Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação Organizadores: José Claudio Matos Evandro Oliveira de Brito Programa de Extensão Civilização Colóquio Civilização – 2015
Editora do Centro Universitário Municipal de São José
2016 - São José
EXPEDIENTE Centro Universitário Municipal de São José - USJ Reitor Juarez Perfeito Vice Reitora-Acadêmica Renata Silva Vice Reitor-Administrativo Juarez J. Thives Júnior Assessora de Extensão e Cultura Marinez Chiquetti Zambon Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Reitor Marcus Tomasi Vice-Reitor Leandro Zvirtes Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade Fábio Napoleão Diretor Geral da FAED Emerson César de Campos Diretora de Extensão, Cultura e Comunidade - FAED Jimena Furlani Programa Civilização Coordenador José Claudio Matos Equipe 2015 Amanda Cristina da Silva Juliane Karolina Maia Heusser Lucas Mendes Equipe 2016 Kayma Kanoon da Silva Danilo França
Projeto Gráfico | Capa | Diagramação Zuraide Maria Silveira Designer Gráfico - USJ
Ficha Catalográfica Déborah Medeiros Bibliotecária - USJ Tiragem 100 exemplares
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Valores : formação humana e o desenvolvimento da ação / José Cláudio Matos; Evandro Oliveira de Brito (organizadores). 1 ed. – São José: Centro Universitário Municipal de São José, 2016. 281 p. ISBN 978-85-66306-23-1 (impresso) ISBN 978-85-66306-22-4 (e-book) 1. Valores. 2. Formação Humana. 3. Filosofia. 4. Ética. I. Matos, José Claudio (org). II. Brito, Evandro Oliveira de (org). III. TÍTULO CDD - 170
Sumário Apresentação.............................................................................................9 Os autores................................................................................................12
PRIMEIRA PARTE Abordagens filosóficas e epistemológicas dos valores...........................17 1. Nossos juízos de valor podem ser avaliados?...................................19 2. Que valor têm as minhas dúvidas?....................................................43 3. O mal radical em Kant e Freud.........................................................63 4. Ethos e parrhesia nas comunidades zapatistas de Chiapas - México. .... 75 5. O valor da natureza para a História...................................................97 6. A filosofia nos dá “ainda” alguma esperança? Nietzsche e as esperanças em face de uma filosofia do cultivo......109 7. A incerteza do presente como poderosa força individualizadora....125
SEGUNDA PARTE Educação, formação humana e valores.................................................141 8. Crise ambiental e pedagogia ecológica: crítica à razão e o valor responsabilidade....................................................................143 9. Valores: um caminho para vivenciar entre a escola e a família......159
10. Os valores norteadores da escola e a reforma do pensamento contemporâneo............................................................169 11. A experiência poética da formação humana: em diálogo sobre a importância da filosofia e sua dimensão poética como possibilidade formativa...................................................................183 12. A desmistificação do conceito de verdade e a sua importância para a formação humana: o auto-engano da verdade......................197 13. O ensino da filosofia. “Filosofia: isto é educação”........................207
TERCEIRA PARTE Valores na tradição e prática religiosa..................................................227 14. Valores Religiosos e Mundo do Trabalho: uma questão de educação................................................................229 15. Os valores adquiridos na tradição cumulativa no tratamento de dependentes químicos..............................................239 16. A bandeira do divino espírito santo no aspecto de valores religiosos e culturais baseados em tradições cumulativas..............253 17. O discurso da ICAR: valores, família e fé no século XXI..............259 18. A laicidade enquanto Valor.............................................................273
Colóquio Civilização – 2015
Apresentação Os Colóquios Civilização são eventos de caráter multidisciplinar, promovidos desde 2011 pela UDESC, FMP, USJ e LEFIS. Recebem submissões de trabalhos provenientes das áreas de filosofia, artes, educação, ciências humanas e sociais aplicadas. O eixo unificador do evento é a atividade reflexiva de interpretação, e sua relação com o ensino e a cultura. A diferença que vem marcando a tradição destes pequenos Colóquios Civilização é acolher a todos os autores no espaço de debate, sem distinção entre acadêmicos de graduação, professores da educação básica, pós-graduandos, professores universitários e pesquisadores. A apresentação de estudos e relatos de experiências, o debate de que participam pessoas com distintas trajetórias acadêmicas e profissionais, a diversidade e polifonia do evento são seus ingredientes. Mas nada disso se realizaria - nenhum livro, nenhum colóquio teria sido possível - sem a amizade de colegas que ofereceram sua ajuda, sua energia, sua presença e seus esforços para constituir este projeto coletivo. A equipe organizadora dos Colóquios Civilização gostaria de fazer uma menção de gratidão e de reconhecimento às instituições 00e, acima delas, aos indivíduos que, do lugar que ocuparam neste cenário, tornaram tantas realizações possíveis, nestes últimos anos. O tema geral dos Colóquios Civilização 2015 foi: Valores. Como o evento ocorreu em datas e locais distintos neste ano, houve o desdobramento do tema geral em dois subtemas, a saber: No Centro Universitário Municipal de São José (USJ), o subtema proposto foi “Valores e o desenvolvimento da ação teórica e prática”. 9
Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação
Na Faculdade Municipal de Palhoça (FMP), o subtema proposto foi “Valores, formação humana e o mundo do trabalho”. São os trabalhos apresentados nestes dois encontros, ambos componentes do mesmo programa de extensão universitária – o Programa Civilização – que compõem os capítulos do livro que aqui oferecemos ao prezado leitor. A obra está organizada em dezoito capítulos, subdivididos em três partes. A primeira, “Abordagens filosóficas e epistemológicas dos valores”, reúne os capítulos que abordam concepções e teorias fundamentais no campo dos valores, bem como abordam valores específicos em sua relação com a investigação e a vida prática. A segunda parte, “Educação, formação humana e valores” reúne os capítulos em que se examina o papel dos valores no processo educativo e formativo, bem como a possibilidade de aprendizagem e aperfeiçoamento dos valores. A terceira parte, “Valores na tradição e prática religiosa” contém os capítulos em que os valores são discutidos no contexto específico do fenômeno religioso. Naturalmente, esta discussão se faz sob a clave de uma metodologia pautada pelo rigor acadêmico e a tolerância aos diversos modos de pensar e agir das culturas humanas. Em toda atividade humana estão em jogo preferências, decisões e escolhas. No exercício da ação consciente e responsável, alguns princípios guiam as pessoas na direção de seus objetivos imediatos e remotos. É a tais princípios que se dá o nome de Valores. Um valor, portanto, é a concepção de algo que guia ou orienta a ação de pessoas e instituições. Valor é algo em função do qual vale a pena agir. Os valores são formulados com base naquilo que é considerado desejável e conveniente, por indivíduos e organizações. Portanto, a temática dos valores tem a vantagem de atravessar as diversas áreas de conhecimento e de atividade humana: existem valores morais, epistemológicos, estéticos, religiosos, profissionais, sociais e muitos outros, de forma a que sua investigação e discussão não se prende a uma disciplina específica. Na atualidade, com a rápida transformação da sociedade e o questionamento das formas tradicionais de pensamento e ação, os valores em geral vêm sofrendo um profundo processo de revisão 10
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e reconstrução. Mesmo que antigos valores sejam considerados ultrapassados, e que a rigidez de certos valores dê lugar a uma maior flexibilização da conduta livre, ainda assim, é preciso manter a pergunta pelos valores inerentes a cada campo de atividade humana. Na medida em que esperamos participar da construção de um mundo adequado à nossas necessidades e desejos, está sempre diante de nós a questão dos valores.
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Os autores Albio Fabian Melchioretto Mestrando em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Especialista em Mídias na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Especialista em Filosofia pela Universidade Regional de Blumenau – FURB. Especialista em Gestão Escolar pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC/ SC. Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário de Brusque - UNIFEBE. Facilitador de Tecnologias Educacionais do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – FIESC SENAI/Blumenau. Barbara Valle Possui graduação em Filosofia - Licenciatura Plena pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003) e mestrado em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2006). Atualmente é professora efetiva do Instituto Federal Farroupilha - Campus São Borja. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Sistemas Éticos, atuando principalmente nos seguintes temas: feminino, estética, política e Walter Benjamin. Deise Miranda Graduada em Ciências da Religião, Centro Universitário de São José- Santa Catarina - Brasil. Evantuir Juttel Pereira Bacharel em Direito - Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Licenciado em Ciências da Religião - Universidade de São José - USJ. Professor na rede pública de ensino no Estado de Santa Catarina. Felipe Gustavo Koch Buttelli Bacharel em Teologia pelas Faculdades EST (2006). Mestre em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia das Faculdades EST (2009). Doutor em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia das Faculdades EST com estágio no exterior (sanduíche) em Stellenbosch, África do Sul (2013). Professor no Curso de Ciências da Religião no Centro Universitário Municipal de São José (USJ). 12
Colóquio Civilização – 2015
Fernando Maurício Senna Bacharel em Filosofia. Especialista em filosofia da linguagem. Mestre em filosofia (área ontologia); doutorando em filosofia (área ética e filosofia política; ingresso 2015). Professor efetivo Faculdade Municipal de Palhoça. Participação em grupos de pesquisa e projetos: Programa Civilização UDESC. Gilson Luís Voloski Licenciado em Filosofia (UPF, 1993). Especialista em Metodologia do Ensino (UPF, 1997). Mestre em Educação (UPF, 2005). Doutor em Educação (UFSC, 2013). Professor formador do curso de Gestão Escolar (UFSC) e do curso de Especialização em Cultura Digital: tutor do Núcleo de Estudos de Filosofia (UFSC). Iris Daniele Marcolino da Silva Mestranda na Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, na linha de pesquisa Filosofia da Educação. Formada em Licenciatura Plena em Filosofia. Faz parte do grupo de pesquisas “Hermenêuticas da cultura, mundo e educação- CED/UFSC”. Ivarne Maria Mendel Graduada em Pedagogia habilitação em Supervisão Escolar pela UFSC. Especialista em Educação Sexual pela UDESC. Assessora Pedagógica da Diretoria de Ensino Fundamental SME/Florianópolis /SC. Coordenadora do Grupo de Especialistas e formadora do programa de formação continuada dos especialistas – orientadores, supervisores e administradores da SME. Jackson Alexsandro Peres Mestre em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de História da Educação e Metodologia de Ensino de História na Faculdade Municipal de Palhoça, no curso de Pedagogia. Professor da rede Estadual de Ensino de Santa Catarina. Janice Gayer Moreira Monguilhott Aluna do Curso de Ciências da Religião - 8° fase Centro Universitário Municipal de São José – USJ 13
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Jeison Rodrigo Coelho Graduado em Ciências da Religião pela USJ (Centro Universitário Municipal de São José) 2015/2. Jonas Faccin Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (Filosofia da Educação) UFSC. Estuda atualmente o pensamento de Nietzsche e sua interface com a educação. Membro do GRAFIA: Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação, no subgrupo BIOGrafia Nietzsche. José Claudio Matos Doutor em Filosofia pena Universidade de São Paulo – USP. Professor de Filosofia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Coordenador do Programa Civilização. Kelly de Fátima Castilho Possui graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2004). Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Professora efetiva no Instituto Federal Farroupilha – Campus São Borja . Lauro Roberto Lostada Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Mídias na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Especialista em Práticas Pedagógicas Interdisciplinares pelo Centro Universitário FACVEST. Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catariana – UFSC. Assistente Técnico Pedagógico na Escola de Educação Básica Irmã Maria Teresa. Leandro da Costa Programa de Pós Graduação em Educação da Univ. Federal de Santa Catarina, PPGE/UFSC. Mestrando em Educação, na linha de Filosofia da Educação. 14
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Leandro Marcelo Cisneros Licenciado em filosofia, Mestre em filosofia, Dr. em Ciências Humanas. Professor de ensino superior do Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE. Projetos: Princípios de filosofia e ética, Laboratório de Estudos Transdisciplinares - LETUFSC, Educação e Interdisciplinaridade - UNIFEBE. Luciana Valentina Trevisan Bacharel em Direito (UNIJUÍ, 1994). Especialista em Direito Previdenciário (IMED, 2005). Acadêmica do curso de Licenciatura e Bacharelado em Filosofia (UFSC). Maria das Graças Soares Graduada em Letras pela UNISUL (SC). Pós-Graduação Latu senso em psicopedagogia pela UNISUL (SC). Graduanda em Ciências da Religião pela USJ (SC) (2015). Atua como professora nas Escolas de Ensino Fundamental Dayse Werner Salles e Juscelino Kubitschek. Maria Fernanda Diogo Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Maria Letícia Naime-Muza Mestre em Linguística Aplicada/UFSC. Graduada em Letras/PUC/ RS, especialista em Métodos e Técnicas de Ensino em Língua Portuguesa e Estrangeiras/UNISINOS/RS. Assessora técnico-pedagógica da Diretoria de Ensino Fundamental e coordenadora da área da Linguagem da SME/Florianópolis. Formadora de programas de formação continuada de professores do MEC – GESTAR, Pró-letramento, PNAIC e dos professores de línguas da SME. Rodrigo Mafalda Graduado em Filosofia e Mestre em Filosofia da Educação (UFSC). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGE/UFSC. Participante do Grupo de pesquisa Bio-grafia Nietzsche. Com pesquisas na área da Filosofia da Educação. 15
PRIMEIRA PARTE
Abordagens filosรณficas e epistemolรณgicas dos valores
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1. Nossos juízos de valor podem ser avaliados? Fernando Maurício Senna
Introdução Quando pretendemos avaliar algo, comumente partimos de um código de medida e dizemos algo do tipo “tal fonte de água é rica em minerais” ou partimos de uma comparação e dizemos algo do tipo “José é melhor pugilista que João”. Em ambos os casos nos guiamos por um contexto linguístico avaliativo (normalmente um código de valores hierarquizado) e nos dirigimos a portadores-devalor e propriedades avaliáveis. Veremos que nossas avaliações ultrapassam muito este tipo de consideração. O realista ingênuo compara enunciados predicativos e axiológicos: pretende que tal como “José é mais alto que João”, também “José é melhor que João”. Mas isto deveria significar que tal como podemos medir a altura de José, mediríamos seu valor. De fato usamos medidas de valores em muitos casos, mas não deste modo. “José é melhor” deveria significar que há em José algo a mais que em João, o que é insuficiente, pois quando avaliamos uma obra de arte ou um político em termos de “ser melhor que” ou “ter mais valor que”, queremos dizer tanto “ter algo a mais” quanto “estar mais além”, tanto quantidade quanto qualidade. Se “José é bom” significa “José é melhor pugilista que João”, estamos julgando (avaliando) o portador “José”, mas em “ser filósofo é melhor que ser pugilista” ou “ser inteligente é melhor que ser corajoso”, pretende-se julgar a transitoriedade ou não do valor atributivo. Isto se deve ao fato de que nossos próprios juízos de valor são portadores de novos juízos de valor e que os valores podem ser transitivos ou intransitivos em certos contextos. Juízos de valor comportam quantidades e qualidades, são a pretensão de estabelecer comparações na forma de adjetivos graduáveis discriminatórios (não simplesmente “José é mais alto que João”, mas “José é melhor 19
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que João no pugilismo por ser mais alto”). O juízo de valor ao mesmo tempo compara, mede e gradua, defende a incomparabilidade ou incomensurabilidade de algo dito excelente ou superior. Isto é tão inevitável quanto perigoso para qualquer conduta prática ou teórica: tem forma conflituosa e não apenas hermenêutica, dialética, reflexiva ou econômica. Os valores não trazem ao mundo apenas mensurações, como em “a água é rica em minerais”, mas comparação, contradição, circularidade, circulação, e também conflito, disputa, ordem, vitória e perda. Alguém poderia dizer “não basta ser melhor ou superior, é preciso ser único e incomparável” e não faltam concepções metafisicas de Deus e do homem que os definam exatamente assim. Os juízos de valor não só estabelecem medidas de avaliação e classes de comparação, mas também discriminação tanto positiva quanto negativa (valências), tanto para gêneros quanto para universos. Juízos de valor são atos avaliativos: contêm valorações no lugar de predicados. Tais valências são: v. positivo ou negativo ou valor e desvalor; admitem termos diversos: bom-ruim, melhor-pior, superior-inferior, etc.; podem assumir matérias como sagrado-profano, bom-ruim, certo-errado, liberal-autoritário, original-derivado, etc. ou instâncias, político, estético, utilitário, moral, científico, religioso. E o problema é que sempre podemos perguntar pela relação de superioridade ou grau entre eles: se o religioso está ou não acima do político, se o estético supera ou não o utilitário, etc.
Os juízos de valor são avaliáveis entre si? Discutir se avaliar algo como “bom” tem sentido teleológico, atributivo ou putativo permanece insuficiente por limitar os valores aos portadores ou bens. Investiguemos então os tipos de juízos de valor ou avaliações v. x, em que “v” é um juízo de valor e “x” sua forma atributiva. 1.1.Valor Transitivo. Se x é comparável, incomensurável, igual, aproximado ou intercambiável, temos um juízo sobre o v. transitivo. Por exemplo, julgamos se dois bens são comparáveis ou não, se trocáveis entre si por meio de outra coisa ou para outra coisa, porque supomos que suas propriedades ou seu valor como um todo são transponíveis. Por isso não podemos confundir v. transitivo e v. de troca ou v. de circulação, já que estes últimos são a interpretação 20
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econômica (realista) daquele. A proposição “José é bom de briga” não possui conteúdo moral necessariamente, diferente de “José é boa gente”. Em “José é bom” o conteúdo é ambíguo: se pudermos perguntar “bom para quê?”, então especificaremos algum conteúdo teleológico, mas se perguntarmos “é bom por si mesmo?”, então poderemos substituir por “José é melhor que”, “José é melhor para realizar ou produzir x”, “José é o maioral”, “José é superior a”, ou seja, teremos uma interpretação sobre seu sentido transitivo (x é bom comparado com y, aplicado à z, etc.) ou intransitivo (x é incomparável, é único, não é emprestado sem perdas, etc.) e não um sentido teleológico (x é bom para z). Notemos que é a preposição “para” que causa ambiguidade e não só o conteúdo de “bom”: em “a virtude é boa para x”, se substituirmos “para” por “para causar”, “para chegar”, então “virtude” converte-se em meio para um fim; mas se substituirmos por “para produzir”, “para realizar”, então não poderemos simplesmente entender a virtude como meio, mas também como ingrediente de x. O v. instrumental do “meio para um fim” não se confunde com o v. transitivo do “para x” em geral. Em toda questão valorativa sempre está em pauta decidir se o problema é de natureza ou grau ou se o valor é transitivo ou intransitivo. Julgamos tanto se um portador possui v. transitivo quanto julgamos em que medida outras atribuições (v. instrumental, inerente, etc.) são transitivas ou intransitivas. 1.2.Valor Instrumental. Costuma ser entendido como v. extrínseco ou v. de preferência, nos termos “x é meio para”, “causa de um fim ou de um valor intrínseco”, “bom para algum fim”. Por exemplo, se alguém julga que tal e tal música é intrinsecamente valiosa, o estudo da música será instrumentalmente valioso. Assim, a opinião comum afirma que se algo possui v. não-instrumental, então possui v. intrínseco e se x leva a algo com v. intrínseco, então a relação entre eles é instrumental. Mas afirmar que v. extrínseco é o mesmo que v. instrumental é uma tentativa de eliminar a vagueza do conceito, cujo sentido negativo não logra esclarecimento. Se x é meio para o v. intrínseco, não fica claro se isto determina v. instrumental ou v. intrínseco de x para y. Pode ocorrer que um ato x seja instrumentalmente bom para y, sendo intrinsecamente ruim, como infringir dor e risco para salvar uma vida; ou x ter v. intrínseco e v. contributivo para y, como educar-se na virtude para capacitar futu21
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ras ações corretas. Logo, o equívoco da definição comum é ignorar que nem todo v. extrínseco é instrumental, que “ser-para” não exclui outras avaliações nem basta para defini-lo. A fórmula “x é meio para y” pode ter um conteúdo do tipo “o exame médico confirmou a boa saúde”, de modo que “boa saúde” é um v. intrínseco e “exame médico” não é apenas meio para a boa saúde, mas v. contributivo. A admiração pela obra de Fernando Pessoa é um estado bom não por si próprio, mas apenas em relação a tal e tal portador e nem por isso é instrumental, apesar de extrínseco nesta relação. Isto permite concluir que v. extrínseco é conceito insuficiente e induz a erro. É equivocado afirmar que só podemos falar em v. intrínseco se já concebermos o extrínseco e vice-versa (dialética dos valores), pois podemos conceber um v. intrínseco em relação a outro v. intrínseco de igual ou diferente gênero. É verdade que tudo porta valor ou desvalor, mas nem por isso simplesmente intrínseco ou extrínseco na forma disjuntiva. Conflitos axiológicos nunca são dilemas lógicos e permanece aberto se há dilemas deônticos genuínos de conteúdo axiológico. Não apenas o conceito metafisico de Deus como ente perfeitíssimo ou ser superior é axiológico, mas também o conceito de homem como animal superior ou o conceito fisiológico de faculdades superiores. Mas esta relação não é dialética porque é tanto de comparação quanto de circulação, e por isto deveremos dizer que v. instrumental não é o mesmo que v. extrínseco. Há vários juízos aparentes de v. extrínseco (instrumental, contributivo, transitivo, inerente), mas o v. intrínseco pode conter v. transitivo ou intransitivo e o v. inerente pode ou não ser atribuído como v. extrínseco. Assim, v. intrumental é meio transitivo para o valor de um fim, mas nem toda relação ser-para é instrumental e nem todo meio instrumental é vazio de qualquer valor não-instrumental. 1.3. Valor Contributivo. Ocorre quando “x é bom como parte de um todo”. Por exemplo, o portador “a arte da música” pode ser posicionado como v. intrínseco, contributivo, etc: se a música é parte da felicidade ou de uma vida intrinsecamente boa, então a música tem v. contributivo. Alguns autores preferem distinguir v. instrumental e v. constitutivo: o dinheiro é instrumentalmente valioso para comprar uma casa (A é causa de B), mas uma casa é constitutiva da felicidade familiar (A forma B). Esta distinção é frutífera, mas simplifica o instrumental e perverte o inerente. Preferimos manter 22
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a distinção entre intrínseco e instrumental, bem como entre estes e aquilo que é constitutivo, o que exige distinguir este último em v. inerente e contributivo. Mas instrumental, inerente e contributivo podem ser casos de constitutivo. Há ainda quem trate o v. contributivo como um caso de v. extrínseco em geral. Contudo, algo pode ter v. intrínseco e/ou contributivo. Se assumirmos que x tem v. intrínseco e w e y tem v. contributivo em relação à x, isto não impede de x manter v. intrínseco e vir a adquirir simultaneamente v. contributivo para com z. O v. intrínseco da 9ª Sinfonia contribui para o v. intrínseco da 5ª Sinfonia. Assim, definir o v. extrínseco como aquilo que tem valor em relação à outra coisa é insuficiente por supor que todo valor é estável. Em “w tem valor por causa de x” não fica claro se w é parasita ou agregado ao v. intrínseco de x por si mesmo ou como finalidade, se w tem v. instrumental ou v. contributivo em relação à x. Assim, o termo “v. extrínseco” é tão negativo quanto vago e somente parece se justificar quando antes se assumiu um conceito intuitivo ou indeterminado de v. intrínseco, o que queremos evitar. 1.4. Valor Intrínseco. O v. intrínseco costuma ser pensado como (a) valor em si, (b) valor final, (c) valor obrigatório, (d) por seu próprio bem, (e) incomensurável ou incomparável, (f) absoluto ou fundamental, (g) fonte de responsabilização, (h) modo de ser invariavelmente bom, etc. Por exemplo, que comer e beber com moderação é bom para manter a saúde porque esta é invariavelmente boa. Contudo, admitir ou atribuir um “invariante axiológico” não é o mesmo que falar em v. intrínseco, pois a “a saúde é boa” pode significar “ser do interesse de cada pessoa” de modo diferente para cada um. Portanto, não e pode confundir v. intrínseco e invariante axiológico. 1.4.1. Ninguém discorda que exista uma pluralidade de v. instrumentais, mas permanece a questão antiga de saber se existe mais de um v. intrínseco. Esta questão dividiu a tradição em monistas e pluralistas. Este é o berço da axiologia de Platão a Cícero. Logramos com isso dois tipos de pergunta: quais valores são primários e derivados e como o v. intrínseco é superveniente sobre alguma característica avaliativa ou não-avaliativa na qual se sustenta? Surgirá então a pergunta se o valor não-derivado (aquele que algo tem em seu próprio direito, seu bem próprio independente de outra coisa) é superveniente sobre certas características básicas? A questão é se o 23
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valor não-derivado é atribuível à características não-avaliáveis ou se o v. intrínseco é valor não-atributivo? Questiona-se a relação entre ordens de avaliação porque afirmar que v. intrínseco é não atributivo tende a aceitação de ser fundamental, absoluto, simples, invariável ou incomensurável, enquanto aceitar sua derivação tende ao relativismo axiológico ou a uma teoria econômica da ação moral. Platão e Aristóteles foram os primeiros a formularem o v. intrínseco em termos de “valor mais alto” ou “valor final” e Cícero foi o primeiro a distinguir valor, bem e dever, entendendo “valor” como fundamento ou fonte destes1. Platão afirmou (Protágoras 353e) que o prazer é considerado ruim por si mesmo ou por suas consequências, mas na República 402e e em Eutidemo 281a-b esclareceu que o prazer ou leva para a necessidade de mais prazer (sua falta ou privação) ou para algum desprazer após sua satisfação ou excesso. No Timeu 69d mostrou como o prazer tende ao ruim e como a dor é impedimento do bom; no Filebo 60e, que o prazer só é melhor se acompanhado de inteligência. Portanto, o prazer é um bem relativo e dor-prazer são portadores transitivos e não intrínsecos, podendo adquirir maior valor em função do v. intrínseco do Bem (ao lado do Belo e Verdade)2 . Aristóteles recusará esta pluralidade de v. intrínsecos noéticos mostrando que é opinião comum que a dor seja ruim por ser evitada por suas consequências para nós ou por ser má sem qualificação, sendo o prazer necessariamente bom por ser seu contrário (E.N.1153b), reservando à felicidade o estatuto de v. intrínseco em termos de (i) fim último e (ii) ordem de valores em natureza e grau (escala natural). Teremos: v. intrínseco é o valioso por seu bem próprio e não valioso por causa de outro bem com o qual se relaciona de algum modo. Se uma coisa deriva sua bondade de alguma outra coisa, que deriva sua bondade de uma terceira, e assim por diante, deve haver um ponto em que atingimos algo cuja bondade não é derivada, algo bom simplesmente em seu próprio direito, cuja bondade é fonte dos demais bens relativos (E.N.1094a). Ao contrário de Kant, que concebe v. intrínseco como “grau infinito” ou “não qualificável”, Aristóteles concebe como “simplesmente bom” ou “fim último”. IntrinsecaSobre a relevância da axiologia em Cícero e a dívida de Kant para com este, indico meu artigo Introdução a Ética Axiológica, inRevista Vias Reflexivas, número 5, Capítulo VI, disponível em http://issuu.com/editorausj/docs/leitura_e_escrita_na_constru____o_d/1. 2 Sobre o papel do prazer, bem e fins na ética de Platão, ver meu artigo Ética das Virtudes, in Revista Vias Reflexivas, número 6, disponível em http://www.fmpsc.edu.br/revistaindex.html. 1
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mente bom é o não derivadamente bom, bom por seu próprio bem, e extrinsecamente bom é o valor derivável por causa de outra coisa. Mas esta interpretação não esclarece como Aristóteles parece admitir prioridade entre tais valores e como admite bens divinos, acima do homem e que este pode ao menos aspirar. A escala natural aristotélica costuma ser ignorada nas interpretações mais atuais. E devido às futuras discussões entre hedonistas e utilitaristas (Epicuro, Bentham, Sidgwick e Mill) perdeu-se de vista tais relações de gradação. Frankena foi quem procurou fornecer definitivamente uma lista de bens intrínsecos (vida, consciência, atividade; saúde, força; prazer, satisfação; felicidade, bem-aventurança; conhecimento, sabedoria; beleza, proporção, harmonia; amor, amizade; virtude, moralidade; paz, liberdade; aventura, novidade; reputação, fama, estima; etc) em omissão as hierarquizações de Platão e Aristóteles e as atuais valorações ambientais. 1.4.2. Brentano, C.D. Broad, D. Ross e Ewing concordaram que “intrinsecamente bom” é o avaliado por seu bem próprio, em termos de conveniência, ajustamento, estima ou apropriação moral. Mas, diferente de Cícero, estes autores entenderam intrinsecamente bom como “valor para alguém”, pressupondo alguma espécie de sensibilidade moral, o que significa que o “ato valorativo” é ele mesmo valorado inexplicitamente. Brand Blanshard mostrou que se x é apropriado para valorizá-lo por seu bem próprio, então já foi tomado como intrinsecamente bom. Thomas Scanlon esclareceu que se trata de uma conta injustificada entre preciosidade (qualidade de ser bem avaliado e a bondade) e propriedades subjacentes, deixando por explicar por que algo é tal que é apropriado para ser valorizado a partir de alguma propriedade que subjaz a sua bondade (SCANLON,1998, p.95). Ou seja, poderíamos dizer que é verdade que (a) tudo o que é intrinsecamente bom é tal que é apropriado para valorizá-lo por seu bem próprio e que (b) tudo o que é apropriado por seu próprio bem é intrinsecamente bom. Como se pode notar, toda a dificuldade está em decidir qual o valor do portador, das propriedades e dos atos valorativos do sujeito. Por isso alguns alegaram que os bens intrínsecos são antes estados de coisas que implicam que não há ninguém em posição de valorá-los (BYKVIST, 2009, p.4). Por exemplo, se a felicidade é intrinsecamente boa, será apropriado recebê-la para qualquer individuo ou grupo considerado. Mas este sujeito sem po25
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sição para avaliar pode levar tanto ao realismo quanto ao relativismo. Do mesmo modo que a psicanálise considera o bem do sujeito solitário e singular descritível de forma econômica, também o bem solitário em geral deverá ser assim. Mas assim como a psicanálise não pode generalizar a economia da neurose, do masoquismo ou qualquer outra para o estatuto de normatividade, a axiologia não pode se reduzir a um bem-solitário ou social, que permaneceria econômico em sua abordagem do v. intrínseco. E não se pode admitir esta tese igualmente para estados de coisas simples e complexos, o que leva a restrição de muitas coisas que se poderia pretender como intrinsecamente bom. Porém, podemos argumentar que algo pode ser apropriado para valorar segundo um bem próprio e ainda assim não ser tratado como intrinsecamente bom. O v. intrínseco nem sempre corresponde ao ser apropriadamente bom. Por exemplo, se um demônio nos exige valorizá-lo para nosso próprio bem contra a ameaça de nos causar sofrimento, parecerá apropriado fazê-lo sem que o demônio seja tomado como v. intrínseco (RABINOWICZ, 2004, p.402). 1.4.3. Um terceiro modo consiste em recusar pensar o valor como propriedade, de onde se segue igualar v. intrínseco e valor por atribuição ou “simplesmente-bom”. Por isso é preciso perguntar o que significa atribuir valor ou avaliar. Coube a Moore indagar pela primeira vez o significado de atribuição de v. intrínseco, se é analisável em termos de decomposição do conceito. Afirmou que “intrinsecamente bom” é aquilo que somente pode ser compreendido avaliativamente e não-analisável descritivamente, isto é, que os componentes A, B, C de “bom” permanecem sendo avaliativos e não são propriedades naturais. Mas Moore deixa em aberto a possibilidade de ser analisável de outra forma e, posteriormente às observações de Ross sobre “correto”, reconheceu que “bom” não é o único caso para compreender “valor”. Quanto ao primeiro ponto, Roderick Chisholm argumentou que intrinsecamente valioso significa falar de toda bondade existente no mundo ou o valor que haveria se fosse o responsável por todo o valor contemplável no mundo. Quanto ao segundo, criticou-se a definição de v. intrínseco em Principia Ethica por partir das consequências intrinsecamente boas de um ato. Peter Geach argumentou ser equivocado comparar, por exemplo, “bom” e “azul”: em “x é uma flor azul”, temos “x é uma flor” e “x é azul”, 26
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mas em “x é bom professor” não haveria como dividir do mesmo modo. Isto significa que não podemos fazer inferências desde enunciados avaliativos: se “x é uma flor azul” e “uma flor é uma planta”, podemos inferir que “x é uma planta azul”; mas se “x é bom professor” e “um professor é uma pessoa”, não podemos inferir que “x é uma boa pessoa”. Portanto, não se pode falar em “bom” como propriedade intrínseca natural nem como derivado não-relativo. Sendo nada simplesmente-bom, concluiu-se que tudo o que é bom é bom para certo tipo (Geach) ou que ser bom é ser bom de alguma forma (Thomson). Não é o lugar aqui para discutir o quanto tais criticas não fazem jus a Moore. Bastará indicar que estamos às voltas com concepções sobre v. atributivo. Estas abordagens tendem a levantar a questão “o que porta valor intrínseco?”. Moore parece corroborar um pluralismo sobre portadores de valor, ao que Frankena procura fornecer uma lista. A partir disto, alguns defenderão serem as propriedades os portadores de v. intrínseco (Butchvarov), os estados de coisas (Chisholm) ou os fatos (Ross). Entendo que todas estas concepções são frutíferas caso distingamos melhor valor, portador-devalor e sujeito-de-valor. Por exemplo, “ser precioso” pode significar “ser raro” ou “melhor” e exprime uma avaliação, ou “ser caro” ou “ter alto custo”, referindo-se às instancias ou propriedades. Nossos juízos de valor não se deixam descrever como referenciais porque não possuem um único destino, pois podem avaliar portadores, sujeitos e propriedades. Não basta dizer que algo é bom ou certo, mas como é bom ou certo. A questão sobre portadores de valor conduz àquela sobre o v. transitivo de sua pluralidade: se A tem valor em relação a B e se B tem o mesmo tipo de valor em relação a C, então A terá o mesmo tipo de valor em relação a C? Isto consiste em perguntar quando o valor pode ser transitivo (TEMKIN, 1997). Certamente não pode ser o caso devido à diferença entre a formalidade dos valores e seus conteúdos: ainda que pudéssemos julgar se a Guernica de Picasso e 9ª Sinfonia de Beethoven possuem v. intrínseco, nem por isso se poderia julgar dedutivamente o v. transitivo entre elas, por pertencerem a gêneros estéticos diferentes. Já Brentano e, em seguida Husserl, compreenderam que uma totalidade autêntica possui valor diverso de uma totalidade inautêntica (por soma). O “princípio das unidades orgânicas” de Moore é uma forma de conceber esta diferença: que 27
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não se deve considerar o v. intrínseco de um todo igual a soma dos v. intrínsecos das suas partes (MOORE, 1903, p.96). A “consciência de um belo objeto” possui grande v. intrínseco independente do pouco v. intrínseco da “consciência” ou do “belo objeto” isolados. Isto mostra que um todo pode ter v. intrínseco e suas partes terem v. intrínseco, inerente, instrumental, etc. Assim, apesar do prazer ser um v. intrínseco, o prazer malicioso não o é (BRENTANO, 1969, p.23). Podemos concordar com a crítica ao método de cálculo por valor agregado, mas permanece a dificuldade se Moore sugeriu não haver relações entre o valor do conjunto e de suas partes. Ou melhor, não fica claro se o princípio das unidades orgânicas pressupõe v. intrínseco e v. contributivo. Mas seja qual for o alcance do princípio, é evidente que não se pode igualar totalidade e soma das partes segundo o valor transitivo de algo, pois o valor agregado não corresponde ao v. transitivo entre unidades intrínsecas ou propriedades destas, nem um valor total é simplesmente calculável desde um valor agregado. Esta confusão metafísica (pretensão de descrever jogos axiológicos em termos de relações econômicas) precisa ser afastada por confundir entidades realistas (agregado e total) e juízos de valor (intrínseco, contributivo e transitivo), do contrário nunca poderíamos fazer afirmações do tipo “é melhor ser ruim e infeliz do que ser bom e infeliz ou ruim e feliz” (Ross). Seja admitido o valor de um todo T composto dos bens x, y e z com valores independentes numa escala de medida 1, 2 e 3, respectivamente, então o valor de T será a sua soma, 6. Mas se x, y e z são parte de T e possuem valor independente, então suas combinações x-y, x-z e y-z serão, respectivamente, 3, 4 e 5. Assim, se calcularmos o valor total de T não pela agregação, mas pela combinatória, teremos T=12. Isto demonstra que o valor de T em si é diferente do v. transitivo de seus elementos e do v. contributivo de suas combinatórias. Temos que (i) tais procedimentos são distorções lógicas por já pressuporem o valor agregado como critério do cálculo e, não podendo justificar tal pressuposto, terminam por não definir o que é valor intrínseco-base; que (ii) admitir v. intrínseco para uma unidade orgânica também abre espaço para distorções sociais ou empiricamente condicionadas: se uma pessoa A tem satisfação intrínseca 10% e uma pessoa B tem insatisfação 20% em contextos similares, então um conflito entre A e B pareceria resultar 10%, o que distorce tanto a transitividade en28
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tre A e B quanto encobre o sentido valorativo do conflito ao tratá-lo como mero dilema lógico; e (iii) não faria qualquer sentido negar a existência de v. intrínseco não-básico para justificar o cálculo de v. intrínseco básico. 1.4.4. Outra importante concepção de v. intrínseco é derivada de Kant: que somente a boa vontade é “o bom sem qualificação”, bom em si e não por suas consequências, estimado em si mesmo além da comparação que o fizesse maior que o que poderia causar (KANT, 1785, Ak.1-3). Não estou de acordo com esta interpretação, mas reconheço a relevância por ter reunido a noção de “estimável em si mesmo” (Brentano) e “sem qualificações ou incomensurável” (Leibniz). Mas há outra afirmação mais rica: mesmo aqueles que não possuem uma boa vontade possuem “valor absoluto” enquanto seres racionais, sendo “fins em si mesmos”, “acima de todo preço”, na forma de “dignidade” (KANT, 1785, Ak. 64e77). Para satisfazer ambas as interpretações, teríamos que distinguir em Kant dois campos axiológicos: do estimável e do digno. E, se o segundo for chamado de v. intrínseco, então estaria sendo definido como o atributo que os seres racionais possuem em grau infinito e não em grau zero. Mas esta bela definição possui consequências: iguala v. intrínseco e valor absoluto, e implica que ainda assim este não é o melhor dos mundos possíveis devido à presença do valor estimado. A dificuldade que enfrentamos é passar da primeira para a segunda declaração: por que a existência do valor absoluto não engendra o melhor dos mundos? Porque o valor absoluto ainda deixa espaço para um valor estimado entre seres racionais em grau infinito a se valorarem perpetuamente em um Reino dos Fins? Além da aparente igualdade entre v. intrínseco e valor absoluto, a tese kantiana do agente racional como portador de dignidade e nunca de preço costuma ser entendida nos termos leibnezianos de valor incomensurável, que o respeito pelos agentes racionais deve ser encomendado lexicamente sobre o valor de qualquer outra coisa. Uma alternativa seria conceber uma deontologia mais amena do tipo “uma ação é melhor se e somente for apoiada por mais razões” ou “a ação mais bem fundamentada em razões implica na escolha da melhor ação”. Neste caso v. intrínseco é o mesmo que valor fundamental sem coincidir com valor absoluto, mas deixa por determinar o valor de “apoiar-se em razões”. Assim chegamos à dificuldade metafisica em conceber 29
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v. intrínseco como absoluto, fundamental ou incomensurável. Mas o monismo metafísico de Kant soube preservar o v. estimado sem manter o realismo presente em Hobbes ou Hume (que ser agradável, estimável, capaz de satisfazer necessidades, em suma, “ser bom”, é propriedade intrínseca de algo). Moore corroborou isto ao afirmar que “bom” é propriedade não-natural superveniente. Contudo, Beardsley tentou rejeitar o caráter absoluto do v. intrínseco, mostrando que todo valor é extrínseco: a concepção dialética que concebe o intrínseco por oposição ao derivado falha na compreensão do valor da complexidade do mundo, jamais totalmente intrínseco porque tudo que tem v. intrínseco também possui v. extrínseco e muitas coisas de v. extrínseco não portam v. intrínseco. Esta tese é frutífera para afastar o valor absoluto, mas não podemos insistir nesta extensão vazia de “v. extrínseco” e nos limitarmos a uma teoria dos portadores-de-valor em detrimento dos sujeito-de-valor. Teria sido mais rico afirmar que julgamos como v. transitivo ou intransitivo tanto o v. intrínseco quanto os demais valores (instrumental, inerente e contributivo). O problema fundamental da axiologia é que valores são avaliáveis entre si. Korsgaard observou como a distinção tradicional entre intrínseco (valor de algo por suas propriedades não-relacionais) e instrumental (valor por ser meio para um fim) induz a erro. O v. intrumental seria antes contrastável com valor final (valor como fim para um bem próprio), tal como v. intrínseco é contrastável com valor extrínseco (valor por propriedades extrínsecas relacionais). Esta é uma boa tentativa de explicitar “extrínseco” sem limitar-se a portadores, mas ainda não esclarece porque algum v. contributivo ou transitivo está sendo pressuposto em valor final e extrínseco. O item “extrínseco” é extensão vazia a esperar determinação por algum caso particular de valor, mas é mais pertinente ir direto a tais casos. E falar em valor final em termos de bem-próprio é colocar a estima e a dignidade em mesmo nível, perdendo de vista que valor final inclui a extensão de vários casos. Pois, conforme Kagan, se o valor final é superveniente aos valores das propriedades extrínsecas, então também poderá supervir a propriedade de ser meio para algo (utilidade) e não só para alguém (KORSGAARD, 1983, p.185). Então deveríamos distinguir dois tipos de v. instrumental (final e não-final). Contudo, (i) tanto v. intrínseco quanto v. instrumental podem comportar ingredientes teleológicos ou deontológicos; (ii) 30
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deste modo, valor final não é uma forma especifica de valoração nem a única possível; (iii) e não é necessário conceber v. intrínseco em termos de propriedades intrínsecas, alguns inclusive o definem como valor final. Portanto, ter valor final ou por si mesmo é atribuição que já pressupõe certas éticas normativas e implicam prejuízo para a investigação axiológica. 1.4.5. Assim, o pluralismo parece poder responder “quais são os valores?”, mas não “por que são estes os valores e não outros?”. A dificuldade em responder a segunda questão é reveladora: sendo insuficiente qualquer lista de valores materiais (portadores ou propriedades) e não sendo necessária alguma hierarquização, então algum valor mais básico subsume aqueles? Seguiu-se a resposta utilitarista: enunciados do tipo “x tem valor” exprimem que x é sempre portador de prazer ou bem-estar. Mas isto abre uma terceira pergunta: “trata-se de pluralismo entre valores intrínsecos, entre v. intrínseco e outros valores ou somente entre v. intrínseco em sentido monista ao lado de uma pluralidade de v. extrínsecos?”. Podemos dizer que monistas e pluralistas, apesar dos valores diferentes que sustentam, poderiam ser avaliados em termos de valor absoluto e valor relativo ou realismo e preferencialismo de valores, pois ambos eliminam uma análise pormenorizada da valência e das avaliações. Cícero parece aceitar tanto a virtude quanto o dever como vs. intrínsecos, mas aceita uma pluralidade de valores extrínsecos. Kant é monista quanto ao v. intrínseco, mas não é claro quanto aos demais valores. Mill parece aceitar uma pluralidade de bens intrínsecos, mas não é claro se o princípio de utilidade porta também um valor de obediência ao próprio princípio. Estes três exemplos bastam para mostrar que não podemos subsumir deontologia, utilitarismo, teoria das virtudes, etc. ao pluralismo ou monismo. Mas pluralistas e monistas possuem compromissos similares e são vítimas do valor de fetiche de suas teorizações: um quer valorar a incomparabilidade de gêneros ou universos de valores e o outro quer resolver a incomensurabilidade de valores num dado contexto. O relevante a ser avaliado está na ligação entre o monismo ou pluralismo e a incomparabilidade/incomensurabilidade ou não do v. intrínseco. Por exemplo, alguém pode defender que “a vida humana está acima de qualquer preço” em termos de “matar um para salvar outro jamais é troca aceitável”, mas ainda assim tendem a aceitar que seria troca aceitável caso um dos 31
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indivíduos portasse certo valor positivo (valência) ausente no outro, digamos “ser uma vida inocente”. Enquanto a tese deontológica afirma não haver valor de troca entre pessoas, a outra defende que diferentes pessoas possuem diferentes valores de troca. A pergunta é se podemos comprar ou vender pessoas, se podemos classificá-las em termos de senhor-escravo, inferior-superior intrinsecamente e independente de contexto? O que é incomensurável, a espécie humana ou um espécime? A espécie tem um valor que cada indivíduo porta em graus diversos ou cada indivíduo possui valor único apesar da espécie progredir em grau? Estas perguntas são produtos de um realismo das trocas que deve ser evitado se quisermos superar tais paradoxos especulativos. A incomensurabilidade e a comparabilidade de valores não podem pressupor a priori o valor de troca, pois prioridade só faz sentido quanto à forma dos juízos. Por exemplo, um consequencialista que não declare nenhum desvalor intrínseco às ações más, digamos “assassinar”, deverá assumir a previsão que matar 1 para salvar 2 é melhor (maximizável), mas esta suposição avaliativa de um “dever para com o melhor ou máximo” não é capaz de responder se em todos os casos de 1 para 2 matar é igualmente ruim, pois parece absurdo igualar “deixar morrer de morte natural” e “assassinar inocentes” para evitar outras mortes. Portanto, a dificuldade não está em ser deontologista ou consequencialista, mas em qual axiologia determina o tipo de normatividade em questão. O mesmo ato de assassinar pode ter v. instrumental negativo e v. contributivo positivo, e o v. transitivo para algum v. intrínseco esperado pode ser interpretado de diversas formas. Matar muitos assassinos para salvar muitos inocentes significa atribuir v. intrínseco à vingança ou v. instrumental aos assassinos? Como avaliamos a justiça e o direito neste caso? Estaríamos diminuindo seus valores ou admitindo o desvalor? Vemos que esta ambiguidade necessita ser explicitada: é preciso situar a teoria do valor tanto ao lado da teleologia e da deontologia quanto como sua fonte axiológica, pois neste caso os valores valem tanto como fonte como normas3. 1.5. Valor Inerente. É aquele que “x possui se sua percepção, vivência, experiência ou consciência for intrinsecamente valiosa”. Sobre este último problema indico meu artigo Introdução aos Elementos da Ética, in Revista Vias Reflexivas, Vol5, p. 54, disponível em: http://www.fmpsc.edu.br/revista/revista%20n%205%2016-10%20versao%202.pd 3
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Se o “ouvido musical” for intrinsecamente valioso, a música experenciada será inerentemente valiosa. Esta definição tem a vantagem de manter a distinção entre inerente e intrínseco e evitar uma concepção realista. Assim como v. transitivo é um caso de avaliação e também avalia todos os demais casos, incluindo o v. intrínseco, também o v. inerente é um juízo particular, mas decide se e como a valência de algo está para o sujeito-de-valor. Teremos: (i) dizer que a música é um portador de v. inerente é ao mesmo tempo afirmar que sou intrinsecamente sujeito-de-valor, e (ii) dizer que a música é portadora de v. intrínseco é decidir por sua intransitividade. É o fato da inerência e da transitividade terem dupla função que explica porque os cinco tipos de avaliações constroem um jogo avaliativo entre si. Quem avaliada, não se limita a avaliar portadores e suas propriedades, mas também avalia seus próprios juízos (se são ou não intransitivos e inerentes) e a si mesmo como sujeito-de-valor (se é digno ou não para julgar). É destes jogos avaliativos que nascem as tentativas de ordenar ou hierarquizar valores.
