Leitura e escrita na construção do conhecimento colóquio civilização 2014

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José Cláudio Morelli Matos Evandro Oliveira de Brito (Organizadores)

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LEITURA E ESCRITA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO ______________ 

COLÓQUIO CIVILIZAÇÃO 2014

usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ



LEITURA E ESCRITA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO



José Cláudio Morelli Matos Evandro Oliveira de Brito (Organizadores)

LEITURA E ESCRITA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

COLÓQUIO CIVILIZAÇÃO 2014

São José

CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ 2015


CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ - USJ Reitora: Elisiane C. de Souza de F. Noronha EDITORA CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ Editor Conselheiro: Evandro Oliveira de Brito Editor assistente: Zuraide Silveira CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Adarzilse Mazzuco Dallabrida Keila Villamayor Gonzalez Carolina Ribeiro Cardoso da Silva Maiara Pereira Cunha Cleber Duarte Coelho Maria Solange Coelho Felipe Gustavo Buttelli Koch Odimar Lorenset Fernando Maurício Senna Rogerio Tadeu Lacerda Gilmar Evandro Szczepanik Sandor F. Bringmann Jason de Lima e Silva Vera Regina Lúcio EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Assessoria de Comunicação USJ

CAPA: Zuraide Silveira REVISÃO: Organizador

Dados internacionais de catalogação da publicação (CIP) Catalogação no setor de editoração do USJ

370 M433l

Leitura e escrita na construção do conhecimento / José Cláudio Morelli Matos, Evandro Oliveira de Brito (organizadores) – 1 ed. – São José: Centro Universitário Municipal de São José, 2015. 248 p. ISBN 978-85-66306-19-4 (impresso) ISBN 978-85-66306-18-7 (e-book) Inclui bibliografia 1.

Filosofia. 2. Civilização. 3. Leitura. 4. Escrita. 5. Conhecimento I. Matos, José C. M. II. Brito, Evandro O. III Título. CDD 370

Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas


EXPEDIENTE O Colóquio Civilização é um evento anual, organizado pelo Programa de Extensão Civilização – UDESC. COORDENAÇÃO – Professor José Claudio Matos, Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC Centro de Ciências Humanas e da Educação – FAED Endereço: Rua Madre Benvenuta, 2007, Itacorubi. Florianópolis. SC. CEP: 88035-001 E-mail: civilizacao.faed@gmail.com Blog: www.projetocivilizacao.blogspot.com.br COMISSÃO ORGANIZADORA: José Claudio Matos – UDESC Fernando Maurício da Silva – FMP-UDESC Felipe Gustavo Buttelli Koch –USJ BOLSISTAS 2014: Amanda Cristina da Silva Elis Marina Rigoni Perlini BOLSISTAS 2015: Amanda Cristina da Silva Juliane Karolina Maia Heusser Lucas Mendes UDESC: Antônio Heronaldo de Souza - Reitor Marcus Tomasi – Vice Reitor Mayco Morais Nunes – Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade Emerson César de Campos – Diretor Geral da FAED Fábio Napoleão – Diretor de Extensão Cultura e Comunidade da FAED PARCERIAS: Laboratório de Ensino de Filosofia e Sociologia – LEFIS Faculdade Municipal de Palhoça – FMP Centro Universitário de São José - USJ



SUMÁRIO Apresentação .............................................................. 9

PRIMEIRA PARTE Ensaios e teorias do ler e do escrever

Capitulo um - A capacidade humana para a ação democrática: leitura e escrita como hábitos do crescimento. ......................................................... 11 1. Introdução ................................................................................ 11 2. O crescimento como o principal fator as ações democráticas. 15 3. A comunicação e pensamento reflexivo como fatores para o crescimento e a democracia ........................................................ 19 4. Leitura e escrita como hábitos inteligentes. ............................ 22 5. Conclusão ................................................................................. 26 6. Referências ............................................................................... 27

Capítulo dois - O ato de refletir e o escrever sobre a escrita: a metaescrita de Vilém Flusser ................. 29 1. Introdução ................................................................................ 29 2. A compreensão do mundo da vida .......................................... 30

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3. Breve descrição da vida de vilém flusser .................................. 32 4. A metaescrita de flusser ........................................................... 33 5. Há futuro para a escrita? .......................................................... 38 6. Conclusão.................................................................................. 42 7. Referências ............................................................................... 42

Capítulo três - Ler e escrever com sangue: a arte do cultivo de si em Nietzsche ..................................... 45 1. Uma aproximação.... À guisa de introdução............................. 45 2. O enfrentamento... no estilo de desenvolvimento ................. 47 3. Provocações... À maneira de conclusão ................................... 53 4. Cúmplices teóricos... no modo de Referências Bibliográficas .. 55

Capítulo

quatro

-

História

e

Sociologia

como

possibilidades de conhecimento ............................ 59 1. Aproximaçõe sentre História e Sociologia ................................ 59 2. Escola de Annales ..................................................................... 64 3. História Cultural ........................................................................ 65 4. História Social Inglesa e o Materialismo Histórico ................... 66 5. Conclusão.................................................................................. 70 7. Referências ............................................................................... 71

Capítulo cinco - Introdução à ética axiológica ........... 73 2


1. A rejeição histórica da teoria dos valores. ............................... 74 2. Axiologia neo-kantiana. ............................................................ 76 3. Axiologia não-kantiana. ............................................................ 79 4. Problemas axiológicos .............................................................. 82 5. Conclusão ................................................................................. 89 6. Referências .............................................................................. 94

SEGUNDA PARTE Reflexões sobre ensino e aprendizagem

Capítulo seis - O ensino de filosofia em Santa Catarina: análise do uso de tecnologias ................................ 97 1. Inquietações iniciais ................................................................. 97 2. O ensino de filosofia em Santa Catarina .................................. 99 3. As tecnologias e o ensino da filosofia .................................... 107 4. Conclusão ............................................................................... 110 5. Referências ............................................................................. 112

Capítulo sete - O que é a escola? ............................. 115 1. Escola, espaço de sujeitamento, desencaixe e fluxos ............ 115 2. Conclusão ............................................................................... 127 3. Referências ............................................................................. 128

3


Capítulo

oito

-

Uso

(in)comum:

videogames

e

quadrinhos em sala de aula ................................ 129 1. Introdução .............................................................................. 129 2. Imagens e a História ............................................................... 131 3. HQs, videogames e sala de aula ............................................. 133 4. Conclusão................................................................................ 141 5. Referências ............................................................................. 145

Capítulo nove - A leitura e a produção textual na educação básica: compromisso de quem? ........... 147 1. Introdução .............................................................................. 147 2. Formação continuada de professores: uma possibilidade de “continuidades” .......................................................................... 148 3. Leitura e escrita no ensino fundamental ................................ 152 4. Ensino Fundamental: continuidades e descontinuidades, o compromisso é de quem? .......................................................... 154 5. Conclusão................................................................................ 156 6. Referências ............................................................................. 157

Terceira parte Experiências de leitura e escrita na educação

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Capítulo dez - Um papel eu vou dobrar... Quem será capaz de adivinhar? ............................................ 161 1. Introdução .............................................................................. 161 2. Relato de experiência ............................................................. 162 3. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC ... 166 4. Origami ................................................................................... 168 5. Conclusão ............................................................................... 169 6. Referências ............................................................................. 170

Capitulo onze - Moda e sociedade, pesquisas e metodologias para a construção do conhecimento ........................................................................... 173 1. Introdução .............................................................................. 173 2. Laboratório Moda e Sociedade. ............................................. 173 3. Dicionário Histórico da Liberdade: Moda, Corpo, Vestimenta e Aparência.................................................................................... 176 4. Brasil por Suas Aparências...................................................... 179 5. Ensino de História da Moda em Santa Catarina e Rio Grande do Sul: análise quantitativa e crítica do material bibliográfico utilizado, dos objetivos propostos e dos recursos audiovisuais explorados. ................................................................................. 180 6. Conclusão ............................................................................... 183 7. Referências ............................................................................. 183 5


Capítulo doze - Experiências no ensino de filosofia no ensino médio ....................................................... 185 1. Introdução .............................................................................. 185 2. Experiências e vivências.......................................................... 186 3. Conclusão................................................................................ 196 4. Referências ............................................................................. 198

Capítulo treze - Monitoria acadêmica: possibilidades de aprendizagem no contexto da formação inicial para a docência.............................................................. 201 1. Introdução .............................................................................. 201 2 Mas o que é a docência? ......................................................... 204 3. O relacionamento professor/acadêmico: uma experiência em parceria ....................................................................................... 207 4. Conclusão................................................................................ 211 5. Referências ............................................................................. 212

Capítulo quatorze - Vidas e textos: leitura e escrita na terceira idade ...................................................... 215 1. Ponto de partida ..................................................................... 215 2. A Fenomenologia como caminho ........................................... 217 3. Dimensões da pesquisa .......................................................... 222 6


3.1 O desejo de ler e a ampliação dos repertórios de leitura por meio da alfabetização ................................................................ 222 3.2 A alegria de ler na terceira idade ......................................... 226 3.3 O poder da escrita nas diferentes situações da vida ............ 228 4. Conclusão ............................................................................... 230 5. Referências ............................................................................. 231

Capítulo

quinze

-

A

relação

pedagógica

e

os

smartphones: narcisismo e frustração ................ 235 1. Introdução .............................................................................. 235 2. Relações afetivas de sala de aula sob nova configuração ...... 236 3. A docência como versão paródica do poder .......................... 239 4. Conclusão ............................................................................... 244 5. Referências ............................................................................. 247

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Apresentação O Colóquio Civilização é um evento de caráter multidisciplinar, promovido em parceira pela UDESC, a FMP, a USJ e o LEFIS. Recebe submissões de trabalhos provenientes das áreas de filosofia, artes, educação, ciências humanas e sociais aplicadas. O eixo unificador do evento é a atividade reflexiva de interpretação, e sua relação com o ensino e a cultura. O tema da edição de 2014 é Leitura e escrita na construção do conhecimento. O significado deste tema incorpora a questão da aprendizagem e da investigação, tanto no contexto acadêmico e escolar como no contexto do mundo do trabalho e da sociedade civil. O conhecimento é formulado, adquirido e disseminado, num processo social e individual de constante construção e reconstrução, tendo como meta a adaptação dos indivíduos a uma realidade que está sempre em mudança. As habilidades de leitura e de escrita desempenham um papel tão importante neste cenário, que dificilmente pode ser apreendido numa simples definição. Um legado informacional de enormes proporções se torna acessível ao indivíduo por meio da leitura, da mesma forma como o indivíduo pode participar deste legado, e transformá-lo, por meio da escrita. Leitura e escrita, portanto, são atividades inescapáveis no conjunto de habilidades necessárias para uma vida de aprendizado e investigação. E se tornam habilidades necessárias à própria vida social, na medida em que a sociedade cada vez mais se define como um ambiente de transmissão e construção de conhecimento. Na sociedade atual, marcada pelos artefatos tecnológicos relacionados com o fluxo intenso e veloz da informação, em diversos meios e suportes, as habilidades para aprender e construir conhecimento inevitavelmente sofrem o efeito de tais artefatos. Do mesmo modo, a herança cultural de épocas passadas é acessível às pessoas por meio da linguagem 9


escrita. As forças da inovação e as forças da tradição, contudo, parecem confluir na mesma direção, ao apontar para a importância de os estudiosos refletirem e contextualizarem o pensamento acerca da leitura e da escrita, como participantes do incessante processo social e individual de construção do conhecimento e da cultura. O Colóquio Civilização faz o convite a esta reflexão a todos os pesquisadores e estudantes interessados no tema. Espera-se, como nos anos anteriores, criar um espaço acolhedor para a divulgação de uma produção caracterizada pela diversidade e pela qualidade das abordagens. A Equipe organizadora.

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Primeira parte – Ensaios e teorias do ler e do escrever

Capitulo um - A capacidade humana para a ação democrática: leitura e escrita como hábitos do crescimento. Thaís Ferreira Ali

1. INTRODUÇÃO O presente capítulo tem como objetivo desenvolver uma argumentação, tendo em vista o tema do evento denominado Colóquio Civilização 2014, o qual teve como objeto de discussão a seguinte proposição: Leitura e escrita na construção do conhecimento. Dentro deste eixo, abordaremos sobre a capacidade comunicativa da leitura e da escrita como um hábito capaz de gerar crescimento e desenvolver a ação democrática. Tem-se como referencial teórico a Filosofia da Educação de John Dewey, em especial sua obra Democracia e Educação (1916), o qual desenvolve o conceito de crescimento, possível teoria da formação, como uma capacidade humana para o alargamento constante do pensamento, tendo em vista ação democrática. Além de tratar sobre o conceito se comunicação, como a habilidade de compartilhamento de ideias comuns. E o pensamento reflexivo, em seu livro Como Pensamos (1910), como uma ação mais inteligente para criação de hábitos mais astutos. Portanto, defende-se neste capítulo que a leitura e a escrita são hábitos fecundos, desde que bem habilitados, para o acesso a maiores e mais produtivos níveis de crescimento dos sujeitos e consequentemente das ações de manifestações comunicativas


A capacidade humana para a ação democrática

entre estes, desenvolvendo assim uma capacidade de reflexão e mudança constante do pensamento e da ação, o que gera a ação democrática. A escrita e consequentemente a leitura são sem dúvida os artefatos mais importantes desenvolvidos pela espécie humana. É por meio destas duas ferramentas comunicativas que o homem adquiriu uma capacidade de significar, sintetizar, argumentar e interpretar o seu próprio pensamento e dos demais que com ele convivem, ou fazem parte de certa associação humana. A capacidade de registro por meio de símbolos gráficos, os quais permitam transmitir um determinado conteúdo, é sem dúvida a tecnologia mais avançada que o homem já desenvolveu. A partir deste pressuposto, tendemos a analisar a leitura e a escrita como hábitos para a aquisição de conhecimentos. Dentro destes termos, verifica-se a necessidade de entendê-las passíveis de aperfeiçoamento e consequentemente como ferramentas para o desenvolvimento e aprimoramento de algumas capacidades humanas. Neste caso, a leitura e a escrita serão, neste capítulo, defendidos como hábitos inteligentes1 criados pelo constante crescimento e responsáveis a aquisição da capacidade à ação democrática. Por isso, a referência para este discurso é o pensamento filosófico e educacional de John Dewey. Dewey foi um filosofo preocupado com as capacidades e habilidades humanas para o desenvolvimento de uma ação social e individual mais inteligente. Está capacidade desenvolvida pelo crescimento constante é o que, segundo o 1

Usa-se o termo hábitos inteligentes, cunhado no capítulo quatro de Democracia e Educação (1916). Contudo, Dewey já utilizará em 1910, Como Pensamos, outro termo sinônimo denominando-o de hábitos de reflexão, hábitos do pensamento. Como exemplo os seguintes excertos: “hábito geral de refletir” (p. 43), ou sobre “formar hábitos de reflexão” (p. 44), “desenvolvimento de bons hábitos de pensamento” (p. 44).

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Thaís Ferreira Ali

autor, determina a potencialidade para a democracia. O termo crescimento nasce na obra Democracia e Educação (1916). E segundo Jerome Popp, o qual defende que a teoria filosófica de Dewey tem profundas bases evolucionistas, o crescimento é um valor, nada se quer acima dele a não ser mais dele mesmo. E é a partir dele que se desenvolve a noção de democracia. Portanto, para Dewey, a democracia é inerente ao crescimento. É considerada mais que uma forma de governo. Ela é projeto, o qual possui uma atribuição moral, onde as relações sociais efetivam-se de maneira que os indivíduos interagem por intermédio de seus interesses comuns, objetivos e meios. Por tanto, a democracia, nada mais é do que garantia a um maior e melhor crescimento da experiência humana. É uma evolução para conduzir a vida social, pois permite a reconstrução das experiências. Porém, para que o crescimento constante, nos leve a ação democrática são necessários dois fatores: a comunicação, como o fator social, e o pensamento reflexivo, como fator individual. Estas duas ferramentas, se utilizadas de maneira inteligente proporcionaram, o constante crescimento dos indivíduos e consequentemente o aumento da capacidade democrática por eles utilizada. A comunicação por sua vez proporciona aos sujeitos o compartilhar de ideias comuns. É a capacidade primeira para a associação humana. Sendo assim ela é a ferramenta da troca, transmissão e compartilhamento dos pensamentos individuais. Ao comunicar o sujeito utiliza-se da conduta e da linguagem. Por isso, trata-se a comunicação como uma ferramenta de utilização social, mesmo que sua ligação seja direta ao pensamento individual, o qual denomina-se, segundo Dewey, de pensamento reflexivo devido suas características específicas de funcionamento. O pensamento reflexivo é pensamento individual. Maneira de investigação pessoal dos conceitos e dos hábitos

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A capacidade humana para a ação democrática

sociais e é, sem dúvida, o meio –objetivo- e o fim – posterior objetivo- do processo de crescimento. Caracterizado por desenvolver um complexo de hábitos mais inteligentes, transformados através das vivências no meio social. O termo pensamento reflexivo, surge na obra Como Pensamos (1910), onde Dewey desenvolve o argumento sobre a criação de hábitos para uma melhoria da capacidade democrática. É relevante salientar que a pensamento assim como a comunicação tem a importante necessidade da linguagem para ser utilizado. Nada pode ser comunicado ou sofrer um processo de reflexão por meio do pensamento, se não tivermos “munidos”, pelo menos, de um básico “arsenal” linguístico. A linguagem se manifesta de diversas formar em nossa vida. Se apresenta por meio da comunicação oral, das artes, da escrita e da leitura. A necessidade de um artefato linguístico para que aconteçam os processos de pensamento reflexivo e de comunicação, os quais darão desenvolvimento a mais e melhor crescimento e com isso a uma capacidade mais ampla a democracia, é evidente. Por isto, o objetivo é desenvolver, segundo a noção deweyana, que a escrita e a leitura são hábitos capazes de ampliar e aprimorar o crescimento, assim como qualificar e quantificar a ação democrática. O presente capítulo irá abordar a noção de crescimento como fator principal as ações democráticas, assim como explicará como os princípios da comunicação e do pensamento reflexivo são fatores responsáveis ao crescimento e consequentemente a democracia e discorrerá como a leitura e a escrita podem ser consideras como hábitos inteligentes e capazes de desenvolver ações humanas ao crescimento e mais democráticas.

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Thaís Ferreira Ali

2. O CRESCIMENTO COMO O PRINCIPAL FATOR AS AÇÕES DEMOCRÁTICAS Para entendermos como a leitura e a escrita se tornam hábitos inteligentes para desenvolver o constante crescimento do indivíduo é primordial esclarecermos do que se trata “crescimento” e “democracia” segundo o pensamento naturalista empírico de John Dewey. Ao desenvolver o conceito de crescimento2, Dewey indica o eixo da sua noção de democracia. No capítulo sete de Democracia e Educação (1916), o filósofo desenvolve sua concepção democrática da sociedade, a qual possui na teoria do crescimento uma condição para a noção democrática da educação. Para John Dewey, o crescimento é um movimento acumulativo de ações. Tendo uma ligação direta com a experiência e seu movimento de continuidade. Por isto, necessita de interação entre indivíduo e pensamento – pensamento reflexivo-, e indivíduo e meio – comunicação – para a constituição de um ideal mutável, que o filosofo denomina de democracia. O objetivo deste movimento é a criação de novos hábitos. Assim o crescimento possuí em si uma condição especial e potencial para acontecer, ele necessita de imaturidade3. Porém a imaturidade não possui uma característica observável. Então necessita de dois critérios 2

Pode-se saber mais sobre o conceito no capítulo sete da obra Democracia e Educação (1916). Ou ainda pelos comentadores Jerome Popp, na obra Evolution’s First Philosopher: John Dewey and the Continuity of Nature (2007), ou Jim Garrison, em Reconstructing Democracy, Recontextualizing Dewey (2008). 3 O princípio da imaturidade não é associado apenas a infância. A imaturidade é uma condição existente em todos os seres humanos, em nível maior ou menor, mas sempre existente. É ela a responsável pela capacidade de aprendermos em qualquer idade. 15


A capacidade humana para a ação democrática

observáveis para que possamos medi-la. Estes critérios são: a dependência4 e a plasticidade5. Pode-se considerar a dependência como a capacidade social, relacional, capacidade de associação, do viver em comum. É por ela que identificamos a precisão do outro como fonte de compartilhamento das experiências sociais vividas pelas associações humanas. Esta capacidade de depender do outro, que se inicia na infância, desde o nascer, não é abandonada pelo sujeito ao se tornar fisiologicamente maduro. Embora sua dependência fisiológica talvez passe, sua dependência como um requisito social é contínua e permanentemente presente. Por sua vez a plasticidade, se caracteriza pela capacidade de aprender a modificar os próprios atos. É por meio dela que os indivíduos retêm e transformam experiências posteriores. Isso também significa ter a capacidade de adquirir hábitos. Ou ainda é a adaptabilidade do imaturo para o crescimento, ela não somente uma propriedade de mudança de acordo com as interações exteriores, mas sim, em essência, a habilidade de aprender com a experiência, o domínio do indivíduo para aprender com os fatos e resolver uma situação, isto é, o desenvolvimento de atitudes mentais que levam à aquisição de hábitos. Essa constituição do conceito de crescimento segundo Popp (2007), é a maneira que Dewey toma a construção de um 4

O critério de dependência está diretamente ligado à conduta social e às relações do indivíduo em suas associações. Por isso, Dewey não a toma como um critério observável negativo, visto que ela não é considerada como algo negativo, um parasitismo, mas vista como um desenvolvimento de aptidões. 5 A adaptabilidade específica de uma criatura imatura para crescer constitui a sua plasticidade. É essencialmente a capacidade de aprender com a experiência; é o poder de reter de uma experiência qualquer coisa que terá utilidade no confronto com as dificuldades. Isto significa poder para modificar ações com base nos resultados de experiências anteriores, o poder para desenvolver atitudes. Sem ela, a aquisição de hábitos é impossível. 16


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reconhecimento de que a seleção natural foi substituída pelo reflexo de seleção consciente, em que somos “nós, não a natureza, que por ensaios e erros, fazemos a ligeira alteração na forma como pensamos” (POPP, 2007, p. 98). Pode-se dizer que o crescimento é por Dewey entendido como a capacidade de alteração da maneira como pensamos, que ocorre na criação de hábitos mais inteligentes, por meio da plasticidade e da dependência. Deste modo, em Dewey a ideia de crescimento deixa de ser a impossibilidade do desenvolvimento para ser ressignificada como um contínuo desenvolver de capacidades inteligentes. Portanto, o crescimento para Dewey é o reflexo da ação da atividade nos indivíduos, e não apenas o inverso. Ou seja, as atividades atingem o indivíduo, possibilitando-o a um constante desenvolvimento. É através da experiência comunicada, que afeta o indivíduo e faz com que mude seus hábitos, que esse modifica a atividade e, consequentemente, sua experiência, renovando-a. Este renovar-se é o movimento ideal a ação democrática, que se constituí pela associação, interação e cooperação entre indivíduos e grupos sociais. Segundo Popp (2007, p.95) Dewey entende como valor principal o “desenvolvimento da inteligência ou crescimento intelectual. Dewey tem muito a dizer sobre a democracia, enquanto visão para o contexto ideal em que o crescimento pode ocorrer”. E é por essa ideia de um contexto ideal para a ocorrência do crescimento que a concepção democrática de Dewey não está associada a uma ideia de poder político, e sim a uma transformação da conduta humana que se estende a todas as associações de que o homem tende a fazer parte. Por tanto, “uma democracia é mais que uma forma de governo; é primacialmente, uma forma de vida associada, de experiências conjuntas e mutuamente comunicadas” (DEWEY, 1959, p.93). Neste caso, uma sociedade não é composta por

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A capacidade humana para a ação democrática

uma associação humana compacta e bem conduzida em ações e pensamentos, mas sim, de uma diversidade de associações, ou seja, uma composição de diversos interesses compartilhados. A democracia nada mais é que um contínuo crescimento, que se liga a uma contínua readaptação a situações criadas pelas comunicações, entre grupos. “A democracia é uma forma e um processo e nunca um dado final‟ (KERY, In: GARRISON, 2008, p.78). Pois, para ser verdadeiramente democrática necessita ter ação participativa e confiante de interesses compartilhados, dando assim a característica cooperativa entre os grupos. Oportuniza-se, dessa forma que o ideal comum seja a mudança de hábitos, o crescimento, e suas contínuas readaptações ao ambiente. Porém, a ampliação de áreas de interesses compartilhados e a libertação de maior diversidade das capacidades pessoais – elementos que caracterizam a democracia – não são, em primeiro plano, aspectos de esforço consciente, mas constituídos pela criação de hábitos inteligentes. E assim, o crescimento, para John Dewey, é a energia motriz para o ideal mutável de uma sociedade, denominada por ele de democrática. O fato de John Dewey defender a “expansão de uma intensa vida mental” (DEWEY, 1959, p.92), que se aplica no crescente contato da experiência com o meio físico, e nas relações sociais. Faz o ideal democrático deweyano basear-se em dois sentidos: o primeiro, uma numerosa e variada participação do interesse comum, como uma maior confiança e reconhecimento. Estes interesses recíprocos são fatores de regulação e direção social. O segundo refere-se à cooperação livre entre os grupos sociais e a mudanças de hábitos, desenvolvidos também pelo pensamento. Por isto, quando se declara que a ação democrática é uma capacidade humana, se faz, por entender que a democracia só é possível através de um valor, que é o crescimento. Deste

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Thaís Ferreira Ali

modo por relação direta a democracia também pode ser considera com tal característica. Ela é a capacidade de um constante mutável e do viver em associações, que se efetiva através do constante crescimento dos indivíduos é mais que uma evidência disto, é o fato para se afirmar tal capacidade. Neste sentido, para que a ação democrática aconteça, se faz necessário, o constante crescimento dos indivíduos. Este crescimento como vimos tem seus critérios para acontecer. Porém a efetivação da ação democrática só acontece verdadeiramente, quando se utiliza os dois sentidos acimas mencionados que é a comunicação (variação de interesses compartilhados, que está associado a noção de dependência) e o pensamento reflexivo (a mudança de hábitos para uma cooperação livre entre os grupos sócias, que está ligado diretamente a concepção de plasticidade). 3. A COMUNICAÇÃO E PENSAMENTO REFLEXIVO COMO FATORES PARA O CRESCIMENTO E A DEMOCRACIA Já caracterizado e definido a concepção de crescimento e democracia, cabe-nos agora especificar os fatores que nos levam a ação democrática e a utilização de seu valor, o crescimento. Para posteriormente compreendermos como a ferramenta da leitura e da escrita nos auxiliam para tais ações. Comunicação e pensamento reflexivo são os fatores de alcance ao crescimento constante (conjunto de hábitos inteligentes) para a efetivação da capacidade democrática. Dentro destes dois princípios a linguagem, neste caso mais especifico a leitura e a escrita, é ferramenta. A comunicação segundo Biesta (2006), é amadurecida por Dewey na obra Democracia e Educação (1916), o qual passa a entende-la como um processo de coordenação e cooperação social. Ou seja, não é apenas entendimento comum 19


A capacidade humana para a ação democrática

do mundo compartilhado, mas também gêneses da reflexão e da consciência reflexiva. Podemos dizer que a comunicação é a ação desenvolvida pelos homens por meio de princípio observável, a dependência. Assim, ela passa ser mais que uma simples ligação verbal entre as palavras, a comunidade e os indivíduos. Segundo o John Dewey (1959, p. 17), “os homens vivem em comunidade em virtude daquilo que têm em comum”, sendo a comunicação a maneira pela qual passam a ter coisas comuns: objetivos, convicções, aspirações e conhecimento. Esta compreensão comum é que forma uma sociedade ou comunidade. A comunicação segundo o filosofo é compartilhada seguindo dois fatores: a conduta e a linguagem. A conduta é o primeiro modo pelo qual se compartilha ações entre os indivíduos. Pelos efeitos da conduta no ambiente, os interesses de um indivíduo se tornam comunicáveis, acessíveis à conduta e ao entendimento dos outros indivíduos que com ele interage. Assim como a linguagem, como passo posterior, não só como ferramenta de comunicação, mas também de transformação da conduta. Como o foco deste argumento está fundamentado na discussão sobre linguagem, principalmente a leitura e a escrita, aprimora-se este viés. Dewey, define deste modo que a linguagem possui dois elementos educativos: transmissão da experiência humana socialmente consolidada; e instrumento para a libertação por meio do que defende John Dewey, o pensamento reflexivo. Estes dois elementos são agregados a um caráter educativo. Tornando-se acessíveis ao sujeito por meio da comunicação. Assim a restrição do uso linguístico como recurso educativo possui seu lado mais perigoso. Dewey é um defensor da qualidade e da quantidade da comunicação. Quanto “mais vital e fecundo normalmente articulado com a atividade exercitada em comum”. (Dewey, 1959, p. 41),

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melhor será a comunicação e a educação dos indivíduos, por conseguinte, mais crescimento e mais ações democráticas, através de hábitos mais inteligentes, ou com melhores hábitos reflexivos. Mas quem é o responsável pela constituição de hábitos mais reflexivos? O pensamento reflexivo é sem dúvida o responsável pela criação de hábitos mais inteligentes, porém ele só constitui tais hábitos porque está aliado a plasticidade humana. O pensamento reflexivo é para Dewey o um tipo de pensamento o qual possui em si um método de análise da experiência, contudo também se caracteriza como tal. Segundo Cunha (2007), ele é o método experimental, o qual visa produzir alteração em algo, se desenvolve pela observação sistemática de fatores envolvidos. Ainda segundo o pesquisador “esse é o único método capaz de produzir uma ideia que faça jus ao nome „conhecimento‟; seu principal resultado não são as transformações ocasionadas nas coisas, mas a mudança em quem a utiliza” (CUNHA, 2007, p.96). Este método, que se declara como pensamento reflexivo, apresenta dois aspectos: o primeiro pressupõe o direito de chamar algo de conhecimento somente se nossas “atividades tenham realmente produzido mudanças físicas que concordem com a concepção adotada e confirmem. (CUNHA, 2007, p.96); o segundo é que ele indica que o pensamento é útil. Ou seja, “útil quando a antecipação de consequências se faz como base na completa observação das condições presentes” (CUNHA, 2007, p.96). Em suma o que Dewey quer dizer é que o ato de pensar, em um sentido elevado do termo, “subentende o exame das bases e das consequências das crenças” (DEWEY, 1933, p.15). Assim para o filosofo o ato de pensar dá ao indivíduo a possibilidade de fugir dos atos mecânicos e rotineiros. “O exercício de pensamento é equivalente a um raciocínio no

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A capacidade humana para a ação democrática

sentido literal desta palavra; por meio dele uma coisa nos leva a ideia de outa coisa e acreditar nesta” (DEWEY, 1933, p. 40). Porém, todo o pensamento reflexivo deve ser comprovado, e isso nem sempre é possível, por isso a importância da atenção ao que é verdadeiramente possível de comprovação pela reflexão. Então apresenta-se a tarefa da educação. A implementação de hábitos eficientes para permitir que os indivíduos façam a distinção do que é, ou pode ser, provado e do que são “meras afirmações, conjecturas ou hipóteses” (DEWEY, 1933, p.42). Pois, sem a educação do pensamento, de nada importará se o indivíduo tenha muito ou pouco conhecimento, não importará se possui aptidões e hábitos naturais para aprender, se não for ele educado intelectualmente. Assim os hábitos inteligentes não são dados por um “dom natural” - o que nos é dado pela natureza é a capacidade natural de raciocinar-, este necessita de um ambiente propício para ser fecundado, e este ambiente não está apenas na natureza e na vida social. Mas na ação educativa e cultural que favorecem tal aprendizado reflexivo. E é na concepção destes hábitos em que consiste a educação da mente. 4.

LEITURA E INTELIGENTES.

ESCRITA

COMO

HÁBITOS

Segundo Morais (1996, p.43) “Comparada a linguagem falada, a linguagem escrita é uma aquisição muito recente. Os primeiros traços de escrita têm apenas seis mil anos” (MORAIS, 1996, p.43), ou seja, a instrumento linguístico da escrita como ferramenta comunicativa é uma tecnologia relativamente recente, e por isso ainda possuí artifícios e delicadezas a serem mensuradas. Contudo, o mais curioso é que a escrita como expressão da oralidade é ainda mais recente “podemos admitir que ela deve ter surgido há três ou quatro mil anos” (MORAIS, 1996, p. 43;44). 22


Thaís Ferreira Ali

Porém, mesmo com todo pouco tempo, comparado a existência da espécie humana, a linguagem escrita se tornou o principal meio de comunicação, aprendizado, e interação entre os indivíduos. Atualmente é quase impossível sobreviver em uma sociedade onde todo o conteúdo para a comunicação entre os membros parece converter-se ao código escrito. As relações sociais se intensificam e desenvolvem por meio de processos gráficos constantemente, visto o uso das tecnologias para a comunicação e informação. Podemos correr o risco de afirmar que a escrita só perde para a oralidade. Assim a leitura e a escrita, se tornam para os indivíduos, em primeira ocasião ferramentas educativas da mente. A experiência de ler e escrever faz com que desde de pequenos passemos a ser inseridos em uma sociedade a qual iremos compartilhar e refletir nossas e outras experiências. Pensemos em primeira mão na leitura e na escrita como ferramentas do comunicar. Daniel C. Denett (1997), filósofo estadunidense que tem como fonte de pesquisa a filosofia da mente, entende a linguagem como a ferramenta essencial para o ato comunicativo, mas não para o processo de pensamento. Ou seja, o pensamento não necessariamente necessita da linguagem para proceder, porém necessita da linguagem para comunicá-lo. Em suma “O ato de falar, não importa quão decisiva sua presença possa ser, não é pré-requisito para a se ter uma mente”. (1997, p.18), mas a linguagem e pré-requisito para acessá-la. Ela pode ser considera como ferramenta para transmitir por códigos escritos os conhecimentos acumulados pela humanidade, também pode ser entendida como um diferencial entre os homens e os outros animais pela sua complexa aplicabilidade. Isto nos demonstra que a linguagem é a ferramenta histórica utilizada pela humanidade, por causa de sua transformação a uma construção complexa, e por isto é também empregada pela educação. O que se pretende, segundo John

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A capacidade humana para a ação democrática

Dewey, é que quando a linguagem é desenvolvida por meio de uma comunicação no sentido já explicito, e como ferramenta do método para o pensamento reflexivo traz consigo a possibilidade de amplitude deste mecanismo e criam hábitos inteligentes, e com isso amplia-se o desenvolvimento humano. Porém “as palavras, o mais poderoso instrumento de comunicação, são também o mais poderoso instrumento de engodo e manipulação” (DENETT, 1997, p.17). Por isso a necessidade de um método de reflexão sobre as crenças. Quando ensinamos um jovem a ler, em primeiro plano, estamos ensinando a significar e identificar os códigos gráficos da sua língua materna, ou outra qualquer. Do mesmo modo a escrita, quando ensinada aos pequenos, inicialmente pretendese ensiná-los o registro dos códigos para que possam comunicar-se com os demais, já que a associação em que vivem possui tal ferramenta para compartilharem experiências. Contudo, o ensino de um método de pensamento reflexivo, o qual parece não ser o objetivo principal, favorece ao aprendiz a potencialidade do uso da mente para resolver situações interpretativas. Ou seja, beneficia a criação de uma mente mais astuta para identificar o engodo e a manipulação, e mais ágil a desenvolver o conteúdo da cooperação e interação com os que os cercam. Dewey, reconhece que aprendizagem em uma sociedade culturalmente adiantada “muito do que se tem de aprender se encontra armazenado em símbolos” (Dewey, 1959, p. 9). O filosofo refere-se a linguagem escrita como o material que tornou possível os processos de educação formais e de transformação de interesses da vida social. Desde que a linguagem representa as condições físicas que sofreram a máxima transformação no interesse da vida social – coisas físicas que perderam sua qualidade originária tornando-se instrumentos sociais – é natural que a

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linguagem represente grande papel, comparado ao dos outros recursos. (DEWEY, 1959, p.41)

Assim a linguagem tende a possuir este grande papel de participação da experiência humana “dilatando e enriquecendo assim a experiência do presente” (DEWEY, 1959, p.41). Parece que Dewey quer dizer que o desempenho para “habilitar” os indivíduos a participar dos interesses, envolve a formação de hábitos aptos a desempenhar tais competências, e um destes hábitos é sem dúvida a linguagem escrita. E neste sentido, ela parece ser o meio para a comunicativa e reflexiva participação da vida social. Os hábitos, segundo Dewey, possuem uma concepção ampla que “envolve a formação de atitudes emocionais e intelectuais; envolve nossas sensibilidades básicas e nossos modos de receber e responder a todas as condições com as quais nos deparamos na vida” (DEWEY, 2010, p. 35). Então, é sem dúvida uma capacidade de fazer, uma capacidade de utilizar “as condições naturais como meio para realização de objetivos. É um domínio ativo sobre o ambiente, por meio do comando dos nossos órgãos de ação” (DEWEY, 1959, p.49). Porém ele também possui em si uma atitude de inteligência. Segundo Dewey, este aspecto inteligente se dá porque “onde existe um hábito, existe um conhecimento dos materiais e do aparelho a que se aplica a atividade” (DEWEY, 1959, p.51). É por meio do aspecto inteligente do hábito que podemos usar as ferramentas de maneira conscientes, e assim, aprimorarmos nossa habilidade adquirida pelo domínio ativo da capacidade de fazer. É o uso intelectual do hábito que nos garante a variedade, elasticidade e continuidade do crescimento. Por tanto, a leitura e a escrita são em primeiro plano manifestações do domínio ativo do homem sobre o ambiente, por meio do comando dos órgãos de ação, mas em segundo plano deve se efetivar como uma atitude de

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A capacidade humana para a ação democrática

inteligência, uma atitude consciente do material e do aparelho que aplica a atividade. 5. CONCLUSÃO Sem dúvida a escrita e a leitura, são mecanismos de ação humana para a comunicação. Mas não temos a convicção de que esteja sendo utilizada para o aprimoramento da capacidade humana a reflexão. O que objetivou este capítulo, antes de tudo, foi problematizar o aspecto da leitura e da escrita como uma fonte de aquisição de material para ampliar e desenvolver a mente humana. Não penas como um instrumento de comunicação notório, mas demonstrar que estes dois aspectos não são apenas hábitos rotineiros, mecânicos, passivos. São construções de hábitos inteligentes, que forneceram a humanidade um mecanismo para problematizar, refletir, interpretar, e acessar as complexas relações sociais e as inquietações e conclusões do pensamento humano. Por isto, a habilidade da leitura e da escrita, é defendida como hábitos inteligentes, desde que passem pela muralha do instrumental, e atinja a concepção de uma competência humana passível de transmutar e transformar o pensamento e consequentemente a conduta dos que os utilizam. Assim como Morais (1996), entende-se que “a arte de ler e a arte de escrever, como a arte de falar e de entender, são artes esquecidas”, “A arte de ler” e de escrever “é uma arte esquecida, interiorizada relegada a operação automatizada nas redes de neurônios inacessíveis” (MORAIS, 1996, p.11). Infelizmente, interpretam-nas como um hábito qualquer, assim como andamos, bebemos água, coçamos os olhos, respiramos, enxergamos, ouvimos. A leitura e a escrita parecem ser concebidas, na sociedade contemporânea, como um mecanismo quase biológico. 26


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Contudo, se baseados na concepção deweyana, pode-se afirmar que a leitura e a escrita são hábitos inteligentes. Os quais, favorecem uma ação social e individual mais cooperativa e a consequência disto é a capacidade de desenvolver, aprender, significar, aprimorar, reaprender, ressignificar, o conhecimento. Por isso, a defesa da linguagem escrita, não apenas como comunicação humana, mas como um dos aprimoramentos para o desenvolvimento da capacidade de crescimento e de democracia, desenvolvido pelo uso de um aprimoramento do pensamento reflexivo, e consequentemente da criação de um hábito inteligente. Ou seja, quanto mais utilizarmos a leitura e a escrita como ferramentas para o aprimoramento do pensamento, como ferramenta social e educativa para acesso e compartilhamento do pensamento estamos favorecendo a espécie humana, além da criação de hábitos mais inteligentes, o constante crescimento desejado para efetivação da ação democrática de interação social. 6. REFERÊNCIAS BIESTA, Gert. The Communicative turn in Dewey‟s Democracy and Education. In: John Dewey and Our Educational Prospect. David Hansen (Ed.). Albany: State University of New York Press. 2006. CUNHA, Marcus Vinicius (apresentação e comentários). Democracia e Educação: capítulos essenciais. São Paulo: Ática, 2007. DEWEY, John. Experiência e Educação. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 2010.

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DEWEY, John. (1910). Como pensamos. São Paulo: Nacional, 1933. DEWEY, John. (1924). Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. São Paulo: Nacional, 1959. DENNETT, Daniel Clement. Tipos de mentes: rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. GARRISON, Jim. Reconstructing Democracy, Recontextualizing Dewey. Albany: Albany: State University of New York Press. 2008. MORAIS, José. A Arte de Ler. Lisboa: Edições 70. 2001. POPP, Jerome. Evolution’s First Philosopher: John Dewey and the Continuity of Nature. Albany: State University of New York Press. 2007.

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Capítulo dois -

O ato de refletir e o escrever sobre a escrita: a metaescrita de Vilém Flusser

Daniella Camara Pizarro Kariane Regina Laurindo Keitty Rodrigues Vieira 1. INTRODUÇÃO Para compor este capítulo, partimos de uma inquietação inicial: Por que escrevemos? Para que escrevemos? Ou ainda: para quem escrevemos? Buscamos em Vilém Flusser, possíveis respostas à essas perguntas. Ao lermos um de seus trabalhos, a seguinte citação nos saltou aos olhos: “escrever é um gesto que orienta e alinha o pensamento. Quem escreve, teve de refletir antes”. (FLUSSER, 2010, p. 20). Nesse momento, nasceu nossa inspiração para escrever sobre a escrita. Como objetivo, pretendemos aqui, promover uma reflexão inicial sobre a importância da escrita uma vez que ela é produto de uma atividade reflexiva que ao materializar pensamentos acaba por nos fornecer um sentido maior na compreensão do mundo vivido. Para alcançarmos nosso objetivo, traçamos uma metodologia baseada na análise textual e interpretação discursiva do ensaio “Metaescrita”, o qual faz parte do livro “A escrita: há futuro para a escrita?” de Vilém Flusser. Com intuito de apoiar o entendimento do texto de Flusser, realizamos uma pesquisa bibliográfica voltada para uma base fenomenológica, para as teorias do construcionismo social de Berger e Luckmann e do processualismo sócio-histórico ou configuracionismo de Norbert Elias. Ressaltamos que essas


O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

teorias subsidiam a compreensão do mundo social, ou seja, das relações vividas; e ainda estão alinhadas com a visão de Vilém Flusser e seu método próprio de análise fenomenológica da língua (BATLICKOVA, 2008). Nas próximas seções, apresentamos de forma sistematizada o exposto anteriormente e esperamos que ao final da leitura, possamos instigar os leitores a refletirem sobre a importância do ato de escrever.

2. A COMPREENSÃO DO MUNDO DA VIDA O uso da linguagem, privilegiado a partir do agir comunicativo, tem propiciado ao homem a busca e a troca de conhecimentos, bem como a construção social de sua realidade. Todo esse processo é experimentado na prática diária da vivência, ou seja: no mundo vivido. Etimologicamente, a palavra fenomenologia significa estudo ou ciência dos fenômenos, segundo Dartigues (2008). As noções de fenômeno e de experiência se confundem. O mundo da vida é onde os fenômenos se manifestam. Edmund Husserl, o precursor da fenomenologia, criou-a enquanto método que descreve os elementos básicos de nossa experiência. Para ele, os fenômenos estão nas sensações e percepções que precedem as relações entre as pessoas, no âmbito subjetivo: “[...] entes humanos, vamos dizer - estão imediatamente aí para mim: eu olho, eu os vejo, eu os ouço se aproximarem; eu aperto suas mãos; falando com eles eu entendo o que pretendem dizer e pensam, que sentimentos os movem [...]”. (HUSSERL apud CERBONE, 2013, p. 23).

