Filosofia e interpretação

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JOSÉ CLAUDIO MORELLI MATOS (ORG.)

FILOSOFIA E INTERPRETAÇÃO Série Civilização

Volume 1

Florianópolis, SC

Programa de Extensão Civilização

2011


M433i

Filosofia e interpretação / José Claudio Morelli Matos (org.) .-- Florianópolis: Ed. da UDESC, 2011. 64 p. (Civilização ; v.1) Inclui sumário e referências bibliográficas. ISBN 978-85-61136-72-7 1. Interpretação de textos - Filosofia. 2. Leitura - Filosofia. I. Matos, José Claudio Morelli (org.). II. Série. CDD – 102 Bibliotecária responsável: Daniele Rohr. CRB 14/1279 Designer Gráfico: Aline Poltronieri.


Sumário Apresentação Agradecimentos Os Autores Leitura Como Encontro O Ensino da Filosofia e a Interpretação de Textos Humanos e Mortais: A Vida como Interpretação As Relações entre Ética e Estética em Emmanuel Levinas: A Arte e Seu Sentido Ler e Interpretar a Obra Kantiana Fundamentação da Metafísica dos Costumes Sobre a Importância e Utilidade do Ceticismo Filosófico na Modernidade Interpretação dos Sentidos do “Tempo” em Aristóteles

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APRESENTAÇÃO Os trabalhos componentes deste volume possuem em comum o fato de terem sido produzidos levando em conta o tema proposto aos autores: “Filosofia e Interpretação”. Trata-se de ensaios originais que, ou filosofam acerca da interpretação ou interpretam algum tema de filosofia. Estão reunidos no mesmo volume pois resultam das conferências apresentadas por seus autores no I Colóquio “Filosofia e Interpretação”, realizado em 30 de setembro de 2011, na Faculdade Municipal de Palhoça, sob a coordenação do Programa de Extensão Civilização – Interpretação e Reflexão Filosófica, da Universidade do Estado de Santa Catarina. Contudo, ao invés da edição de um volume de Anais, optou-se por dar início a uma série de publicações, intitulada Série Civilização, manifestando a óbvia derivação das atividades extensionistas no campo da filosofia, realizadas pelo programa Civilização. Quanto ao programa, este surgiu de uma iniciativa de cooperação entre alguns professores e instituições ligados ao ensino e à pesquisa em filosofia na região de Florianópolis, Santa Catarina. Sendo a instituição mantenedora do programa Civilização a Universidade do Estado de Santa Catarina, sem dúvida o estabelecimento de parcerias motivadas pelo interesse e pela necessidade de melhor atender ao público alvo tem sido da maior importância e do mais manifesto proveito. Destaco aqui as seguintes parecerias: com o Laboratório de Ensino de Filosofia e Sociologia, com a Fundação Universidade de São José e com a Faculdade Municipal de Palhoça. Finalmente, talvez não seja descabido dizer alguma coisa sobre o termo “Civilização”, uma vez que ele aparece como título, como mote, como lema, como símbolo das reflexões e das atividades que culminaram no presente volume. Quando procurávamos por uma denominação para a proposta de extensão que se iniciava, esperávamos traduzir numa palavra o sentimento de afirmação da busca pelo conhecimento. A idéia da atitude investigativa por oposição à atitude crédula e dogmática; a idéia do cultivo e da reconstrução da herança cultural acumulada nos textos escritos, contra o imediatismo da informação volátil; a idéia mesma da civilização lutando contra a barbárie. Pronto! Havíamos encontrado o termo que expressava o aspecto principal da atividade que esperávamos desenvolver. Uma saída dos gabinetes, das bibliotecas, das salas de aula, um avanço do pensamento que reflete, investiga, e por isso mesmo saboreia, aproveita, reconstrói. Um avanço na direção dos estudantes e professores que têm mais intensamente se defrontado com a necessidade de fazer uso dos textos escritos a fim de atingir resultados acadêmicos, profissionais, pessoais, sociais dos mais diversos tipos, conforme os interesses de cada um. iii


“Civilização” sempre pareceu um bom nome para uma ação conjunta de apresentar e debater sobre leitura. E principalmente, sobre aquela leitura que se realiza sob a modalidade de reflexão filosófica: argumentativa, rigorosa, reflexiva. Mesmo quando a intensidade do sentimento e emoção despertam o gosto e a sensibilidade estéticos, ainda assim esta leitura pode ser considerada como uma agência da civilização. A leitura, assim, pode ser entendida como um cultivo, como um processo de transmissão e de transformação da vida. O leitor toma parte, por meio da leitura, de uma discussão, um debate, um discurso, mas principalmente, de uma vivência que o texto representa e comunica. Quem se lembra do velho Platão hoje em dia, e de seu diálogo O Banquete? Trata-se de um diálogo onde Platão faz uso de mitos a fim de expor uma reflexão sobre a natureza do amor. Este diálogo culmina com a noção de que o amor é a manifestação do desejo de viver para sempre. Por isso o amor tende a gera filhos: por que os filhos são, para nós, nossa forma de a vida continuar. Todas as coisas vivas compartilham deste amor. “Vida”, segundo uma definição recente, é a renovação constante, a reconstrução, a relação do indivíduo com o que está em torno. E embora o indivíduo passe, a vida continua. Os seres vivos amam a fim de deixar algo de si no mundo. Fazem isso por meio de sua ninhada, de seus filhotes, que levam para o futuro sua semente, suas características físicas e comportamentais. Mas o ser humano deu um passo a mais no caminho deste amor. Ele, por contingência e necessidade de se adaptar ao mundo, acabou inventando um modo de deixar uma dupla herança. A primeira herança é a mesma que em toda a natureza, a vida, as novas gerações, os filhos, os netos, os descendentes, onde o antigo está presente, modificado pelas recombinações, mais visível nos traços de família. E da segunda herança falaremos até o fim agora: a segunda herança é o que um pode dizer e o outro ouvir, é o que um pode ensinar e o outro aprender, é o que um pode escrever e o outro, lendo, interpretar. A segunda herança, que é algo maior do que qualquer pessoa sozinha é, em sua forma mais desenvolvida, a civilização. Onde ela está? Está nas nossas mentes e cérebros, em todos os artefatos que foram criados e modificados: martelo, fogueira, lança, carroça, moinho, luneta, caldeira, automóvel, computador, livro. Mas mais que tudo isso, nossa segunda herança vive, pulsa, aguarda nosso olhar e nosso contato, na linguagem escrita. Por que a linguagem escrita é fixa e durável, ela se tornou o suporte de nossas mais variadas realizações. Isso nos conduz, naturalmente, a falar da atividade de leitura, e de seu objeto mais do que adequado: o texto escrito. O texto é estrutura, e requer do leitor uma atitude. Esta atitude não encerra somente disposições espontâneas e automáticas de reconhecimento de significado dos símbolos de que o texto se compõe. Como o texto é representação de iv


uma realidade acessível pela leitura, ele requer do leitor atitude de reflexão, de exercício da capacidade de inferência, de reconstrução. E, claro, ao mesmo tempo de sensibilidade, de percepção, de sentimento. Por isso o texto pode e deve ser utilizado como espaço de exercício do pensamento, do diálogo, do ensaio de possibilidades segundo as quais ordenar os componentes de uma situação. E o resultado, embora difícil de ser posto numa forma mensurável, é o aumento da capacidade comunicativa, da capacidade crítica, e mesmo da capacidade de complacência e sensibilidade para sentir o belo. Reflexões como esta culminaram na escolha pelo termo “civilização” para denominar o programa de extensão universitária relacionado à leitura e interpretação filosófica, assim como para denominar esta série de publicações que inicia com o presente volume. Gostaria de finalizar fazendo referência a John Dewey, quando, em seu livro Como Pensamos (1933), no segundo capítulo, afirma o seguinte: “A verdadeira essência da cultura civilizada está em que, de caso pensado, erigimos monumentos, providenciamos documentos que nos impeçam de esquecer”. O desejo de não esquecer não deve ser confundido com o desejo de não ser esquecido. A vida se impulsiona para a continuidade, e a civilização é o imenso conjunto de artefatos visíveis e invisíveis, materiais e simbólicos, criados para que os eventos da vida não sejam esquecidos. Deste modo, o civilizado que lê e transforma para seu próprio uso, participa da transmissão sempre renovada, da vida. Prof. José Claudio Morelli Matos

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AGRADECIMENTOS Gostaríamos de manifestar nossa gratidão à Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, pelo acolhimento do Programa de Extensão “Civilização – Interpretação e Reflexão Filosófica”. Mais especificamente à Direção de Extensão da Faculdade de Educação, na pessoa da professora Dra. Jimena Furlani, por seu incondicional apoio a esta iniciativa. Ainda, à Editora da UDESC, pelo suporte no processo de edição deste volume. Agradecemos também à Fundação Universidade de São José, na pessoa do professor Evandro Brito, e à Faculdade Municipal de Palhoça, onde realizou-se o Colóquio “Filosofia e Interpretação”, com o inestimável apoio institucional providenciado pelo professor Fernando Maurício da Silva e pela professora Mariah Terezinha do Nascimento, coordenadora geral da Faculdade. Fazemos especial menção ao Laboratório de Ensino de Filosofia e Sociologia, coordenado pelo professor Dr. Valcionir Correa, cuja parceria esperamos que se estreite e prolongue ainda mais. Finalmente, aos bolsistas do Programa Civilização - Thaís Ferreira Ali, Rafael Kretzer e Sheide Mara de Souza - cujo trabalho criativo, devotado e eficiente deu nascimento a todo este resultado.

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OS AUTORES Gígi Anne Hosbatiuk Sedor: Doutora em filosofia pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina. João Eduardo Lupi: Doutor em filosofia pela Universidade Católica de Portugal. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Jason de Lima e Silva: Doutor em filosofia pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Anita Prado Koneski: Doutora em Literatura – Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina. Evandro Oliveira de Brito: Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Fundação Universidade de São José. Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann: Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor das Faculdades Borges de Mendonça. Fernando Maurício da Silva: Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da Faculdade Municipal de Palhoça.

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LEITURA COMO ENCONTRO Gígi Anne Horbatiuk Sedor Para começarmos, convido-os à escuta de um poema de João Cabral de Melo Neto em que ele examina, na maneira aguda e poética que lhe é peculiar, o objeto livro e nossa relação com ele: Folheada, a folha de um livro retoma o lânguido e vegetal da folha folha, e um livro se folheia ou se desfolha como sob o vento a árvore que o doa; folheada, a folha de um livro repete fricativas e labiais de vento antigos, e nada finge vento em folha de árvore melhor do que vento em folha de livro. Todavia a folha, na árvore do livro, mais do que imita o vento, profere-o: a palavra nela urge a voz, que é vento, ou ventania varrendo o podre a zero. Silencioso: quer fechado ou aberto, inclusive o que grita dentro; anônimo: só expõe o lombo, posto na estante, que apaga em pardo todos os lombos; modesto: só se abre se alguém o abre, e tanto o oposto do quadro na parede, aberto a vida toda, quanto da música, viva apenas enquanto voam suas redes. Mas apesar disso e apesar de paciente (deixa-se ler onde queiram), severo: exige que lhe extraiam, o interroguem; e jamais exala: fechado, mesmo aberto. (MELO NETO, 1997, p. 39-40) A partir da fala de João Cabral no poema podemos nos perguntar: qual será o vento, voz, sopro vivo, que dará alento às palavras no livro? Como resta o livro silencioso, aberto ou fechado, se as palavras o habitam? Porque, se de natureza 1


anônima, modesta e paciente, se mostra severo, exigindo que lhe extraiam, o interroguem? E, sobretudo, como se dá que jamais exale, oferecendo-se fechado mesmo quando aberto? Levemos conosco essas questões na investigação que iniciaremos agora. Pensando no tema “leitura e interpretação” tomei em exame como percebo, sinto, penso, experimento, o ato de ler. Ler assemelha-se, para mim, a ter boas conversas, boa companhia, a encontrar interlocutores interessantes que acrescentam ao meu olhar perspectivas, beleza, amplitude, clareza, aprofundamento e, por tudo isso, que me permitem transcender o que sou, desvelando a mim e ao mundo em que habito, em que faço a vida (por vezes mesmo permitindo divisar versões futuras e/ou melhores de ambos). Conversas saborosas ocorrem quando somos premiados com bons encontros, quando, transpostas as barreiras do indivíduo (as intolerâncias, as vaidades, os temores), experienciamos a comunicação fluida, a partilha intersubjetiva efetiva e enriquecedora. Mas, lembremos, encontros podem ser da mais diversa ordem. Há mesmo encontros que seriam mais bem descritos como desencontros. Daí a necessidade de vermos com atenção que características partilham o ato de ler e o de encontrar o outro, o ser humano que não sou eu, o diferente de mim (embora igual). Quero dizer que a leitura se me afigura como encontro. Encontro em seu caráter dialógico da conversação face a face, da troca intersubjetiva de impressões e arrazoados sobre o vivido por seres humanos e sobre o que desejam, imaginam ou temem viver no futuro. Encontro esse que tem o valor, o peso, de experiência, de experiência como algo que nos acontece, nos afeta, nos modifica, que nos submete ao desconhecido, ao incerto e nos permite ir construindo o significado de nossa vida, das existências individuais, que nos propicia o saber da experiência individual e permite recortarmo-nos como sujeitos diversos uns dos outros (observemos que essa noção de experiência não é coincidente com a noção de experiência nos moldes da ciência moderna, que toma a forma de experimento e se distancia do subjetivo). Vejamos se essa idéia se sustenta. A quem pode encontrar o leitor frente ao texto? Respondemos de imediato dizendo: o autor. Esse que expõe suas idéias e em ato contínuo se expõe subscrevendo crenças, desejos, intenções. Por vezes como especialista em assuntos áridos das ciências, por vezes enlevando o leitor em páginas literárias ou poéticas. O autor, esse sujeito que nos convida a percorrer com ele os desvãos de sua mente, fruto de um tempo histórico, de uma cultura, de sua conformação biológica, de uma perspectiva, marcado por 2


emoções, urgências, circunstâncias. Um outro ser humano, o outro. Sendo o texto literário, encontramos os personagens, cada um com suas peculiaridades, histórias de vida, poderes, segredos. Culturas diversas, costumes, convenções sociais, virtudes, vícios, heróis, versões de nós mesmos com quem nos identificamos. Através deles a humanidade se encontra representada, o outro em toda a sua diversidade. O outro com suas razões e emoções. Se for o caso que o autor discuta uma questão eis que nos apresenta também àqueles com quem conversa, os debatedores, cada qual falando a partir de um ponto de vista, a partir de seus compromissos teóricos, seus pressupostos, suas categorias de análise, brandindo, como armas afiadas, as palavras. Apresentados, a esses interlocutores passamos a tratá-los como oponentes ou companheiros imaginários, com os quais disputamos também aguçando as idéias, dando corpo às novas argumentações, respostas e perguntas. Esses com quem se comunica o autor são representantes de posições encontradas fora das páginas dos livros, traçam o pano de fundo social, econômico e cultural do texto. Dentre os interlocutores do autor há aqueles que discordam dele, uns em muito, outros em pouco, seus críticos (às vezes seus “demonizadores”). Ocorre também que o autor ancore todo um artigo ou livro na crítica a uma teoria, hipótese ou idéias de alguém, então aprendemos dele suas recusas e senões à outra visão, seus contra-argumentos em minúcias de percurso, e apanhamos, a contrapelo, suas crenças mais prezadas, sua arte nas armadilhas do pensamento (quando as domina). Vamos com ele nessa disputa e alcançamos com ele maior compreensão do que está em jogo ao defendermos isto ou aquilo, somos impelidos a apanhar nas linhas e entrelinhas as lacunas, os saltos da reflexão do opositor. Tornamo-nos mais espertos, mais hábeis na crítica, no pensar criterioso, rigoroso. Como um menino depois de acompanhar o pai numa caçada, sabemos mais da importância da atenção, do ataque e da defesa, da percepção das metas e perigos. Lendo (reportagens, artigos, livros, conteúdos de sites, do twitter, das revistas várias, hqs, charges, textos humorísticos, poesias, filmes, muros etc) encontramos informações, ampliamos e aprofundamos nosso domínio de certos temas, nossa capacidade enciclopédica, a partir daí podemos levantar perguntas, encontrar respostas, reorganizar idéias, planos, ações. Desde que estejamos realmente presentes e abertos ao texto, em processo de interação efetiva, quando atentos, podemos organizar em torno de questões, dúvidas, problemas, esse conjunto originalmente difuso de informações, gerando conhecimento. Conhecimento este que será relacionado, confrontado, comparado àquele que já tínhamos, e integrado à nossa teia de crenças (ou não, dependendo do resultado da aplicação de nossos critérios epistêmicos, como coerência, clareza, plausibilidade, objetividade, verdade, beleza, simplicidade, 3


entre outros). Este não é um processo fácil, embora cotidiano, pois mexer em algumas de nossas crenças provoca, com freqüência, a revisão de outras crenças vizinhas a elas e isso pode causar conflitos externos (com os outros) e internos (consigo mesmo, os mais difíceis). Há textos que mexem conosco, que nos tocam, provocam mais do que nossa razão, convocam nossa complexidade (razão, emoção, sentimentos, instintos e o mais). Textos aos quais voltamos, que se tornam referências; autores que parecem “escrever para nós” (com os quais nos identificamos), aqueles os quais sempre que abertos vertem água boa ou lançam luz inspiradora, aqueles que consultamos como a alguém que pode nos orientar sobre como agir em situações complicadas, e há aqueles que se impõem pela beleza, pela satisfação estética que proporcionam (seja pelas imagens em desenho ou palavras,seja pelo arte com que o autor escreve, o estilo). Quando isso acontece encontramos “um mestre” e encontramos a “nós mesmos”, simultaneamente. A nós mesmos como elementos carregados de símbolos culturais e como indivíduos, seres individualizados, como sujeitos dotados de personalidades. E embora dolorido às vezes, é encontro privilegiado e raro, num mundo em que predominam o pensamento massificado, os estereótipos, a norma e a repetição. Perceber-se com “eu” em construção, como projeto em aberto, falível, mas flexível e dotado de possibilidades diversas de vir a ser, pode nos lançar nos domínios da liberdade. Se não for essa a situação que encontrarmos, percebermo-nos, observarmo-nos diante das pistas, dos ganchos, dos contextos, que nos trazem a vida e aqueles com quem nos encontramos (também nos textos) pode paulatinamente nos levar a modificações e a soluções melhores para os problemas. Através dos olhos do autor, freqüentando a luz dos seus olhos, encontramos o mundo que ele viu ou vê, partilhamos com ele suas experiências. Comparando, relacionando essa visão à nossa, ampliamos nossa visão de mundo e, por vezes, por sorte, somos brindados com algo nunca antes visto, um mar nunca dantes navegado, que o autor, estendendo a mão, nos indica ou que, por processos introspectivos mais complexos, alcançamos por insight. Na esquina do texto acontece encontrarmos “mais do mesmo”, do já visto, já sabido, do habitual que só faz consolidar nossas crenças, reforçar nossos hábitos mentais e escolhas na esfera da ação. Noutras páginas somos surpreendidos pelo pensamento diferente, pela resposta inesperada, pela nova hipótese, um outro jargão que recorta o mundo em partes de maneira distinta da usual, um conceito que serve de chave para perguntas antes sem resposta, o “novo”, que causa espanto, desloca a percepção do acostumado e nos faz rever nossas crenças. Também freqüentam os textos, quer sejam literários, poéticos, humorísticos, filosóficos ou científicos, a dúvida, a eqüipolência das razões, a impossibili4


