Princípios, Volume 14, Número 21, 2007

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Revista de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia

ISSN 0104-8694 Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


Princípios – Revista de Filosofia

ISSN 0104-8694

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CDU 1 (06)


Revista de Filosofia v. 14, n. 21, jan./jun. 2007 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Filosofia

SUMÁRIO ARTIGOS Poder, autoridade e tradição José N. Heck

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A teoria óptica de Hobbes Cláudio R. C. Leivas

39

Jonh Locke e o realismo científico Marcos Rodrigues da Silva

55

Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética ambiental Darlei Dall’Agnol Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? Inês Lacerda Araújo

67

83

Racionalidade e natureza humana na visão da epistemologia evolutiva José Claudio Morelli Matos

105

Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley Andrea Cachel

125

A excelência moral e as origens da ética grega David de Souza

147

Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão Dennys Garcia Xavier

175

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


A poesia grega como paidéia Jovelina Maria Ramos de Souza A razão em Feuerbach como base da unidade do homem e da natureza Eduardo Ferreira Chagas

195

215

TRADUÇÃO Sobre os diferentes métodos de traduzir, de Friedrich E. D. Schleiermacher Tradução de Celso Braida

233

RESENHAS Rhetorical argumentation, de C.Tindale Jorge Alberto Molina

267

Introdução à retórica, de Olivier Reboul Glenn W. Erickson

277

Ética: questões de fundamentação, de Adriano Naves de Brito (Org.). Ivanaldo Santos

282

Logos & poesis: neoplatonismo e literatura, de Sandra Erickson e Glenn W. Erickson Pablo Capistrano

289

The Salt Companion to Harold Bloom, de Roy Sellars e Graham Allen Sandra S. F. Erickson

294

A caminho do silêncio: a filosofia de Escoto Eriúgena, de Oscar Federico Bauchwitz Soraya Guimarães da Silva

303

A linha dividida: uma abordagem matemática à filosofia platônica, de Glenn W. Erickson e John A. Fossa Jorge dos Santos Lima

307

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007.


Poder, autoridade e tradição José N. Heck *

Resumo: O artigo inicia com o enfoque do absolutismo hobbesiano à luz da doutrina tradicional do direito natural. A seguir expõe a complexa relação de Hobbes com a democracia e a noção hobbesiana de representação política. Depois de reconstruir algumas das objeções básicas de Hobbes ao pensamento político clássico, o texto procura mostrar que o filósofo inglês opera, em relação a Aristóteles, com um conceito relativamente inalterado de natureza. Objetivo maior do trabalho é configurar o Estado como produto genuíno do desempenho intelectual do teórico político inglês. Palavras-chave: Autoridade, Estado, Filosofia política, Hobbes, Representação Abstract: The article starts focusing on Hobbes' absolutism under the scope of the traditional doctrine of natural right. Then exposes the complex relation between Hobbes and democracy and his notion of political representation. After reconstructing some of Hobbes' basic objections to classical political thought, the text tries to show that the English philosopher works, with respect to Aristotle, with a relatively unaltered concept of nature. The major objective of the paper is to configure the State as a genuine product of the intellectual performance of the English political theoretician. Keywords: Authority, Hobbes, Political Philosophy, Representation, State

Introdução Comparada ao dinamismo conceitual do espírito objetivo hegeliano, que acolhe o jusnaturalismo no universo ético estatal, a positivação das leis naturais é feita por Hobbes de forma seletiva e com uma semântica inventiva. Do acervo das leis naturais o teórico político inglês assume, no catálogo das tarefas estatais, o estabelecimento da paz interna, o embrião de um sistema jurídico e a garantia da coexistência pacífica.

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Professor do Departamento de Filosofia da UFG/UCG. E-mail: heck@pesquisador.cnpq.br. Artigo recebido em 13.08.2007 e aprovado em 17.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 05-38.


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O mandatário hobbesiano exerce o poder político voltado para uma única finalidade – a segurança. “O cargo do soberano...”, escreve Hobbes, “consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo” 1 . Tal objetivo primordial, Hobbes não o ancora sobre o contrato, mas o fundamenta à maneira jusnaturalista, ao explicitar que a esse o soberano “está obrigado pela lei de natureza e do qual tem de prestar contas a Deus, o autor dessa lei, e a mais ninguém além dele” 2 . A passagem ilustra o caráter refratário do absolutismo político de tradição hobbesiana. Por um lado, o primeiro e último objetivo da soberania apenas indiretamente tem a ver com uma fundamentação contratualista, prescrito que é por lei natural, mais exatamente por Deus, o autor das leis da natureza. Por outro lado, o absolutismo leviatânico não tem apenas caráter jurídico, mas está precipuamente a serviço do bem-estar dos subordinados ao mando político, à moda da tradição da filosofia política de proveniência aristotélica. “Por segurança”, esclarece Hobbes, “não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as outras comodidades da vida, que todo homem, por uma indústria legítima, sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio” 3 . Absolutismo e direito natural Em torno do absolutismo político giram, desde Locke, as controvérsias acerca do espólio filosófico da obra de Hobbes. Confrontado com a doutrina hobbesiana da soberania suprema e ilimitada, Locke propõe que se considere “que tipo de paz seria esta no mundo, que consiste apenas em violência e rapinagem, a ser 1

Leviathan II, 30, p. 231. “The Office of Soveraign, (be it a Monarch, or an Assembly,) consisteth in the end, for which he was trusted with the Soveraign Power, namely the procuration of the safety of the people ...”; versão portuguesa, p. 204. 2 Ibidem. “... to which he is obliged by the Law of Nature, and to render an account thereof to God, the Author of that Law, and to none but him”. 3 Ibidem. “But by Safety here, is not meant a bare Preservation, but also all other Contentments of life, which every man by lawfull Industry, without danger, or hurt to the Common-wealth, shall acquire to himselfe”.


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mantida apenas para benefício de ladrões e opressores” 4 . Tal estado de paz entre fortes e fracos, induzindo o “cordeiro a oferecer, sem resistência, a garganta para ser rasgada pelo lobo imperioso”, é tão admirável quanto o covil homérico de Polifemo 5 . Para Locke, a situação de homens honestos e inocentes, chamados a ceder a tudo em nome da paz, são iguais a Ulisses e companheiros, sem alternativa senão a de submeterem-se pacificamente para serem devorados. “E sem dúvida”, avalia Locke, “Ulisses pregava a obediência passiva ..., mostrando-lhes quanta importância tinha a paz para a humanidade, e que inconvenientes poderiam advir caso resistissem a Polifemo, que então tinha poder sobre eles” 6 . Voltado contra Hobbes, Kant escreve, por sua vez, que, “considerada em sua generalidade, a afirmação” em De cive VII, 14, de que o chefe de Estado não pode cometer injustiça contra o cidadão, “é terrível” 7 . Enquanto a posição liberal-crítica lockiana incide diretamente sobre a tese hobbesiana do contrato de desistência, pelo qual os cidadãos desistem de se opor às ações do soberano, a crítica do liberalismo exigente kantiano afeta sobremodo a concepção filosófica do contrato originário hobbesiano. Para Locke, o direito à resistência é inextinguível e consiste, em oposição a Hobbes, “no poder do povo de prover novamente à própria segurança por meio de um novo legislativo, quando seus 4

Locke. Two Treatises of Government II, 228. Ed. by P. Laslett. Cambridge: University Press, 1994, p. 417. “... I desire it may be consider’d, what a kind of Peace there will be in the World, which consists only in Violence and Rapine; and which is to be maintain’d only for the benefit of Robbers and Oppressors”; versão portuguesa, p. 586. 5 Ibidem. “... when the Lamb, without resistance, yielded hisThroat to be torn by the imperious Wolf? Polyphemus’s Den gives us a perfect Pattern of such a Peace ”. 6 Ibidem. “And no doubt Ulysses ... preach’d up Passive Obedience ..., by representing to them of what concernment Peace was to Mankind; and by shewing the inconveniencies might happen, if they should offer to resist Polyphemus, who had now the power over them”. 7 Kant, Immanuel. Vom Verhältnis der Theorie zur Praxis im Staatsrecht (gegen Hobbes). Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis. Hrsg. von H. Klemme. Hamburg: Meiner, 1992; versão portuguesa, p. 90.


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legisladores agirem contrariamente ao encargo a eles confiado, violando a propriedade alheia” 8 . Kant acentua, contra Hobbes, a diferença essencial existente entre acordos sociais, por meio dos quais homens se dão as mãos uns aos outros para executarem um fim determinado, e um contrato constituinte, de caráter fundador e unificador, pelo qual seres humanos se associam para alcançar um fim que a todos cabe por direito e cada um tem o dever de realizar 9 . Quando não é avaliada exclusivamente pelo visor contratualista, a doutrina hobbesiana da soberania ostenta traços eminentemente jurídicos, característicos do aforismo sed authoritas, non veritas, facit legem 10 e que, de maneira menos retórica, encontram-se embutidos na definição hobbesiana de lei positiva: “E, em primeiro lugar”, enuncia Hobbes, “é evidente que a lei, em geral, não é um conselho, mas um comando” 11 . Uma vez sob a óptica juspositivista, o absolutismo hobbesiano mostra a configuração de uma teoria imperativa de direito. À semelhança do teórico político inglês, J. Austin distingue leis impostas por Deus de leis dadas pelos homens. Estas são divididas entre leis não políticas, de foro privado, e leis políticas de caráter genérico-abstrato. Somente as últimas pertencem aos domínios do direito e mapeiam a province of jurisprudence, ao passo que as leis de Deus e as leis humanas, de cunho não político e relativas à vida privada, compõem o domínio das convicções e crenças, próprias ao universo da moral e dos bons costumes. A teoria austiniana das leis é imperativa porque explicita a lei em geral 8

Locke. Op. cit. II, 226, p. 415. “That this Doctrine of Power in the People of providing for their Safety a-new by a new Legislative, when their Legislators have acted contrary to their trust, by invading their Property”; versão portuguesa, p. 584. 9 Kant. Op. cit., p. 20; versão portuguesa, p. 73-74. 10 Höffe, Otfried. “Sed authoritas, non veritas, facit legem”. Zum Kapitel 26 des Leviathan. In: Kersting, Wolfgang Hrsg.). Thomas Hobbes – Leviathan oder Stoff, Form und Gewalt eines bürgerlichen und kirchlichen Staates. Berlin: Akademie Verlag, 1996, p. 235-257 (Klassiker Auslegen, Bd. 5). 11 Leviathan II, 26, p. 183. “And first it is manifest, that Law in generall, is not Counsell, but Command”; versão portuguesa, p. 165.


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como ordem e as normas jurídicas como mandados, ou seja, não há comando sem alguém que ordena e tampouco há quem ordene sem visar a obter de outrem um comportamento intencionalmente desejado. Para Austin, “um comando distingue-se de outras significações do desejo não pelo estilo no qual o desejo está vazado, mas pelo poder e o propósito da parte que ordena para cominar uma pena ou um castigo no caso em que o desejo for descumprido” 12 . Enquanto ordem, o comando perfaz um uso diretivo da linguagem – e não constitui mera externação de desejos – e é passível de execução, ameaçando o destinatário infrator com um desprazer dosado de acordo com as circunstâncias. Caracterizados pela superioridade do emissor 13 , aos comandos é coexistente, segundo Austin, o “poder de infligir a outrem danos ou perdas e forçá-los, pelo temor ante esses males, a adequarem sua conduta a nossos desejos” 14 . Cotejado com a teoria imperativo-sancionadora de Austin, o absolutismo estatal hobbesiano perde a aura despótico-tirânica. O teórico político inglês não considera vinculante a lei positiva pelo fato de que sua observância pode ser forçada pelo emissor do comando legal. O poder vinculante do direito positivo não chega a ser, em Hobbes, uma função de exeqüibilidade das leis estatais. Diferentemente do que ocorre com a doutrina imperativa do uso diretivo da linguagem, de linhagem austiniana, a teoria hobbesiana do poder supremo e ilimitado do soberano político está ancorada sobre a concessão de poderes e a especificação de competências. O absolutismo político de Hobbes se caracteriza pela distância semântica entre a obrigatoriedade das leis estatais e a força 12

Austin, John. The province of jurisprudence determined. Ed. by W. Rumble. Cambridge: University Press, 1995, p. 2. “A command is distinguished from other significations of desire, not by the style in which the desire is signified, but by the power and the purpose of the party commanding to inflict an evil or pain in case the desire be disregarded ...”. 13 Ibidem, p. 29. “Laws and other commands are said to proceed from superiors, and to bind or oblige inferiors”. 14 Ibidem, p. 30. “Power of affecting others with evil or pain, and of forcing them, through fear of that evil, to fashion their conduct to one’s wishes”.


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necessária para sua execução. Às conseqüências juspositivistas da soberania absoluta, de feição hobbesiana, antecede o esforço titânico do teórico político inglês para lastrear o soberano com uma consistente teoria de autoridade. A racionalidade contratualista hobbesiana desqualifica, por um lado, a concepção da inerência imperativa do ser das coisas e, por outro, denega a imperatividade intrínseca das leis positivas divinas. Possivelmente é Hegel quem melhor desentende o absolutismo hobbesiano quando recompõe a liberdade jusnaturalista do direito moderno com as noções substanciais da lei e da justiça 15 . O espírito inovador do teórico político inglês situa-se num plano programático subestimado pelo dialético. Hobbes contraria a clássica relação entre homem e pólis, mas não a anula senão que a recompõe. Na carta dedicatória ao De corpore, Hobbes se autoavalia como Galileu da philosophia civilis. A conjunção entre matemática e física significa, para Hobbes, uma res novitia, graças a Galileu que iniciou a aetas physicae (idade da física). Para o teórico político inglês, mais recente do que a física é, porém, a filosofia política. Na verdade, constata Hobbes, “ela não é mais velha do que o livro que tenho escrito – Do cidadão” 16 . O caráter cientificista da obra política de Hobbes tem menos a ver com uma suposta reação dogmático-naturalista ao ceticismo da época do que com o abandono da retórica humanista em torno da scientia civilis. Para compreender a visão hobbesiana da filosofia civil, garante Skinner, “é preciso que a vejamos como moldada, em grande parte, como alternativa a essas ortodoxias humanistas vigentes, e como uma tentativa de substituílas por uma teoria da política pautada em premissas autenticamente científicas” 17 .

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Cf. Adam, Armin. Despotie der Vernunft. Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel. Freiburg/München: Verlag K. Alber, 1999. 16 De corpore (Dedicatoria de 1655) “Sed philosophia civilis multo adhuc magis; ut quae antiquior non sit ... libro quem De Cive ipse scripsi”; versão inglesa, p. 3. 17 Skinner. Reason and rhetoric in the philosophy of Hobbes. Cambridge: University Press, 1996, p. 299. “To understand his own vision of civil philosophy, we need to see it as framed in large part as an alternative to these prevailing


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O absolutismo hobbesiano se distingue do direito natural abstrato pela sustentação contratual da instância política suprema, e do positivismo jurídico pela teoria autorizadora do poder soberano. Por um lado, não existem deveres no universo semântico do jusnaturalista Hobbes. Toda obrigação é voluntária e autoreferencial. Por outro lado, não são as regras do direito positivo que autorizam o soberano a vincular a conduta dos cidadãos, mas sim o experimento mental da vinculação contratualista. As oscilações da ciência civil hobbesiana refletem o modo peculiar como a doutrina política de Aristóteles troca de lugar ao longo da trajetória intelectual do teórico político inglês. Quando poder-se-ia supor que, devido às pretensões científico-inovadoras do “Galileu político”, Aristóteles estivesse sendo contradito frontalmente, Hobbes continua fazendo a corte ao Estagirita. À época em que está convencido de que a nova ciência política principia com o De cive, o autor encontra-se em companhia do pensador grego, honrando a cidadania como princípio da participação política e o governo democrático como expressão fidedigna da clássica equivalência entre liberdade cidadã e democracia popular. Hobbes está convencido de que liberdade não tolera sujeição e, como esperança comum dos homens, manifesta-se pela participação nos negócios do governo. E acrescenta: “(E) isto não pode ser feito senão em um estado democrático popular” 18 . A afirmação adquire relevância especial à luz da revisão feita por Hobbes da Retórica do filósofo grego. No momento em que se autointitula como mentor de uma nova ciência civil, Hobbes recua mais uma vez ao pai do Ocidente e assegura: “E Aristóteles diz bem no livro 6, capítulo 2, da sua Política: O fundamento ou a intenção duma democracia é a liberdade; e confirma-o nestas palavras: de fato, diz-se comumente que ninguém pode ter a liberdade

humanist orthodoxies, and as an attempt to replace them with a theory of politics based on authentically scientific premises”; versão portuguesa, p. 402. 18 Elements II, 8, 3, p. 170. “And that can be no where but in the popular state, or democracy”; versão portuguesa, p. 215.


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partilhada, a não ser numa democracia popular” 19 . Aproximadamente dez anos depois, o equivalente em inglês ao termo latino civis (cidadão) desaparece de sua obra e é substituído pelo designativo subject (súdito). À primeira vista, tal substituição sinaliza o caráter totalitário da concepção político-estatal hobbesiana. Na verdade, ela perfaz a quintessência da modernidade filosófica no teórico político inglês, ou seja, o binômio súdito-Leviatã configura em Hobbes o que B. Constant denomina “la liberté des modernes” 20 . Como súditos incondicionalmente submissos ao Estado, os cidadãos hobbesianos de outrora contam agora, como súditos, com o manto da obscurité, 21 sob o qual podem fruir livremente a privaticidade da vida, protegidos não apenas das ingerências do soberano, mas livres também dos olhares de seus semelhantes. As chamadas liberdades negativas hobbesianas não equivalem nem a direitos fundamentais defensivos, embutidos nas constituições liberais, nem se identificam com a liberdade restritiva do liberalismo anti-hobbesiano de índole lockiana. Nada mais estranho a Hobbes do que a idéia segundo a qual os súditos dever-se-iam poder defender-se contra a suposta excessiva presença do Estado em suas vidas. Ao contrário, a obediência absoluta os súditos não devem ao Estado, mas uns aos outros entre si. Um Estado incapaz de garantir a convivência pacífica desobriga automaticamente seus súditos do compromisso da obediência 22 . O contratualismo hobbesiano não visa a habilitar os homens a participarem da atuação do Estado e, muito menos, objetiva submeter a vida privada à vontade geral da coletividade. O contrato político hobbesiano assegura ao indivíduo a busca constante da satisfação, o usufruto dos prazeres e as benesses da prosperidade, à revelia de qualquer existência virtuosa, de extração 19

Ibidem. Constant, Benjamin. De la liberté des Anciens, comparée à celles des Modernes. In: Gauchet, Marcel (ed.) De la liberté chez les modernes. Paris: Pleîade, 1980, p. 509. 21 Ibidem, p. 421. 22 Leviathan II, 21, p. 153; versão portuguesa, p. 139. 20


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aristotélica, por parte dos subordinados. Comparada à liberdade dos antigos – toda ela voltada para a participação na vida pública – a liberdade civil hobbesiana se caracteriza pela indiferença dos súditos perante o Estado, correspondida por parte do Leviatã pelo silêncio das leis 23 . O minimalismo rigorosamente absolutista tem por aliado, em Hobbes, o mais permissivo liberalismo dos tempos modernos e faz do teórico político inglês o belzebu da Modernidade. 24 Democracia e contrato de autorização A substituição do cidadão pelo súdito, no Leviatã, corre paralela à mais incisiva crítica da doutrina política de Aristóteles. Depois de observar que a questão acerca do melhor homem não pode ser decidida no estado de natureza e constatar que a desigualdade existente entre os homens resulta da introdução das leis civis, o teórico político inglês escreve: Bem sei que Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como fundamento de sua doutrina, afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio, devido a sua filosofia), e outros têm mais a capacidade parar servir (referindo-se com isso aos que tinham corpos fortes, mas não eram filósofos como ele) 25 .

Hobbes insiste que constitui um atentato à razão e é contrário à experiência admitir que o senhor e o servo tenham algo a ver com os diferentes graus de inteligência, “pois poucos há tão insensatos que não prefiram governar-se a si mesmos a ser

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Leviathan II, 21, p. 152. “As for other Liberties, they depend on the Silence of the Law. In cases where the Soveraign has prescribed no rule, there the Subject hath the Liberty to do, or forbeare, according to his own discretion”; versão portuguesa, p. 138. 24 Tuck, Richard. Hobbes. Oxford: University Press, 1989, p. 141-147. 25 Leviathan I, 16, p. 107. “I know that Aristotle in the first booke of his Politiques, for a foundation of his doctrine, maketh men by Nature, some more worthy to Command, meaning the wiser sort (such as he thought himselfe to be for his Philosophy;) others to Serve, (meaning those that had strong bodies, but were not Philosophers as he;)”; versão portuguesa, p. 95.


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governados por outros” 26 . Sustentada pelo status naturalis da humanidade, a afirmação é tão pouco empírica quanto o estado de natureza hobbesiano é historicamente localizável. Como pedra angular e premissa maior da concepção moderna de Estado, a igualdade natural dos seres humanos decide acerca da proximidade e distância entre o filósofo político grego e o teórico político inglês. A doutrina do estado natural impede que Hobbes identifique a societas civilis como realidade social anterior a qualquer senhorio político. Já nos Elementos, a comunidade política aparece como uma criação do nada 27 , de modo que povo, cidadania e mando político são concebidos como produtos simultâneos do engenho contratual humano. À sombra de Aristóteles, a fundação hobbesiana do estádio civil do homem coincide, inicialmente, com a democracia. A multidão é transformada em povo e atua soberana como poder constituinte 28 . Cronológica e logicamente anterior à monarquia e à aristocracia, o contrato originário resulta sem quaisquer mediações na forma democrática citadina. Hobbes escreve: “A primeira destas três formas, na ordem do tempo, é a democracia, e tem que ser assim por necessidade, pois a aristocracia e a monarquia requerem a nomeação de pessoas sobre as quais se esteja de acordo” 29 . A forma de governo aristocrática e monárquica supõe, para Hobbes, a vontade soberana do povo, e nenhuma delas tem prioridade sobre a democracia; pelo contrário, ambas devem sua constituição a decisões majoritárias da assembléia popular constituída em pessoa jurídica por vínculo contratual. “A democracia gera”, afirma Hobbes, “a instituição duma monarquia 26

Ibidem. “For there are very few so foolish, that had not rather governe themselves, than be governed by others”. 27 Elements II, 1,1, p. 108. “... there be two ways of erecting a body politic; one by arbitrary institution of many men assembled together, which is like a creation out of nothing by human wit”; versão portuguesa, p. 144. 28 Herb, Karlfriedrich. Bürgerliche Freiheit. Politische Philosophie von Hobbes bis Constant. Freiburg/München: Verlag K. Alber, 1999, p. 94. 29 Elements II, 2,1, p. 118. “The first in order of time of these three sorts is democracy, and it must be so of necessity, because an aristocracy and a monarchy, require nomination of persons agreed upon”; versão portuguesa, p. 155.


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da mesma maneira que geraria a instituição da aristocracia, quer dizer, por uma decisão do povo soberano de repassar a soberania a um homem nomeado e aprovado pela pluralidade dos votos” 30 . Ressalta à vista o senso rousseauniano de democracia nos primórdios da ciência civil hobbesiana. Para o teórico político inglês, o povo que não se tenha autodissolvido, ao escolher um rei por toda vida, é sempre soberano “e o rei não é senão um ministro que exerce esta inteira soberania” 31 , de modo que após a morte do rei, o povo reunido não tem que constituir uma nova autoridade, mas a antiga que tinham por fazer, “pois eles permaneceram o soberano o tempo todo” 32 . E ainda mais, continua Hobbes, “mesmo se, elegendo-se um rei por toda a vida, ... o povo pode não obstante, se vê uma razão para o fazer, retirá-lo antes da hora”. Isso tudo é tão verdadeiro, para Hobbes, porque “os cargos que implicam zelo e muita atenção são repassados como fardos (onera) àqueles que os ocupam, razão por que retirá-los não é injustiça senão favor” 33 . À luz do experimento rousseauniano de consolidar o contrato social como lei permanente da volonté générale, a percepção hobbesiana do mecanismo democrático se confronta com a bifurcação política que caracteriza o surgimento da Modernidade. Rousseau vê no repasse da soberania popular a uma vontade particular o infanticídio democrático, ao passo que Hobbes visualiza o futuro da soberania na transferência da soberania popular a uma representação governamental. 30

Ibidem II, 2, 9, p. 121-122. “Out of the same democracy, the institution of a political monarch proceedeth in the same manner, as did the institution of the aristocracy (viz.) by a decree of the sovereign people, to pass the sovereignity to one man named, and approved by plurality of suffrage”; versão portuguesa, p. 158-159. 31 Ibidem. “... and the king a minister thereof only, but so, as to put the whole sovereignity in execution”. 32 Ibidem. “For they were the sovereign all the time ...”. 33 Ibidem, p. 122-123. “And farther, though in the election of a king for his life ... yet if they see cause, they may recall the same before the time ...; inasmuch as offices that require labor und care, are understood to pass from him that giveth them as onera, burthens, to them that have them; the recalling whereof are therefore not injury, but favour”.


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Para ambos os autores é comum o pressuposto de que o domínio democrático constitui-se necessariamente num poder não representativo de todos, exercido direta e imediatamente por todos. Enquanto Hobbes tem por referência as armações democráticocitadinas da Antigüidade, Rousseau toma por objeto democrático o contrato social pelo qual “‘cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece’” 34 . A doutrina hobbesiana da soberania absoluta não descarta em princípio a democracia como o pior regime e nem postula em tese a monarquia como o melhor estado de governo. Para o absolutista político Hobbes, o estado civil é a única premissa inescusável para o exercício da soberania. Tal estado civil resulta de um contrato de união da multidão, celebrado entre si pelos futuros súditos, do qual um titular da soberania não pode logicamente fazer parte, estabelecido que será pelo povo reunido em união civil. A matriz democrática, lógica e cronologicamente atribuída por Hobbes ao instante do pactum unionis, não predefine nenhuma das três espécies de governo aventadas pelo teórico político inglês. As razões aduzidas para preterir a democracia como forma institucional de governo são de conveniência histórico-política. Reportado às antigas cidades, Hobbes destaca como inconveniente a distância que separa os indivíduos das assembléias populares, o cansaço resultante da freqüência de reuniões, bem como a negligência econômica para com as respectivas famílias, advinda do estado mais ou menos permanente de deliberação política. Hobbes argumenta: “Nas assembléias tão numerosas como estas devem ser, onde cada um pode tomar parte como lhe agradar, não há meios de deliberar e de aconselhar, a não ser por longos

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Rousseau, Jean-J. Du contrat social; ou, principes du droit politique. In: Oeuvres complètes III. Paris: Gallimard, 1964, p. 360; versão portuguesa, p. 38.


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discursos complicados, por meio dos quais cada um pode mais ou menos esperar que incline e interesse a assembléia a seu favor” 35 . Com base nessas observações pontuais, o absolutista doutrinário generaliza o fato de que em todas as democracias, ainda que o direito da soberania caiba à assembléia, “é sempre um homem ou um pequeno número de particulares que fazem uso desse direito”, de modo que “este homem ou este pequeno número de homens devem necessariamente seduzir o conjunto”, com o resultado de que “a democracia, na verdade, não é nada mais do que uma aristocracia de oradores, interrompida vez por outra pela monarquia temporária de um orador” 36 . Avançando de inconveniência em inconveniência, o final da argumentação localiza a forma democrática da soberania popular num beco sem saída, 37 o que equivale a uma redução ao absurdo. No caso em que o povo, reunido em união civil, faça de algum dos seus um rei, com a intenção de preservar a sua soberania, é inutilmente que a preservou – raciocina Hobbes – se o povo “não preserva o poder de reunir-se em tempos e lugares comuns e escolhidos”, e conclui apodítico: “[P]orque ninguém é obrigado a obedecer aos decretos e decisões daqueles que se reúnem sem autoridade soberana” 38 .

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Elements II, 2, 5, p. 120. “For in such great assemblies as those must be, whereinto every man may enter at his pleasure, there is no means any ways to deliberate and give counsel what to do, but by long and set orations; whereby to every man there is more or less hope given, to incline and sway the assembly to their own ends”; versão portuguesa, p. 157. 36 Ibidem, p. 120-121. “In a multitude of speakers therefore, where always, either one is eminent alone, or a few being equal amongst themselves, are eminent above the rest, that one or few must of necessity sway the whole; insomuch, that a democracy, in effect, is no more than an aristocracy of orators, interrupted somestimes with the temporary monarchy of one orator”; versão portuguesa, p, 157-158. 37 Cf. Maluschke, Günther. A soberania popular: enigma não-resolvido da democracia. Philósophos. (Goiânia), v. 5, n. 1, 2000, p. 62-80. 38 Elements II, 2, 9, p. 123. “... the reservation of their sovereignty is of no effect, inasmuch as no man is bound to stand to the decrees and determinations of those that assemble themselves without the sovereign authority”; versão portuguesa, p. 159-160.


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A figura jurídica da autorização, Hobbes a usa pela primeira vez no Leviatã, reportado ao cenário teatral. Assim como nos palcos de teatro pessoas representam outras pessoas, no plano do direito uma pessoa pode ser representada por outra. De acordo com Hobbes, a primeira é chamada de pessoa física, a segunda de pessoa artificial ou fictícia, de acordo com a atribuição que fazemos de suas ações. À diferença do teatro, na esfera jurídica é necessário que àquele, ao qual atribuimos palavras e ações de outrem, tenha antes aceito que sejam consideradas como suas. Quando isso ocorre, o primeiro constitui o representado, denominado também autor, e o segundo é o representante, chamado também ator. “Quanto às pessoas artificiais”, escreve Hobbes, em certos casos algumas de suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam. Nesses casos a pessoa é o ator, e aquele a quem pertencem suas palavras e ações é o AUTOR, caso este em que o ator age por autoridade” 39 . Em consonância com a terminologhia usada, Hobbes equipara o direito de alguém às coisas com seu direito de ter palavras e ações alheias para si. Hobbes argumenta: “Porque aquele a quem pertencem bens e posses é chamado proprietário, em latim Dominus, e em grego Kyrios; quando se trata de ações é chamado autor. E tal como o direito de posse se chama domínio, assim também o direito de fazer qualquer ação se chama autoridade” 40 . Por autoridade Hobbes entende fazer qualquer coisa cujo direito de fazer provém daquele a quem pertence o direito de fazê-la. Vistos a partir do representante que age com autoridade, os direitos do representado estão à disposição de ambos, da pessoa artificial não menos do que da pessoa física. Tanto o autor do direito quanto o ator de direito podem dispor dos direitos. Graças à 39

Leviathan I, 16, p. 112. “Of Persons Artificiall, some have their words and actions Owned by those whom they represent. And then the Person is the Actor; and he that owneth his words and actions, is the AUTHOR: In which case the Actor acteth by Authority”; versão portuguesa, p. 100. 40 Ibidem. “For that which in speaking of goods and possessions, is called na Owner, and in latine Dominus, in Greeke Ku/rioj speaking of Actions, is called an Author. And as the Right of posssession, is called Dominion; so the Right of doing any Action, is called AUTHORITY ...”.


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autorização, nem uma pessoa é substituída por outra e tampouco os direitos às coisas de uma pessoa passam ipso facto a serem coisas da outra pessoa. O que ocorre, estabelecida a representação, é que o ator está em condição de dispor, em relação a terceiros, sobre os direitos do autor de modo como antes da autorização somente ele o fazia e, depois da autorização, o pode fazer lado a lado com o ator que o representa com autoridade. Enquanto o representante não dispõe sobre os bens a favor de terceiros, o representado continua sendo o único titular desses direitos. A autorização não equivale, para Hobbes, à renúncia de direitos ou ao estabelecimento do pátrio poder por parte do ator. O teórico político inglês desconhece a figura do autonegócio, vale dizer, não habilita o representante a contrair uma obrigação para consigo mesmo com os direitos do representado, mas está limitado ao poder de obrigá-lo perante terceiros como autoridade de direito. Hobbes explicita: De onde se segue que, quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o autor, e não menos do que se este mesmo o fizesse, nem fica menos sujeito a todas as conseqüências do mesmo. Portanto tudo o que ... se disse sobre a natureza dos pactos entre os homens em sua capacidade natural, é válido também para os que são feitos por seus atores, representantes ou procuradores, que possuem autoridade para tal dentro dos limites de sua comissão, mas não além disso 41 .

A criação do Estado perfaz, no Leviatã, um contrato de autorização dos chamados autores dos direitos em favor de um homem ou assembléia de homens. Para Hobbes, a única maneira de entender a unidade de uma multidão é graças à representação da mesma constituída numa pessoa por aqueles que compõem a multidão, “porque é a unidade do representante”, diz Hobbes, “e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una” 42 . Essa pessoa contém a essência do Estado, a qual Hobbes define como sendo “uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, 41

Ibidem. Leviathan I, 16, p. 114. “For it is the Unity of the Representer, not the Unity of the Represented, that maketh the Person One”; versão portuguesa, p. 102.

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mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autor ...” 43 . Diferentemente do que acontece em textos anteriores, a passagem do estado natural para o estado civil ocorre, no Leviatã, exclusivamente pela constituição da autoridade com os recursos da autorização, isto é, sem exigência à renúncia automática de direitos por parte dos contratantes. O nome de Estado merece, segundo Hobbes, a referência instituída por uma multidão de homens ao concordarem e se unirem, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens “a quem seja atribuída pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção ... deverão autorizar todos os atos e juízos desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões” 44 . A constituição da autoridade estatal – via autorização incondicional – não anula, esvazia ou suprassume por si só a titularidade jusnaturalista dos contratantes como seres humanos nascidos com direitos. Para o teórico político inglês, inexiste mundo afora um Estado que tenha regulado todas as ações e palavras dos homens. Tal empreendimento é, escreve Hobbes, “uma coisa impossível, com a conseqüência de que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis, os homens têm a liberdade de fazer o que as razões de cada um sugerirem como o mais favorável a seu interesse” 45 . O teórico político inglês infere a situação de súditos sob soberania absoluta da fórmula autorizadora que estabelece o Estado, insistindo: “Novamente, o consentimento de um súdito ao 43

Ibidem II, 17, p. 121. “And in him consisteth the Essence of the Commonwealth; which (to define it,) is One Person, of whose Acts a great Multitude, by mutuall Covenants one with another, have made themselves every one the Author ...”; versão portuguesa, p. 110. 44 Ibidem II, 18, p. 121. “... that to whatsoever Man, or Assembly of Men, shall be given by the major part, the Right to Present the Person of them all (that is to say, to be their Representative;) every one ... shall Authorise all the Actions and Judgements, of that Man, or Assembly of men, in the same manner, as if they were his own ...”; versão portuguesa, p. 111. 45 Ibidem II, 21, p. 147; versão portuguesa, p. 134.


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poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição à sua antiga liberdade natural” 46 . Também a obra póstuma, o Diálogo, atesta que o representado continua na posse do mesmo poder cujo exercício, em seu nome e sob a sua autoridade, confia ao representante, contrariamente àquele que, ao transferir seu poder sobre algo a algum outro, fica privado desse poder 47 . Por mais relevantes que sejam as diferenças entre os dois modelos da constituição estatal, ambos resultam na concepção hobbesiana de soberania absoluta. No primeiro caso, os homens renunciam entre si, pelo pacto de união, a favor de um terceiro ao direito de resistência. Beneficiário dessa união civil é o soberano não-partícipe do contrato de desistência, destinatário único que é da soma de direitos liberados por todos e por cada um em relação aos demais. O pactum unionis equivale a um pactum subjectionis, ou seja, o futuro súdito somente poderá contar com direitos que lhe forem devolvidos pelo Estado. Embora no segundo modelo o soberano tampouco seja parceiro contratual e todas as suas ações devam ser reconhecidas como próprias por cada um dos autores do pacto, a autorização não implica a renúncia automática dos direitos dos representados em favor do representante soberano. Por não fazer parte do contrato, o representante-ator não pode, igual ao soberano no primeiro modelo, praticar injustiça a qualquer um dos súditos, mas isso não significa que a autorização do segundo modelo torne sua autoridade mais absoluta do que ela é pela renúncia incondicional em virtude da união civil primordial 48 .

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Ibidem, p. 151; versão portuguesa, p. 137. Dialogue, p. 52. “He that transferreth his power, hath deprived himself of it: but he that committeth it to another to be exercised in his name and under him, is still in the possession of the same power”; versão portuguesa, p. 65. 48 Cf. Gauthier, David. The logic of Leviathan. The moral and political theory of Thomas Hobbes. Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 125-127 e 149; Dix, Bruno. Lebensgefährdung und Verpflichtung bei Hobbes. Würzburg: Königshausen & Neumann, 1994, p. 35-40. Outra opinião: Hampton, Jean. Hobbes and the social 47


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Ambos os modelos não prevêem prazos ou contêm cláusulas de rescisão e têm em comum a desistência do autogoverno por parte dos cidadãos 49 . A diferença do segundo modelo para o primeiro consiste no abandono da etapa democrática intermediária entre o status civilis e as diferentes formas de governo. Para Hobbes, o conceito da representação política, ausente no primeiro modelo, não é menos incompatível com a soberania popular do que para Rousseau. Com o modelo da autorização irrestrita, a concepção hobbesiana de soberania perde a contigüidade democrática originária. A soberania passa a ser concebida como conseqüência da representação, quer dizer, “a unidade do Estado não é mais concebível fora da representação” 50 , razão pela qual o teórico político inglês relega a democracia devido à representação e Rousseau rejeita a última em nome da democracia. O encaminhamento dado por Hobbes à incompatibilidade entre representação e democracia inverte a lógica rousseauniana da vontade geral. O teórico político inglês acaba privilegiando a monarquia, entre outras razões, porque entende que nela o interesse pessoal é idêntico ao interesse público e, enquanto tal, as paixões do monarca promovem necessariamente o bem da coletividade. “A riqueza, o poder e a honra de um monarca”, escreve Hobbes, “provêm unicamente da riqueza, da força e da reputação de seus súditos”, de modo que não pode ser do seu interesse que os súditos sejam pobres, desprezíveis ou fracos por carência ou dissensão. “Ao passo que numa democracia ou numa aristocracia”, conclui Hobbes, “a prosperidade pública contribui menos para a fortuna pessoal de alguém que seja corrupto ou ambicioso do que, muitas vezes, uma

contract tradition. Cambridge/London: Cambridge University Press, 1986, p. 126127. 49 Kersting, Wolfgang. Vertrag, Souveränität, Repräsentation. Zu den Kapiteln 17 bis 22 des Leviathan. In: Thomas Hobbes – Leviathan oder Stoff, Form und Gewalt eines bürgerlichen und kirchlichen Staates. Hrsg. von W. Kersting. Berlin: Akademie Verlag, 1996 (Klassiker Auslegen, Bd. 5), p. 221. 50 Herb. Op. cit., p. 101.


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decisão pérfida, uma ação traiçoeira ou uma guerra civil” 51 . Contra tal raciocínio Rousseau profere um veredicto contundente, ao escrever: Os melhores reis querem ser maus, caso lhes agrade, sem deixar de ser os senhores. Será grato a um pregador político dizer-lhes que, sendo sua força a do povo, seu maior interesse estará em ser o povo florescente, numeroso, temível; eles sabem muito bem que isso não é verdade. O seu interesse pessoal estará principalmente em ser o povo fraco, miserável, e nunca possa oferecer-lhes resistência 52 .

Avaliado pela posteridade, ambas as posições se condicionam mutuamente. O estado democrático de direito é inconcebível sem representação política e inviável sem soberania popular. Hobbes e a tradição político-aristotélica A tese de que Hobbes é o fundador do direito natural moderno é unilateral. A concepção hobbesiana de lei natural continua caudatária do direito pré-moderno e de seus pressupostos metafísicos. A articulação entre direito natural objetivo e subjetico segue as pegadas do nominalismo ockhamiano 53 . Novo é o conceito polar de direito, fincado na voluntas corpórea do homem. Com sua noção jusnaturalista de direito, isento de qualquer vinculação constitucional, Hobbes abala a tríade medieval de lex, ius e potestas e lança as bases das teorias políticas e jurídicas modernas 54 . 51

Leviathan II, 19, p. 131. “The riches, power, and honour of a Monarch arise onely from the riches, strength and reputation of his Subjects ... Whereas in a Democracy, or Aristocracy, the publique prosperity conferres not so much to the private fortune of one that is corrupt, or ambitious, as doth many times a perfidious advice, a treacherous action, or a Civil warre”; versão portuguesa, p. 119. 52 ROUSSEAU, Jean-J. Du contrat social; ou, principes du droit politique. In: Op. cit., p. 409; versão portuguesa, p. 95. Cf. Cell & MacAdam. Rousseau's response to Hobbes. New York: P.Lang, 1988. 53 Cf. Tuck, Richard. Hobbes. Oxford: University Press, 1989, p. 136. 54 Zarka, Yves Ch. Hobbes et la pensée politique moderne. Paris: Presses universitaires de France, 1995.


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A tradição do direito natural, o político teórico inglês não a assume senão como designativo. Vertido em direito exclusivo de indivíduos, o direito natural clássico torna-se desconexo, destituído que fica do tradicional fim político maior, chamado de soberano bem. Como critério primevo e absoluto vale, para Hobbes, “um preceito ou regra geral da razão”, de acordo com o qual “... todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” 55 . Concebida desatrelada da pólis, a naturalidade racional e física do homem constitui, ao mesmo tempo, o suporte da lei e do direito. A primeira parte do preceito ou da regra geral e encerra, em Hobbes, “a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e seguila”, e a segunda parte contém “a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos” 56 . A redução dos objetivos da atividade humana à sobrevivência individual exige redefinição do telos político maior, adequando-o à consecução de fins imediatos e à objetivação de eventuais empreendimentos coletivos. Os componentes da redefinição hobbesiana do direito natural resultam da aplicação da regra tradicional definitio fit per genus proximum et differentia specifica. Enquanto a liberdade natural constitui o gênero no qual o direito natural é enquadrado, a autopreservação perfaz a diferença específica, habilitando o homem ao uso de todos os meios julgados apropriados para manter-se vivo. Ambas, liberdade e autopreservação, têm por referência única os indivíduos empíricos. “Pela palavra direito”, escreve Hobbes, “nada mais se significa do que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas

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Leviathan I, 14, p. 91. “And consequently it is a precept, or generall rule of Reason, That every man, ought to endeavour Peace, as farre as he has hope of obtaining it; and when he cannot obtain it, that he may seek, and use, all helps, and advantages of Warre”; versão portuguesa, p. 82. 56 Ibidem.


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faculdades naturais em conformidade com a reta razão” 57 . A individuação física e a individuação jurídica do ser humano são, para Hobbes, indistinguíveis por origem e finalidade. “Por conseguinte, a primeira fundação do direito natural consiste em que todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em proteger sua vida e seus membros” 58 , ou na versão do Leviatã, “para a preservação de sua própria natureza” 59 . Encarado do ponto de vista da tradição – onde a lei natural remete a uma comunidade política cujos costumes e instituições mantêm-se fora do raio de ação dos indivíduos – as definições hobbesianas do direito natural promovem uma nadificação teleológica. O argumento equivale a dizer que, devido à perda dos fins políticos naturais, a modernidade política nasce de todo desprovida de fins e objetivo, de sorte que à atividade política restaria, como única e exclusiva referência, a existência biológica dos seres humanos, sujeita aos imperativos da manutenção nua e crua da vida e condenada a técnicas de sobrevivência postas a serviço de indivíduos carentes de rumo e morada ontológica. Tal recepção do binômio individualismo/absolutismo obedece a uma estratégia de terra-arrasada em relação ao fundamento do direito natural hobbesiano, ignorando a repetida distinção de Hobbes entre vivere e bene vivere, assim como entre esse e bene esse 60 . Quando o teórico político inglês declara que “todo homem, por necessidade natural, empenha-se por defender

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De cive I, 7. “Neque enim Iuris nomine aliud signifactur, quam libertas quam quisque habet facultatibus naturalibus secundum rectam rationem utendi”; versão inglesa, p. 70; versão portuguesa, p. 35. 58 Ibidem. “Itaque Iuris naturalis fundamentum primum est, ut quisque vitam & membra sua quantum potest tueatur”. 59 Leviathan I, 14, p. 91. “... for the preservation of his own Nature”; versão portuguesa, p. 82. 60 Cf. De homine 11, 6, onde sua cuique conservatio equivale a sibi bene esse, e, De cive XVII, 12, onde se distingue vivere de bene vivere; versões inglesas, respectivamente, p. 48 e 194.


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seu corpo e as coisas que julga necessárias para protegê-lo” 61 , ele não apenas está-se referindo ao status quo biológico, mas sim à segurança da vida no futuro (securitatem futuri temporis) 62 . Com isso, o conceito de conservação, à primeira vista estático e reducionista, adquire a dinâmica do auto-incremento civilizatório, englobando para além da preservação física toda gama de ingredientes relativos ao bem-estar humano. Contrariamente à tese da inversão teleológica, que reduz a conservação àquilo que de qualquer forma é e aí está, o conceito hobbesiano de autoconservação implica uma programação metafísica entre nascimento e morte natural do ser humano, à luz da qual o indivíduo postula a melhor maneira de lidar com o seu meio e suas circunstâncias, ponderando alternativas, fazendo escolhas e consolidando o ser que se é por natureza 63 . Longe de nadificar a dimensão teleológica, Hobbes concebe o fim do homem como modo de estar vivo, gerando continuamente acréscimos a si mesmo pela acumulação ininterrupta de poder. O novum dessa concepção de finalidade consiste em substituir a figura de um ente político cujo fim atualiza uma essência de ser, pela figura do vivente político que acumula poder com vistas àquilo que naturalmente lhe é dado querer. O fim que está continuamente junto a si mesmo dessubstancia o telos essencialista do agente político clássico, e acaba firmando uma estrutura de ação que tem no poder o derradeiro e indeclinável objeto da existência. Na obra do teórico político inglês inexiste a inversão teleológica que antecipe o finalismo apolítico supostamente intrínseco a um exemplar biológico que produz, segundo Marx, seus meios de vida e gera, conforme Nietzsche, o material do super-homem. A distância que 61

De cive II, 3. “Quisque enim & Corpus suum, & ea quae corpori tuendo necessaria sunt, necessitate naturae conatur defendere”; versão inglesa, p. 33; versão portuguesa, p. 46. 62 De homine 11, 6. “Cujus ut capaces esse possint, necesse est cupiant vitam, sanitatem, et utriusque, quantum fieri potest, securitatem futuri temporis”; versão inglesa, p, 48. 63 Zarka. La décision métaphysique de Hobbes. Conditions de la politique Paris: J. Vrin, 1987.


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vai do revolucionário ao profeta é incomensuravelmente menor do que a distância que separa o hábitat do homem natural do cidadão hobbesiano. Desconsiderada a polêmica circunstancial com Descartes, o Estagirita é o único clássico da filosofia que Hobbes critica impiedosamente, mas do qual se distancia com um mal-disfarçado respeito. Comparado com Aristóteles, mesmo Platão, “the best Philosopher of the Greeks ...” 64 , não recebe a mínima atenção do teórico político inglês. Skinner escreve que, ao final da vida, “Hobbes identificou sua principal realização no fato de haver criado, pela primeira vez, uma ciência objetiva da virtude, uma ciência fundamentada nas leis da natureza e, por conseguinte, no supremo imperativo moral de buscar a paz” 65 . Mesmo tomando tal escopo como exemplar da ciência civil hobbesiana 66 , a obsessão do teórico político inglês pela filosofia prática aristotélica afigura-se paradoxal. Em nenhuma parte do corpus aristotélico são desenvolvidos argumentos dos quais possa ser extraída uma teoria geral acerca das relações entre o que é justo por natureza e o que é justo segundo as leis da pólis e, muito menos, ser adquirida a idéia de que a physis constitui uma boa justificação para a existência do nomos. Pelo contrário, de inúmeras passagens da obra de Aristóteles se depreende que a natureza não presta como princípio norteador de legislação para as cidades. Isto vale sobremodo para a noção de physei dikaion. Onde se lê, na Ética nicomaquéia, que o justo na pólis é em parte naturalmente justo e parcialmente justo por lei 67 , o filósofo grego não assume o justo por natureza como fonte de sustentação 64

Leviathan IV, 46, p. 461; versão portuguesa, p. 390. Skinner. Op. cit., p. 326. “Hobbes viewed his main achievement, in short, as that of having created for the first time an objective science of virtue, a science grounded on the laws of nature and hence on the paramount moral imperative of seeking peace”; versão portuguesa, p. 430. 66 Cf. Tuck. Hobbes’s moral philosophy. In: Sorell, Tom (Ed.). Hobbes. Cambridge: University Press, 1996, p. 175-207. 67 Aristóteles. Ethica nicomachea 1134b18-20, p. 103; versão inglesa, p. 1790; versão portuguesa, p. 91. 65


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para o que é politicamente justo. Nem as constituições políticas fazem parte, segundo Aristóteles, daquilo que é natural, mas assentam sobre o que é legal por acordo ou conveniência. Mesmo onde escreve que há uma constituição que é a melhor por natureza e, como tal, não necessita de mudança, Aristóteles não diz que aquilo que a torna possível equivale à ordem natural do cosmo. Na Retórica, o filósofo da pólis dá dois exemplos para o que entende por physei dikaion, a saber: enterrar os mortos e não matar os vivos 68 . Tais ações são justas em desconsideração ao fato de estarem ou não prescritas pelas leis da cidade. Quem a bel-prazer se omite, no primeiro caso, ou age ad libitum, no segundo, está praticando algo que por natureza é injusto. Mas disso não se infere que matar alguém nomou, portanto, amparado pelas leis da pólis possa não ser justo, ou esteja excluído que deixar alguém sem sepultura possa não estar justificado de acordo com as leis da cidade. Aristóteles não partilha da opinião daqueles que vêem no dikaion politikon uma mera convenção. Ele refuta o argumento, que aparentemente legitima tal modo de pensar, a saber: coisas por natureza são imutáveis e têm em toda parte a mesma força, “como o fogo, que entre nós queima tão bem quanto na Pérsia”, ao passo que registram alterações nas coisas reconhecidas como justas. Aristóteles contesta a tese de acordo com a qual a mutabilidade é critério suficiente para estabelecer a não-naturalidade das leis do justo político, ao contrapor que o que foi dito “não é verdadeiro de modo absoluto, mas apenas em certo sentido, ou melhor, para os deuses talvez não seja verdadeiro de modo algum”, uma vez que neles não há movimento, enquanto para nós existe alguma coisa que é justo mesmo por natureza, embora esteja sob as leis do movimento, mas nem por isso deixa de ser verdadeiro que algo é por natureza e algo não é por natureza. Quanto à distinção entre o que, naquelas coisas que também podem ser de outro modo, é naturalmente justo e o que não o é, porque justo por lei e 68

Idem. Retórica 1373b3-18. Ed. by J. Barnes, vol. II. Princeton: University Press, 1995, p. 2187.


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convenção, Aristóteles diz que ela é por si mesma evidente, desde que admitido que um e outro justo são de igual maneira variáveis. “A mesma distinção”, assevera, “vale em todas as outras coisas: por natureza, a mão direita é a mais forte; e no entanto é possível que todos os homens venham a tornar-se ambidestros” 69 . Hobbes passa ao largo dessas considerações. Homens cujo fim consiste em serem politicamente felizes, numa vida virtuosa comum, não precisam ser forçados a agir ou a omitir-se. Eles concordam pacificamente sobre o que é necessário fazer para usufruírem da felicidade, ou se põem facilmente de acordo acerca de regras que ditam como essa necessidade tem que ser estabelecida. Com a mesma naturalidade, tais homens admitem a justificação pedagógica de neutralizar a possibilidade de alguém opor-se ao bem comum, razão por que também é natural que não concebam uma lei segundo a qual seja necessário exigir o emprego da força com vistas à promoção do fim maior que a todos congrega na cidade. De qualquer maneira, não é com base numa lei natural que tal coerção venha a adquirir caráter legal. O direito outorgado por lei natural consiste na faculdade de cada homem vincular o outro ao fim ético que é próprio a todos por natureza. De todo inconcebível permanece a idéia segundo a qual assiste a cada homem o direito de recorrer à força em relação aos demais, tendo em vista a liberdade, própria a cada homem, de agir da maneira que melhor lhe apraz. A crítica hobbesiana a Aristóteles não incide sobre a idéia conseqüente do filósofo grego de que a comunidade política é, como o todo em relação às partes, lógica e ontologicamente anterior às demais agregados humanos. Hobbes tampouco questiona o tipo de continuidade e descontinuidade estabelecido por Aristóteles entre a pólis e as formas comunitárias do lar e do vilarejo, cronologicamente anteriores à comunidade política soberana. A incidência crítica ocorre na concepção do fim político maior sustentado pelo Estagirita. Hobbes raciona sobre o telos aristotélico 69

Idem. Ethica nicomachea 1134b24-34-1135a-1, p. 103-104; versão inglesa, p. 1791; versão portuguesa, p. 91.


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e vê que o homem é por ele afetado enquanto há comunidade política. Aristóteles não diz que o homem é um animal político independentemente do fato de haver ou não pólis, quer dizer, indiferente à condição de o homem ser membro ou não da comunidade política. Para o filósofo grego, o homem somente é naturalmente político porque depende da cidade para ser o que é por natureza. Aristóteles não dispõe de uma conceito naturalista de anthropos cujo fim político lhe pudesse advir de uma vida justa e boa, alheia a um comunidade política autárquica. “E por conseguinte”, argumenta Aristóteles, “se as formas anteriores de comunidade são naturais, assim é a pólis, porque ela é o fim delas, e a natureza de uma coisa é seu fim” 70 . O termo physei tem um duplo significado, sendo entendido como causa e fim de um processo que vai do lar à comunidade política soberana. “A cidade,” continua Aristóteles, “é fim das sociedades precedentes, mas isto precisamente é assim porque a constituição que cada coisa é quando tem completado o seu desenvolvimento nós chamamos de natureza, seja o homem, o cavalo ou o lar, isto é, sendo o fim e o objetivo o melhor, a autosuficiência é o fim e o melhor” 71 . Na medida em que a natureza é condição do desenvolvimento de todas as coisas, como por exemplo do homem, do cavalo e da casa, a pólis é condição sine qua non da existência do homem como ser natural, e na medida em que ela é fim último de cada coisa, como homem, cavalo ou casa bem desenvolvidos, a pólis é a auto-suficiência do homem enquanto fim do que há de naturalmente melhor. Fica manifesto, conclui Aristóteles, “que a cidade é uma criação da natureza, e o homem é, por natureza, um ser político” 72 , ou, ao inverso, se a pólis não é physei, o homem não se distingue por natureza dos demais seres dos quais, a exemplo de cavalos e casas, a natureza é causa e fim. A objeção de Hobbes à teleologia aristotélica procede na medida em que, pela physis, o homem é tanto o fim da pólis quanto 70

Idem Politica 1252 b-3032; versão inglesa, p. 1987; versão portuguesa, p. 15.. Ibidem 1252b-32-1253a-1. 72 Ibidem 1253a3. 71


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esta é o fim do homem, pois, argumenta Aristóteles, “destruído uma vez o corpo por inteiro não haveria mais pé nem mão, à exceção de nomes, assim como podemos falar de uma mão de pedra” 73 . É graças à natureza que a pólis é o fim do animal político – chamado de homem – e, como tal, é logicamente anterior a ele como o todo em relação às partes, e é graças à mesma natureza que o homem, chamado de animal político, é o objeto da pólis e, como tal, existe cronologicamente antes dela como organismo corpóreo. A crítica hobbesiana não consiste em submeter a concepção da physis de Aristóteles ao princípio da contradição – integrando, como Hegel faz, ser e nada no devenir do grande conceito – mas em inverter a dinâmica conceitual aristotélica, raciocinando a partir de nomes que significam o nada político clássico em direção a nomes que significam o ser político moderno. Longe de constituir uma subversão, nadificação ou superação do pensamento político do Estagirita, a chamada inversão teleológica de Hobbes cria uma alternativa metafísica antinômica ao clássico fim político da tradição. O ser humano não é mais o substrato natural que faz a pólis ser por natureza, mas apenas o material de uma vontade cuja atuação, movida por um ditado da reta razão, cria o Estado. Referida à voluntas hobbesiana, a posição aristotélica, de acordo com a qual o que um ser tem que ser é o que ele é, não configura uma contradição, mas, sim, um simples movimento contrário ao raciocínio do pensador grego. O ditame do fim político, Hobbes o formula da seguinte maneira; “Muito embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal, contudo, se os homens se servissem da razão da maneira como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males internos” 74 . A novidade do telos político moderno está na pretensão racional de estabelecer uma ordem de convívio indiferente ao lugar, ao tempo e às circunstâncias que 73

Ibidem 1253a22-22; versão inglesa, p. 1988; versão portuguesa, p. 15. Leviathan II, 29, p. 221. “Though nothing can be immortall, which mortals make; yet, if men had the use of reason they pretend to, their Common-wealths might be secured, at least, from perishing by internall diseases”; versão portuguesa, p. 196.

74


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historicamente a situam, bem como no fato de ser imune a tradições éticas, científicas ou culturais anteriores ao evento da convivência civil. A razão usada como ditado dispensa uma convergência natural entre vida justa e vida boa, uma vez que propõe aos indivíduos o bem-viver de uma ordem correta de relações recíprocas. “Portanto,” raciocina Hobbes, “quando acontece serem dissolvidos [os Estados, J.N. Heck], não por violência externa, mas por desordem intestina, a causa não reside nos homens enquanto matéria, mas enquanto seus obreiros e organizadores” 75 . Voltado contra Aristóteles, isso significa que o desaparecimento da pólis grega, na medida em que ocorre endogicamente, é devido a um uso incorreto da razão ou, como Hobbes diz, não por causa do uso que os homens pretendem fazer da razão, mas devido ao uso que dela fazem. Somente no âmbito da filosofia prática de Aristóteles tal objeção constitui uma novidade política. Caso a interdependência entre pólis, enquanto comunidade política natural, e o homem, como ser nela subsistindo naturalmente, apenas seja subvertida, anulada ou suprassumida, o novum da ciência civil hobbesiana permanece meramente retrospectivo. O teórico político inglês estaria fingindo que faz uso da razão, ao elencar uma série de explicações para o fato de que as sociedades políticas se dissolvem ao longo da história, sem poder indicar, com a mesma razão, por que as sociedades dissolvidas algum dia foram constituídas como agregações políticas. De acordo com esse tipo de explanação post festum, os homens apenas sabem das razões pelas quais suas obras fracassam, mas ignoram de todo a razão pela qual subsistem. Tal é a morbidez lógica do idealismo hegeliano, cujo espírito faz de conta que retorna à natureza, quando dela em momento algum consegue sair. Em contrapartida, e parafraseando a doutrina política do Estagirita, nada é mais distante da doutrina política hobbesiana do 75

Ibidem. “Therefore when they come to be dissolved, not by externall violence, but intestine disorder, the fault is not in men, as they are the Matter; but as they are the Makers, and orderers of them”.


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que a ratio negativa dos empreendimentos fracassados da espécie humana. Um indício por que Hobbes concentra toda tradição política ocidental em Aristóteles é o dado histórico elementar de que a teologia cristã recorre invariavelmente ao pensador grego quando se trata de justificar racionalmente o domínio da civitas. Mesmo para uma doutrina revelada como a cristã, a excelência das comunidades humanas é sublunar e ostenta um caráter telúrico inconfundível. Para Hobbes, não obstante mortal como seus usuários, a razão da qual os homens fazem uso é consistente, assim como são acertados os procedimentos racionais que resultam no Estado, “pois, pela natureza de sua instituição” – escreve Hobbes – “[os Estados, J.N. Heck] estão destinados a viver tanto tempo quanto a humanidade, ou quanto as leis de natureza, ou quanto a própria justiça, que lhes dá vida” 76 . A declaração honra Aristóteles como o pai político do Ocidente, sob a condição de que o fim metafísico seja estabelecido pelo uso correto da razão, e não por um uso incorreto dela por amor à natureza, da qual, segundo Hobbes, os homens não são senhores senão imitadores, obreiros em condições de comporem um animal artificial. De acordo com o raciocínio hobbesiano, ao decompor o corpo biológico em suas partes, o filósofo grego está pretendendo usar a razão, mas na verdade apenas a usa como exemplo, uma vez que a decomposição do organismo humano é providenciada pela natureza, à revelia de qualquer contribuição por parte dos homens. Em contrapartida, o autômato estatal, feito pelo homem ao imitar a natureza, é um autêntico corpo político. À diferença do animal politico clássico, cuja dissolução é obra da natureza, o animal político moderno – o Estado – pode ser decomposto em partes por seu criador, imitando a natureza que procede bem com tudo o que é feito por ela, seja compondo, seja decompondo. Ao mostrar que o Deus mortal tem tão pouco uma causa formal quanto o Deus 76

Ibidem. “For by the nature of their Institution, they are designed to live, as long as Mankind, or as the Lawes of Nature, or as Justice it selfe, which gives them life”.


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imortal, o teórico político inglês demonstra que a ausência de uma constituição é o pressuposto metafísico tout court da soberania absoluta do Estado moderno. Conclusão As doutrinas filosófico-políticas de Hobbes e Aristóteles remetem uma à outra na medida em que ambas invocam a natureza a seu favor. Animais aristotélicos e hobbesianos sobrevivem lado a lado. Esses têm a natureza por lei, aqueles a tomam por alvo e fim. O contraponto político-metafísico somente é resolúvel à luz do fragmento mais antigo do Ocidente, de acordo com o qual a morte é a senhora da justiça, ou seja, nada há em Anaximandro que diferencia entre o que é indefinido e aquilo que quer porque quer ser definido. A crítica do teórico político inglês ao pensamento clássico continua pertinente enquanto o absolutismo moderno não é deconstruído metafísicamente. Em contrapartida, poderes capilares inapreensíveis teoricamente prodigalizam cidadania ateniense aos modernos como, inversamente, a tradição político-filosófica não oferece mais resistências à Modernidade no momento em que a concepção grega de physis está humanizada. Ambas as versões reivindicam de um dos clássicos o que o outro de melhor tem para dar. No primeiro caso, por reverência a um bios que Hobbes simplesmente transverte em corpo e, no segundo caso, por amor a uma atividade que em Aristóteles permanece de todo apolítica – o trabalho. Referências ADAM, Armin. Despotie der Vernunft. Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel. Freiburg/München: Verlag K. Alber, 1999. ARISTOTELES. Ethica nicomachea. Ed. by I. Bywater. Oxford; University Press, 1962. Edição inglesa editada por J. Barnes. Princeton: University Press, 1995. Trad. por Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Col. Os Pensadores).


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A teoria óptica de Hobbes * Cláudio R. C. Leivas **

Resumo: O presente artigo procura apresentar as linhas gerais da teoria óptica de Hobbes. Antes de examinarmos o desenvolvimento de seus estudos ópticos, porém, faremos um breve resumo de concepções ópticas anteriores na tentativa de situar o leitor no contexto da história da óptica. Palavras-chave: Percepção, Representação visual, Teoria óptica Abstract: The present article intends to bring out the general lines of Hobbes´s optical theory. However, before examine the development of his optical studies, we will make a preliminary résumé concerning opticals conceptions prior to Hobbes´s, with the purpose to situate the reader in the context of optic’s History. Keywords: Optical theory, Perception, Visual representation

Do ponto de vista do conhecimento científico e filosófico o século XVII pode ser considerado uma época de rupturas e inovações. Noções como verdade, certeza e novidade eram freqüentemente usadas pelos novatores 1 em seu criticismo da tradição escolástica *

Estou em dívida com o Prof. Carlos Ferraz, do Departamento de Filosofia da UFPel, por suas sugestões sobre partes deste artigo. ** Professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas, UFPel. E-mail: clleivas@hotmail.com. Artigo recebido em 04.09.2007e aprovado em 18.10.2007. 1 De acordo com C. Leijenhorst “a separação em Hobbes entre razão e fé e sua distinção entre filosofia e teologia o situava num amplo movimento no século dezessete”, de forma que “como muitos dos novatores Hobbes sente que tinha de defender a autonomia da filosofia, a libertas philosophandi, contra as tendências imperialistas dos teólogos” (cf. The Mechanisation of Aristotelianism, p. 27). Já P-F. Moreau diz que “o mundo que se inaugura então é um mundo em crise: pois se vê ele mesmo como que lutando por uma nova forma de pensamento contra uma outra que ainda não morreu; combatendo a tradição ... [e] edificando os sistemas inovadores (systèmes novateurs) ... [Hobbes] está perfilado inegavelmente no campo dos nouveaux philosophes da idade clássica, daqueles que querem, cada um ao seu modo, tirar do conjunto do pensamento as conseqüências dessa mudança radical” (Hobbes: Philosophie, science, religion, p. 27-28).

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 39-53.


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para ensejar o que entendiam ser um novo e verdadeiro sistema de pensamento fundado no rigor que é próprio do raciocínio cientifico. Imprescindível à nova filosofia e à nova ciência era a separação entre razão e fé – separação essa que se traduzia por sua vez num relativo 2 afastamento entre filosofia e teologia. Estreitamente alinhado com esse amplo movimento de filósofos e cientistas que acreditavam na necessidade de uma reforma radical de idéias para preparar o advento de uma nova concepção de mundo, Hobbes estava convencido que antes de Galileu e Harvey “não havia nada de certo na Física” e que depois deles “Kepler, Gassendi e Mersenne promoveram de forma extraordinária a Astronomia e a Física universais” (De Corpore, ep. ded. p. 29-30). Pressupostos metafísicos associados a certas reflexões pertinentes à esfera da ciência óptica era um recurso bastante usado pelos novatores para pensar o novo mundo e as descobertas científicas. A. Koyré diz no clássico Do mundo fechado ao universo infinito, por exemplo, que Kepler recorre a razões metafísicas para negar a doutrina da infinitude do mundo bem como à óptica porque em se tratando do mundo que nós vemos, segue que “a Astronomia está estreitamente relacionada com a visão, ou seja, com a óptica, [e] não pode admitir coisas que contradigam as leis da óptica” 3 . Penso que não será sem propósito observarmos aqui que a primeira obra de Hobbes – isto é, o Curto Tratado – e a sua última obra – isto é, o De Homine – tratam de questões relativas à óptica. Antes de adentrarmos no exame da teoria óptica de Hobbes, porém, parece oportuno que consideremos alguns pontos relativos aos estudos ópticos que antecedem as reflexões de Hobbes sobre o assunto em questão.

2

A autonomia da filosofia em relação à teologia varia nessa época de acordo com as convicções religiosas de cada pensador. Nesse sentido, Kepler se mostra intimamente atrelado à religião para negar a infinitude do mundo enquanto Hobbes afirma a radical separação entre o Estado e a igreja, preconizando assim a exclusão das igrejas do exercício do poder político. 3 Koyré, A. Do mundo fechado ao universo infinito, p. 63-66.


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1 Da óptica antiga à óptica moderna G. Simon diz que a óptica antiga visa explicar menos as causas físicas da luz que a visibilidade, de forma que os estudos ópticos da antiguidade estão assentados “na hipótese da emissão do raio visual a partir do olho” 4 . Ele chega a essa conclusão através da leitura de textos relativos ao fenômeno óptico da antiguidade, textos esses que nos permitem constatar que nessa época o objeto de estudo da óptica é o conceito de raio visual ao invés do conceito de raio luminoso. Em sua obra O olhar, o Ser e a Aparência na óptica da antiguidade Simon denuncia a tendência dos modernos em interpretar a óptica antiga na perspectiva do conceito de raio luminoso, desconsiderando dessa forma a fundamental distinção entre cones visuais e cones de luz. De fato, na concepção de Euclides, cuja obra é ponto de referência para o estudo da óptica antiga, não se pode separar o olhar da faculdade que julga e que conhece porque “a figura circunscrita pelos raios visuais é um cone que tem seu cume no olho e sua base nos limites daquilo que é visto” 5 . A redução da luz e das cores ao cálculo que estabelece a forma e os contornos do visível conduz a óptica antiga em seu conjunto para uma espécie de geometria do olhar. Evidencia-se pois que na teoria da emissão da luz dos antigos a emissão material dos feixes luminosos é compreendida nos termos de uma abstração geométrica: [A óptica antiga] foi em primeiro lugar uma analítica do olhar. Invenção capital, metodicamente explorada por Euclides, ela imagina fazer corresponder termo a termo a um componente (élément) do visível um componente da vista (vue). O vínculo entre um e outro é o raio visual: a retidão (rectitude) que lhe atribuímos permite transformar o problema imensamente complexo da visão – o que é ver e como vemos? – numa investigação propriamente geométrica: como percebemos as direções, as distâncias, as grandezas, as formas, os movimentos? 6

4

Simon, G. Le regard, l´être et l´apparence dans l´optique de l´antiquité, p. 16. Euclides, Óptica. In: Simon, G., op. cit., p. 21. 6 Simon, G., op. cit., p. 187. 5


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Esse modelo óptico que explica a luz através da noção de visibilidade – ao invés de explicá-la através de suas propriedades de propagação – começou a sofrer alterações significativas a partir dos estudos ópticos medievais de Al-Hazen no século X e de Vitelo no século XIII. Al-Hazen introduz no campo da óptica a teoria da recepção pelo olho dos raios de luz bem como formula as bases da teoria da propagação da luz que dominará a óptica moderna. Posteriormente Vitelo deu continuidade aos escritos ópticos de AlHazen. Porém, apesar das descobertas dos medievais no campo da óptica, essa permanecia ainda definida como ciência da luz e da visão e o vidente e o visível unificados como os dois lados de uma mesma moeda 7 . A idéia da teoria óptica como física da luz surge com Kepler no século XVII a partir da descoberta da “formação de uma imagem real sobre a retina, produzida pela convergência do cristalino concebido como o análogo de uma lente” 8 . A partir dessa descoberta o olho passa a receber o estatuto de dispositivo óptico, de forma que a idéia do olho como um órgão sensorial reduzido à sensibilidade – isto é, à sensibilidade qua projeção material e psíquica – perde gradativamente sua força argumentativa. O raio de luz é doravante concebido como uma realidade e não mais como uma projeção do visível. A teoria física da luz dos modernos tem então como objeto a propagação dos raios luminosos, o que implica um afastamento da idéia de raio visual dos estudos ópticos antigos. O que não significa, bem entendido, que a idéia de visibilidade seja ali descartada em definitivo 9 . O que podemos afirmar com certeza é que a partir das novas descobertas a ciência óptica passa por um processo de bifurcação que termina por dividila em teoria da luz e teoria da visão.

7

Cf. Prins, J., Kepler, Hobbes and medieval optics. Simon.G,. op. cit., p. 12-12. 9 Os estudos ópticos de Descartes podem ser sintetizados, conforme diz M. Fichant, na idéia de uma “geometria do olhar”. Ver também a analise que M. Ponty faz de Descartes em “O olho e o espírito”, em especial a concepção de “pensamento visual” que M. Ponty atribui como sendo um modelo óptico cartesiano. 8


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Os estudos ópticos de filósofos como Hobbes e Descartes seguem rigorosamente essa nova classificação que estabeleceu os contornos do campo de estudo da óptica renascentista. Como o meu principal interesse aqui é abordar a teoria da visão de Hobbes para compreender como ele opera a construção do seu conceito de representação visual, examinarei a seguir en passant a parte física da sua óptica para depois abordar a sua teoria da visão. 2 Hobbes e as causas físicas da luz A teoria da intromissão da luz de Al-Hazen (isto é, a idéia que vemos através de raios de luz que entram nos olhos a partir do exterior) substitui gradativamente a teoria da emissão da luz dos antigos (isto é, a idéia que vemos através de raios visuais emitidos pelo olho). Vitelo continua os estudos de Al-Hazen e acrescenta que o raio de luz deve ser definido como um feixe de linhas matemáticas 10 . A explicação física da luz recebe com Vitelo um “tratamento puramente geométrico” de forma que o fenômeno óptico passa a ser explicado em termos de “pontos e linhas” 11 . Prins sugere que os estudos desenvolvidos pelos ópticos medievais reduzem a óptica à geometria de forma que a natureza da luz é por eles formulada a partir de um tratamento puramente geométrico de problemas físicos justificado pelo conceito de raio de luz 12 . Em resumo, a forma geométrica como os antigos explicavam a visão através da noção de raio visual sofre uma readequação com os medievais de forma a conduzir a uma explicação física da luz justificada pela geometrização do raio de luz. A teoria física da luz de Hobbes parece compatível com a teoria da intromissão da luz dos ópticos medievais. Hobbes utiliza, por exemplo, o termo lux para se referir à fonte original de luz que irradia de um corpo luminoso antes de se dirigir para o centro do olho. Lux, dessa forma, é distinto de lumen, visto que esse último

10

Prins,. op. cit., p. 296. Idem, ibid. 12 Idem, ibid. 11


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termo se refere não à luz original mas à luz refletida – isto é, à luz como fantasma, que pertence à sua teoria da visão 13 . A objetividade da causa física da luz – lux – é diferenciada em Hobbes da subjetividade da qualidade sensível – lumen –, que surge como uma reação no interior do dispositivo óptico em decorrência de estímulos nervosos no cérebro e no coração. A óptica hobbesiana remete dessa forma a uma teoria da intromissão da luz ao definir as causas físicas da luz pelo termo lux e a uma teoria da emissão da luz compreendida como lumen ou fantasma 14 . A primeira explicação do fenômeno óptico na terceira seção do Curto Tratado evidencia a objetividade da causa da luz respaldada na idéia clássica da emissão da luz pelas espécies através de um medium: Luz, cor, calor e outros objetos próprios da sensação ... nada mais são do que as diferentes ações das coisas exteriores sobre os espíritos animais, pelos diferentes órgãos. Pois se a luz e o calor fossem qualidades inerentes em ato às espécies, e não diferentes modos de ação – porque as espécies entram por todos os órgãos para ir aos espíritos – se deveria ver o calor e sentir a luz, o que é contrário à experiência” (CTr., p. 45).

