, quando se apresenta algum objeto que oferece uma variedade de perspectivas a uma e emoções às outras, ainda que a imaginação possa mudar sua perspectiva com grande celeridade, cada toque não produzirá uma nota-paixão clara e distinta, mas uma paixão se encontrará sempre misturada e confundida com outra. Segundo a probabilidade se incline para o bem ou para o mal, predominará na composição a paixão da tristeza ou da alegria. E essas paixões, ao estarem misturadas por meio das /125/ perspectivas contrárias da imaginação, produzem por meio dessa união as paixões da esperança ou do medo. 4. Como esta teoria parece conter em si mesma sua própria evidência, seremos mais breves em nossas provas. As paixões do medo e da esperança podem nascer quando as possibilidades são iguais para os dois lados, e não se pode descobrir nenhuma vantagem de um sobre o outro. Mais ainda, nesta situação as paixões são as mais fortes, já que a mente tem menos base para repousar, e se vê agitada pela maior incerteza. Adicione-se um grau maior de probabilidade do lado da tristeza, e imediatamente se verá que essa paixão se difunde por toda composição e a tinge com as cores do medo. Aumente-se a probabilidade e, por conseguinte a tristeza, e o medo prevalecerá cada vez mais até que ao final se transforme insensivelmente, à medida que diminui continuamente a alegria, em pura tristeza. Uma vez que se chegue a esta situação, diminua-se a tristeza por uma operação contrária àquela pela qual ela foi aumentada, ou seja, diminuindo a probabilidade do lado da melancolia, e se verá como a paixão se aclara a cada momento, até que ela se converta insensivelmente em /126/ esperança, a qual se converte novamente, aos poucos, em alegria, à medida que se aumenta essa parte da composição por um aumento da probabilidade. Não constituem essas coisas provas evidentes de que as paixões do medo e da esperança são misturas de tristeza e de alegria, do mesmo modo que em óptica constitui uma prova de que um raio colorido de sol é um composto de outros dois que, passando através de um prisma, à medida que se diminui ou aumenta a quantidade de
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cada um deles, descobre-se que predomina proporcionalmente, mais ou menos, na composição? 5. Existem dois tipos de probabilidades: quando o objeto é em si mesmo incerto, e necessita ser determinado pelo acaso, ou quando, embora o objeto já seja certo, continua sendo incerto para o nosso juízo, que encontra várias provas e faz várias suposições em favor de cada aspecto da questão. Essas duas classes de probabilidades ocasionam medo e esperança, o que deve proceder dessa propriedade em que coincidem, ou seja, a incerteza e a instabilidade que proporcionam à paixão, por essa contraposição de perspectivas que é comum a ambas. /127/ 6. O que comumente causa esperança ou medo é um bem ou um mal prováveis, porque a probabilidade, ao produzir uma perspectiva inconstante e cambiante de um objeto, produz naturalmente uma similar mistura e incerteza das paixões. Mas podemos observar que, por mais que essa mistura possa ser produzida por outras causas, aparecerão as paixões do medo e da esperança, ainda que não haja probabilidade alguma. Um mal, concebido como apenas possível, às vezes produz medo, especialmente se o mal for muito grande. Um homem não pode pensar na dor e tortura extremas sem tremer, se ele corre o menor risco de padecê-las. A pouca probabilidade é compensada pela grandeza do mal. Mas até os males impossíveis produzem medo, como quando trememos à beira de um precipício, embora saibamos que estamos perfeitamente seguros, e que depende de nossa escolha dar um passo adiante. A presença imediata do mal influencia a imaginação e produz uma espécie de crença, mas opondo-se a ela a reflexão sobre a nossa segurança, essa crença é /128/ imediatamente rechaçada, e produz o mesmo tipo de paixão que quando, devido a uma oposição de possibilidades, se produzem paixões contrárias. Os males que são certos algumas vezes têm o mesmo efeito que os possíveis ou os impossíveis. Um homem em uma prisão segura, sem o menor meio de escapar, treme ante a ideia do potro, ao qual ele está condenado. Aqui o mal é em si mesmo fixo, mas a mente não tem coragem de fixar-se nele, e essa flutuação dá lugar a uma paixão de aparência semelhante ao medo. 7. Mas o medo ou a esperança aparecem não somente quando o bem ou o mal são incertos em relação à sua existência, mas também em
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relação à sua espécie. Se se dissesse a alguém que um dos seus filhos foi repentinamente morto, a paixão ocasionada por este acontecimento não se converteria em tristeza até que ele obtivesse certas informações sobre qual dos seus filhos ele havia perdido. Embora cada aspecto da questão produza aqui a mesma paixão, essa paixão não pode fixar-se, senão que recebe da imaginação, que é variável, um movimento trêmulo e inconstante, semelhante à mistura e combate entre a tristeza e a alegria. /129/ 8. Assim, todos os tipos de incerteza têm uma forte conexão com o medo, mesmo que não produzam nenhuma oposição de paixões, mediante as perspectivas opostas que nos apresentam. Se me afastasse de um amigo doente, me preocuparia mais com sua situação do que se estivesse presente, embora, talvez, eu não fosse apenas incapaz de lhe dar assistência, mas também de avaliar a sua doença. Há milhares de pequenas circunstâncias sobre sua situação e condição que desejaria conhecer, e o conhecimento delas impediria esta flutuação e incerteza tão intimamente unidas ao medo. HORÁCIO assinalou este fenômeno. Ut assidens implumibus pullis avis Serpentum allapsus timet, Magis relictis; non, ut adsit, auxili Latura plus praesentibus. 1 Uma virgem em sua noite de núpcias vai para a cama cheia de medo e apreensão, embora ela não espere nada mais do que prazer. A confusão de desejos e alegrias, a novidade e a grandeza do evento desconhecido, confundem de tal modo a mente que ela não sabe em que imagem ou paixão fixar-se. /130/ 9. No que diz respeito à mistura de afetos, podemos observar que, em geral, quando nascem paixões contrárias de objetos não conectados entre si de modo algum, estas tem lugar alternadamente. Assim, quando um homem se encontra magoado pela perda de um processo, e alegre pelo nascimento de um filho, a mente, que passa do objeto agradável para o objeto calamitoso, qualquer que seja a celeridade com que possa realizar este 1
HORÁCIO, Epodos, livro I, versos 19-22: “Tal como a ave que cuida de seus filhotes implumes teme mais o ataque sorrateiro das serpentes quando ela os deixa; embora se estivesse presente pouco poderia lhes auxiliar”.
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movimento, apenas pode moderar um afeto com outro, e permanece entre eles num estado de indiferença. Esta situação tranquila se alcança mais facilmente quando o mesmo evento é de natureza mista e contém algo adverso e algo favorável em suas diferentes circunstâncias. Porque, neste caso, ambas as paixões, misturandose uma à outra por meio da relação, tornam-se muitas vezes mutuamente destrutivas e deixam a mente em perfeita tranquilidade. Mas suponhamos que o objeto não é um composto de bem e mal, senão que é considerado como provável ou improvável em algum grau. Nesse caso as paixões contrárias estarão ambas presentes ao mesmo tempo na alma, e em vez de /131/ equilibrar-se e moderar-se uma à outra, subsistirão juntas, e mediante sua união produzirão uma terceira impressão ou afeto, tal como a esperança ou o medo. A influência das relações de ideias (que explicaremos mais detalhadamente depois) se vê claramente neste caso. No caso de paixões contrárias, se os objetos são totalmente diferentes, as paixões se parecem a dois licores contrários em garrafas diferentes que não têm nenhuma influência um sobre o outro. Se os objetos estão intimamente conectados, as paixões são como um alcalino e um ácido que, se são misturados, se destruem. Se a relação é mais imperfeita, e consiste em perspectivas contrárias do mesmo objeto, as paixões são como o azeite e o vinagre, que, apesar de misturados, nunca se unem e integram perfeitamente. O efeito de uma mistura de paixões em que uma delas é predominante e submete a outra será explicado mais adiante. Seção 2 /132/ 1. Além dessas paixões já mencionadas, que nascem de uma busca direta do bem e de uma aversão ao mal, há outras que tem uma natureza mais complicada e envolvem mais do que uma inspeção ou consideração. Assim, o orgulho consiste numa determinada satisfação com nós mesmos, por causa de algum talento ou posse de que desfrutamos. A humildade, por outro lado, é uma insatisfação com nós mesmos, por causa de algum defeito ou fraqueza. O amor ou a amizade é uma complacência diante do outro, em virtude de seus talentos ou favores. O ódio é o contrário.