dade, mesmo que temporária, de decidirmos por uma teoria em vez de outra, de aquilatarmos qual a melhor decisão, a mais acertada resposta ou solução e então podemos ser apresentados à suspensão do juízo, aprendemos a dar tempo ao tempo e a seguir investigando até que seja possível, encontradas novas pistas, desenhar solução mais clara a um problema ou decisão mais produtiva frente a uma situação complexa. Seguindo um romance, uma autobiografia, uma obra de ficção científica, comungamos as emoções relatadas, sentimos com os personagens, conforme corre a história, alegria, a amizade, o respeito, a dor, o ódio, a esperança, o amor, a culpa, o medo, o cansaço, o desespero, o anseio por liberdade ou justiça, o desejo sensual, a vontade de cantar ou de correr...encontramos o que é humano nos humanos (e, por vezes, percebemos que somos todos “demasiadamente humanos”). Como vimos, são variados os encontros que se dão na leitura. Contudo, todos esses encontros ficam no reino das possibilidades, do imaginário, se o leitor não quiser que aconteçam, se não tiver a atitude necessária, a de busca, de curiosidade epistêmica, de abertura, presença, interesse, desejo de conhecer, a intenção firme de investigar. Só encontra quem vai ao encontro. Podemos lembrar aqui a reivindicação de Martin Buber de que para que o diálogo entre os humanos, a relação dialógica, ocorra de fato, viabilizando o desenvolvimento daqueles que dela participam, é preciso cultivar a atitude dialógica, a abertura para o outro ser humano, a presença de si perante o outro (BUBER, 2009). Acrescentamos que o leitor é o ponto aglutinador em torno do qual se coagulam aqueles e aquilo que encontra na leitura. Diante de um mesmo texto temos leituras diferentes, interpretações diversas; o leitor é quem traz ou não suas chaves para abrir o texto, para lhe completar as lacunas. Estas chaves que trazemos para abrir o texto pertencem ao âmbito do vivido, da história, das experiências de cada um. Do que vivemos, de nossos saberes prévios, de nossas capacidades de reflexão, investigação e de prestar atenção (sem nos perdermos no sono dogmático). Devemos nos perguntar, assim, quando ocorrem os desencontros na leitura (até como medida preventiva). São situações mais freqüentes do que gostaríamos. Examinemos algumas delas. Por razão do vocabulário (ou da falta dele), quando o autor e o leitor não partilham o mesmo vocabulário, por questões culturais ou de formação, da variedade de perspectivas teóricas ou históricas, de especificidade e complexidade dos temas abordados. Uma variante dessa situação é a dos analfabetos funcio5


nais, que lendo não entendem o texto, não apreendem o sentido do texto como um todo, não estão aptos a organizar suas idéias para o diálogo com o autor e não dominam a gramática da língua (sua lógica interna). Há desencontro entre o leitor e o texto quando o leitor não preserva a atitude de abertura, de escuta, diante do autor, quando está preso a um jargão, à determinada teoria ou a paradigmas de pensamento, quando ele abraça uma posição dogmática e interrompe a investigação. Se o assunto do texto não nos interessa, se o texto foi mal escrito; se a linguagem é técnica ou codificada, se o texto não é do estilo ou gênero literário que apreciamos; quando não encontramos o tema investigado, a resposta ao problema em questão; quando discordamos dos pressupostos do autor, desconfiamos de suas fontes; quando não sabemos exercitar a paciência disciplinada de reler e reler até que as várias camadas do texto se mostrem; todos esses são fatores que concorrem para os desencontros entre o autor e o leitor (e às vezes sobrepõem-se). Voltando a o que já dissemos antes, quando o texto nos afeta, nos toca, nos provoca, nos altera, quando revivemos com o autor quer suas peripécias quer suas reflexões, quando em atitude de diálogo fazemos do tempo dedicado à leitura um tempo de encontro com o outro, do qual resulta uma re-elaboração de nossas idéias, de nós mesmos como sujeitos, temos aí a leitura como experiência (experiência do leitor, experiência do contato com a experiência do autor e experiência de construção de subjetividade). Tomando a palavra experiência temos na raiz etimológica, no latim, experiri, provar (experimentar), então experiência mostra-se como relação, encontro com algo que se experimenta, que se prova. O radical periri está presente também em periculum, perigo. No grego o radical per indica a travessia, a passagem. A experiência é sempre momento em nossa existência (onde apenas existimos como seres finitos, singulares, contingentes). Experienciar algo, de acordo com Heidegger, reúne a idéia de exposição, de abertura, de travessia e perigo: [...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para outro ou no transcurso do tempo. (citado por LARROSA, 2002, p. 25) 6


É preciso destacar que a experiência assim compreendida (distinta da concepção de experiência nos moldes tomados à ciência moderna, que se põe como experimento) ocorre na esfera da subjetividade e é fonte de um “saber da experiência” que não é redutível aquele do trabalho, tratando-se de um saber subjetivo, particular, local, pessoal, concreto, contingente, relativo. Temos nesse exercício da experiência e da elaboração do saber da experiência o espaço da construção de sentido do que vivemos, de nossa existência. É também o espaço da construção de nossa identidade, de nossa subjetividade, de nossa singularidade, de nossa originalidade. Não seria a experiência irrepetível? Nesse caso, podemos aprender da experiência do outro? Larrosa nos responde: “ninguém pode aprender da experiência do outro a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria” (LARROSA, 2002, p.27). Permitimos-nos assim afirmar que a leitura enquanto encontro legítimo com o outro presente no texto é comunhão de experiência com o autor (e aqueles que o texto invoca), nesse sentido, é experiência “revivida e tornada própria” e é experiência que nos transforma e nos forma enquanto indivíduos. Em nosso cotidiano com muita freqüência somos sujeitos voltados para o fazer, agitados, que opinamos, trabalhamos e queremos conformar o mundo natural e social, impondo-lhe nossa vontade. Sempre em movimento, superestimulados, cumulados de informação e opiniões, hiperativos, ocupados em fazer coisas, não podemos parar, e assim, não podemos ter experiências, no sentido de experiência como algo que nos toque, nos aconteça (LARROSA, 2002, p. 24). Experienciar algo, nos diz Larrosa, implica: [...] parar para pensar, para olhar, par escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24). Hoje temos uma fuga do pensamento que pensa o sentido de si ou de qualquer coisa. O pensamento do sentido exige esforço, ascese; aprender com a experiência (inclusive da leitura enquanto experiência) impõe esforço, paciência e serenidade de exercício (CARNEIRO LEÃO, citado por VON ZUBEN, 1992, p. 18). Essa é uma das tarefas da filosofia, pensar o sentido da experiência vivida relacionando racionalmente aspectos dessa experiência. Um dos caminhos para 7


fazê-lo é através da leitura. Buscando concluir lembremos que um diálogo humanamente rico pressupõe a diversidade dos interlocutores, logo o cultivo das especificidades da subjetividade e o respeito a elas. A leitura, neste contexto, é exercício simples, comum, ordinário, mas contém a possibilidade de fazer-ser extraordinário quando nele estamos atentos, presentes, abertos, reflexivos, em atitude de diálogo, de encontro, de escuta, de busca. Para encerrarmos nossa conversação voltemos ao poema de João Cabral, que ouvimos ao início, e às perguntas que sugerimos: Folheada, a folha de um livro retoma o lânguido e vegetal da folha folha, e um livro se folheia ou se desfolha como sob o vento a árvore que o doa; folheada, a folha de um livro repete fricativas e labiais de vento antigos, e nada finge vento em folha de árvore melhor do que vento em folha de livro. Todavia a folha, na árvore do livro, mais do que imita o vento, profere-o: a palavra nela urge a voz, que é vento, ou ventania varrendo o podre a zero. Silencioso: quer fechado ou aberto, inclusive o que grita dentro; anônimo: só expõe o lombo, posto na estante, que apaga em pardo todos os lombos; modesto: só se abre se alguém o abre, e tanto o oposto do quadro na parede, aberto a vida toda, quanto da música, viva apenas enquanto voam suas redes. Mas apesar disso e apesar de paciente (deixa-se ler onde queiram), severo: exige que lhe extraiam, o interroguem; e jamais exala: fechado, mesmo aberto. (MELO NETO, 1997, p. 39-40)

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Perguntemo-nos: Qual será o vento, voz, sopro vivo, que dará alento às palavras no livro? Como resta o livro silencioso aberto ou fechado, se as palavras o habitam? Porque, se de natureza anônima, modesta e paciente, se mostra severo, exigindo que lhe extraiam, o interroguem? E, sobretudo, como se dá que jamais exale, oferecendo-se fechado mesmo quando aberto? São perguntas para levarmos conosco. Espero que nosso encontro nos ajude a respondê-las.

Referências BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2009. LARROSA, J.B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar, nº19, p. 20-28, 2002. MELO NETO, J. C. Para a feira do livro. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 39-40. VON ZUBEN, Newton A. Filosofia da educação: Atitude filosófica e a questão da apropriação do filosofar. Proposições, Campinas, v.3, n.2, p.7-28, 1992.

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O ENSINO DA FILOSOFIA E A INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS João Eduardo Lupi É prática comum usar textos de filósofos para discutir em aulas de filosofia, em todos os níveis universitários, e mesmo no ensino médio (segundo grau). Raras vezes, porém, analisamos os métodos segundo os quais esses textos são tratados em aula. Nos últimos anos surgiram algumas obras de metodologia de análise de textos, e, tendo-as em consideração, e também as palestras e breves debates surgidos no decorrer do Seminário, propomos algumas considerações. 1. Filosofia e Literatura Discutir as modalidades de interpretação de textos implica em aproximar-se da Literatura, e ao mesmo tempo guardar as distâncias entre Filosofia e Literatura. Todo texto, seja ele de Matemática, de Biologia, de Poesia, ou de Lógica para ser lido deve ser redigido segundo as normas usuais da gramática e vocabulário; uma fórmula ou um experimento são explicados ou descritos numa linguagem que, mesmo sendo específica, é calcada sobre a linguagem usual, sobre as regras e usos do idioma. Ciências como a Química e a Astrofísica têm o vocabulário técnico constituído em parte por fórmulas numéricas ou alfanuméricas, o que torna o texto menos dependente da subjetividade do autor, isto é menos sujeito às peculiaridades pessoais do redator. Neste sentido dizemos que a Filosofia usa uma linguagem semelhante à da Literatura, ou menos distante do que a de outras áreas do conhecimento. De fato o texto filosófico exprime-se com mais subjetividade, por apresentar idéias criadas por um sujeito inserido numa experiência de vida própria, e usa mais recursos de vocabulário e de estilo gramatical; está assim mais próximo da Literatura e, portanto, os textos filosóficos podem ser interpretados usando recursos da Literatura, como a hermenêutica e a análise de conteúdo – computando, por exemplo, a frequência de determinados adjetivos e substantivos. Dentro de certos limites, contudo, a Filosofia se pretende racionalista/discursiva, e objetiva ou universalizante, e por isso mesmo ela se distancia da Literatura, porque esta é essencialmente ficção, e seu estilo próprio é o da condensação ou acumulação de sentidos – sobretudo na poesia - além do maior cuidado no aprimoramento do estilo (estética da linguagem). 10


Por sua vez a Filosofia antes de ser interpretada é ela mesma intérprete da realidade, mas ela o faz de modo distinto da Literatura: pela Lógica esclarece o discurso, criticando os pontos confusos; revela, pela Hermenêutica, o que está oculto ou implícito; e comenta ou explicita o que está condensado. 2. Filosofia como Literatura Feitas as distinções, retomemos o aspecto literário da Filosofia, começando por falar de Literatura: deixando de lado as questões de simbologia, fabulação de personagens, e de enredo, em que a Literatura mais se diferencia da Filosofia, por Literatura entendemos a arte e a técnica da linguagem, cujo objetivo e trabalho é aperfeiçoar os modos de falar; o que a Literatura pretende é exprimir o máximo de idéias que cabem numa exposição oral/escrita, de tal modo que o estilo de dizer seja capaz de esculpir as idéias com capacidade estética e significado. A Literatura une o belo com a verdade através de um determinado idioma. Por isso as Literaturas dependem da sonoridade e da versatilidade gramatical do idioma – entre outras circunstâncias. A Literatura procura alcançar densidade e exatidão pelo domínio da linguagem (gramática e semântica) usando recursos que lhe são próprios, como a metáfora e a alegoria. Mas sua densidade e exatidão diferem da conceitual e lógica, como diz Fernanda Henriques: “A literatura não quer ser transparente como o conceito nem como ele geral ou universal neutro” (Henriques 1997, 166). Em muitos aspectos a Filosofia também não alcança seu objetivo se não dominar a linguagem; a imprecisão de vocabulário, ou a contaminação de significados prejudicam a expressão filosófica. Mais do que isso, a filosofia depende do idioma para se exprimir e é condicionada por ele: “a língua materna é forma privilegiada de interpretar a realidade, o pensamento é tanto mais autêntico quan(t)o mais pensado no próprio idioma” (Carvalho 2003, 40). Mas a Filosofia faz o trabalho inverso ao da Literatura: ela descobre os sentidos que estão contidos numa expressão literária. Além disso a Filosofia recorre pouco à transferência verbal de semelhanças (metáfora) e às figuras de estilo (alegoria); quando o faz incorre em certa desconfiança por parte dos filósofos mais “puros” ou racionalistas. Esta breve discussão do assunto nos leva a perceber (assim esperamos), que a distância entre Literatura e Filosofia é menos nítida do que se considerava até pouco tempo atrás. Por outro lado algumas correntes ou tendências da filosofia, particularmente o Existencialismo, nos fizeram ver que muitas vezes as idéias filosóficas se exprimem bem por meio da Literatura: o teatro de Sartre, a poesia de Fernando Pessoa, e os romances de Dostoievski são alguns dos exemplos mais notáveis. 11


Se aceitamos estes preliminares não nos devemos admirar de que o intérprete de textos se possa aproximar do autor filósofo de uma forma semelhante à que se aproxima do autor literário. Interpretar é encontrar-se com o autor, e esse encontro só se alcança na intimidade, com paciência, abertura e aceitação. Ler um romance, sobretudo se ele for denso, não é fácil, pode ser cansativo, e exige esforço. De forma semelhante entender o que escreveu um filósofo precisa de leitura paciente, concentração, e de reler a mesma passagem várias vezes. Temos que nos colocar no seu contexto, saber algo da sua vida, conhecer seu vocabulário, ou vamos desafinar a leitura do autor. A experiência pessoal de vida é inerente à expressão, e portanto ao que se escreve – e isso vale para a Literatura e para a Filosofia. Este modo de entrar na personalidade do autor tem seus limites, e deve ser tratado com reservas, pois, tal como o autor literário, o filósofo deixa de ter biografia e contexto quando se publica, e mais ainda quando é lido. O acervo da obra do autor varia com as épocas, e o autor chega a cada época de forma diferente. Se este condicionamento é válido para uma obra literária, mais ainda para a filosófica. Aristóteles era um grego ateniense, do século IV antes de Cristo, que caminhava pelas ruas de Atenas conversando com seus discípulos (os caminhantes, ou peripatéticos). Era casado, foi professor de Alexandre da Macedônia... tinha, enfim, uma biografia pessoal, individual. Mas depois que morreu e passou a ser lido (e não visto, nem alguém com quem se pode conversar), deixou de ser aquele indivíduo, e se tornou o mestre criador do Liceu; seus primeiros discípulos desinteressaram-se da Metafísica, e o entenderam só pelas obras de tipo descritivo, e quando a maioria de seus escritos se perdeu passou a ser conhecido apenas pelo que se encontrava deles, geralmente a Lógica; Antioquia da Síria tornou-se um reduto do aristotelismo, junto com outras cidades próximas como Nisibis (Nusaybin) e Edessa, e Aristóteles foi tido como mentor das heresias dessa região; assim em poucos séculos já existem quatro ou cinco Aristóteles, conforme o que dele se lê e conhece; mais tarde de novo é o lógico, e esquecido por muitos era conhecido quase só na Síria, de onde foi transmitido aos europeus pelos muçulmanos de Bagdá, e finalmente na Idade Média foi o fenômeno que pela grandiosidade e coerência da sua obra geral formou a base da Teologia escolástica. Quem era final Aristóteles? Ou melhor: quantos Aristóteles existiram? Qual é o verdadeiro Aristóteles? Como deve ele ser interpretado? Aristóteles é o que se lê dele, não o homem que de fato existiu. Algo de semelhante poderíamos dizer dos versos da composição que se escutou e analisou neste seminário - Carmina Burana: as poesias são da autoria de goliardos, de alemães, eles são monges ou são boêmios (ou ambas as coisas), os versos são latinos mas traduzidos para português, são europeus mas cantados por um coral japonês - são então universais - o coral é regido por um outro 12


japonês que é titular da Orquestra de Boston...afinal de quem são, o que são os versos do Carmina Burana, se com certeza os seus autores não se reconheceriam na música de Carl Orff? E quando escutamos esta interpretação musical o fazemos de um modo brasileiro? Estas duas rápidas advertências e observações nos levam a perguntar: interpretar é uma forma de traduzir? Traduzir é sempre adaptar? Será que aquilo que se lê é igual ao que foi escrito? Ou nada do que se lê é o que foi escrito? Ler é sempre uma traição ao autor? Ou essa inevitável modificação do autor quando é lido é a verdadeira fidelidade ao autor? Ler o que um filósofo escreveu é filosofar, e é tanto mais filosofar quanto nos afastamos da intenção com que ele escreveu. Se é que sabemos qual era sua intenção... Ler é individualizar e internalizar: interpretar é fazer minha uma questão universal, sem que ela deixe a sua universalidade; como diz José Maurício de Carvalho, a propósito de Ortega y Gasset, há uma filosofia que “não banaliza a tradição filosófica, mas a considera a partir da experiência pessoal (...). Entender um problema significa compreender como ele surge na minha vida” (Carvalho 2003, 33). Ao aproximar a Filosofia da Literatura facilmente levamos a questão dos modos de interpretação de texto para o ponto de vista do autor: de fato na Literatura a personalidade do Autor é determinante para se compreender a sua mensagem poética, dramática, ou de qualquer outra forma literária, e percebemos também que a Filosofia não está isenta da influência do Autor sobre sua obra – ninguém é, e é impossível sê-lo, naturalmente racional e universal a ponto de sua expressão ser a formulação da própria razão universal. Quando o Ocidente julgou que sua Filosofia (só a Moderna) era a única expressão da razão universal estava apenas chegando ao ápice da arrogância do colonialismo intelectual. Na leitura do texto filosófico há um movimento pendular entre as várias objetividades possíveis e as subjetividades necessárias: a do autor e as dos leitores. Na Introdução à Antologia (Carvalho 1998 b, 18) o Professor José Maurício, pesquisador de Filosofia Brasileira e Portuguesa, explica com alguma extensão a relação entre o indivíduo e o universal, através da criação cultural; é através da interpretação que o leitor capta o que há de universal na obra de outro, daquele autor que está sendo lido; para ler um filósofo com proveito é necessário não apenas ler como quem repete, é preciso entrar nele com a própria vida (e sangue, diz José Maurício) fecundar o texto com a própria inteligência” (ib.). Há uma ligação pessoal, quase de “amizade à distância” entre o estudioso e o autor preferido. De fato na vida comum das reuniões e dos departamentos de Filosofia estamos acostumados a dizer: o professor (colega) X, especialista em Espinosa; o doutorando Y que estuda Wittgenstein; ou ainda: precisamos de um membro de banca para uma defesa de tese sobre Husserl, ou: está faltando alguém que 13


oriente em Bergson. Na vida acadêmica cada pesquisador tem seu nome ligado a outro nome, mais antigo. Mas também nos enquadramos em temas, áreas, problemas, que se pretendem independentes de autor: um grupo se organiza em torno da Ética, outro estuda Lógica, ou Ontologia. Nestes casos parece que a interpretação de textos pode desligar-se da personalidade do filósofo que conhecemos pela História, e prender-se mais a problemas filosóficos universais (ou tendentes a sê-lo). Assim se espera que os autores individuais, tal como os filósofos regionais ou temáticos, só tenham sentido quando sobre eles se projetam os problemas tradicionais e universais da Filosofia. Esse tem sido, aliás, o entendimento daqueles que se agregam sob as temáticas da filosofia Brasileira (Carvalho, 1999 b, 1-31). Há porém uma aporia metodológica: se queremos abordar, e interpretar, um texto sob o ponto de vista do problema que nele se enuncia, precisamos analisar conceitos, e comparar ou descrever as diversas formulações desse problema. Ora conceitos não têm definição fixa: por exemplo a definição de pessoa, ou de ciência, varia com os autores, e a história da formulação do problema só é feita recorrendo aos vários autores que o abordaram. Deste modo, mesmo quando queremos interpretar um texto filosófico de um modo mais diretamente universalizante, acabamos interpretando autores, e voltando à questão da Literatura e do estilo literário do filósofo. Teremos de nos convencer, que, na generalidade, a Filosofia elaborada por um inglês é diferente da escrita por um alemão, e, salvo exceções, não seria possível que qualquer delas tivesse sido redigida por um brasileiro ou um português, pois “apesar do vínculo com a tradição comum da cultura ocidental há uma sensibilidade própria e uma forma particular de tratar os assuntos” (Carvalho, 2009, 12). Numa outra dimensão o Professor Luiz A. Cerqueira pretendeu enfocar a Filosofia Brasileira sob o prisma temático/problemático; e Gerd Bornheim, na apresentação da obra, explica que o autor “concentra a investigação em tópicos bem determinados” e que insiste mais nos assuntos e nos temas do que na individualidade dos filósofos; mesmo assim Cerqueira está consciente de que pesa sobre seu trabalho a “exigência de incluir a pessoa do filósofo na visão e formulação de um problema como problema filosófico” (Cerqueira 2002, 9-11 e 13-18). Dito de outro modo: “embora a universalidade da filosofia seja indiferente à pessoa do filósofo, ela não exclui a pessoa do filósofo” (ib 29). 3. Filosofia e cultura – o culturalismo Se o filosofar depende do autor que filosofa, e este é formado numa determinada sociedade e cultura, então a filosofia nasce dentro de uma cultura e se alimenta dela, portanto é contextualizada. Por outro lado a filosofia transcende a cultura regional (étnica, epocal) procurando a universalidade da significação. 14