O valor de troca dos juízos avaliativos é um valor neutro? Os juízos de valor são avaliáveis entre si e, deste modo, são tópicos. Também permitem questionar os valores pressupostos nas teorias sobre valores, já que estas são usos, produções ou execuções. Primeiramente, (1) enunciados valorativos são diferentes de enunciados dialéticos. No enunciado predicativo clássico temos “S é P” tal que P atribui uma característica a S, e S é aquilo do qual tudo se predica e não pode ser predicado de nada. “José é alto” significa que “alto” é atributo de “José” sem que “José” possa ser atributo de “alto”, salvo contradição. No enunciado dialético a relação predicativa “S é P” é conversível sem contradição: se convertemos a afirmação “a liberdade é histórica” em “a história é libertária”, teremos duas teses convergentes não contraditórias e cada uma isoladamente contribui ao significado da outra, inerentes a alguma síntese. Nestes dois tipos de enunciados o importante é decidir se as funções de S e P são remissíveis ou conversíveis, tal que o primeiro é intrinsecamente remissivo (conceito pensável pela identidade de objeto) e o segundo inerentemente especulativo (conceito pensável apenas por 33
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diferença a outro conceito sem objetos). (2) O mesmo não ocorre em enunciados hermenêuticos, que lidam com circularidade ou totalidade aberta. Em “o livro não é pedra” temos uma negação extrínseca da totalidade; em “o livro não é o leitor” temos a negação da remissão; mas em “a lua não está cheia” a negação é da própria totalidade; e em “eu não estou morto” a negação é da possibilidade inerente. A hermenêutica tem a vantagem sobre a dialética de não partir da conversão ou remissão de predicados, chamando a totalidade e a possibilidade de pré-predicativos. Nos dois últimos exemplos, o “não” significa falta e não negação ou contradição. Assim, Habermas tem razão ao situar a pragmática do discurso no campo de um ideal histórico tanto inacabado quanto progressivo, pois os valores não são estáveis. Mas seria ainda preciso explicar porque o agir comunicativo é um valor estável, isto é, por que a totalidade não-fechada e a falta da verdade remissiva são valores básicos sustentados, e porque são separados de forma absoluta o v. instrumental e o valor comunicativo da razão? Se aceitarmos que os juízos de valor remetem a uma falta do tipo “a lua não está cheia”, então reduzimos todos os valores ao v. contributivo; se ao tipo “eu não estou morto”, então teríamos um monismo do v. inerente. Mas a hermenêutica pragmática tende a comparar “o livro não é o leitor” com “ninguém é igual a ninguém”, mas todos contam por um em relação ao valor neutro da comunicação, com o intuito de evitar uma normatividade nos valores. Ignorando a generalidade do princípio das unidades orgânica, se assume um valor neutro contra um possível v. instrumental (estratégico) do agir discursivo, mas não é evidente que a recusa do uso estratégico do discurso não admite seu v. instrumental normativo. Contudo, a Teoria da Ação Comunicativa não explicitou em que medida supôs o valor da língua como meio neutro de troca, absoluto em oposição ao agir estratégico e transitivo em relação ao direito de comunicação. O valor de troca admitido na pragmática da linguagem é considerado neutro quando se passa do uso estratégico para o uso normativo. A forte separação entre verdade e estratégia manteve algum v. absoluto em termos de v. neutro, ainda que no interior do consenso tenha salvado o intercambio comunicativo de confiança mútua do seu valor de uso (ou melhor, de execução. Além disso, (3) um enunciado avaliativo do tipo “José é melhor que João” ou simplesmente “José é bom” não é remissivo nem 34
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dialético, já que não adere a nenhuma lógica predicativa; e não é hermenêutico, porque as oposições entre José e João não exprimem contexto, falta ou incompletude passíveis de interpretação, mas conflito de valores. O agir comunicativo deveria também julgar o v. transitivo dos atos de fala, o que não significa descreve-los como valor de troca. A lua “transcende” a si mesma rumo a “lua cheia”, a sede rumo à saciedade, a ação rumo à felicidade ou o sexo rumo à reprodução, mas não como a própria falta rumo à aquisição, troca, compra, produção, realização, etc. Neste sentido, ciência econômica, dialética e hermenêutica implicam no mesmo prejuízo à axiologia: ignorar que o princípio das unidades orgânicas pode implicar tanto o v. intrínseco quanto o v. contributivo, transitivo e inerente, deixando apenas o v. instrumental na forma negativa “ser extrínseco” como interpretação de “não participar internamente da unidade orgânica”. Por isso tal princípio é válido em geral e não apenas para o v. intrínseco. O valor nutricional da água é medido segundo suas propriedades avaliáveis, como em “esta água é rica em sais e minerais”, mas dizer “esta água é boa para beber” não é um juízo limitado ao portador-de-valor ou suas propriedades econômicas, porque “ser rico” também está sendo avaliado. Não se pode isolar valor de produto e valor de uso e não se pode reduzir valor de produção e valor de execução àqueles, este último a localização de nossos juízos de valor (Dworkin). Tais reducionismos não significam outra coisa senão a pretensão de afirmar que valores materiais (portadores e propriedades) são valores neutros e estáveis. Os braços da Vênus de Milo faltam e ainda assim são avaliados esteticamente, mas não é esta falta ou soma que lhe fornece alto preço ou apreço. O juízo de valor não se dirige aqui à unidade de um objeto, de um conceito ou de um conjunto pleno. O problema não é apenas de identidade e diferença. Sem dúvida os braços faltantes na Vênus de Milo “agregam” valor, mas não pela falta mesma, mas pela raridade ou preciosidade que por meio da falta mais se executou que produziu. Neste caso o valor se exprime em termos de “mais-além” ou “mais-aquém”, a riqueza da obra não é mensurável apenas pelas propriedades presentes no portador. Por isso o termo valor significa tanto “rico” quanto “raro”. A arte contemporânea dá valor ao acaso, casual e ocasional por perceber que há valor na raridade e não só na riqueza. Menos ainda seria a comunicação ou nossos juízos de valor um valor de 35
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uso neutro. Por isso se falou em “além do princípio do prazer”, “super-homem”, “mais-valia”, “normatividade contrafactual”, “maximização”, etc. O mais-além da produção da Vênus é a sua execução: posiciona o executor, a execução do portador e a mim mesmo. E não depende de mim aceitar ou não se “Vênus de Milo é intrinsecamente bela”: é eu como sujeito-de-valor que deverá se posicionar em situação suficiente para avaliá-la. O valor não é o faltante, mas o melhor ou superior que falta para um juízo incondicionado, ainda que não realista ou objetivista. O valor não é uma coerção externa ou imperativo, mas a presença de um ainda-não-realizado que nos posiciona à uma realização. E não é o valor que é posicionado frente à consciência, mas o próprio sujeito-de-valor diante do valor. Se o valor fosse objeto bastaria conhecê-lo e não realizá-lo, e é por isso que a economia permanece insuficiente. O valor nunca se converte em tese nem necessariamente progride, não existe como conceito a priori da perfeição nem como fundamento do mundo, mas é o que se pode fazer existir no mundo, é o que se pode realizar. À alguém que afirme poder posicionar um novo valor nunca bastará perguntar “demonstre?”, mas sim “mostre?”, “realize?”, num pedido de execução de uma “não indiferença” que só depois produza admiração, convicção, estima preferência, etc. É desta forma que os valores têm força de juízo. É a existência do sujeito-de-valor ao lado do portadode-valor que evita tanto o realismo quanto o relativismo de valores, pois um valor é sempre a avaliação entre estes dois thópos. Enfim, (4) a matéria dos valores (ético, estético, religioso, econômico, etc.) não pode ser hierarquizada sem que isto signifique maior conflito ou tensões de valores. Nisso estamos de acordo com Habermas. Mas é contraditório supor um valor de troca ou de uso na comunicação que seja valor neutro normativo. Evitar hierarquizar atos de fala avaliativos (intrínseco, inerente, instrumental, contributivo, transitivo) ainda é um modo de idealismo e, em outros casos, totalitarismo ou reducionismo monista intuitivista. Podemos julgar que algo tem v. contributivo sem ter v. instrumental, v. inerente sem v. intrínseco, etc., e nossa hierarquia dependerá da eleição destes thópos avaliativos. A “objetividade” do valor de algo depende do sujeito-de-valor ser posicionado a partir de avaliações, por exemplo, que o músico erudito avalie a 9ª Sinfonia. Assim não damos razão ao relativista, porque a avaliação do melhor depende dos melhores; 36
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tampouco ao realista, pois melhores avaliações dependem tanto de portadores quando de sujeitos-de-valor; nem ao monista redutivista, já que um pluralismo de juízos é mais rico que um monismo de fundamento ou pluralismo material. Avaliar um portador é emitir um juízo de valor que acusa tanto valências neste quanto avaliações do sujeito-de-valor. Ao v. intrínseco de algo se pode somar cada uma destas valorações, mas a agregação de portadores e valências não podem somar v. intrínseco devido a possível transitividade. Isto significa que os valores não são primeiramente econômicos, mas tópicos: um juízo de valor põe valências no portador-de-valor ao mesmo tempo em que põe sua avaliação na condição de sujeito-de-valor. Deste modo a axiologia é definitivamente transparente: uma teoria dos valores expressa como compromisso de valores.
Conclusão Ao longo do Séc. XX a humanidade adquiriu uma espécie de fobia aos valores, cujas tentativas de superação foram a dialética materialista, a hermenêutica e a economia. Esta fobia produziu um afastamento dos valores e abriu duas perguntas: se há valores absolutos e se há valores superiores? O problema a ser afastado hoje é a antinomia entre valor absoluto e valor relativo, que se estende à discussão entre realistas e relativistas e contamina os juízos de valor intrínseco em pseudodistinções com valor de troca (economia) ou valor extrínseco (metafísica). A aparente complexidade do v. intrínseco apenas ocorre através de algum isolamento lógico, tendendo ao relativismo; a aparente separação e mútua-implicação entre valor absoluto e valor relativo conduz à dialética e à economia; a aparente intransitividade dos valores para contextos diversos leva às concepções hermenêuticas. Mas todas estas teorias confundem alótropos valorativos com as valências dos atos de avaliação. Se a tendência imperativa é sempre orientar-se ao melhor e evitar o pior, é o fetiche por um valor material estável e/ou neutro que cria aquelas anfibolias: quem é seduzido por este fetiche tende a igualar v. intrínseco e absoluto, quem o repugna admite o relativismo mais facilmente. Falamos em “valor de fetiche” em sentido forte: valor como objeto com propriedades materiais estáveis, que por isso permitiriam o poder de satisfação do indivíduo normal (muitas vezes em detrimento 37
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do poder de realização), e neutras, o que desresponsabiliza o sujeitode-valor em favor das propriedades intrínsecas absolutas dos portadores-de-valor. (A) O sinal da pluralidade dos valores é a transitividade entre valores diversos, mas a prova da decadência do valor é a redução ao modo de troca econômica: a redução da pluralidade de valores ao valor de troca transforma a pluralidade em multiplicação de valores e, com isso, termina por aceitar a desvaloração do “mundo dos valores”, pagando o preço de uma troca depreciativa. A Economia, ao assumir a liberalidade como valor incondicional, produz a falsificação de que todo indivíduo pode ser portador intrínseco do máximo valor e a utopia de que os valores são multiplicáveis de modo incomensurável e sem perdas. Esta metafísica da troca maximizada ou da incomensurabilidade infinita dos multiplicáveis é um valor que não questionou sequer minimamente as regras de juízos de valor. Isto serve de exemplo de como os juízos de valor avaliam tanto portadores quanto sujeitos-de-valor. O que se costuma chamar “dignidade” é o fato de apenas o sujeito-de-valor ser tanto portador-de-valor quanto fonte de juízos avaliativos, e é isto o que a Economia utópica corrompe. Não podemos aceitar nenhum principio de maximização dos multiplicáveis sem exigir de tal opinião a justificativa de onde retiram o valor atribuído à “maximização” e à “multiplicação”. Avaliar é comprometer tanto ao objeto quanto a sujeito, mas a solução não pode ser um resgate de valores nem sua livre transação ou conservadorismo do incomparável. Não precisamos de uma transvaloração de todos os valores ou de nova tábua de valores, mas reconhecer que as avaliações são elas mesmas avaliáveis segundo regras de discriminação de qualidades graduáveis e não por livre iniciativa silenciadora dos sujeitos-de-valor. É isto o que significa hierarquizar juízos sem hierarquizar valores materiais. (B) Afirmar que o valor é o maximizável, estimável, preferível ou desejável também é insuficiente. É conhecido o problema de saber se a tese utilitarista da maximização inclui o valor do dever ao princípio de utilidade ou somente o montante de investimento dos bens. Tudo o que é avaliado é também mensurado, no próprio momento que é posto, em unidades do “bom” (SMITH, 1988, p.17), mas que se inclua o desperdício e o próprio sujeito. Os conceitos de estimável, desejável, preferível e prazer maximizável costumam ser simplificados. Por exemplo, não se pode defender sem mais um 38
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valor utilitário da sexualidade (prazer entre interesses + reprodução) ou limitá-lo a uma compulsiva soma de prazer hedonista. Disso se segue dificuldades importantes para valorar gênero e orientação sexual em termos utilitaristas e todas as outras formas de economia do prazer, preferencia, estima ou desejo. Por isso Freud observou que repressão, sublimação, narcisismo e masoquismo são exemplos da irredutibilidade dos valores ao puramente econômico e utilitário, isto é, que há tanto o valor do prazer quanto prazer no valor e, mais-além, o conflito entre prazer e valor (FREUD, 1920, p.191). Neste sentido, que “é depreciativo se deixar reduzir aos valores materiais e de produção” é um juízo universalmente reconhecido, embora não o seu preço a pagar (“inconsciente”). Freud compreendeu a axiologia ao constatar a sexualidade como espécie de avaliação dos modos (mais que dos meios) de vinculação entre corpos não trocáveis sem perda, a sexualidade como nome para aquilo que não é útil nem devido, mas apreço apenas possível na perda. Sua teoria da transação sexual, apesar de valer-se de termos econômicos, foi também topológica, e por isso soube reconhecer indiretamente o sujeito-de-valor. (C) Do mesmo modo, postular um valor relacional ou valor de troca como valor de base social (conforme algumas interpretações do marxismo) não soluciona a dificuldade, pois permanece injustificado como se chegou a julgar o valor relacional como v. intrínseco em termos de circulação e consumo, produção e reprodução de capacidades ou poder. Mesmo o feminismo, nascido de uma resposta aos juízos de valor, esquece-se de esclarecer em sua meta-ética (DALY) se “masculino” também é categoria feminista ou pode ser pensado como produto do machismo em certos contextos; como uma lei de equivalência ou relação de igualdade e diferença é pressuposta como v. intrínseco; e por que juízos de valor sobre homens tem a forma de v. intrínseco e sobre mulheres o exclui (IRIGARAY, 1985). (4) Enfim, a hermenêutica tornou-se muito presente no cenário fóbico sobre os valores e representou o maior esforço para evitar a axiologia. Diversas éticas do discurso em grau infinito surgiram como ética do trânsito dos valores de verdade contra a dos valores fixos e hierárquicos. A coesão ou consenso dos grupos morais cedeu lugar a ética da metáfora (Derrida) ou da comunicação não estratégica (Habermas). Ao constatar que a linguagem não se limita a representar o mundo, mas também ordená-lo, reeditou-se o 39
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antigo conflito entre ético e estético. Por isso Derrida falou em jogo de conceito e metáfora, não afastando o elemento estratégico da linguagem. Compreendeu que todo discurso traz consigo elementos de outro, mudando justamente o valor, por isso jamais neutro, o que se deveria ao fato da linguagem ser ao mesmo tempo instituição de poder e oposição ao poder. Mas novamente as regras dos juízos de valor permaneceram intocadas.
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2. Que valor têm as minhas dúvidas? José Claudio Matos A dúvida é claramente um valor em ciência. Se o é também noutros campos, é uma questão em aberto e uma matéria incerta Richard Feynman
Introdução Escrevo este capítulo como um trabalho de filosofia dirigido aos leitores em geral, e não a um público seleto de especialistas. Meus colegas estudiosos da teoria dos valores e da epistemologia (ou teoria do conhecimento), provavelmente sentirão falta de uma formulação mais rigorosa em diversas partes do texto. Outros podem indagar sobre a falta de uma tese original, mas informo de saída que não foi com tal objetivo que preparei este ensaio. Faço aqui um exercício de exposição que liga algumas ideias filosóficas acerca do tema dos valores, com ideias acerca deste controverso fenômeno que é a dúvida. Não julgo que seria necessário um argumento para provar a validade da afirmação de que uma medida razoável de dúvida tem seu valor em qualquer situação de uso da inteligência, e ainda mais valor nas investigações e pesquisas sistemáticas. Mas, refletir pormenorizadamente sobre este ponto pode revelar mais alguns aspectos acerca da dúvida que, muitas vezes, passam despercebidos. O fato é que todos nós estamos constantemente experimentando dúvidas, mas nem sempre fazemos da própria dúvida o assunto de nossa reflexão cuidadosa e pormenorizada. Nossa atenção, em geral, se volta aos objetos de nosso interesse, e a dúvida é apenas o acompanhante de alguns pensamentos sobre tais objetos. Na presen43
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te ocasião, convido o leitor a pensar no que são suas dúvidas, e especialmente no que essas dúvidas podem se tornar, se forem tratadas com a adequada atenção e rigor, como partes de um processo mais amplo de investigação e aprendizado. A epígrafe do capítulo é de autoria de um grande cientista, e um conhecido disseminador da ciência: Richard Feynman. Os bons intérpretes já devem ter notado que ele chama o leitor à dúvida acerca do conteúdo de sua própria afirmação. Este convite sutil à dúvida, e esta indicação do valor da dúvida dentro e – talvez – fora da ciência expressa bem a intenção que espero realizar no presente trabalho. Na reflexão geral sobre valores, parece mais frequente que alguém atribua valor a coisas dotadas de plenitude, coisas que possam compor um repertório, orientar a ação e provocar mudanças em uma situação, na direção da satisfação de desejos e objetivos estabelecidos. Valorizar um aspecto de ausência, uma carência – como parece ser o caso com a dúvida - pode exigir um argumento um pouco mais elaborado, pois não é imediato o reconhecimento do valor de algo que é geralmente entendido como negação ou falta.
A corrente do ceticismo e o valor da dúvida na tradição Não é o objetivo principal aqui fazer uma reconstrução histórica completa da tradição filosófica que trata da dúvida, ainda mais porque há muitos estudos disponíveis acerca deste assunto. O objetivo deste ensaio é o de apresentar os termos nos quais uma atitude de valorização da dúvida na conduta a respeito do conhecimento pode ser defendida. Por isso, limitar-me-ei aqui a apresentar brevemente algumas ideias de pensadores cujo tratamento da dúvida pode exemplificar e reforçar a sua valorização, na direção em que meu discurso está tentando seguir. Há uma linha de pensamento bastante nítida na tradição que, dentro da história do pensamento, atribui algum valor à dúvida. Esta tradição tem suas origens na Antiguidade, com a versão clássica do pensamento conhecido como ceticismo. Sexto Empírico, em suas 44
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Hipotiposes Pirrônicas, faz uma exposição do pensamento de um dos fundadores desta corrente, o cético Pirro. Nesta obra, Sexto Empírico afirma que: Ceticismo é uma habilidade, ou atitude mental, que opõe aparências a julgamentos em qualquer situação, com o resultado de que, devido à equipolência de julgamentos e razões assim opostas, somos levados primeiramente a um estado de suspensão mental e então a um estado de ‘imperturbabilidade’ ou quietude (EMPIRICUS, 1976, p. 7).
Nesta passagem está expressa a formulação clássica do ceticismo. Esta filosofia contrapõe julgamentos diferentes acerca do mesmo tema, obtendo como resultado a suspensão (skepsis) da crença, ou do assentimento. O resultado esperado inicialmente pelo cético seria o fim da perturbação causada pelas disputas entre doutrinas contrárias. O oponente do cético, por causa disso, é o dogmático, aquele que afirma possuir o conhecimento, aquele que declara sua crença em alguma doutrina. Desde essa e outras manifestações na Antiguidade, o cético vem percorrendo os séculos como um personagem que se reveste de muitas variantes, até se apresentar em suas versões modernas. A adoção da dúvida por Descartes, em seu projeto de erigir os fundamentos e o método de busca do conhecimento sobre o pilar da razão é especialmente digna de menção. Descartes é reconhecido como um dos precursores da filosofia moderna, e sua obra é aceita como um marco importante na tradição. Ao narrar sua trajetória intelectual, na obra Discurso do Método, ele se considerava “enleado com tantas dúvidas e erros” (DESCARTES, 1987, p 30) por causa dos estudos teóricos, que manifesta sua insatisfação com o estudo das ciências, da filosofia, das letras e das artes e ofícios. Essa insatisfação se instala por causa das disputas, desacordos, e também diversos erros e falhas no corpo do conhecimento acumulado nas obras dos diversos autores. 45
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Descartes assume então o propósito de duvidar de tudo. Ele se propõe a duvidar até mesmo do testemunho dos seus próprios sentidos, a duvidar de seus pensamentos e representações mais familiares, supondo falso todo o seu conhecimento. Ele afirma que estava disposto a “rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida” (DESCARTES, 1987, p. 46). Este procedimento, sincero ou fingido, ficou conhecido na teoria do conhecimento como “dúvida hiperbólica”: uma desconfiança, uma suspensão do assentimento, uma atitude de incerteza que é levada às últimas consequências. O resultado que Descartes esperava com essa amplificação da dúvida é encontrar alguma coisa da qual não se poderia duvidar, alguma afirmação que precisaria ser aceita, tomada como certa, até mesmo para que a própria dúvida quanto a todo o resto fosse possível. Descartes reconhece que, mesmo duvidando de tudo, não podia duvidar de que ele mesmo era alguma coisa. Diz ele: “enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa” (DESCARTES, 1987, p. 46). Só um ser real e pensante pode ser origem e fonte de toda essa dúvida generalizada. Para Descartes, por esse procedimento, a dúvida torna-se um instrumento de busca do conhecimento. Seu valor é reconhecido na medida em que, pelo estabelecimento da dúvida, uma atitude de investigação e busca imediatamente se instala na mente do sujeito que pensa. Esta valorização se tornou conhecida, na leitura que a posteridade faz de Descartes, como “dúvida metódica”, a dúvida usada como instrumento na busca do conhecimento. Dificilmente se poderia considerar Descartes como um cético, já que suas conclusões implicam em um reconhecimento de fundamentos e de teorias bastante afirmativas, ao fim de sua investigação. Mas no pensamento teórico moderno, certamente é ele quem mais notoriamente tomou a dúvida como um valor a ser incorporado na vida intelectual – e talvez na vida prática – dos sujeitos que conhecem. Outro autor cuja relação com a dúvida é digna de menção é 46
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David Hume. Este pensador ganhou notoriedade como um cético – como autor de um ataque à razão e a seu alcance. A parte afirmativa de sua obra, sobretudo sua aplicação do método experimental a fim de desvendar princípios e regularidades na mente humana vem sendo descoberta mais recentemente pelos estudiosos. Hume, na última seção da sua Investigação sobre o Entendimento Humano, desenvolve um comentário geral acerca do ceticismo, procurando responder a alguns de seus desafios, por meio de um recurso aos poderes e princípios da natureza humana. Fundamentar a possibilidade do conhecimento e dos princípios práticos sobre princípios naturais é, aliás, um empreendimento que marca boa parte de suas intenções filosóficas. Segundo ele, “a natureza é demasiado forte diante dos princípios” (HUME, 1999, p. 206) e, por isso, não se pode manter honestamente a dúvida contra toda possibilidade de conhecimento e ação. Na terceira parte desta mesma seção, Hume propõe a adoção do que ele denomina ‘ceticismo mitigado’, ou filosofia ‘acadêmica’, por oposição ao que ele chama de ‘pirronismo’, ou ceticismo radical. A precisão histórica destes termos é discutível, mas o exame terminológico não prejudica a compreensão da ideia central do autor. O que importa é que Hume propõe o ceticismo mitigado, ou moderado, como uma forma de conter os excessos provocados no pensamento e na ação pelo dogmatismo, ou apego irrestrito às crenças e às paixões. Com esta recomendação, Hume impõe uma limitação razoável para o que se pode ou não duvidar, e recomenda a prática da dúvida - cética - como um ingrediente da vida investigativa e prática da pessoa sábia. Segundo ele: Existe, com efeito, um ceticismo mais mitigado, ou filosofia acadêmica, que pode ser tanto útil quanto duradouro e que pode ser em parte o resultado desse pirronismo, ou ceticismo excessivo, quando suas dúvidas indiscriminadas são em certa medida corrigidas pelo senso comum e a reflexão (p. 207). 47
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Assim argumentando, Hume atribui um valor à dúvida, embora não enalteça esta dúvida além dos justos limites daquilo que pode ser objeto da ação e da reflexão. Uma formulação humeana da dúvida como valor aparece mais especificada na passagem seguinte: “Há, em geral, um grau de dúvida, cautela e modéstia que, em todos os tipos de exame e decisão, sempre devem acompanhar o verdadeiro raciocinador” (p. 208). Examinar e decidir bem, portanto, exigem uma dose moderada de dúvida, sem a qual o pensamento e a ação se entregariam a uma atitude crédula ou dogmática em um extremo, e a uma atitude de ceticismo radical e paralisante, em outro. O ensinamento de Hume é que, se a dúvida é um valor, como todo valor precisa ser honrado e utilizado com moderação, sob pena de se recair em excessos. Na recente discussão da Teoria do Conhecimento – ou Epistemologia - o cético é aquele interlocutor que estabelece dúvidas dirigidas aos fundamentos sobre os quais se constrói nosso conhecimento. Encontramos ainda o termo “cético” sendo usado em um sentido mais específico para se referir àquele que duvida das narrativas cosmológicas, sobrenaturais e religiosas. O cético seria aquele que somente oferece seu crédito a afirmações provadas por evidência confiável e, mesmo assim, sempre em caráter provisório. Este último sentido de “cético” é relacionado ao mesmo tipo de mentalidade investigativa e experimental da ciência, e poderia ter como sinônimo a denominação de “crítico”. Desde as revoluções científicas que tiveram lugar do século XIX até os dias atuais, a dúvida, como um componente da boa prática investigativa, vem sendo promovida como parte de um conjunto de valores. Trata-se dos valores que se deveria ensinar e divulgar pela educação e pelos meios de comunicação, especialmente nas sociedades democráticas. A novidade desta promoção contemporânea da dúvida em relação ao ceticismo da tradição está em que o cético é geralmente visto como o agente de um ataque ao conhecimento e seus fundamentos, seja em grau mais extremo ou mais moderado. 48
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Roderick Chisholm, em seu livro Theory of Knowledge, descreve o cético da seguinte forma: Existem filósofos que duvidam se há algo que podemos conhecer. Eles também duvidam, portanto, se é possível para nós descobrir se há algo que podemos conhecer. Tais filósofos – podemos chamá-los de ‘filósofos céticos’ – podem assim parecer estar apresentando um desafio à epistemologia tradicional (CHISHOLM, 1989, p. 2).
Os proponentes da dúvida no contexto da cientificidade e da participação democrática se posicionam um pouco diferentemente, pois seu ataque é contra a ignorância, o comodismo intelectual, em uma atitude de defesa vigorosa da possibilidade de investigação e de procura pelo conhecimento, conforme se verá adiante.
A dúvida como sentimento e como atitude Levando em conta esse comentário acerca dos defensores do valor da dúvida, e a forma como ela vem sendo representada na tradição, a dúvida pode também pode ser entendida como: 1. Um estado mental de hesitação e indecisão, oposto ao da crença. Aqui talvez a dúvida fosse mais bem descrita como um sentimento. Neste sentido, a dúvida não é proposital, ela é compulsória. Quando alguém está diante de uma situação para a qual não pode oferecer uma resposta, seu comportamento não consegue seguir um rumo definido. A ação, como resposta a algum problema, seja prático ou intelectual, fica suspensa. Este estado de indecisão é o que se chama de dúvida (o próprio radical da palavra ilustra isso com sua referência a ‘dois’ (duo), dois caminhos possíveis de conclusão, entre os quais o indivíduo hesita e não segue, pelo menos momentaneamente, nem por um nem por outro). A dúvida é, ainda, um sen49
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timento que é o oposto de outro sentimento, a crença. Sabidamente, fazer uma teoria da dúvida a par com uma teoria correspondente da crença resultaria em uma compreensão mais completa do conjunto de fenômenos psíquicos ou epistêmicos a elas relacionado. Além disso, a dúvida é também entendida como: 2. Uma atitude, um procedimento de indagação e questionamento. A dúvida se manifesta pela expressão de uma situação de pergunta. Aqui se pode conceber a dúvida como a situação de quem não se julga em condições de oferecer uma resposta afirmativa – ou negativa - a uma questão ou problema. Esta posição, em grande medida, se identifica com a posição de quem ainda está em busca de uma resposta, ou dos elementos que justifiquem ou fundamentem determinada resposta. Por isso, a posição de quem duvida se identifica com a posição de quem investiga. Neste sentido, em que a dúvida é uma atitude, ela é uma posição proposital em que o agente se declara estar. A consequência disso é a ideia de que prosseguir em dúvida é prosseguir na investigação ou, em outras palavras, no exame de determinado problema ou assunto, protelando o oferecimento e a adesão a uma resposta para o momento em que houver descoberta de mais argumentos, ou evidências que assegurem a sustentação de uma afirmação definida. Sem desejar explorar a distinção entre dúvida como sentimento e dúvida como atitude mais do que o momento permite, creio que seria possível examinar as condições de uma defesa da dúvida como um valor. Uma espécie de valor metodológico ou valor prático, que pode ser promovido e celebrado pelos indivíduos e pelas comunidades, dentro de contextos de aprendizagem e investigação. E, a partir disso, pode-se ensaiar algumas consequências previsíveis que a valorização da dúvida poderia acarretar no crescimento da qualidade das atividades que se pratica nestes contextos. No primeiro caso, o da dúvida como estado mental, ela pode ser considerada inevitável, e até indesejável. Portanto, seria difícil 50
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erigir a dúvida como um valor, pelo menos na forma de um valor prático a ser promovido pela ação. No caso da dúvida considerada ‘científica’ ou ‘razoável’ - por se tratar de uma atitude - mais ao estilo do resultado de alguma espécie de escolha, é mais fácil defender seu valor. A dúvida é vista como parte do repertório do pesquisador. Ela faria parte do conjunto de atividades aconselháveis em função do objetivo de prolongar ou refinar o raciocínio e a investigação. Fica mais curto o caminho para erigir a dúvida como algo de valor, ou como ela-mesma um valor na conduta de seus praticantes, se for possível considerar a dúvida como algo - pelo menos em parte - controlável pelo agente. Na teoria do conhecimento, como acima afirmei, o estado de dúvida e hesitação está profundamente relacionado com o ceticismo – uma corrente filosófica que se caracteriza por admitir e abraçar a dúvida, e por fazer da dúvida o centro de seus movimentos argumentativos. Já a dúvida como atitude ou procedimento questionador vem sendo identificada com o método experimental – de formulação de hipóteses e teste subsequente – e por isso, a dúvida ‘metódica’ pode ser encontrada nas raízes do método científico. A proposta que muito modestamente se faz neste capítulo é que a dúvida não tem que deixar de ser uma coisa para ser a outra, ou seja, não tem que deixar de satisfazer as condições de uma forma de ser descrita, para satisfazer a outra. Mais que isso, a via pela qual o aspecto inevitável e o aspecto proposital da dúvida se reúnem é a via do valor. Portanto, propõe-se aqui que a consideração mais sofisticada da dúvida é aquela pela qual ela é promovida como uma virtude em certos contextos de discussão e investigação, e também em que ela é destacada como um traço essencial de nossas vidas mentais e de nossos processos cognitivos mais essenciais. Estimular a dúvida como atitude só é possível se o processo de aprendizagem dessa atitude partir da possibilidade de o agente reconhecer em si mesmo esta dúvida na forma de um sentimento. Este sentimento é estimulado pelas condições em que o indivíduo se encontra, diante de duas 51
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ou mais possibilidades de se comportar frente a um problema. Então, como um elemento inseparável da dúvida, está a capacidade de reconhecer e formular em termos claros uma situação problemática, seja na conduta intelectual, seja na conduta prática. Valorização pragmatista e naturalista da dúvida Charles Peirce, conhecido como um dos fundadores da filosofia pragmatista, dá um tratamento muito interessante ao estado de dúvida, tratando-a como um fenômeno natural. Peirce descreve sua teoria em um famoso par de artigos intitulados respectivamente “A fixação da crença” e “Como tornar nossas ideias claras”. Estes artigos são uma contribuição fundante à corrente filosófica do pragmatismo, extremamente influente no pensamento contemporâneo e que procurou alinhar a reflexão filosófica com as conquistas e avanços das ciências. Afirma Peirce que o objetivo final de qualquer investigação é a superação da insatisfação da dúvida, e o estabelecimento do estado satisfatório e confortável da crença. Em suas palavras: A irritação da dúvida causa um esforço para atingir o estado de crença. Eu denominarei este esforço investigação, mesmo que se possa admitir que esta é algumas vezes uma designação não muito apropriada (PEIRCE, 1980, p 99).
