Revista Tucunduba 2ª Ed

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Apresentação

Rompida a força de inércia, Tucunduba persegue a perspectiva de tornar-se uma fonte para demonstrar a intervenção cultural no seio da comunidade universitária e noutro lugar. Esta experiência busca cutucar o conformismo previamente aceito de formatar as experiências artísticas concebidas como absorção mágica das intuições filtradas pelo desejo de plasmar a estética das classificações e das (de)gradações. Racionalizando essa experiência José Veríssimo volta à cena pelo enredo de Vicente Salles quando autoriza a valorização da cultura escrita em um país ainda de iletrados. Desde o fim do século XIX Veríssimo credita a importância da educação para a constituição da intelectualidade do Brasil partilhar a tarefa de desnudar os significados da condição humana como atesta a literatura universal, embora configurada pela matéria prima da identidade nacional. De um projeto tão ambicioso Marcelo Dias nos confronta com as paisagens de palavras sem peias despertas pelo quotidiano de Walter Jardim cuja captura do local é o sentido do fluxo da experiência que de tão visível torna-se natural e quase desaparece na composição dos monumentos do urbano; talvez por isso Gisele Ferreira queira ratificar uma postura esquiva de contraponto ao caos. O Grupo de Experimentação de Teatro em Miniatura – GETM, na sua performática busca para gerar estranhamento, na verdade deixa transparecer maior sensação de intimidade que a pretendida. Nesse texto de conflagração ao ser escrito em 1ª pessoa, a perspectiva de Edson Silva deixa transparecer quanto o individuo transborda no exercício do gestus social de Brecht como ferramenta da interpretação, mas a interatividade permitida promove ao invés de rejeitar a aproximação da manifestação com a realidade. Adentrando na dança, Ana Oliveira liga a historia da dança à experiência dos vaqueiros do Marajó. Por história mais que por poética, a trajetória da dança nos é contada brevemente com acento nos pontos de mudança e de valorização, isto por si já é uma contribuição. Os intercursos da exigência acadêmica com os valores da cultura popular fornecem outra possibilidade de interpretação como se vê na antropologia dos gêneros expresso pela condição masculina institucionalizada na referida dança, bem como a recorrente mobilização do apelo turístico nas apresentações do marajoara. Sem dúvida o imaginário conta a cultura do vaqueiro para espelhar o Marajó e o faz com altivez e graça na dança. O olho da jaguar Roseane Pinto perfaz o roteiro do olhar mecânico e suas mediações humanas, biológicas e culturais, ao

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dialogar com o tempo da escravidão e da modernidade metamorfoseado pelas impressões do automóvel jaguar e sua postura de domínio no território superposto da colonização; com o instrumento da narrativa desvela o instrumento da filmagem para discorrer sobre a composição da película de Jean Rouch. Com antropofagias, a cidade sorveu a aldeia, enquanto a última ainda preservou em sua substância, por quanto tempo? Agenor Sarraf nos oferece uma possibilidade de interpretação para identidades Afroindígenas deitada na Amazônia pela ressignificação dos encontros no lugar percebido como recurso metodológico do pesquisador. A partir do trabalho de índios e negros, mas também de brancos as máscaras da identidade na Amazônia foram constituindo um repertorio de presenças e ausências nos interstícios da identidade. A expectativa de fundar uma filosofia mestiça como em Michel Serres assentou o limite a ser ultrapassado; Sarrafapóia seu projeto intelectual ao ofertar uma multiplicidade de identidades como quer profetizar a pós-modernidade; o próprio vocábulo afroindígena nasce dessa astúcia, como a cultura da longa duração avaliará essas tentativas é o fulcro da prática política e teórica? Ao saber balangandã, ficamos entusiasmados. O conjunto vistoso da cultura material de religião e arte postado no colo, pulso, tornozelo, orelhas e outros mais evocam o pendor eletivo da experiência de estar no mundo emprestando sentidos ao animar conteúdos e formas sob o axioma da jóia. Subvertendo a hierarquia social, as negras e suas jóias atraíram todas as atenções, inclusive registradas nas pinturas do séc. XIX, portadoras de sentidos variados da religiosidade à fertilidade, fixaram a evocação da jóia como mediador das relações sociais. Ilustrando a galeria iconoclástisca a tropicália desferiu golpes àinstitucionalização artística ao premiar as inversões e cruzamentos da cultura de massas com a cultura erudita. Este projeto gerou uma produção massificada pela antropofagia dos textos e atitudes estrangeiras na composição do tropicalismo segundo Francisco E. A. Santos. A insubordinação enriqueceu a indústria cultural tornando um fenômeno de massas na/da sociedade como sugeriu Adorno. Ainda não temos um vórtice em Tucunduba, mas será mesmo preciso? Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-reitor de Extensão da UFPA

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SEGUINDO A TRILHA DOS VAQUEIROS1 Uma dança sempre presente Maria Ana Azevedo de Oliveira2

É tão simples minha história, Ser vaqueiro é minha glória, Cavalgando o dia inteiro, Em terra firme ou atoleiro, Lá nos campos me criei, Do Marajó não sairei, Sou herói deste rincão, Nele está minha paixão. Poema musicado composto pela professora Etelvina Cordeiro

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ARTES CÊNICAS

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Na origem das sociedades, a dança nasceu dos ritmos mais elementares e dos gestos do trabalho, afirmando o homem como membro de sua comunidade. No entanto, certas comunidades, baseadas no seu modo de ver o mundo, passaram a organizar-se na distribuição de funções, diferenciando em funções mais apropriadas ao homem e à mulher. Essa divisão, consequentemente, refletiu-se na dança. Nesse sentido, vão surgir danças de exclusiva participação feminina e outras masculinas e na historiografia da dança há vários exemplos de danças masculinas. De acordo com os estudos de Caminada (1999, p. 19), “as danças de caça, as solares, as medicinais, as xamânicas, as guerreiras Artigo adaptado do 3º capítulo da Dissertação de Mestrado intitulada O tamanco e o vaqueiro: Um estudo dos elementos espetaculares da Dança dos Vaqueiros do Marajó, em Belém do Pará, defendida pela autora, no Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, em maio de 2004. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia – PPGAC, através do Doutorado Interinstitucional UFBA/UFPA. Mestre em Artes Cênicas pela UFBA. Docente da Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDUFPA. Pesquisadora dos processos de criação em dança na cena contemporânea. 1

miméticas e as de animais”, são aquelas executadas só por homens. Enquanto que as danças femininas estão ligadas aos temas da fertilidade, da fecundidade e de festejos de núpcias encontradas em culturas matriarcais. A dança de animais, executada por homens, está inserida na classificação quanto ao tipo de dança, que Caminada (1999 id.) denomina de dança de “imagem”, “mimética” ou “imitativa”. Essa concepção é atribuída à ideia de que a dança imita os animais através de suas atitudes de ataque e defesa, seu acasalamento, suas características, dentre outros comportamentos próprios da natureza animal. Recorri, então, à Dança dos Vaqueiros do Marajó na medida em que considero esta dança, segundo a classificação de Caminada, uma dança imitativa e ou mimética. Pois, quando os dançarinos interpretam essa dança, imitam o cavalgar do vaqueiro no campo, por meio do movimento do galope, além do gesto de laçar o boi, executado pelo movimento mimético do braço que segura uma corda de sizal. Este artigo aborda o papel masculino interpretado pelos dançarinos, na Dança dos Vaqueiros do Marajó, sublinhando a

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perdurabilidade dessa dança, uma vez que é interpretada até os dias de hoje pelo grupo parafolclórico Os Baioaras e por outros grupos da cidade de Belém e da Ilha do Marajó, constando, assim, em seus repertórios de espetáculos. Ressalto que os aspectos que caracterizam esses grupos encontram-se diluídos no decorrer do texto. A dança está presente na história da humanidade, quer seja como atividade cotidiana, quer seja como espetáculo, onde uns dançam e outros assistem, como, por exemplo, as danças interpretadas pelos grupos parafolclóricos. O movimento pode imitar ações de animais, ou ações presentes no cotidiano das pessoas, ou se detém a movimentos abstratos. No caso dos movimentos que têm como base o cotidiano, esses se transformam em movimentos de dança e, como diz Garaudy (1980, p. 124), “nele deve expressar-se a unidade de uma cultura e de uma civilização, o espírito de um povo ou de uma época”. Na Dança dos Vaqueiros do Marajó, o movimento corporal retrata a experiência do trabalho dos homens do campo, em sua organização coletiva, de cavalgar e de laçar o boi, ressaltando, a partir da música e da indumentária, a cultura marajoara. Os dançarinos que interpretam essa dança executam o passo do galope, como se estivessem metaforicamente cavalgando, caracterizando uma das principais atividades desenvolvidas pelos vaqueiros no campo. Na cultura marajoara, o vaqueiro é a pessoa que sai de casa para desenvolver atividades que são do gênero masculino, enquanto que a mulher cuida dos afazeres domésticos. Sobre isso, Caminada (1999 op.cit., p. 5) relata que “povos com sociedade e economia predominantemente masculinas costumam enfatizar os movimentos saltados”. Daí o passo

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do galope evidenciar tão bem o gesto cotidiano do homem do campo interpretado na Dança dos Vaqueiros do Marajó. A dança, de um modo geral, tem como meio de expressão o corpo e, como diz Hanna (1999, p. 40), “o movimento da dança atrai a atenção”, porque o corpo que se move comunicase, envolvendo todos que lhe assistem. O movimento corporal dos dançarinos dos grupos parafolclóricos passa, então, a ser expressão máxima da coreografia e o coreógrafo, geralmente o diretor do grupo, é aquele que cria ou recria as sequências coreográficas de acordo com o seu grau de percepção. A dança popular, ao longo da história, caracterizou-se e se organizou de acordo com a cultura do seu país, onde papéis masculinos e femininos são desenvolvidos em diferentes manifestações artísticas. Com isso, os movimentos na dança popular vão se diferenciar quanto ao uso do tempo, do espaço e do esforço do movimento, para interpretar tais gêneros. Diferentemente ocorreu na dança acadêmica, especificamente, no balé clássico3, que teve primeiramente a dominação do sexo masculino, inclusive para os papéis femininos. Segundo Hanna ( 1999 id. p. 189), “a dominação masculina no balé começou com Luís XIV”4, e outros homens famosos vão contribuir para o desenvolvimento dessa atividade artística5. As O Balé surgiu, a partir do século XVI, nas cortes italianas e francesas. Por volta de 1661, o rei Luís XIV fundou a primeira academia para o ensino do balé, a Academia Real de Música e Dança, hoje, Ópera de Paris. Com a sistematização do ensino, os passos e as posições do balé receberam uma nomenclatura francesa, a qual definiu, como um dos seus princípios básicos, a verticalidade e a posição en dehors (rotação externa da articulação coxo-femural). 4 O Rei Luís XIV estreou pela primeira vez como bailarino, no ballet Cassandra, em 1651, coreografado por Beauchamps; no Ballet de la Nuit, montado em 1653, desempenhou o papel do Sol. (CAMINADA, op.cit., p. 103). 5 Pierre Beauchamps foi bailarino e coreógrafo de Luís XIV. Jean-Georges Noverre defendeu o Ballet d’ Action, em que os movimentos transmitiam a ação dramática. Outros nomes de destaque foram Enrico Cecchetti e August Bournonville, o primeiro conhecido por seu método de aprendizagem do

mulheres alcançaram prestígio somente com o advento das sapatilhas de ponta e a chegada do romantismo. Neste período, o homem foi perdendo o seu espaço, tornando-se um mero suporte para as bailarinas, cujos papéis passaram a ocupar o centro das narrativas românticas. O ressurgimento dos homens no palco da dança aconteceu a partir do bailarino Nijinski, e, no decorrer do século XX, com outros bailarinos e coreógrafos, tanto no balé como na dança moderna6 e, atualmente, na dança contemporânea, há o resgate efetivo do espaço masculino na dança. No entanto, a dança popular no Brasil recebeu influência histórica dos fatores étnicos e culturais da miscigenação dos povos de cada região, o que foi preponderante para o surgimento de danças populares interpretadas somente por homens. A origem étnica teve início a partir da grande variedade de povos que trouxeram suas contribuições por meio de suas tradições, costumes e rituais. Nesse sentido, os elementos étnicos como o índio, o branco e o negro confrontaram-se, alternaramse, modificaram-se, originando as danças populares brasileiras, cuja movimentação é intensa, sobretudo nos requebrados e sapateados. Essas danças vão apresentar características singulares, espalhando-se em diferentes regiões do país. Nesse universo, destaco o xaxado7, na

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balé e o segundo por sua coreografia. Michel Fokine rompeu com a tradição, coreografando movimentos mais igualmente caracterizados para os homens e as mulheres. (HANNA, op.cit, p.189-90). 6 A Dança Moderna surgiu no século XX, tendo seus estudos centrados na respiração e, principalmente, no tronco, reconhecido por muitos dançarinos e coreógrafos como o centro gerador de todo o movimento. A dança moderna se estruturou em diferentes métodos em uma época de mudanças que suscitavam questões sociais, políticas e filosóficas. 7 Xaxado: Dança do Agreste e Sertão pernambucano, surgida depois de 1920, executada só por homens, popularizada por Lampião e seus cangaceiros. Essa dança é caracterizada pelo arrastar das alpercatas no chão e a pancada do rifle para a marcação rítmica. (ELLMERICH, 1987, p. 103).

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região Nordeste; a chula8 na região Sul, como exemplos de danças populares e a Dança dos Vaqueiros do Marajó, na região Norte. Todas essas danças apresentam uma espécie de sapateado com características próprias, consagrando a interpretação masculina representada por diferentes tipos regionais. Nessas regiões, percebemos a dominância de uma sociedade de economia predominantemente masculina e a divisão de classes, fruto da nossa formação históricosócio-cultural, que define papéis masculinos e femininos, os quais contribuíram para o surgimento de manifestações interpretadas somente pelo gênero masculino. Na Dança dosVaqueiros do Marajó, a figura do vaqueiro se apresentou diferentemente dos outros estados; porém, essa manifestação espetacular trabalha com um elemento muito significativo cenicamente, i.e., o vaqueiro marajoara. Segundo o depoimento do diretor do grupo parafolclórico Os Baioaras: “A dança dos vaqueiros do Marajó está sempre presente no repertório dos shows. Porque é uma dança que o público pede, é uma dança contagiante”. (PADILHA, 2003). Nessa declaração, observo que essa dança tem enorme aceitação pelo público que se sente atraído por elementos da cultura rural, mesmo fazendo parte da cultura urbana. Esse público toma conhecimento das práticas coletivas dos vaqueiros marajoaras, seus usos e costumes representados coreograficamente. Ressalto que a imagem her0ica do vaqueiro marajoara está relacionada com sua labuta no campo. Pois o vaqueiro desenvolve uma postura guerreira sobre o cavalo, representando a luta diária em suas atividades com os animais do pasto (gados, cavalos, búfalos e outros). Porém, é através do desafio de laçar o animal e do movimento do galope, os quais foram convertidos para a dança e imaginados pelos espectadores, que se completa a representação do papel masculino Chula: Dança gaúcha executada somente por homens, numa espécie de desafio. Esse desafio consiste em executar um sapateado complicadíssimo sobre uma vara de madeira, sobressaindo-se aquele que conseguir executar os passos de dança que o adversário não saiba reproduzir. (ELLMERICH, 1987, p. 97).

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deste tipo humano da região Norte do Brasil. Recorri à composição musical da epígrafe deste artigo, cuja letra da música foi composta pela professora Etelvina Cordeiro, segundo relato da professora Heloísa Santos, diretora do Grupo Cultural e Parafolclórico Eco Marajoara, da cidade de Soure, na Ilha do Marajó. Os versos confirmam o papel masculino do vaqueiro marajoara, percebidos nas estrofes: “Cavalgando o dia inteiro,/ Em terra firme ou atoleiro,/ Sou herói deste rincão”. Assim, o vaqueiro marajoara, entendido a partir destes versos, enfrenta períodos de seca e enchentes durante o ano, lutando para manter o seu criatório. Luxardo ([1977?], p. 105) define então, o vaqueiro marajoara: Ele é como a própria terra; plantado no solo, agarrado a todos os meios de sobrevivência para vencer determinantes ecológicas da região. É um lutador preparado para disputar palmo a palmo, dia a dia, de igual para igual, o espaço verde necessário para a sua fixação na grande ilha.

Na Dança dos Vaqueiros do Marajó, os dançarinos interpretaram a figura do vaqueiro, retratando a postura e a potência do homem do campo, utilizando-se do sapateado executado pelos tamancos de madeira e da forma prazerosa com que executam os movimentos fazendo dessa manifestação espetacular a representação da cultura marajoara. Observo que essa dança, interpretada pelo grupo parafolclórico Os Baioaras (conforme mostra a figura a seguir), construiu sua teia de relações com os elementos da cultura marajoara, também ressaltada pela música e figurino do grupo, pelos acessórios utilizados na composição cênica do personagem do vaqueiro e pelos desenhos coreográficos. Lima e Andrade notam que a indumentária ou “veste folclórica” masculina é mais representativa, especialmente as usadas pelos homens do campo. Seus relatos também incluem a indumentária do vaqueiro marajoara. Sobre esses aspectos, dizem: As mais características indumentárias masculinas do folclore brasileiro de hoje são as dos

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homens que lidam com bois, cavalos e búfalos, que começam a ser criados em várias regiões do país. Primeiramente, vejamos o vaqueiro de Marajó. Usa calça de mescla azul-marinho e uma blusa branca de cambraia ou algodão grosso, com pala dupla bem larga na frente e nas costas, contornada de galão colorido. Os punhos e as golas são enfeitados com o mesmo galão. A frente da blusa é dupla e decorada com o galão em motivos marajoaras arqueológicos. A blusa possui dois bolsos chapas, também ornamentados com galão. Na cabeça o vaqueiro marajoara leva um chapéu de palha de arumã ou carnaúba, com borda forrada de fita de algodão; não usa sapatos, apresenta os pés descalços. Outrora para se abrigar dos ventos e das chuvas, usava a baeta, espécie de manta vermelha, de feltro ou flanela, costurada num pano só, retangular. (1979, p. 88-9)

A indumentária possui o mesmo valor do figurino, enquanto elemento visual, e estabelece um elo essencial de significação entre o personagem interpretado pelos dançarinos e o contexto que ele representa, a partir de um conjunto de formas e cores que intervêm no espaço da apresentação. Fares, em sua pesquisa pelo Marajó, que resultou na sua tese de doutorado Cartografias

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Marajoaras: cultura, oralidade e comunicação, enfatiza que duas danças levam a marca da região marajoara, dentre elas a Dança dos Vaqueiros do Marajó: A dança é marca forte da cultura marajoara. É comum, em qualquer município da região dos campos, a existência dos chamados grupos folclóricos, que se exibem em manifestações populares, especialmente, na época junina ou em eventos turísticos. Nesta ocasião, os dançadores ensinam aos turistas o ritmo batido dos passos, o levantar dos braços e o molejo da cintura e dos quadris. Duas danças levam a marca da região. A dança do vaqueiro marajoara, ritmada com os tamancos dos participantes, só homens, e com coreografia de cordas, laços e capas, e o lundu marajoara, assinalado pela sensualidade da conquista através dos remelexos insinuantes entre os casais de dançadores. (2003, p. 129)

Percebo que a marca da região marajoara está nos elementos espetaculares assumidos e interpretados pelos dançarinos nessa dança, pois, para Bião (1999, p. 366), a espetacularidade ocorre “quando o sujeito toma consciência clara, reflexiva, do olhar do outro e de seu próprio olhar alerta para apreciar a alteridade”.


Os dançarinos dos grupos parafolclóricos não são e nunca foram vaqueiros, mas interpretam com muita verossimilhança esse personagem. Quanto ao surgimento desses grupos, Lopes Neto (2001, p. 21) revela que “é a partir da década de 60 que se torna considerável, não só no Nordeste, mas em todo o resto do país, o crescimento de grupos parafolclóricos”. Na região Norte, especificamente no Estado do Pará, dez anos depois é que vai acontecer o surgimento de um dos primeiros grupos parafolclóricos, o Grupo Folclórico do Pará, em 1972, que esteve sob a direção do Prof. Adelermo Matos, pois, mesmo se denominando folclórico, o seu perfil se aproximava da concepção do parafolclore. Em uma das entrevistas com o diretor do grupo Os Baioaras, percebi que o Grupo Folclórico do Pará apresentava uma organização tal como se pode ver nos grupos parafolclóricos de hoje: o acompanhamento de músicos feito por conjuntos musicais (música executada ao vivo), coreografias ensaiadas e a direção do grupo a cargo de um profissional com conhecimento da área artística. Sobre esse aspecto, sublinho que, além de professor de educação artística, o professor Adelermo Matos era conhecedor da área de música e intérprete de outras modalidades artísticas.

