Gui Mohallem | Tcharafna

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Gui Mohallem

TCHARAFNA


Capa: Sem tĂ­tulo, da sĂŠrie Tcharafna 2013. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 3/3 (detalhe)


Gui Mohallem

TCHARAFNA Curadoria e Texto

Paulo Miyada

De 24 de julho a 23 de agosto 2014


TCHARAFNA

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Como dar gravidade ao sabor maduro de uma fruta vermelha? Primeiro, existem as histórias que começam muito antes da história contada pelo artista. De fora para dentro, lembramos que o Líbano que Gui Mohallem visita não é só o país donde emigrou sua família. A complexidade étnico-religiosa da região é por si só uma demonstração de que toda minoria é maioria para outro grupo menor, o que alavanca um jogo de separações e polarizações que redefine o desenho da paisagem, além da vida de cidades e famílias inteiras. É possível ser maioria em uma região, mas ser minoria entre os regentes do país, assim como ser minoria em uma cidade, mas ter maior poderio econômico e, portanto, maior soberania sobre a própria vida. É possível, e aí reside a raiz do problema, ter certeza de que, entre os tantos sistemas de crença, o seu é o mais puro, o mais próximo de uma verdade passada ou atemporal. Hoje mesmo, se buscarmos por notícias do Líbano em alguns dos principais jornais do mundo, encontraremos notícias sobre o nacionalismo maronita, sobre os refugiados da guerra da Síria – ainda em curso e com potencial para escoar para o Líbano a qualquer momento – e o sintomático impasse do parlamento libanês em definir um presidente consensual entre os partidos cuja representação segue atrelada às variadas etnias religiosas. Depois, a maneira como estas histórias atravessam a história da família do artista e suas próprias motivações em visitar o país. Da grande fome durante a Primeira Guerra Mundial até a longa guerra civil iniciada em 1975, passando pela reestruturação conflituosa que se seguiu à Segunda Grande Guerra – toda a genealogia mais ou menos próxima da família de Mohallem é marcada por eventos que impulsionaram emigrações, boa parte para o Brasil. A viagem, nesse caso, combinava esperanças de vida nova e certa sensação de morte frente ao passado, ao lugar de origem e aos amigos e familiares que ficavam para trás. Para o convívio familiar do artista, isso implicou na certeza de uma falta: a parte da memória que não lhe pertencia e nem poderia pertencer; as águas lodosas de um fosso imaginário. Sua viagem ao Líbano era, em princípio, uma maneira de responder a essa falta, compensá-la com a investigação das histórias eclipsadas de seu pai, mãe, tios e primos. GUI MOHALLEM | 5


Sem título, da série Tcharafna 2013. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 1/3 6 | GUI MOHALLEM


As histórias anteriores ao trabalho de Mohallem estiveram, então, presentes na fatura de sua própria história, como carimbos que assinalavam tudo que conheceu em sua viagem com os signos do abandono e da saudade (o que encontrava havia sido deixado para trás), da violência e da morte (muitas das pessoas envolvidas haviam fugido de conflitos ou viviam sob sua ameaça contínua) e do perigo iminente (por vezes as conversas sobre sua estadia acabavam mencionando o risco de ataques, bombardeios e sequestros). No nível do raciocínio consciente, pelo menos, viajar ao Líbano, de Beirute ao seu interior e serras, seria um processo de exposição à dor, ao medo e à falta. No entanto – e aqui começa efetivamente a história que os trabalhos de Mohallem nos contam –, as conversas, paisagens e encontros teimaram sempre em extravasar essas fronteiras. Mesmo que involuntariamente, a presença curiosa do artista provocava seus familiares a religarem memórias a pessoas há muitos anos não vistas, por vezes extravasando em emoções. Junto com elas, vinham os traços de uma hospitalidade antiga e diferente, com os sabores das frutas da estação, as cores e alturas das montanhas, os hábitos singelos como os cuidados com a horta – armadilhas de encantamento que cooptavam aos poucos esse visitante para uma camada diferente daquela dos conflitos iminentes. Daí o que as fotografias e stills coloridos por Mohallem nos oferecem é esse limiar entre, por um lado, os indícios de diferença e conflito presentes na paisagem e nos espaços retratados e, por outro, as confissões visuais de um envolvimento afetivo em curso. Na mão avermelhada, oscilam ambas as leituras, quer enxerguemos na mancha a lembrança do sabor de fruta madura ou a reminiscência das tantas mãos manchadas de sangue que rondam a memória do Líbano. Já com os vídeos, as peças de parafina rubra, o depoimento da tia e o poema declamado por seu pai, emergem alegorias da tensão mais intrínseca à história dentro de todas essas histórias: aquela entre Gui Mohallem e uma origem que deveria pertencer-lhe e não obstante lhe era tão estranha, blindada pelo silêncio de seu pai. Viajando, o artista começou a se apropriar de sua herança escondida e, assim, conseguiu trazer aos olhos do pai certo reconhecimento da parte do filho que não enxergava, da parte de si que havia enterrado.