Para Schütz (2012), o mundo da vida constitui o palco de todas as experiências, orientações e ações cotidianas onde os indivíduos buscam realizar seus interesses a partir da interação 30


Daniella Pizarro, Kariane Laurindo e Keitty Vieira

com outros indivíduos, da elaboração de planos e da efetivação destes. Ao voltar um olhar para o entendimento do mundo da vida, podemos nos apoiar na visão do configuracionismo de Norbert Elias, a qual os indivíduos e o meio social são produtos da coexistência e da interdependência; e como consequência disso, há um processo incessante de transformação na estrutura da personalidade dos indivíduos, em que há uma regulação dos sentimentos e emoções, modos e padrões de condutas. Dessa forma, desenvolvem-se, criam e recriam-se modos de vida, divisões de trabalho, funções sociais, assim como instituições e as diversas atividades que consolidam a economia, a política, a cultura, a ciência e a tecnologia. Esse processo ocorre constantemente e sem nenhuma ordem, envolvendo transformações não planejadas anteriormente e não lineares, como fruto de um processo lento e sem fim, caracterizado civilizador (ELIAS, 1993a, 1993b). A relação entre indivíduos, sociedade e processo civilizador é mediada pela realidade social. A sociologia do conhecimento, que busca compreender essa realidade, trata da construção social da realidade a partir do pressuposto que todo “[...] conhecimento humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações sociais” (BERGER; LUCKMANN, 2007, p.14). Nesse sentido, na vida cotidiana, a realidade é interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido na medida em que forma um mundo coerente. Apresenta-se um mundo intersubjetivo, do qual todos os homens participam, interagindo e se comunicando uns com os outros. A interação e comunicação são permeadas pela linguagem, a qual promove uma objetivação linguística do conhecimento e constrói significativas tipificações e esquema classificadores de objetos da realidade, além de transcender as dimensões espaciais e temporais (BERGER; LUCKMANN, 2007).

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O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

A compreensão desses aportes teóricos, nos ajudam a perceber o mundo vivido, bem como os fenômenos e as experiências que permeiam a constituição dos indivíduos e a construção da realidade; bem como, nos auxilia no entendimento do pensamento flusseriano, conforme explanado adiante.

3. BREVE DESCRIÇÃO DA VIDA DE VILÉM FLUSSER Ainda quero viver para ver em que dará minha tentativa de traduzibilidade. Também quero viver por uma série de outras curiosidades. Sinto em mim muita coisa que quer articular-se. Há um sussurrar insistente de língua ainda não amadurecida nesse fruto doce, pesado e misterioso, chamado “palavra”. (FLUSSER, 1976, p. 506).

Primeiramente, ressalta-se que trataremos do escrever sobre a escrita, enquanto gesto humano, utilizando o texto de Vilém Flusser, intitulado “Metaescrita”, para embasamento desta produção. Porém, antes de tratarmos da reflexão da escrita, abrimos um espaço para que se possa saber um pouco a respeito do autor da referida obra. De acordo com Batlickova (2008), Vilém Flusser nasceu em Praga, em 12 de maio de 1920, vindo de família judia, fugiu da perseguição nazista para Europa e, meses depois, refugiou-se no Brasil onde estabelece sua vida e carreira por mais de trinta anos. No Brasil, país no qual viveu desde 1940, Flusser atua enquanto filósofo, professor universitário, jornalista e editor conceituado. Seus trabalhos são marcados pelo existencialismo e pela fenomenologia. (DOMINGUES, 2009). Em 1972, Flusser deixa o Brasil mudando-se para a

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Europa e indo residir entre a Itália, França e Alemanha. Flusser veio a falecer, então, no dia 27 de novembro de 1991, aos 71 anos. (BATLICKOVA, 2008) Entre suas principais obras destacam-se: “Língua e Realidade”, “A História do Diabo” e “A Escrita: há futuro para escrita?”, sendo esta última a obra na qual nos embasamos para compor nossos estudos.

4. A METAESCRITA DE FLUSSER Para começar a escrever este capítulo, foi preciso ler o que outras pessoas escreveram, refletir sobre o que foi lido, ligar o nosso objetivo principal com o que nós absorvemos da leitura para, então, começar a escrever. Com base na “Metaescrita” de Vilém Flusser, justifica-se o uso de tal texto pois o mesmo aborda o ato de pensar e escrever sobre a escrita e se apresenta como o primeiro capítulo da obra “A Escrita: há futuro para escrita?”. De acordo com Flusser (2010), quando pensamos, temos nossos pensamentos em um fluxo descoordenado dentro de nossas mentes e a escrita trata de transferir dados/informação de forma concreta e fixa. Quando se escreve, por uma convenção da escrita ocidental, escrevemos em linhas. Essas linhas nos auxiliam, justamente, a alinhar o nosso pensamento. Considerando esse “alinhar” dos pensamentos é que Flusser (2010, p.18) afirma que “os sinais gráficos são alinhados, e cada um localiza-se no lugar que lhe é devido nessa ordem unidimensional”. Dessa forma, o ato de escrever serve, justamente, para organizar e alinhar estes pensamentos de forma coerente possibilitando uma leitura posterior e a transmissão de um conteúdo significativo. “Portanto, escrever é um gesto que orienta e alinha o pensamento. Quem escreve teve que refletir antes. E os sinais 33


O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

gráficos são aspas para o pensamento correto.” (FLUSSER, 2010, p.18). Dizemos que, antes de colocar nosso pensamento no papel, é preciso refletir para, então, escrever. Mas por quê? Flusser (2010, p, 19) nos responde quando evidencia um “motivo oculto por trás do escrever: escreve-se para colocar os pensamentos nos trilhos corretos.” Quando escrevemos e enfileiramos palavras após palavras de forma organizada no decorrer de linhas estamos materializando pensamentos. Essa objetivação imprime significado para o que antes se estava, ainda, buscando compreensão. “Ao escrever, os pensamentos devem ser alinhados. Uma vez que se não escritos e em si mesmos abandonados, movem-se em círculos” (Ibid., p. 19). A partir do momento em que se ignora a escrita, os pensamentos se veem soltos em nossas mentes esperando um contexto concreto para se inserirem. Em relação a isto, Flusser compara os pensamentos e o mundo das ideias com círculos em movimentação, o que faz com que outros indivíduos tenham dificuldades de compreender o nosso pensar, já que os mesmos não estão alinhados e nem estáticos para serem capturados: ou seja, escrito e materializado. O ato de escrever se dá a partir de duas práticas humanas: a interiorização do mundo através de nossos sentidos orgânicos (visão, olfato, tato e audição), onde os fenômenos do mundo da vida serão subjetivados, e a exteriorização, onde comunicaremos em direção ao outro o que nos foi apreendido. Nesse sentido, considera-se que a produção escrita se baseia em leituras de conhecimentos já registrados anteriormente ou em vivências daquele que a escreve. Portanto, há primeiro que se ter uma interiorização e subjetivação para se apropriar desse conhecimento. A partir dessa interiorização é que se torna possível absorver os pensamentos que já foram exteriorizados por outros indivíduos, dessa forma, nós fazemos

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Daniella Pizarro, Kariane Laurindo e Keitty Vieira

a nossa exteriorização colocando para fora aquilo que compreendemos, objetivamente, na forma escrita. Pode-se dizer, então, que a interiorização é o ato de apreender e refletir sobre aquilo que está exposto no mundo concreto da vida e, a exteriorização é produzir algo escrito sobre aquilo que temos no nosso mundo interior das ideias. Ressalta-se, que não é só no âmbito da produção escrita que se dão os processos de interiorização e objetivação. A própria evolução do ser humano perpassa essas duas práticas. A concepção de mundo que se tem inicialmente é através dos sentidos e, a partir deles é que a criança consegue associar o objeto ao entendimento que ela tem do mesmo, no caso, o conceito. Só nos anos iniciais de sua socialização primária na escola é que a criança é apresentada ao universo simbolista da língua portuguesa e é aí que se começa a ter o objeto concreto relacionado a um nome abstrato. Para que essa associação possa ser feita é necessário um processo de interiorização do que foi apreendido e é através do pensamento e processos cognitivos que nós, hoje, conseguimos associar os conceitos com suas nomenclaturas e, em muitos casos, com sua imagem concreta. Nessa direção, Berger e Luckmann (2007, p.35) afirmam que “a vida cotidiana se apresenta como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente.” Ao refletir sobre a exteriorização dos pensamentos na forma escrita, Flusser nos coloca outra possibilidade: Mas as linhas do que está escrito não orientam os pensamentos apenas em sequências, elas orientam esses pensamentos também em direção ao receptor. Elas ultrapassam seu ponto final ao encontro do leitor. O motivo que está por trás do escrever não é apenas orientar pensamentos, mas também dirigir-se a um 35


O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

outro. Apenas quando uma obra escrita encontra o outro, o leitor, ela alcança sua intenção secreta. Escrever não é apenas um ato reflexivo, que se volta para o interior, é também um gesto (político) expressivo, que se volta para o exterior. Quem escreve não exprime algo de seu próprio interior, como também o exprime ao encontro do outro. (FLUSSER, 2010, p. 20, grifo nosso)

O autor nos instiga a refletir, então, se no processo de organizar e transferir os pensamentos para a escrita, a pessoa que está escrevendo parte de um desejo inconsciente de que tudo o que será materializado tenha um receptor/leitor. Será por esta razão que escrevemos de forma coerente? Será que o intuito de escrevemos é para sermos lidos? Através da palavra escrita se é possível organizar tudo aquilo que se encontra “no plano das ideias” de maneira que seja compreensível para o outro e de maneira que torne o pensamento em algo concreto, permitindo que outras pessoas interiorizem esse pensamento, objetivado por quem escreveu. [...] há uma contínua correspondência entre meus significados e seus significados neste mundo que partilhamos em comum, no que respeita à realidade dele. A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que é comum a muitos homens. O conhecimento do senso comum é o conhecimento que [...] se partilha com os outros nas rotinas normais, evidentes da vida cotidiana. (BERGER; LUCKMANN, 2007, p.40)

Contudo, o ato de escrever não se satisfaz por si só, ele precisa contemplar algo além de, simplesmente, guardar o pensamento de maneira concreta. O escrever possui uma intenção secreta muitas vezes manifestada de forma 36


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inconsciente. A verdadeira intenção do escrever pode ser a de transmitir determinada informação ao outro. Novamente, lembramos das palavras de Flusser (2010, p. 20): “Apenas quando uma obra escrita encontra o outro, o leitor, ela alcança sua intenção secreta.” O texto escrito pode retratar, muitas vezes, um conhecimento científico como, também, pode tratar de algo pessoal, a exemplo dos diários sobre a vida de seus escritores. Independentemente do tipo do texto e do conteúdo, questionamos se o que está escrito está se remetendo a alguém. Embora um diário possa ter como objetivo ser confidencial, quem o escreve está se voltando ao próprio diário e, consequentemente, o mesmo cumpre o princípio do ato de escrever que é se comunicar, ou seja, ir na direção do outro, já que o diário pode simbolizar outra pessoa: o ouvinte. Podemos, portanto, pensar na escrita, também, como um ato expressivo e político uma vez que promove uma interação entre pessoas. Isto pode ser evidenciado, por exemplo, na Ciência, pois a mesma busca trazer soluções para os problemas humanos e melhorar a qualidade da vida. Na Ciência, enquanto atividade colaborativa humana, as trocas se dão mediante a leitura de ideias onde se chega a concepções novas e se produz textualmente outros trabalhos para que se registrem os conhecimentos e se compartilhem informações visando o desenvolvimento científico. O ato de escrever para Flusser está relacionado ao ato de se adquirir consciência, o que ele chamará de consciência gráfica. “Nós conhecemos essa consciência gráfica, porque ela é nossa, e sobre ela, nós já refletimos e lemos.” (FLUSSER, 2010, p.21). O autor ainda, vai mais adiante, também chama esta consciência de consciência histórica pois a medida que se escrevem as linhas, se pensa logicamente, sendo possível calcular, criticar, filosofar e, portanto: agir. “Quanto mais longas são as linhas que se escrevem, mais historicamente pode-se pensar e agir.” (FLUSSER, 2010, p.21).

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O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

Flusser (FLUSSER, 2010, p.22), nos adverte sobre o engano de querermos acreditar que sempre houve história por sempre haverem fatos. “É um engano, pois nada aconteceu antes da invenção da escrita, tudo apenas ocorria. Para que algo possa acontecer, tem de ser percebido e compreendido por alguma consciência como acontecimento (processo)”. E ainda, “a história é uma função do escrever e da consciência que se expressa no escrever”. Ao longo dos tempos, o gesto de escrever tem servido para transferir o conhecimento através dos tempos, preservando sua memória e mantendo a historicidade da sociedade. A escrita é a responsável por organizar as experiências que acontecem no mundo da vida para o nosso entendimento, proporcionando o avanço de uma consciência histórica e possibilitando que esse conhecimento chegue o mais longe possível, contribuindo, assim, para a memória e o desenvolvimento humano. Portanto, podemos dizer que a escrita nos chama à consciência, ou seja, através dela o mundo faz sentido para as pessoas que estão inseridas nele.

5. HÁ FUTURO PARA A ESCRITA? No seu ensaio, Flusser versa sobre o processo de refletir sobre a escrita e acredita que a reflexão se trata de algo intangível, não palpável. Porém, o próprio ato de escrever sobre a escrita nada mais é que uma reflexão em torno da mesma. O processo da escrita trata de alinhar, em uma linguagem lógica, o que pensamos: O próprio escrever sobre a escrita pode ser considerado uma forma de reflexão, isto é, pode ser considerado como a tentativa de organizar, por meio de novos pensamentos, a escrita relativa aos pensamentos já elaborados, como a 38


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tentativa de sondar esses pensamentos elaborados e, então, fazer anotações (FLUSSER, 2010, p.18)

Ao considerar que a importância do ato de escrever está na reflexão que o precede, o autor traça pensamentos relacionados com as novas tecnologias de informação e comunicação e suas influências na escrita. Flusser interroga se elas ameaçam o fim da produção escrita e coloca em pauta a rapidez e a variabilidade do escrever através dos processadores de texto e da “inteligência artificial” que é capaz de produzir o conhecimento por si só. Atualmente, o digitar está muito mais presente na realidade de grande parte das pessoas o que acaba influenciando diretamente no futuro da escrita já que a prática da escrita manual (que antes era utilizada para fazer relatórios, trabalhos de sala de aula, livros e etc.) está sendo substituída pela escrita “computadorizada”, a qual através da digitação encontra sua praticidade e rapidez. Tais ferramentas, não são apenas instrumentos de automatização: “Quanto a nós, poderemos deixar confiantemente toda a história por conta das máquinas automáticas. Já que todas essas coisas automáticas e mecânicas farão história melhor do que nós, poderemos nos concentrar em outras coisas. Em quê? [...] Há futuro para a escrita?” (FLUSSER, 2010, p.23)

As tecnologias, na verdade, são apenas um instrumento que auxiliam na organização, armazenamento e disseminação da informação. Tais ferramentas têm influência direta na produção e no consumo de informações. Colocamos em questão, se o grande fluxo de informação que nos chega e de forma muito veloz prejudica a reflexão. Será que a velocidade do tempo na qual se acessa tantas informações acaba por

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O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

oprimir o tempo necessário para refleti-las? Barreto (2008) esclarece que, em 1990, com o advento da Internet, a informação assumiu um novo status. Essas novas tecnologias trouxeram ainda uma nova forma de lidar com o acesso a informação e com questões relativas ao tempo e ao espaço de sua transferência uma vez que surge a possibilidade da sincronicidade, ou seja, do tempo real. A estrutura do suporte de informação sofre significativas mudanças uma vez que pode estar em diversas linguagens, combinando texto, imagem e som; não está mais presa a uma estrutura linear que permeia o processo da escrita. Ademais, cada receptor interage com o texto a partir de uma decisão individual de ficar no texto ou ir a outros espaços de informação paralelos, permitido pelos links e hipertextos, em um processo não mais linear como outrora. (BARRETO, 2008). Mediante este cenário, o mesmo autor ainda, alerta para alguns perigos nessa nova relação não linear cujo hipertexto pode causar desvios de rota, ao conduzir o receptor da informação nos diversos fluxos e desfocar do processo de cognição que seria o próprio ato de conhecer. Como sugestão, Barreto (2008), afirma que se faz necessário refletir sobre a apropriação da informação e geração do conhecimento no formato digital dos textos. Fica claro, então, que as reais modificações advindas das tecnologias de informação e comunicação são as condições de interatividade e interconectividade do receptor com a informação. Estas transformações sugerem um novo relacionamento entre o gerador e o receptor pautado na velocidade. A grande questão não se concentra na velocidade e nem no fluxo e sim na internalização da informação, ou seja, a informação se orienta para formar uma inteligência coletiva? Nesse contexto, como fica a aprendizagem? Já que a mesma se apoia no processo de interiorização e subjetivação do

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conhecimento, como um processo que exige um determinado tempo para a absorção do que está registrado para, daí sim, ser exteriorizado (BERGER; LUCKMANN, 2007). Se toda escrita carece de reflexão e ainda, segundo Freire (1989, p.09), se a “[...] leitura do mundo precede a leitura da palavra”; como fica a qualidade do que vem sendo escrito na sociedade contemporânea? Recordamos que Freire (1989) ao escrever sobre a importância do ato de ler, tece uma crítica às práticas de ensino que, geralmente, impõem listas e mais listas de livros para que seus alunos leiam sem que estes tenham tempo suficiente para se aprofundarem nas leituras. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram poucas as vezes em que jovens estudantes me falaram de sua luta às voltas com extensas bibliografias a serem muito mais “devoradas” do que realmente lidas ou estudadas. [...] A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada. A mesma, ainda que encarnada desde outro ângulo, que se encontra, por exemplo, em quem escreve, quando identifica a possível qualidade de seu trabalho, ou não, com a quantidade de páginas escritas. No entanto, um dos documentos filosóficos mais importantes de que dispomos, as teses sobre Feuerbach, de Marx, tem apenas duas páginas e meia (FREIRE, 1989, p.12).

Por fim, quando Flusser questiona: “Há futuro para a escrita?”, e dessa maneira, ele também nos leva a pensar no futuro da reflexão. Podemos dizer que a escrita em si e seus instrumentos são e sempre serão os mesmos? Não. A escrita certamente evolui e modifica-se, ao passo do incessante processo civilizador, como chamaria Elias (1993), com base no 41


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processualismo sócio-histórico. A questão agora, não é debater se a escrita irá acabar ou não, ou se irá ser prejudicada pelo uso das TIC‟s; e sim perceber que quando falamos desse assunto, estamos falando da necessidade e da importância de se pensar e escrever sobre a escrita, enquanto atividade reflexiva e significativa de mundo.

6. CONCLUSÃO O caminho aqui traçado nos possibilitou um desfecho interessante. Ao concluir essa breve e inicial reflexão, constamos duplamente, na prática, as colocações de Flusser em torno da Metaescrita. Primeiro, pelo fato de escrever sobre a escrita, pudemos perceber nossa compreensão sobre a reflexão feita, ou seria melhor dizer: que ao enfileirarmos de forma organizada, palavra após palavra neste texto, pudemos nos aperceber. Isso é representado por um ganho de consciência sobre o fenômeno experienciado e vivido nestas linhas: a escrita. Em segundo lugar, como consequência de uma consciência adquirida neste processo, ampliamos nossas lentes sobre o ato de escrever uma vez que ele passa a ser para nós, o nosso próprio reflexo, ou ainda, uma leitura de nós mesmas que ao se realizar através da escrita, nos revela: pois parte de nós em direção ao outro, buscando assim, a interação social que constrói a realidade e permeia o mundo da vida. 7. REFERÊNCIAS BARRETO, Aldo de Albuquerque. Uma quase história da ciência da informação. Data Grama Zero: Revista de Ciência da Informação, v.9, n.2, abr. 2008. Disponível em:

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Daniella Pizarro, Kariane Laurindo e Keitty Vieira

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O ato de refletir e o escrever sobre a escrita

_____. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993b. 307 p. v. 2 FLUSSER, Vilém. Metaescrita. In: ______. A escrita: há futuro para a escrita?. São Paulo: Annablume, 2010. Cap. 1, p.17-24. FLUSSER, Vilém. Em busca de significado. In: LADUSANS, Stanilavs. Rumos da filosofia atual no Brasil: em autoretratos. São Paulo: Loyola, 1976. p. 494-506. Disponível em: <http://www.mariosantiago.net/Textos em PDF/Vilém Flusser. Em busca do significado.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2014. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: _______. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. Ap. 1, p. 9-14. SCHÜTZ, Alfred. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes, 2013

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Capítulo três - Ler e escrever com sangue: a arte do cultivo de si em Nietzsche Jonas Faccin Vilmar Martins

1. UMA APROXIMAÇÃO.... À GUISA DE INTRODUÇÃO Refletir sobre a “Leitura e Escrita na construção do conhecimento”, muitas vezes nos remete a questões unívocas, tais como a importância da leitura e da escrita na construção do conhecimento, ao convidarmos Nietzsche para pensar a temática, certamente que fugiremos dos dualismos e flertaremos com hipóteses pouco convencionais, sendo assim o presente capítulo é uma reflexão / interpretação da concepção nietzschiana de ler e escrever contida no texto “Do ler e escrever” na obra “Assim falou Zaratustra, onde Nietzsche afirma que “aprecia somente o que alguém escreve com o próprio sangue” e que “não é fácil compreender o sangue alheio”. Partindo desta figuração proposta pelo filósofo do martelo, nosso objetivo é buscar no corpus philosophicum filosófico nietzschiano elementos para interpretar esta provocação. Dentre as muitas questões que nos provocam destacamos: Como escrever com sangue? Que processo formativo nos levaria a “escrever com sangue” e nos capacitaria para “provar sangue alheio”? Para além de buscar respostas queremos nos deixar levar por estas provocações, com a clareza que as conclusões de tal análise certamente serão provisórias, contingenciais e circunstanciais, pois nada mais contrário ao pensamento de Nietzsche do que conclusões herméticas. Sendo assim, ensaiaremos um pensar a partir do


Ler e escrever com sangue

“devir”, inocente e afirmativo, que elabora “verdades” e valorações nos encontros produzidos pela vida, “descomprometido” com o todo, sem culpa e sem visar recompensa; acima de tudo um pensar que afirme a vida. Enfrentar um tema com Nietzsche é sempre uma tarefa ingrata, porém não inglória... ingrata porque para fazer jus as provocações do filósofo do martelo, não podemos apenas indicar o que Nietzsche disse acerca do tema, muito menos pressupor o que ele diria sobre o tema... porém esta atividade não se torna inglória, pois somos desafiados a nos posicionarmos diante do tema e longe de qualquer objetividade somos tomados pelo tema e o tema nos toma, assim exercemos a árdua tarefa de cultivar a nós mesmos. Como leitores de Nietzsche já nos antecipamos a abdicar de um “discurso verdadeiro”, ou seja, muito mais do que “provar” uma hipótese, nosso móbil é observar que valores são afirmados e/ou suprimidos por determinadas assertivas e apontar novos valores, com o objetivo de transvalorar, ou seja, procurar novos valores, mas também mover, deslocar, retirar do lugar usual, reabilitar alguns significados, corromper outros e inventar complementos aos valores já arraigados. Compreendemos valores como crenças interiorizadas que traduzem as preferencias mais básicas de um tipo humano, a partir dos valores o humano hierarquiza a vida fixando o que sente como benéfico ou nocivo. Certamente que ler e escrever são tarefas primordiais na construção do conhecimento, porém a atividade de leitura e escrita se dá a partir de determinados valores, desta forma, ler e escrever também são formas de afirmar e/ou suprimir valores. Nietzsche escreve em seu Zaratustra “De tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que sangue é espírito. Não é quase possível compreender o sangue estranho; (NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra, “Do Ler e Escrever”.

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Jonas Faccin e Vilmar Martins

p. 58). Muito mais do que se perguntar “o que Nietzsche quer dizer com isso” questionamos: “Que valores são afirmados e que valores são criticados neste texto?”

2.

O ENFRENTAMENTO... DESENVOLVIMENTO

NO

ESTILO

DE

A escrita hermética, indecifrável, por vezes fluída e paradoxal de Nietzsche, demonstra o seu convite a interpretação, pois de que outra forma encarar uma obra fragmentária e aforismática? O estilo de Nietzsche nos leva a questionar sobre como escrever, e, para além disto, como escrever com sangue? Pensamos que, escrever com sangue é fazê-lo a partir do acúmulo de trabalho e dedicação: uma escrita que exige esforço, longe da esperança em lapsos criativos. Sangrar na escrita só ocorre após o acúmulo de ideias, estudos, leituras e vivências. Represar, para depois irromper – eis uma escrita com sangue! Após irromper, uma minuciosa lapidação – “um ourives depurando o seu trabalho” (Idem. Aurora. “Prólogo”, § 5, p. 14). É preciso muito mais do que inspiração para escrever com sangue, a inspiração resulta de um árduo trabalho, a escrita de algo que mereça ser lido exige afinco. “Que alguém faça dezenas de esboços de novelas, nenhum com mais de duas páginas, mas de tal clareza que todas as palavras sejam necessárias; que registre diariamente anedotas, até aprender a lhes dar a forma mais precisa e eficaz...” (Idem. Humano demasiado humano. §163, p. 116). Sangue, corpo, pele, metáforas caras ao filósofo do martelo, não são poucas as interpretações que o confundem com um sensualista ou um fisicalista, interpretações rápidas que intentam filiá-lo a uma concepção sem adentrar em sua 47


Ler e escrever com sangue

filosofia. Partindo da dicotomia clássica Corpo e Alma, podemos pensar que o sangue como elemento físico, movente do corpo, constituinte mais básico do humano na escrita, tornase espírito. Neste caso, mais uma vez Nietzsche confunde os leitores rápidos, pois como pode o sangue tornar-se espirito? A capacidade espiritual do sangue vertido na escrita consiste na auto formação realizada e explicitada em uma escrita que valha a pena, pois: “Escrever deveria sempre indicar uma vitória, uma superação de si mesmo, que deve ser comunicada para benefício dos outros (...)” (Humano demasiado Humano II, §112, p. 71). Assim, a escrita é usada para apresentar ao mundo o resultado das nossas batalhas, o processo de superação da nossa atual condição. A escrita manifesta explicitamente a vontade de poder como vontade de domínio, pois subjugamos as palavras, levando as mesmas a expressarem o todo orgânico e conflituoso denominado humano, assim na escrita transparece a pulsão que momentaneamente hierarquizou nossos impulsos e impôs o seu domínio. Desta forma a escrita é carregada de valores, a escrita não é neutra, não são simples símbolos apresentados à decodificação, mas é vontade de poder. Estes valores podem ser reativos e negar a vida em prol de uma transcendência, desvalorizando os valores, uma vontade de nada, o registro das nossas frustrações e ressentimentos, ou podem comumente ser valores ativos, de afirmação da vida, um sim grandioso à existência, o registro das nossas superações. Ao transmitir um assunto, estando imerso em suas disposições mais íntimas, um autor, ao mesmo tempo em que explicita uma ideia, deixa algo obscuro, algo que inevitavelmente escapa àqueles que procuram desvelar o conteúdo de um texto, pois segundo Nietzsche: “Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos” (Idem. Gaia Ciência. §381. p. 156).

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Sangrar na escrita também é escolher os leitores, tanto para não ser confundido, quanto para não banalizar os escritos, por isso a importância da leitura e da interpretação na obra de Nietzsche. Não à toa que o filósofo afirma “não é quase possível compreender o sangue estranho”, pois para compreender sangue estranho é necessário interpretar, ou seja, “[...] violentar, ajustar, abreviar, omitir, preencher, imaginar, falsear e o que mais seja próprio da essência do interpretar” (Idem. Genealogia da Moral. “Terceira dissertação”, §24, p. 130). Nietzsche, em seu Além do Bem e do Mal, confere um valor artístico à capacidade de interpretação ao dizer “[...] a arte de ler nuance constitui nossa melhor aquisição na vida” (Idem. Além do bem e do mal. § 31, p. 35). Se Nietzsche mesmo “aprecia somente o que alguém escreve com o próprio sangue”, e que se assim for “verás que sangue é espírito”, reconhecemos já aqui uma interpelação àquilo que identificamos como tarefa essencial ao homem de travessia – o tipo humano que busca a superação da sua atual condição -, qual seja, a tarefa do “cultivo de si mesmo”, possível a partir da disposição em ler a própria vida como nuance. É Nietzsche quem se autodenomina: “eu sou uma nuance” (Idem. Ecce Homo. “O Caso Wagner”, § 4, p. 100). Por “nuance” compreende certa destreza, habilidade em perceber a contínua possibilidade de deslocar/rearranjar algo, um conceito, impedindo com isso qualquer pretensão de fixidez ou absolutização. Neste sentido, vale dizer, “a „nuance‟ é o desvio em relação ao conceito, uma vez que este último sempre opera com a vulgarização na medida em que fixa algo, retirando-o das condições do tempo” (VIENSENTEINER, 2011). São desprezíveis, irá ressaltar Nietzsche em seu Ecce Homo, aqueles que não possuem “dedos para nuances”. Lançamo-nos com isso a uma hipótese acerca da tarefa de “escrever com o próprio sangue”, isto é, apenas é capaz de

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“escrever com o próprio espírito” aquele que primeiramente se lançou ao oficio do “leitor perfeito”. Em Ecce Homo o filósofo tenciona o que seria um leitor perfeito: “[...] quando busco formar a imagem de um leitor perfeito, resulta sempre em um monstro de coração e curiosidade, e também em algo dúctil, astuto, cauteloso, um aventureiro e descobridor nato. (NIETZSCHE. Ecce Homo. “Por que escrevo livros tão bons”, § 3, p. 54) Na sequência do texto afirma não saber ele ao certo quem são estes leitores, mas tão somente Zaratustra, que sabe dizer “a quem somente contará seu enigma”, a saber, para “[...] intrépidos buscadores, exploradores, e a todos os que sempre embarcaram com velas sutis para singrar mares temíveis. (Idem. Assim Falava Zaratustra. “Da visão e do enigma”, § 1, p. 209). Nietzsche tem claro para si o que pretende de seu leitor: deslocar o interlocutor à interpretação. Neste caso, o filósofo alemão afasta seu texto de uma escrita consagrada como tradicional, abarcada por sistemas e conceitos fechados que por sua vez conferem validade universal a toda obra. Diferentemente, os conceitos em Nietzsche são determinados como função, isto é, “são signos e não definições, e como tal, fluem, transformam-se, permitindo o delineamento de nuances e variações que precisam ser observadas cuidadosamente pelo leitor” (PASCHOAL, 2012). Nietzsche leva seu interlocutor a pensar não mais a partir de uma instância universal, mas individual à medida que a ele surgem formas de interpretar. Aos experimentadores, àqueles que se lançam ao mar, é dada a capacidade de “ler nuances” ou, conforme Zaratustra, aos escolhidos confia-lhes a tarefa de escutar seu enigma. É interessante notar a relação que Nietzsche estabelece entre o bom leitor e a profundidade da escuta. Note-se, por exemplo, quando ele diz: “É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca... (NIETZSCHE. Ecce Homo. “Prólogo”, § 4, p. 17), ou onde

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está escrito: “Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; - certamente um renascimento da arte de ouvir era uma precondição para ele. (Ibidem. “Assim falou Zaratustra”, §1, p. 79). Ora, Nietzsche desloca propositadamente a interpretação do autor para o leitor (PASCHOAL, 2012), por isso mesmo a importância da escuta. Ou seja, ao leitor é dada a tarefa da interpretação, uma vez que, “Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda „decifrado‟, ao ser apenas lido: deve ter início a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação. (NIETZSCHE, Genealogia da Moral. “Prólogo”, § 8, p. 13). Se a arte de ler nuances é para poucos, conforme pensava Nietzsche, isso deve-se ao fato de que a arte de interpretar não pode ser tomada como uma tarefa simples, por vezes exercida de modo simplório, ou mesmo vulgar. O que está em jogo não é simplesmente a realização de uma leitura, mas um deslocamento interpretativo capaz de intensificar a grande tarefa do “cultivo de si”. Talvez seja esta uma das maiores dificuldades dos “ouvidos despreparados”, ou seja, a incapacidade de perceber que Nietzsche não torna estáticos os conceitos. Pelo contrário, faz parte mesmo de seu jogo de máscaras a presença de uma fluidez de sentidos, de tal modo que “[...] todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorar-se, e todo subjugar e assenhorar-se é uma nova interpretação... (Idem. “Segunda dissertação”, § 12, p. 60) Ora, como não seria isto possível se até mesmo nas “verdades” estão contidas nuances? (PASCHOAL, 2012). Nietzsche chama a atenção para aqueles que, na pressa de tudo saber, nada sabem. Neste sentido, não há maior ingenuidade que, utilizando-se de leituras rasteiras e superficiais, acreditar-se sabedor de um pensamento que em todo seu percurso exige uma disposição estética, qual seja, a disposição para a arte de ler nuances. Não sai do lugar aquele

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Ler e escrever com sangue

que não se predispõe a uma “[...] lenta leitura – afinal, também escrevemos lentamente” (NIETZSCHE. Aurora. “Prólogo”, § 5, p. 14). Àqueles que insistem em continuar na superficialidade da vida, “[...] nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de gente que „tem pressa‟. (Ibidem)”. Aliás, como são raros os desprezadores de toda a pressa; os desprezadores daqueles que em todo início não tardam em querer anunciar o fim. É certo que Nietzsche não pretendeu oferecer a seus leitores qualquer método de leitura que pudesse facilitar toda interpretação. Pensar assim seria um equívoco! O que Nietzsche lança são hipóteses que em grande medida tem como pretensão / audácia conduzir o leitor a assumir a tarefa ao cultivo de uma “espiritualidade elevada”, o que certamente pressupõe a habilidade de uma “escrita com o próprio sangue”. Neste caso, se por um lado, Nietzsche convoca seu interlocutor a adentrar no pensamento de um autêntico imoralista, pois nele não se encontram referências inquebrantáveis e inabaláveis, por outro não deixa de ressaltar ao leitor a importância em cultivar a responsabilidade e o comprometimento às suas ideias. A este respeito, note-se o que escreve de seu Zaratustra: “[...] não se pode gabar de conhecêlo quem já não tenha sido profundamente ferido e profundamente encantado por cada palavra sua” (NIETZSCHE. Genealogia da Moral. “Prólogo”, § 8, p. 13), afinal de contas, apenas conhece uma obra aquele que, com responsabilidade e comprometimento, deixa-se tocar profundamente pelas palavras que lá estão expressas. Diante da exigência e maestria que acompanham aquele que se dispõe adentrar nos escritos de Nietzsche, vale dizer, pela arte da fluidez dos sentidos, Zaratustra mesmo anuncia ao leitor aquilo que lhe será exigido, isto é, rigor e disciplina de artista, pois somente ao experimentador será dada a possibilidade de escutar o enigma a ser interpretado.

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Em hipótese alguma pode o leitor conformar-se com a passividade diante da obra, sobretudo porque em Nietzsche, “[...] também ao leitor é exigido mais do que atitude de um expectador passivo, caso se queira testemunhar, efetivamente, o encontro da obra com aquele a quem ela é destinada” (PASCHOAL, 2012). Contra qualquer interpretação rápida e rasteira que se pretenda colocar “acima da obra para avaliá-la” (PASCHOAL, 2012), a filosofia de Nietzsche nos recorda que até mesmo nossas “verdades” não passam de nuances, pois, isto que cunhamos “é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior” (NIETZSCHE. Genealogia da Moral. “Segunda dissertação”, §12, p. 60). A tarefa ao “cultivo de si” pressupõe a exigência e a força que somente os homens de elevado espírito são capazes de assumir. Recorde-se que ao leitor Nietzsche exige uma nobreza espiritual, neste caso, aquele que em larga medida despreza os que diante de tão fortes pensamentos apenas “passam o olho” acreditando-se assim decifradores de enigmas. Assume prioritariamente a tarefa do “bom leitor” aquele que no “cultivo de si” assume também a tarefa de continuamente superar a si mesmo.

3. PROVOCAÇÕES... À MANEIRA DE CONCLUSÃO Beleza, enfrentamento da pressa, esforço, trabalho, força, nobreza, autosuperação, sensibilidade, dureza, em suma cultivo de si... tantas palavras, quantas exigências, Nietzsche é um escritor “chato” que muito requer dos seus leitores. Como evidenciamos, não basta apenas decodificar os signos, necessitamos estar “profundamente ferido e profundamente encantado por cada palavra sua”, por isso a 53


Ler e escrever com sangue

necessidade do cultivo de si para “provar sangue alheio” e “escrever com sangue”. O cultivo de si se relaciona diretamente com a concepção de “homem-planta” (NIETZSCHE. Além do bem e do mal, §44, p. 44) e “animal mais interessante” (NIETZSCHE. O Anticristo. §14, p. 32), denominações que Nietzsche utiliza para o tipo humano. Enquanto planta, tem a necessidade de se sujeitar ao solo onde nasce – o processo é imanente e não transcendente. Ao mesmo tempo, esse animal torna-se “interessante” por sua capacidade inventiva, por ser um construtor – de linguagens e de valores. A capacidade de criar valores e significados é condição para o cultivo de si, pois, para colocar em movimento a roda dos valores e dissolver seus significados, é necessário anteriormente suspeitar, colocar em dúvida, negar, descartar os ídolos consagrados e despir-se dos dogmatismos. O cultivo de si carrega um caráter seletivo, pois, no processo de criação de valores, se faz necessário avaliá-los, para os abandonar e edificar outros, colocando no horizonte a possibilidade de novos valores estarem sempre suscetíveis a uma nova avaliação. Esse processo, portanto, também está intimamente relacionado ao caráter fluido dos valores e da existência. Além disso, o caráter seletivo do cultivo de si implica na coragem de decidir, optar, escolher e conviver bem com nossas escolhas. Sendo assim, o cultivo de si é uma atividade imanente que cada um realiza, não para adquirir ou evitar determinadas virtudes e defeitos, mas para estruturar em certas disposições os traços que constituem cada ser. Denominamos este processo como “imanente” na falta de um conceito que melhor exemplifique o que não se relaciona com algo “fora” do humano, pois não há fora e nem dentro em um mundo antropomorfizado, queremos salientar que imanente não significa resgatar uma “natureza” perdida e

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idílica do tipo humano, mas construir e reconstruir essa pretensa “natureza” em uma tarefa de cultivo. Enfim, longe de nossas pretensões responder tudo o que em Nietzsche se compreenda como cultivo, escrita e interpretação, procuramos neste momento desenvolver nossa hipótese que versa sobre a possibilidade de ler os escritos de Nietzsche como nuance e a escrita como processo árduo de comunicação de uma singularidade, tudo imbricado em um movimento de auto formação. Ora, o próprio filósofo ao sangrar em sua escrita, convida seu interlocutor a tarefa de experimentar sangue alheio interpretando, se colocando no texto, ciente que assim como no rio de Heráclito, não será a mesma pessoa a que adentra e a que sai desta leitura. Adentremos então em um belo aforismo de Nietzsche retirado de Além do Bem e do Mal que, ao nosso entendimento, “santifica” esta arte de escrever com sangue e ler nuances, compreendida também como a arte do inacabamento: “Péssimo! Sempre a velha história! Ao terminar a construção da casa, notamos que sem nos dar conta aprendemos, ao construí-la, algo que simplesmente tínhamos de saber, antes de começar a construir. O eterno aborrecido „Tarde demais!‟. – A melancolia de tudo terminado!...” (NIETZSCHE. Além do bem e do mal, § 277, p. 171). Alguém se arriscaria interpretar?

4.

CÚMPLICES TEÓRICOS... NO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MODO

DE

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 340 p.

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Ler e escrever com sangue

__________, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. 247 p. __________, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mario Ferreira dos Santos.6 ed. Petrópolis-RJ: Vozes. 2011. 397 p. __________, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução de Mario D. Ferreira Santos. Petrópolis-RJ: Vozes. 2008. 263 p. __________, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. 141 p. __________, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2009. 169 p. __________, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2005. 314 p. __________, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. 363 p. __________, Friedrich Wilhelm. O anticristo: maldição contra o cristianismo. Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro. 1985. 127 p.

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Jonas Faccin e Vilmar Martins

PASCHOAL, Antônio Edmilson. A Arte de Ler Nuances. In: Nietzsche e a Interpretação. Vânia Dutra de Azeredo e Ivo da Silva Júnior (Org.). Editora CRV FAPESP HUMANITAS. Curitiba. 2012. VIESENTEINER, Jorge L. Aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever': condições integrantes do conceito de Bildung no Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche. In: DIEZ, Carmen Lucia. (Org.). Instigar a pensar e a questionar: o sentido do ensino da filosofia. 1ed.São Paulo: Mercado de Letras, 2012, v. 1, p. 13-35.

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Capítulo quatro - História e Sociologia como possibilidades de conhecimento Alcione Nawroski

1. APROXIMAÇÕE SENTRE HISTÓRIA E SOCIOLOGIA “Onde fareja carne humana sabe que ali está a sua caça” Marc Bloch O capítulo busca discutir a evolução da pesquisa histórica como possibilidade de leitura e escrita para a construção do conhecimento, bem como, a proximidade com outras áreas afins. Assim, pretende mostrar diferentes caminhos que áreas de conhecimento, como, sociologia e história vêm tomando nas ciências humanas, principalmente a partir da segunda metade do século XX, quando novos campos de conhecimentos começam a surgir, como exemplo: a antropologia. Por meio dos estudos de Peter Burke, o capítulo destaca as aproximações da história e sociologia como áreas vizinhas que pouco dialogavam, mas com o passar do tempo acabam se aproximando, como vamos ver a seguir. As contribuições destes dois historiadores ingleses ajudam a retratar o percurso da história, principalmente no último século e ajudam a contextualizar alguns referenciais da historiografia inglesa, como: Edward Palmer Thompson, Raymond Williams e Eric Hobsbawm. São autores classificados dentro da história, segundo Burke (1980, 2001), como aqueles que fazem parte da história social inglesa influenciada pelo marxismo.


História e Sociologia como possibilidades de conhecimento

No que toca a evolução da história como área de conhecimento, Burke (1980, 2002) e Carr (1996) apontam como bastante assertiva a aproximação, no decorrer do desenvolvimento das ciências, ente a história e a sociologia. Edward Carr destaca principalmente a influência do ambiente histórico e social na seleção e interpretação dos fatos históricos, onde o autor aponta como um aspecto fascinante da condição humana para o historiador. No início dos anos 1980, Peter Burke publicou o livro Sociologia e História e posteriormente, no início da década de 1990foi revisitado e ampliado passando a se chamar História e Teoria Social. Na obra, o autor se propôs a fazer um diálogo interdisciplinar entre a sociologia e a história como duas áreas de conhecimento que começam a se aproximar desde o início do século XX, além de estabelecer uma interação com a antropologia. Burke (1980, 2002) começa apontando nos dois livros que a sociologia e a história são dois campos de conhecimento vizinhos, mas que pouco ou quase nada dialogam, pontuando com a afirmação de Braudel que existia um “diálogo de surdos” entre as duas áreas de conhecimento. A tese que norteia os estudos nestas obras está pautada na utilidade da sociologia para os historiadores e na utilidade da história para os sociólogos. São a priori questões simples, mas que tomam uma dimensão maior à medida que o autor começa a discutir comas áreas. Para Burke (1980), a profissão entre historiadores e sociólogos de um ponto de vista sociológico não são só profissões diferentes, mas, também subculturas distintas com linguagens, valores e estilos de pensamento próprio que são reforçados pelos processos de aprendizagem de cada área. Inicialmente, o autor chama historiadores e sociólogos de provincianos ligados a suas “paróquias” como um território único. Mais tarde, no segundo livro, o autor se estende advertindo que esse “paroquialismo” é uma forma em que

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Alcione Nawroski

historiadores e sociólogos encontraram de se protegerem em suas respectivas áreas, onde cada qual, “vê o argueiro nos olhos do outro” (BURKE, 2002, p.10). Para Burke, do ponto de vista histórico ainda são cometidos anacronismos nas duas áreas, como: a associação da atual história ao século XIX de Ranke ou a associação da atual sociologia ao século XIX de Comte. O autor justifica esse antagonismo, a partir de três períodos históricos no pensamento ocidental: 1) Meados do século XVIII; 2) Meados do século XIX e 3) Década de 1920. No primeiro momento, a sociologia não existia, entretanto, obras como “Ensaio sobre a história da sociedade civil” de Montesquieu e “A Riqueza das Nações” de Smith tratam de uma teoria geral, identificada na época por Millar como uma “filosofia da sociedade”. No campo da história, também destaca alguns ensaios de história social, como “Ensaio sobre modos” de Voltaire e o “Declínio e queda do Império Romano” de Gibbon. No segundo momento, cem anos mais tarde, teóricos sociais como Marx e Engels desenvolveram trabalhos muito próximos à história. Para Burke, são estudos que podem ser descritos como também sendo da filosofia da história. Spencer, Marx e Comte ao utilizarem o método comparativo, o mesmo era considerado um método histórico na medida em que implicava localizar cada sociedade em seu estado temporal. Por outro lado, os historiadores levavam pouco a sério a história social. Pois este período foi marcado pelas pesquisas de Leopold Ranke que não rejeitava a história social, mas pouco a acolhiam tendo em vista que seus livros se concentravam nos estudos sobre o Estado. O seu método estava baseado em escrever uma história mais cientifica com base em documentos oficiais: Os historiadores elaboraram um conjunto de sofisticadas técnicas para avaliar a credibilidade

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História e Sociologia como possibilidades de conhecimento

desses documentos. Sabiam como organizar o material quando o encontravam. Havia um lugar para cada fato e cada fato estava no seu lugar – numa sequência cronológica (BURKE, 1980, p.13).