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Benjamin (1989) também denomina os grupos parafolclóricos de “representação folclórica” ou grupo de “projeção do folclore”, cujos componentes se organizam em estudos e pesquisas, e também produzem suas apresentações, marcam ensaios, providenciam figurinos, dentre outras tarefas distribuídas entre os integrantes do grupo, que incluem a compra de instrumentos por meio de bingos ou rifas. No Estado do Pará, esses grupos passaram a se organizar, principalmente, nos bairros e nas escolas e muitos outros surgiram a partir de grupos musicais. Pois esses precisavam de dançarinos para mostrar e ensinar os ritmos e as danças folclóricas da região para o público. Diante dessas organizações, os grupos parafolclóricos passaram a ser contratados como atração em eventos de vários tipos, como: aniversários, seminários, fórum, casa de shows e outros, assim como passaram a participar de eventos folclóricos nacionais e internacionais, acarretando um processo 12 TUCUNDUBA

dinâmico de transmissão das manifestações culturais. Na década de 1980, destaco o surgimento do Grupo Parafolclórico Os Baioaras; o Grupo Asa Branca e outros vieram logo em seguida. Entretanto, foi no final dessa década e no início da década de 1990, que ocorreu o aparecimento de inúmeros outros grupos parafolclóricos não só em Belém, mas, também, na Ilha do Marajó, como o Grupo de Tradições Marajoara Cruzeirinho (Soure), o Grupo Cultural e Parafolclórico Eco Marajoara (Soure), o Grupo Paracauari (Salvaterra) e, mais recentemente, o grupo Raízes da Terra (Salvaterra). Essa nova manifestação espetacular, o parafolclore, surgiu a partir de mudanças que ocorreram no ambiente regional. Como expoente principal, enfatizo o turismo, o que acarretou também o crescimento da área artística (aponto a dança) por uma população em busca de lazer, ou seja, o turista (o espectador), ao entrar em contato com o novo e o desconhecido, permite-se apreciar


esses grupos e às vezes caem na dança, conforme terminologia popular, ou seja, participam dançando ou cantando. Desta forma, assinalo distintos fatores possíveis geradores do surgimento desses grupos como: a velocidade dos meios de comunicação, TV a cabo, internet e outros como o intercâmbio entre as cidades e a valorização da região como meio de desenvolvimento cultural. Especificamente, na cidade de Belém, foi percebida outra contribuição relevante para o crescimento do parafolclore, a partir do surgimento de oficinas de danças folclóricas nos festivais de dança: Encontro Internacional de Dança do Pará - EIDAP, que ofereceu oficinas de danças folclóricas do Pará de 2000 a 2003; Festival Internacional de Dança da Amazônia FIDA e Dança – Pará. Estas mostras e festivais, embora tenham surgido desde a década de 1990, continuaram oferecendo oficinas de danças folclóricas do Pará e de outros estados,

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esporadicamente. Porém, neste último festival (Dança Pará/2003), foi reservada uma única noite de concurso, para a modalidade danças folclóricas. Já no Festival Escolar de Dança realizado pelo Colégio Moderno, nos anos de 2002 e 2003, foi reservado um importante destaque à dança folclórica, sendo que, neste festival, prevaleceu a participação de alunos das escolas do ensino fundamental e médio da cidade de Belém. Para se tornarem cada vez mais atrativos, os grupos parafolclóricos inovam em con-cepções cênicas, para interpretar lendas, músicas e danças, projetando os elementos do folclore de forma espetacular. Dantas comenta sobre o aproveitamento dos elementos do folclore, especificamente na dança, pelos grupos parafolclóricos, tendo como suporte teórico a semiologia. Para isso,

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a autora cita os estudos de Proca-Ciortea e Giurchescu: Uma dança folclórica pode ser entendida enquanto uma fala – enquanto um canal individualizado – que permite aos intérpretes selecionar: reproduzir ou combinar elementos do código de movimentos preexistentes, seguindo certos modelos consagrados pela tradição. Ou seja, vai-se buscar, num repertório de movimentos existentes (ou numa língua coreográfica), os elementos para a construção de falas coreográficas (danças). Por outro lado, a construção de falas coreográficas enriquece a própria língua coreográfica, descobrindo, por exemplo, novas combinações de gestos e movimentos. Isto pode ser verificado nos trabalhos de projeção folclórica, realizados por alguns grupos de danças gaúchas: recolhem-se danças populares do Rio Grande do Sul (e nesse processo já se encontram diferentes versões para uma mesma dança, conforme a região) e modificam-se algumas seqüências, mantendo uma estrutura básica. (apud Dantas,1999, p. 66)


Foi verificado, então, entre os grupos parafolclóricos da cidade de Belém, que há uma estrutura básica de gestos e movimentos na Dança dos Vaqueiros do Marajó; porém, os grupos se diferem em outros aspectos (figurino, desenhos espaciais e música), por estarem atrelados a determinadas concepções do coreógrafo (diretor do grupo). Acredito que a interpretação da Dança dos Vaqueiros do Marajó pelos grupos parafolclóricos da cidade de Belém e da Ilha do Marajó, além dos aspectos já citados, devase ao fato do crescimento turístico da ilha, por meio de anúncios colocados nos jornais, revistas e outras publicações turísticas sobre o Marajó. Entretanto, é inegável destacar a extraordinária fonte de inspiração, que representam os elementos da cultura marajoara para musicistas, coreógrafos, carnavalescos, poetas e outros artistas que, com notável criação, confirmam o potencial poético, expressivo de valorização da região do Marajó. Destaco, também, as obras de Giovanni Gallo9 que, tomadas pela atmosfera marajoara, retratam a região e seus habitantes. Enfim, na Dança dos Vaqueiros do Marajó os dançarinos interpretam, coreograficamente, o vaqueiro marajoara, um tipo característico da região do Marajó, encarnados pela força masculina em seus movimentos. A coreografia dessa dança tornou­ -se uma representação estética do vaqueiro, que é homenageado e, ao mesmo tempo, expressa a virilidade do homem que labuta nos campos e nas fazendas. Por esse motivo e pelos seus elementos espetaculares, analisados na cena parafolclórica, essa dança confirma sua constante presença no repertório dos espetáculos desses grupos.

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O ex-padre Giovanni Gallo (1987 – 2003), era italiano e escreveu várias obras sobre o Marajó. Para citar algumas destaco Marajó: a ditadura da água e Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje. Entre outras obras, sublinho a fundação do Museu do Marajó, inaugurado em 1987, em Cachoeira do Arari, município do Marajó.

SAIBA MAIS AZEVEDO, Maria Ana O. de. O Tamanco e o Vaqueiro: Um Estudo dos Elementos Espetaculares da Dança dos Vaqueiros do Marajó, em Belém do Pará. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas UFBA/UFPA. Belém, 2004. BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. Folguedos e Danças de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1989. BIÃO, Armindo. Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma cenologia geral. In: CONGRESSO DA ABRACE, 1, 1999, São Paulo. Memória ABRACE I: Anais do I Congresso. Salvador: ABRACE, 2000. CAMINADA, Eliana. História da dança: evolução cultural. Rio de Janeiro: Sprint, 1999. DANTAS, Mônica. Dança: o enigma do movimento. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999. ELLMERICH, Luís. História da Dança. São Paulo: Editora Nacional, 1987. FARES, Josebel Akel. Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação. 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. GALLO, Giovanni. Marajó: a ditadura da água. Belém: Secult, 1980. . Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje. Cachoeira do Arari: Museu do Marajó, 1990. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. HANNA, Judith Lynne. Dança, sexo e gênero: signos de identidade, dominação, desafio e desejo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. LIMA, Rossini Tavares de; ANDRADE, Julieta de. Escola de folclore, Brasil: estudo e pesquisa de cultura espontânea. São Paulo: Livramento, 1979. LOPES NETO, Antonio. A Construção da Dança Cênica Nordestina: Aproveitamento da cultura popular – 1950/1990. 2001. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. LUXARDO, Líbero. Marajó terra anfíbia. Belém: GRAFISA, [1977?]. PADILHA, Edson. Entrevista concedida à autora, Belém, fev., 2003.

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ARTES VISUAIS

Poder, Simbolismo, Religiosidade e Misticismo Um estudo da joia balangand達 Amanda Gatinho Ferreira

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Página ao lado: Escravas negras de diferentes nações Jean Baptiste Debret.

O ser humano desde que se distinguiu dos outros animais buscou com o que se destacar. O desejo pelo embelezamento do corpo foi e ainda é característica intrínseca do homem, que criou um simbolismo próprio através de sinais materiais. Entre uma das formas de embelezamento que o homem criou, estão as joias, que eram produzidas a partir dos recursos que a natureza oferecia. Assim, no período mais remoto da antiguidade, o homem usava o raro, o singular, como conchas com formas peculiares, plumas de pássaros, sementes, pedras polidas, ossos e presas de animais, muitas vezes associados para compor os adornos. Com o passar dos tempos, as joias ampliaram o seu valor simbólico e são atribuídos a elas inúmeros significados como: indicador de status, poder, riqueza, prestígio, apego simbólico, sentimental, mágico, protetor, religioso, sedução, entre outros. Todos esses signos de distinção, não são escolhidos aleatoriamente, pois sempre procuram estar em sintonia com o seu tempo e visam atender às expectativas do seu portador.

E mesmo durante o período colonial brasileiro, as joias e os acessórios incorporaram símbolos responsáveis por identificar funções e cargos entre os indivíduos da sociedade que era praticamente analfabeta, criando assim, uma comunicação não-verbal, em que o prazer de exibir-se ao olhar do outro era imprescindível em todas as camadas sociais. As joias não possuíam apenas a valoração de adorno, mas também obtiveram inúmeros significados para esta sociedade excludente, hierárquica e elitista. O uso dos adornos pelas escravizadas significou uma forma particular de resistência ao sistema de poder vigente naquele momento, contribuindo também para a manutenção de sua cultura e para a preservação da sua autoestima. As joias de crioulas confeccionadas nos séculos XVIII e XIX consistem em uma coleção de peças de joalheria compostas por: colares, argolas, pulseiras, pencas de balangandãs1, entre outros. Essas joias pos1 Ornamento de metal, podendo ser confeccionado em ouro ou prata, que reúne objetos com formas variadas, agrupadas numa base denominada “nave” ou “galera”. Eles possuem

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Acima: Penca de balangandテ」s em prata com 24 elementos e corrente. Bahia, sテゥc. XIX. Abaixo: Penca de balangandテ」s desmontada.

FRUTUOSO GUIMARテウS. Tamanho: 7,4 x 21 cm. Ano: 2005

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Ao lado: Crioula da Bahia usando joias. (cartão postal)

suíam um importante papel na joalheria brasileira e eram usadas apenas pelas escravizadas, negras livres, mucamas e amasde-leite. A origem dessas joias, que nem sempre eram de ouro maciço, provém dos cultos religiosos afro-brasileiros onde a técnica da fundição foi introduzida pelos negros ‘malês’ que já conheciam na África as propriedades e o manuseio dos metais. (MAGTAZ, 2008, p. 112)

Essas joias burlavam as determinações da metrópole portuguesa, em que o luxo no trajar era dedicado apenas às camadas ricas sociais. As joias serviam como amuletos de proteção. Cada uma possuía uma função, como os brincos que supostamente protegiam a cabeça.

diversas formas, podendo ser: frutas, búzios, moedas, figas, chaves, dentes de animais, romãs, cocos de água etc. Os elementos que compõe as pencas de balangandãs são reunidos em função de seus significados mágicos e rituais. São talismãs e amuletos que supostamente afastam “mauolhado”, trazem sorte, ou indicam “fartura”, “riqueza” etc. O nome Balangandã se deve ao som que emitem quando são movimentados.

Segundo (POMPEI, 2000) “a palavra Amuleto deriva do latim Amuletum, sinônimo coloquial de ‘ciclâmen’, planta que protegia contra venenos”. O amuleto é considerado um escudo contra influências maléficas. Originalmente, o uso de adornos, esteve ligado a essa função, o que já era comum desde épocas pré-históricas. O amuleto costuma ser um objeto de pequenas dimensões, quase sempre carregado junto ao corpo, servindo como proteção contra espíritos, “mau olhado” e doenças. Existem figuras predominantes entre os amuletos como: chifres, pimentas, trevo-de-quatro-folhas, figas, olhos gregos, efígies de santinhos (ou outra entidade, dependendo da sociedade), e pedras preciosas às quais se atribuem certos poderes. Com isso, esses objetos, devidamente “preparados”, supostamente funcionam como fonte de “segurança” para seus portadores, crentes em seu poder. Um exemplo de amuleto é o Balangandã, que é um objeto de origem afro-brasileira. Podemos observar este amuleto representado na obra de Jean Baptiste Debret intitulada

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de “Negra tatuada vendendo caju”. Debret foi um dos membros da Missão Artística Francesa2 e ficou conhecido principalmente pelo caráter documental de suas obras que comumente eram desenhos e aquarelas que registravam a flora, a fauna, os costumes, o cotidiano e as paisagens do Rio de Janeiro. Sob o ponto de vista factual, esta aquarela de Debret, retrata uma cena do cotidiano que ocorria no espaço urbano. O tema central concede o nome da mesma, a venda de frutas por uma negra. Podemos analisar que a venda está presente duas vezes na mesma obra, no primeiro e no segundo plano. No segundo plano observamos a efetivação de um escambo ou de uma venda. Em 1808, com a abertura dos portos, por D. João VI, o grupo de escravizadas comerciantes ganhou mais força, elas passavam o dia vendendo produtos pelas ruas, principalmente nas praças. O ganho das comidas [...] sempre foi serviço de mulher; mulher que exibia nas suas roupas Foi um grupo de artífices e artistas franceses que, vieram para o Brasil no início do século XIX. Foram responsáveis pela inauguração do ensino artístico em modelos formais, no Brasil.

alguns distintivos próprios da sua condição de mercadora de alimentos. Assim, pelos registros iconográficos de alguns documentalistas, vêemse, além dos diferentes tipos de turbantes, batas, saias, escarificações nos rostos, as posturas, as bancas e os produtos da venda e ‘objetos mágicos’, uns de cunho propiciatório, outros invocativos e próprios das atividades desempenhadas nas ruas, buscando proteção, lucro material, e outras benesses (LODY, 2001, p.43 e 44).

Esses trabalhos exercidos pelas negras geralmente eram revestidos em lucro para seus senhores, pois recebiam os ganhos por cada dia de atividade pública. Embora, formassem um grupo marginalizado e excluído socialmente as escravizadas conseguiam burlar a hierarquia social, em que o uso da joia era exclusivo das mulheres brancas. Desde os primeiros dias, a legislação local e metropolitana começou a atacar os direitos das pessoas de cor livres, colocando-as ao lado dos cristãos-novos. Leis suntuárias negavam às mulheres de cor livres o direito de vestir roupas e jóias usadas pelas mulheres brancas livres (KLEIN, 1987 apud LODY, 2001, p.49).

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Porém, sabe-se que algumas escravizadas eram donas de parte das joias que portavam,


pois compravam os adornos com parte do ganho das atividades que exerciam, as quais geralmente poderiam ser trocadas ou vendidas para comprarem sua liberdade. As joias também eram sinal de prestígio social e de poder aquisitivo, assim como as roupas que eram interpretadas como símbolos de presença ou ausência de riqueza e poder. Em uma análise um pouco mais detalhada da obra de Debret, vimos que as mulheres representadas nesta aquarela estão trajando basicamente o mesmo tipo de vestimenta, caracterizadas pelo uso de amplas saias rodadas, uso de blusas bordadas e turbantes. A figura da mulher à direita está próxima a elementos sólidos, como os degraus de uma escada e uma peça fálica situada um pouco atrás, o que concede uma estabilidade à figura. A mesma foi representada na típica postura de melancolia, com um dos braços sustentando sua cabeça e o outro descansando sobre a perna, porém, sua representação é frontal e ereta. Nota-se também uma sensualidade explícita através da exposição do seu corpo e logo mais à sua frente, tem-se uma grande bandeja de cajus. Essa mesma mulher porta um conjunto de amuletos denominado balangandã.

O molho de amuletos tem sua origem nos cultos religiosos africanos, e representa Ogum, o orixá dos que trabalham com o ferro. [...] Sua origem é incerta, mas acredita-se, que seja baiana, feitas por negros artesãos, escravos e forros. As pencas de balangandãs foram primeiramente identificadas nos trajes das negras de Salvador no século XVIII. É provável que seu uso tenha surgido da necessidade da negra de se proteger contra o “mau-olhado” ou como forma de evocar o lucro material ou agradecer uma benção (MAGTAZ, 2008, p.116).

Contudo, tais objetos não podem ser considerados de uso exclusivo da Bahia, visto que Debret foi um dos artistas que retrataram as atividades de ganho no Rio de Janeiro, onde foi realizada a obra que ilustra o estudo. Grande parte das joias de crioulas eram peças volumosas e os balangandãs estão incluídos nessa característica, chegando a portar em média cerca de 20 a 50 objetos em um único amuleto. Observa-se que estes objetos de intenção supostamente mágicos, frequentemente eram usados na cintura, por ser uma área de grande significado ritual religioso, a zona que marca a fertilidade. Porém, algumas pencas de balangandãs eram usados bem próximos ou até mesmo tocando o baixo ventre.

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A disposição na cintura dava-se por meio de argolas individuais, tiras de couro ou outros materiais, e cada peça possuía uma leitura simbólica que era intencionalmente organizada para posteriormente ser sacralizada em rituais, para então serem utilizados nas ruas. Na representação de Debret, “Negra tatuada vendendo caju”, a vendedora possui na cintura uma penca de balangandã, onde se destaca visivelmente uma figa. Observamos que o balangandã representado na obra possui poucos objetos na penca do amuleto, portanto o artista fez uma releitura do balangandã original que possui cerca de 20 objetos no mínimo. A figa possui a forma de uma mão fechada com o polegar entre os dedos médio e o indicador, também podendo ser interpretada com o símbolo do ato sexual. A suposta proteção oferecida pela peça deve-se à crença de que as criaturas do mal são assexuadas, portanto, temem alusões que possam referir à sexualidade. Logo, acredita-se que a figa está associada à sexualidade e à fertilidade no qual a função é de proteção contra as doenças físicas e espirituais.

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Outra característica relevante é o fato de que nem todas as peças que compõe o amuleto são de origem africana ou afro-brasileira, pois algumas peças foram recriadas e transportadas do simbolismo cristão. Símbolos cristãos: a pomba ou os santos mártires ou todos os santos, como o galo, também representando a vigilância, a pomba do Espírito Santo, de asas abertas e a cruz feita com a cabeça e a cauda. São Jorge ou Oxocê, santo guerreiro e caçador, é representado pela lua, pela espada, pelo cão, pelo veado. São Jerônimo ou Xangô se representa pelo burro, pelo carneiro, pelo caju, o abacaxi e o milho. Santo Antonio, ou Ogum, pela faca, pelo porco. São Lázaro ou Omolu é representado pelo cão ou a fidelidade, e, às vezes, também pelo porco. São Cosme e São Damião se representam pela moringa d’água. Santo Isidoro ou Omolu moço (São Lázaro) contenta-se com o boi. São Bartolomeu no culto ‘caboclo’ tem o sol. Sant’Ana, ou mestra da Virgem, Nanã, tem por símbolo a palmatória. Nossa Senhora da Conceição ou Oxum fica com as uvas. A ferradura é o signo da felicidade; o coração, da paixão, se tem chamas, paixão ardente; as mãos dadas, da amizade; a romã é a humanidade[...] (PEIXOTO,1945 apud LODY, 2001, p.54)


Negra tatuada vendendo caju, 1827. Jean Baptiste Debret.

Logo, o balangandã possuía também um caráter religioso, podendo ser ao mesmo tempo um diferenciador social, através do uso da joia, e também por ser um meio de permissão que elas declarassem sua religião oficial, mesmo que só aparentemente. Pois alguns símbolos do cristianismo, como os crucifixos, eram absorvidos e relidos, adquirindo assim novos valores, tornando-se uma espécie de joia com um forte sincretismo dos deuses africanos com os santos da Igreja católica. Portanto, para as escravizadas negras as joias poderiam apresentar valores como: religioso, através da herança da cultura africana; simbólico, como as peças dos balangandãs; econômico, por ser um meio de ascensão social, entesouramento e também como sistema de crédito; místico, por supostamente terem poderes de afastar doenças e “mau-olhado”; e pelo valor de luxo; por meio do exibicionismo para o outro podendo estar ligado diretamente ao poder, característica esta que está relacionada a todas as joias.

SAIBA MAIS

GOLA, Eliana. A jóia: história e design. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2008. LODY, Raul. Jóias de Axé: fios de c ontas e outros adornos do corpo: a joalheria afro-brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. MAGTAZ, Mariana. Joalheria Brasileira: do descobrimento ao século XX. 1º Ed. São Paulo: Editora Mariana Magtaz, 2008. PEREIRA, Sonia Gomes. Arte Brasileira no século XX. Belo Horizonte: C∕Arte, 2008. AFRICA SABERES E PRATICAS. Disponível em:<http://africasaberesepraticas.blogspot. com/2009_10_01_archive.html>. Acesso em: 18 de maio de 2010. POMPEI, Márcia. Jóia amuleto. Disponível em: <http://www.joiabr.com.br/mpompei/0403.html>. Acesso em: 13 de setembro de 2010. PORTAL VENTRE LIVRE. Disponível em: <http:// w w w. p o r t a l v e n t r e l i v r e . c o m / w p - c o n t e n t / uploads/2010/04/escravas.gif>. Acesso em: 13 de setembro de 2010.

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Pelos Olhos de um Jaguar...

Modernidade e Tradição na África Colonial Maria Roseana Correa Pinto Lima

Eles seguiram os passos de seus antepassados... (Do narrador do filme Jaguar, 1967). Não dá para trabalhar com negros!... (De Damouré, no filme Jaguar, 1967).