Cremos que para entender esta questão podemos nos abeirar de uma corrente de idéias muito difundida no Brasil: o culturalismo. Acompanhados pelo já citado pesquisador José Maurício de Carvalho vamos apresentar alguns tópicos – conceito e missão da Filosofia, e sua relação com a moral social e a política - que nos parecem mais a propósito. Como corrente filosófica o culturalismo nasceu no seio da filosofia alemã quando Hermann Cohen (1842-1918) pretendeu renovar o kantismo. Seu projeto foi ampliado e diversificado por outros filósofos, entre os quais Paul Natorp (1854-1924) e sobretudo Max Scheler (1874-1928); recebeu contribuições de – ou contribuiu para – a filosofia dos valores, a fenomenologia, as ciências do espírito, e, na preocupação com a análise da pessoa humana, de algum modo preparou a filosofia da existência. Voltado para os problemas humanos contextualizados na contemporaneidade o culturalismo exibe uma variedade de opções que o faz aberto tanto às ciências quanto à ontologia tradicional. Do ponto de vista desta corrente qual é o ponto de partida da filosofia? “A Filosofia é uma forma de pensar a existência, de tratar o sentido do mundo e de nossa presença nele” (Carvalho, 2001, 82). E o autor continua, explicando que ela nasce da admiração de estar no mundo, da experiência de estar perante algo estranho, como quem está perdido. “A filosofia em nosso século se deparou com a existência e sua missão consistiu em esclarecer a situação do homem, em elucidar o seu modo de ser e a traçar novas bases do seu viver” (ib. 89). A Filosofia nasce da dúvida, da consciência dos limites, da interrogação, mas também do compromisso de quem sabe que não está no mundo por acaso e tem algo a fazer nele. Mas adverte: no seu movimento intelectual o filósofo (a Filosofia) percebe que pode errar e que o pensar se pode corromper e, portanto, precisa progredir com rigor conceitual e com racionalidade atenta e crítica (ib. 84). Ao longo da história a filosofia comportou diversas perspectivas no olhar para o mundo, mas entre as contemporâneas os culturalistas se referem explicitamente a duas: a realista de Ortega y Gasset, e a idealista de Kant. O culturalismo reconhece a importância do idealismo mas pretende superá-lo, e integrar-se ao realismo, que se entende como inserção no contexto da existência tal como ela se apresenta. A procura pelas raízes do contexto cultural e pela condição humana atual conduziu, particularmente no Brasil e em Portugal, ao interesse pela produção filosófica (em muitos casos literário-filosófica) no idioma nacional, que, por ser comum uniu em frequentes encontros filósofos de ambos os lados do Atlântico – não sem suscitar algumas polêmicas e desentendimentos com outras correntes sobre o sentido de Filosofia Brasileira, ou Filosofia no Brasil – ou em Portugal. 15


Para o culturalismo a missão da filosofia hoje é repensar de tal modo a existência individual que ela adquira seu pleno sentido através da coletividade, “na experiência cultural” (ib. 89). O problema fundamental de nosso tempo, entendem os filósofos ligados ao culturalismo, é entender a condição humana, ficando a ontologia comprometida com esta questão. De certo modo trata-se de filosofar sobre a cultura sob o ponto de vista da concretização do ser humano; o homem é visto como um ser que se define antes de mais pela cultura em que se insere, e descobrir ou revelar a cultura é a missão do filósofo na interpretação da humanidade. Mas porque o objeto de análise é um ser histórico, sempre em mudança, e o filósofo não escapa a essa condição, a Filosofia é uma obra em permanente revisão e reformulação. A Filosofia tem também a missão de sustentar nossa atitude de coragem perante o mundo, impedindo que a injustiça, a corrupção, e a violência façam perder a noção de sentido da vida, que transcende as situações trágicas. A missão da filosofia é a de “elaborar argumentos válidos capazes de nos libertar do medo e da ignorância” evitando a acomodação, ou a sensação de inutilidade (ib. 90). Para chegar lá, porém, o filósofo precisa primeiro de se envolver no mundo: precisa trazer “para o campo especulativo” as questões do “universo cultural” (Carvalho 1997, 41); é aí que está o cerne do culturalismo como filosofia; “o significado da moral social” para ser entendido tem uma “exigência de fundamentalidade” com a qual o filósofo deve estar em sintonia (ib ). Cultura tem a ver diretamente com política e moral, elas entre si se condicionam. Os fundamentos últimos da cultura, entende o culturalismo, estão na moralidade. Apesar, porém, de relacionada ao meio e de manter relação com outros aspectos da cultura, a Filosofia possui dinâmica específica, e é aí que ela revela a autonomia da componente espiritual da cultura. Uma característica muito própria desta corrente é a clara e dolorosa percepção da crise da civilização ocidental, e a tentativa de recolocar a humanidade ocidental na sua trajetória civilizacional, mas sem saudosismos passadistas nem historicismo, porque se crê que a crise do mundo ocidental não atinge os valores nucleares, que continuam válidos: pessoa, liberdade, amor, e democracia - “nosso tempo não rompe com tais valores” (Carvalho 2011, 214). Pelo contrário, busca-se interpretar os movimentos contemporâneos, e acompanhar ou descobrir os sinais específicos da cultura contemporânea. Num contexto próximo ao culturalismo diz Fernanda Henriques que a filosofia deve “preencher o seu espaço próprio (...) na abertura constante ao pensar na sua radicalidade constitutiva de escuta dos “sinais dos tempos” (...) onde a abertura ao literário” pode ser a “mediação neste exercício” (Henriques 1997, 167). No culturalismo a atenção ao humanismo e à pessoa individual não é subjetivista, ela se encarna numa sociedade mobilizada e se projeta na transcendên16


cia. O pensamento tem caráter social pois se insere numa cultura compartilhada – não há filósofos ou pensadores “solo”, isolados. “O filosofar, diz José Maurício, é um produto que dá forma pessoal ao que brota da experiência de um grupo” (Carvalho 2001, 85). O intelectual não está sozinho, ele interpreta os níveis superiores da cultura e as produções de outros intelectuais, e intervém nas situações de crise; é nelas que as idéias entram em conflito; “(...) a filosofia não se separa dos problemas vividos e só podemos compreendê-la considerando as circunstâncias dos filósofos” diz José Maurício (ib. 87). Nas crises políticas surgem sinais para o repensar filosófico. Culturas e políticas se concretizam em personalidades marcantes, e um trabalho importante da filosofia é explicitar e interpretar o pensamento de figuras relevantes, que tiveram papel de orientadores na sociedade política. De certo modo é como se as idéias políticas fossem desenvolvidas no fazer dos fatos, e as idéias filosóficas estivessem no bojo da política. Concluindo a discussão da relação entre o filósofo e o seu contexto, e entre a filosofia universal e a escrita individual, podemos dizer que o culturalismo se oferece como um amplo quadro referencial teórico e interpretativo: no âmbito culturalista a redação individual do texto filosófico é uma concretização da cultura regional e da filosofia universal, e a sua leitura é um ato de produção filosófica. 4. Questões remanescentes Examinamos apenas alguns pontos limitados da questão da interpretação dos textos filosóficos. Para que nossa visão se amplie é preciso pensar em outros aspectos, por exemplo: porque utilizamos textos de autores históricos no ensino da filosofia? Ao fazê-lo não identificamos a Filosofia com o seu patrimônio histórico? Como devemos selecionar e interpretar, em aulas de Filosofa, textos que não são de Filosofia (Maquiavel, Dostoieveski, jornais etc)? Como considerar textos de outras culturas como os de Confúcio ou Buda? A História da Filosofia é Filosofia, mas na sua relação com o contexto ela é História das Idéias – sob que condições esta é filosófica? Se filosofar é olhar o mundo e analisá-lo como filósofo, como se chega a ser filósofo? O filósofo amador é aquele que acha que basta pensar para filosofar; o filósofo experiente é aquele que sabe que há muitas mais questões a resolver antes de saber ler um texto.

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Referências e Bibliografia CARVALHO, José Maurício de. Mauá e a ética saint-simoniana. Londrina: Editora UEL, 1997. ____________________________. O homem e a Filosofia. Pequenas meditações sobre existência e cultura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998 a. ____________________________. Antologia do Culturalismo brasileiro. Um século de Filosofia. Londrina: CEFIL, 1998 b. ____________________________. Filosofia da Cultura. Delfim Santos e o Pensamento Contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. ____________________________. Contribuição contemporânea à História da Filosofia Brasileira. Balanço e perspectivas, 2ª ed. Londrina: CEFIL, 1999. ____________________________. “A missão da filosofia”. Revista de Ciências Humanas (Florianópolis, UFSC/CFH) n.29, abril 2001, 81-92, e Crítica, Revista de Filosofia (Londrina) v.6, n.22, jan-mar 2001, 167-179. ____________________________. “Ortega y Gasset. Um interlocutor ainda atual”. Atas do Colóquio José Ortega y Gasset. São João del Rei, UFSJ, 2003. ____________________________. “O liberalismo de John Locke e Silvestre Pinheiro Ferreira”. VII Colóquio Antero de Quental, São João del Rei, 2007a, p. 22-53. ____________________________. A persistência da proposta liberal no período entreguerras: a formulação de Tancredo Neves”. VII Colóquio Antero de Quental. Atas. São João del-Rei, UFSJ, 2007 b, p. 179-196. ____________________________. Sugestões para o estudo da política contidas no Espectador de Ortega y Gasset. VIII Colóquio Antero de Quental. Estudos Filosóficos, n. 3. São João del Rei: 2009, p. 11-23. REALE, Miguel. Ética e Filosofia do Direito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. CERQUEIRA, Luiz Alberto. Filosofia Brasileira. Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes, 2002. DELEUZE, Gilles & GUATARI, Félix. (1ª1992, Paris 1991). O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. & Alberto A. Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997, 2ªed. GONÇALVES, Joaquim Cerqueira. Fazer filosofia. Como e onde? Braga: Faculdade de Filosofia, 1990. HENRIQUES, Fernanda. É legítimo o uso da literatura no processo de transmissão da Filosofia? Philosophica 9. Lisboa, 1997, p. 145-167. PAIM, Antônio. Problemática do culturalismo. Porto Alegre: CEFIL, 1995.

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HUMANOS E MORTAIS: A VIDA COMO INTERPRETAÇÃO Jason de Lima e Silva A meditação sobre a morte, nem sempre agradável e não necessariamente mórbida, é um caminho possível ao pensamento da vida e sobre a vida, naquilo que ela tem de intrigante e surpreendente. Agradavelmente ou não, em algum momento da vida ele chega e pára em nossa frente, envolve-nos, é maior do que nós e não podemos recusá-lo, temos de pensar. Ter de pensar é tarefa da filosofia, cujo prazer é por vezes estar diante de questões à primeira vista pouco ou nada prazerosas. Mas o exercício e a coragem de pensá-las faz com que nos sintamos aos poucos mais fortes, porque conscientes de nossa fragilidade no mundo. E, além disso, a lembrança de nossa condição humana nos devolve uma percepção singular de tudo que está à volta. Quando a inscrição do oráculo de Delfos dizia conheça-te a ti mesmo, ele queria dizer: lembra-te que és humano, lembra-te que és mortal. Uma maneira menos desagradável de chegarmos a um assunto que nos acompanha intimamente, mas sobre o qual nem sempre paramos para pensar, é começarmos pela leitura de uma fábula de Esopo: O velho e a Morte. Carregando a madeira que acabara de cortar, um velho ia por uma longa estrada. Cansado, depositou no chão o seu fardo e pediu que a Morte lhe aparecesse. A Morte apareceu: ― Por que me chamaste? E o velho: ― Para que leves meu fardo. Por mais difícil que seja a vida, ninguém quer deixá-la. A fábula tem um acento cômico, não é difícil de perceber. Quando o velho chama a Morte, parece que ele desistiu da vida. A Morte estranha e pergunta por que foi chamada: provavelmente porque não era bem a hora do velho. E aí vem a virada da história: o velho quer apenas um favor, quer que Morte leve seu fardo. Parece que a Morte é sua única companheira nesse momento, seu único consolo. Quantas vezes já não pensamos em desistir de tudo? Mas desistir de tudo é encontrar a morte, não é mesmo? A fábula é também cômica porque a Morte não pode levar o fardo do velho. E o que representaria o fardo do velho? Se lermos com atenção a moral da história, deduziremos ser seu fardo a própria dificuldade da vida. A vida ocupa, exige atenção, cuidado consigo e cuidado com outros que nos importam. E a vida de hoje parece que nos exige ainda mais: 19


qualificação, dinheiro, par perfeito, sucesso, um corpo bonito, fama a qualquer custo etc. Podemos até discordar da conclusão da fábula e pensar que algumas pessoas não só querem deixar a vida, como escolhem deixá-la e agem para morrer. O suicídio não revela unicamente o fracasso diante da própria existência, mas uma forma de idealização de uma vida que não é possível viver, diante da qual a vida real se torna uma sombra insuportável. Muitas pessoas desistem da vida pela imensa vontade de viver uma vida que nunca foi possível, mas sempre sonhada e até o limite esperada. Recusar pensar na morte é recusar a própria vida. Como diz Fernando Savater: “Se a morte não existisse, haveria muito que ver e muito tempo para vê-lo, mas muito pouco o que fazer (fazemos quase tudo para evitar morrer) e nada em que pensar” (Savater, 2001, p.38). O velho de Esopo não recusa a Morte, porque a chama. Recusa o fardo da vida, recusa o trabalho que a vida dá, a lida de todos os dias, ainda mais para um homem velho que tem de cortar a madeira e carregar seu fardo. É natural que canse e se revolte e queira chamar a Morte talvez para, no fundo, ironizá-la, para suportar a brincadeira de mau gosto que a vida faz com ele, cansando-o. A vida exige um heroísmo para o qual nem todos estão preparados, e mesmo os que se julgam preparados não podem estar sempre. Os mais heróis me parecem que são aqueles que levam grandes fardos em silêncio. As pessoas que mais falam de seus problemas para outras são, geralmente, as que se ocupam de falar e não de resolvê-los, geralmente são as que fazem dos problemas mais ordinários os maiores problemas do mundo (a novelas da rede Globo, por exemplo, fazem dramas dos problemas menos dramáticos: mas se ocupar dessas novelas é também uma fuga da própria angústia de viver, porque se deixa de fazer dramaticamente bem a vida para assistir vidas que se fazem de dramas: maus feitos). O problema que a fábula de Esopo nos coloca é: como levar bem o fardo da vida, como levar bem a vida, apesar de seu fardo. E isso depende do enfrentamento de uma questão que é a morte. Ser mortal significa estar só na fatalidade de uma vida que passa, na consciência de que eu um dia não serei mais eu. Logo eu! “O que há de terrível na Morte”, disse Malraux, “é que transforma a vida em Destino”. Ninguém morre no meu lugar, assim como ninguém vive no meu lugar: a morte lembra o caráter insubstituível da vida. Nenhum outro pode levar meu fardo, nem a Morte, que enquanto não me leva tenho de fazer coisas e de pensar a razão de fazê-las: se por gosto ou capricho, decisão ou necessidade. Às vezes fazemos coisas apenas para continuar vivos, por exemplo, trabalhamos para sobreviver. Mas é preciso encontrar uma ocupação, que nos dê, mais do que o fardo da sobrevivência, a graça e a leveza de viver e de se sentir vivo, mesmo que nos dê trabalho para fazê-la bem feito. Que ocupação é essa? Pode ser mais de uma, claro, como conservar com os amigos, fazer música, dançar ou 20


jogar futebol. Cada um tem de saber e descobrir por si que coisas verdadeiramente importam para a sua existência. Estamos também a sós nessa questão (mas é bom ter amigos para enfrentar mais fortemente nossos dilemas). Não escolhemos pensar ou não pensar na morte. É uma questão que nos escolhe, e nos faz pensantes e pensadores, porque nos devolve o espanto de termos nascido num mundo ao qual não pedimos para vir. Se não escolhemos nascer no mundo ao qual viemos, ao menos nele fazemos algumas escolhas e essas escolhas podem ser decisivas para uma boa ou uma má vida. A morte nos coloca numa solidão que pode se tornar mais aguda. Mas essa solidão é uma solidão de todos, porque todos vêm e vão deste mundo. Nesse momento, a consciência de nos sentirmos irmãos de um mesmo limite, o tempo. Nesse momento também, a percepção de sermos únicos e a possibilidade de nos fazermos diferentes numa mesma vida (para não morrermos em vida, igual sempre ao que esperávamos ou que esperavam e esperam de nós). É essa consciência e essa percepção que nos torna humanos por excelência. Os gregos diziam com uma mesma palavra, brotós: humanos e mortais. Nós podemos pensar duas situações extremas diante da morte, duas interpretações possíveis: a recusa total (e o inevitável pavor como causa) e a resignação absoluta (que pode reverter até no desejo e na espera da morte). Há dois quadros que poderiam representar esses opostos. Um é de Hans Holbein (c. 14971543): o esqueleto da morte puxa pela gola da bata uma freira que segura o terço com suas duas mãos bem fechadas. Está assustada, talvez solte um gemido ou um grito. Sua irmã de credo, logo atrás, se desespera com os braços erguidos. (Poderíamos nos perguntar por que ambas se apavoram se a morte as conduzirá a outra vida e, como religiosas, diretamente ao céu). O riso da caveira é evidente. Há ainda uma ampulheta ao chão, no canto direito: o tempo se esgotou, não há volta. O que era para ser, já foi, o que se tinha a fazer, foi feito. Mesmo que haja outra vida e outras almas para conversar, mesmo que se reencontrem no céu, serão almas, não mais seres humanos como somos.