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2. Nestes dois conjuntos de paixão há de se fazer uma óbvia distinção entre o objeto da paixão e sua causa. O objeto do orgulho e da humildade é o “eu”. A causa da paixão é alguma excelência no primeiro caso, algum defeito no segundo. O objeto do amor e do ódio é alguma outra pessoa. As causas, /133/ da mesma maneira, são excelências ou defeitos. No que diz respeito a todas essas paixões, as causas são aquilo que desperta a emoção; o objeto é aquilo para o qual a mente dirige sua visão quando a emoção é despertada. Nosso mérito, por exemplo, suscita orgulho, e é essencial para o orgulho voltar nossa visão sobre nós mesmos com complacência e satisfação. Ora, como as causas dessas paixões são muito numerosas e diversas, embora seu objeto seja uniforme e simples, pode ser um assunto curioso considerar qual é a circunstância em que todas essas diversas causas coincidem, ou, em outras palavras, qual é a verdadeira causa eficiente da paixão. Começaremos pelo orgulho e a humildade. 3. A fim de explicar as causas dessas paixões devemos refletir sobre certos princípios que, embora tenham uma poderosa influência sobre qualquer operação, tanto do entendimento como das paixões, os filósofos normalmente não insistem muitos sobre eles. O primeiro deles é a associação de ideias, ou o princípio pelo qual nós realizamos /134/ uma fácil transição de uma ideia para outra. Por mais incertos e inconstantes que possam ser nossos pensamentos, eles não mudam totalmente sem regra e método. Eles costumam passar com regularidade de um objeto para o que se lhe assemelha, é contíguo, ou produzido por ele * . Quando uma ideia se apresenta à imaginação, alguma outra, unida por essas relações, naturalmente a acompanha, e aparece com mais facilidade por meio dessa introdução. A segunda propriedade que se deve observar na mente humana é uma similar associação de impressões ou emoções. Todas as impressões semelhantes estão ligadas entre si, e assim que nasce uma, as demais se seguem naturalmente. A tristeza e a frustração dão lugar à raiva, a raiva à inveja, a inveja à maldade, e a maldade de novo à tristeza. Da mesma forma, o nosso temperamento, quando exaltado pela alegria, inclina-se *
Investigação sobre o entendimento humano, Seção III, Da associação de ideias.
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naturalmente para o amor, a generosidade, a coragem, o orgulho e outros afetos semelhantes. Em terceiro lugar, observa-se que esses dois tipos de associação auxiliam-se e /135/ favorecem-se mutuamente, e que a transição se realiza mais facilmente quando ambos coincidem no mesmo objeto. Assim, um homem que, devido a um insulto recebido de outro, se encontra com o ânimo muito alterado e irritado, é propenso a encontrar uma centena de motivos de ódio, descontentamento, impaciência, medo e outras paixões desagradáveis, especialmente se ele puder descobrir estes motivos na pessoa ou perto da pessoa que era o objeto da primeira emoção. Aqueles princípios que favorecem a transição de ideias, concorrem aqui com aqueles que operam sobre as paixões, e ambos, unidos numa ação, proporcionam à mente um duplo impulso. Sobre esta circunstância posso citar uma passagem de um escritor elegante, que se expressa da seguinte maneira: * “Da mesma maneira que a imaginação se deleita com qualquer coisa que seja grande, rara, ou maravilhosa, e se satisfaz ainda mais à medida que descobre essas perfeições no mesmo objeto, ela é capaz de receber nova satisfação pela concorrência de um outro sentido. Desse modo, qualquer som contínuo, como o canto dos pássaros, ou uma queda d’água, desperta em todo /136/ momento a mente do espectador e torna-o mais atento às diversas belezas do lugar que se estende diante dele. Assim, se surge uma fragrância de aromas e perfumes, estes aumentam o prazer da imaginação, e inclusive fazem as cores e o verdor da paisagem parecer mais agradáveis, pois as ideias de ambos os sentidos se favorecem umas às outras, e são bem mais agradáveis juntas do que quando entram na mente separadamente. Da mesma maneira, as diferentes cores de uma pintura, quando estão bem dispostas, realçam umas às outras, e recebem uma beleza adicional proveniente da vantagem da situação. Nestes fenômenos podemos observar a associação tanto de impressões como de ideias, bem como a assistência mútua que essas associações prestam umas às outras. 4. Parece-me que estas duas espécies de relação têm lugar na produção do orgulho e da humildade, e que são as causas reais e eficientes da paixão. *
ADDISON, Spectator, No. 412.
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Com respeito à primeira relação, a da ideias, não pode haver nenhuma dúvida. Qualquer coisa da qual tenhamos orgulho deve de alguma maneira nos /137/pertencer. Sempre é nosso conhecimento, nossa inteligência, beleza, posses, família, aquilo a partir do qual nos valorizamos. O “eu”, que é o objeto da paixão, deve além disso estar relacionado com essa qualidade ou circunstância, que causa a paixão. Deve haver entre eles uma conexão, uma fácil transição da imaginação, ou uma certa facilidade na concepção ao passar de um para a outra. Quando não há esta conexão, nenhum objeto pode suscitar orgulho ou humildade, e quanto mais fraca for a conexão, mais fraca será a paixão. 5. O único tema de investigação é se existe uma similar relação das impressões ou sentimentos cada vez que se sente orgulho ou humildade; se a circunstância que causa a paixão desperta previamente um sentimento similar à paixão e se há uma transição fácil de um para a outra. A emoção ou sentimento de orgulho é agradável, a de humildade, desagradável. Por conseguinte, uma sensação agradável está relacionada com a primeira, e uma desagradável com a última. E se descobrirmos, depois de um exame, que todo objeto que provoca orgulho, /138/ provoca também um prazer distinto, e que todo objeto que causa humildade, suscita da mesma maneira um desagrado distinto, deveremos conceder, nesse caso, que a presente teoria se encontra totalmente comprovada e verificada. A dupla relação de ideias e sentimentos será reconhecida como incontestável. 6. Começaremos com o mérito e demérito pessoal, as causas mais evidentes dessas paixões. Seria totalmente estranho ao nosso presente objetivo examinar o fundamento das distinções morais. É suficiente observar que a teoria precedente a respeito da origem das paixões pode ser defendida em qualquer hipótese. O sistema mais plausível que tem sido proposto para explicar a diferença entre vício e virtude é que, quer por uma constituição originária da natureza, quer por um sentido de interesse público ou privado, a mera visão ou contemplação de determinados caracteres produz desagrado, e a de outros, da mesma maneira, produz prazer. O desagrado e a satisfação produzidos no espectador são essenciais para o vício e a virtude. Aprovar um caráter é sentir um agrado diante de seu aparecimento. Desaprová-lo é sentir /139/ um desagrado. Por conseguinte, a dor e o prazer, ao ser de alguma maneira a principal fonte da censura ou do louvor, devem ser também a causa de todos os seus efeitos, e,
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conseqüentemente, a causa do orgulho e da humildade, que são os acompanhantes inevitáveis dessa distinção. Mas supondo que esta teoria da moral não seja aceita, é contudo evidente que a dor e o prazer, se não são as fontes das distinções morais, são de qualquer forma inseparáveis delas. Um caráter nobre e generoso proporciona uma satisfação inclusive numa visão geral, e quando apresentase a nós, ainda que seja apenas num poema ou numa fábula, nunca deixa de nos encantar e deleitar. Por outro lado, a crueldade e a deslealdade desagradam por sua própria natureza; e é impossível que nos reconciliemos com essas qualidades, quer estejam em nós mesmos, quer nos outros. A virtude, por conseguinte, produz sempre um prazer distinto do orgulho ou auto-satisfação que a acompanham. O vício, um desagrado distinto da humildade ou do remorso. Mas um conceito elevado ou baixo de nós mesmos não nasce só dessas qualidades da mente que, de acordo com os sistemas de ética comuns, tem sido definidas como elementos do dever moral, senão de qualquer /140/ outra que tem uma conexão com o prazer ou desprazer. Nada satisfaz mais a nossa vaidade do que o dom de agradar com o nosso engenho, bom humor, ou qualquer outro talento, e nada produz maior mortificação do que uma frustração em qualquer tentativa desse tipo. Ninguém jamais foi capaz de dizer com precisão o que é o engenho, nem mostrou por que tal sistema de pensamento deve ser incluído sob essa denominação, e tal outro não. Só pelo gosto podemos decidir sobre isso e não possuímos nenhum outro critério pelo qual possamos formar um juízo dessa natureza. Mas, o que é esse gosto do qual, de alguma maneira, o verdadeiro e o falso engenho recebem seu ser, e sem o qual nenhum pensamento tem direito a qualquer uma destas denominações? É simplesmente uma sensação de prazer proveniente do verdadeiro engenho, e de desgosto proveniente do falso, sem que possamos dizer as razões dessa satisfação ou desagrado. O poder de suscitar essas sensações opostas é, portanto, a própria essência do verdadeiro ou falso engenho, e, conseqüentemente, a causa dessa vaidade ou mortificação que nasce de um ou de outro. /141/ 7. A beleza de todos os tipos nos proporciona um peculiar deleite e satisfação, da mesma maneira como a deformidade produz desagrado, qualquer que seja o objeto em que possa encontra-se, quer seja
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observada num objeto animado ou inanimado. Se a beleza ou a deformidade pertencem ao nosso próprio rosto, figura ou pessoa, esse prazer ou desagrado se converte em orgulho ou humildade, pois tem neste caso todas as circunstâncias necessárias para produzir uma transição perfeita, de acordo com a presente teoria. Parece que a verdadeira essência da beleza consiste em seu poder de produzir prazer. Todos os seus efeitos, portanto, devem originar-se desta circunstância. E se a beleza é tão universalmente motivo de vaidade, deve-se apenas ao fato de ser causa de prazer. A respeito de todas as outras qualidades corporais, podemos observar em geral que tudo o que em nós é útil, belo, ou surpreendente, é objeto de orgulho; e o contrário, de humildade. Estas qualidades coincidem na produção de um prazer distinto, e não coincidem em nada mais. /142/ Temos orgulho das aventuras surpreendentes pelas quais passamos, das fugas que realizamos, dos perigos aos quais estivemos expostos, bem como dos nossos feitos surpreendentes de vigor e ação. Daí a origem das mentiras comuns, quando os homens, sem interesse algum, e simplesmente por vaidade, reunem uma série de acontecimentos extraordinários, que são ficções de sua mente, ou, se são verdadeiros, não têm nenhuma conexão com eles. Sua fecunda faculdade inventiva lhes proporciona uma variedade de aventuras, e quando lhes falta este talento, se apropriam das que pertencem aos demais, a fim de satisfazer a sua vaidade. Pois entre esta paixão e o sentimento de prazer, há sempre uma estreita conexão. 8. Mas, embora o orgulho e a humildade tenham como suas causas naturais e mais imediatas as qualidades de nossa mente e de nosso corpo, isto é, do “eu”, descobrimos por experiência que muitos outros objetos produzem esses afetos. Encontramos vaidade a respeito de casas, jardins, carruagens e outros objetos externos, assim como a respeito do mérito e talentos pessoais. Isso ocorre quando os objetos externos adquirem alguma relação particular com nós, /143/ e estão associados ou ligados a nós. Um belo peixe no oceano, um animal bem proporcionado numa floresta, e, na verdade, qualquer coisa que não nos pertence nem tem relação conosco, não tem nenhum tipo de influência sobre a nossa vaidade, independentemente das qualidades extraordinárias de que possam ser dotados, e por maior que seja o grau de surpresa e admiração que possam naturalmente ocasionar.