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AUDIO VISUAL

Estes dois excertos estão presentes no filme Jaguar, documentário produzido pelo cineasta e antropólogo francês Jean Rouch (1917-2004)1, lançado na década de 19602. O filme conta as aventuras de três jovens que saem da Nigéria rumo à Costa do Ouro, atual Gana, e o retorno dos mesmos à aldeia de origem - Ayorou. O filme se inicia com a apresentação dos personagens, em seu cotidiano de trabalho: o primeiro é o pastor conhecido por Lam, cujo nome é Ibrahim Dia, que significa “chefe”, um “verdadeiro chefe”, destacado por sua coragem. O segundo é o pescador Illo Gaouldel, um “verdadeiro mago dos rios”. Já o terceiro é o sedutor Damouré Zica, escrivão, que teve acesso a certa instrução e que “gosta mesmo é de montar seu cavalo Tarzan” e cortejar as moças. Trata de trabalhadores negros livres sob o domínio colonial europeu, cujas histórias nos ajudam a pensar questões como o que surgiu depois da escravidão, tal qual discutido por Frederick Cooper3. Qual o impacto das mudanças gestadas pela incursão dos europeus sobre a África? A que tipo de relações de trabalho os africanos foram submetidos, análogas à escravidão, apesar da ideologia do trabalho livre e da construção de um discurso que justificava a intervenção colonialista sobre o continente negro? Quais as principais mudanças? Em que sentido o novo se debateu ou se imiscuiu com o que seria “tradição” em África, tal qual discutido por John Iliffe?4 1 Destacou-se como antropólogo africanista, tendo defendido sua tese de doutorado sobre os Songhay em 1952, na Sorbonne. Reconhecido cineasta com vasta produção no campo do filme etnográfico, focalizando em seus trabalhos vários países da África Ocidental, tais como Níger e Mali, além de Costa do Marfim e Gana. 2 JAGUAR, primeiro longa-metragem de Jean Rouch, teve suas gravações iniciadas em 1954, no contexto de uma missão etnográfica (realizada entre outubro de 1953 e fevereiro de 1955). Depois de alguns anos e várias versões, o filme foi finalizado e lançado em 1967. A diferença entre as duas datas chama a atenção e se explica pela iniciativa de Rouch de primeiro gravar as cenas, acompanhando o percurso dos três personagens centrais e, cerca de dez anos depois, apresentá-los a filmagem para que incorporassem falas improvisadas na narração dos eventos. Produzido em Níger, Gana e França, 1954-67, cor, 35mm, 88’32’’, em francês e legendado em português. No Brasil este filme consta da Coleção Videofilmes, N. 9. 3 COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In: Frederick Cooper, Thomas Holt, Rebecca Scott. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 201-270. 4 ILIFFE, John. A mudança colonial, 1918-1950. Os africanos. História dum continente. Lisboa: Terramar, 1999, pp. 275-313.

Cooper aponta como os europeus tentaram impor seus modelos econômicos – assentados na propriedade privada da terra, no trabalho assalariado, desenvolvimento das plantations, dentre outros – visando à alteração das relações de produção, o trato com os escravos, exescravos, camponeses, e o quanto as relações de dependências foram redefinidas em função da conjugação de interesses dos colonizadores com líderes africanos. A emancipação ocorrida em Zanzibar (em 1897) e no litoral do Quênia (em 1902), são os dois exemplos explorados por Cooper, através dos quais podemos observar o quanto a conquista colonial foi legitimada com base em um discurso que se construiu assentado na ideologia do trabalho livre, e que a abolição formal da escravidão se deu com pagamento de indenização aos senhores de escravos e foi acompanhada de um esforço de se manter a classe dos proprietários de terras, garantindo o desenvolvimento da agricultura de exportação, preferencialmente mantida com mão-de-obra assalariada, sendo o trabalho compulsório alvo do interesse e defesa de alguns, ignorado ou criticado por outros. Em áreas de agricultura de exportação como Zanzibar (plantações de cravo-da-índia), apesar das tentativas de imposição de modelos de contrato de trabalho, o que aconteceu foi que, ao invés do trabalho regular, disciplinado, assentado em definidas obrigações contratuais, os ex-escravos buscavam entendimentos com os proprietários de terras, não cumpriam de todo os contratos, de certa forma retomando antigos laços de dependência. Em algumas regiões os proprietários tiveram de competir por mão-de-obra, como no caso do Quênia, em que trabalhadores cada vez mais móveis preferiam o trabalho diário, ocasional. Nos dois casos observa-se que as perspectivas iniciais dos colonizadores, interessados no reforço do controle da terra, na abolição legal da escravidão e na conversão dos escravos em proletários foram frustradas, obrigandoos a lidar com o que eles próprios rotularam de “peculiaridade dos africanos” – ideologia assentada no reconhecimento da resistência dos africanos à imposição dos “princípios universais de progresso” pelos colonizadores, e que os rotulava como preguiçosos e incapazes para o trabalho regular sem algum tipo de coação. TUCUNDUBA 25


No caso do filme, é retratada uma das mais prósperas colônias britânicas na África, cuja economia voltava-se para a exploração do ouro e, posteriormente, para o cultivo de cacau, sendo uma área de intensa atração de trabalhadores vindos de diversos países africanos, e, como outras áreas colônias, alvo dos impactos advindos dos interesses metropolitanos, bem como dos africanos interessados no controle da mão-de-obra “livre” de que buscavam dispor. Como afirma Cooper, a mudança aconteceu, mas nos limites da cultura africana (2005: 232). Ela foi contraditória e sutil, como afirmou John Iliffe, mas apesar dos impactos negativos, os africanos remodelaram as formas do novo ao velho e criaram sínteses africanas, em conformidade com suas necessidades e tradições (ILIFFE, 1999: 275). É um pouco dessa cultura e resistência africana e da forma como ambiguamente se deu a inserção dos africanos nas relações de produção introduzidas ou alteradas pela economia colonial que nos chega com o documentário produzido por Rouch.

Da floresta para a cidade: nos mercados, nos portos, nas minas... como um jaguar No início do filme, os jovens decidem partir para Kumasi, na Costa do Ouro, “(...) onde as pessoas vão procurar dinheiro, roupas e riquezas”, em torno disso gira o roteiro do filme, que focaliza a África Negra ainda sob a colonização europeia, sendo o percurso dos personagens apresentado como uma repetição dos movimentos de saída de trabalhadores, sobretudo jovens do sexo masculino, de seus locais de origem em busca de serviço temporário nas cidades ou regiões que experimentavam o rebuliço do desenvolvimento econômico calcado nos interesses metropolitanos. Assim, “[e]les seguiram os passos de seus antepassados”, como aparece no filme. É neste sentido que figuram como jovens que foram seduzidos pelas histórias sobre a Costa do Ouro e a possibilidade de lá ganhar muito dinheiro. Repetiram o percurso dos inúmeros migrantes de curto prazo que saíram de suas localidades de origem, onde muitas vezes tinham acesso à terra, mas que no período das secas rumavam para áreas de exploração como 26 TUCUNDUBA

as de agricultura de exportação, de extração de minérios, ou mesmo cidades marcadas pela urbanização e crescimento populacional (ILIFFE, 1999: 277ss). Os jovens do filme planejaram a ida para a Costa do Ouro, intentando repetir o sucesso daqueles que voltavam para Ayorou com dinheiro lá ganho. Um dos três personagens é destacado como aquele que mais facilmente encontraria riqueza e sucesso: Damouré. Ele aparece inicialmente como escrivão no mercado de Ayorou. O fato de saber ler, escrever e contar é destacado como diferencial entre os demais jovens. Sua instrução e seu charme de nigeriano são utilizados nas diferentes situações no sentido de favorecê-lo: os contatos, os contratos de trabalho, o trato com as garotas, etc. Ao separarse dos demais, seguiu de carona para Accra, cenário urbano agitado pela quantidade de carros que trafegavam pelas ruas. Como observou Iliffe (1999: 277), o incremento dos transportes a motor foi uma das evidências das mudanças econômicas gestadas pela colonização, em conjunto com os equipamentos urbanos implantados nas cidades mais dinâmicas economicamente (escolas, mesquitas, igrejas, bancos, etc.). Na cidade, Damouré buscou os conterrâneos nigerianos, que encontrou desenvolvendo as mais diferentes tarefas: são lavadores de latas, de garrafas, são também carregadores. Perpassada por ironia e humor é a cena em que ele é contratado como carregador de madeira e, por sua força e certa aritmética, transforma-se rapidamente de carregador a chefe da equipe, posição que ele ostenta frente aos demais na forma como se porta, usando óculos escuros e tratando com desprezo seus encarregados: “não dá para trabalhar com negros”, reproduzindo a visão dos brancos de que os negros africanos eram preguiçosos. Ele, como africano, negro, trabalhador migrante, poderia ser incluído neste rótulo, construído e aplicado aos negros de uma maneira geral não porque não trabalhassem, mas porque resistiam em trabalhar como queriam os colonizadores (COOPER, 2005: 254). Acontece que ele procurara ressaltar uma diferenciação sua em relação aos demais trabalhadores, como um jovem que conseguiu obter vantagens materiais com sua parca educação e astúcia. À propósito disso, Iliffe afirma que a educação foi o principal dinamizador da mudança colonial, geradora


de mobilidade social e estratificação, embora também fonte de conflitos. Muitos jovens, estimulados à alfabetização puderam escapar ao trabalho nos campos e conseguir um emprego compensador (ILIFFE, 1999: 288), em que pese o preço deste processo fosse a imposição da cultura ocidental, sempre tencionada com os valores hereditários dos diferentes grupos. No caso do filme, Damouré parece ter “assimilado” alguns comportamentos condizentes com uma moral do trabalho, que aparecem de forma meio caricata, reproduzindoos e, ao mesmo tempo, utilizando-os para impressionar o patrão e se dar bem. Ele joga com a imagem do trabalhador que as autoridades e/ ou colonizadores esperavam que os africanos saídos da escravidão se tornassem: mão-de-obra disponível, barata, mas minimamente preparada e, sobretudo, disciplinada. De empregado ele passa a ser o chefe do depósito de madeiras, é o seu auge, pois agora ele “manda e desmanda”, é um Jaguar – referência a um carro de luxo,

símbolo de prosperidade, de modernidade, e por isso mesmo digno de exposição e admiração pelos outros. Na definição de Damouré: “Eu passeio nas ruas e me tornei um jaguar. (...) um homem sedutor, bem penteado, que fuma e que passeia. Todo mundo olha para ele, e ele olha para todo mundo. Ele olha para todas as moças bonitas, fuma seu cigarro tranquilamente. (...) um homem bom. Um sedutor, um zouzoman...”. Ir da floresta para a cidade. A mudança acarretada é assinalada através dos rendimentos obtidos com o trabalho, mormente através da possibilidade de comprar produtos vendidos nos mercados, como as roupas, sejam elas as usadas mais comumente pelos mulçumanos, sejam aquelas à moda europeia. Roupas novas que são usadas para passear pelos mercados, para ir às festas, para exibir especialmente nos dias de domingo. Lam vai para Accra vender “pagnes”. A venda de roupas no enorme mercado de Kumasi é uma das iniciativas de sucesso dos jovens; atividade que preferem TUCUNDUBA 27


ao trabalho nas minas de ouro. Montam uma pequena loja que começa a prosperar apenas quando Damouré usa de seu charme e poder de persuasão para incrementar as vendas. Em todas estas cenas, e mesmo na saída de Ayorou, destaca-se o mundo do mercado, onde tudo acontece – (re)encontros, relações comerciais, festas e rituais, contratos de trabalho, etc. – e onde tudo se decide. A cidade é este cenário da prosperidade, da liberdade – evidenciada pelas manifestações nacionalistas que marcaram a década de 1950, sob a liderança de Kwane Nkrumah e da Convention People’s Party (CPP), que resultariam na Independência em 1957, agora não mais Costa do Ouro, mas Gana. Mas a cidade também é local de exploração, pobreza e segregação. A vida de trabalho nos portos de Accra também é apresentada, sobretudo através de Illo, que lá trabalha como kaya-kaya (carregador), reproduzindo a situação dos demais trabalhadores: ganha poucos xelins por dia trabalhado, não come bem, vive cansado e tem como alternativa roubar parte do carregamento de uísque para compensar os parcos recursos. A situação de Illo parece contrastar com a de Damouré: o primeiro é feio, ganha mal, vive dormindo no porto porque não tem ninguém que o incomode. O segundo é belo e sedutor, arranjou logo melhor colocação no trabalho. Illo faz suas orações “em qualquer lugar” a Alá enquanto o sedutor aposta em cavalos em meio aos negros bem sucedidos, vestidos à moda europeia. Aliás, o sucesso de Damouré transparece como proporcional à assimilação dos costumes de fora, dos brancos europeus, próprios do ambiente da cidade, revelada não só pelo uso de certas roupas, acessórios, livre circulação, capacidade de mando, mas também pela língua (o uso do inglês, que comentaremos mais adiante). Além dos três jovens citados, há um quarto participante desta história, Doumá Besso, que é também nigeriano e através do qual os jovens conheceram histórias acerca da prosperidade advinda do trabalho na Costa do Ouro. Acompanhando o percurso de Doumá no filme, enseja-se um olhar sobre o cotidiano de trabalho pesado na região das minas, as condições a que eram submetidos os mineiros: longas jornadas de trabalho “sem ver o ar e respirar ar puro”; as 28 TUCUNDUBA

técnicas para fundição do ouro e produção das barras deste metal precioso; a supervisão dos ingleses e policiais. No que é contado no filme, o desabafo sobre a exploração colonial: “o ouro é enviado para Londres, onde fica em um cofre (...). E, para nos enganar, só fica o ouro ruim. (...) Os ingleses vieram enganar os africano... tirar seu ouro e levar para casa”... Não só os ingleses, mas também os franceses, portugueses, belgas, italianos, alemães e todos os envolvidos na exploração colonialista sobre o continente, vale lembrar. Muito embora o que autores como Iliffe procurem enfatizar é que as nações africanas são fruto do colonialismo, no sentido de que o mesmo instaurou mudanças significativas nos continente, que não necessariamente podem ser tomadas como negativas. Tanto Iliffe quanto Cooper são taxativos na afirmação de que os europeus construíram um discurso que justificava a dominação europeia, muito embora não tivessem, ao final, tido sucesso em ”levar a civilização” ao continente africano, como se alegava. Para Iliffe, um dos pontos a destacar é que o colonialismo introduziu técnicas agrícolas que resultaram, entre outras coisas, numa produção agrícola mais equilibrada (no sentido de menos dependente dos fatores climáticos), o que, em conjunto com a diminuição da fome e do decréscimo dos índices de mortalidade, teria colaborado para o crescimento populacional. No caso do que foi narrado no filme, exposto acima, a exploração é reconhecida pelo destino da produção aurífera, mas também porque se reconhece que o trabalho nas minas é pesado e difícil e “todos acabam pegando tuberculose”; esta “(...) doença de pobres que se instalou em grandes cidades do continente (ILIFFE, 1999: 310). Mas nem só de trabalho viviam os africanos dos tempos coloniais. Na sequência, podemos observar duas outras questões: os impactos da experiência sob o colonialismo no que toca à religião e à demarcação da alteridade nesta viagem entre florestas e cidades. Agora já temos o caminho de Deus e o caminho dos Holey, temos que pedir o caminho dos Sohantiés... O percurso dos jovens nigerianos rumo a Costa do Ouro foi feito a pé, conduzido pelo


interesse econômico e pelas aventuras, marcado por momentos de preparação, de descobertas, de encontros com outras aldeias/culturas e com toda a movimentação das áreas urbanas – sendo muitas vezes com humor e ironia focalizado o choque cultural experimentado pelos aventureiros nigerianos. Illo, Lam e Damouré prepararam-se para sua aventura pedindo as bênçãos que julgavam necessárias para o trajeto, primeiramente pedindo a Deus que indicasse o caminho a seguir. Assim é que Lam e Illo assistem à Festa de Walimo – a “decida do Alcorão”. Em seguida, pedem aos espíritos, os Holey, que lhes deem uma boa viagem, o que acreditam conseguir participando de um ritual e guardando o bico e os pés de um abutre sacrificado por eles. Finalmente, dirigem-se para Wanzerbe, região de Goural, onde se encontram os “maiores magos do Níger”, os Sohantiés, sendo Mossi o maior deles. Consultado, Mossi indica quando o caminho está melhor para ser seguido pelo grupo que, no entanto, deveria se separar quando chegassem ao primeiro cruzamento, já na Costa do Ouro – assim evitariam acidentes e doenças. Esta passagem do filme nos permite perceber como os africanos misturavam crenças antigas com novas, o que foi caracterizado por

Iliffe como “ecletismo” – que teria caracterizado a África e os africanos nos tempos coloniais e pós-coloniais. Assim, ao invés da simples assimilação do cristianismo pelos africanos, como intentaram os colonizadores, o que se assistiu no continente foi um processo no qual os nativos “(...) conciliaram o cristianismo com crenças e práticas hereditárias”. O cristianismo avançou junto com o impulso da instrução que através dele era possibilitada, em consonância com o objetivo de imposição da cultura ocidental, mas também respondendo à busca de autoemancipação de jovens, pobres e mulheres. Quanto ao Islamismo, que é a religião professada pelos personagens do filme (principalmente Illo e Lam), apesar das desconfianças de que era alvo pelos europeus, acabou tendo sua expansão também estimulada. Religiões adotadas pelos africanos no limite das possibilidades de serem mescladas às crenças e culturas locais (ILIFFE, 1999: 293). O que Iliffe define como questão de ecletismo, remete à consideração de que o projeto vindo de fora, intentado inicialmente para fazer frente à realidade vivida pelos africanos, sofreu uma série de obstáculos e mesclas, a ponto de se tornar viável condicionalmente pela consideração do Outro, que se tentava moldar, o que não foi conseguido como queriam em função da resistência africana.

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... quando você chega a um país, é o país que nos modifica No filme assistimos aos encontros e descobertas dos três jovens no percurso entre a floresta e a cidade. A cada chegada, impressões (registradas nas imagens, mas também nas falas, durante e após a gravação das cenas) que variavam entre a admiração, o susto, o receio, ou a imensa alegria, como quando se deparam com o mar pela primeira vez e comeram coco, comparando-o com queijo, leite e chocolate. Impressões causadas não só pelo que a natureza os apresentava ao longo do caminho, evidentemente. A frase destacada acima foi proferida no contexto da chegada dos jovens a uma aldeia no norte do Daomé, onde os Sombas vivem. O choque cultural é evidenciado na admiração dos jovens pela nudez dos Sombas. Nudez, feitiços, enfeites, danças, atentamente observadas pelos nigerianos. Nas cenas produzidas pelo cineasta, a evidência do exótico em África, onde o primitivismo e a tradição contrastam com a presença de elementos que sinalizam a incursão europeia naquelas terras: um dos membros do grupo que se encontra dançando usa óculos de sol e outro veste roupas brancas e chapéu ao modo dos colonizadores europeus. “... [Q]uando você chega a um país, é o país que nos modifica”, é o que é dito por Damouré e explicitado com a sua atitude de participar seminu de um ritual do grupo Somba, apenas vestindo um short. Misto de respeito, curiosidade e estranhamento com o outro. É uma postura de alguém que, temporariamente, teria se contaminando com o outro, tal qual transparecerá em boa parte do filme, sobretudo quando os jovens chegam ao cenário urbano, e passam certo tempo na Costa do Ouro. Observam e experimentam as mudanças decorridas da presença europeia na África, e do choque entre tradição e modernidade... Modernidade que se ressalta através do vai-evem de carros, das casas e prédios, da construção de uma mesquita, mas também do encontro com pessoas de diferentes lugares e costumes, ou com um grupo de moças cristãs saindo da igreja, no mesmo cenário em que se assiste a antigos rituais africanos, evidenciando a cidade como lugar onde se juntam tantos povos, línguas e religiões.

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Na parte final do filme, registra-se que passados alguns meses, Damouré, Illo e Lam, junto com Doumá dão adeus a Kumasi e fazem a viagem de volta para Ayorou. O retorno não mais é feito a pé mas de caminhão – “como soldados vencedores” – o transporte símbolo das mudanças em África. Repetiram o que meio milhão de jovens fazia todos os anos: sair no período das secas, retornar no período das chuvas, sendo que o momento da volta “para eles é a apoteose”. É a hora de exibir tudo o que conseguiram em meses de trabalho, dividir entre os parentes. Tudo o que ganharam é rapidamente repartido. E retomam as atividades costumeiras, no pasto, nos rios, no comércio, isso depois de exibirem os tecidos, roupas, tapetes, utensílios e falares “modernos” – a língua do colonizador (inglês) é usada como mais um símbolo de prestígio5 – os quais somariam na comprovação de suas aventuras, corroborando uma vez mais os inúmeros relatos sobre a Costa do Ouro. Reencontram seus familiares e amigos, e entre eles as mulheres. Mulheres africanas, sobre quem se registra que, comparativamente aos jovens do sexo masculino, teriam experimentado alterações sem grande significado6, mas que aparecem no filme andando pelas ruas da cidade com vestidos europeus, participando de rituais africanos, preparando-se como cristãs, trabalhando, como nas minas junto com os homens, esperando seus noivos... No geral, as cenas mostram o percurso dos jovens e, nelas, a tensão entre tradição e modernidade, construída pela confluência do que chega da aldeia na cidade e da cidade na aldeia, pela demonstração de cenas, gestos e falas que demarcam e constroem a alteridade, o que é importante de ser ressaltado, sobretudo se considerarmos o fato de que entre as gravações e a introdução do que é dito no filme há a distância de quase dez anos. Os muitos diálogos existentes no filme são, nesse sentido, inventados, contando com o recurso Tal qual discutido por Irving Goffman, em oposição aos símbolos de estigma. Cf: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. 6 Cf: ILIFFE (1999: 307), que chega a afirmar que “[a] mudança colonial foi menos libertadora para as mulheres do que para os jovens do sexo masculino”. 5


da memória dos atores/nativos para a leitura e (re)construção de uma realidade também ela inventada, uma vez que foi o cineasta quem estimulou a saída dos três jovens de seus locais e cotidianos originários para um outro lugar, no sentido de que reproduzissem o movimento migratório existente a séculos. O que respondia ao interesse de Jean Rouch no estudo do sistema de migração entre os países da África do Oeste. Esta estratégia de primeiro registrar as cenas e só tempos depois registrar diálogos construídos pelos personagens, misturar realidade e ficção, é que faz alguns estudiosos afirmarem que filmes comoJaguar afastam-se do gênero propriamente etnográfico e se aproximam dos chamados filmes de improvisação7, considerando-se a interferência do cineasta no registro da “realidade” presente no documentário. O que pode ser percebido nas cenas em que os três jovens conseguem atravessar a fronteira política da Costa do Ouro e driblar os policiais e demais encarregados da alfândega porque os mesmos percebem que estão sendo filmados e se atém ao cineasta. Estamos diante das possibilidades do audiovisual que, como produção cultural, procede a uma codificação da realidade. O filme etnográfico aqui analisado nos permite perceber quando o documentário também é ficção. No caso do trabalho de Jean Rouch, a observação atenta, o conhecimento profundo da realidade que pretende registrar, são apresentados pela linguagem fílmica, reconstruindo o real e inventando o outro através do filme. A improvisação, bem como o diálogo entre o produtor do audiovisual e os sujeitos que foram filmados, para quem o antropólogo e cineasta devolve o filme antes mesmo que ele esteja acabado, fazem destes sujeitos também autores do filme (RIBEIRO, 2000). Câmera na mão, percursos entre cenários naturais, improvisação interferindo no roteiro inicial, uma realidade a registrar e uma obra a devolver às pessoas que filmou e sobre quem retratou com tanta riqueza de detalhes... esse é o Jaguar de Jean Rouch.