Peirce descreve a dúvida como um sentimento que, por sua condição incômoda, inclina a mente a buscar o estado cômodo da crença, pelo processo de investigação. Ele acrescenta que qualquer pergunta ou questionamento que se faça em uma discussão é inútil e artificial depois que alguém já fixou sua crença. O mero ato de perguntar, para ele, não constitui essencialmente aquilo a que chamamos “investigação”. Este aspecto naturalista de sua visão acerca da dúvida e 52
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da crença claramente se baseia na concepção da dúvida como um sentimento que aparece na mente do sujeito, diante de possibilidades ou alegações de conhecimento. A saída que Peirce encontra para o problema de como estabelecer a crença e superar a dúvida é muito engenhosa, ela tem a ver principalmente com os métodos ou procedimentos que alguém emprega na condução da investigação. O sentimento natural, seja de dúvida, seja de crença não poderia ser evitado e nem produzido sob controle voluntário do sujeito que conhece. Mas os métodos de raciocinar e considerar as informações disponíveis variam muito em sua relação com a mente e com as coisas. Peirce insiste na procura por um método para conduzir a investigação e, segundo sua exigência “o método deve ser tal que a conclusão final de todos os homens seja a mesma, ou venha a ser a mesma se a investigação fosse suficientemente persistente. Assim é o método da ciência (PEIRCE, 1980, p. 108). Dos métodos de passar da dúvida à crença, aquele que Peirce considera mais completo e confiável é o método científico ou experimental. E de todos eles, este é o método de fixação da crença em que a própria dúvida, sua oposta, desempenha o maior papel. John Dewey, alguns anos mais tarde, propõe uma investigação acerca das formas de pensamento, com o objetivo de fazer uma descrição dos hábitos e condutas intelectuais mais eficazes, que possam ser alvo da ação educacional. Em seu livro Como pensamos, Dewey parte de alguns pressupostos do pragmatismo para formular uma teoria sobre como aproveitar tendências naturais para aperfeiçoar nossos hábitos de conduzir o pensamento. Sua proposta, então, envolve o fato de que, mesmo sendo um processo natural, o pensamento pode ser controlado e bons hábitos de pensamento poderiam e deveriam ser ensinados às pessoas. Dewey advoga o que ele chama de “pensamento reflexivo”, aquele tipo de pensamento que parte de evidências e razões a fim de obter uma conclusão confiável. Assim ele formula sua definição: 53
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O pensamento reflexivo faz um ativo, prolongado e cuidadoso exame de toda crença ou espécie hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz dos argumentos que a apoiam e das conclusões a que chega (Dewey, 1979, p.6, ênfase no original).
Sem admitir isso expressamente, Dewey toma como fundamento a teoria da investigação de Peirce e afirma, de modo muito similar a este que o pensamento, na medida em que não é mera representação ou fantasia, se constitui do processo de passagem da dúvida para a crença. “A necessidade da solução de uma dúvida é o fator básico e orientador em todo o mecanismo de reflexão” (Dewey, 1979, p.11, ênfase no original). Dewey deixa claro, aqui, que o problema do conhecimento confiável é justamente o método pelo qual a crença é obtida como solução, ou dissolução da dúvida anterior. Segundo ambos os estudiosos, o pensamento reflexivo pode ser aprendido e aprimorado por se tratar de um hábito, ou conjunto de hábitos. Além disso, a investigação, ou busca de novos conhecimentos e informações, se manifesta no indivíduo em termos da passagem do estado de dúvida para o estado de crença. Também é comum em ambos a admissão de que os melhores hábitos de pensamento são característicos da cientificidade. Dewey assume que o pensamento reflexivo se processa nos moldes do método científico. Na verdade, o método científico é considerado por ele como o maior exemplo de disciplina e controle intelectual que se tem à disposição. Em seu livro Experiência e Educação, ele formula esta ideia nos seguintes termos: O método científico provê um modelo operante e eficaz do modo pelo qual e das consequências sob as quais podemos utilizar experiências para delas extrairmos luzes e conhecimentos que nos guiem para frente (DEWEY, 1976, p. 93). 54
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E tal método – investigativo por excelência – envolve uma consideração específica do estado da dúvida. Assim, do ponto de partida naturalista, comungado com Peirce, Dewey extrai uma conclusão um pouco mais ousada. Para Dewey o pensamento reflexivo depende do prolongamento do estado de dúvida: “Manter o estado de dúvida e conduzir a investigação sistemática e prolongada – esses são os elementos essenciais do pensamento” (DEWEY, 1979, p. 13). Aprender a pensar reflexivamente é portanto, aprender a conviver e tirar proveito da situação de suspense, indecisão e desconforto, causada pela dúvida.
Compatibilidade do aspecto sentimental e deliberado da dúvida O que se observa na modernidade, desde o famoso procedimento de dúvida hiperbólica de Descartes, passando pelo ceticismo mitigado de David Hume, é uma oscilação entre a preferência pelo tratamento da dúvida nos termos de sentimento, e a preferência por tratá-la em termos de atitude. A superação desta oscilação é a ideia de que os aspectos de sentimento e de atitude da dúvida podem ser compatibilizados. A dúvida tanto poderia ser um fenômeno ‘natural’, como um ‘artifício’ cujo valor é medido em termos de sua fertilidade para fomentar investigações relevantes. O valor da dúvida é, portanto, o de provocar o interesse e o envolvimento do indivíduo na busca de solução ou resposta para problemas que ele assume ativamente para si. A própria atitude de formular, pelo uso de uma linguagem clara, qual seja o problema em questão, já denota este envolvimento. A dúvida é um valor que merece ser honrado em virtude de sua fertilidade, sob pelo menos dois aspectos: O primeiro aspecto é individual, uma vez que, conforme vem sendo explicitado, duvidar fortalece a atitude de investigação e de aprendizagem continuada, acerca de qualquer assunto teórico ou prático. A dúvida, associada aos hábitos do pensamento crítico, estimula a busca de evidências e a consideração 55
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de diferentes pontos de vista. E isto conduz ao segundo aspecto, o valor público e social da dúvida. Por meio da formulação rigorosa das questões problemáticas, a fim de que sejam conhecidas e examinadas por outros, por meio da defesa argumentativa de opiniões e concepções diferentes, a dúvida inspira a discussão racional e a crítica, impedindo a disseminação de ideias e condutas destituídas de evidência consistente. Outro argumento a favor do valor da dúvida pode ser encontrado na profunda recusa e negação que levantam contra ela todas as doutrinas e correntes autoritárias de pensamento. A perseguição aos céticos e críticos, a censura a ideias divergentes, a proibição do questionamento e do livre intercâmbio de ideias, seja na ciência, na política, nos costumes, na arte e especialmente na religião, são um reconhecimento do valor da dúvida. As hierarquias se baseiam em autoridades. Seja autoridades caracterizadas pelo saber revelado, pelo poder absoluto, ou pelo apelo emocional. Quando a dúvida é estimulada nas comunidades onde prevalecem hierarquias deste tipo, naturalmente o poder destas autoridades decai, em função do intercâmbio de ideias e do avanço da investigação. Interessante perceber como as doutrinas mais conservadoras e autoritárias reforçam sua própria autoridade denegrindo a dúvida como uma fraqueza ou um vício, que deve ser extirpado quando possível, e escondido no fundo da mente quando inevitável. Inúmeras gerações de jovens atormentaram a si mesmos achando que havia algo errado com suas mentes e com seus sentimentos, porque a forma vivaz e interessada com que abordavam os assuntos de seu tempo os enchia de dúvidas acerca de doutrinas autoritariamente impostas.
A dúvida e a formação da atitude científica Um estímulo à dúvida, como parte de um conjunto abrangente de valores relacionados ao conhecimento e sua busca, passa próximo da caracterização ampla da cientificidade. Muitos autores seguem nessa direção, além destes que aqui vem sendo discutidos. 56
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Um dos maiores divulgadores da atitude científica e de seu acesso por todas as pessoas, mesmo as não especialistas, foi o astrônomo Carl Sagan. Em diversos artigos, livros, entrevistas, conferências, ao longo de toda a sua carreira, Sagan empreendeu um esforço para mostrar que o crescimento do conhecimento especializado e seus efeitos tecnológicos pode ser arriscado e até perigoso, se as pessoas em geral não forem educadas para empregar a dúvida como filtro na formação de opiniões. Segundo Sagan: “A ideia da aplicação democrática do ceticismo é que todos deveriam ter as ferramentas essenciais para avaliar efetiva e construtivamente as alegações de quem se diz possuidor do conhecimento” (SAGAN, 1997, p. 74). Sagan faz uso do termo “ceticismo” para se referir a esta atitude criteriosa e vigilante em relação às alegações de conhecimento. Sagan não se refere ao ceticismo radical criticado, por exemplo, por Hume, que vai contra os próprios fundamentos do conhecimento, questionando a possibilidade de alguém conhecer com segurança alguma coisa. Ceticismo, para Sagan, é a atitude de quem só aceita uma nova crença ou opinião, se esta vier acompanhada de razões ou evidências. “Não é preciso um diploma de nível superior para conhecer a fundo os princípios do ceticismo” (Sagan, 1997, p. 74). Além disso, ceticismo é ainda a atitude de reconhecer que nosso conhecimento, especialmente o conhecimento com o qual lidam as ciências, é sempre acompanhado de uma margem de dúvida ou erro, que desencoraja a certeza absoluta e a crença desenfreada. A recomendação de Sagan, em obras como seu livro O mundo assombrado pelos demônios – A ciência vista como uma vela no escuro é por um “ceticismo mais vigoroso e intransigente, porque a imensa maioria das ideias está simplesmente errada, e a única maneira de separar o joio do trigo é pela análise e experiência críticas” (SAGAN, 1997, p. 261). Sagan argumenta em favor de que todas as pessoas se habituem a manter uma atitude crítica e investigativa, valorizando a formulação de problemas e a escuta de diferentes pon57
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tos de vista sobre os assuntos teóricos e práticos: valorizando, por consequência, a atitude dubitativa. As pessoas estão mais acostumadas, pela própria espécie de vida social que levam, a expressar certezas, a emitir crenças ou “opiniões”. Caracterizar estados de dúvida e incerteza requer um aparato mais amplo de terminologia e interpretação. Este aparato geralmente é identificado com o raciocínio ou método científico, e nesta direção se expressam diversos estudiosos do tema, como o exemplo dos pragmatistas americanos deve ter ilustrado bem. Em uma conferência proferida na universidade de Oxford, organizada pela Anistia Internacional, o filósofo Daniel Dennett apresenta a cientificidade nestes mesmos termos, como uma valorização consciente da dúvida. Segundo ele, a necessidade da verdade é um atributo que o ser humano compartilha com todos os seres vivos. Porém, a capacidade de fazer uso da dúvida para investigar o mundo e nos aproximar da verdade é exclusivo do ser humano: “Só nós podemos ser arruinados pela dúvida e só nós fomos impelidos por essa inquietação epistêmica a procurar uma cura: melhores métodos de procurar a verdade” (DENNETT, 1997, p. 2). Dennet concebe a dúvida como um produto da evolução das nossas mentes e da linguagem que usamos no processo social e mental de comunicação. Ao afirmar: “Somos a espécie que descobriu a dúvida” (DENNETT, 1997, p. 2), Dennett unifica, pelo menos em certo sentido, o aspecto de sentimento natural e o aspecto de atitude proposital da dúvida, sob o pano de fundo da evolução biológica e cultural. Além disso, Dennett oferece uma formulação compreensível da cientificidade, que está em consonância com a compreensão da dúvida como um valor. Na mesma medida em que critica uma aceitação sem restrição dos resultados e da autoridade da ciência, Dennett também critica o que ele chama de “ceticismo pós-modernista acerca da verdade” (DENNETT, 1997, p. 8). Ele se refere à ideia recente de que as discussões e polêmicas teóricas são expressões de desejos, interesses e adesão a narrativas acerca do mundo, 58
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uma espécie de jogo retórico que não poderia ser fundamentado definitivamente na realidade objetiva. Interessante reparar que Dennett chama a isso de ceticismo, entendido como a atitude de duvidar de que conhecemos realmente o que alegamos conhecer. O que é triste nisso tudo é que em alguns círculos intelectuais, habitados por alguns de nossos pensadores mais avançados nas artes e nas humanidades, esta atitude passa por ser uma sofisticada apreciação da futilidade da demonstração e da relatividade de todas as afirmações de conhecimento (DENNETT, 1997, p. 7).
O tipo de dúvida que Dennett valoriza em sua argumentação não é a dúvida destruidora da possibilidade de conhecimento e reflexão objetiva, é bem o contrário. Dennett advoga a dúvida como um valor no procedimento de busca pelo conhecimento seguro, como um mecanismo de exame, seleção e sofisticação das respostas que se candidatam a fazer parte do corpo de nosso conhecimento. A dúvida possui valor por se tratar de um dos principais “instrumentos científicos de procura da verdade” (DENNETT, 1997, p. 11). E com este ponto de vista Dennett se alinha a toda a tradição que vem sendo apresentada neste ensaio. Dennett reafirma, em anos recentes, a necessidade de promover e fortalecer a capacidade das pessoas - especialmente as que se envolvem com a ciência – para lidar de forma competente com suas próprias dúvidas e as de outras pessoas.
Conclusão Sem desejar exagerar na multiplicação de pontos de vista em torno do mesmo assunto, poder-se-ia finalmente dizer que, sendo um valor amplamente reconhecido, a dúvida é melhor promovida quando sua aprendizagem resulta na formação de um hábito. Tratase justamente o hábito de investigar ou indagar, cuja prontidão para 59
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se manifestar é proveniente da percepção nítida pelo indivíduo, do sentimento de hesitação e de insatisfação diante de qualquer resposta para a qual não se ofereça suficiente evidência. Isso se torna mais claro quando se pensa na educação, ou formação da atitude investigativa, por meio do estímulo à dúvida. Tratar-se ia de um processo de educação da sensibilidade, quase ao estilo que a educação da apreciação estética propõe. Pode ser ainda descrito como um processo semelhante à educação moral, que tem o objetivo de fortalecer pelo estímulo as atitudes desejáveis ou convenientes, e evitar as atitudes perniciosas. Claro está que mesmo os métodos de pesquisa e investigação são hábitos deste tipo. A dúvida se torna oportunidade de avanço e de aprimoramento do conhecimento quando o sentimento acompanha a atitude, sendo estimulado nas ocasiões e nos limites em que produz as mais desejáveis consequências. O indivíduo precisa perceber conscientemente que há ocasião em sua experiência para que ele se encontre em dúvida. E isso em grande parte envolve o aprendizado da “formulação”, ou seja, o aprendizado da atitude de conceber seus sentimentos e estados mentais como passíveis de ser descritos e comunicados. Isso, por sua vez, exige o aprendizado de um uso dubitativo ou conjetural da própria linguagem – este uso é bem mais sofisticado do que o uso afirmativo ou assertivo, ao qual a maioria das pessoas está bem mais acostumada.
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3. O mal radical em Kant e Freud Kelly de Fátima Castilho Bárbara Valle
A preocupação central da filosofia sempre foi a tradução de fatos em conceitos, em proposições que incorporavam e davam forma a uma visão de mundo. As situações que ganham destaque ao olhas são justamente aquelas que se contrapunham àquilo que chamamos normalidade das coisas, ou simplesmente, que rompem com a naturalidade dos fatos. Fatos que nos fazem repensar nossas categorias morais, pelas quais pensamos o mundo nos causam uma espécie de atordoamento. Entretanto, conforme os gregos pensavam, podemos tomar esse “espanto” e esse impacto como a ocasião de questionamento de nosso pensamento do mundo. Isso era o filosofar para os gregos, o questionamento dos conceitos pelos quais abordamos as coisas, dos juízos que usamos para dizer que algumas coisas são “boas” e outras são “más” e do modo como dizemos que as coisas existem. Vários fatos aconteceram nas últimas décadas que nos fazem repensar e indagar sobre a nossa existência e o que somos. O mal é um mistério, um enigma para o pensamento. Diante do envelhecimento, do sofrimento ou da morte, das catástrofes naturais e todas as injustiças da existência, pode-se apenas formular a questão de Jó: Por quê? Diante de outro tipo de mal, o mal moral, o mal humano, a famosa questão acerca da Segunda Guerra Mundial – como puderam fazer isso? – mostra um pensamento que parece parar, como se encontrasse diante de si um muro intransponível. Entre a banalidade, a normalidade e a demência de sua inventividade, pode o mal ser caracterizado? Qual a origem do mal – unde malum? Será Kant, através da sua filosofia capaz de responder esta imemorial questão? 63
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O mal, quando se exprime em pleno âmago da civilização, chama-se barbárie. O ódio socializado é um ódio neutro, eticamente justificado, normalizado. A construção social do mal inclui também uma construção ideológica – pela ciência, pela biologia e a medicina – como corpo de ideias e como autoridade, pela religião e a ética, quando são os suportes do fanatismo, para fundar a política do mal organizado, ou totalitarismo. Do mesmo modo, o mal tornado norma contradiz toda a ideia de empatia. A piedade quase animal sentida em presença do sofrimento é inoperante em face da pregnância do mal humano. Em face do mal assim descrito, coloca-se o problema saber se estamos diante de um mal que faz parte da natureza humana, fato primordial, fundador da relação com outrem, ou, pelo, contrário, um fato circunstancial a mais. Em outros termos, unde malum – qual a origem do mal? A filosofia de Kant, ao nível mesmo de explicitação do conceito de razão prática, deixa transparecer um pressuposto concernente à natureza humana enquanto tal. Logo, a questão sobre a significação do homem é aquela em que se resume a filosofia inteira também no sentido de um argumento que, operando ao modo de uma pressuposição, refere-se ao que é o homem. A argumentação kantiana do mal radical é, sob esta ótica, particularmente esclarecedora, pois ela permite lançar luz sobre este caso limite da reflexão da razão sobre si mesma assim que ela enfrenta o problema, propriamente fundamental, de suas relações com uma ação humana cuja meta consiste em uma livre transgressão da liberdade, isto é, uma perversão inteligível da lei moral. O conceito de mal radical e a hipótese rejeitada por Kant da existência de uma vontade maligna vão ser a ocasião de uma explicação simultânea do que é a natureza moral do homem em si mesma e uma implosão no sem-fundo de uma natureza humana voltada também para o mal. Entretanto Freud, à luz da psicanálise e do conceito de pulsão de morte nos aponta a possibilidade da existência de uma destrutividade autônoma no homem e consequentemente a aceitação da tese do mal radical rejeitada por Kant. 64
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O bom, o bem e a boa vontade em Kant A palavra “bom” pode ser empregada de várias maneiras, uma delas diz respeito a uma escolha, não de uma resposta-sim-ou -não, como quando digo “estou bem”. Trata-se aqui de uma escala, de “melhor” ou “pior”. Assim quando a palavra “boa” é empregada objetivamente, de acordo com uma escala de excelência: o melhor é o que é digno de ser preferido de modo fundamentado. Nesse caso “bom” a palavra bom é uma palavra para a excelência objetiva; que o que é digno de preferência, possui fundamentos objetivos para preferi-lo (TUGENDHAT, 1996). Entretanto sob que condições pode-se dizer que o uso da palavra mal está contido no uso da palavra bem? Ela está contida na medida em que é definida em termos negativos em função de determinados empregos da palavra bem, de tal maneira que quando dizemos que algo seja bom dizemos implicitamente que o contrário é mau. Não vamos nos adentrar nas questões gramaticais. Pois, a concepção kantiana não é relacional e sim moral, ancorada na noção de dever, e pode ser formalmente provada (ROSENFIELD, 2003). Seria pertinente lembrarmos aqui brevemente como Kant explicita os conceitos do bom, do bem e da boa vontade na sua teoria. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant busca o fundamento para o bom absoluto, o “bom sem limitação”. Já na primeira seção conclui que nada pode ser considerado como esse bom e não ser “boa vontade”. O bom absoluto despreza quaisquer fins particulares ou substantivos, não é um conteúdo da vontade e é puramente formal. A vontade boa é irrestritamente boa tão só pelo querer, independente daquilo que promove e realiza. Segundo Kant, se alguém é bom ou mal depende se a vontade dele é boa ou má, e ter uma vontade boa é adequar a pessoa à “máximas” ou princípios práticos para o que ele chama de “princípio da autonomia”. O que sugere, é que sentimentos ou temperamentos não podem produzir o comportamento bom. Há algo incerto sobre impulsos benevolentes, e sobre o bem na natureza humana. Essas 65
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coisas não podem ser substitutas da vontade boa (SORREL, 1987). A autonomia da vontade indica justamente uma vontade que dá a si mesma, a priori, um caráter que é seu primeiro agir. Todo agente age segundo um caráter que ele necessariamente tem que dar a si enquanto agente; seu caráter inteligível é o que tem de fazer de si para que seja um agente, cuja condição de possibilidade reside precisamente na autodeterminação. Nesta análise do caráter da vontade deu para si em relação ao poder determinar-se, Kant elabora sua controvertida doutrina do caráter do mal radical.
A tese kantiana do mal radical A discussão sobre o mal em Kant variou em diferentes etapas de sua carreira, mas o seu interesse pela conexão entre o mal e a vontade humana se manteve constante. Garcia-Roza aponta que Kant em A religião dentro dos limites da simples razão (1793), vai situar a sua tese do mal radical fora dos limites de uma teodiceia. Em um texto pré-crítico Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandezas negativas (1763), Kant afirmava que o mal, assim como o vício, não é apenas uma ausência do bem, não é apenas um aspecto uma espécie de resistência, privação ao bem, como algo que tem uma positividade, na qual a sua fonte é a nossa vontade e ligado à liberdade do homem (GARCIA-ROZA , 1990). Entretanto para Zingano (1989), o ponto central, e que Kant apresenta no texto A religião dentro dos limites da simples razão é que, para um pensamento da autonomia, pôr o mal (moral) na sensibilidade é muito pouco, pois justamente haveria então uma autonomia que não seria, a não ser às vezes, autônoma e, por conseguinte, livre. Ao refletir agora sobre a vontade segundo seu caráter, encontrará o motivo dessa retração até aqui misteriosa na decisão inteligível do homem em agir segundo o princípio do amor-próprio e não segundo a abertura a outrem ordenada na lei moral. Como se existisse uma “razão, que libera da lei moral, mas ao mesmo tempo 66
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maligna (uma vontade absolutamente maligna)” (KANT, 1980). Na verdade, segundo Rosenfield, Kant deve refutar a hipótese de uma vontade maligna se a colocar sob o signo de uma oposição lógica no sentido em que ele escreve que uma tal hipótese é impossível, dado que a oposição da liberdade consigo mesma seria logicamente contraditória. Ora, se nós considerarmos o conceito de uma vontade maligna sob o mundo de uma oposição real (ROSENFIELD, 1988), o que seria contraditório de um ponto de vista lógico não o seria uma perspectiva real, pois uma oposição real desdobra-se em contradições. Mas o problema que Kant teria de ter enfrentado para que uma tal oposição se transforme em oposição real era o de chegar a um conceito de natureza humana que seria, em si, indeterminado, o que não podia admitir. A propensão do homem para o mal é denominada de mal radical. Surge a partir de então, para Kant, o outro lado dessa retração (de agir segundo o amor-próprio): a maldade como fundamento objetivo do agir. Nesta análise do caráter que a vontade deu para si em relação ao saber determina-se, Kant elabora sua controvertida doutrina do mal radical, radikales Böse, nesse sentido o mal é radical porque corrompe o fundamento de todas as máximas; ao mesmo tempo também, como propensão natural, não pode ser extirpado por forças humanas; porque não poderia ter lugar senão por intermédio de máximas boas, o que não se pode produzir quando o fundamento subjetivo supremo de todas as máximas é pressuposto como corrompido; da mesma forma é necessário poder dominá-lo porque se encontra no homem como ente que age livremente(KANT, 1980).
Muito criticada, a doutrina kantiana do mal radical, à primeira vista, dá lugar a acusações fervorosas. Afinal, Kant está dizendo que 67
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o homem – não este ou aquele, mas o gênero humano – é mau por natureza, o que é surpreendente em um autor segundo a qual a liberdade vinha a par com a racionalidade na ação de que os indivíduos eram inteiramente responsáveis. “O homem é mau por natureza”. Como entender essa afirmação tão polêmica de Kant contida no texto sobre a Religião? Zingano aponta que não se trata de observar ações más feitas com consciência, mas de poder concluir a uma máxima má que fundamenta um tal agir, para que se possa dizer que o homem é mau. Por outro lado, dizer que o homem é mau por natureza, é preciso ver que “se entende sob natureza do homem apenas o fundamento subjetivo do uso de sua liberdade em geral (sob leis morais objetivas), que antecede todo o ato que cai nos sentidos...” (KANT, 1980) O fundamento do mal, diz Kant (1980) “não poderá ser encontrado em nenhum objeto determinante do arbítrio por inclinação, nem num instinto natural, mas somente numa regra, que o arbítrio fornece a si mesmo para o uso de sua liberdade, isto é, numa máxima”. A explicação pelo instinto natural ao mal no homem seria contraditória à liberdade. Logo, este fundamento não deve ser subjetivo, nem baseado na experiência. Dizer que o homem é bom ou mau por natureza significa apenas que ele possui um princípio primeiro. Este início da primeira parte é surpreendente. O mal reside na regra que o arbítrio se dá. Enquanto se é regra, ela é sua criação; contudo sua aquisição não é no tempo, e isso é dito ser uma disposição prática por natureza: é um ato da liberdade. Kant insiste agora em que há um ato inteligível subjetivo pelo qual agimos segundo a categoria prática do bem ou segundo a do mal, não há uma terceira possibilidade. Esse fundamento subjetivo vale para toda a ação. Contudo, é preciso que salientemos a tese kantiana. O homem não é bom nem mau por natureza, se entendermos a expressão por natureza como uma determinação dada pela natureza pelo simples fato de seu nascimento que o inclui no gênero humano. O homem do ponto de vista prático, não é nada a não ser o que ele se determina 68
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ser, isto é, aquilo segundo o qual age. Seu determinar-se é dar a si um caráter que orienta, como princípio do agir, todos os seus atos particulares. O homem age sob representação de leis, ou seja, toda máxima segue princípios que designam o modo como o homem fazse no mundo. Essa continuidade na orientação da ação dos homens é uma decisão originária, de ordem inteligível, que não está no tempo, mas que organiza os fenômenos como efeitos do querer no tempo. Há uma causalidade especial que é a causa de certos efeitos no mundo sensível, mas que, por sua vez, diferentemente da causalidade natural, a causalidade pela liberdade, como é o caso do mal moral, não é localizada na linha do tempo, mas está fora dela, é na representação da razão, uma causalidade inteligível. A cada ato há uma disposição que orienta o homem, decidida pela natureza humana. Dito de outra maneira, o fundamento para se optar entre uma máxima boa ou má não pode ser encontrado na experiência; é um ato livre que não se baseia nem em inclinações sensíveis nem em alguma outra máxima da vontade. Os seres humanos escolhem entre máximas que determinam a vontade de acordo com incentivos decorrentes ou da lei moral ou de suas naturezas sensoriais. Esse procedimento de escolha é inevitável por causa do caráter radical do mal. Mas embora a natureza humana seja frágil ela não é diabólica – não converte o próprio mal num incentivo da vontade; antes a natureza humana carece de solidez para seguir princípios e de suficiente capacidade de discriminação para distinguir entre incentivo. Para Kant (1980) é inútil buscarmos a origem do mal em uma teodiceia. “o mal só pode ter sua origem no moralmente mau (não nos meros limites de nossa natureza)”. Colocar o mal num “espírito de determinação originalmente sublime” é incompreensível para nós. Assim, é por si mesmo que o homem decide o que deve vir a ser moralmente, bom ou mau. É um efeito do livre-arbítrio, da liberdade. Por causa da mesma liberdade que leva ao malum defectus (CAYGILL, 2000) do mal radical, é possível ao ser humano superar, senão extirpar, a propensão para preferir os incentivos de 69
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suas naturezas sensoriais à lei moral. Assim, embora o bem e o mal estejam sempre lutando pela supremacia, Kant não sugere que exista um meio-termo aristotélico, mas, mesmo que as propensões entre bem e o mal estejam em constante conflito isso não impede que a vontade seja cultivada e que possua uma história (CAYGILL, 2000). Em obras posteriores, a resposta de Kant sobre a origem do mal, poderia ser, se tomarmos como apoio certos textos da Antropologia (1798) ou de À paz perpétua (1795), uma maldade de um certo modo inscrita na naturalidade imediata do homem, como se seu caráter inteligível o predispusesse para o bem. A maldade faria assim parte de uma física do homem proveniente das ciências que tratam o homem como um fenômeno a todos os respeitos semelhante a outros objetos naturais. Mas sucede igualmente a Kant de não atribuir nenhuma significação moral a esta natureza animal do homem, considerando como neutra do ponto de vista de um julgamento racional. Ele não prejulgaria acerca de uma pretensa maldade ou bondade humana a este nível de análise (ROSENFIELD, 1988). O conceito de mal radical é um conceito-limite, pois ele fez ver a possibilidade de uma oposição da liberdade consigo mesma. A liberdade inteligível baseada na autonomia da vontade encontra uma dificuldade extrema em libertar-se da heteronomia e, uma vez que tenha logrado libertar-se, pode exceder todo e qualquer limite específico que lhe queira atribuir, podendo ceder aos seus inerentes impulsos anárquicos e autodestrutivos. A teoria kantiana do mal inspirou grandes obras do século XXI sobre o mal, em particular a Filosofia do Direito, de Hegel, A essência da liberdade humana, de Schelling, O conceito de Angústia, de Kierkeggard, e A genealogia da moral, de Nietzsche. Contudo, segundo CAYGILL (2000) a noção kantiana de mal radical como um malus defectus, em vista dos eventos políticos do século XX, parece ser insuficiente aos olhos de muitos críticos. O Holocausto foi considerado por alguns autores como um diabólico malum privationis envolvendo a escolha de um princípio maligno. 70
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Hannah Arendt evoca a “banalidade do mal” resultante de uma vontade não baseada em incentivos diabólicos ou sensoriais, mas de uma obediência irrefletida, burocrática, ao “dever”.
Conclusão – a visão freudiana sobre o mal A questão do mal em Freud é analisada por Garcia-Roza a partir do conceito de pulsão de morte, mas para ele o verdadeiro problema não está no caráter natural ou não natural da pulsão de morte, mas sim a “autonomia da destrutividade em relação à libido” (CAYGILL, 2000). Nesse sentido os textos a partir do Além do princípio do prazer escondem outra questão mais importante do que a distinção entre pulsão de morte e pulsões sexuais, que é o reconhecimento por parte de Freud do mal radical no homem. Admitir a autonomia da “vontade de destruição”, tal como o nomeia Lacan, pressupõe a aceitação de uma maldade originária no homem. Santo Agostinho, que teria sido um dos filósofos mais preocupados com a verdadeira origem da maldade, conclui que o mal é apenas a ausência do bem. O filósofo medieval concebe o mal apenas de forma negativa. Não existe um mal essencial ou substancial, ele é apenas um defeito. Leibniz e Spinoza também seguiram a mesma linha de pensamento, não atribuindo positividade ao mal. É Kant que em sua obra: “A religião dentro dos limites da simples razão” em 1793 vai afirmar pela primeira vez a positividade do mal. O mal, assim como o vício é uma resistência ao bem. O homem resiste ao bem e tal resistência está ligada à própria vontade ou livre arbítrio humano. Isso não significa que Kant conceba uma vontade maligna, o que implicaria uma contradição lógica, pois a vontade é sempre boa e o mal constitui uma perversão da lei moral. Segundo o autor Garcia Rosa (1990), Kant teria condições de postular uma vontade maligna, mas isso implicaria numa nova concepção de homem e de natureza humana. Kant teria que admitir algo que lhe era insuportável: a natureza demoníaca do homem. O conceito de mal radical em Kant não define o homem, pois, 71
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para o filósofo, nenhum impulso natural pode ser considerado determinante no homem. O homem é regido por leis naturais, mas o que o define é justamente a possibilidade de fazer uso da sua liberdade e da sua razão para fazer escolhas e agir moralmente. A malignidade é apenas uma propensão, um desvio. O mal perverte a lei moral, é uma inclinação, o que é bem diferente da pulsão de morte em Freud. Para Freud, o mal radical não é uma inclinação, ao contrário, é um princípio que está presente a cada momento. A pulsão de morte quer recomeçar do nada. Ao contrário de Eros- que é uma força conservadora e deseja promover uniões- a pulsão destrutiva é uma força de disjunção e faz de tudo para que tais uniões não se tornem perenes. O desejo e o próprio sujeito só existem enquanto há diferenciação e, portanto, necessitam da pulsão de morte para existir. Se apenas o Eros agisse sobre nós logo cairíamos numa união primordial, numa massa indiferenciada de humanos. Lacan afirma que se é possível falar de uma ética na psicanalise esta deve sempre colocar a questão: agiste conforme o desejo que te habita? Ou, dito de outro modo, agiste conforme o sujeito que és, assumindo sua diferença com relação aos outros? Eros quer que nos tornemos uma massa indiferenciada de seres humanos, ao passo que a pulsão de morte exige de nós não abandonarmos nossa subjetividade. A vontade de destruição defendida por Lacan, não é uma destruição absoluta. Essa vontade de destruição que caracteriza a pulsão de morte também é o que permite novos começos e impede a cristalização das formas. A pulsão de morte, por sua vez, não deve ser compreendida como um princípio maligno no homem. É preciso compreender que as pulsões por si só não nos permitem diferenciar o bem do mal. Se nos colocamos a questão: como posso ser bom? A resposta será sempre o bem dos outros. Mas o que Freud nos mostra é que mesmo agindo segundo essa moral a culpa não desaparece. O Supereu não é justo com os bons. 72
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Freud se diferencia de Kant por propor o mal enquanto um princípio que está na vida do homem, porém, também Freud não nos permite dizer que o homem é por natureza mal ou que a maldade prevalece nas suas relações com o outro e consigo mesmo. A pulsão de morte ou princípio de destruição também tem um papel importante para a construção de um novo começo. Se apenas Eros conduzisse nossas vidas logo desapareceríamos como sujeitos diferentes que somos. O impulso destrutivo, ou pulsão de morte é tão importante quanto Eros. E ambos estão no homem. De modo que não é possível fazermos um julgamento moral sobre as pulsões, elas simplesmente se manifestam.
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4. Ethos e parrhesia nas comunidades zapatistas de Chiapas - México Leandro Marcelo Cisneros “Dicen que decían que con el caracol se llamaba al colectivo para que la palabra fuera de uno a otro y naciera el acuerdo […] que el caracol era ayuda para que el oído escuchara incluso la palabra más lejana.” Subcomandante Insurgente Marcos
Este capítulo desenvolve um aspecto central da política nas comunidades zapatista de Chiapas-Mexico, que considero medular para o Zapatismo. Refiro-me à questão da relação entre ética e política, relação/tensão tão cara à proposta zapatista de construir outra política. Esta análise se entende melhor a partir dos elementos expostos e das análises realizadas na minha tese de doutorado (CISNEROS, 2014). Em 2007, em ocasião de uma palestra ministrada na UNAM, O Subcomandante Insurgente Marcos, levantou alguns questionamentos a respeito da política contemporânea e, especialmente, sobre a sua relação com a ética. Naquela ocasião, Marcos discutia a respeito da atual existência de duas políticas e uma ética (MARCOS, 2007). Ele usa a primeira pessoa do plural, ou seja, que as questões e reflexões levantadas não são da sua individual e privada autoria, embora possamos suspeitar seu protagonismo nisto. Mas, o que interessa frisar é o fato de serem críticas surgidas de um demorado e denso debate coletivo, expressado nas palavras do então porta-voz do EZLN, embasadas na experiência da guerra e da política vividas nas comunidades. 75
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Para as/os Zapatistas, falar em ética, aliás, ética em relação à política, primeiramente, trata-se de um aspecto estrondosamente ausente. Uma ausência que, desde 1994, as/os Zapatistas estão trazendo para ser não apenas mencionado, mas para ser debatido criticamente. E a primeira crítica que se faz necessária neste debate é sobre a concepção reinante, que já é fato consumado, de que a ética e a política se excluam mutuamente. Mas, ainda mais grave é o fato de que isto se entenda como natural, como se fosse uma questão de simples lógica. Aqui temos a primeira objeção. Pois, se essa é a convicção que anima a política na sua (não)relação com a ética, é conveniente observar que é uma maneira de entender e fazer a política. As/os Zapatistas identificam esse divórcio de forma clara, quando dizem que a ética está “desterrada e ausente na política de cima”, afirmando que é o entendimento e o exercício que se faz atualmente nas instituições de governo e no sistema de partidos oficiais. Mais ainda, a ética não apenas foi banida da política, como que também foi encurralada e aprisionada num estéril espaço acadêmico. Neste sentido, as/os Zapatistas, que se identificam como construtores e promotores de uma “política de baixo”, lutam para que haja um novo casamento entre ética e política, mas, para isto, há uma única maneira, a saber: que ambas sejam outras. Isto é, precisamos reformular, refazer, refundar, reinventar a política e, nessa reconstituição, a ética é parte constituinte da política e não um artigo incômodo nela. Para começar com essa caminhada, há algumas perguntas que as/ os Zapatistas se fazem e nos sugerem fazer para começarmos a refletir e, com isso, redirecionar algumas ações. Por exemplo, perguntam: [...] ¿Cuándo y cómo fue que la ética y la política tomaron esos caminos? La ética, el camino aséptico y mediocre de la academia. La política, el camino del cinismo y la desvergüenza realistas. ¿Cuándo fue que la intelectu76
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alidad progresista renunció al análisis crítico y se convirtió en triste plañidera de las derrotas y fracasos de una parte de la clase política que ya lleva varios años muerta? (MARCOS, 2007, grifos nossos).