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Eles devem estar de algum modo ligados a nós para afetar o nosso orgulho. Sua ideia deve, de alguma maneira, depender da ideia de nós mesmos, e a transição de uma para a outra deve ser fácil e natural. Os homens tem orgulho da beleza do seu país, do seu condado, ou inclusive de sua paróquia. Aqui a ideia de beleza claramente produz um prazer. Este prazer está relacionado ao orgulho. O objeto ou causa desse prazer está, por suposição, relacionado ao “eu”, o objeto de orgulho. Por essa dupla relação de sentimentos e ideias se produz uma transição de um para o outro. Os homens também tem orgulho da agradável temperatura do clima no qual nasceram; da fertilidade de sua terra natal; da boa qualidade dos vinhos, das frutas, ou dos alimentos, produzidos por ela; da suavidade ou vigor de sua linguagem, entre /144/ outras particularidades dessa espécie. Esses objetos têm claramente uma referência aos prazeres dos sentidos, e são considerados originalmente como agradáveis ao tato, ao paladar, ou ao ouvido. Como poderiam tornar-se causa de orgulho a não ser por meio dessa transição acima explicada? Há alguns que revelam uma vaidade de um tipo oposto, e afetam depreciar seu próprio país, comparando-o com aqueles para onde viajaram. Essas pessoas acham, quando estão em seu próprio país, e cercadas por seus compatriotas, que a relação estreita entre eles e sua própria nação, compartilhada por muitos, está de alguma maneira perdida para eles, ao passo que, a relação distante com um país estrangeiro, que nasceu por eles o terem visitado e vivido nele, aumenta pela consideração de quão poucos fizeram o mesmo. Por esta razão, eles sempre admiram a beleza, a utilidade e a raridade do que eles encontraram no exterior, mais do que o que eles encontram em casa. Uma vez que podemos ter orgulho de um país, de um clima ou de qualquer objeto inanimado que tem uma relação conosco, não é de admirar que tenhamos orgulho das qualidades daqueles que estão relacionados conosco por /145/ laços de sangue ou de amizade. De acordo com isso, descobrimos que qualquer qualidade que, quando pertence a nós mesmos, produz orgulho, produz também, em menor grau, o mesmo afeto quando é descoberta nas pessoas que se ralacionam conosco. A beleza, maneiras, mérito, reputação e honras de seus parentes são cuidadosamente exibidos pelo orgulhoso, e são fontes importantes de sua vaidade.
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Como nos orgulhamos das riquezas que temos, desejamos, a fim de satisfazer nossa vaidade, que todas aquelas pessoas que tem alguma relação conosco igualmente as possuam, e nos envergonhamos delas quando, entre nossos amigos e parentes, elas são humildes ou pobres. Como consideramos que nossos antepassados são nossos parentes mais próximos, presumimos naturalmente ser de uma boa família e descendentes de uma longa sucessão de antepassados ricos e honrados. Aqueles que se vangloriam da antiguidade de suas famílias alegramse quando podem unir a esta circunstância a de que os seus antepassados, durante muitas gerações, foram proprietários permanentes das mesmas terras, e que sua família nunca mudou de propriedade ou para algum outro condado ou província. É um motivo /146/ adicional de vaidade quando eles podem se orgulhar de que esses bens foram transmitidos por herança a seus descendentes, compostos inteiramente de homens, e que os títulos e propriedades nunca passaram pelas mãos de alguma mulher. Esforçar-me-ei para explicar esse fenômeno a partir da teoria precedente. Quando alguém atribui grande valor a si mesmo com base na antiguidade da sua família, o motivo de sua vaidade não é apenas a extensão do tempo e o número de ancestrais (pois a este respeito todos os homens são iguais), mas essas circunstâncias, unidas à riqueza e o prestígio de seus antepassados, que se supõe que dão brilho a alguém devido a sua ligação com eles. Por conseguinte, uma vez que a paixão depende da conexão, tudo aquilo que fortalece a conexão também deve aumentar a paixão, e tudo aquilo que enfraquece a conexão deve diminuir a paixão. Mas é evidente que a igualdade das posses deve fortalecer a relação de ideias que nasce das relações sanguíneas e de parentesco, e transportar a imaginação com maior facilidade de uma geração para outra; desde os mais remotos antepassados até seus descendentes, que são tanto seus herdeiros como seus descendentes. Graças a este mecanismo o sentimento é transmitido mais completo e desperta um maior grau de orgulho e vaidade. /147/ A mesma coisa acontece com a transmissão dos títulos e propriedades, através de uma sucessão de homens, sem passar pelas mãos de nenhuma mulher. É uma qualidade manifesta da natureza humana que a imaginação se dirige naturalmente para tudo o que é importante e digno de consideração, e quando dois objetos são apresentados, um pequeno e um grande, ela normalmente deixa o primeiro e se detém inteiramente no
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segundo. Esta é a razão pela qual as crianças geralmente levam o nome de seu pai e são consideradas de cunho mais nobre ou mais humilde de acordo com a sua família. E, ainda que a mãe fosse dotada de qualidades superiores às do pai, como muitas vezes acontece, prevalecerá a regra geral , não obstante a exceção, de acordo com a doutrina, que será explicada mais adiante. Não somente isso mas inclusive quando uma superioridade de alguma espécie é muito grande, ou quando qualquer outra causa têm tal efeito, que faz com que as crianças representem mais a família da mãe que a do pai, a regra geral ainda mantém uma eficácia suficiente para enfraquecer a relação e provocar uma espécie de quebra na linhagem de ancestrais. A imaginação não os segue com a mesma facilidade, nem é capaz de transferir a reputação e o prestígio dos antepassados aos seus descendentes de mesmo nome e família com a mesma facilidade como quando a /148/ transição está de acordo com a regra geral e passa pela linhagem masculina, de pai para filho, ou de irmão para irmão. 9. Mas a propriedade, na medida em que dá o máximo poder e autoridade sobre qualquer objeto, é a relação que tem maior influência sobre essas paixões * . Tudo que pertence a um homem vaidoso é o melhor que pode encontrar-se. Suas casas, carruagens, móveis, roupas, cavalos, cães, se sobressaem a todos os outros em seu conceito; e é fácil observar que, a partir da menor vantagem em qualquer dessas coisas ele extrai um novo motivo de orgulho e vaidade. Seu vinho, a acreditar no que ele diz, tem um sabor mais *
Que a propriedade é uma espécie de relação que produz uma conexão entre a pessoa e o objeto é evidente. A imaginação passa de maneira natural e facilmente da consideração de um campo para o da pessoa a quem ele pertence. Pode-se apenas perguntar, como esta relação pode resolver-se numa alguma destas três, isto é, causação, contigüidade e semelhança, que afirmamos que são os únicos princípios de conexão entre as ideias. Ser o proprietário de alguma coisa é ser a única pessoa que, pelas leis da sociedade, tem direito de dispor dela, e usufruir de seus benefícios. Este direito tem ao menos a tendência a estimular a pessoa a exercê-lo, e de fato comumente proporciona-lhe esta vantagem. Pois os direitos que não têm qualquer influência, e nunca são exercidos, não são direitos de modo algum. Agora, uma pessoa que dispõe de um objeto, e obtém benefícios dele, produz ou pode produzir efeitos sobre ele ou é afetado por ele. Por conseguinte, a propriedade é uma espécie de causação. Ela permite que a pessoa produza alterações no objeto, e supõe que sua condição é melhorada e alterada por ele. Na verdade, esta é a relação mais interessante de todas, e ocorre com maior freqüência para a mente. [Esta nota foi acrescentada na Edição N.]