13

É de se observar que já no CurtoTratado Hobbes se refere ao termo lux como luz primitiva e ao termo lumen como luz derivada. Na medida que “por luz primitiva se entende lux [e] por [luz] derivada lumen” surge então como corolário que assim como “a luz primitiva e a cor estão para os corpos luminosos ou coloridos assim a luz derivada e a cor estão para as espécies”. 14 Segundo Prins a óptica de Hobbes não é geométrica uma vez que ela está determinada causalmente pelo movimento. A óptica de Hobbes estaria, ainda segundo Prins, situada no plano da física matemática. Zarka sugere, ao contrário, que ela é geométrica e remete ao começo do De Homine onde Hobbes diz que a óptica é uma ciência demonstrativa da mesma forma que a geometria, de modo que, continua Zarka, é importante não confundir “os movimentos da matéria que produzem em nós a representação da luz ou do calor com as qualidades sensíveis”. Em nossa opinião, são dois diferentes enfoques da teoria óptica de Hobbes que não precisam ser necessariamente excludentes. Sugiro que há em Hobbes a compatibilidade entre uma mecanização da luz e uma geometrização do olhar, o que podemos observar, por exemplo, através da passagem em Hobbes das razões físicas da luz para o ato da construção geométrica do visível, ou ainda pela comparação do termo lux com o termo lumen.


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O Curto Tratado apresenta dessa forma uma explicação da teoria mediúnica da luz fundada no conceito de Species. O fundamento lógico dessa explicação – conforme estabelecido por Hobbes na terceira seção do Curto Tratado – consiste em que a causa eficiente está do lado do objeto e não do lado do sujeito. De fato, a terceira seção do Curto Tratado esclarece que “o objeto é a causa eficiente ou agente do desejo e os espíritos animais o paciente” (CTr., p. 53). Uma vez estabelecido que o princípio de causalidade é da ordem do objeto e não da ordem do sujeito segue como corolário que a natureza mediúnica da luz é compatível com a teoria da emissão das Species: – “Todo agente que age sobre um paciente à distância o toca seja pelo Medium, seja por alguma coisa que sai dele mesmo, a qual será denominada Species” (CTr., p. 25). Essa concepção começa porém a sofrer mudanças a partir do Tractatus Opticus I onde Hobbes afirma que “se não houvesse visão não haveria nada que chamaríamos de luz” (T. op. I, O. L., V, p. 220). A aparição da luz e das cores é doravante um fenômeno subjetivo e situa-se em claro contraste com a tese objetivista da emissão da luz pelas espécies do Curto Tratado. Se no plano da origem da luz a teoria da luz de Hobbes – dada a inserção das teses do Tractatus Opticus I – indica um movimento que articula a ação do meio a partir da fonte luminosa, esse movimento, concebido como propagação da luz a partir do meio, vem a ser luz somente quando há um sentimento da luz em nós, sentimento esse que é definido como visão. Em resumo, lux e lumen são agora explicados de forma subjetiva. A conclusão das teses ópticas no pensamento maduro 15 de Hobbes parece indicar o que segue: a ação física da luz não basta para explicar todas as modalidades da visão 16 . A passagem das causas físicas da luz para a explicação da visão através da constituição do conceito de representação visual é o que pretendemos examinar no próximo item.

15 16

Isto é, no Tractatus Opticus I e II, no De Homine, etc. Cf. Zarka, idem, p. 137.


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3 A formação das representações visuais Estabelecida a hipótese de que a ação física da luz é insuficiente para produzir a visão, a teoria óptica hobbesiana remete a um complexo sistema psíquico-fisiológico para adequar a teoria da luz à teoria da visão: A ação de um objeto luminoso, quando propagada para o fundo do olho e conseqüentemente para o cérebro, é a causa da reação pela qual um movimento é transmitido para fora do cérebro, através do olho, na direção dos objetos externos. O último movimento, contudo, é experimentado não como movimento mas como fantasia ou imagem ... de algum corpo luminoso. Essa fantasia chamamos iluminação ou luz (De Mundo, IX, p. 102).

Doravante a luz e a cor são consideradas “não como emanações do objeto mas como fantasmas de nosso mundo interior” (De Homine, II, p. 43). É de se observar que a idéia de fantasma como recurso para explicar o fenômeno visual faz parte da literatura óptica dos medievais e dos renascentistas. Vitelo, por exemplo, recorre à idéia de fantasma para explicar a ilusão visual e podemos constatar, além disso, que o Optical Thesaurus de 1572 traz uma identificação entre fantasma e imagem refratária 17 . Outra observação que nos parece relevante é que se na Critica do 'De Mundo' Hobbes se refere à luz como fantasia, no De Homine ele se refere à luz como fantasma. Seria devido ao fato que na Critica do 'De Mundo' ele em muitos aspectos se mostra disposto a seguir Aristóteles para quem a raiz etimológica da palavra fantasia é dada pelo vocábulo luz? De fato, Dherbey sugere que a identificação de fantasia e luz em Aristóteles serve para dissipar o erro de não se diferenciar a sensação da imaginação. “A confusão feita por Protágoras entre sentir e imaginar se explica se atentamos à etimologia de phantasia que, nos diz Aristóteles, vem de phaos, a luz” 18 .

17 18

Cf. Prins, op. cit., p. 303-304. Dherbey, op. cit., p. 61.


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Diferentemente de Aristóteles, conforme podemos observar nos escritos ópticos do De Homine, Hobbes não está preocupado em identificar fantasia e Luz para separar sensação e imaginação e sim identificar fantasma e luz para separar a imagem visual do objeto da visão. Com efeito, após definir a luz no De Homine como fantasma de nosso mundo interior, Hobbes pode operar uma distinção fundamental entre o que é da ordem da representação visual e o que é da ordem da própria coisa: Uma luz, uma cor assim figurada [isto é, representada], isso se chama uma imagem. E, segundo uma instituição da natureza, todo ser animado começa por julgar que essa imagem é a visão da coisa mesma ... [Sendo que] mesmo os homens ... confundem a imagem com o próprio objeto (De Homine, II, p. 43).

Lembremos que essa idéia de uma separação radical entre o fenômeno visual e a própria coisa (conforme estabelecida por Hobbes no De Homine de 1658) remonta ao ano de 1649 quando ele escreve o tratado óptico A Minute or First Draught of the Optiques. Essa constatação se deve ao fato de que a parte óptica do De Homine corresponde quase que integralmente à segunda parte do First Draught, parte essa que Hobbes dedica ao estudo da visão 19 . A 19

O motivo pelo qual Hobbes deixou a primeira parte do First Draught, isto é, a teoria da luz, fora do De Homine ainda hoje é um mistério para os que estudam sua teoria óptica. Seria porque ao tratar do homem (De Homine) ele pensava que as razões físicas da luz podem ser subsumidas na noção de luz como fantasma de nosso mundo interior? O fato é que dois anos depois do First Draught Hobbes escreve no inicio do Leviathan (1651) – sua obra política maior – que embora “o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra”. A critica à doutrina óptica escolástica da emissão da luz por species visível é o recurso que Hobbes usa no Leviathan para sustentar a diferença entre percepção visual e a realidade. Aristóteles criticou Protágoras por não diferenciar sensação e imaginação. O primeiro capítulo do Leviathan é dedicado ao exame da sensação e o segundo capítulo ao exame da imaginação. Mas ao contrário de Aristóteles, embora Hobbes num primeiro momento diferencie sensação e imaginação, num segundo momento ocorre a subsunção da imaginação à sensação, isto pelo fato que para ele “a imaginação é uma sensação diminuída”.


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construção óptica da representação em Hobbes começa a ser delineada enfim através da justaposição de uma fundamental diferenciação entre o que é da ordem do aparecer e o que é da ordem da realidade. Tendo isso em mente podemos constatar que a imagem é construída visualmente em nosso cérebro na medida em que somos afetados por um objeto externo e que quando essa imagem é projetada de dentro para fora por reação dos estímulos nervosos centrais temos a ilusão que o que vemos é a coisa mesma. Constatase pois que as teses ópticas de Hobbes se posicionam de forma antagônica com a óptica antiga uma vez que “aquilo que um Antigo vê num espelho é a coisa mesma” 20 . Em A teoria aristotélica da visão Cappelletti diz, por exemplo, que é importante sublinhar que existe em Aristóteles uma teoria realista da sensação visual segundo a qual o sujeito capta qualidades que se encontram verdadeira e realmente no objeto, de forma que os “erros e ilusões se referem aos sensíveis comuns (distância, magnitude, etc.) e não são na realidade erros da vista mas do entendimento” 21 . Explicar como se formam as imagens visuais a partir de uma separação radical entre o que é da ordem do fenômeno e o que é da ordem das coisas é o tema do primeiro capítulo da parte óptica do De Homine. De fato, a noção de representação visual orienta ali o processo de formação das imagens. A percepção visual da irradiação do corpo luminoso é enviada através do dispositivo óptico para o sistema nervoso central provocando ali uma reação para fora que consistirá nas aparições ou fantasmas de nosso mundo interior. O que segue disso tudo é uma síntese dos múltiplos pontos de visão que irão constituir a imagem visual do objeto segundo uma correspondência ordenada: Uma visão [isto é, uma imagem visual] distinta e figurada ocorre quando a luz ou a cor forma uma figura cujas partes tem por origem as partes do objeto, e lhes corresponde uma à uma na ordem. Uma luz, uma cor assim

20 21

Simon, G. op. cit., p. 197. O itálico é meu. Cappelletti, A. J. La teoria aristotelica de la vision, p. 91.


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figurada [isto é, representada], isso se chama uma imagem (De Homine, II, p. 43).

Sugiro que o estatuto representacional da visão da forma apresentada nessa passagem no De Homine óptico é plenamente compatível com o que Hobbes descreve na Crítica do 'De Mundo' nos termos de uma superfície aparente imaginária. “A área aparente do sol ou de qualquer outro objeto não é inerente no próprio objeto mas é meramente imaginária” (De Mundo, III, p. 40). A superfície aparente imaginária é constituída ponto por ponto a partir das informações visuais que temos das partes do objeto luminoso. Ora, no De Homine Hobbes enuncia justamente que a configuração dos pontos de visão justapostos numa linha reta no centro retinal do aparelho óptico se chama linha de visão: Cada ponto visto é situado sobre uma linha reta que passa primeiramente pelo centro da retina, depois por um ponto de sua superfície ... [sendo que] essa linha reta chamar-se-á linha de visão (De Homine, II, p. 44).

O lugar aparente das imagens que temos dos objetos – a saber, “a forma como aparecem na visão direta” – é então explicado no capítulo terceiro do De Homine a partir da mencionada noção de linha visual: Por conseguinte, se damos a distância aparente de um objeto (colocado em linha reta), [bem como] a sua grandeza aparente e a sua figura aparente, [segue que] o seu lugar aparente é igualmente dado (De Homine, III, p. 59).

A localização dos objetos na representação é dessa forma estabelecida na linha de visão – isto é, na linha reta – pela determinação do lugar e da distância real dos objetos a partir de seu lugar e de sua distância aparente. Sobre essa questão Zarka esclarece que em Hobbes “a constituição visual da representação governa o problema da determinação da distância e do lugar real do


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objeto a partir de seu lugar aparente” 22 . O lugar e a distância real são dessa forma reduzidos ao que aparece. A imagem visual, formada a partir da linha de visão, é percebida pelo indivíduo receptor “como se” 23 fosse a própria coisa. Nos Elementos da lei, lembremos novamente, Hobbes esclarece essa questão da seguinte forma: Por isso, segue-se também que quaisquer acidentes ou qualidades que os nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá, constituindo apenas aparências e aparições. As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências (El. Lei., p. 56).

Existindo no mundo apenas aparências e aparições, a realidade se encontra subsumida nas representações visuais. A forma como vemos as coisas é então a forma como o visível se manifesta. Tudo isso constitui a instigante e ainda hoje pouco explorada teoria óptica de Hobbes. A relação do desejo com as cores ou a metafórica comparação da filosofia política com um telescópio (telescopii) – conforme constatamos no Leviathan em latim – são algumas das questões que surgem de forma surpreendente diante de nossos olhos quando examinamos o mundo predominantemente visual de Hobbes.

22

Cf. Zarka, op. cit., p. 138. É de se observar, porém, que o componente racional não está presente nesse estágio de argumentação. Em outras palavras, as correções efetuadas pelo raciocínio – por exemplo, aquelas relativas às ilusões ópticas – remetem a um plano objetivo que não interessa a Hobbes nesse estágio do argumento. (A critica de Hobbes das Species invisíveis dos escolásticos, por exemplo, é uma critica da razão dirigida a todos aqueles que postulam raciocínios equivocados por não conseguirem decifrar os enganos da visão natural a partir da distinção entre a dimensão do aparecer e a dimensão da realidade ou ainda a partir da distinção entre o que é da ordem da subjetividade e o que é da ordem da objetividade.) O que realmente importa aqui é que “por natureza” a luz e a cor são compreendidos como fantasmas puramente subjetivos que determinam o modo como vemos as coisas.

23


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Jonh Locke e o realismo científico Marcos Rodrigues da Silva *

Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a inserção de John Locke na filosofia do realismo científico no que diz respeito ao debate realismo/empirismo. Para atingir este objetivo apresentarei a hipótese de Maurice Mandelbaum de que, com relação ao problema da explicação científica, Locke parece estar alinhado com os realistas. Para discutir esta hipótese, procurarei oferecer uma caracterização de empirismo que seja apropriaada para o debate realismo/empirismo – caracterização esta que buscarei na filosofia de Bas van Fraassen. Contudo, por meio desta análise, não pretendo forçar o leitor à conclusão de que Locke não é um empirista; pois, por mais que a conclusão deste artigo seja a de que Locke, com respeito ao problema da explicação científica, não é um empirista, não se segue disto que Locke, com respeito a outros problemas filosóficos, não o seja. Palavras-chave: Empirismo, Filosofia da ciência, John Locke, Maurice Mandelbaum, van Fraassen Abstract: This article has as its aim to discuss the insertion of John Lock in the philosophy of scientific realism in what concerns to the debate realism/empiricism. To achieve this goal I’ll present the hypothesis of Maurice Mandelbaum in which, on the topic of to the scientific explanation’s problem, Lock seems to be on the same path as the realists. To discuss this hypothesis I’ll present a characterization of empiricism which is appropriate to the debate realism/empiricism – characterization that I’ll look for in Bas van Fraassen. However, through this analysis, I do not intend to push the reader to the conclusion that Locke isn’t an empiricist, because, even being the conclusion of this article that, about to the problem of the scientific explanation, he is not an empiricist, it doesn’t mean that, in relation to other philosophical concernments, he isn’t as well. Keywords: Empirism, John Locke, Maurice Mandelbaum, Philosophy of Science, van Fraassen

Introdução Parece algo altamente anti-intuitivo afirmar que John Locke não é um filósofo empirista. Seu tratamento acerca do problema da recepção das idéias, do conhecimento a priori, da percepção etc nos *

Professor adjunto da UEL (Londrina). E-mail: mrs.marcos@uel.br. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 20.11.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 55-65.


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impede, por certo, de classificá-lo fora do empirismo. Não obstante, algumas passagens do texto de Locke colocam dúvidas taxonômicas para o historiador do empirismo e, na hipótese de Maurice Mandelbaum, tais dúvidas se acentuam ainda mais, sobretudo quando comparamos os programas de Locke e Berkeley. Estas passagens, é bom registrar, não dizem respeito à discussão racionalismo/empirismo, mas ao debate realismo/anti-realismo (sendo o empirismo um representante deste último). Aqui, focarei a filosofia de Locke apenas no que toca ao debate realismo/antirealismo, que será denominado, neste artigo, debate realismo/empirismo. Apresentarei a hipótese de Mandelbaum de que, com relação ao problema da explicação científica (que é, em linhas gerais, o ponto central da disputa entre realistas e empiristas), Locke parece estar alinhado com os realistas 1 . Para discutir esta hipótese, procurarei oferecer uma caracterização de empirismo que seja apropriaada para o debate realismo/empirismo – caracterização esta que buscarei na filosofia de Bas van Fraassen. Contudo, por meio desta análise, não pretendo forçar o leitor à conclusão de que Locke não é um empirista; pois, por mais que a conclusão deste artigo seja a de que Locke, com respeito ao problema da explicação

1

De modo geral realistas argumentam que a aceitação de uma teoria bem sucedida empiricamente implica a crença na sua verdade e, se a teoria contém entidades e processos inobserváveis, aceitá-la significa acreditar igualmente na existência destas entidades e processos; esta crença é fundamental, alegam os realistas, se queremos preservar a idéia de que a ciência expressa conhecimento. Naturalmente esta é uma apresentação simplificada do realismo científico; com efeito, é a apresentação (igualmente sumária) de um (dos tantos disponíveis) argumento realista: o argumento da inferência da melhor explicação. A importância deste argumento reside em sua ênfase epistemológica; ou seja: por meio deste argumento se pode compreender o realista científico como um filósofo que atribui ao cientista boas razões (no caso, o sucesso de uma teoria) para suas crenças em inobserváveis. Deste modo, por meio deste argumento, os cientistas têm boas razões para crer em inobserváveis tendo em vista o sucesso das teorias que os abrigam. Para importantes referências acerca da apresentação e discussão do argumento da inferência da melhor explicação a partir de uma perspectiva realista sugere-se Lipton (1991) e Psillos (1999).


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científica, não é um empirista, não se segue disto que Locke, com respeito a outros problemas filosóficos, não o seja. Este breve artigo inicia com uma rápida apresentação da caracterização de empirismo de Bas van van Fraassen. Em seguida, de posse dessa caracterização, procuro aplicá-la à a um aspecto da filosofia de Locke, a saber, sua discussão da idéia de solidez. Concluo o artigo mostrando que, apesar de Locke ter violado a caracterização de empirismo de van Fraassen, não se segue que ele não deva ser considerado um empirista, uma vez que a caracterização de van Fraassen parece bastante apropriada para o problema da explicação científica, mas não o é necessariamente para outros problemas que estão presentes na literatura empirista. 1 Bas van Fraassen e uma caracterização do empirismo 2 Em seu Empirical Stance van Fraassen retoma uma proposta já em curso desde ao menos 1994 (van Fraassen, 1994), proposta esta que diz respeito a uma caracterização da filosofia empirista. Em linhas gerais o argumento de van Fraassen é de que o empirismo não é uma filosofia contrária ao realismo científico, uma vez que um empirista (ao contrário de um realista) não precisa se comprometer com teses epistemológicas acerca da realidade. Um realista é aquele que acredita que as entidades inobserváveis postuladas por uma teoria científica realmente existem 3 ; um empirista, ao contrário, não afirma que elas não existem. Ao invés da crença o empirista precisa adotar uma atitude (stance); no caso, ele deve rejeitar explicações por postulados (que remetem a inobserváveis) e deve rejeitar a própria demanda pelas explicações por postulados. É importante registrar que van Fraassen não rejeita a idéia de que a ciência deve procurar explicações; o que ele pretende é interditar a demanda por um certo 2

Este artigo não tem como objetivo reconstruir a argumentação de van Fraassen acerca de sua caracterização da atitude empirista. Para esta reconstrução (e apenas para esta reconstrução) ver Silva (2005a). 3 Isto não significa que esta crença seja desqualificada. Nos últimos tempos os realistas têm procurado sofisticar cada vez mais as razões para esta crença; um exemplo disto é o argumento da inferência da melhor explicação, apresentado sumariamente na nota anterior.


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tipo de explicação: explicações que garantam a crença na existência de inobserváveis. (Isto não significará, é claro que o empirista deverá acreditar que os inobserváveis não existam.) De acordo com van Fraassen, ao crer na existência das entidades inobserváveis da ciência, o realista adota uma posição filosófica, posição esta expressa por algum enunciado tal como: “eu acredito na existência de entidades inobserváveis das melhores teorias científicas vigentes”. Para van Fraassen, este enunciado é distintivo da posição a ser assumida; portanto, um empirista, ao assumir sua posição filosófica, teria de acreditar em algum enunciado rival, tal como: “eu não acredito na existência de entidades inobserváveis das melhores teorias científicas vigentes”, ou ainda: “a experiência é a única fonte de informação sobre a realidade”. O problema, para van Fraassen, seria a sustentação deste enunciado empirista, sustentação esta que, de acordo com o autor (2002, p. 41), não é possível de ser obtida. Assim se coloca a pergunta: se o empirista não consegue enunciar sua posição filosófica – ou seja: não consegue justificar sua crença -, talvez esta filosofia nem chegue a ser uma posição filosófica. Entretanto, como nenhum empirista gostaria de alcançar esta conclusão, van Fraassen propõe que uma filosofia empirista não é uma posição filosófica que se estruture em crenças acerca da realidade; ao invés da crença o empirista deve adotar uma atitude (stance). Esta caracaterização de empirismo proposta por van Fraassen é bastante adequada para discussões a respeito do problema do significado cognitivo da ciência, problema para o qual ele apresenta sua própria alternativa: o empirismo construtivo (van Fraassen, 1980). Como um dos objetivos de van Fraassen não é o de desqualificar o realismo mas sim o de mostrar que há ao menos uma outra alternativa para tratar do problema acima mencionado, então pode-se compreender por que, em sua caracterização de empirismo, o empirista não tenha necessidade de se preocupar com questões de crença. Pois, para van Fraassen, é possível explicar o sucesso da ciência (e com isso seu significado cognitivo) a partir de outros parâmetros que não o exclusivamente epistemológico; seria possível,


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por exemplo, explicar o sucesso a partir de parâmetros pragmáticos – levando-se em consideração outras razões (pragmáticas) que não apenas a crença dos cientistas nos mecanismos inobserváveis que sempre acompanham as melhores teorias científicas (cf. van Fraassen, 1980, p. 83). Deste modo um empirista pode explicar o sucesso da ciência sem estar comprometido com a crença em observáveis 4 , uma vez que os fatores pragmáticos mencionados acima também transcendem o observável (ainda que não remetam a inobserváveis). Por outro lado, é claro, o empirista não deve se comprometer com a crença em inobserváveis. A conclusão de van Fraassen nos conduz portanto a deslocar a discussão do significado da ciência do âmbito da epistemologia para o domínio da pragmática. Fundamentalmente a caracterização de van Fraassen sugere ao empirista uma forma de escapar do seguinte dilema: ou as explicações científicas remetem a inobserváveis ou tornam-se desinteressantes e deficitárias (cf. Wilson, 1985, p. 138). Deverá ser possível ao empirista encarar este dilema e tentar mostrar que ele pode evitado. A impressão que se tem é a de que Locke tentou resolver o dilema. 2 Locke e o realismo De acordo com a hipótese de Mandelbaum (cf. Mandelbaum, 1964, p. 1), John Locke havia sido (como Boyle e Newton) um atomista. Ora, a adoção de uma posição como esta, no interior de uma disputa a respeito do significado cognitivo da ciência, não é nada 4

Embora deva deixar claro que, em caso de alguma crença estar envolvida, esta crença será naquilo que van Fraassen denomina de “adequação empírica” da teoria; ou seja: crença naquilo que a teoria afirme a respeito de observáveis (cf. van Fraassen, 1980, p. 12). Este é um aspecto da filosofia da ciência de van Fraassen que é freqüentemente explorado pelos críticos do empirismo construtivo, sobretudo tendo em vista a relação que este aspecto apresenta com a filosofia empirista, cujas teses acerca da obtenção e justificação do conhecimento (em geral, e não apenas conhecimento científico) são sempre rejeitadas pelos realistas. Para algumas críticas no que diz respeito ao aspecto epistemológico (empirista) do anti-realismo de van Fraassen ver Psillos (1996, p. 34) e Alspector-Kelly (2001, p. 422).


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desprezível, uma vez que ela implica uma concepção filosófica que é decisiva para a compreensão de um certo posicionamento em relação à ciência; a adoção de uma metafísica atomista é altamente relevante para, de acordo com a caracterização de empirismo utilizada, investigarmos se o próprio Locke poderia enquadrar-se numa tal caracterização. Vejamos então como se pode apresentar a relação entre atomismo e empirismo em Locke, e quais suas conseqüências para este artigo. Em nossa discussão nos centraremos apenas na apresentação que Locke faz do conceito de “solidez”. Dada a tradicional concepção lockeana de que todo conhecimento deriva-se da experiência, como se pode admitir que determinadas estruturas imperceptíveis (partículas insensíveis) expliquem o comportamento de objetos diretamente perceptíveis? Esta situação é encontrada na seguinte passagem, sobre a idéia de solidez: “Recebemos a idéia [de solidez] pelo tato ... Denomino de solidez aquilo que impede a aproximação de dois corpos quando se movem em direção um ao outro ... Esta, de todas as outras, parece ser a idéia mais intimamente conectada com o corpo e essencial a ele, de modo que não deve ser encontrada ou imaginada em lugar algum exceto na matéria. Embora nossos sentidos, exceto em grandes quantidades de matéria, não a observem numa grandeza suficiente para causar uma sensação em nós, a mente, tendo uma vez obtido esta idéia a partir de tais corpos sensíveis mais volumosos, leva-a adiante e considera-a, assim como a figura, como as partículas mais diminutas da matéria que possam existir; e descobrea inseparavelmente inerente ao corpo, mesmo que este se modifique” (Ensaio II, IV, p. 1). A passagem é bastante clara: por um lado fica evidenciado o compromisso de Locke com o alguma forma de empirismo, por outro porém se percebe que a mente, partindo da experiência, transcende o sensível e alcança algum conhecimento acerca da realidade. É importante enfatizar que Locke está enunciando uma tese acerca da realidade. Porém isto, de acordo com Larry Laudan (1981), não teria maiores problemas, uma vez que Locke não o faz de maneira categórica, mas ancorado numa posição falibilista. De


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acordo com Laudan (1981, p. 62) há uma distinção, produzida pelo próprio Locke, entre conhecimento e julgamento, e seria nesta última categoria que se enquadraria, por exemplo, uma tese acerca da “correspondência” entre uma proposição acerca de um evento observável (os corpos sensíveis volumosos) e outra que fizesse referência a inobserváveis (as partículas mais diminutas da matéria); pois, para Locke (Ensaio IV, XIV, p. 4), “julgar é presumir que as coisas são assim, sem percebê-las”. Portanto Locke não é um infalibilista e muito menos um correspondentista. Além disso, para Laudan, a explicação do funcionamento dos processos inobserváveis, em Locke, se dá mediante o uso da analogia (1981, p. 62-63), e não por acesso epistêmico aos inobserváveis. Agora, como funciona esta analogia? De acordo com Mandelbaum (1964, p. 53), ela parte dos efeitos observáveis para as causas inobserváveis; mais importante: as causas inobserváveis são postuladas como estruturalmente análogas aos efeitos percebidos, e portanto uma explicação, para Locke, seria construída por analogia a partir daquilo que é efetivamente observado. O problema então se dá pelo fato de que, a despeito de partir da experiência, Locke, mediante o uso da analogia, viola uma das regras do empirismo tal como caracterizado por van Fraassen. Pois mesmo que se aceite a distinção enfatizada por Laudan, não se pode negar a pressuposição (ainda que num nível explicativo, ou melhor, sobretudo no nível explicativo) da crença na existência de entidades inobserváveis por parte de Locke. Ou seja, conquanto Locke tenha proposto um método hipotético para a avaliação da ciência (cf. Laudan, 1981, p. 60), o que importa (ao menos para este artigo) é a forma pela qual são introduzidas as entidades inobserváveis; e esta forma, inegavelmente, se identifica com o realismo científico 5 . Não parece restar dúvida de que Locke estava de fato procurando, mesmo mantendo sua fidelidade a certos princípios empiristas, uma explicação para os efeitos observáveis por meio do 5

Para Michael Devitt este procedimento de Locke – da experiência para o inobservável – é típico de uma forma de realismo, o realismo representativo (cf. Devitt, 1997, p. 67).


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apelo a causas inobserváveis, ainda que por analogia. Ora, não seria exatamente este procedimento que seria depois criticado por Berkeley em seu De Motu? De acordo com Berkeley, uma explicação científica não precisa estar comprometida com causas inobserváveis; mas não pelo fato de que tais causas não existam, mas sim porque é possível explicar os fenômenos de modo mais econômico, a partir de parâmetros (empiristas, no sentido de van Fraassen) mais modestos 6 . Este modo mais econômico, por sua vez, não significará que a explicação estará fundamentada na experiência 7 , mas também não significará que se deva apelar a inobserváveis. (Neste sentido Berkeley é um dos que não aceitou o dilema “ou explique a partir de inobserváveis ou a explicação será deficitária”.) Para Berkeley explicar um fenômeno não é, como parecia ser para Locke, explicar a partir de causas inobserváveis (cf. De Motu, 17); tampouco é explicar a partir da própria experiência (cf. De Motu 31); com efeito, para Berkeley, explicar um fenômeno é apresentar a conexão entre o próprio fenômeno e as leis que o regem (cf. De Motu, 16/17) 8 . 6

Este parâmetro modesto seria seu instrumentalismo, o qual pode ser considerado uma posição filosófica que nega que as leis científicas devam ser consideradas verdadeiras. Uma apresentação do instrumentalismo de Berkeley feita pelo autor pode ser conferida em Silva (2003). 7 Alhures argumentei, baseado em Newton-Smith (1985, p. 165) que o instrumentalismo de Berkeley não está fundamentado em sua posição empirista geral, fenomenalista (Silva, 2005b). Contudo acredito que, apesar de não estar fundamentado em sua epistemologia empirista, o instrumentalismo de Berkeley possui efetivamente uma forma de relação com esta esta epistemologia empirista; ou seja: sua epistemologia empirista ocupa um papel em seu instrumentalismo. Há um artigo em preparação no qual tratarei desta relação. 8 Deve-se também lembrar que alguns comentaristas de Berkeley não são simpáticos à idéia de que Berkeley se preocupava com o problema da explicação científica. Para Newton-Smith, Berkeley não estava interessado no problema da explicação científica (Newton-Smith, 1985, p. 153), tendo em vista que ele tratava os termos científicos como não possuindo significado; ou seja: como ficções úteis. Para Buchdahl (1988, p. 285), Berkeley teria feito um movimento que o permitiria aceitar o uso dos termos da mecânica, mas sem contudo atribuir-lhes significado. Para Popper (1994, p. 136), Berkeley distingue entre termos significativos (com referência empírica) e não-significativos (sem referência). Em outro artigo (Silva,


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Conclusão John Locke nunca deixou de ser um empirista, pois a experiência, para ele, é sempre a fonte que deve ser acionada para a busca de conhecimento; no entanto é preciso registrar a robusta convicção lockeana de que os objetos existem independentemente do conhecimento humano; e, além de existirem, existem de uma certa forma e por uma certa razão: por sua constituição atômica, a qual causa a idéia que temos de um certo corpo (cf. Mandelbaum, 1964, p. 60). Portanto, por mais precário que seja o conhecimento que temos desta constituição (e ele, para um empirista, sempre será precário), ele é ainda uma boa razão para formarmos crenças garantidas sobre o mundo externo (cf. Mandelbaum, 1964, p. 54); e, se o ponto em questão para a avaliação da inserção de Locke no empirismo tal como caracterizado por van Fraassen é menos uma questão de alcance do conhecimento (na qual Locke estaria emparelhado com outros empiristas) do que propriamente de justificação de crenças a partir da experiência, parece que Locke está bastante distante da caracterização proposta por van Fraassen 9 . Evidentemente seria uma injustiça condenar os esforços de Locke de interpretar a ciência e, com base no resultado destes esforços, considerá-lo um “não-empirista” pois, se é verdade que Locke admitiu uma ontologia e uma epistemologia que continha e remetia a inobserváveis, também é verdade que são suas algumas das declarações mais contundentes contra o conhecimento a priori das causas dos fenômenos observáveis; e, diante disso, parece inegável que Locke deva ser considerado um empirista. Talvez, e esta é minha hipótese, Locke não deva ser incluído na tradição empirista tal como caracterizada por van Fraassen. Mas é claro que fica aqui a questão de saber se esta caracterização é, de modo geral, 2006) apresentei a proposta de considerar Berkeley como um filósofo cuja concepção da ciência nem sempre está comprometida com análise de termos, o que poderia ser evidenciado por algumas passagens do De Motu, tais como os parágrafos 11 e 43. 9 Em todo caso, permanece a questão de uma avaliação mais ampla da própria filosofia da ciência de Locke, algo que não esteve presente no objetivo deste artigo.


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oportuna - questão esta que foge aos limites tanto do artigo quanto de minha compreensão atual sobre o tema. Em todo caso o que posso dizer é que, direcionada para a discussão realismo/antirealismo, ela é bastante promissora. Referências ALSPECTOR-KELLY, M. Should the Empiricist Be a Constructive Empiricist?. Philosophy of Science n. 68, 2001. BERKELEY, G. De Motu. Tradução de Marcos Rodrigues da Silva. Scientiae Studia, v. 4, n. 1., 2006. BUCHDAHL, G. Metaphysics and the Philosophy of Science. Lanham: University Press of America, 1988. DEVITT, M. Realism and Truth. (Segunda Edição). Princeton: Princeton University Press, 1997. LAUDAN, L. Science and Hypothesis. Dordrecht: D. Reidel, 1981. LIPTON, P. Inference to the Best Explanation. London: Routledge, 1991. LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. Great Books of Western World. Chicago: Britannica, 1952. MANDELBAUM, M. Philosophy, Science and Sense Perception. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1964. NEWTON-SMITH, W.H. Berkeley’s Philosophy of Science. Essays on Berkeley (ed. Foster, J. & Robinson, H.). Oxford: Clarendon Press, 1985. POPPER, K. Conjecturas e Refutações. Brasília: UNB, 1994. PSILLOS, S. On Van Fraassen’s Critique of Abductive Reasoning. The Philosophical Quarterly, v. 46, n. 182, 1996. PSILLOS, S. Scientific Realism: How Science Tracks Truth. London: Routledge,1999. SILVA, M Instrumentalismo e explicação científica no De motu de Berkeley. Scientiae Studia, v. 4, n. 1.,2006. SILVA, M. O Instrumentalismo de George Berkeley. Ideações n. 11, 2003. SILVA, M. Van Fraassen e a Caracterização do Empirismo. Episteme, v. 22, 2005a.


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Pressupostos metaéticos e normativos para uma nova Ética ambiental Darlei Dall’Agnol *

Resumo: O trabalho discute os pressupostos metaéticos e normativos para a construção de uma nova ética ambiental. Em especial, ele procura mostrar que a metaética realista que está presente nos escritos da assim chamada “ecologia profunda” é problemática. Como alternativa, o trabalho apresenta uma análise conceitual diferente de valor intrínseco e examina as suas implicações normativas e práticas para uma ética ambiental. Palavras-chave: Ética, Ética ambiental, Valor intrínseco Abstract: This paper deals with the meta-ethical and normative assumptions for a new environmental ethics. Particularly, it tries to show that the realistic meta-ethics about intrinsic value underlying many of the writings of the so-called “deep ecology” is flawed. It presents, then, a different conceptual analysis of intrinsic value and sorts out its normative and practical implications for an ethics concerned with the environment. Keywords: Environmental ethics, Ethics, Intrinsic value

A visão verdadeiramente apocalíptica do mundo é a de que as coisas não se repetem. Não é absurdo acreditar, por exemplo, que a era da ciência e da tecnologia é o princípio do fim da humanidade; que a idéia de um enorme progresso é uma ilusão; que nada há de bom ou desejável no conhecimento científico e que a humanidade, ao procurá-lo, está caindo numa armadilha. Não é de modo algum óbvio que as coisas não sejam assim. (Wittgenstein, 2000, p. 86.)

Das muitas questões éticas desse início de Século XXI, a situação de risco da vida como um todo sobre o nosso planeta é de longe uma das mais importantes. Por essa razão, uma reflexão crítica sobre os pressupostos metaéticos e normativos de uma nova ética ambiental deve enfrentar o tema das relações entre princípios bioéticos e princípios ecoéticos. Assim, se a bioética não for entendida apenas *

Professor do Departamento de Filosofia da UFSC e pesquisador do CNPq. E-mail: darlei@cfh.ufsc.br. Artigo recebido em 28.09.2007 e aprovado em 19.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 67-82.


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como uma ética profissional ligada às ciências biológicas e da saúde, particularmente à biomedicina, mas como uma reflexão sobre o início, o meio e o fim da vida como um todo, então ela necessariamente precisa ocupar-se com questões ambientais. Problemas como a diminuição da camada de ozônio, o desmatamento, a degradação das terras cultiváveis, a eliminação de várias espécies, a poluição da atmosfera, dos oceanos e dos rios, etc. ameaçam o bem-estar de todas as formas de vida deste planeta, incluindo a do ser humano. Além disso, se essas questões ambientais não podem ser tratadas apenas em termos prudenciais, isto é, como simples problemas para a sobrevivência humana, ou instrumentais (a natureza como mero meio para usufruto humano), mas possuem uma especificidade própria colocando questões únicas tais como o valor da biodiversidade, então elas se constituem como um problema ético a ser examinado dentro dos domínios de uma ética ambiental, ou seja, da ecoética. Desse modo, a bioética e a ecoética complementam-se como partes aplicadas de alguma ética normativa sólida sob o ponto de vista metaético. Finalmente, ambas estão interligadas na medida em que podem estar baseadas em princípios normativos comuns que garantem a correta aplicação a problemas particulares da vida como um todo. Para compreender melhor as relações entre a bioética e a ecoética, é necessário entender a ética como uma reflexão filosófica sobre a moralidade, a qual é constituída por questões metaéticas, normativas e práticas. Questões metaéticas são as relativas à própria natureza da ética: se ela pode ser uma ciência, sobre a natureza dos julgamentos morais, sobre a relação entre fatos e valores, sobre o significado dos termos éticos básicos tais como “bom”, “correto”, “valor,” etc. Questões normativas dizem respeito ao estabelecimento de um critério (princípios, modos de ser, costumes, tradições, etc.) para se diferenciar bom/mau, correto/incorreto, etc. As questões práticas dizem respeito à aplicação desse critério, no presente caso, de princípios ou valores, aos problemas particulares cotidianos relacionados com a ação. Nesse sentido, a ecoética, a bioética, a


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zooética, a ética econômica, as diferentes éticas profissionais são todas esferas da ética prática. No presente trabalho, vou examinar de forma mais detalhada a conexão metaética e normativa entre a bioética e a ecoética. Particularmente, vou procurar analisar um princípio que geralmente é invocado como elo entre questões bioéticas e ambientais, apesar das especificidades das questões de cada uma dessas esferas da ética aplicada. O princípio comum seria este: Reverencie o valor intrínseco da vida. 1 É claro que esse princípio não é o que vigorou ao longo da tradição ocidental ainda dominante baseada na descrição bíblica da criação ou numa filosofia da natureza aristotélico-tomista ou até mesmo kantiana. Todavia, essa visão segundo a qual a natureza e os animais não-humanos não possuem nenhum valor em si mesmos está sendo – e precisa ser– superada. Na verdade, a noção de valor intrínseco possui uma aplicação que vai muito além da bioética e da ecoética. Como já sustentei em outro lugar, “... as questões práticas sobre a vida e a morte (por exemplo, o aborto, a eutanásia, o suicídio, etc.), o meio-ambiente (por exemplo, o usos de recursos naturais, a biodiversidade, etc.), a política (por exemplo, a cidadania participativa, um governo democrático, etc.), a economia (a produção e distribuição de bens materiais) e muitas outras podem ser discutidas levando em consideração o conceito de valor intrínseco.” 2 Assim, a democracia não seria boa somente porque tem bons efeitos (por exemplo, garante a legitimidade do Estado e incrementa o bem-estar geral), mas também em si mesma (por exemplo, ela garante a participação igualitária das pessoas na determinação dos arranjos sociais nos quais vivem). Agora, na ética ambiental, a idéia de que a natureza possui valor intrínseco não é nova e tem sido muito discutida nos últimos 1

Por exemplo, O’Neil sustentou que “manter uma ética ambiental é manter que seres não-humanos e estados de coisas no mundo natural possuem valor intrínseco.” Cf. O’Neil, J. Ecology, Policy and Politics. Human Well-Being and the Natural World. London/New York: Routledge, 1993. p. 8. 2 Dall’Agnol, D. Valor Intrínseco. Florianópolis: Edufsc, 2005a, p. 355. O presente trabalho é, basicamente, uma tentativa de estender aos problemas da ética ambiental a concepção de valor intrínseco desenvolvida naquela obra.


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anos. O filósofo norueguês A. Naess, por exemplo, sustenta que defender uma ética ambiental é manter que seres não-humanos e estados de coisas do mundo natural possuem valor intrínseco. Em seus próprios termos, “o bem-estar da vida não-humana na Terra tem valor em si. Este valor é independente de qualquer utilidade instrumental para propósitos humanos limitados.” (1984, p. 266) 3 . O problema é que Naess usa “valor em si,” “valor intrínseco,” “valor inerente” e “valor objetivo” como sinônimos e esse é um grave erro metaético. Assim, há vários problemas de compreensão do que significa atribuir valor intrínseco a algo. Geralmente, tal idéia é entendida a partir de bases filosóficas insustentáveis, tanto epistêmica quanto axiologicamente, e minha intenção é também analisar o significado da atribuição de valor intrínseco à vida, além de procurar extrair algumas das suas conseqüências normativas para certas questões pontuais. Inicialmente, vou comparar melhor, estabelecendo as semelhanças e as diferenças, a bioética e a ecoética. Quando o médico americano V. R. Potter usou pela primeira vez o termo “bioética”, no início da década de 1970, ele pensou basicamente numa ciência da sobrevivência humana, cuja existência estava – e ainda está – afetada por graves problemas incluindo a destruição do meio ambiente. Segundo Potter, seria necessário criar uma nova ética capaz de re-unir fatos e valores que haviam sido separados pela filosofia e ciência modernas cuja expressão máxima seria a concepção positivista da neutralidade axiológica da ciência. 4 Como pode ser visto, havia um claro entrelaçamento entre questões bioéticas e ambientais.

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No artigo “Deep Ecology,” os autores apresentam a concepção de Naess de valor intrínseco nesses termos metaéticos: “The presence of inherent value in a natural object is independnet of any awareness, interest, or appreciation of it by a conscious being.” (Devall & Sessions 2000, p.153). Temos, aqui, uma concepção realista, no sentido transcendente, de valor intrínseco ou inerente (os autores usam essas expressões como sinônimas). 4 Para uma exposição mais detalhada da história da bioética e seus princípios básicos ver: Dall’Agnol, D. Bioética. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.


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É interessante observar que Potter pensou na bioética como a expressão de “uma nova sabedoria,” ou seja, “o conhecimento de como usar o conhecimento” para a sobrevivência e para melhor a qualidade de vida (Potter, 1971, p. 1). Também Naess (numa entrevista reproduzida em Devall & Sessions, 2000) sustentou a necessidade de uma expansão do pensamento ecológico em direção a uma “ecosofia,” a qual exige uma virada da “ciência para a sabedoria.” Percebe-se, assim, a necessidade de uma nova epistemologia moral, não mais baseada no saber-que da ciência, mas num saber-como, por exemplo, cuidar e respeitar o valor intrínseco da natureza. Claramente, as atitudes de cuidar e respeitar a natureza requerem mais do que um conhecimento informativo, ou seja, requerem um saber-como. 5 Alguns anos antes de Potter, o ecologista americano A. Leopold defendeu “uma nova ética” capaz de melhorar a relação do ser humano com a terra, os animais e as plantas que nela vivem. 6 Foi a partir de idéias como essa que Naess estabeleceu a distinção no movimento ecológico entre uma tendência profunda e outra superficial. 7 O pensamento ecológico superficial trata a natureza a partir da moral tradicional e assim não se deveria poluir as águas porque elas são necessárias para a nossa sobrevivência. Segundo essa tendência ecológica, a natureza teria apenas valor instrumental para o ser humano. O pensamento ecológico profundo, ao contrário, procura preservar a biosfera por ela possuir valor em si mesma, isto é, independentemente dos benefícios que ela possui para os seres 5

Enquanto o saber-que pode ser definido como crença justificada em proposições verdadeiras, o saber-como pressupõe a capacidade adquirida através do treinamento de poder aplicar normas constitutivas de certos atos, atitudes ou práticas morais. 6 “Toda ética até agora desenvolvida está baseada numa única premissa: que o indivíduo é um membro de uma comunidade de partes interdependentes ... A Ética da Terra alarga as fronteiras da comunidade para incluir solos, águas, plantas e animais, ou coletivamente: a terra.” Leopold, A. 2000. p. 140. Essa afirmação constitui-se na declaração fundamental de uma ética biocêntrica ou holista. 7 Naess, A. “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement.” Inquiry. 16 (1973): 95-100.


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humanos. Tal idéia é a base da chamada “ecologia profunda,” ou seja, que o bem-estar da vida como um todo, tanto humana quanto não-humana, possui valor intrínseco. É claro que há outras idéias importantes que constituem a ecologia profunda como, por exemplo, as suas bases metafísicas holistas e a crença na necessidade de identificação do ego individual com o ego cósmico na busca da auto-realização recíproca, a qual se constitui numa espécie de experiência mística. Por exemplo, F. Mathews sustenta “a tese de que nós, egos humanos, estamos numa relação holista – uma relação de ‘unicidade’ (oneness) – com o próprio cosmos promete mais do que uma lista de prescrições éticas. Ela promete uma chave para as questões perenes de quem somos, porque nascemos, qual é a razão da nossa vida, etc. Ela promete, brevemente falando, jogar luz sobre o sentido da vida.” 8 Todavia, essas pretensões metafísicas da ecologia profunda não serão abordadas aqui. 9 Com o passar dos anos, entretanto, as esferas bioéticas e ecoéticas da ética aplicada tornaram-se distintas, embora não sejam absolutamente separáveis. Nesse sentido, a bioética possui princípios normativos específicos como, por exemplo, respeite as pessoas, aja em benefício dos outros e não cause danos, trate eqüitativamente as pessoas e distribua os bens da saúde segundo a necessidade, etc. Esses princípios servem para legitimar uma série de regras particulares (obtenha o consentimento informado, não cause dor ou sofrimento, previna o dano, trate os direitos de todos igualmente, etc.) como também virtudes específicas (discernimento, compaixão, etc.). A ecoética também possui princípios normativos próprios como, por exemplo: preserve a pluralidade (diversidade) das formas de vida. Dele derivam-se deveres específicos tais como: 8

Mathews, F. “Value in Nature and Meaning of Life.” In: Elliot, R. (ed.) Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 142. 9 Tampouco abordaremos todas as relações desse movimento com outras orientações teóricas do ambientalismo tais como ecoconservacionismo, ecofeminismo, ecoanarquismo, ecocapitalismo, etc. Para um estudo sociológico sobre o impacto dos diversos movimentos ecológicos no ambientalismo brasileiro ver: Alexandre, A. F. Ambientalismo Político, Seletivo e Diferencial no Brasil. UFSC: DICH, 2003 (Tese de doutorado).


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a necessidade de salvar espécies em extinção, de proteger os diferentes ecosistemas, etc. Todavia, como pode ser percebido, a bioética e a ecoética possuem em comum o princípio de reverência ao valor intrínseco da vida. A questão central, então, que vai nos ocupar aqui é esta: o que significa atribuir valor intrínseco à vida? Para responder a essa questão é necessário, inicialmente, esclarecer que a análise que será apresentada a seguir não é, no sentido filosófico, realistatranscendente, ou seja, valor intrínseco não é tomado como uma propriedade não-relacional. Vários defensores de uma ética ambiental a partir do valor intrínseco da natureza usam esse conceito num sentido transcendente. Por exemplo, Naess e Rothenberg definem valor intrínseco como aquilo que é valioso “independentemente de nossas valorações” (1989, p. 11). Naess é um claro exemplo de alguém que toma valor intrínseco num sentido realista não-relacional. Antes dele, G. E. Moore escreveu: “Vamos imaginar um mundo por demais belo. Imagine-o tão belo quanto você possa; coloque nele o que mais você admira – montanhas, rios, o mar; árvores, os pores-do-sol, as estrelas e a lua. E então imagine o mundo mais feio que você possa imaginar. ... [Eles são assim] independentemente de qualquer contemplação por seres humanos.” (1993, p. 135) Temos, aqui, claramente uma concepção realista nãorelacional de valor intrínseco. Mais tarde, entretanto, Moore elaborou outra forma de analisar valor intrínseco em termos daquilo que é “valioso de se ter por si mesmo” o que é claramente um modelo relacional. Todavia, esse modelo não precisa ser tomado em termos subjetivistas. Alguns autores, de forma equivocada, definem valor intrínseco de forma subjetivista e, então, compreensivelmente não conseguem elaborar uma ética ambiental a partir de tal conceito. Singer, por exemplo, em seu capítulo sobre meio ambiente em Ética Prática, não leva a sério um projeto de uma ética ambiental baseada na noção de valor intrínseco por possuir uma concepção subjetivista desse conceito. Em seus próprios termos: “Uma coisa tem valor intrínseco se for boa ou desejável em si; o contraste se dá com o ‘valor instrumental’, que é um valor em forma de meio para a


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obtenção de algum outro fim ou objetivo”. 10 Entre essa noção subjetivista de valor intrínseco, baseada naquilo que é desejado, e uma realista no sentido transcendente, há uma outra alternativa que é mais sólida tanto axiológica quanto epistemicamente. Essa “terceira via” possui implicações práticas distintas que serão exploradas a seguir. Uma análise, no sentido estrito, de valor intrínseco tem sido por mim apresentada nos seguintes termos: a atribuição de valor intrínseco a um estado de coisas deve satisfazer as seguintes condições: p escolhe x; x é bom, belo, correto, etc. em si; p está escolhendo x por si mesmo. Nesse modelo, p representa um sujeito cognitivo e valorativo capaz não apenas de interessar-se ou de desejar algo, mas também de escolher algo que é bom. Fica aberta aqui a questão de saber se somente seres humanos são capazes de preencher essas condições ou não. A análise permanece válida mesmo sem decidir essa questão. Quanto a x, pode-se tomar essa variável como podendo representar qualquer objeto bom, belo, correto, etc. em si mesmo, isto é, cuja fonte de seu valor não lhe seja externa. Em outros termos, que seu valor lhe seja inerente. Superase, assim, a polarização entre teorias éticas teleológicas e deontológicas, pois tanto bom quanto correto são portadores de valor inerente. Finalmente, a última condição estabelece que qualquer que seja o indivíduo relacionando-se com x, tal relação deve ser apropriada, ou seja, não pode tratar x como um mero meio, mas como um fim em si. Por exemplo, p deve contemplar um objeto belo por si mesmo. Em outros termos, tal relação não pode ser instrumentalizadora. Satisfeitas as três condições, tem-se um estado de coisas intrinsecamente valioso. Esse é o momento adequado para esclarecer alguns pressupostos filosóficos sobre análise de valor intrínseco acima apresentada. Uma objeção que poderia ser feita é que uma ecoética fundada no modelo acima apresentado seria antropocêntrica ou cometeria a “falácia antropocêntrica”. Para responder a essa objeção, é necessário esclarecer dois pontos. Primeiro, não é 10

Singer, P. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 289-290.


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possível ver o mundo a não ser com “olhos” humanos, isto é, não podemos saber senão analogicamente como os outros seres vivos que não possuem uma linguagem proposicional vêem o mundo. Como Kant e Wittgenstein mostraram (o primeiro a partir da razão e o segundo da linguagem), não podemos saber como é o mundo independentemente do modo como o representamos. Nesse sentido, o realismo transcendente é um equívoco filosófico que muitas vezes está na base da atribuição de valor intrínseco à natureza como é o caso dos defensores da assim chamada “ecologia profunda”. Assim, qualquer tentativa de construir uma ecoética biocêntrica deve reconhecer esse ponto, mas isso não significa que o ser humano deva ser colocado no centro ou acima da natureza como tradicionalmente foi feito. Ao contrário, somos uma forma de vida entre outras. Por conseguinte, o modelo acima apresentado é “antropocêntrico,” mas apenas num sentido fraco, a saber, diz respeito ao modo como nós humanos podemos conhecer e valorar o mundo, mas não é antropocêntrico num sentido forte, pois na verdade descentraliza a forma de vida humana e seu lugar na natureza. Isso pode ser claramente percebido, como foi dito anteriormente, também quando não se fecha a questão de quem são as pessoas no sentido estrito capazes de escolher e, por conseguinte, de poder relacionar-se adequadamente ou não (instrumentalmente) com algo valioso em si. Por conseguinte, fica aberta a questão de saber se outros seres não-humanos, por exemplo, bonobos são capazes de valorar intrinsecamente estados de coisas (i.e., prazerosos). Outro pressuposto importante do modelo analítico acima apresentado é que há uma divisão tríplice, como já é sabido desde Platão e Aristóteles, entre os bens: alguns são meros meios para outros bens (uma caneta é um mero instrumento para escrever), outros são valiosos em si, mas também contribuem para o valor de outros bens (virtudes tais como a justiça, conhecimento, etc. são boas em si, mas podem se constituir em ingredientes para a vida feliz) e alguns são absolutamente valiosos (por exemplo, a felicidade). Assim, afirmar que um estado de coisas é


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intrinsicamente valioso não significa dizer que ele não possa contribuir para o bem de outro estado de coisas. Nesse sentido, a atribuição de bondade, beleza, etc., por exemplo, à biodiversidade e a conseqüente possibilidade desta ser parte de um estado de coisas intrinsecamente valioso não significa que ela não possa ser uma fonte de inspiração artística ou um objeto de investigação científica contribuindo para um estado de coisas com maior valor intrínseco. Dada essa forma de analisar valor intrínseco, que implicações se seguem para a ecoética? Claramente, uma primeira conseqüência é a necessidade de superação da visão tradicional que instrumentalizava a natureza como mero meio para as necessidades e desejos humanos. Essa concepção está eliminando muitas formas de vida, ameaçando outras e colocando a nossa própria sobrevivência em jogo. Não se trata apenas de garantir um meio ambiente que possibilite uma boa qualidade de vida para nós humanos. Nesse sentido, a relação não pode ser simplesmente a de manter as árvores e plantas necessárias para que se tenha um ar limpo e respirável. Assim, reflorestar o mundo, por exemplo, com pinus americanos poderia suprir a necessidade de madeira e manter a atmosfera com o nível de oxigênio necessário para que os seres humanos sobrevivam. Mas essa pode não ser uma relação apropriada com a natureza. A biodiversidade é bela em si mesma. Por isso, não podemos, por exemplo, destruir araucárias até a sua completa extinção para reflorestar o mundo com pinus. Uma araucária é bela em si mesma e a pluralidade na flora e na fauna é boa em si mesma. Por conseguinte, uma relação apropriada com a natureza não pode ser instrumentalizadora. Outra implicação importante diz respeito à necessidade de superação do tipo de racionalidade presente na economia neoclássica. Nesse sentido, cabe apontar, com Amartya Sen, que “recentemente, vários filósofos morais ressaltaram – com acerto, a meu ver – a importância intrínseca de muitas considerações que a escola ética dominante do pensamento utilitarista julga terem um valor instrumental.” (2002, p. 26). Assim, uma das pressuposições da economia moderna do bem-estar, baseada no utilitarismo, foi


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exatamente a de que a soma total de utilidade era a única portadora de valor intrínseco (Idem, p.46). Todavia, Sen procura mostrar a necessidade de superação desse pressuposto e da conseqüente insistência na eficiência econômica bem como da concepção dos agentes humanos como sujeitos unicamente interessados em maximizar o auto-interesse. Nesse sentido, Sen insiste na necessidade de combinar restrições deontológicas (por exemplo, direito à liberdade de escolha, etc.) com políticas de desenvolvimento do bem-estar baseadas nos raciocínios conseqüencialistas da economia. 11 Numa mesma linha de crítica dos pressupostos da economia neo-clássica, John O’Neil, em Ecology, Policy and Politics, critica as bases econômicas do mercado, principalmente, as suas análises exclusivamente feitas em termos de custo-benefício, como sendo incapaz de dar o devido valor às questões ambientais. Tem-se, então, uma relação inapropriada, denunciável a partir do modelo analítico acima apresentado, entre sujeitos, que não podem ser entendidos apenas como agentes buscando maximizar o auto-interesse, mas como capazes de responder adequadamente àquilo que é valioso em si. Outra implicação importante diz respeito ao modo como os seres humanos relacionam-se com os animais não-humanos. É óbvio que temos que manter aqui, como Callicott (1998) corretamente chamou a atenção, as diferenças entre a ética ambiental e o movimento de libertação dos animais baseado em direitos. Claramente, o modelo analítico acima apresentado exige uma relação apropriada com os animais não-humanos, isto é, nenhum ser vivo pode ser considerado uma mera comodidade, ou seja, como mero bem de consumo para o ser humano. Nesse sentido, as pesquisas científicas, principalmente as biotecnológicas, precisam ser conduzidas dentro de padrões éticos rigorosos. Elas são moralmente permissíveis se contribuírem para a vida como um todo, isto é, se produzirem benefícios inclusive para a espécie que está sendo investigada e não apenas para os seres humanos. A questão do 11

Sobre esse ponto ver o item “Avaliação Conseqüencial e Deontologia” em: Sen, A. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.90-94.


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uso de animais não-humanos para alimentação é mais delicada, mas certamente o modelo acima apresentado coíbe a caça se ela for feita para fins de pura diversão humana. Trata-se de uma relação inapropriada com algo que possui beleza em si mesma e isso constitui um estado de coisas que não é intrinsecamente valioso. São exatamente as relações inapropriadas com a natureza que estão levando a uma situação de risco para a vida como um todo aludido no início desse trabalho. Mesmo que se sustente que estamos num mundo pós-natural, ou seja, que já interferimos demasiado no meio ambiente do planeta como um todo a ponto de transformá-lo em algo artificial e que uma visão romanticamente naturalista somente subsiste em mentes nostálgicas, há um perigo eminente de irreversibilidade de alguns processos industriais destrutivos da vida. 12 Nesse sentido, somente o devido respeito à vida poderá contribuir para uma verdadeira mudança de atitude do ser humano suficiente para impedir uma catástrofe causada pela má aplicação de uma tecnologia supostamente neutra sob o ponto de vista axiológico, isto é, livre de valores. Essas considerações devem levar a uma discussão mais aprofundada sobre o papel que o conhecimento científico desempenha na nossa sociedade e sua relação com o princípio ecoético aqui examinado. Freqüentemente, a ciência e a tecnologia são apontadas como as responsáveis pela destruição do meio ambiente e, nesse sentido, representariam um desrespeito ao valor intrínseco da vida. Uma visão baconiana da ciência, cuja premissa fundamental é “saber é poder” e, por conseguinte, a ciência existe para dominar e subjugar a natureza aos interesses humanos, pode realmente ter conseqüências desastrosas. O nascimento da bioética e da ecoética na segunda metade do Século XX, como vimos acima, não é mero acaso e se constitui numa resposta a essa visão do mundo. Assim, se considerarmos a ciência como uma forma de conhecimento cuja aplicação é a tecnologia, então podemos 12

Sobre esse ponto ver: Rouanet, L. P. “Ética ambiental e irreversibilidade.” In: Dutra, L. H. Mortari, C. Ética. Anais do IV Simpósio Internacional Principia. Parte 2. Florianópolis: NEL: 2005, p. 143-155.


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sustentar que o que precisa ser superado é a visão positivista que estava baseada na suposta neutralidade axiológica da aplicação do conhecimento científico. 13 E é exatamente essa concepção da relação entre ética e tecnociência que tem predominado ultimamente. Nessa linha de raciocínio, Resnik, em The ethics of science, procura estabelecer alguns padrões éticos de conduta no desempenho da atividade científica. São eles: 1) Honestidade: cientistas não devem fabricar, falsificar ou adulterar dados ou resultados; devem ser objetivos, abertos (sem pré-juízos) e honestos em todos os aspectos do processo de pesquisa. 2) Cuidado: cientistas devem evitar erros na pesquisa, especialmente ao apresentar resultados; devem minimizar erros experimentais, metodológicos, humanos e evitar o auto-engano, o preconceito e o conflito de interesses. 3) Publicidade: cientistas devem partilhar dados, métodos, idéias, técnicas e ferramentas; devem permitir que outros cientistas revisem seus trabalhos e devem estar abertos à crítica e às novas idéias. 4) Liberdade: cientistas devem ser capazes de conduzir a pesquisa sobre qualquer problema ou hipótese; eles devem ser capazes de perseguir novas idéias e criticar as antigas. 5) Devido Reconhecimento: os créditos da pesquisa devem ser dados a quem mereça. 6) Educação: cientistas devem educar iniciantes e assegurar que eles aprendam a conduzir bem a ciência; cientistas devem educar e informar o público sobre a ciência. 7) Responsabilidade Social: cientistas devem evitar causar dano à sociedade e devem procurar produzir benefícios sociais; cientistas devem ser responsáveis pelas conseqüências de suas pesquisas e devem informar o público sobre estas conseqüências. 8) Legalidade: 13

Não entrarei, aqui, na difícil questão da relação entre fatos e valores. Todavia, é necessário salientar que não se pode cometer a falácia naturalística (ver Dall’Agnol, 2005a, p. 150-190), mas, ao mesmo tempo, também não se pode negligenciar o fato de que a ciência enquanto atividade e, principalmente, a tecnologia enquanto aplicação do conhecimento científico estão imbuídas de valores. Para uma recente discussão sobre esse tópico ver: Putnam, H. The collapse of the fact/value dichotomy and other essays. Massachusetts: Harvard University Press, 2002.


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no processo de pesquisa, cientistas devem obedecer às leis relacionadas com seu trabalho. 9) Oportunidade: não deve ser negada ao cientista a oportunidade de uso dos recursos científicos para o progresso do conhecimento. 10) Respeito mútuo; cientistas devem tratar seus colegas com respeito. 11) Eficiência: cientistas devem usar os recursos sejam naturais sejam financeiros, eficazmente. 12) Respeito pelas pessoas: Cientistas não devem violar os direitos ou a dignidade quando usam pessoas em experimentos; cientistas devem tratar animais não-humanos com o devido respeito e cuidado quando estão sendo usados em experimentos. Dentro desses padrões éticos, a atividade científica e a suas aplicações tecnológicas não se constituirão em desrespeito ao princípio básico da ecoética acima examinado. A tecnociência e a ecoética não precisam necessariamente opor-se, mas podem e devem complementar-se. Uma questão interessante nessa relação é, por exemplo, a dos transgênicos e seus efeitos no meio ambiente. Ela será discutida aqui somente com finalidades ilustrativas. Muitos argumentam que os transgênicos não são naturais, que podem prejudicar a saúde humana e animal, que podem destruir outras espécies de plantas, provocando até mesmo um desastre ambiental. Mas outros argumentam que não há evidências suficientes para mostrar que esse é o caso. Ao contrário, a tecnologia responsável pela produção de transgênicos não apenas teria beneficiado o meio ambiente ao diminuir os pesticidas como também pode contribuir para salvar ou incrementar a biodiversidade. Por exemplo, muitos conhecimentos advindos da biologia molecular podem, hoje, salvar várias espécies de plantas e animais em extinção. 14 Todavia, há sérios argumentos contrários à produção e comercialização de plantas e animais transgênicos. O debate está longe de atingir um consenso mínimo. Seja como for, visto que a biodiversidade é boa em si mesma, tais usos do conhecimento científico se enquadram no devido respeito ao valor intrínseco da vida. 14

Ver: Watson, J. D. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.151s.


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Para finalizar, sem pretensões conclusivas, gostaria de citar mais um pensamento de Wittgenstein sobre a ciência e a tecnologia: “A ciência e a indústria, e o seu progresso, podem vir a ser a coisa mais duradoura no mundo moderno. Provavelmente, qualquer especulação sobre um futuro colapso da ciência e da indústria não é, por enquanto e por um longo período de tempo, mais do que um sonho; talvez a ciência e a indústria, responsáveis por misérias infinitas no decorrer do tempo, venham a unir o mundo – quero dizer, a condensá-lo numa única unidade, em que decerto a paz será a última coisa a habitar.” (2000, p. 95) Pergunta, então, para refletir: a ciência, a tecnologia e a indústria não deveriam estar à serviço da vida para reverenciá-la dando-lhe o devido valor? Referências ALEXANDRE, A. F. Ambientalismo Político, Seletivo e Diferencial no Brasil. UFSC: DICH, 2003 (Tese de doutorado). CALLICOTT, J. B. “Animal Liberation: a triangular affair”. In: ELLIOT, R. (ed.) Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 29-59. DALL’AGNOL, D. Valor Intrínseco. Florianópolis: Edufsc, 2005a. DALL’AGNOL, D. Bioética. Rio de Janeiro: Zahar, 2005b. DEVALL, B. & SESSIONS, G. “Deep Ecology.” In: STERBA, J. P. Earth Ethics. New Jersey: Printice Hall, 2000. p. 149-157. ELLIOT, R. (ed.) Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1998. LEOPOLD, A. “The Land Ethic: conservation as a moral issue; thinking like a mountain.” In: STERBA, J. P. Earth Ethics. New Jersey: Printice Hall, 2000. p. 139-148. PUTNAM, H. The collapse of the fact/value dichotomy and other essays. Massachusetts: Harvard University Press, 2002. MATHEWS, F. “Value in Nature and Meaning of Life” In: ELLIOT, R. (ed.) Environmental Ethics. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 142-154. MOORE, G.E. Principia Ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.


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Subjetividade e linguagem são mutuamente excludentes? Inês Lacerda Araújo ∗

Resumo: Quando o pensamento se volta para a subjetividade, a linguagem está ausente. E quando a linguagem é questão, a subjetividade fica de fora, como mostrou Foucault em As Palavras e as Coisas. Serão elas mutuamente excludentes? Desde fins do século XIX a linguagem tem sido abordada pela lógica, pela lingüística, pela filosofia analítica. Pensar só é possível se houver uma estrutura semântica, segundo Frege e Wittgenstein. Dá-se a virada lingüística. Porém esse modelo não dá conta da fala, do contexto, limita-se à sentença proposicional. Após a virada pragmática, subjetividade e linguagem se relacionam num outro nível, a questão passa a ser a intersubjetividade, e nesse sentido, sujeito e linguagem não se excluem. É o que se pode depreender da concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein, de racionalidade comunicativa de Habermas e de crítica à representação de Rorty, através de suas respectivas noções de formas de vida, entendimento comunicativo e uso de discursos. O sujeito é constituído pela ação e pela fala. Palavras-chave: Subjetividade, Virada lingüística, Virada pragmática Abstract: Whenever philosophy is occupied with subjectivity, language is absent. And whenever language is focused, subjectivity is not, as Foucault argues in The Order of Things. Since the ending of the 19th century language has been a central matter in logic, linguistics and analytic philosophy. Thinking is possible just if there is a semantic structure, following Frege and Wittgenstein (linguistic turn). But in this kind of thinking, the speech and the context do not count, just the sentence in its form of proposition. It is necessary to take into account speakers, the speech acts and the dialogue context. After the pragmatic turn, language is a matter of “intersubjectivity”, and in this sense, language and subjectivity are not mutually exclusive. These is clear in Wittgenstein’s conception of language game, of Habermas’ communicative rationality and in Rorty’s critique of representation; following their concepts of life forms, understanding and the use of discourse, the subject is a construction, a result of action and language. Keywords: Linguistic turn, Pragmatic turn, Subjectivity

Professora do Departamento de Filosofia da PUCPR. E-mail: ineslara@matrix.com.br. Artigo recebido em 02.08.2007 e aprovado em 18.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 83-103.