7 A este respeito consultar: FREIRE, Marcius. Jean Rouch e a invenção do outro no documentário. In: Doc On-line, N. 03, dez. 2007; disponível on line em : http://www.doc.ubi.pt/03/ artigo_marcius_freire.pdf, consultado em 20/06/2008.

SAIBA MAIS COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In: Frederick Cooper; Thomas Holt; Rebecca Scott. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pósemancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 201-270. FREIRE, Marcius. Jean Rouch e a invenção do outro no documentário. In: Doc On-line, N. 03, dez. 2007; disponível on line em: http://www.doc.ubi. pt/03/artigo_marcius_freire.pdf, consultado em 20/06/2008. ILIFFE, John. A mudança colonial, 1918-1950. Os africanos. História dum continente. Lisboa: Terramar, 1999, pp. 275-313. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. JAGUAR. Filme de Jean Rouch, 1967. Produção: Níger, Gana e França, 1954-67, cor, 35mm, 88’32’’, francês, legendado em português (com comentários impovisados por Damouré Zika, Lam Ibrahima Dia, Illo Gaoudel, Amadou Koffo). Coleção Videofilmes, N.9. RIBEIRO, José da Silva. Maîtres Fous, um desafio de Rouch aos antropólogos. In: Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Vol 40, 195-202, 2000.

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El Rey de Secos e Molhados O jogo da colonização e antropofagia na Tropicália

Francisco Ewerton Almeida dos Santos


MÚSICA “Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa a contra mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade decepado Entre os dentes segura a primavera” Primavera nos Dentes João Ricardo e João Apolinário “O Tropicalismo é um neo-Antropofagismo”: assim definiu Caetano Veloso, em entrevista concedida a Augusto de Campos1, o movimento que ajudara a fundar e deflagrar. A explosão do Tropicalismo (ou Tropicália) se deu nos Festivais da Música Brasileira, no fim da década de 60, quando “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil chamaram a atenção da mídia e do público por trazerem uma proposta inovadora em suas letras e arranjos, misturando Rock’n’roll, música experimental de vanguarda e ritmos brasileiros. Pouco depois, seria lançado o LP Tropicália, do qual 1 Ver CAMPOS, 2003.

participaram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Os Mutantes, etc. Neste texto, procuraremos investigar mais a fundo esse que é “antes de tudo um movimento dessacralizador. Irônico e parodístico” (SANT’ANNA, 1977, p. 233). Segundo nos diz Afonso Romano de Sant’Anna, observar a importância deste movimento para a formação da (contra-)cultura brasileira no que se chama modernismo tardio ou pósmodernismo e sua poética dessacralizadora, que mescla o popular e o erudito, incorpora o canônico e a cultura de massa (ou vice-versa), deglute os monumentos de cultura das fontes irradiadoras (seja do colonialismo ou neoimperialismo), carnavaliza-as e descentra sua influência. A partir daí, podemos observar as origens imediatas e remotas da Tropicália, que busca a tradição barroca, do já antropófago Gregório de Matos, retoma as propostas do modernismo de 22, principalmente as lançadas no “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade (“Tupy, or not Tupy...”) e, dessa forma, relaciona-se com outros movimentos de vanguarda de sua época,


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como o Cinema Novo e o Cinema Marginal, o Poema-Processo, a Poesia Marginal, o psicodélico e o hippie, todos marcados pelo seu aspecto experimental e iconoclasta, que mescla elementos heteróclitos, de diferentes linguagens e contextos, para criar uma arte autêntica de caráter híbrido. É importante ressaltar que tudo isto se deu em plena ditadura militar e a estética arrojada da Tropicália era também uma forma de velar uma crítica; o protesto social adquiria, assim, caráter estético, de maneira que forma e conteúdo se uniam em uma proposta revolucionária, que extrapolava para o comportamento: as cores, roupas e danças, a libertação dos instintos e o caráter muitas vezes andrógino dos artistas, dialogavam em um sistema de signos, constituindo uma mensagem subversiva. O grupo Secos e Molhados surge pouco depois da deflagração da Tropicália. Formado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, lançou dois discos - o primeiro em 1973 e o outro em 1974, trazendo ainda as concepções estéticas do movimento, evidenciadas nas performances e visual pitorescos. Aliado a isso, apresentava a proposta de musicalização de poemas de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Julio Cortázar, entre outros, ressignificando estes textos ao transpôlos para outra realidade histórico–social e retomando, ainda, a proposta de Mallarmé, de [re]junção entre música e poesia. Dessa forma, o Secos e Molhados talvez refine ainda mais a proposta tropicalista de transgressão estética e comportamental, trazendo em suas letras críticas veladas através de jogos intertextuais, confirmando em suas canções a equivalência entre os termos “antropofagia”, de Oswald de Andrade,

“intertextualidade” de Kristeva, “dialogismo” e “carnavalização” de Bakhtim e o poder subversivo que essas práticas textuais assumem por meio da paródia, quando o dominado assume a força do discurso dominante para denunciar as próprias instituições de poder. O nivelamento da arte dita “elevada” e a arte “baixa”, popular, é uma forma de provocar e atacar a cultura oficial, elitista e colonizada, colocando a expressão da margem no centro da discussão e derrubando as hierarquias. Isto é, antropofagia e carnavalização são meios de inversão e resistência. Para melhor ilustrarmos essas afirmações, cabe partirmos para a análise de uma letra dos Secos e Molhados. Trata-se de “El Rey”, canção composta por Gerson Conrad e João Ricardo e lançada no disco de 1973: “Eu vi El Rey andar de quatro De quatro caras diferentes De quatrocentas celas Cheias de gente “Eu vi El Rey andar de quatro De quatro patas reluzentes De quatrocentas mortes... “Eu vi El Rey andar de quatro De quatro poses atraentes De quatrocentas velas Feitas duendes” Devemos observar, primeiramente, que o texto é permeado pela relação entre três ideias: Poder - decadência - resistência. El Rey é o signo do poder. A forma castelhana nos remete ao poder colonial: opulência, riqueza e dominação. Entretanto, o primeiro verso da canção diz: “Eu vi El Rey andar de quatro”.

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Neste verso entra também o elemento da decadência. O rei de quatro é a ridicularização do grandioso e quando no verso seguinte lemos “quatro caras diferentes”, observamos que a palavra “cara” traz um sentido diferente de “face” ou “rosto”, pois, apesar de ser aparentemente sinônimo, a forma utilizada no texto é cotidiana, uma gíria comum em contextos informais e referente ao que é baixo, sem apresentar qualquer reverência ou respeito. Então aqui a palavra “cara” aparece como índice de dessacralização. Quatro caras: o poder se apresenta de várias formas, muda as máscaras (as personas, como no teatro grego), transforma o discurso. Assim como em um teatro, o poder muda de máscaras e, assim como em um carnaval, suas máscaras trazem o brilho da riqueza na forma de extravagância. E como bem traduz o barroco, o grandioso e o grotesco — a opulência e a decadência — andam juntos. A alusão ao despotismo surge no verso seguinte: “De quatrocentas celas cheias de gente”. Aqui vemos que o poder se despersonaliza, muda de máscaras e de discursos, mas, seja o discurso colonial imperialista, seja o neoliberal pretensamente democrático, vemos a história dos vencedores marchando sobre os corpos dos vencidos, uma marcha sobre cavalgaduras, se compreendermos aqui “celas” como uma metonímia que remete a “selas”, às montarias e seus respectivos cavaleiros. Por outro lado, a cela pode ser a prisão e a tirania aparece no fim desta primeira estrofe na forma da supressão da liberdade do outro. A estrutura da primeira estrofe se repete nas seguintes, isto é, o estribilho inicial, no segundo verso, “patas reluzentes” aparece no lugar de “caras diferentes”, apresentando, contudo, a mesma estrutura morfológica: caras/ patas, assim como diferentes/reluzentes, apresentam o mesmo número de

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sílabas, as silabas tônicas na mesma posição e as mesmas terminações, mantendo a cadência e a melodia do texto. Além disso, essa correspondência estrutural anuncia que também será mantida a relação de ideias, pois, “quatro patas reluzentes” pode referirse tanto à imagem de uma montaria, símbolo de altivez cavalheiresca, ou às quatro patas do próprio rei. O reluzente da riqueza vem novamente associado ao rebaixamento da imagem grotesca do “rei de quatro”. Cabe aqui enfocarmos a peculiaridade da palavra “morte” dentro do texto. Como podemos observar, o poema é dividido em três estrofes, duas de quatro versos e uma, à qual nos reportamos agora, de três. Porém, na cadência da música, o lugar do quarto verso da segunda estrofe fica vazio, ou melhor, é preenchido pelo silêncio. Silêncio expressivo. Os três pontos que seguem a palavra “morte” corroboram essa ideia. Assim, podemos compreender a morte como forma maior de violência e coação, a pena capital empreendida pelo poder, sobre a qual não se faz necessário o uso de nenhum adjetivo: diante da (ameaça de) morte, o coagido deve calar, não por respeito à autoridade, mas por medo de sua força. A terceira estrofe traz a mesma estrutura das anteriores: após o estribilho, surge, no segundo verso, “poses atraentes”, que se relaciona morfologicamente a “caras diferentes” e “patas reluzentes”, reiterando a ideia da elegância atrativa ligada à imagem de riqueza ostentada pelo rei bem como à extravagância humorística, por meio da imagem caricatural atribuída à elegância e à riqueza na paródia carnavalizante. E nos dois últimos versos temos novamente o índice da dominação em “quatrocentas velas”. Num primeiro momento, o vocábulo “velas” pode ser visto como índice da dominação colonizadora se associado metonimicamente às caravelas que cruzaram


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o oceano subjugando povos. Por outro lado, “velas” pode também ser um índice perifrástico da morte. Visto por essa segunda perspectiva, a palavra “duendes”, presente no último verso, apresenta-se como uma chave de leitura por ilustrar como a resistência se integra no texto. Este ente fantástico, muito comum na mitologia céltica, é um símbolo de travessuras, de caráter semelhante aos sátiros da mitologia grega. Dessa forma, o duende é o que satiriza, ironiza, parodia, ridiculariza, ou seja, uma figura carnavalizante. As quatrocentas velas, quatrocentos mortos – políticos, culturais, etc. –, os vencidos e marginalizados dos centros de poder, erguem-se para novamente exercer a oposição, utilizando a carnavalização como instrumento de resistência. A carnavalização, apresentando-se como paródia, isto é, reescritura e transformação de outro texto, tornase antropofagia quando o autor, imerso em uma situação desfavorável, ou subdesenvolvida, na situação de dominado, assume o texto do outro, do dominador e o transforma. Dessa forma, como diz Robert Stam: O artista não pode ignorar a presença da arte estrangeira; tem de engoli-la, caranavalizála e fazer uma reciclagem para objetivos nacionais. ‘Antropofagia’, nesse sentido, é um outro nome para o que Kristeva, traduzindo Bakhtin, chamou de ‘intertextualidade’ e que o próprio Bakhtin chama de ‘dialogismo’ e carnavalização. (STAM, 1992, p. 49)

Nesse sentido, a carnavalização como resistência apresenta-se no plano estético e textual assim como no plano social:

oficial do dominador e é amplamente utilizada pela Tropicália e, mais especificamente, pelos Secos e Molhados. Nesse ponto, cabe ainda ressaltar o diálogo do texto com a tradição literária colonial, marcadamente o Barroco. Esse diálogo é já evidente na linguagem medievalista do texto, mas pode ser aprofundado observando-se algumas características barrocas dentro do poema em análise. Uma delas é o exagero das imagens. Tal característica é evidenciada não só nas imagens exóticas e grotescas, mas também com a utilização do conceptismo, recurso que cria um jogo verbal, o qual se estende a um jogo de ideias antitéticas. Assim, os números quatro e quatrocentos se referem ao exagero do poder: o quatro a riqueza que atrai, o quatrocentos a tirania que oprime. E, desse jogo de ideias antitéticas que desvela a decadência daquilo que é grandioso através da ironia e da paródia, resulta a resistência. Gregório de Matos é um baluarte dessa prática, com suas elaboradas sátiras ao governo colonial antecipou a Antropofagia oswaldiana, quando parafraseou o poema “Triste Tejo” do português Francisco Rodrigues Lobo em seu ácido “Triste Bahia”. Dessa forma, nota-se também, o aspecto metalingüístico de “El Rey”, pois evidencia a atitude do artista latino americano, que, ao tomar consciência de seu subdesenvolvimento2, não se isola da cultura dominante, símbolo do poder colonial outrora, e neocolonial atualmente, e sim a devora, parodia e dessacraliza, impondo sua resistência. 2 Ver CANDIDO, 1972.

[O carnaval é] uma celebração coletiva que funciona como um modo de resistência simbólica, da parte da maioria marginalizada dos brasileiros, às hegemonias internas de classe, raça e gênero. Para Da Matta, o carnaval é o lócus privilegiado da inversão. Todos os que foram socialmente marginalizados invadem o centro simbólico da cidade (STAM, 1992, p. 50.)

“A lógica do carnaval é a do mundo de pernas para o ar, onde se zomba dos poderosos e onde reis são entronizados e depostos” (STAM, 1992. p. 52) A carnavalização é a principal forma de subversão do oprimido contra o discurso

SAIBA MAIS CAMPOS, Augusto de. O Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva. 2003. CANDIDO, Antonio. “Literatura e Subdesenvolvimento”. In: América Latina em sua Literatura. São Paulo, Perspectiva/ UNESCO. 1972. p. 343-362. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes. SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar no discurso latino americano”. In: Por uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva. p. 11 – 28. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Editora Ática, 1992.

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MEMÓRIA

ASTÚCIAS DA MEMÓRIA Identidades Afroindígenas no corredor da Amazônia Agenor Sarraf Pacheco1

1

“Enquanto escoceses, irlandeses, italianos, alemães, franceses, entre outros, chegam com suas canções, instrumentos, imagens de seus deuses, tradições familiares, os africanos chegam despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade, até de sua língua. Porque o ventre do navio negreiro é o lugar e o momento em que as línguas africanas desaparecem, porque nunca se colocavam juntas, nem nas plantações, pessoas que falavam a mesma língua. (...) O que acontece com esse migrante? Ele recompõe através de rastros/resíduos, uma língua e manifestações artísticas, que poderíamos dizer válidas para todos. (...) O africano criou algo imprevisível a partir unicamente dos poderes da memória: compôs linguagens crioulas e formas de arte válidas para todos” (GLISSANT, 2005, pp. 19-20).

Entradas A presença africana na Amazônia começou pelos espaços marajoaras. Região propicia para a cultura bovina, em 1644 é provável que as primeiras cabeças de gado de Cabo Verde vieram sob os cuidados dos primeiros filhos das Áfricas. Estas populações destituídas do direito à convivência familiar e cultural recriaram no “rastro/resíduo” de suas memórias sonoras e sensíveis uma nova cultura material e imaterial, revelada em linguagens históricas e artísticas que interagiram com os modos de vida indígena. As relações de trocas, empréstimos e sociabilidades estabelecidas entre nações indígenas e africanas desde seus primeiros contatos no período colonial, sem negar 1

Doutor em História Social pela PUC-SP e Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA), vinculado ao Instituto de Ciências da Arte (ICA).

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maneira como poderes locais cooptaram muitos destes sujeitos históricos para defender interesses de seus projetos administrativos, legaram para as culturas locais do presente tradições, cosmologias, saberes, fazeres e agires, os quais permitem interpretá-los como afroindígenas. Na luta contra o esquecimento de suas ancestrais práticas culturais e cosmovisões, essas populações conformadas em matrizes orais, formularam estratégias para negligenciar o sistema de dominação social, político e espiritual imposto pelo poder colonizador. A proposta deste texto é, portanto, acompanhar, por meio do diálogo com narrativas históricas presentes em escritas de cronistas, viajantes, etnólogos, historiadores, a constituição das identidades afroindígenas. O escopo teórico das mediações culturais, escolhido pela pesquisa, lida com sociedades de contato. Por isso, optamos por construir


uma narrativa capaz de apreender e traduzir interstícios entre sujeitos em interações. Assim intercâmbios com estudos de Homi Bhabha tornam-se possíveis, ao assinalar “que é teoricamente inovador e politicamente crucial a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” (2003, p. 20). Nesse mesmo veio analítico, incentivando a pensar formas de negociar identidades e confrontar visões de mundo, Stuart Hall faz refletir: “as culturas, concebidas não como ‘formas de vida’, mas como ‘formas de luta’ constantemente se entrecruzam: as lutas culturais relevantes surgem nos pontos de intersecção” (2003b, p. 260). Sem negar o sistema de identificação historicamente convencional com os quais diferentes agentes e grupos sociais se autodenominam na Amazônia, mas questionando o que invisibilizam e silenciam

em termos das matrizes étnico-raciais, procuramos adensar o debate das identidades políticas e provocar outras inquietações sobre nossa existência nas fronteiras regionais, nestes tempos de multiculturalismos, políticas afirmativas e marcos legais em respeito à diversidade cultural2. Problematizando convenções identitárias A temática das identidades culturais continua sendo um campo instigante nas pesquisas desenvolvidas pelas humanidades. No universo amazônico o debate é complexo pela multiplicidade de suas formulações. Caçadores, coletores, pescadores, vaqueiros, roceiros, camponeses, agricultores, seringueiros, castanheiros, trabalhadores rurais, 2 Ver determinações da Lei nº 10.639/03 e mais especificamente o que amplia a Lei 11.645/08 sobre a valorização da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena.

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povos das águas ou das florestas, ribeirinhos são algumas das muitas adjetivações historicamente cunhadas para identificar populações de tradições orais/rurais, filhas das mesclas multiétnicas, habitantes do amplo e plural mundo amazônico. Se essas identificações voltadas ao mundo do trabalho permitem ampla visibilidade dos modos de viver de populações locais ou ajudam a desvelar territorialidades onde sistemas de pertencimentos são construídos, quando descoladas da historicidade de suas matrizes étnico-raciais, invisibilizam o entendimento das intersecções socioculturais alinhavados por grupos nativos e diaspóricos que conformaram a história das identidades Amazônicas (HALL, 2003a; 2003b). É preciso, todavia, não esquecer que pesquisas sobre identidades locais, atualmente, têm ensinado ser preciso apropriar-se das próprias representações construídas pelos amazônidas e valorizar a riqueza de suas vozes e sabedorias para podermos produzir a escrita de uma história democrática capaz de dialogar com a diferença e respeitar as diversidades culturais. De outro modo, mas inter-relacionadas a esse apontamento, pesquisas históricas comprometidas com uma interpretação mais profunda da realidade social, ao focalizarem atenção para os diversos grupos sociais que se apresentavam em determinado contexto histórico, podem contribuir para melhor problematizarmos antigas convenções e conhecermos trajetórias de nações e etnias atávicas ou em migração ali situadas, bem como suas convivências sociais. Tais grupos constituíram a população regional e seu desvelamento ajuda os habitantes a identificarem genealogias de suas próprias formações culturais. Essa prática contribui para afirmação, negação ou construção de novas identidades, como ocorre atualmente com as denominações “negro” e “preto”, quilombola, negro da terra, caboclo, índio, descendente de índios, afroindígena. A preocupação em discutir o movimento que as identidades dos diferentes sujeitos e grupos sociais amazônicos vêm palmilhando, nasceu no decorrer das pesquisas realizadas

para a escrita da dissertação de mestrado e da tese de doutoramento em História Social na PUC-SP. No mestrado, acompanhamos trajetórias de populações rurais marajoaras nas renovadas idas e vindas em ambientes de rios e florestas para a decadente vila São Miguel de Melgaço, entre os anos de 1930 a 1960. Igualmente apreendemos como urdiram lutas para retomar a autonomia de sua municipalidade que ficou sob a custódia dos municípios de Breves e, especialmente, de Portel3. Para melhor identificá-las, optamos pela terminologia “ribeirinhos”, com o intuito de fugirmos do complicado termo “caboclo marajoara”, uma vez que os moradores entrevistados não operavam com esta rubrica identitária 4. Ao iniciarmos as investigações para o doutorado, percebemos que se a utilização do termo ribeirinho nos dava certo conforto e inseria o conhecimento produzido no campo das novas interpretações sobre identidades locais, por outro lado não alcançava compreensões dos grupos étnico-raciais que constituem populações amazônicas. Se as trajetórias de vida desses grupos envolvem convivências com rios, florestas, práticas de cura, trabalhos artesanais, economias solidárias, entre outras experiências sociais ainda hoje comuns em espaços, povoados rurais ou mesmo pequenas cidades, como são muitos centros urbanos marajoaras, tornou-se necessário questionar: quem são essas populações ribeirinhas? Quais suas faces étnico-raciais? Para tentar visibilizar clareiras capazes de permitir adensar o entendimento dessas indagações, este texto propõe-se a acom3 O trabalho intitula-se À Margem dos Marajós: memórias em fronteiras na nascente “Cidade-Floresta” Melgaço, defendido em 30 de abril de 2004, no Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da PUC-SP, sob a orientação da professora Drª Maria Antonieta Antonacci. Para sua publicação, fizemos remodelações tanto na parte textual, quanto mudamos seu subtítulo. Ver trabalho publicado em (PACHECO, 2006). 4 São presentes, no campo das ciências humanas, pesquisas que problematizam a categoria “caboclo”. Não são poucas as leituras empenhadas em desconstruí-la e a revelarem seus equívocos, mesmo se considerarmos suas reapropriações na atualidade como símbolo de enfrentamento aos projetos uniformizadores de modos de ser e viver modernamente na Amazônia. Entre os estudiosos que se debruçaram sobre a temática da identidade cabocla, vale acompanhar um rico debate apresentado por (RODRIGUES, 2006)

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Acima: Crianças afroindígenas, filhas de casal ribeirinho marajoara de descendência indígena e africana, habitante do espaço rural/florestal do município de Melgaço. Foto: Professor Adilson José Francisco, julho de 2009. Ao lado: Casal ribeirinho marajoara. Ele de descendência indígena e ela negra, habitantes do espaço rural/florestal do município de Melgaço. De sua união nasceram 7 filhos de traços afroindígenas. Foto: Professor Adilson José Francisco, julho de 2009.