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fino que qualquer outro; sua culinária é mais requintada; sua mesa, mais organizada; seus criados, mais hábeis; a ar em que ele vive, mais saudável; o solo que cultiva, mais fértil; seus frutos amadurecem mais cedo, e de forma mais perfeita; tal coisa é notável por sua novidade; tal outra, por sua antiguidade; esta é a obra de um artista famoso; aquela pertenceu outrora a um certo príncipe ou homem importante. Em suma, todos os objetos /149/ úteis, belos ou surpreendentes, ou que estão relacionados com estes podem dar origem a essa paixão por meio da propriedade. Todos eles coincidem em que dão prazer. Só isto é comum a eles, e, portanto, deve ser a qualidade que produz a paixão, que é o seu efeito comum. Como todo novo exemplo constitui um novo argumento a favor, e aqui os exemplos são inumeráveis, parece que esta teoria está suficientemente confirmada pela experiência. A riqueza implica o poder de adquirir tudo aquilo que é agradável, e como ela inclui muitos objetos particulares de vaidade, constitui necessariamente uma das principais causas dessa paixão. 10. Nossas opiniões de todos os tipos são fortemente influenciadas pela sociedade e pela simpatia, e é quase impossível sustentarmos qualquer princípio ou sentimento contra o consentimento universal de todos aqueles com quem temos alguma amizade ou correspondência. Mas de todas as nossas opiniões, aquelas que formamos em nosso favor, por mais elevadas ou presunçosas que sejam, são, na realidade, as mais frágeis e as mais facilmente abaladas pela contradição /150/ e oposição dos outros. Neste caso, nossa grande preocupação logo nos alarma e mantém nossas paixões vigilantes. Nossa consciência da parcialidade nos faz temer um erro, e a grande dificuldade de julgar um objeto que nunca se situa a uma devida distância de nós, nem é visto de um ponto de vista adequado, faz-nos ouvir ansiosamente as opiniões dos outros, que são mais qualificados para emitir opiniões justas a nosso respeito. Daí esse grande desejo de fama que todos os homens possuem. Buscam os aplausos dos outros para estabelecer e confirmar a opinião favorável sobre si próprios, não por causa de alguma paixão original. E quando um homem deseja ser elogiado é pela mesma razão pela qual uma mulher bela se satisfaz contemplando-se num espelho favorável, e vendo o reflexo de seus próprios encantos. Embora em todas as questões especulativas seja difícil distinguir uma causa que aumenta um efeito de uma que apenas o produz, contudo,
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no presente caso, os fenômenos parecem muito fortes e satisfatórios na confirmação do princípio precedente. /151/ Obtemos muito mais satisfação com a aprovação daqueles a quem nós mesmos estimamos e aprovamos do que com a daqueles a quem nós desdenhamos e desprezamos. Quando se obtém reconhecimento após uma longa convivência íntima, isso satisfaz a nossa vaidade de uma maneira peculiar. A aprovação daqueles que são reservados e relutantes em fazer elogios, quando podemos obtê-la em nosso favor, é acompanhada de um prazer e gozo adicional. Quando um grande homem é cuidadoso na escolha de seus favoritos, todos procuraram com uma maior ardor sua graça e proteção. O elogio nunca nos proporciona muito prazer, a menos que coincida com a nossa própria opinião e nos exalte por causa daquelas qualidades pelas quais nos sobressaimos. Estes fenômenos parecem provar que as opiniões favoráveis do público são consideradas só como autorizações ou como confirmações de nossa própria opinião. E se as opiniões dos outros têm mais influência nesta matéria do que em qualquer outra, isso se /152/ explica facilmente pela natureza do assunto. 11. Assim, poucos objetos, por mais relacionados conosco, e seja qual for o prazer que eles produzem, são capazes de suscitar um alto grau de orgulho e auto-satisfação; a não ser que sejam também manifestos para os outros, e alcancem a aprovação dos espectadores. Que disposição de ânimo é tão desejável como o contentamento calmo e resignado, que prontamente se submete a todos os desígnios da providência e preserva uma constante serenidade entre as maiores desgraças e desilusões? Contudo, esta disposição, ainda que se reconheça que é uma virtude ou excelência, raramente constitui o fundamento de uma grande vaidade ou auto-elogio. Ela não possui nenhum brilho ou explendor exterior, e alegra mais o coração do que anima o comportamento e a conversação. O mesmo ocorre com muitas outras qualidades da mente, corpo, ou fortuna, e deve-se considerar que esta circunstância, bem como a dupla relação acima mencionada, tem importância para a produção destas paixões. Uma segunda circunstância que tem importância neste caso é a constância e durabilidade /153/ do objeto. O que é muito irregular e
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inconstante, e está fora do curso normal das coisas humanas, proporciona pouca alegria, e menos orgulho. Não ficamos muito satisfeitos com a coisa em si mesma, e somos todavia menos capazes de sentir algum grau novo de auto-satisfação por sua causa. Prevemos e antecipamos a sua mudança, o que nos torna pouco satisfeitos com a própria coisa. Nós a comparamos com nós mesmos, cuja existência é mais duradoura, por meio do que sua inconstância parece ainda maior. Parece ridículo nos convertermos no objeto de uma paixão por causa de uma qualidade ou posse que tem uma duração muito curta e que nos acompanha durante uma parte tão breve de nossa existência. Uma terceira circunstância, que não deve ser negligenciada, é que os objetos, a fim de produzir orgulho ou autoapreço, devem ser exclusivamente nossos ou pelo menos comuns a nós e a poucos. As vantagens da luz do sol, do tempo bom, de um clima agradável, etc. não nos distinguem de nenhum dos nossos companheiros, nem nos dão nenhuma preferência ou superioridade. A comparação, que a todo momento estamos dispostos a fazer, não apresenta nenhuma inferência em nosso favor, e ainda permanecemos, não obstante essas /154/ posses, no mesmo nível que todos os nossos amigos e conhecidos. Como a saúde e a doença variam incessantemente em todos os homens, e não há ninguém que permaneça de maneira única e segura em uma das duas, essas bênçãos e calamidades acidentais são de alguma maneira independentes de nós, e não são consideradas como um motivo de vaidade ou humilhação. Mas sempre que uma doença de alguma espécie está tão enraizada em nossa constituição, que já não nutrimos qualquer esperança de recuperação, a partir desse momento ela amortece o nosso orgulho, como é evidente em homens idosos, a quem nada mortifica mais que a consideração de sua idade e enfermidades. Eles se esforçam por ocultar tanto quanto possível sua cegueira e surdez, seus reumatismos e gota; e só os confessam com relutância e com desagrado. E embora os jovens não tenham vergonha de cada dor de cabeça ou resfriado que têm, contudo, nenhum assunto é mais adequado para mortificar o orgulho humano, e fazer-nos nutrir uma opinião ruim de nossa natureza, do que o de que estamos a cada momento de nossas vidas sujeitos a essas enfermidades. Isso prova que as dores físicas e as doenças são, em si mesmas, causas próprias de humildade, embora o costume de julgar as coisas por comparação mais que por seu mérito e
