Gisele Camargo | Noite Americana ou Luas Invisíveis

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Gisele Camargo

NOITE AMERICANA OU LUAS INVISÍVEIS


Capa: Noite Americana II (Detalhe) 2014 Esmalte, acr铆lica e 贸leo sobre madeira 220 x 150 x 9cm


Gisele Camargo

NOITE AMERICANA OU LUAS INVISĂ?VEIS Curadoria e texto

Frederico Coelho

14 de outubro a 8 de novembro 2014


NOITE AMERICANA OU LUAS INVISÍVEIS

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DIAS DE LUA, NOITES DE TINTA A lua é um ponto iluminado no céu cuja simbologia é plena de sentidos e representações criados pela humanidade. Buraco negro de deuses e medos, a lua é Jaci e Magritte. A lua é o amor romântico, o delírio das tribos, o desafio da guerra fria. A lua é uma bola redonda branca-amarela-vermelha-dourada que paira no ar, que organiza vidas zodiacais, que muda marés, que fica ao alcance da mão onírica da criança (quem quer ir ao Sol? A criança sempre quer ir à lua). A lua é oriental, ocidental, cruza classes, semeia transes, explode poemas. Crescer, minguar, ser nova ou cheia, a lua é parte do dia a dia de todos – talvez a nossa maior referência visual, já que, ao contrário do astro-rei, podemos fita-la pelo tempo infinito. Na base mais profunda disso tudo, talvez no grau zero desse amor imenso que temos por ela, a lua é uma bola de luz. Cheia ou não, é essa esfera cobrindo a noite que nos fascina. A pintura de Gisele Camargo apresenta uma operação bem específica e, ao mesmo tempo, generosa em sua busca de imagens e motivos que movam sua obra. Durante um período recente de sua vida, a lua tornou-se uma dessas imagens capturadas pelo seu olhar e transformadas em uma forma quase íntima. Do alto de um edifício com janelas debruçadas sobre a baía de Guanabara e sobre as cadeias de montanhas da cidade, a lua cheia que surgia mensalmente para Gisele foi aos poucos tornando-se parte de uma composição que transcendia qualquer mito romântico. Era a fixação de uma bola perfeita em contraste com edifícios da cidade e suas luzes apontadas para cima. Gisele passou a ver a lua imponente se articulando com as formas do mundo. A dialética histórica entre Natureza e Cultura se manifesta aqui em mais uma de suas muitas versões contemporâneas. Afinal, Gisele é, fundamentalmente, uma pintora de paisagens. E quando a lua vira de vez sua paisagem, novos planos, novas perspectivas, novas superfícies e novos recortes precisam surgir. GISELE CAMARGO | 5


Em uma fusão sugestiva de forma e conteúdo, a flutuação do satélite também se torna uma flutuação dos suportes em suas montagens compartimentadas – formato que aponta cada vez mais um caminho sólido de pesquisa e consistência na obra de Gisele e cujo passo decisivo foi o início de suas Cápsulas (2013). Sem lugar fixo em um suposto céu, sem necessidade de representar a luz, sem ter que reivindicar uma alegoria pictórica, a lua aqui assume sua força gráfica e torna-se elemento narrativo em sutis jogos de aproximação e rasura entre os outros planos da pintura. Nuvens, sólidos, líquidos, todos modulam a lua, assim como modulam as cores. Ampliando outro dado central em sua pintura, Gisele também escava o espaço, cria buracos sem fundo, insinua saídas para o nada, cria planos que não se estendem para além de seus limites abruptos. Suas retas produzem uma arquitetura onírica em paisagens que nos deixam no impasse entre estarmos vendo a lua no céu ou estarmos pisando na própria superfície lunar. As obras dessa Noite Americana são, portanto, um convite para um passeio do olhar em suas múltiplas perspectivas. Gisele nos apresenta pontos de vista que conservam a cena, porém nos oferecem a possibilidade livre da edição – ou síntese – dessa paisagem. A lua, mais do que assunto das pinturas, é um tema a mais de fruição da aventura e do experimento que é pintar. Sem esconder o fascínio pelo ícone, não se furta em apontar para o seu lado escuro, pleno de vazio e mistério. As solidões e fundos negros são a marca de uma pintura que se guia por procedimentos, por um pensamento muito pessoal sobre forma, plano, superfícies, volumes, atingindo um equilíbrio entre figuração e abstração. Aqui, temos jogos entre profundidades, tonalidades, texturas (diferentes tintas, diferentes técnicas), em um mundo que muita coisa acontece e nos permite mergu-