É claro que as proposições que podem decorrer desses questionamentos, primeiramente, respondem a uma crença, e elas/es afirmam que acreditar é sinônimo de fazer, e fazer é sinônimo de lutar e lutar é sinônimo de sonhar. Por isto é que a exequibilidade de outra política, que se sustente fundamentalmente na ética, não é ingenuidade ou idealismo sem bases reais ou delírio coletivo. Questionamentos como estes, permite-nos entender por quê elas/es se auto-definem como rebeldes e em resistência. Essa posição definida a partir do acreditar-fazer-lutar-sonhar, ou seja, uma posição que vincula de forma harmoniosa e nos remete às dimensões da fé (não necessariamente religiosa, mas também), da ação (política, mas não só), do confronto (pacífico ou não) e da utopia. Este posicionamento é mais claramente entendido por nós, se o vinculamos a um dos aspectos morais que as/os Zapatistas têm explicitado como uma das suas principais auto-definições, a saber: o fato de serem guerreiras/os. A característica de guerreiras/os não somente diz respeito do fato de serem soldados organizados num exército rebelde, nem sequer ao fato de serem lutadoras/es sociais e políticas/os. Para as/os Zapatistas, ser guerreira/o, fundamentalmente, tem a ver com a ética que as/os orienta e anima, por ser uma ética que gera um tipo de compromisso, que se transforma em dever. Marcos, parafraseando a José Martí, diz o seguinte: “se podría decir que el hombre y la mujer de abajo y a la izquierda no miran de qué lado van las encuestas, sino de qué lado está el deber” (MARCOS, 2007). Resumindo o conteúdo dessa ética do guerreiro, as/os Zapatistas expõem que a entendem orientada pelos seguintes pontos: 1) o guerreiro deve sempre estar ao serviço de uma causa concreta; 2) o guerreiro deve sempre estar disposto a aprender e, efetivamente, 77
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fazê-lo; 3) o guerreiro deve respeitar seus ancestrais e cuidar da sua memória; 4) o guerreiro deve existir para o bem da humanidade, ou seja, para a justiça; 5) o guerreiro deve cultivar as ciências e as artes, elas são suas armas e ferramentas, e com elas deve ser o guardião do seu povo; 6) o guerreiro deve se dedicar por igual às coisas grandes e às pequenas; 7) o guerreiro deve ver para frente, imaginar o todo já completo e terminado. Novamente, estes princípios éticos se compreendem mais claramente à luz do contexto sócio-histórico-cultural desse conflito militar e político entre zapatistas e o governo (municipal, estadual e federal) e o seu aparelho de Estado. Essa história e esses processos de amadurecimento não nos permitem ser vítimas fáceis de uma opinião preconceituosa, que poderia nos inclinar a pensar que tudo isso da ética do guerreiro é ilusão, fantasia naif, ou discurso retórico. Tanto a história, quanto as ações e atitudes assumidas após 1994, demonstram o quanto de reais e concretos são esses princípios éticos, aliás, não só para as/os militares do EZLN, como para as/os cidadãs/ ãos civis, mas rebeldes, dessas comunidades. Por outro lado, sem esquecer a herança que também assumem das experiências não só das/os indígenas na selva Lacandona, como também a herança das pessoas da cidade, com as que esses indígenas se irmanam. Estamos falando dos homes e mulheres que nos anos 1960, 1970 e 1980 constituíram a base de militância que depois daria nascimento ao que Marcos, já em 1997, chamava de núcleo político-militar do Zapatismo de Las Cañadas. Nove anos depois, num dos atos políticos da Comissão Sexta do EZLN no seu percurso pelo país, a partir da Sexta Declaração da Selva Lacandona, essa representação zapatista assim as/os descrevia: [...] A ellos y ellas llamamos la generación de la dignidad, la generación que tuvo como propósito el nacernos y heredarnos lo mejor de su historia personal y colectiva, para formar no a maestros, ni dirigentes, ni mandos, sino aprendices aplicados, dispuestos a aprender de 78
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quienes abajo son los que son: indígenas, campesinos, obreros, empleados, ancianos, mujeres, jóvenes, niños y niñas (MARCOS, 2006b, itálico no original).
Feitos os reconhecimentos das fontes onde beberam, e expostos resumidamente os princípios éticos da ética do guerreiro, vamos desenvolver, também sucinta e esquematicamente, como isto se traduz em princípios ético-políticos, a saber: 1) a política está acima da força das armas; 2) a ética está acima das conveniências políticas; 3) a forma de se organizar é a partir do mandar obedecendo; 4) a forma de seguir em frente é a partir do andar perguntando; 5) não profissionalização das funções de governo e administração, isto é, concebê-las como serviço à comunidade, ao coletivo e não prebendas ou privilégios; 6) desmistificar a função do político, ou seja, todas/os devem passar pela experiência de ser governo, de servir a sua comunidade e de administrar interesses diversos e até contrários; 7) evitar o acúmulo de funções de indivíduos. O mais interessante e curioso de tudo isto é que, paradoxalmente, foi a guerra que possibilitou esta abertura para a política e seu aprofundamento. Pois, de fato, nos dez anos de clandestinidade, houve um profundo processo de diálogo e acordos e articulações e criações de redes de relações sociais e políticas, mas tudo isto com o fim da guerra sem data, da preparação da guerra para quando a hora fosse a hora de acompanhar ao povo. Mas, foi a partir da inversão desta equação, que a ética do guerreiro cobra um destaque especial, isto é, foi a partir da demanda de deflagrar uma guerra, que seguiria por diversos outros caminhos e modalidades e não só o das armas, respeitando unilateralmente o cessar-fogo, que a política veio à tona. Em outras palavras, foi a partir de ser guerreiros, que levantam as armas só para se defender, que a ética do guerreiro veio a fazer sentido para uma luta civil e pacífica, articulando com a sociedade civil, para fazer outra política. Com isto, retornamos a uma afirmação sustentada na minha 79
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pesquisa, quando a partir das leituras de Clausewitz e Foucault, apresento uma das teses principais da mesma, a saber: que este conflito político-militar protagonizado pelas comunidades zapatistas em Chiapas evidencia que, no projeto político-social-cultural zapatista e nas práticas das/os Zapatistas, guerra e política pertencem a naturezas diferentes e que é esta segunda que tem premência sobre aquela. Isto, ao ponto de afirmar que é uma clara contestação a esse outro modo de exercício do poder, que faz a guerra continuar por vias da política. Contrariamente, as/os Zapatistas há mais de vinte anos que estão travando essa batalha final, usando as armas civis e pacíficas, mas dentro de um contexto e em múltiplos confrontos estritamente bélicos, com o intuito de que a índole política seja a que, “afinal, somente afinal, suspenderia o exercício do poder como guerra continuada” (Foucault, 1999). É nesse contexto que cobra importância a ética do guerreiro e a relação entre ética e política para entender este conflito, esta construção de outra política, outro modo de vida. Se nos recordamos, ethos, para os gregos antigos, queria dizer exatamente isto: um modo de ser, um conjunto de costumes e hábitos, que diziam respeito da índole da pessoa ou de um povo. Aqui, me limito a dar apenas umas pinceladas gerais e esquemáticas sobre o ethos zapatista. No entanto, me interessa que nos demoremos um tempo, sim, em apenas um aspecto desse ethos, para mim, um dos mais significativos para os desafios propostos e apresentados por elas/es mesmas/os, a saber: o exercício da palavra verdadeira e corajosa. Os gregos antigos a chamavam de parrhesia, e Foucault (2010) a resgata para falar sobre o governo de si e dos outros4. As/os Zapatistas exercitam a parrhesia, seja através de documentos oficiais, fazendo análise e escancarando situações para o A seguir, desenvolveremos alguns elementos que, na minha leitura, apareceram com especial importância para relacionar essa pesquisa de Foucault à minha. Ou seja, aqui não pretendo esgotar o estudo a respeito da parrhesia, aliás, nem sequer pretendo entrar pormenorizadamente na pesquisa de Foucault, nem explorar exaustivamente suas consequências e reflexões. Como dito, apenas quero resgatar alguns argumentos e alguns conceitos que nos servem para pensar o ethos político zapatista. 4
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mundo todo, assumindo compromissos e dando satisfação da palavra empenhada anteriormente, seja exercitando essas decisões no cotidiano da vida. Neste capítulo, analiso qual o conteúdo, o sentido e a importância desse exercício de parresiastas. Primeiramente, gostaría de abrir esta análise com o jeito particular em que as/os Zapatistas falam sobre as palavras verdadeiras, seu cuidado e seu exercício. Para tal, compartilho um breve trecho de A história das palavras5, um dos contos que o velho Antônio tem contado ao SCI Marcos nos caminhos da montanha selvática: [...] La lengua verdadera se nació junto con los dioses primeros, los que hicieron el mundo. De la primera palabra, del fuego primero, otras palabras verdaderas se fueron formando y de ellas se fueron desgranando, como el maíz en las manos del campesino, otras palabras. Tres fueron las palabras primeras, tres mil veces tres se nacieron otras tres, y de ellas otras y así se llenó el mundo de palabras. Una gran piedra fue caminada por todos los pasos de los dioses primeros, los que nacieron el mundo. Con tanta caminadera encima, la piedra bien lisita que se quedó, como un espejo. Contra ese espejo aventaron los dioses primeros las primeras tres palabras. El espejo no regresaba las mismas palabras que recibía, sino que devolvía otras tres veces tres palabras diferentes. Un rato pasaron así los dioses aventando las palabras al espejo para que salieran más, hasta que se aburrieron. Entonces tuvieron un gran pensamiento en su cabeza y se dieron en su caminadera sobre otra gran piedra y otro gran espejo se pulieron y lo pusieron frente al primer espejo y aventaron las primeras tres palabras al primer espejo y ése regresó tres veces tres palabras diferentes que se aventaron, con la
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Disponível na íntegra em: <http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1994/1994_12_30_a.htm >
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pura fuerza que traían, contra el segundo espejo y éste regresó, al primer espejo, tres veces tres el número de palabras que recibió y así se fueron aventando más y más palabras diferentes que se aventaron, con la pura fuerza que traían contra el segundo espejo y éste regresó, al primer espejo, tres veces tres el número de palabras que recibió y así se fueron aventando más y más palabras diferentes los dos espejos. Así nació la lengua verdadera. De los espejos nació. Las tres primeras de todas las palabras y de todas las lenguas son democracia, libertad, justicia [...] De estas tres palabras vienen todas las palabras, a estas tres se encadenan las vidas y muertes de los hombres y mujeres verdaderos. Esa es la herencia que dieron los dioses primeros, los que nacieron el mundo, a los hombres y mujeres verdaderos. Más que herencia es una carga pesada, una carga que hay quienes abandonan en mitad del camino y la dejan botada nada más, como si cualquier cosa. Los que abandonan esta herencia rompen su espejo y caminan ciegos por siempre, sin saber nunca más lo que son, de dónde vienen y a dónde van. Pero hay quienes la llevan siempre la herencia de las tres palabras primeras, caminan siempre como encorvados por el peso de la espalda, como cuando el maíz, el café o la leña ponen la mirada en el suelo. Pequeños siempre por tanta carga viendo siempre para abajo por tanto peso, los hombres y mujeres verdaderos son grandes y miran para arriba. Con dignidad miran y caminan los hombres y mujeres verdaderos, dicen [...] Pero, para que la lengua verdadera no se perdiera, los dioses primeros, los que hicieron el mundo, dijeron que había que cuidar las tres primeras palabras. Los espejos de la lengua podían romperse algún día y entonces las palabras que parieron se romperían igual que los espejos y quedaría el mundo sin palabras 82
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que hablar o callar. Así, antes de morirse para vivir, los dioses primeros entregaron esas tres primeras palabras a los hombres y mujeres de maíz para que las cuidaran. Desde entonces, los hombres y mujeres verdaderos custodian como herencia esas tres palabras. Para que no se olviden nunca, las caminan, las luchan, las viven (MARCOS, 1994b, grifos nossos).
Como podemos observar, para as/os Zapatistas, indígenas maias, antes de qualquer coisa, originariamente a língua pertence a uma dimensão divina, no entanto, seu sentido e valor só se entendem a partir da alteridade, a partir das relações, a partir dos espelhos. Esta língua constitui uma herança divina que, justamente por esta razão, embora permita o entendimento e as relações, é uma carga pesada. Não obstante, dentro deste entendimento, não assumir a herança que a língua traz consigo, significa quebrar os espelhos, ou seja, não reconhecer a alteridade nem a importância das relações para que as palavras tenham seu valor. Porque não cuidar da língua se traduz num não (re)conhecimento da própria história, um desconhecimento da própria identidade e, por isto, não saber qual é seu rumo na vida, no mundo. Por outro lado, assumir a herança significaria assumir o grande fardo, a grande responsabilidade de cuidar a língua verdadeira, isto é, viver segundo ela, viver respeitando-a, feito que os transformam em homens e mulheres verdadeiros. E, obviamente, para as/os indígenas maia, os homens e as mulheres verdadeiros/ as são os homens e as mulheres de milho, ou seja, os homens e as mulheres que trabalham a terra e que de milho se nutrem, não apenas fisicamente. Lembrando que a língua verdadeira é a que se exercita a partir da matriz daquelas três primeiras palavras: democracia, liberdade e justiça. Ou seja, é um eixo de princípios ético-sócio-políticos o que estrutura o falar, para que homens e mulheres se relacionem com dignidade entre si. É esta concepção que eu gostaria de entender melhor e, na minha compreensão, algumas considerações que Foucault (Ibid) traz a 83
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respeito da parrhesia, ajudam a entender um dos aspectos da palavra verdadeira da qual falam os indígenas, qual seja, o fato de ser um falar veraz e um particular modo de exercício da liberdade: a liberdade de palavra, hoje, diríamos liberdade de expressão. Primeiramente, parrhesia diz respeito tanto a uma virtude, como a uma qualidade, uma técnica e a um dever. Aspectos estes que deveriam caracterizar uma pessoa que está num específico tipo de relação, a saber: a de dirigir os outros. No entanto, essa atividade, antes de mais nada, também implica uma relação consigo próprio, na tentativa de construir uma relação adequada consigo mesmo e com os outros, que se tenta direcionar nas suas vidas. Isto implica uma dupla consequência, primeiramente, tanto não é possível de se ocupar da vida dos demais, sem antes ter-se ocupado adequadamente de si próprio, como o contrário, isto é: não é possível se ocupar adequadamente de si próprio, sem antes ter-se ocupado com os demais. E esse ocupar-se, esse cuidar de si e dos demais se relaciona de forma direta com o fato de dizer a verdade, ou, mais precisamente, através da fala franca (Ibid, p. 42-43). Do anterior, observamos outro aspecto importante da parrhesia e se trata de uma noção situada numa tríplice encruzilhada entre a obrigação de dizer a verdade, os procedimentos e técnicas de governo de si e dos outros e a constituição da relação consigo. E aqui, o dizer veraz do outro é um elemento essencial do governo que ele exerce sobre nós. É exatamente este fator uma das condições fundamentais para que possamos estabelecer uma relação adequada conosco que nos dará a virtude e a felicidade (Ibid, p. 44). Um dos documentos a partir dos quais Foucault vai analisar e refletir é o texto Vida de Dion, no livro Vidas paralelas de Plutarco, do qual extrai a já conhecida história de quando Platão foi convidado e recepcionado em Siracusa, na Sicília, por Dion, cunhado do monarca e déspota Dionísio6. Lembrando que Dion era um grande Plutarco é um historiador e pensador grego do século I d.C, e seu texto aqui citado trata da primeira viagem de Platão a Siracusa (388 a.C), já no fim do período clássico da Grécia antiga. Este detalhe é importante, porque a parrhesia já tinha sua importância entre os gregos do período clássico (séc. VI – VI a.C), mas, por exemplo, segundo afirma Foucault, não haveria referência à dimensão da coragem pessoal no fato do dizer a verdade. Antes bem, a parrhesia clássica se vincula a certa estrutura política que caracteriza a cidade e ao status social e político de certos indivíduos (Ibid, p. 68). 6
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admirador e seguidor dos ensinamentos de Platão, que tinha a pretensão de poder influenciar seu cunhado e seu governo a partir dos ensinamentos de Platão, sobretudo no que diz respeito a questões como virtude, justiça, coragem, entre outras. Também devemos recordar que Platão também acreditava na possibilidade de orientar ao governante com suas lições, embora fosse um tirano. Resumindo, neste trecho há duas situações em que a parrhesia é exercitada. Primeiramente a de Platão, que, embora fosse visitante no reino de um monarca déspota, não moderou nem ocultou suas considerações a respeito da vida feliz dos justos e da infelicidade dos injustos, perante a plateia que o escutava admirada. Isto provocou a ira do tirano e, enquanto manifestava publicamente seu desconforto, dissimulada e secretamente mandou matá-lo ou vendê-lo como escravo. E isto foi o que lhe aconteceu. A segunda é a circunstância em que Dion, publicamente, desaprovou um comportamento ofensivo de Dionísio em relação ao governante anterior a ele, e também mostrando sua desaprovação com o tipo de cidade que seu cunhado estava deixando para as gerações seguintes. Segundo Foucault, esse trecho do documento permite extrair o modelo exemplar do que seria a parrhesia, a saber: uma pessoa que, face a face com o tirano, o enfrenta e lhe diz a verdade. A primeira questão a levantar é que parrhesia é uma determinada maneira de dizer a verdade. Isto é, não é o conteúdo desta verdade o que faz que essa fala seja parresiástica ou não, mas, sim, a peculiar maneira de ser dita. Mas, o que significa isto? O que seria essa particular maneira de dizer a verdade? Ora, a fala de um parresiasta não diz respeito a sua capacidade demonstrativa, como seria, talvez, um raciocínio matemático ou uma argumentação jurídica. Também não poderia ser definida pela sua intencionalidade persuasiva, ou seja, a parrhesia não pode ser entendida como uma técnica, um procedimento ou uma figura de estilo da retórica. Da mesma maneira, esse dizer veraz não é uma maneira de ensinar, isto é, não se reporta a qualquer espécie de pedagogia, pois, seus efeitos podem ser, até, 85
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antipedagógicos. Finalmente, a parrhesia também não responderia às características de uma arte da controvérsia e do debate, ou seja, não poderia ser considerada como parte de alguma arte da discussão. Resumindo, a parrhesia não é uma maneira de demonstrar, de persuadir, de ensinar nem de discutir. Por outras palavras, o dizer verdadeiro não se encontra dentro de estratégias discursivas, isto é, não é o discurso em si mesmo, nem as suas estruturas internas as que o determinam como parresiástico. Assim como tampouco será a finalidade do discurso o que o define como dizer veraz (Ibid, p. 52-56). O que define que um discurso seja parrhesia é o fato do risco que esse dizer verdadeiro implica para o locutor, ou seja, é o perigo para a existência do locutor, posta em jogo pelo dizer veraz, e é exatamente isto o que a torna parrhesia. Pois, voltando ao modelo exemplar de parrhesia, tanto Platão como Dion, o preço que estavam dispostos a pagar era a própria morte. Como o resume Foucault, “os parresiastas são os que, no limite, aceitam morrer por ter dito a verdade” (Ibid, p. 56). A isto devemos acrescentar que no ato parresiástico há uma formulação da verdade em dois níveis, a saber: primeiramente, o enunciado da verdade mesma e, num segundo nível, a enunciação da verdade do que está sendo dito. Mais ainda, essa afirmação da afirmação é de caráter público, e isto é de grande importância, pois, este confronto do parresiasta com aquele para quem é dita a verdade, se converte numa espécie de ritual solene do dizer-a-verdade, no qual o sujeito compromete o que ele pensa no que ele diz, atestando a verdade do que pensa na enunciação do que diz. Assim, dita enunciação fica configurada como uma justa, como um desafio (Ibid, p. 61-62). A esta última característica, devemos somar mais outra que é de grande importância, a saber, que pouco importa qual seja o status ou condição de quem fala, pois o que o torna um parresiasta é o fato de fazer valer sua própria liberdade de indivíduo que fala. E a importância disto radica em que, como afirma Foucault: [...] só há parrhesia quando há liberdade na enunciação da verdade, liberdade do ato pelo qual o sujeito diz a verdade, e liberdade também desse pacto pelo qual o sujeito que fala se liga ao enunciado e à enunciação da verdade. 86
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E, nessa medida, não encontramos no cerne da parrhesia o estatuto social, institucional do sujeito, encontramos sua coragem (Ibid, p. 63, grifos nossos).
Como podemos observar, o núcleo fundamental do dizer veraz é esta relação entre liberdade-verdade-sujeito-coragem. Pois, a parrhesia é o livre exercício da coragem, que possibilita que o sujeito se vincule a si mesmo no mesmo ato de dizer a verdade. Por outras palavras, Foucault afirma que “a parrhesia é a ética do dizer -a-verdade, em seu ato arriscado e livre” (Ibid, p. 64). Por outro lado, o exercício da parrhesia se situa num tríplice contexto, primeiramente, remete a uma questão filosófica fundamental, a saber, a relação entre liberdade e verdade. Portanto, se nos impõe a seguinte questão: como e em que medida a obrigação pelo dizer-a-verdade é ao mesmo tempo o exercício da liberdade, e o exercício perigoso da liberdade? Mais ainda, como é que o fato de se obrigar à verdade, de se obrigar pela verdade, pelo conteúdo do que se diz e pelo fato de que se diz, é efetivamente o exercício, e o mais elevado, da liberdade? O segundo é de caráter metodológico, pois a parrhesia é uma determinada maneira do dizer veraz, no qual o enunciado e o ato de enunciação vão ter certos efeitos de retorno sobre o próprio sujeito, mas não é por estes efeitos que se configura a parrhesia, não pelas decorrências da fala franca. Dito de outra maneira, o parresiasta não se constitui como tal pela reação do outro, a parrhesia é aquilo pelo qual o sujeito se liga ao enunciado e à enunciação do mesmo e às consequências de ambos, do enunciado e da enunciação. Por exemplo, como Platão, que aceitou o risco de ser banido, morto e/ou vendido e escravizado por dizer a verdade. Isto diz respeito ao que Foucault aqui chama de pragmática do discurso (Ibid, p. 64-66), o que quer dizer que, na parrhesia, o enunciado e o ato de enunciação vão, ao mesmo tempo, afetar de uma maneira ou de outra o modo de ser do sujeito, precisando qual é seu modo de ser enquanto fala. Isto, finalmente, vincula a parrhesia a um terceiro 87
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contexto, que Foucault chama de dramática do discurso verdadeiro, pois, sem remeter a qualquer conteúdo patético, essa dramática contempla uma das dimensões mais aparentes, que é, exatamente, a maneira em que a verdade é afirmada, e também que no ato mesmo da afirmação desta afirmação, o sujeito se constitui como a pessoa que diz a verdade e que se reconhece em quem e como quem tem dito a verdade (Ibid, p. 66). Recapitulando, é importante sempre termos em mente, que a noção de parrhesia, enquanto dizer tudo, dizer veraz e fala franca, aqui me interessa dentro do contexto do governo de si e dos outros. Para explorar melhor esta dimensão, Foucault propõe analisar outro texto, a tragédia Íon de Eurípides7, pois nela se evidencia de forma clara a dimensão política da parrhesia. Primeiramente, neste contexto de análise, parrhesia é a busca pela verdade e a decisão e o ato de dizer a verdade, em relação direta com o fato de ser reconhecido como cidadão, portanto, ter direito à palavra e, no exercício deste, falar com veracidade, proferir uma fala franca, para, justamente, contribuir com a fundação do direito público da cidade. Nesse sentido, a parrhesia não se confunde com o simples exercício do poder, porque ela não se submete ao status do cidadão, ela está acima desta condição. Isto é assim, porque embora no texto de Eurípides o protagonista reclame para si o direito de ser cidadão, isto tem a ver com ter o direito à palavra, pois, a parrhesia refere-se à palavra que se exercia no marco da cidade, mas em condições não tirânicas, ou seja, com liberdade. Essa palavra proferida livremente, por direito, não obstante, não estava isenta de se submeter a jogos agonísticos, próprios da vida política da cidade. Portanto, a palavra parresiasta de uns é do tipo que se exerce para persuadir aqueles em que se pretende mandar e que, nos jogos agonísticos, não é tolhida a liberdade desses que, por sua vez, também querem mandar naqueles outros. Por outras palavras, o exercício deste tipo de palavra no contexto da cidade significa tratar de lidar, ao mesmo tempo, com o 7
Se estima que foi escrita entre 414 e 412 a.C, ainda dentro do período clássico da Grécia antiga.
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logos e com a pólis. Isto, entendendo o logos como a palavra verdadeira, a palavra sensata, a palavra que persuade, a palavra que pode se confrontar com as outras palavras e que só vencerá graças ao peso da sua verdade e da eficiência da sua persuasão (Ibid, p.98). Consequentemente, fazer agir o logos na pólis significa fazer agir essa palavra verdadeira, sensata, agonística, essa palavra de discussão no campo da pólis. E é exatamente nisso que consiste a parrhesia. Vista pelo avesso, esta caracterização diz, então, que a parrhesia não será definida nem pelo exercício efetivo de um poder tirânico nem pela mera existência do estatuto de cidadão. Outra questão interessante a respeito da parrhesia na Grécia clássica tem a ver de forma direta com um problema histórico e político: é o do pertencimento à terra, da autoctonia, do enraizamento a uma continuidade histórica a partir de um território, o fator que irá outorgar a parrhesia. Essa fala franca para reivindicar o direito de falar, enquanto cidadão, por pertencer à terra, esse exercício parresiástico pode-se caracterizar como a fala do fraco perante o poderoso, denunciando uma situação de injustiça e/ou de abuso de poder. Ou seja, é a situação em que há uma desigualdade de força e quem denuncia a falta, por ser uma injustiça, não tem como combater ou se vingar do seu adversário. Então, só lhe resta tomar a palavra e assumir o risco de esgrimi-la, justamente, contra quem tem acometido com injustiça. Por outro lado, também é importante destacar que é justamente pelo fato de acontecer este discurso de verdade dirigido ao mais forte, esse desafio do mais fraco falando ao poderoso, é que também permite ao poderoso que possa governar de um modo mais razoável. Isto, pelo menos, como possibilidade aberta pelo fraco. Como tínhamos dito antes, no período clássico grego, a noção de parrhesia se vinculava à noção de isegoria, isto é, a igualdade de palavra, a igualdade do direito à palavra. E, neste contexto, isegoria e parrhesia serão as duas características centrais que caracterizarão à democracia. Indo mais fundo na sondagem que Foucault faz da parrhesia política, ele afirma que, dentro do contexto explicitado, a par89
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DEMOCRACIA
(Condição formal) (Igualdade; Liberdade) (Constitucional)
(Condição de fato) (Ascendente de alguns) (Jogo político)
SUPERIORIDADE
DIZER-A-VERDADE
rhesia está numa relação de circularidade com a democracia, pois, para fundar a democracia (e promover sua subsistência) é necessária a parrhesia, e inversamente, para que haja parrhesia é necessária a pré-existência de democracia (Ibid, p. 144). Continuando nessa direção, Foucault argumenta que nessa circularidade observamos um vínculo importante entre os seguintes elementos: a parrhesia, a vontade de ser um cidadão que tenha capacidade de influenciar nas decisões de organização e governo da cidade, a existência de certa superioridade (por ter a força necessária, a potência, por exercer o poder que é necessário) no efetivo exercício do poder e, finalmente, uma agonística, ou seja, o risco, o perigo e o combate próprios do exercício do poder (Ibid, p. 145-146). Agora, vendo a democracia pelo viés da isegoria, esta se traduz no direito estatutário a falar, é a politeia, ou seja, a constituição da cidade, apenas o marco constitucional institucional. Entanto que se entendida a partir da parrhesia, significa o exercício de certo ascendente sobre os indivíduos a partir do direito de falar, para falar a verdade e para persuadir e se posicionar como cidadãos destacados, como atividade livre e valente de dar um passo em frente (Ibid, p. 146-147) Mas, a parrhesia não sempre é uma boa parrhesia, então, para visualizarmos quais as condições necessárias para uma boa parrhesia, Foucault propõe um esquema de relações que se traduz num retângulo, como o seguinte:
(Verdade) (Logos) (Condição de verdade)
(Coragem, valor na luta) (Condição moral)
VALOR
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Assim, parafraseando a Foucault (Idid, p. 159-160), num vértice, a democracia, entendida como igualdade concedida a todos os cidadãos e, por conseguinte, liberdade de cada um deles para falar, opinar e participar das decisões. Não há parrhesia sem a democracia. Em outro vértice, o jogo da ascendência ou da superioridade, isto é, a situação dos que, tomando a palavra diante dos outros, acima dos outros, se fazem ouvir, persuadem, dirigem e exercem o comando sobre esses outros. No terceiro vértice do retângulo, o dizer-a-verdade. Para que haja uma boa parrhesia, não basta que simplesmente haja uma democracia, como mera condição formal, como também não basta simplesmente haver uma ascendência, isto é, uma condição de fato. É preciso, além disso, que essa ascendência e essa tomada da palavra sejam exercidas em referência a certo dizer-a-verdade. É preciso que o logos que vai exercer seu poder e sua ascendência, o logos que vai ser empregado pelos que exercem sua ascendência sobre a cidade, seja um discurso de verdade. O último vértice é o exercício livre do direito de palavra, pelo qual se busca a persuasão por meio de um discurso de verdade, que ocorre precisamente numa democracia, sendo na forma da rivalidade, do enfrentamento. Esta seria a necessidade dos que querem empregar uma linguagem de verdade e manifestarem sua coragem. Este será o vértice moral. Por outras palavras, temos a democracia como condição formal, a ascendência e a superioridade de alguns, como condição de fato, a necessidade de um logos sensato, como condição de verdade, e a coragem na luta, como condição moral. Ou, também, ele é um retângulo com o vértice constitucional, o vértice do jogo político, o vértice da verdade, o vértice da coragem. E, na visão de Foucault, esse esquema de relações é o que constitui a parrhesia política. Como podemos apreciar, estes aspectos que temos selecionado para nosso estudo, originariamente, não foram pensados para analisar o Zapatismo ou qualquer outro movimento social em particular. Contudo, também não achamos objeções para empregar estas conceptualizações e reflexões para nossos objetivos. Nesse sentido, 91
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na tese (CISNEROS, 2014) foram analisados exemplos concretos da história da luta das/os Zapatistas, que ilustram perfeitamente cada um dos elementos constitutivos da parrhesia, aqui analisados, mas por uma questão de espaço, não é possível me explanar aqui. Então, recapitulando e retomando alguns elementos já desdobrados desde o início do capítulo, e dialogando com estas considerações de Foucault, pensando junto a elas/es, se pensarmos no modelo exemplar da parrhesia, ou seja, uma pessoa que, face a face com o tirano, o enfrenta e lhe diz a verdade, vemos que é exatamente o que tem feito as/os Zapatistas, particularmente, desde 1994, e até a presente data, seja via documentos, via atos políticos, declarações na mídia, diálogos aos que elas/es mesmas/os têm instado ou seja via resistência contra os órgãos sob comando do governo. E aqui, essa rebeldia em resistência explicita outro dos elementos fundamentais, que é o risco que as/os Zapatistas assumem por conta do dizer veraz, implicando-os de forma direta. E, sem qualquer sutileza, o perigo para a própria existência das/os locutores tem sido posto em jogo de maneira aberta e pública. E, segundo Foucault, aqui estaríamos perante a configuração da parrhesia, das/ os Zapatistas como parresiastas, porque, lembremos, os parresiastas são os que, afinal de contas, aceitam morrer por ter dito a verdade. Isto mais do que evidente, quando estudamos a história deste conflito político-militar ou, também, se lemos com atenção A história das palavras, que o velho Antônio contava. Se entendermos que a parresía é uma particular maneira de exercício da liberdade, e se lembramos que Foucault sugeria pensarmos a ética como o exercício crítico da liberdade, então, com certeza, a parresía é a ética do dizer-a-verdade, propriamente, em seu ato arriscado e livre.
Conclusão Após esta exposição da palavra verdadeira, do falar veraz e corajoso, como o rasgo que nós achamos ser o mais característico 92
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na ética-política zapatista, fechamos este capítulo com a seguinte consideração, revisando e fazendo uma leitura crítica da concepção sobre a política desenvolvida por nós, entendida a partir do crivo da guerra, a partir da inversão do aforismo de Clausewitz proposta por Foucault. Se nos detemos mais uns instantes, veremos que a partir da definição teórica e da experiência concreta da vida política dentro e entre as comunidades zapatistas, neste terceiro capítulo temos observado uma guinada na concepção política, pois as relações já não se identificam com o mero exercício da força, dentro de um campo de forças. Isto porque a proposta zapatista é a de reverter essa guerra trasvestida nas vias políticas, que o governo e o Estado travam contra as/os indígenas, a partir de uma das mais explícitas manifestações de rebeldia e resistência, a saber: contra a guerra, fazer a política e obrigar a fazer política por vias civis e pacíficas. É por isto que neste capítulo nos resulta mais útil o conceito foucaultiano de poder como relação entre seres livres, como homens e mulheres se manifestando ser e querendo ser livres e responsáveis, cobrando o mesmo dos seus adversários, e não insistindo nas relações de guerra, ou seja, de dominação pela força de uns sobre os outros. Isto, de toda maneira, não impede que a guerra continue de parte do Estado, e sem obstar que a guerra ainda sirva como um modo de se aproximarem desta relação de poder entre seres livres, como relação ética, como o exercício da arte de não quererem ser governadas/os demais. Essa é a concepção de um Foucault que introduz a problemática do governo, havendo um deslocamento que o levou da linguagem da guerra para o do governo, a partir da sua análise da governamentalidade, entendida menos como pertencente à ordem do combate do que da ordem de jogos de estratégias. O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários, ou do engajamento de um em relação ao outro, do que da ordem do governo. É por isto que, no contexto apresentado neste capítulo, é coerente o modo de relação própria ao poder, que não deve ser procurado nem do lado 93
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da violência nem da luta, nem do lado do contrato nem do laço voluntário (que não são mais que seus instrumentos), mas, sim, do lado desse modo de ação singular (nem guerreiro, nem jurídico) que é o governo. (cf. AVELINO 2010). Nessa direção, a guerra, vista a partir da política e da ética zapatista, possivelmente possa ser lida como atitude crítica assumida pelas/os Zapatistas como uma declaração e afirmação de que querem ser livres, que querem assumir as relações entre si, e também junto aos outros mexicanos, como relações de poder, como uma experiência da crítica. Por isso, concordamos com Foucault em afirmar que a ética é o exercício crítico da liberdade, muito mais do que o cumprimento de uma norma. E é neste contexto, que arriscamos dizer que as comunidades zapatistas agem com a convicção e com certo acúmulo de práticas e experiências concretas, que provam que a política e a ética não só deveriam, hipoteticamente, serem próximas, como de fato, são uma o alicerce e alavanca da outra. Por outras palavras, não há ética que seja guia e orientação veraz e decente, se não é exercida e experimentada na práxis política, como não há política que seja justa, democrática e promotora da liberdade, se não se ancora na ética. Com este capítulo, esperamos ter atingido nosso objetivo de ajudar a entender o significado e o sentido da dignidade rebelde no mandar obedecendo, como princípio reitor da política rebelde autônoma zapatista, na sua relação necessária com a ética, especificamente, com a ética do guerreiro, dentro da qual, destaco especialmente o exercício prarresiástico da palavra.
Referências VELINO, Nildo. “Governamentalidade e anarqueologia em Michel Foucault”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. SP, v. 25, n. 74. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092010000300009>. Acessado em 03 nov. 2014. 94
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CISNEROS, Leandro Marcelo. Guerra e política nas comunidades zapatistas de Chiapas-México: resistência e criação. 2014. 933 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas, Florianópolis, 2014. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Princeton: Princeton University Press, 1984. [Tradução de Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle da versão em inglês de Michael Howard e Peter Paret. Original alemão]. Disponível em: <http://pensamentosnomadas.files.wordpress.com/2012/11/da-guerracarl-von-clausewitz.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2014. FOUCAULT, Michel. Defender la sociedad: Curso no Collège de France (1975-1976). México: FCE, 2002. ______. El gobierno de sí y de los otros: curso en el Collège de France (1982-1983). 1. ed. 1. reimp. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010. LEYVA SOLANO, Xóchitl. Del “comón” al Leviatán : (síntesis de un proceso sociopolítico en el medio rural mexicano). In. América indígena. México, D.F , v. 55, n. 1/2, pp. 201234, 1995. LEYVA SOLANO, Xóchitl; ASCENCIO FRANCO, Gabriel. Lacandonia al filo del agua. México: CIESAS, UNAM, FCE, 2002. MARCOS, SCI. Historia de las palabras. Cartas y comunicados del EZLN, México, 30 dez. 1994. Disponível em: <http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1994/1994_12_30 _a.htm>. Acesso em: 19 nov. 2013. ______. 17 de noviembre de 2006. 23 años del EZLN. [Comisión Sexta de La Otra Campaña]. Enlace Zapatista – Comunicados. Apodaca, México, 18 nov. 2006. Disponível em: <http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2006/11/18/17-de-noviembre-de-2006-23-anos/>. Acesso em: 18 nov. 2013. 95
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5. O valor da natureza para a História Jackson Alexsandro Peres
Introdução Como a questão ambiental, por causa dos desafios políticos, científicos e culturais que coloca para a humanidade, será tão importante no século 21 como foram centrais o econômico e o social no século 20, o desenvolvimento da história ambiental garantirá aos historiadores participação relevante no debate, que se deseja seja democrático, sobre o lugar dos humanos no sistema de vida do planeta (MARTINS, 2007, p.31). As novas tecnologias, principalmente no campo da tecnologia da informação, vêm facilitando os trabalhos em diversas áreas e auxiliando em muitos ofícios, dentre eles o trabalho do historiador. Os sites de pesquisa, o acesso a documentos e fontes digitalizados, os textos de revistas e trabalhos acadêmicos, além dos jornais on -line, são apenas alguns poucos exemplos do que essa ferramenta tecnológica pode contribuir para um trabalho historiográfico. Utilizando essa ferramenta, a título de curiosidade, pesquisamos o termo “História Ambiental” em um site de busca na internet8. Em poucos segundos obtemos, aproximadamente 8.310.000 referências. As páginas indicadas direcionam artigos, referências de livros, blogs, associações de historiadores ambientais, grupos de estudos, profissionais da área, laboratórios de pesquisas e outros relacionados à História Ambiental. Outra pesquisa, dessa vez incluindo a palavra “no Brasil” e usando aspas, conseguiu localizar aproximadamente 8
O site de pesquisa utilizado foi o <www.google.com.br>, acesso: 20 jul. 2013.