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/155/ valor intrínseco, nos faça esquecer essas calamidades que descobrimos que ocorrem a todos, e nos leva a formar uma ideia de nosso mérito e caráter, independente delas. Temos vergonha das doenças que afetam os outros e são perigosas ou desagradáveis a eles. Da epilepsia, porque ocasiona horror a todos os presentes. Da sarna, porque é contagiosa. Da escrófula, porque muitas vezes passa para os descendentes. Os homens sempre consideram os sentimentos dos outros em seus juízos sobre si mesmos. Uma quarta circunstância, que tem uma influência sobre essas paixões, é a das regras gerais através das quais formamos uma noção das diferentes classes de homens, de acordo com o poder ou a riqueza que eles possuem; e esta noção não é modificada por nenhuma peculiaridade de saúde ou temperamento das pessoas que podem privá-las de todo o gozo de suas posses. O costume facilmente nos transporta para além dos limites razoáveis de nossas paixões, bem como de nossos raciocínios. Não seria inoportuno observar neste momento que a influência das regras e máximas /156/ gerais sobre as paixões contribui muito para facilitar os efeitos de todos os princípios ou mecanismos internos que explicamos aqui. Pois parece evidente que, se uma pessoa adulta, e da mesma natureza que a nossa, fosse transportada repentinamente para o nosso mundo, ela se sentiria muito desconcertada com cada objeto, e não determinaria com rapidez que grau de amor ou ódio, de orgulho ou humildade, ou de qualquer outra paixão, deveria ser despertado pelo objeto em questão. As paixões muitas vezes são alteradas por princípios insignificantes, e estes nem sempre atuam com perfeita regularidade, especialmente na primeira tentativa. Mas quando o costume ou a prática tiver trazido à luz todos esses princípios, e estabelecido o valor justo de cada coisa, isto deve contribuir, certamente, para a fácil produção das paixões, e deve guiar-nos, por meio de regras gerais estabelecidas, a propósito das proporções que devemos observar ao preferir um objeto a outro. Essa observação talvez possa servir para evitar dificuldades que surgem sobre algumas causas que temos atribuído às paixões particulares e que podem ser consideradas muito sofisticadas para funcionar de forma universal e, certamente, como achamos que o fazem. Seção 3
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/157/ 1. Ao tratar todas as causas que produzem a paixão de orgulho ou de humildade, poderia facilmente ocorrer que a mesma circunstância, se a transferimos de nós mesmos para outra pessoa, transforme esta em objeto de amor ou ódio, estima ou desprezo. A virtude, o gênio, a beleza, a família, as riquezas e o poder dos outros geram sentimentos favoráveis a seu favor, e seus vícios, loucura, deformidade, pobreza e humildade despertam os sentimentos contrários. A dupla relação de impressões e ideias segue operando sobre essas paixões de amor e ódio, como na anterior de orgulho e humildade. Tudo aquilo que proporciona um prazer ou uma dor distinta, e que está relacionado com outra pessoa ou conectado com ela, converte-se em objeto de nossa afeição ou aversão. Daí também que a ofensa ou o desprezo em relação a nós seja uma das maiores fontes de ódio, e os favores ou o apreço, de amizade. /158/ 2. Algumas vezes uma relação conosco suscita afeição por outra pessoa. Mas aqui sempre se encontra implícita uma relação de sentimentos, sem a qual a outra relação não teria nenhuma influência 2 . Uma pessoa que se relaciona ou está conectada conosco pelo sangue, pela semelhança de fortuna, de aventuras, profissão, ou país, converte-se logo numa companhia agradável para nós, porque penetramos com facilidade e de maneira familiar em seus sentimentos e ideias. Nada nos é estranho ou novo. A nossa imaginação, ao passar pelo “eu”, que nos é sempre intimamente presente, recorre suavemente à relação ou conexão, e concebe com uma simpatia plena a pessoa, que se relaciona de perto com o “eu”. Ela se torna imediatamente aceitável, e ao mesmo tempo se encontra em boas relações conosco. Não existe nenhum receio, nenhuma reserva, quando se supõe que a pessoa que se apresenta está tão intimamente conectada conosco. A relação tem aqui a mesma influência na produção do afeto que o costume ou a familiaridade, ou /159/ outras causas semelhantes. A facilidade e satisfação que, em ambos os casos, acompanham as nossas relações e comércio, é a fonte da amizade. 3. As paixões do amor e ódio sempre são seguidas pela benevolência e pela raiva, ou melhor, encontram-se conjugadas com estas. É esta conjunção o que distingue principalmente esses afetos do orgulho e da 2
A afeição dos pais pelos filhos parece fundada num instinto originário. A afeição por outros parentes depende dos princípios aqui explicados.
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humildade. Pois o orgulho e a humildade são emoções puras da alma, desacompanhadas de qualquer desejo, e que não nos incitam imediatamente à ação. Mas o amor e o ódio não são completos em si mesmos, nem se detém nesta emoção que produzem, senão que levam a mente a algo mais. O amor é seguido sempre de um desejo de felicidade da pessoa amada, e uma aversão à sua miséria. Do mesmo modo, o ódio produz um desejo de miséria da pessoa odiada, e uma aversão à sua felicidade. Estes desejos opostos parecem estar originariamente e primariamente unidos às paixões do amor e do ódio. Trata-se de uma constituição da natureza, da qual não podemos dar nenhuma explicação adicional. /160/ 4. A compaixão aparece frequentemente onde não há nenhuma estima ou amizade anterior, e a compaixão é um malestar diante dos sofrimentos do outro. Ela parece nascer da concepção profunda e intensa de seus sofrimentos, e nossa imaginação procede por graus, desde a ideia mais vívida até o sentimento real da miséria do outro. A maldade e a inveja também surgem na mente sem qualquer ódio ou ofensas prévios, embora sua tendência seja exatamente a mesma que a da raiva e do rancor. Nossa comparação com os outros parece ser a fonte da inveja e da maldade. Quanto mais infeliz é o outro, mais felizes aparecemos em nosso próprio conceito. 5. A tendência similar da compaixão e da benevolência, e da inveja e da raiva, estabelecem uma relação muito estreita entre estes dois conjuntos de paixões, embora de uma espécie diferente daquela sobre a qual insistimos acima. Não é uma semelhança de sensação ou sentimento, mas uma semelhança de tendência ou direção. Contudo, seu efeito é o mesmo ao produzir uma associação de paixões. A compaixão /161/ raramente ou nunca é sentida sem alguma mistura de ternura ou de amizade, e a inveja é naturalmente acompanhada pela raiva ou pelo rancor. Desejar a felicidade do outro, seja pelo motivo que for, é um bom preparativo para a afeição, e comprazer-se com a miséria do outro quase que inevitavelmente engendra aversão por ele. Mesmo quando o interesse é a fonte da nossas preocupações, ele comumente é acompanhado das mesmas conseqüências. Um sócio é um objeto natural de amizade; um concorrente, de inimizade. 6. A pobreza, a humildade e o fracasso, produzem desprezo e desagrado. Mas quando esses infortúnios são muito grandes, ou nos são
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representados em cores muito vivas, despertam compaixão, ternura, e amizade. Como se pode explicar esta contradição? A pobreza e a humildade do outro, em seu aspecto comum, nos proporcionam desagrado por uma espécie de simpatia imperfeita, e esse desagrado produz aversão ou desgosto, a partir da semelhança dos sentimentos. Mas quando penetramos de maneira mais íntima nos interesses do outro, e desejamos sua felicidade tanto como sentimos a sua /162/ miséria, surgem a amizade ou a benevolência a partir da similar tendência das inclinações. [Um homem arruinado, a princípio, enquanto a ideia de sua desgraça é nova e recente, e enquanto a comparação de sua infeliz situação presente com sua prosperidade anterior atua com força sobre nós, encontra compaixão e amizade. Depois que essas ideias se debilitam ou se apagam com o tempo, ele está em perigo de ser compadecido e desprezado] 3 . 7. No respeito há uma mistura de humildade com estima ou afeição. No desprezo uma mistura de orgulho. A paixão amorosa é composta normalmente de uma complacência na beleza, um desejo físico, e de amizade ou afeição. A estreita relação desses sentimentos é muito óbvia, tanto como a origem de uns a partir de outros por meio dessa relação. Se não houvesse nenhum outro fenômeno para nos convencer da presente teoria, parece-me que só este já seria suficiente. Seção 4 /163/ 1. A presente teoria das paixões depende inteiramente da dupla relação de sentimentos e ideias, e da assistência recíproca que essas relações prestam umas às outras. Por conseguinte, pode não ser inoportuno ilustrar estes princípios com mais alguns exemplos. 2. As virtudes, os talentos, os dotes e as propriedades dos outros, nos fazem amá-los e estimá-los. Porque estes objetos produzem uma sensação agradável, que está relacionada com o amor, e, como eles têm também uma relação ou conexão com a pessoa, esta união de ideias favorece a união de sentimentos, de acordo com o raciocínio precedente. Mas suponhamos que a pessoa a quem amamos também se relaciona conosco pelo sangue, país, ou amizade. É evidente que uma espécie de orgulho deverá ser despertada por seus dotes e propriedades, 3
Este parágrafo foi acrescentado na Edição R.