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lhar sem foco obrigatório. Talvez o que nos faça encontrar uma unidade no conjunto é a disposição de Gisele em se aprofundar em uma abordagem autoral de pintura, em propor situações ao nosso olhar a partir de uma geometria que, ao invés de esquadrinhar o mundo, o abre para novos espaços poéticos. Em nossas conversas ao redor desta exposição, Gisele falou algumas vezes do filme de François Truffaut que a batiza. Não pelo filme em si, mas pela ideia do cineasta de jogar com o nome da técnica que simula em um estúdio de filmagem, durante o dia, uma cena que precisa ocorrer à noite. Ter como mote esse efeito de noite simulada, de uma lua que não precisa da noite para surgir, de um dia que pode perfeitamente ter a lua em seu céu, ou até mesmo de uma lua que simula noite no dia claro do ateliê, é a força central da exposição. Gisele exercita uma forma (a esfera / a lua), aprofunda os múltiplos sentidos que essa forma sugere dentro de seu vocabulário pictórico, experimenta conexões e aproximações entre diferentes aspectos espalhados em seus suportes ao longo de sua trajetória. Se foi Truffaut e seu filme quem deram o título da exposição, trago por fim a frase de outro cineasta, o brasileiro Ivan Cardoso, quando em seu filme Nosferatu no Brasil (1972), precisava filmar a história de um vampiro no Rio de Janeiro. Em super-8 e sem recursos para criar “noites americanas”, Cardoso resolveu o impasse orçamentário e estético com a seguinte frase na abertura do filme: “Onde se vê dia, veja-se noite”. Que sejam feitos simultaneamente dias e noites de Gisele nas amplas obras dessa exposição.

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DAY FOR NIGHT OR INVISIBLE MOONS

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MOONLIT DAYS, PAINTED NIGHTS

The moon is a source of light in the sky that human beings have endowed with numerous symbolic meanings. A black hole of gods and fears, the moon is Jaci and Magritte. The moon is romantic love, delirium among tribes, the challenge of the Cold War. The moon is a yellow-white-red-golden ball hanging in the air; it influences lives through the zodiac, changes the tides, it lies within reach of children’s dreams. Who, after all, wants to go to the sun? Children always want to go to the moon. The moon is Oriental, Western, straddles class divides, brings on trances, inspires poetry. Waxing and waning, new or full, the moon is part of the daily lives of us all – perhaps our strongest visual point of reference, since different from the sun, we can look at it for as long as we desire. At the deepest level, perhaps the degree zero of this great love we bear is, the moon is a ball of light. Full or not, we are fascinated by this sphere that illuminates the night sky. Gisele Camargo’s painting presents a very specific operation and is at the same time generous in its quest for inspiring images and motifs. In recent years, the moon has become one of these images captured by her gaze and transformed in an almost intimate manner. In a high building with windows looking out over Guanabara Bay and the city’s hills, the full moon that appeared monthly to Gisele gradually became part of a composition that transcended any romantic myth. She became fixated by this perfect ball that contrasted with the buildings of the city with their upward pointing lights. Gisele came to see the imposing presence of the moon joining with the shapes of the world. The historical dialectic between culture and nature manifests itself here in yet another of its many contemporary versions. After all, Gisele is basically a landscape painter. And when the moon definitively becomes her landscape, new plans, new perspectives, new surfaces and new divisions of space need to emerge. GISELE CAMARGO | 9