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1 A virada lingüística e a virada pragmática O tema da “linguagem” só se tornou objeto de preocupação filosófica a partir do final do século XIX. Para caracterizar a linguagem, sob as formas nas quais ela foi analisada desde então, tem-se as seguintes dimensões: a de signo pelo qual a linguagem se estrutura e as significações são articuladas; assim há simbolização e “semiotização” da realidade; a de proposição que representa estados de coisa através de recursos lógico-lingüísticos (sintáticos e semânticos); a de ato de fala como execução de uma ação lingüística que demanda um tipo de comportamento e um uso em situação; a de discurso pelo qual se efetivam o dizer e o dito, lugar de constituição do sujeito nas formações discursivas e lugar de comunicação intersubjetiva, com valor e força social, política. A subjetividade é o tema central da fenomenologia, pelo menos se entendermos subjetividade no sentido de interioridade pessoal, fonte de sentido e da intencionalidade da consciência. Não se trata mais do sentido transcendental kantiano de razão e nem do sentido hegeliano de subjetividade imanente à progressão da razão humana. No sentido fenomenológico há uma aproximação com o cogito cartesiano, visto como mente cuja substância é o pensamento. As dimensões acima mencionadas da linguagem (signo, proposição, ato de fala e discurso) se articulam, não é possível isolar umas das outras, a não ser para efeito de análise. Isso porque a linguagem não se limita ao aspecto gramatical, ou semântico ou lógico ou pragmático-discursivo. Se um desses recursos ou características faltar, ou se eles forem sobrepostos e confundidos, o resultado é uma concepção equivocada e limitada do fenômeno “linguagem”. Após a virada lingüística o pensamento ocidental volta-se para questões lógicas, filológicas, semióticas, semânticas, no âmbito da lingüística e na filosofia da linguagem. Houve um corte epistemológico a partir do qual a linguagem, até então tida como simples meio de representação do pensamento, passa a ser um dos focos centrais da filosofia, especialmente com a lógica proposicional em fins do século XIX e a lingüística estrutural no


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início do século XX. Após a virada pragmática, a análise se volta para o uso, o contexto, os falantes, o discurso. Nas concepções clássicas de filosofia, a linguagem era vista como mero instrumento para o pensamento representar o mundo. No momento em que a linguagem passa a ser levada em conta para a compreensão do pensamento, o que fica excluída é a subjetividade no sentido de propriedade de um sujeito que apreende e representa o mundo. Para a fenomenologia husserliana o que conta é a intencionalidade da consciência. Dá-se uma verdadeira revolução quando a questão se inverte: no lugar de ser expressão do pensamento, de um logos pensante, algo residual com relação às formas puras e transcendentais, a linguagem passa a ser analisada enquanto uma estrutura articulada, independente de um sujeito ou de uma vontade individual, não mais submetida à função exclusiva da referência e da nomeação. Para significar é preciso que a linguagem se estruture semanticamente, e este é o papel das proposições. A virada lingüística produz uma radical transformação de perspectivas e de temas; não cabe mais enfatizar os fundamentos últimos e a busca de certeza; ao invés de buscar as fontes, critérios e substrato do conhecimento, checar os limites e propriedades da razão, há uma preocupação com a estrutura significante da linguagem, a capacidade de “semiotização da realidade”, a relação entre pensamento e realidade por ele apreendida, se faz através do enunciado lingüístico. São exemplos dessa renovação, a lingüística do signo de Saussure, precursor do movimento estruturalista (anos 50 e 60), a lógica matemática (Frege, Russell, I Wittgenstein), o neopositivismo (Carnap, Neurath). A virada lingüística leva a uma reformulação da filosofia, que assume características de pensamento pós-metafísico, i. e., não mais a busca de certeza e de um fundamento último para a verdade, ela é “desse mundo”, diz Foucault. Seguiu-se a esse, um novo movimento, o da virada pragmática que se deve à semiótica de Peirce, à concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein a partir de Investigações Filosóficas,


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de atos de fala (Escola de Oxford), de formações discursivas, objeto de análise de Foucault (As palavras e as coisas e Arqueologia do saber), a teoria da ação comunicativa de Habermas, para mencionar as contribuições mais relevantes. O momento crucial é a passagem da análise lógico-lingüística, cujo núcleo é a proposição, com seus dois componentes, o significado e a referência (Frege) e que alcança seu ponto máximo na teoria da figuração tractariana – para a análise da linguagem ordinária, sem núcleo algum. “Compreender uma sentença é compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica”, diz Wittgenstein (2001, p. 68, § 199). A relação entre linguagem e representação/pensamento, se dá não por propriedades mentais da significação, pois o significado não é “mental”, como argumenta Quine. A significação é uma função de regras e combinações de signos que funcionam em um sistema lingüisticamente estruturado e nele assumem determinado valor. Pelo aprendizado dessas regras públicas, torna-se possível significar, comunicar, referir, executar os inumeráveis jogos lingüísticos. As línguas se estruturam gramaticalmente (sintaxe e semântica) e cada fala realiza um ato específico (afirmação, pedido, ordem, descrição, entre outros). Por isso mesmo a significação não se dá pela relação entre a palavra que designa e o objeto designado, resultado de uma suposta relação direta com a coisa nomeada, mas por pertencer ao sistema da língua, que tem suas regras próprias, cujo funcionamento não depende de uma consciência individual, limitada a expressar o pensamento. Em Investigações filosóficas Wittgenstein argumenta que a nomeação é um jogo primitivo de linguagem, há inúmeros outros jogos. A linguagem é uma ferramenta pública, ordinária, do dia-a-dia, suas regras têm um caráter pragmático, não se restringem à forma lógica da proposição, aliás, não são suscetíveis de formalização, pois se prestam a um uso contextual. Os jogos de linguagem e suas regras apontam numa direção, obedecem a semelhanças de família, não havendo estrutura alguma privilegiada para mostrar que as coisas se dispõem no espaço lógico da afiguração, como pensava no Tractatus. Há uma multiplicidade de jogos de linguagem, como


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prometer, ordenar, descrever, contar histórias, sugerir, ironizar, etc. Essa multiplicidade corresponde a ‘formas de vida’. Não há um núcleo comum, um fio único a amarrar os jogos ou os usos lingüísticos todos. Tal como numa corda, a trama é tecida com vários fios que garantem sua resistência (cf. 2004, p. 106). Em Word and object (1961), Quine mostra que essa relação depende do aprendizado lingüístico e de uma ontologia de objetos cuja função decorre da lida prática com o mundo das coisas. Enfim, após a virada lingüístico/pragmática, a filosofia deixa de lado a análise das representações mentais, e passa a analisar a linguagem cujas expressões gramaticais, proposições com valor de verdade, atos de fala e discursos, não são produtos de uma subjetividade, e sim formas culturais, simbólicas, que foram aprendidas e que têm um uso determinado. 2 O sujeito e a linguagem Como explicar que a linguagem tenha sido objeto de estudo recente da filosofia? Como entender que sua presença anula a subjetividade, conduz à “morte do homem”? Ou, dito de outro modo, por que na história do pensamento ocidental, quando o homem foi questão (concepção clássica nas diversas correntes humanistas), ou o sujeito (concepção de um cogito, de uma mente pensante cartesiana), ou um eu transcendental (como para Husserl), ou ainda uma subjetividade (a consciência do pour soi de Sartre), a linguagem não foi questão? Trata-se, como pergunta este texto, da exclusão mútua entre subjetividade e linguagem? O surgimento da linguagem como problema central para o pensamento ocidental, se deve, segundo Foucault em As palavras e as coisas (1966) à formação discursiva do final do século XVIII que vem até nossos dias. Numa formação discursiva, conceitos se modificam, novos objetos surgem para o saber, em “um solo positivo sobre o qual serão construídas as teorias dos ordenamentos das coisas e as interpretações que elas produzem” (Foucault, 1966, p. 12). Nesta perspectiva, quando acontece a ruptura com o pensamento clássico que analisava o mundo pelas representações, pelas classificações, pela ordenação das coisas num


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espaço empírico, um novo ordenamento do saber entra em cena. E nele o sujeito é o homem, que vive, trabalha e fala; nessa figuração do saber, em que o homem conhece através de condições finitas (a linguagem é fruto da evolução histórica, a vida é finita, e o trabalho é precário), aquilo que ele é, não há mais lugar para o cogito. Em nossa formação discursiva, a linguagem sofre uma transformação, não há mais a gramática que a unifica. No final do século XIX, a linguagem se dispersa nas análises da filologia, na formalização que a despe de seu conteúdo concreto, na hermenêutica, e na literatura. Ao contrário da biologia e da economia política, centradas na vida e no trabalho, respectivamente, a linguagem se reparte e “talvez seja essa a razão pela qual a reflexão filosófica esteve durante tanto tempo distante da linguagem”, afirma Foucault (1966, p. 316). No espaço da filologia e da filosofia que Nietzsche abriu, a linguagem surge de modo disperso e enigmático, no qual a pergunta sobre quem fala, tem como resposta: é a própria linguagem, a significação não é obra de um sujeito, não é possível que um sujeito detenha os códigos de significação. Quando o discurso se desprende da representação, o pensamento caminha na direção da linguagem, de “seu ser único e difícil” (Foucault, 1966, p. 317). O fim da era da representação é também o fim do sujeito cognoscente. Nessa nova ordem do saber o ser do homem é deslocado pela psicanálise, pela lingüística e pela etnologia. O inconsciente, o sistema de signos e a diversidade de culturas “formam”, estruturam o homem. Toda “subjetividade” passa por esses filtros, quer dizer, pensar, falar e usar utensílios são atividades que constituem o homem. O pensamento resulta dessas possibilidades concretas e não de um princípio unificador, transcendental, fonte de identidade, reduto do “si mesmo”. Não há mais pensamento inocente ou primordial, fruto de uma consciência subjetiva livre para apreender, pensar, conhecer. Daí a crítica de Foucault às filosofias do sujeito: elas pressupõem que a subjetividade constitui o homem, que a consciência intencional é a fonte e a essência do conhecimento. A fenomenologia e o existencialismo respondem à pergunta de Kant, “O que é o


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homem?”, afirmando que ele tem uma essência, que para a primeira é a consciência intencional, para o segundo, a existência. Essa resposta é ingênua, circular, uma vez que surge de condições empíricas que produzem um pensamento sobre o homem, mas que são consideradas, pelas filosofias do sujeito, como transcendentais; tomar o empírico como transcendental é tentador, porém inviável, impensável depois de Kant. A linguagem é necessária ao pensamento, à constituição do mundo, à significação das coisas. Então não há mais lugar para a subjetividade? Entendida no sentido de um sujeito pensante, de um ego transcendental, esta subjetividade flutua no vácuo. É preciso fazer uma análise das capacidades lingüísticas que se dão primeiramente no nível lógico/lingüístico e depois no nível pragmático das formas de vida culturais para entender subjetividade como intersubjetividade. O modelo de subjetividade fundadora se dissolve na medida em que o homem é um ser vivo, falante, finito, e que não pode alçar a si mesmo fora das formas culturais e sociais que o constituem. De Nietzsche a Heidegger, o sujeito humano é visto como aquele que resulta dessas condições empíricas, históricas, culturais e, em seu saber, apreende essas condições e as analisa. O horizonte do conhecimento é formado e transformado por aquelas mesmas condições. Não é possível sair da linguagem sem a linguagem, afirma Habermas, também um crítico das filosofias do sujeito (cf. Pensamento pós-metafísco). Filosofias de cunho transcendental, de veio humanista, com propostas salvíficas, não têm mais lugar no pensamento pós-metafísico, que passa pelo giro lingüístico e pelo giro pragmático. Paralelamente, nesse modelo, não há algo absolutamente exterior, como uma realidade em si mesma. A revolução lingüística só foi possível após a revolução kantiana. Sujeito e objeto não são pólos absolutos do conhecimento. O pensamento pós-metafísico foi o primeiro passo para mostrar que somos formas de vida que desenvolveram meios para pensar, calcular, planejar, ordenar, fazer ciência, fazer filosofia, entre tantas outras atividades. Nessas formas cotidianas de vida há necessidade de lidar com as diversas situações,


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solucionar problemas, conduzir propósitos e intenções, perseguir desejos, firmar crenças, e muito mais. Neste sentido, se pode inclusive chamar a essas atividades de “subjetivas”, próprias de certa pessoa, com seu modo peculiar de ser e pensar. E isto se dá em formas de vida que agem e se comunicam não por possuírem uma consciência subjetiva ordenadora, transcendental, e sim pelas ações intersubjetivas, pelas quais se compartilham formas simbólicas, significações, linguagens. Ou seja, aquilo que se chama de “subjetividade”, não é a essência humana, pois depende de condições históricas, culturais, sociais; há jogos de linguagem, próprios a certas circunstâncias, com certa finalidade, em que supor uma subjetividade faz sentido, por exemplo, para diferenciar de objetividade no âmbito de apreciação valorativa (cf. Rorty, 1969). 3 Da proposição aos jogos de linguagem e aos atos de fala Sem a proposição, para Frege, não é possível referir-se e significar. E para falar de algo com sentido, não é necessário que esse algo exista. A linguagem sendo meio de comunicação e de conhecimento permite a transmissão e compreensão do “sentido” (Sinn), sem precisar recorrer à referência. Sentenças que negam, sentenças que descrevem o rei da França ou a Grécia de Péricles têm significado, mesmo que o referente esteja no passado histórico ou que não possa ser verificado. Numa sentença assertiva completa, Frege distingue o sentido, que ele chama de pensamento e a referência ou significação da sentença (Bedeutung). A referência de uma sentença possibilita atribuir um predicado de um sujeito. “O pensamento perde valor para nós tão logo reconhecemos que a referência de uma de suas partes está faltando” (Frege, 1978, p. 68). O que mostra que além do pensamento é preciso haver valor de verdade, pelo menos no caso das asserções que demandam algum tipo de verificação, pois o sentido de uma sentença acerca de um personagem de ficção, por exemplo, não exige nenhuma preocupação com valor de verdade. Essa distinção foi decisiva, como lembra Quine. É perfeitamente possível falar com sentido a respeito de entidades e de suas


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propriedades sem implicar a existência, em qualquer sentido do termo, da coisa referida, nomeada, designada. Diz Quine: “... há um abismo entre significar e nomear, inclusive no caso de um termo singular que seja genuinamente nome de um objeto” (1962, p. 34). Frege “desontologiza” a linguagem. Há expressões com sentido mesmo que não tenham referência. Duas afirmações podem referir-se a uma mesma situação, mas ter modos de apresentação diferentes, portanto, permitem o progresso do conhecimento. Carnap, preocupado com as ciências naturais, propõe algo diverso, a construção lógica do mundo requer que a proposição tenha conteúdo empírico. A concepção tractariana de significação como figuração do mundo, é reformulada por Carnap em função das sentenças das ciências naturais. As proposições da ciência têm significado por serem as únicas suscetíveis de verificação (testabilidade ou corroboração). O sentido de uma asserção depende da relação referencial entre linguagem e realidade, construída pela sintaxe da proposição. Sem aquela relação, não há valor de verdade, sem valor de verdade não há o que verificar, nem como verificar. Quine e Rorty criticam essa abordagem, a forma lógica da proposição não é o passe para a referência, esta é uma função não da sentença, mas do uso da sentença. A semântica formal limita a linguagem à sentença. Ora, é o pensamento, no sentido de Frege, que apreende um estado de coisa, que exprime um estado de coisa. Quer dizer, há uma diferença entre uma proposição expressar um fato, julgar a validade de um juízo, afirmar, e a representação de um objeto feita pela consciência individual. Uma asserção ou afirmação é um ato lingüístico pelo qual se pretende que tal ou tal estado de coisa pode ser caracterizado como um estado de coisas permanente, sobre o qual faz sentido falar. Pode-se afirmar ou fazer uma asserção sobre os jardins suspensos de Nabucodonosor ou sobre as intervenções de Bush no Iraque. Importa que algo foi dito e pode ser transmitido, compreendido; a asserção como que “imobiliza” o sentido. Na formulação de uma proposição verdadeira, o sentido não pode ser confundido com a existência de um ente (propriedade


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extensional); se fosse assim, a proposição, que transmite um pensamento completo, teria que conter um ente ideal. Essa condição é que levara a semântica formal a pressupor a necessidade de uma ligação entre a linguagem afirmando algo (o que não depende de um tempo “real”) e o ente afirmado ou pressuposto pela asserção (num tempo). Justamente a relação ontológico-referencial entre linguagem e mundo. Neste sentido, é preciso ir além de Frege, com Frege, pois para ele o sentido e referência independem do uso da proposição. Ora, pelo uso os interlocutores acertam entre si o valor semântico de uma afirmação, na medida em que se posicionam com relação ao conteúdo de um ato de fala dito naquela situação, naquele contexto, com certo propósito. Assim, para referir não basta a sentença com significação que diz algo, tem um conteúdo proposicional (semântica veritativa). O significado da sentença não é algo que fica “pairando na cabeça de alguém” (para usar uma expressão de Wittgenstein), ela é dita por alguém em situação real de emprego, quando passa a valer como afirmação, ou como outro ato de fala, com força ilocucionária 1 . Nos atos de fala como uma ordem, um pedido, um protesto, o que está em questão não é a referência a um estado de coisa, nem o valor de verdade de uma proposição. A dimensão pragmática da linguagem, com Wittgenstein, Dewey, Austin, Strawson, Quine, Davidson, Rorty, Habermas, tem como ponto comum o uso em contexto, de modo que a significação não depende da relação referencial entre língua e mundo. O que é afirmado ou pressuposto é dito em uma situação de emprego, em um contexto dialógico, como parte de culturas e formas de vida. Nessa dimensão pragmática dos jogos de linguagem, dos atos de fala com suas características operatórias, e no solo discursivo de produção da linguagem, além da competência de um falante pela qual há compreensão lingüística, há os componentes situacionais. Não nos 1

Para Austin em todo ato de fala há três dimensões, a locucionária em que contam a forma gramatical e a referência; a ilocucionária, que é a força do dito em situação, caracteriza um ato de fala como tal ou tal; e a perlocucionária, que é o efeito provocado no ouvinte.


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comunicamos com frases geradas pela gramática e sim através de enunciações ditas por alguém, a alguém em dada situação. 4 Subjetividade e linguagem após a virada pragmática No item 2 mostramos que linguagem e subjetividade são incompatíveis na perspectiva da virada lingüística. O que não significa eliminar a dignidade e a responsabilidade da pessoa humana. A constituição do sujeito por práticas históricas mostra que pressupor uma subjetividade como essência do homem, após a virada lingüístico-pragmática, conduz às filosofias do sujeito. Com a virada pragmática, pelo uso da linguagem em situação, em contexto, a atividade não é a de uma consciência subjetiva, e sim a atividade intersubjetividade entre falantes que “acertam” entre si aspectos da situação, do mundo. Para que a filosofia chegasse a este tipo de visão, foi necessário percorrer um caminho que vai da sentença até os jogos de linguagem e os atos de fala. O modelo da linguagem ordinária rompe com o modelo lógico-lingüístico. As abordagens pragmático-discursivas são mais ricas e produtivas para entendermos a questão da relação entre linguagem e subjetividade. Limitar a linguagem à função assertórica, calcada na proposição, tem por detrás uma epistemologia que opõe interior a exterior. O interno é propriedade de uma subjetividade pensante, de um cogito que representa o mundo, que ordena o caos empírico, em resumo, uma subjetividade. Esta é a responsável pela representação da realidade. A consciência intencional, como princípio de inteligibilidade das coisas, dos objetos, da realidade, não leva em conta a linguagem, e está ligada ao modelo representacional. De um lado o sujeito que pensa, de outro lado, a realidade representada. A teoria tractariana da figuração ainda se faz sob o modelo representacional, na medida em que, apesar de a linguagem ser imprescindível, há necessidade de estabelecer uma relação com a realidade, com estados de coisa; essa relação entre linguagem e realidade se faz com pressupostos ontológicos, de modo que a virada lingüística, neste aspecto, ainda está ligada a uma epistemologia da representação. No Tractatus lógico-philosophicus, a referência é


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uma questão central; a relação de projeção entre proposição e estado de coisa, faz da questão semântica o fulcro da filosofia da linguagem; ela implica numa tomada de posição relativamente à linguagem, importa dizer o que é o caso, isto é, formular proposições com significação e capacidade referencial, do contrário não é possível atribuir valor de verdade. A prioridade na filosofia é resolver o problema epistemológico, encontrar um critério de verdade, buscar a certeza lógica e a objetividade empírica pelo confronto entre as representações mentais e os estados de coisa do mundo. No caso de Wittgenstein o mundo é representado pela projeção da forma lógica da proposição sobre os estados de coisa (teoria da figuração). Esse modelo foi repensado pelas análises da linguagem ordinária, a começar pelo próprio Wittgenstein. Em suma, a questão clássica da relação entre pensamento e coisa pensada se transforma em uma questão lingüística, a da referência e esta, após a virada pragmática, é uma entre outras possibilidades da linguagem, um entre outros atos de fala, para Austin; e para Wittgenstein um jogo de linguagem sem privilégio lógico ou epistemológico. Para Austin as asserções seguem as mesmas regras e condições que regem todo ato de fala, elas podem ser ou não bemsucedidas. Strawson critica Russell (Sobre o referir, 1950), mostrando que uma sentença iniciada por uma descrição definida apenas ao ser usada cumpre a tarefa de fazer a referência. É o uso da sentença em uma situação de diálogo que permite um ato referencial. Assim, a relação entre linguagem e estado de coisa depende do falante, de seus propósitos, do tipo de ato lingüístico. Somente em contextos lógicos, formalizados é que a relação entre sentença e objetos/estados de coisa referidos é simples. Mas na linguagem ordinária é necessário o uso da sentença a fim de que a função referencial seja bem-sucedida. A mudança de direção na filosofia decorrente da virada lingüístico/pragmática, ou seja, o reconhecimento de que conhecer, referir, designar e simbolizar, se inter-relacionam, não implica como muitos críticos da filosofia da linguagem pressupõem, que a


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filosofia está sob o império da lógica e da análise semântica da linguagem, e que, assim, relega a um segundo plano as questões da subjetividade, da liberdade, questões éticas e políticas. As análises lógicas e semânticas são pertinentes e procedentes, mas não suficientes. A virada pragmática tampouco pretende resolver questões epistemológicas. Neste sentido vale lembrar a função terapêutica da filosofia proposta por Wittgenstein em Investigações filosóficas. A necessidade de comensuração, de um critério fixo, ou para sermos mais exatos, a busca de um transcendental, é isto que não faz mais sentido. O que dá sentido à crítica à filosofia analítica, segundo Rorty, é evitar que o modelo lingüístico substitua o modelo representacionista e venha a ser considerado como apto para resolver as questões que o modelo epistemológico tradicional não conseguiu. Com Rorty, a crítica ao modelo do confronto sujeito/objeto sobe de tom. Sua proposta de um relativismo contextual radical decorre da renúncia ao fundacionalismo. A filosofia não precisaria da verdade obtida por confrontação. Em nossa cultura pragmatizada, afirma ele, a conversação não deve cessar sob hipótese alguma. A argumentação de Rorty é consistente com a necessidade de a virada lingüística ser completada pela virada pragmática. A filosofia analítica se detém no patamar em que a linguagem fica restrita à análise lógico-semântica de sentenças com conteúdo proposicional, em que apenas as discussões relativas à referência e ao significado são consideradas pertinentes. Ora, significação e referência são recursos que dependem para seu funcionamento, de outros recursos, que são as condições pragmáticas do discurso (contexto do discurso, falante, propósitos, situação concreta de fala, auditório, etc). 5 Para além da representação As abordagens analíticas são reducionistas e acabam por cair naquilo que proscrevem, ou seja, a análise da essência do mundo e da linguagem funciona como fundadora da realidade e como fundamento do pensamento e do conhecimento. Para verificar uma proposição é preciso contrapor sentença com a realidade empírica


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que esta sentença descreve. Salta à vista um paradoxo: não é a linguagem que organiza a realidade, que “semiotiza” a realidade? As condições lógico-empíricas que permitem o teste de teorias dependem da adoção de um paradigma (no sentido de Kuhn). Da necessidade de regras próprias aos contextos da prática científica normal, não se segue que a análise das formas proposicionais assertóricas basta para entender a questão da referência e do significado, e, assim, a da relação entre subjetividade e linguagem. Nas práticas lingüísticas, funcionam condições pragmáticas, tais como falantes trocando atos lingüísticos em uma situação dialógica, como pensam, além de Rorty, Habermas e Davidson. Tal se deve ao caráter auto-referencial da linguagem, um ato de fala não somente veicula um conteúdo, uma informação que diz algo acerca de uma situação; além de dizer o que é o caso (segundo a semântica veritativa isso é imprescindível para dar inteligibilidade à sentença), a cada em enunciação, há a realização de um ato de fala que vale como ação produzida pela fala. Habermas explica assim essa característica da linguagem: os atos realizados numa linguagem natural são sempre auto-referentes. Eles revelam, ao mesmo tempo, como devemos compreender e como devemos utilizar o que é dito. Essa estrutura reflexiva da linguagem cotidiana torna-se palpável na forma gramatical da ação de fala singular. O componente ilocucionário determina em que sentido o conteúdo proposicional é utilizado e como deve ser compreendido o proferimento, ou melhor, a que tipo de ações ele se refere (1990, p. 113).

Em suma, nas situações em que são empregados atos de fala, o modo como o contexto funciona, mostra que ao falarmos não estamos comunicando proposições que expressam um valor de verdade, ou cujos nomes fixem referentes; fazemos mais do que isso. Rorty argumenta que uma teoria da referência é requisitada apenas nas concepções de linguagem que se atêm à função de representar o mundo, apenas no tipo de epistemologia que demanda o confronto entre mente e mundo. A semântica veritativa situa-se no quadro epistemológico que exige representações exatas que a mente


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reflete, espelha. A certeza viria de a mente que representa ser igualmente apta a examinar se o que ela representa está ou não de acordo com os fatos, com os estados de coisa. Disso resultam montagens de representações exatas. E, como elas retratam fatos empíricos, não podem ser questionadas, são objetivas. Mais uma vez, trata-se da ingenuidade pré-kantiana, um retorno a Descartes (exigência de exatidão e certeza) e mesmo a Locke, que concebeu a “idéia de idéia”, a idéia como representação do material empírico montado pela combinação dos dados dos sentidos (cf. Rorty, 1969, p. 142-147). A necessidade de uma epistemologia que fornece dados, representações, critério para obtenção de verdade, enfim, a verificação como resultado da relação entre a sentença proposicional e o estado de coisa que ela descreve ou projeta, são alguns dos pressupostos que estão por detrás da filosofia analítica. Compreende-se por que há necessidade para Frege de uma distinção entre pensamento e valor de verdade, por que a teoria da figuração de Wittgenstein busca uma resposta para a pergunta acerca da essência do mundo e da linguagem, e também a razão pela qual a teoria verificacionista de Carnap se baseia na repartição entre verdades analíticas, as verdades que o são pelo significado, e verdades contingentes, advindas da experiência. Quine, em contrapartida, ao sustentar a relatividade ontológica e a inescrutabilidade da referência, situa-se já no quadro teórico que leva em conta a linguagem ordinária, a incomensurabilidade das teorias, e o aprendizado da linguagem. Ele mostra que a relação entre palavra e objeto, entre linguagem e realidade decorre da ação humana no mundo e não de certos fios mágicos que ligariam linguagem e realidade. “Realidade” não deve ser entendida como substrato ou locus de objetos, entidades individuais, seres discriminados com suas propriedades intrínsecas, essenciais. A realidade ao mesmo tempo em que é conceptualizada cultural, lingüística e semioticamente, é algo com que se lida, entra nas justificações e crenças. É no contato ativo com a realidade, que


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surgem situações em que há necessidade (ou não) de pessoas, grupos e comunidades se defrontarem. Para Quine, a significação não é uma questão de significados como entidades mentais, como que pairando na mente de cada indivíduo. A linguagem serve às atividades humanas, faz parte dessas atividades, fixa significados e formas gramaticais que servem para certos fins, que permitem gerar um número suficientemente amplo de crenças verdadeiras. Portanto, referir e nomear são atividades que fazem sentido e se adaptam para a produção de juízos objetivos, também eles uma conseqüência e uma exigência da atividade humana, de sua plasticidade e capacidade de adaptação a este mundo. 6 A subjetividade como intersubjetividade A significação dos termos não deriva de propriedades intrínsecas dos objetos nem da mente pensante, como mostramos acima. Rorty concorda com Quine, não há como escrutar a mente, não há o que escrutar. Há pessoas em convívio social, aquilo que Wittgenstein chamou de formas de vida. Pessoas interagem em meio à diversidade de culturas, de ontologias e de linguagens. Para Davidson a semântica não é uma questão de valor de verdade da proposição, mas uma questão de interação comunicativa, cuja abordagem deve ser feita através de interpretações, quer dizer, nos moldes de uma hermenêutica, num paradigma que é o da intersubjetividade. Quer dizer, é preciso uma teoria de verdade que funcione para uma certa linguagem, e cada sentença ao ser usada por um falante e interpretada por um ouvinte, poderá ser considerada como verdadeira a cada combinação de objetos com palavras que fornece a interpretação adequada àquela situação. A subjetividade no sentido de mente intencional, como a fenomenologia a vê, é incompatível com a nova abordagem que leva em conta a capacidade discursiva. A intersubjetividade é o requisito e o modelo que dá conta de que, para expressar um fato, é preciso a formulação de juízos por parte de usuários em situação, capazes de avaliar o que está sendo dito.


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Um ato de fala que dê conta da capacidade referencial e que demanda avaliação com relação à sua verdade ou falsidade, requer, não representações privilegiadas da mente pensante, requer o reconhecimento por parte dos usuários da língua de que se trata disso ou daquilo, e esse saber não é algo “mental”, mas é um saber disso, do que se trata, sob qual ângulo tal e tal objeto ou situação está sendo considerado, que tipo de garantia é levantada, com quais propósitos. Sentenças são empregadas, analisadas, articulam o pensável. Elas não são a representação mental de um indivíduo. A estrutura lógica da proposição é uma idealidade, não há como relacionar estados de coisa fixados idealmente e as coisas transitórias, exatamente a dificuldade que moveu Kant. Como estamos num momento de filosofia pós-metafísica, um retorno a Kant não resolve o problema. Em nossa atual epistémé, para usar um conceito foucaultiano, o “transcendental” habita as categorias da linguagem. Segundo Habermas, a razão se “destrancendentaliza” (1999, p. 186). Daí ser imperioso transpor os limites impostos pela proposição e pelas condições lógicas e semânticas em direção à linguagem vista sob condições pragmáticas que permitem o uso do discurso e sua interpretação. Se a linguagem se limitasse às sentenças com conteúdo proposicional, ficaríamos impedidos de nos comunicarmos uns com os outros. Assim, a subjetividade, que após a virada lingüístico/pragmática fica absorvida pelas funções da linguagem, retorna sob outra forma, não a da consciência intencional, não a da mente cartesiana, não a das formas transcendentais, mas a de uma intersubjetividade. A comunicação é uma função de atos de fala, de jogos de linguagem, e mais, o modo como a “realidade” é objetivada através das significações, depende de certas formas gramaticais e de seu uso em atos de fala, por exemplo, para nomear certa entidade, esclarecer um fato, decidir entre dois postulados, etc. Há três pólos: o da linguagem como um tipo de comportamento humano aprendido, o dos atos de fala e o das situações que são trazidas à tona, que são “negociadas”, como diz Habermas. O paradigma da intersubjetividade, ao contrário do paradigma das filosofias do


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sujeito, vê a estrutura racional interna da ação comunicativa como fruto de uma razão “encarnada simbolicamente e situada historicamente” (Habermas, 1987, vol. I, p. 11). A racionalidade comunicativa conduz a entendimento, não coage, os falantes trocam atos de fala, e neles suas convicções asseguram a unidade do mundo objetivo e a intersubjetividade do contexto em que vivem. A racionalidade comunicativa não requer a apresentação do mundo como conjunto de estados de coisa, e sim a possibilidade de questionar, de problematizar. A objetividade decorre dessa necessidade, os participantes na comunicação que pertencem a uma comunidade de sujeitos capazes de linguagem e de ação, devem poder reconhecer e tratar daquelas situações. Só há entendimento se houver essa possibilidade de objetivar situações que forem alvo de discussão entre falantes no contexto “do mundo da vida que compartilham intersubjetivamente” (1987, vol. I, p. 30-31). Não faz sentido recorrer à noção de mente que representa coisas em atividades lingüísticas corriqueiras como descrever, julgar, representar-se um quadro, recordar-se da infância, mostrar a adequação de um exemplo, fazer uma analogia, narrar, descrever algo já ocorrido, apostar, visar algo como, preocupar-se, entender-se com alguém, dirimir uma dúvida, entre outros inumeráveis usos da linguagem. Nenhum deles é derivação pura e simplesmente da sentença proposicional nem de significações mentais, como mostrou Wittgenstein em Investigações filosóficas. Indo nessa mesma direção, os filósofos pragmatistas norteamericanos, além de considerar a linguagem como cultural, pública, com enorme diversidade de funções e pluralidade de usos –, ressaltam o papel instrumental da linguagem. Dewey é cético quanto a qualquer verdade essencial, de tipo metafísico; quanto ao significado, sua posição é antiplatônica; o significado não é considerado como tendo uma “existência” ideal (caso da teoria abstrata do significado de Frege). O significado não surge da comparação entre coisas, pelo reconhecimento do que têm em comum, mas é genérico e universal. Essa capacidade de generalizar decorre de os significados funcionarem como regras para uso e


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interpretação; possibilitam, por exemplo, prever o alcance de algo, fornecem um “método” para usufruir algo, ou são o indicador objetivo para algo que importa, que integra modos de agir sociais. Para o pragmatismo norte-americano, a lógica e a linguagem não podem ser separadas das necessidades da vida. Com a virada pragmática, a idealidade do significado passa a ser objeto ou tema da conversação. As vivências da consciência tal como a fenomenologia descreve, não passam de recursos para se ter acesso aos fenômenos, recursos esses que habitam a linguagem em suas múltiplas funções, não são fruto de um eu ou de uma consciência transcendental. Nessas novas perspectivas, lingüístico-pragmáticas, a subjetividade é repensada. A pessoa, enquanto alguém que se expressa, pensa, se comunica, as condições em que esses processos se dão, nada disso se faz sem levar em conta o(s) outro(s) ao qual os atos de fala são remetidos. Quer dizer, há necessidade de considerar a si mesmo e o outro, as situações demandam compreensão, tomadas de posição; neste sentido a subjetividade não exclui a linguagem, mas a pressupõe. Essa subjetividade, que se realiza enquanto intersubjetividade, não é a fonte absoluta de conhecimento, e sim uma decorrência de pessoas agirem e decidirem. Ao lado do reconhecimento recíproco, público, que autoriza o consenso alcançado pelo discurso, há necessidade de chegar a acordo e este depende de conhecer a situação, os fatos, avaliá-los à luz de interpretações e do surgimento de evidências. Assim, são pessoas que se valem destas condições discursivas e epistemológicas. Verdade objetivada, legitimidade normativa, pessoas íntegras, capazes de argüir e sustentar seus pontos de vista, tudo isso exige uma relação entre linguagem e subjetividade, que se dá num nível pragmático. Tanto para falar como para agir é necessário que haja informação, conhecimento, argumentos bem fundamentados, possibilidade de abertura para a crítica e a revisão permanente. O caráter transcendental de um juízo reside nessa idealização que


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surge no processo de fundamentação da objetividade. Esta é alcançada através de processos comunicativos, intersubjetivos. Em resumo, é num mundo permeado de signos, interpretado por signos, “semiotizado” pela linguagem e objetivado por atos de fala que pessoas (e não uma subjetividade restrita à mente, ao cogito, ao eu transcendental) se comunicam e têm em vista certos propósitos, em função dos quais agem, argumentam, valoram, produzem saber, cultura. É evidente que os discursos também produzem dissenso, ilusão, manipulação, estratégias cujo fim é o convencimento, a censura, o controle. Esses discursos produzem saber e poder, e também carregam verdade, saber, poder. Mas essa já é outra perspectiva, a de Foucault a partir de Vigiar e punir. O objeto de análise deste texto tem como pano de fundo a intersubjetividade lingüística, e não as estratégias de saber e poder.

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Racionalidade e natureza humana na visão da epistemologia evolutiva José Claudio Morelli Matos * Resumo: A epistemologia evolutiva é uma corrente que tenta explicar o conhecimento humano em conformidade com a descrição feita dele pelas ciências biológicas. Deste ponto de vista a seleção natural concorre como causa da presença, no ser humano, da atitude racional. Uma das principais críticas contra esta corrente epistemológica, proposta por Thomas Nagel, apóia-se no argumento de que um conceito de racionalidade derivado das realizações de uma teoria científica – a teoria da evolução – não pode ser utilizado para explicar a validade universal das regras segundo as quais esta racionalidade opera. Esta crítica pode, segundo a tese aqui proposta, ser suficientemente respondida, a partir de uma consideração adequada da noção de natureza humana, como composta de princípios e mecanismos que estariam na origem da capacidade racional encontrada no ser humano. Michael Ruse oferece uma estratégia de resposta do ponto de vista naturalista. O que se afirma neste trabalho é que há uma outra estratégia de resposta possível à crítica de Nagel contra a legitimidade da epistemologia evolutiva, que se apóia na analogia entre a evolução biológica e a evolução do conhecimento no ambiente da cultura. Palavras-chave: Epistemologia evolutiva, Natureza humana, Racionalidade Abstract: Evolutionary epistemology is a tendency that tries to explain human knowledge in conformity to his description made by biological sciences. From this point of view, natural selection counts as a cause of the presence of rational attitude in human beings. One of the major criticisms against this view, proposed by Thomas Nagel, bears on the argument by wich a concept of rationality, derived of the results of a scientific theory – the evolutionary theory – cannot be employed to explain the universal validity of rules by wich this very rationality operates. This criticism may, in accord to the thesis here proposed, be thoroughly responded, taking as a starting point an appropriate approach of human nature, as composed by principles and mechanisms that could be in the origin of human rational capacities. Michael Ruse offers a strategy to answer this criticism based on naturalistic approach. What this work wants to claim is: that there are another strategy in deal to Nagel’s criticism against the legitimacy of evolutionary epistemology. This strategy is based on the analogy between biological and epistemic evolution in cultural environment. Keywords: Evolutionary epistemology, Human nature, Rationality *

Professor adjunto da UDESC. E-mail: doutortodd@gmail.com. Artigo recebido em 17.08.2007 e aprovado em 20.10.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 105-123.


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1 A epistemologia evolutiva: suas principais versões Este trabalho pertence ao ambiente de discussão a que se tem dado o nome de Epistemologia Evolutiva. Embora a história da formação desta corrente leve retrospectivamente, possivelmente até a Origem das Espécies da Darwin, é possível recortar adequadamente o tema situando entre seus autores, nomes da atualidade como Karl Popper (1995, 1972), Donald Campbell (1974), David Hull, Michael Bradie e Michael Ruse. Falando mais genericamente, não tanto de temas da teoria do conhecimento, mas da importância da teoria da evolução – da seleção natural em especial – para o empreendimento filosófico, pode-se elencar ainda as obras de Daniel Dennett e de Richard Dawkins. A epistemologia evolutiva parte de uma concepção do ser humano como um ser vivo, cujas características desenvolveram-se em uma história evolutiva, determinada – totalmente ou em sua maior parte – pelo processo de seleção natural. Assim, os princípios que dão origem às capacidades do ser humano para o conhecimento podem ser compreendidos e explicados em função de seu valor de sobrevivência, e de sua origem biológica através de um processo de variação e retenção seletiva de características (Campbell, 1974).

Dir-se-ia que o nível mais elevado e aperfeiçoado de comportamento cognitivo, entre todas as espécies de seres vivos do planeta, é alcançado pela espécie humana na forma da acumulação e transformação cultural realizada pela atividade científica. Assim, entende-se que a ciência é resultado, no mínimo em parte, de um conjunto de capacidades transmitidas e desenvolvidas biologicamente. Por exemplo: a capacidade de produzir expectativas referentes a regularidades ou leis naturais, a partir da experiência. Admitindo a relevância da descrição biológica do ser humano para a epistemologia, poder-se-ia explicar a razão pela qual a racionalidade científica apresenta-se na forma atual, pelo fato de os princípios nos quais ela se baseia terem sido desenvolvidos no processo evolutivo que deu origem a todas as outras características detectáveis na natureza humana. E este processo, sabemos, é explicado pelo modelo darwiniano de variação e retenção seletiva de


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caracteres transmitidos hereditariamente. Esta posição é defendida por autores como Michael Ruse, que afirma em seu artigo “The View From Somewhere: A Critical Defense of an Evolutionary Epistemology” (1989): Nós acreditamos que 2+2=4, não porque este é um reflexo da realidade absoluta, ou porque alguns dos nossos ancestrais fizeram um pacto para acreditar nisso, mas porque aqueles proto-humanos que acreditaram em 2+2=4, antes de 2+2=5, sobreviveram e se reproduziram, e aqueles que não acreditaram, não o fizeram. Hoje, são estas mesmas técnicas e regras seletivamente produzidas que governam a produção do conhecimento (Ruse, 1989, p. 193).

Assim, esta postura declara, entre outras coisas, que o conhecimento, e mesmo a cultura humana como um todo, é um fenômeno natural cuja produção, por parte dos seres humanos, submete-se àquelas regularidades biológicas que moldaram as características de seus produtores. Chamemos a esta abordagem de modelo literal da epistemologia evolutiva. Este é o modelo adotado por Michael Ruse. Seu artigo, ao qual aqui me refiro, é uma “defesa critica” da epistemologia evolutiva, por assumir e defender a postura naturalista, em contraposição a uma postura que se pode chamar de analógica, acerca da epistemologia evolutiva. Nesta concepção, o próprio método crítico de seleção e exame das teorias científicas é um método que opera de modo análogo à seleção natural entre os seres vivos. A cultura pode ser examinada de modo relativamente independente de seus produtores animais, como se ela mesma constituísse um meio ambiente em evolução. Uma vez que os seres humanos são capazes de realizar a crítica e os testes que funcionam como condição de aceitação ou rejeição de expectativas que desenvolvem acerca do mundo, eles criaram um outro ambiente, onde indivíduos de diferentes espécies, e com variações favoráveis e desfavoráveis, competem pela perpetuação: o ambiente da cultura humana habitado pelas explicações, crenças e teorias, e do qual a racionalidade científica é um dos principais elementos. E, segundo as regras e critérios que compõem esta racionalidade, as tentativas de explicação, de


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regularização, de generalização, submeter-se-iam a uma seleção semelhante à seleção natural. Esta visão tem entre seus principais defensores, Karl Popper, que afirma o seguinte: o crescimento de nosso conhecimento é o resultado de um processo estreitamente semelhante ao que Darwin chamou de ‘seleção natural’; isto é, a seleção natural de hipóteses que mostraram sua aptidão (comparativa) para sobreviver até agora em sua luta pela existência, uma luta de competição que elimina aquelas hipóteses que são incapazes (Popper, 1972, p. 238).

Em linhas gerais, propor hipóteses equivale à reprodução com variação, a atitude crítica (ou outras pressões que interfiram na aceitação ou rejeição de afirmativas) à seleção; e a aceitação provisória das hipóteses, à perpetuação ou sobrevivência 1 . A escolha por um modelo literal ou por um modelo analógico de evolução por seleção natural para o projeto de explicar o conhecimento, é o que tem feito a diferença entre as versões disponíveis da epistemologia evolutiva. 2 A crítica contra a legitimidade da epistemologia evolutiva Embora não represente uma corrente completamente uniforme de pensamento, a epistemologia evolutiva tem representado uma pretensão teórica legítima o bastante para ser submetida a, pelo menos, uma crítica relevante. Ela consiste em que, ao tentarem apoiar a epistemologia na moderna biologia evolutiva, autores como Michael Ruse e outros, pressupõem a validade do conhecimento científico para explicá-lo. Ao fazerem isso, admitem de saída como válido justamente o que está em questão. 1

Sabe-se que Popper se compromete com uma versão literal da epistemologia evolutiva, mas é difícil decidir até que ponto, uma vez que sua insistência em um padrão objetivo e universal de racionalidade, e sua consideração do aspecto formal da epistemologia o levam a não considerar como relevantes para um estudo dos fundamentos do conhecimento objetivo, as considerações acerca das capacidades de seus portadores. Ou seja, por se concentrar numa epistemologia normativa, Popper assume uma postura controversa acerca do modelo literal, que o tempo não permite explorar aqui (ver Popper, 1972).


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Uma versão mais elaborada desta crítica alega que uma epistemologia que se apóia no valor adaptativo do conhecimento não pode adequadamente explicar a validade objetiva deste conhecimento. Como seu horizonte é um conjunto de idéias herdadas das ciências naturais, a epistemologia evolutiva não pode atingir um nível explicativo que dê conta da possibilidade da racionalidade objetiva de nossas tentativas de conhecer o mundo. Esta crítica é bem caracterizada por Thomas Nagel, em seu livro The View From Nowhere (A Visão Desde Lugar Nenhum) (Nagel, 1986), bem como em The Last Word (A Última Palavra) (Nagel, 1997). Sua argumentação parte da idéia de que deve haver um padrão de racionalidade mais universal do que uma racionalidade gerada pela evolução mediante seleção natural. Somente assim, a própria explicação da evolução em termos de seleção natural faria sentido. Ou seja, a racionalidade tem que poder contar com um alcance profundo e amplo o bastante para não ter que ser avaliada, por exemplo, por seu valor na sobrevivência de certos animais. Conforme Nagel apresenta a situação em The View From Nowhere, a perseguição do conhecimento objetivo requer uma concepção muito mais desenvolvida da mente e do mundo do que possuímos atualmente: uma concepção que explicará a possibilidade de objetividade. Isto exige que venhamos a entender as operações de nossa mente de um ponto de vista que não seja apenas o nosso próprio (Nagel, 1986, p. 78).

Tal afirmação expressa a exigência de um critério de validade para as realizações do conhecimento humano que é altamente – demasiado até – elevada. Nagel espera que a possibilidade da validade objetiva das afirmações de conhecimento se estabeleça sobre um padrão universal, independente de contingências tais como a formação biológica do ser humano, ou seus instintos e princípios naturais. Nagel anuncia a demanda por um argumento que explique por que a razão humana é capaz de desenvolver teorias objetivamente válidas, e este argumento não pode depender de nenhuma destas teorias, posto que ele é condição


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de possibilidade de qualquer teoria deste tipo. Deve haver, para Nagel, uma explicação primeira, ou fundamental, da possibilidade do conhecimento objetivo. Uma necessidade de explicação da possibilidade do comportamento racional elevada a um tal nível de exigência, também conduz Nagel a desqualificar diversas tentativas de dar conta desta tarefa. Nagel está colocando a situação em termos de que seria preciso um ponto de vista externo ao ponto de vista humano para, a partir dali, oferecer a explicação exigida. Faz isso por meio do procedimento de elevar a exigência em relação a uma explicação da objetividade, e assim criticar como falhas as tentativas realizadas de explicação. De seu ponto de vista, uma investigação epistemológica em termos de seleção natural e de valor adaptativo, é um exemplo da tendência para tomar uma teoria que foi bem sucedida em um domínio e aplicá-la a qualquer coisa que não se entende – não exatamente aplicá-la, mas vagamente imaginar tal aplicação. É também um exemplo do naturalismo perverso e redutivo de nossa cultura, onde o “valor de sobrevivência” é agora invocado para lidar com tudo, de ética a linguagem (Nagel, 1986, p. 78).

Segundo esta colocação, a tendência evolutiva em epistemologia é uma confusão entre domínios distintos de conhecimento. Uma vez que o mecanismo de seleção natural é bem sucedido em alguns assuntos, o epistemólogo, é o que Nagel sugere, sente-se motivado a aplicá-lo em suas explicações, voltando-o para assuntos alheios a seu escopo, o que resulta em uma explicação epistemológica parcial e inaceitável. Veja-se que Nagel não dirige sua crítica a uma ou outra proposta epistemológica em particular, mas à própria intenção de explicar o conhecimento fazendo uso do modelo evolucionista. O naturalismo também é alvo de sua crítica. Tomando o termo em um sentido amplo, como a consideração do homem como parte do mundo natural, pode-se ter uma visão mais clara do que Nagel espera propor. O naturalismo entende o conhecimento como um fenômeno natural e, portanto, derivado de causas naturais. Assim, na


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falta de fundamentos definitivos, universais ou absolutos para o conhecimento, o epistemólogo naturalista opera com os fundamentos que considerar plausíveis diante das condições e do tema de sua investigação. Há, para o naturalista, diferentes níveis de certeza, dir-se-ia, mas trabalhar com conhecimento conjetural ainda é trabalhar com conhecimento. Mas é isso justamente o que Nagel quer impedir o naturalista – e mais precisamente o epistemólogo evolucionista – de tentar fazer. Para ele o valor das regras do pensamento racional tem que ser universal. Portanto, nada menos pode ser esperado do que uma explicação universal, ou absoluta, da possibilidade do pensamento racional. Ele diz: “A possibilidade de mentes capazes de formar progressivamente mais concepções objetivas da realidade não é algo que a teoria da seleção natural possa tentar explicar, desde que ela não explica possibilidades em geral, mas apenas a seleção entre elas” (Nagel, 1986, p. 79). Deixando de lado todos os níveis intermediários em que um epistemólogo da seleção natural compromete-se com este mecanismo explicativo, o que se pode afirmar é que Nagel não atribui confiança alguma a esta forma de explicação do conhecimento. De seu ponto de vista, a epistemologia da seleção natural, por basear-se nas realizações da ciência natural, não se situa num patamar de onde possa fornecer um fundamento para a possibilidade do conhecimento objetivo. Neste sentido, ela nem sequer seria uma legítima explicação epistemológica, uma vez que, para Nagel, o termo “explicar” designa algo bem mais crucial. Para ele, não se trata da questão de mostrar como o fenômeno do conhecimento objetivo realmente ocorreu ou ocorre, mas de mostrar a razão pela qual ele tinha que acontecer. É isso o que Nagel espera de uma genuína explicação da objetividade do conhecimento: “Ela deve mostrar por que isso tinha que acontecer, dado o tempo relativamente curto desde o Big Bang, e não meramente que isso pode ter acontecido – como é tentado pelas propostas darwinianas” (Nagel, 1986, p. 81).


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Considero basicamente que a crítica de Nagel é digna de ser considerada seriamente por alguém interessado em uma descrição evolutiva do conhecimento humano. Parece ser possível desarmar esta crítica por meio de uma reflexão sobre a relação deste conceito de racionalidade – assim entendido – e o conceito de natureza humana, desenvolvido no cenário do pensamento moderno, e ligado em grande medida ao paradigma darwiniano. Um epistemólogo evolucionista poderia adotar a seguinte estratégia a fim de resolver o impasse: O padrão de universalidade (universalidade da validade das declarações objetivas de conhecimento) exigido por Nagel, como premissa de seu argumento crítico seria não só contra-producente do ponto de vista das propostas de explicações epistemológicas. Seria um padrão demasiado exigente, e em desacordo com as limitações de que sofre a razão humana, em sua tentativa de propor explicações e teorias. Este ponto de vista vem situar a racionalidade humana como um produto das regularidades naturais. O uso da racionalidade é o resultado de um processo natural e, portanto, a pretensão de universalidade só poderia fazer sentido, a partir deste contexto mais fundamental. Contra Nagel dir-se-ia que a racionalidade não é um acidente, não é um produto do acaso: ela é o único resultado possível das condições em que de fato se realizou o processo evolutivo da vida humana na Terra. E como não haveria um ponto de vista mais elevado ou anterior, a partir do qual estabelecer a validade das regras universais da razão – já que a própria razão desenvolve-se por causas naturais – a crítica de Nagel contra a legitimidade do projeto da epistemologia evolutiva não faria sentido. 3 Tentando responder ao criticismo de Nagel Aqui há pelo menos duas considerações que podem ser feitas acerca das reservas de Nagel quanto à epistemologia evolutiva ou de seleção natural. Estas considerações funcionam como uma resposta ao dilema de Nagel, e podem tornar mais compreensível o ponto referente aos fundamentos de uma epistemologia em termos de seleção natural.


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1. A primeira observação é a de que o próprio Nagel não está fazendo estas críticas do satisfatório ponto de vista de uma proposta alternativa, que venha a explicar a possibilidade do conhecimento objetivo. Sua crítica proclama a insuficiência da explicação em termos do mecanismo de seleção natural atuando sobre o conhecimento. Mas mesmo assim não representa uma outra posição, a não ser a desta exigência altamente elevada por um nível de explicação que, ele mesmo reconhece, não foi possível atingir até então. Segundo suas palavras: Qual, poder-se-ia perguntar, é minha alternativa? Criacionismo? A resposta é que eu não tenho uma, e não preciso de uma para rejeitar todas as propostas existentes como improváveis. Alguém pode não assumir que a verdade sobre este assunto já foi considerada – ou apegar-se a uma visão apenas porque ninguém apareceu com uma alternativa melhor (Nagel, 1986, p. 81).

É possível que o autor não admitisse, mas esta postura é facilmente identificável com uma modalidade de ceticismo radical a respeito da razão humana. Lançar críticas e contra-argumentos contra um ponto de vista, mostrando que ele não explica o que pretendia explicar, e depois refugiar-se em uma suspensão de julgamento, parece caracterizar uma atitude cética. O que se percebe é que o próprio estabelecimento do dilema cético indica a fraqueza e limitação da razão especulativa, que é tão cara a Nagel. Mas, por outro lado, os instintos e princípios naturais acabam por moldar o comportamento de modo relativamente bem sucedido, independentemente da debilidade das operações da razão. Isto significa que o impasse em que Nagel pretende terminar seu argumento, na forma de uma crítica contra a epistemologia da seleção natural, não é definitivo. Não há uma visão da racionalidade, a não ser da racionalidade humana, de realizações humanas de conhecimento. Ao invés de tentar contornar esta aparente deficiência, o naturalista desloca este ponto de vista para o cerne de seu empreendimento investigativo. Conforme se pode notar, trata-se de um recuo, mas um recuo do território além do alcance da razão


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humana, para o território do que pode adequadamente ser conhecido por ela. Aqui, Nagel perde totalmente seu ponto. Um ceticismo extremo, na visão do naturalista, é uma futilidade tão grande quanto um dogmatismo extremo. O fato de uma explicação ser conjetural, ou hipotética, ou falível, não implica a necessidade de abrir mão da explicação disponível. Ao contrário, a busca pela melhor explicação prossegue sempre, reconhecendo os limites aos quais a razão humana tem que se restringir. Tanto pior para Nagel, para quem a capacidade de objetividade nas tentativas de conhecimento permanece um mistério. Sua recusa em aceitar que a razão humana é parte da natureza humana e, portanto, submete-se a suas leis e regularidades, o impede de aceitar as explicações, ou soluções, que esta admissão acarreta como conseqüências. Finalmente, é a natureza que leva o homem a confiar na objetividade de seu conhecimento do mundo, no sentido de que é impossível viver e agir sem um comportamento na forma de crenças, mesmo provisórias. Então, esta alegação de Nagel de que, sem um fundamento absoluto, a racionalidade fica inexplicada, não acaba tendo efeitos significativos sobre o modo como os seres humanos entendem sua própria racionalidade. E isto encontra-se em pleno acordo com o fato de que, como seres vivos interagindo com o ambiente, continuamos tendo comportamentos, inclusive investigativos, mesmo que a possibilidade de racionalidade objetiva não esteja completa e absolutamente elucidada. 2. A outra observação que se pode formular acerca da última citação de Nagel, é em parte decorrente desta primeira. Trata-se do fato de que a seleção natural é, sim, um legítimo princípio explicativo. Ela explica, ao contrário do que Nagel dá a entender, a possibilidade de racionalidade objetiva. Dada a variação entre as formas de vida na natureza, e a luta ou disputa entre estas, somente as mais bem adaptadas ao ambiente acabam obtendo sucesso na disputa pela vida e pela transmissão de suas características. Assim, a racionalidade objetiva desenvolveu-se porque, dentre as inúmeras variações possíveis, aquelas que ocasionaram seu surgimento eram as que forneciam maiores vantagens a seus portadores. Em termos


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um pouco mais diretos, a racionalidade objetiva, enquanto forma de reconhecer leis e regularidades no ambiente que cerca um indivíduo, é a melhor opção disponível como mecanismo de sobrevivência. Em um ambiente onde a variação é ampla o bastante, o surgimento de tal racionalidade objetiva é uma conseqüência possível, a tal ponto que é o que, de fato, ocorreu no caso do ser humano 2 . Por outro lado, exigir uma explicação da necessidade do surgimento da capacidade cognitiva é forçar demasiado o poder de explicação, não só da seleção natural, mas de qualquer teoria do conhecimento. Nem se pode imaginar a qual tipo de causa um estudioso deveria recorrer se quisesse afirmar que a razão objetiva é absolutamente necessária. Assim como não se pode imaginar a que ponto de vista deverá recorrer para garantir a validade de argumentos racionais, se não for por meio de um argumento racional e, portanto, do mesmo estatuto que os outros. De acordo com todos os métodos do pensamento teórico, que têm dado resultados confiáveis em diversos campos de investigação, a explicação em termos de seleção natural conta como um mecanismo explicativo genuíno, e que pode com razão ser aplicado em questões do conhecimento humano. É como se a validade do pensamento racional possa estar justificada por seus efeitos no conhecimento humano, e pela reconstrução de sua origem no processo evolutivo, uma vez que não há ponto de vista anterior e mais fundamental, como o naturalismo não se incomoda em admitir. Em sua obra mais recente, mencionada acima, Nagel retorna ao tema da epistemologia da seleção natural, partindo da mesma postura crítica. Sua argumentação pretende novamente enfatizar o aspecto parcial e, portanto, ineficaz, da epistemologia da seleção natural. Assim, em A Última Palavra Nagel afirma que, 2

Existe a noção, bastante razoável, de que a racionalidade objetiva seja o resultado indireto do acúmulo de complexidade resultante de capacidades cognitivas mais simples, estas sim ligadas diretamente, por sua vez, a vantagens adaptativas. Por exemplo, a capacidade de formar expectativas a partir do reconhecimento de similaridades em contextos diversos (ver Quine, 1969). Ou a capacidade de reproduzir comportamentos por imitação ligeiramente modificada. Ela não invalida o espírito do que aqui está sendo proposto.


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uma compreensão externa da razão como meramente um fenômeno natural – um produto biológico, por exemplo – é impossível. Razão é seja o que for que consideremos necessário usar para compreender qualquer coisa, incluindo ela própria. E se tentarmos compreendê-la meramente como um fenômeno natural (biológico ou psicológico), o resultado será uma explicação incompatível com nosso uso dela e com a compreensão que temos dela ao usá-la (Nagel, 1997, p. 166-167).

Esta sua posição em relação ao território da razão implica em que a validade das regras de inferência, e da lógica de um modo geral, deve reclamar uma objetividade independente das características biológicas do sujeito que a utiliza. Finalmente, para ele, a epistemologia evolutiva comprometeria nossa confiança na racionalidade, uma vez que a submete à ação de princípios instintivos de sobrevivência. Um passo da argumentação de Nagel, ao desenvolver sua crítica, refere-se a uma característica peculiar do modelo explicativo de seleção natural. Este modelo, conforme já dissemos, é uma alternativa bastante plausível a ser oferecida contra explicações da natureza, e alguns imaginam que da mente humana, em termos de intenção ou desígnio externo. Historicamente, os críticos da Teologia Natural têm se valido com relativo sucesso das argumentações em termos de evolução e seleção natural. Por causa disso, aqueles intelectuais que tendem a rejeitar explicações em termos de intenção e desígnio particular tendem a adotá-lo. No lugar da explicação pela criação intencional, pode-se com muito mais razão considerar a explicação por seleção natural. Então, no ambiente desta polêmica, a situação leva Nagel a afirmar que esse problema de autoridade cósmica não é uma eventualidade rara e é responsável por muito do cientificismo e do reducionismo do nosso tempo. Uma das tendências que aí encontra apoio é o abuso absurdo da biologia evolucionista para explicar tudo sobre a vida, incluindo tudo sobre a mente humana (Nagel, 1997, p. 153).


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Nagel espera detectar um sentimento anti-religioso na utilização ampla que tem sido feita das realizações da biologia evolutiva. Mas será este seu único argumento? Afirmar que a atitude de recorrer à biologia evolutiva denota medo do avanço das explicações teológicas nem chega a ser um argumento. É uma acusação que, no mínimo, esconde uma falácia ad hominem. A desconfiança do leitor acerca deste ponto pode evidenciar-se da seguinte maneira: Nagel recusa-se a aceitar que a racionalidade seja resultado de um processo natural, mas alguém perguntaria se ele estaria à vontade com a idéia de que o processo natural é o resultado da racionalidade. Se for esse o caso, a racionalidade seria entendida como um princípio de ordenação do mundo, ou como a mente de um Arquiteto da Natureza: Deus? Naturalmente Nagel não se declara a favor do Desígnio, embora pareça querer criticar os adeptos da evolução como manifestantes deste moderno medo da religião. Na verdade, Nagel vai mais longe do que isso. A exigência que ele faz é a de um fundamento para justificar a existência do conhecimento, e a da mente, que ultrapasse a contingência de um processo biológico pretensamente explicado por uma teoria científica. Nagel se mostra insatisfeito com a estreiteza do mecanismo da seleção natural para explicar a possibilidade da racionalidade. Segundo ele: a existência da mente é certamente um dado para a construção de qualquer imagem do mundo; no mínimo, sua possibilidade deve ser explicada. E parece difícil acreditar que sua aparição decorresse de um acidente natural, como o fato de que há mamíferos (Nagel, 1997, p. 155).

Em outras palavras, uma teoria que explique por que o conhecimento é possível, por que as tentativas de explicar o mundo são confiáveis, deve basear-se em algo mais universal, diria Nagel, do que o processo de luta dos animais pela sobrevivência. Esta demanda de fundamentos corresponde a que a validade das relações entre proposições, que é o que chamamos de raciocínio correto, não deve ser considerada como decorrente de mecanismos meramente instintivos, resultantes da formação evolutiva do cérebro


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humano. Se não pudermos ter confiança na capacidade cognitiva do ser humano, independentemente da explicação evolutiva, a própria explicação evolutiva não poderá ser admitida com segurança. Nas palavras de Nagel, o reconhecimento de argumentos lógicos independentemente válidos é uma precondição para a aceitabilidade de um relato evolucionista sobre a fonte desse conhecimento. Isso significa que a hipótese evolucionista é aceitável apenas no caso de a razão prescindir do seu apoio (Nagel, 1997, p. 159).

Esta parte da crítica de Nagel oferece um desafio a uma teoria evolutiva do conhecimento, que pretenda fundar o conhecimento, de maneira literal, no processo de seleção natural. Afinal a racionalidade, para pretender a alguma validade, precisa de nada menos que contar com uma validade universal, sem submeter-se a qualquer condição contingencial ou subjetiva. Nagel não nega a possibilidade de que a seleção natural seja uma apreciação correta da natureza: seu ponto de vista é um pouco mais sutil. Segundo suas palavras: “Estou negando apenas que o que seja racionalidade possa ser compreendido por meio da teoria da seleção natural. O que ela é, o que ela nos diz e quais são seus limites só podem ser compreendidos de dentro dela” (Nagel, 1997, p. 160). Assim, o que Nagel tem afirmado em sua crítica parece consistir basicamente nos seguintes pontos: 1. Que uma teoria científica como a da seleção natural não tem alcance e nem a forma lógica necessária, para dar origem a uma explicação do sucesso do conhecimento humano. 2. Que não podemos subordinar a possibilidade de raciocínios válidos à formação biológica da mente humana. Parece que o primeiro ponto constituinte desta posição – a exigência de uma objetividade universal para a racionalidade – é mais relevante, mas que a segunda – que rejeita uma epistemologia da seleção natural – denuncia um pouco de ingenuidade da parte de Nagel. Porque não é o caso de que a teoria evolutiva do conhecimento pretenda estar fora da racionalidade, como parece


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estar sendo insinuado nesta última citação de Nagel. Na verdade, não seria difícil para um epistemólogo evolutivo responder que: embora os argumentos lógicos possam aspirar a uma validade assim objetiva e universal, poder-se-ia ainda assim falar da utilidade adaptativa da capacidade dos humanos de reconhecer e formular tais argumentos. Ou seja, a epistemologia evolutiva não tem que alegar que a racionalidade objetiva é causada unicamente pela evolução biológica, mas simplesmente que a seleção natural favoreceu o ser humano ao permitir que ele desenvolvesse um comportamento formatado pela racionalidade, ou que tomasse parte na racionalidade, se alguém preferir. 4 A posição naturalista frente à posição analógica Se alguém estiver pretendendo afirmar que toda a validade objetiva de argumentos é resultado da formação do aparelho cognitivo dos humanos, não parece difícil imaginar quais seriam os argumentos em favor desta tese. Esta resposta foi tentada por Ruse em seu artigo. Sua estratégia é insistir no progresso do conhecimento – em especial o conhecimento científico – como um fato constatável empiricamente, cuja possibilidade não pode ser contestada por nenhum argumento teórico. Diz ele: Eu pretendo que minhas afirmações sejam tomadas como genuinamente empíricas, e partes da ciência natural. Elas não são entendidas como meras meditações filosóficas; ainda que eu admita que, estando no primeiro plano da ciência, nosso conhecimento sobre estes assuntos nem sempre é definitivo (Ruse, 1989, p. 189).

Mas parece que isso faz justamente o serviço de submeter a validade objetiva do conhecimento ao seu valor de sobrevivência. Se Nagel e Ruse operam em campos diferentes – o primeiro referindose a condições de possibilidade, e o segundo, a processos ocorridos segundo certas regularidades, então a melhor resposta de Ruse aos argumentos de Nagel é a de não se considerar ameaçado por suas críticas. Ruse, de fato, não se sente ameaçado por Nagel e sua crítica, não está comprometido por uma racionalidade de regras


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válidas universalmente, e o despede como a alguém que peca por não compreender a ciência atual: O conhecimento que nós temos no momento é incompleto. Mesmo assim, por tudo o que sabemos, ele está na pista certa. Isto não é tudo, mas é muito mais do que nada. Tomar este tipo de atitude é a resposta completa à crítica de Nagel (Ruse, 1989, p. 198).

Esta é exatamente a atitude que ele manifesta em seu artigo, bem mais interessado em analisar diferentes aspectos da própria postura evolutiva em teoria o conhecimento. Mas, insistindo um pouco mais no ponto da racionalidade levantado por Nagel, pode-se imaginar uma resposta a sua crítica acerca da inviabilidade do projeto evolutivo para explicar a possibilidade de validade objetiva. Tomemos provisoriamente a posição analógica, aquela em que o mundo da cultura é de certo modo independente do mundo natural, por conter suas próprias regularidades, e seus habitantes particulares: as teorias, afirmações de conhecimento, estruturas lingüísticas. Pensemos que, dadas certas condições ordenadas por princípios básicos, independentes da mente de um ou outro sujeito particular, então certos movimentos ou certas estruturas são conseqüências necessárias destas condições e destes princípios. O que esta posição sugere é que a validade das afirmações de conhecimento não depende somente de seu valor adaptativo. A objetividade, embora seja um atributo do mecanismo cognitivo da espécie homo sapiens, funda-se antes disso, e de modo independente, nas próprias condições em que as afirmações estão situadas no ambiente da cultura humana. Em termos popperianos: Muito antes da crítica houve crescimento de conhecimento – de conhecimento incorporado ao código genético. A linguagem permite a criação e a mutação de mitos explicativos, e isto é ainda mais ajudado pela linguagem escrita. Mas é só a ciência que substitui a eliminação do erro, na luta violenta da vida através da crítica racional não violenta, e que nos permite substituir a morte (mundo 1) e a intimidação (mundo 2) pelos argumentos impessoais do mundo 3 (Popper, 1972, p. 88).


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Lembrando que, segundo a concepção que Popper mantém, o mundo 1 é o mundo físico, o mundo 2 o mundo psíquico e o mundo 3 o mundo da cultura, ou das afirmações objetivas de conhecimento. Assim, há a possibilidade de encarar frente a frente o desafio de Nagel à legitimidade do empreendimento da epistemologia evolutiva, defendendo que a única forma de compreender a possibilidade de racionalidade – ou melhor, de conhecimento avaliável objetivamente – é imaginar que este conhecimento está condicionado por princípios e regularidades seletivas, tais como ocorre com os seres vivos no ambiente natural. 5 Conclusão A validade objetiva é necessária para a racionalidade do conhecimento. Por um processo algorítmico (como diria Daniel Dennett) de desenvolvimento de capacidades por seleção natural, a espécie humana chegou ao estágio de poder avaliar objetivamente suas afirmações formuladas em linguagem. Não se pode dizer que o ser humano tinha que ter desenvolvido a racionalidade. Mas sim, que tinha que tê-la desenvolvido para que se pudesse observar na cultura humana o fenômeno do progresso do conhecimento válido objetivamente. E o mecanismo que levou a tal nível de complexidade é o mecanismo da seleção natural (através do qual, indivíduos podem transmitir características – com variação – a suas réplicas, e acumular complexidade ao longo do processo). Assim, o modelo analógico (seja ele o modelo popperiano ou uma variante mais atual) atua em um nível explicativo que, embora não desperte o interesse de um naturalista como Michael Ruse, pode representar uma possibilidade viável para explicar como a racionalidade objetiva torna-se – pela evolução por seleção natural – acessível como instrumento de compreensão da ordenação do ambiente para a natureza humana. Esta própria racionalidade apresentando possivelmente os mesmos mecanismos de variação cega e retenção seletiva de alegações e tentativas de conhecimento.


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Crença no mundo exterior: um diálogo entre Hume e Berkeley Andrea Cachel *

Resumo: No Tratado, Hume procura investigar as causas da crença nos objetos exteriores, admitindo ser impossível provar se os mesmos existem ou não. Sua análise consistirá na investigação da origem da inteligibilidade das noções de continuidade e distinção dos objetos sensíveis, em última instância, a crença do senso comum na continuidade e distinção das próprias percepções. Este texto pretende mostrar como essa discussão humeana é um diálogo direto com a filosofia berkeleyana, a defesa humeana da crença na matéria implicando inicialmente uma certa aceitação da filosofia de Berkeley, para, na seqüência, representar uma dissensão direta com o seu princípio fundamental: ser é ser percebido. Tais colocações têm, entre outras, a finalidade de argumentar que Berkeley exerce um papel central na filosofia humeana, nesse caso como seu interlocutor direto, e que a compreensão desse papel é parte obrigatória de um melhor esclarecimento do problema da objetividade em Hume. Palavras-chave: Ceticismo, Crença, Objeto externo, Senso comum

Abstract: In the Treatise, Hume intends to investigate the causes that induce us to believe in the existence of the body, admitting it is possible to prove if such a thing exists or not. His analysis will consist in investigating the origin of the intelligibility of the notions of continuity and distinction of sensible objects, which is, to say, the belief of the common sense in the continuity and distinction of its own perceptions. This paper aims to demonstrate that this humean discussion is a direct dialogue with Berkeley. Hume’s defense of the belief in matter initially implicating in accepting, to some degree, Berkeley’s philosophy to, further on, turn into a direct opposition to his fundamental principle: esse is percipi. Such statements have, among others, the purpose of arguing that Berkeley plays a central role in humean philosophy, in this particular case, as his direct, immediate interlocutor, and that the understanding of this role is an obligatory part in making the objectivity problem, in Hume, more clear. Keywords: Belief, Common sense, External objects, Skepticism

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Doutoranda em Filosofia na USP. E-mal: andreacachel@gmail.com. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 20.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 125-146.


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Hume, especialmente no Tratado, analisa a questão da crença no mundo exterior, estabelecendo, desde o início, uma distinção entre o problema da existência dos objetos externos e o da origem da crença nos mesmos. Segundo observa, sua análise se propõe a desvelar apenas o segundo problema, e, dessa forma, não pressupõe a prova de que objetos externos existam, mas sim do modo através do qual chegamos a conceber de forma vivaz que esses objetos existem. Mais especificamente, conforme esclarece, sua investigação é concernente à atribuição de continuidade e distinção aos objetos sensíveis, sejam os sentidos, a razão ou a imaginação a sua origem (Hume, 1978, p. 187). Trata-se de investigar, portanto, uma noção particular de objetividade, segundo a qual crer no mundo exterior é crer que há objetos que existem mesmo quando não percebidos e que são independentes da situação no sujeito e exteriores ao mesmo (Hume, 1978, p.188). São esses os limites do problema, limites esses que, de certo modo, condicionam a sua própria solução. Ademais, são eles que nos evidenciam que a questão é pertinente à busca da inteligibilidade da crença vulgar e que essa busca é um diálogo direto da filosofia humeana com o modo pelo qual Berkeley procurou refutar o ceticismo quanto aos sentidos. Esses recortes estabelecidos pela filosofia humeana – investigar a crença e não a existência dos objetos e, mais do que isso, pesquisar a atribuição de continuidade e distinção aos objetos sensíveis como aquilo que corresponde à crença no mundo exterior – já têm como pressuposto o fato de que se trata de pensar a inteligibilidade de uma noção de objeto externo. É a própria ininteligibilidade da noção de objeto externo como existência especificamente diferente das percepções que desloca o problema para a crença na continuidade e distinção. Essa tese é melhor desenvolvida por Hume na sua discussão sobre as idéias de existência e existência externa (Hume, 1978, p. 66-68) e basicamente provém da postulação de uma indissociabilidade entre idéia de existência e idéia de objeto existente, em compromisso com a sua teoria das idéias: “a idéia de existência é exatamente a mesma que a idéia daquilo que concebemos como existente ... e a idéia de


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existência, quando conjugada com a idéia de um objeto, não acrescenta nada a esta” (Hume, 1978, p. 66-67) 1 . É dessa postulação que decorre a opinião segundo a qual todos os objetos da mente seriam concebidos como existentes: “Não há impressão ou idéia de qualquer espécie, de que tenhamos alguma consciência ou memória, que não seja concebida como existente.” (Hume, 1978, p. 94). Em conseqüência, dela derivaria a impossibilidade de se explicar a crença pela atribuição da idéia de existência à idéia de um objeto concebido e, ademais, pela inserção de uma idéia de existência externa, caso essa idéia também quisesse significar uma existência especificamente diferente das percepções. Hume mostra que a idéia de existência externa não pode ser diferente da idéia de objeto externo e, nesse sentido, estabelece a sua ininteligibilidade. Afirmar a inteligibilidade dessa existência exigiria que fosse possível concebê-la. O princípio da cópia, entretanto, mostraria o contrário. Segundo ele, idéias seriam cópias de impressões, as quais seriam, por sua vez, percepções da mente. Em outras palavras, o universo da imaginação seria inteiramente composto por percepções da mente: “Odiar, amar, pensar, sentir, ver – tudo isso não é senão perceber” (Hume, 1978, p. 67). Toda idéia, portanto, seria sempre percepção, o que tornaria a concepção de existências, a elas diferentes em natureza, impossível. Em contrapartida, esse sentido determinado de existência externa tornarse-ia ininteligível. Contudo, ainda está em jogo pensar a inteligibilidade de uma tal atribuição. Principalmente na seção acerca do ceticismo quanto aos sentidos, no Tratado, o que Hume justamente precisará fazer é explicar as causas da crença nos objetos externos, sem postular, para tanto, que a idéia de um objeto externo, entendido como algo especificamente diferente das percepções, seja concebível, algo que ele já havia recusado. Contudo, por outro lado, não se trata 1

Nas palavras de Cescato (2002, p. 175): “Hume está afirmando em seu vocabulário da teoria das idéias que a existência não é um predicado atribuível quer analítica quer sinteticamente ao sujeito do juízo”. Dessa mesma opinião é Pears (1990, p.34). Para uma opinião diferente ver Wilson (1991).