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havendo assim a mesma dupla relação, sobre a qual temos todo o tempo insistido. A pessoa relaciona-se conosco, ou há /164/ uma fácil transição de pensamento dela para nós, e os sentimentos provocados por suas vantagens e virtudes são agradáveis e, conseqüentemente, relacionados com o orgulho. De acordo com isso, descobrimos que as pessoas naturalmente se orgulham das boas qualidades ou grande fortuna de seus amigos e conterrâneos. 3. Mas observa-se que, se invertermos a ordem das paixões, não se segue o mesmo efeito. Passamos facilmente do amor e do afeto para o orgulho e a vaidade, mas não das últimas paixões para as primeiras, embora todas as relações sejam as mesmas. Nós não amamos aqueles que têm relação conosco por causa de nossos próprios méritos, embora eles naturalmente tenham orgulho de nossos méritos. Qual é a razão desta diferença? A transição da imaginação para nós mesmos, a partir de objetos relacionados conosco, é sempre fácil, não só por causa da relação, que facilita a transição, senão também porque passamos de objetos mais remotos para aqueles que são contíguos. Mas ao passar de nós mesmos para os objetos relacionados conosco, embora o primeiro princípio favoreça a transição do pensamento, o último, contudo, se opõe a ela, e, conseqüentemente, não há a mesma transição /165/ fácil das paixões de orgulho para a do amor como a do amor para a de orgulho. 4. As virtudes, os préstimos e a fortuna de um homem nos inspiram facilmente estima e afeição por outra pessoa que se relaciona com ele. O filho do nosso amigo obtém, naturalmente, direito a nossa amizade. Os parentes de um homem importante aumentam de apreço a seus próprios olhos, e são valorizados pelos demais, devido a essa relação. A força da dupla relação se mostra aqui de forma muito clara. 5. Os exemplos seguintes são de outro tipo, em que a operação desses princípios pode, não obstante, ser descoberta. A inveja nasce de uma superioridade nos outros. Todavia, observa-se que não é a grande desproporção entre nós o que desperta esta paixão, mas, pelo contrário, a nossa proximidade. Uma grande desproporção interrompe a relação das ideias, e impede de nos comparamos com o que está distante de nós, ou diminui os efeitos da comparação. Um poeta não pode invejar um filósofo, ou um poeta de um genero diferente, ou de uma nação /166/ e épocas diferentes. Todas essas
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diferenças, se elas não impedem, ao menos enfraquecem a comparação e, consequentemente, a paixão. Esta é também a razão pela qual todos os objetos parecem grandes ou pequenos, simplesmente por comparação com os da mesma espécie. Uma montanha nunca aumenta nem diminui um cavalo a nossos olhos. Mas quando um cavalo FLAMENGO e um GALÊS são vistos juntos, um parece maior e o outro menor do que quando vistos separados. A partir deste mesmo princípio podemos explicar esta observação dos historiadores segundo a qual numa guerra civil todo partido ou inclusive uma divisão sediciosa escolhe sempre recorrer a um inimigo externo com todos os perigos que isso implica ao invés de submeter-se a seus concidadãos. GUICCIARDIN aplica esta observação às guerras na ITÁLIA, onde as relações entre os diferentes estados não eram, propriamente falando, senão de nome, de língua e de contigüidade. Mas inclusive essas relações, quando se unem à superioridade, ao tornar a comparação mais natural, de algum modo a tornam mais dolorosa, e obrigam os homens a buscar alguma outra superioridade, que pode não estar acompanhada de nenhuma relação, e, por esse meio, pode ter menor influência sobre a /167/ imaginação. Quando não podemos romper a associação, sentimos um forte desejo de destruir a superioridade. Esta parece ser a razão pela qual os viajantes, embora geralmente pródigos em elogiar os CHINESES e aos PERSAS, tomam cuidado ao desprezar as nações vizinhas que podem estar em condições de rivalizar com seu país natal. 6. As belas artes nos proporcionam exemplos idênticos. Se um autor compusesse um tratado do qual uma parte fosse grave e profunda, outra alegre e bem-humorada, todos condenariam uma mistura tão estranha e o censurariam por negligenciar todas as regras da arte e da crítica. No entanto, não acusamos Prior 4 por ter reunido seus poemas Alma e Salomão no mesmo volume, embora este amável poeta tenha sido perfeitamente bem sucedido com a alegria de um tanto como com a melancolia do outro. Mesmo supondo que o leitor lesse atentamente essas duas composições sem qualquer intervalo, ele sentiria pouca ou nenhuma dificuldade na mudança das paixões. Por que senão porque ele considera que essas realizações são
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Mattew Prior (1664-1721), poeta inglês.
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totalmente diferentes, e porque essa ruptura de ideias rompe o progresso /168/ dos afetos e impede um de influenciar ou contradizer o outro? Um desenho heróico e burlesco, unido numa pintura seria monstruoso; contudo, colocamos dois quadros de natureza tão opostos na mesma sala, e inclusive próximos um do outro, sem qualquer escrúpulo. 7. Não é de admirar que a transição fácil da imaginação tenha uma influência tão grande sobre todas as paixões. É esta mesma circunstância a que constitui todas as relações e conexões entre objetos. Não conhecemos nenhuma conexão real entre uma coisa e outra. Sabemos apenas que a ideia de uma coisa está associada com a de outra, e que a imaginação faz uma transição fácil entre elas. E como a transição fácil das ideias e a dos sentimentos assistem-se mutuamente, podemos esperar, de antemão, que este princípio deve ter uma poderosa influência sobre todos os nossos movimentos internos e afetos. E a experiência confirma suficientemente esta teoria. /169/ Suponhamos, para não repetir todos os exemplos anteriores, que eu estivesse viajando com um companheiro por um país, a respeito do qual somos completamente estranhos. É evidente que se as paisagens são belas, os caminhos agradáveis e os campos perfeitamente cultivados, isto pode servir para me colocar de bom humor comigo mesmo e com o companheiro de viagem. Mas como o país não tem nenhuma conexão comigo ou com meu amigo, nunca pode ser a causa imediata seja de autoestima ou de consideração em relação a ele, e, por conseguinte, se não encontro a paixão em algum outro objeto que tenha uma relação mais estreita com um de nós, minhas emoções deverão ser consideradas mais como a efusão de uma disposição humana ou elevada que uma paixão estabelecida. Mas suponhamos que a agradável perspectiva diante de nós seja contemplada em seu país ou no meu. Esta nova conexão de ideias proporciona uma nova direção ao sentimento de prazer derivado desta perspectiva e suscita a emoção da estima ou da vaidade, conforme a natureza da conexão. Parece-me que não há aqui muito espaço para dúvidas ou dificuldades. Seção 5 /170/ 1. Parece evidente que a razão, em sentido estrito, como significando o discernimento da verdade e da falsidade, não pode por si
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mesma ser um motivo para a vontade, e não tem nenhuma influência sobre esta senão na medida em que ela toca alguma paixão ou afeto. Relações abstratas de ideias são objetos de curiosidade, não de volição. E questões fato, caso não sejam sobre o bem e o mal, nem despertam desejo ou aversão, são totalmente indiferentes, e, quer sejam conhecidas ou desconhecidas, quer apreendidas errônea ou corretamente, não podem ser consideradas como motivos para a ação. 2. O que comumente, num sentido popular, é chamado de razão e se recomenda tanto nos discursos morais nada mais é que uma paixão geral e calma, que adota uma visão compreensiva e distante de seu objeto, e influencia a vontade sem despertar qualquer emoção perceptível. Dizemos que um homem é diligente em sua profissão por causa da razão, isto é, por causa de um desejo calmo de riqueza e de fortuna. Um homem adere à justiça por causa da razão, /171/ isto é, por causa de uma calma consideração pelo bem público ou pelo próprio caráter. 3. Os mesmos objetos que se recomendam à razão neste sentido da palavra são também os objetos do que chamamos de paixão, quando eles são trazidos para perto de nós e adquirem algumas outras vantagens, seja pela situação externa, seja pela congruidade com nosso temperamento interno, suscitando por este meio uma emoção turbulenta e perceptível. O mal, a uma grande distância, é evitado, dizemos, pela razão. O mal, quando está próximo, produz aversão, horror, medo, e é objeto de paixão. 4. O erro comum dos metafísicos tem sido o de atribuir a direção da vontade inteiramente a um desses princípios e supor que o outro não tem nenhuma influência. Os homens com frequencia agem intencionalmente contra seus interesses. Por conseguinte, não é a perspectiva do maior bem possível que sempre os influencia. Os homens muitas vezes contrariam uma paixão violenta em consideração aos seus interesses e desígnios mais distantes. Portanto, não é só a precupação presente o que os determina. /172/ Em geral, podemos observar que ambos os princípios influenciam a vontade, e quando são contrários prevalece um deles, de acordo com o caráter geral da pessoa ou de sua disposição no momento. O que chamamos de força de ânimo implica o predomínio das paixões calmas sobre as violentas, embora possamos observar facilmente que não há nenhuma pessoa que possua tal virtude de uma maneira tão constante a ponto de nunca se deixar levar pelos desejos e afetos violentos.