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Hans Holbein, o Jovem, gravura para o livro O triunfo da morte, c. 1520-30

A outra imagem é uma pintura do simbolista Jacek Malczewski. A Morte tem um rosto feminino e uns braços masculinos. Com uma das mãos segura sua foice, com a outra fecha os olhos do homem aparentemente ajoelhado e com os dedos da mão cruzados. O velho insinua um sorriso: está pronto, já viveu o suficiente, não deve nada mais a si mesmo, nem a outros, deixa o mundo como veio, sem faltas, inteiramente e decididamente. É noite. A morte adormece. É quase um sonho. Resignar-se significa aceitar, entregar-se, conformar-se com o fado e com o fato.

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Jacek Malczewski, A morte, 1902

Entre a recusa e a resignação talvez possamos encontrar uma medida: para não esquecermos o fato de que somos tempo (temos um limite) e para lembrarmos de que temos muito a fazer antes do fado morte (temos possibilidades). Podemos pensar que morrer na velhice é o mais comum, e por essa razão natural o velho de Malczewski aceita o que vier da vida, no limite, a própria morte. Mas a vida é mais surpreendente do que imaginamos, e mais adversa do que desejamos. O acidente não é a exceção, mas a regra. Vale lembrar Montaigne: É pura fantasia imaginar que podemos morrer de esgotamento em virtude de uma extrema velhice, e assim fixar a duração da vida, pois esse gênero de morte é o mais raro de todos. E a isso chamamos morte natural como se fosse contrário à natureza um homem quebrar a cabeça numa queda, afogar-se num naufrágio, morrer de peste ou de pleurisia; como se na vida comum não esbarrássemos a todo instante com esses acidentes (Montaigne,1972, p. 76).

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Referências COMTE-SPONVILLE, André. “A morte” (capítulo 4). In: Apresentação da filosofia. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 2002. ESOPO. Fábulas. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM. 1997. MONTAIGNE. (1567). Ensaios. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 1972. LIMA E SILVA, Jason. Imagens da morte. Florianópolis: Revista Level (n.1). 2010. SAVATER, Fernando. “A morte, para começar” (capítulo 1). In: As perguntas da vida. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes. 2001.

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AS RELAÇÕES ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA EM EMMANUEL LEVINAS: A ARTE E SEU SENTIDO Anita Prado Koneski Introdução Para pensar a ética e suas relações com a estética em Emmanuel Levinas, penso ser necessário refletir primeiramente no como se dá nesse filósofo o pensamento referente à Totalidade e ao Infinito. Entendo que é mediante o pensamento da Totalidade que Levinas constrói suas ideias sobre a ética, articulado com as suas experiências nos campos de concentração em que desponta uma reflexão profunda sobre a dor do Outro, à medida que essa dor põe-se como um Infinito. É pelo conceito de Totalidade que conheceremos a postura ética, centrada não em regras e leis concebidas a priori, mas na respeitabilidade que se dá frente ao Rosto do Outro que se mostra, num pôr-se impregnado de enigma. Respeitabilidade que não está fundada unicamente no que se mostra, mas no que se resguarda. Quando Adorno instiga-nos com sua expressão afirmando ser indecente compor poemas após Auschwitz, compreendo-o a partir de Levinas, ou seja, a vergonha que deveríamos sentir de nos expormos ao gozo artístico no momento de tamanha catástrofe, em que a dor do Outro se fazia tão premente numa Europa civilizada, movida pelos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade e que se entendia como cuidadora da dor do Outro. Em Levinas (2001, p. 64), “é como fazer festejos em plena peste”. Além de uma crítica a uma política centrada na Totalidade, sua expressão traz a indagação: Que tipo de arte devemos produzir daqui por diante? O que é interpretar a arte daqui por diante? Não deveria ser o fazer estético produzido e pensado de maneira diferente depois de Auschwitz? O conceito de real torna-se problemático tanto para a expressão na arte como para a filosofia, e a última pergunta fica imediatamente respondida. Todo o contexto, naquele momento, exigia dos pensadores uma outra postura. O olhar para o Outro, fonte de dor, e para a imagem, fonte de contemplação pacífica, exigia outro modo de pensar. Todo o contexto estava para Levinas centrado na postura de Totalidade assumida pelo Ocidente, problema que me fez aproximar os dois pensadores, Levinas e Adorno. Porém, não será Adorno, ao que nos parece, que desenvolverá tal pensamento. Será Levinas, no meu entender, que trará para o Outro, bem como para a estética, um pensamento ético, independente de dados a priori, reivindicando uma ética engendrada na experiência do frente a frente, o único meio de salvar a decência de estar diante 25


do Outro e de estar diante da imagem e estar ainda diante do real. Fala-se então de interpretação. Fala-se mais propriamente de interpretar o Outro e de interpretar a arte, ou de rever a própria filosofia ocidental. Daí que temos de construir uma pergunta mais sintética para nortear esta reflexão: como fundar uma interpretação ética da imagem, uma vez que não podemos mais nos separar da crítica de um pensamento da Totalidade versus Infinitos? Essa reflexão encontra-se aprofundada na obra de Levinas, A Realidade e sua Sombra, em que a obra de arte vem não mais como benéfica contemplação e superação para o momento de dor. Estranho pensamento para um mundo, num momento crucial, que ansiava pela salvação e que poderia (falsa esperança) ter na arte uma “mãe acolhedora”, a salvação na contemplação. Mas não foi assim que a arte foi entendida por Levinas. Não foi assim que o filósofo viu a interpretação. Adorno percebeu muito bem a impossibilidade dessa realização ao expressar-se, e Blanchot (1987), com a ideia da arte como outra noite, esse lugar “onde tudo desapareceu aparece”, compactua com Levinas da Infinitude. A idéia de totalidade Voltemos à ideia de Totalidade. A ideia de Totalidade é a que estamos incluídos. Para Levinas (2000), esta é, também, a ideia violenta que permeou todo o pensamento filosófico ocidental. A acusação central desse filósofo, ao modo como o ser é abordado no pensamento ocidental, é que esse ser se desinteressou do Outro como Outro e, dessa forma, faz-se necessário buscar um sentido outro do homem e da realidade. Vemos, então, a subjetividade, no pensamento levinasiano, configurar-se no Outro como princípio primeiro da ética, que se dá com Infinito. A ideia de Totalidade resume a diversidade numa mesmidade, reduzindo as diferenças exteriores à interioridade da imanência e a uma intencionalidade que dá ênfase ao ego. Ela apaga a distinção entre o interior e o exterior; na representação temos o Outro que se deixa determinar pelo Mesmo, sem determiná-lo. Trata-se do desaparecimento do diferente e a imposição da razão hostil ao Outro. Observem que na crítica da Totalidade, Levinas nos convida a ver o Outro, não mais como um aberto, desprovido de segredos, entendido como imanência, promessa de satisfação do Eu. O Outro se insere aqui, à margem da Totalidade, um estrangeiro. Com isso estamos diante da desestruturação do mito da consciência legisladora das coisas, lugar em que irmanam diferença e identidade, lugar do autoritarismo do Mesmo. Mas não se trata de anular a Totalidade, mas perceber que o para além da Totalidade deve refletir-se e acontecer no interior da experiência, da própria totalidade e da história, ou seja, o Infinito dá-se na Totalidade, nas relações humanas. 26


O Infinito é a supremacia da ética levinasiana. O instalar-se do Infinito nos faz perceber que o Outro é o lugar em que as interrogações sobre a moral ficam sem respostas, pois a ética que ele exige é a do “não matarás”. Quem instala esta Infinitude segundo Levinas é o Rosto do Outro que compreende tanto o estar frente a frente com um rosto como materialidade, como estar frente a frente com esse algo que infere que não posso matá-lo, ou seja, não posso reduzi-lo ao Mesmo (conceito de Rosto). Trata-se de acolher uma assimetria Infinita entre o Eu e o Outro. Aqui, a responsabilidade que se instala não deriva de nada a priori. Deriva unicamente do fato de um Eu (Mesmo) estar diante do Outro, simplesmente com Outro, questão que não está na neutralidade ou aceitação pela similaridade de condição e nem mediante a tolerância, mas no pensamento de que não há diferença de responsabilidades entre ser responsável por si mesmo e ser responsável pelo Outro. Estamos infinitamente diante da mesma coisa. É uma ética que não decorre de nenhuma regra, ordem de Deus, ou dos preceitos legais dos homens que buscam a verdade. O Outro não é adequação ao que Eu penso sobre ele. Assim, há um enfrentamento da Totalidade no seio da própria Totalidade. Observa-se, então, que não estamos mais nem no domínio do Mesmo e nem mo domínio do Outro, prevalece um terceiro excluído, ou seja, a justiça. Em simples palavras, podemos argumentar que tudo isso vai contra o pensamento habitual. Pensamos que conhecemos o Outro, por ele ser (pressupostamente) um igual, e, uma vez conhecendo-o, podemos dizer o que é melhor para ele. Segundo Levinas, o pensamento que me dá o direito de dizer que conheço o ser é um ato de violência. Conhecendo-o, posso dizer o que lhe vai melhor e determino-o num ato sem igual e de violência. A alteridade que nos coloca o pensamento da infinitude traz outros argumentos, ou seja, se entendo que o Outro é um infinito, entendo que o que se põe diante dessa infinitude são a respeitabilidade e a justiça. Daí que não podemos deixar de trazer à participação desta exposição a estranha conversa entre dois amigos, no texto de Blanchot ( 2001, p. 11,15), A Conversa Infinita, em que os dois senhores cansados, no que pese que “o cansaço que lhes é comum não os aproxima”, pois a compreensão entre eles de repente “abre-se a esta palavra, na qual nada se exprime: pouco mais que um murmúrio: ‘Não sei o que serei’ ”, e a palavra, permanecendo sempre distante, deixa os dois impressionados. O que parecia comum entre eles não o é (nada é comum entre um Eu e um Outro). O Infinito permeia toda conversa, pois falar não é ver, não é ter diante de si essa certeza de dar clareza às coisas. Blanchot insinua um não saber benéfico, o exaltar de uma paixão desinteressada, a invisibilidade. Mas o que buscavam encontrar os dois amigos? Apenas, não saber sobre si, ambos entendiam da impossibilidade, sabiam do movimento de uma conversa infinita, que não sabe de si e que reconhece o prazer de abandonar-se “à magia 27


do desvio”. Uma distância de infinitos os separa. Eis, então, um exemplo do “dar-se” do Infinito levinasiano no seio da Totalidade. Trata-se ainda de dizer com Blanchot (2001, p. 63) que o primeiro sentido da palavra encontrar não “é de forma alguma encontrar no sentido de resultado prático ou científico. Encontrar é tornear, dar volta, rodear”. É, então, esse contato que não está incluso numa totalidade, mas algo do mesmo tipo do erro, que se esgota na andança, e trata-se de dizer ainda que este seja um lugar onde as coisas não se mostram, mas também não escondem (BLANCHOT, 2001, p. 65), lugar paradoxal, que nos infere um novo olhar para o mundo. É o que nos faz ver que Blanchot e Levinas compartilham de um mesmo interesse e que, portanto, muitas vezes os aproximaremos nas reflexões elaboradas por este texto. A questão que Levinas nos propõe em Humanismo do outro homem (2009, p.50) é pensar que a significação que o que o Outro comporta é independente dessa significação recebida do mundo, nas aparências do mundo, ou seja, ele não nos vem somente a partir do contexto, mas significa por si mesmo e não está incluído na totalidade do ser expresso. O Outro me vem como se sua significação mundana se encontrasse obscura, transtornada por outra presença abstrata, não integrada ao mundo, este é o conceito de Rosto. O Outro vem como o rosto (face, a materialidade), mas o que ele realiza como essencialidade é Rosto (conceito levinasiano), algo vivo que desfaz a forma “em que todo ente – ao entrar na imanência, isto é, ao se expor como tema - já se dissimula” (LEVINAS, 2009, p. 50). Levinas percebe que a tematização do Outro continua sendo um problema para a filosofia; entre o dizer e o dito, Levinas vai tomar o partido da arte, ou pelo espaço da arte, em que ao dizer é, por excelência, esse caminho do desvio e do erro. Estética da anti-idolatria Quanto à imagem na arte que nos rodeia, Levinas igualmente confere-lhe um lugar semelhante ao de Rosto e, sem retirá-la da Totalidade, confere à imagem a radicalidade do Infinito, numa estética anti-idolatria e, portanto, ética. Tais ideias podem se inferir de seu texto A realidade e sua sombra. No referido texto temos que o que é a imagem como um Infinito não pode passar sem a sua representação, sem o que se faz percepção diante de nossos olhos, porém, o que é a imagem (ela mesma) não se resume e nem está ali. O que há para ser dito na imagem, ou seja, o Dizer é essencialmente o enigma, o que não pode ser dito. Vemos, então, que o que prevalece essencialmente para Levinas não é o estético, mas a ética que a imagem articula. Mas, por outro lado, podemos dizer que é no movimento realizado pelo poético (no espaço do dizer) que Levinas vê o 28


espaço do ético. A filosofia aqui encontra um caminho que é delineado pela arte (um movimento da poética). A arte é da ordem do Dizer e não da ordem do Dito. No Dizer não estamos implicados com o mundo da totalidade, nem das experiências simplesmente cotidianas, somos arrancados do cotidiano. No Dito estamos na ordem do mundo. É no Dizer que essa não coincidência com o Outro acontece, pois o sujeito do Dizer não aporta signos, mas se faz signo e assume na interpretação um sentido radicalmente diferente da tematização, conforme ensina Levinas (2003, p. 102). Para Levinas (2003, p. 97), significa alcançar o Dizer anteriormente ao Dito, ou então deduzi-lo dele e fixar o sentido dessa anterioridade, que se faz pelos caminhos do infinito, de uma conversa que se remodela infinitamente na respeitabilidade de que não pode abarcar o Outro como conhecimento. A intencionalidade aqui permanece como desejo de sempre alcançar sua plenitude, faz do por vir sua caminhada. Mas, então, o que é ético na imagem? Levinas centra sua ética no Dizer, essa impossibilidade de enquadrar-se em um dito (em uma interpretação), ou seja, a imagem neutraliza as nossas relações com o real e nos entrega a uma passividade essencial. No texto, A realidade e sua sombra, Levinas critica o fato de a arte ter sempre sido ao longo dos tempos obrigada a conviver com a lógica da interpretação. Essa lógica que prega que obra de arte deve e pode ser dita. A proposta de Levinas na referida obra é de derrubar os ídolos (e aqui está a proposta de uma arte anti-idolátrica), entendido pelo filósofo como esse mundo que administra a imagem, lugar em que a realidade é substituída pela sua sombra, ou seja, a imagem é o espelho da realidade. A sombra, então, entendida como tautologia da realidade e nunca entendida na sua essência, forma enigmática, esse lugar do mistério em que a imagem é ética por não compactuar com a realidade. A arte como idolatria em Levinas (2001) é essa arte que se dá na clareza do real, aparada por falsas intenções, caricaturada vida que compactua com as leis da Totalidade. Está, segundo Levinas, no outro do real, no inverso, o pôr-se do ético. Assim, estamos diante da impossibilidade da lógica da leitura que faz da imagem algo estático, sem vida, quando o ser da imagem está na vida que se faz Infinito, esse movimento errante do desejo de encontrar o que está sempre por vir. Devemos ver que em toda imagem há uma zona de obscuridade, a sombra essencial, e que o para além da imagem é um nada dizer, porque o que o artista vive diante da realidade é o fato de dela nada poder dizer, assim que Blanchot (1987) explica que o artista constrói suas imagens no dia, mas o que ele diz é da ordem da Outra noite. Nas palavras de Blanchot (1987), que lembra a experiência de Igitur: quando tudo há desaparecido na noite, “tudo há desaparecido” aparece. A noite é aparição do “tudo há desaparecido”. 29


A imagem como linguagem é muito mais do que enunciados logicamente conectados (ou seja, um dito). Perceber a imagem como um evento essencial que lhe é próprio é entendê-la como Dizer, é percebê-la no movimento que a liberta da tautologia e da temporalidade. Ou, nas palavras de Blanchot (1987, p. 155-156) a verdade da imagem está na sua suspensão do mundo, lugar onde nada se afirma, “ela é um limite perto do indefinido”. As coisas estão aí para serem apreendidas, porém, quando transformadas em imagens, são imediatamente convertidas no inapreensível, a coisa como distanciamento, a presença de uma ausência. É, então, o lugar que faz eco o propriamente dito: o dizer, esse que nunca um dito pode fixar com propriedade. Para finalizar O ético na imagem está, então, no que põe o dizer, que se afirma como aquilo que se torna inteiramente intransparência e confronta o logos como saber do Outro (seja ele a imagem ou o Outro nosso próximo). Questiona ainda o movimento da Totalidade, na sua pretensa harmonia entre o Outro e o Mesmo, entendendo esse Outro como algo possível de transparência submetido à lógica da inteligibilidade. A imagem transgride a inteligibilidade, revolta-se contra a transparência e insinua-se na sua radical intransparência. A imagem, sugere Levinas (2001), ela mesma se opõe à idolatria da imagem totalizada, denunciando uma neutralidade da imagem; surge dela mesma o movimento de transgressão à Totalidade, não se deixando interpretar e negando qualquer conciliação com ela mesma. Dizer que a imagem é ídolo para Levinas é dizer que nela não se instala um porvir, o que a torna possível à idolatria ou que o artista, por sua vez, teria nela infundido uma vida fútil, que a impede de ser dona de si, sendo, então, uma caricatura da vida (LEVINAS, 2001, p. 58). Essa direção escolhida pela imagem, segundo Levinas (2001), é ética à medida que impede a redução do outro (nesse caso a imagem) à vontade originária do espaço do Eu. A imagem é ética, ou verdadeira, quando não posso mais dar a ela o valor de Ídolo, ou seja, não posso mais lê-la a meu favor, ou reduzi-la a um conhecimento equivalente à Totalidade. O esquema clássico do conhecimento fica desmantelado tanto no que diz respeito à ética quanto à estética. A imagem deixa de ser em si conhecimento e revelação, para ser um lugar de angústia e de questionamentos. Porém, somente como infinitude, a imagem deixa de compactuar com a violência de uma realidade totalitária e faz aparecer o diferente, o singular. Segundo Levinas, esta seria a imagem que não cultiva os ídolos (as aparências) e cava na totalidade o que resta de vida essência. A arte não pode fingir que é vida, não pode construir um mundo que proteja as imperfeições do 30


mundo real, uma fuga para a irresponsabilidade da sombra (da mera aparência), mas precisa ser vida. É, portanto, essa imagem que aponta para o real, e não para a idolatria (a mera aparência) e para o Outro, como Rosto, instalando um frente a frente com o mundo, sem o manto pretensiosamente protetor da Totalidade, e que se constitui essencialmente como Dizer, que podemos dizer ética.

Referências BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta. 2001. ___________________. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco. 1987. LEVINAS, Emmanuel. O humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes. 2009. __________________. La realidad y su sombra. Madrid: Trotta. 2001. __________________. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70. 2000. __________________. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: SÍGUEME. 2003.