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88.300 resultados. Os números elevados constatam como essa abordagem da História vem se firmando no campo historiográfico mundial e no Brasil, adquirindo valor para esse campo científico e por isso nos impulsiona a rever sua trajetória e seu estado atual. O objetivo deste artigo é apresentar essa abordagem, a História Ambiental, disciplina presente na historiografia desde a década de 1970 e que vem se destacando no meio acadêmico, na criação de linhas de pesquisas nos cursos de Pós-graduação no Brasil, e no mundo por meio de grupos de estudos internacionais e publicações de excelência na área. Além da trajetória e de sua consolidação, serão abordadas as principais teorias e metodologias empregadas dentro desta categoria, além de perceber como a História Ambiental vem operando atualmente, destacando seu valor para a historiografia.
O Meio Ambiente na História É difícil precisar o momento em que as preocupações com o meio natural, ou com o meio ambiente, passaram a fazer parte de discussões das ciências humanas. Ou pelo menos, a partir de quando esse conhecimento saiu dos laboratórios das chamadas ciências naturais e passaram a ser temas da Sociologia, Política e História. Os modelos desenvolvidos pela História, pelo menos até o início da segunda metade do século XX, têm em comum o fato de não conseguirem lidar com a natureza como uma das variáveis ativa e passiva do desenvolvimento das sociedades. Marcos Lobato Martins faz uma análise crítica e hipotética quanto à quase exclusão da natureza nas narrativas históricas buscando bases os livros de história do Brasil. Segundo o autor, se um marciano ou um selenita lesse um desses livros, poderia localizar a sociedade brasileira em qualquer porção da faixa tropical do planeta, na Indonésia, no litoral sul da Índia ou na costa ocidental da África. “Esse leitor extraterrestre obterá pouquíssimas informações sobre as paisagens brasileiras, as plantas e os animais que aqui vivem ou viveram, os recursos naturais, as interações das populações com o meio 98
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ambiente, etc.” (MARTINS, 2007, p. 18). Isso não significa dizer, no entanto, que a natureza não tenha estado presente na historiografia. Na tradição ocidental, porém, quando se percebe o papel da natureza na História, costuma-se criar esquemas rígidos e reducionistas. Para Martins, podemos observar quase uma bipolaridade perfeita quando se pensa o meio ambiente na História e os esquemas elaborados a partir daí. Numa ponta estão aqueles que asseveram que o nascimento, desenvolvimento e destino de uma sociedade estaria condicionado aos quadros naturais onde esta sociedade vive. Ou seja, “a crença no papel decisivo da natureza sobre o desenvolvimento social produziu os determinismos geográficos e biológicos de fins do século XIX” (MARTINS, 2007, p.19). Na outra ponta, estão aqueles que, em suas análises, estudam as sociedades como se elas não tivessem bases naturais ou vínculos com a terra. “Para estes estudiosos, a cultura e a sociedade não seriam limitadas ou condicionadas por fatores naturais” (MARTINS, 2007, p.19). A superação desses esquemas iniciou-se, segundo Martins, com a Escola dos Annales, e com a obra de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II, de 1947. Com Braudel, a reflexão sobre a história é também uma reflexão sobre o meio ambiente, na qual o meio ambiente não é nem um determinante absoluto nem um simples cenário passivo e estático em que se dá a trajetória humana. O meio ambiente na perspectiva braudeliana é ativo e dinâmico, é determinante e determinado, é espaço natural e espaço construído, move-se embora lentamente (MARTINS, 2007, p. 21). Se a natureza em alguns momentos já se fez presente na historiografia, a partir de quando ela passou a ser o cerne de uma discussão histórica a ponto de se tornar comum o termo “História Ambiental”? A partir de que momento, a natureza passa a ter um maior “valor” para a História? Para esta questão, o sociólogo Fernando Mires coloca que, se quisermos buscar pontos de referência para estabelecer relações no processo de transição da Ecologia de uma ciência pura, a um tema 99
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de recorrência nas ciências humanas, devemos observar alguns documentos públicos do início da década de 1970. Neste sentido, se se tratasse de buscar “fontes” que expliquem o auge alcançado pela Ecologia, será possível comprovar que a maioria dos analistas mencionam alguns documentos que possuem um evidente caráter precursor. Um deles é, sem dúvida, o Relatório Meadows, mas conhecido como Os limites do crescimento (MIRES, 2012, p.16). A visão de que a História Ambiental tenha se estruturado no início da década de 1970 é compartilhada pelos pesquisadores e historiadores citados neste trabalho, entre eles, José Augusto Pádua. No artigo intitulado de As bases teóricas da história ambiental, Pádua argumenta que, em 1972 quando foi ministrado o curso de História Ambiental de maior repercussão até então, na Universidade da Califórnia, o historiador Roderick Nash explicou a concepção do curso, deixando explícito que estava respondendo aos clamores da sociedade por uma responsabilidade ambiental. Ou seja, as vozes da rua tiveram importante papel na formalização da História Ambiental (PÁDUA, 2010, p. 81). Mesmo que a ideia de que a influência externa no contexto acadêmico possa incomodar muitos historiadores, desde a Escola dos Annales que se tem refletido sobre o sentido de o historiador estar em sintonia com seu tempo e que o passado é sempre questionado a partir de perguntas do presente. Logo, os anos de 1970 foram de grande repercussão mundial no que diz respeito às questões ecológicas, que entraram de vez na pauta das discussões políticas e sociais. Antes do relatório do Clube de Roma de 1972 (Os limites do Crescimento), porém, houve na década de 1960 movimentos e obras de grande impacto social. No meio dos entusiasmos do desenvolvimento econômico pós Segunda Guerra Mundial e das ideologias da Guerra Fria, é publicado o livro Primavera Silenciosa, em 1962, pela bióloga estadunidense Rachel Carson. A obra alardeava sobre um empreendimento chamado de “revolução verde”. Tal revolução, 100
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para a autora, se deu com o uso maciço de pesticidas na agricultura, dinamizando-a como nunca. Segundo Regina Horta Duarte, O livro caiu como uma mosca na sopa dos consumidores, pois afirmava e buscava demonstrar que os efeitos a médio e longo prazo na saúde das pessoas e no meio natural seriam absolutamente desastrosos. A autora criticava um avanço científico medido em toneladas de alimentos produzidos, sem a devida consideração das consequências do uso de produtos químicos, e desprezava a comemoração do que apontava como um falso progresso, já que realizado à custa da vida e da saúde de milhões de pessoas, além dos vários ecossistemas gravemente atingidos (DUARTE, 2013, p. 20). Além disso, a preocupação ambiental levou à criação de organizações que possuem significativa importância atualmente. É o caso do Greenpeace, surgido em 1971, quando 11 ativistas embarcaram a caminho de Amchitka Island, no Alasca, para protestarem contra os testes nucleares realizados pelos Estados Unidos naquele local. Observa-se que na prática, o desenvolvimentismo, ideologia pós-guerra, conseguiu desde o início uma série de críticos, que se institucionalizavam por meio de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e partidos políticos. “Em 1973, surgiu o Partido da Ecologia (EcologyParty) na Inglaterra, pioneiro da ação política institucional e primeiro de uma série de partidos verdes fundados nos mais diversos países do mundo [...]” (DUARTE, 2013, p. 22). A preocupação com o Meio Ambiente ganhava o mundo e em 1972, mesmo ano do lançamento de Os limites do crescimento, realizava-se em Estocolmo, a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente. Nessa Conferência, da qual participaram 113 países, questionava-se o modelo desenvolvimentista e dela resultou a Declaração de Estocolmo. A Declaração de Estocolmo afirmava que os países subdesenvolvidos deveriam buscar o crescimento com o devido controle da destruição do seu ambiente (DUARTE, 2013, p. 24). Interessante observar como o ano de 1972 é singular para a 101
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estruturação da História Ambiental, seja pela publicação de Os limites do crescimento, seja pela Conferência de Estocolmo, ou pelo curso ministrado intitulado de História Ambiental, pelo Professor Roderick Nash, na Universidade da Califórnia. Os acontecimentos relacionados ao meio ambiente só se fizeram aumentar com o passar do tempo, atingindo cada vez mais segmentos científicos que antes pareciam impossíveis de tratar o tema. A ideia de ecologia rompeu os muros da academia para inspirar o estabelecimento de comportamentos sociais, ações coletivas e políticas públicas em diferentes níveis, do local ao global. Mais ainda, ela penetrou significativamente nas estruturas educacionais, nos meios de comunicação de massa, no imaginário coletivo e nos diversos aspectos da arte e da cultura (PÁDUA, 2010, p. 82). Preocupados com o presente e em sintonia com seu tempo, os historiadores passaram a perceber novas possibilidades de análise, novas possibilidades de entender o passado. Foi nesse contexto que surgiram os historiadores ambientais. Esse novo grupo de reformadores insiste em dizer que, mesmo que a História já opere com camadas submersas, antes “ocultas” na historiografia, devemos ir mais fundo, “até encontrarmos a própria terra, entendida como um agente e uma presença na história” (WORSTER, 1991, p.198). A História Ambiental passou a estruturar-se, como se observou, no início da década de 1970. Segundo Regina Horta Duarte, os primeiros a cunharem o termo ‘História Ambiental’ foram os historiadores estadunidenses, reunidos em 1977 em torno da fundação da American Society for Environmental History (Sociedade Americana de História Ambiental) e que passaram a publicar a revista Environmental and History. Ainda segundo a autora, em 1999 surgiu na Europa a European Society for Environmental History, que também passou a publicar revistas sobre o tema e em 2004 ocorreu a fundação da SOLCHA (Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental) (DUARTE, 2013, p. 32). Além de se consolidar, a História Ambiental passou a se organizar em grupos de pesquisa e de promoção do debate do tema. 102
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Pressupostos teórico-metodológicos da História Ambiental O historiador estadunidense Donald Worster, um dos precursores da História Ambiental, no artigo intitulado Para fazer história ambiental (1988), coloca que a História Ambiental é parte de um esforço para tornar a História mais inclusiva nas suas narrativas, rejeitando a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições naturais. Além disso, o autor conceitua a “nova” disciplina: “Em termos bem simples, portanto, a história ambiental trata do papel e do lugar da natureza na vida humana” (WORSTER, 1991, p. 201). Tratar do papel da natureza na vida humana, ou seja, ter ciência de que “os fatos ecológicos são indissociáveis dos fatos sociais, e são em última análise, históricos” (MARTINS, 2007, p.34), é possível porque os historiadores ambientais foram instigados pelas importantes mudanças epistemológicas em relação ao meio natural e sua relação com o ser humano, consolidadas no século XX, como pontua José Augusto Pádua. Dessas mudanças epistemológicas, o autor chama atenção para três: 1) A ideia de que a ação humana pode produzir um impacto relevante sobre o mundo natural, inclusive ao ponto de provocar sua degradação; 2) a revolução nos marcos cronológicos de compreensão do mundo; e 3) a visão de natureza como uma história, como um processo de construção e reconstrução ao longo do tempo (PÁDUA, 2010, p. 83).
Essas mudanças epistemológicas foram necessárias para que a História Ambiental tomasse consciência de si mesma e para que construísse seus pressupostos teóricos. Segundo Marcos Lobato Martins, o primeiro grande compromisso teórico da História Ambiental é o de rejeitar a fragmentação, dada pela observação em partes de um organismo, ecossistema ou sociedade. A História Ambien103
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tal precisa operar instrumentos que proporcione uma visão holística das sociedades e das naturezas, de suas interações em uma duração sempre longa. O segundo compromisso é o de considerar os biomas, regiões e paisagens como sistemas abertos, que são submetidos continuamente à influência de fatores aleatórios, dentre os quais as ações humanas, cujos resultados são imprevisíveis em longo prazo. Desse modo, ao lidar com a complexidade das inter-relações entre sociedades e ambientes, a História Ambiental deve fugir dos modelos de equilíbrio. O terceiro compromisso do trabalho do historiador ambiental é o de deslocar sua análise para o domínio da territorialidade, da espacialidade. Ou seja, para entender a inter-relação sociedade-natureza de maneira a fugir dos determinismos geográficos e biológicos, deve-se abordar os ambientes como resultante de fatores como a geografia física, o direito, a tecnologia disponível, a demografia e as exigências sociopolíticas. (MARTINS, p. 34-40). Assim, as mudanças epistemológicas apresentadas por Pádua possibilitaram produzir uma espécie de modelo ou programa, na qual a História Ambiental vem realizando suas pesquisas. Worster definiu em seus estudos que, na sua especificidade, a História Ambiental opera em três níveis. Ou seja, há três conjuntos de questões que ela enfrenta, três grupos de perguntas que ela procura responder. E por isso, exige em suas respostas, contribuições de outras disciplinas e aplica métodos especiais de análise. Essa proposta, que vem sendo aceita pelos historiadores ambientais, consiste no entendimento da natureza propriamente dita, tal como ela se organizou e funcionou no passado como o primeiro nível de estudos. Nesse nível, é imprescindível o auxílio das ciências naturais. O segundo nível introduz o socioeconômico na medida em que interage com o ambiente. O historiador ambiental, nesse ponto, se preocupa com as ferramentas de trabalho, com as relações sociais que nascem desse trabalho e com os diversos modos que os povos criaram para produzir bens a partir dos recursos naturais. Outra questão neste nível de análise diz respeito ao estudo do poder, já que o poder de tomar decisões, inclusive as que afetam o meio ambiente 104
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não se dão de maneira igual em uma sociedade. O terceiro e último nível de análise é a interação mais intangível e exclusivamente humana, como as percepções, valores éticos, leis, mitos e outras estruturas que se dão a partir do diálogo de uma sociedade com a natureza (WORSTER, 1991, p. 202). A partir desse modelo, voltando a trabalhar com os três níveis de estudos da História Ambiental, Donald Worster coloca que “o grande desafio da nova história não está em meramente identificar tais níveis de indagação, mas em decidir como e onde fazer as conexões entre eles” (1990, p.27). Dos pressupostos teóricos organizou-se a metodologia aplicada na pesquisa e na escrita da História Ambiental. Essa modalidade de estudo, que liga a história natural à história social, examinando a relação entre ambas, nasceu do grupo de historiadores e biólogos estadunidenses da American Society for Environmental History,no final da década de 1977 e a partir dos trabalhos desse grupo, podemos perceber seus aportes metodológicos. As características metodológicas da História Ambiental iniciam-se, segundo José Augusto Drummond, pelo recorte espacial. Este recorte focaliza, em geral, uma região com alguma homogeneidade ou identidade natural, como por exemplo, um território árido, uma ilha, um vale de um rio, uma área de ocorrência de uma árvore de alto valor comercial, nesse caso, revelando parentesco com a história natural. Pode ainda ser um recorte cultural ou político da região, como um parque nacional, as terras de um povo nativo ou áreas de influência de grandes obras, como a construção de represas, ferrovias etc., desse modo, aproximando-se da história regional. Outra característica da História Ambiental é o diálogo sistemático que esta realiza com quase todas as ciências naturais, se afastando nesse ponto da tradição humanista das ciências sociais. Ciências como geologia, geomorfologia, climatologia, meteorologia, biologia vegetal, animal e ecologia são campos muitas vezes citados nos estudos da História Ambiental. Há uma dependência dessas ciências para que se possa entender os ecossistemas para avaliar o 105
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papel das sociedades humanas dentro delas, seus limites e a potencialidade de superação cultural dentro desses limites. Outro traço dessa abordagem, apontado por Drummond é o objetivo de explorar as interações entre o quadro de recursos naturais úteis e inúteis e os diferentes estilos civilizatórios das sociedades humanas. Afinal, os recursos só se tornam recursos quando identificados e avaliados como tal. No que diz respeito às fontes, o historiador ambiental tem ao seu dispor uma grande variedade, que são pertinentes ao estudo das relações entre as sociedades e o seu ambiente e isso constitui na quarta característica da História Ambiental. Podem ser usadas fontes tradicionais como censos populacionais, econômicos e sanitários, inventários de recursos naturais, imprensa, leis e documentos governamentais, atas legislativas e judiciárias, crônicas. No caso de povos sem escrita, ou de tradição predominantemente oral, os historiadores trabalham com os mitos e lendas, registrados por viajantes ou antropólogos ou mesmo coletados em trabalho de campo. Além disso, usam-se também memórias, diários, inventários de bens, escrituras de compra e venda de terras, testamentos e tudo o mais que permita entender, por exemplo, quais recursos naturais são locais e quais são importados, como esses recursos são valorizados no cotidiano das sociedades e que tecnologias existem para o seu aproveitamento. A última característica da História Ambiental apresentada por Drummond diz respeito ao trabalho de campo. Segundo ele, frequentemente os historiadores ambientais viajam aos locais estudados e usam suas próprias observações pessoais. O trabalho de campo serve, acima de tudo, para identificar marcas deixadas na paisagem pelos diferentes usos humanos, e que nem sempre se consegue identificá-las nos documentos escritos (DRUMMOND, 1991, p 181-3). A História Ambiental assim compreendida ganhou espaço nos Programas de Pós-Graduação em História, no Brasil e no mundo, e 106
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cresce o número de obras editadas em diferentes idiomas trazendo uma abordagem ambiental para a História. O Brasil tem se tornado um campo de pesquisa em História Ambiental de excelência. Os principais centros de pesquisa estão no Rio de Janeiro, Brasília, Minas Gerais e Santa Catarina.
Conclusão A disciplina que estuda o homem no tempo pode ser sim aquela que estuda o homem no tempo e na natureza. Depois que se passa a pensar o meio natural como agente passivo, mas também ativo na História torna-se difícil abrir mão da presença do meio ambiente na vida humana bem como deixar de perceber o homem interferindo na natureza. Dessa relação, quase nunca harmoniosa, surgiu a categoria de análise apresentada nesse artigo. A História Ambiental se apresenta como uma abordagem histórica estruturada a partir da década de 1970, dentro de um contexto mundial no qual as questões ambientais passaram a sair dos laboratórios das áreas de biologia e entraram na pauta de discussões sociais, políticas e econômicas e a partir daí apresentamos a trajetória dessa categoria de análise. Além de sua trajetória, esse artigo procurou elucidar os pressupostos teórico-metodológicos a partir da concepção de historiadores que iniciaram essa abordagem ou que vêm trabalhando com a História Ambiental há algum tempo. O entendimento das especificidades dessa análise, como os três níveis que opera: o natural, o socioeconômico na medida em que interage com o ambiente e o que diz respeito ao intelectual, apresentados por Donald Worster como o diferencial dessa categoria, foi bastante explorado por se tratar do cerne da História Ambiental. Fazendo uma leitura das demandas atuais, concluímos ainda que, crescerá a necessidade desse tipo de abordagem nos projetos de pesquisa histórica e por conta disso, concordamos com Martins de que a História Ambiental, enquanto campo de conhecimento será cada vez mais requisitada. 107
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6. A filosofia nos dá “ainda” alguma esperança? Nietzsche e as esperanças em face de uma filosofia do cultivo Jonas Faccin
Introdução Todo aquele que em algum momento decidiu se arriscar, isto é, colocar à prova seu próprio pensamento ao adentrar no pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche, está como que fadado a sentir/ vivenciar as mais variadas consequências, inquietações, transtornos, eu diria, existenciais, de uma filosofia que não apenas continua profundamente atual, tendo em vista que Nietzsche foi um pensador do século XIX, mas também e principalmente, de uma filosofia que buscou, com todas as forças, corroborar inúmeras tentativas que pudessem favorecer ao homem nada menos que a elevação de sua própria condição existencial. Isto implica dizer que para Nietzsche, almejar toda e qualquer possibilidade de elevação da existência pressupõe do homem, acima de tudo, um desprendimento de forças ante a renovada e necessária tarefa de superação(Überwindung) daquilo que em cada tempo o pretende doente e enfraquecido. Deste modo, não encontramos em Nietzsche quaisquer prerrogativas que ensaiam no homem evolução, progresso e finalidade. Muito pelo contrário, o que o filósofo do martelo propõe é justamente uma necessária superação, ao que corresponde à busca pela desestabilização de uma vida que se encontra por vezes profundamente narcotizada ante as nefastas configurações do mundo moderno que, por seu turno, travestido enquanto pseudovalores, promete ao ho109
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mem certezas, segurança e estabilidade em detrimento das incertezas e instabilidades próprias vida humana. Na tentativa de desvelar formas mediocrizadas de existência, Nietzsche não apenas desfere ácidas críticas a todo arcabouço civilizatório, inclua-se aí sua crítica à moral, à religião e à filosofia, cujas pretensões eram atingir o máximo de verdade possível, ou seja, o máximo de certeza possível, mas procura, sobremaneira, condições de possibilidade para sobrelevar nos homens seu caráter de não fixidez, de indeterminação, ou, se quisermos, de outras possibilidades de “verdades”, pois, conforme suas palavras, o homem “é o animal ainda não determinado” (NIETZSCHE, 2005, p. 60). Em todo caso, diante de todas estas prerrogativas lançadas pelo filósofo alemão, a questão que se nos impõe é esta: Qual teria sido o caminho tomado por Nietzsche, a fim de dar cabo de tão grandiosa tarefa, isto é, exercer influências sobre os homens e em grande medida “modificar” o fluxo de sua existência? A hipótese que iremos apresentar neste capítulo é que Nietzsche haveria depositado suas esperanças frente a uma urgente elevação humana e cultural nada menos que na própria filosofia, bem compreendido, todavia, como ele concebe para si a tarefa da atividade filosófica. Com isto buscamos dizer que em nenhum outro lugar estariam depositadas suas esperanças à superação das nefastas condições existências do homem senão na atividade que é própria da filosofia. Destaque-se, a este respeito, que se as esperanças de Nietzsche apontam para a filosofia, deverá ser do filósofo a tarefa de conduzir o futuro da humanidade. Ora, na obra Além do Bem e do Mal Nietzsche parece radicalizara figura/presença do filósofo, de modo que este chega a ser por ele denominado de verdadeiro filósofo; filósofo do futuro, ou, o que é ainda mais emblemático, filósofo legislador. Intencionamos com isso refletir o modo como Nietzsche opera, sobretudo no escrito de Além do Bem e do Mal, com a figura do filósofo e em grande medida mostrar como este direcionamento tem a ver com uma renovada tentativa do próprio Nietzsche em buscar na filosofia suas esperanças à humanidade. 110
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Ademais, como último tópico desta introdução, cabe-nos destacar que este capítulo é fruto do Colóquio Civilização 2015, realizado na Faculdade Municipal de Palhoça, cujo tema geral foi “Valores” e subtema “Valores, formação humana e mundo do trabalho”. Para todos os efeitos, não é tarefa fácil reunir e “dar forma” a todas as reflexões e nuanças conferidas por Nietzsche ao problema dos valores, isto porque, sobretudo, ao tratar sobre valores, torna-se impreterível ao filósofo adentrar no problema da moral, o que implica, em grande medida, uma aproximação ao problema da verdade. Em contrapartida, não podemos nos furtar da necessidade de abordar todas estas questões. Em resumo, ao nos aproximarmos do pensamento de Nietzsche, em especial, a partir de sua reflexão em torno da figura do filósofo, temos como pretensão mostrar que também para ele a filosofia – incluam-se aí os valores por ela difundidos não pode jamais deixar de ser uma forma possível de ler o mundo.
Algumas considerações possíveis acerca do filósofo (de Nietzsche) Nietzsche foi, destacadamente, um filósofo da cultura9. Desde seus primeiros escritos até os derradeiros, o problema da cultura estava posto como fio condutor de sua filosofia, o que parece evidenciar-se à medida que nos aproximamos de suas inúmeras produCabe-nos neste instante realizar uma observação, ainda que de modo genérico, acerca do sentido e significado de cultura na língua alemã. Acerca desta questão, destaque-se os termos Cultur e Bildung.De maneira geral, a palavra alemã Cultur(cultura) “foi adaptada de cultura animi de Cícero por Samuel Pufendorf e Gottfried von Herder. Até os últimos anos do século XVIII, continuou estritamente relacionada com o conceito de Bildung. Tinha o significado de ‘cultura pessoal’; referia-se ao cultivo da mente e do espírito. Depois, gradativamente, passou a ser usada, nos círculos alemães cultos, em seu sentido mais geral de síntese de todas as realizações do homem civilizado na sociedade”. Cf. RINGER, 2000, p. 96. Segundo Britto, Cultur corresponde ao “estado externo da cultura, suas instituições públicas, seu horizonte ideológico coletivo” Cf. BRITTO, 2012, p. 222. Acerca do conceito de Bildung (formação cultural), cumpri mostrar que na transição do século do XVIII para o XIX, intensificaram-se na Alemanha diversas ações em torno dos ideais de modernização, de modo que a abrupta e impactante aceleração industrial, iniciada por volta de 1870,só fez aumentar fortes tensões sociais e culturais. Reagindo contrariamente às consequências deste processo de modernização, os acadêmicos alemães foram essenciais ao ímpeto de uma necessária transformação.Deste modo, fora no intuito de contornar o esfacelamento cultural pelo qual passava a Alemanha que “o tema da urgência de uma Bildung por vir, capaz de resgatar no povo alemão sua identidade e grandeza, condicionou o tom do discurso predominante em todos os círculos onde a ideia de cultura pudesse ter alguma relevância ao longo do século XIX”. Cf. BRITTO, 2009, introdução p. 19.Em seu fundamento, a Bildung corresponde a uma formação que está direcionada à interioridade do homem, ao seu “crescimento interior e autodesenvolvimento integral”, em que “o ponto de partida é o indivíduo único”. Cf. RINGER, 2000, p. 96. Portanto, segundo destaca Britto, “A Bildung, tanto em um nível psicológico quanto em um nível institucional, foi o que permitiu aos alemães, pela primeira vez, resgatar certa unidade simbólica, uma imagem como nação. Somente a ideia de uma cultura que nasce dos indivíduos e que se estende sob a forma de um espírito popular, um Volksgeist, parecia ter força ideológica suficiente para recuperar uma identidade cultural que para a Alemanha, com uma série de estados independentes e gradualmente fragmentados, era particularmente difícil”. Cf. BRITTO, 2012, p. 220. 9
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ções, tanto as que foram publicadas, quanto as que permaneceram enquanto apontamentos não publicados. A este respeito, note-se o que escreve Nietzsche num apontamento póstumo, datado de 1872, em que parece querer intensificar a relevância da cultura, sobretudo a cultura alemã, ao círculo das discussões filosóficas: “Aquilo que é a filosofia tem de se tornar claro, em particular a tarefa da filosofia no interior de uma cultura” (NIETZSCHE, apud FAUSTINO, 2013, p. 26). Anos mais tarde, agora num apontamento não publicado de 1887, percebemos que o problema da cultura permanece veemente nas imediatas preocupações filosóficas de Nietzsche. A este respeito, encontramos escrito: “No lugar da ‘sociedade’, o complexo cultural como meu interesse privilegiado” (NIETZSCHE, 2013, p. 388). Conforme destaca Patrick Wotling, “a noção de além-do-homem ou o pensamento do eterno retorno abarcam algo completamente diferente de uma determinação da essência do homem ou de uma teoria cosmológica” (WOTLING, 2013, p. 57), pois, “se esses pensamentos são propriamente nietzschianos, é porque respondem a problemas específicos posto pela interrogação acerca da cultura” (WOTLING, 2013, p. 57). Longe de esgotarmos, nestas poucas passagens acima referenciadas, a profunda relevância que possui o problema da cultura na filosofia nietzschiana, nos parece de todo evidente que a questão cultural não encontra-se aí colocada como um mero apêndice, mas, para além, poderíamos com toda certeza e sem exageros afirmar, constitui ponto de partida no pensamento de Nietzsche, algo que evidencia-se ainda mais quando de posse da totalidade de suas obras, ali se constata como o problema da cultura tornou-se o fio condutor de suas empreitadas filosóficas. É, pois, a partir desta constatação acerca da relevância cultural no pensamento de Nietzsche que referenciamos neste instante uma passagem do próprio filósofo que, um tanto emblemático, parece querer apresentar-se à humanidade com uma grandiosa tarefa. Assim se expressa Nietzsche: “Em toda seriedade, ninguém antes 112
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de mim conhecia o caminho reto, o caminho para cima: apenas a partir de mim há novamente esperanças, tarefas, caminhos a traçar para a cultura – eu sou seu alegre mensageiro” (NIETZSCHE, 2008, p. 94).Ora, acerca deste trecho, destaque-se o fato de que ele não corresponde a uma mera presunção, ou mesmo a qualquer forma de desvario de Nietzsche ao designar-se, ou melhor, ao designar sua própria filosofia como “esperança, tarefa, caminho a traçar para a cultura”. Há sim propósitos suficientes para tal tomada de posição e Nietzsche pareceu querer identificá-los ao longo de sua trajetória filosófica. Para ficarmos com um exemplo, cito de Nietzsche um dos grandes motivos que o levaram a designar-se como “esperança, tarefa, caminho a traçar para a cultura”, e não de outro modo. Conforme escreve o filósofo: Minha tarefa de preparar para a humanidade um instante de suprema tomada de consciência, um grande meio-dia em que ela olhe para trás e para adiante, em que ela escape ao domínio do acaso e do sacerdote e coloque a questão do por quê? do para quê? pela primeira vez como um todo – essa tarefa resulta necessariamente da compreensão de que a humanidade não segue por si o caminho reto, que não é regida divinamente, que na verdade, sob as mais sagradas noções de valor, foi o instinto de negação, de degeneração, o instinto de décadence que governou sedutoramente (NIETZSCHE, 2008, p. 76).
Esta passagem de Ecce Homo parece nos indicar, com firme certeza, o fato de que Nietzsche identifica a decadência de sua cultura à própria decadência existencial humana, de tal modo que não será possível diagnosticar distintamente os sintomas de homem e cultura. Em todo caso, à afirmação do filósofo de que a humanidade encontra-se em caminhos tortuosos, que “foi o instinto de negação, degeneração, o instinto de décadence” aquilo que até então a guiou, 113
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o que ele diagnostica no homem de sua época, a ponto deste ser digno de receber ácidas críticas? Acerca desta questão, ressalte-se que “o que nele [no homem] se empreende há mais de três séculos, é, para Nietzsche, uma tentativa global em sentido inverso da auto-superação do homem, a saber, o ensaio de auto-rebaixamento, de congelamento do “tipo homem” numa figura medíocre e banal” (GIACOIA, 2005, p. 28). Note-se que Nietzsche tem como horizonte uma época profundamente enfraquecida e debilitada, e isto devido, sobretudo, as nefastas e decadentes perspectivas da modernidade que, por seu turno, ao preterir “medicar” os homens sob a prerrogativa de seu “melhoramento”, aplicou-lhes um antídoto que tão somente intensificou uma forma ainda mais cruel e perigosa de degenerescência existencial. Sobre esta questão, escreve o pensador alemão em Crepúsculo dos Ídolos, no capítulo capciosamente intitulado “Os ‘melhoradores’ da humanidade”: Em todas as épocas se quis “melhorar” os seres humanos: sobretudo a isso se chamou moral. Mas sob as mesmas palavras escondemse todas as tendências mais diversas. Tanto a domesticação [Zähmung] da besta homem quanto o cultivo [Züchtung] de uma determinada espécie de ser humano foi denominado de “melhoramento” [...] Denominar de “melhoramento” a domesticação de um animal é, aos nossos ouvidos, quase uma piada (NIETZSCHE, 2014, p. 49-50).
Disto concluímos que é demasiadamente caro a Nietzsche o fato de sua própria época alicerçar-se em tentativas frustradas de levar a cabo inúmeras possibilidades, projetadas quase que arquitetonicamente, com a finalidade de oferecer aos homens respostas e certezas ante o seu grande enigma existencial, assim como aos acontecimentos e situações que os circundam e constituem sua cotidianidade. Sobre esta questão, é preciso dizer que a crítica de Nietzsche 114
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à modernidade envereda-se para as mais diversas perspectivas, de modo que seu combate se dá, poderíamos assim dizer, em muitas arenas de batalha, ora com a arte, ora com a política, com a moral, com a religião, com a própria filosofia, etc. O que neste instante se quer ressaltar, todavia, não é tanto a seara que compõe as investidas de Nietzsche como crítico da modernidade, isto é, como crítico das mais variadas facetas e idealizações modernas, mas, justamente, que para o filósofo, a modernidade opera sob a prerrogativa de enfraquecimento das forças humanas, ou, quando não, do próprio aniquilamento dessas forças. Para tanto, partindo da consideração de que a modernidade estaria fazendo prevalecer no homem um tipo de existência adoecida, sobretudo por imprimir-lhe um caráter antinatural que parece querer fixá-lo numa espécie de categorização estanque de sua natureza, dirá Nietzsche: “Que ingenuidade dizer ‘assim e assim deveria ser o homem!’. A realidade nos mostra uma fascinante riqueza de tipos, a opulência de um pródigo jogo e alternância de formas” (NIETZSCHE, 2006, p.37). Ora, esta pretensão a um enfraquecimento e/ ou aniquilamento das multifacetadas possibilidades que compõem o homem, seu modo de ação e seu estar no mundo parecem fazer com que Nietzsche proponha uma outra forma de vivência. Acerca desta questão, àqueles que pretendem fixar-se em uma única roupagem, de tal modo que possam eliminar qualquer forma de desestabilização, nada mais dizer senão que “a afirmação e legitimação dos trajes únicos fazem prevalecer uma espécie de moral que, de fato, é uma antinatureza que nos dificulta viver em plenitude” (HARDT, 2014, p.154). Deste modo, tal como referenciado na passagem supracitada de Crepúsculo dos Ídolos, um dos mais intensos problemas identificados por Nietzsche encontra-se no fato de se pretender agir conforme as prerrogativas de um “melhoramento” humano, donde as investidas culturais da modernidade não alcançaram outra coisa senão uma espécie de sustentação à domesticação do homem. Daí que o 115
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tipo humano surgido nesta empreitada decadente só pode ser alguém existencialmente adoecido, e isto porque, estando ele culturalmente debilitado, “o que aqui julga saber, o que aqui se glorifica com seu louvor e seu reproche, e se qualifica de bom, é o instinto do animal de rebanho homem” (NIETZSCHE, 2005, p 89). É por ter justamente como horizonte uma época em que imperava uma profunda crise cultural, sobretudo no que concerne ao tipo de existência até então cultivada, que Nietzsche deverá se perguntar: “Para onde apontaremos nós nossas esperanças?” (NIETZSHE, 2005, p. 91). Não fixando-se apenas no campo da retórica, esta sua interrogação visa uma resposta “definitiva”, qual seja, “para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar ‘valores eternos’, para precursores e arautos, para homens do futuro” (NIETZSHE, 2005, p. 91). Acerca da relevância destes filósofos, tal como destaca Nietzsche, é interessante ressaltar que desde cedo em seus escritos ele já atentava para a necessidade de uma “nova espécie de filósofos” (NIETZSHE, 2005, p. 10) que pudesse manter o futuro do homem e da cultura. Basta notar, por exemplo, a pergunta que realiza no aforismo 4 de Schopenhauer Educador, diga-se de passagem, um escrito de juventude: “O que significa na nossa época o filósofo educador?” (NIETZSCHE, 2011, p. 192). Nietzsche parece oferecer uma resposta no próprio texto em questão: Pode ser que o homem em questão, que vê no serviço do Estado seu dever supremo, não conheça efetivamente deveres mais elevados; mas isto não exime, porém, que haja outros homens e outros deveres, e um desses deveres, que a mim me parece pelo menos ser superior ao serviço do Estado, exige destruir a estupidez sob todas as suas formas [...] Esta é a razão por que eu me ocupo por aqui com uma espécie de homens, cuja teleologia vai um pouco além do bem do Estado, quer dizer, os filósofos; e deles não me ocupo também senão em 116
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consideração a um mundo que é ainda mais independente do bem do Estado, o mundo da cultura (NIETZSCHE, 2011, p. 193).