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How to make grave the ripe flavour of a red fruit? First, there are stories that began long before the story told by the artist. Working in from the outside, we may recall that the Lebanon that Gui Mohallem visited is not only the country from which his family emigrated. The ethnic and religious complexity of the region is in itself a testimony that every minority is a majority for another smaller group, sparking an interplay of separations and disputes that redraw the landscape and the lives of whole cities and families. It is possible to be a majority in a region, but a minority among the rulers of a country, and also to be a minority in a city, but to have more economic power and thus more control over one’s own life. It is possible—and this is the root of the problem—to be certain that yours is the purest of many systems of belief, the one closest to an ancient or timeless truth. Still today, if you look for news on Lebanon in the main international newspapers, you will find stories about Maronite nationalism, refugees from the civil war in Syria—still ongoing and with the potential to spill over into Lebanon at any point in time—and the typically Lebanese political impasse in selecting a president agreeable to all the religiously and ethnically aligned parties. Then there is the way these stories intersect with that of the artist’s family and his reasons for visiting the country. From the great famine during the First World War to the long civil war that began in 1975, through the conflict-ridden reconstruction that followed World War II, Mohallem’s family has been marked by events that triggered migration, much of it to Brazil. These journeys combined hopes of a new life with a bitter feeling that casted a certain shadow of death over the migrants’ past, place of origin and friends left behind. This certainly left a gap in the artist’s family life, a memory that did not and could not belong to him, the murky waters of an imagined pool. His trip to Lebanon was, in principle, a way of filling this gap by exploring the hidden histories of his father, mother, uncles, aunts and cousins. The history behind Mohallem’s work is thus present in the development of his own history, stamping everything he discovered during his journey with nostalgia and loss (what he found had been left behind), with violence and death (many of the people involved had fled conflicts or were living under continual threat) and with imminent danger (at times conversations about his stay ended up referring to GUI MOHALLEM | 9


Sem título, da série Tcharafna 2014. Emulsão fotográfica, pigmento e cera. 21 x 28 x 7 cm de altura Tiragem única + PE 10 | GUI MOHALLEM


the risk of attack, bombings and kidnappings). At the level of conscious thought, at least, the trip to Lebanon, Beirut and the mountainous interior of the country, may have been a process of exposing oneself to pain, fear and loss. However—and this is where the story that Mohallem’s work tells us really begins—the conversations, landscapes and meetings always seemed determined to spill out beyond these boundaries. Albeit involuntarily, the intriguing presence of the artist caused his family members to reconnect memories to people they had not seen for years, sometimes overwhelming them with emotion. With these memories come the vestiges of an old-fashioned different kind of hospitality, the taste of the fruits in season, the color of the tall mountains, the habit of tending a kitchen garden – all gradually seducing this visitor down to a layer different from that of the imminent conflict. Mohallem’s color photographs and stills thus provide us with a gateway from the signs of difference and conflict present in the landscapes and the spaces portrayed to the visual confessions of a growing emotional attachment. Both readings are present in the red-stained hand, whether we see it as a memory of the taste of ripe fruit or a reminder of the many blood-stained hands that haunt Lebanon’s history. The videos, the pieces in red paraffin wax, the testimony of the artist’s aunt and the poem recited by his father provide allegories of the tension more intrinsic to the story behind all these stories: that between Gui Mohallem and a place of origin that he should belong to and yet feels so strange to him, smothered by his father’s silence. On his travels, the artist began to take on board this hidden legacy and brought his father to recognize a part of his son that he could not see, a part of himself that had been buried.