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simplesmente de justificar a crença na existência dos objetos enquanto objetos percebidos, portanto, enquanto percepções, mas sim a crença na existência externa ou no objeto externo, cuja noção necessitará ser precisada. Concebemos nossos objetos como existentes e a crença nos objetos concebidos deve-se sempre à maior força e vivacidade dessa concepção, força essa decorrente das impressões originadoras da idéia. A externalidade desses objetos envolve mais que a sua concepção enquanto percepções e Hume procura a noção que representa esse “algo mais”, a qual avivada receba assentimento e constitua a nossa crença nos objetos externos. Como não seria possível ter idéia de existências especificamente diferentes das percepções, as noções escolhidas são a de continuidade e distinção, as quais tão somente significariam a atribuição de “relações, conexões e durações diferentes aos objetos da percepção” (Hume, 1978, p. 68). Assim, implicitamente a exigência é a apresentação de uma noção concebível de existência ou objeto externo. Essa é a noção em questão na discussão sobre a crença nos corpos. É por isso que a discussão sobre o ceticismo quanto aos sentidos consistirá na investigação de como as noções de continuidade e distinção dos objetos se constituem como objetos do nosso pensamento, para, na seqüência, examinar como cremos nessas noções, ou seja, como esses objetos do nosso pensamento se tornam vivazes. Para Hume, três seriam as possibilidades – sentidos, razão e imaginação – voltando-se a análise para as mesmas. Na realidade, o problema dirá respeito à continuidade e independência, tendo em vista que a externalidade não será considerada tão importante na discussão 2 . Hume procurará discutir a idéia de 2

Hume afirma: “Enquanto isso podemos observar que, quando falamos de existências reais e distintas, temos mais em vista a sua independência que a sua situação espacial externa; pensamos que um objeto tem realidade suficiente quando seu Ser é ininterrupto e independente das incessantes transformações de que temos consciência em nós mesmos” (Hume, 1978, p. 191). A partir dessa observação, no Tratado, Hume passa a discutir apenas independência e continuidade, portanto, independência torna-se equivalente à distinção. Isso parece indicar que o problema inicial acerca da matéria é uma questão acerca da objetividade e não da existência de objetos espacialmente localizados ou


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continuidade e distinção separadamente e, conforme esclarece, entende ser fundamental essa separação para a melhor compreensão do problema (Hume, 1978, p. 188). Porém, como também deixa claro, considera haver uma correlação entre continuidade e distinção, ou seja, uma implicação entre a existência contínua de um objeto e a sua existência distinta e vice-versa: “Pois, se os objetos dos nossos sentidos continuam a existir, quando não são percebidos, é evidente que sua existência é independente e distinta da percepção; e vice-versa, se sua existência for independente e distinta da percepção, precisam continuar a existir, mesmo quando não percebidos” (Hume, 1978, p. 188). É isso que permitirá que apenas a origem da idéia de existência contínua seja explicada, mas que essa explicação abranja também a crença na existência independente. Hume buscará, então, mais especificamente, o fundamento da crença na continuidade dos objetos, seja ele os sentidos, a razão ou a imaginação. Mais do que isso, o reconhecimento de que não se pode inferir existências diferentes das perceptíveis conduz a filosofia humeana à explicitação de que só se pode falar em objetos quando não se cria uma distinção entre eles e as percepções, portanto, quando, ao contrário do que afirmaria o sistema filosófico qualificado como “sistema da dupla existência” (Hume, 1978, p. 211), compreende-se que aquilo diretamente presente à mente na percepção são objetos e não aparências. Assim, na análise humeana, a crença nos objetos externos passará a ser a crença na existência externa de algumas de nossas percepções (as constantes ou coerentes) e uma discussão sobre a origem dessa crença será representada pela análise da forma pela qual se torna possível a atribuição de continuidade a alguns conteúdos sensíveis. Crer nos objetos externos significará, para Hume, crer na existência contínua de nossas próprias percepções constantes e coerentes, partindo-se da organizados. Dessa mesma opinião são, por exemplo, Price (1940, p. 19) e Pears (1990, p. 196). Um objeto externo ou espacialmente localizado deve ser também independente. Ou seja, constatando-se a impossibilidade de justificar racionalmente a noção de independência, a questão da externalidade nem se coloca.


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pressuposição de que elas são a única existência – ou seja, não são representações – pressuposição essa que, embora não justificada por Hume, é por ele apresentada como a base do que ele chama de “sistema vulgar” (Hume, 1978, p. 209). Como é célebre, a filosofia humeana sustentará que é a imaginação que cria essa crença ou “ficção”, a qual será responsável pela noção de existência independente. Toda a análise da origem da crença no mundo exterior será a discussão sobre o que permite que se atribua continuidade e distinção a impressões constantes e coerentes, cuja resposta será a intermediação de determinados princípios da imaginação, como, por exemplo, a tendência de prolongar certas disposições. Nesse sentido, a busca pela inteligibilidade da noção de existência externa, na filosofia humeana, terá como princípio uma circunscrição a um sistema de existência simples. Hume reconhece o que Berkeley já havia admitido, a saber, que supondo uma diferença entre objetos e percepções não é possível conhecer o “mundo exterior” ou, na questão discutida pelo primeiro, explicar de que se origina a crença nos corpos. Hume, como Berkeley, entende que só concebemos percepções e que não temos acesso a existências diferentes delas, ainda que por meio de uma inferência, via relação de causação e representação. A existência simples, portanto, é também para Hume a forma encontrada para a oposição ao ceticismo em relação aos sentidos, ainda que nele o problema esteja vinculado à determinação da inconcebilidade de uma dupla existência e não de sua impossibilidade. Desse modo, a filosofia humeana reconhece a pertinência da crítica berkeleyana à dupla existência e evidencia que a existência simples é um pressuposto necessário da crença no mundo exterior. Mas é fundamental entender, em contrapartida, que a sua discussão sobre a crença nos objetos e o modo como pretende justificá-la não é, em Hume, uma simples repetição, (inserida apenas em contexto um pouco diverso), da filosofia berkeleyana 3 . Ao 3

Essa é a opinião de Bennett (1971, p. 350-351), o qual considera que o sistema vulgar representa a filosofia berkeleyana e que, portanto, a crítica que Hume faz ao sistema da dupla existência é uma forma de sustentar que a filosofia


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contrário, a defesa humeana da consistência da crença vulgar, exige de Hume a subversão do princípio central de Berkeley: o princípio segundo o qual ser é ser percebido. Nesse sentido, a tentativa de explicar a crença universal na matéria é antes uma oposição direta da filosofia humeana à filosofia berkeleyana. E, em especial, que essa oposição se revele na análise da crença no mundo exterior é o que nos permite compreender de que forma a diferença no ponto de partida de cada filósofo implica em uma distinção frontal nos estatutos de suas filosofias. Ao pretender defender a consistência da crença vulgar, a filosofia humeana se colocará no terreno berkeleyano – o da pressuposição de existência simples – mas irá retirar desse terreno conseqüências opostas às implicadas pela filosofia de Berkeley, o que decorre de uma inversão da perspectiva filosófica, a de adequar a filosofia ao vulgo (o que não significa meramente uma confirmação da verdade das crenças comuns, cabe ressaltar) e não o contrário. Conforme afirmamos, a oposição humeana a Berkeley, na questão do ceticismo quanto aos sentidos, realiza-se no terreno preparado por esse autor. Berkeley é bastante claro em relação às intenções centrais, tanto dos Princípios como dos Diálogos. Ainda que boa parte desses textos represente críticas também a outras correntes filosóficas, desde o início a refutação do ceticismo é apresentada como um de seus objetivos principais. Mais especificamente, as discussões realizadas nos Princípios e nos Diálogos têm como opositor mais direto o ceticismo em relação aos sentidos, já que é para negar que seja possível duvidar da existência dos objetos sensíveis ou da evidência dos sentidos (Berkeley, 1998a, p. 89) que Berkeley afirma propor seu idealismo.

berkeleyana é mais coerente que a de Locke. Nesse sentido, afirma: “A questão 'Porque Hume identifica a crença na forma vulgar com a posição de Berkeley?' admite a mesma resposta: porque ele acredita que apenas percepções estão presentes à mente. Combine isso com a visão característica do vulgo de que objetos são percebidos e você chega à conclusão de que objetos são percepções. Esta é a conclusão de Berkeley”.


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Para a filosofia berkeleyana, o idealismo seria a forma adequada de assegurar a existência dos objetos sensíveis e distinguir as sensações das ilusões, ao contrário do que afirmaria a tradição cética. Isso porque Berkeley atribui à suposição da dupla existência a causa direta do ceticismo: Em primeiro lugar, em relação às idéias ou coisas não pensantes, nosso conhecimento destas tem sido muito obscuro e confuso, e temos sido conduzidos a erros muito perigosos ao supor a dupla existência dos objetos dos sentidos, uma inteligível ou na mente, e outra real e fora dela, pela qual se considera que as coisas não pensantes têm uma subsistência natural própria, distinta do fato de serem percebidas pelos espíritos. Suposição essa que, se não estou enganado, mostramos ser a mais infundada e absurda, é a verdadeira raiz do ceticismo. Porque, à medida que os homens pensam que as coisas reais subsistem fora da mente, e que seu conhecimento é real só se estiver de acordo com as coisas reais, segue-se que nunca poderão estar certos de possuir conhecimento real. Pois como poderia saber que as coisas percebidas são semelhantes àquelas que não o são ou que existem fora da mente? (Berkeley, 1998a, p.133-4).

A origem da dúvida sobre os conteúdos sensíveis seria a pressuposição de uma diferença entre coisas e idéias e, conseqüentemente, de que objetos são existências distintas e contínuas. Portanto, não seria a obscuridade das coisas, nem a limitação do conhecimento humano, os fundamentos do ceticismo, mas sim a pressuposição de haver uma dupla existência, uma mental, outra real (Berkeley, 1998a, p. 89). Essa pressuposição faria a verdade acerca dos objetos sensíveis ser compreendida como a correspondência entre idéias e objetos externos. A dúvida apareceria como conseqüência inevitável da tentativa frustrada de se procurar estabelecer a correspondência entre objetos externos e idéias e, nesse sentido, o ceticismo em relação aos objetos sensíveis seria produto da impossibilidade de se determinar se o objeto sensível é, de fato, verdadeiro ou ilusão. Não é por outro motivo que a sustentação de que há uma única existência, a das idéias, é apontada como método eficaz para evitar a dúvida quanto à evidência dos sentidos ou a negação da


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realidade dos objetos sensíveis. O idealismo berkeleyano procura demonstrar que apenas idéias e espíritos existem (Berkeley, 1998a, p. 105), portanto que, em relação aos conteúdos sensíveis, não há diferença entre objetos inteligíveis e objetos reais. Se é a dupla existência a introdutora da possibilidade de questionamento acerca da verdade ou falsidade da sensação – por exigir que um conteúdo sensível seja verdadeiro apenas se correspondente a uma existência dele diferente e, a princípio, ininteligível – o idealismo seria o modo de negar tal possibilidade. Mostrando que apenas o objeto sensível inteligível e não distinto da mente existe, Berkeley entende não ser coerente aventar a hipótese de que os objetos percebidos sejam ilusões, portanto, como desprovido de fundamento o ceticismo quanto aos sentidos. Assim, o modo pelo qual Berkeley pretende se contrapor ao ceticismo, um dos objetivos principais dos Diálogos e dos Princípios, é argumentar não existir objetos distintos das idéias e, em contrapartida, asseverar que os objetos reais têm natureza dependente da mente. Isso será realizado sobretudo a partir de uma análise da natureza das idéias, a qual permitirá afirmar a inexistência da matéria e, portanto, em relação aos objetos sensíveis, que só há uma única existência 4 . Segundo Berkeley, ademais, essa estratégia 4

Nesse sentido, ver Fogelin (1996, p. 334). Nos Princípios não fica muito demarcada a diferença entre os argumentos que provam a contradição de um sentido de matéria e aqueles que provam apenas a sua inconcebilidade. Já nos Diálogos, Berkeley enfrenta claramente as objeções resultantes da sua sustentação, em alguns casos, da impossibilidade da matéria apenas pela inconcebilidade. Uma das objeções de Hylas a Philonous, que representa a filosofia berkeleyana, é justamente a de que os argumentos contra as noções de ocasião e causa, por exemplo, não provariam que a matéria não existe, mas tão somente que não se tem idéia dela. Imediatamente antes da passagem que acabamos de comentar, Hylas argumenta que esses sentidos de matéria não são impossíveis, mas apenas inconcebíveis. É essa objeção que Berkeley refuta afirmando que mostrar que não há idéias é também uma forma de provar uma impossibilidade, como vimos. Berkeley reconhece que provou a contradição apenas da idéia de substrato de qualidades primárias e não de sentidos como causa e ocasião. Sua estratégia é “inverter o ônus da prova”, pois Philonous (Berkeley, 1998b, p. 109) argumenta que seu único dever era mostrar a contradição da noção


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contra o ceticismo seria plenamente compatível com a compreensão vulgar acerca dos objetos. Ou seja, para ele, sua estratégia idealista não significaria uma nova forma de ceticismo. Não se retiraria a realidade dos objetos, apenas se falaria em realidade num novo sentido. A maior vividez, constância e regularidade das idéias dos sentidos as tornam reais, ao contrário das idéias que não possuem tais características: “As idéias impressas nos sentidos pelo Autor da Natureza são chamadas coisas reais, enquanto aquelas suscitadas pela imaginação, sendo menos regulares, vívidas e constantes, são mais propriamente chamadas de idéias, ou de imagens de coisas, as quais elas copiam e representam” (Berkeley, 1998a, p. 114). Os objetos sensíveis seriam reais e não quimeras, embora por realidade já não se compreenda a sua existência externa ou independente. Tal compreensão de realidade, além disso, como deixam claro os Diálogos, seria plenamente compatível com a opinião vulgar. De acordo com Berkeley, embora se afirme que os homens acreditam na matéria, isso na verdade não ocorre, porquanto não se poderia crer em uma contradição (Berkeley, 1998a, p.121-2). No modo como expõe a crença vulgar nos Diálogos, ao contrário, a realidade atribuída pelo vulgo aos objetos sensíveis teria, justamente, o mesmo sentido de realidade a eles conferidos pelo seu idealismo: Philonous: Agrada-me apelar para o senso-comum para estabelecer a verdade da minha noção. Pergunte por exemplo ao jardineiro por que ele pensa que a cerejeira existe neste jardim: e ele lhe dirá que acredita porque a vê e a apalpa; numa palavra: porque ele a percebe pelos seus sentidos. Pergunte-lhe por que crê que não existe por aqui uma laranjeira: e dir-lhe-á que assim crê porque não a percebe. Àquilo que percebe pelos sentidos dá o nome de real, e diz que é, ou que existe; mas do que não é perceptível diz que não tem existência.” (Berkeley, 1998b, p. 117)

Para o vulgo, aliás, na visão a ele atribuída por Berkeley, o que aparece aos sentidos são as coisas reais, de forma que a

já estabelecida de matéria e que quanto às outras noções de matéria caberia aos seus proponentes antes provar que elas são concebíveis, para que só depois se pudesse mostrar a sua contradição.


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afirmação de que o ser real é o percebido (pois é o único ser) seria a confirmação da opinião vulgar. Por outro lado, a sustentação de que esse ser real existe somente quando percebido seria uma espécie de depuração dessa opinião, por intermédio da sua compatibilização com aquela que Berkeley julga ser a opinião filosófica: Philonous: Não pretendo ser formulador de noções novas. Meu esforço é só o de unificar e colocar à clara luz aquela verdade que antes era compartilhada entre vulgo e filósofos: aquele opinando que as coisas que imediatamente percebe são as coisas reais e este que as coisas imediatamente percebidas são idéias que existem apenas na mente. Essas duas noções juntas são o núcleo daquilo que eu defendo “ (Berkeley, 1998b, p.142)

Enquanto os filósofos reconheceriam que o conteúdo imediato da sensação é idéia, o vulgo consideraria que percebe as próprias coisas reais. Quando se traduz a opinião vulgar com base na linguagem filosófica – e para Berkeley vulgo e filósofos compartilhariam uma mesma verdade – poder-se-ia afirmar que, para o vulgo, os objetos reais são dependentes da mente. O idealismo berkeleyano apenas tornaria mais explícita a compatibilidade entre vulgo e filósofos, sintetizando ambas as opiniões. Por um lado, mostraria que o que aparece à mente na sensação são as próprias coisas, à medida que não há outra existência a ser chamada de real em contraposição a uma chamada de aparência, e, por outro lado, evidenciaria que os objetos têm existência apenas na mente. Isso porque, partindo da opinião atribuída à filosofia, Berkeley conclui que qualquer idéia relativa da matéria ou representa uma contradição ou é, no fundo, destituída de sentido, não sendo propriamente uma idéia. Sendo a idéia de matéria ininteligível (seja essa idéia ininteligível porque é contraditória ou apenas por ser inconcebível), seguir-se-ia que tudo o que existe ou é substância imaterial ou é idéia. Com exceção dos espíritos, os quais em nada contribuiriam para o ceticismo quanto aos sentidos, não existiriam coisas diferentes das idéias, subsistentes à mente e impercebidas, portanto, como nem o cético negaria haver um


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conhecimento integral do sujeito em relação a suas idéias, não se teria razão para duvidar. Dessa forma, o idealismo seria, para Berkeley, o método eficaz de “combate” ao ceticismo, tendo em vista que este se apoiaria na pressuposição de uma dupla existência. O que Hume mostrará é que a “solução” berkeleyana é inadequada por resultar em uma refutação do ceticismo que subverte, ao mesmo tempo, a crença do senso comum. Em contrapartida, para não a subverter, Hume terá que se opor ao princípio segundo o qual ser é ser percebido. Nesse sentido, é ao próprio idealismo como estratégia contra o ceticismo que a filosofia humeana se contraporá, mostrando como a defesa da crença no mundo exterior implica, antes, a sua prova de insuficiência. Todo o esforço de Hume é justificar como a opinião vulgar de que as percepções (ou os objetos) são contínuas se torna possível, o que o remete a princípios da imaginação. Seria a imaginação que originaria a suposição da existência contínua de impressões coerentes e constantes. Entretanto, o problema em Hume fica restrito ao domínio da inteligibilidade e não representa a afirmação de que a existência contínua das percepções é verdadeira. A suposição da continuidade das percepções é, para a filosofia humeana, assim como para o sistema filosófico, uma falsidade. Contudo, como falsidade e possibilidade não são incompatíveis (pelo menos quando falamos de duas faculdades, razão e imaginação, com atuação alternativa), ainda que se constate a falsidade da idéia de que percepções são contínuas e distintas, a possibilidade da crença não é abalada, embora se deva admitir, a partir dessa constatação, que ela é uma ficção da imaginação. No entanto, se a falsidade da opinião vulgar não restringe a sua possibilidade, para defender a inteligibilidade é preciso que Hume encontre um modo dessa idéia não ser contraditória e é aí que parece ser possível estabelecermos um diálogo direto entre ele e Berkeley. Era precisamente o princípio segundo o qual ser é ser percebido que permitia a Berkeley sustentar, em primeiro lugar, que a noção de existência contínua de objetos sensíveis, ou de coleções de idéias, é contraditória:


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É de fato uma opinião estranhamente predominante entre os homens que casas, montanhas, rios e, numa palavra, todos os objetos sensíveis, têm uma existência natural ou real distinta de seu ser percebidos pelo entendimento. Não obstante, por maior confiança e aquiescência que este princípio possa ter recebido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo, poderá perceber, se não me engano, que ele envolve uma contradição manifesta. Pois o que são os objeto acima mencionados senão coisas que percebemos pelos sentidos? E o que percebemos além de nossas próprias idéias ou sensações? E não é claramente contraditório que algumas destas ou alguma combinação destas possa existir impercebida? (Berkeley, 1998a, p. 66-7) 5

A afirmação de que ser é ser percebido, tendo em vista que determinava a contradição da atribuição de continuidade às idéias, tinha como efeito, em segundo lugar, a consideração de que a crença na continuidade dos objetos sensíveis, ou seja, na noção vulgar de objeto, é impossível (Berkeley, 1998a, p. 90-1). Para Berkeley, se o vulgo afirma que crê na existência contínua e distinta dos objetos, é apenas porque não compreende o sentido da proposição, ou, em outras palavras, ele não crê efetivamente no que significa a existência contínua e distinta dos objetos sensíveis: a existência contínua e distinta das idéias. Tanto é assim que, nos Diálogos, a crença vulgar na realidade dos objetos é apresentada de forma análoga à compreensão berkeleyana sobre o sentido de realidade aplicado aos objetos sensíveis, ou seja, como existências dependentes, porém distintas das idéias da imaginação. Para Hume, a consistência da crença também envolve a consistência da suposição de continuidade das impressões coerentes ou constantes, o que lhe exigiu encontrar um modo de explicar como percepções podem existir impercebidas, ainda que seja falso que elas 5

É bastante interessante observar que Berkeley usa aqui casas, montanhas e rios, e que Hume, ao falar da constância de algumas percepções utiliza-se de casas, montanhas e árvores, como exemplos (Hume, 1978, p. 194). Mais do que isso, também é bastante pertinente considerar que a constância e coerência são qualidades que Berkeley atribui às idéias que passam ser identificadas como reais, em contraposição às idéias da imaginação.


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existam dessa forma. Trata-se de sustentar que essa é uma questão de fato e não demonstrativa, de forma que a falsidade pode, assim como o lado verdadeiro da questão, ser concebida. Hume reconhece que apenas percepções são concebíveis e que a noção da existência contínua e distinta dos objetos é a noção da continuidade e distinção das próprias impressões sensíveis. Mas ao assumir que a noção de objeto é a da continuidade e distinção, ele precisa negar a tese berkeleyana de que o que o vulgo chama de objeto é, na realidade, uma idéia contraditória e, conseqüentemente, que a crença nessa noção é impossível. Hume, como Berkeley, entende que para o vulgo o que é imediatamente percebido é o objeto original. Porém, assim como reconhece Berkeley, Hume considera que o que é imediatamente percebido são percepções (ou seja, seu ponto de vista é o filosófico e não o vulgar) e, nesse sentido, compreende que a discussão acerca da consistência da crença vulgar é pertinente à possibilidade de percepções, e não objetos, existirem impercebidas. É por isso que a sustentação de que não há contradição na suposição da existência contínua dos objetos parece exigir que Hume refute a posição de Berkeley, segundo o qual o ser de uma idéia ou percepção é ser percebido. Hume, de fato, parece reconhecer que, se o ser de uma percepção for ser percebida, torna-se contraditório supor a sua existência contínua. No início da sua discussão sobre a consistência do sistema vulgar, ele afirma: “como a aparência de uma percepção na mente e sua existência parecem a primeira vista ser a mesma coisa, pode-se duvidar que algum dia sejamos capazes de concordar com uma contradição tão palpável e supor que uma percepção exista sem estar presente à mente” (Hume, 1978, p. 206). Reconhecendo que, se a aparência de uma percepção na mente e sua existência forem a mesma coisa, a afirmação de existência contínua das percepções é contraditória, portanto, não pode ser pensada e, conseqüentemente, não pode ser objeto de crença, Hume desenvolve uma estratégia que consiste em argumentar que ambas são diferentes. Berkeley mostrara que se elas não são diferentes – e ele considerava que não eram – a afirmação de que os objetos existem


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mesmo quando não percebidos depende da teoria das idéias abstratas (Berkeley, 1998a, p. 67). Como Hume acompanha Berkeley na crítica à abstração, a defesa da consistência da suposição da existência contínua das percepções depende de que se evidencie que a existência de uma percepção e sua aparição na mente são diferentes, portanto que a separação entre ambas (que na discussão em pauta é realizada pela imaginação) não é uma abstração, pelo menos no sentido em que a abstração é rejeitada por esses autores. Além disso, a defesa da consistência do sistema vulgar exige que a filosofia humeana justifique como a existência contínua dos objetos não implica na sua criação e aniquilação constantes – considerando-se que, embora o vulgo identifique percepções e objetos, o ponto de vista humeano é o ponto de vista filosófico, para o qual apenas percepções estão presentes à mente. Nesse sentido, ele admite que seria preciso responder a duas questões: “Primeira, como podemos admitir que uma percepção pode estar ausente da mente sem ser aniquilada. Segunda, de que maneira nós concebemos que um objeto se torna presente à mente sem uma nova criação de uma percepção ou imagem; e o que entendemos por ver, sentir e perceber “ (Hume, 1978, p. 207). Berkeley já havia respondido a essa possível objeção, no entanto sua resposta envolvia justamente o princípio contestado por Hume: Em quarto lugar, objetar-se-á que dos princípios precedentes se segue que as coisas são aniquiladas e criadas a cada momento. Os objetos dos sentidos existem somente quando são percebidos; as árvores, portanto, estão no jardim, ou as cadeiras na sala, só enquanto existe alguém para percebe-las. Ao fechar meus olhos toda a mobília da sala é reduzida a nada e, ao abri-los, ela é criada de novo. Em resposta disso remeto o leitor ao que foi dito na Seção 3, 4, e etc. e desejaria que considerasse se expressa algo ao falar da existência real de uma idéia, distinta do fato de ser percebida” (Berkeley, 1998a, p. 85-6)

Berkeley responde à objeção afirmando que não há sentido em falar em criação e aniquilação se ser é ser percebido ou, mais adiante (Berkeley, 1998a, p. 87-8), que sempre há uma mente


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percebendo o objeto, dando uma resposta assentada no princípio que Hume precisa refutar. Como o objeto de contestação da filosofia humeana foi a necessidade da existência dependente das percepções, ela precisa encontrar um modo de responder à objeção enfrentada por Berkeley, sem recorrer a tese empregada por esse autor. Assim, para defender a possibilidade da crença nos corpos é preciso justificar como os objetos não seriam criados e aniquilados a todo instante, mesmo existindo quando não percebidos. Para tanto, Hume utiliza-se da sua teoria da identidade pessoal, à qual certamente se fazer várias críticas 6 , mas que devemos reconhecer como o recurso empregado para mostrar como podemos assentir à suposição da existência contínua, embora se determine a posteriori que esse lado é o falso, ou seja, o que não é objeto da relação de causa e efeito, mas sim da imaginação. Como vimos, com base na opinião de que a mente é um feixe de percepções e não uma substância, Hume conclui que percepções-objetos podem estar presentes ou ausentes da mente, sem que isso signifique alteração na sua existência. Para ele, a mente seria um feixe de percepções, unidas por uma relação. Essas percepções seriam distintas, portanto separáveis umas das outras (Hume, 1978, p. 207). Por isso, uma delas poderia ser separada da mente (que é o conjunto dessas percepções distintas), sem que isso significasse a sua aniquilação. Da mesma forma, uma percepção poderia se tornar presente à mente, ou seja, entrar em conexão com o feixe, sem que isso implicasse a criação de novas idéias. Ser 6

Podemos citar como exemplo as críticas de Penelhum (1966) e Stroud (1995, p. 123-140). Em linhas gerais, Penelhum afirma que Hume parece ter misturado a noção vulgar e filosófica de identidade e, no fundo, tentado justificar uma opinião que não é totalmente compatível com a opinião vulgar, mas com base em parte da opinião vulgar. Uma das críticas de Stroud é em relação ao fato de Hume explicar a unidade ou individualidade conferida ao feixe de percepções por meio de tendências da mente, ou seja, por meio de operações daquilo que está em questão na análise, o que significaria, para esse comentador, a existência de uma circularidade, circularidade essa que também apareceria na dependência que a identidade pessoal tem da relação de causa e efeito que, por sua vez, é dependente da unidade da mente.


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percebido representaria adquirir uma relação com esse feixe de percepções, portanto, poder-se-ia conceber que um objeto se torna presente à mente sem a criação de uma nova percepção. Nas palavras do autor: “Objetos externos são vistos, sentidos e tornam-se presentes à mente, isto é, adquirem tal relação com um feixe conectado de percepções que as influenciam consideravelmente, aumentando o seu número com reflexões e paixões e abastecendo a memória de idéias” (Hume, 1998, p. 207). Para Hume, isso indicaria que um objeto pode, após ter sua percepção interrompida, voltar a ser percebido sem a criação de uma idéia nova ou diferente daquela que se tinha anteriormente desse objeto. Poder-se-ia supor, a partir disso, que um objeto da mente (ou percepção) existe mesmo quando não percebido e, em decorrência, crer nessa suposição. Tal suposição, dessa forma, é concebível, tendo em vista que não representa uma contradição. Assim, apresentando uma nova definição de mente, a qual caracteriza a sua unidade como ficção, e dando um novo sentido ao que significaria “ser percebido”, a filosofia humeana parece ter procurado garantir que a existência de uma percepção e sua aparição na mente (o seu ser conhecido) possam ser concebidas como coisas distintas e que, por isso, seja possível separá-las mentalmente. De certa forma, por meio dessa hipótese, Hume parece ter enfrentado o seguinte desafio de Berkeley: ... estou disposto a apostar tudo nisso: se o leitor puder meramente conceber que é possível que uma substância extensa e móvel, ou, em geral, que qualquer idéia ou qualquer coisa semelhante a uma idéia, exista de outra forma que não em uma mente que a perceba, abandonarei imediatamente a causa. E quanto àquela coleção de corpos exteriores que o leitor defende, admitirei que ela existe, ainda que não possa dar-me nenhuma razão por que acredita que ela existe, ou mostrar que ela tem algum uso ao supô-la existente. Ou seja, a simples possibilidade de que sua opinião seja verdadeira será considerada como um argumento de que efetivamente é assim (Berkeley, 1998a, p. 75)

Mais do que avaliar a resposta humeana propriamente dita, que expusemos em linhas gerais, cabe-nos aqui perceber que a


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defesa da inteligibilidade da crença na distinção e continuidade dos objetos é a negação do que Berkeley inferira em relação a ela. Isso porque, de certo modo, a questão em Hume parte da filosofia berkeleyana. O problema humeano é o problema da crença nos objetos e a estratégia de refutação do ceticismo em relação aos sentidos, seja ela adequada ou não, é explicar as causas dessa crença. A crença nos corpos, em Hume, só pôde ser explicada com base na suposição vulgar de que há uma única existência, ou de que, como a própria filosofia berkeleyana admitira, as coisas que imediatamente percebe são as coisas reais. Portanto, mesmo sem envolver a negação de uma dupla existência, mas sim a argumentação de que a pressuposição de uma diferença entre objetos e percepções torna impossível inferir a existência dos primeiros por meio da razão, a discussão sobre a crença nos objetos, na filosofia humeana, num certo sentido colocou-se num terreno preparado por Berkeley. Entretanto, se a pressuposição de existência simples foi condição indispensável para a explicação humeana, a defesa da consistência da suposição vulgar de que as percepções são existências originais, ou, de que percebemos diretamente as “coisas reais” (os próprios objetos), parece ter invertido a identidade proposta por Berkeley entre objetos e percepções. Para garantir a inteligibilidade da crença nos corpos, Hume, justamente por fundála na pressuposição de que há uma única existência, precisou romper com o princípio segundo o qual, nas idéias, o seu ser é igual ao seu ser percebido, que é, como vimos, a base da demonstração berkeleyana acerca da contradição da idéia de matéria ou de substância material. Em outras palavras, a defesa da consistência da crença vulgar, tenha sido ela especificamente direcionada a Berkeley ou não, significou uma oposição à espinha dorsal do idealismo berkeleyano, à medida que representou a “transformação”, embora apenas no nível da inteligibilidade (que, diga-se de passagem, é também o nível em que Berkeley discute várias noções de matéria), de percepções em existências distintas e contínuas 7 . Isso porque, 7

Dessa forma, embora Bennett (ver nota 3) esteja correto ao considerar que Hume entende que o sistema da dupla existência é pior que a pressuposição de uma


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assim como os filósofos, Hume admite que o imediatamente percebido é percepção ou idéia, mas também reconhece que a crença nos corpos é um dado universal e irrenunciável. Por isso, traduz a crença nos corpos, que é a crença vulgar na continuidade e distinção dos objetos imediatamente presentes à mente na sensação, pela possibilidade da suposição de existência contínua e distinta das percepções. É preciso perceber, para finalizarmos, que essa constatação de uma oposição entre Hume e Berkeley em relação à possibilidade de se supor a existência contínua das percepções pode, num contexto mais geral, fazer-nos compreender o próprio ponto de partida da discussão realizada no Tratado, o que nos parece um ganho muito importante. A investigação acerca da causa da crença nos corpos inicia-se pelo estabelecimento de um corte no problema, corte esse que condiciona toda a resposta da filosofia humeana. Tendo em vista a ininteligibilidade de existências especificamente diferentes das percepções, tratar-se-á de buscar a origem da atribuição de continuidade e distinção dos objetos. Hume parece considerar que só há duas opções: ou existência especificamente diferente ou continuidade e distinção dos objetos. O fato de que se existências especificamente diferentes das percepções são ininteligíveis, só resta a noção da continuidade e distinção dos objetos como noção inteligível de existência externa, entretanto, não parece ser de modo algum evidente. Hume não oferece pistas para nos fazer compreender porque só haveria essas duas alternativas. Mas, que a crença vulgar seja única existência, parece estar equivocado ao considerar que o sistema vulgar representa a filosofia berkeleyana. Bennett afirma que a forma vulgar é a posição de Berkeley porque o resultado da união entre a opinião humeana da presença exclusiva de percepções à mente com a opinião vulgar de que objetos são diretamente percebidos é a afirmação de que objetos são impressões, ou seja, a posição berkeleyana. O que parece mais correto, entretanto, é que, pelo menos do ponto de vista da inteligibilidade, em Hume, a união da opinião de que apenas percepções estão presentes à mente, com a opinião vulgar de que objetos são diretamente percebidos, resulta na afirmação de que percepções são objetos (existências contínuas e independentes), visão oposta à de Berkeley.


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apresentada por Berkeley do mesmo modo que ela aparece na filosofia humeana parece ser um fato que não deve ser desprezado. Se pensarmos que em Berkeley, no fundo, a única inteligibilidade possível para a idéia de objeto externo acaba sendo a da existência distinta dos objetos ou qualidades sensíveis (hipótese, para ele, contraditória), tendo em vista que noções como ocasião de idéias, causa de idéias, etc., são por ele rejeitadas por serem consideradas ininteligíveis, podemos cogitar que a origem da discussão em Hume esteja bastante vinculada à estratégia empregada pelo idealismo berkeleyano para se contrapor ao problema do ceticismo em relação aos sentidos 8 . Também em Berkeley o que se exige é a inteligibilidade da noção de objeto externo e, de algum modo, essa inteligibilidade passa pelas idéias, que ele identifica com as qualidades sensíveis. É a contradição que ele aponta em supor que essas qualidades (ou um conjunto dessas) existem quando não percebidas que determina a contradição de um sentido específico de matéria (o de substância, suporte de qualidades primárias), que ele confessa, nos Diálogos, ser o sentido que seu idealismo precisa refutar. Isso mostra a amplitude da resposta humeana em relação ao idealismo berkeleyano. Bem ou mal, ao mostrar que a imaginação pode justificar a noção de existência contínua das percepções, Hume atinge o núcleo central do idealismo berkeleyano. Porém, é fundamental, sobretudo, entender que evidenciar que a discussão humeana parece estar vinculada ao contexto de debate da filosofia de Berkeley com o problema da crença no mundo exterior nos permite, especialmente, iniciar um debate acerca do próprio estatuto da filosofia de Hume. A discussão entre Hume e Berkeley quanto à crença no mundo exterior revela que entre ambos há diferenças essenciais no que se entende por sistema vulgar e na relação entre esse e o sistema filosófico. Se para Berkeley seu idealismo não representaria uma contraposição ao vulgo, mas sim a depuração da realidade conferida pelo senso comum aos objetos 8

A despeito de opiniões como a de Popkin (1980, p. 289-295), segundo o qual, embora seja necessário afirmar que Hume leu Berkeley, ter-se-ia que concluir que tal leitura não exerceu grande influência na obra humeana.


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sensíveis, para Hume a afirmação de que o imediatamente percebido na sensação é uma existência dependente da mente é incompatível com a opinião vulgar sobre os sentidos. Se Berkeley sustentou que seu idealismo representava a união entre sistema vulgar e filosófico, Hume procurou evidenciar, primeiramente, que tal união é uma impossibilidade, mostrando que as opiniões filosófica e vulgar não são tão intercambiáveis e que a tradução filosófica para as crenças do vulgo não se faz sem problemas. Isso significa que Hume mostra que fazer uma filosofia que não subverta as crenças do senso comum exige do filósofo uma base inteiramente nova, não o afaste da filosofia e, ao mesmo tempo, sendo ainda um filósofo, não o torne incompatível com a vida comum. Novos conceitos de mente e razão, por exemplo, passam a ser exigências que a vida faz à filosofia, quando os conceitos antigos não conseguem senão entrar em contradição com as crenças do homem comum. E, possa ser uma tal filosofia ainda caracterizada como “cética” é um assunto cuja análise deixamos para outro momento 9 .

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Este texto é parte da dissertação defendida em 2005, no programa de pósgraduação em filosofia da UFPR.


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A excelência moral e as origens da ética grega David de Souza *

Resumo: Este artigo trata das origens da ética grega a partir dos sete sábios e dos filósofos pré-socráticos, destacando os elementos que formarão a ética do período clássico (séc. V, IV, a.C.) e do período greco-romano. Palavras-chaves: Ética; Filosofia antiga; História. Résumé: Cet article-ci porte sur les origines de l’éthique grecque à partir des sept sages et des philosophes avant Socrate, en en détachant les éléments qui formeront l’éthique de la période classique (5ème et 4ème siècle a.C.) et de la période grécoromaine. Mots-clé: Éthique, Philosophie politique, Histoire Voltarei ao início. Demôcritos

1 Dados históricos Ao se analisar no surgimento da pólis grega, percebe-se uma transmutação de valores – queda dos valores aristocráticos e ascensão de valores religiosos e políticos – semelhantes àquela descrita na genealogia da moral de Nietzsche. De fato, a queda do império micênico deixou em desarmonia forças sociais que se chocam e se desequilibram. “De um lado as comunidades aldeãs, de outro uma aristocracia guerreira cujas famílias mais eminentes detêm igualmente, como privilégio de genos, certos monopólios religiosos” 1 . Nascerá a partir desse confronto uma busca de consenso em torno da ordem social, que fará surgir “uma reflexão moral e especulações políticas que vão definir uma primeira forma de ‘sabedoria’ humana” 2 . Esta primeira sabedoria, que aparece no início do século VI, é reflexo e espelho *

Mestre em Ética e Filosofia Política pela PUCRS e doutorando em Literatura, UFSC. E-mail: chelyfer@zipmail.com.br. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 08.11.2007. 1 J-P. Vernant, As origens do pensamento grego, p. 34. 2 Ibid..

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 147-174.


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dos sophoi – sábios – aos quais está ligado o nome de Tales, Sôlon, Pitágoras, etc.. Esta sophia não objetiva o conhecimento da natureza, da physis, mas “o mundo dos homens: que elementos o compõem, que forças o dividem contra si mesmo, como harmonizálas, unificá-las, para que de seus conflitos surja a ordem humana da cidade” 3 . O surgimento da pólis data do século VIII/VII a.C., e já pelos fins do século VII e início do VI entra em uma crise dependente de vários fatores. Fatores estes, e crise esta, que irá derribar os velhos valores homéricos da aristocracia de então. Esses valores, nesta época educada pelos poemas homéricos, ensinavam que a areté 4 (excelência, virtude) é um privilégio de poucos, quer ligada ao sangue familiar ou às qualidades particulares do espírito. De certo modo “nasce-se” com areté, ou não. Em cada herói homérico vivia “uma poderosa individualidade, cujo valor fundamental é a honra e a glória que necessariamente deve acompanhá-la” 5 . “Honra e glória”: coisa que o homem comum não possui, pois a “a areté é o atributo próprio da nobreza” 6 . Em Homero, em geral, areté designa “a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela” 7 . Riqueza, força e sabedoria estavam assim, aliadas naquele que possuía areté. Esta concepção da areté homérica permanecia ainda na idade arcaica, ou lírica (séc. VII); mas aí já tem seus dias contados. O ideal de vida aristocrático, seus privilégios e sua própria areté, é diluído e perdido pelas transformações econômicas e sociais que se 3

Ibid.. Uso os termos ‘virtude’ e ‘excelência’ como traduções do termo grego ‘areté’. Mesmo sabendo da preferência pelo termo ‘excelência’ por parte dos tradutores atuais (M. Gama Kury, por exemplo). Penso que o termo ‘virtude’ está tão enraizado em nossa cultura, como significado de excelência moral, que não vejo motivos para deixar de usá-lo. 5 G. N. M. Barros, Sôlon de Atenas, p. 26. 6 W. Jaeger, Paidéia, p. 26. 7 Ibid., p. 27. 4


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operam no seio da sociedade grega. O próprio Homero é atacado (no século VI) por Xenofanes de Colofon 8 e por Herácleitos de Éfeso 9 . Pode-se apontar alguns fatores que interferiram diretamente nesta tresvaloração dos valores, para usar o termo de Nietzsche, e que acabaram por alterar o sentido da areté: O surgimento da moeda, que provoca o empobrecimento do homem do campo; a popularização da escrita, que ao registrar as leis, dá à dike, justiça, uma proximidade maior com o mundo dos homens; também o avanço técnico das armas de guerra provoca grandes mudanças nos valores guerreiros, que são os mesmos do aristocrata; o florescimento de seitas religiosas que, buscando uma salvação pessoal, corrobora também na alteração do sentido da areté; e finalmente, como um coroamento e ao mesmo tempo sustentação, o generalizado sentimento de aversão contra a hybris, o excesso, da aristocracia e dos novos ricos, que fará da sophrosyne, moderação, a essência da areté. No campo de batalha, no domínio econômico, na ágora, e até mesmo na expressão dos sentimentos, a moderação fará a excelência. Com a retomada das relações comerciais dos gregos com o oriente, restabelecidas desde o século VIII, onde são exportados e trocados os produtos da agricultura helênica, aumentam o ouro e a prata, e, conseqüentemente, a riqueza das cidades. Cunha-se moedas – fim do século VII e início do século VI – e a pólis entra em crise, ao concentrar a nova riqueza, as moedas, nas mãos de poucos, provocando a miséria dos agricultores. Também a própria riqueza e luxo do oriente inspiram os gostos e costumes da aristocracia grega, que doravante passa a ostentar seu poder econômico, que unido ao seu valor guerreiro e às qualificações religiosas, chega ao excesso, à desmedida, à hybris. Então “Personagens novos aparecem no próprio seio da nobreza: o homem bem-nascido, o kalós kagathós, que, por espírito de lucro ou por necessidade, entrega-se ao tráfico 8

Cf. Fr. 11 DK e D. Laêrtios, Opus cit., IX, 18: “Xenofontes ... escreveu elegias e iambos contra Hesíodos e Homero”. 9 Fr. 42 DK: “Homero merecia ser expulso dos certames e açoitado”; trad. Os Pensadores, p.83.


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marítimo” 10 . A propriedade territorial concentra-se nas mãos de poucos, e as “relações sociais aparecem marcadas pela violência, pela astúcia, pela arbitrariedade e pela injustiça” 11 . Xenofanes de Colofon, sábio e rapsodo errante do século VI, nos apresenta a seguinte imagem dos nobres de sua cidade: “iam à ágora vestindo túnicas purpúreas, /em geral em número não inferior a mil, /soberbos, orgulhosos de seus cabelos bem tratados, /respingando perfume de ungüentos artificiais” 12 . Além disso, a partir de meados do século VII as mudanças ocorridas nas técnicas de combate, nas armas de guerra, vão se refletir diretamente nos valores morais da sociedade grega. O hoplita, soldado com armadura pesada, vem tirar o privilégio dos hippeis, elite militar cavaleira, à qual se associava “o brilho do nascimento, a riqueza de bens de raiz e a participação de direito na vida pública” 13 . Agora, todos aqueles pequenos proprietários pertencentes ao povo que podiam adquirir seu equipamento de hoplita, se elevavam em honra à mesma altura dos cavaleiros. A areté desses cavaleiros lembra ainda o herói homérico; o que conta para o cavaleiro é “a façanha individual, a proeza feita em combate singular” 14 , onde executando ações brilhantes movido pela lyssa, furor belicoso, e, protegido pelos deuses, assegura a sua areté. O hoplita, por sua vez, faz parte de uma falange, de um grupo que deve se manter unido e executar ações conjuntas. “A falange faz do hoplita, como a cidade faz do cidadão, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros, e cuja aristeia, o valor individual, não deve jamais se manifestar senão no quadro imposto pela manobra de conjunto” 15 . Assim a areté guerreira deixa de ser thymós (ardor), passa a ser sophrosyne; é preciso controle sobre si mesmo para não se deixar levar pelos impulsos e perturbar a ordenação da falange. A vitória da batalha também depende disso. O 10

J-P. Vernant, opus cit., p. 58. Ibid., p. 59. 12 Fr. 2 DK, (Ateneu, XII, 526A), trad. Os Pensadores, p.63. 13 J-P. Vernant, opus cit., p. 39. 14 Ibid., p. 50. 15 Ibid., p. 51. 11


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guerreiro não pode deixar que seu desejo de conflitar com o inimigo, supere a união que deve coexistir na falange. Paralelo a isso, há, com o crescimento da pólis, uma espécie de “democratização” da religião. “Todos os antigos sacra, sinais de investidura, símbolos religiosos, brasões, xôana de madeira, zelosamente conservados como talismãs de poderio no recesso dos palácios ou no fundo das casas de sacerdote, vão emigrar para o templo, morada aberta, morada pública” 16 . No entanto, a religião não permaneceu apenas no domínio público. Ao lado dos cultos públicos da cidade desenvolveram-se seitas e confrarias fechadas, permeadas de segredos, mas que oferecem a todos a oportunidade de penetração nos seus mistérios, através de iniciações, de ritos e provas. “A todos os que desejam conhecer a iniciação o mistério oferece, sem restrição de nascimento nem de classe, a promessa de uma imortalidade bem-aventurada, que era na origem privilégio exclusivamente real” 17 . Essas seitas, entre as quais se encontrava a dos pitagóricos, vão contribuir em dois pontos importantes da cultura grega: o do direito e o da moral. Epimenides, por exemplo, que fora chamado a Atenas para purificá-la, onde travou amizade com Sôlon, “introduziu o culto de Apolo, até então um culto aristocrático, na religião nacional de Atenas” 18 . E, segundo Plutarco, ainda purificando-a com seus ritos, como que abriu caminho para a legislação de Sôlon: “porque com os ritos sagrados fez mais econômicos os atenienses e mais moderados em suas lamentações”; e a cidade como um todo fez “mais obediente ao justo e mais disposta à concórdia” 19 . No campo jurídico a legislação sobre o homicídio faz do criminoso um inimigo social, e o assassínio “deixa de ser uma questão privada” 20 , como havia sido até então. Na economia e na 16

Ibid., p. 45. Ibid., p. 47. 18 F.M. Cornford, Principium sapientiae, p. 122. 19 Vidas paralelas, Sôlon XII. 20 J-P. Vernant, opus cit., p. 59. 17


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política busca-se o ideal de moderação, sophrosyne, para se alcançar um equilíbrio social, a eunomia. E acaba-se por condenar como excesso, descomedimento, como hybris, do mesmo modo como se condenava o furor do guerreiro na busca de uma glória puramente particular: “a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais, as manifestações excessivas da dor em caso de luto, um comportamento muito ostensivo das mulheres, ou o comportamento demasiado seguro, demasiado audacioso da juventude nobre” 21 . É nesse contexto histórico do mundo helênico que a areté aristocrática – do homem bem-nascido, nobre, guerreiro, que a possui como qualidade natural e que a manifesta no combate e na opulência de sua vida – será doravante condenada como desmedida, como perniciosa; e uma nova imagem da areté nasce, e sob a contribuição da religião. Pois de fato, no interior dos grupos religiosos, “não somente a areté se despojou de seu aspecto guerreiro tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que representasse como comportamento e forma de sensibilidade, o ideal de habrosyne: a virtude é o fruto de uma longa e penosa áskesis, de uma disciplina dura e severa, a meleté; emprega uma epiméleia, um controle vigilante sobre si, uma atenção sem descanso para escapar às tentações do prazer, à hedoné, ao atrativo da moleza e da sensualidade, a malachia e a tryphé, para preferir uma vida inteira votada ao ponos, ao esforço penoso” 22 . Ou nos termos de Nietzsche: moral de escravos contraposta à moral da aristocracia, moral de senhores. No entanto, afastando-se de Nietzsche e de sua “tresvaloração dos valores”, importa aqui fazer notar que a areté não se tornou domínio exclusivo dos sacerdotes. Não apenas migrou da aristocracia para a religião, mas desceu da nobreza para se espalhar também por entre os cidadãos da pólis. Uma resposta do fabulista Esopo ao poeta elegíaco Quílon, mostra-nos numa bela metáfora tal queda: Quílon perguntou certa vez a Esopo “o que Zeus estava 21 22

Ibid., p. 52. Ibid., p. 62.


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fazendo e recebeu a seguinte resposta: Está humilhando os altivos e exaltando os humildes.” 23 . O que está desaparecendo aí é o par de opostos que os gregos denominavam Eris-Philia, o poder de conflito e o poder de união, que assinalava “como que os dois pólos da vida social no mundo aristocrático que sucede às antigas realezas” 24 . Na guerra, na religião e no domínio “pré-jurídico” das relações entre famílias, manifestava-se um espírito de combate, agón, de concorrência e rivalidade: “um combate codificado e sujeito a regras, em que se defrontam grupos, uma prova de força entre gene comparável à que põe em combate os atletas no curso dos jogos. E a política toma por sua vez forma de agón: uma disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a ágora, praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado” 25 . Na ágora, símbolo e sentido da pólis, o privilégio é todo do discurso, do lógos. A palavra toma a forma de um novo poder, poder de persuasão, de peithós, e a própria noção de poder passa a ter um novo conteúdo. Não são mais apenas riquezas e armas que compõem o poder, o saber persuadir pela palavra será também um poder, um novo tipo de poder. A arte política torna-se então essencialmente exercício da linguagem. “E o lógos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, através de sua função política” 26 . Em pouco tempo, desta concepção do lógos, uma idéia de igualdade parece irromper lentamente: breve surge a retórica e a sofística, e, juntamente, a concepção de que qualquer um pode domar a linguagem, possuir o poder de persuadir 27 .

23

D. Laêrtios, opus cit., I, 69. Interessante notar: algo semelhante encontra-se em Lucas, c. 1, v. 52, da Bíblia cristã. 24 J-P. Vernant, opus cit., p. 38. 25 Ibid., p. 39. 26 Ibid., p. 42. 27 Tal concepção é ironizada, no século V, por Aristófanes em sua comédia As Nuvens, onde o personagem Estrepsíades procura Sócrates para aprender a fazer o argumento fraco vencer o argumento forte, crendo assim poder se livrar dos credores.


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E a escrita, enquanto cristalização de um lógos, de um discurso, pôde contribuir para isso. Era também uma característica da pólis a de atribuir alta publicidade às manifestações do espírito humano. A escrita faz parte desta publicidade. Tanto o segredo religioso do sacerdote, como a verdade do sábio que a ouvia dos lábios da Musa, “é revelação do essencial, descoberta de uma realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens, mas entregue à escrita, ela é destacada do círculo fechado das seitas para ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira” 28 . O que significa o reconhecimento de que pode ser acessível para todos, e algo justo, como sugere Tales numa carta a Ferecides: “Tomei conhecimento de tua pretensão de ser o primeiro iônio a expor a teologia aos helenos. Talvez seja um critério justo pôr uma obra ao alcance do público, em vez de confiá-la sem qualquer benefício a uma pessoa isolada” 29 . Também o ato de Herácleitos, mais tarde, de depositar sua obra no templo de Ártemis, tem ainda lá seu sentido de publicidade. Sobre este contexto cultural bastante caótico se sobressai a fama de algumas personalidades que se denominou sophoi, sábios. O seu número e identidade são bastante discutíveis; não obstante a famosa lista dos sete sábios, que é, aliás, variável 30 . Fato importante a se notar é que, apesar da diferença que podemos apontar entre eles – um guru purificador como Epimenides, um astrônomo como Tales, um advogado como Bias, etc. –, o papel político e social que se lhes atribuiu, os aproximam bastante, tanto quanto as máximas morais que lhes são atribuídas.

28

J-P. Vernant, opus cit., p. 44. D. Laêrtios, opus cit., I, 43. Apolônio Díscolo em Sobre os pronomes (65,15) faz referência a uma obra de Ferecides com o título Teologia; isto contribui, mesmo que pouco, para a veracidade da carta de Tales: “Ferecides na Teologia e ainda Demôcritos no Sobre a Astronomia e nas obras supérstites usam a forma contrata e não contrata do genitivo do pronome pessoal da primeira pessoa do singular”. Fr. 13DK (Demôcritos), Os Pensadores, p.317. 30 Quatro nomes constam com mais freqüência: Tales, Bias. Pítacos e Sôlon. A estes se acrescenta: Períandros, Cleôbulos e Quílon, formando, assim, sete. 29


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Não haveria, por certo, exagero em se afirmar que o pensamento moral já estava presente neles; bem antes de Sócrates, portanto. Não apenas o dito oracular gnothi sautón, conhece-te a ti mesmo, atribuído a Tales, e a sophrosyne, moderação, que encontramos em Sôlon, perpassa as máximas dos velhos sábios 31 , como até mesmo aquilo que parece próprio dos sofistas, o senso de momento oportuno, o kairós, já encontramos em Quílon, Pítacos e Cleôbulos. São elementos que farão parte do pensamento ético posterior, do século V a.C. ao século II d.C.. Esta condenação do excesso, da hybris, na filosofia moral grega, é na verdade algo que já está no interior do próprio pensamento helênico desde os sete sábios. Assim, o que constituía a areté a partir de Tales e Sôlon, e o que a constitui nos dias de Sócrates, não é muito diferente: um caráter moderado, justo e com um senso do momento certo para se agir. A questão que parece ser recente no período clássico é a de se decidir a origem da areté, se esta é natural ou adquirida, bem como o que seja a areté. Mas o que faz identificar um homem excelente ou não, é algo que parece não se ter modificado muito. 2 O ente ou o eu? Costuma-se afirmar que a filosofia, ou ao menos uma protofilosofia, surgiu com Tales de Míletos, e quase sempre se procura reduzir isso numa única sentença: “tudo é água”. E a partir desta sentença, que se interpreta comumente como de significado ontológico, se traça uma história da filosofia “pré-socrática”, que na maior parte dos historiadores da filosofia termina no atomismo de Demôcritos de Abdera, contemporâneo de Platão. Ora, como esses historiadores são nitidamente influenciados pelo modo em que Platão e Aristóteles tomaram o pensamento desses “pré-socráticos”, privilegiando aquilo que neles lhes interessa, a saber, tudo o que 31

“Estes sábios, reunindo-se, ofereceram conjuntamente a Apolo as premícias de sua sabedoria e fizeram gravar no templo de Delfos essas máximas que estão em todas as bocas: conhece-te a ti mesmo e nada em demasia”. (Platão, Protágoras, 343a-b) M. Spinelli, Filósofos pré-socráticos, p. 16.


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haviam escrito sobre questões referentes ao ser e à physis 32 , também esses historiadores privilegiam em suas histórias da filosofia “présocrática” normalmente apenas o seu caráter ontológico, ou “fisiológico” 33 . E raros são os que se explicam sobre aquilo que de linguagem, política e moral, etc., deixaram de lado ao dar privilégio apenas ao ontológico 34 . Ora, se para a metafísica esses primeiros pensadores colocaram pressupostos aos quais se pode ainda hoje recorrer, também a eles devemos “algumas das noções fundamentais que vieram sedimentar o pensamento ético-político dos sofistas e de Sócrates” 35 , como o diz N. F. Oliveira; e que hoje, entre os historiadores da filosofia “pré-socrática”, me parece, não é muito considerado 36 . Vale aqui ainda acrescentar uma percepção de J-P. Vernant que contraria a visão da maior parte dos historiadores dos ‘pré-socráticos’: “é no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se” 37 . Se fôssemos escrever uma história da filosofia “présocrática” procurando levar em conta não as questões ontológicas, 32

O termo ‘Physis’ é tomado aqui em seu sentido de “natureza das coisas”, ou seja, ligada a princípio, essência, enfim, a questões ontológicas. 33 Nietzsche, por exemplo, é um dos poucos, talvez o primeiro, a interpretar a sentença (fr. 1 DK) de Anaxímandros como de teor moral. Cf. Pré-socráticos, Os Pensadores, (C – crítica moderna) p. 17. 34 Kirk, Raven e Schofield, constituem-se numa dessas raras exceções, cf. prefácio à primeira edição de Os filósofos pré-socráticos: “limitamos a nossa esfera de ação aos principais ‘físicos’ pré-socráticos e seus precursores, cuja preocupação fundamental incidia sobre a natureza (physis) e a coerência das coisas como um todo”. 35 N. F. Oliveira, Tractatus ethico-politicus, p. 19. 36 Cito como exemplo algumas obras publicadas no Brasil nos últimos anos que privilegiam nos “pré-socráticos” questões ontológicas, e que excluem, por exemplo, o nome de Sôlon de Atenas: Pré-socráticos, col. Os Pensadores; Os présocráticos, Gérard Legrand; Os pré-socráticos, Jean Brun; Filósofos présocráticos, Miguel Spinelli; Filósofos pré-socráticos, Jonathan Barnes. Este último difere dos anteriores por ser mais amplo na seleção dos fragmentos, mas ainda assim exclui Sôlon, apesar de incluir Alcmeão, e traz na introdução a visão comum de que “a preocupação fundamental deles [dos ‘pré-socráticos’] era a física”, e mais, “todos são igualmente dignos do título honorífico de physicos”, p. 15. 37 Opus cit., p. 103.


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mas àquelas referentes ao homem em relação aos outros homens, a convivência social, ao conhecimento de si, das relações comportamentais, etc., acabaríamos por modificar bastante nossa visão acerca desses primeiros pensadores. Mas é claro que aí tudo depende do interesse do historiador; ou, como o formula D. Schüler: “o que é mais importante, a descoberta do ser, escondido atrás do ente, ou a descoberta do eu? A avaliação muda conforme as preferências” 38 . Visitando os pensadores a partir de Tales de Míletos, procurarei aqui explicitar alguns elementos morais que lhes são comuns; elementos estes que iremos encontrar no pensamento ético do período clássico: em Sócrates mesmo. E que a partir daí, tomando raízes mais profundas, irão se estabelecer naquelas filosofias, que por vezes se denomina “filosofias de vida”, do helenismo (séc. III a.C.) ao período greco-romano (séc. II d.C.). 3 O oráculo e o eu Assim, se do ponto de vista ontológico toma-se Tales como o primeiro filósofo, a partir da implicação da sentença “tudo é água”, de uma perspectiva moral pode-se partir de outras sentenças. Como por exemplo, do provérbio do oráculo de Delfos gnothi sautón, “conhece-te a ti mesmo”, que segundo Diógenes Laêrtios era um provérbio atribuído a Tales. Tal provérbio, provenha de onde provir, é interessante por não se encontrar somente em Tales, mas em outros sábios, e em Sócrates. Tal idéia de conhecer-se a si mesmo carrega consigo dois pontos importantes no que tange a moralidade. Primeiramente nos chama a atenção para certa individualidade, tal conhecimento se dá em si mesmo e, em segundo lugar, está aí considerada a possibilidade de se auto-conhecer, o que implica em ascese, que será algo fundamental na ética do período clássico e greco-romano. A referência à idéia de individualidade em Tales, parece-me, justifica-se por vários motivos: pela própria fórmula gnothi sautón, onde já se evidencia um singular, o ‘ti mesmo’; pelo fato desta 38

D. Schüler, Heráclito e seu (dis)curso, p. 170.


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máxima ser comum aos outros sábios da época, ter sido gravada no oráculo de Delfos; por ser contemporânea da individualidade na poesia, pois no mesmo século VI a individualidade já se expressava nos poemas de Safo de Lesbos, assim como pouco antes em Arquíloco (séc. VII). No entanto, não se trata de individualidade no mesmo sentido em que se usa esta palavra com referência à modernidade. Pois “para os Gregos, como observa Jaeger, o eu está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário” 39 . É em Arquíloco, “filho da mesma atitude espiritual que deu nascimento à filosofia e a ciência” 40 , que se marca “na literatura grega a primeira grande explosão da individualidade” 41 , na expressão forte de Gilda Barros. Mas também Francisco Adrados é da mesma opinião; em sua tradução para o espanhol dos fragmentos de Arquíloco, diz que Arquíloco “é um exemplo do ardente e exagerado individualismo da época” 42 . No entanto, o mais comum é considerar Safo de Lesbos como a expressão mais completa deste individualismo ‘primitivo’, se me é permitido assim se expressar. Pois é Safo quem insere na poesia lírica seus próprios, e personalíssimos, sentimentos com uma maior intensidade. Até então a poesia era marcada pela presença dos deuses, dos guerreiros, dos heróis e de todo um conjunto de referências exteriores ao poeta. Diferentemente da poesia épica, a lírica “põe em primeiro plano o ‘agora’, o ‘aqui’, o ‘eu’’’ 43 , diz Francisco Adrados. A lírica de Safo expõe seu íntimo, seus gostos, seu coração, enfim, seu eu. É com ela, portanto, que o fenômeno da individualidade “é levado à expressão mais alta” 44 , na afirmação de Gilda Barros. Como de tantos outros, a poesia de Safo nos chegou em fragmentos, mas ainda assim suficientes para perceber sua 39

Opus cit., p. 151. G.N.M. Barros, Sôlon de Atenas, p. 32. 41 Ibid., p. 36. 42 Liricos griegos, p. 16. 43 Ibid., p. 15. 44 Opus cit., p. 36. 40


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individualidade, e beleza. Para não ser extenso neste ponto, cito apenas um exemplo de sua lírica, que deixa transparecer isso que nela se aponta como sendo um traço marcante de individualidade. Trata-se da ode à Anactória: “Um esquadrão de cavaleiros, dizem alguns, é a mais bela coisa sobre a terra negra; São soldados, dirão outros, ou uma frota: para mim é o que se ama. Muito fácil torná-lo de todos entendido, pois Helena, que aos imortais ultrapassava em formosura, abandonou o mais nobre dos maridos e, num navio, para Tróia lá se foi... Da filha, dos parentes tão queridos, de tudo esqueceu; desviou-a para longe num instante O Amor. ... ... cegamente e, agora, faz-me lembrar de Anactória que está ausente! Quisera eu ver o encanto de seus passos, a vívida expressão do seu semblante, e não carros da Lídia, ou soldados combatentes em suas armaduras!” 45

Aqui é Safo falando de Safo, de seus sentimentos; expondo, de modo até mesmo revolucionário, a idéia de que o belo é o que se ama, não aquilo que o coletivo (masculinizado) supunha, não “carros da Lídia, ou soldados combatentes”. A lírica de Safo, diferentemente da de Arquíloco, nas palavras de Jaeger, “chega muito mais longe e converte-se em pura expressão do sentimento”, “exprime a própria intimidade da vida individual” 46 . Se a poesia lírica fez esta abertura para um individual até então não existente na cultura grega, onde encontramos, além de 45

Fr. 16 L-P; trad. Gilda Maria Reale Starzynski; citado por Gilda Barros, opus cit., p. 37/8. 46 Paidéia, (Livro primeiro: A autoformação do indivíduo na poesia jônico-eólica) p. 167.


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Arquíloco e Safo, Mimnermo e Alceu, por outro lado a popularização das seitas e a crítica aos deuses homéricos trazem a religião para um espaço mais “democrático”; e aqui me parece importante enfatizar mais um fato a este respeito. É o fragmento 11 DK de Xenófanes de Colofon: “tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, /tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, /roubo, adultério e fraude mútua”. Isto numa sociedade que “desde o início” aprendeu “seguindo Homero...” (fr. 10 DK), me parece ser algo bem importante de se notar. Pois atacar Homero e Hesíodo (no século VI) não significa apenas desprezar dois poetas, mas também dois educadores, e uma areté. Mas coisa compreensível, talvez, partindo de alguém que foi expulso de sua cidade, e que parecia ter gosto em criticar seus antecessores e contemporâneos 47 . Mas há também Herácleitos. Este também criticou Homero dizendo que ele “merecia ser expulso dos certames e açoitado” (fr. 42 DK). Ora, negar a tipologia dos deuses, criticar os poetas que representavam os valores aristocráticos, e voltar-se para a expressão de sentimentos individuais, é parte da efervescência cultural do século VI e está em acordo com o espírito dos “filósofos da natureza pré-socráticos”. E no meio disso encontramos então o princípio délfico: “conhece-te a ti mesmo”. Foucault observa que este “não era um princípio abstrato referido a vida, mas um conselho prático, uma regra a ser observada para consultar o oráculo”; e nesse sentido, segundo alguns comentadores significava: “não suponhas que és um deus”; ou segundo outros: “estejas seguro do que realmente perguntas quando vens consultar o oráculo” 48 . No entanto, pelo fato de ser uma máxima constantemente referida em toda a história antiga ao conhecimento de si, é de se dar crédito que se refira, já no século VI a.C., a esse sentido. Primeiro porque o tom em que Diógenes Laêrtios descreve a relação desse princípio com a pessoa de Tales, não parece ser a de um simples provérbio que se refira ao oráculo: “é dele [Tales] o provérbio 47 48

Cf. D. Laêrtios, opus cit., IX, 18. M. Foucault, Tecnologias del yo, p. 50/1.


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‘conhece-te a ti mesmo’, que Antístenes, em sua obra Sucessões dos filósofos, atribui a Femonoe, embora admitindo que o mesmo fora plagiado por Quílon” 49 . Segundo, se acaso se referisse apenas às consultas do oráculo, Platão incorreria em erro ao dizer que os sete sábios, “reunindo-se, ofereceram conjuntamente a Apolo as premícias de sua sabedoria e fizeram gravar no templo de Delfos essas máximas que estão em todas as bocas: conhece-te a ti mesmo e nada em demasia” 50 ; pois aí se percebe que a máxima fazia parte da sabedoria dos sábios. Terceiro, é atribuído a Herácleitos, que é do final do século VI, a sentença: “a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo (gignóskein heautous) e pensar sensatamente” (fr. 116 DK); e ele próprio ‘procurou-se a si mesmo’ 51 . E por último, esta máxima não teria se tornado popular se já não houvesse um “espírito de época”, no qual uma idéia de subjetividade ‘primitiva’ já se apresentava para absorvê-la. E há de se lembrar ainda que Sôlon distinguiu entre kakós e agathós, os cidadãos de Atenas, em função do valor moral (aretés) de cada um, e não mais por sua condição social. Mas enfim, o que se queria dizer com “conhece-te a ti mesmo” no século VI a.C.? Com certeza não era o mesmo que com isso se dizia no cristianismo ou na modernidade. Mas não vejo motivos para não supor que já na época de Tales isso sugeria um incipiente prestar atenção a si mesmo, ou mesmo “a requerer um comportamento intelectual cognoscitivo”, como diz Miguel Spinelli 52 . A maior parte das sentenças dos sophoi parece estar aliada a isso. Todas chamam a atenção do indivíduo para consigo mesmo, e não são sentenças para guerreiros ou sacerdotes, mas para

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Opus cit., I, 40. (Protágoras, 343a-b) Spinelli, Opus cit., p. 16. 51 “Heráclito prolonga o indagar dos líricos”; D. Schüler, opus cit., p. 172. Schüler chama a atenção para a “troca de verbos”: do ‘conhece-te a ti mesmo’ oracular para o “comecei a procurar-me a mim mesmo”, que é como traduz o fr. 101: “‘conhece-te’, manda o oráculo; ‘comecei a procurar-me’, responde o pensador. O que na voz oracular é conhecimento decai em busca no projeto de quem pensa”. 52 Spinelli, opus cit., p. 16. 50


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todos os homens. “Guarda-te a ti mesmo” 53 , “aprende a ser um senhor sábio em tua própria casa” 54 , “ama a prudência” 55 , aprende “a suportar com dignidade as mudanças da sorte” 56 , “fica em teu lugar” 57 , etc., são conselhos práticos para homens, para cada um que vive na turbulência do século VI, onde os velhos valores aristocráticos estão em ruínas, onde a pólis se concretiza em torno da isonomia de seus cidadãos; conselhos para homens que já vislumbram uma excelência moral centrada na mestria de si; enfim, conselhos que fazem parte da sabedoria (sophia) que é a “provisão para a viagem desde a juventude até a velhice” 58 , no dizer de Bias de Priene (amigo de Tales e Sôlon, e elogiado por Herácleitos 59 ). 4 O saber dos sábios Deste modo, talvez se pudesse vislumbrar em Tales, por entre a névoa da distância fragmentária da história, a pura e simples sabedoria de que somos, não somente indivíduos, mas indivíduos que podem se auto-conhecer. No entanto, a alguém que lhe perguntou qual era a coisa mais difícil, Tales respondeu: “conhecer-se a si mesmo” 60 . Difícil, mas não impossível. Para se viver a vida da “maneira melhor e mais justa” é preciso abster-nos “de fazer o que censuramos nos outros” 61 , e para tanto é preciso reconhecer em nós os atos que censuramos nos outros, para que deixemos de praticá-los. Tarefa que sem dúvida requer esforço; mas justamente “esforço” é que é preciso para nos tornar “belos no caráter” 62 .

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D. Laêrtios, Opus cit., I, 70; Quílon. Ibid.. 55 Ibid., I, 88; Bias. 56 Ibid., I, 93; Cleôbulos. 57 Ibid., I, 80; Pítacos. 58 Ibid., I, 88. 59 Fr. 39 DK. 60 Ibid., I, 36. 61 Ibid.. 62 Ibid., I, 37. 54


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Tal imagem moral de Tales talvez seja falsa; pois “as palavras dos sábios são registradas de maneiras diferentes, e atribuídas ora a um, ora a outro” 63 , mas isso não importa para o propósito aqui estabelecido – que é o de mostrar a moralidade dos “pré-socráticos” – desde que aceitemos que as máximas citadas pertençam aos sophoi. E se aqui a imagem deste sábio parece um tanto “socrática”, é que longe de serem tratados éticos, as máximas eram preceitos a serem refletidos, e na medida do possível, postos em prática. E Sócrates é a prática mais radicalizada desses preceitos antigos. Evidentemente se está aqui num terreno não escrito. O pensamento moral não só de Tales e Sócrates, mas de tantos outros, era vivido e ensinado oralmente, nunca argumentativamente posto em seqüência linha sobre linha num livro como a Ética a Nicômacos. Isso nos afasta bastante de uma pretensão de estabelecer a moral de Tales ou de Sócrates, mas não nos impede de captar, através das raras referências históricas que encontramos em uma obra como a de Diógenes Laêrtios, por exemplo, elementos que destacam certas concepções morais que se preservam nas máximas citadas. Ora, o que se apresenta nas máximas dos sábios são preceitos morais simples, comportamentais talvez pudéssemos dizer. Mas que requerem esforço, não resta dúvida. Ser excelente não era algo natural para Tales como transparece nas palavras de Diógenes Laêrtios: “Tales nos diz ... que não devemos orgulhar-nos de nossa aparência, e sim esforçar-nos por ser belos no caráter” 64 – como já foi citado. E noutro olhar sobre ele, lembramos o fragmento de um dos poemas convivais ainda cantados no século III d.C., que segundo Diógenes Laêrtios guardam os seguintes versos de Tales, que nos lembram a serena filosofia de Epícuros, e talvez por isso mesmo ainda cantados na época: “Procura uma única sabedoria,

63 64

Ibid., I, 41. Ibid., I, 37.