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panhar trânsitos de populações indígenas e africanas que rasgaram os tempos coloniais e fizeram-se ver em variadas práticas culturais na contemporaneidade. Mesmo ausentes de olhares acadêmicos, da grande imprensa, dos espaços escolares, índios, negros e seus descendentes forjaram memórias, saberes e modos de ser afroindígenas, demonstrando o poder, a força e as heranças das continuidades históricas5 no presente. No desvelamento dessas matrizes, nações indígenas Aruans, Cajuais, Marauanás, Sacacas, Caias, Araris, Anajás, Muanás, Mapuás, Mamaianases, Chapounas, Pacajás, dentre inúmeras outras, erigiram por campos, rios e florestas “zonas de contatos”6 com nações africanas de Angola, Congo, Guiné, Benguela, Cabinda, Moçambique, Moxincongo, Mauá ou Macuá, Caçanje, Calabar ou Carabá, de origem banto, e Mina, Fãnti-Achânti, Mali ou Maí ou Mandinga, Fula, Fulope ou Fulupo, Bijogó ou Bixagô, de origem sudanesa, além de indicações duvidosas como Bareua ou Barana, Lalu ou Lalor, Pabana ou Babana (SALLES, 2005, p. 84). Nesses ambientes inter-relacionais desvelam-se espaços de moradia, trabalho, celebrações religiosas e territórios onde índios, negros e afroindígenas, operando com astúcias de suas memórias, (re)produzem e (re)afirmam cosmologias, imaginários e representações de vida. Com isso, criaram 5 Utilizamos o termo continuidades históricas em contraposição à permanências históricas para dar conta do caráter dinâmico, movente e relacional das experiências sociais que aproximam o passado do presente. Sem reafirmar a existência de uma tradição fixa, congelada no tempo e no espaço e, portanto, atemporal, continuidades históricas é aqui utilizada para mostrar como podemos surpreender, em diferentes discursos, narrativas ou memórias que falam de vivências e trajetórias de grupos sociais em tempos distintos, rastros, sinais e fios do novelo que tece a teia e as tramas das variadas histórias das sociedades humanas. Nos aspectos discursivos que aproximam diferentes temporalidades, as continuidades históricas permitem recriações, revisões, invenções, pois contextualiza sujeitos, motivações e perspectivas de mundo. 6 A expressão “zonas de contatos” foi pensada por (PRATT, 1999, p. 27), para dar conta de “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação – como o colonialismo, o escravismo, ou seus sucedâneos ora praticados em todo o mundo”. Nesse texto, ampliamos a compreensão dessa categoria de análise para demonstrar outras práticas de relacionamentos confeccionadas por populações ameríndias ou em diásporas à Amazônia Oriental.

artimanhas para enfrentar variadas formas de controles, domesticações e dominações estabelecidas por poderes oficiais em torno de suas linguagens, relacionamentos amorosos e de amizade ou outras práticas sociais e lutas culturais tatuadas em seus corpos e mentes. No esquadrinhar dessas tramas, consideramos ser importante visibilizar rotas e raízes talhadas por índios, negros e seus descendentes, ao erigirem por campos, rios e florestas “zonas de contatos”, deixadas em rastros/resíduos de memórias escritas, orais e visuais, onde se forjaram identidades afroindígenas nas fronteiras Atlânticas da Amazônia Oriental. Por fim, antes de seguirmos os itinerários da pesquisa e os contatos e empréstimos culturais entre indígenas e africanos, centrando-nos na construção das identidades afroindígenas, é preciso esclarecer que a descoberta dessa face do corpo, dos saberes, das linguagens, do patrimônio cultural marajoara não nega a presença portuguesa e nem a de outros grupos estrangeiros que interagiram, cruzaram e se deixaram ver nos modos de ser e viver na região. A escolha justifica-se, entre outros aspectos, por três constatações que consideramos fundamentais: a) Foram indígenas, africanos e seus herdeiros a mão-de-obra mais utilizada na história da Amazônia e do Brasil; b) As formas como essas nações alinhavaram táticas coletivas para construir territórios de liberdade em meio aos ardis e repressões dos poderes colonizadores; c) O legado de seus saberes e patrimônios deixados na reconstrução das práticas, paisagens humanas e culturais amazônicobrasileiras.

Matriz cultural amazônica em circuitos marajoaras A construção do conceito de identidade afroindígena tornou-se possível, após constatar que na Amazônia Marajoara, é quase impossível discutir a presença africana descolada de relações e redes de sociabilidades tecidas com grupos atávicos da região. Um conjunto de informações presentes em

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escritas de cronistas, naturalistas, viajantes, literatos ou mesmo em pesquisas históricas que se debruçaram em documentos de época, versando sobre astúcias formuladas por índios e negros para burlar sistemas de controle colonialistas, são provas cabais das constantes alianças culturais afroindígenas. É preciso esclarecer que o uso do termo não nega autonomias, singularidades, diferenças e lutas culturais especificas de grupos indígenas e africanos ao longo da historia social da Amazônia e da própria nação brasileira. Igualmente não generaliza e exige que a partir de hoje deixemos de nos autodenominar índio, negro, caboclo, ribeirinho ou qualquer outra adjetivação capaz de expor identificações regionais com as quais operamos em possível zona de conforto e pertencimento. Faz-se necessário lembrar que em tempos atuais, habitantes de comunidades quilombolas e aldeias indígenas convivem com silenciosos dramas em seu processo de identificação, muitas vezes impostos por órgãos oficiais. Muitos índios habitam quilombos, assim como muitos negros imiscuíram-se no tecido social de algumas aldeias, porém, as identidades em mediações foram apagadas para assumirem

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um único registro pessoal e poder gozar do beneficio das chamadas políticas de reparação em expansão atualmente. Mesmo compreendendo os jogos políticos pelos quais atravessam as identidades (HALL, 2008), o problema não está nestas negociações e nos direitos sociais alcançados por populações marginalizadas, mas na forma como eles reforçam a construção de identidades essencialistas. Operar com o termo afroindígena adensa o complexo campo do estudo das identidades amazônicas. Sua força está justamente em questionar a memória rizomática que carrega. Longe de defender “absolutismos étnicos” ou termos de “uma ladainha de poluição e impureza”, como mestiço, crioulo, caboclo, cafuzo, pardo, híbrido, “maneiras um tanto insatisfatórias de nomear processos de mutação cultural e inquieta (des)continuidade que ultrapassam o discurso racial e evitam a captura por/de seus agentes” (GILROY, p. 35, grifo nosso), a matriz identitária afroindígena exige olhar político e saber interrogativo (SARLO, 1997) para a invisibilidade indígena e africana no convencional sistema de identificação vigente.


É fundamental, seguindo orientações de Boaventura Santos, a invenção de um novo paradigma identitário capaz de caminhar na contracorrente do epistemicídio, especialmente em suas ideologias desqualificadoras, as quais apagam de nós o direito de operarmos com as duas principais matrizes étnico-raciais que nos conformaram culturalmente. A proposta é “revalorizar os conhecimentos e as práticas não hegemônicas (afroindígenas) que são afinal a esmagadora maioria das práticas de vida e de conhecimento no interior do sistema mundial”(2001, p. 329), especialmente no mundo amazônico. Nestes termos, é preciso dizer que desde a presença dos primeiros africanos nos Marajós no século XVII, intensificando-se com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778), ou mesmo após sua extinção, os mais de 53.000 africanos recrutados para a região, não deixaram de criar intercâmbios com inúmeras populações indígenas e reinventar espaços de liberdade sob o regime das águas e dinâmicas das matas (PACHECO, 2009). Os primeiros africanos introduzidos no Marajó dos Campos inseriram-se, inicialmente,

na lavoura, disputando e partilhando espaços com índios em seus “putiruns7 alegres e movimentados, nas roças imensas” (PEREIRA, 1952, p. 166). A experiência e os saberes em lidar com o gado, entretanto, seduziram estes africanos. Com isso, recriaram a vida pastoril em seus universos de liberdade e aventura que a montagem em lombos de cavalos podia promover. “Há no negro, como no índio (...) um índice de indivíduo em pleno desenvolvimento cultural – uma admirável capacidade para lidar com os animais domésticos, bovinos e caprinos (...)” (Idem). A relação que culturas comunitárias, constituídas por cosmologias e universos de tradições orais, estabelecem com animais está plenamente assentada na lógica de intercâmbios homem/natureza, homem/animal (ANTONACCI, 2005), numa visão holística de mundo. Afetividade, cuidado e trato com seus animais domésticos ou xerimbabos ainda hoje, são facilmente captáveis, quer na cidade de Soure, onde muitas casas possuem um búfalo de estimação, espécie de integrante da família, Trabalho realizado em coletividade. No Acre chama-se adjuntório e, em municípios marajoaras, convidado.

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ou em Portel, nos inúmeros quintais onde famílias criam pintos, porcos, patos, galinhas. Missionários capuchos, mercedários, jesuítas e carmelitas como os primeiros donos das sesmarias e colonos, sob o comando do duro trabalho desenvolvido por africanos e indígenas, expandiram a cultura vaqueira nos campos marajoaras. Inicialmente, confiaram o gado a vaqueiros indígenas, exímios sábios do regime das águas e mistérios da natureza, capazes de distinguir tempos e espaços de enchentes e vazantes, propícios ou hostis ao criatório. “Também confiaram à dedicação e à coragem dos negros escravos, à proporção que se iam enriquecendo de larga escravatura” (PEREIRA, 1952, p. 167). O mundo colonial marajoara sustentavase e expandia-se sob a faina de índios e negros, cotidianamente envolvidos nos mais diversos ofícios, lidando com temporalidades diversas e animais que aterrorizavam o gado vacum. Nesse ritmo, cruzaram mondongos8 e balsedos, espaços disputados pelo gado na invernada e verão marajoara com jacarés, sucuris, aves, tigres, capivaras, porcos e antas. Em rodeios e ferras, corpos nativos e, especialmente da diáspora, expressaram habilidades no trato com o boi. Dentro da casa-grande também assumiram os mais variados trabalhos domésticos. Foram ora vaqueiros, pescadores, lavradores, marujos, ora operários. Nesses universos de trabalho, dominação, astúcias e negociações, trocas culturais entre negros e índios em torno de saberes para curar a si, a seus iguais e ao gado, como murrinhas dos bezerros, Nunes Pereira deixou ver em “rezas e ervas miraculosas que o índio” revelava ao negro. Compartilharam ainda fumos, bebidas produzidas de mandioca, altamente fermentada, que resguardavam valores, significações sociais e mágico-religiosas (PEREIRA, 1952, p. 175). Índios e negros não gestaram apenas relações amigáveis, basta lembrar o ofício Atoleiros formados por pequeno lagos e infinitas plantas palustres, por entre os quais se arrastam milhares de répteis. No princípio do inverno, recolhem grande parte das águas pluviais; mas, enchendo-se rapidamente começam a extravasar pelos seus escoadouros naturais, rios mais diversos existentes na região. (PEREIRA, 1952, p. 121).

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de capitão do mato assumido por alguns deles, mas as condições que lhes foram impostas permitiram-lhes a invenção de uma comunidade de sentimentos entre seus grupos (WILLIAMS, 1979). O padre jesuíta português, João Daniel, em sua estada pelo grande Vale Amazônico entre 1741-1757, ao descrever costumes e práticas dos “muito alvos, como os brancos” índios pacajás, uma das nações recrutada para a missão jesuítica da aldeia de Arucará, hoje, município de Portel, deixa importante evidência não apenas das fugas de escravos negros do Maranhão para este lado ocidental marajoara, mas dos empréstimos culturais entre negros desertores e índios pacajás em torno do hábito de usar roupas. A nação pacajá (...) foi a única nação de índios que na América lusitana se achou com alguma cobertura, com que cobriam a sua honestidade, tanto homens, como mulheres; estas usando de umas saias curtas, e aqueles de calções, não porque tivessem este uso de seu princípio, e criação de seus avós, mas porque fugindo do Maranhão uns escravos, foram parar nas cabeceiras deste rio Pacajá, e deles aprenderam os índios este bom costume (DANIEL, 2004, p. 372).

A partir dessa narrativa, é possível dizer que o negro maranhense vestiu o índio marajoara. Entretanto, a estética da nova vestimenta possivelmente evidenciou as novas traduções criadas pelas populações indígenas do Pacajá com as roupas que lhes deram os africanos em fuga. Saias e calções ganharam prováveis ressignificações em pinturas e indumentárias que já vestiam o corpo indígena. Nessas recriações e imbricamentos, uma prática de vestimenta afroindígena foi vivenciada em nova “zona de contato”. Se no século XVIII, índios e negros recriaram espaços, transgrediram normas de trabalho e recusaram-se ao silenciamento cultural pela imposição de grupos dominantes, no XIX novas “zonas de contato” continuaram sendo entalhadas. Práticas de trabalho em economias extraídas dos rios, das matas e das terras, associaram-se com sabedorias ancestrais nativas ou em diásporas, requerendo curas contra malinezas e enfermidades do mundo material e sensível, igualmente cruzavam-se com compósitas ritualidades a enversar orações que invocavam caruanas,

orixás e santos do catolicismo popular. Não por acaso, em meados do século XIX, o naturalista e viajante Alfredo Russel Wallace, interessado em conhecer raras e curiosas aves aquáticas da “enorme ilha de Marajó”, conseguiu contactar com um cavalheiro inglês dono de uma fazenda de gado, cujo feitor era um alemão. Daí partiu para a ilha Mexiana na companhia de “oito jovens tapuios, de peles trigueiras, ágeis como macacos, entre 15 a 20 anos” (WALLACE, 1979, p. 65). Viajando em embarcação destinada ao transporte de gado, o estudioso estrangeiro, depois de ficar mareado9 durante todo percurso, ao chegar à Mexiana observou a abundância e a caça de jacarés realizada por índios, negros e famílias afroindígenas. Chamou a atenção do viajante, a alegria, o contentamento, o sentimento de respeito, exuberância, expressos pelos negros daquela fazenda em contraste com o sentimento de apatia dos índios. Enquanto negros para viajar despediam-se de todo mundo, como se fossem seus parentes, índios saiam e chegavam e não demonstravam o mínimo de prazer. Nesse mundo de diferenças étnicas e comportamentais, sem problematizar olhares enviesados do viajante, trocas de saberes e demonstrações de sábias táticas foram fortemente compartilhadas. Segundo Wallace, à noite os negros ficavam em seus casebres tocando e cantando. Em viola primitiva, usando no máximo três a quatro notas, estes filhos da diáspora em terras marajoaras improvisaram letras confeccionadas de seus relacionamentos cotidianos, para compor melodias, cujo foco era, quase sempre, os feitos dos brancos, numa clara sutileza de resistência à condição humana imposta por seus senhores. Saídas Como foi possível observarmos, a presença indígena e africana em “zonas de 9

Essa expressão foi cunhada por D. Antônio de Almeida Lustosa, arcebispo de Belém, quando percorrendo por quase oito anos os rios da Amazônia (1932-1940) a observar aspectos da vida na região, para além da visita pastoral, sentiu muito enjoo em função das fortes ondas que batiam em sua embarcação. (LUSTOSA, 1976).

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contatos” tecidas por campos, rios e florestas, expressas em práticas de trabalho, sabedorias curativas, cosmologias, crenças, costumes, tradições, sociabilidades e afetividades, são raízes e matrizes das faces de determinados grupos sociais amazônicos, identificados pelo discurso do outro como caboclos e ribeirinhos, para ficar apenas nos dois termos problematizados por essa pesquisa. O ser ribeirinho, muitas vezes, prefere revelar-se como morador da “zona rural”, do interior ou operar com o nome do principal rio a banhar sua habitação. Em Melgaço assumem ser do Anapu, da Campina, do Tajapuru, da Laguna; em Breves, do Companhia, do Mapuá, como em Soure, do Pesqueiro ou utilizando nomes de outras praias existentes naquela cantada cidade marajoara. Rodrigues, citando LimaAyres, expõe importante esclarecimento sobre esse sistema de identificação elaborado por populações rurais da Amazônia. “internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com outros referenciais, ligados à condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal, agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (comunidades de parentes), à cosmologia e à religião que professa (mundo dos encantados, catolicismo popular ou seitas pentecostais)”. (RODRIGUES, 2006, pp. 123-4)

Mesmo que o papel do pesquisador ao preocupar-se em entender a produção das identidades locais não se exima a ater-se à necessidade de saber com quais representações sociais esses sujeitos históricos operam cotidianamente, um mergulho nos processos sociais, normatizações e historicidades que gestaram aquela maneira de afirmála ou negá-la, é indispensável. Por esses termos, é possível acompanhar o movimento politicamente tênue, sinuoso e, muitas vezes, contraditório, pelos quais atravessam determinadas identidades culturais e entender conveniências e convenções históricas a visibilizá-las ou silenciá-las. Portanto, entre silêncios e evidências as culturas amazônicas vão revelando suas múltiplas identidades, entre estas a face afroindígena, como matriz constituinte de nosso estar no mundo, não pode ser mais negligenciada.

SAIBA MAIS ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos Negros: desafiando verdades. In: BUENO, Maria Lucia & CASTRO, Ana Lúcia (org.). Corpo território da cultura. São Paulo: Annablume, 2005, pp. 27-62. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. DANIEL, João (1722-1776). Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. V.1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2004. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP; Ed. Polis, 2005. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003a. . Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardiã Resende... [et. al]. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003b. . Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 8. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, pp. 103-133. LUSTOSA, D. Antônio de Almeida. No estuário Amazônico – “À Margem da Visita Pastoral”. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1976. PACHECO, Agenor Sarraf. À Margem dos Marajós: cotidiano, memórias e imagens da “cidade-floresta” Melgaço-Pa. Belém: Paka-Tatu, 2006. . En el Corazón de la Amazonía: identidades, saberes e religiosidades no regime das águas marajoaras. Tese de Doutorado em História Social. PUC-SP, 2009a. . História e Literatura no Regime das Águas: práticas culturais afroindígenas na Amazônia Marajoara. Amazônica – Revista de Antropologia, v. 1, nº 02. Belém: UFPA, 2009b, pp. 406-441. PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999. PEREIRA, Manoel Nunes. Negros Escravos na Amazônia. In: Anais do X Congresso Brasileiro de Geografia, 1944. V. 3. Rio de Janeiro: IBGE, 1952. RODRIGUES, Carmem Izabel. Caboclos na Amazônia: identidade na diferença. In: Novo Caderno NAEA, v. 9, n. 1, jun. 2006, pp. 119-130. SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. 3ª ed. rev. ampl. Belém: IAP; Programa Raízes, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2001. SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meio de comunicação. Tradução Rúbia Prates e Sérgio Molina. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 13. – (Ensaios LatinoAmericanos; 2) WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. WALLACE, Alfredo Russel (1823-1913). Mexiana e Marajó. In: Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Tradução Eugênio Amado; apresentação Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.

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ENSAIO

JOSÉ VERÍSSIMO E A MODERNIDADE∗ Vicente Salles

Em 1883 o então jovem professor e estudioso da literatura José Veríssimo (18571915) falou na Sociedade Paraense Promotora da Instrução sobre “O Movimento Intelectual Brasileiro nos últimos dez anos”. No texto dessa palestra publicado em 1889, no 1º volume da série Estudos Brasileiros, desenhou com traços muito ágeis o perfil da nossa vida intelectual. Disse que não tomou esse decênio por acaso, ou mero capricho, mas por reconhecer, com Sílvio Romero, que a data de 1873 marca efetivamente o ingresso do Brasil no movimento intelectual contemporâneo. Antes disso, só na poesia e no romance é que nossa literatura havia se manifestado com algum vigor. Procurando as causas geradoras do novo fenômeno, afirmou que estavam todas em fatos estranhos à vida intelectual, tais como: Este trabalho retoma as idéias contidas nos livros Memorial da Cabanagem, Belém, Cujup, 1992 e Marxismo, Socialismo e os Militantes Excluídos, Belém, Paka-Tatu, 2001. Texto apresentado no ciclo de palestras “José Veríssimo, educação e cultura, 150 anos de nascimento, Belém, durante a XI Feira Pan-Amazônica do Livro em 29 de setembro de 2007.