Ainda que a história tenha uma longa trajetória que vai desde antes de Heródoto, é só no século XIX que a disciplina se profissionaliza com os primeiros institutos de pesquisa e os primeiros departamentos universitários. Também era vista como uma opção de promover a unidade nacional, ou, uma forma de educação para a cidadania. Segundo Burke (2002), os teóricos sociais estudavam a história, mas dedicavam pouca importância aos historiadores, onde o mais importante serviço do historiador era descrever a vida das nações fornecendo material para a sociologia comparativa. No início do século XX, Durkheim também se apropriou da história para escrever seus trabalhos e não diferente foi Weber que se serviu da história para suas obras e conceitos como “estado patrimonial” e “carisma”. Assim como Durkheim e Weber, outros estudiosos também se ativeram a história para desenvolver seus estudos. Até a antropologia, uma nova área de conhecimento que surgia se apropriava da história para decifrar a cultura de diferentes tribos. O terceiro momento ocorre no início do século XX, quando é marcado por mudanças nas pesquisas, onde as bibliotecas são substituídas por laboratórios e as saídas de campo, adotadas pelos antropólogos, passam a enterrar o passado e consequentemente enterrar o histórico modo de fazer história. “Durkheim tinha conciliado uma abordagem funcionalista com um interesse pela história, mas os funcionalistas posteriores, como Malinowski, abandonaram completamente a história” (BURKE, 1980, p. 18). Com o avanço das pesquisas em antropologia, onde seus estudiosos deixavam as espreguiçadeiras na varanda para

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ir ao campo, os sociólogos principalmente da Escola de Chicago também deixam suas poltronas para extrair cada vez mais dados da sociedade contemporânea. Nos anos 20, a sociologia influenciada pela antropologia foi marcada pelos estudos de favelas, guetos, imigrantes, gangues, vagabundos e demais. Os estudos começaram a acontecer por meio do levantamento de questionários e respostas e passaram a tratar o passado como algo irrelevante. “Várias explicações percorreram para explicar essa mudança para o estudo do presente em detrimento do passado” (BURKE, 2002, p. 26). Uma delas foi a crescente independência e profissionalização da economia, antropologia, geografia e sociologia que culminou para o surgimento da história social. Muitos historiadores estavam insatisfeitos com a história neo-rankeana baseada na história política e nos grandes homens. Essa abordagem foi substituída por uma “história coletiva” que começava a consultar dados em outras disciplinas como a psicologia social de Wundt e a geografia humana de Ratzel. Para Burke (1980, 2002), apesar de sofrer intensas críticas principalmente pelo chamado “materialismo” e “reducionismo”, foi atribuído à história social não mais a função de conhecer apenas as montanhas e os cumes, mas, também o sopé dessas montanhas. Nos anos de 1920, a França vivenciou o movimento rumo a um novo “tipo de história” conduzido por Bloch e Febvre. O movimento foi chamado de Annales d’Historie Économique et Sociale que começou realizando críticas implacáveis aos historiadores tradicionais contrapondo-se a história política com vistas a substituir esta por uma história mais ampla e humana, despreocupada com as análises de estrutura. E assim, França, e mais tarde Estados Unidos, foram países que levaram a sério a história social e estreitaram a relação com a sociologia apontando a importância do conhecimento antropológico para a produção do conhecimento

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científico. Isso não quer dizer que outros países também não viveram a influência da história social, seja no Japão, Rússia ou Brasil com Gilberto Freire que estudou nos Estados Unidos com Franz Boas. Após esse primeiro movimento de aproximação, foi mais propriamente nos anos de 1950 e 1960 que a sociologia e história começaram a convergir e aparecem juntas nas obras, como: ”Origens sociais da ditadura e da democracia” de Barrington Moore e “Guerras Camponesas” de Eric Wolf. As mudanças sociais que ocorrem nesse momento levam os demógrafos a estudar a explosão demográfica mundial; economistas ou sociólogos a analisarem as condições de desenvolvimento agrícola e industrial procurando entender estas questões por investigações a um passado mais remoto. Esse olhar ao passado pode ser explicado pela necessidade crescente de encontrar suas raízes e renovar laços com o passado de uma comunidade, como “sua família, pequena cidade ou aldeia, profissão, grupo étnico ou religioso” (BURKE, 2002, p. 34). No que ser refere às mudanças na história, Hobsbawm afirma que “os vinte anos que se seguiram a Segunda Guerra mundial assistiram a um flagrante declino na história política e religiosa, no uso das ideias como explicação da história, e uma notável virada para a história socioeconômica” (HOBSBAWM, 2013, p. 260). São correntes que se tornaram bastante influentes e até predominantes na historiografia ocidental.

2. ESCOLA DE ANNALES Um pequeno grupo de historiadores cria a revista Annales em 1929 na França para promover uma nova forma de fazer história com vistas a encorajar inovações. O Movimento foi dividido em três fases: 1ª fase de 1920 a 1945 - foi 64


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comandada por Febvre e Block; 2ª fase de 1945 a 1968 - foi o momento que se aproximou mais verdadeiramente de uma “escola” coordenada principalmente por Fernand Braudel. 3ª fase a partir de 1968 – foi assumida entre por Jaques Le Goff, sendo que é a primeira vez que ingressam mulheres ao grupo como Michèle Perrot. O terceiro e mais recente momento é marcado pela fragmentação e influenciado pelos movimentos, principalmente da França, com “Maio de 68”. A história passa a ser influenciada pela “antropologia simbólica” incrementada pelos estudos de Erving Goffman e Victor Turner que tratam dos aspectos cotidianos. Outros nomes também aparecem como os estudos de Pierre Bourdieu, Michel de Certeau e Roger Chartier. A Escola de Annales é caracterizada por três gerações que representam momentos históricos diferentes, contudo, fazem o exercício da interação entre história e ciências sociais.

3. HISTÓRIA CULTURAL Burke (2005) aponta que os indícios da história cultural começaram a aparecer por volta de 1870 na Alemanha e Inglaterra, e na França foi utilizada com o termo civilization. O autor dividiu sua história em quatro fases: 1) Fase Clássica a partir de 1800; 2) Fase da “História Social da Arte” a partir da década de 1930; 3) A História da Cultura Popular na década de 1960 e mais recentemente, 4) A Nova História Cultural. Inicialmente, a história cultural é marcada com os estudos alemães de Max Weber na obra Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo em que o autor avalia as raízes culturais que chamou de sistema econômico. Posteriormente, Norbert Elias escreveu O Processo Civilizador em que Burke definiu como essencialmente uma obra da história cultural, onde a história do “garfo” e do “lenço” foi uma importante 65


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contribuição para o que hoje se chama de “cultura do autocontrole”. Desde a década de 1960, a história cultural se aproximou numa relação bastante estreita com a antropologia, o que permitiu usar o termo cultura num sentido mais amplo. E atualmente, para Burke, estamos a caminho da história cultural de tudo, dos sonhos, da comida, das emoções, viagens, memórias, gestos e assim por diante (2005, p. 46).

4. HISTÓRIA SOCIAL INGLESA E O MATERIALISMO HISTÓRICO Para Burke (1980 e 2002), até por volta de 1950, a historiografia inglesa mais especificamente marxista desconhecia as pesquisas produzidos pela Escola de Annales. Foi a partir desta década que os Annales sofreram uma influência marxista principalmente da economia. Da mesma forma, os estudos do Annales começavam a entrar na academia inglesa, de uma forma bastante tranquila. E foi nesse contexto em que Thompson elaborou um dos principais trabalhos históricos: A Formação da Classe Operária Inglesa em 1963. Algumas questões da obra foram retomadas em estudos posteriores como na Miséria da Teoria em 1978, onde o autor expõe uma crítica ao estruturalismo althusseriano, principalmente no que se refere ao pouco diálogo de Althusser com a historiografia francesa, em especial de Marc Bloch e Fernand Braudel. Na tentativa de questionar os ideais socialistas e comunistas e na perspectiva de uma nova crítica as novas formas de luta contra a hegemonia capitalista firmados na tradição de 1956, Thompson buscou em The poverty of theory fazer uma crítica ao estruturalismo de Louis Althusser, o qual considerava uma forma de stalinismo próximas às práticas do utilitarismo. O autor discute e refuta algumas ideias com 66


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críticas ao historicismo, ao humanismo e ao moralismo, retomando a defesa da razão, da centralidade da história e do agir humano (agency). Na Inglaterra por conta da Revista “New Left”, as ideias de Althusser foram se disseminando e reduzindo a teoria comunista a uma “religião” esvaziada de qualquer caráter revolucionário. Assim, Thompson argumenta que com essa perspectiva se isola cada vez mais em seu casulo, despreocupando-se com o ser social e a sua história. Para o autor, o marxismo estruturalista é obscuro, desumano e racionalizado. Thompson defende que a tradição iniciada por Marx, oferte a classe trabalhadora, um princípio democrático que complemente sua experiência de vida. São argumentos que reafirmam um comunismo libertário orientando pelo materialismo histórico que destaca os conceitos de práxis e “agency” (agir humano). Thompson defende um materialismo que “dialoga com as evidencias, ressalta o caráter histórico do ser social e favorece sua compreensão e sua pratica” (Muller, p.03). Para Thompson (1981), o objetivo do conhecimento histórico é a história real, cujas evidencias precisam ser incompletas e imperfeitas. O passado humano não é um agregado de histórias separadas, mas uma soma unitária do comportamento humano, onde cada aspecto se relaciona com outros de determinadas maneiras. Portanto, o materialismo histórico tem a pretensão de abranger tudo e de produzir sempre uma história total. Podemos tomar ainda outro exemplo em que Benjamin (2012), enfatizava que os mortos nunca descansam em paz, que o passado nunca está acabado. E que a nossa tarefa como historiadores – se formos seguidores do materialismo histórico – é atualizar no nosso presente as lutas do passado, porque os derrotados de hoje são os herdeiros dos derrotados de ontem.

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Alguns conceitos como cultura, política e experiência foram chaves na historiografia britânica tendo em vista a dedicação dos historiadores britânicos com a história social. São conceitos bastante amplos que normalmente carecem de um recorte metodológico para serem trabalhados, tendo em vista a sua amplitude. Deste modo, os autores tratam do materialismo histórico como forma metodológica de trabalhar tais conceitos numa perspectiva histórico-dialética. Edward Thompson (1981) trata no capítulo sete do livro The poverty of theory, especificamente da “Lógica Histórica”, onde se propõe a desenvolver em defesa do materialismo histórico, algumas proposições que definem a lógica da história na pesquisa. Trata-se de um método lógico de investigação adequado a materiais históricos que possibilita o estudo dos fenômenos em movimento e exige constantes modificações nos seus procedimentos de análise, para captar os movimentos do evento histórico. O materialismo histórico (em sua “prática madura”) dialoga com as evidências, ressalta o caráter histórico do ser social e favorece sua compreensão e sua prática. Entretanto, atenta que é difícil apresentar uma coerência disciplinar na história por conta da diversidade de técnicas aplicadas nos modos de escrever história, onde os termos de investigação histórica são dispares e as conclusões controversas. Thompson defende a existência da lógica histórica, uma lógica não no sentido cartesiano de uma ciência absoluta, tampouco deve ser “submetida aos critérios da lógica analítica, o discurso da demonstração do filósofo” (crítica a Althusser). A história não pode ser confundida com a física, pois não oferece um laboratório de verificação experimental. Porém, na perspectiva thompsoniana, também não pode se submeter ao reinado de uma certa filosofia, como se esta fosse a grande sede da teoria marxista. Contudo, o autor destaca que por meio de diferentes contradições econômicas e sociais, emergem

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novas experiências e esperanças, novos pensamentos e valores, que expressam as respostas humanas aos acontecimentos e às eventuais mudanças. No discurso da disciplina, o autor vê somente uma lógica histórica que trata de uma lógica característica adequada ao material do historiador. A história oferece causas de evidencias necessárias para serem estudadas, que estão em movimento e manifestam contradições, onde as evidencias particulares encontram definições nos conteúdos particulares. Desta forma, assim como os objetos de investigação se modificam, também se modificam as questões adequadas. O autor recorre a Sartre para afirmar que “a história não é ordem, é desordem”. Para Hobsbawm (2013), a aproximação entre a Historiografia Francesa e a Historiografia Inglesa é justificada por focos temáticos comuns no período pós-guerra, que era o interesse pelo mundo moderno e a busca do rompimento com a história tradicional que ainda insistia em permanecer principalmente na Inglaterra. Ao mesmo tempo, Hobsbawm discorda de Burke no que se refere à tardia aproximação da Escola de Annales com a Historiografia Inglesa e antecipa esta aproximação: Imagino que alguns de nós, pelo menos em Cambridge, líamos os Annales já nos anos 1930. Além do mais, quando Marc Bloch veio e conversou conosco em Cambridge – ainda me lembro disso como o grande momento que então parecia ser e foi – foi-nos apresentado como o maior medievalista vivo, a meu ver, com toda justiça (HOBSBAWM, 2013. p. 251).

Para Hobsbawm (2013), essa aproximação ocorreu principalmente pela história econômica e social de uma forma amistosa e cooperativa como anteriormente Burke já mostrou. A aproximação da Escola de Annales com a historiografia 69


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inglesa e com os estudos marxistas, como estrutura de classe, autoridade além da tradição já cultivada na Inglaterra ocorre nos estudos de “cultura” desenvolvidos por Raymond Williams e Edward Thompson, generalizando a cultura com uma história das mentalidades, mas também aproximando com a antropologia social. “Na Grã-Bretanha, a antropologia social foi a disciplina crucial nas ciências sociais, pelo menos a única na qual alguns historiadores, entre os quais me incluo, descobriram um interesse consistente, e da qual constantemente temos conseguido nos valer” (HOBSBAWM, 2013. p. 257). No que se refere à história das sociedades, de acordo com o materialismo histórico, Hobsbawm aponta que é preciso eleger pelo menos uma ordem aproximada de prioridades de pesquisa e uma hipótese de trabalho sobre o que constitui o nexo central ou complexo de conexões com o nosso tema, ainda que isso implique em um modelo. “Todo historiador social de fato levanta hipóteses e sustenta tais prioridades” (HOBSBAWM, 2013. p. 119).

5. CONCLUSÃO A partir deste capítulo foi possível verificar a evolução da ciência da história, inicialmente como um campo que faz parte da filosofia da história e da sociedade, marcados pelos trabalhos de Smith e Marx. E posteriormente, no início do século XX, com o surgimento da sociologia e mais tarde da antropologia começa a fazer-se novas ciências, entretanto, cada qual em sua “paróquia” como Burke pontuou. Entretanto, durante o século XX, as paróquias começam a dialogar por meio das gerações da Escola de Annales na França, dos conceitos de práxis e “agency” (agir humano) e do princípio democrático que complemente a experiência de vida nos estudos Britânicos e pela insistência da antropologia quando os 70


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estudiosos deixam a varanda para ir ao campo fazer pesquisas contemporâneas. Não estamos generalizando as vertentes do conhecimento histórico, apenas demonstrando que todas elas foram tocadas pela aproximação de áreas afins, especialmente história, sociologia e antropologia que são áreas vizinhas e começam a “conversar” rompendo com o “diálogo de surdos” apontado inicialmente por Burke (1980, 2001). Assim, verificamos que novas e diferentes vertentes de pesquisa começam a tomar espaço e corpo no conhecimento produzido nas ciências humanas por meio da história, sociologia e antropologia. Podemos citar alguns exemplos como a história cultural, história social, história marxista, história política, micro-história, dentre outras. Enfim, diante da diversidade de vertentes da história que estudos contemporâneos apontam, vale destacar que é importante conhecer a história da história para poder fazer opções metodológicas de pesquisa a partir dos sujeitos e objetos escolhidos. Levando em conta os desdobramentos da história, no que compete à constituição das pesquisas, torna-se importante compreender o seu surgimento bem como o seu desenvolvimento durante a evolução dos conhecimentos pela humanidade.

7. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. O Anjo da história. Org. e trad. de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. BLOCH, Marc Léopold Benjamin. „Apologia da História, ou o Ofício do Historiador’; tradução: André Telles, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.

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BURKE, Peter. O que é história cultural? (trad.) Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 10-36. BURKE, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. (trad.) Nildo Odália. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. BURKE, Peter. Sociologia e História. Porto/Portugal: Edições Afrontamentos, 2ª ed., 1980. p. 09-26. CARR, Edward. Que é história? São Paulo: Paz e Terra, 1996. DALLABRIDA, Norberto. Mosaico de escolas: modos de educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis, SC: Cidade Futura, 2003. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. (trad.) Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MÜLLER, Ricardo Gaspar. “Revisitando E. P. Thompson e a “Miséria da Teoria”, in Diálogos (Revista do Programa de pósgraduação em História), Maringá: UEM, vol. 11, n. 1, 2007, p. 97-136. THOMPSON, E. P. Cap. 7: “A lógica histórica”, in THOMPSON, E. P. A miséria da teoria, ou um planetário de erros. Rio: Zahar, 1981, p. 47-62.

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Capítulo cinco - Introdução à ética axiológica Fernando Maurício Senna

Pretendemos apresentar os principais problemas axiológicos no campo da ética. Ética Axiológica é o ramo da filosofia que investiga os valores morais. Teoria dos valores é a investigação em sentido amplo, podendo incluir ou não a ética. Entre os filósofos que se dedicaram temos Cícero, A. Meinong, Adam Smith, R. H. Lotze, F. Brentano, Max Scheler, M. Reale, N. Hartmann, F. Nietzsche, B. Russel, G. E. Moore, Carnap, J. Dewey, etc. O termo “valor” origina-se do grego άξια, cujo contrário é απαξία, “sem-valor”, diferença esta que passou a figurar entre as questões axiológicas, levando alguns filósofos modernos a falarem em “contra-valor” e “desvalor”. Podemos distinguir os seguintes sentidos do termo ao longo da tradição: Cícero originalmente designou “valor” a aestimatio, o que é digno, estimado ou preferível em uma escolha; modernamente Adam Smith o definiu como valor de troca; em seguida Rudolf Lotze ampliou este emprego para outras áreas; Nietzsche investigou a transposição e equivalência entre valores; Hartmann foi o primeiro a utilizar o termo „axiologia‟ como título de obra (Grundriss der Axiologie, 1909), mostrando a distinção entre a objetividade dos fatos e a subjetividade dos valores; Ralph Perry, em General Theory of Value (1926), procurou pela primeira vez fornecer uma disciplina completa, definindo os valores como “qualquer objeto de interesse” e dividindo-os em moralidade, religião, arte, ciência, economia, política, lei e costumes; Dewey, em Theory of Valuation (1939), definiu os valores em sentido pragmático e demonstrou a indistinção entre meios e fins, etc. Assim, pretendemos levantar apontamentos introdutórios à questão dos valores e esperamos contribuir para o esclarecimento de sua complexidade e importância.


Introdução à ética axiológica

1. A REJEIÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA DOS VALORES. Este Capítulo pretende tratar dos “valores”, especialmente no campo da ética. Sua relevância imediata deve-se a sua frequente ocorrência na construção do próprio conhecimento, seja ele escrito ou interpretado. Com efeito, já a antiguidade haveria de expressar ao seu modo a “essência da Verdade” como um Valor. Mas foi o conceito de “virtude” que primeiramente exigiu definir a noção de valor. “Virtude” (gr. Areté) deriva de Áristós, “bom, forte, viril”, de onde o parentesco entre a palavra viril e virtude, pois virtude designava inicialmente a qualidade do varão. O oposto de Areté é Kakia, vicio (literalmente “ruindade”). Esta noção de virtude como força levaria a postulação da noção de valor como “estimável”, o que só foi possível pela síntese helenística entre a teoria aristotélica da felicidade e a teoria socrático-platônica das virtudes. Das quatro virtudes de Platão, Andréia (coragem), Sophrosine (temperança), Dikayosine (Justiça), Sophia (Sabedoria), foi esta última que os cínicos chamaram a maior virtude, por permitir alcançar o Fim da vida, a Eudaimonia (felicidade). Assim, as virtudes platônicas deixaram de ser apenas fins e tornaram-se também meios para um fim maior. Se o cínico encontrasse uma lâmpada com um gênio, capaz de conceder desejos, o cínico não pediria vários desejos realizáveis, pois vários desejos não podem caber em um único desejo; por isso pediria a perfeição, pois assim teria tudo o que poderia desejar. Pela primeira vez define-se „sábio‟ como “aquele que quer o que deve” e não “aquele que quer poder o que quer”. Portanto, se felicidade é abandonar a pretensão de poder algo sobre o destino – deixar ser o necessário, pois ir contra o destino é perder a liberdade –, então se tornou implícita a estima ou valoração dos fins. Por isso o cínico helênico desprezava a riqueza, a comodidade, a fama, as convenções humanas, a erudição. Nasce assim uma nova relação entre desejo, dever e felicidade, entendida como 74


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“escolher o que basta”, “o que basta é o simples” e “o simples é o melhor”. É esta relação do desejo e felicidade que será chamada posteriormente de “valor”. Posteriormente os estoicos trocarão sua vontade pelo Kathekon (“o que chega de cima para baixo”), o dever, agir segundo a necessidade, o que alguns interpretarão em sentido trágico e outros em sentido fatalista. O estoicismo dividiu a ética em diversos estudos. Zenão foi o primeiro a falar em (1) estudo do ορμή (tanto impulso quanto instinto, em distinção das tendências da razão). Deste devemos distinguir (2) o estudo das paixões (πάθος), definida como perturbation, e os estudos da (3) virtude, (4) fim supremo, (5) primeiro valor, (6) ações, (7) bem-mal e (8) deveres. Com Cícero, pela primeira vez (i) a investigação do dever foi distinguida daquela sobre a ação, assim como (ii) o estudo dos fins (últimos) foi separado dos valores (primeiros) e (iii) o estudo das paixões distinguido do sentimento moral ou disposição (diáthesis). Estavam lançadas as bases para a futura reviravolta moderna dos valores em distinção as virtudes como fim em si e a felicidade como fim último. Em Cícero, encontramos entre as coisas aquelas que são virtude (benéficas), as que são vícios (prejudiciais) e as que nem ajudam nem prejudicam (indiferentes, adiaphoría). Contudo, existem aquelas que merecem ser buscadas (άξια) e aqueles que merecer ser evitadas (απαξία), sejam relevantes ou indiferentes à bem e mal. Em sentido geral, o “valor” estoico é tudo o que contribui para uma vida equilibrada ou “qualquer contribuição para uma vida segundo a razão” (Diógenes L. VII, 105): saúde, conhecimento, força, fama, riqueza, nobreza, etc. Porém, apesar desta definição se limitar ao valor em sentido contributivo, existiria uma relação hierárquica entre os valores (prioritários) e os bens (finais). Então, em sentido geral valor “é o que está em conformidade com a natureza ou é digno de escolha” (Cícero, Definibus, III 6, 20). O selectionedignum

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(digno de escolha) se divide em valor obrigatório (“o que deve ser escolhido em todos os casos”) e valor de preferência (bens a que se deve preferir), distinção tão relevante quanto aquela entre “obrigação” e “permissão” quanto ao dever. Primeiro, os valores da alma e do corpo são os que merecem ser buscados por si mesmos, pois mesmo quando são indiferentes, ao menos são segundo a natureza (katáphysis). Para isto ser possível é necessário seguir o Dever (tòkathenon), isto é, agir como se estivéssemos a escrever a moral universal presente em toda a natureza – o mesmo que agir racionalmente –, podendo ser imitado por qualquer outro homem em situação similar e não guiado por um interesse particular. Segundo, os valores de preferência dividem-se em: (i) bens espirituais: talento, arte, progresso; (ii) bens corporais: saúde, força, beleza; (iii) bens políticos: riqueza, fama, nobreza. Em raros momentos a filosofia moderna teria tratado desta distinção estoica entre valor obrigatório e valor preferencial, ordenáveis entre si, levando a atual discussão entre a subjetividade (como no emotivismo de Carnap) e a objetividade dos valores (como na fenomenologia de Scheler). Defendemos aqui que o descuido histórico quanto à ética de Cícero (analisado a partir da interpretação kantiana) foi um dos principais responsáveis pelos problemas atuais em axiologia. Entretanto, (α) a mesma distinção levará a modernidade a distinguir valor intrínseco e valor instrumental, (β) a relação intrínseca entre valor e dever (e não à relação instrumental entre valor e útil) levará Kant à formulação de uma ética deontológica com o prejuízo à axiologia, e (γ) a divisão dos valores de preferência será a fonte das novas teorias dos valores desde Brentano. 2. AXIOLOGIA NEO-KANTIANA. As duas principais tendências em axiologia são póskantianas, uma não-kantiana e outra neo-kantiana, cada qual com diversas diferenciações internas, todas dependentes da 76


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interpretação kantiana da ética de Cícero. Este, em De officiis, traduziu o grego Kanon (Cânone) por Regula, a parte da filosofia que estuda princípios, medidas ou leis. Kant ocupouse desta ética que reuniu „natureza‟ (que para os estoicos correspondia a Ratio, portanto a necessidade ou dever, tòkathenon) e liberdade da vontade (Religião nos Limites da Razão, A62), cujo princípio canônico era “viver em conformidade com a natureza” (Cícero, Definibus, III 6, 20). Kant corretamente interpretou este princípio como “agir conforme a necessidade ou natureza da razão”, porém para afastar o sentido valorativo de “natureza” e substituir “cânone” pelo termo jurídico “formula” (do Imperativo Categórico) precisou isolar aquilo que os estoicos haviam reunido: dever e valor. Disto nascerão as duas tendências da axiologia na ética moderna: ou valores são pensados em relação ao dever-ser ou em relação à utilidade. Kant compreendera a relação entre valor e motivação, porém aproximou-o do conceito de „bem‟ (final e útil) retirando-lhe a prioridade em favor do dever: “Cada um chama de bem aquilo que aprecia e aprova, isto é, aquilo em que há um valor objetivo” (bem para todos os seres racionais) (Crit. F. do J. §5). Com efeito, Kant está de acordo com Cícero quanto ao fato da razão (necessidade da natureza) ser prioritária em relação à utilidade - “Vicit ergo utilitas honestatem? Immo vero, honestatem utilitas secuta est” (CÍCERO, 1984)1- , porém ignora justamente o fato de “honestidade” ter sentido axiológico e não deontológico, ou seja, que se trata de uma prioridade hierárquica (entre ordens de valores) e não fundamental (entre princípios e regras). A partir disto os filósofos pós-kantianos irão se dividir entre os de tendência psicologizante (valores determinados por sentimentos) e os de orientação fundamentalista (o valor como dever-ser de uma norma). 1

“Por acaso teria a utilidade vencido a honestidade? Jamais, pois a utilidade segue a honestidade”. 77


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Kant definiu o valor como o bem para todos os seres racionais, porém em termos de agradável e não de preferência. Brentano retomará o problema deixado por Kant na forma de juízos de preferência, aproximando valor e justiça. Friedrich Eduard Beneke será o primeiro a afirmar que a moral não se deixa fundamentar em lei universal, mas em uma ordem de valores estruturada pelos sentimentos (BENEKE, 1837). Na tentativa de produzir uma teoria transcendental dos valores, tais noções foram fortemente exploradas por Rickert e Max Scheler. Este último afirmou existir uma intuição própria dos valores como experiência sentimental sui generis. A objetividade dividir-se-ia em objetos reais, objetos ideais e valores. Objetos Reais e Ideais tem em comum a categoria do Ser: ser das coisas reais como causal e temporal, ser ideal nem temporal nem causal. Os valores, diversamente, não são, mas valem (possuem objetividade, mas não realidade nem idealidade). Assim, enquanto os reais são os objetos intencionais do conhecimento, os valores são os objetos intencionais dos sentimentos. E uma vez que cada um deles é sempre apreendido em uma ordem de relações entre objetos do mesmo tipo, os valores são captados naquele tipo de ordem chamada hierarquia. Scheler criticará Kant por sua dupla confusão (afastar dever e valor e aproximar valor e bem), porém ainda defendendo os valores em sentido de uma intuição transcendental promovida pela escolha do sentimento de preferência, sendo o valor do agradável o caso mais simples na hierarquia dos valores, seguido do valor vital, político, intelectual, estético e espiritual, cada qual correspondente a um tipo de intuição sentimental (sentimentos de agrado e desagrado, sentimentos orgânicos ou vitais, etc.) e um tipo de personalidade ou gênio. Em System der Philosophie, Rickert também insistirá na definição transcendental dos valores, mas sua hierarquia consistirá na relação entre valor e bem: distingue valor lógico (valor de verdade), estético (valor do belo),

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místico (valor da impessoalidade), ético (pessoalidade), erótico (valor da felicidade) e religião, que correspondem respectivamente a um bem (ciência, arte, uno, comunidade livre, comunidade do amor, divino) e ao sujeito (juízo, intuição, adoração, ação, unificação, devoção) e a cada forma de intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo, moralismo, eudaimonismo e espiritualismo (teísmo ou politeísmo)). A tendência pós-kantiana contrária nasceu com Windelband ao distinguir ser e dever-ser e, a partir disto, „valor de verdade‟, „valor de bem‟ e „valor de beleza‟. Em seu Praludien (1884), Windelband definiu valor como o dever-ser de uma norma capaz de fornecer verdade, bondade ou beleza as coisas, anda que nunca venha a se realizar. Portanto, os valores não são realidades nem idealidades, mas possuem como modo de ser o dever-ser.

3. AXIOLOGIA NÃO-KANTIANA. A modernidade não-kantiana procurou repensar novamente os valores segundo duas correstes principais. Primeiro, definindo os valores em sentido social, Hobbes afirmou que “o valor de um homem é tal como o das demais coisas, o seu preço ou o que poderia ser pago pelo uso de suas faculdades, não sendo absoluto, mas dependente da necessidade e dos juízos dos outros. Assim, o preço de um hábil comandante militar é alto em tempo de guerra, presente ou iminente, mas não em tempo de paz” (Leviatã, I, §10). A diferença entre valor de uso e valor de troca foi fornecida pela primeira vez por Adam Smith que, ao sistematizar uma Teoria dos Sentimentos Morais, reunindo a noção hobbesiana com as descobertas humeanas, afirmou que são dois os tipos de juízos morais: sobre a conduta dos outros (primários) e sobre nossa própria conduta (aplicação dos anteriores). Cada um destes 79


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juízos possui duas formas de percepção: percepção da conduta certa ou errada e percepção do mérito ou demérito. Uma vez que a retidão da conduta moral não é outra coisa senão sua conveniência (ser julgada própria ou impropria por nós ou pelos outros), o fundamento do sentimento moral é a aprovação ou desaprovação, conforme suas consequências para o convívio social (em distinção a “preferência” em Brentano, embora também compreendido em relação ao justo e injusto). Porém, a beneficência é digna de estima mais que as demais virtudes. Isto significa que a beneficência ou utilidade tem o poder de despertar uma “simpatia dobrada” em relação à conveniência das virtudes. Smith defende a hipótese dos neo-kantianos inversamente: o sentimento moral de aprovação é um efeito e não fundamento do valor da beneficência. Contudo, este poder natural de atração das ações benéficas não chega a ser questionados em termos axiológicos (se são intrínsecos, instrumentais, etc). A marca das teorias não-kantianas do valor será ater-se ao fenômeno social dos sentimentos-morais (aprovação e desaprovação) em distinção das teorias neokantianas desenvolvidas em termos de preferível ou ser digno de. A segunda orientação não-kantiana consistirá em definir o valor em função da vida, como encontramos em Nietzsche e Dewey. Nietzsche descreve como desvalor a forma de vida moderna ou democrática em oposição à afirmação das grandes personalidades, os “homens mais venerados de uma época” ou “espírito forte” capaz de impor juízos de valor. Para tanto foi necessário distinguir sentimento e ressentimento, que corresponde aos valores ascetas ou de renúncia e aos valores vitais ou de afirmação da própria vida. Longe de propor um relativismo dos valores, que redundaria em uma teoria utilitarista e econômica, Nietzsche traça uma forte distinção entre valores fictícios e valores vitais, propondo o restabelecimento do segundo através de uma tábua de valores

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que, apesar de hierárquica, não é absoluta nem atemporal como em Scheler e Rickert. Há uma relação intrínseca entre valor e homem e, entretanto, não psicologista: retomando o conceito kantiano de “dignidade”, Nietzsche entende que o valor de algo está naquilo que o torna “digno de ser venerado”, mas esta dignidade somente cria ordem, isto é, o valor somente é valorizado quando preferido por um homem também digno de ser venerado. Por isso seu conceito de “vontade de poder” deve ser compreendido em sentido axiológico, seja para os valores morais ou os valores das demais coisas. Do mesmo modo, Ehrenfels esclarecerá que o valor é o desejável de forma modal, isto é, o valor não é algo real nem qualidade de um objeto real, não é um objeto desejado e sim desejável, um objeto na medida em que pode ser desejado. Com Dewey a “teoria dos valores” parece ser o único ramo da ética capaz de estabelecer integração entre valor e fato a partir da experiência e não a partir de conceitos. Conforme Dewey, valor é tudo o que se presume ter autoridade legitima de orientar a conduta (The Quest for Certainty). Os valores se aplicam a toda experiência real ou possível. Interesses e preferencias em si mesmos não constituem valores, mas não há valores sem interesses e preferências. Se os valores se constituíssem a priori pelo pensamento, não seriam aplicáveis à experiência, e se fossem apenas o bom para o sentimento, seriam supérfluos para qualquer crítica. A tradição entende os valores ou como enunciados emocionais (Carnap, Russell) ou como valorações a priori e necessárias, conforme posições realistas ou idealistas e segundo a metafisica sujeito-objeto. Os enunciados valorativos são sempre aqueles que expressam aversão ou atração, em termos de qualidade positiva ou negativa de um objeto ou circunstancia presente ou futura, em uma relação testável entre os fins e os meios. Assim, conclui Dewey, os juízos de valor estão sujeitos a testes empíricos e verificação. A própria proposição é um meio entre aqueles a que se refere.

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Estava assim abandonado o escopo kantiano, ao aproximar o valor do possível e não do necessário.

4. PROBLEMAS AXIOLÓGICOS Podemos mostrar que o estado atual da axiologia se delimita entre três questões: (1) determinar a natureza da oposicionalidade dos valores (se um valor se opõe a outro valor, desvalor ou contravalor); (2) decidir pela existência ou não de valores intrínsecos e, consequentemente, pelo alcance da instrumentalidade e contributividade; (3) responder se os valores são ordenáveis entre si e de que forma (por hierarquia, por conflitos de interesses, etc). Em primeiro lugar, Dewey dividiu a ética em teleologia, deontológica e das virtudes. Esta divisão serviu aos propósitos de Dewey, mas é empiricamente insuficiente por duas razões: não inclui muitas formas de ética (o marxismo, a psicanálise e a própria ética deweyana, que são axiológicas) e não classifica adequadamente os conceitos virtude, dever, direito, bem, etc. Por isto seria mais adequado falamos em ética teleológica (a incluir consequencialismo, ética das virtudes, utilitarismo de ato, hedonismo, ética eudaimônica, etc), deontológica (a incluir o formalismo kantiano, contratualismo, teorias da justiça e a da comunicação, utilitarismo de regra, etc) e axiológica. A primeira vantagem é poder constatar que autores como Nietzsche, Sartre, Scheler, Freud, Marx, pensaram a ética e de forma estritamente axiológica. A deontologia inclui o conflito entre dever e direito ou obrigação e lei. Seus termos recorrentes compreendem os juízos sobre certo ou errado ou correto e incorreto, reto e incorreto, etc. A teleologia inclui o conflito entre virtude e prazer ou competências e utilidades. Seus juízos são referentes à bem e mal, bom e ruim. Quanto às virtudes, os juízos desdobram-se em aprovação e desaprovação, censura e 82


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louvor ou ainda elogio e condenação. Que o termo “condenação” e “censura” seja um dos desdobramentos teleológicos de “ruim” mostra o quanto na atualidade a virtude desempenha papel importante mesmo no setor jurídico e penal. Assim fica claro porque o hedonismo grego ou inglês baseia-se na noção de aprovação e desaprovação e permite formar o utilitarismo, claramente em Hume, confundindo-se com o hedonismo em Benthan, posteriormente “purificado” por Mill. As noções de aprovação e desaprovação são comuns tanto ao hedonismo materialista quanto a ética das virtudes e o utilitarismo, não obstante as fortes diferenças entre elas. Dewey está correto em notar que o padrão de aprovação ou desaprovação é próprio da teoria moral inglesa, que a noção de fim é própria dos gregos e o dever é típico dos romanos. Contudo, deveria ter considerado que a noção de valor foi fundamental já em Cícero e em muitos filósofos romanos de tendência estoica, bem como renascente na ética alemã do século XX e pressuposto geral de toda psicologia moderna. E, além disso, que a noção de “valor” também permitiu criticar a noção de „dever‟ e „fins‟, tornando-se mais ampla, bem como também assumida pelos filósofos anglo-saxões. A crítica deweyana da moral kantiana, que entende a consciência separada da experiência e conclui que a conduta moral deve ser pensada separadamente de um reino não-moral, coincide com as críticas de Scheler à noção de dever e tendência em Kant. Uma ética reflexiva, que transforma o imperativo categórico em hipótese conforme as circunstancias somente pode não se converter em um tipo de utilitarismo se for pensada como teoria dos valores. Esta descoberta é comum a todas as éticas axiológicas, sem exceção, uma estrutura típica que não é mérito de Dewey, mas que começa a ser investigada desde Platão e Cícero. O mérito de Dewey está em ter explicitado a relação dos valores com os hábitos e a reflexão. Disto se segue que as formas de éticas mencionadas por Dewey

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são na verdade expressões linguísticas de três fontes morais: os desejos, as demandas dos outros e os juízos sociais de aprovação e desaprovação. E o que faz a axiologia é justamente dizer que não há precedência formal entre estas três fontes, mas relações de valor a serem resolvidas hipoteticamente (Dewey, Hartmann) ou objetivamente (Scheler). Dewey entende que dadas àquelas fontes, teremos três pessoas para a avaliação da conduta: a primeira pessoa é a de desejo, a segunda a demanda dos outros e a terceira os julgamentos de apreço ou desapreço sobre a conduta. Se para Dewey isto significa que estes elementos servirão de instrumentos hipotéticos para a prudência e previdência, a testarem a conduta na experiência, então a sua axiologia consiste justamente no fato de harmonizarem a nossa conduta com a dos outros. Em segundo lugar, muitos eticistas contemporâneos entendem que uma das principais questões axiológicas é decidir se há ou não valores intrínsecos. (1.1.) O hedonismo (Epicuro, Benthan, Sidgwick) argumenta de forma monista: (i) somente o prazer torna algo intrinsecamente bom e a dor, intrinsicamente mau; (ii) as coisas, estados e experiências que contam como prazer são intrinsecamente boas e as que contam como dor são intrinsicamente más; (iii) as coisas que contam mais prazer que dor são intrinsecamente boas e o inverso para as más. Outra tese monista consiste em afirmar que o valor intrínseco está nas experiências que resultam satisfatórias (Brad Blanshard), sendo o prazer apenas uma forma de satisfação. (1.2) Inversamente, o pluralismo defende haver várias coisas intrinsecamente boas (Brentano, Scheler, Hartmann, Moore, Ross e Rashdall): prazer ou satisfação, consciência, virtude, amizade, afetos recíprocos, justiça, etc. A diferença entre estas duas hipóteses consiste em admitir ou não se o valor depende de interesse. Porém, muitos teóricos rejeitam a existências do intrinsecamente bom. Dewey rejeita qualquer distinção entre bom como meio e bom como fim, pois

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fins podem ser adotados como meios para resolver conflitos. Perry afirma que só há valor em algo se for objeto de interesse, onde “x é valioso” significaria “há interesse em x”. Deste modo, é o interesse do sujeito que confere valor a algo. Este debate consiste em responder se há diferença entre fins por si mesmos e fins últimos. Por exemplo, Platão defendeu que a virtude é fim por si e em si mesmo; Aristóteles entendeu que a felicidade é um fim buscado por si mesmo e também um fim último; os helenistas afirmaram que a virtude é buscada por si mesma, mas só a felicidade é buscada como fim último, etc. A questão do valor intrínseco desdobra-se na questão da dependência ou não do interesse dos sujeitos. A primeira crítica a isto veio das “teorias contrafácticas”: o valor depende se o sujeito desejaria ou se interessaria caso fosse plenamente informado. Neste caso, o valor não depende dos interesses efetivos, mas na forma de possibilidade. A segunda crítica consiste em mostrar que “bom” não é propriedade natural de algo ou alguém (como quis Perry): ou porque “bom” é uma expressão sincategoremática (Brentano), pois valor não é categoria, propriedade ou relação das coisas, já que os enunciados morais ou expressam atitudes emocionais ou recomendam (prescrevem) algo, mas jamais propõe propriedades sobre objetos existentes; ou porque o enunciado “x é intrinsecamente bom” pode ser verdadeiro ou falso apenas enquanto propriedade simples ou inanalisável, não naturais (que o naturalista identifica com o prazer ou interesse). Teremos as seguintes formas de valores: (1) Valor intrínseco é o mesmo que valor final ou valor obrigatório. Seus defensores entendem este como fonte dos valores (Moore) ou como ajuste do valor de algo ao valor dos desejos (Brentano). Algo tem valor intrínseco se “x tem valor por si mesmo”, isto é, unicamente em função de sua natureza: algo é desejado por si ou é útil por si mesmo, digno de ser desejado, de ser recomendado ou favorecido por si mesmo. Se a música é útil,

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desejada ou digna em si mesma, então é intrinsecamente valiosa. Neste caso é decisivo distinguir um “fim por si mesmo” e um “fim último”, pois algo pode ser um fim por si mesmo (a virtude) sem ser um fim último. O descuido quanto a esta distinção levou muitos autores a negarem a existência de „valores intrínsecos‟, ao defini-los como “finais” em termos de “em si mesmos e últimos” (absolutos). (2) Valor instrumental é o mesmo que valor extrínseco ou valor de preferência e ocorre quando “x é meio para ou causa de um fim ou valor intrínseco” (ser bom para alguma finalidade): se a música for intrinsecamente valiosa, o estudo da música será instrumentalmente valioso. (3) Valor Inerente é aquele que “x possui se sua percepção, experiência ou consciência for intrinsecamente valiosa”; se o “ouvido musical” for intrinsecamente valioso, a música experimentada será inerentemente valiosa. (4) Valor Contributivo ocorre quando “x é bom como parte de um todo”. Se a música é parte da felicidade ou de uma vida intrinsecamente boa, então a música tem valor contributivo. (5) Valor técnico significa que “x é bom para fazer ou produzir alguma coisa”. Se o violino tem valor instrumental para a música, então o legato e spiccato têm valor técnico. Deste modo, podemos observar que (1) algo pode ter valor instrumental sem formar parte de algo (contributivo), ou pode ter valor técnico (permite produzir x) sem ser instrumental (meio para), ou ainda pode ser inerente sem ser instrumental ou contributivo (se a audição do maestro tem valor intrínseco, já que sem ela não haveria percepção e juízo sobre música erudita, então a música será inerente e não intrínseca para ele, sua habilidade terá valor técnico e seus tímpanos valor instrumental). Além disso, como podemos observar, (2) uma mesma coisa pode ser fim ou meio – como pretendeu Dewey – dependendo das relações entre valores, mas ainda assim poderemos falar em valor intrínseco (na imanência de interesses, preferências e demais modos de não-indiferença),

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porém apenas sob perspectivas (Nietzsche). Não se pode fixar um valor intrínseco de modo absoluto (fim em si mesmo simultaneamente último), mas as relações entre valores, seus conflitos e ordens, permite definir as formas de valoração acima descritas. Enfim, em terceiro lugar, tornou-se comum admitir a lei de Hume:(i) o juízo de existência enuncia o que uma coisa é – propriedades, atributos, predicados, existência e essência, e (ii) o Juízo de valor enuncia algo que não acrescenta nem retira nada da predicação, existência e essência do objeto (nem o ser como essência nem o ser como existência). Concluiu-se, seja com humeanos ou kantianos, mas não simplesmente empirista ou idealista, que os valores não são reais nem ideais, nem coisas nem ficções, mas possibilidades relativas a aprovações ou preferencias. Dizer que uma ação é justa ou injusta nada informa sobre a ação mesma nem como efetiva nem como existencial. Contudo, permaneceu questionável se é justa porque aprovamos ou porque preferimos. Além disso, a filosofia parecia ter demonstrado que a psicologia confunde valores e sentimentos devido a confusões categoriais. Dentre os fenômenos psíquicos, os sentimentos são os únicos que também admitem polaridade, mas a polaridade psicológica é distinta da axiológica: a polaridade psíquica diz respeito a vivências que estão causalmente fundadas, a axiológica é fundada em qualidades não reais, mas possíveis e, não sendo causalmente fundada, não é diretamente inteligível como objeto. Sentimentos como alegria e tristeza são pensados por oposicionalidade, mas valores como superior-inferior, nobre-plebeu, melhor-pior, não se reduzem ao psíquico. Foi por isso que a psicanálise, sensível a relação entre sentimentos e valores como objetos de escolha ou desejo, cunhou o conceito de „inconsciente‟ para dar conta da não idealidade nem realidade do desejável. E foi neste sentido que o marxismo decidiu interpretar a história nos termos do agente desejante de

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poder ou opressor e não do desejável da repressão. Os críticos afirmam que a psicanálise e o marxismo não formulam diretamente uma ética para si mesmos, mas isto ocorre precisamente porque já são éticas (axiológicas) em si mesmos e não ciências empíricas. Por isso é vã toda tentativa de investigar uma ética normativa ou utilitarista nestas disciplinas bem como limita-las apenas a seu valor epistêmico. A filosofia pós-kantiana reinaugurou o conflito entre deontologia e consequencialismo no campo das teorias dos valores. Todo problema consistiu em mostrar que os sentimentos podem se dirigir tanto à „desejados‟ quanto à „desejáveis‟ e que nem toda relação com o desejo merece ser tratada simplesmente como psicológica, cabendo à ética a sua investigação. A psicanálise avançou em relação à psicologia com a seguinte descoberta: valores (direção da libido) não são coisas nem propriedades de coisas físicas ou psíquicas e sim „interpretações‟ (e não simples „impressões‟) de agrado e desagrado. O marxismo diagnosticou no interior da própria cultura os jogos de valores e suas demandas ordenados nos “indivíduos concretos” mais que nos sujeitos psicológicos (eles mesmos efeitos da noção de individuo privado que demanda). Por isso caberia à ética dos valores mostrar, em primeiro lugar, que os valores poderiam ser definidos em termos de „agrado-desagrado‟ e nem por isso o agrado-desagrado subjetivos seriam critérios de valor, pois algo pode nos produzir agrado e ser considerado mal ou produzir desagrado e ser considerado bom. Por exemplo, dissemos que a virtude é boa (útil por si mesma, ainda que não fim último) e, sendo difícil de praticar ou mesmo penosa, é um mal enquanto desagradável. Por isso Stuart Mill acertadamente inclui a virtudes na utilidade, embora apenas com valor contributivo. A série das impressões de agrado e desagrado psíquicos não coincide com as objetivações de valor e desvalor.