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LER E INTERPRETAR A OBRA KANTIANA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES Evandro Oliveira de Brito Introdução Um dos problemas encontrados na leitura e na interpretação da obra kantiana Fundamentação da metafísica dos costumes está no fato de que ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’ são noções diferentes que exercem a mesma função nos principais argumentos das teses apresentadas ali. Este trabalho consiste em apresentar os caminhos de uma interpretação capaz de explicitar o uso dessas três noções na estratégia Kantiana de fundamentar a moralidade. Esta proposta de leitura e interpretação, portanto, consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função. Em outras palavras, esta proposta de leitura e interpretação sustenta que a função exercida pelas noções de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’, consiste em indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Uma apresentação sistemática desta proposta de leitura e interpretação pode ser apresentada a partir da seguinte análise, ao distinguirmos os três argumentos kantianos presentes na Fundamentação. O primeiro argumento delimita o âmbito da moralidade, restringindo-o exclusivamente á atividade da vontade. Trata-se da primeira frase do texto, onde Kant afirma que “não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrições possa ser considerada boa, a não ser uma boa vontade” (Kant, 1964, p. 53). A moralidade, nesse caso, identifica-se à boa vontade, pois consiste na única coisa que pode ser concebida como incondicionadamente boa e dotada de valor absoluto. Esse argumento retira do senso comum a idéia de valor absoluto da boa vontade e utiliza-a para indicar que o fundamento universal e necessário da moralidade não pode ser encontrado na efetiva realização das ações ou em alguma determinação transcendente. Dado, no entanto, que a própria boa vontade comporta um valor absoluto, seu fundamento universal e necessário deve ser encontrado em sua própria atividade, ou seja, na atividade prática da razão pura chamada boa vontade. O segundo argumento estabelece que o valor moral de uma ação praticada 32


por dever é um efeito resultante exclusivamente da atividade volitiva que, ao querer uma ação, põe-se em contrariedade com as inclinações. A noção de valor moral do dever indica, nesse caso, que o fundamento universal e necessário da moralidade tem um caráter puro e, por isso, só pode ser conhecido a priori pela razão. Tal como no primeiro argumento, a análise do conceito de valor moral do dever é uma estratégia para explicitar a necessidade e a universalidade da moralidade indicada pela idéia de valor absoluto da boa vontade. Embora Kant assegure que o conceito de dever é um conceito mais amplo, a análise deste conceito também conduz ao reconhecimento da origem do fundamento do valor absoluto da boa vontade atribuído à moralidade. Há, ainda, outra função exercida pela noção de valor absoluto. No terceiro argumento, a noção de valor absoluto está relacionada à racionalidade e tem a função de indicar que a razão possui um fim em si mesma. Assim, o valor absoluto da racionalidade indica que antes de se deixar determinar por qualquer fim estabelecido pela inclinação e por consistir na atividade prática da razão pura, a vontade toma sua própria racionalidade com princípio determinante da ação. Em ouras palavras, o valor absoluto da racionalidade indica o fato de que a atividade de querer, própria dos seres racionais, não está condicionada a nenhum outro fim que ela mesma. A noção de valor absoluto da racionalidade indica, assim, o princípio fundamental utilizado por Kant para explicitar a universalidade do imperativo categórico encontrada na autonomia da vontade dos sujeitos racionais. Nossa proposta de leitura e interpretação toma da Fundamentação, portanto, a utilização destas três noções como fio condutor da argumentação kantiana, pois entendemos que essas noções são utilizadas para explicitar a necessidade e universalidade prática do fundamento da moralidade. É oportuno, agora, apresentarmos a plausibilidade de nossa proposta. Como interpretar o fundamento da moralidade. Há um consenso sobre o fato de que Kant prescinde de uma demonstração da realidade da moralidade nos argumentos das duas primeiras seções da Fundamentação. No entanto, isso não significa que Kant está pressupondo a existência efetiva da moralidade sem necessidade de qualquer demonstração, bem como uma moralidade fundada em uma causa transcendente. Para Kant, a moralidade é um fato intrínseco à própria atividade prática da razão. Desse modo, negá-la implica em negar a própria racionalidade prática, ou seja, a possibilidade do bem moral. Afirmá-la, por outro lado, consiste numa estratégia que possui dois momentos distintos. No primeiro momento, Kant propõe que a moralidade existe como uma 33


atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os propósitos dessa tese kantiana são explicitar o fato de que a boa vontade é evidente a toda razão comum e, também, explicitar o fato de que a boa vontade possui um fundamento prático, ou seja, necessário e universal. No segundo momento, Kant demonstra que se a moralidade comporta um estatuto universal e necessário, ainda que de modo hipotético, então ela deve ser deduzida a partir da idéia de liberdade. Essa mesma interpretação subjaz à elaboração das traduções da Fundamentação levadas a cabo por Ferdinand Alquié (Francês) e Antônio Pinto Carvalho (Português). Na introdução à sua tradução, Alquié destaca o fato de que a pressuposição da moralidade é essencial para que Kant possa explicitar os fundamentos da mesma, pois a fundamentação da moralidade consiste em apontar sua estrutura a priori. Alquié entende necessário ressaltar que o propósito kantiano está claramente apresentado no título original da obra, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. A tradução francesa Fondements de la Métaphysique des Moeurs suprime, no entanto, a idéia de que se trata de estabelecer um fundamento para um certo tipo de metafísica1. Esta metafísica se ocupa da própria atividade prática da razão pura e da sua espontaneidade na determinação do bem moral. Ainda segundo Alquié, é justamente na primeira seção da Fundamentação que Kant procura estabelecer o fato moral a título de fato da razão. Isto significa, segundo ele, que Kant pretende mostrar que o juízo moral manifesta em nós a atividade da razão. Desse modo, a tarefa filosófica consiste em destacar o elemento moral em sua pureza, ou seja, descobrir suas condições a priori. Alquié ressalta, no entanto, que não se trata da análise da natureza humana, mas da análise do juízo comum dos homens em matéria moral (Alquié, 1985, p. 224). Seguindo essa interpretação, podemos entender que todo o propósito de Kant está em explicitar a natureza universal e necessária que sustenta o juízo moral. No entanto, para que Kant possa levar a cabo essa tarefa, ele pressupõe que a moralidade possui um caráter objetivo, tanto nos argumentos da primeira seção como nos argumentos da segunda seção da Fundamentação. Este pressuposto só será esclarecido na terceira seção, quando Kant deduz a moralidade a partir da idéia de liberdade. Essa interpretação permite entender que a moralidade é o pressuposto fundamental e o fio condutor que permite o subseqüente avanço por cada um dos mo1 A tradução portuguesa recebeu o título Fundamentação da metafísica dos costumes e apresenta o mesmo problema de tradução, pois, diz Alquié, “o título Fondements de la métaphysique des moeurs tornou-se tão admitido na França que nós não pensamos em modificá-lo. Ele não traduz com exatidão o título alemão, de acordo com o qual trata-se de estabelecer um fundamento para uma tal metafísica, pois em alemão, este título é Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Estabelecer este fundamento é estabelecer que o fato moral existe como fato da razão, distinto de todo domínio empírico, e que ele pode ser estudado a priori, por uma verdadeira metafísica”. ALQUIÉ, F. Les Écrits de 1785, p. 224

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mentos da argumentação kantiana. No entanto, é preciso explicitar como Kant utiliza dois conceitos específicos para avançar no propósito da Fundamentação, a saber: ‘valor moral’ e ‘valor absoluto’. Entendemos que cada um destes conceitos está relacionado com uma seção específica da Fundamentação, embora ambos sejam utilizados com a mesma função, ou seja, pressupor a objetividade da moralidade. Isto não significa que Kant esteja formulando uma ética dos valores ou mesmo fundamentando a moralidade nos conceitos de um valor absoluto e um valor moral. Kant apenas utiliza estes conceitos no desenvolvimento da sua argumentação até poder explicitar a natureza a priori da atividade prática da razão pura. Em outras palavras, os conceitos de valor moral e valor absoluto serão utilizados para explicitar a universalidade e a necessidade da moralidade, tendo uma função específica para a ratio cognocendi. Do ponto de vista da ratio essendi, no entanto, trata-se de conceitos completamente desnecessários na fundamentação da moralidade, pois esta exige exclusivamente uma demonstração da sua universalidade e necessidade. Deste modo, portanto, nossa interpretação pode pontuar o desenvolvimento argumentativo desta ratio congnocendi na primeira, bem como na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes. Exposto o esquema geral, vejamos como esta proposta de leitura e interpretação pode ser aplicada aos argumentos iniciais da Fundamentação. A análise da primeira seqüência de argumentos encontrados na seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes mostra o modo como Kant utiliza a noção de valor absoluto para justificar a tese de que a moralidade se reduz à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. A análise da segunda seqüência de argumentos da seção I mostra como Kant utiliza o conceito de ‘valor moral’ para explicitar o princípio geral do dever. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação aponta para os pressupostos que permitem a Kant explicitar o fundamento da moralidade, partindo da definição de boa vontade e concluindo com a forma da lei moral encontrada nos juízos comuns acerca da moralidade. A nossa estratégia de análise divide a argumentação kantiana da seção I da Fundamentação da metafísica dos costumes em quatro etapas. Entendemos que os três primeiros parágrafos da primeira seção se ocupam da definição do conceito de boa vontade. Ou seja, o argumento desses três primeiros parágrafos restringe a moralidade à atividade prática da razão pura chamada boa vontade. Os quatro parágrafos seguintes (4º-7º), que constituem o segundo momento da análise, ocupam-se da idéia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 55) com o intuito de apontar a finalidade intrínseca da razão pura na sua atividade prática. O terceiro momento desta análise ocorre a partir do oitavo parágrafo (8º-17º), em que Kant se propõe a examinar o conceito de valor moral do 35


dever como forma de elucidar a idéia de valor absoluto da boa vontade (Kant, 1964, p. 57). Por fim, o quarto momento da analise kantiana explicita, por meio da análise das ações realizadas por dever, como o princípio geral do dever está presente em toda consciência racional comum. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, portanto, a análise detalhada dessas quatro etapas (ou sequências argumentativas) com o propósito de explicitar a função que os conceitos de valor absoluto e valor moral exercem em cada argumento kantiano utilizado na fundamentação da moralidade. Vejamos. Analisa da primeira seqüência de argumentos da seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue três passos na argumentação kantiana e aponta a relevância direta que cada um deles tem para os propósitos de Kant. O primeiro passo argumentativo (§1º-§11º) estabelece a necessidade de uma filosofia moral capaz de analisar as determinações a priori da razão. Este argumento é fundamental para a caracterização de uma metafísica dos costumes capaz de explicitar os fundamentos da moralidade indicada pela idéia de valor absoluto da boa vontade. O segundo passo argumentativo (§12º-§59º) pode ser dividido em quatro partes. A primeira parte classifica os modos distintos de determinação da vontade para poder especificar exatamente o que ocorre com a vontade humana. A segunda parte analisa a determinação da vontade humana e define os modos distintos de imperativos. Esta distinção classifica os imperativos em hipotéticos e categórico. O terceiro passo demonstra, por um lado, as condições de possibilidade dos imperativos hipotéticos e, por outro lado, esclarece o motivo pelo qual não podem ser demonstradas as condições de possibilidade do imperativo categórico, cabendo apenas explicitar a sua natureza universal e necessária. Assim como o primeiro argumento, estes três passos do segundo argumento não tratam dos conceitos de valor moral e valor absoluto. Entretanto, cada um deles tem o propósito de definir a moralidade de modo negativo. Em outras palavras, estes argumentos explicitam quais são os elementos práticos que estão destituídos de valor moral, de modo que os elementos puros possam ser explicitados por contraposição. Assim, parte do êxito de nossa proposta está no fato de que essa proposta de leitura e interpretação pode explicitar detalhadamente o modo como Kant define os elementos práticos destituídos de valor moral. A análise do último passo do segundo argumento apresentado na seção II da Fundamentação da metafísica dos costumes distingue-se dos três passos argumentativos do capítulo anterior porque aborda diretamente principais conceitos da Fundamentação. Em outras palavras, a análise apresentada no quarto capítulo aponta para 36


o fato de que o conceito de valor absoluto da racionalidade está no cerne do procedimento kantiano de fundamentação da moralidade – pois Kant o utiliza para postular a objetividade do princípio moral do dever e, assim, explicitar sua necessidade e universalidade até poder deduzi-la da idéia de liberdade. Desse modo, Kant constrói hipoteticamente a moralidade utilizando o conceito de valor absoluto da racionalidade para indicar como o estatuto objetivo do imperativo categórico deve ser estabelecido. Nossa proposta de leitura e interpretação permite, assim, explicitar o modo como a utilização desse conceito postula a idéia de fim em si mesmo para estabelecer a objetividade da atividade prática da razão pura, isto é, o fim puramente racional para toda vontade. Em outras palavras, essa proposta de leitura e interpretação permite encontrar a exata utilização do conceito de valor absoluto na formulação do imperativo categórico – e, finalmente, demonstrar a sua função na construção hipotética da idéia de autonomia da vontade. Podemos indicar, agora, alguns detalhes que envolvem os passos argumentativos de Kant na Fundamentação. O método e a divisão da Fundamentação. Duas observações são imprescindíveis para que se possa iniciar uma análise dos argumentos de Kant e se possa explicitar o uso que ele faz dos conceitos de valor absoluto da boa vontade, valor moral do dever e valor absoluto da racionalidade. A primeira observação diz respeito às divisões do texto e a segunda diz respeito ao método kantiano de análise do conhecimento prático. A divisão do texto, apresentada pelo próprio Kant, é a seguinte: Primeira seção: passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico. Segunda seção: passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes. Terceira seção: último passo da Metafísica dos costumes à crítica da Razão Prática (Kant, 1964, p. 51). Esta separação do texto em três partes visa facilitar a utilização do método de investigação analítico-sintético que Kant emprega para fundamentar a moralidade. Assim, diz ele: O método que penso ser mais convincente, quando pretendemos elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo do mesmo, e, depois, por caminho inverso, tornar a descer sinteticamente do exame deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica sua aplicação (Kant, 1964, p. 50-51). 37


O procedimento analítico tem, portanto, o objetivo de explicitar em que condições o conhecimento da moralidade será universal e necessário, avançando dos conceitos comuns da moralidade aos princípios a priori. Deste modo, seguindo a análise de Zingano acerca destas duas citações, podemos dizer o seguinte: A primeira seção pode ser entendida como uma passagem do “reconhecimento da moralidade à consciência do seu caráter puro, descobrindo a possibilidade de universalidade e necessidade que os princípios morais exigem” (Zingano, 1989, p. 38). A segunda seção consiste numa “crítica das tentativas empíricas e na organização do saber puro da moralidade” (Zingano, 1989, p. 38). A terceira seção “demonstra que condições garantem a efetividade ainda que na região do dever ser e não do ser” (Zingano, 1989, p. 38). Segundo Zingano, ainda, nós podemos considerar que estes três passos seguem um procedimento analítico, restando apenas a demonstração da liberdade da vontade para o momento sintético (Zingano, 1989). Aceitando essas divisões no texto kantiano, podemos especificar as seções fundamentais para a aplicação dos nossos critérios de leitura e interpretação. Considerações finais Nossa proposta de leitura e interpretação consiste em explicitar a utilização e a função dos conceitos de ‘valor absoluto da boa vontade’, ‘valor moral do dever’ e ‘valor absoluto da racionalidade’ na análise kantiana dos juízos racionais comuns acerca da moralidade. No entanto, principal a virtude dessa proposta está em desvincular a fundamentação kantiana da moral de uma possível ética dos valores. Neste sentido, portanto, nossa proposta de leitura e interpretação consiste em apresentar esses conceitos kantianos, mostrar que eles estão relacionados a três argumentos distintos da Fundamentação e, ainda que esses conceitos sejam usados em argumentos distintos, mostrar que eles exercem a mesma função, a saber, indicar a necessidade e universalidade da atividade prática da razão pura chamada boa vontade.

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SOBRE A IMORTÂNCIA E UTILIDADE DO CETICISMO FILOSÓFICO NA MODERNIDADE Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann 1. Introdução Em uma determinada interpretação, o ceticismo filosófico é retratado como uma teoria filosófica estéril e inútil ou, no dizer de Verdan, como o “parente pobre da filosofia”. Neste capítulo apresento algumas possíveis razões para explicar esse mal-entendido e enfatizar os aspectos positivos da crítica ao conhecimento humano empreendida pelo cético, especialmente na modernidade. Em seguida, listo várias contribuições dos céticos modernos ao seu e ao nosso tempo, tais como o combate à censura e ao argumento baseado na autoridade; a fundamentação para um tratado de tolerância entre todos os homens; a consideração e o respeito pelo modo de agir e pensar dos animais; e o questionamento crítico das crenças populares e das teorias científicas consagradas. Não discuto, contudo, se todas essas conseqüências seguem-se necessariamente do ceticismo ou de um determinado tipo de ceticismo ou se, no caso dos modernos, foram puramente casuais. Também não analiso aqui se os céticos em geral estavam conscientes das contribuições que o seu ceticismo iria legar à posteridade. Qual é a utilidade do ceticismo? O seu estudo tem alguma importância para a filosofia e para as demais áreas do saber? As suas ideias não estariam em oposição ao ideal de busca pela verdade? Essas e outras questões são levantadas e debatidas nos meios acadêmicos, filosóficos e mesmo na nossa vida social. Mas, antes de tentarmos respondê-las, é fundamental definirmos o ceticismo filosófico, tomando por base a concepção proposta pelos céticos da antiguidade. Em muitos contextos, o ceticismo está relacionado ao pessimismo, à falta de esperança em encontrar a verdade ou à incapacidade de conhecimento. Frequentemente nos deparamos com ideias desse tipo em jornais e revistas quando, por exemplo, consideram uma pessoa cética porque não acredita numa solução para um determinado problema. Mesmo em manuais e histórias da filosofia podemos encontrar tais concepções2. Essas noções podem ter sido influenciadas por muitos filósofos e pensadores modernos que, para marcar oposição ao ceticismo renascido nos séculos XVI e XVII, constantemente atacavam e denegriam a seita com rótulos de inúmeros tipos, incluindo o de ateus. Para citar apenas dois exemplos, os padres Marin Mersenne e François Garasse os consideravam ímpios, libertinos e inimigos da ciência e da religião3. 2 Veja, por exemplo, o “Convite à filosofia” de Marilena Chauí (1998, p. 75), “Filosofando”, de Maria L. Aranha e Maria P. Martins (1992, p. 51), e a “História da Filosofia” de Padovani & Castagnola (1993, p. 154). 3 O primeiro em “A verdade das ciências contra os céticos ou pirrônicos” (1625) e o segundo em “A

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Entretanto, as concepções relacionadas à negação do conhecimento, da ciência e das crenças em geral não corresponde ao propósito do ceticismo, tal como foi formulado na Grécia e readaptado aos tempos modernos. O termo “ceticismo” vem do grego sképsis, que tem significado próximo a “percepção pela vista”, “observação”, “consideração” e, num sentido figurado, “exame”, “reflexão”, “especulação”. Ora, se o sentido originário do ceticismo diz respeito ao exame e investigação, é certo que ele não poderia ser confundido com negação do conhecimento ou renúncia à ciência. Pois aquele que investiga quer a verdade, deseja obter ciência verdadeira, procura por respostas. Caso contrário, não haveria porque investigar e a busca por respostas não faria o menor sentido ao cético. Mas, seguindo o seu conceito original, o ceticismo parece estar próximo do propósito da filosofia, que se caracteriza pelo amor à verdade e pela busca do conhecimento, ainda que muitas doutrinas filosóficas julguem já ter encontrado algum tipo de conhecimento verdadeiro. 2. Breve histórico O ceticismo surgiu na Grécia Antiga com Pirro de Élis (aprox. 360-270 a.C.). Por isso, muitas vezes o ceticismo é tomado como sinônimo de pirronismo. Sobre esse filósofo temos pouca informação e as que temos disponíveis nem sempre são totalmente confiáveis. Pirro não nos deixou qualquer escrito e aparentemente destinou a sua filosofia a questões da vida prática, sem se ater a problemas epistemológicos4. O fim do seu ceticismo, segundo os seus biógrafos, era o de alcançar a serenidade, a tranqüilidade da mente, ao contrário dos chamados dogmáticos, que se desesperam por não ter encontrado a verdade. A filosofia cética, em resumo, é a filosofia da dúvida. O propósito do cético é o de problematizar todo tipo de conhecimento que se apresente com o título de verdadeiro, não para meramente satisfazer-se com o estado dubitativo, mas a fim de atingir a tranqüilidade da alma ou espírito, pelo menos com relação ao cético antigo. O cético primeiramente parte da investigação (do grego zétesis) de um assunto qualquer e nele encontra o conflito de opiniões (diaphonia), isto é, argumentos a favor e contra tal controvérsia. Deste conflito, ele é levado à suspensão de juízo (epoché), visto que não pode assentir nem na proposição a favor de determinada ideia nem contra. Por fim, em vez de desesperar-se na busca pela verdade, o cético encontra na alma a tranqüilidade (ataraxia), a conformação talvez, ou mesmo a maturidade, por perceber que, para todo argumento é possível levantar um oposto. Este estado de espírito é também representado pela adiaphoria, que é traduzido por indiferença da mente. doutrina curiosa dos belos espíritos desses tempos” (1624). 4 Vários comentadores sustentam essa tese. Veja por exemplo Verdan (1998, p. 20) e

Bolzani (1998, p. 61).