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escolhe um único bem, pois assim calarás as línguas inquietas dos homens loquazes” 65 . Se em Tales encontramos a idéia de esforço para ser excelente – para ter areté –, aliada a um conhecer-se a si mesmo, noutros sábios encontramos preceitos semelhantes, como o de Quílon: “guarda-te a ti mesmo”. Mas o que aparentemente os une em torno de uma certa ‘moralidade comum’, está expresso na máxima “nada em excesso”, atribuída a Sôlon, Quílon, Pitágoras, e com segurança encontrar-se-ia também em Tales e em outros; afinal é uma máxima que estará em todo o pensamento moral grego, mesmo no hedonista Arístipos 66 , que fora discípulo de Sócrates. Não há, portanto, em termos morais, nestes sábios “pré-socráticos” algo como uma divergência de pensamento semelhante a que encontramos na questão do ser, entre os eleatas, Herácleitos e Anaxagoras, por exemplo. O que encontramos entre eles, no que se refere à moral, é muito mais bem partilhado do que contradito. Se voltarmos ao nosso ponto de partida em Tales, veremos que também Herácleitos se lhe aproxima bastante. O efésio que se procurou a si mesmo (fr. 101 DK), concordava com a concepção de que “a todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente” (fr.116 DK). E “pensar sensatamente é virtude máxima”, ou noutra tradução: “a temperança é a excelência suprema”, ou “prudenciar é a maior virtude”, ou ainda, “a maior areté é o autodomínio” (fr.112 DK) 67 , em grego: swfronei'n ajreth; megivsth. Esta diversidade na tradução de sophronein: ‘pensar sensatamente’, ‘temperança’, ‘prudenciar’, ‘autodomínio’ é notável na medida em que significa que vários termos fundamentais das escolas do helenismo e greco-romanas podem ser atribuídos a um pensador do século VI. 65

Ibid., I, 35. Ibid., II, 75: “...abster-nos de prazeres não é o melhor, e sim dominá-los e não sermos prejudicados por eles”. 67 Respectivamente, traduções encontradas em: Pré-socráticos, “Os pensadores”, p. 90; J. Barnes, opus cit., p. 128; D. Schüler, opus cit., p. 176; e Guthrie, Os sofistas, p. 236. 66


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De todo modo, a noção de “nada em excesso”, portanto de moderação, está aqui presente, bem como não apenas a possibilidade de se auto-conhecer, mas também a de sermos responsabilizados por nossos atos. A lógica moral aí é simples: se podemos nos conhecer e podemos ter autodomínio, que em Herácleitos constitui-se na areté, logo, não podemos nos esquivar da responsabilidade de nossos atos. Não está mais aqui o valor da areté homérica de ser dominado por alguma paixão, ou deus, que exima o indivíduo da responsabilidade por seus atos. “O caráter é para o homem um dáimon” (fr.119 DK), diz Herácleitos. E dáimon “significa aqui simplesmente um destino pessoal do homem; este é determinado pelo seu próprio caráter, sobre o qual exerce um certo domínio, e não por poderes externos” 68 . – Em Sôlon também se encontra idéia semelhante de responsabilidade, só que pensada ao nível social (cf. frs. 3 e 8) 69 . E não apenas Herácleitos – e Sócrates e Antifonte 70 , para traçar uma relação com os posteriores – mas também o já referido contemporâneo de Tales, Quílon, partilha a máxima “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso” 71 . E mais do que isso, em Quílon se encontra uma concepção de prudência que não é em nada estranha àquela que podemos encontrar no período clássico, e que encontraremos também no helenismo. A excelência de um homem, diz Quílon, “consiste em prever o futuro até onde este pode ser discernido pela razão” 72 . É isso, aliás, que diferencia um homem culto de um ignorante, pois este possui esperanças infundadas, mas 68

Kirk-Raven-Schofield, Os filósofos pré-socráticos, p. 220. Jaeger observa que em ambos os fragmentos de Sólon “se trata da mesma idéia fundamental da sua política [de Sólon], o problema da responsabilidade, em linguagem moderna, e o da participação do homem no seu próprio destino, segundo a visão grega”; Paidéia, p. 181. 70 Fr. 58 DK: “porém, ninguém distinguiria mais retamente a prudência de um outro homem do que aquele que contem os prazeres momentâneos do coração ao fazer-se senhor de si mesmo e que recebe o prazer de vencer a si mesmo”; em Sócrates: cf. D. Laêrtios, opus cit., II, 32. 71 D. Laêrtios, opus cit., I, 41. 72 Ibid., I, 68. 69


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o homem excelente, sabendo calcular e prever o futuro, possui “esperanças fundadas” 73 . Também a noção de prudência transparece entre alguns de seus preceitos, como naqueles que diz: “domina a língua”, “não deixes a língua antecipar-se ao pensamento”, “guardate a ti mesmo” 74 ; e, num tom que nos lembra ainda Demôcritos 75 e os epicuristas, nos diz: “domina a ira”, “não desejes o impossível” e “cultiva a tranqüilidade” 76 . A máxima “a moderação é ótima” 77 é também atribuída a Cleôbulos, que aconselhava “a não nos deixarmos dominar pelo prazer” 78 ; palavras que nos lembram a austera moral de Pitágoras: que além de condenar qualquer excesso, “seja ao comer, seja ao beber”, diz que os prazeres sexuais “são prejudiciais em todas as estações e não são bons para a saúde” 79 . A mesma idéia de moderação encontra-se ainda, a crer, sempre, em Diógenes Laêrtios, nas palavras inscritas na estátua de Anácarsis, o cita: “Refreia a língua, o ventre e o sexo” 80 . Mas entre os antigos e lendários sete sábios, talvez seja com Sôlon de Atenas que o ideal da sophrosyne tenha alcançado suas proporções mais amplas a partir de um raciocínio filosófico. 5 Sôlon de Atenas: a sophrosyne como ideal político Poeta elegíaco e homem de estado, Sôlon de Atenas se destaca entre os sete sábios da antiguidade por transparecer “um pensamento de tipo racional e iônico” 81 essencialmente moral e político. Arconte em Atenas em 594 a.C., Sôlon foi o autor da “Lei da Liberação”, 73 Ibid., I, 69. Um século depois Demôcritos dirá: “irracionais são as esperanças dos tolos” (fr. 292 DK). 74 Ibid., I, 69/70. 75 Cf. fr. 191 DK (...Deves, portanto, voltar o pensamento ao que é possível e satisfazer-te com o que está à mão...”); cf. também o fr. 236 DK). 76 D. Laêrtios, opus cit., I, 70. 77 Ibid., I, 93. 78 Ibid., I, 92. 79 Ibid., VIII, 9. 80 Ibid., I, 104. 81 F. R. Adrados, Líricos griegos, p.175. “...aqui [em Sôlon] se trasluce un pensamiento de tipo racional y jónico”.


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Seisakhtheia, que tinha por objetivo livrar as pessoas que, por dívida, acabaram se tornando escravas. Porque naqueles dias “os homens tomavam dinheiro emprestado mediante garantia de suas próprias pessoas, e muitos foram forçados pela pobreza a tornar-se servos” 82 , narra Diógenes Laêrtios. Sôlon tomou às mãos uma Atenas dividida entre aristocratas e novos ricos, que pavoneados exibiam sua riqueza, e uma multidão de empobrecidos e endividados. A cidade encontrava-se em uma crise não apenas política e econômica, mas também em crise de valores morais. Aquela aristocracia que guardava e se orgulhava de possuir as virtudes (areté) homéricas se via agora envolta por turbulentas exigências sociais, provocadas em parte por uma nova classe de ricos: artesãos e comerciantes que em condições de adquirir sua armadura de hoplita, se igualavam em importância aos cavaleiros da nobreza nos campos de batalha, e ao mesmo tempo pela riqueza atingiam os privilégios políticos do aristocrata, sem possuírem, no entanto, nobreza de sangue; de outra parte, pelas exigências do povo, que explorado pelos ricos, vivia em extrema miséria, e desejava a repartição das terras, concentradas nas mãos de poucos. Com tendência à democracia e inimigo declarado da tirania, Sôlon, tomando a posição de mediador, “de pé, antepondo sólido escudo entre uma e outra facção” (fr.5, v.5) 83 , procura estabelecer a eunomia, a ordem social; não cedendo assim nem ao desejo revolucionário do povo, nem as injustas ambições dos ricos. Procurando remediar a situação do povo sem, no entanto, destruir certos privilégios dos aristocratas, Sôlon, promulga leis de índoles diversas. Desde a Lei da Liberação, que livra das dívidas todo o povo – e como exemplo primeiro aplicou a lei a si mesmo –; até a lei que impedia as mulheres de se exaltarem nos funerais, e a que permitia reclamar-se uma injustiça cometida contra qualquer cidadão. 82

D. Laêrtios, opus cit., I, 45. Os fragmentos de Sôlon citados são traduções de Gilda Naécia M. de Barros, opus. cit..

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Com suas leis Sôlon buscou a ordem social, a eunomia, porque “a disnomia, o desequilíbrio da ordem, diz ele, traz males inúmeros à cidade, /mas a eunomia faz aparecer tudo em boa ordem e bem ajustado” (fr. 3, v. 31-32). Quando reina a disnomia é porque a adikia e a hybris (injustiça e ganância) estão presentes na sociedade. A injustiça e a ganância para Sôlon, são conseqüências do próprio comportamento dos homens 84 . Tanto do povo quanto dos oligarcas. Pois aos primeiros diz: “vós mesmos aumentastes a força destes homens [os chefes do povo], dando-lhes abrigo /e por isso tivestes a infamante escravidão”(fr. 8, v.3-4); e aos oligarcas chefes do povo que, cedendo à persuasão das riquezas, com injustiça comandam, Sôlon lhes diz em tom de ameaça: “acalmai no peito esse forte coração,/ vós que, de muitos bens, chegastes ao excesso, /moderai a ambição” (fr. 4, v.5-6-7). Aqui talvez se enxergasse o fraco diante do forte com o escudo da “justiça”, a pedir moderação. No entanto, há de se pensar que, uma vez estando em sociedade, faz-se necessário erguer-se tal escudo, por simples questão de utilidade, o que parece ser a concepção de Sôlon, no que se segue. Sôlon, sendo consciente de que a ambição é insaciável no homem, procura então um princípio de moderação e concórdia para instaurar a eunomia. E recorre à dike e à sophrosyne para pôr a cidade em ordem, e quando escolhido para arconte promulga então suas leis para o kakós, o mau, e para o agathós, o bom. “Com Sôlon, dike e sophrosyne, tendo descido do céu à terra, instalam-se na ágora” 85 , observa Vernant. Contra a hybris Sôlon opunha a máxima “nada em excesso”, procurando um equilíbrio não apenas social, mas também moral, uma vez que ambos caminham juntos. E como diz ainda Vernant, “essa valorização do ponderado, do que é mediador, dá a areté grega um aspecto mais ou menos ‘burguês’: é a classe média que poderá desempenhar na cidade o papel moderador, estabelecendo um 84

Concepção também presente em Demôcritos, fr. B 175 DK, e como se sugeriu poucas páginas atrás, em Heraclêitos a partir dos frs. 116 DK e 112 DK. 85 Opus cit., p. 68.


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equilíbrio entre os extremos dos dois bordos: a minoria dos ricos que querem tudo conservar, a multidão das pessoas pobres que querem tudo obter” 86 . Ou seja, Sôlon não se impôs; como diz Plutarco em suas Vidas Paralelas, sendo mais do povo e da classe média, ele “não abusou de seu poder, aspirando que tudo se fizesse com a vontade e o consentimento dos cidadãos” 87 . Nesse sentido Sôlon compreende que, para haver eunomia, é necessário consenso entre os cidadãos da pólis. O povo e seus chefes mergulhados na injustiça e na desmedida destroem a cidade; o que significa que se destroem a si mesmos 88 , “o mal público chega para cada um em sua casa /e já os portões do pátio não podem detê-lo, /mas de um salto ultrapassa o muro elevado e sempre encontra, /mesmo aquele que, fugindo, estiver no recôndito do quarto.”(fr. 3,v.27 a 30). Está aí a concepção da pólis como um todo, do qual todas as partes têm sua função e responsabilidade, o que de certo modo tornar-se-á uma das características da democracia grega. Xenofon, ao narrar um curto diálogo entre Sócrates e Cármides, observa, ao final, que ao ser útil ao estado, fazendo-lhe prosperar, “imenso serviço terás prestado não somente aos cidadãos em geral como a teus amigos e a ti próprio” 89 . Ou seja, cuidar da coisa pública é cuidar de si e dos amigos, tal como cuidar de si e dos amigos é também cuidar da cidade. O que fez Sócrates ironizar seus juízes dizendo que, por ter ensinado seus concidadãos a cuidarem de si mesmos, merecia ser alimentado no Pritaneu. E para lembrar novamente um pensador do período clássico, em concordância com Sôlon está Antifonte, o sofista, que diz em sua obra Em torno do consenso: “sem consenso, nem a cidade se politiza 86

Ibid., p. 67. Sôlon, XVI. 88 Demôcritos possui compreensão semelhante: “Porquanto uma cidade bem conduzida é a melhor via para o êxito [de cada cidadão]: disso depende tudo, e se isso é salvaguardado tudo é salvaguardado, ao passo que se isso é arruinado tudo é arruinado”, fr. B 252 DK. Da trad. de J. Barnes, opus cit., p. 324. 89 Mem., III, VII, 9. 87


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bem, nem a casa se dá belamente naquilo que é próprio da casa” 90 . Concepção semelhante seria encontrada também em Protágoras, segundo Gunthrie 91 . Mas consenso não é algo de acesso fácil. Com a ascensão do tirano Peisístratos ao poder, “incapaz de convencer o povo, Sôlon, depôs as suas armas em frente ao quartel dos generais” 92 e retirou-se de Atenas, convicto de que “em assuntos importantes é difícil agradar a todos”(fr. 5, v. 11). 6 Kairós (conclusão) Que a areté, como se viu até aqui, teve a moderação quase como sua essência – tornou-se aos poucos algo “burguês” como afirma Vernant –, não fora algo que ficou apenas entre o pensamento dos “pré-socráticos”. Foi além; encontramos ênfase na moderação até mesmo no hedonista Arístipos; e a sophrosyne está aliançada com a tranqüilidade dos epicuristas, e exacerbada, a ponto de se tornar privação, nos estóicos. E assim sendo, percebe-se como está próxima a sabedoria moral dos “pré-socráticos”, com aquela do período clássico, e dos posteriores (mesmo dos greco-romanos). Em Sócrates, que teria se preocupado com a virtude em si, temos em relevo o “por atos, não por palavras” 93 . Esta idéia de “atos, não palavras”, que Sócrates parece ter repetido bastante, nos leva a outro termo que faz parte da excelência moral, o kairós, o momento oportuno, o tempo certo, o instante exato. Se a sophrosyne, enquanto moderação, enquanto limite para o impulso e para o excesso, nos passa a idéia de contenção, de refrear os ímpetos, o kairós, por sua vez, nos traz uma idéia de movimento, de ação, não simples ação, mas ação refletida, medida, é verdade, mas que não pode ser perdida; é o ato oportuno, é o instante em que se deve agir. 90

Fr. 44a (Xen., Mem., IV, 4, 16). “Para Protágoras, então, autodomínio e senso de justiça são virtudes necessárias à sociedade, que por sua vez é necessária para a sobrevivência humana”. Opus cit., p. 69. 92 D. Laêrtios, opus cit., I, 50. 93 Xenofon(te), Mem., IV, IV, 10; II, VI, 6; e Apologia, I, 3; II, 13. 91


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Diógenes Laêrtios diz ser Protágoras “o primeiro ... a enfatizar a importância de aproveitar o momento oportuno” 94 . Mas ele mesmo fala que Pítacos aconselhava a perceber “a oportunidade” 95 , e Cleôbulos, num fragmento de seus poemas, também citado por Diógenes Laêrtios, diz que, na ignorância que predomina entre os homens, “o senso da oportunidade te preservará” 96 . E possuir o “senso da oportunidade” é próprio do homem prudente, daquele que está atento na vida, daquele que sabe, ainda segundo Pítacos, “prever as dificuldades para evitar que elas se concretizem” 97 . E enfim, daquele que age no momento certo, na hora exata em que se é necessário agir, porque, como dirá Quílon, “no momento oportuno é belo” 98 . A palavra belo (kalós) aqui, não é gratuita. – Lembrando que é creditada a Tales também a expressão ‘belos no caráter’ 99 . O kairós também pode ser concebido como uma espécie de medida, e pode até confundir-se com a sophrosyne. Se pensarmos, por exemplo, naqueles fins do século VI a.C. – século de Tales, Sôlon, Quílon, Pitágoras, etc. –, em que, como vimos, a moderação elevou-se a ideal político, e se pensarmos também que o hábito de beber vinho já estava bem enraizado no homem grego, este fragmento de uma elegia de Xenófanes de Colofon parece pôr a medida sobre a medida ao dizer que: “não é excesso beber quanto te permita chegar à casa sem guia, se não fores muito idoso” 100 , ou seja, é preciso ser moderado, mas cada qual deve saber a sua medida, deve saber o momento de parar de beber, deve reconhecer sua própria medida sabendo o seu próprio kairós. Noutras situações, no entanto, a percepção do momento oportuno é bem mais importante do que saber a hora de parar de beber. Nas situações em que o seu ato ou o seu discurso está mais 94

Opus cit., IX, 52. Ibid., I, 79; (Pítacos floresceu em 600 a. C.). 96 Ibid., I, 91. 97 Ibid., I, 78. 98 Ibid., I, 41. 99 Ibid., I, 37. 100 DK 21 (B 1, 17-18), trad. Os pensadores, p. 62. 95


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diretamente relacionado com os outros; por vezes em questões que envolvem vidas e mortes. Questões políticas. Em que momento deve o diplomata propor um acordo, ou desfazê-lo, em função de uma aliança, pró ou contra, com certo país envolvido numa guerra? Um representante do povo em uma assembléia: em que momento dentro de uma calorosa discussão ele deve propor seus argumentos, deve lançar sua proposta, combater certo discurso predominante, ou defender certo acusado? O kairós aí também se mescla à moderação. Deve-se ter paciência para aguardar o momento oportuno. Essa junção de kairós e sophrosyne talvez seja mais visível na sofística, onde, como afirma Gutierrez, “se encontra uma clara hipertrofia da virtude da prudência” 101 . E esse talvez tenha sido o sentido do kairós que Protágoras foi o “primeiro a enfatizar”, se o considerarmos como aquele que ensinava a politiké areté. Pois no discurso, a percepção do momento certo para afirmar, negar, fazer lembrar, desvirtuar, concluir, recomeçar, etc., é importante para poder persuadir. E o ‘poder de persuadir’ faz parte da sofística. A areté vai aí mesclar-se com o discurso, e a persuasão, na medida em que, podendo ser ensinada, só o pode através de um discurso, lógos – e do exemplo, como poderse-á notar em Protágoras e Sócrates. Mas já é o tempo oportuno de aqui encerrar este discurso. Visto ter atingido, ao menos em esboço, o objetivo de ter traçado as origens da ética grega, sem ter ignorado os “fisiólogos” e sem ter começado por Sócrates. Referências ADRADOS, F. R. Liricos griegos: elegiacos y yambógrafos arcaicos, (v. 1). Barcelona: Ediciones Alma Mater S.A., 1957. ANTIPHON, Discours, suivis des frags. d´Antiphon le sophiste; trad. Louis Gernet. Paris: Les Belles Lettres, 1954. ANTIFONTE, Frags. de Antifonte, o sofista. Trad. Luis Felipe Bellintani Ribeiro. In Relatórios de Pesquisa, n. 27. Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Florianópolis, s/d. 101

J. B. Gutierrez, na introdução de Fragmentos y testimonios (Protágoras), p. 57.


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Composição dramática e maiêutica no Teeteto de Platão Dennys Garcia Xavier *

Resumo: Neste artigo, submetendo a breve análise a digressão sobre a maiêutica “socrática”, tentamos demonstrar em que medida a escolha dos personagens do Teeteto de Platão determina a natureza do debate desenvolvido ali. Inspirados pelo critério hermenêutico da escola de Tübingen-Milão, julgamos que a recomposição dos perfis dramático-biográficos daqueles personagens, em plena harmonia com a teoria do escrito-jogo de Platão apresentada na parte conclusiva do Fedro e completada, em seu aspecto dramático-compositivo pelo livro III da República, seja elemento central para um correto ajuste de perspectiva a partir da qual deve-se ler o diálogo. Nesta sede, recorremos também a alguns passos do tratado matemático exposto no VII livro da República de Platão, texto fundamental para a reconstrução dramática dos personagens do Teeteto e, por via de consequência, para uma correta justificação da leitura que propomos. Palavras-chave: Imitação, Maiêutica, Narrativa, Personagens, Teeteto Abstract: My aim in this article is, through a concise analysis of the “socratic” midwifery digression, try to demonstrate the measure in which the Theaetetus characters choice establish the nature of the debate developed in the dialoghe. Emphasizing the Tübigen-Milan ermeneutical criterion, we also try to sketch a biographical profile of those characters – in a complete harmony with Plato´s written theory – to a correct adjustment of perspective on reading the dialoghe and bring into focus some of the mathematical arguments extracted from the VII book of the Republic, essencial to the Theaetetus philosophical drama. Keywords: Characters, Imitation, Midwifery, Narrative,Theaetetus

1 Sobre a composição narrativa do Teeteto à luz do livro III da República Em República III (392d-398b), Platão estabelece três modos diversos de composição narrativa: a “que usa o discurso indireto para referir as palavras de um outro por meio de uma evidente *

Doutorando em Storia della Filosofia pela Università degli Studi di Macerata, Itália. Bolsista da CAPES. E-mail: dennysgx@gmail.com. Artigo recebido em 29.09.2007 e aprovado em 18.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 175-194.


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intervenção do autor; a imitativa, que usa o discurso direto, fazendo falar o outro como se estivesse presente; e a mista, que alterna os dois tipos de discursos” 1 . Não obstante tratar-se sempre de uma “narração” (di»ghsij), no discurso de tipo direto – no qual fala-se “sendo como um outro” (ìj tij ¥lloj ín) – o autor deve sempre adaptar o seu modo de exprimir-se ao do imitado, escondendo (¢pkrÚptw) a si mesmo e deixando falar, na medida das possibilidades e de suas necessidades comunicativas, o personagem do qual faz uso (393c). Ainda sobre o discurso por imitação (di¦ mim»sewj), eis o que diz nosso filósofo: Sócrates: O homem que parece-me moderado (mštrioj ¢n»r), disse eu, quando, na sua narrativa, chegar à ocasião de relatar um dito ou feito de um homem bom (¢ndrÕj ¢gaqoà), quererá exprimir-se como se ele fosse, e não se envergonhará de tal imitação, principalmente imitando feitos de firmeza e bom senso do homem bom; deverá querê-lo menos e em menor grau, quando essa pessoa se dobrar devido à doença ou à paixão de amor, ou à embriaguez ou a qualquer outra desaventura do gênero. Quando, entretanto, se tratar de algum personagem indigno dele (˜autoà ¢n£xion), não quererá seriamente conformar-se a um indivíduo inferior, a não ser brevemente, quando tiver feito algo justo; e mesmo assim se envergonhará, a um só tempo pela inexperiência em imitar tais coisas e por se aborrecer de se conformar e modelar sobre um tipo de gente de qualidade inferior, que no coração não apreça, se não por concessão ao jogo (Óti m¾ paidi©j c£rin). 2

Decomposto, o trecho supracitado deixa entrever que: a) o homem moderado dispõe-se, de bom grado, a imitar em seu relato ditos ou feitos de homens bons, sem envergonhar-se de fazê-lo; b) em seu relato, o homem moderado imita com menor favor ditos ou feitos de homens bons quando sujeitos à doenças, paixão de amor, embriaguez ou qualquer outra afecção semelhante a estas; 1

Migliori, M. La struttura polifonica del Fedro. I Quaderni Bombesi, Rivista Semestrale di Filosofia e Scienze Umane della Scuola di Alta Formazione Filosofica “B. Spaventa”, I, p. 15. 2 República, III, 396c-e. Nesta sede, é nossa a tradução das passagens em grego.


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c) em seu relato, o homem moderado não se conformará seriamente a personagens de natureza indigna, a não ser nos momentos em que estejam praticando atos justos; d) ainda que se proponha a imitar um homem que lhe é inferior, o homem moderado se envergonhará ao fazê-lo, a não ser que o faça tão-somente por concessão ao jogo de relatar. Sabe-se que o Teeteto é o diálogo no qual a preferência pela forma direta é inequivocamente declarada e justificada por um Platão cansado do incômodo provocado pela recorrência das intercalações exigidas pelo discurso indireto (143c). O Teeteto, por isso mesmo, assinala um segundo momento de passagem referente à natureza compositiva dos textos do filósofo, qual seja: a opção pela forma direto-imitativa em detrimento do modelo narrativo-indireto – característico dos diálogos do período intermediário – destinado, ao que tudo indica, a não ser retomado até o fim de sua produção literária e cujo tácito abandono inicialmente marca a composição do Fedro e depois, de modo abrupto e definitivo, o início da segunda parte do Parmênides, diálogo que imediatamente antecede o Teeteto 3 . Por certo não nos seria possível afirmar, a não ser baseados numa interpretação de caráter meramente teorético, que a partir daqueles diálogos Platão não precise mais se ocupar de personagens que, não fosse pela exceção prevista pelo jogo dramatúrgico de imitar, lhe causem algum tipo de embaraço. Tenderíamos a dizer, todavia, que a arte compositivo-mimética de Platão, tal como registrada daquele ponto de ruptura em diante, se enquadra com justeza na definição aristotélica de formas “mais sérias” (t¦ 3

Cf. Parmênides, a partir de 137c. Em geral, as mais criteriosas investigações estilométricas colocam no início e no final do corpus de Platão os textos escritos em forma direta, enquanto que no centro emergem aqueles em forma narrativa (Protágoras, Eutidemo, Lísia, Cármides, Banquete, Fédon, República), ou seja, textos que implicam na contínua presença de “disse”, “respondeu” etc. Sobre o recurso estilométrico aplicado aos textos de Platão, cf. Lutoslawski, W. Origin and grown of Plato´s Logic. London: Longman´s, 1905; Brandwood, L. Stylometry and chronology. In: Kraut. R. The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 90-120.


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spouda‹a) do imitar, cujo traço característico repousa na natureza dos autores que “imitam as belas ações das mais belas personagens” (t¦j kal¦j ™mimoànto pr£xeij kaˆ t¦j tîn toioÚtwn); um tipo de imitação que parece encontrar um contraponto, por exemplo, no Górgias, texto que – a pensar na composição fictícia de pelo menos um dos seus interlocutores – ilustra de forma emblemática exatamente a oposta definição aristotélica de “imitação de homens inferiores” (m…mhsij faulotšrwn), marcada pelo aspecto comicogrotesco característico da composição humorística 4 . Vale dizer, entretanto, que no Teeteto assim como nos diálogos subsequentes, a escolha pelo jogo dramático da narração direta parece obedecer também a uma exigência didática de simplificação comunicativa que se impõe a Platão de forma determinante. Com efeito, não é difícil entender que os intrincados discursos dialéticos – presentes nos diálogos tardios do filósofo – resultassem absolutamente insuportáveis em forma não-imitativa, independentemente da seriedade ou não seriedade da apropriação mimética dos personagens 5 . Em linhas gerais, portanto, a teoria da composição de discursos diretos delineada pelo nosso filósofo nos dá dele a imagem de um autor de peças filosóficas de teatro, espetáculos dramatúrgicos coerentes – ou, para dizer com Aristóteles,

4

Aristóteles, Poética, IV, 25-V, 30. Cf., por exemplo, a cortante ironia de Sócrates para com Cálicles, personagem considerado ficcional pela maior parte dos estudiosos (Górgias, 486d-488b). 5 Migliori, M. Op. Cit., p. 16. Para Chappell, por exemplo, a distância entre o que Platão pensa e o que põe na boca de seus personagens pode ser uma questão de “confiabilidade da testemunha”. Isto, a nosso ver, pode ser aceito apenas se temos claro o uso estratégico-comunicativo desta confiabilidade (ou não confiabilidade) do testemunho oferecido por um dado personagem do diálogo, e não apenas numa suposta fidelidade histórico-doutrinaria do personagem evocado ali. Chappell, Timothy. Reading Plato’s Theaetetus. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004, p. 13. Aliás, “que os personagens sejam significativos no desenvolvimento do diálogo é afirmação óbvia; que eles sirvam para Platão operar algum jogo é bastante menos óbvio”. Migliori, M. Tra polifonia e puzzle: Esempi di rilettura del “gioco” filosofico di Platone. La struttura del dialogo platonico. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2000, p. 193.


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“coerentemente incoerentes” (Ðmalîj ¢nèmalon) 6 – com as virtudes e limitações ínsitas aos personagens que põe em cena e que não podem não ser absoluta e inarredavelmente determinadas por eles (que são, por sua vez, fruto de uma escolha livre e consciente do seu autor-dramaturgo). Diga-se a este propósito, aliás, que essa convicção se fortalece também nas informações extraídas do passo 277b–278b do Fedro, no qual Platão estabelece uma espécie de código geral formado por claras regras de composição dos discursos escritos a fim de que se possa neles reconhecer os concebidos a norma d’arte – ou, mais precisamente, aqueles concebidos de acordo com a adequada técnica de composição de discursos – e, ao contrário, os discursos escritos sem arte, o que equivale a dizer, em desacordo com aquela técnica (o† tšcnÊ kaˆ ¥neu tšcnhj gr£fointo) (277b). Para que um discurso seja construído a norma d’arte, diz Platão, é preciso que o seu autor: a) “conheça a verdade sobre cada uma das coisas sobre as quais fala ou escreve” (¢lhq j ˜k£stwn e„dÍ pšri ïn lšgei ½ gr£fei); b) que “seja capaz de definir cada coisa em si mesma” (aÙtÒ te p©n Ðr…zesqai dunatÕj gšnhtai); c) que “saiba dividí-la em suas espécies até chegar ao que não é ulteriormente divisível” (Ðris£menÒj te p£lin e‡dh mšcri toà ¢tm»tou tšmnein ™pisthqÍ) 7 . Por fim, depois de ter “penetrado na natureza da alma” (yucÁj fÚsewj diinën) e “discernindo as espécies adequadas a cada natureza” ((˜k£stÇ fÚsei e doj ¢neur…skwn), o autor do discurso deve: d) construir e ordenar o seu discurso em modo correspondente ao das espécies divididas em relação à natureza da alma, isto è, “oferecendo a uma alma complexa discursos complexos e plenos de harmonia” e, oferecendo “a uma alma simples discursos

6 7

Aristóteles, Poética, XV, 25. Fedro, 277b-c.


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simples” (poik…lÇ m n poik…louj yucÍ kaˆ panarmon…ouj didoÝj lÒgouj ¡ploàj d ¡plÍ) 8 . Eis que então se nos apresenta uma cornice que joga forte luz sobre a natureza compositiva do Teeteto e que reforça, somada ao passo do livro III da República já citado, a tese da composição teatral do nosso diálogo e da limitação qualitativa do discurso em função da presença dos personagens postos em cena na discussão desenvolvida ali. Um procedimento de comunicação filosófica que nada tem a ver, vale destacar, com o que David Sedley denomina “estratégia minimalista” que “insiste” na tese geral de que os diálogos são dramas, amparada, segundo ele, no mero propósito de estabelecer uma “distância radical” entre Platão e o que está sendo dito no texto, isto é, um recurso estilístico ad hoc que de qualquer maneira blinda o autor, protegendo-o de argumentos indignos dele. Contra tal recurso, fruto de uma sua convicção pessoal, Sedley chega mesmo a defender uma visão “mais conservadora” da relação autor/personagens, definida pela idéia geral de que o interlocutor principal do diálogo no mais das vezes vocaliza os argumentos e crenças que são próprias do Platão-autor, ou seja, que faz dos protagonistas dos diálogos verdadeiros porta-vozes da filosofia platônica na trama geral da discussão dialética 9 . Tese que para ele não implica, entretanto, na absoluta ausência de uma ocasional separação entre autor e personagem, “nos casos em que a separação possa realmente servir a um propósito” 10 . Permitam-nos tentar esclarecer o nosso modesto – e em tudo experimental – ponto-de-vista a propósito dessa questão; ponto-devista diverso, vale dizer, do defendido pelos que “desde a antiguidade” refletiram esta “prática hermenêutica” 11 .

8

Fedro, 277c. Sedley, David. The Midwife of Platonism. Text and Subtext in Plato’s Theaetetus. Oxford: Oxford University Pres, 2004, p. 6. 10 Id. p. 7. 11 Id. p. 6. 9


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É razoável que boa parte dos especialistas defenda a tese da “quase-plena-identificação” entre Platão e seus protagonistas. O muitissimo difundido pressuposto do qual partem, projeta sobre o texto do filósofo uma expectativa de acordo com a qual é preciso encontrar nas falas dos personagens centrais dos diálogos o que ali deve ou não haver de platônico e, por via de consequência, o que de não platônico deve ser atribuído ou a uma autônoma personalidade do interlocutor ou, ao contrário, à caprichosa mente do autor do texto que eventualmente se presta a colocar na boca de seus personagens falas que não se identificam nem com eles próprios, nem com o que de sério pensa o seu autor. Tal como levada adiante, todavia, essa proposta interpretativa depende, invariavelmente, de um exercício hermenêutico muito complexo – porque impregnado na teia de uma certa arbitrariedade – de análises apofânticocomparativas relativas a cada sentença anunciada por um dado personagem em relação a um arcabouço de filosofia provavelmente platônica, cujo frágil alicerçe se revela muitas vezes no terreno movediço da maior ou menor recorrência estatística de certas construções temáticas ou ainda em passagens textuais qualitativamente iluminadoras e mais ou menos reputáveis ao filosósofo. Eis então o porquê de não ser diferente a postura pouco amistosa daqueles estudiosos quando confrontados com tese segundo a qual os diálogos de Platão são dramas filosóficos: qualquer sopro mais contundente de autonomia dramática derivada da relação autor/personagens – em especial dos protagonistas – leva para longe qualquer possibilidade de reconstrução doutrinária da filosofia de Platão exatamente porque, tal como concebido por eles, o drama platônico, em larga medida, abre mão de seu autor. Não por outro motivo, diz Sedley a esse propósito, “se o autor e o interlocutor são sempre considerados como independentes um do outro, nenhuma interpretação [como a que propõe] jamais poderia sair do chão” 12 .

12

Sedley, D. Op. Cit. p. 7 (grifo do autor).


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A bem da verdade, não negamos a pertinência e utilidade de uma tal estratégia interpretativa. Um ótimo lugar para se começar a procurar o conteúdo eminentemente platônico dos diálogos é, sem dúvida, na fala dos seus personagens centrais, analisadas, num primeiro momento, individualmente e, a posteriori, num confronto crítico entre elas. Discordamos entretanto da aplicação deste tipo de análise sem o ajuste de perspectiva oferecido pelo aspecto dramático-ficcional do texto; aspecto que, tal como delineado pelo próprio Platão – e não por livre apropriação de caráter teorético –, em nada implica numa “distância radical” entre o imitado e o imitador, mas que, ao contrário, comporta sempre a tácita presença de um autor que, a um só tempo, imita por concessão ao jogo da escrita e põe em cena personagens que determinam decisivamente o fluxo da argumentação dialógica. No exercício mimético de sua criação literária, a nosso ver, Platão está sempre presente, tanto na fala de personagens centrais quanto na fala de personagens secundários – sejam eles históricos ou não. Cabe a ele, na condição de imitador, dar vida a cada uma das presenças que escolhe, sublinhar este ou aquele aspecto de personalidade que julga mais importante em função do que pretende dar a conhecer e estabelecer, em suma, os rumos que a investigação proposta deve seguir para atingir os propósitos originalmente concebidos para um determinado texto. Sedley, por exemplo, caminhando na contramão do que propomos, chega mesmo a sugerir que, se sua interpretação do Teeteto estiver correta, frases como “Platão diz que...” deixam de ser justificáveis, exatamente porque ali estariamos diante de um dos casos nos quais “boas razões emergem” para separar Platão do Sócrates que faz atuar 13 . Pensamos, ao invés disso, que é sempre Platão a falar em última instância, seja para demonstrar o que julga ser a via justa a ser tomada, seja para, diversamente disso, indicar o caminho a ser evitado. Assim, se nossa interpretação estiver correta, qualquer estudo sobre o Teeteto de Platão deverá usar sempre a fórmula “Platão diz que...”, exatamente porque a presença de um

13

Id. p. 7.


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“outro” é sempre regulada pela ótica dele, autor, e em função do que pretende comunicar, mesmo quando “sendo como um outro” (éj tij ¨lloj ín) 14 . Platão, portanto, não precisa ser salvo de argumentos indignos dele. Sua teoria do escrito o protege já deste tipo de perigo, dado que prevê em seu arcabouço inclusive a exceção que regula o uso de personagens e discursos assim considerados “inferiores”. Mais útil do que salvá-lo de perigos inexistentes talvez seja exatamente compreender os motivos que o levaram a fazer uso de tais e quais argumentos na boca deste ou daquele personagem, buscando sempre a mensagem de fundo que pretende transmitir, revelada tão-somente no recíproco confronto das diversas intervenções que compõem o diálogo. Interpretado a partir das ferramentas que aqui propomos – todas extraídas dos próprios textos do filófoso e, até que se prove o contrário, aplicáveis a eles – há pouco sentido em se tentar estabelecer para o Teeteto um critério histórico-objetivo a partir do qual possamos divisar, por exemplo, uma distância entre Platão e o Sócrates do diálogo que de algum modo seja capaz de justificar o final aporético do diálogo ou o fato de o Sócrates ali presente parecer quase que totalmente inocente a propósito da metafísica platônica (fato esse, diga-se de passagem, que parece dever-se mais a uma escolha comunicativa de Platão do que a um distanciamento cronológico entre autor e personagem principal ou, o que é pior, a uma manifestação de crise de uma doutrina metafísica amplamente formulada nos diálogos do período intermediário). Como escritor de dramas, Platão não se compromete com o fornecimento de dados históricos precisos: este é um problema nosso, dos historiadores da filosofia, que, em geral, imprimimos sobre a sua obra escrita uma perspetiva exegética tanto estranha à sua composição quanto, por via de consequência, incapaz de solucionar-lhe os problemas. Tendo presente isso, mais do que se justifica a nossa escolha pelo Teeteto. Trata-se de um texto único, um hapax legomenon no 14

República, 393c.


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qual as várias faces do filósofo parecem se entrecruzar, confundindo o estudioso habituado a rotular o que lê. Se nossa proposta estiver correta, o Teeteto deve ser interpretado como uma exceção que confirma a regra geral da doutrina comunicativa do seu autor, isto é, como um texto que não se deixa moldar por abordagens discursivoanalíticas e cuja razão de ser se esconde por detrás do modo “coerentemente incoerente” pelo qual Platão parece ter preferido escrever filosofia e o qual bem fundamentou exatamente em parte de seu legado como escritor. 2 Sobre a “maiêutica platônica” e a composição ficcional dos personagens do Teeteto Um dos passos do Teeteto nos quais o jogo de composição dramática vêm à tona de modo mais significativo é o da digressão sobre a arte maiêutica atribuida a Sócrates, consignado em 148e151d; passo que parece ter sua origem num problema psicológico do personagem que dá nome ao diálogo: ele está “grávido”, sente as contrações, diz Platão; e Sócrates é o homem certo no momento justo para resolver o problema. A digressão sobre a maiêutica é, muito justamente, protagonista de um vivo debate sobre a sua paternidade. Perguntase, por exemplo, se é realmente uma técnica socrática ou uma invenção platônica, insólito resultado de alguma escolha proposital de seu autor. De fato, no Teeteto, Platão faz Sócrates afirmar coisas estranhas a propósito do tema, um texto tardio do filósofo que, entre outras coisas: a) diz que Sócrates mantém escondida a arte maiêutica; b) diz que Teeteto (rapaz bem informado, filho de Atenas e discípulo de Teodoro, amigo de Sócrates) nunca ouviu falar que Sócrates praticasse a mesma arte da mãe; c) mostra um Sócrates que pede a Teeteto para não dizer “por aí” que pratica aquela arte 15 .

15

Teeteto, 149a-b.


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Platão, em suma, parece dizer que ninguém, a não ser ele próprio, sabia da arte “secreta” de Sócrates. A nosso ver, uma confirmação de que se trata de uma releitura do método socrático e do modo pelo qual faz filosofia, em função do que o autor da obra pretende comunicar. A favor de tal interpretação depõe o fato de que Platão é o único autor – entre os que transmitem testemunhos sobre Sócrates – que faz alusão à maiêutica socrática (e, sublinhe-se, o faz apenas no Teeteto). É interessante notar, além disso, que a inteira digressão sobre a maiêutica não apenas se abre fazendo referência àqueles que não compreendem as habilidades de Sócrates, mas também se fecha de modo semelhante, numa espécie de defesa aprioristica que deve justificar a “torção dramática” feita ali: Sócrates: ... afinal, maravilhoso rapaz, muitos de fato chegaram a tal hostilidade para comigo a ponto até mesmo de me morder, se extirpo deles alguma coisa de pouco valor; e não creêm que eu o faça pelo interesse deles ... (151b-d).

Platão constrói um modelo de apresentação da maiêutica, por meio de uma analogia com a arte da parteira. Uma analogia que parece forçada em pelo menos dois pontos essenciais: 1. a necessária esterilidade da parteira. De fato, diz ele, a parteira pode operar apenas quando não se encontra mais em idade fértil. A esterilidade neste caso, então, não deve ser considerada em termos absolutos: quem ajuda a partejar deve, por sua vez, ter enfrentado já a experiência do parto. O caráter humano é sobremaneira frágil para que se aprenda uma arte da qual não se teve uma experiência direta; 2. Platão diz que a arte da parteira se estende também à combinação dos matrimônios, com o propósito de gerar filhos melhores. Esta habilidade, diz ele, deixa a parteira particularmente orgulhosa, ainda que com o risco de ser acusada de “alcoviteira” (¹ promnhstik») (150a). Mas nosso filósofo estranhamente “corrige” este ponto, precisando que este é um trabalho feito pelas verdadeiras parteiras, porque sabe que esta não é, em geral, uma característica


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própria das parteiras. A impropriedade da comparação é sublinhada pela resposta de Teeteto que, perplexo com tudo aquilo que acaba de escutar, diz nunca ter ouvido falar nada a propósito (149d-e). Ao que parece, os pontos nos quais a analogia não se sustenta são essenciais para dar de Sócrates um retrato extremo: de fato, Platão deve dizer que a parteira é esteril porque Sócrates deve, no contexto ficcional do diálogo, ser – ou pelo menos parecer ser – estéril. Por outro lado, ele deve também “redimir” Sócrates porque sua presença, diferentemente daquela da parteira (que não é estritamente necessária para o parto), é verdadeiramente fundamental. A digressão sobre a arte maiêutica se revela, deste modo, uma curiosa mistura de humildade socrática e de inegável atribuição de méritos e capacidades ao próprio Sócrates. De fato, Sócrates repetidas vezes afirma que não é sábio, que não gera sabedoria, que não sabe nada e que jamais fez descobertas sábias, filhas de sua alma (150d). Por outro lado, o fato de reconhecer tudo isso não o impede de atribuir-se, junto ao deus, o mérito de favorecer partos de pensamentos explêndidos, o que termina por caracterizar este duplo jogo da maiêutica no diálogo. O passo 151d da digressão, em suma, indica que Sócrates não é sábio “acerca de qualquer coisa” ou, por assim dizer, “sábio a propósito de tudo”. Mas deixa claro, certamente, que não é ignorante a propósito de tudo, como o demonstra o conhecimento da arte maiêutica e dos princípios que a regulam. Sócrates explica ter feito toda a digressão sobre a arte maiêutica porque Teeteto lhe parece pronto para dar à luz a novos conhecimentos (tal como demonstra o problema com os números irracionais) (147e-148b). Neste contexto, a nosso ver, Teeteto está pronto para começar, guiado por Sócrates, as suas primeiras lições de dialética. Mas quem é o personagem Teeteto que dá nome ao diálogo? O matemático famoso, já adulto, teórico de alguns dos mais belos sólidos regulares dos quais o filósofo fala no Timeu (55a-c)? Dificilmente, dada a inequívoca e continuamente destacada juventude do personagem que se propõe a ser examinado por


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Sócrates, uma juventude comprovada por pelo menos quatro elementos extraídos do diálogo: a) os termos meir£kion (“jovem”) (142 c, 143 e, 146 b, 168 e) e

pa‹j (“rapaz” ou “filho”) (145 d, 151 d, 151 e, 156 a, 162 d) com os quais é continuamente qualificado; b) a irrefreável curiosidade de Sócrates por um notável ateniense que jamais tinha encontrado, justificável apenas pela pouca idade do rapaz (144c-e); c) a natureza da admiração de Teodoro pelo seu discípulo, decorrente, segundo ele próprio, não da sua beleza ou de uma eventual paixão – natural numa relação entre o velho mestre e o jovem aluno –, mas tão-somente da admirável natureza (qaumastîj eâ pefukÒta) do moço (144a). Justificativa que soaria risível, fosse Teeteto um homem adulto; d) o talento precoce de Teeteto que leva Teodoro a registrar seu espanto diante de um indivíduo que “com tão poucos anos já tenha feito o que fez” (144b) 16 . Teeteto aprende com notável facilidade (eÙmaqÁ) é “benévolo” (pr´on) e possui “coragem superior à de qualquer um” (™pˆ toÚtoij ¢ndre‹on), qualidades “dificilmente encontradas em um outro” (æj ¨llù calepÕn) (144 a). É atlético, “penetrante” (ÑxÚj), não apegado a coisas materiais, tem boa memória e enfrenta os estudos com “calma” (le…wj), “segurança” (¢pta…stwj) e “eficácia” (¢nus…mwj), o que lhe garante resultados surpreendentemente incompatíveis com a sua pouca idade (144 b-d). Do mestre Teodoro, diz aprender noções de “geometria” (gewmetr…a), “astronomia” (¢stronom…a), “harmonia” (¡rmon…a) e “cálculo” (logismÒj) (145 c–d). Um jovem, em suma, que, não por coincidência, se nos apresenta como o protótipo, delineado na 16

Cf., a propósito da caracterização dramática de Teeteto, MELE, Alfonso. Il Teeteto platonico tra storia e finzione letteraria, in Il Teeteto di Platone: strutture e problematiche. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2002, p. 246255 e NAILS, Debra. The people of Plato: A Prosopography of Plato and Other Socratics. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2002, p. 274-278.


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República (VI-VII), do indivíduo apto a receber o enorme volume de estudos e treinamentos próprios da formação do dialético; assim mesmo, um matemático ainda incapaz de compreender, em ato, todas as implicações e conseqüências que podem advir das disciplinas às quais se dedica, ao menos aquelas de caráter eminentemente dialético-filosófico 17 . Vejamos este ponto mais de perto. Após estabelecer, com a anuência de Teeteto, que ciência (™pist»mh) e sabedoria (sof…a) são, no contexto do diálogo, uma só e mesma coisa (145e-146a), eis o que dizem Sócrates e Teodoro 18 : Sócrates: É exatamente isso o que me suscita dúvidas, e que não consigo nunca compreender de modo satisfatório: o que seja ciência. Estaríamos em condições de definí-la? Quem de nós falará primeiro? ... Talvez, Teodoro, pelo meu amor às discussões, eu esteja sendo inoportuno, pelo 17

Vale a pena confrontar as passagens de Teeteto, 144a-d com República, VII, 535a-536b. 18 O Teeteto faz parte de um bloco de diálogos tardios cuja ordem deve ser: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Filósofo (não escrito), seguidos de Filebo, Timeu, Crizia e Leis. Fica claro, pelo contexto dos diálogos que imediatamente o seguem, que, a partir do Teeteto, ciência, sabedoria e filosofia devem ser entendidas como intercambiáveis. Eis o que diz Migliori a propósito da relação entre aqueles diálogos: “De fato, no Teeteto o Parmênides é citado explicitamente, na medida em que se fala do encontro entre um Sócrates muito jovem e um Parmênides bastante velho. Ademais, no final do diálogo marca-se um encontro para o dia seguinte, para continuar a discussão. O Sofista inicia exatamente com Teodoro e Teeteto que vão ao encontro acompanhados de um Estrangeiro eleata; no curso da discussão, encontramos uma segunda referência ao diálogo entre Sócrates e Parmênides (217c). Depois, no Sofista, os presentes decidem por definir o sofista, o político e o filósofo. O primeiro tema é tratado imediatamente no mesmo diálogo, o segundo encontra lugar no Político, obra na qual temos uma explícita referência ao Sofista (284b), enquanto o terceiro resulta não desenvolvido. Este sistema de referências entre diálogos é um fato único na produção platônica e não pode ser considerado casual: a conexão e a sucessão lógica Parmênides, Teeteto, Sofista, Político parecem certas; ademais, o modo como Platão assinala tal conexão nos deve fazer pensar que esta sucessão de diálogos tenha uma sua relevância para os fins da compreensão dos próprios textos”. Migliori, M. Dialettica e Verità. Commentario filosofico al “Parmenide” di Platone. Milano: Vita e Pensiero, 2000, p. 54.


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desejo que tenho de empenhar-nos num diálogo capaz de fazer-nos amigos e íntimos uns dos outros? Teodoro: Tu não podes ser inoportuno, Sócrates. Porém, pede a esses jovens que te respondam alguma coisa porque não estou acostumado a este tipo de conversação e, além disso, não tenho nem mesmo idade para aprender. A eles, no entanto, tudo isso convém, dado que podem fazer progressos muito maiores. Por isso, prosegue como começaste, não largue Teeteto, interroga-o. 19

Certo que Teodoro não pode senão declinar o convite de Sócrates, deixando para Teeteto a tarefa de sustentar uma conversação de caráter teorético, cujo tema era central para Platão. Teodoro de Cirene é descrito no próprio diálogo como um discípulo de Protágoras que abandonou cedo o terreno dos “argumentos puros e sem provas” da filosofia para dedicar-se exclusivamente às matemáticas, um expert em geometria cujo conhecimento filosófico – se existente – é, no curso de todo o diálogo, solenemente ignorado por Platão 20 . A figura de Teodoro exerce um perfeito contraponto dramatúrgico na comparação com o Teeteto do diálogo. Ambos, tal como postos em cena por Platão, se dedicam ao quadrivium das matemáticas composto por geometria, astronomia, harmonia, cálculo. Teeteto, no entanto, dispõe de todas as condições para tornar-se ciente das potencialidades filosóficas de tais conhecimentos; o que não se pode dizer de Teodoro, cuja pouquíssima disposição em tomar parte ativa no diálogo, reflete suas graves limitações no terreno da dialética. Mas reforça o aspecto não simplesmente conjectural de nossa interpretação a summa matemática do livro VII da República 21 . Nela, Platão fornece informações fundamentais acerca 19

Teeteto, 146a-b. Teeteto, 165a. Essa constatação torna ainda mais peculiar a insistência do personagem Sócrates em examinar Teodoro, que, a um certo ponto, vê-se brevemente obrigado a ceder aos apelos do amigo (Teeteto, 169a). Ver também Teeteto, 143d-e; 145a-b; 162a-c. 21 República, VII, 522c-535a. Sobre a leitura cruzada dos diálogos de Platão, cf. Migliori, M. Tra polifonia e puzzle: Esempi di rilettura del “gioco” filosofico di 20


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não apenas dos diversos usos aos quais a matemática se presta, mas também, em certa medida, do perfil dos homens que a cultivam, das suas naturezas e modos de proceder: referências textuais explícitas que jogam luz preciosa sobre os matemáticos do Teeteto. Ao analisar o papel da matemática no interior do curriculum formativo do filósofo, Platão sublinha que o seu conhecimento e sua prática ocorrem em níveis diversos, poucos, no entanto, verdadeiramente úteis à filosofia ou adequados à dialética, ciência a qual antecede 22 . Tomada em si mesma, a matemática não chega a ter caráter filosófico. A porosidade da fronteira que estabelece os limites entre ela e a filosofia depende de uma sua inflexão fortemente determinada pelo vértice do percurso que leva ao conhecimento do Bem 23 . Apenas um certo uso pode fazer dela conhecimento efetivamente protréptico ao exercício dialético, um uso que lhe confere um extraordinário grau de intencionalidade filosófica, inexistente se apreciada na condição de ciência autônoma e, por assim dizer, separada. Não por outro motivo, para servir à filosofia, a matemática precisa ser praticada exclusivamente “... em virtude da sua capacidade de arrastar de todas as formas para a essência da realidade” 24 . Ou ainda, “... para facilitar a conversão da alma do mundo do vir-a-ser àquele da verdade e do ser. 25 Não escapa a Platão, portanto, uma espécie de hierarquia ontológica da ciência matemática, assim como não lhe escapa o fato de que a maior parte dos homens dedicados a ela julgaria ridículo e inútil um seu uso declaradamente preparatório 26 . Teeteto e Teodoro personificam no diálogo planos diferentes daquela hierarquia, representando, cada um a seu modo, aspectos Platone. La struttura del dialogo platonico. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2000, p. 201-206. 22 República, VII, 533b-e e 526b. Sobre as matemáticas como ciências que propiciam o desenvolvimento do poder de pensamento abstrato, cf. Shorey, P. What Plato Said. Chicago: The University of Chicago Press, 1968, p. 236. 23 República, VII, 531d-533c e 534c. 24 República, VII, 523a. 25 República, VII, 525c. 26 República, VII, 527d-e.


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qualitativamente diversos de uma disciplina que risca constantemente de não ser utilizada por ninguém de modo correto, isto é, em virtude da sua capacidade de arrastar o Homem para a essência da realidade 27 . Aqueles que, como Teodoro, se detém nas disciplinas potencialmente propedêuticas carecem de uma visão real do ser. São como que sonâmbulos, diz Platão, incapazes de oferecer as razões dos princípios que utilizam e dos quais partem 28 : Sócrates: De fato, não penses que aqueles que adquiriram estas competências sejam dialéticos. 29

Teeteto, diversamente disso, é a mais elevada personificação do jovem condenado à dialética: protótipo do indivíduo inclinado à filosofia, encarnação de todos os requisitos físicos, intelectuais e morais, cujo destino Platão, num jogo dramático-anacrônico, fez seu mestre profetizar: “se chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria célebre”. 30 Teeteto domina já os complexos meandros das artes preparatórias, mas é preciso que o aspecto eminentemente propedêutico dos conhecimentos científicos que acumulou venha à sua consciência como tal, isto é, que aprenda a valer-se dele não como um fim em si mesmo, mas como um meio cuja utilidade depende ainda de algo que lhe é superior, e reconhecer que, tal como descrita na República, a matemática é instrumento necessário, mas não suficiente para se fazer filosofia. Que parece predisposto a ocupar-se destas coisas, ele mesmo o declara: Teeteto: Mas saiba, Sócrates, que frequentemente procurei enfrentar este problema [definir conceitos], de ouvidos atentos às tuas perguntas, quando me falavam delas. Entretanto, não consigo persuadir-me de poder responder alguma coisa de forma adequada, nem de poder ouvir um outro 27

República, VII, 523a. República, VII, 533c. 29 República, VII, 531e. 30 Teeteto, 142d. 28


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Dennys Garcia Xavier responder, como incitas a fazer; e, por outro lado, não sei nem mesmo renunciar a ocupar-me delas.

No contexto dramático do diálogo, portanto, a maiêutica – com todas as contradições lógicas e históricas que traz na sua analogia com a arte da parteira – configura-se no primeiro passo propriamente filosófico a ser dado por Teeteto, elemento basilar do instrumental platônico, cuja finalidade é sublinhada por nosso filósofo ao final do diálogo, numa espécie de reafirmação do seu caráter positivo na busca pela verdade: Sócrates: Se então depois dessas coisas voltares a conceber, Teeteto, e se conceberes de fato, ficarás cheio dos melhores frutos, por esta investigação. Se, no entanto, continuares vazio, serás menos inoportuno aos que te acompanham, porque mais dócil e tolerante, por não pensares saber o que não sabes. Pois apenas isso pode fazer a minha arte, nada mais. Nem sei o que conhecem os outros, esses grandes e admiráveis homens de hoje e de outrora. Esta arte de partejar eu e minha mãe a recebemos de um deus: ela, para as mulheres, eu para os jovens bem nascidos e para os belos. 31

Tal como descrita no Teeteto a maiêutica “socrática” ilustra de forma emblemática o modo como Platão joga com o escrito, em função da mensagem que quer deixar aos seus leitores. Exatamente para comunicar filosofia, Platão, ao contrário do que diz Diógenes Laércio, jamais abandonou a arte de compôr dramas 32 . Alguns de seus diálogos deixam entrever que, no limite, o contato com Sócrates o fez jogar ao fogo apenas e tão-somente um certo tipo de composição artística, de perfil eminentemente trágico, imediatamente substituído por uma de perfil filosófico. A escolha por Sócrates como protagonista da maior parte de seus diálogos homenageia o inspirador dessa conversão estética. Devemos também isso a Sócrates: o fato de ter-nos revelado um filósofo com notável domínio das técnicas de composição dramática. Não fosse aquela 31

Teeteto, 210c-d. Diogene Laerzio, Vite e dottrine dei più celebri filosofi. Milano: Bompiani, 2005, 3-5.

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conversão, talvez encontrássemos Platão ao lado de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo; não de Sócrates e Aristóteles 33 . Referências I. Textos-base de Aristóteles e Platão ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ed. Globo, 1993. PLATONE. Tutti gli Scritti (Giovanni Reale, Org.). Milano: Bompiani, 2005. ______. Platonis Opera, ed. J. Burnet. Oxford, 1892-1906 (com várias edições). II. Bibliografia secundária BRANDWOOD, L. Stylometry and chronology. In: KRAUT, R. The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. CHAPPELL, Timothy. Reading Plato’s Theaetetus. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2004. LUTOSLAWSKI, W. Origin and grown of Plato´s Logic. London: Longman´s, 1905. MELE, Alfonso. Il Teeteto platonico tra storia e finzione letteraria, in Il Teeteto di Platone: strutture e problematiche. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2002, p. 246-255. MIGLIORI, M. Dialettica e Verità. Commentario filosofico al “Parmenide” di Platone. Milano: Vita e Pensiero, 2000. ______. La struttura polifonica del Fedro. I Quaderni Bombesi, Rivista Semestrale di Filosofia e Scienze Umane della Scuola di Alta Formazione Filosofica “B. Spaventa”, I.

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Não são os finais aporéticos de alguns dos diálogos a marca de um irrequietum cor que caracteriza o doloroso final de uma peça trágica? Em Platão, no entanto, seu efeito catártico não tem por objetivo a purificação das emoções, mas a purificação dos falsos conhecimentos que repousam impassíveis sobre o que as coisas são de fato. Cf. Aristóteles, Poética. VI, 27.


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______. Tra polifonia e puzzle: Esempi di rilettura del “gioco” filosofico di Platone. La struttura del dialogo platonico. A cura di G. Casertano. Napoli: Loffredo Editore, 2000. NAILS, Debra. The people of Plato: A Prosopography of Plato and Other Socratics. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2002. SEDLEY, David. The Midwife of Platonism. Text and Subtext in Plato’s Theaetetus. Oxford: Oxford University Pres, 2004. SHOREY, P. What Plato Said. Chicago: The University of Chicago Press, 1968.


A poesia grega como paidéia * Jovelina Maria Ramos de Souza ** Resumo: O presente artigo analisará a importância da Ilíada e da Odisséia no processo de preservação da memória, da cultura e do passado grego, destacando sua influência nas esferas da política, da arte, da ciência e da filosofia. Nossa análise se dá a partir da influência da tradição poética no processo constitutivo da cultura grega, tomando como base o papel educativo e normativo que a poesia sempre exerceu entre os gregos. No tratamento dessa questão mostraremos que, de Homero e Hesíodo a Platão, a cultura grega mostra-se completamente impregnada pelos efeitos da poesia na formação ética, política e pedagógica das crianças e dos jovens. Palavras-chave: Homero, Ilíada, Odisséia, Paidéia, Poesia Abstract: In this article the Iliad and Odyssey will be analyzed as a process of preservation of the memory, the culture and the Grecian past, pointing out their influence in the fields of politics, art, science and philosophy. Our analyses begin from the influence of the poetry tradition in the process and construction of the Grecian culture, having as base the regulatory and education role of poetry that the Greeks has exercised among themselves. To deal with this issue, it will be shown how, from Homer and Hesiod to Plato, the Grecian culture reveals the effects of poetry in the education and building of children in the fields of Ethic and Politics. Keywords: Homer, Iliad, Odyssey, Paideia, Poetry

Pensar a poesia como fato de cultura significa remontar à história da civilização grega. Missão árdua, dada a possibilidade de se recair em generalizações precipitadas, ou mesmo, na pretensão de se refazer o percurso histórico que inicia com Homero e Hesíodo até chegar a Platão. Entre esses, diversas gerações de poetas-filósofos e de filósofos-poetas ajudaram a constituir este fenômeno cultural estruturador da mentalidade antiga, a poesia, que, aos poucos vai *

O presente artigo reproduz parte de “A poesia como fato de cultura”, primeiro capítulo de A dimensão ético-política da crítica platônica à mímesis na Politéia, dissertação de Mestrado defendida na UFMG, em 30/01/2003. ** Professora Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Pará. Doutoranda do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia UFRN-UFPE-UFPB. E-mail: jovelinaramos@uol.com.br. Artigo recebido em 27.09.2007, aprovado em 19.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 195-213.


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sendo confrontada com outras modalidades de pensamento racional tais como a história, as matemáticas e a filosofia e que, finalmente, encontra em Platão um de seus maiores censores. Não há dúvida que se trata de um tema que aceita múltiplas abordagens, por isso é preciso deixar claro que o nosso enfoque acerca dessa questão será de modo a destacar a dimensão éticopolítica da poesia enquanto instância cultural educadora dos cidadãos. É preciso esclarecer, também, que o alcance formativo contido como dýnamis da poesia torna muito difícil sintetizar tudo o que ela atinge, dada a multiplicidade de aspectos que ela envolve, dentre eles, o ético, o político, o teológico, o social, o estético, o cultural e o pedagógico, em razão de a mesma resgatar e transmitir os costumes, as tradições, os valores, as crenças, os rituais, os jogos, as táticas de guerra, a educação, a administração social, política e militar da cidade, assim como as leis e as condutas pública e privada. Através da fabricação e da recriação poéticas, Homero empreende a fusão de dois fundos de cultura, o micênico e o arcaico, que estarão na base da civilização helênica 1 . Destacaremos, a partir da Ilíada e da Odisséia, alguns elementos que nos permitirão mostrar a densidade daquilo que geralmente designamos simplesmente por “poesia”. Poesia, pelo menos na Antigüidade grega, é um fenômeno estruturador da cultura, ou melhor, poesia coincide com cultura, no sentido de educação e civilização. Os textos de Homero são relatos que instituem práticas e determinam modos de viver e pensar que constituirão o núcleo daquilo que chamaremos “cultura grega”. 1

Homero é considerado o educador da Grécia, em virtude de seus cantos conterem a exigência de uma noção fundamental da mentalidade grega, a de paidéia, que fomenta o desejo do poeta em formar e educar. Através da Ilíada e da Odisséia, os gregos, literalmente, foram alfabetizados, assim como aprenderam a preservar e a difundir seus costumes e tradições. A esse respeito consultar: Hadot, Pierre. O que é filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999; Havelock, Eric. Prefácio à Platão. Trad. Enid Abreu Dobránzsky. São Paulo: Papirus, 1996; Jaeger, Werner Wilhelm. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989; Marrou, henri-irenée, História da educação na antiguidade. Trad. Mário Leônidas Casanova. São Paulo: EPU, 1990; Romilly, Jacqueline. Fundamentos de Literatura Grega. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.


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Escolhemos aspectos que evidenciam temas e questões éticopolíticos que perpassam a obra daquele poeta que será um dos interlocutores privilegiados de Platão. Nossa escolha prepara a discussão da crítica dirigida por Platão aos poetas, no contexto de sua proposta, não menos poética, de “refabricação” da cidade através da filosofia. A despeito de tudo o que foi dito, o que importa é o reconhecimento da importância dos cantos homéricos para entendermos a formação e a fixação de uma cultura própria e exclusiva do povo grego. Inaugurando a tradição mitopoética, a Ilíada e a Odisséia são as fontes de inspiração para Hesíodo e toda uma geração de poetas e pensadores. Pela sua natureza enciclopédica, em virtude de mostrarem-se como o repositório do saber e da tradição, os cantos homéricos são o referencial para pensarmos a consciência e a identidade cultural dos gregos arcaicos. O que desejamos mesmo é destacar, para além de toda a polêmica que o tratamento dado por nós a essa questão possa suscitar, a importância que a Ilíada e a Odisséia têm por serem os mais antigos meios de acesso de que dispomos às primitivas tradições que servem de base a uma cultura que, ao se consolidar, forneceu, para todos os povos civilizados, o protótipo de vida a ser seguida nas mais variadas esferas, da política, passando pela arte, até a ciência e a filosofia. Partimos, portanto, do fato que tanto a Ilíada como a Odisséia cumprem a função de preservação, na memória, da cultura e do passado do povo grego. Tomadas por um viés didáticopedagógico, pode-se dizer que, do ponto de vista formal, ambas representam um esforço de síntese entre duas estratégias distintas de conservação dos valores tradicionais: a oral, e a escrita, o que permitiu à primeira, mais volátil, ganhar uma “solidez” de dado histórico, documento, fixando, em texto, o conhecimento do passado que agora se tornava mais resistente ao esquecimento. E de fato não se trata da simples substituição de um formato literário por outro, o mais recente assumindo o lugar do antigo e condenando-o ao desaparecimento. A literatura escrita está profundamente marcada


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pela “oral”, que a alimenta. Esse fenômeno já foi indicado, pelo menos, na produção poética de Homero (Romilly, 1984, p. 19-20). Estamos falando de um período em que, na Grécia, aos poucos, declina a narrativa oral e fixa-se a narrativa escrita, em um esforço renovado de preservação da cultura dos antepassados. A Ilíada e a Odisséia 2 representam justamente a intensificação das forças intelectuais e morais do povo grego, traduzida na mescla dessas duas formas de manter vivas suas tradições. Essas duas obras contêm uma extensa e profunda análise do mundo grego em todas as suas vertentes, das artes às ciências, da prática individual à coletiva, resgatando o cotidiano do povo de outrora para recriar o da época do aparecimento de ambas epopéias, com a intenção de preservar vivos nas mentes dos helenos feitos memoráveis atribuídos ora aos homens, ora aos deuses (Odisséia, I, 337). As epopéias homéricas valorizam a ação (práxis) e o comportamento humano tanto no seu trato individual como coletivo. Difundindo o ideal da aristocracia guerreira, os cantos épicos têm o objetivo de “manter viva a glória através do canto” (Jaeger, 1989, p. 47). Não é fortuito, afirma Jaeger, o fato de o cantor do Canto I da Odisséia chamar-se Fêmio, portador de fama, anunciador da glória (kléos), pois esta é a função primordial do poeta épico, a de celebrar as grandes ações do passado, dignas de elogio e de louvor, no intuito de reforçar, diante dos que ouvem as narrativas, a nobreza de caráter de seus personagens. Os personagens de Homero são concebidos para serem exemplares, para serem tomados como referência, cumprindo com isso um papel social. Por meio deles podemos ler, por exemplo, o elogio da honra, como o ideal mais alto a ser cumprido por quem aspira a ter uma alma nobre e guerreira. Ao narrar as ações gloriosas de seus heróis, Homero se utiliza do mito como o modelo para seus personagens e ouvintes regrarem suas próprias ações. Se 2

A edição de referência para a Ilíada e a Odisséia são as publicadas pela GFFlammarion, traduzidas respectivamente por Eugène Lassere, 2000 e C. Garcia, 2001. As traduções adotadas, tanto para a Ilíada como para a Odisséia são as de Carlos Alberto Nunes, Tecnoprint, s/d.


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observarmos os diversos mitos que entram no discurso dos atores postos em cena por Homero, encontramos sempre um personagem dirigindo-se ao outro com a intenção de “aconselhar, advertir, admoestar, exortar e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa” (Jaeger, 1989, p. 47). Isso tudo coloca o mito como uma instância predominantemente normativa, deixando de ser pura obra de ficção, fantasia, passando a ter o poder de exprimir a universalidade de ações rigorosamente escolhidas para ter um papel representativo na educação (paideía) dos gregos. Através do mito narrado e recriado poeticamente, Homero confere à ação do herói um estatuto “idealizado”, apontando-o como modelo de ação a ser seguido na vida cotidiana. Jaeger ressalta que, nas epopéias, a bravura individual (aristéia) de um herói contém sempre um elemento ético. Não é em vão que o autor da Ilíada interrompe, ao longo de sua narrativa, os fatos relativos à guerra de Tróia para destacar as façanhas individuais de seus heróis mais célebres, como Aquiles, eixo condutor das ações da Ilíada, modelo do heroísmo guerreiro difundido pelas epopéias: a do herói que prefere morrer com glória (kléos) a fugir de seu próprio destino (moíra) (IX, 410-416). O texto da obra conteria então essa estratégia, o que permite lê-la como tendo a finalidade de cultivar entre os gregos o ideal de kalokagathía, a virtude por excelência do guerreiro, ao mesmo tempo, belo e bom. Defendendo esse ideal, os poetas deixam de ser meros contadores dos feitos heróicos, tornando-se intérpretes dos valores de tradição a que suas obras servem de veículo. Em outras palavras, tornam-se os educadores hegemônicos do povo grego. Sem dúvida, a ação dos heróis não é ainda tomada no sentido da proaíresis aristotélica, não é “escolha deliberada” (Ética a Nicômaco, 1111b5-10) e regulada segundo um princípio baseado no lógos. As ações praticadas estão impregnadas de uma profunda heteronomia devido ao fato de poderem sofrer a interferência dos deuses, dependendo das situações. Quando os personagens de Homero encontram-se diante de uma decisão crucial, parece lícito, à mentalidade de então, que a divindade intervenha e norteie suas


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ações. É claro que isso tem suas vantagens, pois, se os heróis perdem a noção de limite e se entregam ao desvario, a desrazão (áte), como a insensatez de Agamêmnon ao roubar Briseida, a amante de Aquiles em compensação pela perda da sua, eles podem muito bem reconhecer, posteriormente, não ter agido corretamente, mas imputar não à sua vontade própria, mas à Zeus, ao daímon, à moíra ou às Erínias, o seu excesso (Ilíada, XIX, 78-274). Ao atribuir a causa de seus atos à vontade dos deuses, fica mais fácil a Agamêmnon aceitar que errou e dispor-se a receber, espontaneamente, os castigos provenientes de sua ação quando em estado de áte. Isso diminui sua responsabilidade em relação às conseqüências desastrosas, para o exército sob seu comando, dos atos que ele, individualmente cometeu. Desse ponto de vista, esses traços conferem à ética homérica um caráter ambíguo. Embora sejam os deuses que impulsionem os homens a cair em tentação e a agir insensatamente, as práticas incorretas acabam por ser punidas, ainda que, no mundo homérico, a noção de livre arbítrio não exista. Ao reconhecerem suas faltas como desígnios divinos, os personagens homéricos purificam-se e são reconduzidos à prática da virtude. Toda a ação do herói homérico seja na Ilíada ou na Odisséia é ordenada pelo decreto divino. Isso situa os seus personagens numa esfera para nós ambígua: ao mesmo tempo religiosa e moral. Dessa maneira, podemos compreender a fúria (áte) de Agamêmnon, ou mesmo a de Aquiles, segundo Dodds 3 , como “um estado de espírito – um obscurecimento ou confusão temporária da consciência normal” (p. 12) que não tem uma causa fisiológica ou psicológica, mas como resultado de uma inserção do divino no plano humano. Na ética homérica, “qualquer afastamento do comportamento humano normal, cujas causas não são imediatamente perceptíveis, seja pela consciência do assunto, seja pela observação de outros, é atribuído a um agente sobrenatural” (Dodds, 1988, p. 21), diríamos, externo. Este agente estranho, que desvia os homens da prática de 3

Dodds, E. R. Os gregos e o irracional. Trad. Leonor Santos B. de Carvalho. Portugal: Gradiva, 1988.