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5. CONCLUSÃO Podemos constatar três dificuldades a serem diluídas: (I) os valores como não-indiferenças modais, (II) os valores pensados em termos categoriais e (III) o juízo de valor como fonte tanto de enriquecimento como de preconceito social. Em primeiro lugar, não é possível investigar criticamente os valores ignorando suas formas ou suas ordenações. Quem julga o valor das Sinfonias de Bach são os músicos, inseridos em um jogo de linguagem ou vocabulário próprios, capazes de uma percepção auditiva especial, nunca a subjetividade destes indivíduos, menos ainda a experiência de agrado dos leigos. Qualquer um pode sentir agrado ou desagrado com tais músicas, mas somente alguns podem julgar seu valor. O agrado subjetivo não admite discussão, os valores são essencialmente “para serem” discutidos. Daí as inúmeras pesquisas sobre esta ou aquela Sinfonia de Bach. Ninguém pode negar ou afirmar que esta pintura seja para mim dolorosa, pois não se pode comprovar se o sentimento subjetivo é tal como eu afirmo. Mas se afirmo que a pintura é bela ou feia, isto se discute por pessoas competentes (relação entre valor e virtude, deixada de lado desde Cícero), tal como se discute os objetos das ciências. Discute-se porque é possível inclusive convencer ao outro que x é belo ou feio, não por demonstração, mas por exibição dos valores, isto é, mostrando ou fazendo ver a beleza que não se viu, assinalando-a (“veja!”), anunciando-a (“O Rei vive!”), mostrando certa perspectiva de percepção. Um valor é mostrado quando se faz perceber sua não-indiferença ou que não se pode ser indiferente a ele. A crítica de arte não é subjetiva já que a perspectiva da percepção de que trata é uma posição que qualquer um pode assumir, embora não seja uma demonstração nem empírica nem lógica e apesar de existirem outras perspectivas sociais. Não podemos dizer que as Fugas de Bach possuem valor absoluto e em si mesmas, nem podemos esperar que alguém reconheça seu valor fora das suas 89


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condições culturais, mas perceber seu valor é colocar-se objetivamente na perspectiva do músico que é capaz de ouvir seus contrapontos e linhas melódicas na perspectiva da música tonal. Podemos admitir com Nietzsche que valores são percebidos em perspectiva, exigindo aproximação ou afastamento (Heidegger), como possibilidade (Ehrenfels) inerente não aos poucos gênios nietzschianos, mas personalidades no sentido de Scheler, ainda que não a implicar uma hierarquia absoluta. Podemos admitir com Scheler e Windelband que os valores são ordenáveis na relação pessoa e experiência, não objetivamente, mas historicamente, como observou Nietzsche, pois meio e fins não são separáveis na experiência (Dewey). Assim, que os valores sejam discutidos indica que não são ficções, mas convicções, e que nem por isso precisamos chamá-los de objetivos em sentido estrito como fez Scheler, mas consensuais mediante discursos. Por isso os músicos podem ensinar tecnicamente as Sinfonias de Bach e depois julgarem o valor da execução dos instrumentistas. Os valores não são coisas e nem por isso se reduzem às impressões de dor e prazer. Os valores são descobertos ou exibidos, isto é, são desconhecidos até que um homem na história ou comunidade os percebam ou criem sua perspectiva, aparecendo não como algo que antes não existia, mas como algo que já era possível e é agora percebido como desejável. Segue-se, em segundo lugar, que em termos categóricos não podemos dizer “o valor é”, mas apenas “o valor vale” (Lotze). Foi a distinção moral meios-fins e a dicotomia metafísica sujeito-objeto que limitaram a axiologia. Mas se há algum sentido em dizer que “os valores não são, mas valem” isto deve significar que não são essências nem objetos e, deste modo, não estão na mente nem nas coisas, mas nas discussões. Como mostrou Carnap, enunciados predicativos são insuficientes neste campo, pois não dizemos propriamente que „o valor é isto‟, mas „não somos indiferentes a algo‟. Toda

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dificuldade começa pelas atribuições categoriais. Isto ocorre porque comumente pensamos os valores como “qualidades” das coisas. Husserl mostrou que os valores são objetos não independentes, sem substancia, mas objetos aderidos uns aos outros: o valor não tem substancia, é sempre objeto aderente a algo, mas nem por isso é propriedade real ou ideal, mas uma „qualidade pura‟. Estes termos são esclarecedores, mas insuficientes pelo simples fato de insistirem em categorias clássicas. Certamente, o valor é qualidade irreal, aquela que quando representada sem o objeto não admite realidade. O verde sem o objeto não admite realidade (causalidade, tempo e espaço), a beleza não é representável como real sem o objeto, etc. Do mesmo modo o valor não é ideal: o real é o que tem causa e produz efeito, o ideal é o que tem fundamento e consequência. Triangulo, circulo, número são ideais no sentido de que não são conexões de causa e efeito, não se sucedem nem se ligam no espaço, mas existem mediante demonstração. São relações e essências puras, diria Husserl. Mas o que significa dizer que os valores são qualidades nem reais nem ideais senão que não são demonstráveis, mas mostráveis, não recaem nas leis de demonstração, mas nas regras de convivência, conversação e aprendizagem? Pode-se pretender provar que Deus existe, mas não ensinar a fé, que Helena é bela, não sua não-indiferença, sedução, atração, etc. Sempre o que está em jogo é a independência empírica do valor. Mas isto apenas mostra que categorias formais ou empíricas são insuficientes. A coisa que vale não é nem mais nem menos que a coisa que não vale, porém, é mais ou menos indiferente ou relevante (Cícero). Um objeto tem valor certamente quando o aprovamos, desejamos, escolhemos ou preferimos, mas isto significa que diante dele não conseguimos ser indiferentes, não podemos evitar assumir certa perspectiva ou direção na conduta. As coisas no mundo não são indiferentes. Sendo nãoindiferentes, são melhores ou piores, verdadeiras ou falsas,

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relevantes ou triviais, boas ou más, belas ou feias, santas ou profanas (caracteres da não indiferença). Não-indiferença significa que no estado de coisas em que vivemos não há nada que não possamos adotar atitude positiva ou negativa em função da possibilidade. Diante de um penhasco é possível contemplar a paisagem ou pular no abismo, e é em função de ambas as possibilidades que o penhasco tem valor. Diante destas possibilidades é impossível ser indiferente a um penhasco. A não-indiferença é o objeto de preferência, valor por pertencer a um contexto de experiência possível, perspectiva, decisão e discussão. Enfim, se as formas do valor (intrínsecos, instrumentais, etc.) dependem dos juízos de valor, estes não são menos dependentes da ordenação dos valores como fonte de preconceitos ou enriquecimentos sociais. Certamente todos que pretenderem formular uma ordem de valores a partir de uma antropologia em termos categoriais, isto é, definindo o valor dos valores segundo a experiência imanente a cada setor da cultura, chegarão à conclusão de que o mais alto valor é o religioso, pelo simples fato de que este setor da cultura define a si mesmo como “valor superior”. Mas aqui ainda se insiste – como fez Scheler – em tratar os valores como entes e não como “valência”. Com efeito, a noção de Hierarquia de valores foi promissora: uma pintura não é tantas vezes bela, a beleza não se conta nem se divide, não é belo aqui e feio lá, nem começa a ser belo ou termina de ser e, portanto, valores não são pensados em termos de quantidade, mas admitem „ordem‟. Só assim compreenderemos porque os juízos de valores são fonte tanto do enriquecimento da cultura quanto dos preconceitos mais danosos. Primeiro, porque na vida cotidiana costumamos concluir apressadamente a objetividade dos juízos de valor, pois os valores trazem consigo uma aparência de Absolutos para aqueles que os portam. A aparência é experimentada desta forma: „se fossem relativos, os valores valeriam para uns e não

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para outros, para uma época e não para outra‟ ou „certamente há relatividade história de sua descoberta, pois os valores dependem do surgimento de uma personalidade que o exiba, mas nem por isso são relativos quando são percebidos‟. Contudo, em ambos os casos esquece-se que isto só é válido para aqueles que puderam se inserir em uma cultura. Para um setor cultural, que o homem seja relativo na historia não se segue que sejam os valores, pois relativo é o surgimento histórico dos homens que percebem valores, não os valores mesmos. Contudo, nem por isso são absolutos entre diversos setores culturais, já que dependem de valorização social daqueles homens ou personalidades que afirmam valores dispostos em uma tábua de polaridades também entre estes setores da cultura. Corretamente se considerou a relação entre valores e sentimentos, pois ambos sempre são percebidos em polos opostos, entretanto os valores valem mediante as possíveis perspectivas e os sentimentos são por eliminação. Inversamente, também é correta a constatação de que a sociedade se ordena segundo oposições valorativas, mas conceitos como riqueza e pobreza não são apenas econômicos nem nasceram com acepção econômica, muito pelo contrário, tendo neste caso apenas um dos seus muitos sentidos. Como haveria luta social ou militância política sem a experiência de não poder ser indiferente a algo? Como poderíamos constituir hábito e costume morais se entre valores opostos não houvesse um campo para a indiferença, sem a qual não haveria nem esquecimento e descanso ou tampouco descaso e injustiça social? Assim, o peso dos valores ordenados (valor econômico, político, vital, artístico, intelectual, religioso) independente de suas formas (intrínseco, inerente, instrumental, etc.) ou modos (não-indiferença, preferencia, interesse, etc.) os tornam absolutos, fonte de juízos de valor na forma de preconceitos morais e não de enriquecimento cultural.

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6. REFERÊNCIAS LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 2.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1977. Livro X. BENEKE, f. e. Grundlinien der Sittenlehre.Berlin: 1837. BRENTANO, Franz. El origen Del conocimiento moral. Trad. Manuel G. Morente. Madrid: Revista de Occidente, [s/d]. CÍCERO, M. T. De officiis/VompflichtmässigenHandeln.Stuttgart: Reclam, 1984. MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: História da Filosofia Greco-Romana I. São Paulo: Mestre Jou, 1971. SCHELER, Max. Ética: nuevoensayo de fundamentación de un personalismo ético. T. I e II. Trad. Hilario Rodríguez Sanz. Buenos Aires: Revista de Occidente Argentina, 1948. PERRY, Ralph Barton. Realms of Values: A Critique of Human Civilization. Cambridge: Harvard University Press, 1954 HARE, R. Ética: problemas e propostas. Tradução de Mário Mascherpe e Cleide Antonia Rapucci. São Paulo, UNESP, 2003.

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ZINGANO, M. Estudos de Ética Antiga. São Paulo: Paulus Editora, 2009. FRONDIZI, Risieri. Quésonlos Valores? México, F.C.E., 1977 LAVELLE, Louis. Traité des Valeurs. Paris, PUF, 1991

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Segunda parte – Reflexões sobre ensino e aprendizagem

Capítulo seis - O ensino de filosofia em Santa Catarina: análise do uso de tecnologias Lauro Roberto Lostada

1. INQUIETAÇÕES INICIAIS O conhecimento sempre deteve uma importância muito grande nas sociedades ocidentais, mas, diante da ascensão da sociedade do conhecimento (LÉVY, 1999), a capacidade de transformar a informação em conhecimento passou a ser de fundamental importância para o êxito social e profissional das pessoas. A introdução dos recursos tecnológicos no meio escolar tornou-se a principal aposta das políticas educacionais e a apropriação e a aplicação das tecnologias têm se apresentado como um desafio cada vez mais inadiável à formação e ao trabalho dos professores, de modo que os resultados dessa nova condição educacional carecem de avaliações capazes de apresentar um quadro confiável sobre seus limites e suas possibilidades. Este capítulo pretende refletir se o professor da disciplina de filosofia poderia ou não se apropriar das tecnologias para o exercício da filosofia e qual seria a qualidade que essa apropriação resultaria. Outra questão que foi levada em consideração durante a pesquisa que originou este texto foi a possível integração das práticas tradicionais com as ditas práticas inovadoras em muitas situações de ensino, o que tornou ainda mais desafiador o problema, especialmente considerando que o trabalho realizado na


O ensino de filosofia em Santa Catarina

disciplina de filosofia deve promover a formação de cidadãos capazes de pensar criticamente e, portanto, utilizarem-se da filosofia como uma ferramenta de emancipação. Nesse sentido, o objetivo geral deste estudo é contribuir para a construção de um debate sobre as inovações educacionais no ensino de filosofia, cujo resultado possa favorecer a formação crítica dos professores que atuam nas escolas de nível médio e que se defrontam diariamente com o desafio de incorporar as novas tecnologias aos processos pedagógicos. Para que tal plano fosse desenvolvido, atingindo os professores de filosofia das diversas regiões de Santa Catarina, foi preciso desenvolver um website (www.ensinarfilosofia.xpg.com.br) para que todos os sujeitos pesquisados pudessem acessar o questionário, bem como conhecer outros aspectos pertinentes da pesquisa (objetivos, condições de participação e referências sobre a realização do projeto). Para a escolha das escolas que participariam da pesquisa foram levados em consideração os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizado em 2011, onde se constata a existência de aproximadamente 872 escolas de ensino médio em Santa Catarina, sendo destas 196 de caráter particular e 676 de caráter público. Assim, escolhidas as escolas participantes, a proposta consistiu em convidar os professores de filosofia destas instituições, através de contatos por e-mail com as suas escolas de atuação, para responder ao questionário disponibilizado no endereço da internet. Diante do pequeno número de professores que responderam ao primeiro contato eletrônico o convite acabou sendo reenviado também por correspondência; desta vez, entretanto, o convite foi enviado diretamente aos cuidados do próprio professor de filosofia e

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somente para as escolas que ainda não haviam participado da pesquisa desde o primeiro convite. Com a adoção desta dinâmica de trabalho, ao final da pesquisa foram enviadas 651 cartas e aproximadamente 500 emails para todas as escolas de Ensino Médio, particulares e públicas, cujo endereço estava disponível e atualizado nos mecanismos de busca da internet. A pesquisa ficou disponível por aproximadamente um mês a partir dos últimos contatos e ao término contabilizou-se a participação de 75 professores, sendo 52 atuantes em escolas públicas e 27 em escolas privadas. Considerando os dados do ENEM de 2011 é possível concluir que se obteve a participação média de aproximadamente 14% dos professores de filosofia das escolas privadas de nível Médio de Santa Catarina e 8% dos professores de escolas públicas do Estado, somando o valor de quase 9% de todos os professores que atuam com o ensino da disciplina nas diversas regiões do Estado. Com as informações obtidas com essa pesquisa acredita-se que este estudo possa subsidiar uma reflexão sobre o que se faz com a filosofia em plena era midiática e que contribua, portanto, para que os professores possam, de alguma maneira, repensar sua prática pedagógica. Como escreve Juana María Sancho em uma de suas obras: As tecnologias digitais [são] como investimento na autonomia dos estudantes para gerenciar sua educação, para que possam aprender perguntando e respondendo os desafios educativos e formativos da sociedade atual (SANCHO, 2006, p. 31).

2. O ENSINO DE FILOSOFIA EM SANTA CATARINA Dos 75 participantes da pesquisa 52 eram professores de escolas públicas e 27 de escolas privadas e a divisão deles 99


O ensino de filosofia em Santa Catarina

nos diversos municípios catarinenses pode ser observada no endereço www.ensinarfilosofia.xpg.com.br, onde também se pode obter outras informações sobre a pesquisa, bem como sua análise completa. O interessante é que a participação dos professores na pesquisa se concentrou principalmente no Oeste e Meio-Oeste, Planalto Norte, Litoral e Vale do Itajaí de Santa Catarina, exatamente onde estão os polos de Ensino a Distância da Universidade Federal de Santa Catarina (Blumenau, Indaial, São José, Tubarão e Treze Tilhas). No Planalto Serrano, onde não houve nenhuma participação na pesquisa, também não há polo de Educação a Distância da Universidade Federal de Santa Catarina, o que permite considerar que essa é uma região extremamente deficiente em professores habilitados para o ensino da filosofia e também que há a falta de instituições de formação. De outra forma, também é possível supor que a participação desses professores na pesquisa pode ter sido minimizada por sua consciência do papel indevido que exercem no ensino da filosofia, enquanto não habilitados. A falta de participação dos professores na pesquisa, embora não possa ser comensurada sem novos elementos, possibilita, de certo modo, uma série de questionamentos, pois, a dificuldade de acesso primeiramente às escolas e, na sequência, também aos professores, indica um grave descompasso da educação frente ao momento histórico vivido. Se não bastasse, nem mesmo os organismos gestores das escolas parecem estar atentos à situação, visto que nenhum deles respondeu adequadamente aos contatos realizados. Assim, o que esperar de uma escola que se coloca à margem da sociedade e se fecha em si mesma, como se fosse uma ilha no meio do oceano? Como entender que a tecnologias mais modernas que alcançam a escola em pleno século XXI sejam ainda o telefone e a correspondência? Não é possível, certamente, que as escolas sejam equipadas com recursos cada vez mais modernos sem que haja

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uma mudança de atitude, pois não é a falta de recursos que gera a entropia mortífera de que falava Guatarri (1993, p. 191), mas a imobilidade e a inflexão instaurada nas instituições. Não só a falta de acesso ficou evidenciada com as dificuldades enfrentadas na pesquisa, mas também e principalmente a falta de interesse docente, pois foi grande o número de professores que recebeu o convite para participar da pesquisa e não o fez. O motivo que cada professor teve para não participar é certamente uma incógnita, mas são possíveis algumas breves suposições: primeiramente, muitos dos convites podem ter esbarrado na figura de gestores inflexíveis; depois, muitos professores devem ter a falta de tempo como justificativa para não terem participado da proposta; por último, talvez haja, mesmo que inconscientemente, um receio de exposição e uma competitividade velada fomentada por este modelo de sociedade capitalista, que muitas vezes impede o cooperativismo e a colaboração, incentivando o individualismo, o que é um problema sério àquele que deveria, como professor de filosofia, viver em meio à reflexão e ao diálogo. Esta última suposição talvez seja, ela mesma, a causa das anteriores e, portanto, traduz a falta de consciência do professor como ator social e explica, de alguma forma, o receio das escolas em se abrir ao universo novo que as tecnologias oferecem – espaço de trocas por excelência. A tecnologia é como se fosse algo para além de si mesma, mais do que se pretendia: não apenas leva informações, mas retoma as próprias dimensões da vida em movimento, sugere a velocidade como algo que está além dela, encontra-se na própria vida das pessoas, na maneira de ser do mundo e das coisas (SOUSA, 1995, p. 32).

Dentre os 75 professores participantes da pesquisa, 24 deles, ou seja, 32% dos professores, não possuem habilitação 101


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em filosofia e alguns deles nem sequer apresentam formação em áreas afins com a disciplina em que atuam (Sociologia, Filosofia, História, Geografia). Dos 29 professores não habilitados em filosofia 2 eram formados em Ciências da Religião, 3 em Matemática, 6 em Ciências Sociais, 3 em Geografia, 8 em história, 1 em Biologia, 2 em Pedagogia, 1 em Ciências, 1 em Psicologia, 1 em Teologia e 1 em Letras (o número de cursos excede ao número de professores devido à segunda habilitação de alguns deles). Embora a formação inicial de parte dos professores pesquisados seja muito diversificada para o ensino da filosofia, por vezes incompatível, seu nível de escolaridade revela um panorama um pouco mais animador. Os professores, por diversos fatores, mesmo sem o devido incentivo, abraçam a formação continuada e procuram especializar-se, embora muitas vezes, como é possível observar, não consigam atuar diretamente na área em que se prepararam. Dos professores pesquisados apenas 3 ainda não possuíam o ensino superior completo, 22 apresentavam essa formação completa, 35 detinham também especialização, 13 mestrado e 2 doutorado. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (2006) deixam claro que o ensino da filosofia exige certas condições tanto materiais quanto humanas, como se lê a seguir: O tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafio, pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são possíveis se forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos. Ademais, pensar a disciplina Filosofia no ensino médio exige também uma discussão sobre os cursos de graduação em Filosofia, que preparam os futuros 102


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profissionais, e da pesquisa filosófica em geral, uma vez que, especialmente nessa disciplina, não se pode dissociá-la do ensino, da produção filosófica e da transmissão do conhecimento (BRASIL, 2006, p. 16).

Não há como se falar, portanto, em um processo de emancipação através do ensino da filosofia se não houver nem sequer professores com habilitação específica para a área. Também não é possível debater sobre os entraves pedagógico e metodológico para o ensino da disciplina se não houver formação teórica própria. À época da pesquisa, apesar da grande demanda por profissionais habilitados no Estado, o curso a distância de filosofia da UFSC, por exemplo, era oferecido somente em Blumenau, Indaial, São José, Tubarão e Treze Tilhas. Os docentes que atuam com a filosofia no ensino médio relatam que acabaram se tornando professores da disciplina por diversos motivos. O principal deles é o interesse que sentem pela área (42%). Muitos professores, contudo, dizem terem sido influenciados pela sua formação religiosa, que acabava exigindo o estudo da filosofia (27%). Alguns afirmam ainda terem se interessado pela disciplina por causa da influência de algum professor durante o período da sua escolarização básica (7%), ao passo que outros relatam trabalhar como professores de filosofia devido à proximidade da disciplina com sua área de formação. Há aqueles que dizem terem sido motivados para a docência da filosofia pelo fato de a disciplina ter feito parte do currículo de sua área de formação e, por último, há ainda os que lecionam a filosofia pelo simples fato de terem sido convidados por gestores de escolas. Esses últimos comentários deixam ver que a filosofia, de certo modo, ainda é entendida por muitos como um debate infundado, livre e autônomo, cuja função principal seria a formação crítica do cidadão.

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Há talvez Filosofias mais ou menos críticas sem que isso diminua a importância formadora e sempre algo corrosiva de todo filosofar. No entanto, independentemente da posição adotada (sendo pressuposto que o professor se responsabilize por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica (BRASIL, 2006, p. 24).

Quanto ao diálogo, a maioria dos professores pesquisados, quase 95% deles, quando perguntados, informaram que a reflexão é um elemento permanente em sua prática docente, mas seus intercessores/interlocutores cotidianos são em sua maioria os próprios alunos, seguidos pelos colegas de profissão, outros professores de filosofia e também professores ou colegas de universidades. Esses dados demonstram que, infelizmente, os professores de filosofia estão à margem de um diálogo de qualidade, pois seus intercessores mais comuns são os próprios alunos. Seria importante promover o diálogo entre pares/iguais como elemento crucial para melhorar a qualidade docente. Não se pode esperar que a filosofia seja o simples produto de um monólogo ou de debates “infundados” dentro de sala de aula, pois a sua verdadeira construção deve estar alicerçada na tradição e nos critérios de confiabilidade a ela designados. Entre os professores pesquisados existem, pois, posturas muito diferenciadas quanto à concepção de como se pode ensinar a filosofia no ensino médio. Para 48 deles a filosofia deve ser ensina por temas, enquanto que para 41 dos professores deveria ser ensinada através de sua história e da história dos filósofos (6 professores não souberam responder). Essa divergência didática entre os professores acontece porque a filosofia pode ser realizada através da sua história e das teorias filosóficas que a compõem e, de outra forma, pode também se realizar através de temas, sob os quais impactariam 104


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as mesmas teorias. O que não se pode deixar de lado é a contextualização histórica dos problemas, para que o aluno possa compreender de fato a provisoriedade da produção filosófica, como possibilidade para um questionamento renovado e, portanto, como fonte de re/produção de conceitos (DELEUZE e GUATTARI, 1992). Como se vive um momento histórico onde as tecnologias invadem os espaços de maneira cada vez mais arrebatadora é importante avaliar a sua utilização também como um instrumento didático para o ensino da filosofia. Deste modo, quando os professores foram questionados sobre a possibilidade de se utilizar das tecnologias para o ensino da filosofia, 96% deles afirmaram que elas podem sim contribuir para o ensino da disciplina, pois, de maneira geral, permitem uma infinidade de possibilidades didáticas (filmes, músicas, textos, apresentações, animações). Isso deixa evidente que os professores, na sua grande maioria, entendem a necessidade de utilizar das tecnologias em suas práticas pedagógicas e muitos deles até já usam frequentemente esses recursos no cotidiano de suas salas de aula, o que demonstra que não é o acesso aos recursos que impede as didáticas inovadoras em relação ao ensino da filosofia através das tecnologias. O que talvez fique pendente, portanto, são as políticas de formação continuada para que os professores possam pensar e repensar continuamente suas concepções pedagógicas quanto ao uso das linguagens tecnológicas, bem como aprender a tirar o máximo proveito dos recursos disponíveis. Há uma preocupação grande sobre os riscos da tecnologia, pois, conforme afirmou um dos professores: “[As tecnologias] podem ajudar, mas não vamos idolatrá-las. Conheço pedagogos que são ótimos em mídias e datashows; dão excelentes aulas sobre Sócrates, Descartes, sem nunca terem lido nada destes autores e sem dominar qualquer conceito desses respectivos pensadores. As tecnologias são

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ótimas, sobretudo para quem não sabe nada. Como os tempos que vivemos são tempos onde o saber está restrito à circulação de informação (crítica da profundidade de um pires), as mídias são excelentes para os enganadores de plantão tomar o lugar do intelectual professor”. Como se verifica, há o consenso de que as possibilidades oferecidas pelas tecnologias são suficientes para que o professor as utilize em suas aulas, embora muitos tenham consciência dos riscos adjacentes à sua inclusão. São inúmeras as possibilidades didáticas que se apresentam através destes recursos cada vez mais democráticos (produção de vídeos, fóruns, blogs, sites, etc), permitindo o acesso à informação, a partir da qual os professores podem agir. Mas não se pode esquecer que esses recursos precisam ser o resultado de todo um processo anterior que vise a reelaboração da teoria filosófica pelo aluno, afinal, o pensamento crítico deve, segundo o que Kant (2008) escreveu na Crítica do Juízo, possibilitar primeiramente o pensar por si mesmo (autonomia do pensamento), depois, o pensar do ponto de vista do outro; por último, o pensar de forma consistente, combinação dos princípios anteriores. As tecnologias são, também, novos grilhões que podem oprimir e aprisionar os indivíduos em suas cavernas, cegos à realidade constituída e institucionalizada. O professor de filosofia, neste sentido, poderia ser como aquele prisioneiro que retorna à caverna depois de ter contemplado a luz para guiar seus companheiros para a liberdade, ou seja, ele precisa aprender a utilizar destas ferramentas como mecanismos de libertação. O número de alunos por sala, a falta de recursos, a má remuneração, enfim, todos os demais itens assinalados que agem no sentido de dificultar a prática docente em filosofia seriam provavelmente resolvidos ou amenizados gradativamente com a mudança de postura que se propõe tanto para o professor quanto para o aluno. Se as pessoas passassem

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a ser mais conscientes de sua situação poderiam agir sobre os mecanismos de opressão e, desta forma, promoveriam uma reforma social, cujo sentido talvez não se possa compreender do ponto de onde se está no momento. Não é possível que os professores culpem ingenuamente os alunos pela tragédia do mundo pós-moderno, pois ao fazê-lo eles acabam desistindo da própria mudança, desacreditando do seu poder de transformação e renegando a verdadeira explicação do problema. A educação procede geralmente desta maneira: procura encaminhar o indivíduo, mediante uma série de atrativos e de vantagens, a uma determinada maneira de pensar e de conduzir-se que, convertida em hábito, em instinto, em paixão, se apodere dele e o domine contra sua conveniência, mas em “benefício de um bem geral (NIETZSCHE, 1984, p. 47-48).

3. AS TECNOLOGIAS E O ENSINO DA FILOSOFIA A filosofia, enquanto disciplina, é relativamente nova no currículo escolar brasileiro, devido aos grandes entraves que o período da ditadura militar havia lhe imposto. No ano de 1971, durante o regime militar, a filosofia foi praticamente extirpada do currículo da educação básica, com a justificativa de que servia para a promoção do comunismo, a que se opunha o poder da época. A filosofia somente foi reinserida na educação básica com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996. Em seu retorno, ela acabou recebendo a função quase que exclusiva de desenvolver a criticidade e a cidadania, além de promover também a interdisciplinaridade, como se as demais disciplinas não tivessem sequer uma mínima parcela de responsabilidade sobre tais aspectos. Hoje vivemos um

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momento em que, infelizmente, talvez devido a esses equívocos, se cogita sua nova saída das escolas do país, em detrimento das outras disciplinas consideradas mais importantes para o mundo atual. Instituiu-se à filosofia um caráter instrumental, quando, na verdade, ela se revela, desde suas origens, como um fim em si mesma. Sujeitá-la a outras determinações seria o mesmo que impedir o seu movimento e a experiência do pensamento autônomo, ou seja, seria o mesmo que acabar com a filosofia. Muitos utilizam desta mesma lógica para justificar a manutenção do ensino da filosofia apenas no nível universitário. Este capítulo, no entanto, traz como proposição que, conforme Deleuze e Guattari (1992) descreveram em seus escritos, o conhecimento humano é dividido em três grandes eixos, a saber, a arte, a ciência e a filosofia. Cada um, a seu modo, aponta para o pensamento de maneiras próprias e, portanto, precisam ter seus aspectos levados em consideração durante esse estágio da vida escolar dos estudantes ou se estaria privando os jovens da oportunidade de receber uma educação integral. É possível dizer que os currículos de ensino médio tendem a valorizar apenas os conteúdos científicos, reflexo de uma sociedade pautada fundamentalmente nos princípios positivistas, que tendem a entender a filosofia e as artes, tanto quanto as religiões e os mitos, como degraus inferiores ao pensamento científico, dito verdadeiro. Nesse sentido é fundamental considerar o exercício da filosofia e das artes na formação básica, afinal, essa experiência de pensamento é, indiscutivelmente, essencial para o exercício futuro do estudante enquanto cidadão consciente e crítico. A filosofia não se constitui como mera transmissão de conteúdos historicamente datados, pois também se apresenta como uma atividade criativa que possibilita um novo encontro com o vivido (GRAMSCI, 1986). A história da filosofia se

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apresenta então como uma poderosa caixa de ferramentas a partir da qual o “filósofo” poderá instrumentalizar-se para resolver seus problemas cotidianos e, segundo a alegoria platônica, quebrar os grilhões que aprisionam a pessoa no mundo de sombras. Os dados obtidos apontam uma situação em que há a falta de muitos professores habilitados para o ensino da filosofia em Santa Catarina. De outro modo, esses mesmos dados apontam que, dos cerca de 68% dos professores pesquisados com habilitação em filosofia, aproximadamente 27% deles teve sua formação confessional, ou seja, são professores que atuam em filosofia porque passaram por uma trajetória de formação religiosa e não especificamente docente. Essa constatação não implica na falta de qualidade desses professores, mas aponta para um déficit docente maior ainda do que os dados preliminares demonstravam. De todos os 75 professores pesquisados apenas 41% deles, ou seja, 30 professores cursaram a faculdade de filosofia por interesse próprio. Com as mudanças que a sociedade vem apresentando e, em decorrência, com a menor procura pela vida confessional e docente, é possível visualizar um quadro cada vez mais alarmante para o ensino da filosofia, pois a falta de professores implica radicalmente na maneira como a disciplina é ofertada e recebida pelos estudantes de ensino médio. Essa constatação indica a necessidade de uma grande reforma educacional nos processos de formação de professores para o ensino médio, especialmente os de filosofia. Considerase que além da oferta de um maior número de cursos de licenciatura em filosofia, preferencialmente na modalidade presencial, se faz necessário também um sistema de acompanhamento e atualização contínua para o corpo docente já em atuação. Todavia, o que fica evidenciado através dos indicadores desta pesquisa e de todas as limitações encontradas em sua realização é que não há incentivos dos órgãos públicos

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para a necessária atualização dos professores. As escolas têm se tornado ilhas e os professores náufragos. Mais grave talvez que a falta de formação dos professores, a falta de recursos tecnológicos e de incentivo das agências gestoras para a inclusão das tecnologias, é a inflexão que se consolida na prática pedagógica e administrativa das escolas, afinal, se elas não se questionam sobre o seu papel e sobre as possibilidades de mudança que poderiam gerir, acabam estagnadas e, por isso, justificam as críticas e as avaliações que envergonham essa nação.

4. CONCLUSÃO Os resultados aqui apresentados indicam, de maneira geral, a formação dos professores que atuam com a filosofia em Santa Catarina, suas defasagens formativas e docentes, e como eles trabalham com o ensino da filosofia. Esses resultados demonstram que as tecnologias poderiam de fato auxiliar no ensino da disciplina, como possibilidade de atualização e instrumentalização da filosofia em vista da constituição de identidades mais críticas nos indivíduos. De outro modo, porém, eles indicam que as tecnologias oportunizam espaços dialógicos na sala de aula, mas que são comumente utilizadas como meras ferramentas de supressão dos déficits formativo e profissional dos professores, servindo apenas como elemento de motivação e transposição didática. Essa constatação permite questionar sobre a eficácia da integração das tecnologias ao ensino da filosofia, pois ela só pode se realizar de forma significativa com base numa formação docente de qualidade. Não havendo professores habilitados para o exercício da docência da filosofia e, mais especificamente, o exercício da docência mediada pelas

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tecnologias, torna-se questionável o uso destes recursos nas escolas. O que tem se tornado cada vez mais evidente através desta reflexão é a necessidade de uma reforma não só das instituições como também do pensamento, conforme dizia Virilio (1999). Cabe aos organismos gestores da educação a promoção da tecnologia, a implantação de redes, a criação e a manutenção de sites e canais de comunicação para as escolas, e também o fomento à informatização das práticas tanto administrativas quanto pedagógicas. É importante que os gestores e professores saibam se utilizar das ferramentas tecnológicas disponíveis para que possam promover um debate cada vez mais eficiente em vista do conhecimento. É preciso, de outro modo, que se criem caminhos para o acesso da população às instituições democráticas, para que todos possam colaborar para a construção de um modelo mais participativo de sociedade, na realização de uma verdadeira cidadania democrática (Lévy, 1999). Os indicadores apresentados neste capítulo revelaram um cenário intrigante, marcado pela não comunicação, pela não formação e pelo descompromisso dos órgãos institucionais. As instituições parecem relutar em oferecer informações sobre suas práticas, na inconsciência de que essa clausura solidifica suas fraquezas, impossibilitando um debate amadurecido sobre o que pode ser feito para melhorar a educação. Foi realizado um grande esforço para que todas as 196 escolas particulares e 676 escolas públicas fossem convidadas a participar da pesquisa e que todos os professores de filosofia de Santa Catarina tivessem a oportunidade de compor esse cenário com seus comentários e suas informações, mas somente 75 professores se dispuseram a colaborar com as informações solicitadas. O resultado, embora abaixo do esperado, viabilizou uma reflexão que se imagina demonstre ao menos parcialmente a realidade catarinense e, portanto, permite as conclusões aqui

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apresentadas. Mais relevante do que os dados foi a reflexão sobre o cenário apresentado. Enfim, a filosofia é um espaço fundamental nesse projeto pedagógico emancipatório, para o qual as tecnologias, com todas as suas facilidades e atrativos, são instrumentos importantes. O que é preciso ter em mente, após todas as reflexões aqui elaboradas, é que apenas computadores, projetores, quadros digitais, enfim, toda essa tecnologia disponível atualmente, não poderão mudar a escola: ela precisa querer mudar. O como, o quando, o com o quê, ficam certamente em aberto para novas pesquisas.

5. REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. GALLO, Silvio. Ensino de filosofia: avaliação e materiais didáticos. In: BRASIL. Filosofia – ensino médio. Coleção Explorando o Ensino; v. 14. Brasília, 2010. GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. GUATTARI, Félix. Da produção da subjetividade. In: PARENTE, André (org.). Imagem-máquina: a era das

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tecnologias do virtual. Trad. Rogério Luz, et al. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1993. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Ediouro, 1984. SANCHO, Juana María. De tecnologias da informação e comunicação a recursos educativos. In: SANCHO, Juana María, et al. Tecnologias para transformar a educação. Porto Alegre: Artmed, 2006. SOUSA, Mauro Wilton de (org.), et al. Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. VIRILIO, Paul. A bomba informática. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

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Capítulo sete - O que é a escola? Albio Fabian Melchioretto Miriam Carla Raasch

1. ESCOLA, ESPAÇO DE SUJEITAMENTO, DESENCAIXE E FLUXOS No Ocidente, a árvore plantou-se nos corpos, ela também endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a erva (Gilles Deleuze; Félix Guattari). O que pretendemos neste capítulo é refletir sobre o conceito de Escola. A reflexão será conduzida a partir da escolha teoria de alguns textos. Foram utilizados os textos A maquinaria escolar de Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria, Redes ou Paredes de Paula Sibilia e por último a análise da ideia de fluxos a partir da leitura da tese Política de Gestão Escolar na Sociedade de Controle de Gicele Maria Cervi. Como pano de fundo a ideia de rizoma apresentada no texto Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Embora o título possa sugerir algo parecido com uma receita, este capítulo não tem a intenção de inventar a roda. Para situar o leitor o capítulo não será dividido em capítulos, ele será corrido sem divisão em títulos e subtítulos. Porém, antes de começar a análise das leituras já citadas é necessário deter-se na descrição de um relato sobre o corpo, vontades e escola. O relato que transcreveremos refere-se a uma estudante de quinze anos que está frequentando o primeiro ano do Ensino


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Médio numa escola pública da grande Florianópolis. Uma escolar produto da escola pública. A escolar não foi escolhida a partir de uma pesquisa específica e seus relatos nem mesmo foram gravados. Atravessamos o engessamento das atividades acadêmicas apontando que os relatos são fruto de conversas familiares, dos discursos do cotidiano, do falar do dia a dia. Parafraseando Deleuze e Guattari (1996), são conversas que não começam nem concluem, elas se encontram sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo (cf. DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 36). O relato refere-se a JQR, 15 anos. Diariamente conversamos do intermezzo do caminhar escolar e da ideia de estar na escola e quais implicações deste espaço de confinamento, obrigatório por lei. A seguir descreveremos algumas características de JQR, sem pretensão de definição, muito menos a produção de decalques, apenas com a intenção de mapear um quadro. Ela é uma escolar como muitos de sua idade, gosta de coisas normais que adolescentes geralmente gostam. Mas existe um fato que merece destaque e que vale para pensar o corpo, as vontades e a escola. JQR é bibliófaga. Devora literatura adolescente, mangás, romances e muita aventura. Incapaz de aceitar assistir um filme antes da leitura da obra o que o inspirou. “Vou perder muitos detalhes” ou “a história não fará sentido”, sempre completa justificando quando provocada. Também é consumidora de capítulos e textos referentes aos seriados de televisão que acompanha. Para cada nota de destaque que conquista, JQR, tem a possibilidade de escolher um novo exemplar para compor sua própria biblioteca, e ela tem crescido muito nos últimos tempos. Ela é uma assídua Leitura e ótima comentarista dos textos devorados. A cada leitura, conta as aventuras e explica as nuances de cada história para seus pares. Uma visão perspicaz de quem muito lê. Não são raras as vezes que discute livros e quando justifica o motivo que a leva ler a resposta é sempre a mesma “ler é mágico”. Quando o tom

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da conversa sai do mundo da leitura e chega ao mundo escolar as respostas são diferentes. É muito frequente a pergunta: como foi a escola hoje? A resposta é dada sem muito pestanejar: “a escola é muito chata, é sempre a mesma coisa, entediante”. A resposta parece ser uma constante. Para a escola são atribuídos valores pesados e próximos ao tédio. Ao averiguar o que da escola é chato, deparamo-nos com os problemas: “os professores são chatos, a professora de português não lê!”. Estes relatos nos incomodam enquanto profissionais da educação, produto de uma maquinaria. Como pode o lugar que se ensina a ler (entre outras técnicas) e que apresentou a escolar o ambiente mágico da leitura ter-se transformado num espaço de repulsa e tédio? Se num primeiro momento houve motivação para frequentar, no momento atual há uma negação da vontade de pertencer ao mundo da escola. O corpo não quer estar lá. O que a própria escola fez com o corpo de JQR para negar a vontade de estar na escola e preferir muitas vezes ausentar-se para se dedicar a uma leitura? Não queremos estudar aqui as atitudes de JQR no âmbito moral, mas partir do fato que aquele corpo que gosta de ler e estar envolvida pelas leituras detesta confinar-se na escola e não vê sentido nas leituras didáticas que lá existem. O que a escola fez com este corpo? Este fato nos traz para as três leituras supracitadas e que serão discutidas nas próximas linhas. Afinal, o que é a escola? O primeiro texto para refletir é o texto apresentado por Varela e Alvarez-Uria (1992) que tratam da escola a partir de uma perspectiva diferente daquela que é adotada pelo sensocomum. Isto se faz importante para olhar para além dos muros da escola, conforme Sibilia (2012) chama atenção. Falar da escola é uma fala comum e é tão comum quanto falar de futebol em botequins. Não pretendo qualificar as falas, apenas apontar a existência de tais discursos. O que os autores acima mencionados, Varela e Alvarez-Uri, fazem é desmitificar

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muitas destas falas e propor incômodos sobre o que é a escola e quais dispositivos atuam sobre ela. A leitura apresentada parte da história da presença dos jesuítas na formação da escolar e na constituição do estatuto da infância da relação escola-estado. Existem inúmeros interesses políticos e religiosos para além da escola que, durante toda a formação das instituições políticas e religiosas, moldaram as relações culturais e tornaram tais instituições possíveis. E dentro deste contexto dar-se-á a criação do estatuto da infância. Do infante chega-se ao escolar e nele há implicações de como as instituições trabalham com estas categorias. “Assim como a escola, a criança, tal como a percebemos atualmente, não é eterna nem natural; é uma instituição social de aparição recente ligada a práticas familiares, modos de educação e, consequentemente, a classes sociais” (VARELA, ALVARES-URIA, 1992, p. 70). Com a instituição de uma categoria específica para os não-adultos decorre, a ideia de um espaço para prepará-los para a vivência de um ambiente específico instrumentalizando-os com algumas técnicas, a isto chama-se educação. Educação no sentido de formá-los para um padrão. Aqui cabe um parêntese e deixamos, por frases, de falar de Julia Varela para voltar à JQR. Se a escola a instrumentalizou na técnica da leitura, a escola já cumpriu seu papel a partir do domínio desta técnica. Seu interesse pela leitura não tem mais direcionamento específico e não cabe mais dentro daquele espaço. Se ela ler algo na escola diferente da “cartilha” dada será considerada uma escolar indisciplinada dentro dos padrões produzidos pela maquinaria instituída. Voltamos para a leitura de Varela e Alvares-Uria (1992) que determinam a estrutura da maquinaria a partir da ideia de que existe uma imposição da obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e sancionada pelas leis e assim condiciona diversas possibilidades dentro dos espaços escolares. O estado exercendo seu domínio sobre os corpos.