In a suggestive melding of form and content, the floating satellite also makes the supports float on their compartmentalized montage – a format that increasingly points to the consolidation of a new development in Gisele’s consistent body of work, beginning with the decisive step she took with Capsules (2013). Without a fixed place in a supposed sky, without no need to represent the light or to appeal to a pictorial allegory, the moon here assumes its full graphic power and becomes a narrative element in the subtle interplay of planes of perspective. Clouds, solid objects and liquids all modulate the moon, as they modulate its colors. Developing another central feature of her painting, Gisele also digs out space, creates bottomless holes, suggests exits that go nowhere, produces planes that do not stretch beyond their abrupt boundaries. Her straight lines produce a dream-like architecture in landscapes that leave us in doubt as to whether we are looking at the moon in the sky or setting foot on its surface. The works of this Day for Night/Nuit Americaine thus invite the eye to explore their multiple perspectives. Gisele presents us with vantage points that preserve the scene but give us the option of editing – or synthesizing – this landscape. The moon is more than a subject for the painter; it is yet another theme full of possibilities for the adventure and experimentation that painting is. Without hiding the fascination of the icon, she does not shy from revealing its dark side, full of emptiness and mystery. The solid forms and black backgrounds are features of a painting technique guided by procedures, by a very personal way of thinking about planes, surfaces, and volume, producing a balance between the figurative and the abstract. There is a play of depths, tones, textures (different paints, different techniques),

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in a world in which much is going on and into which we can dive without being obliged to focus on anything in particular. The unity we perceive in the series may derive from Gisele’s willingness to explore to the full an authorial approach to painting, presenting us with situations based on a geometry that does not frame the world but opens it up to new poetic spaces. In our conversations about this exhibition, Gisele sometimes mentioned the François Truffaut film from which it took its name. Not because of the film itself, but because of the film-maker’s idea of playing on the term for the technique of simulating a night-time scene in the studio during the day. The central theme of the exhibition is this effect of simulated night, of a moon that does not need the night to appear, of a day that can easily have the moon in its sky, or even a moon that simulates night in the daylight of the studio. Gisele uses a shape (the moon’s sphere) to work on the multiple meanings it suggests within her pictorial vocabulary. She has experimented with a range of different connections and juxtapositions in the course of her career as a painter. Just as Truffaut’s film provided the title of the exhibition, I shall conclude with a quotation from a Brazilian film-maker, Ivan Cardoso, who, for his film Nosferatu no Brasil (1972), needed to shoot the story of a vampire in Rio de Janeiro on Super-8, without recourse to the technology of “day for night”. Cardoso resolved this budgetary and artistic challenge by urging the audience at the opening titles of the film to “see night, where you see day”. Let there be night and day simultaneously in the broad works of Gisele’s exhibition. Frederico Coelho

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Pags. 13 e 14/15 (Detalhe) Noite Americana I 2014 Esmalte, acr铆lica e 贸leo sobre madeira 220 x 150 x 9cm 14 | GISELE CAMARGO


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Noite Americana II 2014 Esmalte, acr铆lica e 贸leo sobre madeira 220 x 150 x 9cm 16 | GISELE CAMARGO


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Pags. 18/19 e 20/21 (Detalhe) Noite Americana 2014 Esmalte sint茅tico e 贸leo sobre madeira 90 x 260cm 20 | GISELE CAMARGO


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Noite Americana III (Detalhe) 2014 Esmalte, acr铆lica e 贸leo sobre madeira 220 x 150 x 9cm 22 | GISELE CAMARGO


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GISELE CAMARGO 1970. Vive e trabalha no Rio de Janeiro FORMAÇÃO 1997 Graduada em pintura pela EBA - UFRJ 1993 - 1997 Curso de Filosofia Contemporânea em Gilles Deleuze - Prof. Cláudio Ulpiano 1991 Escola de Artes Visuais do Parque Lage PRÊMIOS 2013 Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio - IPHAN 2012 Bolsa de Apoio a Pesquisa e Criação Artística, Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro 2011 Prêmio Ibram de Arte Contemporânea 2008 Prêmio Sim de Artes Visuais, Casa das Onze Janelas, Belém, Pará 2006 Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea – Fundação Nacional de Artes - Rio de Janeiro 2003 Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea – Fundação Nacional de Artes - Rio de Janeiro PUBLICAÇÕES 2014 “Falsa Espera” - Editora Barléu “Pacto Visual” - Editora Arte & Ensaio 2012 Pintura Brasileira sec XXI - Editora Cobogó, Brasil Santa Art Magazine - número 8, Brasil Revista Umbigo – número 40, Portugal ArtForum - outubro 2012, USA EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS 2012 “Falsa Espera”, Galeria Oscar Cruz, São Paulo 2011 “Metrópole”, Galeria Mercedes Viegas, Rio de Janeiro 24 | GISELE CAMARGO