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• a guerra do Paraguai, • o movimento republicano francês de

1870, • a guerra franco-prussiana, • a questão impropriamente chamada re-

ligiosa, “que, na verdade, não passou de uma questiúncula sem nenhum alcance filosófico, entre as sacristias e as lojas maçônicas” (p. 115). Foram, portanto, causas simultaneamente locais, nacionais e universais que teriam despertado a consciência nacional, fazendo-a voltar-se para si mesma. Elas “chamaramna à realidade dos grandes interesses que se debatiam fora daqui no mundo moral e puseram-na em comunidade de sentimentos consigo mesma” (p. 115). Em primeiro lugar, a guerra do Paraguai teria eliminado os sentimentos bairristas, as mesquinhas rivalidades entre as províncias, estreitando a confraternidade de um povo no melhor dos campos - o campo da batalha. O país se uniu. O movimento republicano francês, revigorado em 1870 no meio dos sangrentos


José Veríssimo Dias de Mattos (Óbidos-PA, 1857; Rio de Janeiro RJ 1916)


episódios da comuna de Paris, teve imediata repercussão no Brasil, “despertando a consciência política dos cidadãos que, como o Pangloss de Voltaire, se acreditavam no melhor dos mundos possíveis”. Veríssimo situou o fulcro desse movimento na capital do Império, onde logo se fundou o primeiro Clube Republicano e se editou A República (1870), “a quem uma nova ideia política abria também novos ideais literários”. No Pará, foi publicado o hebdomadário O Tira-Dentes, redigido pelo poeta Júlio César Ribeiro de Sousa (1843-1887), lançado em 7/05/1871. Durou apenas dois anos e refletiu ideias republicanas em sintonia com o movimento que se expandiu a partir do Rio de Janeiro. Depois o movimento esteve aqui representado pelo O Futuro, publicado em 1872. Veríssimo não deu importância à Comuna, isto é, ao movimento que vinha de baixo para cima. Deixou-se empolgar, como a maioria dos intelectuais brasileiros, com a revolução burguesa de Thiers. Mas percebeu que: “A guerra franco-prussiana teve grande importância na evolução a que me refiro, deslocando por um momento a supremacia intelectual que no mundo civilizado, e principalmente entre nós, exercia a França.” (p. 116)

O principal efeito desse conflito foi o despejo entre nós de novas ideias científicas e filosóficas, tais como o positivismo de Comte renovado por Littré, as teorias inglesas do transformismo darwinista ou do evolucionismo spenceriano e, por fim, o monismo alemão. Foi o que pôde observar, desconsiderando, então, o periódico A Tribuna, jornal de tendência nacionalista-reformista, publicado em Belém entre 1870-7, propriedade de Marcelino Nery, irmão do Barão de Santa-Anna Nery, publicista paraense que vivia em Paris. A Tribuna refletiu, em cima dos acontecimentos, ideias da Comuna de Paris e da República Revolucionária. Por fim, o quarto ponto, a impropriamente chamada questão religiosa, “apesar do nenhum alcance filosófico ou mesmo social da questão” sobressaltou a consciência nacional, identificando “por detrás de uma mera e ridícula

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querela de sacristia” intenções que, dado o caráter vigoroso e resoluto de quem as tinha, “podiam comprometer, não a inviolabilidade das leis do placet, que é questão de somemos importância, mas o desenvolvimento, no sentido moderno, do espírito nacional.” Veríssimo reduziu a importância da questão religiosa às dimensões da intriga, sem o alcance das lutas filosóficas, diante daquela plateia, no salão da Sociedade Paraense Promotora da Instrução, parte da qual testemunhara essa “querela” que em grande parte se desenvolvera em Belém. E identificou na maçonaria nacional, principal querelante, também o “espírito de seita”. Era, portanto, briga de iguais. Afirmou que o famoso Ganganelli, pseudônimo de Saldanha Marinho, grão-mestre da maçonaria brasileira, que tanto repercutira no país com seus artigos reunidos nos alentados volumes de A Igreja e o Estado, primou igualmente pelo sectarismo, faltando-lhe em consequência “direção filosófica sistemática”. Daí constituírem, esses artigos, “apenas um documento importante para a história daquela luta, sem mais valor teórico”. Falou o crítico paraense em 1883. Os quatro pontos assinalados por José Veríssimo mostram o alcance de sua visão crítica, sem dúvida muito ampla. Não obstante a clareza dessas posições tendentes à mais profunda mudança política, não aceitou o movimento que vinha de baixo para cima, no fluxo das ideias que realmente transformavam o nosso tempo. Ele se confessou afinado com as ideias de Littré; mas também absorvia, talvez mais intensamente, as mensagens dos pensadores norte-americanos e ingleses. No Pará, foi o mentor pedagógico do Colégio Americano, fundado pelo missionário Justus H. Nelson, que viera dos Estados Unidos disseminar a sua seita. Ligou-se, portanto, a interesses materiais que justificaram, em parte, seu anticlericalismo. Mas, ao contrário dos missionários norte-americanos e ingleses, que sempre se acobertaram debaixo das lojas maçônicas, Veríssimo se manteve equidistante delas e, por vezes, em oposição à religião. Paradoxalmente, numa atitude


ultramontana, vista superficialmente; na verdade, numa atitude crítica, exigente e necessária no ambiente em que vivia. Para ele, as ideias se colocavam no plano intelectual mais transcendente, no elitismo filosófico e mental, que não permitiam conviver com mediocridades intelectuais, na época, como em todos os tempos, vitoriosas e dominantes. Perfilando entre os pioneiros dos estudos de Folclore no Brasil, os trabalhos de Veríssimo, nesse campo, serão orientados pela visão estética que muito lhe prejudicará as pesquisas. (Cf. “José Veríssimo e o Folclore”, estudo que publiquei na Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro, n. 11, 1971). Ainda agora, na análise do “fenômeno” marcado pelo decênio 1873-83, José Veríssimo distinguirá – sagazmente – o “movimento de espíritos”, que se manifestava principalmente nos centros acadêmicos, os quais se permitiam ler e criticar os modernos pensadores. Fora desses centros, percebe grupos isolados nas províncias, que cultivavam essas ideias modernas como o que, no Ceará, girou em torno de Raimundo da Rocha Lima, ao qual compareciam Araripe Júnior, Capistrano de Abreu e Tomás Pompeu, e, no extremo Sul, já marcado pelo fluxo da imigração alemã, a influência de Karl Koseritz, impregnando de germanismo escritores e jornalistas gaúchos. Antônio Paim, informa que partiu de Porto Alegre, em 1874, o Fim da Criação, de Araújo Ribeiro, “a primeira obra francamente darwinista, senão materialista, escrita no Brasil”, da qual, entretanto, não se aperceberam os modernos historiadores das ideias filosóficas. Koseritz será leitor e divulgador das ideias de Marx entre os gaúchos. Ideias modernas socialistas e reformistas partiam principalmente da Europa e empolgaram intelectuais jovens e independentes em todos os países. Na sua prática pedagógica no Pará introduzira também idéias modernas como a educação física e o jardim da infância, pioneirismo ressaltado pelos seus biógrafos. Moderno e modernidade são conceitos intimamente

ligados ao processo de atualização histórica e ingressam na obra de José Veríssimo com referência à vida política e social, dentro desta incluindo a produção literária. Defende e pratica, portanto, idéias modernas e vai cunhar a expressão “modernismo”. Belém recebeu com abundância o fluxo de ideias modernas. Notícias da I Internacional começaram a vazar na imprensa local desde 1871 e tiveram grande repercussão no Pará. Aqui também localizamos um leitor e divulgador das idéias de Marx, Karl Wiegandt, estabelecido desde 1870, que abrasileirou o nome para Carlos, e se exprimiu principalmente como desenhistacaricaturista. A ele reservei estudo especial no volume Marxismo, Socialismo e os Militantes Excluídos, 2001. Veríssimo, tão atento ao que estava ocorrendo no seu tempo, não deu importância – e até repudiou – ao movimento de intelectuais jovens e inconformados que, em sua terra, iniciaram a discussão das grandes questões e problemas do seu tempo. Diante da platéia reunida pela Sociedade Paraense Promotora da Instrução, falou do seu desapontamento, já que não encontrava aqui “a quem, com pesar o digo, a civilização brasileira nada absolutamente deve, porque a própria questão religiosa que se não nasceu aqui, ao menos aqui teve enorme repercussão, não passou na nossa província de uma insignificante e mesquinha luta de facções, sustentada na imprensa diária em artigos sem alcance, sem novidades”.

E conclui, num desabafo: “Se alguma coisa produziu, foi um falso e estúpido sentimento de nacionalidade que gerou, para vergonha nossa, o jornal e o em tudo minguado partido da Tribuna” (p. 122).

O radicalismo exacerbado de A Tribuna, que reunia jornalistas combativos, mas destemperados, talvez tenha inspirado essa visão hostil do crítico. A essa altura ele partia para constatações também ousadas, defendendo, por exemplo, a profissionalização do escritor no país onde a literatura “jamais se condensou em uma corrente unida e cerrada,

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que produzisse grandes resultados, isto é, grandes obras, dessas que fazem a glória de um homem e a honra de uma literatura”. Sua análise vai além da situação local: “Para isso há uma causa de um valor capital: o não poder o escritor brasileiro viver das suas obras, o que obriga-o forçosamente a não passar de um simples amador, um diletante. E na literatura, como na ciência, como na arte, o amador é, em regra geral, um ente sem valor, de perniciosa influência. É só na profissão que faz as grandes personalidades literárias ou científicas, pelo trabalho de toda a hora, pelo constante e incessante estudo. Quer os nossos sábios, quer os nossos literatos, o são de horas vagas, furtadas às ocupações do ganha-pão diário. Um país em que a mentalidade fica assim sem base material, não pode aspirar a produzir um movimento intelectual fecundo em resultados” (p. 122).

Acreditava que a situação material do escritor era a causa maior da nossa penúria ou da nossa mediocridade intelectual. Em 1890, ainda coerente com essas ideias, prefaciando seu estudo A Educação Nacional, dizia das nossas dificuldades, na província: “Aqui na capital do Pará, onde escrevo (e o mesmo, sei, acontece em geral nas outras capitais dos estados) cidade de população talvez não inferior a 80 mil habitantes, é mais difícil encontrar ou obter um livro (ou outro qualquer produto) brasileiro que qualquer obra estrangeira, alemã ou italiana. As principais revistas européias têm aqui assinantes. A recente Revista de Portugal possui talvez mais de trinta. A malograda Revista Brasileira, creio apenas tinha uns quatro. Livro ou periódico publicado fora do Rio de Janeiro, é para nós como se o fora na China.”(p. 122).

Além disso, constatava que o brasileiro é povo que pouco lê; nenhuma importância, portanto, gozam aqui os homens de letras. Ignorantes são a massa, a burguesia e a aristocracia. A massa, analfabeta, é presa fácil de toda sorte de exploração. Nossa burguesia vota ao homem de letras o mesmo desprezo, tanto como as demais classes: “Não há empregado público prevaricador, taberneiro ladrão, juiz venal, industrial velhaco, que se não permita denegrir todo o homem de letras, todo o rabiscador, segundo o termo usado, como se ele só tivesse a restrita obrigação de ser honesto. É até um prolóquio, com foros de aforismo, dizer-se

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que todo escritor é safado. Safado escrevo, porque é a forma consagrada” (p.122).

Nesse sentido, Veríssimo augura, para o escritor, uma situação de classe; o homem de letras deve ser um profissional; deve constituir a “élite”. Com Littré pensava “que uma sociedade não pode viver sem a aristocracia, a classe que ocupa as mais elevadas posições públicas ou simplesmente sociais” (p.136). Essa é talvez a mais acabada negação do proletarismo nas letras. Afinal, Veríssimo seria um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Mas, em contradição consigo mesmo, a literatura tinha sentido social, muitas vezes expedido nos seus ensaios de crítica e no seu admirável Que é literatura?, talvez inspirado no Que é a arte?, de Leão Tolstói. Numa de suas definições, acabaria dizendo, algum tempo depois, no estudo em que analisou a obra de Eça de Queiroz, in Homens e cousas estrangeiras, publicado em 1902: “Para mim a literatura, e a arte, só têm valor como um órgão social, como expressão e definição da sociedade; fora disto os seus produtos são apenas obras de curiosidade e paciência, mais ou menos bonitas, mais ou menos bem trabalhadas, como japonices e chinesices preciosas, mas sem lugar na grande arte” (p. 354).

Militante da profissionalização do escritor, em 1880 viajou pela Europa. Em Lisboa participou de um Congresso Literário Internacional. Ali defendeu os escritores brasileiros, “que vinham sendo severamente censurados”, vítimas de injúrias feitas pelos interessados na permanência do livro brasileiro na retaguarda da literatura no Brasil. Ao voltar, fundou a Revista Amazônica, que circulou em 1883, contendo matéria bastante abrangente: ciência, arte, literatura, viagens, filosofia, economia, política, indústria etc. Voltou à Europa em 1889, e, em Paris, tomou parte no X Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica, quando apresentou uma comunicação sobre o homem de Marajó e a antiga história da civilização amazônica.


As leituras de Veríssimo não se limitaram, portanto, aos clássicos da literatura. É certo que também se aprofundou na filosofia e se familiarizou com as doutrinas sociológicas, políticas e econômicas de sua época. Descobriu o sentido revolucionário da literatura russa do séc. XIX porque soube absorver a maneira teórica e especulativa das doutrinas filosóficas, econômicas e sociais de seu tempo e por também havê-las levado à prática do proselitismo político e revolucionário. O romance russo do séc. XIX, criado em plena vigência do czarismo, tinha esse caráter sociológico, refletia as ideias de Darwin, Spencer, Lassale, Marx, Henry George etc. Era portanto revolucionário. Seu antimilitarismo ficou assaz gratificado com a leitura de Guerra e Paz, de Tolstói, e não deixa de ser particularmente vigoroso seu estudo sobre o Réssurrection, lido na edição francesa publicada em 1900, em Paris. Chegou a confessar que no domínio intelectual do séc. XIX se apresentavam apenas três homens cuja vida guardava “inteira conformidade com as suas ideias e suas ações correspondiam plenamente aos seus ensinos”: Augusto Comte (1798-1857), John Ruskin (1819-1900) e Leão Tolstói (1828-1910), este último, talvez, mais admirável. Veríssimo cognominou-o “anarquista evangélico” e lhe deu outra penetrante atenção no estudo “Tolstói e a sua doutrina”, no II volume da série Homens e cousas estrangeiras, 1905, p. 119-145. Outro destaque, no mesmo volume, deu a Pedro Kropotkine, qualificado como “doce anarquista”, analisando Memoirs of a Revolutionist, publicado em Londres, em 1899. Essas leituras consolidaram em José Veríssimo aquela estranha, talvez insólita, teoria elitista, aristocrática, mas... revolucionária e anarquista. Veríssimo foi pioneiro na exigência da “identidade” nacional de uma cultura, sem deixar de perceber o sentido universal. Na série Homens e coisas estrangeiras, constituída de três volumes, encontra-se a indicação das principais fontes do seu pensamento.

Releva notar ainda o exame das condições de rebaixamento social, econômico e cultural da América Latina, pela qual tanto se interessou, ao ponto de manifestar solidário com os povos latino-americanos no ensaio “A Regeneração da América Latina”, publicado no I volume de Homens e cousas estrangeiras: “Perdoam-me uma manifestação personalíssima? Tenho a fraternidade latino-americana, sinto-a intimamente; nunca, desde rapaz, participei do preconceito da minha gente, herdado do português e desenvolvido pelas nossas lutas no Rio da Prata, contra os povos espanhóis da América. Amo-os a todos e me revoltam as manifestações hostis a qualquer deles; mas não consigo ajeitar-me à idéia que eles possam sair tão cedo da miséria econômica, social e moral em que, salvo uma ou outra raríssima exceção, vivem. A minha inteligência, quanto pode alcançar no tempo, se recusa, malgrado meu, a vê-las diferentes do que são, ainda num futuro não perto. E se são verdadeiras as chamadas leis biológicas de seleção natural, e fatais como as da astronomia ou da física - do que me permito aliás duvidar - esses povos não terão futuro próprio. Outros lh’o farão.” (cit. p. 389)

Um sentimento assim conformado, que nos identifica pelos mesmos problemas a todos os povos da América Latina, certamente olhará com alguma prevenção o “colosso” do norte. Veríssimo tentará analisá-lo com imparcialidade; tentará sobretudo conhecer a sua literatura, que aliás não lhe ofereceu margem para maior admiração. Tentará compreender mais interessadamente os Estados Unidos mediante a crítica da obra do brasileiro Oliveira Viana que lá se estabeleceu, como diplomata, aceitando de tal modo o estilo de vida daquele “país extraordinário” que se tornou, entre nós, divulgador de suas excelências, com excesso de otimismo e benevolência. Embora jungido às concepções do sociologismo positivista, do transformismo darwinista e do evolucionismo spenceriano, Veríssimo discorda do racismo, do catolicismo pseudo liberal e da acumulação capitalista pelos quais tanto se encantava o historiador e sociólogo brasileiro ianquizado. Acha que Oliveira Viana viu bem “a aparente contradição do caráter americano, prático e idealista,

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mercantil e místico, ganancioso e liberal, cúpido e generoso”, mas há, no seu entender, “excesso de otimismo e benevolência”, principalmente “quando atenua, pois não a esconde, a profunda e larga corrupção da política e da administração americana, ou quando admite que essas colossais fortunas que se ali fazem, e que estão criando um novo feudalismo sui generis nessa república moderníssima, possam não ser somente o produto de trapaças e de uma rapina organizada em grande. Nem podem ser outra coisa; tais riquezas não as acumula jamais o trabalho honesto, mesmo servido por uma indefesa atividade, quaisquer que sejam as facilidades do meio. Como as dos barões medievais, essa opulência é, necessariamente, filha do roubo e da violência.” (1901, p 219-220). Como tantos latino-americanos, Veríssimo dizia não nutrir a “ilusão americana”, sentimento que teria expressado antes mesmo de Eduardo Prado, no capítulo “Brasil e Estados Unidos”, em A Educação Nacional, Belém, 1890, p. 149-176. Vimos que José Veríssimo fixou o ano de 1873 como data inicial do verdadeiro despertar da consciência nacional. Ao findar do séc. XIX, exatamente em 1899, publicou ele o volume O Século XIX, uma síntese magistral, em 120 páginas, dos principais acontecimentos do século, assinalando não só o progresso material, da ciência e da tecnologia, mas principalmente a evolução das ideias, em especial das doutrinas positivas que fornecem, na sua opinião, a base para novas concepções do mundo e da vida. No bojo desses acontecimentos, emerge a questão social, herança do século anterior e que não encontrara solução, devendo passar para o vindouro séc. XX. Não encontrara solução, mas engendrara certamente o progresso de outra disciplina, dominante nos tempos modernos, a Economia Política, cujas doutrinas tentavam explicar a luta econômica que se esboçava, nas sociedades modernas, como dos mais urgentes problemas sociais do momento, pois no seu bojo avulta a questão proletária, empolgando em todo o mundo a atenção dos homens de Estado, tanto mais

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seriamente quanto é cada vez maior e mais grave a crise da autoridade. Para Veríssimo, os últimos trinta anos desse século estão marcados por três fatos principais: 1) a militarização; 2) o progresso do socialismo e de outros partidos revolucionários; 3) o imperialismo em expansão, ou a tendência para a conquista de territórios. Essa marca dos trinta anos, fixa novamente nos setenta o fulcro dos principais acontecimentos e lhe permite prever agora, neste final de século, os Novos Tempos, “quando se houver dado a profunda revolução social que tudo anuncia próxima”. As primeiras páginas dessa breve análise do século são extremamente vigorosas. Ele reconhece de início que a sociedade do século XIX estava profundamente corroída em suas bases: “A justiça é por toda a parte cara e desigual. Por toda a parte, a despeito da revolução que acabou o século passado, existem classes e castas distintas, que umas gozam e outras sofrem” (p.5)

Continua no mesmo tom: “Convidam-se as nações a desarmarem-se, e os governos se aparelham formidavelmente para a guerra. Entre governantes e governados desapareceu toda a confiança e solidariedade. Mais do que nunca, o governo repousa unicamente na força. Continua-se a preconizar fórmulas que todos sentem caducas: regime parlamentar, partidos constitucionais, responsabilidade governamental, sufrágio universal, intervenção do Estado e capacidade deste.” “O descontentamento, em que pesem aos protestos mentirosos em contrário, reina por toda a parte, de cima a baixo, dos tronos que se esboroam aos povos já desiludidos da sua pretensa soberania. Ninguém está satisfeito, mesmo os satisfeitos, que sentem, por uma espécie de vaga adivinhação, que o mundo caminha para uma revolução qualquer. Eu por mim creio que ela é tão certa como foi a do fim do século XVIII. Não a verá o XIX, mas a terá preparado. A história parece não ensinar nada. Os governantes de hoje têm pelos movimentos que a preparam o mesmo desdém dos do antigo regime. Passam-lhes despercebidos os seus sintomas mais evidentes, e crêem, quando lhe


fazem a honra de ocupar-se com eles, remediálos com medidas legislativas ou policiais”. “Ao século XIX coube principalmente elaborar as aquisições sociais e filosóficas do século XVIII, que não fizera mais que aplicar à sociedade a filosofia do XVII. Todo ele está, por assim dizer, saturado de socialismo - isto é, de preocupações sociais. Só o não vêem os políticos, que são em todos os tempos os homens para quem amanhã não existe” (p.5).