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A partir do momento que há esta imposição e obrigatoriedade existe também o chamando “conhecimento da vida” e que a escola toma como sabedora e única fomentadora que dará suporte para tal conhecimento. Para ter o conhecimento é preciso passar pela escola. E com a passagem temos o resultado do estar nela, constituindo então uma grande maquinaria dos espaços de enclausuramento nos ambientes são criadas estratégias de domínio sobre a formação dos escolares atendendo a interesses elitistas. A partir da leitura de Varela e Alvares-Uria (1992) entende-se que a escola não tem um sentido libertador e de autonomia, mas é reprodutora de um sistema já posto. A crítica tecida pelos autores representa um modo de olhar a história, ela não está fundada sobre julgamentos de valores, e isto é importante para o leitor entender e mergulhar nas entrelinhas. Apresentado este olhar geral para a obra vamos focar agora na parte final do texto de Varela e Alvares-Uria (1992) dela quando é apresentado um conceito de “escola”. A escola é um espaço tutelar do infante transformandoo em escolar, tal como o operário é tutelado por diferentes dispositivos a fim de moralizá-lo, convertê-lo em honrado produtor incapaz de transbordar-se em lutas sociais e que gere perigo a instabilidade política (cf. VARELA; ALVARESURIA, 1992, p. 90). A escola aqui passa num olhar muito diferente do apresentado por Freire (2014), por exemplo, quando apresenta uma leitura para a libertação e superação da dicotomia do oprimido/opressor. A escola é um espaço de manutenção do status quo. Esta manutenção é lembrada pelos autores quando afirmam que a burguesia impede assim a realização de programas de auto-instrução operária que atacavam a divisão e a organização capitalista do trabalho ao exigir uma formação polivalente e uma instrução unida ao trabalho e ministrada pelos próprios trabalhadores com uma projeção 119


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política destinada à sua emancipação (VARELA, ALVARES-URIA, 1992, p. 91).

Para concluir o olhar sobre a ideia de escola enquanto um espaço próprio da maquinaria é possível voltar o olhar para o relato inicial de JQR que considera a escola chata. Se o mundo da leitura é mágico porque ele permite um olhar para múltiplas alternativas, o mundo escolar é chato porque seu olhar está direcionando a um espaço de domesticação das vontades sujeitado a uma autoridade que rege sobre partes da vida, conforme Varela e Alvares-Uria (2012) chamam atenção. No sujeitamento não há espaço para transbordar a ideia, o escolar deve ser sujeito de uma maquinaria, um corpo dócil. O segundo texto que compõe esta reflexão é o olhar de Sibilia (2012) sobre a escola no tempo que ela chama de dispersão. O texto de Paula Sibilia na introdução traz um questionamento interessante: para que serve a escola? A resposta não é uma questão simplória, mas a pergunta inicial acompanha e provoca o leitor ao longo das páginas do texto Redes ou paredes: a escola em tempo de dispersão. A resposta não é apontada de maneira categórica, mas ela nos leva para questões importantes como “que tipos de corpos e de subjetividades a escola tradicional produziu em seu apogeu?” (SIBILIA, 2012, p. 11). A questão proposta tem como intenção refletir uma faixa histórica que compreende a metade do século XIX e boa parte do século XX. Mas pensar estas questões é entender quais mecanismos atuam sobre os dispositivos que estão na escola. No primeiro capítulo a autora destaca que existe um descompasso entre a proposta da escola e seu público e na sequência faz uma leitura de Kant. O desencaixe apontado é marca da primeira década do século atual. Existe uma clara diferença entre as novas tecnologias virtuais e a escola. Mas este descompasso é fruto do regime no qual a escola foi identificada e nesta identificação é instituída a ideia que todos 120


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devem ser escolarizados de acordo com interesses jamais expostos. No fim do capítulo é apresentado o filósofo argentino Ignácio Lewkowicz1 (cf. SIBILIA, 2012, p. 23). Para o filósofo mencionado os dispositivos que atuam sobre a escola servem para a produção e reprodução de um cidadão que deverá ser guiado a viver de acordo com os princípios legais e este apoiarse-á em instituições fundamentais como família e escola. Um ser no mundo para reproduzir uma verdade já dada, e a autora continua afirmando, “desse modo, já convenientemente disciplinados, instruídos, civilizados e moralizados (...) os sujeitos podiam ingressar em cada uma dessas instituições munidos das premissas que as guiavam” (SIBILIA, 2012, p. 24). As técnicas na escola não são para transportar para um mundo mágico, mas, para instrumentalizar um cidadão que viverá institucionalizado2.Para além disto, há outra situação que Sibilia (2012) chama a atenção que é o momento de crise e enfraquecimento que o Estado, enquanto instituição. A partir desta apresentação olhamos com atenção outro capítulo da obra, do quadro-negro às telas: a conexão contra o 1

Ignácio Lewkowicz (1961-2004) foi um historiador e filósofo argentino dedicado ao estudo da subjetividade contemporânea. Como historiador seu foco de estudo fora a história antiga e sua tese em Licenciatura da História trabalhou a demografia espartana na relação constituindo com as instituições. Também apresenta escritos de economia, política, direito, pedagogia e ética. Trabalhou nos últimos anos de sua vida na compreensão sobre a transformação contemporânea e as diversas formas de subjetividade. Uma das obras mais lidas e comentadas do filósofo intitula-se em originalmente Pensar sin Estado publicada em 2004. 2 Um filme interessante para pensar a questão da institucionalização é “Um sonho de liberdade” (1994) - The Shawshank Redemption – dirigido por Frank Darabont com elenco composto por Tim Robbins, Morgan Freeman e William Sadler. Conta a história de um banqueiro condenado à prisão perpétua que foge após 19 anos de detenção. O filme é interessante porque faz pensar como as paredes e o confinamento da prisão institucionaliza o sujeitado. O personagem interpretação do Morgam Freeman não sabe como é viver fora da cadência após longa jornada na prisão. 121


O que é a escola?

confinamento, este capítulo dá chaves para pensar a partir da crise e das novas possibilidades com o reconhecimento do desencaixe. O capítulo acima mencionado apresenta uma situação no Estado do Rio de Janeiro que também está presente no Estado de Santa Catarina3. A existência de leis que proíbem o uso de dispositivos mobile dentro dos espaços escolares. Não é apenas a proibição em si que deve ser discutida, mas o modelo de sociedade disciplinar que tal ação está fundamentada e, neste caso, o modelo disciplinar de confinamento. Se há uma abertura para um mundo além dos muros da escola ele é visto como problemático pelas instituições escolares e pelo próprio Estado que legitima o confinamento. Esta postura pode apresentar em embate, ou melhor, a um desencaixe diante da relação escolares e escola. Há um mundo que se apresenta e há as possibilidades de confinamento que o Estado em crise, insiste em manter. A ruptura ou não do sistema escolar arcaico não elimina a formatação sobre os corpos. A simples permissão dos dispositivos móbile em espaços escolares não elimina a ideia de confinamento, de controle e de disciplina. Se há algum mecanismo de resistência ao confinamento, controle e disciplina acontecem porque o modelo constatado atingiu seu objetivo e a partir dele nascem os momentos de resistências conforme a autora sugere. O problema do uso das novas tecnologias virtuais não está nos nós das redes que formam, mas está nas paredes que disciplinam e controlam os corpos. A questão da dicotomia entre redes e controle no espaço escolar não para no reconhecimento das paredes que cercam as redes. A questão vai além e precisa de uma reflexão sobre o que de fato significa estar em sala de aula e estar conectado. 3

No Estado de Santa Catarina a mencionada é a Lei Nº 14.363, de 25 de janeiro de 2008 do Deputado Antonio Aguiar que afirma categoricamente “Fica proibido o uso de telefone celular nas salas de aula das escolas públicas e privadas no Estado de Santa Catarina”. 122


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Com a conexão há uma expansão dos muros físicos. Segundo a autora “enquanto os alunos de hoje vivem fundidos com diversos dispositivos eletrônicos e digitais, a escola continua obstinadamente arraigada em seus métodos e linguagens analógicos” (SIBILIA, 2012, p. 181), não basta inseri-los é preciso dar significado a inserção. A autora também alerta que o desencaixe não se resolve apenas como uso de novas tecnológicas como recursos didáticos e isto não resolverá todos os problemas que envolvem a educação. Envolver tais mecanismos dentro dos espaços escolares requer um olhar sobre as possibilidades que eles oferecem e quais efeitos dispersivos são produzidos. Para linkar com o relato de JQR, não basta ensinar a técnica da leitura é preciso transcender, mas no disciplinamento é possível transcendência? Para dar conta deste problema a autora afirma que são necessários “produzir condições de recepção e agir sobre os efeitos dispersivos” (SIBILIA, 2012, p. 185). O último texto que pretendemos comentar e que ajuda a compreender o que é escola e quais os dispositivos que atuam sobre elas é a tese Política de gestão escolar na sociedade de controle de Cervi (2010). Olharemos o segundo capítulo que trata das questões dos fluxos que envolve o espaço escolar. Segundo a autora “fluxo é algo intenso e instantâneo, mutante, que se desterritorializa para se conjugar com outros fluxos” (CERVI, 2010, p. 65). A partir das descrições pretendo trazer alguns alinhamentos para as questões que até agora foram refletidas neste capítulo. Os fluxos permitem compreender melhor alguns acontecimentos que investem na escola como um espaço de transformação da sociedade, como a autora sugere para entender a passagem, ou melhor, o deslocamento da escola disciplinar para um modelo de escolas e escolares na sociedade de controle, aproximando-se da ideia de escola como lugar de confinamento, conforme Sibilia (2012) descreve. Para descrever este deslocamento Cervi (2010) utiliza o

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apontamento de doze fluxos, a partir de um olhar sobre a história que permite “lidar com o atual e o virtual” (CERVI, 2010, p. 116), que descreveremos rapidamente. O primeiro dos fluxos é chamado de outros espaços e ele está a falar da ação dos jesuítas na educação do Brasil colonial com os nativos, com os portugueses aqui instalados e com a formação das elites e das lideranças coloniais. Esta passagem é apontada para chegar na ação de Marquês de Pombal quando em 1750, através da reforma que expulsa os jesuítas e desloca o controle da educação, dos religiosos para a mão do Estado. O segundo fluxo, do governo da casa ao governo do Estado. O movimento de independência do Brasil traz consigo um olhar sobre a instrução e liberdade no que tange a educação, através do capítulo 179 da primeira constituição (cf. CERVI, 2010, p. 71). Através dela são indicadas que em todas as cidades e lugares mais populosos deveria haver as escolas das primeiras letras. O Estado agindo sobre indicações e posicionamentos das escolas. A ação no Estado na educação não estava apenas nos apontamentos de instituições de primeiras letras, mas cabia ao Estado Imperial, segundo a autora, o monopólio de “concessão de diplomas e títulos, pelos exames preparatórios de equivalência ou habilitação, pela imposição da religião e pela seleção dos professores (CERVI, 2010, p.74). O terceiro fluxo trata da escola estatal como um projeto de „quase todos‟ a partir dos interesses do movimento republicano. Os ideais positivistas que motivaram a queda do império foram na verdade uma política de „industrialização‟ e urbanização voltadas à elite burguesa sob a bandeira para todos e na educação isto não fora diferente. Neste período as discussões pedagógicas estão reunidas em torno da tendência da Escola Nova. No quarto fluxo a autora chama a atenção pelo perigo da linha de fuga única. Enquanto que o Estado se organiza como tal para o controle da Educação, em todo país

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existem o ideário anarquista que propõe escolas para a não elite. Diante deste contexto foram incontáveis as ações do Estado para silenciar tais iniciativas consideradas pelos que controlam o poder como „perigosos‟ deixando linha de fuga única. O quinto fluxo é chamado de normal. Aqui, ainda na fase entre guerras é marcada por um mundo em ebulição. No borbulhar dos eventos surge o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova4 que “representou, nas práticas discursivas, o nascimento da educação científica no Brasil” (CERVI, 2010, p. 82). Mas entre o desejo expresso no Manifesto de 1932 e aquilo que o Estado propôs existe um abismo. O que está em jogo é o controle sobre a educação dos filhos dos operários diante da consolidação de um Estado Moderno. Discurso de “moderno” que está presente deste a implantação da República. Educar para compor o corpo populacional do Estado e a ciência deve ser esta guia. O sexto fluxo trata da uniformização via escola nacional. E isto acontece no período do governo de Getúlio Vargas e de toda angustia dada com os conflitos da II Guerra Mundial. O Estado assume o papel de preparar o homem para construir uma nação, os sentimentos de pertença a um Estado surgem por todas as partes. A Escola torna-se um ambiente para a correção. Com ela está em função de um Estado Nacional a quebra das escolas dos imigrantes torna-se obrigatória e o nacionalismo varguista acaba com qualquer outra proposta que não seja a do controle do Estado. O sétimo fluxo trata da escola e do desenvolvimento no pós-guerra. Ideários de industrialização e do desejo de não-conflito se 4

Texto redigido por 26 intelectuais onde são destacados Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Antônio F. Almeida Junior, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles, dentre outros. O manifesto centralmente propunha que o Estado organizasse um plano geral de educação e defendendo a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. Fora fortemente criticado pela Igreja Católica. 125


O que é a escola?

tornam comum e a Educação assume o papel da prestação de serviços. A presença e institucionalização de engajados e debates políticos e a presença de intelectuais na “luta por um mundo melhor” são discursos frequentes. Diante do mesmo discurso a Igreja Católica faz duros discursos contrários a estatização do ensino e usa os exemplos de fascismo da guerra como pressuposto teórico a ser evitado, discurso que se unem pela conquista do controle do poder. Toda esta discussão perdura até a implantação da Ditadura Militar. Com ela é possível olhar o oitavo fluxo, que a autora chama de escola e capitalismo. A educação escolar é um instrumento para criar condições para o desenvolvimento do capitalismo. Isto fica muito claro na Lei 5692/1971. Ditadura, no controle da educação foca o ensino profissionalizante e o escolar visto como capital humano a fim de dar conta de uma produção específica e o Estado deve prepara-lo para tal. E o nono fluxo corre pela mesma direção com um discurso diferente. O discurso da democracia, mas usa a bandeira do social para justificar o controle do Estado sobre. A Educação é definida como competência do Estado para dar conta do Social e promover a bandeira da Cidadania e dos discursos de inclusão. Os últimos três fluxos, assim como o nono trataram do tempo presente e da história recente. O décimo fluxo trata da escola, da economia e da empresa. Mecanismos internacionais atrelam crédito financeiro a indicativos educacionais. A análise econômica transformou-se na metodologia principal para a definição das políticas educativas (cf. CERVI, 2012, p. 106). A escola é vista como empresa onde não se faz pela pedagogia, mas pelo mundo econômico. A escola está alinhada por um sistema que precisava formar uma nova realidade. O olhar sobre o escolar nunca é coletivo, mas sempre é individual e a responsabilidade do sucesso é individual. Um discurso que isenta o Estado controlador sobre a ações do sujeitado. A escola é produto da sociedade. O penúltimo fluxo trata da

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Escola e do Estado em si enquanto uma regulação supranacional não mais como um nacionalismo de outrora, mas como um dispositivo dos movimentos econômicos globais onde se exige a existência de um sujeito enquanto empresário de si. E por fim, o último fluxo que trata dos tempos de globalização e da gestão democrática. Mas aqui cabe lembrar que o conceito de gestão democrática de educação está a serviço de interesses globais, bem diferentes dos discursos de educação democrática encontrados em outros momentos da história. 2. CONCLUSÃO Os textos propostos e refletidos partem de um ponto comum. Todos analisam o atual por meio de fatos históricos. Não são textos históricos, mas tratam do tempo presente através de um olhar de como este tempo se constituiu. Não é a história em si, mas é a história para ler o hoje. Isto é importante para responder à questão „o que é a escola‟. Esta leitura permite olhar para a escola e entender como alguns mecanismos funcionam. A partir deste entendimento é possível compreender como uma adolescente que gosta de ler acha chato o ambiente que a ensinou a técnica da leitura e a instrumentalizou para compreender a leitura. A maquinaria dos espaços de confinamento produz seres de acordo com aquilo que interessa ao Estado no momento. As leituras aqui apresentadas nos fazem pensar um choque e desacreditar na proposta do primeiro capitulo de A pedagogia do oprimido de Paulo Freire. A Escola, dentro do seu contexto, produz sujeitados a um sistema e atua diretamente sobre suas vontades. Então, voltando ao relato de JQR, ela ensina o domínio sobre a técnica da leitura, mas não permite se “lambuzar” com esta leitura. Alguém poderia classificar isto como uma visão negativa, mas não é intenção desta reflexão propor um julgamento de valor, mas é apenas uma tentativa de entender o 127


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que é de fato a Escola e como ela resiste as diversas transformações sociais, e ainda, como ela se perpetua diante de um Estado que a controla e que alguns afirmam estar em crise. O que é a escola?

3. REFERÊNCIAS CERVI, Gicele Maria. Política de gestão escolar na sociedade controle. 245 f. Tese. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010. Arquivo em PDF. DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 56 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014 VARELA, Julia. ALVARES-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. São Paulo: Teoria & Educação, n. 6, p. 68-96, 1992. SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

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Capítulo oito - Uso (in)comum: videogames e quadrinhos em sala de aula Cláudio Roberto Antunes Scherer Jr.

1. INTRODUÇÃO O presente relato aporta-se na realização da disciplina Estágio Supervisionado de História II, no segundo semestre de 2011 na Universidade Federal de Santa Catarina, que proporcionou a experiência docente num ambiente real de ensino, e, por ter sido realizada numa escola da rede estadual, fez com que me defrontasse com todos os desafios presentes na realidade do „mundo fora da universidade‟, sendo desse modo muito mais interessante do ponto de vista da tentativa desafiadora de construir um ensino de história que suprisse as necessidades dos alunos e que contribuísse na minha formação profissional. Esse capítulo se insere no contexto desse livro na medida em que se preocupa com a relação presente no ambiente de sala de aula com as diversas formas de inserir os conteúdos escritos, transformados e adaptados, sejam através de História em Quadrinhos, seja através de Videogames, para a realidade e o cotidiano dos estudantes, na busca por uma compreensão e assimilação mais proveitosa dos assuntos trabalhados com vista à construção do conhecimento. O primeiro dilema que se apresentou durante a realização do estágio foi a quantidade imensa de conteúdos históricos que deveriam ser trabalhados, além do fato de ter diante de mim 43 alunos/as, ou seja, uma sala de aula bem cheia. Levando em consideração também a responsabilidade de se tratarem de alunos/as de uma 3ª série do ensino médio,


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prestes a prestar vestibular. Considerando tudo isso, comecei a viver os dilemas de um professor da rede pública de ensino: sala cheia, muito conteúdo e alunos/as prestes a encarar alguns dos desafios da vida. Com tudo isso em mente foi necessário criar soluções que facilitassem os trabalhos. Isso não significa que foi optado pelo mais fácil, mas sim facilitar a, muitas vezes, difícil tarefa de deixar os conteúdos históricos mais atrativos e compreensíveis para os alunos/as. Para se ter uma ideia, o conteúdo histórico para a disciplina começava com o final da 2ª Guerra e em sequência: Guerra Fria, Revoluções Socialistas, História da África, Conflito Árabe-Israelense e Guerra do Golfo. Sendo esse conteúdo dividido em 10 aulas com duas aulas faixa por semana, e levando em conta que deveríamos ter pelo menos duas notas e mais a nota de recuperação. Após o susto inicial, foi esboçada cada aula para cada conteúdo, e junto de determinada aula experimentar novas estratégias. Foi assim que foi decidido utilizar imagens para auxiliar na compreensão do conteúdo Guerra Fria, não apenas imagens de Joseph Stalin, de Yuri Gagarin ou Neil Armstrong e não apenas imagens que ilustrassem a briga publicitária que refletia as lutas ideológicas de ambos os lados, a intenção era trazer imagens que revelassem essa disputa através de outros meios que eles ainda reconhecessem como sendo parte de seu cotidiano, ou seja, relacionar a História com suas vidas, fazendo a ligação entre o presente e o passado. A maneira concebida para realizar tal tarefa foi ligar o conflito ideológico entre capitalismo e socialismo às histórias em quadrinhos (HQs) do Capitão América, que visivelmente representava os EUA, e tinha por inimigo o Caveira Vermelha, subliminarmente representante da URSS. Além da HQ do Capitão América, foi utilizado também imagens do jogo de videogame chamado Street Fighter que possui personagens lutadores representantes de vários países incluindo as grandes

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potências EUA e URSS, e que assim como a HQ, apresenta algumas imagens que envolvem as ideologias capitalista e socialista, sendo no primeiro caso imagens consideradas positivas (capitalismo) e no segundo imagens consideradas negativas (socialismo). Este capítulo busca relatar tal experiência e auxiliado pela bibliografia, analisar os aspectos epistemológicos que implicam tal iniciativa, situando o lugar das imagens na História, sua relação com o ensino, bem como o uso de HQs e a utilização de videogames.

2. IMAGENS E A HISTÓRIA Não é de hoje que a História se vê diante de novas possibilidades de abordagem do passado e principalmente da possibilidade de novos caminhos para se chegar a esse passado. É a partir da ampliação do conceito de fonte histórica, que não mais fica restrita as ditas „fontes oficiais‟, ou seja, documentos encontrados nos arquivos do Estado, memorandos, atas, leis, etc, que novas fontes antes não consultadas, não só podem como devem ser utilizadas. Nos últimos tempos, os historiadores têm ampliado consideravelmente seus interesses para incluir não apenas eventos políticos, tendências econômicas e estruturas sociais, mas também a história da vida cotidiana, a história da cultura material, a história do corpo, etc. Não teria sido possível desenvolver pesquisa nesses campos relativamente novos se eles tivessem se limitado a fontes tradicionais (BURKE, 2004, p.11).

As imagens apresentam-se como um importante meio de alcançar o passado que antes estava restrito às fontes 131


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escritas, o uso de imagens auxilia na busca de uma visão do passado antes inalcançável. Nas palavras do próprio Peter Burke (2004, p.17): “imagens nos permitem „imaginar‟ o passado de forma mais vívida.” É com essa ideia que a História vem fazendo uso de inúmeros tipos de imagens como: pinturas, esculturas, fotografias, plantas arquitetônicas, mapas, histórias em quadrinhos e, mais atualmente, com imagens em movimento: filmes, documentários, desenhos animados e também a categoria dos videogames. HQs (histórias em quadrinhos) situam-se num tipo de arte que envolve imagens em sequência em conjunto com pequenos textos e tem como objetivo contar uma história. Considerada pelos seus leitores aficionados como sendo a „nona arte‟: arte que envolve cor palavra e imagem; as Histórias em Quadrinhos “são imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador” (SOBANSKI, 2010, p.49), elas têm seu início oficial marcado com o surgimento da personagem Yellow Kid em 1895 nos EUA. (MENDO, 2008, p.15) As HQs conseguem contar histórias que cativam crianças e adultos, com enredos e imagens contam histórias que de alguma maneira representa parte da realidade. Claro que muitas vezes de uma maneira fantasiosa e extremamente fictícia, porém a inspiração inicial sempre parte da realidade de qualquer autor, seja ele um escritor, um historiador ou um roteirista de HQs. Partindo dessa ideia, as HQs são representantes de um momento histórico, revelado na forma como é desenhada, nas cores com que é representada e nas histórias que tentam transmitir. Peter Burke (2004, p.20,21) afirma que: “Independentemente de sua qualidade estética, qualquer imagem pode servir como evidência histórica”, é a partir disso que se justifica a utilização não só de HQs como também de videogames, evidências do passado na qual foram

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construídas, representantes de ideologias na busca por sua divulgação e ampla influência.

3. HQS, VIDEOGAMES E SALA DE AULA A Escola Estadual Aderbal Ramos da Silva se localiza no continente da cidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, mais precisamente no bairro Estreito, um dos mais antigos e mais populosos da cidade. O bairro Estreito contém uma das mais importantes áreas comerciais da cidade, possuindo também um elevado fluxo de veículos urbanos. É em meio a esse movimentado bairro que se localiza a escola; próximo de um shopping, de um posto de gasolina, de dois grandes supermercados e do estádio de um dos principais times de futebol da cidade, o Figueirense. Ver imagem:

Fonte: http://maps.google.com.br/maps/myplaces?hl=ptBR&vpsrc=6&ctz=180&abauth=c4bfdeaf:A_jG904IB 133


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jnyzWT_fU2ijlDeizw&vps=1&jsv=370a&sll=27.594444,48.575278&sspn=0.019778,0.032015&ei=BvqJToCC GI6eywS_1MmVDQ&num=10 acesso em 03/10/2011 O espaço físico da escola é um dos pontos positivos, pois possui cerca de quatro quadras de esporte, ginásio, refeitório, auditório, pátio espaçoso para o recreio, biblioteca, sala de Datashow, sala de informática, e grande número de salas de aula. Porém, apesar desse considerável espaço, as condições de conservação da escola se encontravam deterioradas, com a maior parte da pintura descascando e/ou pichada, portas que não fecham mais, banheiros insalubres, rachaduras pelas paredes e salas de aula extrapolando sua capacidade máxima. Como foi dito no início, a turma contava com 43 alunos/as das mais variadas origens e frequentavam a escola no período vespertino. A maior parte dos/as estudantes não mora no entorno da escola, o que não é comum acontecer com escolas públicas. Eles e elas advinham de uma grande pluralidade de lugares da cidade e também de municípios vizinhos como São José, Biguaçu e Palhoça. Nesta turma havia alunos moradores do Centro, de bairros mais próximos como Jardim Atlântico, Barreiros, Coloninha, Coqueiros, entre outros. Apenas cerca de ¼ dos alunos/as viviam no próprio bairro onde se situa a escola. A maior parte da turma tinha pretensão de prestar vestibular, algumas alunas faziam cursinho fora do horário de aula num projeto de ensino pré-vestibular presente na própria escola, mantido por voluntários, sem nenhum envolvimento da escola além do espaço físico cedido. Existiam alunos/as que tinham trabalho fixo ou estágio remunerado. A idade dos estudantes oscilava entre16 e 18 anos e a maior parte da turma era composta de meninas.

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Após as observações iniciais, ao fazer o planejamento de ensino, foi eleito o conteúdo Guerra Fria como sendo central no andamento dos demais assuntos, e, portanto, seria dada ênfase nesse tema que era o polo norteador das próximas aulas, que seriam respectivamente: Revoluções Socialistas e Conflito Árabe-Israelense. A intenção era fazer ligações claras entre os conteúdos, construindo uma história conectada entre si. Por isso além de uma aula expositiva, auxiliada com mapas, foi construída uma apresentação de slides que daria forma e aparência ao conteúdo ministrado, a pretensão era dar rostos aos nomes como Joseph Stálin, Harry Truman, Yuri Gagarin, Neil Armstrong, a cadela Laika entre outros. Foi um grande desafio transformar o conteúdo escrito em imagens que deveriam além de despertar mais interesse, reforçar o tema proposto. “Os historiadores deparam hoje com esse fenômeno histórico inusitado: a transformação do acontecimento em imagens, de modo que conhecer se reduza a „ver‟, e não mais a compreender.” (BITTENCOURT, 2009, p.363) A intenção com essas imagens não estava reduzida apenas a visualização, mas também buscava despertar e estimular a curiosidade, faculdade tão comum nas crianças e adolescentes; sem ter essa curiosidade aniquilada pela instrução (MORIN, 2009, p.22), que muitas vezes se torna tediosa e ineficaz. O foco dado neste relato está em dois desses slides que comportam imagens que, não necessariamente, se ligam de maneira direta ao conteúdo histórico tradicional sobre a Guerra Fria. No primeiro slide foi apresentado aos/as estudantes a personagem de HQs estadounidense chamado Capitão América e seu inimigo mortal o Caveira Vermelha. E no segundo slide apresentei-lhes imagens do jogo de videogame Street Fighter, mais especificamente imagens que mostram as personagens Zangief e Guile e seus respectivos cenários. “Esses artefatos culturais foram escolhidos por serem fontes históricas relevantes ligadas ao âmbito da cultura juvenil, pois contêm

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uma linguagem que permite compreender a relação passado/presente” (SOBANSKI, 2010, p.46), e é justamente essa ponte entre o presente e o passado que é o maior desafio ao se propor o ensino de história. No dia-a-dia vemos diante de nós situações, notícias, imagens, guerras, conflitos, queda e elevação das cotações da bolsa, crises econômicas, que apesar de estarem no nosso presente têm ligação direta com o passado, porém, o desafio é justamente mostrar essas ligações entre a vida presente e o „longínquo‟ passado; esse lugar considerado por muitos, tão distante da atualidade, ainda mais na velocidade com que o cotidiano, os assuntos e as práticas mudam na época dos 'fast' em que vivemos.

Fonte: Caveira Vermelha: http://www.comicvine.com/forums/gen-discussion/1/rate-thefight-game/581537/?page=3 Capitão América: http://liquid86.deviantart.com/art/Captain-America-28325139? Acesso dia 12/09/2011

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Apesar de que a maioria dos/as estudantes jamais ter lido uma HQ do Capitão América, todos o conheciam, seja através de desenhos animados, de filmes, de notícias ou de programas de TV. Isso mostra o poder de alcance atingido, ainda hoje, entre os jovens desse super-herói defensor dos EUA. Esse slide vinha justamente após imagens famosas das propagandas ideológicas que circularam tanto nos EUA quanto na URSS, a intenção foi mostrar que existem maneiras subliminares de dissipar mensagens carregadas de símbolos ideológicos, e que no caso do Capitão América, que surgiu em pleno contexto de guerra entre as superpotências e fazia parte de um grupo de personagens onipresentes que têm soluções para os perigos vividos pelos humanos comuns, essas mensagens são muito mais explícitas do que implícitas. (MENDO, 2008, p.17) Primeiramente foram analisadas as roupas de cada personagem e de como elas nos dão referências às duas superpotências em choque (EUA x URSS), aqui cabe ressaltar que no primeiro slide no começo da aula foi apresentado às bandeiras de cada país e o significado de seus símbolos e cores. No caso do Capitão América era bastante evidente, ele praticamente veste a bandeira estadunidense e, em sua testa, vemos um grande A de América (a América da compreensão estadunidense que se resume a USA), com relação ao Caveira Vermelha a única referência dada por parte dos alunos/as foi o fato da personagem ter a cabeça vermelha, então fiz eles/elas notarem o uniforme do Caveira, que muito se assemelhava ao uniforme militar soviético. Após isso foi feita uma análise das sensações que a imagem nos passa e nesse momento o Capitão América despertou as seguintes: coragem, beleza, bravura e força, além de outras que podem ser inseridas dentro das citadas. Com o Caveira Vermelha os adjetivos foram: morte, mal, medo e feiura. O que mais foi destacado no slide é a cabeça de caveira

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do inimigo do Capitão América, e foi a partir daí que foi feita a indagação: „será que essas referências aos países e essas diferenças de representação, uma sendo positiva, a outra sendo negativa é devido a um simples acaso, ou será que tais personagens foram criados com segundas intenções?‟ Esse foi o momento de reflexão, de ligar o conteúdo da aula com algo conhecido por eles e criar uma problematização, que foi respondida de diferentes maneiras, mas de forma geral a maioria acreditou se tratar de uma forma de propaganda tentando „vender‟ a ideologia estadunidense aos jovens, mesmo que não intencional. O segundo slide apresentava imagens do jogo de videogame Street Fighter:

Fontes: Imagem1 http://www.gamespot.com/soapbox/index.html?page=2 Imagem 2http://74.220.215.239/~oldwiza2/wpcontent/uploads/2009/02/zangief1.jpg Imagem 3http://jeanieandronyk.com/2010/07/ 138


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Imagem 4http://tetamonstro.com.br/videos/zangief-kid/ Acesso em 12/09/2011 Street Fighter é um jogo de luta desenvolvido no Japão que teve sua primeira versão criada em 1987, porém, somente em sua segunda versão, Street Fighter II: The World Warrior (1991), o jogo alcança grande sucesso ao redor do globo, se popularizando entre os jovens. Nessa versão, que será a matriz para todas as próximas, temos lutadores de várias nacionalidades se enfrentando em combates com auxílio de golpes de variadas artes marciais (caratê, sumô, muaythai, greco-romana, boxe), e também com golpes especiais, chamados também de „magias‟, que só são executados mediante um sincronismo de comandos. Dentre os lutadores existe um chamado Zangief, representante da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e existem três lutadores estadunidenses, mas entre eles o que mais chama atenção e que pareceu ser mais útil na relação do jogo com a Guerra Fria foi o de nome Guile, um representante das forças armadas dos EUA. A partir dessas duas personagens fizemos, o professor em conjunto com a turma, uma análise das imagens. Em primeiro lugar percebe-se que o lutador soviético faz parte dos lutadores do „mal‟ dentro do jogo, sua aparência é um tanto quanto bizarra, pois apesar de ser um homem grande e musculoso ele luta com uma pequena sunga vermelha, cor que faz referência a URSS, além disso, ele ostenta cicatrizes por todo o corpo, que seria o resultado de seu treinamento com ursos na Sibéria. No entanto, é principalmente seu cenário que mais chama atenção, ele luta dentro de uma fábrica escura, com grades ao redor e dezenas de espectadores, provavelmente trabalhadores da fábrica, todos homens. Dentre essas imagens uma chama ainda mais atenção, um dos supostos trabalhadores está bebendo direto de uma garrafa, subentendendo-se ser

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alguma bebida alcoólica, ao chão vemos a foice e o martelo, grandes símbolos da URSS. Esse cenário contrasta fortemente com o do lutador Guile. Nele a luta acontece numa base aérea com um avião caça ao fundo rodeado por um céu completamente azul, os espectadores são pilotos, todos loiros e dois dos pilotos espectadores estão acompanhados por mulheres também loiras e ao chão o símbolo da aeronáutica estadunidense. Com relação ao lutador, Guile luta com uniforme militar, ele, logicamente, é loiro e ostenta a bandeira dos EUA tatuada no braço. Claramente, a aparência de Guile e seu cenário, se enquadram muito melhor nas concepções gerais de beleza, daquilo que é bonito, o que de início já desperta mais interesse, em detrimento da aparência de Zangief e seu cenário pouco atrativos. A intenção de mostrar as imagens dos jogos era mostrar como o conflito ideológico entre EUA e URSS ainda eram presentes na atualidade e, portanto, continuam fazendo parte de nossas vidas. As imagens, independente se de forma literal ou metafórica, registram um ponto de vista, e cabe a nós que trabalhamos com a História revelarmos quais eram esses pontos de vista, em quais contextos foram criados (BURKE, 2004, p. 24; 225). O jogo Street Fighter surge mais ao final da Guerra Fria, no Japão, país com forte influência do capitalismo estadunidense. Em 1991 quando surge a versão que analisei, é justamente o ano que marca a extinção da União Soviética. Não acho plausível supor que fosse a intenção dos criadores do jogo manipular de maneira subliminar os/as jovens ao redor do mundo com imagens de um jogo de videogame, mas seus criadores estavam envoltos nessa rede de influências, nesse contexto de luta ideológica e ao criarem o jogo deixaram vestígios de suas concepções dessa luta entre EUA e URSS, que foi mantida no jogo, mesmo em versões posteriores ao fim da Guerra Fria e da URSS.

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4. CONCLUSÃO A disciplina ou matéria de História, para muitos alunos/as, é uma das mais maçantes, chatas e desestimulantes presentes nos currículos de ensino. Isso se deve justamente ao fato da grande distância em que o aluno se vê com relação ao conteúdo ministrado e a falta de uma suposta utilidade prática, frases como: „Do que me adianta saber o que aconteceu em tal época e tal lugar?‟, ou „Que me interessa saber isso?‟ não são raras quando há insatisfação com relação à matéria. A desvalorização do conhecimento das áreas de humanas em detrimento das ciências exatas também é outro fator a ser apontado. A utilização de imagens pode e deve ser considerada como uma ferramenta de ilustração que tem por objetivo despertar mais atenção, mas também como um modo de problematizar o passado e de despertar reflexões críticas sobre o mundo que nos cerca. Uma das formas de avaliação que utilizei sobre o assunto foi um questionário que continha um texto do historiador inglês Eric Hobsbawm (1995), algumas questões baseadas no texto e também as possíveis interpretações de uma imagem:

Alunos/as: Turma: • Com base na aula e no texto responda as questões de 1 à 4: “(...) a URSS não apresentava perigo imediato para 141


Uso (in)comum

quem estivesse fora do alcance das forças de ocupação do Exército Vermelho. Saíra da guerra em ruínas, exaurida, exausta, com a economia de tempo da paz em frangalhos (...). Era governada por um ditador que demonstrara ser tão avesso a riscos fora do território que controlava diretamente quanto implacável dentro dele: Y. V. Stálin. Precisava de toda a ajuda que conseguisse obter e, portanto, não tinha interesse imediato em antagonizar a única potência que podia dá-la, os EUA. (...) [A URSS] não tinha dúvida de que [o mundo] continuaria por um longo tempo sob hegemonia dos EUA, cuja riqueza e poder, enormemente aumentados, eram simplesmente óbvios demais. (...) Isso, era o que a URSS suspeitava e receava. Sua postura básica após a guerra não era agressiva, mas defensiva. (...) Assim, quem foi o responsável pela Guerra Fria? (...) É tentador juntarmo-nos aos mediadores históricos que atribuem ao medo mútuo de confronto que aumentou até os dois „campos armados começarem a mobilizar-se‟ (...). Claro que isso é verdade, mas não toda verdade. (...) Mas não explica o tom apocalíptico da Guerra Fria. Ele se originou na América. (...) Na verdade, como demonstra a retórica [os discursos] da campanha de John F. Kennedy [presidente dos EUA de 1961 a 1963], com a clareza da boa oratória, a questão não era a acadêmica ameaça de dominação mundial comunista, mas a supremacia americana concreta: „Vamos moldar nossa força e nos tornar os primeiros de novo.‟ (Kennedy). (HOBSBAWM, 1995, p.230-234, Apud. SCHMIDT, 2002, p. 181) 1) Quando a Guerra Fria começou, a URSS realmente tinha condições de ameaçar os EUA? Por quê? 2) De acordo com o autor, a postura soviética foi agressiva ou defensiva? 3) Apocalipse significa “fim do mundo”. O

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que quer dizer “tom apocalíptico” da Guerra Fria? 4) Para os governantes americanos, o maior problema não era a “ameaça mundial comunista”. Para eles, mais importante ainda era atingir qual objetivo?

Fonte: http://www.brasilescola.com/upload/e/mundo%20bipolar(2 ).jpg acesso em 15/09/2011 5) Explique o significado dessa imagem no contexto da Guerra Fria. Foi extremamente interessante essa atividade. Para nós, parece ser extremamente fácil e óbvio, mas e para os/as estudantes? Essa imagem é muito comum na internet. É a primeira imagem que aparece na busca por Guerra Fria no site de pesquisa Google e, considero-a bastante ilustrativa da ideia de bipolaridade mundial, de mundo dividido entre capitalismo e socialismo, entre EUA e URSS, enfim, o que normalmente, os interessados em história e historiadores veem. A grande 143


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maioria da turma respondeu corretamente, apenas uns poucos deram como resposta algo menos relacionado com o contexto e conteúdo discutido em sala de aula, mas no geral ninguém errou completamente essa questão. A surpresa dessa avaliação, foi a grande ênfase dada pela maioria dos alunos/as a um detalhe que a princípio me havia passado despercebido. O fato de que a personagem representante dos EUA estar armado com uma arma de fogo, o que segundo alguns alunos/as representa o maior poder armamentista estadunidense, enquanto que a personagem representante da URSS está segurando apenas uma faca, o que segundo eles/elas demonstra menor força. Refletindo após o resultado da atividade pude perceber que os/as estudantes já tinham a conclusão de que os EUA eram mais poderosos e ao lerem o texto e verem a arma de fogo na mão da personagem confirmaram o que já sabiam. Hoje percebo que deveria ter mostrado que a imagem utilizada também é representante de uma ideologia, e, no caso, mostrava que os EUA eram superiores belicamente. Poderia ter usado isso como exemplo de falta de neutralidade, pois o desenhista poderia ter feito ambos com a mesma arma, mas optou por não o fazer. O uso de imagens, mais especificamente HQs e videogames se mostrou eficiente em dois aspectos: em primeiro lugar eles prendem muito mais a atenção dos/as estudantes, são imagens que a maioria não esperaria ver dentro de uma sala de aula; e em segundo, se utilizados da maneira correta conseguem fazer a ligação entre o presente dos alunos/as e o passado da disciplina de História, e desse modo cumprir o objetivo de: Levá-los a trabalhar noções de espaço e tempo despertando um olhar sobre as ideias de diferenças, semelhanças, continuidade e permanência, um estímulo à curiosidade, a criação de hipóteses, questionamentos, a elaborarem estratégias para entender e explicar 144


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os acontecimentos históricos e culturais que lhes são apresentados, tornando-se a partir de sua experienciação, sujeitos reflexivos e autônomos (FERREIRA, 2005, p.7).

É exatamente isso que deve ser feito em sala de aula. Esses deveriam ser o objetivo de qualquer professora ou professor e podemos concluir ser possível chegar a esse resultado auxiliado por estratégias que não são mirabolantes nem totalmente inovadoras, são apenas metodologias voltadas para o/a estudante e sua capacidade de compreensão relacionada às suas vidas.

5. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Documentos não escritos na sala de aula. In:_________________. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. FERREIRA, Carlos Augusto Lima. Espaço e tempo: implicações no ensino de História. Londrina, PR, 2005. In: XXIII Simpósio Nacional de História, 2005, Londrina - PR. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História. Londrina, PR: Editora Mídia, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. HOBSBAWM, Eric J. A Era dos extremos. O Breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

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MENDO, Anselmo Gimenez. História em Quadrinhos: impressos vs. Web. São Paulo: UNESP, 2008. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro, 2009. SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica. São Paulo: Nova Geração, 2002. SOBANSKI, Adriane de Quadros (et al). Ensinar e aprender História: histórias em quadrinhos e canções. Curitiba: Base Editorial, 2010.

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Capítulo nove - A leitura e a produção textual na educação básica: compromisso de quem? Maria Letícia Naime-Muza Roberta Schnorr Buehring Rosângela Pereira Cenerelli

1. INTRODUÇÃO Considerando a leitura e a escrita como eixos de ensino e habilidades para serem trabalhadas na escola na construção do conhecimento formal e informal, este capítulo traz reflexões sobre as práticas de produção textual oral e escrita nos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental. Com o ensino caracterizado pelo etapismo escolar na Educação Básica, neste caso, Ensino Fundamental, em anos iniciais e finais, o presente capítulo mostra como acontece o ensino e a aprendizagem das produções de texto oral e escrito, nas aulas de Língua Portuguesa, em relação às questões conceituais e metodológicas, considerando o percurso formativo na Educação Básica. Neste sentido, é necessário pensar qual é o fio condutor na relação e articulação dos tempos, dos espaços, do currículo, das metodologias e da avaliação na prática pedagógica. Relataremos uma experiência de formação de professores da Rede Pública Municipal de Florianópolis que esteve centrada na leitura e produção de texto em um trabalho colaborativo entre quartos anos, sextos, sétimos e oitavos anos do Ensino Fundamental. Trataremos do percurso formativo dos alunos, dos pressupostos do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, além da formação continuada de professores.


A leitura e a produção textual na educação básica

2. FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES: UMA POSSIBILIDADE DE “CONTINUIDADES” O processo de formação docente constitui-se pela formação inicial, na universidade, pelo embasamento teórico e epistemológico, nos estágios curriculares ou não-curriculares, projetos de pesquisa e extensão, sendo estes os passos que vão esboçando a identidade do processo de tornar-se professor. Neste percurso, o educador inicia-se na busca de sua identidade, pois, de acordo com Farias (2008, p. 67), a formação apresenta-se como “componente central na construção da identidade profissional do professor”. Nesse sentido, a formação do professor caracteriza-se como um processo contínuo, não se reduzindo somente à formação inicial. Conforme afirma Ribas (2000), a formação inicial é apenas a primeira etapa do processo da carreira do professor. Assim, a ideia de homem como ser inconcluso em relação à sua formação, conforme Freire (1997), indica que: A educação é permanente não porque uma certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da finitude do ser humano, de outro da consciência que ele tem de finitude. Mas ainda pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber o que vivia, mas saber que sabia e, assim saber que podia mais. A educação e a formação permanente se fundam aí (FREIRE, 1997, p.20).