Não obstante as mais variadas passagens que atestam o direcionamento que Nietzsche confere em seus escritos à figura de uma certa “classe de filósofos”, o fato é que para o pensador alemão, ao que tudo indica, são os novos filósofos (neuen Philosophen), estes filósofos legisladores (Philosophen Gesetzgeber), os grandes responsáveis em dar cabo de uma nova exigência posta à humanidade, qual seja, “enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (NIETZSCHE, 2009, p. 12). Segundo destaca Marta Faustino, estes novos filósofos terão “mais que fazer do que simplesmente conhecer – nomeadamente, ser algo de novo, significar algo de novo, apresentar novos valores” (FAUSTINO, 2013, p. 34). Neste caso, são os filósofos do futuro (Philosophen der Zukunft), tal como designa Nietzsche, os que de fato conseguirão transvalorar, sobretudo como “precursores e arautos”, aqueles valores que até então hegemônicos, configuraram as experiências do homem moderno. Note-se portanto que Nietzsche outorga a estes filósofos a autoridade de serem legisladores de valores, de modo que o que efetivamente deverá ser considerado são os esforços destes a uma transvaloração dos valores10. Ora, antes que se possa vislumbrar Nietzsche - a partir da figura dos “legisladores” – como anunciador de um despotismo cuja finalidade seria sobrelevar alguns poucos em detrimento de outros tantos, ou, o que é ainda mais grave, eliminar aqueles que julgasse indignos de vida, é preciso dizer que longe de tais pretensões, o pensador alemão parece claramente indicar por qual caminho deseja percorrer na busca por transvalorar os valores, a saber, o caminho da filosofia. Dito de modo mais preciso, além de Conforme destaca Patrick Wotling: A crítica [de Nietzsche] incide sobre a compreensão do filósofo que prevaleceu na tradição, figura superficial por jamais ter conseguido elevar-se até a problemática dos valores e que, portanto, permaneceu cativa dos valores propostos por outros sistemas axiológicos, notadamente morais e religiosos. (WOTLING, 2011, p. 40). 10
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eleger a grande tarefa a ser buscada – a necessária transvaloração dos valores – Nietzsche elege o responsável por esta empreitada, neste caso, ninguém menos que o próprio filósofo, tal como imaginado por ele. Isto implica dizer que os filósofos possuem como tarefa nada menos que a criação de valores. É, pois, por estarem direcionados à criação de valores que os “filósofos de Nietzsche” são, sobretudo, legisladores. Dirá Nietzsche no aforismo 211 de Além do Bem e do Mal: “Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o para onde? E para quê? do ser humano [...] Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar” (NIETZSCHE, 2005, p. 105-106)11. Daí que, tal como escreve Wotling, “a problemática da inversão dos valores decorre diretamente dessa concepção renovada da tarefa filosófica, fundamentalmente prática e não especulativa” (WOTILING, 2011, p. 41). Fato extremamente relevante é que estes novos filósofos deverão direcionar-se ao conhecimento dos pressupostos que, a cada época, marcam profundamente a formação da humanidade. Ou seja, serão necessários espíritos fortes o bastante para que, ao invés de serem tomados por sua própria época, possam, de modo inverso, desvencilhar-se das inúmeras tentativas de aprisionamento e convencimento de um único modo possível de existência. Disto decorre que como criadores, estes filósofos são espíritos livres. Ora, somente alguém que se reconhece livre pode ser a “má consciência do seu tempo”. Cada vez mais quer me parecer que o filósofo, sendo por necessidade um homem do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou e teve de se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje [...] mas afinal também a grandeza de sua tarefa, em ser a má consciência do seu tempo. Colocando a faca no peito das virtudes do tempo, para vivisseccioná-lo, deletaram seu Encontramos as seguintes palavras de Nietzsche num apontamento não publicados do ano de 1884 e cujo título é “O legislador do futuro”: “Depois de ter procurado ligar à palavra ‘filósofo’ um determinado conceito, encontrei por fim que dele há duas espécies: 1) aqueles que procuram constatar uma grande situação fática; 2) aqueles que são legisladores de escalas axiológicas”. Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 216-217. 11
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próprio segredo: saber de uma nova grandeza do homem, de um caminho não trilhado para o seu engrandecimento (NIETZSCHE, 2005, p. 106). Levando em consideração esta passagem, nela Nietzsche parece querer mostrar, uma vez mais, que o filósofo por ele desejado, o que equivale dizer, que a atividade filosófica por ele almejada, precisa ser, necessariamente, a própria “má consciência” de seu tempo. É, pois, neste sentido que o filósofo (de Nietzsche), sendo legislador, terá de colocar “a faca” nas decadentes virtudes condutoras do homem. Agindo de tal forma, estes filósofos irão como que apresentar sua tarefa, a saber, buscar no homem um novo caminho, uma nova possibilidade em que pudesse ser a existência de fato engrandecida. Note-se que Nietzsche toma como preocupação central uma espécie de “consciência conformadora” – daí a impreterível postura do filósofo como a má consciência do seu tempo - que haveria se instalado nas práticas do homem moderno. Isto é, para Nietzsche, há muito tempo os homens estariam cultivando valores profundamente decadentes. Partindo de uma configuração humana mediocrizada pelos pressupostos modernos, cujo objetivo central era justamente a fixação do homem numa única roupagem, dirá Nietzsche no aforismo 3 de O Anticristo: “O problema que aqui coloco não é o que sucederá a humanidade na sequência dos seres (- o homem é um final -); mas sim que tipo de homem deve-se cultivar , deve-se querer, como de mais alto valor, mais digno de vida, mais certo de futuro”(NIETZSCHE, 2014, p. 10), uma vez que, completa o filósofo, “a partir do medo foi querido, cultivado, alcançado o tipo oposto: o animal doméstico, o animal de rebanho, o animal doente homem” (Idem). Frente a tais constatações e perspectivas filosóficas de Nietzsche, o que, segundo ele, autorizaria aos verdadeiros filósofos a agirem como legisladores e arautos do futuro? A esta questão, o aforismo 205 de Além do Bem e do Mal parece indicar uma possível resposta. Assim escreve Nietzsche: “O verdadeiro filósofo[...] sente o fardo e a obrigação das mil tentativas e tentações da vida – ele 119
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arrisca a si próprio constantemente, jogando o jogo ruim” (NIETZSCHE, 2005, p. 96). Ora, tendo como horizonte esta sua afirmação, Nietzsche parece querer identificar estes filósofos a homens cuja própria vida tornou-se nada menos que um grande “laboratório” de experimentação. Aliás, já no aforismo 42 do mesmo texto, ele já havia escrito sobre o filósofo experimentador: “Está surgindo uma nova espécie de filósofos: atrevo-me a batizá-los com um nome que não está isento de perigos [...] esses filósofos do futuro bem poderiam, ou mesmo mal poderiam, ser chamados de tentadores” (NIETZSCHE, 2005, p. 44). Pois bem, o filósofo de Nietzsche é alguém, acima de tudo, experimentado, isto porque, sobremaneira, faz de suas próprias ações uma grande condição de possibilidade para a experimentação12. Os filósofos experimentadores “serão, na modernidade, os únicos possíveis depositários daquela grandeza que é condição de todo comando e legislação: o domínio de si” (GIACOIA, 2005, p. 31). Neste caso, é apenas enquanto artistas que estes filósofos tornar-se-ão capazes de exercer domínio sobre si, no mesmo instante em que como legisladores, conseguirão dar forma ao homem. Assim escreve Nietzsche acerca destes “homens artísticos”, num apontamento póstumo escrito entre 1885-1886: uma aristocracia nova, descomunal, construída sobre a autolegislação mais rígida, na qual é dada para a vontade de homens filosóficos violentos e de tiranos artísticos a duração para além dos milênios [...] a fim de assumir o destino da terra em suas mãos, a fim de como artistas dar forma ao próprio “homem” (NIETZSCHE, 2013, p. 71, grifo nosso).
Tal como parece evidenciar-se, para Nietzsche, o filósofo que legisla e experimenta é, primordialmente, o “filósofo artista”. ResAssim escreve Nietzsche no aforismo 319 d’A Guaia Ciência, intitulado “Como intérpretes de nossas vivências: “Mas nós, os sequiosos de razão, queremos examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a hora e dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias” (NIETZSCHE, 2012, p. 189). 12
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salte-se que esta perspectiva não se desenvolve de modo arbitrário e superficial em sua filosofia, mas antes, ao que tudo indica, Nietzsche buscou enfatizar esta relação do artístico, principalmente no que tange à habilidade criativa do artista, com a própria filosofia, cuja tarefa seria a da criação, algo que pode ser comprovado quando nos aproximamos de suas discussões em torno da vinculação entre filosofia e busca pela verdade. Em suas palavras: “A constatação da diferença entre o ‘verdadeiro’ e o ‘falso’, a constatação em geral de estados de fato é fundamentalmente diversa do posicionamento criativo, da formação, da configuração, da dominação, do querer, tal como se encontra na essência da filosofia” (NIETZSCHE, 2013, p. 296)13. Como artistas, os filósofos do futuro, os “espíritos livres, muito livres” (NIETZSCHE, 2005, p. 44), serão os responsáveis em dar cabo à tarefa de saber “de onde e de que modo, até hoje, a planta ‘homem’ cresceu mais vigorosamente até às alturas”(NIETZSCHE, 2005, p. 45) e isto porque, sobretudo, “só ele [o filósofo legislador] é o herdeiro da força cultural acumulada, que é capaz de assumir, como um dever, a legislação dos próximos milênios e a criação de novas tábuas de valor” (GIACOIA, 2003, p. 26). Em suma, tal como comprova seu filosofar, em momento algum Nietzsche se afastou da filosofia, pois, se algo se mantém latente em suas proposições estas são justamente suas esperanças à frutuosa atividade do filósofo, cuja disposição aponta para “grandes responsabilidades” ao futuro da humanidade. O fato é que Nietzsche jamais teve controle das proporções que seu filosofar poderia atingir, e com certeza mesmo hoje não o teria. Muito distante de pretender Não é tarefa fácil “depurar” toda a reflexão de Nietzsche sobre o problema da “verdade”. Para ficarmos com um exemplo que se vincula diretamente às nossas discussões acerca da figura deste homem filosófico, tal como pensado por Nietzsche, citamos um trecho do aforismo 25 de Além do Bem e do Mal e que se encontra no segundo capítulo do livro, cujo título é “O espírito Livre”. Nele escreve Nietzsche: “Tenham cuidado, filósofos e amigos do conhecimento; evitem o martírio! O sofrimento ‘pela verdade’” (Nietzsche, 2005, p. 29). Cf. também NIETZSCHE, 2005, p. 44: “Serão amigos da ‘verdade’ esses filósofos vindouros? Muito provavelmente: pois até agora todos os filósofos amaram suas verdades. Mas com certeza não serão dogmáticos”. Numa referência direta a este texto - § 44 de Além do Bem e do Mal - assim comenta Oswaldo Giacoia: “Os espíritos muito livres, os filósofos do futuro, permanecerão fiéis à sua vocação para a ‘filosofia’, continuarão sendo amantes da verdade, como até agora o foram todos os autênticos filósofos. Porém seguramente não serão dogmáticos: eles se manterão sobretudo zelosos de ‘sua’ verdade, não de uma ‘verdade para qualquer um’ — pois essa foi a mais recôndita aspiração de todos os dogmáticos” (GIACOIA, 2005. p. 23). Disto decorre, justamente,que estes homens filosóficos “serão mais duros (talvez não apenas consigo) do que homens humanos poderiam desejar, não lidarão com a verdade para que ela lhes ‘agrade’, os ‘eleve’ ou ‘entusiasme’ – pelo contrário, será mínima a sua crença de que justamente a verdade comporte esses prazeres para o sentimento” (NIETZSCHE, 2005, p. 104). 13
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controlar isto que é incontrolável, o que ele faz é atentar para a necessidade do surgimento de uma “outra espécie de espíritos, diferentes daqueles prováveis nesse tempo” (NIETZSCHE, 2009, p. 78), isto é, diferentes dos prováveis em cada tempo, pois, ao que parece, pretende-se, em cada tempo, delimitar e enfraquecer a potência da atividade filosófica. A nós filósofos nos resta, portanto, revermos a maneira como assumimos hoje nossas responsabilidades frente aos complexos problemas existenciais, tendo em vista que, seguramente, muitas dessas responsabilidades foram assumidas e reivindicas pela filosofia de Nietzsche até as últimas consequências.
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7. A incerteza do presente como poderosa força individualizadora Maria Fernanda Diogo
Introdução Este texto apresenta pesquisa bibliográfica originada de um recorte da tese de doutoramento da autora (DIOGO, 2012), realizada com objetivo compreender como a postura individualista, assumida por boa parte da sociedade contemporânea, alavancou o segmento de segurança privada, excluindo e deslegitimando as autoridades públicas. Iniciou-se abordando o fenômeno da violência e seu crescimento no Brasil e em outros países latino-americanos. Na sequência, teceram-se considerações ao aumento da violência em toda América Latina, à nova ordem societal instaurada, a qual se apresenta extremante individualista, excludente e não comunitária, passando a considerar pessoas estranhas inimigas potenciais e, finalmente, buscou-se demonstrar como esta postura não auxilia no empreendimento de reais transformações sociais.
O recrudescimento da violência É difícil definir com precisão o que é violência, pois este é um conceito político que habita o cruzamento de vários campos disciplinares e áreas de investigação, obtendo tantas definições quantas forem suas manifestações (OLMO, 2000). Optou-se neste texto pela breve e precisa definição de Barus-Michel (2011) “a violência é poder e destruição”. Esta aparece nos atos violentos interpessoais, interroga o Direito e a Ética, ultrapassa os limites sociais e está 125
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associada à imagem de agressão, crimes, roubos, massacres. Para a autora, ela é multívoca, pois se refere à experiência de um caos interno ou ações agravantes sobre o meio, coisas ou pessoas, infringindo feridas psíquicas ou físicas, sempre de modo traumatizante. Seja qual for sua definição, violência custa caro, do ponto de vista objetivo e subjetivo. Alguns exemplos podem ser úteis para ilustrar seus custos orçamentários: o estado de São Paulo desperdiçou com a violência3% de seu PIB (Produto Interno Bruto) em 1997, despesa repartida entre Governo e sociedade civil (KAHN, 1999). Pesquisa sobre os custos da violência na cidade do Rio de Janeiro detectou em 1997 que a taxa de homicídios foi de 63 ocorrências para cada grupo de 100 mil habitantes, morrendo naquele ano mais gente por violência do que por acidente e desperdiçando R$ 887 bilhões para o município (ISER, 1998). Rondon e Andrade (2003) estudaram os custos da violência em Belo Horizonte em 1999, demonstrando que esta impôs a perda de R$ 835 milhões à capital mineira. Pesquisa de âmbito nacional mostra dados ainda mais alarmantes: em 2005 estima-se que o Brasil desperdiçou 5% do PIB com a violência, com custos divididos entre Estado e cidadãos (CERQUEIRA et al, 2007). Especificamente com relação aos homicídios, nos últimos 25 anos houve um aumento de médio anual de 5,6% no número de registros, o que posicionou o país entre os mais violentos do planeta, com uma taxa de 28 homicídios para cada 100 mil habitantes (CERQUEIRA et al., 2007, p. 44). Quando se estimam os custos da violência, perde o Estado e a sociedade civil. O primeiro arca com os custos do sistema de saúde para tratamento das vítimas, despesas do sistema de seguridade social, de resposta e prevenção ao crime e com os gastos com seguros. No que se refere aos custos privados, a sociedade arca (não somente as vítimas) com perdas materiais, processos judiciais, tratamentos médicos e terapêuticos, acrescidos a estes os custos intangíveis, tais como a dor, o sofrimento e a diminuição da qualidade de vida (CERQUEIRA et al., 2007). 126
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Não somente o Brasil possui estatísticas preocupantes relacionadas à violência. Briceño-León e Zubillaga (2002) apontam para o crescimento da violência em geral e dos homicídios em toda América Latina: o número de vítimas aumentou três a quatro vezes nos últimos vinte anos, prevalecendo“[...] uma violência diária em magnitudes nunca vistas no passado, ocorrendo ao mesmo tempo em que a região vem sentindo o impacto das mudanças na sociedade global” (p. 19, tradução da autora).Utilizando uma escala de violência, os autores classificaram os países latino-americanos em três grupos, de acordo com a taxa de homicídios. O Brasil ocupa o grupo intermediário (10 a 39 homicídios a cada 100.000 habitantes) ao lado do México, Peru e Venezuela. Chesnais (1999), Soares (2006), Pinheiro (2007), entre outros, apontam não ser fácil esclarecer as causas do recrudescimento da violência no Brasil e em outros países devido à complexidade das análises que se pode realizar. Segundo Chesnais (1999), no Brasil elas estão associadas a componentes sócio-econômicos, conjunturais e estruturais, tais como o descrédito das instituições e a ineficiência do Estado em administrar a repressão e propiciar a prevenção. Cerqueira et al. (2007) ainda distinguem como combustíveis da criminalidade brasileira a exclusão econômica e social, a desigualdade de rendimentos e a insuficiência de alocação de recursos para as polícias. O efetivo de policiais tem diminuído em vários estados, enquanto o número de vigilantes privados aumenta vertiginosamente. Neste caótico panorama acrescenta-se, segundo Pinheiro (2007), a especialização do crime. Esta surgiu com o incremento do tráfico de drogas, armas, e na escalada qualitativa dos crimes violentos em toda América Latina nos anos 1980/90, sobretudo devido ao enorme gap entre a legislação e a realidade da sua aplicação. “O Brasil, a exemplo de outros países latino-americanos, é uma sociedade que se baseia na exclusão, uma democracia sem cidadania” (PINHEIRO, 2007, p. 45). A legislação em si não garante a prática dos Direitos Humanos porque não se remete exclusivamente à ordem jurídica ou legal, 127
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estando também comprometida com questões provenientes da subjetividade de seus executores (BICALHO, 2005). Na análise de Bittar (2008), seria necessário ao Brasil consolidar um Estado de Direito. Para este autor, a violência realiza uma dialética intrínseca ao seu funcionamento, representando “[...] o avesso do discurso, o avesso do entendimento. É a supressão do outro e da racionalidade, da integração e da solidariedade” (p. 219). Enquanto se perpetrarem disparidades, hierarquias e segmentações, esta dialética se perpetuará. Revisão da literatura sobre violência urbana realizada por Winton (2004) aponta que certos modelos de desenvolvimento se cruzam às condições locais para estimular e formar a violência. “Em contextos urbanos, tanto a privação como a desigualdade são as formas mais importantes de violência estrutural, e, também, estas se relacionam mais significativamente com o surgimento da violência reativa diária” (p. 167, tradução da autora). Winton considera que a falta de acesso aos serviços sociais básicos é o principal fomento da violência (e não exclusivamente más condições econômicas), pois em situação de grave desigualdade os excluídos são marginalizados, aumentando o potencial para o surgimento de crimes. A autora conclui que a violência é uma considerável barreira para o desenvolvimento e que, de modo dialético, o próprio processo de desenvolvimento com frequência produz e molda novas formas de violência urbana. O tráfico de armas e drogas são as dinâmicas violentas que mais crescem nas metrópoles brasileiras, articuladas à rede do crime organizado. O Estado não tem conseguido não fazer frente a estes avanços, dentre outras causas, pela fragmentação da segurança pública (SOARES, 2006). Na análise do Ministério da Justiça (2009), as respostas oficiais à violência no Brasil têm sido pautadas pela improvisação, traduzidas em perspectivas de trabalho pontuais e com horizontes de curto prazo, reforçando um modelo tradicional de segurança pública e expressando “a lógica da inércia e da ação reativa, com efeitos de pouco sucesso no combate e prevenção da violência e criminalidade” (p. 29). 128
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Para citar um exemplo desta postura, Rebeque, Jagel e Bicalho (2008) analisaram um tradicional instrumento de confronto: o “Caveirão”. Este é um veículo blindado utilizado pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Para os autores, a utilização deste instrumento reforça e mantém a lógica de uma política repressiva, baseada em estratégias de confrontação, intimidação e práticas policiais fundamentadas na criminalização da pobreza. O “Caveirão” representa para as comunidades cariocas uma ameaça tanto física como psicológica, apontando para práticas de moralização social e repressão. Para Briceño-León e Zubillaga (2002), o aumento da violência na América Latina só será enfrentado com êxito com ações multifatoriais e coletivas, pela união de esforços para restaurar a imagem das polícias e pela introdução de respostas políticas e sociais inovadoras ao problema das drogas e do tráfico.
A segregação do espaço urbano Os sujeitos têm suas subjetividades forjadas pelas nuances culturais emergentes, alterando os modos de ser e de agir em seus contextos. As sociedades contemporâneas tornaram-se exacerbadamente individualistas e passaram a considerar pessoas estranhas, principalmente as pobres, inimigos potenciais. Bauman (2001) é um importante crítico da “modernidade líquida” e suas formas individualizantes. Para o autor, a nova ordem societal passou a ser definida em termos econômicos e a contemporaneidade tornou-se não comunitária, dado que as agendas sociais deixaram de lado a justiça distributiva e a defesa da igualdade de direitos em prol de uma minoria abastada, habitante de sociedades desregulamentadas, competitivas e baseadas na estética do consumo (BAUMAN, 2003). A busca por segurança, pela manutenção do status quo e da integridade (corporal e das propriedades) muitas vezes é conduzida pelo isolamento em simulacros de comunidade. Para Bauman (2003, p. 49), a “secessão dos bem sucedidos” gera distanciamento, indi129
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ferença e desengajamento, pois estas “ilhas vigiadas” (p. 53) atuam muito mais no sentido da estética que da ética, não se comprometendo com os valores da justiça social, afinal estes não lhes dizem respeito. Caldeira (2000) tece análises semelhantes às de Bauman sobre a segregação espacial e a discriminação social na emergência de um novo padrão de organização das diferenças no espaço urbano. Investigando experiências de medo em moradores da cidade de São Paulo, a autora denunciou que a insegurança se tornou justificativa para o uso de tecnologia de exclusão social e para a alteração da noção público/privado predominante nas sociedades ocidentais, transformando o espaço coletivo. Tanto simbólica como materialmente estas estratégias operam de forma semelhante: estabelecem diferenças, impõem divisões e distâncias, constroem separações, multiplicam regras de evitação e exclusão e restringem os movimentos (p. 9).
Um exemplo de segregação documentado por Caldeira (2000) é a proliferação no município de São Paulo dos condomínios fechados, locais onde moram grupos sociais abastados e homogêneos, nos quais não se enfatiza a comunhão de valores humanos ou os interesses partilhados. “Para os empreendedores imobiliários brasileiros e seus clientes, as vantagens da homogeneidade social não implicam o desejo de uma sociabilidade local” (p. 277), ou seja, habitar condomínios não cria vivências públicas reguladas pela democracia e pela civilidade, ao contrário, afasta o diferente, aquele não pertencente àquela camada social por meio do uso de tecnologias de segurança privada. Ao analisar estes e outros mecanismos de segregação perpetuados pela elite temerária, Bauman (2001, p. 170) vaticina: “a incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora14”. 14
O título atribuído ao presente texto foi inspirado nesta referência.
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Coadunando com a visão acima através do estudo da arquitetura da violência, Feraz et al. (2005) descreveram a intensificação dos movimentos de exclusão, anulação do diferente e desrespeito aos espaços coletivos cidades nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo os autores, a ânsia por segurança ampliou a ocupação privada de espaços públicos, dificultando ou impossibilitando a livre circulação e a aversão ao diferente deu origem à “arquitetura anti-mendigo”, cada vez mais presente nos bairros nobres: o uso de pequenas colunas de ferro e grades impedindo que áreas externas (muretas, beirais etc.) sejam usadas para sentar ou deitar, inibindo a permanência de “estranhos” no local. Observa-se nas periferias das grandes cidades a precariedade estrutural decorrente do vertiginoso processo de urbanização, disparidades na divisão de renda e processos de exclusão social, e, convivendo lado a lado, mas sem dialogar entre si, comunidades vigiadas 24 horas, protegidas por modernas tecnologias. Na sociedade onde segurança virou comércio poucas são as preocupações com valores humanos. “A violência ressoa e amplifica sua força ao encontrar indivíduos inertes, pois estes se tornam cúmplices desse processo violentador que já os destruiu” (CANIATO, 2008, p. 18). Concorda-se neste texto com a assertiva de Coleman (2005, p. 131, tradução da autora): “na produção dos espaços urbanos de natureza empresarial, as práticas contemporâneas de vigilância precisam ser colocadas num debate mais amplo sobre a contínua desigualdade urbana e o sentido de justiça espacial”. Analisando Cohen (1979, apud COLEMAN, 2005), a autora aponta que as “cidades punitivas”, nas quais prepondera o estigma por trás da linguagem de comunidade, instituem-se cada vez mais formas de aumentar a visibilidade – ou a teatralidade – do controle social.
A sensação de insegurança e o incremento da segurança privada A sensação de insegurança disseminada, sobretudo, pela mídia, é lugar-comum nas conversas cotidianas e motiva cada vez mais a aquisição de serviços privados de segurança. Chesnais (2007), au131
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tor francês anteriormente citado, declarou em seu artigo ter ficado chocado com a obsessão dos brasileiros com a(in)segurança. Nas metrópoles este sentimento já operou ampla mudança no comportamento das pessoas, que tendem a ficar mais tempo em ambientes de policiamento protegido em detrimento dos lugares de segurança pública (ZANETIC, 2005). Conforme o Texto da I Conferência Nacional de Segurança Pública, o tratamento dado pela mídia aos registros de crimes violentos acabou gerando estereótipos que não necessariamente correspondentes à realidade dos fatos (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009).Pesquisa bibliográfica sobre a segurança e seus significados linguísticos, de Caniato e Nascimento(2007), apontou a mídia como o principal instrumento da indústria cultural da violência, incorporando-a no discurso social com uma enxurrada de matérias que caracterizam a população pauperizada como risco social, sendo necessárias “ações de tutela” (p. 42) realizadas, na maioria das vezes, por agentes privados. A segurança transformou-se em um dos bens de consumo mais prezados no mundo contemporâneo, catapultando o desenvolvimento de diversos tipos de serviços e produtos, tais como a segurança eletrônica, a vigilância patrimonial, a blindagem de veículos, a escolta e o monitoramento no transporte de valores e cargas e a gestão de presídios (ZANETIC, 2005). O Departamento da Polícia Federal (DPF) é o órgão Federal responsável pela regulamentação e fiscalização dos serviços de segurança privada em território nacional. Estão credenciadas em seu sistema2.668 empresas e cadastrados 431.600 vigilantes ativos, 19.700 a mais o número de policiais militares estimados pelo Ministério da Justiça. Este montante também supera em 35%, o efetivo das Forças Armadas (320.400 homens). Além disso, há 1,1 milhão de cadastrados não-ativos, enorme exército de reserva pronto para trabalhar no segmento. Para Zanetic (2005), o crescimento do setor se deu de forma gradativa desde o pós-guerra, contudo foi intensificado a partir dos 132
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anos 1980, principalmente depois de um relatório encomendado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos passou a considerá-lo parte integrante da luta contra o crime, disseminando rapidamente esta ideia mundo afora. No Brasil, de acordo com Cubas (2005), as primeiras empresas de vigilância privada surgiram nos anos 1960, devido ao aumento do número de assaltos a bancos. Além dos bancos, atualmente encontramos vigilantes atuando em condomínios, no comércio, em indústrias, residências, escolas, shoppings etc. Conforme já abordado, violência é uma vivência que desorganiza emocionalmente o sujeito. Para Cotta (2005), as tentativas de medir a insegurança se deparam com duas realidades distintas: de um lado, as estatísticas e, de outro, o sentimento subjetivo não mensurável. A insegurança se alimenta das crises do dia a dia, da delinquência e das ameaças difusas advindas de diversas fontes (inclusive da mídia), causando uma incerteza crescente e continuada no espírito das pessoas e fazendo com que estas invistam cada vez mais em serviços de segurança privada. Em nossa sociedade, o medo tornou os investimentos em segurança comuns a todas as camadas da população, nos vários locais geográficos, contudo a camada dominante é a que tem condições de consumir melhor tecnologia e contratar profissionais especializados, enquanto as camadas populares compram grades, trancas, cães de guarda e, quando possível, contratam pessoal não especializado para fazer “ronda”. Pesquisa do Instituto Futuro Brasil (IFB) citada por Zanetic (2010), demonstra 8,56% das residências da capital paulista haviam realizado algum tipo de investimento em segurança naquele ano. Esta proporção atingia 24,2% das residências na “classe” A, 12,9% na “classe” B e caía para 8,2% somando-se as “classes” C e D, demonstrando o maior investimento percentual em segurança nas camadas dominantes. O crescimento do setor de produtos e serviços de segurança privada tem acompanhado o recrudescimento da criminalidade, a percepção social da violência, as limitações das atuações policiais 133
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e a sensação de insegurança, convertendo-se num mercado em plena expansão (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009; OLMO, 2000). A segurança privada se tornou o elemento central do novo e difundido padrão de segregação urbana (CALDEIRA, 2000), reforçando a busca por soluções individuais para garantir a integridade física e patrimonial em enfrentamento à violência, deslegitimando as autoridades públicas. Partindo-se do princípio que a história produz e transforma, frequentemente é preciso desviar os olhos das práticas naturalizadas para se perceber que estas são “datadas”, produtos de certo modus operandi social (BICALHO, 2005). Baseada nesta perspectiva, faz-se necessário repensar a postura de controle da violência de forma individualizada e ineficiente que impera em nossa sociedade. Para Caniato e Nascimento (2007), esta postura individualista não empreende uma real transformação social. Rondon e Andrade (2003) seguem pela mesma linha de análise, apontando que o fracasso no fornecimento de segurança pública por parte do Estado motiva a população a contratar empresas particulares. Esta forma de atuação não diminui a violência, pois somente faz a criminalidade migrar de uma área para outra. “Dessa forma, somente uma política integrada e ampla de combate à violência produziria resultados socialmente vantajosos” (RONDON; ANDRADE, 2003, p. 237). Para Cubas (2005), o estímulo ao aumento dos serviços de segurança privada está diretamente atrelado à incapacidade do Estado brasileiro em proporcionar segurança e mediar conflitos, pois a insuficiência das políticas públicas de segurança reforça uma tendência histórica da busca particular na resolução destas demandas. O sentimento de insegurança da população é a principal justificativa para a aquisição de produtos e serviços de segurança privada, contudo, num espectro ampliado, corre-se o risco de criar uma cisão social entre os que podem e os que não podem pagar para garantir sua segurança. Esta posição também é defendida por Olmo (2000), pois somente os pagantes estariam protegidos, contribuindo para o 134
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aumento do fosso discriminatório. “Fecham-se os canais de intercâmbio e se vive em áreas separatistas, em cidades caracterizadas por dois tipos de pessoas: a população excluída e a população enjaulada” (s/p, tradução da autora). Questionamento semelhante é trazido por Caldeira (2000). A autora credita o crescimento da violência e do crime organizado à falência do Estado, ao colapso das instituições (polícia e judiciário) e à falha em consolidar um Estado de Direito (tal qual BITTAR, 2008). Nesta visão, a adoção de medidas privadas de segurança solapa o papel do Estado como mediador do sistema e só faz aumentar a violência. Artigo publicado por Dahlberg e Krug (2007) expõe as principais considerações do Informe Mundial sobre Violência e Saúde, da Organização Mundial de Saúde (OMS), propondo um modelo ecológico de compreensão da violência. Também para as autoras, o cenário da violência no Brasil e no mundo só poderá se modificar coma adoção de políticas nacionais e iniciativas do legislativo que envolvam, também, ações comunitárias de pequena escala.
À guisa de conclusão Neste texto, partiu-se do pressuposto que violência é conceito político, multifacetado e que suas causas são de difícil precisão (OLMO, 2000). Os seres humanos são multidimensionais, assim sendo, todas as formas de violência, mesmo as isoladas, afetam o tecido social. O modo reativo e fragmentado de atuação do Estado e dos cidadãos em enfrentamento à violência até agora se mostrou ineficiente e perpetuou o círculo vicioso. “A violência gera o medo e este gera igualmente violência” (CHESNAIS, 1999, p. 54). Assim, o recrudescimento da violência só será enfrentado com êxito por meio de ações multifatoriais e coletivas, englobando Estado e sociedade civil, macrocosmo e microcosmo, unindo forças e pensando ações políticas e sociais inovadorasem enfrentamento à violência. Manter a violência individualmente afastada pela adoção 135
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de serviços privados apenas reforça e alimenta a ideologia sectária e reativa dominante até então, contribuindo com o circuito das segregações e o resultado desta equação só pode ser catalítico do próprio processo de violência que o gerou.
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SEGUNDA PARTE
Educação, formação humana e valores
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8. Crise ambiental e pedagogia ecológica: crítica à razão e o valor responsabilida Gilson Luís Voloski Luciana Valentina Trevisan
Introdução Considerando o atual contexto de crise ambiental, as contribuições da crítica de Adorno e Horkheimer ao domínio da razão instrumental e da orientação do princípio responsabilidade de Hans Jonas, no presente capítulo, procuraremos justificar a pertinência de uma pedagogia de caráter ecológico. Na primeira parte, contextualizamos aspectos e interpretações sobre o desequilíbrio ambiental e a urgência da formação de um novo comportamento social. Para isso, uma pedagogia se justifica, pois a mudança não depende apenas de “acordos internacionais” e de uma “legislação vinda do alto”, mas de um processo educacional que contribua para a formação crítica de valorização da vida como bem principal. Na segunda parte, como embasamento teórico, reconstrói o diagnóstico do predomínio da racionalidade procedimental, meio eficiente de dominação da natureza, e de suas implicações à formação. Considerando a sociedade tecnológica, buscamos no princípio responsabilidade um “para que educar abrangente” que oriente racionalmente a práxis pedagógica para a preservação da vida futura.
1. Posição do problema: crise ambiental e desafio educacional Na década de 1980, já se anunciava nos meios de comunica143
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ção informações sobre pesquisas que indicavam sinais de mudança climática no Planeta. Sobre a Região Sul do Brasil, alertavam tendência de desertificação. Em 2001, enfrentamos onda de calor contínuo de dois meses, com racionalização de água e ameaça de apagão no sistema elétrico. No início de 2014, as temperaturas quebraram o recorde de toda a história da meteorologia brasileira. Em relação à década passada, o relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) das Nações Unidas, intitulado “O clima global de 2001 a 2010: uma década de eventos climáticos extremos”, constata aumento de ondas de calor, secas e inundações, sinais de crise ambiental. Nessa década, foram produzidos dois documentários polêmicos e de grande repercussão internacional: o primeiro, Uma verdade inconveniente (2006) defende a tese de que o aquecimento global é potencializado pela poluição industrial e as devidas medidas de prevenção, condições já disponíveis pelo desenvolvimento tecnológico, não são colocadas em prática porque não convém aos interesses econômicos hegemônicos; o segundo, A grande farsa do aquecimento global (2007), afirma que o fenômeno é resultado das transformações naturais do clima, já ocorridos também em períodos anteriores da era industrial e, por isso, tal discurso justificaria restrições às economias frágeis dos países em desenvolvimento. Contudo, ambos concordam de que estamos passando por mudanças climáticas que afetam o planeta, em torno das quais há disputas de interesses diversos. A partir desses documentários, apresentados em largos traços, é possível imaginar as seguintes possibilidades: a) o reequilíbrio climático independente da ação humana, não há o que fazer para revertê-lo, a não ser esperar que a natureza resolva por si mesma; b) Juntamente com a criação de leis e políticas autossustentáveis, a construção pedagógica de um comportamento social ecológico que contribua para desacelerar um processo que vise zelar e garantir o máximo de tempo as condições provedoras de vida em geral; c) Ne144
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nhuma das alternativas anteriores e o desencadeamento progressivo, em intensidade e em frequência, pela tendência natural somada a poluição industrial, de invernos “rigorosos” e de verões “infernais”, enquanto a vida suportar. Apenas o futuro poderá confirmar qual delas (a, b ou c) tem razão. Eis aí um problema, pois não se trata de algo a ser comprovado por uma pesquisa empírica. De fato, não há sentido racional esperar o pior acontecer apenas para confirmar que certa pesquisa estava certa quando hipoteticamente indicava que o pior aconteceria. Por outro lado, não é aconselhável aceitar prontamente como pressuposto um “apocalipse”, pois o discurso de “fim do mundo” já foi anunciado na antiguidade, contudo a vida ainda continua na Terra. De qualquer forma, sem deixar de exercer a vigilância crítica a tais discursos, parece ser irrefutável a relevância de evitar agressões desnecessárias à natureza e conservar as condições de vida no Planeta. Isso significa fazer uso de toda a ciência e tecnologia para promover e proteger a vida, não apenas humana, mas de todas as espécies. Pelo exposto, uma pedagogia de caráter ecológico se justifica na alternativa b, não “cruzar os braços” em uma espera, nem promover um discurso de “salvação” pela educação, mas contribuir criticamente com a construção de uma nova cultura ao alcance da formação humana. Nas últimas décadas, o discurso do desenvolvimento autossustentável conquistou internacionalmente legitimidade. Aos poucos, políticas públicas e legislação específica ganham contornos como resistência contra um mercado globalizado voraz. Essas são imprescindíveis como uma espécie de freios a um processo de produzir e consumir que se impõe como se não houvesse limites naturais. No entanto, elas demonstram limites frente à pressão econômica e indícios disso são os baixos resultados em relação às metas estabelecidas pelo Protocolo de Quioto (2008-2012). Considerando que as massas de consumidores são a causa e o fim de toda produção, é um desafio pertinente refletir criticamente os pressupostos da educação da mesma. Nesse contexto, pensar uma pedagogia de cará145
Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação
ter ecológica consiste em refletir sobre os limites e as possibilidades da formação de um comportamento social, que priorize as atitudes de zelo pelas condições provedoras da vida em geral. Mas a educação também não é reprodutora da cultura predatória? Ela não é produto e processo da cultura hegemônica? Quem educa o educador senão a mesma sociedade de que faz parte? A própria educação não é uma forma de dominação sobre a natureza humana? Mesmo considerando que as respostas a estas perguntas são afirmativas em parte, também é verdade que a cultura gera contradições e, como seu produto e processo, a educação pode abrir caminho de emancipação quando assume uma postura de permanente crítica e autocrítica.
2. Pedagogia Ecológica: reflexão crítica aos fundamentos e fins da educação Na segunda parte, como embasamento teórico, reconstrói o diagnóstico do predomínio da racionalidade procedimental, meio eficiente de dominação da natureza, e de suas implicações à formação. Como a cultura carrega a contradição dominação/emancipação, a educação pode transformar quando assume uma postura de crítica permanente aos fins obscuros atribuídos ao sistema educacional. Considerando a sociedade tecnológica, buscamos na filosofia da vida de Jonas, em seu princípio responsabilidade, um “para que educar abrangente” que oriente racionalmente a práxis pedagógica para a preservação da vida futura. Assim, a pedagogia ecológica se justifica em “não cruzar os braços” em uma espera, nem prometer a salvação, mas ações possíveis ao alcance da formação, do reconhecimento do outro, portanto, de uma nova cultura que prima pela sustentabilidade. Na tentativa de pensar a Pedagogia na perspectiva supramencionada, buscamos fundamentação na Teoria Crítica da Sociedade, mais especificamente no pensamento de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Para esses autores, o ponto de partida é a crítica 146
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à cultura hegemônica. Em outras palavras, crítica ao predomínio de uma racionalidade reduzida à sua dimensão instrumental para dominação da natureza como mero objeto. Cientes da complexidade do pensamento dos referidos autores e do problema posto, destacaremos alguns aspectos conceituais, considerando os limites deste texto, que possibilitem refletir sobre o desafio educacional. Nesse sentido, almejamos uma pedagogia empenhada por uma educação fundamentada numa razão capaz de reconhecer e se reconhecer no outro. Portanto, uma formação humana que visa uma nova cultura. Em Eclipse da razão (1947), Horkheimer chama atenção que na maior parte da história da nossa cultura predominou uma concepção de razão objetiva, na qual a razão subjetiva participava. Nas sociedades míticas predominava um reconhecimento e reverência às manifestações das forças da natureza. Na tentativa de ordenar, classificar, explicar a origem do mundo já se encontrava a razão no mito. Em Aristóteles, quando a razão se apresenta como metafísica, o reconhecimento da ordem do Cosmo pela contemplação humana era sinônimo de grande sabedoria. A razão objetiva se apresentava para o homem antigo e medieval como um princípio inerente da própria realidade. Assim, a práxis social formava o homem pela experiência de estar na comunidade, na polis e numa ordem cosmológica. A razão subjetiva era considerada “como a expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal, da qual se derivavam os critérios de medida de todos os seres e coisas.” (HORKHEIMER, 2002, p.11). A predominância da razão objetiva consistia na ênfase maior nos fins amplos do que nos meios. Os conceitos normativos, como telos orientadores da ação humana, exerciam papel fundamental para evitar a redução da práxis em instrumentalidade. Nos primórdios do pensamento moderno, a partir da doutrina cartesiana, ocorre o giro em primazia da razão subjetiva, com a ratificação da dicotomia entre sujeito e objeto. Diferentemente do sujeito que pensa, o corpo humano e a natureza em geral passam ser concebidos como extensão, portanto, objeto de controle. O caráter amplo da práxis, ético e político, aos poucos, cede lugar ao predo147
Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação
mínio de uma prática restrita ao fazer técnico. A “razão subjetiva se revela como a capacidade de calcular probabilidades e desse modo coordenar os meios corretos com um fim determinado” (HORKHEIMER, 2002, p.11-12). Desse modo, a ênfase da prática é deslocada dos fins abrangentes para os meios eficientes. A partir de então, a primazia da ação se concentra no poder de produzir resultados seguros por meio de um método. De outro modo, Francis Bacon propõe um método a partir de uma perspectiva empirista. Não é por acaso que os frankfurtianos citam Bacon como um dos primeiros grandes entusiastas e defensores de um saber que se afastasse da “estéril” filosofia aristotélica e se aproximasse de uma perspectiva de aplicação empírica. É verdade que Bacon era consciente da relevância de Aristóteles para a construção da filosofia ocidental. Porém, criticava seus conceitos, pois, se eram bons para gerar controvérsias, por outro lado não acrescentavam nada de útil na vida dos homens. A operação, o cálculo e o procedimento eficiente forneceriam as condições para que tivéssemos a certeza de caminharmos em terras bem mais firmes que o efêmero terreno da metafísica (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2008, p.46).