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uma ação normal, ou seja, regular, e leva-os a agir em estado de áte é sempre identificado como um daímon, um deus ou uma entidade anônima, ou mesmo a moíra, a porção atribuída a cada ser humano real ou fictício. Nesse sentido, a noção de áte não implica em uma culpabilidade autenticamente moral. O personagem reconhece o seu descontrole emocional, como se dá com Agamêmnon e Aquiles na Ilíada, mas seu comportamento para além da norma ética geral, vincula-se à vontade divina. O personagem atribui à divindade e não a si mesmo o fato de agir impulsivamente. Desse modo, sua “consciência moral” se equilibra numa faixa estreita em que ocorre a interação entre as esferas teológica e ética do pensamento humano. O entrecruzamento das dimensões religiosa e moral, que cria uma atmosfera cambiante, imprecisa para as decisões dos agentes nos permite ler em Homero o desejo de criar seus heróis com a forma mais humanizada possível. Encontramos a orientação das ações ligada à advertência sobre possíveis punições e, apesar disso, cenas marcadas por erros atribuídos à perda súbita da lucidez, logo recuperada pela aceitação da punição. Nesse aspecto, o texto de Homero parece justamente constituir essa textura que conecta, em sua particularidade, a experiência que o indivíduo tem, dos outros e de si mesmo, com suas possíveis significações maiores, mais universais, seja através do deus que intervém, seja através do herói que faz a mediação. Homero traça com a maior precisão a estrutura psicológica de seus personagens, sem perder de vista sua inserção social. Ciente de sua função como educador na Grécia de seu tempo, onde as leis escritas ainda estão sendo definidas e o código ético não está sistematizado, Homero constrói seus personagens com todo rigor. Apesar das ambigüidades de que falamos, o que não escapará a Platão, o poeta inevitavelmente propõe modelos, exemplos a serem seguidos pelos homens de sua época. A sociedade grega arcaica dependia da eficácia do exemplo e utilizava os feitos dos heróis épicos como parâmetro para mediar as ações dos homens reais. Nessa interação estabelecem-se os valores a serem admitidos na


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sociedade, como a honra, a nobreza de caráter, a bravura, e até mesmo a capacidade de se deixar guiar pelos deuses no discernimento da melhor ação a ser adotada, em combate ou na vida pessoal. Um indício da consciência homérica da importância social de sua obra se deixa ver na preocupação didática do poeta quando da construção dos personagens dentro da trama. A personalidade dos heróis de suas epopéias é composta a partir de um paradigma, o do personagem mais velho, exemplo a ser seguido em todas as situações. É o caso de Fênix, aconselhando Aquiles em Ilíada, I, 524-527, ou de Atena e Nestor, convencendo Telêmaco a seguir o exemplo de Orestes em Odisséia, I, 298 e III, 195-200; 306-316. Para Jaeger, “a evocação do exemplo dos heróis famosos e do exemplo das sagas é para o poeta parte constitutiva de toda a ética e educação aristocráticas” (1989, p. 41). Através dos exemplos dados pelos poetas, o homem grego vai moldando a sua própria personalidade e a de sua sociedade como um todo. Essa tradição da tomada paradigmática do mito como um recurso para modelar as ações do homem em seu convívio social e em atitudes individuais é intrínseca ao espírito grego e ocorre não apenas entre os poetas e prosadores, mas também em meio à filosofia. Platão é o exemplo mais fiel dessa tradição. A despeito de suas diferenças relativamente à tradição poética, seus diálogos são plenos de referências aos mitos, na tentativa de resgatar o modelo da ética guerreira e adaptá-la ao seu tempo, dada a sua necessidade de estabelecer valores éticopolíticos para a cidade. Apesar do que dissemos sobre o entrecruzamento das esferas da moral e da religião, na estrutura psicológica dos personagens homéricos parece não haver uma interdependência entre elas, ainda que o herói projete as suas faltas na figura de um deus. Dodds explica esse processo como um fator inerente à cultura grega da época, onde esses dois setores do pensamento humano tinham raízes separadas. Desse modo, a religião pode ser vista como um fato resultante das relações do homem com a natureza (phýsis) e a moral da relação do homem com seus iguais. A dependência entre


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esses dois pólos surge no momento que o homem passa a projetar no universo circundante (kósmos) e não mais nos deuses, a responsabilidade por seus atos. Em suma, quando o homem começa a castigar a culpa ao sentir vergonha de seus atos, em vista de estes não estarem de acordo com o ideal de justiça de seu grupo, passa-se a selecionar os mitos e a condicionar o conteúdo das narrativas poéticas às finalidades teóricas do pensamento reflexivo. Ao censurar o ensinamento dos poetas e a opinião das pessoas comuns, nas antigas epopéias, onde os atos injustos parecem mais vantajosos que os atos justos, Platão combate, principalmente, o fato de nessas narrativas os poetas atribuírem aos deuses, a causa de males e de infelicidades para os homens de bem, e aos homens opostos um lote (moíra) oposto. O filósofo não aceita o ideal da purgação do erro, contido na moral homérica. Para este, nem o deus pode ser responsabilizado pela prática de coisas más, nem pode ser influenciado pelos homens. Opondo-se terminantemente aos antigos rituais de libertação e purificação (katharmós) da injustiça perpetuados pelos poetas épicos, Platão defende que o homem deve responder individualmente pelos seus erros, caso contrário, a injustiça (adíkema) reinará soberanamente na cidade. Avesso à noção de intervenção psíquica que leva à purificação do erro por um ato não intencional (áte) e ao mesmo tempo atribui à divindade a responsabilidade por suas ações mentais e físicas, como Agamêmnon que, em Ilíada, IX, 17-28, considera sua áte um engano (apáte) deliberado de Zeus para que o mesmo retorne a Argos sem glória (akleés), Platão adota sua perspectiva “filosófica”, que implica em reconhecer que a ação humana é determinada por valores ético-políticos adotados por cada um. Para escapar ao impulso irracional da moral poética, que atribui ao deus a causa dos males em razão de sua inveja (phthónos) da vida dos homens e, a utilização de rituais de iniciação (teleté) para a purgação dos males advindos de uma atitude irrefletida, Platão propõe-se rever, na Politéia, as leis da cidade e o conteúdo dos poemas (II, 363e5-365a3).


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Essa questão, porém, é muito delicada e merece um tratamento específico. Interessa-nos no momento, compreender como se dá a incorporação do conglomerado cultural homérico no processo de “racionalização” do saber e da cultura grega. Dodds mostra que esse processo de apropriação do modelo homéricoarcaico de moral, na história da Grécia, amplia-se tanto que acaba por se romper, levando à dissolução gradual dos valores até então agregados no interior da obra homérica. Hecateu, Xenófanes e Heráclito e, posteriormente, Anaxágoras e Demócrito, foram alguns dos pioneiros desse rompimento com a antiga tradição poética. Criticando a narrativa dos poetas tanto por seu teor ético-político como pela não confiabilidade de suas fontes, esses críticos apontam para uma nova racionalidade discursiva, na qual se busca um novo tipo de “saber” que se contrapõe às crenças arcaicas, incluindo aquelas relativas à sorte e a tentação divina (Dodds, 1988, p. 26). Contra a ética dos costumes (nómos) dos antigos poetas gregos, surge a ética da lei da natureza (phýsis) dos primeiros filósofos gregos. Os filósofos retomam e modernizam a noção de areté dada por Homero na Ilíada e na Odisséia, de modo a preencher as novas exigências éticas e políticas de suas épocas. Platão é a principal expressão dessa tendência do pensamento grego. Seus diálogos, sobretudo os da juventude, são perpassados pela preocupação em definir a virtude (areté), de modo a distanciar esse conceito de sua determinação homérica: a da virtude como a nobreza associada a uma posição social. Entre os poetas, a virtude tem a finalidade pragmática de distinguir os valores da nobreza aristocrática, como o êxito na guerra e o talento político, da prática dos cidadãos comuns. Tomada à luz da filosofia, a areté transforma-se em um “conjunto de ações e de comportamentos humanos que asseguram o pleno desenvolvimento das capacidades do indivíduo, e, sobretudo, o cumprimento de seu papel de cidadão” 4 . Se, antes, a virtude designava o valor de nascimento, ela passa a compreender a ação do homem nela mesma e na sua relação 4

Canto-Sperber, Monique. Introduction à Ménon. In: Platon. Ménon. Trad. Monique Canto-Sperber. Paris: GF Flammarion, 1991, p. 39.


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com o outro. Em meio aos sofistas, os atuais educadores da cidade, a virtude legitima-se como prática social, conservando a dimensão política que tinha desde os tempos homéricos, mas sendo pensada agora no contexto da pólis democrática: objeto de nova paidéia, a virtude sofística inclui saber fazer e usar discursos, saber argumentar e persuadir, saber gerir os bens próprios e públicos. Contudo é em Sócrates e, posteriormente, Platão que esta noção atinge o seu refinamento conceitual. Contrário à moralidade convencional de sua época, herança do ensinamento dos poetas e dos sofistas, Sócrates, segundo o testemunho de Platão, no Fédon 5 , criticava. esta virtude demótica e política (demotikèn kaì politikèn aretèn) à qual se dá o nome de temperança (sophrosýnen) e de justiça (dikaiosýnen) e que produz, com seu uso e seu exercício, uma prática (éthous) desprovida tanto de filosofia (philosophías) como de inteligência (noû) (82a8-b3).

Sócrates, como Platão, rejeita a definição de virtude dos poetas e dos sofistas, realizando a fusão entre a antiga excelência social e política dos guerreiros, legitimada pela tradição, e o ideal de sabedoria e conformidade ao bem, defendido pelo filósofo. Segundo os novos padrões, a virtude é definida, na Politéia, como um bem próprio da alma (psykhé), cuja função é dirigir, deliberar e todas as atividades (práxais) semelhantes (II, 353d3-4). Este bem é o saber (sophía), “o princípio capaz de assegurar o uso correto de um objeto qualquer e de garantir que uma justa direção seja exercida em toda circunstância” (Canto-Sperber, 1991, p. 43). Ou então, um de seus equivalentes, o conhecimento (epistéme), a razão (prhónesis), a inteligência (noús), o que dá à virtude o estatuto de um conhecimento moral. Ao identificar a virtude com a razão, Platão distancia-se do legado cultural deixado por Homero, pelo fato de considerá-lo teoricamente insuficiente para atender às exigências de um saber, a filosofia, que, na Politéia, está se constituindo, mostrando a sua utilidade e o seu diferencial em relação à poesia, a sofística, a 5

Edição utilizada: Platon. Phédon. Trad. Monique Dixsaut. Paris: GF-Flammarion, 1991.


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retórica e a política, um saber que é sempre buscado através da pesquisa dialética. Embora seus diálogos contenham freqüentes alusões às narrativas dos poetas, estas são tomadas como recursos para ele elaborar as definições do método que vem sendo moldado ao longo de seus diálogos. Platão utiliza as metáforas e os mitos para construir seu pensamento ético-filosófico. Na elaboração desse projeto, o filósofo dissocia a opinião (dóxa) do conhecimento (epistéme), recusando-se a reconhecer na produção do vidente, assim como do poeta, um modo de conhecimento. Isso “não porque as considerasse necessariamente infundadas, mas porque os seus fundamentos não podiam ser apresentados” (Dodds, 1988, p. 234). Nem o vidente, nem o poeta, nem, posteriormente, os sofistas, possuem o devido conhecimento do objeto tratado. Isto limita sua capacidade de discernimento, assim como esvazia suas pretensões de continuarem governando a cidade. Contra as limitações do saber poético, Platão propõe um regramento racional e ético de todo o conglomerado cultural herdado de Homero e dos demais poetas e pensadores gregos, que é submetido aos princípios de sua filosofia. Dodds vê, na tentativa de Platão em adaptar o saber de seus antepassados a seu projeto de construção de uma cidade centrada em valores ético-políticos, uma tentativa de salvaguardar a unidade da crença e da cultura gregas. Essa preocupação em retomar o conglomerado cultural a partir de uma perspectiva racionalista é realmente muito ambiciosa, tendo que ser capaz de refletir sobre inúmeras contradições e incongruências, a tensão entre o pensado e o vivido atravessa toda a obra platônica, mas sempre na tentativa de infundir um no outro. A Politéia 6 propõe para a cidade histórica um paradigma reflexivo, uma cidade construída com palavras (V, 450c6-d3); mas o paradigma é desenvolvido a partir da dita tensão, que aparece, por exemplo, entre o que é de natureza filosófica e o que não é (VI, 486a1-2). A natureza filosófica mostra-se predisposta a alcançar a totalidade e a 6

Edição de referência: Platon. La République. Trad. Georges Leroux. Paris: GFFlammarion, 2002, Tradução adotada em língua portuguesa: Platão. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.


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universalidade do divino e do humano, enquanto a natureza nãofilosófica não se mostra suficientemente justa (dikaía) ou doce (hémeros) para tomar parte na verdadeira filosofia (VI, 486b3-12). Partindo do pressuposto que a obra de Homero contém em seu bojo, uma coleção variada de costumes, convenções, prescrições e procedimentos comuns aos gregos de sua época, passamos a investigar a importância de sua poesia para a constituição das leis da sociedade grega. As duas obras de Homero contêm, em seus relatos, o constante entrelaçamento entre o cenário político e militar da guerra e os rituais, as crenças, os costumes, as tradições dos gregos em suas relações familiares. De um lado, a ação dos heróis no campo de batalha, do outro, o lado humano de seus heróis. Nesse sentido, a Ilíada e a Odisséia, representam no período de seu surgimento a instância privilegiada para o povo grego compreender melhor o seu próprio mundo. Reunindo a tradição oral e a escrita em um mesmo espaço, o da epopéia, Homero pensa a vida do cidadão grego, a partir das noções de virtude (areté) e justiça (díke). Por areté, Homero compreende, tanto as qualidades dos reis-guerreiros como “as qualidades que tornam um indivíduo capaz de fazer aquilo que seu papel exige” 7 . Díke, por seu lado, compreende tanto a ação como a ordem que envolve essa ação. Macintyre mostra que, em Homero, a noção de díke se encontra sempre associada à de thémis, o que é ordenado como regra. A diferença entre as duas provém do fato de a primeira ser uma ordem que vem de fora, enquanto a segunda é uma ordem que se estabelece dentro do indivíduo. As duas, no entanto, precisam estar conciliadas para que uma ação possa ser considerada justa. A estrutura sócio-psicológica dos personagens homéricos é inteiramente marcada pela interação entre essas diversas ordens, de modo a permitir que o herói tenha a devida compreensão e discernimento acerca de sua ação e de todo o processo que envolve o seu agir, pois somente dessa maneira este se tornará consciente de seu ato e justo (díkaios). 7

MacIntyre, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Trad. Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991, p. 26.


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O herói homérico sabe da função que deve cumprir, no entanto, pode “agir de um modo não adequado à preservação da díke” (Macintyre, 1991, p. 26), sem com isso deixar de ser um agathós, como Agamêmnon ao desonrar Aquiles no Canto I da Ilíada. Havelock mostra que a contenda entre o atrida e o pelida teria sido evitada se não houvesse na época convenções estritas que regulavam a partilha dos espólios (Havelock, 1996, p. 84-85). Agamêmnon reconhece seu erro, mas exige o cumprimento das leis que regulam a partilha, onde o direito de escolha é um privilegio dos homens superiores, daí o tom arrogante com que se dirige a Aquiles: Mas em pessoa hei de o prêmio ir buscar à tua tenda, a Briseida de belas faces, que, alfim, possas ver por esse ato de força, quanto te sou superior (I, 184-186).

Mas Aquiles não se intimida com as ameaças de Agamêmnon mostrando que a atitude do filho de Atreu não é a mais apropriada pois, contrária às leis e aos preceitos estabelecidos por Zeus (I, 225-244). Nestor intervém tentando apaziguar a ira dos dois contendores. Dirigindo-se a Aquiles, o ancião retoma as leis da cidade e mostra-lhe que a atitude de Agamêmnon, por mais desregrada que possa parecer, é legítima, em partindo de um rei, pois o cetro que ele ostenta “constitui o símbolo exterior de sua autoridade” (Havelock, 1996, p. 86). Diz o ancião, Nem tu, filho de Peleus, presumas que podes, assim, antepor-te Ao soberano, porque sempre toca por sorte mais honras Ao rei que o cetro detém, a quem Zeus conferiu glória imensa. Se és, em verdade, robusto, e uma deusa por mãe te enaltece, Agamêmnon é bem mais poderoso, porque sobre muitos domina (I, 277281).

Mas o bom-senso de Nestor não esfria a contenda. Diante dessa situação incontrolável, Tétis, mãe de Aquiles, dirige-se a Zeus pedindo-lhe sua interseção a favor do filho. Zeus consente em apoiála fazendo um leve aceno com a cabeça, este sinal resgata uma convenção antiga entre os gregos, é a prova de consentimento de um


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superior ao pedido público de ajuda de um inferior (I, 518-527). Outro exemplo da concentração do poder nas mãos do rei encontramos na descrição do vidente Calcas a respeito da condição política de Agamêmnon, representado aqui como o guerreiro que manda nos Aqueus todos e a quem os argivos de grado obedecem. Contra os pequenos, se acaso se agasta, é o rei sempre excessivo. Pois, muito embora refreie os impulsos da cólera um dia, Continuamente revolve no peito o rancor contido (I, 78-82).

Havelock vê nesta descrição, o exemplo tanto de um código de lei pública (nómos) como de um padrão de comportamento privado (éthos). Diante de seu oponente, o rei decide se se torna mais condescendente ou se dá vazão a toda sua fúria como faz Agamêmnon. Embora Havelock valorize essa cena pelo fato de a mesma conter o princípio sócio-político da psicologia do rei, concentrada na figura de Agamêmnon, contudo não encontra nessa ação, “nenhuma manifestação de um juízo moral” (Havelock, 1996, p. 87). Calcas, quando revela a Aquiles, em assembléia, a causa do conflito e o remédio para sua solução (I, 53-100), não está defendendo a fúria do filho de Atreu, apenas a descreve naquilo que ela tem de mais singular e de mais grandioso, pois é justamente essa a sua função, a de contar os feitos nobres e gloriosos, sem inferir nenhum juízo de valor com relação ao comportamento do personagem, no caso, Agamêmnon. Havelock considera estes exemplos como amostras dos inúmeros enunciados semelhantes que encontramos ao longo da Ilíada e da Odisséia, acerca do modelo de comportamento político a ser seguido pela sociedade grega. Em muitas dessas passagens, as leis políticas estabelecidas para o grupo confrontam-se com a organização religiosa sob a qual todos viviam. A passagem supracitada da Ilíada, I, 101-246, envolvendo o conflito entre Agamêmnon e Aquiles, ilustra bem esse confronto entre o poder político e o poder religioso da época, porém desde a abertura do Canto I, deparamo-nos com o embate entre essas duas forças. Homero inicia a Ilíada profetizando que “a desgraça


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aguarda os gregos por causa de uma disputa entre seus líderes” (Havelock, 1996, p. 88). A partir daí, o poeta passa a explicar o motivo do conflito, iniciado quando Agamêmnon ultraja Crises, sacerdote de Apolo, que se vinga do rei enviando uma peste a seu exército (I, 8-52). No relato de Calcas temos, de um lado, o representante do poder político e militar, do outro, a estrutura religiosa grega e sua tradição de longa data. A questão de fundo colocada por Homero, na voz do vidente, parece ser perpassada pela preocupação em avaliar se de fato, na Grécia onde está escrevendo, a dimensão religiosa ainda tem maior valor que a ação política. Ao transgredir as regras seculares da religião grega, Agamêmnon consolida sua condição de superioridade política e militar diante de seus comandados. Diante desse impasse, Homero, o autor, resolve punir seu personagem por ter descumprido um ordenamento divino. Nessa ação, o poeta se mostra consciente não apenas de seu papel como educador, mas da dificuldade em quebrar com as antigas tradições religiosas, sem que isso tenha um efeito direto sobre ele próprio. Homero pode até duvidar da eficácia do código religioso de comportamento na Grécia atual, mas não pode infringir os procedimentos habituais dessa sociedade. A presença de Calcas em cena, descrevendo os cerimoniais religiosos que envolvem tanto as oferendas como os sacrifícios, assim como a benevolência e o agravo dos deuses reforça esse elo e, ao mesmo tempo mostra a contradição entre o agir religioso e o agir político. Sutilmente, Homero lembra a seus leitores, o tempo todo, da importância do cumprimento das regras e dos costumes estabelecidos pela tradição. A intervenção de Calcas parece colocar o leitor diante da questão se “os costumes prescritos pela religião são ao mesmo tempo os da organização política” (Havelock, 1996, p. 93). O discurso do vidente, na assembléia convocada por Aquiles, marca sua condição dentro da sociedade grega. Seu discurso manifesta o conhecimento tanto da lei pública (nómos) como do costume (éthos) corrente nessa sociedade. Adaptado entre essas duas ordens, Calcas, como o próprio Homero, expressa em seu


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discurso o respeito pelos procedimentos socialmente padronizados entre os gregos. O ancião demonstra o perfeito domínio das práticas características de uma cultura predominantemente oral, e, através de seus relatos, Homero coloca-nos diante de várias dessas convenções, como a do acordo formal existente entre o orador e seu interpelante, no caso Calcas e Aquiles, sob a forma do juramento falado. Quando Calcas cede ao apelo de Aquiles e dispõe-se a revelar-lhe o motivo da cólera de Apolo, incita o herói a prestar um juramento, o de defendê-lo sem reservas da ira de Agamêmnon, seja através da força de suas palavras ou de seus braços (I, 75-79). Nessa passagem, Homero mostra a força representativa de tal hábito entre os gregos, assim como reforça o valor do pacto que envolve o princípio de lealdade de ambas as partes, tornando mais profundos os laços de confiança e amizade entre os envolvidos. Havelock acredita que na fórmula do juramento oral encontram-se reunidas às noções de nómos e de éthos (Havelock, 1996, p. 95). Aquiles celebra esse pacto prometendo cumprir o acordo de proteger o vidente, apesar de reconhecer a superioridade social de Agamêmnon (I, 86-91). Consciente das regras sociais hierárquicas de seu grupo, o herói não se intimida pela ascendência nobre do rei. Aquiles se concentra no fato de que Agamêmnon provocou a ira de Apolo por subverter a ordem sob a qual estão estruturadas as relações entre os deuses e os homens. O ato de Agamêmnon, portanto, deve ser punido, pois este não apenas violou a regra estabelecida por sua sociedade (díke), como infringiu a honra (timé) de Crises e, posteriormente a do próprio Aquiles. E segundo os preceitos da sociedade arcaica descrita por Homero, “se eu sou desonrado, como Aquiles por Agamêmnon, devo buscar reparação” (Macintyre, 1991, p. 26). Para reparar sua honra, a excelência individual (areté) do guerreiro nobre e bom, o herói tem a liberdade de transgredir o éthos de sua comunidade. Buscar os indícios da lei pública e dos costumes na Grécia antiga é encontrar na Ilíada e na Odisséia o lugar apropriado para a descrição não apenas dos “costumes religiosos, mas também sociais, fixados e conservados no poema épico” (Havelock, 1996, p. 95). Os


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versos de Homero contêm os padrões de comportamento cultivados pelos gregos arcaicos. Seus personagens transitam o tempo todo entre as esferas do público, do político, do religioso, do doméstico, suas narrativas são constituídas de modo a representar não só a ação excepcional do herói, mas também as atividades rotineiras do cidadão grego. Enquanto veículo de conservação do padrão grego de comportamento, os poemas homéricos descrevem os rituais dessa sociedade em todos os seus detalhes. Nesse sentido, o Livro I da Ilíada mostra-se como um guia não apenas para a compreensão da vida social e individual, mas também para o justo entendimento acerca dos deveres políticos e religiosos da Grécia representada nas epopéias homéricas. Abordando essas práticas em suas narrativas, Homero conserva no espírito grego o respeito por esses procedimentos, tornando-se “ao mesmo tempo um contador de histórias e também um enciclopedista” (Havelock, 1996, p. 101). Centrados nessa perspectiva, fechamos este ciclo de nossa discussão concluindo que, a poesia de Homero, numa sociedade préalfabetizada como a Grécia, onde surgem a Ilíada e a Odisséia, tornou-se “um veiculo de experiência conservada, de ensinamento moral e de memória histórica” (Havelock, 1996, p. 64). Homero como nenhum outro poeta de sua época mostra-se um profundo conhecedor do complexo sistema ético e político vigente no período arcaico. Resultante desse processo de formação do espírito grego, a poesia de Homero mostra-se como uma fonte inesgotável de valores ético-políticos a serem assimilados e incorporados à prática cotidiana dessa sociedade. Dada a função utilitarista da poesia homérica, a sua capacidade de conservar e transmitir os preceitos e a educação prescritos pela tradição, a mesma assemelha-se a “uma espécie de enciclopédia de ética, política, história e tecnologia que os cidadãos ativos eram obrigados a aprender como a essência do seu preparo educacional” (Havelock, 1996, p. 44). Pensada como uma espécie de enciclopédia social, a poesia homérica mostra-se como o receptáculo do “conhecimento e da sabedoria que a cultura helênica havia acumulado e armazenado” (Havelock, 1996, p. 64).


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Nesse sentido, ler Homero, é tornar-se inteirado de todo o processo sócio-cultural e ético-político de sua época.

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A razão em Feuerbach como base da unidade do homem e da natureza Eduardo Ferreira Chagas *

Resumo: Feuerbach trata a natureza, na sua primeira obra, A Razão Una, Universal e Infinita, desde a perspectiva do panteísmo, no qual ele vê a superação do dualismo entre o espírito e a natureza, ou seja, a reconciliação entre eles, que vale simultaneamente como negação da subjetividade individual, abstrata, e da personalidade como determinação de Deus. Trata-se aqui de um direcionamento de Feuerbach para a natureza, em clara oposição à teologia cristã-monoteísta, que manifesta um abandono completo à natureza (ao “não sagrado”, ao “não divino”). Enquanto a teologia cristã está em oposição à natureza e, com isto, também à natureza originária do homem, porque Deus é para ela um ser “exclusivo”, “extramundano” ou “estranho ao mundo”, trata Feuerbach a natureza, a matéria, panteisticamente, em unidade com Deus ou com o espírito. Palavras-chave: A natureza no panteísmo, A natureza no jovem Feuerbach, Feuerbach Abstract: Feuerbach treats nature on his first work On the Infinitude, Unity, and Universality of Reason from the view point of pantheism which is seen by him as a source for superseding the dualism of spirit and nature, i.e., the reconciliation between the two which is worth simultaneously as the negation of individual abstract subjectivity and personality as determined by God. One deals here with a directive from Feuerbach towards a clear opposition to the Christian monotheist theology that displays a complete abandonment to nature (to the “un-sacred”, “undivine”). While Christian theology in its proposition that God is an “exclusive extramundane being” opposes nature, and by so doing man’s original nature as well, Feuerbach treats nature as matter which is pantheistically tied to God and spirit. Keywords: Feuerbach, Nature in pantheism, Nature in the young Feuerbach

Ocupar-me-ei, neste artigo, com um dos escritos juvenis de Feuerbach, dos anos de 1820 a 1837, particularmente a sua Dissertation, intitulada A Razão Una, Universal e Infinita (De ratione una, universali, infinita ou Über die eine, allgemeine, *

Professor do Departamento de Filosofia da UFC. E-mail: ef.chagas@uol.com.br. Artigo recebido em 02.09.2007 e aprovado em 17.12.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 215-232.


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unendliche Vernunft) (1828), que evidencia já a sua inclinação para a filosofia da natureza. Antes que me refira aos pontos centrais da Dissertation de Feuerbach, é necessário primeiro mencionar a recepção de Feuerbach a Hegel durante seus estudos universitários e sua mudança para a Faculdade de Filosofia durante os anos de 1823. Embora as expectativas, com as quais Feuerbach foi, em 1823, para Heidelberg, tenham sido frustradas, submete-se ele, indubitavelmente, nessa cidade, à influência indireta de Hegel. Desse tempo de estudo em Heidelberg, ele manteve, sob a impressão do racionalismo teológico de Heinrich Gottlob Paulus, uma aversion contra o subjetivismo religioso (religiöse Subjektivimus), a religião do sentimento; mais tarde, depois do encontro com o filósofo da religião da direita hegeliana, Karl Daub, aceita dele o uso do método especulativo (uma version do sistema hegeliano) para a reconciliação (Versöhnung) entre teologia (Theologie) e filosofia especulativa (spekulative Philosophie), isto é, para a superação da oposição entre fé (Glauben) e razão (Vernunft). Gradualmente distancia-se Feuerbach em geral do estudo da teologia e volta-se para a filosofia de Hegel. Em Berlim, tinha ele primeiro estudado teologia com Schleiermacher e, já em 1824, freqüentava as preleções filosóficas de Hegel e as experimentava como grande libertação do estreitamento de seus estudos de teologia, razão pela qual ele trocou em 1825 a faculdade de teologia pela de filosofia. Nesse ano, ele escreve ao seu irmão o seguinte: “Eu troquei a teologia pela filosofia. Extra philosophiam null salus [fora da filosofia não há salvação].’’ E ao seu pai ele se esclarece assim: “Eu renunciei a teologia, porém a renunciei não maligno ou levianamente; não porque ela não me agrade, mas porque ela não me liberta; porque ela não me dá o que requero, o que preciso. Meu espírito se acha agora não nos limites do país sagrado; meu sentido está num mundo mais amplo; ... eu quero a natureza, frente a qual a profundidade dos teólogos recua; eu quero carregar em meu coração o homem inteiro, que é objeto não para o teólogo, mas apenas para o filósofo. Alegre-se comigo, que eu tenha começado em mim uma nova vida, um novo tempo; alegre-se que eu tenha escapado da sociedade dos teólogos e tenha espíritos, como Aristóteles, Spinoza,


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Kant e Hegel, como meus amigos.’’ 1 A teologia não podia dar a Feuerbach mais nada, pois ela não é suficiente às exigências empíricas da realidade concreta. “Palestina’’, diz ele, “é a mim muito estreita; eu quero, eu devo prosseguir no mundo, e este somente o filósofo traz em seus ombros’’ 2 , porque apenas ele, e não o teólogo, trata dos fundamentos da natureza e do homem. A admiração de Feuerbach por Hegel se manifesta como segue: “Ele era aquele, [através do qual] eu pude tomar consciência de mim mesmo e do mundo. Ele era aquele, o qual eu nomeava o meu segundo pai, como Berlim, naquela época, minha cidade natalespiritual. Ele era o único homem, o qual me fez sentir e experimentar o que é um professor; o único, no qual eu achei o sentido para esta palavra antes tão vazia; por conseguinte, a ele eu me sinto, em profundo agradecimento, ligado. ... Meu professor era, portanto, Hegel, eu seu aluno; eu não nego, pelo contrário, isto eu reconheço ainda hoje com agradecimento e alegria.’’ 3 Como resultado desse encontro, Feuerbach troca, como expresso, a teologia pela filosofia, e agora trata-se para ele não mais daquela pronunciada reconciliação entre teologia e filosofia, mas da libertação de toda a essência teológica. Assim, esclarece ele: “Eu sabia o que eu devia e queria: não teologia, mas filosofia! Não disparatar e vaguear, mas aprender! Não crer, mas pensar.’’ 4 No ano de 1826, Feuerbach tinha terminado seu estudo sobre Hegel. Naquela época, valia a ele a Lógica de Hegel como “corpus’’ e método da filosofia. Desse estudo filosófico, que expressa e confirma a passagem de Feuerbach da teologia para a filosofia, e, simultaneamente, anuncia também sua dúvida acerca da filosofia hegeliana, resulta em 1828 a sua Dissertation, cuja tese fundamental Peter Cornehl resume da seguinte maneira: “revelar a 1

Feuerbach, L. Fragmente zur Charakteristik meines philosophischen curriculum vitae. Org. por Wener Schuffenhauer, Berlin: GW 10, 1971, p. 154-55. 2 Feuerbach, L. Ausgewählte Briefe,. Org. por W. Bolin e F. Jodl, Stuttgart: SW XII/XIII, 1964, p. 243. 3 Feuerbach, L. Verhältnis zu Hegel. Org. por W. Bolin e F. Jodl, Stuttgart: SW IV, 1959, p. 417. 4 Id. Ibid., p. 417.


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absolutização do indivíduo no espírito da época filosófica e teológica e, frente a isto, defender o conhecimento da ‘filosofia especulatativa’ da unidade, universalidade e infinitude da razão - tal como o título da obra já a formula: ‘De ratione una, universali, infinita’.’’ 5 O ponto de partida, que serve de orientação à totalidade desse escrito, é, com outras palavras, a oposição entre o singular (Einzelne) (a individualidade, a sensibilidade) e o universal (Allgemeine) (a generalidade, a razão): foi atribuído ao universal, isto é, à razão infinita, o predomínio, pois ela é a substância (Substanz) de todos os singulares; o individual-singular é limitado, já que entre ele e um outro ser há sempre uma fronteira. Trata-se aqui para Feuerbach particularmente do problema da relação entre a universalidade e a individualidade, problema esse que Peter Cornehl assim apresenta: “Ou o indivíduo é a verdade e substância (e, com isto, negation) da razão universal ou é, ao contrário, a razão universal a verdade e substância (e, com isto, negation) do indivíduo.’’ 6 O desenvolvimento e a solução desta problemática constituem o objetivo da Dissertation de Feuerbach, que consiste em três partes: na primeira (§1-7), Feuerbach trata da natureza do pensamento (die Natur des Denkens), do pensamento puro (das reine Denken) ou da razão (die Vernunft); na segunda parte (§8-14), ele tem como tema a consciência-de-si (das Selbstbewusstsein) ou o pensamento, que pensa a si mesmo sem referência ao conhecimento, e, finalmente, na última parte, §15-23, ele aborda o pensamento (das Denken) e o conhecimento (die Erkenntis) como unidade, na qual se encontra a razão infinita. A Dissertation de Feuerbach parte do seguinte pressuposto: a razão (ratio, ou seja, cogitatio cognoscens) é una, universal e infinita (ratio enim communis sui universalis est), quer dizer, ela é a essentia absoluta dos indivíduos, o gênero, a unidade do gênero humano (genus humanum). Segundo Feuerbach, a filosofia vulgar 5

Cornehl, P., Feuerbach und die naturphilosophie. Zur Genese der Anthropologie und Religionskritik des jungem Feuerbach. In: Neue Zeitschriftt für systematische Theologie und Religionsphilophie. Berlim, 1969, v. 11, p. 42. 6 Id. Ibid., p. 43.


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declara, em oposição, por exemplo, ao seu pensamento, que “há certos limites estabelecidos para a razão humana, os quais ninguém, que tenha sua mente em sã juízo, deve transgredir’’, por isso ela “se esforça arduamente em convencer que a verdade não pode ser alcançada pela mente humana e que todos aqueles que se atrevem, por razões de investigação, a ultrapassar os limites prescritos à procura pela verdade, perdem o seu tempo num esforço inútil.’’ 7 Na filosofia antiga, já se achavam determinadas designações para a limitação da razão, especificadas como sentimento (Empfindung), percepção sensível (sinnliche Wahrnehmung), opinião (doxa), nas quais se fundamentam certezas não verdadeiras, puramente subjetivas. Ante a esse saber subjetivo e individual, punha a antiga filosofia o logos, o qual ela nomeava como o critério do saber verdadeiro, universal ou divino. Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, assim como filósofos modernos, por exemplo, Giordano Bruno, Espinosa, Malebranche ou Hegel, falam da filosofia como uma ciência universal ou divina e tomam a infinitude como télos do conhecimento, já que eles renunciam, desde o princípio, a toda finitude. É, precisamente, nesse sentido que Feuerbach, em sua Dissertation, polemiza contra os “críticos da razão’’, os quais fazem valer como princípio e conteúdo da razão apenas o que se poderia conceber como convicção individual, opinião particular ou ponto de vista privado. Diante de tal fato, Feuerbach objeta que a razão não é mera capacidade individual ou qualidade particular do indivíduo, como que um instrumento para poder compreender objetos infinitos; pelo contrário, ela é em si e infinitamente a substância comum, universal, de todos os indivíduos. Outras atividades ou forças do espírito, como as potências, as qualidades ou capacidades dos indivíduos isolados, são meramente determinações da própria razão. Em oposição à idéia segundo a qual a razão é finita e individual, demonstra Feuerbach, já na primeira parte de sua Dissertation, que ela pertence a todo homem e, como tal, não pode ser extinta, porque os homens, na medida em que são seres pensantes e inseparáveis do 7

Feuerbach, L. Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Org. por Werner Schuffenhauer, Berlin: GW 1, 2000, p. 4-5.


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ato de pensar, não podem consistir fora da natureza da razão. Esta natureza da razão (ou do pensar) é, de fato, “a forma do comum e do universal. Quando penso, já deixo de ser indivíduo, e pensar é, por conseguinte, o mesmo que ser universal.’’ 8 Todos os homens coincidem nisso, a saber, que eles pensam, e o pensamento (a razão absoluta) não é particular, mas, como expressei, geral, universal. A razão constitui, então, a humanidade do homem, o seu gênero; ela é uma razão comum aos homens. Feuerbach opõe à essência do individual, que se limita ao sentimento, à sensibilidade, o pensamento, que significa, para ele, a negação, o fim, de toda particularidade. Com isto, deixa transparecer em seu pensamento uma indicação para o dualismo entre a universalidade (a infinitude, a razão) e a individualidade (a finitude, a natureza), o qual ele entende como oposição entre o racional e o sensível. O que fundamenta a essência da sensibilidade (Sinnlichkeit), da percepção sensível (sinnliche Wahrnehmung), é, segundo ele, a singularidade pura, a imediatidade, já que o homem não pode transmitir oralmente suas emoções a outro. Na verdade, pode-se dizer a alguém: “‘Minha cabeça dói’. ‘Este ou aquele objeto tem um sabor doce’ etc.’’ 9 ; mas isto quer dizer apenas que se pode descrever, de facto, a um outro os objetos que estimulam a sensibilidade, mas não o sentimento, a sensação mesma, pois o sabor mesmo que o homem sente é inefável. As percepções sensíveis dos objetos não são, pois, iguais e comuns, mas se diferenciam de homem para homem e, por isso, são como tais, nem dizíveis, nem comunicáveis. Logo que um homem tenta comunicar suas condições sensíveis a outro, perde a sensibilidade sua autonomia e se torna abstrata ou se transforma em conceito, como os sentimentos interiores e espirituais, que se referem a objetos inteligíveis, a saber, Deus, leis morais, convicções etc. A base da comunicabilidade (Kommunikalilität), que possibilita um entendimento dessas condições sensíveis do homem, encontra-se, pois, não na sensibilidade, mas apenas no pensamento. Já que a sensibilidade está caracterizada, particularmente, pela 8 9

Id. Ibid., p. 8-9. Id. Ibid., p. 11-12.


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incomunicabilidade ou restringibilidade, o homem é nela e por meio dela puramente indivíduo, isto é, remetido para si, fundado e fechado em si mesmo. Com isto, ele não consegue superar as limitações de sua singularidade, ou seja, de seu isolamento, superação esta que constitui, para Feuerbach, o pressuposto para a universalidade. Em contraposição à sua concepção madura, o jovem Feuerbach situa a absoluta e completa comunicabilidade do homem única e exclusivamente no pensamento, ou seja, na razão como natureza interna e verdadeira do homem; não da natureza objetiva, real, nem do amor, nem da religião, mas, pelo contrário, apenas da natureza do pensar provém a superação do isolamento, da singularidade do homem, e aqui se mostra e se realiza a mediação entre os homens, isto é, a universalidade, na qual todos os homens, apesar de suas diferenças individuais e qualidades particulares, são iguais, ou melhor, semelhantes. Já que o pensamento universal é a essência do homem e nele se manifesta a unidade do eu com o tu, do eu com os outros, com muitos outros infinitamente, ou seja, a unidade real do gênero humano, pode nele ser superada toda particularidade (ou exclusividade) que ofereça resistência (Widerstand) à união (ou associação) do homem singular com seu próximo, com outros homens. Quando o homem sente, diz Feuerbach, ele está isolado, mas quando ele pensa, ele “ultrapassa’’ seu eu, é universal. Por isso, o jovem Feuerbach nega, nessa época, a frase cartesiana “cogito, ergo sum’’, para concebê-la e formulá-la da seguinte maneira: “cogitans, ipse sum genus humanum, nonsingularis homo’’ (eu penso, logo eu sou todos os homens e não um homem singular). 10 No pensamento, o homem não é este ou aquele, nenhum singular, isto é, não um homem, mas pura e simplesmente, sem limite e exceção, o homem, pensado não fora dos outros. Lá ele é todos os homens, um com todos, precisamente porque o pensamento (a razão) é a unidade de todos. Feuerbach concebe, como há pouco mostrado, a comunidade (Gemeinschaft), a comunicabilidade (Kommunikabilität) e o gênero humano (menschliche Gattung) somente na forma do pensamento 10

Id. Ibid., p. 30-31.


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universal, no qual todo isolamento do indíviduo ou toda particularidade individual desaparece. Como ser sensível-naturalcorporal, o homem não pode efetivar plenamente a comunidade verdadeira e a unidade perfeita com o outro, já que ele, nesse âmbito sensível, acha-se isolado e limitado. É evidente que se manifesta na sensibilidade, na harmonia espiritual ou na “comunicação’’ de sentimentos, como, por exemplo, no amor, na amizade, uma ligação entre duas ou mais pessoas; mas o eu e o outro são aqui diferenciáveis um do outro, como que pessoas separadas segundo o sexo, a idade, o caráter etc. Aqui, o jovem Feuerbach concebe, pois, a sensibilidade como o âmbito no qual os indivíduos se encontram, sim, natural e corporalmente, mas nesse encontro sua particularidade ou seu isolamento não pode ser superado. Nesse período de sua juventude, Feuerbach vê, em todas as relações sensíveis, portanto, apenas limitações, que impedem o homem de alcançar uma unidade concreta com outros homens. Correspondendo a isto, escreve HansJürg Braun: “Homem e mulher não podem chegar pela sua sensibilidade à realização da essência do gênero. ... Apenas quando homem e mulher se encontram também no pensamento como seres pensantes, realizam eles a comunidade e se tornam um.’’ 11 Enquanto o amor não vale como uma unidade perfeita, plenamente constituída, mas apenas como “unidade sensível”, emocionalsentimental, que não expressa nenhuma universalidade, constitui o pensamento universal, para o jovem Feuerbach, a unidade perfeita, absoluta, que realiza o gênero humano. Na sua nomeada Dissertation, ele chama a atenção para o pensamento segundo o qual o homem é, simultaneamente, ele mesmo e o outro, não um outro determinado para si, mas um outro em geral. Assim, o pensamento universal é, na Dissertation, o fundamento e a revelação do gênero humano; ele acolhe, pois, em si todos os homens; é o vínculo do homem com o homem. Embora o homem se concentre no interior de seu pensamento, por assim dizer como uma unidade não fora de si, mas 11

Braun, H.-J. L. Feuerbachs Lehre vom Menschen, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971, p. 51.


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sempre consigo mesmo, ele se abre simultaneamente, na medida em que ele está colocado em conexão com seu gênero. Pensando, ele é, afirma Feuerbach, todos os homens, ligado e em consonância com todos. Feuerbach liga a existência do homem com a razão (com a essência comum) para provar, com isto, o vínculo desde o princípio entre a comunidade e a racionalidade. Da infinitude do pensamento e da relação humana que disso resulta, segue-se que o homem está também ligado mediante a ordem do Estado, da política e do direito, com outros homens. Apesar disso, é necessário acentuar que o princípio fundamental do direito reza, no entanto, o seguinte: “O que é meu não é teu’’, e vice-versa; quer dizer, o Direito une e separa simultaneamente os homens. Feuerbach não concebe o direito acrítico e ingenuamente, pois nele vale o homem apenas como indivíduo, como universalidade abstrata, não mesmo universal como em pensamento. Enquanto a unidade do homem, nesta relação jurídica, não está absolutamente fundada, porque o homem está determinado nela apenas como indivíduo, isto é, de forma puramente finita, encontra-se, então, no pensamento universal e apenas nele a unidade essencial e absoluta do um e dos muitos, unidade na qual se manifesta a essência do homem, de seu gênero. A afirmação de que o indivíduo é, em stricto sensu, um, não se dá conta de que tal unidade não representa uma unidade real, pois o indivíduo é um entre muitos outros indivíduos e não pode, como tal, de modo nenhum, ser concebido em comum com os outros. Ao contrário disso, o verdadeiro um é em si um, pois seu conceito contém nada mais do que este um mesmo. Este um é um universal não em sua relação para com outros, mas segundo a sua própria essência. Em certo sentido, há também nos animais uma unidade particular, já que todo animal (seja macho ou fêmea) contém germinalmente em si a potência para produzir um novo animal da mesma espécie, e, assim, pode um e o mesmo animal ser igualmente um outro ou muitos outros. Já que o animal (das Tier), porém, não pensa, não há nele a substância racional necessária para uni-lo ao gênero. Assim, sua unidade não persiste, não prossegue, e se dispersa em diferentes indivíduos. Desta maneira, o animal é em si nada mais do que um ser singular, isolado, separado


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substancialmente dos outros, sem uma relação real com sua origem. O exemplo que Feuerbach cita é o cão (der Hund) que, como totalidade, é do mesmo modo gênero, isto é, o animal como totalidade no cão; mas o cão, como um animal particular, não pode ser a essência dos demais animais, senão, fora dele, não poderia ser nenhum outro animal e ele mesmo seria esses outros animais. Não há a realidade do gênero nos animais em si; ela se manifesta, pois, apenas na reprodução, porque os animais não têm para si o gênero como objeto, isto é, como objeto da consciência. A diferença do homem para o animal consiste nisto, a saber, que ao homem seu gênero é objeto; por isso tem ele uma essência interna, espiritual, que falta ao animal. Em oposição ao animal, o homem, através da suprassunção de seu próprio ser sensível, se eleva ao pensamento, no qual ele é “em geral ... [todos] os homens. Isto é, todo singular compreende e abarca em si os outros ou todos os homens, já que sabe que é homem. Pois, se eu sei que eu sou um homem, então eu estou, certamente, consciente de mim mesmo. Na verdade, sei que sou este singular – pois ambos não se deixam separar –, e assim eu contenho simultaneamente, na consciência de mim mesmo, também os outros de mim.” 12 Assim, o homem não é um singular qualquer, como o é um ser da natureza, uma coisa natural determinada, que não conhece a si ou não sabe nada de si. O saber de si mesmo, como o do outro, é, então, o mesmo, e nesse saber consiste a unidade de si e do outro. Se o homem não contivesse simultaneamente, em seu pensamento, todos os homens, ele não seria, segundo Feuerbach, homem, mas um ser vivo qualquer, como um animal ou uma planta, que se apresentaria isoladamente em sua função puramente vital, biológica, sem ralação universal. Isto porque a natureza está submetida às sensações e também não pensa, tem o gênero nela nenhuma existência. Não há, por exemplo, a planta como gênero, mas apenas como ser disperso, isto é, como uma planta singular entre muitas outras; na planta, há apenas vida, crescimento, florescimento e alimento. Para ser gênero, requer, em princípio, unidade, indiferencialidade de si, e, por isso, 12

Feuerbach, L., Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Op. cit., p. 23.


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ele não pode se dissolver no individual e no múltiplo. Enquanto falta o gênero na natureza, no mundo animal e vegetal, estão todos os homens pelo pensamento unidos numa unidade. Pensando, o homem nem é um determinado este ou aquele, nem um ser próprio, particular, mas pura e simplesmente o gênero humano, o universal. Aqui já anuncia Feuerbach a tese principal de seu próximo escrito Pensamentos sobre a Morte e a Imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit) (1830): no pensamento, e do mesmo modo na morte do individual, se manifestam o gênero e a absoluta igualdade de todos os homens. Além desse pensamento universal (da razão infinita), como expressão do gênero humano, Feuerbach fala ainda de outro tipo de pensamento, o pensamento limitado, abstrato (das abstrakte Denken), que se refere unicamente a si, que é consciente apenas de si mesmo. Na segunda parte da Dissertation (§ 8-14), ele faz, precisamente, uma crítica a esse tipo de pensamento, entendido como autoconsciência (Selbstbewusstsein), isto é, aquele pensamento que pensa apenas a si mesmo e não se estende ao conhecimento dos objetos. Este pensamento, como autoconsciência, referido a si, que pensa a si e é recolhido em si mesmo, é o pensamento puro, sem conhecimento do objeto, sem concretude; isto é, tal pensamento, que opera em si, por si e para si ou em simples unidade consigo mesmo, é pensável sem objeto. Como unidade indeterminada, o pensamento abstrato (ou a autoconsciência) é apenas pura forma de si mesmo, sem atributos ou qualidades, sem relação para a diversidade e heterogeneidade dos objetos, e, por isso, é ele, enquanto tal, individualidade carente de conteúdo. A autoconsciência ou o pensamento abstrato, que não tem nenhuma determinidade, é, não obstante, segundo sua forma, infinito. Como vem o pensamento finito, porém, que pensa a si mesmo (a autoconsciência), para a infinitude? Feuerbach esclarece tal passagem da seguinte maneira: na medida em que a autoconsciência renuncia ao conhecimento dos objetos e está separada de toda determinidade, abrange ela em si mesma o infinito; como forma, ela é sem medida e sem limite e, por isso, pode abranger em si mesma coisas variadas, diversas e opostas. Nessa diversidade das coisas, no


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entanto, que a autoconsciência abarca, permanece ela para si mesma e, simultaneamente, ilimitada, em concordância consigo e idêntica apenas a si mesma. Feuerbach menciona que, “se a consciência se tornasse também diversa com a diversidade das coisas, ela não poderia ser mais consciente delas. É, assim, necessário que ela se mantenha imóvel na íntegra unidade consigo. Precisamente, nessa unidade, que é ela mesma, conecta ela as coisas, que ela contém.’’ 13 Trata-se aqui, no entanto, apenas de uma unidade formal entre a autoconsciência e os objetos, já que a autoconsciência fica fora de toda e qualquer matéria finita e não pode, por consegüinte, conter nenhum outro objeto, a não ser a si mesma. Abstraída de todo conteúdo e separada de toda determinidade, a autoconsciência põese como infinita, como fundamento exclusivo da universalidade. Disso resulta necessariamente uma inversão: em vez de se conceber a ratio una, universali und infinita (a universalidade da razão mesma) como a fonte, a essência e a condição do indivíduo, tornouse o indivíduo (ou a autoconsciência) a substância da razão, o critério da verdade ou da falsidade ou, como na sofística, “a medida de todas as coisas’’, ou seja, o princípio subjetivo da concepção da totalidade do mundo. A frase de Protágoras do “homem como medida’’ (“der Mensch als.Maß’’) vale a Feuerbach, de acordo com seu conteúdo, como princípio inverdadeiro, porque o indivíduo per ser (em e para si) é limitado, como tal incapaz de corresponder, em seu ser e em seu conhecer, à verdade, à universalidade. A afirmação do homo como mensura expressa apenas o homem singular e empírico (homo singularis i.e. individuum), que foi pensado, no entanto, como universal e infinito. O homo mensura é, portanto, apenas o ponto de vista da singularidade, da subjetividade tornada absoluta, isto é, da absolutização do indivíduo, não correspondente à substância da razão, que diz respeito ao gênero humano. Essas concepções, que tratam a razão como finita e o indivíduo como infinito, fundamentam os príncipios da “filosofia da subjetividade’’, que representa para Feuerbach o espírito do século XIX. Feuerbach aceita, nesse contexto, a crítica de Hegel à 13

Id. Ibid., p. 43.


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consciência abstrata, isto é, ao subjetivismo, pois Hegel também se propõe, por meio da razão universal, negar o sujeito singular. Feuerbach interpreta, todavia, desde o princípio, a razão de forma spinoziana: como a substância (Substanz), pensada no sentido de Spinoza, é apenas uma, embora ela seja, simultaneamente, tudo, e como Deus é uno, universal e não particular, como uma coisa qualquer na abundância do seres singulares, assim deve ser também a razão necessariamente una. Sua essência é a unidade, e seu conceito exclui de si completamente, tal como a substância de Spinoza, dois ou mais seres. A razão (Vernunft) é necessariamente a mesma, igual, em si mesma una e infinita. Tudo deve ter seu fundamento (Begründung) no interior da razão. Com isto, a verdade (Wahrheit) não pode ser concebida fora da razão. A verdade não consiste, no entanto, na unidade do pensamento e da coisa (não na “adequatio mentis cum re’’), mas na unidade do sujeito pensante (do sujeito que sabe) e do pensado (do objeto pensado). Feuerbach diferencia, contudo, a autoconsciência do conhecimento (ou da intuição cognitiva): a autoconsciência é pensamento, porém é aquele pensamento abstrato e ilimitado, que só se refere a si mesmo, relacionado unicamente consigo e sem determinidade; ao contrário, o conhecimento, como um modo (Modus) determinado do pensamento, é limitado, na medida em que ele se estende aos objetos finitos, que são pura e simplesmente objetos pensados, objetos puros do pensamento. Como pode, contudo, a autoconsciência vir ao conhecimento das coisas, se ela está referida apenas a si mesma? A resposta de Feuerbach reza assim: “Pode-se, com razão, qualificar a consciência de gênero, porque, enquanto relação consigo mesma, é ela uma relação primigênita [originária], de tal forma que só por ela se pode produzir o conhecimento, e que ela se mantém tanto no pensamento de si mesma como também no conhecimento.’’ 14 Feuerbach esclarece que essa autoconsciência como conceito genérico, isto é, como totalidade indeterminada, é nada mais do que forma, conceito abstrato, livre de toda a Konkretion e determinação, já que seu conteúdo passa despercebido. Segundo a forma, o gênero 14

Id. Ibid., p. 53.


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da autoconsciência é infinito; mas na matéria, isto é, na natureza, na qual o indivíduo, o singular, existe, o gênero é negado e desintegrado na diversidade dos indivíduos. Resumindo, pode-se, então, argumentar: se há na natureza o gênero como abstração da autoconsciência, lá deixa de existir o ser singular, particular, e viceversa. Trata-se, aqui, correspondendo à separação, na natureza, entre o indivíduo (o concreto) e o gênero (o abstrato), de uma diferença entre a matéria e a forma, entre o ser e a universalidade vazia (a autoconsciência). Na medida em que a razão suprassume em si a separação desses momentos diferentes, livra-se ela das cadeias, dos limites tanto da autoconsciência, como também da natureza. Para isto é necessário realizar a passagem da autoconsciência para a razão infinita. A autoconsciência é apenas consciente de si e se estende unicamente para si mesma, isto é, em distância para com o outro, e, com isto, torna-se fronteira e limite de si mesma. Ela contém, na verdade, a forma universal do pensamento, mas apenas em relação a si mesma, isto é, como forma geral da singularidade, na qual já há uma dualidade, a saber, o pensamento em si, de um lado, e a determinidade (como limitação), de outro. A forma do pensamento, que é igual em todos os homens, não vem, pois, da autoconsciência e não tem nela o seu lugar, mas na razão mesma, na razão objetiva. Esta é em si totalidade, universalidade, a natureza de todos os objetos e contém, por conseguinte, a unidade do conhecimento (do objeto pensado) e do pensamento (do sujeito cognoscente), simultaneamnete os momentos ativos e passivos, os momentos da forma e da matéria. Com isto, a razão não pode, portanto, ser reduzida ao individual, ao singular. Como já mencionado, serve de base à Dissertation de Feuerbach uma finalidade dupla: revelar a aparência da subjetividade e, simultanemanete, estabelecer o domínio da razão (Ration). Do até aqui exposto, torna-se claro que não é para se entender a razão (Vernunft) de forma finita e individual, como uma qualidade particular, mas, pelo contrário, como universal, comum e una. A última parte (§15-23) desse escrito ocupa-se, por fim, com o esclarecimento acerca da infinitude da razão (Unendlichkeit der Vernunft). Com isto, quer Feuerbach mostrar que a essência do


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homem é universal, racional. Assim afirma ele: “se ... a razão não fosse una e universal, nem poderíamos, em absoluto, sair de nós mesmos para fora em direção a um outro, nem poderíamos nos compreender mutualmente, nem quereríamos ou poderíamos comunicar nossos pensamentos aos outros.’’ 15 Já que a razão significa, portanto, essencialmente universalidade (Allgemeinheit), infinitude (Unendlichkeit), travam os homens, através dela, relações uns com outros e chegam, assim, a sua absoluta unidade, na qual os homens singulares e isolados estão, não apenas segundo o conceito, mas realmente superados e negados. Na medida em que o homem pensa, está ele, como dito, não mais isolado, segregado dos outros, mas, pelo contrário, aberto e em Kommunikation com os outros. Aquelas uniões na forma do amor, da amizade etc., são apenas associações particulares, imperfeitas e finitas, pois nelas não foi realmente superada a condição natural da separabilidade, da divisibilidade entre os homens. Por isso, somente no ato do pensamento, no qual o eu e o tu não estão opostos um ao outro, pode ser alcançado, segundo o jovem Feuerbach, a infinita, a absoluta e a plena unidade realizada entre os homens; pois o homem é homem apenas porque ele é um ser espiritual. O pensamento é, precisamente, a atividade que constitui a causa e a finalidade do espírito, e, com isto, o espírito não é anterior à sua atividade, porque ele separado dela nada é. Partindo desse fundamento, a vontade (der Wille) não é, para o jovem Feuerbach, uma atividade ou um ato originário do espírito, porque ela, na verdade, provém do pensamento. Vontade, querer, requer determinação para pensar, por isso a vontade não tem nenhuma primazia ante o pensamento. No fundo, o ato da vontade, do querer, é também um pensar, mas apenas um pensamento, na medida em que este pertence ao indivíduo e está inteiramente ligado com este. Uma tal vontade, um tal querer, no entanto, que não se refere ao universal, e sim ao individual, é apenas uma atividade do pensamento sob a condição da diferença, da oposição e do limite; ao passo que o pensamento universal é uma atividade, que permanece 15

Id. Ibid., p. 109


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completamente livre do individual, sem diferença e oposição, por isso, ele é a essência absoluta do homem. O que foi dito sobre a vontade (o querer) vale também para a natureza (Natur). A concepção de natureza do jovem Feuerbach está aqui inteiramente no sentido de Hegel, em concordância com seu espírito, segundo o qual a natureza foi pensada como a idéia na forma de um outro ser. Na Ciência da Lógica (Wissencschaft der Logik) afirma Hegel que a natureza é um algo que é, que existe; mas “algo é o que é só em seu limite.’’ Assim, “algo existe por sua vez pelo seu limite. Na medida em que algo é o que limita, foi ele, sem dúvida, reduzido a ser ele mesmo limitado; mas seu limite, enquanto é um limitar do outro nele, é, por sua vez, apenas o ser do algo, ... o ser em si do algo’’. 16 De maneira semelhante a Hegel, para quem a natureza descansa no limite, diz Feuerbach: “Mas o limite de uma verdadeira denominação é a particularidade [a propriedade], a natureza, que é enraizada na coisa mesma, que a determina. Deste modo, as qualidades da água são os limites da mesma, e se sair fora destas, a água deixa de ser água; por conseguinte, o limite é também aquilo pelo qual algo se diferencia e se separa de uma outra coisa.’’ “Pois, finito é, em geral, aquilo que está contido numa comunidade, a qual, posta por cima do finito compreendido, é o ponto de referência deste, ou, com outras palavras, o que simplesmente consiste numa certa espécie.’’ 17 Para o jovem Feuerbach, a natureza, o finito, é apenas possível no interior da razão universal, pois esta compreende todas as determinações finitas. A razão é, para ele, não o individual, o singular, mas o infinito, o universal, por isso tudo pertence a ela. Ela é, simultaneamente, a causa e o fim do pensar e do ser, um universal; por conseguinte, nada fora dela existe. Apenas a razão é universal; a natureza como âmbito da diferenciabilidade dos objetos, da sensibilidade, está limitada ao individual, ao sensível. Desta maneira, a natureza não tem para o jovem Feuerbach 16

Hegel, G. W. F. Wissenschaft der Logik. Org. por F. Hogemann e W. Jaeschke, Hauptwerke. Hamburg: Hauptwerke, v. 3, 1999, p. 114-15. 17 Feuerbach, L. Über die eine, allgemeine, unendliche Vernunft. Op. cit., p. 11517.


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nenhuma primazia perante o pensamento, porque ela, tal como a vontade, é dependente da razão. A natureza real não é o ser completo, realizado e infinito, pois em si mesma ela é a contradição, já que ela não chega, em geral, a nenhuma verdadeira unidade, a nenhum gênero. Por outro lado, se a razão não tivesse a natureza contida em sua essência, não seria ela nenhuma razão universal. Com isto, a verdadeira essência da natureza não é a natureza mesma, mas a razão que se expressa e se afirma nela (na natureza). A pretensão, que o jovem Feuerbach formula em sua Dissertation, consiste, enfim, nisso, a saber, que a razão deve ser a forma universal de contemplação das coisas, dos objetos, ou seja, a absoluta Repräsentation dos elementos da exterioridade, da natureza. Embora Feurbach acentue expressamente, em seu escrito dissertativo, sua afinidade teórica, seu parentesco espiritual com Hegel, sua Rezeption de Hegel é uma produção e apropriação livre e autônoma das idéias hegelianas. Para Hegel, a universalidade do espírito se realiza na sua processualidade ou, melhor expresso, na suprassunção (Aufhebung) das individualidades particulares e isoladas. Em oposição à Interpertation de Feuerbach, porém, a universalidade do espírito em Hegel significa não o gênero humano, que se realiza na atividade do pensamento e obtém, no sentido de uma relação humana, a unidade do eu e do tu. O espírito em si e para si manifesta-se em Hegel, particularmente, na plenitude das formas da história mundial. Com outras palavras: a história é a forma própria de aparição do espírito, como que uma imagem deste manifestada no mundo. Neste sentido, não se trata para ele, de modo nenhum, da valorização da razão para o genus humanum, como meio da comunicabilidade entre os homens ou como mediação da comunidade humana, como no jovem Feuerbach, para quem o gênero humano se realiza no pensamento como superação da singularidade, do individual, da individualidade. De acordo com a concepção de Feuerbach, a tarefa da filosofia consiste na manifestação, ou seja, na secularização da unidade entre homem e natureza na razão universal. A filosofia trabalha, como ele verifica, desde há muitos séculos em seu aprimoramento; mas ela se insere


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sempre apenas numa particularidade ou num determinado conceito: seja a determinidade ou o existente (Dasein) mesmo, seja a religião, a natureza ou o eu etc., e, com isto, ela deixa sempre um outro fora dela. Como acentua Feuerbach, deve agora, como a filosofia hegeliana já fez, ser apresentado o todo mesmo na forma de um todo. Para conceber a razão como fundamento da natureza e do gênero humano, refere-se Feuerbach ao conceito hegeliano de universalidade; mas, aqui se mostra já uma crítica a Hegel, que diz respeito às idéias puras, que, para se efetivarem na realidade, precisam ainda de uma posterior realização. Embora Feuerbach, em sua Dissertation, não tenha ainda superado a Argumentation de Hegel, encontra-se aí, como observa Reitemeyer, um novo acento, que ele põe com esta pretensão, a saber: ser um “forte contrapeso à filosofia hegeliana do espírito absoluto”. 18 Também Cornehl indiga o seguinte: “Feuerbach repete aqui [na Dissertation] – se bem que ainda bem simples – a crítica ao jovem Hegel do período de Berna, mas não ao programa do Hegel maduro, o qual ele acredita herdar”. 19 O desenvolvimento espiritual de Feuerbach segue, em sua Dissertation, para dizer com as palavras de Cornehl, um “ziguezague” permanente, na medida em que Feuerbach, por um lado, se refere a Hegel e expõe a filosofia hegeliana como apologeta, mas, por outro lado, se põe como livre, como que um “crítico” da filosofia de Hegel. Nas referências ao sistema de Hegel, está em jogo para Feurbach o conceito de razão, entendido como crítica ao subjetivismo, ao individual absolutizado, e, ao mesmo tempo, como universalidade (como fundamento substancial), que inclui em si mesma o homem e a natureza.

18

Reitemeyer, Ursula, Philosophie der Leiblichkeit. Frankfurt am Main 1988, p. 20-21. 19 Cornehl, Peter, Feuerbach e a Filosofia da Natureza. Op. cit., p. 49.


TRADUÇÃO

Sobre os diferentes métodos de traduzir *

Friedrich E. D. Schleiermacher Tradução de Celso Braida **

O fato, que um discurso em uma língua seja traduzido em uma outra, apresenta-se a nós sob as mais variadas formas por toda a parte. Por um lado, desse modo podem entrar em contato homens geograficamente muito afastados, e podem ser transpostas em uma língua obras de uma outra extinta já há muitos séculos; por outro, não precisamos sair do domínio de uma língua para encontrar o mesmo fenômeno. Pois, não apenas os dialetos dos diferentes ramos de um povo e os diferentes desenvolvimentos de uma mesma língua ou dialeto, em diferentes séculos, são já em um sentido estrito diferentes linguagens, e que não raro necessitam de uma completa interpretação entre si; mesmo contemporâneos não separados pelo dialeto, mas de diferentes classes sociais, que estejam pouco unidos pelas relações, distanciam-se em sua formação, seguidamente apenas podem compreenderem-se por uma semelhante mediação. Sim, não somos nós freqüentemente obrigados a previamente *

O texto Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens, redigido no período em que Schleiermacher lecionava em Berlim, foi originalmente escrito como base para uma conferência proferida em 24 de junho de 1813, na Academia Real de Ciências. A presente tradução baseia-se na publicação inclusa na Friedrich Schleiermacher’s sämmtliche Werke, Dritte Abteilung: Zur Philosophie, Zweiter Bd., Berlin, Reimer, 1838, S. 207-245. ** Professor do Departamento de Filosofia da UFSC. E-mail: braida@cfh.ufsc.br. Tradução recebida em 30.09.2007, aprovada em 20.11.2007.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 233-265.