A formação continuada é, então, uma opção para responder às necessidades de atualização dos professores que, segundo André (2000, p.59), “é aligeirada e precária de modo que é central ajudá-los a ultrapassar os entraves e as dificuldades que encontram no exercício profissional, referentes à falta de conhecimentos científicos essenciais, de 148


Maria Naime-Muza, Roberta Buehring e Rosângela Cenerelli

habilidades para o adequado manejo da sala de aula” e, ainda, de uma visão prática sobre temas que se manifestam constantemente no dia a dia escolar. Dessa forma, os modelos de capacitação e a complexidade de aspectos que envolvem o docente e suas atividades nas escolas possivelmente não conseguirão abarcar uma capacitação com todas as dimensões. No entanto, é possível supor que uma combinação de fatores possa levar a uma capacitação mais acertada. De acordo com Candau (1997, p.55), a formação continuada de professores deve ter por base três aspectos: a escola como lócus privilegiado de formação; a valorização do saber docente; e o ciclo de vida dos professores. Para a autora, o primeiro aspecto sugere que a formação deva partir das necessidades reais dos professores, dos problemas, e favorecer cotidianos, processos de pesquisa-ação. O segundo aspecto refere-se à valorização dos saberes da experiência, considerados o núcleo essencial do saber do docente e a partir do qual o professor dialoga com as disciplinas e os saberes curriculares baseados no trabalho e conhecimento do dia a dia. Já o terceiro aspecto refere-se às diferentes etapas do desenvolvimento profissional do magistério/professorado. Candau (1997) conclui que a valorização e o resgate do saber docente construído através da prática pedagógica, em um processo intercedido por referências teóricas e práticas, são aspectos principais na questão de educação continuada. No entanto, a resistência à proposta inovadora é o que muitas vezes causa um entrave na formação de professores (GARCIA, 2002). Uma probabilidade seria que as demandas de atualização feitas pela sociedade fazem com que o professor se sinta pressionado. Outra possibilidade, segundo o autor, tem a ver com o formato e os conteúdos utilizados na capacitação. Um treinamento destinado a capacitar todos os professores da rede de ensino confronta-se com heterogeneidades de perfis e

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A leitura e a produção textual na educação básica

de formação. Ainda, segundo Garcia (2002), na maioria das vezes, as formações apresentam certa uniformidade no conteúdo apresentado aos professores, sem levar em consideração o perfil do público de professores ao qual se destina. Gradativamente, o conhecimento teórico e a prática da formação continuada do professor vão refletindo avanços no modo de pensar a docência. Nesse sentido, para Almeida (2003), a formação continuada decorre da necessidade de suprir as faltas deixadas pela formação inicial, que repercutem fortemente no trabalho docente, ou seja, a formação de um profissional que se encontra carente de conhecimentos gerais e pedagógicos e com poucas habilidades didáticas. Nesse mesmo modelo, de educação contínua como meio de desenvolvimento pessoal, uma abordagem bastante conhecida é a que entende ser a formação continuada de professores imprescindível para contornar as fragilidades deixadas pela formação inicial. De acordo com Fullan (1995), essa abordagem de formação continuada aposta na ideia de que conhecer os estágios que compõem a carreira docente permite identificar as necessidades e carências que os professores vivem. Na maioria das vezes, o foco dessas formações está na construção de novos modos de ser e de atuar na sala de aula, mas os docentes não são vistos como sujeitos em busca de aprimoramento pessoal e profissional, mas como objetos de ações de capacitação. Assim, para Fullan (1995), a proposta do déficit implica que os professores nada tenham a dizer em termos do que seja necessário para melhorar sua formação e, por esse motivo, não há razão para consultá-los acerca do que precisam ou no que esperam ser capacitados. E ainda sem levar em consideração as especificidades dos professores e de seus locais de trabalho, de maneira bem uniforme, seu tempo de experiência, da disciplina que ministra e de seus interesses.

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Encontramos também outra abordagem em Domingues (2009), que compreende a formação continuada como um empreendimento de cunho pessoal, ligado ao percurso profissional do docente, mais precisamente ao ciclo de vida profissional. Nesse sentido, a busca por aperfeiçoamento é marcada pela aspiração de ganhar novos conhecimentos, de superar desafios, de empreender mudanças no conhecido e no familiar. Segundo Domingues (2009, p. 203), essa abordagem de formação continuada aposta na ideia de que conhecer os estágios que compõem a carreira docente permite identificar as necessidades e carências que os professores vivem e todas essas abordagens entendem a formação continuada como um processo que salienta a tarefa de oferecer aos professores oportunidades de desenvolvimento profissional e, em especial, no plano pessoal. Conforme Almeida (2003) existem os modelos nos quais a formação continuada é concebida em termos coletivos, envolvendo uma série de atividades em grupo. Essa perspectiva é chamada aqui de colaborativa. Nela, os professores reúnem-se para estudar, para fazer análise curricular e sugerir modificações nos conteúdos trabalhados em cada ano e nível, para elaborar e realizar pesquisas e avaliações internas e assim por diante. Essa modalidade de formação continuada assume que há, pelo lado dos professores, questionamento constante e discussão acerca de sua prática pedagógica, de modo que privilegia a interação entre colegas nos próprios locais de trabalho. A formação de professores, seja ela inicial ou continuada, estabelece-se como um espaço privilegiado, não só para refletir e discutir sobre essas questões, como para criação e a implementação de proposições que possibilitem apontar novos caminhos e avanços no planejamento, avaliação e intervenção do processo de ensino e de aprendizagem.

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A leitura e a produção textual na educação básica

3. LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL O percurso formativo na educação básica pressupõe considerar o fio condutor das práticas escolares na articulação dos tempos, dos espaços, das metodologias, da avaliação, das intervenções e do currículo que temos e queremos e que vai muito além da listagem de conteúdos. Por conta disso, pensamos que a formação escolar do leitor e produtor de textos orais e escritos em todo percurso formativo da Educação Básica prescinde de um trabalho sistemático com os vários e diferentes gêneros de texto. A ação do professor no processo de formação do leitor e do produtor de textos orais e escritos parte de sua experiência e capacidade para aprender e implica agir de forma articulada no planejamento e na operacionalização das atividades didático-pedagógicas. Assim, bom seria nos formarmos como leitores não só na escola, mas já no aconchego do seio familiar. No entanto, é principalmente na escola que este eixo da linguagem é articulado e trabalhado sistematicamente. Assim, a escola é, na maioria das vezes, a única agência responsável pela formação de leitores e, também, de produtores de textos. A relação entre o professor e a literatura infantil e juvenil, provavelmente se refletirá em sua prática pedagógica. Este é um dos desafios para os cursos de formação inicial e continuada do profissional da educação. Nesse sentido, percebemos que o fato de alguns alunos tenderem a apresentar maiores dificuldades no desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita se dá por considerar-se o ato de ler e escrever como uma mera atividade escolar sem sentido para sua vida cotidiana. Considerando, então, que, no ciclo de alfabetização, o aluno deverá se apropriar do sistema de escrita alfabético (SEA) a fim de ler e escrever com autonomia, inventividade e

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Maria Naime-Muza, Roberta Buehring e Rosângela Cenerelli

criatividade, a literatura poderá contribuir significativamente para o alcance dessa meta. A leitura/literatura deve, pois, ajudar os alunos a produzirem sentidos, inventando e (re)criando outros modos de interpretar e representar simbolicamente o mundo lido por meio da palavra. Nesse sentido, não se configura como mero meio ou fim utilitário para se ensinar o que se tem a ensinar. O pretexto faz parte dos objetivos da leitura: como afirma Geraldi (2002), há sempre uma intencionalidade no ato de ler, seja por fruição, busca de informação ou estudos. A leitura, como escreve Gee (2004), precisa ser vista como um processo cultural e não como um processo escolar, o que exige que a formação do leitor comece na família e se estenda para além da escola, se amplie nas ações da vida cotidiana. Assim ao ler, temos de localizar as informações mais importantes e as informações complementares, além de fazermos inferências do que não está explícito no texto, mas que é passível de ser resgatado pelas pistas deixadas pelo autor ao longo do que escreveu. Para tanto, temos de agenciar nossos conhecimentos prévios de modo a complementar informações que não constam no texto e temos de refletir e avaliar criticamente sobre o que estamos lendo, estabelecendo relações com outras leituras já feitas e com o tanto que sabemos sobre aquele assunto até aquele momento. É preciso lembrar que, tendo como base os usos sociais da escrita, a partir da leitura, escrevemos sempre para alguém, atendendo a uma finalidade e escrevemos quando temos o que dizer e razões para dizer em uma situação real de comunicação, que justifique a produção do texto (GERALDI, 2002). Além disso, o aluno deve saber como dizer o que tem a dizer. Assim, é preciso que os alunos entendam a que gênero o texto se vincula, em que suporte é veiculado e em que esfera ele circula. Outra questão importante, em se tratando da alfabetização, é a necessidade de aprender e exercitar o sistema

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A leitura e a produção textual na educação básica

alfabético, dominando as relações entre os fonemas e os grafemas. Enfim, se a escola deve preparar os alunos para a vida fora da escola, é preciso trazer para a escola a vida que ocorre fora dela, ampliando este universo e propondo atividades que façam sentido fora da escola e não apenas na escola.

4.

ENSINO FUNDAMENTAL: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES, O COMPROMISSO É DE QUEM?

Considerando a leitura e a escrita como processos culturais, observa-se que sua sistematização fica, muitas vezes aquém de um trabalho mais sistemático como um “jogo de empurra” entre as áreas do conhecimento. Ainda hoje, com os programas nacionais de alfabetização, como o PNAIC, muitos profissionais da educação tendem a pensar que ensinar a ler e escrever é tarefa dos professores dos três primeiros anos do Ensino Fundamental. No entanto, com a experiência de uma formação articulada entre professores de anos iniciais e finais do Ensino Fundamental da RME de Florianópolis, percebemos que o ensino e aprendizagem da leitura e da escrita é um processo contínuo, pois os alunos ainda estão constituindo-se como leitores ou escritores. A partir das experiências dos professores dos anos iniciais, pode-se também perceber que seus alunos precisam trabalhar sistematicamente habilidades de leitura para compreensão do que leem e para terem fluência na leitura. Tratando-se de turmas que possuem um professor pedagogo, que trabalha com língua portuguesa, matemática, geografia, ciências e história, observa-se que o trabalho de leitura e escrita circula por todas as disciplinas. Em ciências e geografia aparecem os textos informativos, o que ocorre também em história, sendo que, nesta última, ainda são 154


Maria Naime-Muza, Roberta Buehring e Rosângela Cenerelli

trabalhadas a entrevista e as memórias. A matemática, ainda pouco reconhecida como linguagem, costuma apresentar o gênero “problemas matemáticos” (tipicamente escolares), sendo que neste a criança deve ler, compreender e tomar uma decisão a respeito. Os gêneros mais trabalhados nos quartos e quintos anos, além dos que já foram contemplados nos três primeiros anos, são poema, causo, conto, história em quadrinhos, receita, fábula, memória, notícia e a maioria destes gêneros de textos são trazidos de livro didáticos. Estes professores relataram que, quanto ao trabalho com a produção textual, lançam um olhar individualizado ao aluno, ou seja, observam as suas necessidades de estrutura de texto e ortografia e percebem que o melhor trabalho a ser feito é aquele ao lado da criança, mostrando seus erros, questionandoos e auxiliando-os a revisarem seus textos. A correção e reescrita de texto é considerado pelos professores um trabalho difícil como qualquer outra intervenção na aprendizagem dos alunos. O trabalho de leitura, geralmente acontece coletivamente, após a leitura, as crianças são convidadas a responder questões sobre o texto lido, fazendo inferências simples. As inferências complexas são pouco trabalhadas neste momento da escolaridade. Nos sexto, sétimos e oitavos anos, os professores de língua portuguesa trabalham com sequências didáticas dos gêneros memória, poema, biografia, fábula, conto, seminário, debate, artigo de opinião, crônica entre outros tantos gêneros, muitos a partir do livro didático, outros por conta da Olimpíada da Língua Portuguesa e alguns indicados pelos professores, conforme o interesse dos alunos, explorando a compreensão leitora, as características do gêneros, seu estilo, os temas trabalhados, sistematizando o conhecimento sobre a leitura para que possam inferir informações a fim de posicionarem-se

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A leitura e a produção textual na educação básica

criticamente diante do texto. O trabalho mais sistemático com os gêneros textuais, na leitura, indica aos alunos o que dizer e como dizer quanto à proposta de produção textual. Aqui, acontece, por parte do professor, o diagnóstico do que os alunos já sabem sobre o gênero, a produção do texto coletivo com a contribuição dos alunos e intervenção do professor, a primeira escrita individual, autoavaliação do texto, reescrita e produção final. Os professores dos anos finais consideraram essencial esta articulação, sugerindo a ampliação deste trabalho quanto à discussão da alfabetização, auxiliando-os a compreender o processo de apropriação da escrita. Enfim, compreendemos que este é um trabalho árduo, que deve acontecer em todos os anos da Educação Básica, evitando o etapismo escolar e que, por conta disso, é contínuo e um compromisso de todos.

5. CONCLUSÃO A formação continuada deve ser garantida em todas as redes de ensino como um direito do professor e do aluno para a melhoria do trabalho docente, considerando o planejamento, avaliação e intervenção, e, consequentemente, do aprendizado discente, considerando a formação cidadã, refletindo no IDEB das escolas e das redes de ensino. Desta forma, políticas educacionais deveriam ter como ponto de partida a necessidade de aprimorar a formação dos professores e dos formadores de professores, os quais são considerados fundamentais na estratégia global da construção da sociedade do conhecimento em um contexto de mudanças e novas demandas. Assim, a experiência da RME de Florianópolis em propor uma formação conjunta entre os anos iniciais e finais foi 156


Maria Naime-Muza, Roberta Buehring e Rosângela Cenerelli

considerada pelos professores como um momento rico, pois aprenderam muito com seus pares e solicitaram que houvessem mais momentos como este. Salientaram que esse tipo de formação evidencia que o Ensino Fundamental não precisa de rupturas, mas de unidade uma vez que os alunos são os mesmos sujeitos. Isto significa levar em conta o processo formativo dos alunos.

6. REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. I. Formação contínua de professores. In: Programa Salto para o Futuro. Boletim 13 ago. 2003. ANDRE, M. E. D. A. Análise de pesquisas sobre formação de professores: um exercício coletivo. Psicologia da Educação, São Paulo, v. 10-11, p. 139-153, 2000. CANDAU, V. M. F. Formação continuada de professores: tendências atuais. In: CANDAU, V. M. (Org.). Magistério: construção cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1997, p.51-68. DOMINGUES, I. O Coordenador pedagógico e o desafio da formação contínua do docente na escola. 2009. Tese. (Doutorado). Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde18012010-133619/pt-br.php>. Acesso em: 7 jun. 2012. FARIAS, I. M. S. et al. Identidade e fazer docente: aprendendo a ser e estar na profissão. In: Didática e docência: aprendendo a profissão. Fortaleza: Líber livros, 2008. 179p.

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A leitura e a produção textual na educação básica

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. FULLAN, F.; BROWN, O. Tornar-se um professor. In: RYAN, K. (Ed.). A formação de professores: (74 Anuário da Sociedade Nacional para o Estudo da Educação). Parte 2, p. 25-52. Chicago: University of Chicago, 1995. GARCÍA, C. M. A formação de professores: novas perspectivas baseadas na investigação sobre o pensamento do professor. In: NÓVOA, A. Formação. Lisboa: Dom Quixote Ltda. 2002. p.51-77. GATTI, B. A. Formação continuada de professores: a questão psicossocial. Cadernos de Pesquisa, v. 1, n. 119, p. 191-204, 2003. GEE, James Paul. Situated language and learning: a critique of tradition. London: Routledge, 2004. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002. MARIN, A. J. Educação continuada: introdução a uma análise de termos e concepções. In: Cadernos Cedes, São Paulo, n.36, p.13-20, 1995. NASCIMENTO, M. das G. A formação continuada dos professores: modelos, dimensões e problemática. Ciclo de Conferências da Constituinte Escolar. Caderno Temático, Belo Horizonte, n. 5., jun., 2000. NÓVOA, A. Concepção e práticas de formação contínua de professores. In: Formação contínua de professores:

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Maria Naime-Muza, Roberta Buehring e Rosângela Cenerelli

realidades e perspectivas. Portugal: Universidade de Aveiro, 1991. RIBAS, Marina Holzmann. Construindo a competência. São Paulo: Olho d‟Água, 2000.

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Terceira parte – Experiências de leitura e escrita na educação

Capítulo dez - Um papel eu vou dobrar... Quem será capaz de adivinhar? Giselle Araújo e S. de Medeiros

1. INTRODUÇÃO Este capítulo apresenta o relato de experiência sobre a utilização da dobradura de papel, origami (Ori – dobrar e kami – papel. As palavras ori e kami, unidas, formam a palavra origami. A letra k é eliminada, sendo substituída por g. Portanto, “origami” significa “dobrar papel”), com a turma de 1º ano do Ensino Fundamental da Escola de Educação Básica Edith Gama Ramos, localizada no bairro de Capoeiras, em Florianópolis – Santa Catarina. A partir da participação como cursista no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, que tem a proposta de trabalho voltada para o ciclo de alfabetização, tive o incentivo em desenvolver atividades lúdicas com os alunos do 1º ano com foco no desenvolvimento da leitura e escrita aliado ao conhecimento que tenho em origami. E inspirada no caderno 5 - Geometria do PNAIC, o qual aponta as contribuições do origami nas atividades de classificação de figuras planas, simetria e lateralidade, desenvolvi uma atividade com este recurso. A atividade foi motivada por um exercício virtual por meio do Sistema de Monitoramento do PNAIC – SisPacto –,


Um papel eu vou dobrar...

disponibilizado no Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle do Ministério da Educação – SIMEC. Ao ler a proposta virtual, a qual solicitava um relato de experiência desenvolvido em turmas que fazem parte do ciclo de alfabetização, e que contemplassem uma atividade com o objetivo de aquisição da proficiência na escrita do aluno, iniciei pesquisas com origami, e elaborei uma atividade tendo como ponto central o desenvolvimento da leitura e escrita por meio da ludicidade e de recursos audiovisuais. 2. RELATO DE EXPERIÊNCIA Desde o começo do ano letivo de 2014, venho desenvolvendo atividades com dobraduras em sala de aula, destacando os aspectos lúdicos e o conhecimento das figuras geométricas. E ao ser cursista do PNAIC deste ano, pude unir algo que acredito com algo que é um Direito de Aprendizagem (é o direito de aprender, respaldado na história do movimento curricular brasileiro referente a alfabetização. “Não é uma proposta de currículo, mas um marco na busca de articulação entre as práticas e as necessidades colocadas pelo cotidiano da escola. BRASIL, 2012) e apliquei na escola. A rotina desta atividade lúdica é iniciada a partir da seguinte música, que aprendi com a origamista Lena das Dobraduras (Apelido de Maria Helena Aschenbach, realizadora de trabalhos pedagógicos com dobraduras desde 1971. Escritora de livros sobre origami, incluindo Arte-magia das dobraduras). Chegou a hora da dobradura Vamos dobrar Aí que gostosura. Um papel eu vou dobrar, Quem será capaz de adivinhar? 162


Giselle Araújo e S. de Medeiros

(Adaptação de Lena das Dobraduras e Cyro Costa a partir da música “Chegou a hora de merendar”, que é de autoria desconhecida) A utilização de músicas na sala de aula auxilia na organização da rotina escolar. Ao cantarmos essa canção, fazemos gestos com as mãos; em seguida, são distribuídos papéis e iniciada a dobradura. A proposta com o origami de fantoche envolvia estimular os alunos a descobrir qual dobradura seria realizada. Partindo do papel retangular, os alunos iam seguindo minhas orientações e iam dobrando. Ao iniciar a dobradura, os alunos não sabiam no que ela se transformaria, mas, durante o processo, eles expressavam o que imaginavam e eu ia anotando suas impressões no quadro. Após revelar qual era a dobradura, fizemos gestos usando o papel como fantoche e também com as suposições dos alunos, as quais estavam escritas na lousa e foram as seguintes: livro, ave, história, cabana, mala, bolsa, celular, letra M, letra W, pista de skate, casa, avião e bíblia. Combinando movimentos simples com atividades costumeiras, a manipulação do papel constitui um treino para a realização dos movimentos mais comuns na vida diária da criança, como tomar banho, usar sabonete, esfregar-se, enxugar-se, etc. Por outro lado, proporciona a criança equilíbrio e harmonia, favorecendo as relações sociais da classe, bem como a descontração. (ASCHENBACH, 2009, p. 50).

Cada aluno fez os gestos com hipóteses apontadas e, em seguida, apresentei a dobradura do fantoche. Para o fantoche funcionar, era preciso encaixar quatro dedos na parte superior e

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Um papel eu vou dobrar...

o polegar na parte inferior. Um dos alunos estava com dificuldade de encaixar as mãos e me pediu ajuda. Ao repetir para ele que era preciso colocar os quatro dedos, este aluno começou a contar seus dedinhos em voz alta e logo em seguida encaixá-los no fantoche. Foi um gesto muito singelo e significativo. Os alunos que demonstravam dificuldade de execução ou insegurança em desenvolver a atividade recorriam a mim e aos colegas que já apresentavam interesse e facilidade em fazer dobraduras. Para culminar, os alunos se reuniram em grupos e enfeitaram seus fantoches, colocando língua, olhos, cabelos, sobrancelhas e cílios. Reunidos, criaram histórias as quais, em seguida, apresentaram para a turma.

Sentamos no chão da sala. Os grupos ficaram no centro da sala e apresentaram suas histórias. As apresentações envolviam situações da rotina deles, os fantoches iam comer, tomar banho, brincar, correr, faziam gestos de que iam morder um ao outro e levavam bronca dos pais. Eles riam das histórias, principalmente dos gestos. As apresentações foram gravadas e apenas um grupo não se apresentou por conta da timidez. 164


Giselle Araújo e S. de Medeiros

Fazer audiovisual na escola pode significar uma síntese entre educar para a linguagem, conhecer fazendo e aprender cooperando, valores que podem ser trabalhados quando se discute a necessidade de reorientações didáticas na abordagem operativa para a linguagem das mídias na escola. (FANTIN, 2007, p.8)

A utilização das mídias na escola requer o repensar das práticas educativas e proporcionar aos alunos, diferentes possibilidades de acesso ao conhecimento. Os recursos tecnológicos podem contribuir e despertar o interesse em aprender dos alunos, e ao pensar que estes estão em processo de alfabetização, aliar o lúdico, o gestual e o tecnológico amplia as chances de aprendizagem. A gestualidade colabora no processo de aprender, assim como educa para a linguagem no exercício da oralidade, da expressão e do raciocínio. A seguir, vejamos o que Aschenbach aponta acerca dos benefícios do exercício de faz de conta utilizando a dobradura, contribuindo para as reflexões sobre o uso do origami em sala de aula. A cada contato com o papel podemos estimular sua imaginação levando-a a fazer de conta que tem na mão determinados objetos. Não há limites para a imaginação e a fantasia. Você poderá deslocar-se no tempo e no espaço, como num passe de mágica. Aproveite a contribuição dos participantes para enriquecer o trabalho. Brincar de faz de conta desinibe e propícia a criatividade, sem aquela responsabilidade em acertar e ter que fazer bonito. (ASCHENBACH, 2009, p. 49).

Em outro dia de aula, levei os alunos para sala de multimídia da escola e exibi para eles os vídeos e as fotos da atividade. Os vídeos trouxeram muita alegria ao grupo, os 165


Um papel eu vou dobrar...

nomes dos alunos que apareciam no vídeo eram repetidos por todos. “Olha o fulano” “... está na TV, é famoso”.

De acordo com Freire (1997), “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Partindo desta citação e desta experiência, é possível verificar o quão significativo é oportunizar atividades diferenciadas aos alunos, utilizar recursos lúdicos e ter atenção ao conhecimento trazido por eles, que possibilitará a inclusão deles no processo de aprendizagem. 3. PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA – PNAIC O PNAIC é um programa do Governo Federal, Distrito Federal, Estados, Municípios e sociedade, que objetiva 166


Giselle Araújo e S. de Medeiros

assegurar que todas as crianças até os 8 anos de idade, ao concluírem o 3º ano do Ensino Fundamental, estejam alfabetizadas. Visando o aperfeiçoamento dos professores que atendem essas crianças, os professores passam por uma formação continuada durante o ano letivo. A formação é organizada da seguinte forma: formadores, equipe de profissionais das universidades públicas; orientadores de estudo, que são selecionados pelos municípios e são capacitados pelos formadores; e professores alfabetizadores, profissionais que atuam nos três primeiros anos do Ensino Fundamental e são formados pelos orientadores de estudo. O PNAIC teve início em 2013 e a área da linguagem foi contemplada primeiramente e em 2014 o foco é alfabetização matemática na perspectiva do letramento. O curso de Alfabetização Matemática tem carga horária de 80 horas e mais 8 horas de seminário de encerramento. Há encontros presenciais e atividades à distância, por meio do SisPacto, que ampliam esta carga horária. Os professores alfabetizadores recebem Cadernos de Matemática para serem trabalhados no decorrer do curso, os quais são divididos em oito unidades: 1. Organização do Trabalho Pedagógico; 2. Quantificação, Registros e Agrupamento; 3. Construção do Sistema de Numeração Decimal; 4. Operações na Resolução de Problemas; 5. Geometria; 6. Grandezas e Medidas; 7. Educação Estatística; 8. Saberes Matemáticos e Outros Campos do Saber. Há também dois Cadernos de Referência: Educação Inclusiva e Educação Matemática do Campo, além de um Caderno de Jogos. A atividade em sala de aula que relatei neste capítulo foi motivada pelo Caderno 5 – Geometria, que aborda o origami em um de seus capítulos, e que faz uma referência muito importante em suas primeiras páginas sobre os Direitos da Aprendizagem da área de Matemática no ensino da

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Um papel eu vou dobrar...

Geometria, colocando que os objetivos a serem alcançados são “[...] possibilitar os alunos a construírem noções de localização e movimentação no espaço físico para a orientação espacial em diferentes situações do cotidiano e os de reconhecer figuras geométricas.” (PNAIC, 2014, p. 10)

4. ORIGAMI A palavra origami significa “a arte de dobrar papel”, e é uma técnica que tem origem japonesa, pode ser utilizada como um recurso interdisciplinar, além de favorecer o desenvolvimento cognitivo e da coordenação motora. Um dos primeiros educadores a considerar a dobradura de papel na educação foi o alemão Friedrich Froebel (17821852), criador dos jardins de infância no século XIX. Froebel verificou a importância da ludicidade no desenvolvimento das crianças, criou dobraduras e sinalizou os benefícios das dobras na aprendizagem de conceitos geométricos. [...] Froebel foi pioneiro por reconhecer o jogo e a brincadeira como as formas que a criança utiliza para expressar como vê o mundo, além de serem geradores do desenvolvimento na primeira infância. Por isso, Froebel considera a brincadeira uma atividade séria e importante para quem deseja realmente conhecer a criança. (ARCE, 2002, p. 60).

O origami envolveu, na atividade relatada neste capítulo com a dobradura do fantoche, inicialmente um exercício de imitação, pois eu indicava as dobras e os alunos iam copiando; neste processo, cito Vygotsky, o qual aponta que “[...] a imitação está extremamente ligada à capacidade de compreensão”. (2010, p. 112).

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Giselle Araújo e S. de Medeiros

Com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos, a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão de modo independente. A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança. (VYGOTSKY, 2010, p.112)

A zona de desenvolvimento potencial indica o que a criança faz com a ajuda de adultos, dando indicações do seu processo de maturidade e dinâmica de aprendizagem, esta zona em breve poderá se tornar uma zona de desenvolvimento real, a qual a criança consegue desempenhar ações sozinha. Dessa forma, ao se pensar na atividade com origami, verificamos a criança repetindo os passos dobrados pelo adulto. Ao ser frequente, se for interesse da criança, poderá fazê-la sozinha e, em breve, poderá pesquisar por si só algo que desperte sua atenção e motivação. Os primeiros passos foram a imitação, como no início de outros aprendizados básicos, e depois os interesses definiram o espaço que algumas atividades tiveram no processo de aprendizagem das crianças.

5. CONCLUSÃO É fundamental, em educação, pensar em estratégias que amenizem o impacto da mudança que ocorre para as crianças que saem da creche, que é um espaço educativo lúdico, e se deparam com um espaço diferente, com novas regras no Ensino Fundamental. A utilização da dobradura nos anos iniciais proporciona uma transição mais descontraída e que, segundo pesquisas, que tratam desta temática e materiais do PNAIC, é um recurso 169


Um papel eu vou dobrar...

pedagógico que pode ser utilizado interdisciplinarmente, favorecendo o conhecimento da geometria, o exercício da criatividade, da linguagem verbal, da argumentação, da antecipação, do raciocínio lógico, da conceituação de objetos associando a gestos como foi apresentado neste capítulo no relato de experiência da dobradura de fantoche. Com isso, acredito que atividades lúdicas com o uso da dobradura, a contação de histórias, o uso de músicas e exercícios corporais de forma interligada favorecem o desenvolvimento cognitivo, social, motor e afetivo, contribuindo para a compreensão de conteúdos formais de maneira diferenciada na escola. Ressalto que discussões proporcionadas pelos encontros do PNAIC são extremamente necessárias para que os professores possam repensar nas práticas utilizadas com os alunos.

6. REFERÊNCIAS ARCE, Alessandra. Friedrich Froebel: o pedagogo dos jardins de infância. Editora Vozes, Petrópolis – RJ, 2002. ASCHENBACH, Lena; FAZENDA, Ivani; ELIAS, Marisa. A arte – magia das dobraduras: história e atividades pedagógicas com origami. São Paulo: Scipione, 2009. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: Apresentação / Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2014. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade

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Giselle Araújo e S. de Medeiros

certa: Geometria / Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2014. BRASIL, Ministério da Educação - Secretaria de Educação Básica. Elementos conceituais e metodológicos para a definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do ensino fundamental. Brasília, 2012. FANTIN, Mônica. Midia-educação e cinema na escola. Revista Teias, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 14-15, 13 páginas, 2007. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 34. ed. São Paulo: Cortez, 1997. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução de Maria da Penha Villalobos. 11. ed. São Paulo: Ícone, 2010.

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Capitulo onze - Moda e sociedade, pesquisas e metodologias para a construção do conhecimento Monik Aléssio Ariella Cappellari Nunes, Fernanda de Souza Pimentel Teixeira, Mara Rubia Sant‟Anna 1. INTRODUÇÃO Este capítulo consiste na apresentação de três projetos atualmente em desenvolvimento no Laboratório Moda e Sociedade: “Dicionário Histórico da Liberdade: Moda, Corpo, Vestimenta e Aparência”; “Brasil por suas Aparências: uma história de moda” e “Ensino de história da moda em Santa Catarina e Rio Grande do Sul: análise quantitativa e crítica do material bibliográfico utilizado, dos objetivos propostos e dos recursos audiovisuais explorados”. As pesquisas mencionadas abordam campos e metodologias diferentes, mas objetivam entender e criar ferramentas para aperfeiçoar o ensino de História da Moda e a formação de profissionais criativos e competentes, cuja exposição contribuirá para a compreensão de como no âmbito da moda o conhecimento pode ser construído por meios distintos de leitura e escrita.

2. LABORATÓRIO MODA E SOCIEDADE. Criado em 2007 pela professora Mara Rúbia Sant‟Anna, e aprovado pelo CONCENTRO em 2010, o Laboratório de pesquisa “Moda e Sociedade”, com fins acadêmicos, objetiva uma maior promoção de projetos de pesquisa, de extensão e de atividades de ensino nas seguintes áreas: História da Cultura e


Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

Social; História da Visualidade; Cultura material; Gênero e Moda; Sustentabilidade ambiental; Ensino e educação e Comunicação e linguagem, sendo todas investigadas a partir das proposições da Moda, seja como sistemas produtivos, de ensino ou fenômenos social e cultural. Sediado no piso térreo do prédio do Centro de Artes (CEART – UDESC), o Laboratório possui nele reunidos acervos da “Modateca”, do Projeto “Brasil por suas Aparências” e do Programa de Extensão “Publicar Moda”, dentre outras pesquisas e ações de extensão. A criação do Laboratório de Moda e Sociedade, na UDESC permitiu que o Grupo de Pesquisa/CNPq Moda e Sociedade, pudesse se associar a outros grupos de pesquisa que atuem nesse ramo do conhecimento no Brasil, assim como estabelecer convênios com pesquisadores e pesquisadoras ou/e laboratórios de universidades estrangeiras ou de outras instituições, como é o caso das parcerias realizadas em 2013 com grupos da Universidade de Campinas, por meio da professora doutora Patrícia Sant'Anna; da Universidade Federal do Ceará, professora doutora Araguacy Figueiras; da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor doutor Madson Oliveira e da professora doutora Lylian Berlin da Universidade Veiga de Almeida agregados em torno do projeto coletivo “100 anos de Moda no Brasil”. No que tange às atividades de extensão, o laboratório congrega três programas: Ecomoda, Modeline e Publicar Moda. Cada um desses se ocupa com um aspecto importante da ação extensionista no campo da Moda, como a sustentabilidade e diversas ações sociais; a própria divulgação da produção e dos eventos em torno da moda e da produção de duas publicações, a série Modapalavra publicada anualmente e a revista eletrônica Modapalavra e-periódicos, de periodicidade semestral.

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Monik Aléssio Ariella Et al.

O Laboratório Moda e Sociedade, em relação às atividades de ensino, possibilita que as disciplinas dos professores cadastrados possam ser ministradas em nível de graduação e pós-graduação com maior qualidade, ou seja, contemplando as discussões advindas dos projetos de pesquisa e incorporando novos referenciais teóricos aos conteúdos e discussões ocorridas nas disciplinas. Também o Laboratório, por meio do Programa Publicar Moda, realizou em 2013 e 2014 o Seminário Nacional de Pesquisa e Extensão em Moda, sendo o tema de 2013: “100 anos de Moda no Brasil”, contando como convidados especiais pesquisadores de outras Universidades, que partilharam suas pesquisas. Em parceria com os professores do departamento de moda foi realizando amplo debate sobre temáticas relacionadas ao universo da Moda nos últimos 100 anos, de 1913 a 2013, permitindo, assim, a ampla divulgação dos resultados obtidos e, principalmente, o fomento ao espírito científico no campo da moda. Nesse ano, a temática do Seminário Nacional de Pesquisa em Moda foi “Trânsitos Vestíveis” que é, igualmente, o tema de formatura dos bacharéis em Moda 2015. Vieram para participar do evento os professores: Rosângela Cherem (PPGAV – UDESC), Claudia de Oliveira (UERJ), Solange Waljmann (ESPM-SP), Salomão (UFSC) e Aline Monçores (UVA). Em 2014, em parceria com o Departamento de Moda, o Laboratório organizou o IV ENPmoda, evento científico realizado no campus, que buscou trazer discussões sobre o “fazer” e o “pensar” em relação à moda na atualidade, envolvendo acadêmicos de moda, assim como pesquisadores e professores. Dentre as principais ações congregadas no laboratório Moda e Sociedade estão, atualmente, os projetos de pesquisa: “Dicionário Histórico de Liberdade: Moda, Corpo, Vestimenta e Aparência”, “Brasil por suas Aparências” e “Ensino de

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Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

Historia da Moda em Santa Catarina e Rio Grande do Sul: análise quantitativa e crítica do material bibliográfico utilizado, dos objetivos propostos e dos recursos audiovisuais explorados”.

3. DICIONÁRIO HISTÓRICO DA LIBERDADE: MODA, CORPO, VESTIMENTA E APARÊNCIA. O projeto de iniciação científica intitulado Dicionário Histórico da Liberdade: Moda, Corpo, Vestimenta e Aparência foi iniciado em 2012 na UDESC, sendo atrelado aos trabalhos da equipe de pesquisa 3400 do Centro Nacional de Pesquisa Cientifica (CNRS/FR). O Projeto tem como objetivo investigar as relações entre moda e liberdade, a partir dos temas corpo, vestimenta e aparência, analisando historicamente como determinadas vestimentas relacionaram-se à produção de sentidos de liberdade, seja por terem sido associadas às lutas pela aquisição de direitos civis ou por permitirem a superação de diferentes tipos de interdição sobre o corpo, o gênero ou outros papéis sociais. A metodologia adotada consiste no trabalho bibliográfico, na crítica interna e externa de fontes pautadas ao tema em estudo, na pesquisa de imagens das épocas e que serviram de fontes, sendo possível assim a realização de um processo analítico e dedutivo sobre o corpus de estudo estabelecido. Trata-se de uma investigação histórica que adiciona ao projeto maior, desenvolvido na universidade Francesa, constituindo parcerias científicas de interesse à projeção da universidade brasileira no âmbito internacional. Esse projeto conta com o auxílio de uma bolsista, que iniciou sua participação no mês de agosto de 2013, aluna da Universidade do Estado de Santa Catarina, Monik Aparecida 176


Monik Aléssio Ariella Et al.

Alessio, formada em Técnica em Produção de Moda pelo IFSC de Criciúma e graduanda da 6ª fase do curso de Moda da UDESC. Conforme as orientações da coordenadora Mara Rubia Sant‟Anna, no início da pesquisa foram feitos estudos, leituras e fichamentos dos conceitos de liberdade, a partir de diferentes campos de conhecimento e analisado as relações e possibilidades de investigação histórica. A partir de levantamentos e catalogação de fontes bibliográficas da BU - UDESC e periódicos CAPES, referentes aos temas; Moda e Liberdade, Liberdade, Corpo e Liberdade, e Beleza foi possível o estudo do objeto de investigação e a realização de um banco de dados das obras. A catalogação foi dividida em livros, artigos e TCCs. No total obteve-se: 49 livros, 14 artigos e 05 TCC. A seleção das bibliografias e os fichamentos realizados destacam os trabalhos de LIMA (1980), DAHRENDORF (1981), MACEDO (1997), WILSON (1989), NAVARRI (2010), SANT‟ANNA (2005), RAMOS (2001), PRADO (1980), FONTANEL (1998), HOLLANDER (1996), HAWTHORNE (2009), ROSSETTI (1995), STEELE (1997), SAMPAIO; FERREIRA (2009), ALVES (2001), e BARBOSA; MATOS; COSTA (2011), autores que apresentam conceitos elaborados de liberdade, corpo e beleza aplicados à moda e ao consumo do vestuário ao longo da história. Os fichamentos serviram de embasamento teórico para o artigo Controvérsias da liberdade em uma sociedade de moda. Este artigo serviu para o resumo do 25° SIC e Relatório final do bolsista para a Jornada acadêmica. Iniciou-se também a composição de banco de imagens para o estudo das representações de liberdade a partir do acervo de revistas na Modateca/UDESC e sites da internet. A catalogação "UM" foi sobre o tema Corpo, predominando três segmentos: erotizado, protesto e saúde, resultando em 65 imagens digitalizadas. E em

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Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

seguida na Catalogação "DOIS", o tema foi sobre; Roupa: predominando dois seguimentos: manifesto de liberdade e condição de liberdade, resultando em 110 imagens digitalizadas, todas do acervo da Modateca/UDESC. Durante os trabalhos também ocorreu a participação do evento 4°ENPModa, submetendo para a categoria Pôster o resumo do artigo Projeto de iniciação cientifica: Dicionário Histórico da Liberdade que foi aceito e apresentado durante o evento. Também foi submetido e aceito o artigo Controvérsias da liberdade em uma sociedade de moda para o 10° Colóquio de Moda, sendo apresentado em 01/09/2014 na cidade de Caxias do Sul, RS. O artigo de análise das catalogações de imagens, foi iniciado com a seleção de 5 imagens referentes aos temas e subtemas da Catalogação 1 e 2. Nomeado como: Imagens de periódicos: Corpo e roupa como espaços de manifestação de desejos de liberdade. Foi descrito a parte de metodologia da pesquisa, as revistas trabalhadas, e a análise das imagens, tendo como norteador a pergunta central: Onde e como nas imagens aparece o manifesto de liberdade? O artigo está em processo de correção, para submissões em possíveis revistas de moda, história, design, cultura, feminismo, entre outras que foram pesquisadas no Periódicos CAPES e SEER. Juntamente com o artigo, um novo ciclo de pesquisa está em andamento, baseado nas Vestimentas/Tema: Shorts e Camisetas. Nessa etapa a mesma metodologia de levantamento bibliográfico e catalogações de imagens desenvolvidas anteriormente será aplicada, para posteriormente produzir-se outros artigos.

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Monik Aléssio Ariella Et al.

4. BRASIL POR SUAS APARÊNCIAS. Iniciado em 1999 o projeto de pesquisa "Brasil por Suas Aparências" explora a história do Brasil, atravessando dois importantes e cruciais períodos - Colônia (1500-1808) e Império (1808-1889). O trabalho analisa a produção da aparência e suas implicações na formação de uma identidade nacional, especialmente no que tange à cultura e às relações sociais. Em 2002 o primeiro volume do “Brasil por suas aparências – uma história da moda”, uma pesquisa histórica cujo objetivo central é discutir a construção da identidade nacional a partir das estratégias da aparência articuladas pelos grupos de elite, foi concluído. No ano seguinte, os resultados das pesquisas centradas nas sociabilidades coloniais brasileiras foram levados ao público através de um CD-ROM distribuído gratuitamente às mais diferentes Universidades Brasileiras e outras Instituições de ensino. Somente em 2005 o trabalho foi retomado e, dando continuidade à proposta inicial, desenvolvida a pesquisa que abordada a sociedade que se instituiu junto ao regime monárquico de governo. E o projeto “Brasil por suas Aparências” oferece ao público material historiográfico e didático sobre a moda no país, investigando, interpretando, mapeando e relacionando a aparência com outras instâncias, identificando assim a construção das relações de poder através da aparência e sua influência na formação da nação. Para cada período foi proposto um ambiente visual compatível ao estudo do mesmo, instigando seus usuários a uma imersão no contexto histórico abordado. Entre os anos de 2000 e 2010 o trabalho entre a coordenadora, os designers e os bolsistas girou em torno da criação de um ambiente virtual interativo que abrigasse e 179


Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

divulgasse o material coletado pela pesquisa através da multimídia, utilizando imagem, som, texto, animações e interatividade. Em 2002 surgiu a primeira versão do CD-ROM "Volume 1: Brasil Colônia - de 1500 a 1808". Já em 2010 foi desenvolvido o "Volume 2: Um Império nos Trópicos - Brasil, século XIX". Ambos visam reunir o conteúdo de forma didática e atrativa para o público. Atualmente o foco de trabalho é o site do projeto, criado em 2010 por Willy Werlang e redesenhado em 2013 por Janaina Ramos. Responsável pelo mesmo, a bolsista de iniciação científica Fernanda de Souza Pimentel Teixeira segue a metodologia do estudo, análise, revisão, alimentação, atualização, ampliação da divulgação e conhecimento, renovação do banco de dados da plataforma e, por fim, desenvolvimento de relatos científicos da pesquisa e atividades realizadas, participando de eventos do gênero e desenvolvendo o relatório final de pesquisa. Pensando em conceitos como a semiótica e gestalt, procura trabalhar na página eletrônica a fim de produzir um layout harmônico e gerar uma leitura mais ergonômica, sempre aliando essa experiência com seus interesses acadêmicos como estudante de design gráfico.

5. ENSINO DE HISTÓRIA DA MODA EM SANTA CATARINA E RIO GRANDE DO SUL: ANÁLISE QUANTITATIVA E CRÍTICA DO MATERIAL BIBLIOGRÁFICO UTILIZADO, DOS OBJETIVOS PROPOSTOS E DOS RECURSOS AUDIOVISUAIS EXPLORADOS. O Projeto “Ensino de Historia da Moda em Santa Catarina e Rio Grande do Sul: análise quantitativa e crítica do material bibliográfico utilizado, dos objetivos propostos e dos recursos audiovisuais explorados” propõe pesquisa analítica e 180


Monik Aléssio Ariella Et al.

quantitativa das condições de ensino de disciplinas vinculadas ao campo da história, ministradas nos cursos de graduação de Design de Moda nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Esse projeto visou discutir o papel e as possibilidades de contribuição do ensino da história na formação de um profissional de qualidade no campo da moda. Para isso, a proposta consistiu em analisar de forma quantitativa e crítica o lugar das disciplinas com cunho histórico nas grades curriculares, o material bibliográfico utilizado, objetivos propostos e recursos audiovisuais explorados. Esse projeto iniciado em 2012 foi coordenado pela professora doutora Mara Rubia Sant‟Anna e conta com o auxílio da bolsista de iniciação científica Ariella Cappellari Nunes. O estudo se dividiu em três etapas metodológicas: a de preparação, iniciada em março de 2012, onde foi feito o levantamento dos cursos de Design de Moda oferecidos nos dois Estados, os dados técnicos a respeitos desses cursos e das disciplinas vinculadas à História, bem como a coleta dos planos de ensino para posterior análise. Também nesse primeiro momento foram definidos os critérios de análise, e feitos os estudos das bases teóricas e metodológicas. A segunda etapa, chamada de análise do primeiro nível ou de elementos, desenvolvida a partir de 2013, consistiu no estudo desse material didático recorrentemente empregado, dos objetivos gerais apresentados, das técnicas e recursos utilizados. Também foi realizada a análise historiográfica de obras publicadas por autores brasileiros e estrangeiros presentes nos planos de ensino pesquisados. E, por fim, a etapa avançada e final da pesquisa, iniciada no segundo semestre de 2013, se desdobrou na análise de segundo nível ou de conjunto, quando se produz textos em forma de artigos, indicando os fatores mais e menos favoráveis ao desenvolvimento do estudo da história, de maneira a

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Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

propiciar a formação de um profissional de Moda crítico e criativo a partir de aportes históricos. Foi realizado, então, o levantamento dos cursos de Moda, tanto técnicos quanto bacharelados, em funcionamento durante o tempo da pesquisa, assim como das disciplinas de história oferecida por eles e dos professores responsáveis por ministrar tais disciplinas. Em seguida, através de contato com as universidades, pesquisas em seus sítios eletrônicos e consultas à Plataforma Lattes, buscou-se dados sobre a formação dos professores responsáveis pelas disciplinas de história na moda, assim como os planos de ensino respectivos. Todos esses dados foram tabulados em gráficos e tabelas, criando o universo analítico da pesquisa. Em paralelo a essas ações, foram feitos estudos teóricos metodológicos, através da revisão bibliográfica, pesquisa e discussão, de temas como historiografia, pedagogia e didática, criatividade, planejamento de ensino, ementas, objetivos, metodologias, bibliografias e formação dos professores. Tais estudos embasaram a análise dos dados computados pela pesquisa de campo e permitiu uma visão mais ampla do cenário da educação superior e seus elementos constituintes, capacitando as bolsistas para desenvolver estudos sobre o tema. A união entre os resultados de pesquisa de campo e embasamento teórico gerou diversos textos sobre o ensino de história na moda, divulgados em eventos de cunho nacional e internacional e publicados em anais diversos. Também foram realizadas visitas a diferentes instituições de ensino superior para debater os resultados quantitativos obtidos e discutir de forma ampla, num processo dialógico, as possibilidades de atuação e sensibilizado dos protagonistas, alunos, professores e coordenadores, para as questões a partir desse debate apontadas. Em uma etapa final, percebeu-se a necessidade de ouvir o ponto de vista dos alunos sobre o ensino de história. A partir

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Monik Aléssio Ariella Et al.

desta necessidade, buscou-se um referencial teórico dentro da área de pesquisa-ação, para o desenvolvimento de um questionário aplicado de forma anônima nos alunos de história da moda, a fim de entender qual a visão do papel da história da moda na formação de um profissional crítico e criativo por parte do corpo discente, e também possibilitar a visão do aluno sobre como tais disciplinas se encontram estruturadas.