O saber instrumental, que provém do comportamento metódico da ciência, contribuiu para o avanço de diversas áreas de conhecimento. E a convergência destas para fins utilitários possibilitou a Revolução industrial. Essa nova configuração social gerou um progresso inédito na História da Humanidade. Isso representou não apenas uma grande mudança da maneira de produzir bens de consumo, mas também do modo de conceber e de agir sobre o mundo. Culturalmente, ocorreu um processo de desencantamento da natureza pela racionalidade que tudo reduz a objeto. O ser humano, 148
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como parte da natureza, também se enredou nessas malhas. O modelo fábrica, potencializado a serviço do sistema capitalista, restringiu as relações de produção à condição de mercadoria. Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (2006) denominaram “indústria cultural” o termo que enquadra a cultura a esse modelo. A instituição escolar também se pautou nesses moldes para abarcar a totalidade da população, principalmente, aquela em que a formação se limita à preparação de profissionais para o mercado. Uma Pedagogia Ecológica precisa antes de tudo ter clareza dos fundamentos deste todo social e se posicionar na condição de resistência crítica. Em Dialética do esclarecimento e Eclipse da razão, Adorno e Horkheimer advertem que na ausência de um freio para a razão instrumental a história pode redundar em regresso. O horizonte destas obras é o caótico contexto da Segunda Guerra Mundial quando a ciência da natureza aplicada demonstrava seu assustador poder de destruição em massa. De fato, a práxis ética, entendida como ação com um fim em si mesma, perde seu potencial formativo crítico quando a racionalidade é reduzida em meio de eficiência técnica. Assim, o seu conteúdo normativo de fins abrangentes passa ser discurso secundário, pois o que se busca prioritariamente como válido é o que produz resultados utilitários. Nessa perspectiva, o comportamento procedimental do engenheiro que projetou a câmara de gás de Auschwitz e a dos físicos nucleares que produziram a bomba que desintegrou Hiroshima apenas pode ser julgado pelo grau de eficiência. Neste caso, eles realmente foram “excelentes” profissionais, pois obtiveram os resultados que almejavam. Do mesmo modo, a educação institucional que os “produziu”. E a eficiência em questão consistiu em eliminar o outro, não apenas destruindo o seu corpo, mas incinerando seu meio ambiente como um todo. Esses são exemplos extremos da autossuficiência da razão instrumental que redundaram em regressão. Com isso, queremos dizer que a barbárie se realizou não apenas porque a racionalidade instrumental possibilitou o poder para tal, mas pelo fato do âmbito ético e político da práxis 149
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estar debilitada a tal ponto de não contê-la (VOLOSKI, 2013, p.87). Pelo exposto, o desafio de uma Pedagogia Ecológica é priorizar criticamente a formação de conceitos normativos no processo educativo, pois no contexto cultural de primazia dos meios sobre os fins gera dificuldades para sua formação espontânea. Nesse sentido, Horkheimer chamou atenção de que os conceitos de justiça, liberdade, dignidade, felicidade, democracia, nação, entre outros, permanecem como fins expressos nos documentos históricos, leis supremas e costume da tradição, mas “não há mais uma força racional autorizada para avaliá-los e ligá-los a uma realidade objetiva” (HORKHEIMER, 2002, p.28). Além desses mencionados, outro conceito central para o tema deste artigo é o de qualidade de vida. O problema é que a última palavra a ser dada sobre qualquer assunto passou a ser atribuída à ciência positiva. E a verdade tornou-se sinônimo de certeza comprovada: “classificação de fatos e cálculos de probabilidades”. Assim, os conceitos normativos passam a ser desautorizados pelo critério da verificação. Eles não são excluídos, mas secundarizados como ideológicos. Uma postura científica conservadora, que se pauta apenas pelo critério da verificação, tende a conceber o discurso da crise ambiental como secundário. Por outro lado, também é verdade que não pode refutá-lo, pois não está ao alcance da verificação de que é falso. Nesse caso, o discurso fundamentado em conceitos normativos tem tanta validade quando uma pesquisa pautada pelo critério de verificação. Pensar uma Pedagogia Ecológica é convergir vários campos de conhecimentos em resistência ao problema ambiental, contudo são imprescindíveis conceitos normativos abrangentes como horizonte norteador. Nessa perspectiva teórica, a partir da crítica à constituição do conceito de racionalidade ocidental, a educação visa um processo de emancipação da própria cultura em que está inserida. Herdamos um modo de conceber e de agir sobre o mundo que se processa quase de forma automática. Infelizmente, vivemos numa sociedade, por exemplo, em que pessoas consomem cigarros em que na embalagem 150
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se anuncia a agressão que isso causa ao próprio corpo. Essa dificuldade de refletir sobre o próprio ato, sobre a relação agressiva com sua própria natureza, também é reproduzida em relação ao outro e ao meio ambiente. Como o ser humano não nasce com esses conhecimentos, podemos afirmar que esse comportamento é resultado da educação, produto histórico de uma determinada cultura. Se existe certa verdade na afirmação de que as grandes mudanças não procedem do alto, também é verdade que a educação das massas precisa da crítica permanente como viabilidade de alguma transformação. Embora, atualmente, se deposite grandes expectativas em relação à universalização da educação institucionalizada, expressa em frases conhecidas como “Todos na escola” e “Todos pela educação”, sem deixar de considerar de que se trata de uma reivindicação histórica no Brasil, contudo, uma postura prudente buscaria antes assegurar as condições formativas ampliadas. Nesse sentido, em Teoria da Semiformação, Adorno já considerava que reformas educacionais isoladas não abarcam o problema da formação social, pois as contradições da racionalidade que predominou culturalmente são bem mais complexas do que propiciar um clima de eficiência didática na escola. Podemos pensar uma Pedagogia Ecológica a partir desses pressupostos: crítica permanente aos fundamentos do conceito de educação hegemônico. Para abordar o problema da relação entre cultura, educação e natureza, Adorno (1995, p.119) buscou sustentação na tese de Freud: “a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório”. Em outro momento da obra Educação e emancipação, mencionou novamente Freud, dizendo: “justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura” (ADORNO, 1995, p. 157). E, no ensaio “A filosofia e os professores”, o autor ressalta a dialética do conceito cultura entre emancipação e dominação: “a diferença entre a cultura nos termos em que conserva e supera em si o que corresponde à natureza, e um mecanismo de opressão real que 151
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se prolonga no espírito. Sob o seu jugo o natural que foi reprimido retorna só desfigurado e destrutivo” (ADORNO, 1995, p.74). Em outras palavras, a natureza reprimida pela racionalização que predominou na cultura, no caso da educação, pela submissão da formação a um didatismo, pode retornar, em algum momento, como barbárie. Em direção oposta, a cultura também carrega elementos de racionalidade autorreflexiva, que pode desencadear em autonomia. Nesse sentido, quando a educação exerce a atividade de autocrítica, abre possibilidades de emancipação. Para Adorno, o conceito de formação cultural abrange duas dimensões: a de autonomia e a de adaptação social. O autor chama de semiformação quando a primeira é atrofiada pela predominância da segunda. Conforme a interpretação de Maar (1995, p.26), “o lado duplo da cultura, pelo qual ela também é cultura do espírito em sua independência crítica, como momento de resistência, se perde, permanecendo apenas o momento de adequação à dominação da natureza”. E, nas palavras do próprio autor, pelo “processo de adaptação ser tão desmensuradamente forçado, [...as pessoas] precisam impor a adaptação a si mesmo de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmo” (ADORNO,1995, p.145). E a educação, como parte da cultura, também assume a condição de semiformação quando impõe uma sobrecarga de atividades formais, justamente, no lugar daquilo que deveria despertar o gosto pela cultura. Assim, a desrealização do educando é inevitável quando sua natureza é reduzida em passividade adaptável. A violência que o educando precisa impor a si mesmo, como condição de adaptação social, nada mais é do que a repressão à sua dimensão ativa enquanto ser humano. Assim diz Adorno (1995, p. 149), não se trata apenas da “ausência de formação, mas da hostilidade frente à mesma, do rancor frente àquilo de que são privadas”, isto é, da falta de referências que proporcionaria refletir sobre sua localização no mundo e o sentido abrangente da própria existência. E essa hostilidade que se encontra no âmago formativo da sociedade, experiência dolorosa que o educando sofre 152
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e impõe a si mesmo, também é projetada na relação com o outro, repercutindo no meio ambiente. A educação, que abre precedente para a mera adaptação, tem a formação atrofiada em seu caráter autorreflexivo, enquanto a ênfase recai no saber instrumental produtivo, a qual Adorno denomina de semiformação. De acordo com Pagni e Silva (2007, p.244), a crítica que o autor empreendeu a “instrumentalização do pensamento e da cultura, em nossa civilização, e suas implicações para a dominação social na sociedade administrada, fornece elementos significativos para pôr em dúvida o conceito moderno de formação cultural e de Educação”. Ele denuncia criticamente a redução de significados desses conceitos basilares da constituição da sociedade moderna, à medida que “encobrem a heteronomia do pensamento e a deterioração da cultura propiciada pela subordinação destes à lógica do sistema, que é a do mercado.” (2007, p.246). Portanto, a formação que visa garantir elementos emancipadores da cultura conta com uma qualidade de educação para além daquela exigida pelo mercado. Pelo exposto, considerando que na condição socioeconômica e cultural predomina o momento da adaptação em detrimento da autonomia, pensar uma pedagogia de caráter ecológico implica em zelar e prover prioritariamente essas possibilidades formadoras no processo educativo que, geralmente, ficam em segundo plano nas exigências de uma sociedade de mercado. De acordo com Adorno, A importância da educação em relação à realidade muda historicamente. Mas se ocorre o que eu assinalei há pouco – que a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens -, de forma que este processo da adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático. [...] teria que neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa [educação] de fortalecer a resistência do que fortalece a adaptação (Adorno, 1995, p.157). 153
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Pensar uma Pedagogia Ecológica a partir das contribuições do pensamento de Theodor Adorno exigiria colocar como centro de toda a reflexão a palavra “resistência”. Conforme comentado acima, resistência como “cultura do espírito em sua independência crítica”, a capacidade de “dizer não” ao padronizado pelo modelo indústria. A aposta de Adorno consiste em articular experiência e pensamento, sensibilidade e conceituação, resgatando o valor formativo de duas áreas importantes do conhecimento: a Arte e a Filosofia (PAGNI; SILVA, 2007, p. 261). O empenho é recuperar a interrogação recíproca entre conceito e experiência no processo formativo como possibilidade de desbarbarização da cultura. Da Filosofia, o zelo pela qualidade da apropriação de conceitos e pelo desenvolvimento da capacidade de conceituação, evitando “preconceitos”, como exercício do pensamento, é condição para pensar e justificar racionalmente a própria ação. Da Arte, contribuições para o desenvolvimento da sensibilidade, condição de receptividade do outro e de abertura para o diferente. Nesta reconstrução breve do diagnóstico dos frankfurtianos, com maior atenção para Adorno, podemos observar uma rigorosa crítica levada aos limites em relação à razão meio-fim. Entretanto, esses autores se esquivam de propor alguma finalidade abrangente. Mesmo a meta proposta para a educação não se afasta da crítica à predominância dos meios sobre os fins. A meta é evitar no tempo presente a repetição da barbárie do passado, promovida pela eficiência procedimental, tendo em vista sua razão míope de fins abrangentes. Mais quais seriam esses fins abrangentes a conduzir ação para o futuro? É sobre a reflexão de fins abrangentes da razão que pretendemos buscar no pensamento do filósofo Hans Jonas, como possibilidade de embasamento do conceito de Pedagogia Ecológica e de uma perspectiva de formação cultural sustentável. Jonas nasceu no mesmo ano de Adorno, em 1903, na Alemanha. Também se exilou no período do nazismo e, devido os horrores desse período, ocupouse com o problema ético da sociedade tecnológica. 154
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Jonas é notoriamente influenciado pela fenomenologia de Husserl, pela análise existencial de Heidegger e pela literatura cristã. Buscou desenvolver uma crítica às perspectivas éticas clássicas e modernas na tentativa de elaborar uma teoria ética que contrapusesse a possibilidade da humanidade destruir-se utilizando o disponível poder tecnológico contemporâneo. Este tema é abordado na obra O princípio responsabilidade: ensaio para uma ética da civilização tecnológica, publicada em 1979. Acreditamos que Jonas pode contribuir em dois aspectos a uma proposta de racionalidade pautada por finalidades abrangentes: uma teoria ética que extrapole a referência da relação entre os humanos para um âmbito mais abrangente por meio do princípio vida; uma finalidade para além do tempo presente, do imediatismo da racionalidade procedimental, pois o princípio responsabilidade abarca também as gerações futuras.
Conclusão A partir da problemática da crise ambiental procuramos refletir sobre os limites e possibilidades de uma pedagogia de caráter ecológico. Cientes da complexidade do tema e sem pretensões de chegar a considerações definitivas, buscamos provocar a reflexão sobre o assunto e manter o debate em aberto. Nesse sentido, ressaltamos alguns desafios para aprofundamento em reflexões posteriores. A Pedagogia Ecológica se justifica independente do futuro da crise ambiental, pois toda ação que visa, no tempo presente, evitar agressões desnecessárias a natureza e conservar as condições provedoras da vida tem justificativa em si mesma. Assim, ela se justifica pela postura de não “cruzar os braços” em uma espera, por outro lado, nem pela promessa de “salvação do mundo pela educação”, mas de contribuir criticamente com a construção de uma nova cultura. A Pedagogia é o campo de estudos e reflexões sobre a educação. Pensá-la na perspectiva ecológica exige o esforço de analisar criticamente as bases do processo educativo. Como se refere a um 155
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desafio abrangente, delimitamos a interpretação pelo referencial da Teoria Crítica, que pode ser também por outro viés. A educação e o meio ambiente são produtos e processos da cultura, por isso carregam em seus conceitos a contradição dominação e emancipação. Seus fundamentos se encontram na história do desenvolvimento da racionalidade. O problema diagnosticado por Adorno e Horkheimer é o predomínio de uma reduzida razão instrumental que restringe a natureza em objeto de dominação. Em contraposição, o desafio consiste em garantir uma formação cultural embasada numa razão ampliada, capaz de reconhecer e se reconhecer no outro. Portanto, a Pedagogia pode abrir caminho de transformação na cultura quando assume uma postura de permanente crítica e autocrítica no/do processo formativo. Outro desafio é priorizar a formação de conceitos normativos no processo educativo, pois a predominância da racionalidade instrumental dificulta a formação espontânea destes conceitos. Conforme o exposto em relação à crise ambiental, o discurso normativo tem tanta validade quando um discurso pautado pelo critério de verificação. Uma Pedagogia Ecológica exige convergir vários campos de conhecimentos, mas são imprescindíveis conceitos normativos como horizonte norteador. Uma Pedagogia Ecológica precisa ter clareza dos fundamentos deste todo social. Nesse sentido, a educação institucionalizada pública não pode se restringir à preparação de profissionais para atender a demanda do mercado. Para finalizar, pensar uma Pedagogia Ecológica exige colocar como centro de toda a educação o conceito de “resistência crítica” como desafio formativo permanente.
Referências ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 156
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DUARTE, R. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2002. MAAR, W. L. “À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa”. In: ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. PAGNI, P.A; SILVA, D. J. “A crítica da cultura e os desafios da educação após Auschwitz: uma leitura a partir da teoria crítica da Escola de Frankfurt”. In: PAGNI, P.A; SILVA, D. J. (org.). Introdução à Filosofia da Educação: temas contemporâneos e história. São Paulo: Avercamp, 2007. PUCCI, B.; RAMOS-de-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. VOLOSKI, G. L. Dos lugares da Filosofia da Educação: reforma educacional, praticismo, formação. 2013. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2013.
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9. Valores: um caminho para vivenciar entre a escola e a família Maria Letícia Naime-Muza Ivarne Maria Mendel
Introdução Considerando a importância de se verificar, no âmbito da escola, do que se entende por currículo no sentido da formação integral, esse capítulo traz questões relevantes sobre a formação humana dos sujeitos. Assim, falamos em currículo explícito e formal e em currículo oculto. Nesse sentido, trazemos a importância da parceria, entrosamento, cumplicidade entre família e escola. O grupo familiar é a primeira instância de educação do ser humano, portanto deve ter o compromisso com a formação do caráter, personalidade e conceitos éticos dos seus filhos para viver em harmonia e pacificamente na sociedade e nos grupos sociais nos quais estão inseridos. O currículo, nesse sentido, deve ser pensado para atender as necessidades a partir das diferenças, valorizando o que cada cultura afirma como importante para sua comunidade. Assim, se há diferentes povos e diferentes contextos em um mesmo espaço, estas manifestações culturais precisam se materializar no currículo escolar. Daí a pertinência de um currículo inter e multicultural: trazer para a escola a vida que ocorre fora dela para que os /as estudantes, empoderando-se, possam incidir na vida de sua comunidade. A partir dessa visão, como educadores, preocupamo-nos em como aproximar família e escola, visto que, historicamente, a convivência e conivência entre ambas não eram profundas, no que se 159
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refere à cumplicidade e interação na formação do sujeito em sua integralidade. Trazendo uma proposta de atuar em rede de proteção e formação, a RME de Florianópolis propôs para algumas escolas a experiência de aproximação entre pais e comunidade escolar, em reuniões, que a princípio seriam uma em cada semestre e que, no entanto, abriu espaço e tempo para a ampliação desses momentos.
Formação integral do sujeito A escola é a instituição que tem como função a socialização do saber sistematizado. Do conhecimento elaborado e da cultura erudita. Nesse sentido, quanto ao processo de apropriação do conhecimento, a escola contribui para a formação de sujeitos conscientes de seus direitos e deveres, emancipados e aptos a pensar sobre e transformarem a realidade em que vivem. Percebemos a escola como um espaço que possibilita aos sujeitos experiências, considerando suas vivências, seus conhecimentos de mundo e seus valores no decorrer do trabalho pedagógico. No entanto, a escola não deve e não pode, nessa perspectiva, trabalhar sozinha: a família faz parte desse contexto e da formação integral dos(as) estudantes, seus(as) filhos(as). Por isso, a proposta do trabalho em rede de proteção e formação. Conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Art.1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (BRASIL, 1996, p.7).
A contribuição da escola para o desenvolvimento do sujeito/ estudante, nesse sentido, é específica à aquisição do saber culturalmente organizado e às áreas distintas do conhecimento. Assim, a responsabilidade familiar junto às crianças é orientar o desenvol160
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vimento e aquisição de comportamentos considerados adequados à determinada cultura. O currículo oculto é constituído, desse modo, por todos os aspectos que não fazem parte do currículo oficial. É o que não está explícito e formalizado, mas, implicitamente aparece e é vivenciado na escola e fora dela como atitudes, comportamentos, valores que são trabalhados de forma transversal em todas as áreas do conhecimento e em todas as instâncias do espaço escolar e familiar. O que ocorre na comunidade automaticamente se refletirá na escola. A educação/formação integral pressupõe que os sujeitos são multidimensionais e, como tais, há que se assegurar processos educativos múltiplos. Dessa forma, gestar e propor novas oportunidades significativas de formação e exercício da cidadania, consolidando um processo educativo escolar de qualidade e equânime e que considere o sujeito em sua totalidade, como sujeito de direitos e deveres. Entendemos, portanto, a importância em reconhecer e valorizar a pluralidade das manifestações culturais, artísticas e linguísticas bem como as diferenças individuais, sociais, de etnia, de gênero, de crenças, de classe social, daqueles que apresentam necessidades diferenciadas, numa perspectiva inclusiva. A família não está separada desse processo, pois é o lugar onde tudo começa e se perpetua. Compreendemos, portanto, que escola e família têm suas especificidade e suas complementaridades. Embora sejam instituições independentes, não se pode perder de vista as suas tênues fronteiras, pois se interpenetram, compartilham a tarefa de educar, sendo que a família ainda tem a tarefa de socialização das crianças, do aprendizado de padrões comportamentais, atitudes, valores aceitos pela sociedade (TANCREDI, 2005). Assim, dentro e fora das escolas, importa compreender o que os/as estudantes fazem nesses espaços, sua relação com outras áreas do saber, com a instituição escolar e as outras instituições da vida econômica, social e política do lugar onde vivem e, em uma visão mais macro, do país. Então, uma boa formação se baseia no conheci161
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mento verdadeiro, que leva à busca da sabedoria, que contribui para o bem do/a estudante e de sua comunidade e que o/a leva a refletir sobre tudo o que o/a cerca e não somente com o que lhe será útil saber e fazer. A tarefa da formação humana integral é a de convidar o/a estudante a uma superação das concepções da sociedade onde está inserido/a, ensinando-o/a a pensar de forma racional, abstrata e abrangente sobre a realidade, estimulando-os/as a refletir sobre si mesmo/a para aprender a se criticar - e também refletir sobre o mundo para compreendê-lo no intuito de buscar o seu papel diante do mundo que o cerca e diante do seu próximo. A integralidade da formação do ser considera, nesse sentido, as dimensões éticas, estéticas, linguísticas e políticas. Assim, Há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo. O homem e somente o homem é capaz de transcender, de distinguir “ser” do “não ser” e de travar relações incorpóreas. Na sua capacidade de discernir estará a raiz da consciência de sua temporalidade, obtida precisamente quando, atravessando o tempo, alcança o ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã. Homem – um ser de relações, temporalizado e situado, ontologicamente inacabado – sujeito por vocação, objeto por distorção (FREIRE, 1996: 13).
Portanto, podemos dizer que o homem é um ser insaciável, inacabado, pois está sempre se construindo e construindo o mundo.
Uma experiência exitosa A Rede Municipal de Educação de Florianópolis tem empreendido esforços em qualificar seu trabalho educativo e dentre eles está a diminuição da distância entre a família e a escola. Nesse sentido, a RME não atua somente em relação ao cotidiano escolar no apontamento das dificuldades que os estudantes apresentam em re162
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lação à aprendizagem, mas, na tentativa de procurar e chamar as famílias, preocupa-se em tratar e discutir ações em relação às atitudes das crianças, adolescentes e jovens que a rede atende. Nesse ano, observando a necessidade de aproximação entre família e escola, iniciamos uma experiência com algumas escolas da RME, convidando as famílias para reuniões nas quais foram apresentadas algumas temáticas a serem discutidas e refletidas que fazem parte do cotidiano do ato educativo para a formação integral do sujeito como relação escola - família em rede de proteção e educação sexual. Para concretizarmos o trabalho, buscamos uma parceria com um sistema de ensino que a rede adota: Sistema Educacional Escola Família que se faz presente desde 2007 em algumas UEs. Esse sistema de ensino iniciou como projeto piloto numa escola de baixo IDEB, e, nos anos subsequentes, foi ampliado o número de escolas participantes do sistema. Atualmente são 13 unidades educativas que adotam o sistema e participam desse trabalho com as famílias. Assim, os pais recebem uma revista anual com temáticas direcionadas ao ato de educar. São oferecidos dois encontros anuais para conversar sobre as temáticas abordadas na revista, que, neste ano, foi: “Família e Escola em rede de proteção” e “Educação sexual”. Após o agendamento com as referidas unidades, existe todo um movimento e preocupação das equipes diretivas (diretores e especialistas) em como chamar os pais a participar desses encontros e quais estratégias e metodologias utilizar. Várias ideias e estratégias surgiram para atrair as famílias para participarem desses encontros. Dessa forma, na intenção de os pais sentirem-se mais acolhidos, recebemos os pais com café e lanche. Organizamos os espaços onde os encontros acontecem, com a tecnologia necessária e arranjo das cadeiras para acolher a todos. As escolas enviam convites confeccionados pelos próprios alunos a seus pais. Além disso, as UEs trazem apresentações de arte e música para recepcionar os pais, mostrando o resultado do trabalho desenvolvido nas turmas. Iniciamos, então, a conversa sobre o que significa esta relação escola e família em rede 163
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de proteção, que foi a temática abordada no primeiro momento realizado nos meses de agosto e setembro. Os pais, nesses momentos, puderam falar de suas angústias na educação de seus filhos e como a relação com a escola é importante e de valor fundamental no processo educativo do sujeito-criança/adolescente. O ato de educar e cuidar está fundamentado em artigos da lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e afirma que a educação é dever da família, da escola e da sociedade e é direito do cidadão. Nesse sentido, trabalhar em rede de proteção implica parcerias com outros órgãos e instituições sociais e jurídicas de políticas públicas, que são os envolvidos e parceiros nessa rede educativa. Art.2ºA educação, dever da família e do estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996, p. 7).
Após esses encontros, os pais fazem uma avaliação do que foi discutido para que possamos redimensionar os encontros seguintes. Segue algumas avaliações, convites e registros fotográficos dos encontros e apresentação cultural: “Nossa no começo eu nem queria vir na reunião, mas eu não imaginava como foi importante para mim ouvir belas palavras, me ajudou muito na convivência entre meus filhos. Gostei muito.” “Foi uma reunião bem interessante, onde todos puderam aprender algo mais. Como pais não devemos ser omissos e ter sempre a responsabilidade junto a escola. Obrigada.” “Produtivo; bom para pais interagirem com a escola e poder expor as suas opiniões e ficarem mais atentos nas maneiras de como ajudar o filho e a escola.” 164
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Observamos que, após iniciarmos esta experiência, na tentativa de aproximação da família e escola, proporcionando novos conhecimentos e abrindo espaço para discussão e reflexão sobre educação e formação do sujeito cidadão do mundo aos pais ou responsáveis pelos /as estudantes, as famílias mostraram-se mais parceiras da escola, aproximando-se das atividades escolares de seus/ as filhos/as, atuando de forma mais receptiva ao chamado e ações, valorizando o trabalho nas unidades educativas do ensino público da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis.
Conclusão Percebemos que, no contexto atual, não podem mais família e escola caminhar separadamente sem dialogar, sem interagir, sem socializar suas angústias e problemas enfrentados no seio familiar e nas escolas com os seus filhos estudantes. Com a intenção de melhorar o processo educativo e formativo do cidadão ético, respeitoso consigo e com os outros, que valorize a vida, que considere as diferenças como o que nos constitui coletivamente e como indivíduos, consideramos de fundamental importância que os profissionais da educação devam estar abertos a essa parceria, considerando que o(a) estudante é o centro do trabalho na educação. E, as famílias, por sua vez, não podem se abster do seu compromisso com a escola no processo formativo dos seus filhos por serem as provedoras do desenvolvimento das capacidades físicas, intelectuais e morais desses sujeitos.
Referências BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC. 1996. FLORIANÓPOLIS. Diretrizes curriculares para a educação básica da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. CGP: MG, 2015. 166
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FREIRE, Paulo. “O profeta da esperança”. Dois Pontos. Belo Horizonte-MG: v. 03, n. 24: 6- 13, Jan/Fev 1996 (entrevista). SANTA CATARINA. Lei do Sistema Estadual de Ensino de Santa Catarina. Florianópolis: SED. 1998. OLIVEIRA, C.B.E. e MARINHO-ARAÚJO, C.M. “A relação família-escola: intersecções e desafios”. In: Estudos de Psicologia. São Paulo: Campinas, jan.-mar., 2010. SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados. 2005. TANCREDI, R.M. e REALI, A.M.M.R. “Visões de professores sobre seus alunos: um estudo na área da Educação Infantil”. Trabalho apresentado na 24ª Reunião anual da ANPED. Disponível em www.anped.org.br SOUZA, Oralda Adur de et ali. Coleção família e escola. Curitiba: Base Sistema Educacional, 2009.
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10. Os valores norteadores da escola e a reforma do pensamento contemporâneo Albio Fabian Melchioretto Lauro Roberto Lostada
Introdução O que motiva nossas escolhas? É com esta pergunta que iniciamos esta reflexão. A pergunta é importante porque se refere a uma ação contínua na vida de qualquer ser humano: O ato de escolher. Ao preferir, por exemplo, A em relação a B, estou fazendo uma escolha que carrega consigo uma determinada base de valores e uma carga cultural. Ao escolher A em detrimento de B estou afirmando, mesmo que de maneira velada, que A possui valores que me fazem preteri-lo em relação a B. Segundo Vásquez (2002), tendemos a escolher algo a partir daquilo que é mais valioso moralmente. Quando falamos em valores temos presente diversos conceitos, como, por exemplo, a utilidade, a bondade, a beleza, a justiça, entre outros. Também atribuímos valores às coisas, aos objetos e particularmente também ao ser humano e à conduta moral (VÁSQUEZ, 2002). Ao pensar valores, contudo, dois pressupostos são importantes para compreender o percurso que faremos ao longo do capítulo. Primeiro, pensar valores e segundo, pensar a escola hodierna. O desafio de pensar valores, ou melhor, o que são valores, consiste numa atividade intelectual que atravessa diversas áreas do conhecimento. Segundo o que aponta Vásquez (2012), faz parte do campo da Ética, pensada como ciência que estuda a moral, preocupar-se com o que são valores, mas não é uma atividade exclusiva dela. O segundo pressuposto, o pensar a escola contemporânea, é um exer169
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cício que faremos a partir do pensamento de valores. Veremos isto, ao longo do capítulo, quando refletiremos Martin-Barbero (2004) e quando pensaremos a inserção de tecnologias digitais. Martin-Barbero aponta que a escola contemporânea ainda se ocupa de práticas autoritárias e tais práticas são, em certo grau, valores – sem entrar no julgamento de tais valores, mas são valores para uma prática. Quando atribuímos uma ação instrumental à vivência das tecnologias digitais, também estamos atribuindo valores, no caso, às coisas. A escola é uma tecnologia de época, conforme Varela (1992) aponta, e ela produz uma subjetividade nos corpos que aí estão depositados. Ao afirmar isto, a independer de qual época estamos falando, indicamos que a produção de subjetividade é uma produção valorosa de acordo com o sistema social que ela faz parte. Então, este capítulo refere-se a uma produção a partir de uma tecnologia de época, locada num espaço chamado contemporaneidade, e subjetividades produzidas nesta época com características próprias de um tempo. Claro que não queremos, e nem podemos tomar a contemporaneidade de maneira isolada, pois ela é fruto de uma construção histórica. Para chegar à contemporaneidade o ponto de partida estará fixado no olhar do idealismo platônico, sob inspiração da Alegoria da Caverna. Nas entrelinhas desta reflexão caminharemos a partir da perspectiva das tecnologias digitais. Lembrando que tecnologia pode ser qualquer aparato, técnica ou instrumento que facilita a ação do ser humano –por exemplo, uma colher. Um objeto simples, mas de importância incrível ao permitir o ser humano alimentar-se de maneira a evitar o contato das mãos diretamente com a comida; uma tecnologia que impede a contaminação da sujeira impregnada nas mãos ou nos alimentos. Esta compreensão é importante para deixar claros aspectos da ordem metodológica que norteiam esta discussão. Tecnologia pode significar muitas coisas e, desta forma, para evitar desentendimentos, quando o texto referir-se a tecnologia, ele estará se ocupando de elementos próprios da tecnologia digital, uma espécie de tecnologia de época, própria da contemporaneidade. 170
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O idealismo platônico como idealismo pedagógico Na teoria platônica encontramos a consolidação de um sistema filosófico que aspira olhar o mundo de uma forma diferente da dos tradicionais modelos míticos. O homem deixa de ver o mundo com o olhar do mito e passa a buscar razões na própria natureza e em sua capacidade cognitiva para responder às suas inquietações. Assim, dando corpo à sua teoria, Platão (2006) elabora um incrível modelo conceitual através da Alegoria da Caverna, que é encontrada na obra intitulada A República, Livro VII. A história fala de alguns homens que, tendo sido feitos prisioneiros desde a tenra infância, vivem acorrentados em uma caverna sem que lhes seja possível ver, senão uma parede à sua frente, de tal modo que, assistindo somente às sombras que são projetadas por transeuntes que passam entre um muro e uma fogueira ali presentes, com toda a sorte de instrumentos e objetos, passam a acreditar que veem a realidade tal como ela é. Platão questiona nessa história sobre o que aconteceria se, de alguma maneira, um destes prisioneiros fosse liberto e seguisse o caminho que leva para fora da caverna. O prisioneiro, evidentemente, não poderia sair daquele ambiente sem que passasse por um cuidadoso processo de adaptação, de forma que viesse a conhecer gradativamente o mundo de fora da caverna ao ponto de poder olhar diretamente para o Sol, se assim desejasse. Este sujeito, devidamente adaptado e ciente desta nova realidade, teria provavelmente o anseio de retornar aos seus companheiros de prisão com o objetivo de lhes oferecer um pouco daquilo que pôde provar em sua jornada, abrindo-lhes os olhos para a verdade que lhes fora negada em sua existência; no entanto, nesse retorno à caverna é possível imaginar que os demais prisioneiros teriam muita dificuldade para acreditar em sua história e que julgariam que sua fuga deixou-o alienado ou louco, de tal modo que o desconsiderariam e talvez até zombariam dele, permanecendo fiéis às suas antigas concepções. 171
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Fonte: http://mito-da-caverna-platao.blogspot.com/2010/07/ interpretacao-da-alegoria.html
A metáfora demonstra que a existência humana, para Platão(2006), é semelhante à dos prisioneiros da história, sendo a caverna o mundo onde vivemos, as sombras as coisas que percebemos em nosso cotidiano, e as correntes os preconceitos e opiniões em nós formadas. O prisioneiro que se liberta é o filósofo e a luz do sol que o ilumina é a verdade. O mundo de fora da caverna, portanto, é o mundo real, iluminado pelo sol da verdade. O instrumento que liberta o cativo é a própria filosofia – aquele momento de inquietação. E podemos, ainda, a partir de Platão (2006) desenhar outras reflexões, como veremos. A alma, segundo essa teoria, aspira alcançar o objeto real, a essência inteligível, transcendental, mas os sentidos, a educação e os preconceitos dificultam esse encontro, agindo sempre no sentido de acorrentar os sujeitos. Assim, o caminhar em direção da verdade consiste num grande esforço, pois há uma afinidade entre a natureza da alma e a coisa inteligível – a inteligência é atraída para a verdade, porque não está sob a égide dos sentidos. O processo que a alma precisa fazer em direção à verdade deixa ver que, em geral, o corpo não é fonte de confiável conhecimento, afinal, ele engana. O mundo é feito de ilusões e aparências, de modo que é necessário buscar a verdade das coisas. O problema é que, conforme narra a história, estamos presos desde nossa infância 172
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à tradição. Todo homem é, pois, prisioneiro de seus próprios preconceitos e não reconhece sua condição, afinal, reconhecer a ignorância, como bem ensinava Sócrates, é o primeiro passo para a busca do conhecimento. A crise é, portanto, o momento onde o certo se torna incerto e onde o sujeito passa a questionar suas crenças e opiniões, interrogando-se sobre suas causas, em busca de razões e, desta forma, o diálogo passa a consistir no método por excelência para romper os grilhões da ignorância. O que se evidencia, contudo, é que esse idealismo, reforçado nos séculos posteriores pela ascensão do cristianismo, constituiu-se como um modelo pedagógico. Assim, as escolas, sob a supervisão direta das igrejas, passaram a ocupar-se do ideal, colocando o real como algo a ser superado, marcando uma divisão entre o conhecimento e a vida propriamente dita. Sob a influência do idealismo platônico se construiu uma escola que valoriza o conhecimento abstrato, de modo que quanto mais for distante do movimento da vida, distante dos corpos e dos processos, mais significativo ele se torna. Deste modo é que concebemos uma escola que, por exemplo, inserida num ambiente rural, ensina botânica desenhando plantas no quadro negro, sem nunca abrir suas janelas. O que se torna evidente é que, não se está falando de desenvolver o pensamento abstrato, mas rever os conceitos que subjazem ao pensamento ocidental e que organizam nossas estruturas curriculares.
A revolução da tradição idealista Vivemos, segundo Martín-Barbero (2004), uma cultura préfigurativa, onde os pares substituem os pais e o aprendizado passa a ser fundado na própria exploração que os jovens fazem do seu universo tecnocultural (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.334). Nesse cenário, a educação apresenta um grande descompasso, pois seus objetivos de universalização não são atingidos, sua qualidade tem se deteriorado gradativamente, os professores são desmoralizados com seus baixos salários, escassez de recursos e não-renovação de 173
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suas equipes. Além destes elementos, também podemos considerar os modelos de comunicação que subjazem à educação como fatores de descompasso, afinal, a escola encarna um regime do saber baseado unicamente no texto impresso. Institui-se um verdadeiro paradigma educacional, onde a imprensa instaura uma territorialização das identidades através da aprendizagem fundada no controle social, seja por informação ou por segredo. A aprendizagem passa a ser medida pela evolução da própria leitura, que se transforma numa escala mental de desenvolvimento e, assim, o rendimento escolar também é comensurado por pacotes de informação apreendidos. O interessante é que esse modelo escolar segue à risca a tradição cristã com relação à leitura das sagradas escrituras: Tanto quanto o clérigo detinha a leitura autêntica da Bíblia, agora o professor é quem detém o poder de leitura autêntica do livro didático. As mídias são refutadas diante desta escola, pois: A criatividade do leitor cresce na medida em que cai o peso da instituição que a controla. Daí a antiga e pertinaz desconfiança da escola com relação à imagem, em direção a sua incontrolável polissemia que a converte no contrário do escrito, esse texto controlado internamente pela sintaxe e de fora pela identificação da clareza com a univocidade. A escola buscará, contudo, controlar a imagem, seja subordinando-a ao ofício de mera ilustração do texto escrito, seja acompanhando-a de um cartaz que indique ao aluno o que diz a imagem (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.337).