“A Capital”, Galeria IBEU, Rio de Janeiro 2009 “Panavison”, Amarelonegro Arte Contemporânea, Rio de Janeiro 2006 Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, FUNARTE, Palácio Gustavo Capanema, Galeria Mezanino - Rio de Janeiro 2000 Pequena Galeria do Centro Cultural Candido Mendes 1988 Sala de Paisagem Contemporânea Museu Antonio Parreiras - Niterói- RJ EXPOSIÇÕES COLETIVAS 2014 “Cruzamentos” Arte Contemporânea Brasileira - Wexner Center for the Arts Columbus -EUA, curadoria: Jennifer lange, Chris Stults e Paulo Venâncio “Duplo Olhar” - Coleção Sergio Carvalho, Paço das Artes, São Paulo, curadoria Denise Mattar 2013 “Cinéticos e Construtivos” , Galeria Carbono, São Paulo, Curadoria Ligia Canongia 2012 “Paisagens Artificiais”, Galeria Pilar, São Paulo, curadoria Felipe Scovino 2011 “Dez anos do instituto Tomie Ohtake”, São Paulo, curadoria Agnaldo Farias e Thiago Mesquita “Coletiva 11” Galeria Mercedes Viegas 2010 “O Lugar da Linha”, MAC, Rio de Janeiro, Niterói, curadoria Felipe Scovino “O Lugar da Linha”, Paço das Artes, São Paulo, curadoria Felipe Scovino “Entre”, Galeria IBEU, Rio de Janeiro, curadoria Ivair Reinaldim “Além do Horizonte”, Galeria Amerolonegro, Rio de Janeiro, curadoria Daniela Name 2009 “Nova Arte Nova”, Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo, curadoria Paulo Venancio Filho 2008 “Nova Arte Nova”, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, curadoria Paulo Venancio Filho Prêmio Sim de Artes Visuais, Casa das Onze Janelas, Belém, curadoria Marisa Flórido “FOTO”, Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, Rio de Janeiro “Arte pela Amazônia”, Fundação Bienal de São Paulo, curadoria Ricardo Ribenboim 2007 “Entre Postes”- Galeria do Poste - Niterói “Velatura Sólida”– Amarelonegro Arte Contemporânea, Rio de Janeiro GISELE CAMARGO | 25


NOITE AMERICANA OU LUAS INVISÍVEIS FICHA TÉCNICA Curadoria e texto: Frederico Coelho Fotos: Mario Grisolli Suportes em madeira: J. Alves Assessoria de imprensa: Ester Lima - Básica Comunicação Tradução: Paul Webb Design do catálogo: Bitty Nascimento Silva Pottier - C-Art Brasil Design do convite: Luana Aguiar Catálogo: impressão e acabamento: Barbero - Graphus

EQUIPE DA GALERIA LUCIANA CARAVELLO ARTE CONTEMPORÂNEA: Direção artística: Waldick Jatobá Vendas: Ronaldo Simões Vendas: America Cavaliere Produção: Julia Vaz Financeiro: Valeria de Araujo Teixeira Montador: Fabio Francisco de Paula Apoio: Francinato Araujo Pereira

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A história da galeria Luciana Caravello Arte Contemporânea, inaugurada em 2011, se mistura com o percurso profissional da marchand Luciana Caravello. Desde 1998, Luciana vem trabalhando com arte contemporânea, representando vários artistas visuais do Rio de Janeiro e outras regiões do Brasil, comprometidos com pesquisas sobre suportes variados. O espaço atual tem uma arquitetura privilegiada, adaptada para receber exposições de artistas consagrados e artistas emergentes, sempre mostrando o que há de melhor na arte contemporânea nacional. Assim, a galeria desenvolve uma programação consistente, cujo objetivo principal é destacar a constância da linguagem artística, evidenciando o contraste de trajetórias consolidadas com a ousadia e o frescor das experimentações mais de vanguarda.

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www.lucianacaravello.com.br




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