6. CONCLUSÃO Por fim, consideramos que o Laboratório Moda e Sociedade marca a excelência do Bacharelado em Moda da UDESC, pois, alicerçado na pesquisa, na extensão e no ensino, que são as atividades acadêmicas fundamentais das universidades públicas e gratuitas, contribui sobremaneira para que os desafios apresentados no âmbito da Moda, na sociedade contemporânea, sejam enfrentados e investigados ao nível micro e macro. O laboratório propõe ações que entram em contato direto com a comunidade, assim como produz publicações com conteúdos relevantes ao mundo acadêmico, e propõe, através da suas pesquisas, novas abordagens e pensamentos sobre a moda e tudo o que esta abrange, oferecendo para professores, pesquisadores e acadêmicos, assim como para a comunidade, um universo de conteúdos e conhecimentos novos. 7. REFERÊNCIAS PULS, Lourdes Maria. ROSA, Lucas da. GONÇALVES, Eliana. Moda em Ação. Florianópolis: UDESC, 2014.ANTELO, Raúl. Potências da imagem. Chapecó: Argos, 2004.

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Moda e sociedade, pesquisas e metodologias

BRASIL por suas aparências, uma história da moda. Disponível em: <http://braparencias.ceart.udesc.br/>. Acesso em: outubro de 2014.

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Capítulo doze - Experiências no ensino de filosofia no ensino médio Hélio Camilo Rosa

1. INTRODUÇÃO “Nenhum jovem deve demorar a filosofar, e nenhum velho deve parar de filosofar, pois nunca é cedo demais nem tarde demais para a saúde da alma. Afirmar que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou é a mesma coisa que dizer que a hora da felicidade ainda não chegou ou já passou; devemos, portanto, filosofar na juventude e na velhice para que enquanto envelhecemos continuemos a ser jovens nas boas coisas mediante a agradável recordação do passado, e para que ainda jovens sejamos ao mesmo tempo velhos, graças ao destemor diante do porvir. Devemos então meditar sobre tudo que possa proporcionar a felicidade para que, se a temos, tenhamos tudo, e se não a temos, façamos tudo para tê-la.” (Epicuro, Carta sobre a felicidade. In: LAÊRTIOS, 2008, p. 311.)

Epicuro nos convida ao exercício do filosofar, não importa a idade ou o momento de nossas vidas, nunca é demasiado cedo ou demasiado tarde para adentrar na filosofia, pois atividade filosófica nos proporciona a felicidade e a saúde da alma. Vivemos em tempos ditos pós-modernos. Momentos de transformações profundas no campo das tecnologias, principalmente no que concerne ao universo das


Experiências no ensino de filosofia no ensino médio

telecomunicações e informações. É momento crucial para refletirmos sobre a Filosofia e sua presença enquanto disciplina na Educação Básica. Proponho uma conversa sobre minha experiência, primeiro enquanto aluno do curso de magistério no início dos anos de mil novecentos e noventa e depois como professor a partir dos anos finais da mesma década supracitada. Anos esses de muita labuta, embates e confrontos com alunos, professores, diretores, coordenadores escolares e funcionários da Secretaria da Educação. Também foram anos de construção, amadurecimento, aprendizagem e enriquecimento de experiências. O capítulo estabelece uma relação com a temática do livro: Leitura e Escrita na construção do conhecimento, na medida que discute o ensino de filosofia. Acredito que a filosofia contribui de modo peculiar no desenvolvimento da leitura e da escrita dos alunos. Enquanto disciplina da grade curricular, sua história, seus conceitos e temas possibilitam o conhecimento e as habilidades no processo de aprendizagem.

2. EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS Ao longo da minha vida profissional tive o privilégio de lecionar em diferentes regiões do Brasil, comecei por Minas Gerais, meu Estado natal, passei por Rondônia e Santa Catarina e atualmente encontro-me no Acre. No decorrer desses anos percebi uma enorme desvalorização da Filosofia, ela sempre sofreu do que eu denomino aqui da “síndrome do tapa buraco curricular”, ora esquecida ou simplesmente deixada de fora intencionalmente, ora apenas como um complemento da carga horária ou um tema transversal. Sua desvalorização começa com os órgãos educacionais, a exemplo do Ministério da Educação e Cultura - MEC e das Secretarias de Educação, 186


Hélio Camilo Rosa

chega às diretorias escolares e aos professores de outras áreas do conhecimento e desemboca nos próprios professores de filosofia e nos alunos. Meu primeiro contato com a filosofia foi quando cursava o terceiro ano do ensino médio, no curso de magistério, era a disciplina Filosofia da Educação. A professora que lecionava possuía a formação em Pedagogia, em minha memória resta alguns fragmentos daquele passado, Paulo Freire esteve por lá, mas em relação à filosofia, rememoro aos olhos do presente que ela não possuía domínio dos temas e conceitos filosóficos, bem menos da história da filosofia, lembro-me da sua maneira errônea de explicar o silogismo aristotélico. Meu caminho para a filosofia iniciou-se a partir do ano de mil novecentos e noventa e cinco (1995) quando fui aprovado no vestibular da FUNREI – Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei, e no ano seguinte comecei o curso de Licenciatura em Filosofia, adentrando assim, nos conhecimentos filosóficos propriamente ditos. Ao longo dos quatro anos de graduação, além do que era transmitido em sala de aula, discutíamos a filosofia com mais intensidade nos grupos de estudos, intervalos e festas que fazíamos para recepcionar os calouros que denominávamos “caldão filosófico”. Antes de começar a estudar filosofia eu já lecionava a disciplina de História no ensino fundamental, após iniciar o curso continuei lecionando História, sempre substituindo um professor ou professora por motivos de afastamentos por problemas de saúde, licença maternidade, férias-prêmio, dentre outros. Comecei a lecionar filosofia no ano de mil novecentos e noventa e nove (1999), quando juntamente com outros professores e amigos da universidade fundamos um cursinho pré-vestibular, a Escola Operária, em parceria com o SindMetal - Sindicato dos Metalúrgicos de São João del-Rei, para que tanto os funcionários das empresas quanto seus filhos

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pudessem adquirir conhecimentos para ingresso na Universidade. Foi uma das minhas experiências mais ricas enquanto professor, trabalhando com jovens e adultos que possuíam consciência de seus objetivos e sonhavam entrar na Universidade, estavam naquela sala sem obrigação. Cabe ressaltar que as aulas de filosofia no cursinho eram direcionadas aos conteúdos base para a prova do vestibular, especificados no material divulgado pela própria Universidade. Quando ainda estudante do curso de Filosofia comecei a perceber os dilemas que ainda estavam por vir, a primeira coisa e a mais difícil era quando alguém me perguntava que curso eu fazia, quando respondia que era Filosofia, aí vinha a pergunta. O que é filosofia e para que serve? Alguns me perguntavam se eu iria ser padre. Algumas tentativas de explicação frustradas, acabava respondendo que iria ser professor. Ao longo de muitos anos a Filosofia foi banida dos currículos escolares, foi “esquecida” pela Lei 5.692/71 e só a partir da década de mil novecentos e noventa (1990) ela retornou timidamente as salas de aula. Entretanto, a própria Lei 9.394/96 estabelece em seu Artigo 36, § 1º, inciso III, que no ensino médio, a escola deve fornecer ao aluno “o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Ou seja, a Filosofia aparece apenas como algo auxiliar, complementar que possa contribuir para o desenvolvimento de certos conhecimentos “necessários ao exercício da cidadania”. Ela não entraria como parte efetiva do currículo, cabendo aos interesses de cada Secretaria estadual de educação incluí-la ou não na parte diversificada do currículo e às escolas caberia decidir em qual série do ensino médio a Filosofia seria lecionada. Isso gerava algumas confusões, principalmente quando determinado aluno era transferido de uma escola para outra, mesmo dentro da própria rede estadual de ensino, havendo divergências em relação ao ter estudado ou não a filosofia naquela série do ensino médio. Embora aconteça

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esses problemas acreditamos que “foi um avanço significativo para a presença da filosofia nesse nível de ensino, uma vez que em 1961 (com a Lei n. 4.024/61), a filosofia deixa de ser obrigatória e, a partir de 1971 (com a Lei n. 5.692/71), época do regime militar, ela praticamente desaparece das escolas.” (FÁVERO, et. al., 2004, p. 259.) Após longa discussão, debate e ser vetado seu ensino obrigatório no ano de dois mil e um (2001) pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, no ano de dois mil e oito (2008) é votada a lei 11.684, que altera o artigo 36 da Lei 9.394/96 e estabelece no inciso IV “serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio.” Ainda que a filosofia tenha tornado obrigatória no ensino médio, continua havendo diferença em relação a carga horária na grade curricular dos diferentes Estados da Federação. Percebemos então que há um desequilíbrio na quantidade de horas/aulas de filosofia entre os Estados brasileiros, gerando também desequilíbrio entre conteúdos lecionados ao longo dos anos. A título de explicação: no Acre e em Minas Gerais a hora/aula equivale a 50 minutos, em Santa Catariana a 45 minutos e em Rondônia a 60 minutos. No Estado do Acre, Minas Gerais e Rondônia são 40 horas/aulas anuais em cada série do ensino médio, somando uma carga horária de 120 horas/aulas nas três séries. Em Santa Catarina a carga horária é de 40 horas/aulas anuais na primeira série e 80 horas/aulas na segunda e terceira séries respectivamente, totalizando 200 horas/aulas nas três séries do ensino médio. É importante mencionar aqui o trabalho elaborado por FÁVERO; CEPPAS; GONTIJO; GALLO & KOHAN: O ensino da filosofia no Brasil: um mapa das condições atuais. Segundo os autores, o “texto é resultado de uma pesquisa desenvolvida no Brasil em 2003, por solicitação da UNESCO, visando a mapear as condições do ensino de filosofia no país

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em seus diversos níveis, com especial ênfase na educação média.” (FÁVERO; CEPPAS; GONTIJO; GALLO & KOHAN, p. 257, 2004). Embora a realização da pesquisa foi em 2003, ou seja, antes da obrigatoriedade da filosofia no ensino médio, seus dados e resultados sobre o ensino de filosofia continuam atuais e perceptíveis em vários Estados brasileiros. Outro fator, não menos importante, se refere a falta de profissionais para atuar na área do ensino de filosofia. Faltam cursos de filosofia nas Universidades. Se fôssemos observar em termos de Brasil, há uma escassez na formação de professores, não apenas em filosofia, mas em quase todas as áreas do conhecimento, porém, no caso da filosofia que esteve longe das salas de aula durante o período da ditadura militar, muitas regiões ficaram defasadas e com enorme carência de professores, principalmente nas regiões interioranas do país. Para sanar esse problema, criou-se um maior, ou seja, qualquer profissional graduado, especialmente em áreas afins, pode lecionar filosofia. Conheci muitos pedagogos, em sua maioria, jornalistas, historiadores, sociólogos lecionando filosofia. A presença desses profissionais teria causado, a meu ver, um empobrecimento no ensino da filosofia. Não tendo domínio dos conceitos fundamentais, muitos desses profissionais preferiam trabalhar temas que acreditavam serem filosofia, como textos jornalísticos ligados a violência, pobreza, moda, dentre outros. Não pretendo dizer que tais temas não sejam viáveis aos olhos da filosofia, mas ao deixar de lodo o rigor metodológico, discuti-los à luz do pensamento de algum filósofo, pensar sua inserção na história da filosofia, gera banalização e tudo se transforma no “eu acho”, ou no “pra mim”, ou seja, “eu acho que é assim”, “pra mim é assim”. Isso contribuiu para que a filosofia, aos olhos do senso comum se transformasse numa espécie de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, ou coisa alguma sobre coisa nenhuma. Uma

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consequência dessa maneira de ensinar filosofia é levar alguns alunos e mesmo pessoas de outras áreas do conhecimento a dizer que Paulo Coelho e Pedro Bial sejam filósofos. Em algumas escolas deparei-me com professores que pensavam que a filosofia deveria assumir o papel da antiga educação moral e cívica e que deveria resgatar valores como nacionalismo, família e até mesmo valores religiosos, etc. Muitos desses professores nunca leram um livro de algum filósofo, acabam se atendo a livros didáticos, e não possuem conhecimentos sobre os diversos conceitos filosóficos. Acredito que os livros didáticos são úteis como um meio e não como fim, devem servir como suporte para o professor, não como um manual que deve ser seguido fielmente da primeira à última página. Em meu entendimento, o programa de distribuição dos livros didáticos do governo, tem suas vantagens fornecendo material enquanto suporte para os professores e alunos. Entretanto os livros não chegam de forma adequada em muitas escolas, principalmente nas regiões interioranas do país, enquanto nas escolas dos grandes centros urbanos sobram livros. Por outro lado, o programa contribui para gasto incorreto do dinheiro público e enriquecimento de determinadas editoras. Onde já se viu livro ter prazo de validade? A cada três anos os livros são substituídos. Comparei os livros didáticos de Filosofia de três grandes editoras e percebi que mudaram apenas a capa e algumas imagens no interior do livro e o conteúdo continua o mesmo, então pergunto: que sentido faz substituir os livros? Conheci uma professora que lecionava filosofia no norte de Minas Gerais, formada em jornalismo, e nunca havia lido um livro de filosofia, nem conhecia sequer o livro Convite à Filosofia da Marilena Chauí. É importante lembrar que os livros: Iniciação à Filosofia escrito por Marilena Chauí e Filosofando, escrito por Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins só vieram fazer parte do Programa

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Nacional do Livro Didático no ano de dois mil e doze (2012). Então, indaguei sobre o que a professora ensinava em suas aulas. Em sua resposta, disse-me que conversava com os alunos sobre a vida, alegria, felicidade, o amor etc; às vezes levava texto de jornais ou revistas. São temas filosóficos, concordo, mas e o rigor conceitual? Que filósofos abordaram esses temas? Em que épocas tais temas repercutiram na história da filosofia. Essas questões não são levantadas e voltamos ao “eu acho” e o “pra mim” que mencionamos anteriormente. Mas esses não são apenas problemas dos professores que não possuem formação em filosofia. Mesmos os professores formados em filosofia, pensando que os alunos do ensino médio não possuem capacidade para ler os textos dos filósofos ou mesmo compreender determinados conceitos filosóficos, deixam de lado o pensamento dos clássicos da filosofia e abordam temas aleatórios como, por exemplo: liberdade, política, felicidade, etc.. Dessa forma os alunos não entram em contato com os filósofos e suas temáticas. Nesse contexto surge outra questão não menos importante: o que ensinar em filosofia? Ensinar por temas, áreas da filosofia ou história da filosofia? É impossível, descabível, tampouco é objetivo do professor ensinar toda a história da filosofia no ensino médio. Entendemos, entretanto, que a história deve se fazer presente, afinal, são vinte e seis séculos de produção de conhecimento. Por isso, concordo com o professor Almeida Júnior da Universidade Federal de Uberlândia. Ele discute a metodologia do ensino de filosofia, seja no ensino médio ou superior, em ambos os casos “o ensino de Filosofia abrange duas tarefas: o ensino dos conceitos criados pelos filósofos e ensinar a filosofar, que é o exercício do pensar por conceitos, com base em problemas próprios, desenvolvendo teorias e argumentos.” (ALMEIDA JÚNIOR, 2011, p. 39.)

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Na primeira tarefa insere-se a história da filosofia, ou seja, conhecer os “conceitos criados pelos filósofos”, isso inclui conhecer o período histórico que cada filósofo viveu, suas principais obras e ter acesso aos textos escritos por eles. Já a segunda tarefa começa com o exercício do pensar, a partir da aprendizagem dos conceitos filosóficos propõe-se ao aluno pensar por si mesmo e construir seus próprios questionamentos e conceitos. Acredito que os alunos devem ter contato com os textos filosóficos, com os conceitos que norteiam as diversas épocas da história da Filosofia. O trabalho com a filosofia é árduo, não é tarefa fácil, mas é compensador. Para lecionar filosofia é preciso formação filosófica, passar por uma licenciatura em filosofia, possuir um certo rigor metodológico. É preciso sobreviver ao nosso caótico sistema de ensino com sua excessiva carga horária, o número elevado de turmas e a quantidade de aluno em sala de aula. É preciso ir além dessa estrutura, é preciso que sejamos verdadeiros educadores, como nos diz Nietzsche sobre Schopenhauer, pois os verdadeiros educadores são Aqueles que vão te formar, vão te revelar aquilo que realmente é o sentido original e a substância fundamental de teu ser, aquilo que resiste a toda educação como a toda formação e, em todo caso, uma realidade dificilmente acessível, um feixe amarrado e rígido; teus educadores nada podem fazer a respeito de ti, a não ser torna-se teus libertadores” (NIETZSCHE, 2008, p. 19).

Segundo Nietzsche educação é “libertação”, é “extirpação das ervas daninhas, é “efusão de luz e calor” (NIETZSCHE, 2008, p. 19). Acredito que o professor de filosofia deva exerce esse processo de libertação. Nesse sentido é o momento de deixarmos de lado os dilemas enfrentados pela Filosofia e seu ensino, agora é necessário expor as experiências

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positivas proporcionadas pelo ensino de filosofia, ou seja, falar do lugar onde o educador exerceu a função de libertador. Embora seja uma tarefa árdua, minha atuação enquanto professor proporcionou-me grandes momentos, vivências enriquecedoras, experiências ímpares, construção de conhecimento e amizades. Por cada escola que passei deixei um pouco de minha existência e trouxe comigo outras existências. Para haver a construção do ensino e da aprendizagem, em minhas aulas de filosofia trabalho, é o que tento fazer, embora muitas vezes não consigo, três pilares: a leitura, a escrita e a fala, entendida aqui como a capacidade de expor ideias em público, capacidade de argumentação e diálogo. A sala de aula é local de desafio e embate e ao longo dos anos venho lidando com esse processo, acreditando na filosofia como meio viável para a formação e o desenvolvimento do pensamento humano, sendo as habilidades de leitura, escrita e fala pertinentes nesse contexto. Ao longo da experiência como docente venho percebendo a enorme capacidade de produção textual de diversos adolescentes e jovens. São textos poéticos, jornalísticos e filosóficos. Alunos e alunas adoram escrever frases, poesias, crônicas em seus cadernos e mesmo nos cadernos dos colegas, muitas vezes copiadas de poetas, filósofos ou pensadores, outras vezes de própria autoria, expondo assim suas ideias e suas maneiras de perceber o mundo e demonstrar seus sentimentos. O advento da internet ampliou ainda mais as formas de escrita, através dos blogs, das redes sociais, os indivíduos despejam suas ideias, seus pensamentos para que sejam vistos e lidos pelos demais. Para quem tem um perfil no Facebook, por exemplo, é fácil observar as diversas formas de escrita postadas diariamente por pessoas de diferentes idades.

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A leitura e a escrita fazem parte do cotidiano de alunos e alunas, são leituras e escritas diversas, sejam elas para cumprir as atividades das disciplinas curriculares propostas ou pelo simples prazer de desvendar os mistérios de um livro. Durante as aulas de Filosofia, em todas as escolas que lecionei, sempre percebi alguns alunos com livros diferentes dos didáticos, demonstrando a falsa ideia generalizada que nossos alunos não gostam de ler, ou seja, eles leem mesmo que sejam as propagandas contidas nos outdoors espalhados pela cidade ou a post em suas redes sociais. Outro ponto importante que verifiquei foi capacidade discursiva e de escrita dos alunos que possuem maior bagagem de leitura, eles são capazes de produzir textos mais elaborados em termos de conteúdo e de acordo com as regras gramaticais. Enquanto professor do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Acre venho realizando projetos nessa direção. Nossa carga horária de 40 horas semanais, dedicação exclusiva, exige que trabalhemos ensino, pesquisa e extensão, infelizmente as escolas públicas estaduais e municipais não funcionam dessa maneira, legando aos professores uma árdua carga horária destinada apenas ao ensino. São dois projetos que desenvolvo: um de extensão e outro de pesquisa. O projeto de extensão intitulado, Reflexões filosóficas: escritas possíveis, visa desenvolver as práticas e trocas de experiências de leitura e escrita entre adolescentes e jovens no ensino médio, onde os alunos e alunas possam ampliar e diversificar a leitura, mas também sejam capazes de dialogar e apresentar suas ideias, e o mais importante, colocá-las no papel. Já o projeto de pesquisa intitulado: Cultura urbana: consumo e felicidade na cidade de Rio Branco – AC, desenvolvido com dez alunos do primeiro e segundo ano do ensino médio tem como objetivo estudar a cultura urbana, a vida na cidade e seus fluxos. A partir de leituras, observações e entrevistas procura orientar os alunos no sentido de lançar um olhar filosófico, sociológico e antropológico sobre a cidade. Esse projeto faz parte do programa

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de pesquisa PIBIC Júnior, financiado pela FAPAC/CNPq, que visa desenvolver um olhar diferenciado sobre a cidade a partir de elementos filosóficos, sociológicos e antropológicos. Há também um terceiro projeto do qual faço parte, é um programa desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Acre que contribuí na ampliação dos conhecimentos na área de filosofia e vem aprimorando o processo de ensino e aprendizagem na escola. Trata-se do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência -PIBID. Esse programa tem como objetivo aproximação do acadêmico de licenciatura com o ambiente escolar como parte de sua formação enquanto professor e nesse contexto os bolsistas juntamente com professor desenvolve atividades diferenciadas com os alunos: oficinas, auxílio na realização de atividades e preparo de trabalhos escritos e seminários, fomentação de debates, sugestão e indicação de referências bibliográficas, material didático de apoio, tais como quadrinhos, vídeos/filmes, músicas, dentre outros. Acredito que o desenvolvimento desses projetos contribui de forma eficaz no processo de construção do ensino e da aprendizagem em todas as áreas do conhecimento, em especial na disciplina de filosofia que tratamos aqui. Assim como acontece no Colégio de Aplicação todas as escolas, seja a nível estadual ou municipal deveriam oferecer os mecanismos necessários para a realização de projetos em diferentes campos do saber, flexibilizando a carga horária do professor e melhorando suas condições de trabalho. 3 CONCLUSÃO Ao longo do texto tentei transmitir minhas angústias e minhas conquistas enquanto professor de filosofia no ensino médio. Compartilho minhas ideias e meus anseios, não no intuído de demonstrar um receituário, mas como alguém que sempre esteve insatisfeito com a política educacional brasileira, mas que, a trancos e barrancos luta em meio ao lamaçal para 196


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promover aquilo que Nietzsche nos diz sobre o educador, aquele cuja função é a libertação. É fundamental que neste momento façamos uma reflexão sobre o ensino no Brasil e de modo particular sobre a história do ensino de filosofia. O capitulo proposto aqui foi uma narrativa de vivências e experiências durante quatorze anos como professor na rede estadual de ensino e um ano na rede federal. Observações e constatações empíricas que a meu ver contribuem para o estudo e a pesquisa sobre o ensino de filosofia, pois é o professor que enfrenta no seu dia-a-dia a sala de aula, nas mais variadas escolas. Ele que conhece o universo escolar e tem muito mais a dizer do que o teórico que está sentado em sua cátedra na Universidade, receitando teorias. A filosofia passou e vem passando por diversos enfrentamentos, recentemente foi ameaçada de perder seu status enquanto disciplina obrigatória no ensino médio. Em entrevista aos jornalistas Chico Pinheiro, Miriam Leitão e Ana Paula Araújo no programa Bom dia Brasil da rede Globo de televisão a presidente Dilma Rousseff afirmou que é necessário fazer uma reforma no ensino médio, “Porque o jovem do ensino médio, ele não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12 matérias, filosofia e sociologia. Não tenho nada contra filosofia e sociologia, mas um currículo com 12 matérias não atrai um jovem.” (ROUSSEFF, entrevista, 2014). Não há espaço aqui para a discussão sobre essa fala da presidente, pois podemos construir uma série de argumentos, entretanto, é preciso nos perguntar: se não tem nada contra porque as citou? Salientamos, portanto, que há algum interesse nessa fala, porque iniciar a discussão sobre reforma na grade curricular citando essas duas disciplinas? Isso mostra aquela antiga concepção da educação brasileira, ou seja, determinadas disciplinas serem consideradas mais necessárias ou importantes que outras na grade curricular.

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A partir dessa fala, precisamos escrever sobre os dilemas que enfrentamos na sala de aula e no ensino de filosofia para não observarmos sua ausência de camarote como no tempo da ditadura militar. Cada professor de filosofia deve dizer como desenvolve seu trabalho, que problemas enfrentam, quais suas dificuldades. É preciso apontar soluções, é necessário compartilhar experiências positivas e os encontros e caminhos que a filosofia possibilita desvendar. A filosofia é múltipla, engloba diversas áreas do conhecimento e permite um leque de concepções de trabalho. É um campo sempre aberto ao diálogo por isso espera-se, que as ideias apresentadas aqui possam contribuir com a discussão do ensino de filosofia no Brasil.

4. REFERÊNCIAS ALMEIDA JÚNIOR, José Benedicto de. Fundamento teórico-metodológico do ensino de Filosofia. Educação em Revista, Marília, v.12, n.1, p.39-50, Jan.-Jun., 2011. FÁVERO, Altair Alberto; CEPPAS, Filipe; GONTIJO, Pedro Ergnaldo; GALLO, Sílvio & KOHAN, Walter Omar. O ensino da filosofia no Brasil: um mapa das condições atuais. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 64, p. 257-284, set./dez. 2004. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br, acesso em 29 de out. de 2014. LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução o grego, introdução e notas Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília, UnB, 2008.

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Terceira consideração intempestiva: Schopenhauer educador. Tradução: Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo, Escala, 2008. ROUSSEFF, Dilma. Bom dia Brasil entrevista Dilma Rousseff. Brasília, TV Globo, 21 set. 2014. Entrevista a Chico Pinheiro, Ana Paula Araújo e Miriam Leitão. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/09/bomdia-brasil-entrevista-dilma-rousseff.html>. Acesso em: 22 out. de 2014. BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. Disponível em: <http:www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l5692.html>. Acesso em: 29 out. 2014. BRASIL. Lei nº 11.684 de 2 de julho de 2008. Altera o art. 36 da Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Disponívelem:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato200 7-2010/2008/Lei/L11684.htm>, acesso 29 de outubro de 2014. BRASIL. Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 29 out. 2014.

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Capítulo treze - Monitoria acadêmica: possibilidades de aprendizagem no contexto da formação inicial para a docência Angela de Araújo Silva Maria Conceição Coppete

1. INTRODUÇÃO O tema desta edição do Colóquio Civilização é Leitura e escrita na construção do conhecimento, tendo como eixo unificador a atividade reflexiva de interpretação e sua relação com o ensino e a cultura. Tal temática abre espaço para relatos de pesquisa, ensaios ou experiências no campo do ensino, objetivando a construção e socialização do conhecimento. Diante desta oportunidade desejamos neste capítulo compartilhar da aprendizagem e do conhecimento adquirido no contexto acadêmico, por meio da experiência de monitoria acadêmica, realizada no período de março a julho de 2013, pela disciplina de Fundamentos da Didática, oferecida na segunda fase do curso de Pedagogia no Centro de Ciências Humanas e da Educação – FAED, na Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. A Monitoria acadêmica nas universidades brasileiras vista como relevante componente na formação docente, surgiu com a Lei 5.540/68 da Reforma do Ensino Superior com o Art. 41 onde se lê que “[...] as universidades deverão criar as funções de monitor para acadêmicos do curso de graduação que se submeterem a provas específicas, nas quais demonstrem capacidade de desempenho em atividades técnico-didáticas de determinada disciplina.” (BRASIL, Lei da Reforma Universitária nº 5540/68). De lá para cá o programa de


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Monitoria foi ressignificado, deixando de lado alguns requisitos passando a ganhar novas atribuições, não apenas ao bolsista, mas também ao professor orientador e a própria direção de ensino responsável pela coordenadoria do programa. Segundo a Resolução 223/2005 do CONSUNI, que dispõe sobre o Programa de Monitoria do Ensino de Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC, este Programa que está ligado ao ensino de graduação, tem por objetivo “auxiliar o desenvolvimento de determinada disciplina, no aspecto teórico e prático, visando a melhoria do processo ensino-aprendizagem e criando condições para o aperfeiçoamento de habilidades relacionadas à atividade docente”. Para exercer a atividade de monitoria, o acadêmico deve estar regularmente matriculado no curso de graduação da UDESC, já ter cursado a disciplina e ter sido nela aprovado com nota igual ou superior a 7,0 e ter média geral igual ou superior a 6,5. O acadêmico monitor terá como orientador “um professor, em efetivo exercício na UDESC, que será responsável em todas as instâncias pelo desenvolvimento das atividades programadas.” (Res. 223/2005, CONSUNI). A fim de contemplar tais pressupostos prescreve em seu Art. 9 algumas atribuições ao bolsista, como: I - auxiliar o corpo docente em tarefas pedagógicas e científicas, inclusive na preparação de aulas, trabalhos didáticos e atendimento a alunos; II - auxiliar o corpo docente nos trabalhos práticos e experimentais da disciplina; III - auxiliar o corpo discente, orientando-o em trabalhos de laboratório, de biblioteca, de campo e outros compatíveis com o seu grau de conhecimento e experiência; IV constituir um elo entre professores e alunos, visando o melhor ajustamento entre a execução dos programas e o desenvolvimento natural da aprendizagem. (Idem).

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Com base na Resolução e nas atribuições acima mencionadas o acadêmico juntamente com o seu orientador deve elaborar um projeto que será avaliado pela Direção de Ensino, o qual sendo aprovado deve ser respeitado e executado durante o período do exercício da monitoria e por fim realizado um relatório final o qual deve ser entregue à Coordenação do Programa. Mas, infelizmente, mesmo havendo normas explícitas sobre as funções do monitor, nem sempre é o que se vê realizado na prática, acontecendo muitas vezes alguns desvios como aponta Nunes (2005, p. 48-49): Existem casos de que o monitor se torna apenas um simples “tarefeiro”, executando tarefas muito simples como buscar diários, coletar apagador e giz, transcrever notas, receber trabalhos de alunos. Outras vezes, situações mais graves ocorrem, quando o professor orientador “acredita” que o monitor é seu empregado, desconsiderando por completo sua função de formador daquele aluno.

Procedimentos como esses além de ferirem as prescrições II, III e IV da Resolução que veta ao monitor, respectivamente: ministrar aulas teóricas ou práticas sem a presença do professor; desempenhar atividades não inerentes à disciplina ou às atividades relativas ao processo de ensinoaprendizagem; assumir tarefas ou obrigações próprias e exclusivas de professores e funcionários, acabam descaracterizando o caráter formativo da Monitoria e, consequentemente, desqualificando e causando uma visão deturpada de um programa que quando executado de forma íntegra e ética é especialmente caro à formação docente. Neste capítulo iremos nos remeter às informações acima citadas buscando refletir e enfatizar a importância de tal

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programa na formação acadêmica, entendida como uma oportunidade concreta de vivência da docência. A reflexão contida neste documento é vista a partir da experiência de monitoria realizada em parceria com a professora orientadora na Disciplina de Fundamentos da Didática na segunda fase do curso de Pedagogia do Centro de Ciências Humanas e da Educação/FAED da UDESC, no período de março a julho de 2013. Esperamos que por meio da socialização dessa experiência possamos contribuir de maneira significativa para qualificar o Programa de Monitoria e despertar o interesse em outros acadêmicos em participar do programa. Entendemos como profícua a oportunidade, considerando uma experiência prática de iniciação à docência na qual é possível desenvolver habilidades inerentes à condição docente, como as relações interpessoais, o planejamento, a observação, o registro e a avaliação na formação de professores. 2 MAS O QUE É A DOCÊNCIA? Educar é misteriosa aventura. Parte-se do desconhecido, e no desconhecido caminha-se para alguma coisa que só lentamente se vai conhecendo.

Henriette Amado As Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia (2006) que institui diretrizes para o curso de graduação em Pedagogia, define princípios, condições de ensino e aprendizagem, procedimentos de planejamento e avaliação, dentre outras orientações necessárias à formação docente. Para tanto, compreende a Docência como:

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[...] ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo. (RESOLUÇÃO CNE/CP Nº 1, DE 15 DE MAIO DE 2006, p. 1)

A partir da compreensão de docência acima descrita, por um documento legal, é possível perceber que a docência não trata de algo simples e de fácil realização e que é necessário a articulação e o diálogo entre distintas visões de mundo. Para Dias1 (2007, p. 37), por exemplo, “a docência é uma atividade bem mais complexa porque envolve o conhecimento sobre a relação professor-aluno, sobre questões metodológicas, sobre planejamento (de aulas, de cursos), sobre a utilização de novas tecnologias no ensino, sobre avaliação”, dentre outros conhecimentos. Como podemos perceber a docência é multidimensional, sendo impossível exercê-la indissociável de alguns aspectos. Libâneo (1998) entende que todo trabalho docente é pedagógico porque é uma atividade intencional, consciente e organizada, que converte as bases da ciência em matéria de ensino. Ela é também ação social na medida em que contextualiza os saberes de acordo com a realidade da sala, da escola ou do local e é prática construtiva do saber onde professor e acadêmico aprendem juntos numa relação dialética. Contudo, requer reflexão teórico-prática convertida em ação educativa, requer fazer-se auto-crítica e auto-reflexão afim de 1

Ana Maria Iorio Dias é Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Ceará. 205


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aprimorar suas práticas. É como um processo de socialização dos saberes sejam eles de qualquer natureza, científica ou da experiência. O saber não é imutável e por isso é fonte inesgotável de conhecimento. Quando pensamos a docência é preciso ter claro que o professor não é apenas um transmissor do conhecimento, ele próprio é sujeito do saber, bem como o acadêmico. Ele não ensina só conteúdos, ele ensina conceitos, valores, ensina por meio do seu comportamento e da sua fala. Um professor que fala uma coisa e faz outra, como é entendido? A coerência é uma virtude cara a qualquer pessoa e em qualquer profissão, sobretudo na profissão docente. A docência não é feita apenas de conteúdos e metodologias, o seu exercício requer organização, planejamento, observação, registro e reflexão. Todos os aspectos exigem um olhar atento, sensível e comprometido com o outro, porque embora na correria cotidiana muitos profissionais pareçam esquecer, é preciso relembrar que tem alguém do outro lado. E para um bom trabalho docente é necessário estabelecer não só com os acadêmicos, mas com toda a comunidade escolar, relações de parceria e diálogo. Não se fabrica um bom professor. Pode-se treinar um profissional com condições técnicas para desenvolver habilidades didáticopedagógicas, mas o que faz a diferença é algo que não se explica só por palavra, vai além do previsível, mas se compreende pela ação, pela sensibilidade intuitiva, habilidade em provocar sonhos e a capacidade de usufruir a condição de amante movido pela vocação e pelo compromisso social com uma práxis crítica e criativa. (LEAL, 2006, p. 4)

É preciso desejar o conhecimento; só quem o deseja pode fazê-lo ser desejado, e esse é também o papel do professor, encantar e instigar a curiosidade do acadêmico pelo 206


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conhecimento, desafiando-o a pesquisar e aprofundar os estudos. Amado (1981, p. 127) traduz o bom professor como “aquele que consegue despertar interesse pelo trabalho que desenvolve na escola” e, considera que “Educar é misteriosa aventura. Parte-se do desconhecido, e no desconhecido caminha-se para alguma coisa que só lentamente se vai conhecendo.” (Idem). Podemos considerar que a docência é um constante aprender.

3. O RELACIONAMENTO PROFESSOR/ACADÊMICO: UMA EXPERIÊNCIA EM PARCERIA [...] fundamental na relação humana é a troca. Henriette Amado A monitoria é importante na formação do discente, pois pode proporcionar aprendizagens significativas tanto para o acadêmico monitor, quanto para o professor orientador e até mesmo para os acadêmicos de determinada turma na medida em que é realizada de maneira séria e ética, a fim de contemplar os objetivos previstos anteriormente. Sendo assim, torna-se um espaço de formação. O bolsista tem a oportunidade de aprofundar teoricamente os estudos de determinada disciplina e ainda aprender e desenvolver habilidades inerentes à prática docente sob a orientação de alguém mais experiente. E o orientador conta com a colaboração e participação ativa do monitor, tanto na organização das atividades, quanto na reflexão feita a partir da troca de experiências vista a partir de outro ponto de vista, possibilitando fazer acertadamente as melhores escolhas na sua atuação. A fim de melhor conhecer o grupo e estreitar as relações desde o início das atividades é importante a presença 207


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da monitoria já no primeiro dia de aula que é um encontro caracterizado normalmente por apresentações. Vasconcellos (2009) reconhece a importância do primeiro dia de aula e sugere ainda que as impressões causadas podem determinar os próximos encontros ao longo do semestre, fortalecendo (ou não) e estabelecendo relações pedagógicas saudáveis. Por isso deve ser preparado cuidadosamente, não só o planejamento, mas também o próprio professor para fazer-se inteiramente presente no dia. Na ocasião da experiência em questão, a professora orientadora tinha seu planejamento elaborado em seu caderno com objetivos para início, meio e fim. Desde então os encontros para planejamento foram feitos em parceria numa relação recíproca de troca de experiências. Estipulamos dois horários às sextas-feiras para planejarmos conjuntamente, isso sem mencionar as préorganizações que eram realizadas por e-mail. Refletir sobre o desenrolar das aulas logo após o seu término era ação corriqueira, ainda assim retomávamos na sexta-feira para darmos continuidade aos objetivos do plano de ensino. Inclusive, é essencial destacar a importância do uso permanente do plano de ensino como guia para a elaboração dos planos de ação. Discutíamos sobre os encaminhamentos das aulas, sobre a abordagem e a recepção da turma, sobre os resultados obtidos (ou não) com base no esperado. Nenhum planejamento era fechado (imutável) a ponto de não poder ser alterado; fazíamos sempre que considerávamos necessário. Cabe destacar que a devolutiva da turma, mesmo sem ser pronunciada verbalmente, é muito importante na organização e desenvolvimento do trabalho docente. Nessas ocasiões é preciso contar com um elemento fundamental na prática educativa que é a observação e a escuta atenta, pois não há trabalho que possa ser bem realizado sem passar por esses elementos essenciais. Weffort (1996, p. 1) diz que o olhar deve envolver atenção e presença e, que, “concentração do olhar

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inclui escuta de silêncios e ruídos na comunicação”, entendendo dessa forma, que o professor precisa ter não apenas um plano “a”, mas um plano “b” e se possível “c”, até porque, a sala de aula é espaço, também, do imponderável. A docência não se faz de improvisos, ela exige certa criatividade para repensar rápido o encaminhamento de uma atividade de forma inteligente, o que é diferente de improviso. Por isso é tão importante estabelecer relações de parceria, tanto entre orientador e monitor, quanto orientador e a turma e monitor e a turma. Nesse sentido, em nenhum momento a orientadora tomou decisões sem antes saber o que pensava a monitora a respeito, sempre levando em conta a experiência anterior como acadêmica da disciplina. Foi possível reconhecer e viver nessa prática algumas teorias estudadas anteriormente, oportunizando o aprofundamento no campo teórico e prático de estudos relacionados à disciplina em questão, mas também conhecer e desenvolver habilidades para além do campo da Didática interligando com outras disciplinas do curso. No caso da experiência em questão, o registro foi fundamental para retomarmos os encaminhamentos, refletir e avaliar os resultados, tanto no que diz respeito à recepção da turma, quanto da nossa própria ação no decorrer da aula. A reflexão no processo de formação é indispensável para a qualidade do seu exercício. Para alguns autores como Weffort (1996, p. 22): O ato de refletir é libertador porque instrumentaliza o educador no que ele tem de mais vital: o pensar. (...) Não existe ação reflexiva que não leve sempre a constatações, descobertas, reparos, aprofundamento. E, portanto, que não leva-nos a transformar algo em nós, nos outros, na realidade.

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Essas são, ou pelo menos deveriam ser, características essenciais da docência. E se entendermos a monitoria como uma experiência (laboratório) da docência, é imprescindível esses elementos para a postura do próprio monitor em sala. Afinal, como deve se comportar o monitor? Há alguns aspectos na monitoria que poderiam, mas que não são mencionados e orientados previamente; a postura do monitor é um deles, talvez porque isso possa estar ligado em certa medida ao que é peculiar a cada um. Mas é preciso estar atento, porque às vezes, o lugar na sala onde o bolsista senta pode causar uma representação equivocada da figura do monitor, até mesmo a imagem de uma pessoa autoritária e prepotente. O melhor mesmo é manter uma proximidade com os acadêmicos, preservar a cordialidade entre todas as pessoas da turma, a professora e a monitoria, e mostrar-se disponível2 e aberto a eles. Com isso propiciar uma relação amistosa e de respeito mútuo, entendendo que todos nós estamos num permanente processo de aprendizagem e a presença do monitor deve qualificar ainda mais esse processo no ambiente acadêmico. Ele como um aprendiz da docência precisa, assim como o professor, direcionar o seu olhar e estabelecer o que Weffort chama de “Pontos de Observação” com focos específicos, na sua aprendizagem, na aprendizagem da turma e na coordenação em relação ao seu desempenho na dinâmica da construção da aula. “Aprendendo a olhar a si mesmo, ao grupo, a dinâmica que vai sendo composta, vai alicerçando a capacidade de ler e estudar a realidade”. (WEFFORT, 1996, p. 3). Nesse sentido, a observação e o registro das observações é que estrutura a reflexão para uma melhor avaliação e assim poder transformar a nossa prática; aprendemos também errando e é importante reconhecermos isso. 2

Essa disponibilidade para auxiliar nas tarefas pedagógicas e científicas não precisa necessariamente ser apenas no espaço de sala de aula, ela pode ser feita virtualmente via e-mails também. 210


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O diálogo e a troca são importantes em qualquer relação humana, entretanto, talvez a eficácia de uma boa comunicação esteja no exercício de ouvir mais do que falar. “Na tarefa de educar é importante assumir-se uma atitude de modéstia e nunca se considerar „dona da verdade‟”. (AMADO, 1981, p. 15). Nessa experiência de monitoria a relação entre a monitora e a professora orientadora sempre foi de respeito mútuo, cumplicidade e parceria desde o planejamento à execução das atividades. Com certeza fatores indispensáveis e responsáveis para a concretude de um excelente trabalho colaborativo.

4. CONCLUSÃO A docência vista como uma complexa atividade que envolve relações entre diferentes pessoas e visões de mundo; que envolve contínuo planejamento e replanejamento das aulas e de metodologias, bem como a avaliação, tanto do acadêmico quanto do próprio professor requer observação e a escuta atenta. Tais aspectos destacados tendem a qualificar as relações de aprendizagens que se dão no espaço de sala de aula. No caso do curso em questão, que forma profissionais para atuar tanto na Educação Infantil quanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a experiência da monitoria agrega ao bolsista envolvido conhecimentos indispensáveis à sua formação, assim como aos acadêmicos da turma e ao professor da disciplina. Nesse sentido, a monitoria acadêmica é importante na formação responsável do graduando, vista como uma experiência viva da prática docente uma vez que ele se encontra diante da realidade da prática educativa. É imprescindível que seja realizada de forma séria, ética e íntegra, contemplando a resolução que pesa sobre o Programa e os objetivos propostos no projeto previamente aprovado pela coordenação. Sendo assim, vale pensar maneiras de avaliar a 211


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monitoria quando em andamento e ao seu término, para garantir que não seja descaracterizado o seu princípio básico de compromisso com a qualidade do ensino acadêmico.