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Embora o título de pai do ceticismo seja atribuído a Pirro, o propósito de tudo investigar e de manter o juízo em suspensão, como se estivesse equilibrado numa balança por argumentos opostos, já fora formulado de alguma maneira por alguns filósofos antes dele, especialmente por Sócrates (469–399 a.C.). A Sócrates atribui-se a frase: “só sei que nada sei”. A ideia, a princípio, teria que ser recusada pelo cético por provocar contradição, ou seja, por enunciar, com convicção, que se sabe alguma coisa: a saber, que “nada se sabe”. Analisando criteriosamente, uma afirmação dessas colocaria todo o ideal cético de prudência, de comedimento, de dúvida universal por água abaixo, pois nesse caso o fim da sua filosofia teria sido alcançado: o de nada saber. Além disso, desta forma a caracterização do ceticismo como incapacidade de conhecer a verdade talvez fizesse sentido. Mas o cético, diz Sexto Empírico, o maior compilador do ceticismo antigo (prov. séc. II d.C.), não emite juízos assertivos, pois é justamente essa a crítica que ele faz ao dogmático (1997, cap. VII). Um ceticismo como esse, que não pode emitir qualquer juízo, certeza, opinião que seja, pode parecer a muitos (e de fato pareceu) que o cético deveria tornar-se um ser incapaz de agir, pensar, tomar decisões, posicionar-se a respeito das situações mais variadas da nossa vida comum. Entretanto, o propósito do cético antigo é precisamente o de questionar os juízos que emitimos deliberadamente sobre a realidade das coisas, e não o de estender a dúvida sobre as coisas inevitáveis, dada pelas aparências das coisas, lembra ainda Sexto (1997, cap. XI). Assim, se um raciocínio se impõe a mim, eu posso aceitá-lo com base nas suas aparências. Da mesma forma, eu posso seguir as leis e os costumes do lugar em que vivo sem a pretensão de achar que elas são ideais ou as melhores a serem adotadas por todos os homens. E mesmo com relação às ideias provenientes dos sentidos, que se impõem a mim, eu apenas discuto se a sua aparência corresponde ao que elas realmente são, não se ela me parece da forma como eu a apreendo. Em resumo, o que o cético põe em questão diz respeito apenas às opiniões mal-fundamentadas sobre as coisas e não à forma como elas nos aparecem. E quanto a Sócrates? Ele não teria percebido o problema que a sua posição geraria? Primeiramente, a frase que se atribui a ele não se encontra em qualquer escrito que temos atualmente5, por isso é difícil saber se ele realmente chegou a formular tal paradoxo. Em segundo lugar, o propósito de Sócrates, assim como o de Pirro, não parecia ser o de colocar as suas próprias ideias sob exame epistemológico a fim de encontrar a verdade, mas o relato sincero de um pensador que acreditava no diálogo como um meio de talvez formar algum conhecimen5 A formulação mais próxima a essa está na “Defesa de Sócrates” de Platão, 21d: “parece que sou um pouco mais sábio que ele [isto é, aquele que julga saber] exatamente em não supor que saiba o que não sei”.

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to, especialmente sobre juízos morais6. Desta forma, o ceticismo de Sócrates parece ser mais um método pedagógico do que epistemológico. É nada mais do que uma forma de conscientizar as pessoas – especialmente os sofistas – de que devemos partir do reconhecimento humilde de que não estamos em posse de qualquer verdade, mas que devemos procurá-la juntos por meio da boa vontade e conversação. Em todo caso, o pensamento de Sócrates foi bastante utilizado para fundamentar o da escola do seu principal discípulo Platão7. O ceticismo moderno Após um longo período afastado dos grandes debates acadêmicos, o ceticismo renasce com grande vigor nos séculos XVI e XVII da nossa era e ocupa papel central na história do conhecimento. Historiadores da filosofia apontam vários fatores que teriam contribuído para esse renascimento; a Reforma e a Contra-Reforma, a descoberta do Novo Mundo e o advento da ciência moderna parecem estar entre os principais. Embora a função principal do ceticismo neste período continue sendo a de problematizar todo tipo de conhecimento, veremos que o seu uso possibilitou a crítica ao pensamento extremista da época, que muitas vezes se uniu à intolerância e favoreceu a perseguição de ideias. Neste sentido, o ceticismo atuou como fator de desenvolvimento, e não como um entrave ao conhecimento humano. As principais áreas em que as ideias céticas parecem ter servido de forma eficiente são o combate à censura e às crenças supersticiosas, a formação de uma base de tolerância universal, a renúncia da autoridade constituída, a valorização de outras culturas, a liberdade da investigação científica e até o respeito pelas criaturas irracionais. Michel de Montaigne foi o maior sistematizador do ceticismo do século XVI. Sob uma perspectiva livre e sincera, o filósofo criou um novo estilo literário: o de escrever em forma de ensaios. Sempre em primeira pessoa, Montaigne escrevia as suas percepções atuais: as contradições das ideias que se impunham a ele, as suas indignações perante as injustiças que presenciava, os absurdos que encontrava na filosofia aristotélica tradicional. Uma das maiores inovações foi a de alterar o fim do ceticismo, tornando-o compatível com o cristianismo: após duvidar de tudo e suspender o juízo sobre as questões que ultrapassam a capacidade humana, em vez de alcançar a tranqüilidade de espírito como o cético pirrônico, ele encontra a fé, como salvaguarda das suas ansiedades. 6 Tomo como base a leitura de Richard Bett no artigo “Socrates and Skepticism” (2006). 7 Platão criou a Academia que, depois de sua morte, acabou voltando-se para o ceticismo. Os céticos da escola de Pirro, porém, jamais os viram como membros da mesma seita, daí a divisão entre os céticos e os acadêmicos. Comento sobre algumas diferenças entre eles na minha tese de doutorado “Hume e o Ceticismo Moderno” (2010), seção 1.2.1.

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Os seguidores de Montaigne seguiram essa fórmula, pois de outro modo o ceticismo pirrônico dificilmente seria compatibilizado com a filosofia cristã8. O padre Pierre Charron e La Mothe Le Vayer, seus principais discípulos, relacionavam, assim como Montaigne, o ceticismo com a humildade do cristão, que reconhece a sua impotência em dar respostas a todas as questões do universo, sem esquecer da moderação do espírito de ser prudente, comedido e cauteloso nas investigações. Esta filosofia, na perspectiva destes críticos, é a mais apropriada para combater a arrogância dos que se julgam “donos da verdade” e o orgulho dos que querem igualar a sua sabedoria com a de Deus. Para Montaigne, o sábio não é aquele que julga estar em posse do verdadeiro conhecimento, mas aquele que reconhece estar ainda muito distante deste pretenso saber. No ensaio “A apologia de Raymond Sebond” ele compara o verdadeiro sábio, isto é, o “sábio cético” a uma espiga de trigo: Aconteceu aos verdadeiros sábios o que se verifica com as espigas de trigo, as quais se erguem orgulhosamente enquanto vazias e, quando se enchem e amadurece o grão, se inclinam e dobram humildemente. Assim esses homens, depois de tudo terem experimentado, sondado e nada haverem encontrado nesse amontoado considerável de coisas tão diversas, renunciaram à sua presunção e reconheceram a sua insignificância (Montaigne, 1972, p. 232). O orgulho do ser humano é a base da discórdia, é o fundamento da intolerância, é o que legitima as mais terríveis guerras da humanidade. De fato, essa era a cena que os filósofos presenciavam nos séculos XVI, XVII e XVIII, especialmente na França9. Em 1685, o absolutista Luís XIV revogou o Edito de Nantes, que concedia aos protestantes calvinistas o direito (limitado, porém) ao culto. Com tal atitude, as guerras voltaram a assolar a França; foi estipulada pena de morte aos pastores em exercício, galés perpétuas para os homens e prisão para as mulheres. Além disso, qualquer praticante da religião calvinista não tinha estado civil nem direito à herança. Toda guerra, porém, precisa de adversários com força compatível a dos proponentes, e os principais inimigos da Contra-Reforma não eram os pobres camponeses ou gente simples que pouco entendia de teologia, mas os líderes dos novos credos. Entre esses também havia pouca tolerância com relação às ideias contrárias às suas. Calvino, por exemplo, perseguiu e matou Miguel Servet, por 8 Defendo que houve uma transformação radical das bases do ceticismo nos tempos modernos, e essa transformação nos impediria de considerar Montaigne e seus seguidores “pirrônicos” em sentido estrito. Também não seriam, de acordo com essa visão, puramente acadêmicos, pois suas ideias divergem consideravelmente das dos seguidores de Platão. Sobre isso, consultar o último item do capítulo 3 da minha tese de doutoramento. 9 Talvez seja essa a razão de existirem muito mais céticos na França do que nos outros países nesse período, incluindo a Inglaterra, pois mesmo antes de Luís XIV cenas bárbaras eram constantemente presenciadas pelos franceses, como no famoso massacre de São Bartolomeu.

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negar o dogma da Santíssima Trindade e por posicionar-se contra o batismo de crianças. Martinho Lutero se mostrou não menos intolerante para com os judeus, no tratado “Sobre os judeus e suas mentiras”. Diante deste quadro, depois de Montaigne e seus seguidores, aparece Pierre Bayle, outro simpático da filosofia cética. Bayle escreve, em 1686-7, o Comentário Filosófico ou Tratado de Tolerância Universal, antes do famoso tratado de Locke sobre o mesmo tema. Estabelecido que o conhecimento da verdade ultrapassa a capacidade humana, Bayle sugere que basta a cada um seguir o que lhe parece verdadeiro com base no sentimento interno, isto é, na consciência. Isso é o suficiente para garantir a boa convivência social na sociedade. No século XVIII Voltaire também escreveu o seu Tratado sobre a Tolerância, inspirado no famoso caso Jean Callas. Callas era um velho comerciante calvinista que foi acusado à morte na roda depois de ter os membros quebrados. A acusação era a de ter matado o próprio filho, mas as mesmas autoridades que o condenaram acabaram por absolvê-lo anos mais tarde por falta de provas. Voltaire, em sua defesa dos Callas, aproveita a ocasião para argumentar em favor da liberdade de pensamento, do direito ao culto e da obediência às leis, independentemente do credo de cada cidadão. Mas como! Cada cidadão só deverá acreditar em sua razão e pensar o que essa razão esclarecida ou enganada lhe ditar? Exatamente, contanto que ele não perturbe a ordem, pois não depende do homem acreditar ou não acreditar, mas depende dele respeitar os costumes de sua pátria diz ele no capítulo XI (Voltaire, 2000, p. 63). Eis o lema cético revivido com uma boa dose da doutrina iluminista: sigamos as leis e os costumes do nosso país, mas deixemos cada um raciocinar por sua própria conta. Além da intolerância, o ceticismo serviu para atacar várias formas de censura institucional daquele tempo, pois a proibição parece ser algo totalmente incompatível com o pensamento crítico do cético. Montaigne denunciava os crimes contra a consciência, levados a cabo tanto por católicos quanto por protestantes. Os primeiros eram vistos como intolerantes e os últimos como “inovadores perigosos”, que tentavam subverter a ordem estabelecida. Em “Dos coxos”, ele fala dos que o obrigavam a abrir mão da liberdade cética de duvidar e a tomar partido por um dos lados10: “proíbem-me a dúvida sob pena de injúrias, é um novo método de persuasão; mas não será a socos que me hão de impor uma orientação” (Montaigne, 1972, p. 187). 10 Montaigne, porém, sempre se reconheceu católico. Na minha leitura, ele seguia a religião estabelecida pelo seu país, assim como o cético segue as leis sem questioná-las quanto a sua utilidade prática. Independentemente da sua crença sincera em Deus (que eu também julgo muito provável), Montaigne parecia seguir a religião católica simplesmente porque nasceu em um país onde essa era a religião adotada. “Somos católicos assim como somos perigordinos ou alemães”, diz o francês de Périgord na “Apologia de Raymond Sebond” (1972, vol. I, p. 207).

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Muitos filósofos modernos, na tentativa de burlar a censura, escreviam em forma de pseudônimos, com datas modificadas e geralmente enviavam seus manuscritos aos amigos antes de decidirem-se pela publicação. La Mothe Le Vayer, um dos mais perigosos céticos e libertinos da época, escrevia sob o pseudônimo de Orasius Tubero ou Tubertus Ocella. De fato, seus escritos eram demasiado polêmicos, pois questionavam até mesmo atitudes das autoridades real e religiosa. No diálogo Da ignorância louvável ele condena o papa Gregório, que ousou proibir os livros de Cícero e Paulo X, que declarou herético todo aquele que simplesmente professasse a palavra “academia” ou “universidade”. E no Discurso para mostrar que as dúvidas da filosofia cética são de grande utilidade nas ciências questiona-se sobre a razoabilidade de condenarem obras antigas à fogueira. Pois se fizermos uma interpretação literal sobre qualquer texto, encontraremos também nas próprias Escrituras exemplos de ação que não devem ser seguidos, como adultério, fraticídio, sodomia, etc. Uma das funções mais importantes do ceticismo na modernidade foi a de negar a autoridade externa e engrandecer a liberdade de pensamento. Uma ideia não será verdadeira simplesmente pelo fato de ter sido enunciada por um papa, por um rei ou por Aristóteles. Mas todas as ideias são de fundamental importância para o investigador cauteloso avaliar a razoabilidade de cada uma delas, confrontando umas às outras. Daí a crítica à censura e a crítica ao peso da autoridade. Não importa a procedência de um pensamento, não importa se o que ele diz contraria nossos preconceitos. Além disso, se nenhuma dessas ideias tem o mérito de ser verdadeira – e é justamente por isso que não se pode condenar uma ideia em favor de outra – nada mais resta a um homem sincero senão o consentimento às suas convicções e opiniões pessoais. De nada adiantaria me darem socos, diria Montaigne, pois mesmo que me arrancassem uma confissão qualquer, essa seria composta de palavras e não dos meus sentimentos internos. O que produz convicção em alguém não é o conteúdo de uma ideia, mas a fé – e contra esta, nenhuma autoridade poderá interferir. Além da diversidade de religiões e costumes encontrados entre os europeus, a descoberta do Novo Mundo trouxe muito mais argumentos ao cético moderno. Os índios do Brasil e do Canadá eram considerados estúpidos pelos desbravadores, por viverem de maneira muito simples, caçando, pescando ou por andarem nus, sem distinção de sexo. Entretanto, mesmo sem tantos papéis, leis e processos, o Novo Mundo parecia muito mais bem governado do que o Antigo, nota Montaigne. Colombo deveria ter tirado vantagem do modelo de vida inocente e puro, em vez de impor as “leis corrompidas” em vigor, despovoando e desolando de forma desumana o novo hemisfério, acrescenta o seu discípulo La Mothe Le Vayer. As grandes novidades que se impunham ao homem moderno ajudaram os 47


céticos a fundamentar a concepção de que as regras da moralidade são sempre relativas. Se a beleza fosse uma coisa natural, todos a reconheceríamos, diz Montaigne na sua Apologia. Mas há muitas outras concepções de beleza: os índios se pintam e se enchem de argolas para parecerem belos, os peruanos e orientais preferem aumentar as orelhas, os espanhóis cultuam a magreza e os italianos desejam ser gordos e atarracados. O resultado deste confronto de ideias culturais empreendido pelos céticos acabou indo além da suspensão de juízo acerca de qual seria a melhor maneira de se viver em sociedade. Pois o cético, ao enfatizar e valorizar as culturas até então consideradas inferiores, concede a elas igual espaço para apresentar e defender seus pontos de vista, isto é, dá a elas o “direito à voz”. E essa concessão fez com que muitos chegassem a se perguntar se a vida de um índio ou de um selvagem poderia ser melhor do que a de um homem considerado civilizado. “Conheci cem artesão e cem lavradores mais prudentes e felizes do que professores universitários”, diz Montaigne. Em seguida acrescenta: “com os primeiros gostaria de me parecer” (1972, p. 210). Esse louvor ao simples, ao natural é constante nos escritos de Montaigne. Quanto mais próximo da natureza está o homem, mais puro ele é, e quanto mais ele a ultrapassa, mais anormal se torna. O melhor meio de averiguarmos o que a natureza espera de nós está na análise da vida e do comportamento dos animais. Montaigne e seus seguidores céticos levantavam hipóteses para questionar a tese aristotélica de que a razão é o que torna o homem superior aos animais. Primeiramente, questionavam se os animais também não são dotados de algum tipo de razão. Se não conseguimos penetrar nos pensamentos dos animais, eles também não penetram nos nossos, e podem nos achar tão irracionais quanto nós os consideramos, diz Montaigne. O filósofo levanta hipóteses ainda mais ousadas como a de que atuns tem um certo conhecimento de geometria, aritmética e astronomia, quando se reúnem em forma de cubo ou quando se escondem no solstício do inverno até o próximo equinócio, e supõe que os animais sonham e imaginam coisas como nós, como o cão, que persegue a lebre em sonhos e grunhe para homens que não existem. Seguindo esta orientação, Pierre Charron diz que o homem pensa que pode comandar e domesticar os animais a seu bel-prazer, mas se engana, pois no geral os homens temem os bichos mais do que o inverso. E se pensa que os bichos são passíveis de servirem de alimento a nós, os bichos também nos matam e nos comem e, além disso, o homem tem a desvantagem de poder servir de alimento para o seu próprio semelhante! Nem mais livre que os animais é o homem, pois os bichos não escravizam seus descendentes nem pela força nem de forma voluntária como nós, completa. Nossa razão, para Montaigne, nada mais é do que o nosso instinto. A natureza deu a cada ser os meios para se proteger: escamas aos peixes, dentes aos 48