José Veríssimo entende que o tempo – que marca a História - é uma sucessão coerente, um caminhar para o infinito, trazendo lições que podem ser apreendidas. A ideia do socialismo ainda está confundida com as preocupações sociais, mas gerava nova certeza, a de que todas as coisas, até mesmo a propriedade, são contingentes e relativas: “Tudo o que distingue e caracteriza entre os outros séculos, política, economia, ciência, arte, literatura, indústria, traz esse caráter ou é afetado por essa tendência. Nós veremos como a propriedade, a base mesmo das sociedades burguesas nascidas da influência funestíssima de Napoleão sobre a Revolução, passou no século XIX, até mesmo perante os governos mais conservadores, a ser uma coisa contingente e relativa”.

O futuro era uma incógnita; mas era também uma certeza de mudança: “Não sabemos qual será o regime do futuro dos séculos XX ou XXV; mas qualquer que ele seja, não será o nosso e, cremos, não será difícil descobrir-lhes os germes e prever-lhes as feições essenciais na história do que vai acabar” (pp. 5-6).

Na esteira do século XIX, José Veríssimo assinalou alguns pontos que lhe pareceram fundamentais: • as lutas operárias na Inglaterra (p.56); • a revolução de 1848, com a emergên-

cia das doutrinas socialistas de Proudhon, Luiz Blanc, Saint-Simon, Cabet, e outros, e o malogro da revolução, reconhecendo sua extraordinária repercussão (p. 58); • os marcos revolucionários de 1848 e 1870, em que os republicanos escamotearam aos socialistas a evolução com que eles depuseram do trono a monarquia bonapartista.

Há uma preocupação adicional, fruto da análise dos últimos trinta anos, que é “a tendência manifestamente ditatorial de todos os governos, monárquicos e republicanos, que todos se sentem mais ou menos ameaçados pelo radicalismo socialista, pelos partidos chamados revolucionários, em todos os seu matizes” (p. 119).

José Veríssimo opunha, portanto, o socialismo aos regimes autoritários, monárquicos e republicanos, e acreditava fundamentalmente no homem: “... o progresso incessante do socialismo fará ruir todas as muralhas da China que o nativismo e, particularmente, o exclusivismo nacional, ou simplesmente político, pretendem levantar à invasão dos que pedem terras e pão para viver. O mundo pertencerá ao homem”.

Finaliza, reafirmando sua esperança de um futuro melhor: “De sorte que, em meio da corrupção oficial que lavra em toda a parte as classes governantes e dirigentes, da sua sistemática oposição à evolução no sentido das verdadeiras, embora confusas, aspirações populares, de todos os males, grandes e reais, que ainda nos assoberbam, do fundo desgosto das massas consideráveis e sofredoras, fica ainda lugar para a esperança de um futuro melhor” (p. 120).

Para o homem, a expectativa dos novos tempos. Era fundamental acreditar no futuro e no progresso incessante do socialismo, capaz de derrubar todas as muralhas da China. Diante de tais ideias, o general Inácio José Veríssimo, filho do escritor, um tanto perturbado, publica na época mais aguda do autoritarismo militar no Brasil do século XX, em 1966, a biografia do ilustre progenitor. E anota, com evidente desconforto, que o termo “socialismo” é aí usado na sua “larga acepção do puro interesse pelas questões e sofrimentos sociais, e não na expressão atual vigente nas ditaduras comunistas”. Não há indícios de que José Veríssimo o tenha usado na acepção marxista – embora tenha conhecido a obra de Marx –, a que deve se referir o general, mas essa é uma

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Acima: José Veríssimo Ao lado: almoço no Hotel Rio Branco, Rua das Laranjeiras, 192. (1901) De pé: Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernadelli, Rodrigo Octavio, Heitor Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ram

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constatação concreta de que o crítico analisou o século XIX com critérios positivistas pouco ortodoxos. Alguns acontecimentos pessoais influíram certamente na sua maneira de pensar um tanto contraditoriamente. Exatamente no momento em que analisou o decênio da atualização histórica, social, política e cultural do país (1873-1883), com vistas para o último decênio, e antes deste iniciar-se, vemos que, em 1886, o escritor filia-se ao Clube Republicano do Pará, recémfundado; que em 1889 vai a Paris participar do X Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Histórica; que no mesmo ano se filiou à loja maçônica Firmeza e Humanidade, onde teve o grau de Mestre; que em 1890 foi nomeado diretor da Instrução Pública do Pará e publicou A Educação Nacional, crítica magistral do sistema educativo brasileiro; que logo após a adesão do Pará ao regime republicano foi acusado “inimigo da república”, pelo Clube Militar de Belém; e que os maçons do Pará, aliados dos militares e, como estes, pretendem construir a república a seu modo, abandonaram Veríssimo. Os desdobramentos da acusação de anti-republicanismo logo se manifestaram e Veríssimo saiu do Pará em 1891, meio corrido, e decepcionado, indo tentar vida

nova no Rio de Janeiro. Deixou o Pará no auge de suas potencialidades criadoras. Está abandonado, mas está absolutamente livre de crenças e de partidos. O escritor livre incomodava. Por isso, foi repelido. Nem mesmo a loja Firmeza e Humanidade o socorreu. O regime republicano se implantava no Pará, e em toda parte, como decorrência do esclerosamento da monarquia: sem luta e sem participação popular. Com excesso de autoritarismo. Procede de tal forma que o escritor chega a admitir que sob a monarquia havia maior liberdade de pensamento. Teria começado a descrer dos homens que se diziam republicanos antes mesmo da proclamação da república? Deixa transparecer isso, em fevereiro de 1889, ao escrever no prefácio dos Estudos Brasileiros, 1ª série, estas palavras amargas: “Profundamente e justamente descrente dos nossos homens, eu vejo-os os mesmos neste movimento. Eles aí estão com a mesma educação e índole, representando, afora o rótulo, os mesmo costumes públicos, possuindo as mesmas tendências e aceitando daqui e dacolá as mesmas alianças”.

E indagou, naquela circunstância: “Darnos-á a República a liberdade que ora

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gozamos?”; “Respeitará, como a monarquia tem respeitado, a livre expressão do pensamento?” Outro biógrafo, Francisco Prisco, ressaltou esta passagem e considerou que tais apreensões foram levadas à conta de pessimismo (José Veríssimo: sua vida e suas obras, 1937, p. 54). Contudo, bem mais cedo vieram os fatos demonstrar aqui mesmo no Pará a razão que tinha o escritor em seus pressentimentos. Em março de 1890 foi empastelado o Diário do Grão-Pará por fazer oposição ao novo regime; em dezembro foi preso e deportado para o Rio de Janeiro o redator-proprietário do Diário de Notícias, jornalista Joaquim Lúcio de Albuquerque Melo; no mesmo dia, fora espancado publicamente um redator de A Província do Pará. Estes fatos foram arrolados por Francisco Prisco na sua obra citada. Arrolamos mais o empastelamento em 29-30 de abril de 1892 de Tribuna Operária, presos e esbordoados os líderes do Partido Operário do Pará que pretendiam comemorar o 1º de maio com grande manifestação da classe. Há bastante matéria para estudo e reflexão no Pará, província distante do maior centro do poder, que se manifestou em toda a parte contrário a mudanças radicais defendidas pelos verdadeiros republicanos. Dei continuidade a esta investigação no citado volume Marxismo, Socialismo e os Militantes Excluídos, 2001, um olhar sobre o que aconteceu no Pará. Naquele ano de 1890 José Veríssimo concluiu o ensaio A Educação Nacional e se confessou completamente descrente e descompromissado: “Pensador livre em Religião, em Filosofia e em Política, o autor deste livro não pertence a nenhuma igreja, a nenhuma escola, a nenhum partido. Perante a sua pátria, que estremece, e perante a sociedade a que pertence e à qual procura servir como entende melhor, é apenas, no belíssimo dizer bíblico: “um homem de boa vontade”. “Foi com a boa vontade de servir o seu país que escreveu este livro, acaso inútil” (p. 180-1).

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Emancipou-se da religião e dos partidos, mas a emancipação do positivismo em direção ao determinismo, que também não o satisfez inteiramente, foi um processo muito mais lento, conforme assinalou o biógrafo Francisco Prisco. Revela ainda esse biógrafo que Graça Aranha o considerou “socialista”, o que só poderia ser entendido na concepção idealista. Não só, porém. É fato que se manteve atento ao que acontecia no Brasil e no mundo e não se desfez jamais do espírito de solidariedade com os seus companheiros e com os povos. Solidariedade que incentivava nele o pluralismo democrático, expresso, na prática, na criação da Revista Amazônica, em Belém, em 1883, e no relançamento, no Rio de Janeiro, em 1895, da Revista Brasileira, em cuja redação nasceu a Academia Brasileira de Letras. Em 1897 aderiu à Comissão Cooperadora da Independência de Cuba. Ele entendeu a dimensão universal de Machado de Assis (1839-1908), vítima de tantos preconceitos; exaltou a figura de Domingos Soares Ferreira Pena (1818-1888), que iniciou os estudos de ciências naturais no Grão-Pará, criador do Museu Paraense (hoje Emílio Goeldi) em 1866; e, para abreviar, se solidarizou com Euclides da Cunha, repórter da epopeia de Canudos e da Amazônia edênica. Graça Aranha conviveu intimamente com Veríssimo e certamente não fez afirmativa infundada. Mas a principal marca do seu pensamento é a independência, manifestamente antimilitarista e anticlerical. Nele, há crença na ação da instrução e da educação como base da grandeza nacional e como forças transformadoras da sociedade. A qualidade de ver e opinar por si mesmo é reconhecida como uma das mais constantes de José Veríssimo. Por isso, “impressionam a força e a veracidade de suas observações sobre o que havia de postiço e mesmo demagógico na propaganda


positivista que chegou ao mais alto grau de exaltação no começo da República”, anota Olívio Montenegro. Prefaciando a pequena antologia de textos do crítico publicado na coleção “Nossos Clássicos”, da Editora Agir, Rio de Janeiro, esse leitor atento de sua obra mostrou que disso o escritor nos deu ideia quando escreveu: “A gíria positivista – enumera – “anarquia mental”, a “pedantocracia”, o “regime do mal”, “a ordem é fator de progresso”, a “integração do proletariado”, “os mortos governam os vivos”, as “pátrias brasileiras”, todas as formas e variações da palavra sistema, integração, incorporação e que tais, queridas da escola, entram a fazer parte de todos os discursos, de todas as arengas, de todas as discussões, e viram-se jornais de província, que de Augusto Comte até o nome ignoravam na véspera, alardearam com frases positivistas a sua prosa sobre politicagem local”.

OBRA PUBLICADA 1878 – Primeiras páginas, Tipografia Gutemberg, Be1ém, 1882 – Carlos Gomes, edição consagrada à comemoração da chegada do Maestro ao Pará, em 24-7-1882, Tip. Livraria do Commercio, Belém, 15 p. 1884 – Idoles de L’Amazone, Lyon, 117 p. 1886 – Scenas da vida amazônica. Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão. 1890 – A Educação Nacional. Pará: Tavares Cardoso & Cia. – 2ª ed. augmentada de uma introducção e de um capitulo novos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906. 1894 – Gymnasio Nacional (discurso), Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 9 p. 1895 – A Pesca na Amazônia, Rio de Janeiro, 206 p. 1999 – Pará e Amazonas (Questões de Limites), Companhia Tipográfica do Brasil, Rio de Janeiro, 95 p. 1899 – O Século XX. Rio de Janeiro: Typ. da Gazeta de Noticias. 1900 – “A Instrução pública e a Imprensa”. Livro do Centenario, Rio de Janeiro,1900. 1901-1902 – Homens e cousas estrangeiras. I – 1899-1900. Rio de Janeiro: H. Garnier. – 1905. II série. Rio de Janeiro, H. Garnier. – 1910. III série. 1905-1908. Rio de Janeiro

Por fim, o que acontecia no país era a república da pedanteria e da incompetência:

1900-1907 – Estudos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Garnier, vols. 1 e 2.

“Neste período o positivismo oficialmente dominante sob a égide do mais influente membro do governo provisório e dos seus lugares-tenentes imediatos, só encontrava senão neófitos muito convencidos, catecúmenos condescendentes ou pelo menos pagãos simpáticos”.

1907 – Que é Literatura? E outros Escritos. Rio de Janeiro, Garnier, 294 p.

Cabe, portanto, tentar compreendê-lo na sua verdadeira dimensão e na dimensão do seu tempo. Foi assim, certamente, que o compreendeu o ensaísta Wilson Martins:

1919 – Discurso de Recepção ao Sr. Alberto de Faria, São Paulo: O Estado de S. Paulo, 130 p.

“O pensamento social de José Veríssimo, situando-se na confluência doutrinária de Tolstói e Kropotkine, exprimia uma corrente ideológica, pouco numerosa, sem dúvida, mas bastante característica da vida intelectual brasileira nos começos do século XX: será, com certeza, mais do que simples coincidência a estréia de Fábio Luz (1864-1938), ainda nesse ano de 1902, com o volume de Novelas, uma das quais trazia o título significativo de “Todos por um” (História da Inteligência Brasileira, vol. V )1897-1914), p. 187).

1904 – Luiz de Camões, “Os Lusíadas” – Edição para as escolas. Rio de Janeiro: Garnier, 354 p.

1910 – Thomaz Antonio Gonzaga - Marilia de Dirceu. Rio de Janeiro, Garnier, 340 p. 1915 – Interesses da Amazônia. Rio de Janeiro Tip. do Jornal do Commercio, 36 p. 1916 – História Geral da Civilização. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 235 p.

1916 – História da Literatura Brasileira, 1a. ed.,Rio de Janeiro, 1916; 2a. ed.; 3a. ed., José Olympio, Rio de Janeiro, 1954, 359 p.; 4a. ed., Universidade Federal de Brasília, 1963, 319 p. 1936 – Letras e Literatos (Obra póstuma). José Olympio, Rio de Janeiro, 209 p. 1970 – Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, PA, 1970, 25? p. 1970 – A Pesca na Amazônia. 2ª Belém: Ed. Universidade Federal do Pará, 130 p. 1976 – Estudos de Literatura Brasileira. 2ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Universidade de S.Paulo. 1985 – A Educação Nacional. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto. 145 p. Cenas da Vida Amazônica, Rio de Janeiro, Simões, s.d. A Instruccão e a Imprensa, 1500-1900, Rio de Janeiro, s.d., 71 p. SAIBA MAIS

Vicente Salles

Veríssimo, Ignácio José. José Veríssimo visto por dentro. Prefácio Arthur Cezar Ferreira Reis. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1966.

Brasília, 22 de agosto 2007

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LITERATURA

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NA CONTRAMÃO DO CAOS Giselle Corrêa Alves Ferreira

Sigo reto em busca de paz desviando de poças em meu caminho ouvindo insultos a um pobre passarinho sofrendo calada o atropelo do meu vizinho sufocada pelo apito das ruas inundadas querendo correr de volta ao meu laconismo envolta em uma névoa de lama. O asfalto molhado enxuga minha mente para a sensibilidade do tormento. Me perco em meio a tanto barulho procuro fugir na contramão do caos.

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LITERATURA

As Formas do Invisível Marcelo Pires Dias

PEDRA FUNDAMENTAL Cidade de pedra. Cidade em queda, Tuas ruas não são mais as mesmas, O tempo te derrubou. As árvores se foram, As mangas são importadas, Tu respiras fumaça, Tu te banhas em ácido. A tua cor é cinza.

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IMAGENS URBANAS I

IMAGENS URBANAS II

Calçada, Asfalto, Papel, Fruta,

Ponte, Piçarra, Papelão, Carroça, Teatro, Mangueira, Rio, Barco, Prédio, Sinal, Gente, Pressa, Mercado, Estátua, Manga, Chuva, Praça, Criança, Lago, Domingo.

Terreno, Poste, Canal, Casco, Palafita, Confusão, Comunidade, Correria, Feira, Faixa, Manga, Cheia, Casa, Pequenos, Poça, Todo dia.

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MERA VIDA A mera vida nas ruas De quem perdeu a esperança A família e a dignidade A mera vida do outro, Os meninos de rua Abandonados por nós Esquecidos e invisíveis por todos. Hoje é a chacina da esquina Amanhã o massacre em plena avenida Um genocídio silencioso, Gritos abafados, A tragédia estampada no jornal. Um espetáculo!

RUA DAS ESTRELAS O balanço, A brincadeira na piçarra Como era bom tomar banho na chuva. A pipa de plástico voa tão alto, Só dá pra ver o pontinho na imensidão do céu. A primeira namorada, Os amigos das conversas infindáveis O encontro de domingo, O primeiro emprego.

A mudança, A vizinhança que fica, Só as lembranças E os móveis. A rua fica, O homem vai E assim a vida vira um eterno recomeço.

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Um índio queimado É aceitável. A crise econômica, inadmissível. Cem mortos de uma vez, Ninguém reclama. Hoje vai chover, isso é uma preocupação. Crianças escravizadas, E o preço do pão?

Tudo é mera vida.


CHUVA Cor,

MUDANÇA Nos tempos dos meus avós Essas ruas eram de terra batida Na rua só tinha casinhas, Todos conheciam o padeiro, O ferreiro, o barbeiro e o doutor. Não tinha briga, não tinha intriga, Era tudo bem simples. Hoje a rua virou avenida, O asfalto engoliu a terra, Jogar peteca, nunca mais. O padeiro não vende mais pão, O ferreiro virou industrial, O barbeiro abriu um salão pra grã-fino E o doutor só atende com hora marcada.

Chumbo, Vento, Temporal, guarda-chuva, Cheia, Chuvisco, Sol, Arco-íris.

Tudo mudou. Tudo mudará.

BILHETE NA PORTA Fui por aí... Volto logo Fui ao parque Aguarde Fui atrás de algum amor.

AUTOBIOGRAFIA Nasci, Cresci, Pensei, Escrevi...

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A CULPA

AS PESSOAS

Pelos mortos no asfalto, Os doentes de fome, Os pobres de compromisso, Os ricos de culpa.

As pessoas vão e vem Uma com pão, outras de trem As pessoas são e tem Umas pouco ou nada tem As pessoas vão de trem Umas de avião outras sem vintém As pessoas são o que são Ou são o que tem?

De quem é a culpa? Das escolas sem crianças, Das mortes por terra, Da ignorância. A culpa é de quem? Dos esquecidos por nós, Dos meninos invisíveis, Das meninas infelizes Da flor cair morta, Do orvalho secar, Da vida morrer, Do poema acabar... A quem culpar?

ESCREVENDO O SONHO Quem escreve o sonho? As histórias alineares Sem começo e nem fim Com gente que nunca existiu E nunca existirá Com emoções tão reais E irreais Acordo Lembro de um trecho Mas logo ele some como poeira Memória volátil Manutenção frágil Se ao menos Desse para voltar E continuar de onde tudo parou Como são fascinantes Os sonhos Como é dura A realidade.

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DETALHES I A palavra O relógio A parede O sapato O telefone O papel A tinta O pensamento A cadeira A janela O beijo As estrelas A lâmpada O computador As contas Os sonhos Os amores O grito O vinho A estrofe A alegria O som A imagem O delírio O jornal O cigarro A saudade O medo O prazer À distância O abraço A cidade A poluição A neve A grana A gravata A mesa O futebol.

A MENINA QUE VENDIA OVOS DE CODORNA Ela era franzina Os pés sujos de poeira e lama Os olhos cansados de sono A voz é rouca As frases são repetitivas Ganha a vida de bar em bar vendendo ovos a bêbados Perde a vida aos poucos. Ela não tem nome É a fome chamando, Seu tempo é agora As moedas enchem a pequena bolsa Os ovos somem aos poucos É fim de tarde Ela vai dormir E vai sonhar.

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LITERATURA

TATUAGEM Walter Luiz Jardim Rodrigues

Perpetuada, tatuada, marcada a ferro em mim, só em mim. Tu caminhas e teus passos são letárgicos. Sobressai e cai ardente e fria. Ofegante, disfarço, mas ardo. Que faço? Nutro-me de teus perfumes. Como de costume transmuto-me para além de mim encontrando-te. Rasgo-me sensitivo, emotivo. Tu caminhas e teus passos são letárgicos.

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Sobre as nuvens tu vens. Nas mãos a luz e as trevas. Nos olhos a incerteza, o mistério fascinante. Tê-la por um instante incessante. Fico contigo e te digo: te adoro. Demoro-me e o tempo passa parado. Calado consumo o sumo de tua voz transitória. Quero partir-me ao meio e afogar-me em teu corpo inteiro. Como o lascivo sol sobre os seios de Belém.