5. REFERÊNCIAS AMADO, Henriette de Hollanda. Exercício de vida. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Resolução NE/CP Nº 1, de 15 de maio de 2006. BRASIL. Lei da Reforma Universitária (Lei nº 5540/68). Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11718051/artigo-41-dalei-n-5540-de-28-de-novembro-de-1968>. Acesso 26 de Ago. de 2013. DIAS, Ana Maria Iorio. A Monitoria como elemento de iniciação à docência: ideias para uma reflexão. In.: SANTOS, Mirza Medeiros; LINS, Nostradamos de Medeiros. A monitoria como espaço de iniciação à docência: possibilidades e trajetórias. Natal: Edufrn, 2007. LEAL, Regina Barros. Professor: saberes e fazeres para além do pedagógico. Disponível em: <http://www.rieoei.org/deloslectores/1120Barros.pdf>. Acesso 26 de Ago. de 2013. LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e Pedagogos, para quê?. São Paulo: Cortez, 1998. NUNES, João Batista Carvalho. Monitoria Acadêmica: espaço de formação. In.: SANTOS, Mirza Medeiros; LINS, 212


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Nostradamos de Medeiros. A monitoria como espaço de iniciação à docência: possibilidades e trajetórias. Natal: Edufrn, 2007. UDESC. Resolução do Programa de Monitoria da Universidade do Estado de Santa Catarina n. 223/2005 – CONSUNI. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejar é antecipar ações para atingir certos objetivos. Nova Escola. Disponível em :< http://revistaescola.abril.com.br/formacao/planejarobjetivos-427809.shtml >. Acesso 27 de Ago. de 2013. WEFFORT, Madalena Freire. Observação, registro, reflexão: instrumentos metodológicos I. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996.

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Capítulo quatorze - Vidas e textos: leitura e escrita na terceira idade Lourival José Martins Filho

1. PONTO DE PARTIDA A minha dedicação à alfabetização de jovens, adultos e idosos e, consequentemente pela temática deste capítulo, nasceu na infância, na tranquila cidade de Laguna, litoral Sul Catarinense. Tendo nascido de uma família pobre, comecei a compreender que no mundo, qualquer que seja a atividade exercida, será no encontro com o “outro”, na abertura para o diálogo, que encontraremos subsídios para nossa existência. Ao tentar compreender este mundo, bem como, ao possibilitar ao outro que também melhor nos compreenda, estaremos ampliando nosso espaço como gente e como profissionais da Educação. Luijpen (1973) enfatiza que o encontro com o outro revela o outro não como coisa, mas como existência; existência como fonte de significados, e, por isso, é tão gratificante falar de nós: eu e os idosos presentes no estudo em tela. Registro então, que minha mãe para dar conta da renda familiar cuidava de idosos. De todas as pessoas idosas que minha mãe cuidou, a que me chamou mais atenção foi Rosa a quem carinhosamente chamávamos de Rosinha. Rosinha, na ocasião em que veio morar conosco, já estava com 97 anos. Lúcida, feliz, ela fazia com que a família sentasse ao seu redor para contar histórias, (reais ou místicas). Eram histórias com precisão de detalhes pela emoção vivida.


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Com 07 anos de idade eu ficava maravilhado ao ouvir Rosinha falar da guerra, dos bandeirantes, das casinhas escuras enquanto aviões aterrorizadores passavam pelo céu. Encantavanos também ao falar sobre a sereia que aparecia uma vez por ano e acabava levando um pescador embora. Rosinha me prendia como se fosse um livro vivo e dinâmico. Seu olhar e falar são inesquecíveis. Ela exercia forte influência em mim. Suas histórias fortaleciam e desafiavam minha imaginação, meu pensamento, minha vivência em convivência. Rosinha era o outro, levando-me a refletir o presente com o olhar no passado e a perspectiva de um futuro. Em seu olhar, seu gesto, sua atitude e sua palavra refletiam-se a esperança de um mundo real. Luijpen (1973, p. 277) vai nos dizer: “Encontro, o outro, quando me olha cheio de amor, ódio ou indiferença, quando se volta para mim com um gesto, quando dirige a palavra a mim”. Neste caminhar da vida, já no contexto profissional de comecei a trabalhar na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. E, minha história na Prefeitura de Florianópolis, como educador, começa no ano de 1995, quando após um concurso para professores substitutos fui convidado a integrar o corpo de coordenadores da Educação de Jovens e Adultos na Secretaria Municipal de Educação. Em 1995, a Educação de Adultos estava vinculada ao ensino fundamental e tinha uma coordenadoria própria. Como coordenador, trabalhava na Secretaria com a equipe técnica, durante o dia e à noite, acompanhava as turmas de alunos e os professores. No ano de 1995 fui responsável pela orientação e acompanhamento de 06 turmas; aproximadamente 130 alunos, distribuídos nos bairros: Costeira, Pantanal, Serrinha e Itacorubi. Atuamos na Educação de Jovens e Adultos em Florianópolis até 1998.

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Já em 1998 começamos a ser docente em turma de alfabetização de jovens e adultos em São José/SC. A experiência docente em São José colocou-me na posição de sujeito que procura conhecer. Aprendi com Morais (1986, p. 32) que: “Ensinar é algo que nasce em um compromisso de vida pelo saber e de um gosto pelos encontros humanos”. Em 2004 já mestre em educação, realizei um concurso público na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) me credenciando na disciplina de Alfabetização e Letramento no Departamento de Pedagogia do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED/UDESC). Desde 2005 coordenamos no referido departamento, o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão TEIA (Trabalho Integrado em Alfabetização de Jovens e Adultos e Idosos) que já está em sua terceira edição. Por meio do referido programa acompanhamos turmas de alfabetização de jovens e adultos na região da Grande Florianópolis/SC. No contato permanente com estas turmas identificamos 05 idosos que de forma frequente nos ensinaram com a própria vida e nos momentos de aprendizagem em turmas de alfabetização de adultos, os desafios da produção textual na terceira idade. Estas dimensões levantadas por estes idosos em processo de alfabetização, tem nos inquietado, pois contribuem no processo de formação inicial e continuada para a Educação de Jovens e Adultos. Sendo assim, o capítulo é parte das reflexões decorrentes da pesquisa.

2. A FENOMENOLOGIA COMO CAMINHO Segundo Aranha e Martins (1993), a Fenomenologia surge no final do século XIX, tendo como um de seus principais pensadores Edmund Husserl. É de Husserl (1966 apud LUIJPEN, 1973, p. 151) a frase: “Somos, pois, e não 217


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podíamos prescindir disso funcionários da humanidade em nosso filosofar”. É neste sentido, que enquanto educador, posso filosofar procurando possibilidades e alternativas vivendo no mundo que faço parte, não como coisa, mas como sujeito. Concordo com Merleau-Ponty (1973, p. 35) quanto afirma: não posso pensar-me como uma parte do mundo, como simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar-me sob universo da ciência. Tudo o que sei do mundo, ainda que pela ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não significam nada.

Pensar fenomenologicamente é um desafio que flui cotidianamente em minha caminhada. Gadotti (1993, p. 60) nos diz que “o método fenomenológico procura descrever e interpretar os fenômenos, os processos e as coisas pelo que eles são, sem preconceitos. Mais do que método é uma atitude.” Thomaz (1995) nos alerta que a organização e a análise dos dados na pesquisa qualitativa é um processo complexo. É necessário que o pesquisador tenha uma visão global do objeto pesquisado e do contexto que o circunda, sem, entretanto perder as peculiaridades que podem muitas vezes enriquecer a compreensão fenomenológica. Segundo Moraes (1993), a Fenomenologia é ao mesmo tempo uma filosofia e um método para se chegar a compreensão dos fenômenos, aquilo que se manifesta em si mesmo à consciência que se torna visível. Para Keen (1979, p. 31) numa pesquisa fenomenológica “não queremos ver o acontecimento somente como um exemplo desta ou daquela teoria que possuímos queremos vê-lo como um fenômeno por si mesmo com sua própria significação”. Isso nos encaminha a uma postura a partir da 218


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qual apreendemos a experiência vivida conforme ela é vivenciada. Rezende (1990) nos ensina que cada pesquisador em fenomenologia descobre o seu caminho, sua atitude e seu olhar para o fenômeno. Enquanto França (1989) nos adverte que o caminho é laborioso e a todo o momento, segundo esse autor, precisamos ter claro que a corrente fenomenológica não privilegiou nem o sujeito nem o objeto, mas a relação entre ambos. Assim, nesse capítulo, assumimos uma postura interrogante, mas acima de tudo, com a clareza evidenciada por Merleau-Ponty (1996, p. 14) “sou aberto ao mundo comunicome indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. Para Mtzler, Carpena e Borges (1994, p. 82), “a fenomenologia exerce um fascínio especial sobre quem gosta de enfrentar desafios e arriscar-se diante do desconhecido, na busca permanente do sentido, compreensão e abertura ao mundo”. No percurso metodológico, foram selecionados intencionalmente de 05 alunos em processo de alfabetização, idosos com mais de 65 anos. Destes 05 participantes, 01 reside Florianópolis, 01 em São José, 01 em Santo Amaro da Imperatriz, 01 em Biguaçu e 01 em Palhoça. Todos os municípios mencionados pertencem à região da Grande Florianópolis. Procuramos representar os principais municípios da região em questão. Registra-se que os mesmos estudam nas turmas de Alfabetização dos referidos municípios e já são conhecidos pelo pesquisador em função de nosso Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão TEIA (Trabalho Integrado em Alfabetização de Jovens e Adultos e Idosos) desenvolvido na UDESC, desde 2005. Registra-se ainda, que, atualmente, em nossa atuação no Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC, buscamos analisar as práticas de leitura e escrita em

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contextos cada vez mais plurais e complexos da Sociedade Informação, incluindo neste cenários os idosos em processo de alfabetização. Por uma questão ética e por solicitação dos idosos foi guardado o sigilo dos nomes dos educandos/idosos, das suas respectivas professoras alfabetizadoras, bem como a escola em que estudam nas turmas de alfabetização. As entrevistas foram realizadas no período noturno nas escolas dos alfabetizandos. Cada entrevista durou em torno de 60 minutos. Todas as entrevistas ocorreram num clima de abertura. Os dados fluíram destas perguntas iniciais: Colega, como você já sabe, estou realizando uma pesquisa e neste sentido a sua participação é fundamental. Gostaria que você falasse abertamente no tempo que desejar sobre: qual a sua avaliação sobre seu processo de aprendizagem na alfabetização? Como você está se vendo em relação à leitura e a escrita após ingresso na Educação de Jovens e Adultos? Segundo Moraes (1993), pode-se descrever três momentos da investigação fenomenológica: o primeiro consiste num olhar atento para o fenômeno, procurando percebê-lo em sua totalidade; o segundo momento consiste em descrever o fenômeno, sem deixar-se levar pelas crenças e pré-conceitos e o último momento consiste em mergulharmos nos aspectos essenciais do fenômeno. A análise dos dados realizada foi embasada em Giorgi (1985) que, conforme Mtzler, Carpena e Borges (1994, p. 77), estruturou este procedimento investigativo nos seguintes passos:  Fazer a leitura completa de cada descrição, para captar o sentido do todo.  Captar o sentido do todo e, então, voltar ao início para discriminar as unidades de significado, conforme uma determinada perspectiva (psicológica ou

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educacional) e com o foco no fenômeno que está sendo investigado.  Delinear as unidades de significado, retomar todas as unidades, reescrevendo-as em função do fenômeno que está sendo investigado, ou seja, fazendo uma transformação das unidades de significado em linguagem educacional.  Realizar a síntese de todas as unidades transformadas em uma perspectiva consiste relacioná-la com a experiência dos sujeitos. Após a entrevista e a transcrição fiel dos depoimentos, o pesquisador em reunião com os participantes socializou de forma individual e coletiva as dimensões da pesquisa. Cada participante na ocasião apontou um nome fictício que gostaria de ser nomeado quando da sistematização e socialização dos dados. O quadro dos nomes com os municípios de origem, bem como a idade por ocasião da socialização dos dados aos participantes assim se caracteriza: 1. Antônio - Florianópolis - 75 anos 2. Laura - Santo Amaro da Imperatriz - 81 anos 3. Pedro - Biguaçu - 69 anos 4. Maria - São José - 88 anos 5. Fátima - Palhoça - 67 anos É imperioso afirmar que não foi um caminho fácil, pois a reflexão fenomenológica exige um esforço contínuo. Thomaz (1995) nos alerta que a reflexão fenomenológica desponta para “compreensão” cada vez mais vinda do real, compreensão que implica sempre no “vir a ser”. A fenomenologia sempre “será um diálogo, uma mediação infinita...” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 20).

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Salientamos que os dados foram analisados num diálogo com a fenomenologia, bem como com a produção teórica atual relacionada à alfabetização e letramento.

3. DIMENSÕES DA PESQUISA Conforme Costa (1998) a descrição das falas, a apreensão do todo a discriminação das unidades de significado desse todo, a interpretação dessas unidades a partir de meu olhar e a elaboração das estruturas de significados é um caminho que o rigor não pode ser excluído. Assim, o movimento de ir vir aos dados possibilitou-me chegar as seguintes dimensões. 3.1 O DESEJO DE LER E A AMPLIAÇÃO DOS REPERTÓRIOS DE LEITURA POR MEIO DA ALFABETIZAÇÃO Quando via os meus filhos lendo e depois os meus netos, eu pensava com uma angústia no coração, será que eu não posso ler. Eu não consigo explicar com palavras a alegria de ler. Por exemplo, quem pode descrever a alegria de ir num supermercado e saber o que está escrito em cada parte isso é bom demais. Laura.

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Os meus netos ficam o dia inteiro no computador. Aquelas imagens e palavras eram algo distante para mim. Hoje eu participo com eles, eu posso ler o que está na tela, isso é o que ler fez comigo professor, me possibilitou ser uma avó que pode ler com os netos algo que só eles liam. É bom demais. - Maria. Amigo eu tive vários chefes que deixavam bilhetes com ordens a serem realizadas. Eu chegava cedo no trabalho e precisava esperar um colega para decifrar o que estava escrito. Isso me deixava irritado porque eu chegava antes e quando tinha um bilhete eu ficava parado esperando alguém para ler. Hoje meus filhos deixam bilhetes para mim e me emociono porque posso ler e saber o que fazer. Eu me emociono mesmo até quando estou falando com você agora. Hoje os bilhetes não são apenas riscos no papel são palavras que lendo significam algo para mim. - Pedro. Eu sempre tive muitas amigas. Eu sou muito comunicativa sabe. Adoro uma festa. Mas faltava algo. Eu não sabia ler. Hoje eu mando e-mail eu recebo e-mail. Menino tu sabe o que isto significa na minha idade. Ler um email. Tu não sabe não. Tu não faz ideia o que é isso. - Fátima.

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Agora eu estou escrevendo um livro. Eu fico lendo as coisas que escrevo. Eu não sei o que os outros vão falar quando ler. Mas eu estou lendo, o que eu estou escrevendo. Isso é tudo de bom. - Antonio. Os idosos em processo de alfabetização revelam que sentem o desejo de ler, de pertencer a sociedade letrada. Mol(1997) nos adverte que com o desenvolvimento da informática e da tecnologia avançada, nas perspectivas da pósmodernidade, o domínio do conhecimento desempenhará um papel mais decisivo nas atividades sociais e produtivas do desenvolvimento. A necessidade da apropriação da leitura e da escrita, no mundo contemporâneo, continua se impondo uma vez que vivemos numa sociedade, complexa em sua diversidade cultural. Na atualidade a exigência da alfabetização e da leitura torna-se quase um fator de sobrevivência. Aprendemos com Bagno (2009) que escrita e a leitura estão presente na vida. Assim ler é um ato que se molha do contexto social onde os idosos estão inseridos. Neste sentido Faundez (1969) nos ensina que a alfabetização vai além de ser considerada como simples processo de aprendizagem da leitura e da escrita de uma língua determinada historicamente. A dimensão da alfabetização se ampliou, e hoje, ela é quesito fundamental na permanente criação e recriação da sociedade. Os idosos revelam que não existe uma idade certa para o humano ser alfabetizado. Fuck (1994) enfatiza o direito a aprendizagem em qualquer fase da vida. É perceptível que o desejo de ler faz parte de pessoas inseridas em sociedades leitoras. Para Geraldi (1997) a leitura implica não somente o acesso ao mundo da escrita, mas o acesso a novas possibilidades de falar, de expressar de dizer já que a configuração textual nunca é fixa.

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Rocha (1984) salienta que a alfabetização é um processo, e isto implica adquirir e dominar a linguagem escrita e consequentemente a habilidade de decodificar signos linguísticos, e mais do que isto, o domínio da leitura implica num maior conhecimento da língua. E esse conhecimento, no entanto se dá, simultaneamente, com um maior conhecimento do mundo. Freire (1982) alertava que ler um texto não é apenas passear pelas palavras, mas buscar entender a relação que se dá entre elas. Geraldi (1997) sintetiza as razões pelas quais lemos: por fruição, deleite, prazer, para buscar informação, para estudar textos ou por pretexto como ler um romance para adapta-lo a um filme. Os idosos da referida pesquisa como pertencentes a sociedade grafocêntrica, quando tornam-se leitores podem vivenciar todas as aprendizagem e possibilidades da leitura. Aprendemos com Merleau-Ponty (1973) que o mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é mais que o projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. Rezende (1990) nos adverte que nossa vida não tem apenas o sentido que outros lhe dão, mas aqueles que nós próprios lhe damos ou deixamos de dar. Um olhar atento a todas as entrevistas demonstra que os sujeitos participantes da pesquisa desejam conhecer, desejam ler, desejam integrar-se à sociedade letrada, entender seus mecanismos, participar e intervir. Entendemos como Koch e Elias (2006) que a leitura é uma atividade interativa altamente complexa e de produção de sentidos. Cada leitor traz consigo um universo de conhecimento que lhe é singular e que será evidenciado em cada texto lido. A experiência com idosos nos demonstra que a leitura é sobretudo uma experiência formativa. Geraldi (1997) no ensina que na leitura o outro é sempre a medida. Cada texto a ser lido tem a sua intencionalidade. Os depoimentos nos

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revelam que essa noção de alteridade é possibilitada inclusive por práticas de leitura entre os idosos e seus familiares. Já Haddad (1992) enfatiza que a Educação de Jovens e Adultos enquanto modalidade da Educação Básica é, sobretudo um espaço de inclusão. Insira-se neste desafio uma alfabetização de idosos que possibilite a aprendizagem da apropriação da leitura como pratica humana, histórico-social. 3.2 A ALEGRIA DE LER NA TERCEIRA IDADE Eu estava numa missa. E li pela primeira vez a saudação inicial. Foi emocionante. Sempre pegava os folhetos e hinários e não sabia ler e disfarçava que sabia sabe. Hoje é uma alegria eu posso ser chamado e ler na frente de todo mundo. - Antonio. Eu peguei o telefone meu caderno de receitas e li para uma vizinha. Ela ficou impressionada. Maria tu estas lendo. Agora além do meu caderno eu leio outros livros de culinária. E uma sensação de liberdade. - Maria. Eu ficava impressionado quando o meus colegas no trabalho liam jornais. Hoje eu tô velho claro que tô mas me sinto um menino quando consigo ler um jornal, as páginas policiais eu leio num minuto. Meu passatempo é ler. - Pedro. Eu te digo que é uma alegria ler na terceira, eu penso professor que é uma alegria saber ler não importa o tempo nem a idade. - Laura. 226


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Eu leio coisas no celular que meus filhos e netos me mandam. Mando inclusive mensagem pelo celular. A primeira vez que conseguir mandar uma mensagem pelo meu celular meu coração disparou. Eu quase não acreditava. Eu sei escrever e mais eu ser ler o que escrevo. - Fátima. A fenomenologia no ensina que ninguém pode responder com facilidade o que é conhecer, o que é saber. O que todos podemos é estar presente como sujeitos cognoscentes na grande aventura do saber enquanto vivemos com o outro no mundo. Para Luijpen (1973) o conhecimento não é algo entre duas realidades diversas, mas o próprio sujeito envolvido no mundo. Nesse movimento encontro-me enquanto consciência engajada (REZENDE, 1990). Snyders (1993) alerta que somente se o aluno sentir alegria nas aprendizagens da escola é que poderá avançar em busca do que não conhece. Na fala dos sujeitos, a alfabetização frutifica não apenas como domínio do código, mas como abertura e possibilidade de viver o mundo de forma mais enriquecedora por meio da leitura. Partimos da compreensão que leitura é entendida nessa contexto como um processo ativo, no qual o leitor idoso interage criando hipóteses, mobilizando seu conhecimento prévio em função de novos sentidos a cada oportunidade de leitura. Soares (2001) aponta justamente a dimensão significativa que o letramento enquanto uso e intercâmbio social da língua materna pode oportunizar. Por isso fica tão evidente a alegria da leitura do primeiro texto em função de todas as oportunidades posteriores a esta aprendizagem.

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Aprendemos com Moll (1996) que uma alfabetização realmente comprometida gera no outro o gosto pelo saber, e por tudo que a relação leitura e escrita pode oportunizar. Assim alfabetizar alguém, além do compromisso ético, é despertar uma certa alegria e esperança pelo mundo que se abre pela possibilidade de ler, escrever, de conhecer, de crescer como: gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de busca. Gente firmandose, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir. Se não posso, de um lado, estimular os sonhos impossíveis, não devo, de outro, negar a quem sonha o direito de sonhar, lido com gente e não com coisas. (FREIRE, 1997, p. 162)

Nesse contexto, que a alfabetização se dá por meio do processo de textualização aprendemos com Kleiman (1995) que ler então extrapola o mero decifrar de um código em busca de um sentido único. Os idosos nos revelam que ler é uma constante atuação do leitor sobre o texto. Esse entendimento só é viável numa linha de aprendizagem que tem por base a concepção interacional da língua, em que os sujeitos idosos são ativos e os sentidos construídos na interação texto-sujeitos. 3.3 O PODER DA ESCRITA SITUAÇÕES DA VIDA

NAS

DIFERENTES

Tu vai achar até estranho, mas a relação com meus filhos e netos melhorou. Uso até facebook. - Fátima.

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Quando estou nas minhas filhas posso atender ao telefone e anotar os recados com facilidade. Simples né. Não! Liberdade de não esperar para falar o que foi. Posso deixar por escrito. - Maria. Assinar o teu talão de cheque é tudo de bom. - Pedro. Estou escrevendo poemas. Meus filhos estão ansiosos para lerem. Guardo a sete chaves. - Antonio. A minha família contratou uma empregada. Com esta idade eles acham que eu não posso ficar mais sozinha. Eu deixo na geladeira por escrito o que deve fazer pro almoço e vou pro centro da cidade. Pensa o que é isso? - Laura. Rezende (1990) vai nos afirmar que sendo o mundo cultural lugar de conflitos entre os homens, a educação terá como objeto a libertação de todas as formas de alienação, dominação e opressão. Sob esse prisma quando pensamos em alfabetização entendemos como Rodrigues(1997) que a mesma não se restringe apenas a dotar os indivíduos de certas genialidades para ler e decodificar símbolos e letras. Ao se alfabetizarem, os indivíduos também se instrumentalizam para compreender e reconstruir a sua realidade. Vale afirmar que o idoso em processo de alfabetização não é diferente de nenhum outro ser humano na luta por uma maior dignidade de vida. Ele quer sobreviver, participar, ter acesso aos bens que a sociedade já produziu, para isto torna-se fundamental a procura pelo conhecimento sistematizado. Um saber escrever que sendo instrumentalizante deve oportunizar

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os limites como normalmente se faz, mas também as possibilidades geralmente esquecidas (VASCONCELLOS, 1994). Para Freire (1971) a alfabetização é mais do que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de escrever e ler. É o domínio dessas técnicas de forma consciente. É entender o que ser ler e escrever o que se entende. É comunicar-se graficamente. É uma incorporação. Numa leitura de Braslavsky (1993) este ainda é um grande desafio que se coloca a escola contemporânea: alfabetizar com qualidade e competência. Já Cagliari (1998) desafia os professores alfabetizadores a busca pelo compromisso e rigor pedagógico e cientifico visando a aprendizagem daquele que se alfabetiza.

4. CONCLUSÃO E, nesse encaminhamento, pensando nos jovens adultos e idosos e minhas experiências nesta área, sinto, cada vez mais acentuada, a convicção que a alfabetização é compromisso de vida, abertura para o diálogo. Enquanto pesquisador, tenho consciência que a partir das representações de cinco idosos em processo de alfabetização, sobre suas aprendizagens, podemos contribuir de forma mais efetiva na formação inicial e continuada de professores com as dimensões decorrentes do próprios sujeitos que se alfabetizam. E, nesse contexto flui como emergente a necessidade de novas leituras, leituras críticas em que o novo é aceito, não enquanto imposto, mas assumido coletivamente. Essa escola que exige o risco de rejeição à hipocrisia das falas, dos discursos em prol da cidadania, mas que na prática desempregam, oprimem, excluem, fecham turmas de alfabetização de jovens, adultos e idosos com audácia de 230


Lourival José Martins Filho

afirmar que isto é inevitável. Pensar na Alfabetização de Jovens, Adultos e Idosos exige de nós compromisso. Compromisso este não com a manutenção da sociedade que está posta, mas com sua transformação. Isto na alfabetização é ter clareza que a mesma jamais pode reduzir-se num simples conhecer de letras, palavras e frases. Assim, do ponto de vista dos processos de leitura e escrita, as entrevistas analisadas apontaram as seguintes dimensões: o desejo de ler e ampliação dos repertórios de leitura por meio da alfabetização; a alegria de ler na terceira idade e o poder da escrita nas diferentes situações da vida. Em síntese a vida se mistura se ensopa com o texto de cada um em processo de alfabetização. Face ao exposto, este trabalho reafirma o compromisso de uma educação inclusiva. Todos(as) têm o direito de “dizerem” as suas palavras. Compreender este mundo e reinventá-lo.

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Capítulo quinze - A relação pedagógica e os smartphones: narcisismo e frustração Chari Meleine Brevers Gonzalez Nobre Antonio Alberto Brunetta

1. INTRODUÇÃO Dentre as muitas angústias docentes encontra-se o fato de que em sala de aula o professor, em geral, se vê obrigado a lidar com um dispositivo tecnológico inédito na relação professor-aluno e sob o qual, até o presente momento, há pouquíssimas teorizações a respeito1, a saber, o celular/smartphone. Há normas legais, especificamente no Estado de Santa Catarina (LEI Nº 14.363 de 25 de janeiro de 2008), que os proíbem em sala de aula, mas a discussão deve ser aprofundada. Em um mundo cada vez mais tecnológico é inviável pensar a construção do conhecimento sem ter em conta a invasão do espaço escolar por esses dispositivos que põem em xeque os paradigmas que sustentavam/sustentam o ato da leitura, da escrita e as práticas pedagógicas. Portanto, o primeiro ponto a ser entendido é que tal aparelho é um dado do mundo real, ele existe e demanda análise. Como então trabalhá-lo de maneira didático-pedagógica? É possível e pertinente utilizá-lo em sala de aula para a pesquisa e como estratégia de linguagem? Os alunos realmente o utilizarão com finalidade pedagógica? A proibição do uso em sala de aula 1

O trabalho de Lelis Leyberson Pedrosa (2011) é um exemplo de uma pesquisa direcionada nessa área. A pesquisa direciona-se para demonstrar o uso dos celulares smartphones de no contexto educativo e de forma didático-pedagógica.


A relação pedagógica e os smartphones

resulta em maior aprendizagem? Deve-se adotar estratégias com relação à proibição de uso de celulares, por exemplo, recolhe-los no começo da aula e somente entregá-los ao fim? Quais são as novas formas de relações sociais que se estabelecem a partir do uso do dispositivo? Não são perguntas a serem esclarecidas nesse primeiro momento, antes, servem como problematizadoras no exercício do entendimento da realidade escolar que vem à tona a partir das novas tecnologias. A carência bibliográfica no assunto, talvez se deva à rapidez das mudanças, sendo a pesquisa incapaz de acompanhá-las. Daí o tom de ensaio deste estudo. Vale ressaltar que entender tal realidade talvez implique na completa mudança de paradigma no que concerne o papel do professor na escola atual. Na era da informação massificada e da facilidade em acessar conteúdos, como pode o trabalho do professor ser realmente significativo para os jovens educandos? Todavia, entendemos que os celulares são apenas epifenômenos de uma estrutura que se relaciona diretamente com as questões sociopisíquicas, as quais nos remetem à teoria psicanalítica e a questão acerca do narcisismo.

2. RELAÇÕES AFETIVAS DE SALA DE AULA SOB NOVA CONFIGURAÇÃO Dentro da teoria freudiana o narcisismo está para além das condições patológicas, ele se manifesta com regularidade no mundo cotidiano e não necessariamente implica em autoadoração exacerbada ou perversão, mas antes em condição de impulso libidinoso que condiciona à vida, à existência. Sim, o narcisismo está pautado em uma relação erótica consigo mesmo e com quem se estabelece qualquer tipo de relação social, em que querer-se é tão importante quanto ser quisto. 236


Chari M. B. G.Nobre e Antonio A. Brunetta

(...) por fim apareceu a conjectura de que uma alocação da libido que denominamos o narcisismo poderia apresentar-se de modo bem mais intenso e reivindicar um lugar no desenvolvimento sexual regular do ser humano. (FREUD, 2010, p. 14)

Tudo bem, mas o que isto tem a ver com a educação e com o celular? Como já apontado pelo grande psicanalista, o narcisismo se manifesta na regularidade da condição humana, logo, o professor e o aluno não estão isentos. A relação didático-pedagógica e afetiva que se estabelece em sala de aula antes de qualquer coisa está sob a premissa do narcisismo. O docente espera ser quisto por seus alunos e espera que eles sejam o seu espelho. O querer dos alunos que o professor almeja está também pautado na ideia do belo, assim como Narciso, o professor apaixona-se por si mesmo e afoga-se em sua própria imagem, o que dentro de sala de aula significa o pressuposto de que o professor é insubstituível na vida dos educandos, pelo menos no que concerne o acesso ao conhecimento. Se tal é o fato, o que significa essa preponderância de alunos utilizando o celular em sala de aula? Como trabalhar com o ego narcísico diante de uma geração de jovens que não percebem mais no professor uma fonte de acesso ao conhecimento? Como o professor trabalha a partir da frustração em não ver mais a sua imagem refletida em seus alunos? Se tomarmos o estabelecimento de novos paradigmas, sejam eles filosóficos, científicos e/ou tecnológicos, como feridas narcísicas na civilização, poderemos perceber que a escola, o professor e o aluno estão igualmente feridos. A história aponta para tal fato, tanto que a imprensa modificou as relações talvez tanto quanto, no seu contexto é claro, as novas tecnologias do século XX e XXI e os ramos que 237


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se fizeram a partir delas como é o caso das redes sociais. E diante disso a condição de refém tem se repetido à humanidade que se tende a interpretar suas contradições como tabus. Os artefatos religiosos, psicológicos, filosóficos, científicos e virtuais, são percebidos, ao mesmo tempo, como adoráveis e perigosos. Nesses termos, o professor dessa última década está cada vez mais confrontado pelo sequestro cibernético da atenção e submissão de seus alunos. Mas e o aluno onde fica dentro do narcisismo? Já apontamos que o narcisismo prevê uma relação egocêntrica em que se almeja ser desejado e desejar-se. Pois bem, os jovens educandos passam pelo mesmo processo, porém, estabelecido sobre outra lógica, uma vez que, são eles os mais afetados por estas novas tecnologias e são eles que têm se adaptado, de forma mais visível, a uma dinâmica de relações sociais que se alteram velozmente. Tal fato é facilmente identificado no fenômeno social que se tornaram as selfies (fotos de si mesmo publicadas nas redes sociais como Instagram e Facebook entre outras) 2. Trata-se da manifestação material/visual/virtual da pulsão narcísica em que estão exacerbados os sentimentos de submissão à aprovação do outro bem como a auto-adoração da própria imagem. Cabe-nos o questionamento sobre as implicações desse comportamento em sala de aula. O celular/smartphone é o aparelho, o dispositivo que proporciona a efetividade da autoimagem e a sua propagação dentro das redes sociais. Logo, para estes jovens educandos o celular é indispensável, pois, inseridos em uma fase de desenvolvimento em que se dá 2

Existem sites que oferecem dicas para “sair bem” na selfie. http://www.techtudo.com.br/dicas-e-tutoriais/noticia/2013/11/lista-trazdicas-para-fazer-o-selfie-perfeito-com-camera-do-celular.html; http://pt.wikihow.com/Tirar-Boas-Selfies; http://www.muitochique.com/tecnologia/como-fazer-boas-selfies-usandocamera-celular.html 238


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atenção especial à busca por uma identidade, e que há forte tentativa de rompimento identitário com a família e também na qual a ânsia por aceitação e a valorização do círculo de amizades é bastante relevante, a front câmera é seu “espelho” e o celular, significa no limite, extensão de seu próprio ser. Portanto, os alunos o levarão para a escola, ainda que existam normas o proibindo, pois a transgressão e o enfrentamento das normas escolares são bem anteriores ao uso do celular em sala de aula. Como então proceder na atividade docente sem recorrer ao autoritarismo? Como proceder diante de um dispositivo que muda completamente as relações dentro de sala de aula? Como proceder diante do esgarçamento existencial e da bournout (CODO, 1999) resultante da ampliação desproporcional entre o esforço do docente e os resultados na aprendizagem? Como não entregar-se, na atividade docente, à frustração dos desejos não atendidos, à frustração de não ser a imagem refletida nos alunos?

3. A DOCÊNCIA COMO VERSÃO PARÓDICA DO PODER Continuando o exercício de problematizar a docência cabe perguntar o que pode ser considerado efetivamente violento, desnecessário, estigmatizante e autoritário do ponto de vista simbólico e social na relação professor-aluno? Em três de seus textos “Sobre a Atualidade e Tabus com Relação aos Professores”, de 2003; “Adoro Odiar Meu Professor: O Orkut, os Alunos e a Imagem dos Mestres”, de 2008; e “Tabus sexuais entre professores e alunos”, de 2008, Antonio Zuin problematiza o ato de ensinar e as concepções que delimitam o fazer docente. É no período clássico, conforme o autor, que se dá um dos pressupostos sobre a 239


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educação da qual a contemporaneidade é herdeira, pois é nesse momento histórico em que o designado a ensinar era o era o escravo, que por conta de suas dívidas tinha obrigação de educar “formalmente” os filhos de seu credor. Desse modo, a tarefa da docência fica atrelada à ideia de punição, de castigo, de fardo. Nesse sentido, entendendo a docência como inserida em um contexto macroestrutural, e que, conforme já apontado, culturalmente o educador e sua prática estão atrelados ao paradigma e ao ideal da tarefa do servo, cabe refletir então sobre os modos como a sociedade se organiza. Em última instância, é a ameaça da força física que possibilita a quem a controla impor sua vontade de poder. Por mais que as pulsões sejam sublimadas na esperança de convivência em uma organização social mais racional, é a possibilidade do emprego ou não da coerção física, presente até mesmo na tessitura das leis que legitimam as bases dos contratos sociais, que faz valer a palavra de ordem daqueles que controlam os meios necessários para a sua concretização. (ZUIN, 2003, p. 418) Conforme apontado por Zuin, o ordenamento social se faz possível mediante a ameaça, implícita e real, do exercício da força física esse caldo cultural estabelece uma relação de poder que legitima a valorização da força física em detrimento do intelecto. Face ao exposto, seguindo o exercício analítico que temos feito até aqui, são pertinentes alguns questionamentos: quais são os desejos pulsionais na docência? Se o intelecto não

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está previsto nessa operação, e quando está, o está em condições de submissão à força, o que move o docente já que a “espada é mais poderosa que a caneta”? É necessário entender que o docente é alvo de sentimentos ambivalentes, o que significa que ao mesmo tempo em que é invejado por ter desenvolvido e trabalhado as questões que concernem ao “espírito”, é escarnecido porque não possui legitimidade para o uso da força física. E são essas as condições sociais-materiais-psicológicas em que está inserida a relação professor-aluno. Nesse sentido, o professor é o correlato da paródia do verdadeiro poder, nunca é detentor dele. Ainda que em certo sentido ele seja comparado ao despótico, ao tirano, a mesma sociedade que o legitima para esse exercício paródico do poder, essa simulação, o deslegitima para o uso da força (o poder em sua versão material). Logo, o que resta ao docente? Uma possibilidade de resposta coerente com os fundamentos que deram origem à pergunta deve ser buscada nos fundamentos da psicanálise, portanto, numa linha que tenta reconstruir a construção analítica de Zuin, a qual se liga diretamente ao pensamento adorniano, que por sua vez afirma suas bases na teoria psicanalítica. Destarte, encontramos a primeira das pistas na definição básica do conceito Frustração, na medida em que ela significa um desejo pulsional, desejo libidinal, coagido pelos fatores internos e externos. Vejamos: Estado em que fica um sujeito quando lhe é recusada ou quando ele se proíbe a satisfação de uma demanda pulsional. [...] Para Sigmund Freud [...] a frustração (Versagung) não implica, sistematicamente, a ideia de passividade. Freud reúne sob esse termo tanto a insatisfação devida à recusa de um agente externo a atender uma exigência libidinal

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quanto a insatisfação ligada a fatores internos, como inibição e defesas do eu, que leva a formulações hesitantes, canhestras ou impossíveis da demanda. (RUDINESCO, 1998, p. 285-286)

Qual é o desejo do professor? Qual o antídoto para a frustração? Há diferenças nas frustrações que decorrem de recusas ou da inibição? A centralidade das respostas remete à assunção das contradições presentes no ato de ensinar. O conflito existe e não deve ser negado, de modo que se possa ter mais clareza sobre as condições que se realiza o trabalho docente. Ao colocarmos a “docência no Divã”, nos aproximamos de um exercício que implica, necessariamente, em ponderar o narcisismo na relação professor-aluno, no sentido mais explícito e recíproco do conceito. O mestre, assim como Narciso à margem do rio, deseja ver em seu aprendiz o próprio reflexo e este é um dos motivos que o move em sua tarefa. Ademais, como já apontado anteriormente, ele está inserido em relações de poder e o almeja e já que não pode fazer uso da força física; a violência é exercida dentro do campo simbólico. O aluno, em contraponto, deseja que esse poder seja real, de modo a poder reproduzi-lo após ter a ele se submetido, portanto, o quer destruir, mas para tanto está a ele submetido; é a própria reprodução duplicada do Esfige que afoga Narciso em suas águas sem ao menos se dar conta disso. Antonio Zuin (2008) demonstra o momento da passagem do uso violência física ao da violência simbólica dentro do sistema formal de educação com a citação de Comênio contida na Didática Magna no séc. XVII. Se, porém, por vezes, é necessário espevitar e estimular, o efeito pode ser obtido por meio de outros meios e

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melhores que as pancadas: às vezes, com uma palavra mais áspera e com uma repreensão dada em público; outras vezes, elogiando os outros: “Olha como estão atentos este teu colega e aquele, e como entendem bem todas as coisas! Porque é que tu és assim tão preguiçoso?”; outras vezes suscitando o riso: “Então tu não entendes uma coisa tão fácil? Andas com o espírito a passear? Podem ainda estabelecer-se “desafios” ou “sabatinas” semanais, ou ainda mensais, para a quem cabe o primeiro lugar ou a honra de um elogio, desde que se veja que isto não vai resultar num mero divertimento ou numa brincadeira, e por isso inútil, mas para que o desejo do elogio e o medo do vitupério e da humilhação estimulem verdadeiramente à aplicação. (COMÊNIO apud ZUIN 2003, p. 2)

Essa prática de violência simbólica sobre o aluno gera ressentimento do mesmo sobre o seu mestre. O aluno representa seu professor como a figura do herói, mas a partir de seu cotidiano escolar descobre que este ideal não corresponde, e se decepciona/frustra. Conforme Zuin (2003), essa entrega inicial do aluno aos mandos e desmandos do professor se dá pela projeção libidinal – projeção essa que atende à projeção primária do docente – daquele sobre este. Logo, quando o desejo, a pulsão libidinal não é atendida já vimos que resulta na frustração. Nesse contexto de idealização, projeção e frustração o “aluno rapidamente se enraivece em relação às posturas assumidas pelo mestre em sala de aula” (ZUIN 2008, p. 6). Diante de todo o exposto, percebemos que a tensa relação professor-aluno é um ambiente permeado pela prática

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inconsciente do sadomasoquismo, uma vez que, conforme Antônio Zuin: Se eles sofrem calados as barbáries que lhes são impingidas, por meio do prazer sádico do professor (que também se identifica masoquistamente com o sofrimento do aluno, haja vista que já ocupou seu lugar), chegará o momento de estar na condição de professor algoz, e finalmente se vingar da dor que foram obrigados a suportar em silêncio. (ZUIN, 2003, p. 6)

Todo esse arcabouço teórico e entendimento paradigmático da docência pela psicanálise se fez necessário no exercício de reflexão sobre as práticas docentes em salas de aula que têm sido acompanhadas pelos estagiários da Licenciatura em Ciências Sociais. Para além da crítica simples, é necessário e não suficiente que os mesmos consigam enxergar as relações professor-aluno sob todas as perspectivas analíticas, teóricas e práticas. Afinal o contexto escolar está longe de ser um lugar livre de disputas de poder, político, social, cultural, teórico, econômico, etc.

4. CONCLUSÃO Sair da dor pelo lado oposto ao analgésico (FIKER 1970). Talvez, e somente talvez, assumindo a contradição e superando seu caráter mítico, possamos estabelecer a tentativa de ensinar a partir do que é interessante a si mesmo. Talvez e somente talvez esse seja o único sentido encontrado na escolha arbitrária de um conteúdo que se considera relevante aos 244


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jovens alunos. Talvez, e somente talvez, a análise – considerando as variáveis desejo, erotismo, libido, frustração, narcisismo – profunda acerca da docência aponte caminhos profícuos. E, talvez e somente talvez entender os novos dispositivos como artefatos que exacerbam o narcisismo a um provável ponto patológico (difícil afirmar, já que se trata de um fenômeno social recente) em que as selfies podem ser a manifestação de um sintoma que aponta para problemas sociais de grande amplitude, os quais sob as condições materiais que se impõem ao indivíduo fazem com que este se ensimesme por não encontrar nas relações sociais um sentido existencial forte o bastante que o faça romper com seu isolamento. Em um contexto altamente competitivo, em que a ascensão social significa crescimento material, os indivíduos tendem a se fechar em si mesmos para se defender da hostilidade do mundo e, ao mesmo tempo, preencher seus vazios existenciais por meio da hipervalorização da própria imagem. Ocorre que, dessa forma, o mecanismo se retroalimenta: o vazio se torna maior, o ambiente mais hostil. Temos aqui uma busca análoga à empreendida por Narciso, ou seja, a busca que leva à não existência. (TARDIVO, 2014, p. 11)

Refletir sobre a educação a partir das condições materiais nas quais está inserida, ou seja, condições de produção que se perpetuam sob os paradigmas da meritocracia, da competição e do individualismo, bem como ter como norte os conceitos e apontamentos da psicanálise, aponta para a importância do que já foi discutido por Adorno em seu livro Educação e Emancipação (1995). Conforme o autor, se a realidade educacional estiver pautada nos pressupostos de 245


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severidade, de disciplina, de racionalidade sem espaço ao sensível, conduzirá a relação professor-aluno e o processo educativo a uma prática rancorosa e neurótica de submissão e autoritarismo, despontando de um lado a personalidade autoritária e de outro a massa amorfa, que composta por indivíduos obedientes ou sob suposta condição de resistência, se negam o direito de serem sujeitos de seu próprio processo histórico. Logo, o fim do túnel é a barbárie. Um processo educacional só poderá ser denominado formativo quando transcender os procedimentos conteudistas, tecnicistas e produtivistas. Quando promover o espaço às experiências humanas ricas em cooperação, ainda que com o conflito de muitos interesses envolvidos. Quando a sala de aula for entendida como espaço para formação de seres políticos (via de mão-dupla) e não como uma nova forma de relação colonialista. Quando os sujeitos não forem silenciados e subestimados. A emancipação dos alunos, que os docentes e os documentos legais tanto defendem, talvez seja possível quando estes jovens forem chamados ao desafio de propor alternativas de enfrentamento à toda lógica que vai de encontro ao processo formativo amplo e humanizador, em que, ao invés de objetos manipuláveis em uma coletividade cega – processo sob o qual a educação formal também é responsável – sejam críticos (não necessariamente avessos) à toda realidade cultural, social, política, histórica e econômica que os cerca. Talvez esse seja um caminho profícuo tanto ao entendimento das novas tecnologias e toda sua amplitude na realidade educativa e social, como também ao desvelamento sobre o significado e as dimensões de uma indústria cultural que permeia e redefine o formato e o contexto em que se dão as relações sociais.

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usj CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ


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