leões e chifres aos touros e os ensinou a nadar, correr, cantar. Já o homem não faz nada sem aprendizado, a não ser chorar. Por isso a natureza o suplantou com a capacidade de pensar e criar, para que se iguale às demais criaturas do universo. A identificação da razão enquanto instinto é mais claramente demonstrada por David Hume no século XVIII. No seu Tratado da Natureza Humana (seção “Da razão dos animais”), o filósofo escocês declara: “a razão é nada mais do que um maravilhoso e ininteligível instinto de nossas almas”. E, com esse reconhecimento, acrescenta que “a razão é, e deve ser, escrava das paixões” (2001, p. 451), transformando aquilo que os filósofos mais utilizavam para se diferenciar dos animais em uma mera ferramenta fornecida pela natureza para a nossa sobrevivência11. Daí a valorização dos sentimentos naturais, tão utilizado hoje entre os que lutam na defesa dos direitos dos animais. Os que usam a razão para tudo explicar e normatizar, também acreditam que, com ela, podem predizer, construir hipóteses e teorias científicas bem fundamentadas. Mas, para formular predições, o raciocínio muitas vezes toma por certo o aparente e o enganoso. Daí surgem as teorias malogradas da ciência e as crenças e superstições populares sem base experimental. A ciência, o grande pilar do conhecimento ocidental, em vez de trazer libertação, acabou escravizando ainda mais o homem a doenças imaginárias, diz Montaigne. Pela cor do nosso rosto, diz ele, descobriam-se doenças catarrais, pelo calor da estação, explicavam o aparecimento de febres e pela linha da nossa mão esquerda pressagiavam indisposições. Mesmo entre os historiadores, várias relações de causa e efeito eram extraídas das observações da natureza e estas se enraizavam na forma de crenças populares. Uma delas diz respeito à aparição dos cometas: toda vez que um cometa aparecia na Terra, a fome e a mortalidade logo apareciam. Logo, parecia evidente que um fenômeno estava ligado ao outro. Bayle, entretanto, escreve os Pensamentos sobre o Cometa em 1682 para atacar essas evidências. Toda informação que podemos retirar da experiência, diz ele, se reduz meramente a isto: todas as vezes que um cometa aparece, tais e tais males se sucederam no mundo. Mas, dizer que uma coisa leva a outra, é raciocinar de modo apressado12. Para Montaigne, a ousadia e a falta de cautela na análise dos fatos representam os maiores perigos para o conhecimento humano e para a fé. No ensaio “De como é preciso prudência no julgar os desígnios da Providência” ele ataca todos aqueles que pretendem penetrar nos desígnios da divindade por meios que não nos são acessíveis. Desta forma, diz ele, não temos como avaliar se são verdadeiras as “fábulas” contadas por alquimistas, profetas, astrólogos, quiromantes e mé11 J. C. Morelli Matos mostra a proximidade deste pensamento de Hume com o de Darwin (2007). 12 A crítica sistemática da noção de causalidade – isto é, a crença de que observamos pela experiência sensível uma coisa produzir outra – foi elaborada alguns anos depois por Hume, que era leitor de Bayle. Sobre isso, ver o “Tratado” de Hume, livro I, parte III.

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dicos, pois os desmentidos entre uns e outros são constantes. O que se percebe nos comentários acima é que havia uma confusão, nos séculos XVI e XVII, entre o que era ciência e o que era superstição, ou entre hipóteses confirmadas por fatos e conjecturas fracas baseadas na análise superficial dos fenômenos sensíveis. Talvez muitos pensem que todos esses problemas poderiam ser resolvidos com a demarcação das ciências, que foi feita de modo mais sistemático nos séculos seguintes. Mas não restam dúvidas de que mesmo na ciência contemporânea, o relativismo e a incerteza perduram. Thomas Kuhn e Karl Popper, por exemplo, são dois nomes muito conhecidos hoje por causa das críticas empreendidas aos entusiastas do desenvolvimento científico baseado na análise objetiva dos fatos e da experiência sensível. Da mesma forma, na modernidade, os céticos atacavam o entusiasmo dos aristotélicos e seus métodos pré-concebidos de conduzir o pensamento pela análise lógica. La Mothe Le Vayer, em seu discurso já citado, afirma que o ceticismo é fundamental para evitarmos as “armadilhas” dos lógicos que acreditam raciocinar de forma objetiva e isenta de preconceitos. David Hume, no século seguinte, defende que uma boa dose de ceticismo deve acompanhar as ciências, para abater o orgulho dos dogmáticos. Não nos parece que o cético moderno, nem mesmo os mais determinados como La Mothe Le Vayer, tenha menosprezado o avanço das ciências ou mesmo desencorajado a busca do conhecimento científico. O seu questionamento entretanto permanece, pois ele indica que há contradição nestas formas de pensar, e estas não podem ser negligenciadas pois podem nos levar a problemas insolúveis na própria ciência, além de conduzirem a mente humana por um caminho orientado por passos previamente estabelecidos, tornando nossa visão unilateral e o espírito dos homens presunçoso, dogmático, descomedido. Havia uma maneira de equilibrar o ceticismo com a confiança no desenvolvimento das ciências desde a modernidade: aceitar como aparente ou provável13 as teorias trazidas à tona por Newton, Galileu e outros, e manter, ao mesmo tempo, o espírito crítico e questionador com relação às certezas dos cientistas pouco cautelosos. O filósofo inglês Joseph Glanvill escreveu um livro sobre o ceticismo científico para criticar os aristotélicos e as pretensões da ciência em atingir dogmas sobre questões que ultrapassam a nossa capacidade de compreensão. Por outro lado, ele mantém esperanças de que essa ciência pode trazer avanços à humanidade, especialmente no que se refere às questões relacionadas à vida prática. Ele prenuncia, em 1661, que um dia a ciência poderá fazer com que realizemos uma viagem à lua, compremos um par de asas para voar para 13 Enquanto o cético pirrônico aceita apenas as aparências para se conduzir na vida como visto acima, o acadêmico segue a probabilidade para conduzir as suas investigações, ainda sustentando, porém, a suspensão de juízo sobre a realidade das coisas.

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as regiões mais remotas do planeta e troquemos ideias à distância com outros povos. Hume, que se dizia cético moderado, parece seguir um raciocínio semelhante: não podemos evitar de fazer afirmações e lançar juízos sobre os dados retirados da experiência sensível, mas se elevarmos essas mesmas questões para além do que nos aparece aos sentidos, discursaremos sobre coisas ininteligíveis, que se encontram muito além da capacidade humana14. O ceticismo em geral apresenta-se como uma ferramenta útil para o aperfeiçoamento do conhecimento humano. Embora constantemente surjam muitas interpretações divergentes sobre o seu alcance, validade ou benefício para a filosofia, em todo procedimento cético-filosófico existe um alicerce fundamental que deve direcionar qualquer espécie de investigação para a busca de certezas, seja este ceticismo pirrônico ou moderado, antigo ou moderno, religioso ou científico. Tal alicerce, embora não se baseie em razões definitivas, se caracteriza de vários modos, como fazendo uso de noções provisórias, convenções ou acordos com base nas aparências, em dar assentimento ao que se apresenta ao investigador como mais provável ou ainda se apegando à fé religiosa sem base racional.

14 O ceticismo de Hume, a meu ver, se afasta consideravelmente do pirrônico, por julgar que podemos lançar juízos sobre questões relativas à experiência sensível, além de outras diferenças. Assim mesmo, o seu ceticismo moderado tem uma função útil e questionadora na investigação filosófica e científica, como a de perguntar-se pelas causas gerais de nossas crenças e juízos.

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INTERPRETAÇÃO DOS SENTIDOS DO “TEMPO” EM ARISTÓTELES Fernando Maurício da Silva Introdução Em nossa língua o termo ‘ler’, do latim legere, guarda parentesco com ‘lei’, também do latim, lege. A lei é a escritura ou registro que dá sentido a conduta de algo e, deste modo, pode se fixar como aquilo que há a ser lido e como tal não pode deixar de ser lido. Assim, o que a lei faz é e-leger, seja a conduta, o governante, o território, etc. O ler implica em lei quanto ao fato de fixar um sentido. Podemos dizer “ler o futuro” e neste caso não estamos nem diante de uma escritura, sequer de algo presente. Quando falamos “ele leu o ódio em seu rosto” aplicamos o termo para nos referir a um sentido possível ali manifesto. Mas não só neste caso notamos que o termo “ler” não remete necessariamente ao escrito: podemos dizer “ler o futuro”, “ler o semblante”, mas também “fulano vai ler a mensagem”, caso em que “ler” significar falar, orar. Daí ser possível o termo “lero”, que apesar de derivar de “ler” e não de “falar”, significa conversa mole. Assim, se o lego é aquilo que elege o que deve ser tomado, o legere é o que mostra ou deixa legível (legibile) o que pode ser eleito. A expressão “de lés a lés”, oriunda do francês, expressa a noção de colocar lado a lado, o que remete ao sentido do termo grego lógos, como dispor ou enfileirar ordenadamente. No grego, o substantivo “palavra” (lógos) deriva do verbo “dizer” (legein), onde o lógos é o elegido enquanto o legein é o ato de eleger ou pegar, e o que se elege ou se pega é sempre um item ou signo incluso num conjunto legível de sentido. Daí o parentesco direto com o latim legere. A experiência do proferir um discurso corresponde à capacidade de eleger no léxico, dado que é a leitura que o leitor tem acesso, os termos que melhor expressam o sentido daquilo que se quer tornar legível. Esta legibilidade é a lei que torna o ler possível, de modo que o ler consiste em compreender no texto por que sua legibilidade é supostamente possível apenas naquela linguagem. Portanto, não só um texto precisa ser escrito legivelmente, ou seja, elegendo bem de lés a lés sua ordenação, mas também o ler precisa encontrar sua legibilidade, precisa saber detectar o que há a ser eleito como indicador de compreensão. Chama-se interpretação a este ler que elege o sentido daquilo que já compreende implicitamente. Porém a interpretação que se constrói junto à leitura deve ser “junto” a ela e não de qualquer modo. Como a interpretação pode ser uma construção não alheia ao discurso lido? De que modo é possível interpretar um discurso sem colo53


car nele idéias alheias, mas manter-se junto ao discurso em questão? O termo “interpretar” significa ler nas entrelinhas, implica em ler o que se diz além do que se escreve. Não consiste em julgar o texto lido, comentá-lo ou posicionar-se sobre ele. Todo texto e toda palavra possui um étumos a ser lido. Ainda que ler um discurso seja construir um discurso sobre ele, este discurso do discurso, esta logologia pode sacar-se a partir do próprio ato de leitura e não desde outros atos oriundos de fora do discurso. Neste caso, interpretar é ler o legado. Aristóteles foi o filósofo que nos forneceu o legado da interpretação. Talvez por isso mesmo sua obra esteja entre aquelas cujos problemas de interpretação “sempre foram e sempre serão colocados” junto a suas questões filosóficas mais essenciais. Assim se justifica a excelente oportunidade que seus escritos oferecem para o exercício filosófico de interpretação. Pode-se tomar como exemplo os sentidos com que Aristóteles utiliza o termo “tempo”, já que pelo menos se pode distinguir seu uso em Categorias, na Física e na Metafísica. Como interpretar estes usos? Desde onde deve partir a interpretação e como orientar-se na leitura do texto? (1) Barnes entende que interpretar é interpretar a ordem de leitura dos textos. (2) A Hermenêutica heideggeriana move-se contra a história medieval das interpretações em termos de sua desconstrução. (3) Pierre Aubenque chama Aristóteles de filósofo Aporético e não sistemático. (4) Andrónico de Rodes classificou o conjunto das obras a partir do Organon, incluindo Categorias entre os textos de Lógica. (5) A modernidade entenderá que Categorias consiste na questão dos sentidos do termo “ser”, ou como obra de gramática ou de Lógica fundada na ontologia. (6) Brentano defenderá que o sentido ontológico do ser se reduz a muitos modos, ato e potência, verdadeiro e falso, acidental e necessário, e “por si”, este último capaz de incluir os demais sentidos. Quanto aos sentidos do termo “tempo”, a interpretação deve partir da Física, por ser a obra que levanta a questão de sua essência, cuja análise exigirá uma interpretação dos sentidos do termo. O método consistirá em (1) analisar os enunciados, (2) derivar deles seus problemas fundamentais para a definição de “tempo”, (3) investigar nas demais obras os diversos sentidos do termo e (4) Interpretar a Física a partir do contexto das obras. Isto significa que Interpretar é ler as entrelinhas, mas as entrelinhas de um texto não é um contexto alheio, mas os outros textos, o que não significa, porém, que toda a interpretação alcance o interior do texto, mas, inversamente, cria um texto exterior que consiste na elaboração da gramática possível de leitura do conjunto dos textos de um autor. Do mesmo modo como lembrar de palavras passadas é pronunciá-las mais uma vez, interpretar é reconstruir o sentido que significações anteriores solicitam e permitem eleger. Por isso se disse que Interpretar é ler nas entrelinhas o legado histórico de um sentido exposto no conjunto imediato dos textos. 54


1. Primeiro momento da interpretação: o sentido do problema 1.1. A Física inicia sua argumentação sobre o tempo enunciando duas teses principais, chamadas “opiniões mais respeitadas” (endoxas): 1°. Só o presente existe de fato, de modo que o passado e o futuro, não sendo presentes, não existem efetivamente. 2°. Só o ente presente existe efetivamente, de modo que o ente é aquilo que existe em determinado lugar e o não-ser a ausência atual de um ente, ou seja, o que não existe em lugar algum (Górgias). Portanto, “uns dizem, que ele (o tempo) é o movimento do universo, outros que ele é a própria esfera celeste” (Phys. 218 a 32-218 b1). A crítica a estas endoxas consiste em mostrar como o tempo e o movimento não podem ser divididos tal como se faz com o lugar. A relação de todo e parte é outra por se tratar de um contínuo, e não de um elemento fixo, como ocorre na relação ponto-reta. Porém, Aristóteles questiona como o tempo, à diferença do movimento, parece estar em tudo (Phys. 223 a 16-18). Quanto a este primeiro problema, a Física fornecerá uma importante argumentação capaz de orientar uma interpretação dos sentidos do “tempo”. A solução inicia-se pela análise do Problema da relação tempo e alma (Phys 218-219), formulando-se duas aporias sobre a existência do tempo: (1) (a) o tempo não existe sem a mudança (Phys 218b31); (b) quando não percebemos mudança em nossa alma, o tempo é como se não tivesse passado; (c) une-se o instante de antes com o instante de depois, eliminando o intervalo, por ser livre de sensações; (d) assim, se o instante não é distinto, não existirá o tempo. (2) (a) é possível pensar que o tempo não ocorre quando (i) não percebemos mudança alguma; (ii) ou quando o estado da alma é indivisível (Phys 219 a27); (b) então, não há tempo sem mudança; (c) assim, o tempo não é movimento e nem existe sem ele. 1.2. Se uma interpretação deve iniciar pelo sentido de uma questão, é notório constatar que o tempo possui uma existência problemática para uma demonstração e para uma definição. Como demonstrar a existência do movimento e do tempo? Aqui inicia a interpretação: “O conhecimento das proposições imediatas é indemonstrável” (Anal post 72 b 18-20), com o que o processo de conhecimento não teria fim, dado que o pensamento não pode percorrer uma séria infinita (Anal post 83 b 5-6). Porém, estas proposições podem ser demonstradas de modo indireto, o que é chamado de demonstração elêntica, ou seja, por con55


trovérsia e caracterizada pela Confutação, demonstração da polivocidade do ente, polivocidade que possui dois sentidos: (a) multiplicidade categorial e (b) multiplicidade semântica-ontologica (quadripartida em categorial, ato e potência, verdadeiro e falso e ente necessário e acidental – de modo que a Física lida com esta diferença e se apóia principalmente na segunda). Na Física I Aristóteles refuta a tese de Parmênides – que somente o ente é e que o devir não é – dizendo que o “ente imóvel” não pode ser princípio, já que um princípio é sempre de alguma coisa distinta dele (Phys 185 a 3-5). Deste modo, por indução os entes físicos estão em movimento (Phys 185 a 12-14), pois ainda que a evidência do movimento fosse mera opinião ou imaginação, ainda assim haveria movimento, já que opinião e imaginação são movimentos (Phys 254 a27-30). Deste modo, não haveria uma simples diferença parmenídica entre ente e não-ente, pois “Corisco sentado” e “Corisco em pé” são ambos possíveis não como simultâneos, mas como sucessivos. A diferença entre ente e não-ente não pode ser simples porque o próprio ente não se diz de modo simples (Phys 186 a24-25). 1.3. Longe de fechar a investigação, a interpretação agora consiste em alargar a questão: quais os sentidos de ‘tempo’ e se há um que expresse sua essência? A solução a este problema começa na seguinte argumentação: (1) percebemos o tempo ao determiná-lo; (2) essa determinação ocorre quando determinamos o movimento; (3) que é determinado pelo anterior e posterior (Phys 219a 22-b1); (4) “que determinamos ao supô-los diferentes entre si e algo intermediário entre eles diverso” (Phys 219a 25-26). (5) Portanto, “o anterior e posterior no movimento é aquilo que, sendo em um momento qualquer, é movimento; seu ser próprio, entretanto, é diverso e não é movimento” (Phys 219a 19-20). 2. Segundo momento da interpretação: as categorizações do tempo 2.1. Interpretar é ler o conjunto dos textos e então assumir um sentido possível. Que diz Aristóteles sobre o tempo? Se na Metafísica os princípios Acadêmicos do Uno e do Dois são tratados do ponto de vista dos entes matemáticos (Met 987 b29-35), na Física I são discutidos como princípio de todos os entes. Os sentidos de ente e não-ente são segundo muitos modos e os entes naturais ou sensíveis são múltiplos em função do movimento. E uma vez que a propriedade fundamental do movimento é ser extático, ou seja, sair de um estado originário em direção de um final (Phys 222 b16), o que é possível pelo fato da substancia poder se gerar e corromper, então a substância pode re56


ceber ou perder atributos de quantidade, qualidade ou localidade, sem o que não seria possível predicar algo de algo. Contudo, a predicação de uma substância pode ser (a) feita analiticamente, caso em que a Categoria de Substância (ousia, também chamada de “o que é” (ti estín) ou “um isto” (tóde tí)) é necessária e as demais Categorias são possíveis; ou (b) feita fisicamente através de um sentido efetivo das Categorias, neste caso contingentes. Isto significa que somente a substância é indivíduo por ser uma Categoria indivisível do ente, em distinção a substância segunda (gêneros e espécies), aqueles que expressam a definição do sujeito (Cat. 2 a11-16). Contudo, no Zeta da Metafísica a substância primeira é a forma sobre a composição do indivíduo e não “este indivíduo” (Met 1037 a 5-6), de modo que uma ciência do inconstante somente seria possível sem a presença de um significado central em termos de “referente a um” (prós hen). Em Categorias, as diversas predicações se relacionam com a substância como “ser em”, na Metafísica Zeta como “referente a um”. Tenha ou não esta relação “referente a um” sempre uma primazia hierárquica sobre as outras Categorias, que neste caso obedeceriam à estrutura “algo de algo” e não “algo em algo” (conforme Gama da Metafísica), é o caso que no ente em sentido natural as diversas predicações são atributos que a substancia recebe sucessivamente (Phys 185 a 31-32). A dificuldade está em que a Física lida com a multiplicidade dos entes e com o ente móvel variável e, no que diz respeito à definição de tempo, esta é feita através da analogia entre movimento, alma e grandeza. Porém, se a analogia é uma relação de “igualdade entre proporções que envolvem ao menos quatro termos” diversos (Ética a Nin 1131 a 31-32), então não pode ser “relação a um” (prós hen), pois esta última é relação de desigualdade entre a Substância e demais Categorias, por exemplo, que as coisas saudáveis são ditas em relação à saúde. Não que seja analógico o ser do tempo ou sua definição, mas o método para chegar a sua definição depende da analogia. Dito de outro modo, o tempo não pode ser definido como “relação a Um” porque apesar de “seu substrato ser numericamente um, é especificamente dois” (Phys. 190 b10-13), já que o tempo advém do anterior que é não-ser e dirige-se a um posterior não-ser. O Um e o Ente são concomitantes e se implicam mutuamente (Met 1003 b26-27), de forma que o ente que se move e modifica seus atributos no tempo é um, como Corisco no Liceu e Corisco na Ágora é o mesmo quanto ao número e não quanto ao seu ser (Phys 219b). Portanto, assim como a relação entre ente e não-ente não é simples, também não há simplesmente o Um em si (Met 1001 a 29-30), pois “ente” e “um” são predicados universais tanto das substâncias, dos seus atributos, dos gêneros e das especificações. Contudo, dizemos que algo é uno porque sua substância é contínua ou indivisível no tempo (Met 1016 a6). Entretanto, novamente a dificuldade está em que o tempo é contínuo e forma uma 57