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traduzir a fala de um outro que é de nossa mesma classe, mas de sensibilidade e ânimo diferentes? A saber, quando nós sentimos que as mesmas palavras em nossa boca teriam um sentido inteiramente diferente ou, ao menos, um conteúdo aqui mais forte, ali mais fraco, que na dele e que, se quiséssemos expressar do nosso jeito o mesmo que ele disse, nos serviríamos de palavras e locuções completamente diferentes. Na medida em que determinamos mais precisamente este sentimento, trazendo-o ao pensamento, parece que traduzimos. As nossas próprias palavras, às vezes, temos que traduzir após algum tempo, se quisermos assimilá-las apropriadamente outra vez. E esta prática não é usada apenas para transplantar em solo estrangeiro o que uma língua produziu no domínio da ciência e das artes discursivas, e assim aumentando o círculo de atuação destes produtos do espírito, mas também esta prática é usada no comércio entre diferentes povos e nas relações diplomáticas de governos independentes entre si, quando estes apenas podem falar com o outro em sua própria língua, se eles, sem servirem-se de um língua morta, querem manter-se rigorosamente em uma igualdade. Todavia, naturalmente, não queremos incluir nessa nossa consideração tudo o que há nesse vasto domínio. Aquela necessidade de traduzir também no interior da própria língua e dialeto, mais ou menos uma exigência momentânea da mente, está também em seu efeito limitada ao instante, para exigir uma outra orientação que aquela do sentimento; e se houvesse a necessidade de dar regras para isso, elas poderiam ser apenas aquelas que mantêm o homem em uma disposição moral pura para os sentidos permanecerem abertos também para o que se é menos afim. Deixemos isto de lado e fiquemos a partir daqui com a tradução de uma língua estranha para a nossa. Também aqui nós chegamos a dois domínios: com certeza não inteiramente determinados, como é raro acontecer, mas apenas com limites imprecisos, porém, com claridade suficiente se enxergam os pontos extremos. O intérprete efetivamente exerce o seu ofício no domínio da vida comercial, o tradutor genuíno preferencialmente no domínio da ciência e da arte. Se esta definição das palavras parecer arbitrária, uma vez que


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habitualmente se entende por interpretação mais a oral e por tradução a escrita, que ela seja aceita pela comodidade para os presentes propósitos e mais ainda porque as duas determinações não estão assim tão distantes. A escrita é própria dos domínios da arte e da ciência, através da qual suas obras tornam-se duradouras; e a interpretação de boca à boca das produções científicas ou artísticas seria tão inútil quanto parece ser impossível. Para o comércio, ao contrário, a escrita é apenas um meio mecânico; as transações orais são aqui o primário, e toda interpretação escrita propriamente apenas pode ser vista como registro de uma oral. Em espírito e natureza, estão muito próximos desses domínios outros dois, os quais, pela grande variedade de objetos a eles pertencentes, já configuram uma transposição, um para o domínio da arte e o outro para o da ciência. Pois, cada transação que acontece pela interpretação é, por um lado, um fato cujo desenrolarse apreende-se em duas línguas. Mas, mesmo a tradução de escritos puramente narrativos ou descritivos, que apenas traduz o desenrolarse de um fato para uma outra língua, pode ainda conter em si muito da atividade do intérprete. Quanto menos o autor se sobressai no escrito original, quanto mais ele coloque-se apenas como órgão receptor do objeto e siga a ordem do tempo e do espaço, tanto mais a transposição se aproximará da mera interpretação. O tradutor de artigos jornalísticos e descrições de viagem comuns, assim, está muito próximo do intérprete, e pode tornar-se risível se o seu trabalho tenha maiores pretensões e que ele deseje ser visto como artista. Ao contrário, quanto mais haja prevalecido na exposição o modo de ver e combinar próprio do autor, quanto mais ele siga uma ordem livremente escolhida ou determinada pela impressão, tanto mais opera já o seu trabalho no domínio superior da arte, e também o tradutor deve então aplicar outras forças e habilidades para realizar o seu trabalho e estar familiarizado com seu escritor e sua língua num sentido diverso daquele do intérprete. Por outro lado, em regra, toda negociação em que se interpreta é a estipulação de um caso particular conforme relações jurídicas determinadas; a tradução é feita apenas para os participantes, os quais conhecem bem estas


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relações, e cuja expressão das mesmas está determinada em ambas as línguas, ou por leis, ou pelo uso e esclarecimentos recíprocos. Porém, é diferente com negociações em que, embora muitas vezes sejam semelhantes a estas na forma, novas relações jurídicas são determinadas. Quanto menos estas possam ser, por sua vez, consideradas como particulares de um universal suficientemente conhecido, tanto mais conhecimento científico e circunspeção requer a sua redação, e tanto mais necessita o tradutor para o seu trabalho de conhecimento científico do assunto e da língua. Desse modo, por esta dupla escala eleva-se o tradutor cada vez mais sobre o intérprete, até o seu domínio mais próprio, a saber, o das produções da arte e da ciência, nos quais, por um lado, a capacidade combinatória livre própria do autor e, por outro, o espírito da língua com o seu sistema de intuições e matizações das disposições mentais, são tudo; o objeto não domina de modo algum, mas é dominado pelo pensamento e pela mente, mais ainda, com freqüência apenas surge pelo discurso e apenas existe com ele. Em que, porém, funda-se esta importante diferença, que se percebe já no interior das fronteiras, e que se mostra claramente nos pontos mais afastados? Na vida comercial trata-se na maior parte de objetos visíveis ou, ao menos, que são bem determinados; todas as negociações têm um certo caráter aritmético ou geométrico, por toda parte número e medida podem ajudar; e mesmo naqueles conceitos que, segundo os antigos, admitem o mais e o menos e são designados por meio de uma hierarquia de palavras, que na vida ordinária diminuem e crescem em conteúdo indeterminado, assumem por meio de lei e costume um uso fixo para cada palavra. Assim, se o falante não dissimula indeterminações ocultas com a intenção de enganar, ou erra por inadvertência, torna-se compreensível para todos que sejam versados no assunto e na língua, e apenas ocorrem diferenças insignificantes no uso da língua. Mesmo assim, pode ocorrer algumas vezes uma dúvida, acerca de qual expressão de uma língua corresponde a da outra língua, que não pode ser resolvida imediatamente. Por isso, nesse domínio a tradução é quase um processo mecânico que qualquer um com um


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conhecimento mediano de ambas as línguas pode realizar, e, quando se evita abertamente o falso, ocorrem poucas diferenças entre o pior e o melhor. Porém, nas produções da arte e da ciência, quando se deve transplantá-las de uma língua para outra, há que se considerar duas coisas que alteram completamente a situação. A saber, se nas duas línguas cada palavra de uma correspondesse exatamente a uma palavra da outra, expressando os mesmos conceitos com as mesmas extensões; se suas flexões representassem as mesmas relações, e seus modos de articulação coincidissem, de tal modo que as línguas fossem diferentes apenas para o ouvido; então, também no domínio da arte e da ciência, toda tradução, na medida em que por ela se deve comunicar o conhecimento do conteúdo de um discurso ou escrito, seria também puramente mecânica como na vida comercial; e se poderia dizer de toda tradução, com exceção dos efeitos do acento e do ritmo, que o leitor estrangeiro estaria na mesma situação frente ao autor e sua obra que o nativo. Porém, com todas as línguas que não são tão próximas, que pudessem ser consideradas como simples dialetos, a situação é precisamente a oposta, e quanto mais distantes estão uma da outra quanto à origem e ao tempo, tanto mais nenhuma palavra em uma língua corresponde exatamente a uma da outra, e nenhuma flexão de uma apanha exatamente a mesma variedade de relações como uma da outra. Uma vez que esta irracionalidade, como eu a denomino, penetra em todos os elementos das duas línguas, ela deve afetar também o domínio das relações sociais. Mas, é claro que aí sua pressão é pequena e, assim, como que não tem nenhum influxo. Todas as palavras que expressam objetos e atividades, sobre os quais importa, são igualmente calibradas e, se uma sutileza vazia e demasiado cautelosa quisesse ainda precaver-se contra uma possível desigualdade do valor das palavras, a coisa mesma igualaria tudo imediatamente. Bem diferente é a situação no domínio da arte e da ciência, e onde quer que predomine o pensamento, que se identifica com o discurso, e não a coisa, para a qual a palavra é apenas um signo arbitrário, embora talvez firmemente estabelecido. Então, quão infinitamente difícil e complicado torna-se aí o trabalho, que


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conhecimento específico e que domínio de ambas as línguas pressupõe! E quantas vezes os mais entendidos no assunto e conhecedores da língua se opõem, convencidos de que é impossível encontrar uma expressão equivalente, quando eles querem dizer apenas qual é a mais aproximada. Isto vale tanto para as expressões vivas e pitorescas das obras poéticas quanto para as mais abstratas que designam o mais intrínseco e universal das coisas da ciência mais elevada. O segundo ponto em que a tradução genuína difere inteiramente da simples interpretação é o seguinte. Em toda parte, onde o discurso não está inteiramente ligado a objetos visíveis ou fatos externos, os quais devem apenas ser proferidos, ou seja, onde o falante pensa mais ou menos espontaneamente, onde ele quer se expressar, o falante se encontra em dupla relação com a língua, e seu discurso agora apenas pode ser corretamente compreendido na medida em que esta relação seja corretamente apreendida. Por um lado, cada homem está sob o poder da língua que ele fala; ele e seu pensamento são um produto dela. Ele não pode pensar com total determinação nada que esteja fora dos limites da sua língua. A configuração de seus conceitos, o tipo e os limites de suas articulações estão previamente traçados para ele pela língua em que ele nasceu e foi educado; o entendimento e a fantasia estão ligados por ela. Por outro lado, porém, cada homem de livre pensar e espiritualmente espontâneo molda também a língua. Pois, como, senão por meio dessas influências, a língua teria se formado e crescido desde seu estado primitivo e rude até a formação completa na ciência e na arte? Nesse sentido, portanto, é a força viva do indivíduo que produz novas formas na matéria maleável da língua, originalmente apenas com o propósito momentâneo de compartilhar uma consciência transitória, das quais, porém, ora mais ora menos, algumas permanecem na língua e, recolhidas por outros, disseminam seu efeito formador. Pode-se dizer que alguém merece ser escutado, para além de seu domínio singular e imediato, apenas na medida em que influi assim em sua língua. Todo discurso que pode ser produzido por mil órgãos sempre do mesmo modo logo desaparece


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necessariamente. Somente pode e deve durar mais aquele que por si mesmo forma um novo momento na vida da língua. Por isso, todo discurso livre e superior quer ser compreendido de dois modos; por um lado, a partir do espírito da língua de cujos elementos ele é composto, como uma exposição amarrada e condicionada por este espírito, por este produzida e vivificada no falante; por outro lado, quer ser compreendido a partir do ânimo do falante como sua ação, como algo que apenas a partir de seu modo de ser poderia surgir assim e ser esclarecido. Sim, qualquer discurso desse tipo apenas é compreendido, no sentido mais forte da palavra, quando estas duas relações são ambas apreendidas e em sua verdadeira proporção recíproca, de tal modo que se sabe qual delas predomina no todo ou nas partes individuais. Compreende-se o discurso como ação do falante apenas quando, ao mesmo tempo, se percebe onde e como o poder da língua o capturou, onde o efeito desse poder enrodilhou os raios do pensamento, onde e como a errante fantasia ficou presa em suas formas. Também, compreende-se o discurso como produto da língua e como manifestação de seu espírito apenas quando, na medida em que, por exemplo, se sinta que assim apenas um grego poderia pensar e falar, que assim apenas esta língua poderia influir no espírito humano, e se sinta também que assim apenas este homem poderia pensar e falar em grego, que assim apenas ele poderia manejar e configurar a língua, que se revela assim apenas a sua posse viva da riqueza lingüística, apenas um sentido regente da medida e da eufonia, apenas a sua capacidade de pensar e imaginar. Agora, se a compreensão nesse domínio já é difícil mesmo na mesma língua, e implica uma exata e profunda penetração no espírito da língua e na singularidade do escritor: como não seria muito mais uma arte superior quando se trata das produções em uma língua estranha e distante! Com certeza, então, quem adquiriu esta arte da compreensão por meio de esforços solícitos com a língua e por meio do conhecimento rigoroso da vida histórica completa do povo, e por meio da re-atualização vivíssima de cada obra e de seu autor, esse, com certeza, e também apenas esse, pode desejar abrir


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ao seu povo e contemporâneos a mesma compreensão das obras primas da arte e da ciência. Porém, a cautela deve aumentar quando ele quiser iniciar a tarefa, quando ele quiser determinar com exatidão os seus fins e considerar os seus meios. Deveria ele se propor a estabelecer, entre dois homens tão separados um do outro como o são os que falam a sua própria língua e desconhecem a do escritor original, e o escritor mesmo, uma relação tão imediata como aquela do escritor e seu leitor original? Ou, ainda que ele queira oferecer aos seus leitores apenas o mesmo entendimento e o mesmo prazer que ele experimenta, que são a mescla da mostra dos vestígios do esforço e do sentimento do estranho: como ele pode mostrar este e esconder aquele com os meios de que dispõe? Para que os seus leitores compreendam eles devem apreender o espírito da língua na qual o autor era natural, eles têm que poder intuir a sua maneira singular de pensar e de sentir; e para alcançar estas duas coisas, ele não pode senão oferecer a sua própria língua, que nunca coincide adequadamente com aquela, e a si mesmo, enquanto conhece o seu escritor mais ou menos claramente, e admira e aprova mais ou menos. A tradução não aparece, assim considerada, como um empreendimento insensato? Por isso, na incerteza de alcançar este fim, ou, se for preferível, antes que isso fosse percebido claramente, inventaram-se, não pelo singular sentido da arte e da língua, mas pela necessidade espiritual de um lado e, por outro, pela habilidade mental, duas outras maneiras de estabelecer conhecimento com as obras de línguas estranhas, em que algumas daquelas dificuldades são suprimidas violentamente, outras resolvidas inteligentemente, mas abandonando inteiramente a idéia de tradução aqui proposta; estas duas maneiras são a paráfrase e a imitação. A paráfrase quer dominar a irracionalidade da língua, mas apenas de um modo mecânico. Ela significa que mesmo que eu não encontre uma palavra que corresponda a uma da língua original, eu devo buscar me aproximar o mais possível de seu valor por meio do acréscimo de determinações delimitadoras e ampliadoras. Desse


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modo, ela trabalha entre o muito inoportuno e o pouco penoso por meio de uma acumulação de detalhes soltos. Ela pode, talvez, repor desse modo o conteúdo com uma acuidade limitada, mas perde inteiramente a impressão; pois, o discurso vivo está irrecuperavelmente morto, na medida em que todos percebem que tal discurso não poderia originalmente provir assim de um espírito humano. O parafraseador opera com os elementos de ambas as línguas, como se eles fossem símbolos matemáticos que, por adição e subtração, poderiam reduzir-se a um valor igual e, com essa operação, nem o espírito da língua usada nem o da língua original pode se manifestar. Se, além disso, a paráfrase pretenda indicar psicologicamente os vestígios das ligações do pensamento, ali onde elas são obscuras e deixam-se perder, através da incisão de frases: então, ela aspira ao mesmo tempo, quando se trata de composições difíceis, ocupar o lugar do comentário, e quer ainda menos se adequar ao conceito de tradução. A imitação, ao contrário, curva-se diante da irracionalidade das línguas; confessa que não se pode reproduzir em outra língua a imagem de uma obra de arte do discurso em que cada uma de suas partes corresponda exatamente a cada uma das partes do original, mas, que devido à diferença das línguas, a que estão ligadas tantas outras diferenças, não resta senão elaborar uma cópia, um todo composto de partes visivelmente diferentes das partes do original, mas que no efeito se aproxime do outro, tanto quanto a diferença de material permita. Uma tal imitação não é mais aquela obra mesma, por isso também o espírito da língua original não mais é exposto e atuante; mais ainda, a novidade que ela produziu é substituída por outra coisa; uma obra desse tipo apenas deve produzir o mais possível para seus leitores, levando-se em conta a diferença da língua, dos costumes e da cultura, o mesmo que a original para os seus leitores; ao querer salvar a igualdade da impressão, perde-se a identidade da obra. O imitador também não pretende por em contato o escritor e o leitor da imitação, porque ele não mantém nenhuma relação imediata entre eles, mas apenas pretende produzir no último


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uma impressão semelhante, como aquela recebida da obra original pelos seus contemporâneos. A paráfrase é mais utilizada no domínio das ciências; a imitação mais no das belas artes; e assim como todos admitem que uma obra de arte perde seu tom, seu brilho e todo seu conteúdo artístico quando parafraseada, também é certo que ninguém ainda cometeu a loucura de tentar uma imitação da uma obra-mestra da ciência tratando livremente seu conteúdo. Nenhum desses dois procedimentos pode satisfazer aquele que, compenetrado com o valor de uma obra-mestra, queira estender seu círculo de atuação aos que falam sua língua e que pense no conceito rigoroso de tradução. Ambos, pelo seu afastamento deste conceito, não podem ser aqui considerados mais de perto; estão aqui apenas como marcos delimitadores para o domínio que propriamente nos interessa. Mas, agora, por que caminhos deve enveredar o verdadeiro tradutor que queira efetivamente aproximar estas duas pessoas tão separadas, seu escritor e seu leitor, e propiciar a este último, sem obrigá-lo a sair do círculo de sua língua materna, uma compreensão correta e completa e o gozo do primeiro? No meu juízo, há apenas dois. Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranqüilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranqüilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro. Ambos são tão completamente diferentes que um deles tem que ser seguido com o maior rigor, pois, qualquer mistura produz necessariamente um resultado muito insatisfatório, e é de temer-se que o encontro do escritor e do leitor falhe inteiramente. A diferença entre ambos os métodos, onde reside a sua relação mútua, será mostrada a seguir. Porque, no primeiro caso, o tradutor se esforça por substituir com seu trabalho o conhecimento da língua original, do qual o leitor carece. A mesma imagem, a mesma impressão que ele, com seu conhecimento da língua original, alcançou da obra, agora busca comunicá-la aos leitores, movendo-os, por conseguinte, até o lugar que ele ocupa e que propriamente lhe é estranho. Mas, se a tradução quer fazer, por exemplo, que um autor latino fale como, se fosse alemão, haveria falado e escrito para alemães, então, não


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apenas o autor move-se até o lugar do tradutor, pois, tampouco para este fala em alemão o autor, senão latim; antes coloca-o diretamente no mundo dos leitores alemães e o faz semelhante a eles; e este é precisamente o outro caso. A primeira tradução será perfeita em seu gênero quando se pode dizer que, em havendo o autor aprendido alemão tão bem como o tradutor latim, ele teria traduzido a sua obra, originalmente redigida em latim, tal como realmente o fez o tradutor. A outra, por sua vez, ao não mostrar o autor ele mesmo como ele teria traduzido, mas sim como ele teria escrito originalmente em alemão e, enquanto alemão, dificilmente poderia ter outro critério de perfeição que não fosse o de poder assegurar que, se os leitores alemães em conjunto se deixassem transformar em conhecedores e contemporâneos do autor, a obra mesma teria chegado a ser para eles exatamente o mesmo que é agora a tradução, ao haver-se transformado o autor em alemão. Seguem este método, evidentemente, quantos utilizam a fórmula de que se deve traduzir um autor como ele mesmo haveria escrito em alemão. Esta confrontação expõe, sem dúvida, quão diferente tem que ser o procedimento em cada caso, e como, se no mesmo trabalho se quisesse alternar os métodos, tudo resultaria incompreensível e inadequado. Porém, desejo afirmar também que, fora destes dois métodos, não pode haver outro que se proponha um fim determinado. Acontece que não há mais procedimentos possíveis. As duas partes separadas ou bem tem que ir encontrar-se em um ponto médio, e este sempre será o do tradutor, ou bem uma tem que se adaptar inteiramente à outra e, então, cai no domínio da tradução um único gênero e do outro apenas apareceria se, em nosso caso, os leitores alemães chegassem a dominar de todo a língua latina ou, mais precisamente, se esta chegasse a se apoderar deles por completo até os transformar. Assim, pois, tudo o que se disse sobre traduções segundo a letra ou segundo o espírito, traduções fiéis ou traduções livres, e tantas outras expressões que pudessem alegar o direito de vigência, ainda que se trate de métodos diversos, têm que poder reduzir-se aos dois mencionados. E se o que se quer é mostrar vícios e virtudes,


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resultará que a fidelidade e a conformidade ao sentido, ou a literalidade e a liberdade excessivas de um método, serão diferentes das do outro. Minha intenção é, por conseguinte, prescindir de todas as questões particulares acerca deste objeto, já tratadas pelos especialistas, e considerar apenas os traços mais gerais desses métodos para que se possa ver mais facilmente em que consistem as vantagens e as dificuldades de cada um deles e, portanto, em que sentido alcança melhor um e outro o fim da tradução e quais são os limites dentro dos quais podem aplicar-se cada um deles. Desde um ponto de vista tão geral, haveria que se empreender duas tarefas, das quais este ensaio constitui somente a introdução. Poderíamos esboçar regras para cada um dos dois métodos, levando-se em conta os diversos gêneros de discurso e poderíamos comparar os mais destacados esforços feitos de acordo com uma ou outra opinião, julgá-los, e assim esclarecer mais ainda o tema. Ambas as coisas eu tenho que deixar para outros ou, ao menos, para outra ocasião. O método que aspira produzir no leitor, mediante a tradução, a mesma impressão que, como alemão, ele teria da leitura da obra na língua original, tem que determinar antes de tudo que classe de compreensão da língua original deseja de certo modo imitar. Pois, há uma que não deve e outra que não pode ser imitada pela tradução. A primeira é uma compreensão escolar que se abre, mas com esforço e quase com repugnância, por meio de cada frase e por isso nunca chega à clara visão do todo, à compreensão viva do conjunto. Enquanto a parte culta de um povo não tenha, em geral, nenhuma experiência de uma penetração mais profunda em línguas estrangeiras, oxalá o gênio guia dos que avançaram mais os livre de empreender tais traduções. Pois, se pretendessem erigir como regra a sua própria compreensão, eles mesmos seriam mal entendidos e conseguiriam pouco; e se sua tradução tivesse que representar a compreensão corrente, dever-se-ia relegar o quanto antes ao esquecimento uma obra tão tosca. Assim, pois, em tais circunstâncias, convém primeiro despertar e afinar o gosto do estranho mediante imitações livres e preparar com paráfrases uma


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compreensão mais geral, preparando assim o caminho para futuras traduções 1 . Porém, há outra compreensão que nenhum tradutor pode imitar. Pensemos nesses homens fortes que a natureza produz às vezes, como que para mostrar que também pode destruir em casos isolados as barreiras do nacional; homens que sentem tão singular afinidade com uma existência estranha que se situam inteiramente, vital e ideologicamente, dentro de outra língua e de suas produções e, ao entregarem-se por completo ao estudo de um mundo estrangeiro, deixam que se tornem de todo estranhos seu próprio mundo e sua própria língua; ou bem esses homens estão como que destinados a representar em toda a sua amplitude a capacidade lingüística, para quem todas as línguas que pode alcançar são de todo equivalentes e as percebem como feitas a sua medida: estes homens se situam em um ponto em que o valor da tradução se reduz a zero. Com efeito, como em sua compreensão de obras estrangeiras já não se dá o menor influxo da língua materna e a consciência de sua compreensão não lhes chega de nenhum modo nesta língua, senão que a adquirem direta e espontaneamente na do original, tampouco sentem a menor incomensurabilidade entre seu pensamento e a língua em que lêem. Por isso, nenhuma tradução pode alcançar nem expor a compreensão que eles obtêm. E, do mesmo modo que traduzir, para eles, seria verter água no mar ou no 1

Esta era ainda, no conjunto, a situação dos alemães naquele tempo em que, segundo Goethe (A. m. Leben, III, 111), as traduções em prosa, inclusive de obras poéticas – e tais traduções terão que ser sempre mais ou menos parafrásticas –, eram mais proveitosas para a formação da juventude e nisto estou totalmente de acordo com ele; pois, em tempos como aquele, da poesia estrangeira apenas a invenção poderia tornar-se inteligível, enquanto que os valores métricos e musicais não poderiam ainda ser apreciados. Porém, não posso crer que ainda hoje o Homero de Voss e o Shakeaspeare de Schlegel somente devam servir para o entretenimento mútuo dos eruditos; como tampouco que ainda hoje possa uma tradução de Homero em prosa ser conveniente para a autêntica formação do gosto e promoção da poesia; senão para as crianças, uma refundição como a de Becker, e para os adultos, jovens e velhos, uma tradução métrica, como, certamente, talvez ainda não a tenhamos. Entre ambas, eu não saberia colocar nenhuma outra coisa interessante.


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vinho, assim também costumam eles, desde sua altura, sorrir compassivamente, e não sem razão, ao ver as tentativas que se fazem neste domínio. Pois, na verdade, se o público para o qual se traduz fosse igual a eles, seria inútil tal esforço. A tradução se ordena, pois, a um estado que se acha a meio caminho entre estes dois e o tradutor tem que se colocar como meta proporcionar ao seu leitor uma imagem e um prazer semelhantes aos que a leitura da obra na língua original busca o homem culto, a quem, no melhor sentido dessas palavras, costumamos chamar aficionado e entendido, que conhece suficientemente a língua estrangeira sem que deixe de lhe parecer estranha e já não necessita, como os alunos, repensar na língua materna cada parte antes de compreender o todo, mas, inclusive quando mais sem travas desfruta das belezas de uma obra, siga notando sempre a diferença entre a língua em que está escrita e a sua língua materna. Certo é que, ainda depois de fixar estes pontos, o círculo de ação e a delimitação desta maneira de traduzir seguem nos parecendo bastante imprecisos. O único que vemos é que, assim como a inclinação a traduzir somente pode nascer quando entre a parte culta do povo se há difundido certa capacidade de trato com línguas estrangeiras, assim também a arte somente pode crescer e apontar cada vez mais alto, à medida em que o interesse e o conhecimento de obras estrangeiras se estenda e se eleve entre aquela parte do povo que exercitou e educou seu ouvido sem fazer da aprendizagem de línguas seu verdadeiro ofício. Mas, ao mesmo tempo, não podemos ocultar que, quanto mais sensíveis sejam os leitores a tais traduções, tanto mais se acumulam também as dificuldades da tarefa, sobretudo se se leva em conta os produtos mais peculiares das artes e das ciências de um povo, que certamente são para o tradutor os objetos mais importantes. E, sendo a língua um ente histórico, não pode haver autêntica sensibilidade para ela sem sensibilidade para a sua história. As línguas não se inventam, e trabalhar nelas ou sobre elas de modo puramente arbitrário é sempre um disparate; as línguas se descobrem pouco a pouco, e a ciência e a arte são as forças que promovem e completam este descobrimento. Todo espírito raro, em que uma parte das intuições do povo se


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configuram de modo peculiar em uma de ambas as formas, trabalha e atua dentro da língua em tal sentido e, também, suas obras têm que conter, por conseguinte, uma parte da história de sua língua. Isto causa ao tradutor de obras científicas grandes dificuldades, inclusive com freqüência insuperáveis; pois, para quem, provido de conhecimentos suficientes, lê na língua original uma excelente obra deste tipo, não escapa facilmente o influxo exercido por ela sobre a língua. Observa que palavras, que construções se mostram ali talvez em seu primeiro brilho de novidade; vê como se deslocam na língua através das exigências próprias deste espírito e da força que o caracteriza, e esta observação determina em grande medida a impressão que recebe. O tradutor deve, pois, transmitir também isto a seus leitores; do contrário, perderiam eles uma parte, seguidamente muito importante, do que lhes está destinado. Mas, como se pode conseguir isto? Já no particular, quantas vezes a uma palavra nova da língua original corresponde na nossa precisamente uma palavra velha e gasta, de modo que o tradutor, se quer mostrar também então como atua a obra original modelando a língua, teria que colocar na passagem um conteúdo estranho e, portanto, passar ao terreno da imitação! Quantas vezes, ainda que possa reproduzir o novo com o novo, resultará que a palavra mais semelhante por sua composição e procedência não é a que melhor reproduz o sentido, e terá que suscitar outras conotações, se não quer destruir a coerência imediata! Terá que se consolar pensando que em outras passagens, em que o autor usou palavras velhas e conhecidas, pode se distanciar, alcançando assim no conjunto o que não pode conseguir em cada caso. Mas, se a formação de palavras de um mestre é seguida em sua totalidade, ao uso que faz de vocábulos e radicais afins, em grandes volumes de escritos relacionados entre si, como quer o tradutor ter êxito ali, quando o sistema de conceitos e de signos é em sua língua totalmente diverso dos da língua original, e os radicais, em vez de cobrirem-se paralelamente, antes se entrecruzam em direções as mais diversas? Por isso, será impossível que a língua do tradutor tenha sempre a mesma coerência que a de


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seu autor. Aqui, por conseguinte, terá que se contentar com alcançar em casos isolados o que não pode alcançar em conjunto. Terá que estipular com seus leitores que, ao ler uma obra, não pensem nas outras com igual rigor que os leitores originais, senão que antes as considerem em separado; mais ainda, que inclusive devem o elogiar quando, dentro de cada obra, e, muitas vezes, ainda que apenas seja em partes da mesma, consegue manter para os temas de maior importância tal uniformidade que uma palavra não receba uma multiplicidade de suplentes totalmente diferentes, nem reine na tradução uma variedade confusa quando a língua original conserva na expressão uma afinidade firme e constante. Estas dificuldades se apresentam sobretudo no domínio da ciência. Há outras, e não menores, no da poesia e também no da prosa artística, para a qual tem também especial e superior importância o elemento musical da língua que se manifesta no ritmo e na entonação. Todo o mundo nota que no espírito mais fino, o encanto supremo da arte em suas obras mais acabadas, se perde se aquele elemento musical é descuidado ou destruído. Por conseguinte, o que ao leitor sensível da obra original impressiona neste aspecto como característico, intencionado e eficaz quanto ao tom e a disposição de ânimo, e como decisivo para o acompanhamento rítmico ou musical do discurso, deve também transmiti-lo o tradutor. Mas, quantas vezes – mais ainda, é já quase um milagre não ter que dizer “sempre” – a fidelidade rítmica e melódica estará em discordância irreconciliável com a fidelidade dialética e gramatical! E, quão difícil é, na vacilação acerca do que se deve sacrificar aqui ou ali, com freqüência não se tome precisamente a decisão errada! Quão difícil, inclusive, é que o tradutor, quando há ocasião para isto, restitua equitativamente e de verdade o que aqui teve que tirar a cada parte e não caia, ainda que inconscientemente, em obstinada unilateralidade por inclinar-se mais seu gosto pessoal a um elemento artístico que a outro! Com efeito, se nas obras de arte prefere a matéria ética e seu tratamento, perceberá menos os estragos que fez ao elemento métrico e musical da forma e, em vez de pensar em repará-los, se contentará com uma


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translação cada vez mais cômoda e mais próxima à paráfrase. Mas, se acontece que o tradutor é músico ou metrificador, postergará o elemento lógico para se apoderar somente do musical; e, ao enredarse mais e mais nesta unilateralidade, trabalhará cada vez mais insatisfatoriamente e, se se compara sua translação com a obra original em conjunto, ver-se-á que, sem dar-se conta, cada vez se aproxima mais daquela insuficiência escolar que perde o todo para salvar o detalhe; pois, se, graças à semelhança material do tom e do ritmo, o que na língua é fácil e natural se reproduz na outra com expressões duras e chocantes, a impressão do conjunto tem que ser totalmente diferente. Se o tradutor atenta para sua relação com a língua em que escreve e a relação de sua tradução com as outras obras, no entanto, apresentam-se outras dificuldades. Excetuando-se esses mestres admiráveis que se movem com igual leveza em várias línguas, aos quais inclusive uma língua aprendida chega a lhes ser mais natural que a materna, para quem, como já dissemos, a tradução carece de sentido, todos os demais homens, por mais fácil que resulte a leitura em uma língua estrangeira, resta sempre ante ela a sensação de algo estranho. Como fará, então, o tradutor para que esta mesma sensação de encontrar-se diante de algo estrangeiro passe também a seus leitores, a quem apresenta a tradução em sua língua materna? Dir-seá, sem dúvida, que faz já muito que se fechou a chave para este enigma, a que com freqüência se deu entre nós uma solução talvez demasiada feliz; com efeito, quanto mais se aproxima a tradução dos giros do original, tanto mais estranha será a impressão que o leitor recebe. Naturalmente; e é bastante fácil sorrir, em geral, diante deste procedimento. Mas, se não se quer alcançar esta satisfação a um preço demasiado baixo, se não se quer colocar no mesmo nível o mais perfeito e o mais pobre e defeituoso, terá que se admitir que este método de tradução exige inevitavelmente da língua uma atitude que não somente não é cotidiana, senão que, além disso, abre o flanco para a censura de não ser espontânea e acomodar-se mais a uma semelhança exótica. E é preciso confessar que fazer isto com arte e com medida, sem prejuízo próprio e sem dano à língua, talvez


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seja a maior dificuldade que tem que vencer nosso tradutor. A tarefa aparece como o mais assombroso estado de degradação em que pode colocar-se um mau escritor. Quem não deseja apresentar sempre sua língua materna com a beleza mais castiça que possa se dar em cada gênero? Quem não prefere engendrar filhos que mostrem genuinamente a linhagem paterna, ao invés de mestiços? Quem se aplicará com gosto a executar em público movimentos menos soltos e elegantes do que sem dúvida poderia e, pelo menos às vezes, parecer rude e travado, a fim de parecer ao leitor bastante estranho para que este não perca de vista as circunstâncias? Quem admitirá de boa vontade que o considerem torpe, enquanto se esforça por conservar frente a língua estranha toda a proximidade que tolera à própria, e que se lhe censure como aos pais que entregam seus filhos a treinadores, porque, em vez de exercitar a sua língua materna em uma ginástica apropriada, trata de acostumá-la a contorções estranhas e anti-naturais? Quem, afinal, permitirá de bom grado que precisamente os mais entendidos e os melhores mestres lhe dediquem o sorriso mais compassivo e digam que não entenderiam seu trabalhoso e precipitado alemão sem recorrer ao latim e ao grego? Estas são as renúncias que nosso tradutor há que se impor necessariamente; estes os perigos a que se expõe se, ao esforçar-se por manter exótico o tom da língua, não respeita uma finíssima raia, e aos que nem ainda assim escapará nunca de todo, porque cada um traça para si essa raia de maneira muito distinta. Se, por outra parte, pensa no inevitável influxo do costume, pode chegar a temer que também em suas produções livres e originais se depreenda desde a tradução mais de um elemento impróprio e rude, e se lhe embote um pouco o delicado sentido que percebe o bom estado natural da língua. E, se pensa, além disso, no grande exército de imitadores, e na preguiça e na mediocridade reinantes no público escritor, tem que se enterrar ao ver quanto relaxamento e irregularidade, de quanta verdadeira torpeza e rigidez, de quantos danos de toda índole inferidos à língua terá que se sentir em parte responsável; pois, os


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melhores e os piores serão quase os únicos que não tratarão de tirar falso proveito de seus esforços. Esta queixa, que semelhante maneira de traduzir tem que prejudicar desde dentro a pureza da língua e seu tranqüilo desenvolvimento, se ouve com freqüência. Porém, se no momento queremos calá-las com o conselho frouxo de que, sem dúvida, haverá vantagens que compensam estes danos e que, pois todo bem leva consigo um mal, a sabedoria consiste precisamente em alcançar o mais possível do primeiro e receber o menos possível do segundo: isto é o que resulta, em todo caso, da difícil tarefa de querer refletir o estranho na língua materna. Em primeiro lugar, que este método de traduzir não pode prosperar igualmente em todas as línguas, senão que tão somente nas que estão livres das ataduras demasiado apertadas de uma expressão clássica, fora da qual tudo é reprovável. Essas línguas restringidas podem buscar a ampliação de seu território fazendo falar por estrangeiros a quem não lhes basta sua língua materna; sem dúvida serão muito aptas para isso; podem apropriar-se de obras estrangeiras por meio de imitações e talvez de traduções do outro tipo; mas, desta maneira têm que deixar para as línguas mais livres, que toleram melhor desvios e novidades, de cuja acumulação pode surgir, em determinadas circunstâncias, um caráter determinado. Segue-se, também, com bastante claridade que esta maneira de traduzir não tem nenhum valor se em uma língua apenas se pratica isolada e casualmente. Pois, está claro que não se alcança este fim simplesmente soprando o hálito estrangeiro sobre o leitor; senão que se este há de receber uma idéia, ainda que remota, da língua original e do que a ela deve a obra, e assim há de diminuir em certo modo o fato de que não a entenda, não basta que ele experimente a confusa impressão de que o que ele lê não soa de todo à indígena, senão que tem que lhe soar como algo determinado e diferente, o qual apenas é possível onde consegue estabelecer comparações massivas. Se leu algo que sabe traduzido, e traduzido deste modo, de outras línguas modernas, e algo também das antigas, sem dúvida se desenvolverá nele certo ouvido para distinguir o antigo do moderno. Mas, tem que haver lido já muito mais para


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poder distinguir a origem grega da latina, ou a espanhola da italiana. E, sem dúvida, inclusive dificilmente se alcançará com isto o fim mais alto; senão que o leitor da tradução somente se equiparará ao melhor leitor da obra original quando for capaz de vislumbrar e compreender paulatinamente com precisão, junto com o espírito da língua, o espírito próprio do autor tal como se manifesta na obra. O único órgão para isto é sem dúvida o talento da intuição individual; mas, aqui precisamente é imprescindível uma massa de comparações muito maior ainda. E estas não se dão se em uma língua apenas de vez em quando se traduzem obras de mestres em gêneros isolados. Desse modo, inclusive os leitores mais cultos apenas podem conseguir, por meio da tradução, um conhecimento sumamente imperfeito do estranho; e que possam elevar-se até um verdadeiro juízo, tanto da tradução como do original, não há nem como pensálo. Por isso, esta maneira de traduzir requer absolutamente uma atuação em massa, um transplante de literaturas inteiras a uma língua e, portanto, somente tem sentido e valor para um povo decididamente inclinado a assimilar o estranho. Os trabalhos isolados deste gênero somente têm valor como precursores para o desenvolvimento e a formação de um interesse mais geral por esse procedimento. Se não suscitam este interesse, tropeçam em algo que lhes será contrário no espírito da língua e de seu tempo; e, então, somente podem aparecer como tentativas falhadas e seu êxito, inclusive isoladamente, será pouco ou nenhum. Porém, ainda que a tarefa vá adiante, não se pode esperar facilmente que um trabalho desta índole, por excelente que seja, consiga a aprovação geral. Diante das muitas precauções que há que se tomar e dificuldades a vencer, tem que se desenvolver diferentes opiniões sobre que aspectos da tarefa devem ser postos em relevo e quais atenuados. Assim, se formarão, de certo modo, diversas escolas entre os mestres e diferentes partidos no público que os segue; e, ainda que sempre está na base o mesmo método, poderá haver simultaneamente diferentes traduções de uma mesma obra concebidas desde pontos de vista diferentes, das quais nem sequer poderia se dizer que uma seja no conjunto superior ou menos


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perfeita, senão que apenas algumas partes estarão melhor realizadas em uma e outras partes na outra, e unicamente todas juntas e relacionadas entre si, ao fazer uma mais apoio nesta e outra em noutra a aproximação à língua original, cumprirão de todo a tarefa, pois, cada uma por si mesma nunca terá mais que um valor condicionado e subjetivo. Estas são as dificuldades que enfrenta este método de traduzir e as imperfeições inerentes à sua natureza. Porém, reconhecidas estas, contudo, há que se valorizar a tarefa em si e não se pode lhe negar o mérito. Este se baseia em duas condições: que a compreensão de obras estrangeiras seja uma situação conhecida e desejada, e que se conceda certa flexibilidade à língua nacional mesma. Quando tais condições se cumprem, esta maneira de traduzir chega a ser um fenômeno natural, intervindo no processo total da cultura e, ao alcançar um valor determinado, proporciona, por sua vez, um prazer seguro. O que diremos do método oposto, que, sem exigir de seu leitor nenhum trabalho nem fadiga, quer por em sua presença, diretamente e como que por encanto, o autor estrangeiro, e mostrar a obra tal como seria se o autor mesmo a tivesse escrito originalmente na língua do leitor? Não poucas vezes se há apresentado esta exigência como a única que poderia se fazer a um verdadeiro tradutor, e como muito mais elevada e perfeita que a outra; inclusive, fizeram-se tentativas isoladas, ou talvez obras mestras que indubitavelmente se haviam fixado esta meta. Vejamos, pois, o que há nisso e se não conviria, talvez, que este procedimento, até agora indiscutivelmente menos praticado, se tornasse mais freqüente e eliminasse o outro arriscado e em muitos pontos insuficiente. O que se vê de imediato é que a língua do tradutor não tem nada a temer deste procedimento. A sua primeira regra deve ser não se permitir, pela relação de seu trabalho com uma língua estrangeira, nada que em sua própria língua não se permita também a qualquer escrito original do mesmo gênero. Mais ainda, o tradutor está tão obrigado como qualquer outro a procurar ao menos com igual cuidado a pureza e a perfeição da língua, a esforçar-se por conseguir


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a mesma agilidade e naturalidade de estilo que honram a seu escritor na língua original. Também é certo que, se queremos fazer com que nossos compatriotas vejam claramente o que um escritor foi para sua língua, não podemos propor nenhuma fórmula melhor que o apresentar falando como temos que pensar que haveria falado na nossa, sobretudo, se o grau de evolução em que ele falou sua língua tem semelhança com aquele em que precisamente se encontra a nossa. Podemos, de certo modo, pensar como teria falado Tácito se houvesse sido alemão, ou, mais exatamente, como falaria um alemão que fosse para nossa língua o que foi Tácito para a sua; feliz daquele que o pense tão vivamente que o possa fazer falar realmente! Porém, que isto possa acontecer, fazendo-se dizer o mesmo que o Tácito romano disse em latim, é já outra questão, a qual não é fácil dar uma resposta afirmativa. Pois, uma coisa é compreender bem e expor de algum modo o influxo que um homem exerceu sobre sua língua, e outra muito diferente é querer saber que giro haviam tomado seus pensamentos e a expressão destes pensamentos, se tivesse tido o costume de pensar e se expressar originalmente em outra língua! Quem está persuadido de que, essencial e intimamente, o pensamento e a expressão se identificam, e nesta persuasão se funda, certamente, toda a arte da compreensão do discurso e, por conseguinte, também toda tradução, poderia querer separar de sua língua nativa uma pessoa e pensar que esta, ou inclusive apenas um de seus raciocínios, pode chegar a ser exatamente igual em duas línguas? Ou, ainda admitindo que de certo modo seja diferente, pode pretender analisar o discurso até os seus últimos elementos, isolar a participação nele da língua e, por um novo processo semelhante aos da química, fazer que o mais íntimo dele se combine com a estrutura e a força de outra língua? Pois, evidentemente, para levar a cabo esta tarefa, teria que eliminar com precisão tudo o que na obra escrita de um homem seja efeito, inclusive remotíssimo, de qualquer coisa que desde sua infância tenha falado ou ouvido em sua língua materna; logo, por assim dizer, alcançar a singularidade de seu modo de pensar, em sua relação com um objeto determinado, separar tudo o que teria sido


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influência de tudo o que, desde o começo de sua vida ou desde seu primeiro contato com a língua estrangeira, tivesse falado ou ouvido nesta língua, até adquirir a faculdade de pensar e escrever originalmente nela. Isso não será possível até que se consiga sintetizar produtos orgânicos mediante um processo químico artificial. Mais ainda, pode-se dizer que a meta de traduzir tal como o autor mesmo teria escrito originalmente na língua da tradução não é apenas inatingível, senão que também é nula e vã em si mesma; pois, quem reconhece a força modeladora da língua e como ela se identifica com a singularidade do povo, tem que confessar que precisamente nos mais destacados é onde mais contribui a língua em configurar todo o seu saber e também a possibilidade de o expor, que, portanto, ninguém está unido a sua língua apenas mecânica e externamente como que por correias, e com a facilidade com que se solta uma parelha e atrela outra, também um pensamento alguém poderia à vontade atrelar a uma outra língua, senão que cada um produz originalmente apenas em sua língua materna e, portanto, nem sequer pode colocar-se a questão de como haveria escrito suas obras em outra língua. Contra isto, sem dúvida, qualquer um apontará dois casos bastante freqüentes. Em primeiro lugar, é notório que houve em outros tempos, não apenas exceções individuais, pois assim ainda continua ocorrendo, mas também em grande escala, uma destreza para escrever e inclusive filosofar e cultivar a poesia originalmente em línguas que não eram a nativa. Por que, então, para obter uma regra tanto mais segura, não há que se estender mentalmente esta destreza a todo escritor que alguém queira traduzir? Seguramente, porque tal destreza apenas se dá quando, na língua nativa, ou não pode em absoluto dizer-se o mesmo, ou ao menos não pode dizer ele mesmo. Se nos remontamos aos tempos em que as línguas românicas começavam a se formar, quem pode dizer qual língua era então a nativa para os que viviam naqueles países? E quem poderá negar que para os que então cultivavam as ciências foi o latim mais língua materna que o vulgar? Mas, isto vai muito mais longe para determinadas exigências e atividades do espírito. Enquanto a língua materna não está ainda madura para elas,


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continua sendo parcialmente materna a língua desde a qual se comunicaram a um povo nascente aquelas tendências do espírito. Grotius e Leibnitz não podiam, ou ao menos não sem ser totalmente diferentes do que foram, filosofar em alemão ou holandês. Mais ainda, inclusive quando aquela fonte está já inteiramente seca, e o broto completamente separado de sua antiga raiz, quem não seja pessoalmente ao mesmo tempo criador de língua e revolucionário, terá que ainda recorrer muitas vezes, voluntariamente ou por razões secundárias, a uma língua estrangeira. Ao nosso grande Rei, todos os pensamentos mais finos e elevados lhe chegaram por uma língua estranha que ele havia assimilado, para este campo, de modo mais íntimo. O que ele filosofou e poetou em francês, ele era incapaz de filosofar e poetar em alemão. Nós devemos lastimar que a grande predileção pela Inglaterra, que dominava uma parte de sua família, não pode direcioná-lo a desde a infância assimilar a língua inglesa, cuja última época de ouro então florecia, e que é muito mais próxima à alemã. Porém, é lícito acreditar que, se houvesse desfrutado de uma educação rigorosamente científica, ele teria preferido filosofar e poetar em latim antes que em francês. Isto depende, pois, de certas condições e não pode qualquer um produzir em qualquer língua, senão em uma determinada, e somente aquilo que não poderia produzir em sua língua materna; logo, não se pode utilizar como prova a favor de um método de traduzir, o qual quer mostrar como teria escrito alguém em outra língua o que realmente escreveu na sua. No segundo caso, porém, o ler e escrever originalmente em línguas estrangeiras, parece mais favorável a este método. Pois, quem vai negar a nossos homens cosmopolitas e da corte que as coisas amáveis que pronunciam em alguma língua estrangeira as pensam diretamente nessa mesma língua, sem haver traduzido-as, quiçá em seu interior, do nosso pobre alemão? E assim como lhes é glorioso poder dizer estas doçuras e belezas com igual perfeição em muitas línguas, sem dúvida também as pensam com a mesma facilidade em todas e, além disso, cada um sabe muito bem, também dos outros, como haveria dito em italiano precisamente o que acaba


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de dizer em francês. Certamente, porém, estes discursos não procedem do domínio em que os pensamentos brotam com a força de raiz profunda de uma língua própria, senão que são como brotos que um homem engenhoso faz crescer, sem terra alguma, sobre um pano branco. Estes discursos não constituem nem a sagrada seriedade da língua nem seu belo e bem medido jogo; senão que, como os povos se entremesclam nestes tempos de uma maneira antes pouco conhecida, resulta que, onde quer que haja mercado, e estas são as conversações de mercado, sejam de caráter político ou literário, ou social, e não pertencem verdadeiramente ao domínio da tradução, mas apenas ao do intérprete. E mesmo quando, como às vezes acontece, são reunidos em um conjunto maior e tornam-se um escrito, então, estes escritos, que são simples jogos da vida superficial e elegante, sem revelar nenhuma profundidade da existência nem conservar nenhuma peculiaridade do povo, podem traduzir-se segundo esta regra; mas, também apenas estes, porque somente eles poderiam ter sido redigidos originalmente com igual perfeição em outra língua. E esta regra não pode estender-se mais, a não ser também aos acessos e portais de obras mais profundas e dominantes que, muito freqüentemente, foram construídas no pleno campo da vida social e elegante. Pois, quanto mais caracterizados estão os diferentes pensamentos de uma obra e sua concatenação pela peculiaridade do povo, e talvez também pelo caráter de um tempo há muito transcorrido, tanto mais perde esta regra seu significado. Pois, ainda sendo verdade que em alguns aspectos somente pelo conhecimento de várias línguas chega o homem a ser culto em certo sentido e um cidadão do mundo, assim temos que confessar que, tal como não consideramos legítimo o cosmopolitismo que em momentos importantes sufoca o amor à pátria, assim, relativamente às línguas tampouco é adequado e verdadeiramente formador um amor universal que, para o uso vivo e mais elevado, quer equiparar à língua pátria qualquer outra, antiga ou moderna. Como a uma pátria, o homem tem que se resolver a pertencer também a uma língua ou a outra; do contrário, andará indeciso em uma posição intermédia desagradável. Todavia, é justo


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que ainda hoje entre nós se siga escrevendo oficialmente em latim, para manter viva a consciência de que esta foi a língua materna científica e litúrgica de nossos antepassados; é saudável que siga sendo assim também no domínio da ciência comum européia, para facilitar seu intercâmbio; mas, ainda nesse caso, somente se terá êxito na medida em que, para tal exposição, o objeto seja tudo e o particular modo de ver e combinar pouco. O mesmo é o caso com as línguas românicas. Quem, obrigado por seu cargo, escreve em uma dessas línguas, sem dúvida observará que seus pensamentos no começo da concepção são alemães, mas bem cedo, enquanto ainda o embrião está se formando, começa a traduzi-los; e aquele que por amor a uma ciência se impõe este sacrifício, somente se livrará das travas, sem traduzir secretamente, quando se sentir inteiramente dominado pelo objeto. Certamente, há também uma afecção livre para escrever em latim ou em românico, e se com isto se pensa a sério produzir em uma língua estrangeira com igual perfeição e originalidade que na própria: sem vacilar declararia eu tal afecção arte perversa e mágica, como o reduplicar-se, tentando assim não apenas burlar as leis naturais como também perturbar os outros. Porém, não é bem assim, antes esta afecção é somente um fino jogo mímico com o qual alguém passa o tempo agradavelmente nos vestíbulos da ciência e da arte. A produção em língua estranha não é original, apenas a rememoração de um escritor determinado ou do estilo de certa época, a qual representa algo assim como uma pessoa genérica, que é para a alma quase como uma imagem viva, que, ao ser tomada por modelo, orienta e determina a produção. Por isso, também, raras vezes surge por esta via algo que, com exceção da exatidão mímica, tenha verdadeiro valor; e se pode desfrutar tanto mais inocentemente desta sofisticada mostra de habilidade artística porque sempre transparece com bastante claridade a pessoa representada. Mas, se alguém, contra natureza e costume, tenha se convertido formalmente em exilado da língua materna e tenha se entregue a outra: então, talvez não seja afetada e fingida burla se assegura que já realmente não pode mover-se na primeira; mas, é apenas uma comprovação, que ele deve a si mesmo, que sua


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natureza é verdadeiramente um prodígio contrário a toda ordem e a toda regra, e uma tranqüilização para os outros, que ele pelo menos não se duplica como um fantasma. Nos demoramos obviamente em demasia no estranho, como se estivéssemos falando da escrita em línguas estrangeiras e não da tradução de línguas estrangeiras. As coisas são diferentes, porém. Quando não seja possível escrever originalmente em uma língua estranha algo que mereça e ao mesmo tempo necessite da tradução, considerada como arte, ou quando isto constitua ao menos uma exceção rara e grandiosa: então, não se pode ditar para a tradução a regra de que deve pensar como haveria escrito o autor mesmo exatamente na língua do tradutor; pois, não há suficientes exemplos de autores bilíngües para se retirar uma analogia que o tradutor pudesse seguir, senão que este, segundo se diz, em toda obra que não se pareça com a conversação ligeira, ou ao estilo comercial, estará quase por completo abandonado à sua imaginação. Mais ainda, o que se responderia se, a um tradutor que diz ao leitor, Aqui te apresento o livro tal como o seu autor o teria escrito se o tivesse escrito em alemão, o leitor contestasse, Eu estou tão agradecido como se você me tivesse apresentado o retrato do homem tal como pareceria se sua mãe o tivesse engendrado com outro pai? Pois, se das obras, que em um sentido mais elevado, pertencem à ciência e à arte, o espírito peculiar do autor é a mãe, sua língua pátria é o pai. Tanto um artifício como o outro pretendem intuições misteriosas que ninguém tem e apenas como jogo se pode desfrutar de um tão inocentemente quanto do outro. Até que ponto se reduz a aplicabilidade deste método e como no domínio da tradução chega a ser quase nula, o melhor modo de comprová-lo é perceber quão insuperáveis são as dificuldades com as quais tropeça em alguns ramos da ciência e da arte. Se, já no uso da vida corrente, é preciso admitir que em uma língua há poucas palavras a que corresponda exatamente outra palavra de qualquer outra língua, de modo que esta possa ser usada em todos os casos em que se usa aquela e, nas mesmas articulações, produzam ambas sempre o mesmo efeito, isto se aplica mais ainda a


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todos os conceitos quanto mais se aproxime do filosófico seu conteúdo e, portanto, em grau último, à filosofia autêntica. Aqui, mais que em nenhum outro domínio, cada língua contém, apesar das diversas opiniões coexistentes ou sucessivas, um sistema de conceitos que, precisamente porque se tocam, unem e completam na mesma língua, constituem um todo a cujas distintas partes não corresponde nenhuma do sistema de outras línguas, exceto Deus e ser, o substantivo e o verbo primitivos. Pois, até o simplesmente universal, apesar de encontrar-se fora do domínio da particularidade, é iluminado e colorido por ela. Nesse sistema da língua tem que se desenvolver a sabedoria de cada um. Cada um constrói com o que está disponível e ajuda a trazer à luz o que, sem estar disponível ainda, está já pré-formado. Apenas assim tem vida a sabedoria do indivíduo e pode governar eficazmente sua existência, a qual integra-se inteiramente nessa língua. Portanto, se o tradutor de um filósofo não quer se decidir por acomodar a língua da tradução, na medida do possível, à língua do original, para fazer entrever no possível o sistema de conceitos estabelecido nesta; se prefere fazer falar o seu escritor como se houvesse formado os pensamentos e o discurso originalmente em outra língua, que outra coisa pode fazer, dada a dessemelhança dos elementos de ambas as línguas, senão ou parafrasear – com o que não alcança seu objetivo, pois uma paráfrase nunca parece nem pode parecer algo originalmente produzido na mesma língua –, ou então terá que adaptar toda a sabedoria e a ciência de seu autor ao sistema conceitual da outra língua, transformando assim todas e cada uma das partes e, então, já não se consegue ver que limites se pode colocar para a arbitrariedade mais selvagem. Sim, deve-se dizer, quem tem um mínimo de respeito aos esforços e desenvolvimentos filosóficos não pode se entregar a um tão solto jogo. Platão que me desculpe, se do filósofo passo ao comediógrafo. Este gênero artístico, no que se refere à língua, é o mais próximo ao terreno da conversação social. A inteira representação vive nos costumes da época e do povo, os quais, por sua vez, se refletem mais vivamente na língua. A ligeireza e a


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naturalidade na graça são suas primeiras virtudes; e, precisamente por isso, as dificuldades da tradução segundo o método que acabamos de considerar são aqui enormes. Pois, toda aproximação a uma língua estrangeira menospreza aquelas virtudes da declamação. E, se o tradutor quer fazer falar um autor de obras cênicas como se este houvesse escrito originalmente na língua da tradução, terá muitas coisas que nem sequer poderá fazer expressar, pois, não são nativas deste povo e, por isso, tampouco têm na língua algum signo. O tradutor deve aqui ou bem cortar inteiramente, e assim destruir a força e a forma do conjunto, ou tem que colocar em seu lugar outra coisa. Desse modo, portanto, nesse domínio, seguir completamente esta fórmula conduz evidentemente à simples imitação, ou a uma mescla ainda mais chocante e confusa de tradução e imitação, que torna o leitor como que uma bola rebatendo-se entre o seu mundo e o estranho, entre a invenção e graça do autor e as do tradutor, com o que aquele não pode experimentar nenhum prazer genuíno e termina, sem remédio, com tontura e cansaço redobrados. O tradutor que segue o outro método, ao contrário, não é tentado por esses deslocamentos arbitrários, porque seu leitor deve ter sempre presente que o autor viveu em outro mundo e escreveu em outra língua. Ele apenas tem de atender à arte, sem dúvida difícil, de suprir o conhecimento deste mundo estranho de maneira mais rápida e conveniente, e deixar que em toda parte transpareça a grande leveza e naturalidade do original. Estes dois exemplos, tomados dos mais opostos extremos da ciência e da arte, mostram bem quão difícil é conseguir o autêntico fim de toda tradução, a saber, o gozo autêntico das obras estrangeiras, com um método que a todo custo quer insuflar na obra traduzida o espírito de uma língua que lhe é estranha. Acrescenta-se a isto ainda que toda língua tem sua singularidade nos ritmos da prosa tanto quanto nos da poesia e que, se há de fingir-se que o autor podia ter escrito na língua do tradutor, terá que se o apresentar como seguindo também os ritmos desta língua, com o que sua obra se desfigura ainda mais e limita-se mais ainda o conhecimento de sua singularidade proporcionado pela tradução.


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De fato, esta ficção, unicamente sobre a qual se funda a teoria da tradução ora em consideração, influi mais ainda na finalidade dessa atividade. A tradução desde o primeiro ponto de vista é algo necessário para um povo do qual apenas uma pequena parte pode adquirir conhecimento suficiente de outras línguas, mas uma parte maior tem a sensibilidade para o prazer de obras estrangeiras. Se esta parte pudesse se transformar na primeira, aquela tradução resultaria inútil e dificilmente alguém tomaria para si tarefa tão ingrata. Não acontece o mesmo com o último tipo. Este não tem nada a ver com a necessidade, antes é mais bem o fruto da cobiça e da arrogância. As línguas estrangeiras podem estar já completamente difundidas e o acesso às suas obras mais sublimes aberto a todo aquele que fosse capaz de gozá-las; seguiria sendo possível uma curiosa tarefa que reuniria um auditório tanto mais numeroso e desejoso, se alguém prometesse apresentar uma obra de Cícero ou de Platão tal qual estes autores teriam escritos agora diretamente em alemão. E se alguém chegasse ao ponto de fazer isto não apenas na própria língua, mas também em língua estrangeira, ele seria evidentemente o mestre supremo na difícil e quase impossível arte de resolver os espíritos das línguas um no outro. Porém, logo se vê que, a rigor, isto não seria traduzir e sua finalidade não seria tampouco o gozo mais autêntico possível das obras mesmas; antes, se converteria cada vez mais em uma imitação e apenas poderia gozar bem tal obra de arte ou habilidade quem já, sem isto, conhecesse a tais escritores diretamente. E o fim verdadeiro apenas poderia ser, em particular, por de manifesto como certas expressões e combinações de diferentes línguas estão em igual relação com um caráter determinado e, no conjunto, ilustrar a língua com o espírito peculiar de um mestre estrangeiro, mas depois de separá-lo e desligá-lo por completo de sua língua. Agora, como aquele não é mais que um hábil e artificial jogo, e este descansa em uma ficção quase impossível, se compreende que esta maneira de traduzir apenas se pratique em tentativas muito raras que, além do mais, mostram com suficiente claridade que, em geral, não se pode proceder deste modo.


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Isto explica também que apenas grandes mestres, a quem lhes é permitido coisas extraordinárias, possam trabalhar com este método; e com razão apenas aqueles que cumpriram já seus verdadeiros deveres para com o mundo e por isso agora podem entregar-se a um jogo incitante e um tanto perigoso. Mas, também se compreende tanto mais facilmente que os mestres que se sentem autorizados a tentar algo semelhante olhem com certa piedade a atividade daqueles outros tradutores. Pois, eles pensam que ser os únicos que verdadeiramente praticam a arte bela e livre, enquanto que aqueles lhes parecem estar muito mais próximo do intérprete, pois também servem à necessidade, ainda que esta seja um pouco mais elevada. E os julgam dignos de pena porque gastam muito mais arte e esforço do que seria razoável para um ofício subalterno e ingrato. Por isso, também estão sempre dispostos a aconselhar que, em vez de fazer semelhantes traduções, seria melhor ajudar-se no possível com paráfrases, como costumam os intérpretes em casos difíceis e discutíveis. Como, então? Devemos compartilhar esta opinião e seguir este conselho? Os antigos, evidentemente, traduziram pouco naquele sentido estrito, e também a maioria dos povos modernos, intimidados pelas dificuldades da verdadeira tradução, contentam-se em geral com a imitação e a paráfrase. Quem pretenderá afirmar que alguma vez se traduziu algo para o francês seja das línguas antigas seja das germânicas? Mas, nós alemães, por mais atenção que se dê a este conselho, não o seguiríamos. Uma necessidade interna, na qual se expressa claramente uma vocação peculiar de nosso povo, nos impulsionou em massa para a tradução; não podemos retroceder e temos que seguir adiante. Do mesmo modo que, por acaso tivesse sido preciso trazer e cultivar aqui muitas plantas estrangeiras para que nosso solo se fizesse mais rico e fecundo, e nosso clima mais agradável e suave, assim também sentimos que nossa língua, porque nós mesmos, em razão do pesadume nórdico, a movimentamos pouco, apenas pode florescer e desenvolver-se plenamente sua própria força por meio dos mais variados contatos com o estrangeiro. E com isto vem coincidir, sem dúvida, o fato de que


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nosso povo, por sua atenção ao estrangeiro e por sua natureza mediadora, parece estar destinado a reunir em sua língua, junto com os próprios, todos os tesouros da ciência e da arte alheios, como em um grande conjunto histórico que se guarda no centro e coração da Europa para que, com a ajuda de nossa língua, qualquer um possa gozar, com a pureza e perfeição possível a um estranho, a beleza produzida pelos tempos mais diversos. Esta parece ser, com efeito, a verdadeira finalidade histórica da tradução em grande escala, tal como se pratica entre nós. Mas, neste tipo de tradução apenas pode aplicar-se o método considerado no início. E a arte tem que aprender, no possível, a vencer suas dificuldades, que não dissimulamos. Um bom começo foi feito, mas ainda falta o mais importante. Também aqui tem que precederem muitos ensaios e exercícios antes de se alcançarem algumas obras primorosas; e há coisas que brilham no começo, mas logo outras melhores as superam. Pode-se ver em muitos exemplos em quão grande medida artistas individuais venceram já em parte as dificuldades e em parte as evitaram de maneira feliz. E, ainda que também conhecedores medíocres trabalhem nesse campo, não devemos temer de seus esforços danos terríveis para nossa língua. Pois, em primeiro lugar, deve-se ter presente que em uma língua em que se pratica a tradução com tal extensão há também um domínio lingüístico próprio das traduções e nele muito se dever permitir que não deve aparecer em outros domínios. Quem, apesar de tudo, propague indevidamente tais inovações, encontrará poucos seguidores ou nenhum e, se não queremos fechar a conta em um espaço de tempo demasiado breve, podemos confiar no processo assimilador da língua que acabará eliminando tudo o que havia sido aceito apenas por necessidade momentânea e que não responde propriamente a sua natureza. Por outro lado, não devemos esquecer que há na língua muita beleza e muita força que somente graças à tradução se desenvolveram ou foram resgatadas do esquecimento. Nós discursamos muito pouco e proporcionalmente falamos demais; e não se pode negar que, desde há muito tempo, também a maneira de escrever avançou nesta direção mais do que o devido e


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que a tradução contribuiu não pouco para restabelecer um estilo mais severo. Quando chegar um dia em que tenhamos uma vida pública que, por uma parte, tenha que desenvolver uma sociabilidade mais rica de conteúdo e mais atenta à linguagem e, por outra, proporcione espaços mais livres para o talento do orador, então, talvez necessitaremos menos da tradução para o aperfeiçoamento da língua. Que esse dia chegue apenas quando tenhamos percorrido dignamente o inteiro ciclo de esforços do tradutor!

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RESENHAS

Tindale, C. Rhetorical argumentation. Principles of Theory and Practice. Thousand Oaks: SAGE Publications, 2004. Jorge Alberto Molina *

O estudo da argumentação faz parte hoje de uma abordagem interdisciplinar da qual participam filósofos, lingüistas e estudiosos da comunicação. Esse campo de estudos recebeu, após o eclipse da Retórica, há mais ou menos cento e cinqüenta anos, um novo impulso devido à aparição, na década de 50 do século passado, de duas obras, ambas escritas por filósofos que hoje são consideradas clássicos dentro da área: o Tratado da argumentação, dos belgas Perelman e Tyteca, e os Usos do Argumento do inglês Toulmin. Embora a análise da prática argumentativa já tivesse sido iniciada na Grécia antiga pelos sofistas, foi Aristóteles que, em grande medida, fixou o marco teórico a partir do qual os autores posteriores abordaram a argumentação. O filósofo distinguiu três tipos de discurso argumentativo (silogismos na sua terminologia): o discurso demonstrativo ou científico, cuja forma é objeto de estudo dos Primeiros Analíticos e cujo uso na ciência é normatizado nos Segundos Analíticos, o discurso dialético, apresentado por ele nos seus Tópicos e nas Refutações Sofísticas, e o discurso retórico, tema da sua obra, cujo título é precisamente Retórica. O estagirita explicitou sua distinção na forma seguinte: o discurso demonstrativo é aquele que procede de premissas necessariamente verdadeiras e almeja demonstrar uma conclusão que seja também necessariamente verdadeira; já o discurso dialético é aquele que a partir de premissas *

Professor da UNISC e da UERGS. E-mail: molina@unisc.br

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 267-276.


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prováveis, chega a uma conclusão também provável, e o discurso retórico, por sua vez, é aquele cujo objetivo consiste em persuadir a outros da aceitação de uma tese. A diferença entre Analítica e Dialética está dada, segundo Aristóteles, pela natureza das premissas, necessárias na primeira, prováveis na segunda. 1 Entretanto, para separar a Dialética da Retórica, Aristóteles usou, como critério, a função dos dois tipos de discursos: chegar a conclusões prováveis num caso, persuadir no outro. 2 Há também diferenças entre o contexto de emissão que acompanha esses diferentes discursos. O discurso demonstrativo ocorre no ensino de uma ciência, por um mestre que força o assentimento de um discípulo, ao mostrar-lhe as proposições que decorrem dos primeiros princípios. 3 O discurso dialético aparece quando uma tese é proposta por um dos participantes de um diálogo e outro participante manifesta seu desacordo com essa tese. Nesse caso, o discurso dialético visa a resolver uma diferença de opinião através da argumentação. O discurso retórico é aquele que é proferido face a uma assembléia, uma multidão, ou um corpo colegiado qualquer. A classificação aristotélica dos discursos argumentativos e a identificação de suas respectivas situações de emissão determinaram para a posteridade a perspectiva a partir da qual devia ser considerada a argumentação. No estudo da argumentação, voltamos hoje a reconhecer aquelas três perspectivas identificadas por Aristóteles: lógica, dialética e retórica. Os autores que abordam a argumentação desde uma perspectiva lógica, como é ocaso de Toulmin e dos lógicos formais e informais 4 , estarão interessados, dado um argumento qualquer, em determinar qual é a força com que se segue a conclusão a partir das premissas, bem como a ordem e o tipo de 1

Cf. Tópicos 100 a 18-100b18. Cf. Retórica 1355b 25-35. 3 Cf. Refutações Sofísticas 165b 1-10. 4 Para ver as origens da Lógica informal ver: Johnson, R. H e Blair, A Logical SelfDefense 3 ed., Toronto: Mc Graw Hill-Reyerson, 1994, e Walton, D. Informal Logic: A Handbook for Critical Argumentation. New York: Cambridge University Press, 1989. 2


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encadeamento das razões presentes nesse argumento. Aqueles que se aproximam da argumentação desde uma perspectiva dialética, como é o caso da escola holandesa de pragmadialética 5 , se ocuparão do tipo de regras que devem reger um diálogo argumentativo, isto é, dos procedimentos segundo os quais deve ocorrer a argumentação para que ela possa ser julgada razoável. No final, os que se aproximam da argumentação desde a perspectiva da Retórica se interessarão pela totalidade da situação argumentativa, considerando, dentro dela, não apenas o seu produto, que é o argumento proferido oralmente ou por escrito, mas também o emissor dele e o seu destinatário (audiência). Nessa última perspectiva, situam-se Perelman e Tyteca, que deram origem ao que se conhece como Nova Retórica, e também o autor cujo livro passamos a resenhar agora. O livro do professor de Filosofia Antiga Christopher Tindale, da Universidade de Trent, Ontário, Canadá, Rhetorical Argumentation, coloca-se claramente dentro da abordagem retórica do estudo da argumentação. Esse texto está escrito com dois fins: defender a abordagem retórica face às perspectivas rivais, lógica e dialética; advogar por uma concepção mais ampla da Retórica que não considere essa disciplina só como uma arte para obter a persuasão por meio do discurso, mas como uma arte para ganhar novos conhecimentos sobre matérias que são objeto da deliberação. No Capítulo 1, que tem por título O giro retórico para a argumentação (p. 1-26), Tindale tenta mostrar as insuficiências das abordagens lógica e dialética. O lógico, segundo Tindale, ocupa-se somente do produto da ação de argumentar, isto é, do argumento, e negligencia as condições de sua produção (p. 6-7). Dentro dessas condições, reconhecemos a audiência à qual se dirige aquele que argumenta, com seus valores e crenças. Também devemos levar em conta os conhecimentos compartilhados pelo argumentador e sua audiência. Esses conhecimentos determinam o que Tindale chama de entorno cognitivo (cognitive environment). Quando o lógico se 5

Cf. Eemeren, F. H. van e Grootendorst, R. A Systematic Theory of Argumentation. The pragma-dialectical aprroach. Cambridge University Press, 2004.


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encontra face a um argumento, lhe interessa saber se a conclusão se segue das premissas através de esquemas de inferência válidos. Esquemas ou formas válidas são caracterizados pela propriedade de permitir concluir uma verdade a partir de premissas verdadeiras, ou, expresso de um outro modo, eles se caracterizam por transmitir a verdade. A versão mais forte da abordagem lógica da argumentação é aquela da lógica formal, que considera que o que determina a validade de uma inferência é sua forma, sua estrutura. O objetivo da lógica formal seria, então, fornecer métodos para reconhecer quais são os esquemas de inferência válidos. Mas Tindale não polemiza contra essa concepção forte da abordagem lógica, que já tinha sido criticada sobretudo por Toulmin e Perelman, mas contra uma versão mais fraca da mesma, aquela da chamada lógica informal de D.Walton, J.A. Blair e R.H. Johnson (p. 8-14). Como alvo de suas críticas, Tindale escolhe o livro de R. H. Johnson, Manifest rationality: A pragmatic theory of argumentation. Conforme Tindale, Johnson reconheceu, nesse texto, a importância dos aspectos dialéticos na argumentação, pois, segundo Johnson, o argumentador, no ato de construir seu discurso, estaria pensando também nas possíveis objeções que seus ouvintes ou leitores poderiam fazer contra ele, objeções que determinariam a natureza do seu discurso. Assim, em certa medida, Johnson sai da abordagem lógica tradicional ao buscar relacionar a ordem das razões presente num argumento (the illative tier) com a audiência possível ou potencial (the dialectical tier). Entretanto, analisando as coisas desde outra perspectiva, Johnson mantém ainda traços da abordagem lógica tradicional, ao considerar que o objetivo da argumentação é a verdade, e não a verossimilhança, e ao expressar que a Retórica almeja só a persuasão. O outro alvo visado no Capítulo 1 é a concepção dialética da argumentação, representada hoje pela escola holandesa de pragmadialética, formada, entre outros, por F. H. van Eemeren, R. Gootendorst e P. Houtlosser. Essa escola tenta recuperar parte do conteúdo da antiga dialética dos gregos, fundamentando-a agora na


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integração da teoria de P. Grice 6 sobre as trocas verbais racionais com a teoria de Searle sobre os atos de fala. A pragmadialética se ocupa dos procedimentos segundo os quais ocorrem as trocas argumentativas entre um proponente de uma tese e seu oponente, quando os dois tentam resolver suas diferenças de opinião. Esses procedimentos não devem violar determinadas regras que encontram sua justificação nas normas estabelecidas por Grice para a comunicação racional. Tindale reconhece três defeitos nesse tipo de abordagem (p.14-19). Em primeiro lugar, mesmo que Van Eemeren e Houtlosser tenham integrado, em trabalhos recentes, a Retórica ao seu modelo 7 , eles a consideram a Retórica como uma servente (handmaid) da Dialética. Essa posição decorre do fato de os autores holandeses supracitados considerarem que a Dialética versa sobre questões abstratas ao passo que a Retórica se ocupa com casos específicos e que a efetividade desta deve estar subordinada à racionalidade daquela. Em segundo lugar, segundo Tindale, nem toda argumentação pode ser representada como um processo que visa a resolver diferenças de opinião entre dois adversários. Em terceiro lugar, outro defeito da abordagem pragmadialética está, para Tindale, em negligenciar que todo discurso argumentativo está dirigido a uma audiência que não se reduz ao oponente explícito de uma tese proposta. São procedimentos usuais, dentro do discurso argumentativo, a prolepsis ou antecipação, através da qual aquele que argumenta se adianta a possíveis objeções, e a apóstrofe, que consiste em se dirigir a um interlocutor ou grupo de interlocutores que não aparecem explicitamente dentro do diálogo argumentativo. A perspectiva da pragmadialética, segundo Tindale, não lograria encaixar, de forma satisfatória, dentro do seu modelo, esses recursos argumentativos. 6

Cf. Grice, P. Study in the Way of Words.Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989 e Grice, P. Logic and conversation. In: P.Cole e J.Morgan(eds.), Syntax and Semantics, v. 3: Speech Acts. New York: Academic Press, p. 41-58, 1975. 7 Cf. Eemeren, F. H. van e Houtlosser, P. Rhetoric in pragma-dialectics. Argumentation, Interpretation, Rhetoric, www.argumentation.spb.ru/2000_1/index.htm, 2000.


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O Capítulo 2, Argumento como Retórica (p. 29-57) possui um caráter histórico-filosófico. Nesse capítulo, Tindale se propõe como objetivo desfazer a concepção tradicional da Retórica vista como uma arte cujo único fim consistiria na persuasão e que não se importaria com valores epistêmicos. De acordo com nosso autor, tanto Platão quanto Aristóteles, nos transmitiram uma imagem distorcida da Retórica, o primeiro mais que o segundo. No Górgias, ela é apresentada por Platão como uma arte que consiste em iludir. Seria a uma genuína ciência da justiça o que a culinária é para a medicina ou a cosmetologia é para a ginástica. 8 Assim, se nós queremos apreender o seu autêntico caráter, sustenta Tindale, devemos ir até sua origem, nos sofistas gregos do século V. a.C., em personagens como Górgias e Protágoras. Neles reconheceremos a Retórica como uma arte convidativa (Rhetoric as invitational) cujo objetivo consiste na construção coletiva de conhecimentos e valores. Assim, não é verdade que essa arte negligencia qualquer tipo de valor epistêmico. Mesmo que a argumentação retórica não nos possa dar conclusões necessariamente verdadeiras, serve ela para sustentar conclusões prováveis. Em grande medida, Tindale atribui à Retórica características que Aristóteles já lhe outorgara na sua Retórica. Parte essencial dessa disciplina é a inventio, a arte de encontrar argumentos para defender uma determinada tese. Nesse labor de encontrar argumentos, descobrimos fatos e hierarquias de valores. No Capítulo 3, Retórica como argumento (p. 59-86), Tindale se ocupa das figuras retóricas. No período final da Retórica greco-latina, as figuras retóricas começaram a ser consideradas como trópoi , recursos estilísticos destinados a embelezar o discurso literário, formas de usar a linguagem que alteram o significado literal das palavras. 9 A partir dessas perspectivas, foi feita a distinção tradicional entre figuras de palavras, como a aliteração e 8 9

Cf. Górgias, 465. No final da Antigüidade, a Retórica se transformou de uma teoria da argumentação em uma arte para embelezar o discurso. Para o estudo desse processo ver: Todorov, T. Teorias do Símbolo, Cap. 2 e 3, Campinas: Papirus, 1996, e Ricoeur, P. A Metáfora viva. Estudos I e II , São Paulo: Loyola, 2000.


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figuras de pensamento, como a ironia. Perelman e Tyteca se afastaram dessa caracterização e reconheceram também o valor argumentativo, e não apenas estilístico das figuras retóricas 10 . Elas podem ser ainda pensadas como esquemas argumentativos condensados. Assim, os autores do Tratado da Argumentação consideraram a metáfora uma analogia abreviada. Quando, por exemplo, nós falamos do outono da vida, estamos estabelecendo a seguinte analogia: o outono é para o ano o que a idade madura é para o tempo de vida. A metáfora surgiria, na visão de Perelman, a partir da omissão de dois termos da analogia 11 . Desde uma outra perspectiva, também J. Fahnestock reconheceu o valor argumentativo das figuras retóricas. O livro de Fahnestock, Rhetorical figures in science, ilustra o uso das figuras retóricas dentro do raciocínio científico. No Capítulo 3, Tindale, apoiando-se nas investigações de Perelman-Tyteca, de Reboul e de Fahnestock advoga por uma concepção das figuras mais ampla do que aquela que as considera como tropoi. Muitas figuras retóricas, afirma Tindale, são aptas para servir como argumentos e para engajar a audiência devido às maneiras como são interpretadas (p. 73-86) . O Capítulo 4, Contextos retóricos e o dialógico ( p. 89-110), é um dos mais importantes do livro, quiçá o mais importante. Aqui Tindale tenta fazer uma síntese entre os aportes de Bakthin 12 e aqueles vindos da Nova Retórica de Perelman-Tyteca. O conceito de polifonia que Bakhtin usou na análise de textos narrativos também pode ser aplicado ao texto argumentativo, porque nele reconhecemos também diferentes vozes. O texto argumentativo deve ser considerado como contendo, no seu seio, diferentes diálogos, mesmo quando, aparentemente, ele se reveste da forma de um 10

Cf. Perelman, Ch. e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Segunda Parte, Cap. 3, p. 189-203. 11 Cf. Perelman, Ch. e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação, São Paulo: Martins Fontes, 1996. Terceira Parte, Cap. 3, p. 453-459. 12 Cf. Bakhtin, M .The dialogic interpretation: Four essays Tradução para o inglês de C. Emerson e M. Holquist.Austin: University of Austin Press, 1981, e Bakthin, M. Speech genres and other later essays. Tradução para o inglês de C. Emerson e M. Holquist, Austin: University of Texas Press, 1986.