Paulo Miyada

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(Pag. 13) Sem título, da série Tcharafna, 2013. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 78 x 140 cm Tiragem: única + PE 14 | GUI MOHALLEM

Sem título, da série Tcharafna 2014. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 1/3


Sem título, da série Tcharafna 2014. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 1/3 GUI MOHALLEM | 15


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(Pag. 16-17) Sem título, da série Tcharafna 2014. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 1/3 18 | GUI MOHALLEM

Sem título, da série Tcharafna 2013. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 3/3


Sem título, da série Tcharafna 2014. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 48 x 72 cm Tiragem: 1/3

(Pag. 20-21) Sem título, da série Tcharafna 2013. Pigmento mineral sobre papel de aquarela. 78 x 140 cm Tiragem: única + PE GUI MOHALLEM | 19


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Tia Nabiha 2013. Vídeo 5 minutos 22 | GUI MOHALLEM

Tcharafna II 2014. Vídeoinstalação 12 minutos


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GUI MOHALLEM Mineiro de Itajubá, graduado em Cinema e Vídeo pela ECA/USP. No final de 2008 fez sua primeira exposição individual, com o “Ensaio Para a Loucura”, em Nova York. De volta a São Paulo, participou do Paraty em Foco 2009/2011 e de exposições nas galerias Olido, Babel, Baró Cruz e Emma Thomas. Em 2011, realizou duas exposições individuais em São Paulo, uma em Brasília e uma nos EUA. Foi convidado a participar do programa “Descubrimientos”, do Photoespaña, e ganhou o 2º lugar no prêmio Conrado Wessel. Em 2012, participou de um programa de residência artística de 6 semanas em Beirute, no Líbano. Em 2013 foi palestrante convidado do Foto em Pauta em Tiradentes e do 9º Paraty em Foco. Participou também da exposição Panoramas do Sul com mais 90 artistas do mundo todo no 18º festival Sesc - Videobrasil. Tem dois livros publicados: “Welcome Home”, de 2012, publicação independente, e “Tcharafna”, de 2014, pela editora PINGADO-PRÉS. Os temas de maior interesse surgem a partir de uma vivência pessoal. Partindo de situações de excessão dentro de pequenas comunidades, vem desenvolvendo pesquisas sobre o abandono e o pertencimento, numa experiência pautada pelo profundo envolvimento com o que fotografa.

Sem título, da série Tcharafna 2014. Emulsão fotográfica, pigmento e cera. 21 x 28 x 7 cm de altura Tiragem única + PE GUI MOHALLEM | 25


TCHARAFNA FICHA TÉCNICA Curadoria e texto: Paulo Miyada Molduras: Votupoca Molduras Marcenaria: Jorge Hadad e Taygoara Schiavinoto Assitência: Bruno Rezende Mixagem de som: Guile Martins Impressão: Espaço Visual Agradecimentos: Breno Rotatori, Lucas Simões e Pedro Marques Assessoria de imprensa: CW&A Comunicação Tradução: Paul Webb Design do catálogo: Bitty Nascimento Silva Pottier - C-Art Brasil Design do convite: Luana Aguiar Catálogo: impressão e acabamento: Barbero - Graphus

EQUIPE DA GALERIA LUCIANA CARAVELLO ARTE CONTEMPORÂNEA: Direção artística: Waldick Jatobá Vendas: Ronaldo Simões Vendas: America Cavaliere Produção: Julia Vaz Financeiro: Valeria de Araujo Teixeira Montador: Fabio Francisco de Paula Apoio: Francinato Araujo Pereira 26 | GUI MOHALLEM


A história da galeria Luciana Caravello Arte Contemporânea, inaugurada em 2011, se mistura com o percurso profissional da marchand Luciana Caravello. Desde 1998, Luciana vem trabalhando com arte contemporânea, representando vários artistas visuais do Rio de Janeiro e outras regiões do Brasil, comprometidos com pesquisas sobre suportes variados. O espaço atual tem uma arquitetura privilegiada, adaptada para receber exposições de artistas consagrados e artistas emergentes, sempre mostrando o que há de melhor na arte contemporânea nacional. Assim, a galeria desenvolve uma programação consistente, cujo objetivo principal é destacar a constância da linguagem artística, evidenciando o contraste de trajetórias consolidadas com a ousadia e o frescor das experimentações mais de vanguarda.

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Rua Bar達o de Jaguaripe, 387 Ipanema Rio de Janeiro RJ 22 421-000 Tel.: +55 (21) 2523-4696 +55 (21) 2274-8287 contato@lucianacaravello.com.br www.lucianacaravello.com.br


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