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Dessas diferenças de temperamento decorre a grande dificuldade de decidir sobre as ações futuras e resoluções dos homens, quando há alguma oposição de motivos e paixões. Seção 6 /173/ 1. Enumeraremos aqui algumas das circunstâncias que tornam uma paixão calma ou violenta, que aumentam ou diminuem qualquer emoção. É uma propriedade da natureza humana que qualquer emoção que acompanha uma paixão se converte facilmente nela, embora suas naturezas sejam originalmente diferentes e até mesmo contrárias uma à outra. É verdade que para gerar uma união perfeita entre as paixões e fazer com que uma produza a outra se requer sempre uma dupla relação, de acordo com a teoria acima exposta. Mas quando duas paixões, produzidas por causas distintas, já estão presentes na mente, elas se misturam e se unem rapidamente, ainda que não tenham senão uma relação, e às vezes nenhuma. A paixão predominante sobrepuja a inferior e a converte a ela mesma. Os espíritos, uma vez excitados, facilmente sofrem uma mudança em sua direção e é natural imaginar que essa mudança procede do afeto predominante. Em muitos casos, /174/ a conexão entre duas paixões é mais estreita do que entre uma paixão qualquer e a indiferença. Quando uma pessoa está sinceramente apaixonada as pequenas faltas e caprichos de sua amada, os ciúmes e as brigas aos quais a relação é tão suscetível, por mais desagradáveis que sejam e por mais ligados que estejam à raiva e ao ódio, em muitos casos, contudo, descobre-se que dão uma força adicional à paixão predominante. É um artifício comum dos políticos, quando querem afetar muito qualquer pessoa com uma questão de fato sobre a qual pretendem lhe informar, primeiro excitarem a sua curiosidade, retardar o máximo possível a sua satisfação, e, por esse meio, aumentar ao máximo a sua ansiedade e impaciência, antes de proporcionarem-lhe uma visão completa sobre o assunto. Eles sabem que a curiosidade causa a paixão que eles pretendem criar e que acompanhara o objeto em sua influência sobre a mente. Um soldado que avança para a batalha é naturalmente inspirado pela coragem e confiança quando pensa em seus amigos e companheiros de armas, e é assaltado pelo medo e pelo terror quando pensa no inimigo. Portanto, seja qual for a emoção nova que
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surja do primeiro pensamento, naturalmente aumenta /175/ a coragem, ao passo que a mesma emoção que surge do segundo aumenta o medo. Assim, na disciplina militar, a uniformidade e o brilho do uniforme, a simetria das figuras e dos movimentos, com toda a pompa e majestade da guerra, encoraja a nós mesmos e aos nossos aliados, ao passo que os mesmos objetos no inimigo infundem-nos terror, ainda que em si mesmos sejam agradáveis e belos. A esperança, em si mesma, é uma paixão agradável e aliada à amizade e benevolência; mas é propícia a explodir em raiva quando é a paixão dominante. Spes addita Suscitat iras. VIRG. 5 2. Uma vez que as paixões, por mais independentes, se transformam naturalmente umas nas outras se ambas estiverem presentes ao mesmo tempo, segue-se que, quando o bem ou o mal se colocam em situação de causar uma emoção particular além de sua paixão direta de desejo ou aversão, esta última paixão deverá adquirir nova força e violência. 3. Isso ocorre frequentemente quando um objeto desperta paixões contrárias, pois se observa que /176/ uma oposição de paixões geralmente causa uma nova emoção nos espíritos e produz mais desordem que a concorrência de dois afetos de igual força. Essa nova emoção se converte facilmente na paixão predominante e, em muitos casos, observa-se que aumenta sua violência além dos limites a que chegaria caso não tivesse encontrado nenhuma oposição. Por isso, desejamos naturalmente o que é proibido e muitas vezes sentimos prazer em realizar ações simplesmente porque elas são ilegais. A noção de dever, quando contrária às paixões, nem sempre consegue sobrepujá-las, e, quando não logra esse efeito, serve mais para aumentá-las e provocá-las, ao produzir uma oposição em nossos motivos e princípios. 4. O mesmo efeito ocorre quando a oposição surge de motivos internos ou de obstáculos externos. A paixão geralmente adquire nova força em ambos os casos. O esforço que a mente faz para superar o obstáculo excita os espíritos e aviva a paixão. /177/ 5. A incerteza tem o mesmo efeito que a oposição. A agitação do pensamento, as rápidas mudanças que faz de uma perspectiva para outra, a variedade das paixões que se sucedem umas às outras de acordo com os
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Virgílio, Eneida 10, verso 263. “A esperança renovada desperta ira”.
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diferentes pontos de vistas, tudo isso produz uma emoção na mente e essa emoção transmuta na paixão predominante. A segurança, ao contrário, diminui as paixões. A mente, quando é abandonada a si mesma, imediatamente esmorece e, a fim de preservar o seu ardor, deve a cada momento ser reforçada por uma nova torrente de paixão. Pela mesma razão, o desespero, embora contrário a segurança, tem uma influência similar. 6. Nada suscita com mais força um afeto do que ocultar alguma parte do seu objeto, envolvendo-o numa espécie de sombra, ao mesmo tempo em que o revela o suficiente para nos atrair, deixa ainda algum espaço para a imaginação. Além disso, esta obscuridade é sempre acompanhada de uma espécie de incerteza; o esforço que a imaginação faz para /178/ completar a ideia estimula o espírito e proporciona uma força adicional à paixão. 7. Do mesmo modo como o desespero e a segurança, embora contrários, produzem os mesmos efeitos, também se observa que a ausência tem efeitos contrários, e em circunstâncias diferentes tanto pode aumentar como diminuir o nosso afeto. ROCHEFOUCAULT assinalou muito acertadamente que a ausência destrói as paixões fracas, mas aumenta as fortes, do mesmo modo que o vento apaga uma vela, mas alastra um incêndio. Uma longa ausência naturalmente enfraquece as nossas ideias e diminui a paixão, mas quando o afeto é muito forte e vivaz a ponto de sustentar-se, o desagrado, causado pela ausência, aumenta a paixão, e lhe proporciona nova força e influência. 8. Quando a alma se aplica na realização de alguma ação, ou na concepção de algum objeto à qual não está acostumada, há certa inflexibilidade nas faculdades e uma dificuldade nos espíritos para moverem-se em sua nova direção. Quando esta dificuldade excita os espíritos, ela é a fonte de admiração, de surpresa, e de todas as emoções que nascem da novidade, e /179/ é, em si, agradável, como tudo o que aviva a mente até um grau moderado. Mas embora a surpreza seja em si mesma agradável, contudo, no momento em que ela agita os espíritos, não só aumenta os nossos afetos agradáveis, como também os dolorosos, de acordo com o princípio anterior. É por isso que tudo o que é novo nos afeta mais, e nos proporciona mais prazer ou dor do que aquilo que, estritamente falando, naturalmente decorreria do objeto, caso ele já fosse conhecido.
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Quando o objeto volta a apresentar-se, a novidade desaparece, a paixão diminui, a inquietação do espírito acaba, e contemplamos o objeto com maior tranqüilidade. 9. A imaginação e os afetos têm uma estreita relação. A vivacidade da primeira fortalece estes últimos. É por isso que a perspectiva de qualquer prazer do qual temos conhecimento nos afeta mais do que qualquer outro prazer, que até pode lhe ser superior, mas de cuja natureza nós somos completamente ignorantes. Do primeiro podemos formar uma ideia particular e determinada; o segundo, nós o concebemos sob a noção geral de prazer. /180/ Qualquer satisfação de que desfrutamos recentemente e que ainda está fresca na memória afeta a vontade com mais violência do que outra cujos vestígios estão apagados e quase destruídos. Um prazer adequado ao nosso modo de vida excita mais o nosso desejo e apetite do que outro que seja estranho a ele. Nada é mais apropriado a incutir uma paixão em nossa mente do que a eloqüência, que representa os objetos em suas cores mais fortes e vivas. A mera opinião de outro, especialmente quando acompanhada de paixão, faz com que uma ideia tenha uma influência sobre nós, embora de outro modo essa ideia fosse inteiramente negligenciada. Observamos que as paixões mais intensas comumente acompanham uma imaginação muito viva. A este respeito, bem como em outros, a força da paixão depende tanto do temperamento da pessoa, como da natureza e situação do objeto. /181/ O que está distante no tempo ou no espaço não tem a mesma influência do que o que está próximo e contíguo. * * * Não pretendo ter esgotado este tema. É suficiente para o meu propósito se demonstrei que, na produção e conduta das paixões, há certo mecanismo regular, que é suscetível de uma investigação tão exata quanto as leis da dinâmica, da óptica, da hidrostática, ou de qualquer parte da filosofia natural.
RESENHA
Descartes, entre o mundo e o homem Claudinei Aparecido de Freitas da Silva * DESCARTES, R. O mundo ou O tratado da luz e O homem. Trad. César A. Battisti e Marisa C. O. F. Donatelli. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2009 (Col. Multilíngues de Filosofia, Série A, Cartesiana II).