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LITERATURA

O FEIRANTE Walter Luiz Jardim Rodrigues

As luzes acendem e apagam. Anúncio em néon da tradicional Cervejaria Paraense. A marca da empresa de ambos os lados de um imenso copo de cerveja de luz. Era legal observar aquele imenso anúncio. Algo único em Belém. O Entroncamento era privilegiado. Nós, da feira, éramos privilegiados. Então todas as luzes do anúncio se apagavam de repente. E era aí que o copo acendia suas luzes. Primeiro uma luz branca destacava os contornos do copo, e logo em seguida, o copo começava a se “encher” como num passe de mágica até “espumar”. Então nesse exato instante as luzes restantes, que formavam o slogan da cervejaria, se acendiam e ficavam acesas por cerca de cinco segundos para depois voltar aos mesmos jogos de luzes. Noites inteiras, madrugadas infinitas se passaram ao convite daquele imenso copo de luz. Os carros passam pela Augusto Montenegro em alta velocidade com seus sons no volume máximo e com belas garotas debruçadas sobre as janelas a gritar contra a feira. Eles descem para as baladas existentes ao longo da rodovia. Como eu desejava estar guiando aquele maldito carro a estar ali debaixo daquela deprimente passarela a cheirar mijo. Aqueles garotões sabiam como descolar umas gostosas sem cérebros. Eles sabiam como se comunicar com elas. Havia alguns garotões que lançavam bombas contra a feira. Isso além de deixar meu ouvido zunindo, me deixava puto da vida. Certa madrugada uma daquelas bombas feriu Tonhão, um decrépito carregador, na perna. E muitos daqueles garotões seriam nossos juízes, advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, políticos... Não era de se estranhar o porquê de termos uma sociedade como a nossa. Alguma coisa tinha acontecido na minha vida e só agora eu havia me dado conta disso. Eu só queria fugir dali. 74 TUCUNDUBA

Um garoto passa lentamente. Na mão direita, um paninho umedecido em solvente. No máximo dez anos de idade. Corpo magro em excesso. De seu pequeno e afilado nariz o paninho só é retirado para ser umedecido mais uma vez com a substância química. E assim ele passa para implorar um café com pão para a vendedora de café. Alguns clientes se compadecem e pagam o café da manhã do garoto. Ele volta, passa por mim e sobe a passarela para se agasalhar em seu papelão. – Hoje eu sonhei que tava comendo o teu cu, moleque – falou-lhe um feirante que mijava numa das pilastras olhando para o garoto que subia a passarela com seu café e pão nas mãos. O garoto olhou para ele e sorriu. – Álvares – chamou-me Tio João. – Vá buscar umas telas de limão ali no Paradeiro. E arruma tudo bem aqui. Depois tu vais buscar nove sacas de abóboras ali no caminhão com o carrinho. Uma saca de limão nas costas dói um pouco. Duas sacas parecem nos querer arrancar os ombros. Ainda havia quinze sacas a serem carregadas. Eu as carregava de dois em dois nos ombros. O percurso era relativamente curto. Certo que precisávamos nos desviar das verduras espalhadas por sobre o chão e nos equilibrarmos para não desabar na sarjeta alagada. Era impossível me valer do carrinho de madeira naquele trajeto. Era justamente nessas horas que eu entendia como um cavalo de estância se sentia. Um dos moradores da passarela, vez ou outra, ajudava Tio João e outros feirantes em troca de algumas moedas. O chamavam de Lobisomem. Assim que você batia os olhos na figura, o nome e a pessoa se uniam tal como arroz e feijão. Do Lobisomem quase nada se sabia naquela época. Sabíamos que ele adorava fumar maconha, cheirar coca e beber. Evidentemente ele não conseguia adquirir estas drogas com apenas as moedas que


ajuntava na feira. Ele falava pouco e quando falava sabia o que devia e o que não devia dizer. Sabedoria das ruas. Maldita sarjeta que sempre estava alagada! Onde diabos estavam os bueiros? E os meus pés ali ensopados naquela água fedida. Sexta-feira. A maioria dos feirantes descia para o Bar do Ruy, um prostíbulo decadente frequentado basicamente por carregadores, feirantes, drogados, moto-taxistas e assaltantes. Dentro de suas casas, quase todos os feirantes eram pais de famílias sérios. Já na feira eles se revelavam pessoas risonhas e brincalhonas. Era preciso sorrir, senão o desespero tomava conta de tudo. Eles sabiam disso. Eu não conseguia aprender. E assim eles atravessavam em direção ao bar. Tio João estava seriamente preocupado em investir seu dinheiro. E ele saía de um lado para o outro do Entroncamento em busca de caminhões vindos da estrada. E ele comprava e comprava. Acertava preços e projetava seus lucros. Tio João, por mais que vendesse tudo, estava sempre reclamando da feira. Eu amava o meu tio. Ele era como se fosse o meu próprio pai. Lucros e mais lucros. Nisso se restringia a sua vida, e nisso ele investiu anos e dinheiro. Vender, voltar para casa pela manhã e tentar dormir. Guardar dinheiro e mais dinheiro e gastar o mínimo possível. E assim sua vida passava e ele não percebia. Ele jamais veria outros Estados além do seu. Ele logo se veria com cinquenta anos, depois sessenta, setenta... Até quando ele resistiria? Até quando eu resistiria? E o sol vinha caindo por sobre as linhas retas de Niemayer, Monumento da Cabanagem. E eu tentava relacionar a obra ao fato homenageado por ela. Niemayer entendia de muitas coisas, certamente, menos de Cabanagem. O trânsito pesado de automóveis e pessoas. Difícil de atravessar a Augusto Montenegro. As passarelas eram

inviáveis. Desde há muito os moradores de rua haviam se apossado delas. Os ônibus lotados tocavam para o Centro. O movimento frenético de uma cidade recém-acordada. Puxo minha carroça e atravesso rapidamente as duas vias da rodovia. As juntas das mãos e dos braços a arderem devido ao esforço, enquanto as veias do pescoço a se destacarem enormes. Quando Vitória e eu éramos crianças, nossa mãe sempre dizia: “Estudem bastante, meus filhos, para não puxar carroça quando crescerem”. Como a vida era irônica às vezes. O depósito onde guardávamos as sobras das mercadorias ficava em um beco com a Avenida Pedro Álvares Cabral, entretanto, era possível cortar caminho por dentro do mercado de carne. E assim eu fazia. Mas o piso do mercado ficava um pouco a cima do nível da rua, então era preciso levantar a parte traseira da carroça e empurrá-la por trás a fim de vencê-lo. Depois era voltar e apanhar os dois braços da carroça e tocar em frente. Os açougueiros com seus jalecos sujos de sangue bovino e suas enormes facas a cortar peças de carne. O cheiro ácido de sangue fresquinho misturado com o fedor de cachorros perebentos e famintos, ansiosos por algum filete de carne. Alguns açougueiros generosos atiravam pedaços de peles, enquanto outros desciam a vassourada nos miseráveis cãezinhos. Logo na saída do mercado, uma barraquinha de bebidas. Ao lado, o Bar do Ruy executa seus últimos movimentos. Paro na barraquinha de bebidas e tomo uma dose de conhaque. O depósito fica quase defronte. Abro a porta e descarrego. Termino. Fecho o depósito. Volto para os braços de minha carroça e a puxo pelo mesmo trajeto a fim de buscar o restante das mercadorias. Apenas mais duas viagens ao depósito e poderíamos ir embora. TUCUNDUBA 75


Foto Lane Martins

HERテ的S Edson Fernando Silva


ARTES CÊNICAS

Heróis é meu terceiro projeto desenvolvido no Grupo de Experimentação de Teatro em Miniatura – GETM. O grupo, que iniciou suas pesquisas no ano de 2008 como um desdobramento do projeto Natureza no Asfalto, desenvolvido pelo grupo In Bust Teatro com Bonecos, é formado por artistas interessados na interseção das linguagens do teatro com o teatro de animação. As pesquisas são desenvolvidas em processo colaborativo, e os encontros para amadurecimento da linguagem, dos procedimentos metodológicos e até mesmo da produção dos objetos cênicos ocorrem quinzenalmente no Casarão do Boneco, localizado na Avenida 16 de novembro, nº 815. A proposta do GETM é desenvolver a linguagem do teatro por meio de intervenções artísticas em lugares públicos, utilizando-se de caixas para experimentações em pequenos formatos. Diferentemente da linguagem do Teatro em Caixa Fotográfica Lambe-Lambe, as caixas pesquisadas e produzidas pelo GETM (também denominadas suportes fechados) desenvolvem uma narrativa tanto por seu conteúdo interno quanto por sua forma externa; deste modo, o ator-pesquisador se vê livre para compor uma personagem que agregue sentido tanto ao interno quanto ao externo da caixa, proposição inviável na linguagem do teatro lambe-lambe, pois este trabalha com a neutralidade do ator, uma vez que a narrativa concentra-se inteiramente no interior da caixa. O principal laboratório das intervenções do GETM tem sido a Praça da República, centro de Belém, nas manhãs de domingo, local onde o ator-pesquisador defronta-se com um público ainda não familiarizado com esta nova abordagem artística. As intervenções neste espaço constituem momento para o aprendizado tanto do atorpesquisador enquanto performer quanto para o público, o qual é provocado na sua forma de perceber e apreender o objeto cênico. Assim, o GETM apresenta para cidade novas formas de conceber e apreender o teatro, a arte e a cultura.

Todo o processo de criação do grupo, os procedimentos metodológicos e os demais projetos artísticos desenvolvidos podem ser encontrados no blog http://getm2008. blogspot.com. Heróis e o Gestus social de Brecht Heróis é o título da pesquisa cênica que tematiza o processo eleitoral brasileiro e teve sua estreia em 14 de fevereiro de 2010, na Praça da República (ver fotos). Propondo uma reflexão sobre nossa conjuntura histórica, esta pesquisa vem ratificar minha vontade de discutir a sociedade brasileira, tendo como fundamentação a linguagem do gestus social brechtiano [cf. BRECHT, 1967, p. 209-210]. O interesse pela obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) me acompanha há algum tempo. As leituras de suas peças sempre me despertaram reflexão e deleite, pois sua obra encanta e fascina, e, ao mesmo tempo, desperta estranhamento, levando-nos sempre a reflexões críticas sobre os mais diversos temas humanos, sendo este exatamente seu maior objetivo: um teatro para uma era cientifica, um teatro que divirta e ensine a pensar. Pensando especificamente nesses dois aspectos altamente relevantes do teatro brechtiano (divertir e pensar), é que o elegi como objeto de investigação de meus estudos acadêmicos, desde a graduação, e, não obstante, de minhas experimentações artísticas. Desde então, venho atuando nestas duas frentes de pesquisa que resultaram em dois trabalhos acadêmicos e três experimentações artísticas. Os trabalhos acadêmicos foram: monografia de conclusão do curso de graduação em Filosofia pela UFPA, no ano de 2000, refletindo sobre “O confronto entre a Poética de Aristóteles e os novos ideais estéticos de Bertolt Brecht”; e a monografia de Pós-Graduação do Curso de Semiótica e Artes Visuais ICA-UFPA/2004, cujo titulo era “O Gesto como linguagem em Brecht”. Desta última, resultara também a primeira experimentação artística: República

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Democrática de Rilexine, dramaturgia épica de minha autoria que discutia as relações de poder contraditórias, num regime democrático sob o domínio de um ditador. Depois vieram, em 2008, Arte Barata, utilizando o suporte feito de uma caixa fotográfica lambe-lambe para teatro com bonecos em miniatura, refletindo sobre a indústria cultural e a difusão do lixo produzido pela cultura de massa; e finalmente Ratos, também em 2008, desenvolvido no núcleo de pesquisas do GETM e que trazia à baila a corrupção da classe política brasileira, Apesar dos temas e abordagens diferenciadas, estas experimentações mantêm o desejo de continuar investigando e desenvolvendo a linguagem do gestus social preconizada por Brecht: Por gestus social entende-se a expressão mímica e gestual das relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam. [...] O ‘gestus social’ é o gesto relevante para a sociedade, o gesto que permite conclusões sobre as circunstâncias sociais em que se movem os personagens (apud Bornheim, 1992, p.281).

Diferentemente do gesto puramente individualizado, o gestus social mostra, ou pretende mostrar, a relação fundamental que rege o comportamento dos personagens no âmbito social, demonstrando quais seus posicionamentos diante dos valores e da conjuntura histórica em que se movem. Segundo Brecht As atitudes que os personagens assumem em relação uns aos outros é o que denominamos esfera do Gestus. Atitude física, tom de voz e expressão facial são determinas por um Gestus social: os personagens injuriam-se, cumprimentam-se, esclarecem-se uns aos outros, etc. [...] O ator assenhora-se de seu personagem preocupando-se com uma atitude critica nas suas múltiplas exteriorizações, mantendo a mesma atitude frente às exteriorizações dos demais personagens que com ele contracenam. (1967, p. 209-210)

É neste sentido que o teatro de Brecht é considerado por Walter Benjamin (1982-1940) como épico, pois se desenvolve mostrando,

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recitando ou mesmo narrando os fatos através de gestos relevantes que permitem extrair conclusões sobre as circunstâncias históricas dadas; mas nunca os dramatizando. A negação do drama é também o desejo de superação do processo de identificação e empatia desenvolvido por este gênero de teatro (o dramático), que, por seu caráter empático, mobiliza as emoções do espectador e inviabiliza uma reflexão crítica. Ao contrário, o teatro épico brechtiano pretende ser instrumento para apreensão da consciência histórica do movimento operário alemão das primeiras décadas do século passado, e fundamentase exatamente no gestus social, sendo este o principal operador alegórico, que instaura no palco a exigência de uma construção intelectual por parte do espectador: os fatos são apresentados, narrados ou recitados; as cenas episódicas vão constituindo o quadro de acontecimentos históricos; o encontro de situações contraditórias provoca choque de sentidos; o choque de sentidos levará ao estranhamento e exigirá uma atitude de reflexão crítica da realidade apresentada; o estranhamento produz uma pausa necessária para análise e reflexão do objeto, isto é, da peça de teatro, e não obstante, também da própria realidade; perceber a peça de teatro e não mais contemplar. O uso da razão pela classe operária alemã, portanto, era o grande desejo de Brecht e seu teatro o divertimento que ele considerava adequado para uma era cientifica, sendo este capaz de ativar a inteligência (e a sensibilidade) do espectador para a dimensão histórica dos acontecimentos vistos no palco. Contudo, encontramo-nos num contexto histórico diferente: a revolução do proletariado não passou de sonho, diante da estatização do capital na antiga União das Republicas Socialistas Soviéticas; o muro de Berlin caiu e a classe operária não ascendeu ao poder. Brecht estaria ultrapassado? De modo algum, pois o mérito de sua poética repousa exatamente na capacidade de apreender e discutir contextos históricos. Precisamos entender, então, em que contexto histórico nos encontramos, pois só assim poderemos elaborar uma reflexão-


Público assistindo a narrativa interna da caixa Heróis. Foto Lane Martins

crítica e contundente de nossa realidade. A atualidade de Brecht, neste sentido, repousa na exigência que ele sempre fez aos seus atores e espectadores: percepção da conjuntura histórica.

Heróis: Processo Criativo O processo criativo de Heróis partiu de duas inquietações que me motivaram a pensar nossa conjuntura histórica: a crescente apatia política da sociedade brasileira, contrastando com o clima de euforia dos meses que antecedem os pleitos eleitorais. Fiquei refletindo diante do tamanho contraste em que se apresenta o cidadão brasileiro, ora assumidamente avesso à política do país, manifestando apatia generalizada seja pela política partidária ou suprapartidária, ora sendo levado a acreditar ser possuidor do poder de mudar a sociedade por meio do simples exercício do voto direto, como num passe de mágica. O que uniria comportamentos diametralmente opostos?

Seria possível estabelecer elo entre estes dois polos? O argumento apresentado em Heróis aponta para o mito do salvador da pátria ou, em outras palavras, o mito do herói como sustentação da ideologia política brasileira. No imaginário social e político da sociedade brasileira é incutida a cada dois anos, por ocasião dos pleitos eleitorais, a associação direta entre os candidatos a cargos públicos e a figura do herói como mito de sustentação, de liderança e de redenção no plano político. Os candidatos, independentes do partido político de sua filiação, assumem a retórica unívoca e de caráter mítico de que são munidos de qualidades e poderes especiais, que lhes fazem capazes de enfrentar e resolver toda e qualquer adversidade seja da comunidade, da cidade, do estado, do país e, em alguns rompantes mais ufanos, do mundo inteiro. Não interessa como o farão e na verdade quanto mais mirabolantes forem suas propostas de campanha, mais próximos se estarão colocando da figura do herói, posto que eles sejam os únicos capazes de executá-

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melhores propostas de campanha (até porque são quase inexistentes). Cessado o período de campanha e apresentado o resultado do pleito eleitoral, resta apenas a esperança de que nosso salvador eleito não tarde com seus feitos heroicos e extraordinários.

Componentes da encenação brechtiana

Interação entre o público e o performer da caixa Heróis. Foto Lane Martins

las, detentores de poderes excepcionais. Tudo se resume às suas qualidades de liderança política excepcional, ressaltada por suas histórias de vida repletas de glórias e fatos extraordinários já realizados, narrada com a ajuda dos marqueteiros, acrescida da senha mágica “Eu faço, porque tenho vontade política”. E não importa se existam fatos que manchem esta trajetória de sucesso, pois estes possíveis deslizes na vida pública (acusações de corrupção, improbidade administrativa, nepotismo, diploma falso e pedofilia, entre outras aberrações) são sempre identificados como perseguição política dos inimigos, o que só engrandece ainda mais suas virtudes e caráter excepcional. Do outro lado encontra-se o cidadão comum, mero mortal destituído da capacidade de agir e modificar sua amarga realidade, mas detentor de uma arma vital da democracia brasileira: o voto. De cidadão nos transformamos em eleitores e somos induzidos a pensar que nosso único dever restringe-se ao ato de votar. Sentimo-nos importantes e até toleramos discutir política, ou melhor, discutir quem é o melhor candidato, quem será nosso redentor, nosso salvador da pátria; quem será nosso herói e nunca quais as

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Os elementos componentes da encenação de Heróis foram reunidos e desenvolvidos a partir da contextualização acima e são os seguintes: a figura do herói redimensionada e trabalhada conotativamente a partir da figura dos super-heróis; o suporte fechado (a caixa propriamente dita) para teatro com bonecos em miniatura, caracterizado como urna eletrônica eleitoral; o ator-pesquisador representando um mesário no dia do pleito eleitoral; o hino nacional brasileiro cantado por Vanusa utilizado na trilha sonora do conteúdo interno da caixa. A narrativa de Heróis, portanto, é desenvolvida pela composição, desdobramento e uso adequado destes elementos, dispostos em linguagem irônica e ambígua para, na eventualidade do encontro de situações contraditórias, gerar estranhamento e desencadear no espectador o processo de reflexão crítica de nossa realidade. A narrativa interna da caixa desse modo, ficou assim constituída: equacionando a ideia do político como herói com a figura conotativa dos super-heróis, criei os personagens do interior da caixa através de montagem fotográfica (corpo do super-herói com a cabeça do político), resultando nos seguintes bonecos em miniatura: Super-Collor, Sarney Bross, Wolverlula, FH-Aranha, Maluf Skywalker, Batlula e Robasarney. Colocados em plataforma circular, os personagens giram em torno de uma urna eletrônica ao som do hino nacional, entoado pela peculiar interpretação desencontrada de Vanusa. A narrativa externa da caixa é orientada pela atuação simples do performer, isto é, atuação,


considerada pelo teatrólogo alemão Hans-Thies Lehmann, “com vontade clara de comunicar” (2007, p.225) sem estabelecer vinculo com o universo ficcional, mas remetendo o espectador ao plano da realidade. Assim, a abordagem do ator-pesquisador, que a partir de agora passarei a chamar de performer, inicia com o seguinte texto: “Você trouxe o documento de identificação com foto?”. O performer assume-se e apresenta-se como mesário, o funcionário público Adegesto Pataca; devidamente identificado com um crachá, o bravo cidadão brasileiro Pataca reitera repetidas vezes sua satisfação, crença e contentamento com a democracia brasileira; isso deve contrastar com sua expressão fisionômica de desânimo, e sua entonação triste e desalentada; este é seu gestus. Apresentando-se como mesário, o performer passa imediatamente a identificar o espectador como eleitor, exigindo a identificação para que possa assistir ao conteúdo da caixa; entre os dois o suporte fechado, a caixa, a urna eleitoral e todo possível diálogo resultante dessa primeira abordagem remeterá sempre, por parte do performer, a exaltação do processo eleitoral como momento mais importante da democracia brasileira. Sem a identificação do espectador, transformado em eleitor, não há possibilidade de assistir à narrativa interna da caixa, reproduzindo assim uma interdição semelhante a que ocorre no dia da eleição, quando o eleitor não porta seus documentos de identificação. A exaltação da eleição como momento de extrema relevância e seriedade para os rumos da sociedade brasileira, desenvolvida na dramaturgia externa da caixa, deve chocar-se com a sátira apresentada dentro desta. Desse modo, o suporte fechado é o elemento mediador do processo artístico e estabelece uma rede de significados que se desdobram tanto dentro quanto fora da caixa, perseguindo uma relação de complementaridade de sentidos: o que está dentro da caixa é formalmente o objeto artístico, portanto uma representação, mas

sua carga de significação mantém estreita relação com a realidade política da sociedade brasileira. O que acontece fora da caixa funda-se em procedimentos que ocorrem no dia da eleição; portanto, procedimentos não ficcionais. Contudo, é a mediação entre a representação e a realidade que permitirá, ou não, acesso do eleitor, representado pelo espectador, à narrativa artística. Heróis busca discutir a democracia brasileira, problematizando os valores envolvidos no que deveria ser uma sociedade verdadeiramente civil. O alerta de Brecht, há mais de meio século, pronunciado pela boca de seu personagem Galileu, parece não encontrar reverberação na sociedade brasileira: “Infeliz da terra que precisa de heróis” (1991, p.154). E assim, a interpretação lastimável do hino nacional feita pela boca de Vanusa pode ser entendida como o reflexo do quanto nossa sociedade anda fora do tom, do quanto de pátria realmente temos no peito, do quanto de indignação ainda nos resta diante do cinismo, não mais disfarçado, de heróis (sic) que não cessamos de produzir, como Jose Roberto Arruda, Fernando Collor de Mello ou José Sarney. Indignar-se com a interpretação de Vanusa é indicio de que tais heróis nacionais ainda terão muito tempo de vida.

SAIBA MAIS BORNHEIM, GERD. Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o teatro. In: Teatro Dialético Ensaios. Sel. e introdução Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Vida de Galileu. Teatro Completo Sexto Volume. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. BENJAMIN, Walter. O que é o teatro épico? - Um estudo sobre Brecht. In: Magia e Técnica Arte e Política, São Paulo: Brasiliense, 1996. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosacnaify, 2007. ROSENFEL, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1994.

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