unidade, mas somente é percebido e especificado desde a divisão de suas partes que não-são. “O ser para um é o ser para um indivisível” (Met 1052 b15-16), mas o tempo é uma unidade contínua divisível em outros tempos. Aristóteles tratou da polivalência do Uno, do Ente e também do Bem, “que se dizem em igual número de modos” (Ética a Nic 1096 a24-29), porém não esclareceu a multiplicidade de sentidos de “tempo”. Em geral, os comentadores se dividem em decidir se “o Ente se diz de muitos modos” por homonímia ou paronímia, porém, a Ética a Nicômaco permite levantar a hipótese do Bem não ser um universal e ainda assim um termo polívoco por analogia. A questão consiste em estender o problema aristotélico de como o Ente, o Uno e o Bem se relacionam com as categorias também para o tempo, ou seja, como o tempo que é uma categoria (Poté) também é um ente natural (Chronos), se por “relação a um”, por analogia, por homonímia ou segundo muitas relações. 2.2. A interpretação começou reconhecendo o problema da demonstração da existência do tempo, depois constatou também o problema quanto à definição e agora se modificou ainda uma vez, perguntando se há uma categoria que permite pensar o conceito de tempo. Qual a distinção entre a categorização do tempo e tempo categórico? Para ser possível prosseguir na interpretação acima iniciada, novamente é necessário analisar os argumentos fornecidos pela Física. (1) A premissa inicial é esta: há uma conexão entre movimento e tempo, embora não enquanto identidade (Phys 218 b9-10). Não há identidade porque (2) o movimento se dá no ente e o tempo em toda parte (Phys. 200b32); (3) a mudança pode ser mais ou menos rápida e o tempo não, pois é ele que determina tais atributos de rapidez ou lentidão (“rápido” significa: o que se move muito em pouco tempo; “lento” significa: o que se move pouco em muito tempo). (4) Portanto, “O tempo não é determinado por um tempo, nem por ser uma certa quantidade, nem por ser uma qualidade” (não se determina o tempo a partir de nenhuma das três categorias: quantidade, qualidade ou tempo) (Phys. 218 b17-18). Assim fica exposta a primeira dificuldade da interpretação retirada do interior da Física, quanto à categorização do “tempo”: (I) Quanto as Categorias de qualidade e quantidade, o tempo “enquanto contínuo é dito longo e breve e enquanto número muito e pouco” (Phys. 220 b1-2). (II) Quanto as Categorias de tempo e lugar (Phys IV, 10), os conceitos de lugar e tempo, que são necessários para pensar o devir, são propriedades comuns a todo ente natural que esteja em movimento (Kínesis) ou mudança (metabolé). Não há identidade entre tempo e movimento, mas há relação intrínseca. Porém, a Phys IV, 11 inicia com a advertência de que o tempo não pode existir na ausência de mudança (metabolé). É quanto a este ponto que a Interpretação precisa avançar em um terceiro momento. 58


3. Terceiro momento da interpretação: níveis do problema do tempo 3.1. A interpretação questionou se os sentidos de “tempo” poderiam explicitar-se categoricamente. Contudo, os sentidos categoriais levarão a outro grau de interpretação, pois sua exposição logrou revelar os níveis diversos do problema do tempo. É preciso mostrar como a questão pela categorização do tempo logra revelar a complexidade de sua questão. Com efeito, Aristóteles sempre emprega o termo Poté (“quando”) para a Categoria de tempo (ou como advérbio indefinido ou interrogativo), com exceção de uma única vez, em que utiliza Chronos (Ética Nic 1096 a26). Em Categorias, poté é discutido junto a categoria de quantidade, que se divide em contínuo e discreto, ambos espécies do gênero “consecutivo”, que na Física é utilizado para colocar a questão do Tempo (Phys 226 b34). “Consecutivo é aquilo que não tem limites e está em consecução com seu sucessivo, como é o caso dos números; contíguo é o que está em consecução e contato com o sucessivo; e contínuo é o que está em consecução e cujo limite com o sucessivo é algo único” (Phys 227 a6-21). Portanto, estas definições fundam-se na relação parte/todo de uma Quantidade. Assim sendo, o tempo será uma Quantidade Contínua, pois “o tempo presente une o passado em relação ao futuro” (Cat 5 a7-8). Porém, na Física o agora não une passado e futuro, pois pertence a ambos sem ter qualquer duração no tempo. Portanto, é preciso distinguir as seguintes questões acerca da Interpretação do “tempo”: 1) Nenhuma das partes do tempo permanece e o agora não é parte do tempo (Phys IV), porém ainda assim o tempo possui uma ordem entre anterior e posterior (Cat 5 a27-30). Dizer de algo que permanece ou dura é aplicar-lhe a categoria de tempo identificando o local da permanência ou o deslocamento da duração, porém isto não pode ser aplicado ao próprio tempo. Por outro lado, se não houvesse algum movimento para se predicar o tempo nunca perceberíamos o próprio tempo, que não se confunde com o movimento assim predicado. 2) Além disso, há uma distinção entre um “contínuo temporal” e um “contínuo tópico”, pois, no segundo, só possui contato aquilo que tem posição ou ocupa um lugar (Ger e Corrup 322 b32 – 323 a1) e, no primeiro, o agora (Física) ou o presente (Categorias) não ocupam lugar algum. Entretanto, a ordem numérica não é contínua como a ordem temporal e, contudo, o tempo é definido como um tipo de número. 3) Isso exige diferenciar número numerado e número numerante, bem como não confundir o número enquanto ponto e unidade, de forma que um ponto local não é um número enquanto não se exercer o ato de contagem no qual o número existe (Cat 5 a 30-33). É por isto que o número não possui nenhuma posição, é atópico, bem como o tempo, que é um número e só existe no ato de 59


contar o movimento. Contudo, permanece a diferença de que a ordem numérica pode ser variada (números naturais e números irracionais, por exemplo), mas não a ordem temporal, pois tempos diversos (dias, meses, anos, etc) estão no mesmo tempo. O número e o tempo não existem em separado das coisas contadas e movidas. 4) Outra forma de compreender a dificuldade seria observar ainda que a tese de Categorias, que o tempo é um contínuo, não pode ser tomada em sentido forte, pois o tempo possui partes que não são, como explicita a Física, na qual o consecutivo é definido diversamente como aquilo que está em relação com algo posterior, ou seja, é o dois que é posterior ao um e não o contrário. Quanto ao tempo, não só o Uno é mais primordial que o ponto, mas o dois é anterior ao Um (o um temporal ou agora só é constatável após se distinguir entre anterior e posterior). 3.2. A Interpretação exige explicitar a relação tempo e número: “Por outro lado, se quer saber: de que movimento é número o tempo?”. Esta pergunta surge justamente após o discurso sobre a relação tempo/alma-número (Phys 223a 29-b1). 1) No tempo, algo (a) se gera, (b) corrompe, (c) cresce, (d) altera-se e (e) move-se localmente; portanto, o tempo é o número de todo movimento em geral e não de um em específico. 2) A natureza é o “princípio do movimento e da mudança” (Phys 200b 1213), então o que é o movimento explica o que é a natureza (de modo que o tempo determino movimento em geral), não sendo uma categoria do movimento (ποτέ), mas referente a todo movimento expresso numa categoria qualquer (Phys 200b 33 – 201a 1). 3) “Não há movimento além das coisas” (Phys 200b 32-33), o que significa que, assim como não há ente em si na natureza, não há movimento em si; é preciso a referência temporal. 4) Assim, o movimento é “ato do que é em potência enquanto tal” (Phys 201a 10-11), ou seja, contínua atualização de uma potência que jamais chegará a ser em ato, pois ser só em ato é não sofrer mudança ou movimento. 5) O movimento “é difícil conceber, mas possível de ser” (Phys 202a 2-3). Ou seja, dada a impossibilidade de ordená-lo entre o simplesmente possível e atual (Phys 201b 31-33), o movimento adquire um certo caráter indeterminado, onde se define o movimento como diverso, desigual ou não-ente. 6) O movimento é tanto ato do movente quanto do movido, aos quais o texto se refere a potência contida na definição de movimento: ambos, movente e movido, são atos de uma potência. 60


A partir destes enunciados, Aristóteles poderá também decidir sobre a relação entre o tempo e o contínuo, do seguinte modo: (a) O movimento ”acompanha” (akolouqei) o tempo. Tempo, movimento e grandeza, são todos contínuos. (b) O contínuo (sunέe) é aquilo cujos extremos são um, ao contrário do contíguo (próximo, contato) (aptomέno). Porém, estas soluções leva a indagar quais definições o autor pressupõe para tratar os termos da forma como foram enunciados. 4. Quarto momento da interpretação: a infinitude do tempo 4.1. É justamente a exposição destas definições que permitirá levantar outro momento da problemática e sua hermenêutica correspondente. As Definições são as seguintes: 1) O contínuo não pode ser composto de indivisíveis (Phys 231a 24), pois os indivisíveis não preenchem a condição para algo ser contínuo, a de que seus extremos sejam um, pois o “extremo” é um conceito relativo, sendo, por definição, necessário haver nele diversidade (Phys 231a 28-29). Portanto: ou o ponto ou o agora não podem ser extremos entre si mesmos (são indivisíveis), mas só algo diverso de si – a linha para o ponto e o tempo para o agora. Então, o contínuo é composto de divisíveis, ou seja, de outros contínuos. 2) “Todo contínuo é divisível em partes sempre divisíveis” (Phys 231b 16), ou seja, há uma divisibilidade constitutiva do contínuo e uma seqüência infinita de divisibilidade constitutiva. Isso significa que o contínuo é irredutível: não se compõe de nada a não ser de outro contínuo. A definição positiva de contínuo mostra que se pressupõe o “infinito” (άpeiro), pois a noção de “ser sempre indivisível” em outras partes a cada vez divisíveis é o mesmo que ser infinitamente divisível. Portanto, a interpretação sobre o sentido do “tempo” logrou esclarecer que sua relação com o movimento não só implica o número, mas também o infinito. Mas com isto a interpretação supõe compreender o sentido de “infinito”. Contudo, na Metafísica, o infinito pode ser (a) por adição, que é o caso da série numérica; (b) por divisão, que é o caso do contínuo; (c) como potência, a continuidade em potência somente pode ser pensada na relação alma e número: “o infinito não está em potência como se pudesse vir a ser separadamente em ato, mas apenas no conhecimento” (Met. 1048b 14-15), pois o infinito existe “pelo seu torna-se sempre outro” (Phys 206a 22). 61


4.2. Porém, na Física lemos que “em geral o infinito é deste modo: sempre aprendemos algo distinto e o aprendido é algo delimitado, mas ele é sempre algo diverso” (Phys 219b). É deste modo que nesta última obra se enunciará as questões sobre em que sentido o tempo é número e infinito: se “o tempo é número” ou “medida do movimento” e que “número é este”? O argumento é como se segue: (1) O número distingue o mais e o menos, o tempo, o mais e o menos do movimento (Phys 219a 26-27); (2) O um é a unidade de medida do número, o agora do tempo (Phys 220a 4); (3) Assim como pode-se pensar um número maior do já pensado, pode-se sempre pensar um intervalo de tempo maior e além do já pensado (Phys 221a 26-27); (4) Um número pode ser o mesmo para diferentes entes, o tempo para movimentos simultâneos, embora diferentes (Phys 233b 4-12); (5) O número não existe separadamente do ente, o tempo não existe separadamente dos entes móveis de que é número (Phys 233a 18-19); (6) Do mesmo modo como dizemos serem as coisas no número, dizemos serem no tempo (Phys 221a 26-27); (7) No entanto, o número é pensável abstraindose a mobilidade dos entes, o tempo acrescentando à mobilidade dos entes um número (Phys 194a 3-5); (8) Assim, o tempo não é simplesmente o movimento, mas o movimento enquanto possui um número (Phys 219b 2-3), mas nem o número nem o tempo são substâncias; (9) O tempo é visto como ente, mas não como substância (não subsiste por si mesmo), de modo que para o físico pensar o tempo, deve fazê-lo concebendo o movimento produzido pelos entes móveis enquanto numerável ou numerado (Phys 219b 2-3). 5. Quinto momento da interpretação: a medida do tempo 5.1. Não há dúvidas que “o tempo é um tipo de número” (Phys 219b 4-5), não qualquer número, senão o número que mede o movimento, na medida em que “a alma diz que os agoras são dois” (Phys 219a 27-28). Isto está enunciado e não exige interpretação, ou seja, tomada de sentido. Mas o tempo é número em que sentido? Seria Categoria de Quantidade? O número que conta o tempo é uma categoria de quantidade de continuidade, por ser o movimento uma grandeza (o movimento em geral é divisível em partes contínuas). O “dois” não é pluralidade. Quantidade é a delimitação de uma unidade que possa ser numerada: no caso da pluralidade, esta unidade é um, mas no caso da grandeza, é a medida. Desse modo, o tempo é uma medida. Como a grandeza aqui se refere ao ente móvel, o tempo é medida de movimento. Agora a Interpretação parece ter avançado para um lugar seguro e se transformado em entendimento e saber. Porém, igualmente ela convida a perguntar pelo sentido do termo “medida” 62


(Métron). Platão dividira as artes da medida em duas (Político 284e): (1) As que medem o número, altura e largura, comprimento e velocidade, ou seja, a medida desde o contrário. Neste caso, medida significa relação entre grandeza e unidade. Porém, Aristóteles distinguirá dois sentidos de Unidade neste caso (Met. X, 1, 1053 a 22): (a) unidade aparente e (b) unidade absolutamente indivisível, caso em que há homogeneidade entre a medida e o que se mede. (2) As que medem a relação do justo meio ou as determinações que estão entre dois extremos (conveniente, oportuno, obrigatório). Neste caso, Medida é o critério do verdadeiro ou do bem (por exemplo: “o melhor é a medida”). Assim, Platão define a Justa Medida como harmonia ou ordem (Filebo, 24 c-d), no mesmo sentido que Protágoras afirmara que “o homem é a medida de todas as coisas” e Aristóteles que o homem-virtuoso é a medida da ação e o meio-termo como critério de virtude (Etc Nic. III, 4, 1113 a 33). Porém, também se pode reconhecer um sentido ontológico neste caso: em Platão, a Idéia mede as coisas, onde medida significa ordem ou hierarquia. No Livro Delta da Metafísica, as coisas divisíveis se classificam em potencialmente divisíveis em partes não contínuas, a pluralidade, e potencialmente divisíveis em partes contínuas, a Grandeza (Met 1020 a). A Quantidade se divide em “por si”, as coisas que são quantidades em sua essência, como por exemplo, a linha, e “por acidente”, por exemplo, “muito” e “pouco”. A quantidade acidental pode ser de dois modos, ou aquela que inere algo por acidente ou aquela que inere ao movimento e ao tempo que são ditos de coisas divisíveis (Met 1020 a29-30). Contudo, o ente Tempo “não é determinado por um tempo, nem por ser uma certa quantidade, nem por ser uma qualidade” (Phys. 218 b17-18), pois “enquanto contínuo é dito longo e breve e enquanto número muito e pouco” (Phys. 220 b1-2). Por isso não dizemos do tempo que é curto ou comprido, mas sim do espaço de deslocamento ou de uma linha, pois estas possuem a quantidade de modo próprio. Portanto, segundo a Metafísica, o tempo e o movimento não são casos de Grandeza em si mesmos e, em todo caso, o movimento é grandeza a partir da localização e o tempo a partir do movimento. 6. Conclusão Interpretou-se o sentido e o problema do tempo. Primeiro, o tempo deve ter uma unidade, mas ficou dito que algo é uno porque sua substancia é contínua ou indivisível no tempo (Met 1016 a6), com o que o tempo teria que temporalizar a si mesmo para depois se predicar. Segundo, “o ser para um é o ser para um 63


indivisível” (Met 1052 b15-16), mas o tempo se deixa dividir em outros tempos que não se destemporalizam para fora de sua unidade e, ainda que não dividido, é formado de partes que não são. Terceiro, o tempo que é uma categoria (Poté) também é um ente natural (Chronos). Assim, os momentos da interpretação retornam uns aos outros, semelhante as partes do tempo que quando são também devem deixar de ser para o tempo existir. Categorias somente fornece dois exemplos sobre Poté: ontem e ano passado (Cat 2 a2), bem como na Física, onde “um dia” é exemplo de agora (Phys 222 a 24), limite divisor e unificador do tempo. Isto significa que Aristóteles chama Poté os intervalos de tempo, de modo que só neste sentido o tempo é predicado (recentemente, já, antigamente, subitamente e agora). Porém, quando o agora exprime a essência do tempo, neste caso não é categorial, no mesmo sentido em que Ente, Uno e Bem não são Categorias. Pois todas as expressões de Poté encontram-se “em algum tempo”, mas não o agora essencial ao próprio tempo. Portanto, seguindo Brentano, o tempo por si mesmo não é uma categoria, mas se deixa enunciar naquelas expressões que dizem o tempo temporalmente: “tudo envelhece sob ação do tempo” (Phys 221a 31-32) “esquecemos por causa do tempo” (Phys 221a 32) “O tempo consome” (Phys 221a 31).

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Referências ANGIONI, L. Aristóteles, Física I-II. Campinas: IFCH/UNICAMP. 2002. CARTERON, H. La Physique, 2ed. Paris: Les Belles Lettres. 1992. v.1. ECHANDIA, G.R. Aristóteles Física. Madrid: Editorial Gredos. 1995. RIBEIRO, L.F. Aristóteles: Acerca dos vários modos segundo os quais as coisas são ditas. (Metafísica V ). Florianópolis: Nephelibata. 2004. ROSS, D.W. Aristotle’s Physics. A revised text with introduction and commentary. Oxford: Clarendon Press. 1979. ROSS, D.W. Aristotle’s Metaphysics. Oxford: Clarendon Press. 1981. v.1-2. ROSS, D.W. “Metaphysics”. In: BARNES, J. (ed.). The Complete Works of Aristotle. Princeton: Princeton University Press. 1995, v.2. BRENTANO, Franz. De la diversité des acceptions de l’être d’après Aristote. Librairie Philosophique J. Vrin, France. 1992. BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos, Martins Fontes, São Paulo. 1997. ARISTOTLE. Metaphysics. Oxford, Clarendon Press. 1981, vol. I e II. ARISTOTLE. Physics. Books III and IV. Oxford, Clarendon Press. 1993. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo, Discurso Editorial. 2003.

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