O leitor de língua portuguesa é, mais uma vez, brindado com a recente tradução de dois textos fundamentais do pensamento moderno. Trata-se, respectivamente, de O Mundo ou O Tratado da Luz e O Homem, de René Descartes (1596-1650). Qual é a originalidade e, sobretudo, a fecundidade sui generis desse acalentado projeto concebido na áurea herança intelectual do século XVII? Graukroger, um atual comentador britânico da obra cartesiana, emplaca um juízo decisivo ao reconhecer que ambos os textos “constituem juntos o projeto sistemático mais ambicioso que Descartes jamais empreendeu” (Graukoger, Stephen. In: Descartes, R. The World and Other Writings. Cambridge University Press, 1998, p. vii). Para melhor situar o alcance dessa tese interpretativa, comecemos pelo O Mundo ou O Tratado da Luz, que, com edição recém-lançada pela Editora da Unicamp, conta com o cuidadoso preparo da tradução de César Augusto Battisti. A redação desse trabalho transcorre entre 1629 e 1633, vindo a lume somente postumamente, por conta, à época, da condenação imputada a Galileu. Descartes já viria, inclusive, a se manifestar, na Quinta Parte de O Discurso do Método, quanto à intenção de explicar as principais leis estabelecidas por Deus na natureza, num tratado específico, mas que – naquele dado momento, uma audiência pública – se tornaria, flagrantemente, comprometedora. Ora, o que está em jogo, a despeito desse escrupuloso *
Professor do Departamento de Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo, PR. E-mail: cafsilva@uol.com.br. Resenha recebida em 04.05.2011, aceita em 30.06.2011.
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contexto editorial de O Mundo? Do início ao fim, a obra percorre vários temas visando expor, o mais rigorosamente possível, a composição da matéria; as leis fundamentais do movimento dos corpos e do sistema planetário e, por fim, a natureza e as propriedades da luz. É um primeiro terreno de exploração e de formulação do mecanicismo físico numa reorientação crítica da física e da metafísica aristotélico-escolástica. Ora, em textos anteriores, como o das Regulae, Descartes explicara os fundamentos e os processos operativos na pesquisa científico-natural tendo como modelo emblemático a ciência matemática. A criação da geometria analítica, em 1620, e a descoberta, logo mais, entre 1623 e 1628, das leis da refração e reflexão da luz, permitem a Descartes fixar, mais solidamente, as novas bases da ciência, redefinindo, desse modo, outros critérios metodológicos. A Dióptrica, o Meteoros e a Geometria (publicados em 1637), embora retratem uma amostra viva desse percurso, ainda não se comprometem, como o Tratado de O Mundo se comprometerá, com as polêmicas teses galilaicas até então. Na esteira de Galileu, Descartes se ocupa em estabelecer, da forma mais sistemática, uma fundação algébrico-geométrica do mundo de modo que o instrumental de análise não pode ser mais o mesmo empregado pela casuística aristotélica da experiência sensível essencialmente qualitativa. É levando em conta essa nova exigência teórico-metodológica requerida que O Mundo passa a retratar, a bem da verdade, um “novo mundo”, cujos fenômenos naturais não se enquadram, especulativamente, a partir de uma explicação epistêmica do tipo indutivo-qualitativo. Esse mundo possui outra estrutura inteligível, a saber, a de um mecanismo cujas partes materiais e princípios cinemáticos sejam plenamente cognoscíveis. O que essa nova hipótese de trabalho postula? O início do capítulo VII de O Mundo não deixa a menor sombra de dúvida quando ajuíza que outro conceito de natureza está, agora, em curso. Ou seja, abstendo-se de todo e qualquer recurso a forças ou a qualidades ocultas (comum na magia natural de inspiração hermético-renascentista) ou às formas substanciais do aristotelismo-escolástico, a moderna concepção de natureza em questão se traduz conceitualmente como matéria e suas respectivas qualidades atributivas, bastando, apenas, Deus para conservá-la do mesmo modo que a criou. Sem identificar-se com uma deusa ou alguma espécie de potência imaginária, a natureza é, conforme metaforizara Galileu, o grande livro aberto escrito com caracteres geométricos. Nela não há mais segredo algum,
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magia ou mistério. A constituição da matéria em termos de propriedades ou atributos torna-se, absolutamente, um saber transparente ao espírito. O conhecimento das leis que governam o mundo chega a incutir no espírito humano o sentimento de uma capacidade tal que tudo se passa como se ele tivesse construído o mundo com as suas próprias mãos. Na medida em que o mecanismo da natureza é revelado ou claramente exposto, a ação humana tem livre curso para intervir, operar, controlar, dominar. Como vemos, o mecanicismo se torna, nesse novo contexto heurístico (do qual compartilharão Mersenne, Hobbes, entre outros), o princípio canônico desde onde a natureza passa a ser conceituada rigorosamente. A essência desse modelo explicativo dá vazão à concepção de que o mundo (como natureza) é um imenso artefato ou uma complexa engrenagem. Ou, como viria a caricaturar logo mais Malebranche, o mundo não passa de um relógio a que, desde sempre, o Supremo relojoeiro daria cordas a fim de assegurar o seu pleno funcionamento. Entretanto, não é apenas uma nova concepção de natureza, stricto sensu, que está em curso em Descartes. Ora, não é meramente acidental que, após redigir O Mundo, o autor viria a suplementá-lo via outro enfoque concêntrico. É uma nova imagem de homem que também entra em cena nessa cosmovisão científica. A célebre tela, A Lição de Anatomia do Doutor Tulp, vindo à tona em 1632 por Rembrant, é um retrato fiel dessa perspectiva emergente. Nela, o pintor holandês retrata, com aguda perspicácia, a metáfora de um “novo homem”, a partir daquele “novo mundo”. Tudo se passa como se o velho ideal de homem figurado à imagem e semelhança divina, típico da tradição judaico-cristã, deixasse de ser o modelo exclusivo de explicação do corpo humano, nos tempos modernos. Esse novo corpo, também inspecionado por Leonardo da Vinci, sela o advento moderno de uma subjetividade como ponto arquimédico do saber. A arte anatômica da dissecação corpórea, que tanto Rembrant ilustra em seu quadro como Leonardo em seu pioneiro ofício epistêmico, é outra amostra emblemática da autonomia de um sujeito cônscio de suas realizações. A dessacralização do corpo como objeto de pesquisa transfigurará, definitivamente, a cena científica moderna, tornando evidente, isto é, de maneira clara e distinta, outra ideia de homem. O que se torna notável, sobretudo, é que essa ideia emana daquela mesma matriz paradigmática na qual Descartes erige sua concepção de mundo. A esse
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propósito, O Homem é particularmente instrutivo: “[…] o corpo não é outra coisa senão uma estátua ou máquina de terra, que Deus forma intencionalmente para torná-la o mais possível semelhante a nós” (p. 251). O que essa definição precisa é o fato de que, à semelhança do mundo (do qual podemos conhecer suas leis e suas funções), o corpo perde qualquer significação mágica. Ele é abstraído, agora, por suas propriedades cognoscíveis sem qualquer resquício de obscuridade ou mistério. Essa é uma peculiaridade do paradigma mecânico: uma vez apreendido o funcionamento de qualquer autômato, como ocorrerá com o corpo humano, é possível, absolutamente, adentrar em toda a sua natureza objetual, inventariando, a rigor, sua fisiologia e seus processos internos. O que não deixa de surpreender, após quatro séculos que nos separam de Descartes (sem entrar no mérito, aqui, se ele acertara ou não em suas hipóteses epistêmicas) é, em grande medida, o peso teórico desse paradigma explicativo fortemente dominante na ciência e na concepção cultural contemporânea. Exemplo disso é o fato de que a cosmovisão mecanicista de natureza e de homem ainda permanece referendada na fisiologia e na biologia atuais. A manipulação técnica dos organismos vivos (enquanto artefato da engenharia genética) é mais uma demonstração inconteste dessa inspiradora herança. Esse contexto mostra, como o próprio autor havia tornado previsível na Sexta Parte do Discurso do Método, que o conhecimento dos princípios tão simples e gerais da natureza evidencia, nela própria, um poder tão amplo que inexiste qualquer efeito particular que desses princípios não possa ser deduzido. É mais propriamente o vislumbre desse horizonte que Descartes projeta em seu tratado, O Homem, na mesma edição conjunta, primorosamente traduzida por Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli. Uma outra versão desse mesmo texto também fora publicada, em 1993, pela Edições Loyola, como suplemento ao livro de Jordino Marques, Descartes e sua Concepção de Homem. Essa versão pioneira amparara-se, por sua vez, nos comentários extraídos da edição alemã empreendida por Karl E. Rothschuh. Ora, tanto a versão proposta aqui por Marisa C. O. F. Donatelli quanto a de César A. Battisti primam pela fidelidade à edição do volume XI das Œuvres de 1996 (que acrescenta no formato de apêndice, variantes não assinaladas nas edições anteriores e algumas observações ou correções), além do cuidado estilístico e da originalidade das notas
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incorporadas aos respectivos textos. Digna de apreço é a criteriosa opção didática quanto à seleção das figuras que acompanham ambos os tratados, também na forma de apêndice. A quatro mãos, os tradutores trazem à memória viva uma obra cujo raio de abrangência passa a abrir novos horizontes de pesquisa, não somente aos estudiosos de filosofía interessados por Descartes, mas também a todos aqueles movidos por outros intereses disciplinares. É essa comunhão de intenções que torna Descartes uma figura ímpar, para não dizer legendária, na história da cultura e do pensamento.
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