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monólogo, como no caso do ensaio filosófico ou sociológico. O argumentador está sempre argüindo contra alguém, contra um oponente que existiu, exista ou possa existir. Essas objeções reais ou possíveis determinam a forma de construção da argumentação. Nesse capítulo, Tindale introduz elementos do que ele chama do dialogismo de Bakthin para construir um novo modelo para a argumentação desde uma perspectiva retórica. No Capítulo 5, Marcianos, filósofos e pessoas razoáveis: a construção da objetividade (p. 115-130) Tindale se ocupa da seguinte estratégia argumentativa: como arma para fazer prevalecer seus pontos de vista, o argumentador se coloca fora da situação da argumentação (como se fosse um marciano) e julga seus oponentes irracionais. Assim, ele se poupa do esforço de construir um argumento para convencê-los. O recurso a esse expediente é uma forma de omitir o debate. Na seqüência, Tindale desenvolve a questão da possibilidade de se estabelecerem parâmetros de algum tipo para avaliar os argumentos, isto é, para distinguir entre um bom argumento e um argumento ruim. Um dos objetivos de qualquer teoria da argumentação é distinguir entre argumentos que possamos considerar razoáveis e argumentos falaciosos. Para aquele que advoga por uma abordagem lógica para a argumentação, o critério é claro: o argumento bom é aquele cuja conclusão se segue de premissas verdadeiras, usando esquemas de inferência corretos. É tarefa da Lógica, formal ou informal, identificar e inventariar esses esquemas, e o critério para reconhecê-los é claro: são válidos aqueles que nos levam de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras. Na perspectiva da pragmadialética, um argumento falacioso é aquele que viola alguma das regras necessárias para que tenha lugar uma discussão crítica. Mas, para quem advoga, como Tindale, por uma abordagem retórica, a distinção entre bons e maus argumentos deve estar dada em termos da audiência, nesse caso, pela audiência universal. É ela a fonte para os padrões objetivos que determinam uma boa argumentação. No Capítulo 6, Desenvolvendo a audiência universal (p. 133-154), Tindale explicita o conceito de audiência universal,


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introduzido nos estudos sobre argumentação por Perelman. 13 Cada argumento, observou Perelman, está dirigido a uma audiência específica, e aquele que o profere leva em conta isso. Mas há argumentos, como os da Filosofia, que estão dirigidos a qualquer ser humano, enquanto mero ser racional, fazendo abstração das particularidades que possam ter. Os homens, considerados desse modo, formam o que Perelman chama a audiência universal, que dá os parâmetros para a boa argumentação. Um argumento que convença a audiência universal é um bom argumento. É claro que essa é uma abstração, mas uma abstração, segundo Tindale, bem fundada porque surge a partir de uma idealização das audiências reais. No Capítulo 7, A verdade sobre os orangotangos: critérios opostos de adequação das premissas (p. 157-177) Tindale se ocupa dos valores epistêmicos presentes na argumentação. Segundo a perspectiva lógica, o fim da argumentação é obter a verdade, conforme à perspectiva dialética, a verossimilhança, e de acordo com a retórica, a persuasão. Verdade e verossimilhança são valores epistêmicos. Como o autor redefine a Retórica, aproximando-a da Dialética dos gregos (e não da Dialética da escola holandesa da pragmadialética), torna evidente que considera o objetivo da argumentação a verossimilhança. Os valores epistêmicos são os que permitem fundamentar critérios de aceitação para um argumento. Se escolhermos a verdade como valor, falaremos de argumentos válidos e diremos que um argumento é válido quando, de premissas verdadeiras, obtemos conclusões verdadeiras. Se escolhermos a verossimilhança, falaremos de argumentos aceitáveis e diremos que um argumento é aceitável quando, de premissas verossímeis obtemos uma conclusão verossímil. A razão levantada por Tindale para preferir a verossimilhança à verdade é que, segundo ele, não existe nenhuma teoria filosófica satisfatória da verdade. A teoria da verdade como correspondência, ainda que aparentemente simples, só se mostra satisfatória no caso de linguagens artificiais, como os 13

Cf. Perelman, Ch e Tyteca, L. O. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Primeira Parte, Cap. 1, p. 34-39.


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sistemas formais estudados pelos lógicos matemáticos. Uma outra teoria da verdade é aquela da verdade como coerência. Mas Tindale apenas se refere a ela no seu livro. Uma terceira forma de teoria de verdade diz respeito àquelas teorias relativistas que situam a noção de verdade num determinado contexto sociocultural. Mas o autor não vê vantagens em aceitá-las, pois, em sua opinião, elas se acham muito mais próximas de nos dar um critério de aceitabilidade de argumentos que um de validade, de forma que chegamos, assim, ao mesmo resultado que teríamos obtido se, de início, houvéssemos colocado a verossimilhança como valor epistêmico a ser obtido através do discurso argumentativo. O Capítulo 8, Conclusões retóricas (p. 179-190), é um resumo dos resultados obtidos. O título da primeira parte desse capítulo, De Protágoras a Bakhtin, nos dá idéia da novidade desse livro que está na tentativa de fazer confluir duas tradições intelectuais diferentes, a da Retórica clássica e a da polifonia e do dialogismo de Bakhtin, no intuito de obter um modelo satisfatório da argumentação. Rhetorical Argumentation é um livro escrito por um filósofo, mas que interessa não apenas àqueles interessados na Filosofia antiga e na argumentação filosófica, mas também a todos os que estudam a comunicação e a linguagem. Cada capítulo está acompanhado por um resumo final, sumário das conclusões obtidas previamente. Além de referências a textos clássicos, o livro contém outras a trabalhos bem recentes que o autor analisa com suma atenção, mas que não são suficientemente conhecidos no nosso meio.


Reboul, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 253 páginas. Glenn W. Erickson *

Originalmente publicado em 1991 sob o título Introducion à la rhetorique: théorie et pratique, e como a primeira edição portuguesa foi publicada em 1998, este estudo introdutório à ciência retórica já é clássico. O aparato formal inclui Prefácio, Introdução, Notas, Bibliografia sumária, e Índice remissivo e glossário dos termos técnicos. Alternamente histórico e sistemático, o texto principal tem nove capítulos e uma conclusão “A guisa de uma conclusão”. Os primeiros quatro capítulos revisam a história da retórica com a teoria aristotélica bem no centro. O primeiro capítulo, “Origens da retórica na Grécia”, documenta as contribuições de Córax, Górgias, Protágoras, Isócrates e Platão no desenvolvimento da retórica. O segundo capítulo, “Aristóteles, a retórica e a dialética”, analisa a definição de Aristóteles em que retórica “é a arte de achar os meios de persuasão de que cada caso comporta” (p. 24), tratando as relações entre retórica e filosofia. O terceiro capítulo, “O sistema retórico”, revisa as quatro partes da retórica na acepção aristotélica: invenção, disposição, elocução e ação. E o quarto capítulo, “Do século I ao XX”, trata da fortuna da retórica na era cristã, dividida entre o período romano, o declínio e as múltiplas retóricas da atualidade. Depois do tratamento histórico, o resto do livro introduz vários termos técnicos e ilustra a leitura retórica. Os capítulos quinto e sexto, “Argumentação” e “Figuras”, tratam de dois aspectos destacados pelas novas retóricas alternativas mencionadas acima. *

Professor titular do ericksons@ufrnet.br

Departamento

de

Filosofia

da

UFRN.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 277-281.

E-mail:


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Glenn W. Erickson

Reboul insiste em que retórica é sempre argumentativa e estilística ao mesmo tempo. O último destes capítulos divide seu tópico em figuras de palavras, de sentido, de construção e de pensamento. Por fim, o sétimo (“Leitura retórica dos textos”), oitavo, (“Como identificar argumentos?) e nono (“Exemplos de leitura retórica”) capítulos analisam noções de, e exemplos para, a leitura retórica. A Introdução, “Natureza e função da retórica”, define retórica como “a arte de persuadir pelo discurso” (p. xiv), onde discurso é “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma seqüência de frases, que tendo começo e fim e apresente certa unidade de sentido” (p. xiv), e persuadir é “levar alguém a crer em alguma coisa” (p. xv). Logo em seguida, Olivier Reboul (1925-1992) refina sua definição por dizer que “em retórica razão e sentimentos são inseparáveis” (p. xvii). Assim demonstração, no sentido de um “meio de convencimento puramente racional”, não é retórica (p. xviii). Nosso interesse imediato no livro se deriva de sua relevância para a filosofia. Já no Prefácio, Reboul, que é por sinal filósofo acadêmico, argumenta que a retórica foi instrumento de filósofos (p. xi). Na Introdução, ele argumenta que, por pretender persuadir, o tratado de filosofia é retórico de acordo com sua definição (p. xiv). Um professor de filosofia avalia redações em termos de conceitos retóricos: “respeito para o assunto, ao plano, à argumentação, ao estilo, a personalidade” (p. xxii). Note-se que para a colocação de Reboul de ser válida, o tratado de filosofia não pode ser, por ser do tipo do discurso que ele é, um meio de convencimento puramente racional. Em outras palavras, este gênero filosófico é intrinsecamente argumentativo no sentido de que ele sempre tem um aspecto afetivo (ver xviii). No quinto capitulo, Reboul dá cinco argumentos segundo os quais a filosofia pode não ser demonstrativa no sentido técnico. Primeiro, desde que qualquer língua natural é polissêmica e a sua sintaxe ambígua, demonstração é possível apenas em uma língua artificial sem estas limitações (p. 94). Segundo, talvez filosofia não lida com o verdadeiro ou falso e sim com o mais ou menos


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verossímil (p. 95). Terceiro, “os filósofos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas, embora a demonstração só possa redundar numa verdade única” (p. 110). Quarto, “as estruturas de demonstração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos, Kant, Hegel, Bérgson, Husserl, neopositivistas e outras. Há uma só matemática, enquanto existem várias filosofias” (p. 110). E o quinto “é que os filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à argumentação” (p. 110). Para Reboul, a reivindicação filosófica de ser demonstrativa não passa de um “lugar” (argumento-tipo) de filosofia. Aqui Reboul advoga a doutrina neokantista de que as crenças típicas de um “epistemé” (Foucault) constituem um a priori concreto ou histórico, correspondentes a uma realidade imanente e não transcendente à razão humana. Ele utiliza “lugares” (padrões de expressão convencionais) tradicionais contra a filosofia para estabelecer a autonomia relativa (ou até mesmo a hegemonia) da retórica. Assim Reboul é cruzamento de Sexto Empírico com Ernst Cassirer. Enquanto a função primordial da retórica é aquela nomeada na sua definição, a saber, persuasão (p. xvii), há três outras funções da retórica: a hermenêutica (interpretação ou compreensão), a heurística (descoberta ou invenção) e a pedagógica (transmissão ou formação) (v. xviii-xxii). Retórica funciona do modo hermenêutico porque a sua lei fundamental é que o praticante nunca está sozinho: ele sempre pratica seu discurso em função de outros (p. xvii-xix). Não fica claro para mim por que seu caráter interpessoal faça a retórica hermenêutica, desde que ela é inevitavelmente hermenêutica caso o praticante tenha que interpretar o que ele mesmo está pensando. Ainda que a língua seja interpessoal, como Saussure mantém, e mesmo que significado tenha que envolver critérios públicos, como o argumento da linguagem privada de Wittgenstein implica, isto não confirma a teoria comunicativa da linguagem, conforme a qual a linguagem funciona no primeiro momento para comunicar. Como Heidegger representa, antes que se possa comunicar um pensamento a alguém, é mister que o pensamento se


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apresente, e isto já implica uma expressão lingüística compreendida (hermeneuticamente). Enquanto lia Reboul, fiquei pensando que ele estava se posicionando sobre assuntos filosóficos, mas de tal maneira que o seu jogo ficou escondido. Dando a aparência de passar inócuas explicações sobre a retórica aos iniciantes, ele estava de fato argumentando em prol de certa metafísica, certa epistemologia. Quando pergunto qual peixe Reboul está vendendo, a reposta sempre vem “Neokantismo!” A sua célebre definição de retórica como a arte de persuadir por discurso já indica sua orientação. Uma vez que persuadir significa “levar alguém a crer em alguma coisa”, Reboul prioriza crença, ou seja, uma postura com respeito à verdade ou inverdade de uma proposição. Em breve, retórica é uma arte que se deriva da faculdade de conceitos, isto é, o entendimento no sentido kantista. Desde que o homem não tem uma intuição intelectual e sim, sensual (leia-se: linguisticamente natural), ele não pode ter uma arte demonstrativa (de convencimento puramente racional). Assim filosofia é inevitavelmente uma aplicação da retórica, combinando argumento e oratória. No quarto capítulo Reboul caracteriza a diferença de retóricas contemporâneas daquela tradicional em termos de três aspectos: em vez de produzir textos, a nova retórica os interpreta; em vez de limitar-se à argumentação judiciária, deliberativa e epidíctica, a nova retórica amplia-se para incluir novos ramos de persuasão (propaganda e relações públicas) e mesmo práticas não persuasivas (poesia). Entre as teorias recentes (p. 88-90), Reboul destaca uma retórica de estilo (Jean Cohen, o grupo UM, Gerard Genette, Roland Barthes), que destaca figuras ou tropos (e o conceito de “escritura grau zero”), de um lado, e um retórica de argumentação (Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteka), que destaca lugares (commonplaces), de outro. Note-se que a sua própria definição, sem dar prioridade a qualquer uma destas alternativas, é bem no espírito de Ferdinand de Saussure quando ele nega que pode especificar qual a extensão do signo lingüístico. Estas alternativas servem como as posições, respectivamente empirista e racionalista,


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que Reboul sintetiza neokantistamente-demasiadamenteneokantistamente. Vamos examinar um detalhe do ceticismo reboulesque. Etimologia foi um modismo na filosofia do século vinte: Heidegger desenvolve suas considerações muitas vezes em cima de etimologia, e J. L. Austin (em Como Fazer Coisas com Palavras) argumenta que uma vez que as palavras nunca perdem inteiramente seu sentido radical, convém para o filósofo determinar o significado das palavras no contexto das suas origens. Por contraste, Wittgenstein dispensa totalmente etimologia. Nas Investigações Filosóficas, ele mantém que o filósofo pode inventar história natural (das palavras, por hipótese) para seus propósitos. Reboul fica com Wittgenstein quando ele identifica etimologia como uma figura de palavras (e assim um argumento retórico), a saber, a antanáclase (p. 118-19), que é o tomar uma palavra em dois sentidos um pouco diferentes (p. 243). Acho Reboul nada antipático em ser tão anti-filosófico em tudo. Todavia, sendo de um humor heideggeriano, eu me encontro defendendo que há um modo de pensamento (digamos, pósfilosófico) – e, o que é mais, uma exposição de pensamento – que escapa de ser retórico mesmo nos termos neutros (ou até honoríficos) que ele entende. Diferentemente que filosofia, o “pensamento essencial” (projetado por Heidegger) não tenta persuadir ninguém de nada, não está iludido com o ideal demonstrativo (nem com a pretensão à verdade) das ciências, e está longe de envergonhar-se da sintaxe e semântica da língua natural. Ele não é heurístico, muito menos pedagógico, e sim, hermenêutico, não porque seja interpessoal (ainda que o seja), mas por ser a compreensão enquanto compreensão (ratio qua ratio). Para mim, pensamento essencial aproxima aquilo que Aristóteles trata como a diferença específica entre o homem e a besta (dito: logos, razão, verbo) especialmente quando o homem não se trata, à modo de Aristóteles, como uma besta com valor extra. Dasein autêntico, palavra de honra!


Brito, Adriano Naves de (Org.). Ética: questões de fundamentação. Brasília: UnB, 2007. 352 páginas. Ivanaldo Santos *

O livro organizado por Adriano Naves de Brito é resultado das discussões realizadas durante o Simpósio sobre Ética em 1988 na cidade de Goiânia-GO. Este simpósio tinha como proposta central a discussão sobre a possibilidade de haver uma fundamentação para a ética e as perspectivas decorrentes dessa possibilidade. O catalisador inicial das discussões foi o pensamento do filósofo alemão Ernst Tugendhat, ou seja, a preocupação investigativa desse filósofo em discutir e, se possível, desonerar a moral de todo dogmatismo, sem, contudo, deixá-la à mercê do relativismo. Entretanto, o leitor deve ver o pensamento de Tugendhat apenas como um ponto de partida das discussões e não como o centro de possíveis deliberações teóricas. O livro é uma relevante discussão, realizada por vários filósofos, sobre os limites e as conseqüências do ceticismo moral, do niilismo que anuncia o fim da ciência e da crise dos paradigmas éticos ocidentais. É organizado em três grandes partes, partes que não possuem um títulos; essas partes são, na essência, áreas de discussões e de interface entre a possibilidade de fundamentação da ética e outras áreas da filosofia como, por exemplo, a estética e a lógica. A primeira parte do livro é iniciada com dois textos de Tugendhat. No primeiro, “Reflexões sobre o que significa justificar juízos morais”, o autor coloca a necessidade de discutir a problemática da fundamentação em ética. Em suas palavras; “a suposição de que juízos morais estão relacionados com razões, que eles precisam de justificação, não é um capricho e não deriva de uma analogia problemática com juízos fáticos, mas da própria *

Professor do Departamento ivanaldosantos@yahoo.com..br

de

Filosofia

da

UERN.

Princípios, Natal, v. 14 n. 21, jan./jun. 2007, p. 282-288.

E-mail:


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necessidade de justificação inerente aos juízos morais” (p. 21). Apesar de apontar essa necessidade, o texto de Tugendhat esbarra no problema da consistência conceitual da própria discussão realizada e é concluído apresentando a questão das relações intersubjetivas mais desejáveis pro parte dos indivíduos. No segundo, “O contratualismo na moral”, Tugendhat apresenta, de forma sucinta, as três dificuldades do contratualismo na moral. Para ele, essas dificuldades são: 1) O contratualismo teria que ver a consciência como um resíduo de uma moral esclarecida que deveria ser desmontada. 2) No contratualismo, a moral não teria sempre só aquela extensão que é útil para as pessoas? O problema dessa pergunta é que uma moral como essa não pode ser entendida nem como igualitária e nem como universal. 3) Se a moral deve ser entendida como contrato implícito, então como deve ser entendido esse contrato? Tugendhat reflete sobre essas três dificuldades é na tentativa de fundamentar a moral a partir do contratualismo, ele chega a seguinte conclusão: “O que é importante lembrar é que o acordo é um contrato não só para as ações, mas igualmente para ter os correspondentes afetos mútuos. Assim, o contrato implica a motivação para criar e cultivar a consciência, quer dizer, a disposição afetiva de respeitar o acordo” (p. 46). O problema da conclusão de Tugendhat, ou seja, que para se fundamentar uma moral é necessário, além de ter o contrato explícito, haver a “disposição afetiva” dos membros do contrato em cumpri-lo, é que é possível se fazer uma séria objeção a esta conclusão. A objeção é que os membros do acordo podem cumpri-lo apenas por medo de sofrer alguma represália, seja psicológica, física ou econômica, e, dessa forma, a disposição afetiva torna-se apenas uma forma de camuflar este medo. Sobre essa possível objeção, Tugendhat não realiza qualquer discussão. O terceiro texto é de Julio Cabrera, professor do departamento de filosofia da Universidade de Brasília. Seu texto, “Ética e condição humana: notas para uma fundamentação natural da moral”, é uma constatação de que o problema da fundamentação


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da moral existe e tem que ser discutido. Entretanto, ao contrário de Tugendhat que critica a tentativa de fundamentação natural da moral, Cabrera percebe essa tentativa como válida. Neste sentido, Cabrera apresenta-se como um crítico de Tugendhat. Em suas palavras: “Aquilo que impede Tugendhat ... de visualizar a possibilidade de uma fundamentação natural da moral é sua impossibilidade de conceber a natureza fora de suas concepções maximalistas (metafísico-teológicas) tradicionais” (p. 72). É justamente a possibilidade que limita Tugendhat que Cabrera tenta construir. Ele tenta construir essa possibilidade recorrendo à racionalidade da condição humana. O problema dessa tentativa é que Cabrera não explica como superar a crise da racionalidade e como em um mundo carregado por conflitos culturais definir uma condição humana universal. O quarto texto é de Adriano Naves de Brito, professor do departamento de filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Este texto, intitulado “Sobre a fundamentação da moral”, é uma crítica, um tanto quanto cética, aos programas de fundamentação da moral edificados a partir da razão pura tal qual Kant inicialmente projetou. Para Brito, “não há um sentido objetivo para a justificação moral, ou seja, um sentido independente de nossas preferências subjetivas. Em última instância, essa preferência subjetiva manifesta-se em nossa escolha” (p. 115). Apesar da brilhante exposição crítica contra o fundacionismo moral de inspiração kantiana, Brito não consegue demonstrar a proposição que, pelo menos inicialmente, deseja demonstrar, ou seja, de que “em uma palavra, a justificação [da moral] não pode ser arbitrária” (p. 103). Este texto recebeu uma réplica de Julio Cabrera, intitulada “Acerca de uma fundamentação natural da moral (Breve réplica ao comentário de Adriano Naves de Brito)”. Nela Cabrera muito mais que debater com o texto de Brito procura demonstrar, de forma cética e cautelosa, a necessidade de discutir a fundamentação da moral dentro das diversas exigências (científicas, religiosas, culturais, etc.) que norteiam o nascente século XXI. Entretanto, essa


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procura deixa a posição de Cabrera ainda mais enfraquecida. Isto se dá porque, de um lado, ele não consegue introduzir novos argumentos que fortaleçam sua posição com relação a necessidade da fundamentação natural da moral e, de outro lado, ele não consegue repelir, de forma convincente, a posição teórica adotada por Brito. Após a réplica de Cabrera tem-se o texto de Thomas Kesselring, professor de filosofia na universidade alemã de Bern. Seu texto, “O ser humano no campo de tensão entre tradição e universalização”, é norteado pelos três seguintes desafios. Primeiro, a questão específica da ética moderna universalista tornar-se mais evidente. Isto se dá à medida que contrapõe-se à concepção de uma ética tradicional pré-iluminista. Segundo, chama a atenção para uma característica da moderna ética universalista, à qual esta deve de modo significativo seu caráter progressivo, mas que também, considerada mais de perto, pode ser identificada como um indubitável ponto de fraqueza. Terceiro, a moral moderna é suficientemente flexível para superar pontos fracos. A conclusão que ele chega é que é preciso realizar uma síntese dos “paradigmas da ética pré-iluminista e da ética moderna” (p. 141). Entretanto, o leitor crítico ficará um tanto quanto decepcionado com a proposta de Kesselring, justamente porque ele lança essa proposta audaciosa mas não dá qualquer caminho argumentativo e teórico para se alcançar essa proposta. Já o texto de Fernando Rodrigues, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “A estrutura dos juízos morais”, realiza uma discussão sobre a fundamentação semântica dos juízos morais. Para tanto, concentra essa discussão na importância, na utilização e nas formas de manifestação do verbo “dever”. Segundo ele, essa concentração é importante porque “como nos juízos morais em que ocorre o verbo ‘dever’ parece que nos comprometemos de fato com a verdade da frase” (p. 155). Entretanto, Rodrigues não consegue demonstrar se é possível fundamentar alguma perspectiva moral a partir do verbo “dever’.


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A segunda parte do livro possui dois textos que abordam a temática a partir da discussão realizada por Heidegger. O primeiro é o texto de Zeliko Loparic, professor do programa de pós-graduação em psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Neste texto, intitulado “A ética originária e a práxis racionalizada”, o autor parte da crítica de Tugendhat à Heidegger. Nas palavras de Loparic, “Convencido da força de sua posição, por ela ser ‘metodologicamente correta’ e ‘teoricamente relevante’, Tugendhat propõe-se a decidir quais teses de Heidegger são aceitáveis, quais, embora mal formuladas, podem ainda ser salvas e quais, finalmente, são simplesmente erradas” (p. 169). Após uma breve exegese da obra de Tugendhat e de Heidegger, Loparic conclui que ao “perder de vista a problemática kantiana do a priori, Tugendhat também fechou a porta de entrada ao pensamento heideggeriano” (p. 178). A partir dessa conclusão ele afirma que em Heidegger o homem não é definido pelas necessidades empíricas, mas por uma urgência que possibilita a priori todos os outros aspectos da vida humana. Dentro da discussão proposta pela temática geral do livro, o texto de Loparic torna-se relevante porque apresenta os limites e falhas do pensamento de Tugendhat. O segundo texto é o de Claudia Drucker, professora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Neste texto, “A autodeterminação em Heidegger”, a autora defende o pressuposto que embora relevante a tradição filosófica não consegue formular o problema da autodeterminação de forma satisfatória. Para ela, um bom exemplo desse problema é Heidegger. Apesar dele discutir de forma brilhante os limites da tradição e uma possível releitura da mesma, não consegue apontar, de forma convincente, mecanismos para refundar a autodeterminação a partir da tradição ou buscar além dela essa autodeterminação. Na terceira parte do livro discute-se a temática central a partir de três perspectivas, sendo elas: Aristóteles, Rawls e Bloch. O primeiro texto é de Marco Zingano, professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Este texto, intitulado “Deliberação, indeterminação e inferência prática em Aristóteles”,


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realiza uma longa exegese da Ética a Nicômaco de Aristóteles. Entretanto, ao invés de apresentar uma possível fundamentação da ética a partir desse texto realiza o contrário, ou seja, encontra nele fissuras teóricas que possibilitam impor um “limite considerável às ambições de toda moral” (p. 295). O segundo texto é de Wilson Mendonça, professor do departamento de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Intitulado “Calculando com direitos e bens: deontologia em Rawls”, parte das objeções realizadas por Alasdair MacIntyre, no livro After Virtue (Depois da virtude) ao pensamento de Rawls. A idéia central da argumentação de Mendonça é que toda sociologia moral tem como contrapartida uma sociologia particular. Ele parte do debate entre MacIntyre e Rawls. Neste texto o autor apresenta a possibilidade de se construir uma fundamentação da moral a partir dos elementos constitutivos da sociedade contemporânea e de mercado. Entretanto, assim como no texto de Cabrera, Kesselring e de Rodrigues não há uma demonstração ou uma apresentação consistente de uma possibilidade viável para a construção dessa fundamentação. O último texto da coletânea, ou seja, o texto de Susana Albornoz, professora do departamento de filosofia da Universidade de Santa Cruz do Sul, intitulado “A união de Dioniso e Apolo: os ideais morais segundo Ernst Bloch”, levanta a possibilidade de que os elementos característicos de Apolo e de Dioniso, isto é, a regra moral e a inclinação natural, podem ser unidos. Para este fim, Albornoz reconstrói, fundamentado em Ernst Bloch, as duas figuras mitológicas, Dioniso e Apolo, e por meio dessa reconstrução procura abrir um horizonte para uma ética da conciliação. Essa ética teria como objetivo criar uma “utopia de cunho moral” (p. 335) que libertaria o ser humano da exploração e da violência da sociedade capitalista. O problema do texto de Albornoz é que ao invés de procurar construir um fundamento filosófico para a chamada “utopia moral”, ela limita-se a realizar uma exegese do capítulo XVIII do livro O princípio esperança de Bloch. A discussão que, aparentemente, é promissora termina caindo em uma simples apresentação exegética.


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Para encerar é preciso afirmar que o livro é uma ótima apresentação da problemática contemporânea sobre a fundamentação da ética. Nele são abordados questões e autores variados que abordam a temática de diversos ângulos diferentes.


Erickson, Sandra S. F., e Erickson, Glenn W. Logos & poesis: neoplatonismo e literatura. Natal: EDUFRN, 2006. 193 páginas. Pablo Capistrano * Uma forma usual de problematizar as relações possíveis entre literatura e filosofia se dá através do manuseio de definições. Compreender abstratamente a definição de literatura e a definição de filosofia para, a partir daí, problematizar seus espaços de contato pode ser uma imensa tentação intelectual, mas, talvez, não seja o melhor caminho para se tratar do tema. A ilusão metafísica de que existem duas categorias fechadas (“literatura” e “filosofia”) pode contribuir para um exercício aporético e circular que não leva muito longe. O melhor modo de se tratar das relações envolvendo textos literários e filosóficos parece ser mesmo o de observar, in loco, como obras filosóficas dialogam com obras literárias. Abandonar a ilusão da existência de universais fechados e compreender os particulares em suas particularidades. O livro objeto da presente resenha partilha desse entendimento e constrói com rigor e exatidão uma forma de análise que privilegia, ao invés de definições gerais e estáticas a partir de conceitos vazios, exemplos de obras literárias, para fazer surgir os pontos de conexão dessas mesmas obras com a tradição filosófica. Nesse sentido o referido livro é uma coletânea de ensaios críticos, produzidos em inglês e em português, que investigam as relações entre literatura e filosofia a partir da análise crítica de textos de Geoffrey Chaucer, Cervantes, Mario Vargas Llosa, Cunninghame Graham e Euclides da Cunha, incluindo também uma análise sobre o filme Brazil, de Terry Gilliam. O livro se inicia com um ensaio acerca da melancolia criativa e do modo como esse tópico de ausência e de busca de um objeto perdido do desejo é transportado a partir de uma tradição *

Doutorando do PPgEL/UFRN. E-mail: pablocapistrano@yahoo.com.br

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 289-293.


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filosófica que remonta à Empédocles, até a moderna crítica literária norte americana, a partir das apropriações e construções teóricas de Harold Bloom. Há uma divisão temática clara nos ensaios. Surge nos primeiros quatro textos (“Melancolia & poesia: em busca de um estatuto para o objeto perdido do desejo”; “Neoplatonic consolation in Chaucer´s The Book of The Duchess”; “Cristianismo neoplatônico em La Celestina”; e “Reality, Identity & Ideality in Don Quixote de La Mancha”), bem como no último (IX To Old Brazil), uma maior variedade temática com objetos diversos, que orbitam desde a presença da influência do neoplatonismo cristão no The Book of the Duchess de Chaucer e La Celestina, ou da discussão epistemológica que pode ser recomposta a partir da interpretação do personagem Dom Quixote, na obra de Cervantes. A partir dessa gama variável de temas e leituras, os autores constroem tessituras teóricas que permitem emergir do mais profundo dos textos o liame que obras literárias mantêm com diversos aspectos da tradição filosófica ocidental. Como por exemplo, no que diz respeito às relações que o texto de Chaucer sustém com a obra “Comentário sobre ‘O sono de Cipião’” de Macrobius, apropriando-se o primeiro das fontes imagéticas que povoam o segundo texto. Esse é um claro exemplo de como é possível, a partir da leitura de um texto literário especifico, extrair a base da tradição filosófica que o compõe. Neste sentido, o casal Erickson identifica elementos do pitagorismo presentes na estrutura numerológica existente na obra de Chaucer assim como mostram a presença de relações astrológicas comuns ao ambiente intelectual neoplatônico. As chaves neoplatônicas presentes na Teologia Cristã dos primeiros anos do milênio passado aparecem também na interpretação do texto La Celestina de Fernando de Rojas. Nessa obra, os Ericksons apontam a presença dos modelos matemáticos estabelecidos a partir da academia de Platão, conectando as tradições que envolvem desde as formas geométricas dos triângulos pitagóricos, às fontes imagéticas e numerologias do Apocalipse de São João e ao Tarô de Ferrara. Assim fica evidenciado um conjunto


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de imagens presentes na obra de Rojas que o filiaria a esse mesmo corpus neoplatônico. No ensaio sobre Dom Quixote, a base filosófica que se configura a partir da obra de Cervantes se dá de uma outra forma, no sentido de uma discussão epistemológica presente na crítica literária, acerca do status da personagem central. A loucura de Quixote é vista a partir de uma base epistêmica que problematiza as relações entre realidade e idealidade a partir do ponto de vista do homem de La Mancha. A defesa dos autores do livro é que a opção de Cervantes não foi a de construir um personagem delirante, preso em uma esfera de esquizoidia lingüística que o apartasse da realidade e que substituísse a sanidade do ambiente que o cercava por uma ordem caótica interior. Quixote não é, a partir da leitura dos Ericksons, um “louco” no sentido psiquiátrico do termo. Não há delírio, distorção no conteúdo do pensamento. Talvez alucinação, mudança de enfoque do olhar de Quixote. A construção de Cervantes passaria por uma nova angulação para velhas coisas, com um intuito claro de subverter a ordem política de uma Espanha recém saída de uma violenta guerra de reconquista e marcada fortemente pela presença de uma inquisição selvagem e totalitária. A parte mais substancial do livro objeto dessa resenha é, no entanto, o conjunto de ensaios que gira em torno da obra de Euclides da Cunha, Os sertões (“A Dialética da terra & do homem em Os sertões”; “Cunninghame Graham’s Plagiarism of Os sertões”; “Dialectics in Mario Vargas Llosa’s La guerra del fin del mundo”) e de textos que orbitam em torno de seu núcleo temático como o livro de Vargas Llosa A Guerra do Fim do Mundo e de Brazilian Mystic (um plágio da obra de Euclides da Cunha, escrita por um obscuro escritor escocês Robert Bontine Cunninghame Graham). No primeiro destes ensaios, os Ericksons contam com a participação de Dejalma Cremonese, Professor de Filosofia na UNIJUI e ex-rientado dos autores junto ao programa de Pós-graduação em Filosofia na UFSM. A leitura feita a partir da obra de Cunha mostra que Os sertões pode ser lido como uma monografia filosófica. Isso se daria


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menos por sua forma acadêmica do que por sua filiação direta a determinadas categorias do pensamento de Hegel. Os autores tomam como ponto de partida a concepção hegeliana de tragédia exposta na leitura que Hegel faz de “Antígona” de Sófocles, na Fenomenologia do Espírito. Para Hegel, o ponto fundamental da tragédia clássica seria o conflito dialético entre personagens que representariam estágios do desenvolvimento da coletividade. Sob esse aspecto, o conflito que envolve Antígona e Creonte no texto de Sófocles a partir da leitura de Hegel poderia ser comparado com os conflitos dialéticos presentes nas obras que orbitam em torno da temática de Canudos. Contradições, oposições, antagonismos, antíteses que oporiam personagens no decorrer da narrativa, em suas várias versões, seriam assim exemplos da tensão dialética que oporia o universo medieval do sertão de Canudos, prenhe de misticismo cristão e de primitividade mestiça; ao mundo moderno, representado pelas forças da República que tentariam impor aos sertões um novo padrão social e cultural. Na tragédia de Sófocles eclode o confronto dialético entre Sittlichkeit (moralidade familiar) representada pelo discurso de Antígona e pelo apego as tradições funerárias da antiga religião privada grega; e a Legalität (legalidade institucional) representada pelo discurso de Creonte de defesa dos interesses da polis e dos cultos públicos. Em Os sertões de Euclides da Cunha, vai eclodir um confronto de mesmo modelo, com base nas mesmas categorias hegelianas. Uma moralidade arcaica e familiar, representada pelos clãs sertanejos, arrebanhados pelo profetismo bíblico de Antonio Conselheiro, contra o discurso da legalidade institucional da República do general Moreira César. Logos & Poesis, constitui-se assim, em um livro que demonstra de modo bem eficaz um interessante mecanismo hermenêutico, que elucida as relações e conexões entre literatura e filosofia a partir da base de uma tradição intelectual comum, que não permite diferenciações artificiais. A despeito dos problemas de relacionamento entre filósofos e poetas, provavelmente datados apartir da leitura que Al Farabi faz do famoso episódio da expulsão


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dos poetas da República platônica, literatura e filosofia, logos e poesis, não podem ser entendidos como esferas estanques e estacionarias, mas como formas que se interpenetram por sobre o solo de uma mesma e irredutível tradição.


Sellars, Roy, e Allen, Graham (Orgs.). The Salt Companion to Harold Bloom. Cambridge: Salt, 2007. 505 páginas. Sandra S. F. Erickson *

Em comemoração ao septuagésimo quinto aniversário do célebre teórico de crítica literária, os professores Graham Allen (University College, Cork) e Roy Sellars (Universidade da Dinamarca do Sul, Kolding) organizaram The Salt Companion to Harold Bloom. Embora a palavra Companion possa dar a idéia de que se trata de material introdutório e auxiliar para ler e compreender o sistema de Bloom, a coletânea é mais uma análise crítica de pontos vulneráveis ou frágeis da teoria de Bloom e sua recepção no meio crítico do que uma explicação de como ela funciona. Assim, esse “companheiro” não é uma ponte entre Bloom e o leitor não familiarizado com seu sistema de pensamento e seu estilo de crítica literária, ainda que esse leitor tenha familiaridade com a vasta biblioteca publicada por Bloom. O livro é uma poética, nos dois sentidos principais do termo, apresentando estudos que investigam os processos e os componentes teóricos do sistema de pensamento de Bloom e, como abertura ao compêndio, poemas escritos para ou sobre Bloom. Cada ensaio apresenta sua própria bibliografia. Todas as referências são as mais atualizadas sobre os temas tratados por cada ensaio. A bibliografia exclusivamente sobre Bloom toma por referência Frank Lentricchia (After New Criticism, Chicago, 1980), Daniel O´Hara (The Romance of Interpretation: Visionary Criticism from Pater to de Man, 1985), Jean-Pierre Mileur (Literary Revisionism and the Burden of Modenity, 1985) e Peter de Bolla (Towards Historical Rhetorics, 1988), todos recomendáveis para estudiosos do pensamento pós-moderno, especialmente da ética, da estética e produção cultural contemporânea. *

Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN. E-mail: ericksons@ufrnet.br.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 294-302.


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Na segunda parte há vinte e um ensaios. Alguns abordam a teoria de Bloom e sua recepção na crítica contemporânea e a inserção de seu pensamento no contexto do decontrucionismo de Derrida e da Escola de Yale; outros tratam do esquema metodológico desenvolvido por Bloom e das relações entre o sistema de pensamento de Bloom e a cabala judaica. O prefácio é dos organizadores e o posfácio (Afterword) do próprio Bloom. Os ensaios sobre as relações do pensamento de Bloom com a cabala são os melhores que já vi porque, além da erudição dos autores, a cabala é tratada como forma e metodologia de pensar as relações do ser e do tempo no tempo e não meramente como pensamento religioso ou místico. Talvez o público alvo do volume seja os estudiosos da crítica e teoria literária. Digo talvez porque o nível de sofisticação das discussões tem como leitor implicado aqueles que estão “por dentro” das idéias de Nietzsche, Lyotard, Levinas e marxismo contemporâneo. Mas, consciente do agon entre Literatura e Filosofia, e dos riscos que corro, considero o livro interessante para a área da filosofia, porque os ensaios discutem Bloom sempre a partir dos referenciais teóricos mais sofisticados e “fundantes” da deconstrução, ética, estética e teologia judaico-cristã com a devida profundidade filosófica. Questões de alteridade e subjetividade encontram suas bases na Fenomenologia de Heidegger e de Merleau-Ponty; incursões sobre a natureza ideológica do cânone ou da teoria de Bloom se fundamentam no velho Marx e na dialética do esclarecimento de Adorno; questões éticas são levantadas a partir de Levinas e as estéticas são embaladas por grandes sereianos canônicos, como nos ensaios de Andrew H. Klitgaard (“Bloom, Kierkegaard, and the Problem of Misreading”) e Martin McQuillan (“Bloom, Freud e Derrida”). Assim, sem ser um diamante, o livro tem suas pequenas pérolas para o deleite dos interessados nos temas já destacados. Alguns dos ensaios são fracos, a exemplo de “Sublime Theorist: Harold Bloom´s Catastrophic Theory of Literature,” de Heidi Sylvester, porque se limita a um esboço mal feito da teoria do


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sublime, cuja historiografia é bem mais complexa e interessante do que ele apresenta. Além disso, o ensaio não consegue articular de forma coerente, sistemática e objetiva, a contribuição de Bloom para o assunto, que é significante e radical; qual seja a redefinição do conceito freudiano de sublime como repressão de conteúdos psíquicos ameaçadores ou desagradáveis para um contra-sublime, que representa o confronto do poeta com a grandeza estética e o poder poético deslumbrante do poeta-pai. No agon com o pai poético ele tem que opor ao sublime do poema-pai um antídoto (contra-sublime), ou seja, ele tem que lançar mão de sua força poética para reduzir, afastar, ofuscar, distanciar-se, limitar e negar o sublime no poema pai, não por introjeção ou repressão, mas, ao contrário, por expectoração (expulsão). No sentido de Bloom, sublime representa a necessidade do poeta de expelir de dentro de seu imaginário, de sua psiquê poética, tudo o que se relaciona com o poder lingüístico do poeta pai. Por isso, “solipsismo” e “transunção” são termos usados como sinônimo de sublime. Sente-se falta, ainda, nessa discussão, do ensaio de Jean-François Lyotard (Lessons on the Analytic of the Sublime, traduzido para o inglês por Elizabeth Rottenberg, 1994), pensador que é essencial para todas as abordagens pós-modernas em qualquer área, inclusive a de Bloom. E, enquanto é verdade, como Sellars aponta, em seu prefácio, que “o sublime não pode ser pensado criticamente sem Bloom” (xix) também não pode sê-lo, sem a reflexão de Lyotard do conceito a partir do legado de Immanuel Kant até nós. Até Bloom. Muitos ensaios como o de Peter Morris (“Harold Bloom, Parody, and the Other Tradition”, 425-478), tratam da insistência de Bloom sobre a centralidade de Shakespeare para o cânone. Essa parte também é vulnerável, tanto no livro, como no próprio pensamento de Bloom. Os comentários de Bloom não são questionados nem problematizados com a devida perícia. O problema é complexo, pois toca no sistema nervoso central da teoria de Bloom. A mudança de postura de Bloom com relação a Shakespeare e Milton é objeto dos ensaios de Morris e John W. P. Phillips. Eles


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apontam, corretamente, que na primeira edição de Anxiety of Influence (1973), Bloom coloca Milton no centro do cânone, considerando-o a esfinge contra quem todo agonista tinha que se confrontar para obter a Mãe-Musa (linguagem) e a quase impossível individualidade poética. Na segunda edição (1997), Milton passa para o escanteio. Bloom esclarece, no Prefácio, que “não estava pronto para mediar entre Shakespeare, e a originalidade” (Anxiety of Influence, 2nd ed., xii), porque, desde os quatrocentos anos de sua morte, “Shakespeare influenciou o mundo muito mais do que foi influenciado por ele” e ele “faz a história muito mais do que é feito por ela” (xvi e xxvi). Os juízos já proferidos em Shakespeare: The Invention of the Human (1998) são reafirmados e o Prefácio termina. Não há mudanças substanciais na teoria. Todavia, o prefácio é importante por colocar outro poeta acima de Milton, ou seja, por rebaixar o status de Milton no cânone. Os paradigmas teóricos continuam os mesmos, mas, as relações das linhagens poéticas mudam substancialmente. Por que essa mudança radical de paradigma? O problema é mais complexo do que Morris coloca porque o tropo principal de Milton é a alusão, que no esquema de Bloom é o menor em termos de poder poético. Paradise Lost (1667) é uma enciclopédia de referências clássicas através das quais Milton tenta roubar o fogo da tradição épica. Todavia, não encontramos, como em Shakespeare, viradas tropológicas radicais. É verdade, conforme William Blake já apontou, que o Satã de Milton se torna, contrário à intenção dele, o grande herói e que Satã consegue fazer com que Deus se amesquinhe diante de nossos olhos, corações e mentes (e, no desempate de pênaltis, acaba fazendo o gol da vitória). Também é verdade que, ao tentar o projeto inviável de escrever um poema épico a rigor do ponto da teologia cristã, Paradise Lost, é sim um poema interessante e a as soluções de Milton para os problemas “técnicos” para a escritura de uma épica cristã são criativas. Todavia, o poema, do ponto de vista estrutural, não possui a força poética de Homero e do ponto de vista do conteúdo é menos


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relevante ainda, pois sua titanomaquia não dá conta de Hesíodo e se restringe aos leitores mais identificados com o cristianismo. Milton é, como seu Sansão, seduzido pelo paganismo (Dalila); cego, ele tenta arrebentar os pilares do templo. Arrebenta, mas sucumbe com ele. Seu poema Samson Agonistes (1671) é bem emblemático desse seu agon com a tradição grega. Bloom consegue seu clinamem (“virada”) ao interpretar o poema como uma guerra poética e ler, ou desler, Satã como o protótipo do agonista em franca rebelião contra os pilares do cânone. Mas, as estratégias de Milton são fracas, pois, conforme já apontamos, seu tropo recorrente é a alusão, assim, Milton fica ali, na primeira fase da luta poética, caindo, como Satã para o degredo do inferno dos ressentidos que não conseguem dar a volta por cima, ou seja, não realizam a apófrades. Talvez o problema de Bloom tenha sido sua identificação (provavelmente inconsciente) com as estratégias de Milton. Com relação à literatura crítica sobre seu grande poeta, Bloom, como Milton, não consegue mais do que o clinamen: ele é o porta-voz de Johnson, Joseph Addison, John Dryden, Alexander Pope, William Hazlitt, Walter Pater, Charles Lamb, Thomas de Quincey, Thomas Carlyle, Algernon Charles Swinburne, George Santayana, sobre o poeta. Desse modo, Bloom não consegue uma “postura poética” (poetic stance) própria sobre seu bardo e nem sequer realiza uma leitura desviante (swerving) da tradição. Ao contrário, seus comentários sobre o grande bardo, revivem os juízos mais poeticamente forte e criticamente consolidados sobre a supremacia poética de Shakespeare. Juízos que qualquer amante das Nove, como também da própria crítica literária não se cansa de ouvir, mas que não acrescentam nada à fortuna crítica do poeta. Por exemplo, ele poderia problematizar Romeu e Julieta, peça que pode ser uma crítica ao amor paixão não apreciado pelos renascentistas e uma exortação à obediência. Muito ao contrário do que consta na fortuna crítica da peça, a qual Bloom endossa, O mercador de Veneza é uma crítica ferrenha ao anti-semitismo. O que é mais, A megera domada seria mais bem apreciada se os leitores


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compreendessem a teoria dos humores (importante para o desenvolvimento da teoria sobre a melancolia) que é tematizada na peça no tratamento de Petrucchio para o pretenso caráter irascível de Kate. Ao invés, Shakespeare: The Invention of the Human pouco acrescenta às profundezas das peças, mesmo em Hamlet, personagem que Bloom idolatra por considerá-lo representativo da consciência moderna dos limites da ação, do pensamento e do tempo. Hamlet é um príncipe, herdeiro legítimo de uma sucessão real complicada pelo fato de que a rainha-mãe se casa, antes que ele possa se apossar de e/ou exercer seus direitos políticos com o possível assassino de seu pai e rei e, por isso, ele sequer pode reclamar seu direito régio. Acusar o rei-padrasto, mas possível assassino, de regicídio exigia muita habilidade. Hamlet era ainda um espadachim competente, como se vê na tranqüilidade com que ele encara – e vence – o duelo com Laertes, treinado na elite militar francesa. Cercado por traição, é mais do que natural que ele suspeite de tudo e de todos, inclusive da rainha-mãe, cuja lealdade (como esposa, governante e súdita) ao rei-pai morto é incerta. Ele precisava “dar uma de doido” até achar uma solução para seus muitos e complexos problemas políticos, sua angústia de saber quem deveria, por direito, ser ou não ser o rei legítimo da Dinamarca. Bloom não está nem aí para nada disso. O que torna seus comentários sobre Shakespeare relevantes é o contexto. Atualmente, Shakespeare tem que competir pelo espaço devotado à leitura nas academias e nos cursos de literatura não apenas com os outros imortais. Por causa da política de reorganização do cânone promovida pelos defensores da inclusão, Will tem que competir também com mortais comuns – os agonistas ainda no processo de seleção. Bloom expressa – e muito bem – a necessidade de manutenção do espaço dos esteticamente fortes. O cuidado com as seleções que possam descaracterizar o próprio cânone. “Literatura alta”, ele defende (Anxiety of Influence, 2nd ed., xvii), “é exatamente isso, uma conquista estética e não propaganda de estado”. Segundo ele, “em uma resposta para a tripla pergunta do


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agon – mais que, menos que, igual a? – não pode haver valor estético (O cânone ocidental, 31). Talvez na sociedade norte-americana sua revolta seja pertinente. Não só porque o caráter privado da educação superior na América faz com que as decisões curriculares sejam ditadas, manipuladas e determinadas pelas demandas dos mercados do capital, mas porque o estágio avançado do capitalismo selvagem na América se manifesta através da alienação quase total dos valores da cultura humanista que Bloom representa. A civilização de alta tecnologia deixa cada vez mais menos espaço para a leitura, a reflexão, as atividades humanísticas a partir das quais um novo iluminismo possa ser articulado. A universidade privada, claro, não é o lugar de debate, de evasão de angústias ontológicas e ideológicas sobre o estado de coisas. Longe disso, é o próprio porta voz do sistema. Contra ele Bloom se ergue. Por isso, os últimos humanistas o consideram um herói. E ele o é. Aqui no Brasil, a despeito do que se diz por aí, a leitura está de vento em popa. Nunca se produziu, leu e comprou tanto livro. Shakespeare, assim como a alta cultura que ele ironicamente representa está em alta. A universidade pública da qual somos gestores garante os cursos e os currículos humanísticos dos quais também somos gestores. O livro trás também um ensaio, “On the Raft Stone” (149169) de Christopher Rollason, sobre a relação de Bloom com as literaturas portuguesas que pode ser de especial interesse para nós. Rollasson salienta a benevolente postura de Bloom para com as literaturas portuguesas, ressaltando o lugar destacado que o escritor português José Saramago conquistou na lista de canônicos de Bloom. A Catalunha, aquela pequena comunidade autônoma da Espanha, terra natal de Salvador Dali, também tem sido efetiva em fazer chegar ao cânone seus candidatos. Rollason fala do ponto de vista eurocêntrico, pois nós, conterrâneos de Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos e Guimarães Rosa ainda estamos, assim como o genial escritor peruano naturalizado espanhol, Mario Vargas Llosa a ver navios...


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Outro ensaio fraco é o de Maria Rosa Menocal, professora de Estudos Medievais e Culturais em Yale, “How I Learned to Write Without Footnotes”, onde as críticas e objeções que o estilo medievalista (ausência de citações, referências, bibliografia – enfim do aparato acadêmico ensinado, exigido e reforçado pela e para a escritura acadêmica erudita) de Bloom são tratadas. Evocando o exemplo insólito de Erich Auerbach que escreveu Mimesis enquanto se exilava do nazismo na Turquia sem biblioteca e sem livros, Menocal tenta justificar a postura de Bloom. Conforme a própria Menocal admite, o caso de Bloom não é o de Auerbach. Sua recusa de providenciar referências para o leitor é mais uma de suas provocações, pois o leitor tem que sozinho decifrar a dívida enorme do autor para com a tradição. No caso de Shakespeare, por exemplo, a grande maioria de seus comentários – exceto a “coisa da ansiedade,” como atualmente ele se refere à sua teoria – o que ele diz do bardo já está escrito e inscrito na fortíssima e enorme fortuna crítica. A própria tese de que somos invenção de Will está no clássico ensaio, “Preface to Shakespeare” (1765), de Samuel Johnson (1709-1784). Apesar do feito inédito de reunir num só volume comentários sobre cada uma das peças de Shakespeare, alguém que conhece os ensaios dos críticos shakespereanos mais poderosos ficaria desapontado e insatisfeito. Bloom, como já observamos, não realiza sua poetic stance e nem sequer produz uma leitura desviante da tradição. Ao contrário, sua leitura é completamente inserida, espelhada da tradição a qual ela reflete e remete. Desse modo, seu compêndio pode levar ao leitor não familiarizado com a crítica a conclusões errôneas e assumir que muitas teses ali contidas são teses de Bloom. Como parte do sistema acadêmico, sou a favor da escrita acadêmica culta e dos rituais pertinentes à escritura, especialmente as referências. A prática medievalista da imitatio já foi superada pelo próprio desenvolvimento das técnicas da escrita. Para os que escrevem como profissão, é estranho essa volta ao passado. Como vamos insistir com os nossos alunos que incluir referências é parte essencial dos rituais acadêmicos, é parte do rito de passagem


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acadêmico de se inserir no banquete das falas da tradição? Uma fala que é como uma tocha passando de geração a geração e que faz parte do ritual dar crédito aos que nos precederam no banquete. Referências servem ainda ao propósito de reverenciar a tradição da pedagogia da e pela palavra. A crítica é poesia, conforme o próprio Bloom mantém, mas seu exercício poético se dá em um modo de produção diferente e diferenciada. Enquanto o poeta pode e deve usar e abusar da licença poética, e, assim, do tropo “alusão,” o crítico, que opera numa esfera mais pedagógica (no sentido de educar o leitor para a apreciação da poesia) deve deixar claro o que e o como do que está fazendo. Mesmo tendo sido compilados por seus amigos e admiradores, os ensaios realmente discutem Bloom no melhor da tradição da crítica literária inglesa: com honestidade e agon. Críticas sérias e competentes são oferecidas aos postulados e os leitores não familiares com o espírito de disputa inglesa e com a seriedade com que o ofício é exercido, poderiam perguntar: com amigos como esses, quem precisa de inimigos? Apesar de estudar Bloom há vários anos, considero a coletânea um valioso instrumento de atualização sobre o sistema de Bloom e sobre as questões estéticas que estão no topo da pauta dos debates culturais e literários de hoje.


Bauchwitz, Oscar Federico. A caminho do silêncio: a filosofia de Escoto Eriúgena. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. 130 páginas. [Coleção Metafísica, n. 1]. Soraya Guimarães da Silva *

O filósofo Oscar Bauchwitz interpreta em seu livro A caminho do silêncio a obra de João Escoto Eriúgena, atendo-se especialmente sobre o Periphyseon, Sobre a Natureza (De Divisione Naturae), onde vai buscar nos revelar o sentido fundamental do silêncio. Ao ter como argumento inicial uma reflexão sobre o lugar do silêncio no mundo contemporâneo, o autor nos leva à questão do silêncio, pensado enquanto seu sentido fundamental. Falar sobre o silêncio impõe em si uma superação que, em Eriúgena, como defende o autor, se dá na comprovação da existência divina que confronta a própria palavra. O pensamento sobre o silêncio vai servir, então, de base para uma análise da obra do místico irlandês, na medida em que o tema sustenta, de acordo com o autor, o “equilíbrio dialético” (p. 12) de sua filosofia. Assim, Bauchwitz disserta sobre o princípio da obra eriugeniana, sobre o conceito primeiro de physis, natura, num pensamento sobre o ser e não ser, sobre palavra e silêncio – o além de qualquer significação. Como vai se confirmar na leitura da obra completa, é pois o caráter particular de sua abordagem que torna esse livro chave, como resultado de um acurado trabalho de pesquisa que tem o mérito de tornar público o legado de Eriúgena e da filosofia medieval. Bauchwitz é capaz de, em refletindo sobre a idéia do silêncio, incorporar de maneira clara e com propriedade, numa só obra, o fundamental e singular da obra do filósofo irlandês. A caminho do silêncio é, digamos, uma versão mais literária da tese de doutorado de Oscar Bauchwitz, defendida com o título original de “Hacia el silencio – para uma fundamentación ética a *

Doutoranda do Programa Interinstitucional de Filosofia UFPB-UFPEUFRN. Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 303-306.


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partir de la filosofía de Juan Escoto Eriúgena”, pela Universidade de Salamanca, em 1999. O primeiro capítulo, “A natureza como palavra e silêncio: ser e não ser” dedica-se, no Periphyseon, ao conceito criado por Eriúgena para definir a natureza. Um ponto interessante a destacar neste trecho da obra é o caráter de intertextualidade entre a construção histórica da definição de physis e da origem da filosofia. A diferença fundamental que como o autor defende é fundação da própria filosofia é discutida num pano de fundo à inquietação do filósofo irlandês, na apresentação dos seus modos de interpretação da diferença entre ser e não ser. Surge também neste capítulo um conceito chave: o de participação, apresentado também de modo esclarecedor para a compreensão do todo da obra do místico. “A partir da diferença fundamental entre ser e não-ser, palavra e silêncio, funda-se uma perspectiva que abarca toda a natureza. Essa perspectiva compreende em si mesma tudo o que é e o que não é” (p. 35). No que concerne às fontes de pesquisa, o autor demonstra acuracidade ao apoiar-se em referências como Édouard Jeanneau e I. P. Sheldon-Williams, reconhecidos pelas suas contribuições aos estudos de filosofia medieval, em especial, sobre a obra de Eriúgena para a Academia. A doutrina da teofania é tematizada no terceiro capítulo, onde são apresentados conceitos importantes como o do “fazedor” (offina ominium); “o mundo de fantasias” (in mundo suo). Nesse ponto da obra, torna-se claro para o leitor como se dá o conhecimento de Deus, de forma indireta, por meio da palavra, as teofanias. “Deus se mostra em suas teofanias e o digno nelas é que permitem ao homem conhecer não o que é Deus, senão simplesmente o que é” (p. 68). No quarto capítulo, em que o autor discute o paradoxo da simultaneidade da eternidade e da criação do nada apenas parece afastar-se da questão própria do silêncio para tratar indiretamente do problema do devir, da criação ex nihilo. Bauchwitz defende a introdução da questão do nada como prerrogativa para uma analítica


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do ser do homem. No capítulo cinco, a figura do homem é então apresentada como a imagem e semelhança do divino. “O homem é Deus por participação e graça” (p. 109). Mas é propriamente no discurso sobre a possibilidade de definição do homem pela palavra que o autor retoma o fio condutor central da tese, a saber, o problema do ser e não ser a partir da palavra e silêncio. Neste ponto, o leitor é levado à intricada compreensão da mística eriugeniana, onde se demonstra a impossibilidade de definição do homem e de Deus, visto que estão além do conhecimento lógico. No entanto, há que se considerar sempre as particularidades da filosofia de sua época, na qual o supracitado esforço de pensar Deus confunde-se com a motivação de se provar a existência de Deus, em última instância; aqui não ignoramos que nem todos os comentadores compartilham desta mesma visão crítica. As notas explicativas são um diálogo correlato indispensável aos pesquisadores, revelando a marcante intertextualidade da obra. Porém, ao leitor cabe o esforço extra de mergulhar no universo da mística medieval a fim de reconhecer a importância e amplitude deste estudo. No sexto capítulo, o autor finalmente demonstra como é possível superar o que seria um obstáculo para a condução de sua pesquisa: a ausência, em Eriúgena, da definição conceitual de silêncio. “Utilizando termos mais nossos que seus, o silêncio se mostra fundamental, seja contemplado por uma (me)ontologia, seja por uma epistemologia” (p. 119). A caminho do silêncio reúne, nos principais elementos de sua tese, o pensamento sobre a liberdade humana e sua própria natureza, o pecado inerente à sua existência e, por fim, o próprio silêncio como limite da experiência do conhecimento sobre o Divino, ao passo em que constitui-se como contraprova de sua suprema existência. Ao final da leitura, podemos nos indagar, não obstante o domínio na condução do tema, para onde é conduzido o leitor; como e em que condições o pensar sobre o silêncio ao modo da teofania eriugeniana pode nos levar a pensar sobre o hoje. Indubitavelmente, este livro demonstra que a obra do filósofo


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irlandês abre caminho para um pensamento renovado. Oscar Bauchwitz conclui de forma, porque não dizer, poética, um pensamento que, guiado pela mística medieval, torna-se, no hoje, por demais eloqüente para quem propõem-se a falar sobre o silêncio.


Erickson, Glenn W.; e Fossa, John A.. A linha dividida: uma abordagem matemática à filosofia platônica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. 186 páginas. [Coleção Metafísica, n. 4]. Jorge dos Santos Lima *

Entre muitos assuntos sobre Platão há um que concentra poucos debates no Brasil. A discussão, como se observa nos encontros de filosofia nacionais e regionais, sobre o tema “linha dividida em Platão” tem sido minimamente explorado. Interpretar essa questão é assunto por demais complicado devido à variedade de direções no pensar os escritos de Platão. Portanto, objetiva-se aqui apenas analisar e comentar uma das obras que ousa refletir e indicar caminhos de reflexão sobre o tema em apreço, essa é A linha dividida: uma abordagem matemática à filosofia platônica, escrita por Erickson e Fossa. A problemática principal dessa obra é: qual a importância e significado da linha dividida para o pensamento platônico? Depois surgem outras como: qual a estrutura da linha dividida? Como a matemática fundamenta essa estrutura? Desse modo vê-se Erickson e Fossa tecerem uma interpretação que possui certa coerência em abordar o pensamento de Platão. Eles afirmam de forma plausível que há um núcleo na filosofia de Platão. O núcleo é a linha dividida. Parece estranho para alguns comentadores entender se há e o que é esse núcleo, assim a leitura das propostas de Erickson e Fossa é valorativa para o debate filosófico no Brasil e no mundo. Convém ainda enfatizar que a obra é uma publicação recente e passiva de algumas modificações, mas que seu conteúdo é, mesmo assim, significativo para a filosofia. N’A linha dividida de Erickson e Fossa, além da discussão sobre Platão em seis capítulos exclusivos há dois dedicados à *

Professor substituto do Departamento de Filosofia da UFRN.

Princípios, Natal, v. 14, n. 21, jan./jun. 2007, p. 307-312.


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relação entre o pensamento de Platão e Aristóteles. Nesse sentido, convém expor de forma breve o conteúdo de cada capítulo para depois lançar algumas considerações críticas. No primeiro capítulo, “Razões Irredutíveis e Triângulos Pitagóricos”, é exposto o que é um triangulo pitagórico e, na medida em que se enfatiza sua presença nos contextos religiosos, científicos e culturais na antiguidade, destaca-se sua influência na reflexão filosófica. Naquela época grandes filósofos, como Pitágoras e Platão, ocuparam-se com a matemática dando surgimento a explicações diferenciadas sobre questões a exemplo do que ficou conhecido por triângulos pitagóricos. Assim, hoje são conhecidas a fórmula pitagórica, a fórmula de Platão e a babilônica como origens de tais triângulos apesar de ser mais difundida a pitagórica. Erickson e Fossa explicam a origem do triângulo pitagórico através da fórmula pitagórica e da fórmula platônica e como essas duas se originam da fórmula babilônica uma vez que os babilônicos conheciam uma maneira de gerar triângulos pitagóricos antes mesmo de Pitágoras. Nessa discussão sobre as três fórmulas, Erickson e Fossa, ao apresentarem as relações entre elas, comentam ainda que a fórmula babilônica tinha surgido primeiro, depois a de Platão e, por fim, a fórmula pitagórica na medida em que “fica difícil ver como a Fórmula de Pitágoras se deriva da fórmula dos babilônios sem passar primeiro pela Fórmula de Platão” (p. 18). Desse modo, tecem e explicam passo a passo as relações entre essas fórmulas e como a fórmula de Platão está ligada a alegoria da linha dividida expressa no final do livro VI d’A República. A fórmula de Platão, portanto, é o alicerce matemático da linha dividida, ou seja, é o fator responsável pela compreensão de que a linha dividida é uma doutrina metafísica emergida do interior do saber matemático. Nesse sentido, Erickson e Fossa utilizam a matemática pitagórica presente em Platão para justificar que a linha dividida é o núcleo do pensamento platônico. Apesar de ser exposto no fim do livro VI numa linguagem simples, a alegoria da linha dividida assume um alto teor de complexidade quando é colocada sob o crivo da matemática. Essa linguagem complexa não fica apenas no campo


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da reflexão matemática, mas promove a fusão entre reflexão metafísica e matemática. O segundo capítulo: “A Dialética”, inicia fazendo menção às influências pitagóricas em Platão e a repercussão, sobre sua postura literária e filosófica, da morte de seu mestre Sócrates. Esses elementos e outros, a exemplo da convivência com o tirano Dionísio em Siracusa, afirmam Erickson e Fossa, levam Platão a alcançar sua maturidade intelectual. Platão, na fase madura de sua vida, revê seus pensamentos dando-lhes maiores conotações pitagóricas. Nesse capítulo, discute-se mais uma vez a presença matemática na filosofia platônica ao considerar-se que a linha dividida é uma doutrina e que está “profundamente imbuída com a visão pitagórica de que o universo é, de fato, um universo matemático” (p. 56). Assim, retomam a discussão analisando a estrutura filosófica da doutrina da linha dividida. A linha dividida é uma doutrina porque o pensamento de Platão está organizado segundo a estrutura presente nessa linha. Porém, inclusive a própria linha dividida, enquanto pensamento filosófico que representa os pathematas da alma, está estruturado por ela mesma. Dizem Erickson e Fossa: “a própria Linha Dividida deveria ser entendida em relação a um dos quatros modos de apreensão postulado por esta doutrina” (p. 57). Os modos de apreensão são: eikasia, pistis, diánoia e nóesis. A linha dividida se auto-estrutura em cada um desses modos ou partes consoante o todo de sua estrutura. Depois de pensar a linha dividida como estrutura de si mesma, o capítulo dois expõe brevemente como ocorre essa estruturação das partes segundo o todo da linha, e, depois, conclui com algumas considerações relacionais entre Platão, o neoplatonismo e Aristóteles. Enquanto no primeiro capítulo há uma explicação de quais são as bases matemáticas da linha dividida, no segundo está em destaque as origens matemáticas do pensamento platônico e suas abrangências no mundo antigo clássico através dos neoplatônicos e Aristóteles, esboçando, no centro do capítulo, sua interpretação


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sobre o significado da linha dividida. Assim, Erickson e Fossa, após esses comentários limitam-se nos próximos três capítulos a esmiuçar o que se mencionou até o momento sobre a linha dividida, isto é, como a linha dividida se articula em cada um dos quatro modos de apreensão. No terceiro capítulo: “A caverna”, explica-se a abordagem da linha dividida no nível da eikasia, aqui, “a doutrina da Linha Dividida é simplesmente o mito da caverna” (p. 67). Erickson e fossa comparam as etapas presentes no mito com os níveis da linha dividida e demonstram que o mito da caverna é um discurso equivalente ao modo de apreensão da eikasia. Depois, no capítulo seguinte: “Ciência”, aplicam a mesma Doutrina da Linha Dividida a pistis ao denominarem este segmento de formas cosmológicas ou opinião científica e, logo em seguida no capítulo cinco: “A matemática”, a diánoia no sentido de significar formas matemáticas. Em cada um desses capítulos os dois autores explanam o porquê do uso de termos para interpretar cada uma das secções são diferentes dos que outros comentadores utilizam. Enquanto a Doutrina da Linha Dividida na eikasia é expressa como o mito da caverna (cap. 3); na pístis (cap. 4), essa Doutrina surge ainda na figura dos mitos pois são apenas discursos e histórias plausíveis (p. 90) que possuem um fim prático sustentado nos interesses humanos. Nesse contexto, os tipos de República, pois referem-se a discursos práticos, podem ser o campo de expressão da Doutrina da Linha Dividida para o modo de apreensão pístis. Porém, porque os dois modos de apreensão, citados aqui, estão limitados à opinião, não é possível o reconhecimento de alguma verdade. O capítulo cinco possui uma discussão com maior profundidade, do que os comentários do capítulo dois, sobre a matemática na metafísica de Platão. Faz-se uma abordagem histórica sobre as influências das reflexões matemáticas em Platão e culmina numa análise criteriosa sobre o papel da matemática na formação do filósofo através do estudo das disciplinas numéricas no fim do livro VII. Uma forma de perceber a presença da Doutrina da Linha Dividida no modo de apreensão nóesis é pela ordenação hierárquica


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das disciplinas que são: aritmética, geometria, estereometria, astronomia e música. Durante a exposição de cada uma delas, Erickson e Fossa demonstram como a linha dividida está presente nesses saberes e qual a repercussão do estudo das relações entre as disciplinas numéricas com os modos de apreensões inferiores à diánoia. Agora, após ascender à diánoia há um descer para nova apreciação dos modos de apreensão no mundo da opinião. Concluído as considerações sobre o capítulo cinco que se refere à diánoia poderia se esperar que o próximo capítulo aborde o nível da nóesis tal como é comentado no capítulo dois. Porém Erickson e Fossa se abstêm dessa tarefa e preferem demonstrar exemplos citados por Platão que focalizam as relações entre matemática, ciência e prática. O capítulo analisa as passagens do número nupcial (geométrico) e o número da criatura divina como constam no livro VIII d’A República. Os dois últimos capítulos, “Uma Nota de Rodapé” e “Outras Notas de Rodapé”, analisam a Doutrina da Linha Dividida na sua relação com o pensamento de Aristóteles e outros filósofos da antiguidade e do século XX. De um lado, o capítulo sete enfatiza detalhadamente a filosofia aristotélica como complementar a Doutrina da Linha Dividida em Platão. Por outro lado, o capítulo oito analisa o segmento da linha dividida detentora do modo de apreensão diánoia por diferenciar Aristóteles de Platão. Para Aristóteles os elementos do terceiro segmento são as categorias e para Platão, como diz Erickson e Fossa, são as formas matemáticas. Por fim, neste último capítulo faz-se uma análise das mudanças que ocorreram na filosofia, as quais mantiveram a estrutura da linha dividida como fator de incentivo, crítica e amadurecimento do pensamento de filósofos como Nietzsche, Descartes, Heidegger dentre outros. A linha dividida de Erickson e Fossa é uma obra intrigante, inquietante e de enorme contribuição para a crítica no pensamento platônico. A exposição realizada até o momento, concentra-se em expor algumas idéias principais de cada capítulo, porém não traduz a


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amplitude de sua relevância. É certo que alguns pontos devem ser repensados pelos autores, principalmente a respeito da interpretação de termos em grego, assim, deve-se considerar que os dois autores tentam manter certa fluidade no texto sem a preocupação de indicar as fontes de alguns comentários e parágrafos. Não é fácil ler e compreender esse escrito de Erickson e Fossa porque fica evidente que a obra não está direcionada para um público propedêutico em filosofia. O primeiro capítulo demonstra que o leitor deve ter uma mente experimentada nas dificuldades da leitura filosófica para poder perceber o jogo de idéias inovadoras que, em muitos casos, precisam ser ainda desenvolvidas, aprofundadas. A linha dividida, mais que um escrito filosófico, é um discurso que leva o leitor atento a fluir seu pensar para novos horizontes de interpretação de Platão e de toda a filosofia.


Princípios Fundada em 1994 por um grupo de professores do Depto. de Filosofia da UFRN, Princípios é uma revista semestral, editada desde 2001 pelo Programa de Pósgraduação em Filosofia da UFRN, que tem como objetivo principal promover a discussão de idéias, teses e argumentos pertencentes a qualquer área ou época da Filosofia, sem restrições de método. Publica eventualmente números temáticos, especiais, e dossiês. Exige dos autores apenas rigor na argumentação e clareza conceitual; bem como conhecimento da literatura discutida, no caso de artigos de pesquisa. Publica também ensaios originais, resenhas e traduções de diversos textos.

Instruções para publicação 1. Somente serão considerados para publicação trabalhos inéditos e que não tenham sido simultaneamente submetidos a outras revistas especializadas, a menos que se trate de artigos publicados a convite dos editores. 2. Os trabalhos devem ser enviados, em formato Word, para o e-mail: principios@cchla.ufrn.br 3. Os trabalhos poderão ser submetidos em português, espanhol, inglês, francês, alemão ou italiano, e não poderão ultrapassar as 30 páginas (em Times New Roman, 12, espaço 1,5). Deverão, além disso, ser precedidos de um resumo de no máximo 200 palavras, em português e em inglês (ou em francês) e com a indicação de palavras-chave (keywords). As notas deverão aparecer ao pé da página e as referências bibliográficas no final do artigo. Outras orientações encontram-se no site: www.principios.cchla.ufrn.br 4. As resenhas só poderão ser submetidas em português e não poderão ultrapassar as dez páginas. 5. As traduções serão apreciadas conforme cada caso em particular, bem como as propostas de publicidade referentes a livros e revistas recebidos em permuta. 6. Todos os artigos sem exceção serão examinados por dois consultores, membros do Conselho Editorial ou especialistas na área escolhidos como consultores ad hoc. 7. Dado que Princípios envia os trabalhos submetidos a pareceristas anônimos (blind referees), os editores não revelarão em hipótese alguma os nomes desses consultores aos autores, nem o nome dos autores aos consultores, independentemente de o artigo ser aceito ou não. Não obstante, os autores podem inserir, em nota de rodapé, dados sobre sua posição acadêmica e endereço eletrônico. Os artigos serão encaminhados aos consultores sem esses dados. 8. No caso do trabalho submetido ser aceito para publicação, o autor terá um curto período para acatar as possíveis sugestões propostas pelos pareceristas e realizar eventuais correções. 9. O copyright dos artigos publicados será de propriedade da Revista Princípios, mas os mesmos poderão ser republicados com a permissão dos editores. 10. Os autores dos trabalhos submetidos serão informados por e-mail sobre a aceitação ou não de suas propostas. Estimamos que o prazo das respostas, após o recebimento das propostas, variará de 2 a 3 meses. 11. Os autores dos artigos aceitos, além de terem seus textos publicados em formato PDF na página da Princípios, receberão gratuitamente exemplares do número impresso contendo seus trabalhos. 12. Não serão publicados artigos do mesmo autor em números consecutivos da revista (observada essa regra, o artigo poderá ficar arquivado para ser publicado em um dos números seguintes, se o autor assim desejar).


Lista de Pareceristas da Revista Princípios 2007

Alexandre Meyer Luz (UFS) Anastácio Borges de Araújo Júnior (UFRN) Celso Reni Braida (UFSC) Cinara Maria Leite Nahra (UFRN) Claudio Ferreira Costa (UFRN) Daniel Durante Pereira Alves (UFRN) Denílson Luis Werle (USJT) Edrisi de Araújo Fernandes (UFRN) Fernanda Machado Bulhões (UFRN) Flávio Miguel de O. Zimmermann (USP/Fapesp) Gigi Anne Horbatiuk Sedor (UFSC) Giovani Mendonça Lunardi (UNIR) Glenn Walter Erickson (UFRN) Jaime Biella (UFRN) José Claudio Morelli Matos (UDESC) Juan Adolfo Bonaccini (UFRN) Luís Felipe Bellintani Ribeiro (UFSC) Marcos Rodrigues da Silva (UEL) Maria da Paz Nunes de Medeiros (UFRN) Markus Figueira da Silva (UFRN) Oscar Federico Bauchwitz (UFRN)


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN

Reitor: Prof. Dr. José Ivonildo do Rêgo Vice-Reitora: Profa. Dra. Ângela Maria Paiva Cruz CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA

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