Assim, relutando sobre aquilo que o mundo tem de mais disseminado nos dias de hoje, a saber, as tecnologias, a escola acaba produzindo nos jovens uma lacuna cada dia mais profunda entre sua cultura e a que ensinam seus professores. Essa lacuna, por sua vez, deixa os jovens literalmente indefesos ante a atração que exercem as novas tecnologias, tornando-os incapazes de se apropriar crítica e 174
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criativamente delas. As tecnologias são, para as escolas, apenas uma possibilidade de tornar o ensino menos entediante diante da inércia insuportável das jornadas escolares. A relação da comunicação com a educação torna-se, portanto, apenas instrumental. O professor se sente confiante diante do poder que tem com o texto, mas balança quando se vê diante das mídias, afinal, o aluno sabe muito mais e maneja com maior facilidade que ele as linguagens da imagem. O certo é que o livro continua e provavelmente continuará sendo a base para uma primeira alfabetização, mas é preciso ir além dessa cultura e fundar uma segunda alfabetização que abra as portas para as múltiplas escritas que hoje conformam o mundo tecnocultural. A educação não pode virar suas costas para as transformações do mundo e os novos saberes por ele mobilizados e, por isso, sua nova função passa a ser a construção de cidadãos críticos, que saibam ler de forma cidadã o mundo. O professor, tal como o filósofo da alegoria platônica, deverá converter-se em um formulador de problemas, provocando interrogações, coordenando equipes de trabalho, sistematizando experiências, consolidando um verdadeiro diálogo entre culturas e gerações. As tecnologias digitais [são] como investimento na autonomia dos estudantes para gerenciar sua educação, para que possam aprender perguntando e respondendo os desafios educativos e formativos da sociedade atual (SANCHO, 2006, p. 31).
O olhar das mídias na educação Durante o primeiro semestre de 2015 foi feito um levantamento em uma escola pública de Palhoça sobre o uso de tecnologias na sala de aula através da aplicação de questionário a parte de seus professores. A escola, apesar de pública, conta com uma infraestrutura qualificada, tendo à sua disposição dois auditórios com recursos multimídia e três equipamentos móveis de projeção para atender a 175
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aproximadamente mil e quinhentos alunos, distribuídos em quinze salas de aula, nos períodos matutino, vespertino e noturno. Assim, apesar da greve que atingiu parte do corpo docente da instituição, contabilizaram-se, em 120 dias letivos, 1.800 aulas através de recursos tecnológicos. Foram 891 aulas no período matutino, 661 no período vespertino e 819 no período noturno. A divisão das aulas por disciplina pode ser observada detalhadamente no quadro abaixo:
O interessante é que, apesar de os dados não apontarem, a observação de parte das atividades indica que realmente há um uso instrumental dos recursos tecnológicos da instituição, pois não há mudanças com a inclusão da tecnologia à sala de aula, apenas se adaptam as velhas rotinas com recursos facilitadores que, de maneira geral, não alteram a aprendizagem e nem ressignificam a relação entre professor, aluno e tecnologia. Para buscar entender alguns desses impasses, ainda em 2015, foi aplicada na mesma instituição uma pesquisa com a participação de 17 professores. Todos estes possuem uma relação próxima com a tecnologia, até porque, questionados sobre seus conhecimentos de informática, por exemplo, todos consideraram possuir bons fundamentos. Agora, já quando perguntados sobre sua relação com os recursos disponíveis na escola, alguns teceram críticas à rádio escolar, por exemplo, mas nenhum deles afirmou utilizar do recurso em suas 176
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atividades, ou seja, eles acabam não se envolvendo com esse instrumental, sem dele fazer corpo à sua prática. Essa constatação pode ser reforçada quando observamos que 76% dos professores utilizam os projetores da instituição, mas praticamente ninguém faz uso de recursos mais criativos de construção como câmera fotográfica (0%), filmadora (0%), gravador de voz (0%), celular (17%), microsystem (0%). O uso massivo se dá, como afirmava Martín-Barbero, com os livros didáticos (35%) e os textos xerocados (76%), além dos recursos tecnológicos já citados, obviamente. Considere abaixo a tabela completa:
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Todos esses dados apresentados acabam transparecendo, em geral, a tendência que o professor tem de se utilizar do recurso tecnológico apenas em seu caráter instrumental, numa verdadeira inovação conservadora.
Reformar o pensamento, revolucionar a educação As considerações aqui desenvolvidas sugerem que a escola permanece alheia ao mundo que a cerca e que o professor, grande responsável por essa tessitura, teme o novo, conformado que foi a um modelo de pensamento que despreza a experiência em vista do abstrato. O professor, em vista do poder que o texto lhe confere, hesita em utilizar das tecnologias que circundam a escola, por considerar que seus alunos tenham maior domínio sobre elas, pondo em xeque sua autoridade pedagógica. O pouco que se utiliza destas ferramentas é para tornar as aulas menos enfadonhas, sem que mudanças sejam realmente projetadas. Assim, os dados e as reflexões neste capítulo apresentados pretendem mover uma relativa mudança nos hábitos dos professores e das escolas para que possam tornar as tecnologias verdadeiras ferramentas de provocação. E que os professores se tornem também eles mediadores, estabelecendo pontes que transformem a vida dos estudantes, e deles próprios, em processos permanentes de aprendizagem. Paula Sibília (2012) faz uma crítica ao momento que a escola vive ao apontar que se faz necessário refletir o motivo pelo qual a escola ainda insiste em mecanismos ancestrais. O próprio sistema escolar trouxe para si uma carga que o instaura como o lugar da cultura letrada. Ao trazer tamanha liturgia, a escola despreza, segundo a autora, outras possibilidades de conhecimento. Uma das formas desprezadas consiste nas linguagens letradas trazidas pelas novas mídias audiovisuais, algo que vem ao encontro de Martin-Barbero (2004). Os argumentos de ambos ficaram evidentes na pesquisa realizada. O exemplo que Sibilia (2012) traz para ilustrar a construção da cultura letrada através de múltiplas plataformas é o fenômeno 178
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Harry Potter. Se olharmos o início do século XX o livro seria a única possibilidade de divulgação de uma literatura. Porém, já nos primeiros anos deste século, o exemplo citado foi divulgado através de livros, mas não só, afinal, o encontramos também no cinema, nos games, em websites e diversos musicais, enfim, um dilúvio de possibilidades. O mesmo pode ser aplicado à escola: As possibilidades do saber se diluem em múltiplas plataformas oferecendo aos escolares possibilidades para além do muro. Insistir na escola como espaço único do saber letrado é anunciar o próprio apocalipse. Insistir em metodologias desconectadas é insistir na incompatibilidade. Não podemos também nos prender à ingenuidade da militância das tecnologias digitais como ponto salvador das mazelas encontradas nos espaços escolares. Mais do que uma tecnologia de uso instrumental, é importante uma ação reflexiva sobre. Isto não impede de se levantar questões como: A escola tornou-se obsoleta? A pergunta cabe, e os números aqui levantados também corroboram para sustentar tal pergunta. Porém, estes mesmos números podem ser usados para pensar a escola enquanto uma peça ligada a uma maquinaria, conforme Varela e Álvaro-Uria (1992) nos alertam. A escola, como parte de uma sociedade, representa os mesmos papeis representados por outras instituições deste tempo. A inserção de tecnologias reproduz uma maquinaria maior que ela mesma. Diante desta ação de interligação entre escola e sociedade é preciso entender os mecanismos maquínicos que se diluem como dilúvio ao invés de apontar a instrumentalização tecnológica como solução de todos os problemas existentes na escola. Embora, mesmo assim, os apontamentos da pesquisa mostrem professores instrumentais e não criativos-reflexivos. O modelo estrutural escolar, em certo grau, lembra o modelo estrutural prisional, se pensarmos em uma sociedade de controle a partir de Deleuze e Guattari (1996). Ambos, a escola e a prisão, são espaços de confinamento e adotam uma postura de proibição, como Sibília (2012) chama atenção. Em tempos de conexão, a escola ainda insiste na proibição. Apenas para ilustrar, facilmente encontramos escolas que tratam o celular, ou qualquer dispositivo do gêne179
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ro, como o maior vilão dos corpos não controlados. Os corpos em confinamento na escola podem estar conectados, mas esta conexão, porém, não simboliza a libertação do confinamento. Em momentos de rastreamentos virtuais e geolocalização a conexão também pode ser um espaço de confinamento, assim como diz Sibília (2012). A crítica que se estabelece pode ser lida a partir da colocação de dois lados: A escola em tempos analógicos de um lado e os alunos em tempos digitais noutro lado. Tal analogia ajuda a entender certo distanciamento entre os dois lados, vide o recurso mais utilizado pelos professores pesquisados, analógico e não digital. Seguindo esta mesma linha, Sibilia (2012) chama atenção que é mais importante novas posturas para a escola do que apenas instrumentalizá-las com diversas tecnologias. Não é suficiente pontos de acesso à internet, mas é preciso pensar como isso pode contribuir. Hoje a tecnologia digital é vivencial e não instrumental. Abrir-se a este novo pode ser também abrir uma caixa de Pandora como também pode significar entrar em fluxos, conforme Deleuze e Guattari (1996) apontam, sem saber onde tais fluxos podem levar. O que vai acontecer? É uma pergunta sem resposta. São fluxos que se diluem nas conexões. Alguns setores poderiam afirmar que as tecnologias digitais podem servir para dispersão. Com tal afirmação retomemos o início do texto, com Platão e a Alegoria da Caverna. Quando os homens, feitos prisioneiros, encontraram o sol, o primeiro movimento, com certeza, não foi de total lucidez visual. O primeiro movimento no fluxo também não será. É como sair das sombras e ter a visão comprometida pela forte luz. As dificuldades para pensar um uso para além do instrumental significam uma resistência diante do mundo de sombras. Sair da ilusão criada a partir de projeções e ir em busca de uma construção. Isto é estar num espaço onde uma sociedade tecnocrata reconstrói-se a cada interação.
Conclusão O desafio de pensar escola e as tecnologias de época que a compõe perpassam necessariamente pela discussão de valores. Quando afirmamos que um escolha dentro da escola é mais adequa180
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da que outra estamos, no fundo, realizando um escolha de valores. Ao afirmar que uma postura é mais valorosa que outra é uma questão de escolhas e valores, mas estas afirmações não podem ser entendidas apenas a partir de experiências do senso comum; é preciso refiná-las, pois a escola, como ela mesma se define nesta época, é um espaço do saber, do letramento, do conhecer. Um espaço cercado de idealismos e, como vimos, os idealismos tem raízes, não-rizomáticas, no idealismo platônico. Em tempos de conexão perene, supervalorizar o conhecimento abstrato é, no mínimo, atestar a incompatibilidade entre a proposta escolar e os corpos que a frequentam. A passagem pelas páginas de Martin-Barbero nos permite um olhar diante da descaraterização que os espaços escolares vivem. A escola está num momento de descompasso que o universo que é, ou está, apresentado aos escolares. Parece a escola uma lacuna entre as diversas possibilidades que se apresentam. A escola, sob o pretexto da segurança, fecha-se em paredes enquanto que os escolares interligam-se em redes e, diante desta possibilidade, profissionais da educação insistem em uma inovação conservadora. Se o capítulo começou com uma pergunta, cabe ele terminar com outra. Não é intenção desta reflexão propor um estudo conclusivo, mas sim trazer e pensar sobre as inúmeras provocações de nosso tempo. E a provocação que se mantém é:Quais valores agem sobre o espaço escolar? Constatamos, através da pesquisa, um uso instrumental e uma inovação conservadora. Mas isto é apenas resultado de uma prática alicerçada em outros momentos, resultado de escolhas – e o que motiva tais escolhas?
Referências: DELEUZE, Gilles. GUATTARI Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo: Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 181
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PLATÃO. A República. São Paulo: Edipro. 2006. SANCHO, Juana María. “De tecnologias da informação e comunicação a recursos educativos”. In: SANCHO, Juana María, et al. Tecnologias para transformar a educação. Porto Alegre: Artmed, 2006. SIBILIA, Paula. Redes ou Paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. VARELA, Julia. ALVARES-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. São Paulo: Teoria & Educação, n. 6, p. 68-96, 1992. VÁSQUEZ, Adolfo Sánches. Ética. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002.
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11. A experiência poética da formação humana: em diálogo sobre a importância da filosofia e sua dimensão poética como possibilidade formativa Iris Daniele Marcolino da Silva
Introdução Na era da “concreticidade” da técnica moderna/pós-moderna, o ser humano revela, a partir da sua experiência existencial fenomenológica, o estar no mundo lugar do caos e do paraíso; onde tudo de mais específico demonstra e sinaliza a presença de um “estranho”; a dificuldade em sentir-se e perceber-se no mundo-tempo; o presenciar a “crise da razão” em tempos que impõe um posicionamento rápido e certeiro sobre o ser e o ser dos entes. Tudo isso têm resultado no “não cuidado de si” e no “esquecimento do ser” estes conceitos se fazem importantes para um melhor entendimento sobre o ser e o seu lançar-se no mundo. Portanto foi com muito cuidado e atenção, que o filósofo Martin Heidegger15, assume para si esta responsabilidade filosófica de recolocar em questão a volta da pergunta gênese sobre o Sentido do Ser. A profundidade linguística que engloba a produção escrita que advém da leitura, incorporado ao valor intelectual do livro “Leitura e Escrita na construção do conhecimento” produz múltiplas possiMartin Heidegger nasceu em Messkirch, na Alemanha, em 26 de setembro de 1889. Estudou Teologia e filosofia na Universidade de Freiburg. (...) Doutorou-se com a tese A doutrina do juízo no psicologismo e, dois anos mais tarde, fez também em Freiburg sua livre-docência, com o trabalho A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto. Em 1916, com a chegada de Edmund Husserl (1859-1938) à Universidade, desenvolveu-se um fértil diálogo entre o catedrático e o promissor Heidegger. Este logo assumiria o cargo de assistente de Husserl. A convivência despertou o jovem professor para a fenomenologia que será determinante aos rumos iniciais e futuros do seu pensamento. Com ela, Heidegger também aguçou a consciência da originalidade de ser próprio filosofar (GIACOIA, 2013, p.15). 15
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bilidades do pensar na construção epistemológica do existir proporcionado pelo ler e escrever. Por isso, valorizar a pesquisa sobre essa temática é proporcionar uma aprofundamento nas possibilidades do ensino e da aprendizagem. A conflituosa e frutífera relação: pensar e sentir ou poetar e filosofar, ainda, que estando em foco no século XXI, observa-se a inexistência de aberturas necessárias para que haja para tal, a aproximação entre o ser humano e suas sentimentalidades – mundo-tempo. Tendo em vista toda a implicação temática que já foi iniciado, esse capítulo tenta revivescer o debate sobre a Póetica da Formação Humana em sua dimensão filosófica. Trazendo alguns importantes registros de Filósofos e Poetas sobre tal temática.
Entre o Poético e o Filosófico em Martim Heidegeger: a defesa de uma razão poética para a Prática da Formação Humana A colaboração dialógica: entre filosofia e poesia propõe uma reestruturação que empreende o filosofar em sua forma prática, como o pôr em curso o filosofar na concepção heideggeriana explícito na obra “Introdução à filosofia”. O poetar é advindo da linguagem (Rede)16 é uma possibilidade de abertura para penetrar no ser. Pois, abarca a possibilidade de compreensão no sentido ontológico. “Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. É assim que se pode entender o que Heidegger pensa quando afirma que a linguagem é a clareira, ou morada, do Ser” (GIACOIA,2013, p.77). O Ser que habita a poesia também é habitado por ela. Ele desvela e “desoculta”; abri; traz para a luz o seu desconhecido. Possui dispositivos sensíveis e a plena dimensão experimental, da potência do conhecer-se como abertura do ser. Otimizar o olhar sobre a formação é também atentar-se para a importância semântica e episA expressão em alemão “Rede” é compreendido por Heidegger, segundo Giacoia, como:“Entender de ser, poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e tácita, de preocupação com o ser. Neste sentido, compreendemos o que significa ser, sabemos mais ou menos o que queremos dizer quando empregamos a palavra “ser” (GIACOIA, 2013, p.77). 16
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temológica do sentido do “Habitar Poético”. “Pensar e Poetar são duas modalidades de dispor o pensamento a serviço da linguagem, duas maneiras de habitar po(i)eticamente a linguagem” (GIACOIA, 2013, p.46). O “cuidado de si” é inerente ao estado relacional porque já é uma proposta de formação (ser-com-os-outros) não se vive fora do seu tempo, assim como, não se vive fora das relações. Ser-no-mundo, no mundo compartilhado (Mit-Sein) é antes de tudo lançar-se para fora. Para Heidegger, compreende-se que viver é: Temporalidade; Angústia; Possibilidade/Impossibilidade; e Mundo. Deste modo, Cabe á Fenomenologia a tarefa de descrever a mundanidade como elemento constitutivo do ser-lançado no mundo. O poder-se é indefinido, mas não infinito. Temporal, ele implica finitude e possibilidade da impossibilidade, de não ser. Por isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com os entes intramundanos, cura do mundo. Não há ser-o-aí sem mundo, nem mundo sem ser-o-aí. (GIACOIA, 2013, p.74)
A poética é uma porta de acesso do “cuidado de si” desnuda os sentidos velados e coloca a tona vividamente o “desvelamento” a possibilidade do conhecimento de forma suave e branda, a partir de um recolhimento meditativo ou de forma abrupta, porque também a existência na medida fatídica é “angústia”17. “Ser-no-mundo é existir como cura: seja ao modo do providenciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, seja ao modo pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e toma sob seus préstimos.” (GIACOIA, 2013, p.79) O atravessamento visceral do processo enquanto existência acontece entre o outro e o ser-o-aí, como sendo o outro que o habita como relacional que impele cuidado e preocupação, pois, (Angst) é a mais fundamental dessas disposições basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes intramundanos, mas o ser-o-aí no mundo. Não se trata de temos ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua raiz: tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a possibilidade sempre presente de falta de si (GIACOIA, 2013, p.75). 17
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Essa relação não se limita à que estabelecemos com os outros, mas está também ontologicamente vinculada à relação que criamos conosco, a um tipo originário de cuidado de si, de préstimo e cura das possibilidades sempre abertas que constituem nossa existência. Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser-com-os-outros” (GIACOIA, 2013, p.73). A preocupação deste capítulo tem o foco no Projeto de Formação Humana que está sendo ofertado pela Educação de modo geral, a partir da crise de paradigmas da razão. Já que a implicação do campo da Filosofia da Educação é esta: examinar por onde está indo o velar do processo educacional. Imbricar exigências à postura reflexiva filosófica, é violentar a capacidade temporal fundamental desde sua gênese, para maturar os questionamentos e a respostas do âmbito da disciplina Filosofia. Por isto justifica-se o poetar. O tempo do Poeta é sentido pela contemplação lenta de outra proposta do viver, assim é como ver um gato observar uma janela a sua frente. Não sabemos a dimensão do que vê, mas ele está contido em sua meditação contemplando o todo através da janela. É lento. Mas profundamente ele observa. Estudar Heidegger é atrasar os relógios e desfrutar o encontro. Como escreve a professora Rosana Moura, pesquisadora no horizonte da Hermenêutica, citando Heidegger, sobre a experiência do pensar no poetar compreende que, Sob este influxo, pensar e interpretar se fundem como existência. Em outras palavras, a filosofia, sendo algo alcançado no mundo, não poderia ser feita apenas de conceito; ela também é feita da matéria humana viva dos poetas – risco, queda, desamparo, amor, morte e angústia. Não estaria ai nosso verdadeiro espelho na educação, desmistificando e ampliando a perfectibilidade sonhada? Não seriam, então, os poetas-filósofos aqueles que denunciam o “tempo indigente” (MOURA, 2015, p.1 apud HEIDEGGER, 2014). 186
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A construção de um “tempo meditativo” a partir do sensível18, na Filosofia da Educação, pode sim, compreender as necessidades mais intimas do ser que não se fazem urgentes, mas importantes, também como as mais complexas, pensadas no tempo do “urgente”. Por isso mesmo, Heidegger torna-se indispensável quando evidenciamos que é necessário voltarmos à pergunta “o que significa pensar?”: Por isso mesmo, (re)aprender a pensar, tal como Heidegger se propõe a fazer, ao responder à pergunta “o que significa pensar”, é um propósito que só se atinge em diálogo com a poesia, em uma recuperação da essência da linguagem, ofuscada pela hegemonia metafísica da história do pensamento (GIACOIA, 2013, p.47).
Para Heidegger, o pensar é originário do Filosofar enquanto ação, pôr em curso a Filosofia é já propor uma experimentação do Filosofar. Tendo em vista que o despertamento, citado por Giacoia Jr (2013) na sua obra sobre o “Novo Pensar” suscitado por Martim Heidegger, não seria um redimensionamento da possibilidade filosófica, voltada para o poetar? Uma possibilidade de mergulho no mar da experiência poética? Porque essa existência é cercada e composta por implicações sensitivas a partir do que é mostrado pelos Fenômenos (o que se mostra/manisfesta e é mostrado) e do Ser dos entes. Existindo com (Dasein)19 o ser humano é abertura. É uma estrutura de significações que contêm em si velamento “ocultamento” e abrirse “desvelamento”. Assim, citando Giacoia, para Heidegger, O pensar não se separa originariamente do agir – ele age enquanto se exerce como penA apresentação do conceito redução eidética trabalhado por Giacoia, que significa (pertencente a essência; formas ou imagens com características) pode ser compreendida como uma dimensão poética da percepção que “A redução eidética parte da simples percepção sensível e, por meio de sua descrição metódica, desvenda também suas estruturas formais ou ideais, que não são de natureza psicológica ou subjetiva, mas lógicas e universais. Tais estruturas são essências ideias, porém diferentes das ideias platônicas, cuja existência real é admitida em um mundo inteligível. As essências de Husserl são formas de a consciência visar e exibir seus objetos” (GIACOIA, 2013, p.37). 19 Dasein é uma palavra composta pelo verbo “ser” (sein) e pelo advérbio “aí” (da). Em acepção existencial-ontológica, o Dasein é ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí –no aberto, em abertura para o Ser (GIACOIA, 2013, p.63). 18
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sar. (...) O Pensar é um agir em sentido especialmente elevado, não estando separado da ação por nenhum abismo a ser recoberto ou transposto pelas formas diversas de aplicação ou emprego (GIACOIA, 2013, p.11).
Deste modo, pensar uma ideia de Formação Humana, que aprofunde o conhecimento de si mesmo em sua sensibilidade é possibilitar uma melhor compreensão e efetuação da escuta e do cuidado de si, poetizando a Formação Humana. “Produzir é etimologicamente, producere: conduzir diante de, trazer à frente – como téchne (técnica), em sua significação originária, está ligada à poiésis (produzir, criar), pois é também uma modalidade de desocultar, trazer a luz, revelar.” (GIACOIA, 2013, p.73). A capacidade formativa inicia-se consigo mesmo. Desvelando sua imagem pelo o mundo e para si. Neste caso, trata-se do cultivo das habilidades criativas do homem, instrumentalizadas sob o mote: “Formar-se a si em si mesmo é a meta do homem no homem”, ou seja, “formação harmônica de todas as capacidades humanas e da individualidade espiritual”: “Eu como ‘obra de mim mesmo’ (VIESENTEINER, 2012, p.5).
O ser em seu “Habitar Poético” fomenta a construção de si todos os dias, como uma obra de arte, enquanto inacabado e provisório, já que é visitado permanentemente pela facticidade e o “desvelamento e velamento” em si compõem o roteiro existencial produzidor de arte. Então, por quê dizer sobre o ser em sua indigência existencial? Já que é um entusiasta na plena estrada do viver. Implica que para Heidegger, viver no mundo indigente é compreender-se a partir de um mundo sem fundamento e sem fundo. Porque, O fundo é o solo de um enraizar e de um erguer-se suspensa no abismo. Supondo que se 188
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encontra ainda reservada a viragem para este tempo indigente, ela apenas poderá surgir se o mundo virar radicalmente, ou seja, dito de uma forma mais precisa, se ele virar a partir do abismo (HEIDEGGER, 1977, p.310).
Por esta implicação os seres necessitam sentir-se no mundo avesso. E tornar-se do avesso é um compreender do ser-o-aí no mundo. Contudo, este erguer-se conceito o qual Heidegger desenvolve está possivelmente direcionado ao campo Poético do ser que propicia um mergulho no mar do desvelamento poético do ser, que está para vida e para a morte. Entre o abismo de si e do mundo simultaneamente lançado na existência “Dasein”, “Em acepção existencial -ontológica, o Dasein é ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí- no aberto, em abertura para o Ser” (GIACOIA, 2013, p.63).
Em diálogo sobre a Formação Humana: A crise paradigmática e a virada linguística Desde o século passado, a humanidade experimenta uma crise na sua estrutura paradigmática, que diz sobre a mudança do comportamento humano, que sinaliza a passagem pela modernidade; que aponta os seus desconfortos com o tempo e as tecnologias existentes; pontua os seres e o mundo a sua volta com superficialidade e instantaneidade, pois tornou-se ainda mais frágil as compreensões sobre o que é o ser e o mundo. Então, Como enfrentar tal agrura, quando, após a anunciada morte do Deus, todos os deuses se puseram em fuga, ameaçando o âmbito do sagrado e, assim insinuando também a morte do homem, como o conhecemos até o presente? A esperança parece hoje inteiramente depositada no poder das tecnociências (GIACOIA, 2013, p.10). 189
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Esta crise repercute na representação dos valores e padrões que servem como direcionamento e referência na sociedade. Quando tudo isso acomete as ciências formais, naturais e humanas põe em cheque a necessidade de recondução de elementos formativos que serão desenvolvidos a partir do choque dos conceitos em questão. Todavia os paradigmas só entram em confronto quando as entidades deste tempo, já sofreram algumas transformações. Então, Não se pode negar que, desde o início do século passado vivemos uma prolongada crise de paradigmas nas ciências formais, naturais e humanas. Tanto nas ciências quanto na filosofia o horizonte de compreensão para o sentido do Ser encontram-se nublado. Para esse ofuscamento, não encontraremos saída enquanto não respondermos às questões ontológicas fundamentais, incidentes sobre o estrato teórico dos conceitos básicos das ciências e da filosofia modernas (GIACOIA, 2013, p.55). Algumas das situações, por exemplo, a partir da história da Filosofia, especificamente na Grécia clássica, sobretudo no século V, quando é inaugurado com os Pré-socráticos, e nascem os entendimentos, ainda que místico-mítico que compreendia o ser e o mundo pelas óticas da Arte e da Filosofia. Lá tinha-se minimamente uma inclinação para a projeção do ser em seu conjunto complexo de terminações. O desamparo anunciado pelo próprio trânsito da vida e as paixões desenfreadas era já um bom prelúdio sobre a existência de um “habitar poético”. Como cita Benedito Nunes na obra “O dorso do tigre”, Foi a autorreflexão dos estoicos, muito próxima da autopunição. Não ter esperança, não alimentar desejos, sofrear a imaginação, permanecer em vigília, não sonhar. A absoluta falta de consolo é a única consolação possível. Tal era a palavra da filosofia, ultima e sem apelo, mas no fundo ardilosa: o estoico seguia, nessa atitude desolada, o ditame da razão universal (NUNES, 2009, p.21). 190
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Nesta linha tênue que situa a resiliência do ser humano, mas que tão cedo voltado ao controle racional, por temer a sua própria imagem de fragilidade enquanto ser-no-mundo; medo de conhecer o que há dentro de si e que continua velado. A possível reelaboração paradigmática já denuncia um fracasso do humano mecanizado e frio, que foge do contato com suas sensibilidades. Ex-sistir é corresponder linguageiramente a esse chamamento do Ser, ao descerrar-se do Ser aos entes em seu desocultar. O Ser acontece em seus adventos, mas não se confunde com eles. Para que haja um desvelar- uma alétheia- é primeiro necessário um estar oculto, não desvelo sem velamento anterior. Nada é doado que antes não se tenha subtraído (GIACOIA, 2013, p.95).
Voltando ao sensível, fio condutor, que elastece as possibilidades de desvelamento propondo outros caminhos que desvelam o ser humano pelas chagas da própria existência o enquadrando na questão Deus e mundo. Deste modo “O mundo é a totalidade do ente que não é divino e que se encontra fora do divino. Em sentido cristão, temos o mesmo tempo o ente criado diante do incriado. Com isto, o homem é também uma parte do mundo assim compreendido” (HEIDEGGER, 2011, p.229). Entretanto, Hölderlin, poeta alemão, respeitado e admirado por Heidegger diria que: “O único Deus que pode salvar-nos é o da poesia.” E por que nos referir ao Divino? Seria a poesia um acesso de aproximação entre o Ser e o Divino? Porque a gênese da possibilidade de imortalidade do ser é em si uma tentativa de aproximação com o divino. A poesia é a forma mais literal do encontro com o que é eterno e imutável, já que esta se apresenta como “abertura”. Poderíamos apontar a poesia como portadora da passagem entre o Sagrado – Místico-Mítico como conexão primeira entre o ser humano e deus. Como cita: Mircea Eliade, na sua obra “O Sagrado e o Profano”, 191
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Os pensadores pré-socráticos, interrogandose sobre a natureza dos deuses e o valor dos mitos, fundaram a crítica racionalista da religião. Assim por exemplo, para Parmênides (nascido por volta de 520) e Empédocles (c. 495-435), os deuses eram a personificação das forças da Natureza. Demócrito (c. 460-370), por sua vez, parece ter-se interessado singularmente pelas religiões estrangeiras , que, aliás, conhecia de fonte direta em virtude de suas numerosas viagens: abriu-se a ele, também, um livro sobre as inscrições sagradas da Babilônia, as Narrativas caldéias e Narrativas frígias. Platão (429-347) utilizava frequentemente comparações com as religiões dos bárbaros. Quanto a Aristóteles (384-322), foi o primeiro a formular, de maneira sistemática, a teoria da degenerescência religiosa da humanidade de (Metafísica, XII, capítulo 7), idéia que foi retomada várias vezes posteriormente (ELIADE, 1992, p.3).
Aproximar a razão e arte ou arte e pensamento, é acessibilizar uma reflexão sobre a representação do simbólico no campo da estrutura da abertura para o ser. A cena dada, a partir do que existiu e ainda existe, visto como profano no ser humano que se abre as paixões e desejos também é uma observação que salienta a presença da arte em sua experimentação no social. A história, a religião e os Mitos como pontua, Mircea, estabeleceu o contato com o Sagrado, a partir daquilo que a arte também salienta. Os Cânticos Mitológicos com sua Lira elevavam o ser a uma plataforma poética o (Habitar Poético). A Arte possuía dentro da Antiguidade o lugar da revelação do Sagrado através da sua mística com o Mito “O Deus vivo não era o deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na “cólera” divina.” (ELIADE, 1992, p.15). 192
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Contudo atualmente se faz necessário Poetar o mundo das coisas, porque precisamos redimensionar a experiência do real, assim, “Ser poeta em tempo indigente significa: cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos. É por isso que, no tempo da noite no mundo, o poeta diz o sagrado. É por isso que a noite do mundo é, no idioma de Hölderlin, a noite divina” (HEIDEGGER, 1977, p.312). O tempo indigente traz a sombria nuvem que diz sobre a solidão do ser e seu abismo no mundo. “Na era da noite do mundo, tem que se experimentar e suportar o abismo do mundo. Mas para tal, será necessário que haja quem consiga chegar até o abismo” (HEIDEGGER, 1977, p.310). Explorar os sentidos existentes no percurso que os seres fazem em seu processo de conhecer a si mesmo e o meio em que vive, coloca em questão a compreensão deste movimento, como sendo já um processo de idealização por uma formação humana que abarque este desejo de autoformar-se. Pois, os Filósofos trabalhavam o conhecimento projetando os benefícios dessas posturas-perspectivas para a vida do cidadão da Polis Grega. Micea problematiza a importância da narrativa mítica na vida dos gregos e como sua profunda relevância foi confundida e julgada como “Profana” já que também traz a reflexão sobre os dois modos de ser no mundo: sagrado e profano na perspectiva de uma dimensão racionalizante. Deste modo, será que a negação da relevância Poética, introduzida na Filosofia, não sofre um estigma histórico que representa o atravessamento ou a ruptura do liame que conecta o ser humano com o que é místico-mítico? Por que, o que será o mito, senão uma compreensão poética da narrativa filosófica da vida?! Mircea novamente pontua, Mas foram os estóicos que, no final do período antigo, exerceram uma influência profunda, ao elaborarem a exegese alegórica, método que lhes permitiu resgatar e, ao mesmo tempo, revalorizar a herança mitológica. Segundo os estóicos, os mitos revelavam visões filosófi193
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cas sobre a natureza profunda das coisas, ou encerravam preceitos morais. Os múltiplos nomes dos deuses designavam uma só divindade, e todas as religiões exprimiam a mesma verdade fundamental; só variava a terminologia (ELIADE, 1992, p.4).
Comportando a necessidade de revisitar os antigos Pré-socráticos para relembrar um pouco do que a escrita Poética potencializou dentro da História da Filosofia, compreende-se que idealizar uma postura mítica Poética, mesmo que resida no campo filosófico, faz aproximar o debate sobre a hegemonia religiosa na época da Grécia Clássica e seus fundamentos, pois, esta instituição possuía um projeto que configurava ou empreendia de algum modo um tipo de Formação Humana para as épocas vindouras. De todo modo o pensar ideias de Formação Humana é enfrentar os desafios da existência mutante e o conservadorismo moral da tradição. A educação passa pelas transformações de paradigmas e valores. Não podemos condicionar o processo formador que, está para além dos paradigmas; conservadorismos e preconceitos incontestáveis; deste modo, não deve-se reduzir a formação humana a isto. A escola da contemporaneidade precisa amparar o ser humano como mutante e cultivador de si mesmo. Isso, não significa dizer que a Educação precisará dar conta do todo existente, mas do necessário para ele autoformar-se. Faz-se necessário otimizar o processo educacional e redimensionar as possibilidades da própria formação humana é uma forma possível de fazer filosofia na educação executando de forma prática o Filosofar. Refletir sobre os valores formativos, que hoje ainda, estão enquadrados em padrões que conservam o ser humano do passado e esquecem-se do ser do presente que esta em pleno devir de si mesmo, tão pouco deve-se pensar o ser do futuro, pois, estamos implicados na importante urgência de pensar a Formação Humana do momento atual do agora. Neste sentido, Bachelard traz uma concepção moderna sobre 194
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a dinâmica da Formação Humana na Contemporaneidade relacionando o conhecimento à água. Demonstrando que “Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes” (BACHELARD, 1989, p.9). A mística da Formação Humana não seria esta? O escorrer e fluir. O não responder a totalidade da pergunta. Pois, o que colabora para Formação do ser é a própria existência e suas nuances diárias do renovo do perguntar de si.
Conclusão A Formação Humana é a abordagem formativa que tenta compreender as necessidades empreendidas na forma mais digna e respeitosa de entregar ao ser a autonomia do exercício de experimentar-se como: “obra de si para si” em sua amplitude existencial. Precisamos talvez enxertar outros olhares sobre essa Formação20 que está posta. Aplicá-la talvez enxertos que frutifiquem-na, Formar no simples sentido da palavra quer dizer colocar um ser na mesma “Forma” de tantos outros seres que não são iguais em si. Cada um com sua forma e estilo de viver. Será que estamos tropeçando na diferença da palavra: Formar e Formação? De certo que a Formação traz um caráter livre e Formar ecoa como uma articulação do prender a forma natural a que já se tem, ou seja, do conter este ser que escorre e muda. Que é límpida como a água, mas também é violento, valente e vulnerável. “No tocante ao meu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade” (BARCHELARD, 1989, p.9). Então, compreender-se como uma construção permanente em devir é possibilitar que a formação aconteça a partir de atualizações e redimensionamentos que tanto podem perpassar pelo filosófico como pelo poético. Aliás, não se trata aqui, para nós, de uma simples metáfora. O enxerto nos aparece, ao contrário, como um conceito essencial para a compreensão da psicologia humana. Ele é, a nosso ver, o signo humano, o signo necessário para especificar a imaginação humana. Aos nossos olhos, a humanidade imaginante é um além da natureza naturante. Só o enxerto pode dar realmente à imaginação material a exuberância das formas. É o enxerto que pode transmitir à imaginação formal a riqueza e a densidade das matérias. Obriga a planta selvagem a florescer e dá matéria à flor. Fora de qualquer metáfora, é necessária a união de uma atividade sonhadora e de uma atividade ideativa para produzir uma obra poética. A arte é a natureza enxertada (BACHELARD, 1989, p.10). 20
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Referências BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. GIACOIA, Osvaldo. Heidegger Urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013. HEIDEGGER, Martin. Da experiência do pensar. Porto Alegre: Ed. Globo, 1969. _________________. Por que permanecemos na província? Em Cultura Vozes, “Homenagem a Heidegger”, ano 71, n. 4, Petrópolis: 1977. _________________. A caminho da linguagem. 5.ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Edusf, 2011. _________________. Por que permanecemos na província? Em Cultura Vozes, “Homenagem a Heidegger”, ano 71, n. 4, Petrópolis: 1977. _________________. Contribuições para a Poesia de Hölderlin. Trad. Claudia Drucker. Brasilia: Unb, 2014. ___________________Caminhos de Floresta. Fundação Calouste Gulbenkian. Frankfurt am Main-1977. VIESENTEINER, J. L. Aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever: condições do conceito de Bildung no Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche. Artigo no prelo e disponibilizado em Palestra/UFSC-2011. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Ed. 34, 2009.
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12. A desmistificação do conceito de verdade e a sua importância para a formação humana: o auto-engano da verdade Leandro da Costa
Introdução O presente capítulo é uma aproximação ao conceito de verdade a partir do pensamento de Nietzsche e outros autores, Afinal, como um regime de verdade pode intervir na formação humana? Em que medida pode este tema interessar à Filosofia da Educação, lugar marcadamente dado a pensar a formação a partir da leitura e da escrita na construção da sua área de conhecimento? Verdade e mentira: duas palavras que, sem dúvida, nos trazem uma ideia formatada de certo e errado, de bom e ruim, de positivo e negativo. Seria a verdade uma mentira, ou a mentira uma verdade? Por que mentiríamos se não nos sentíssemos tão incomodados pela verdade? Se ela não trouxesse algum desconforto, tanto sofrimento e tanta indignação? Na verdade, na verdade, vos digo que a verdade sempre incomodou o homem e que por mais que ele tenha tentado se livrar dela, ela nunca se “descolou” do seu pensamento se transformando num enigma até hoje indecifrável. Na Grécia antiga, quem falava a verdade era chamado de parresiasta, ou seja, aquele que praticava a parresia, aquele que falava o que via e que pensava sobre o que via, completamente sem filtros, sem véus e sem mascaras. Na filosofia grega o parresiasta era conhecido como o filósofo cínico, aquele que falava o que via e vivia o que falava. Sua figura se fez sentir na vida de Diógenes Laércio, filosofo 197
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Grego que vivia nas ruas como mendigo, se masturbava em praça pública, comia o que lhe davam e não aceitava verdades impostas como absolutas e certas (FOUCAULT, 2011).
Contextualizando a temática Poderíamos fazer uma incursão contemporânea a partir do pensamento de Diógenes Laércio e analisar algumas premissas que com o passar dos anos se tornaram, por repetição e falta de análise, verdades incontestáveis e absolutas. Quais seriam então as “verdades” da velhice, da morte, da felicidade, do poder, enfim: da vida? Seriam realmente estas “verdades”, que ao longo do tempo vêm se mostrando inquestionáveis e incontornáveis e que se impõem a nós como inevitáveis, como o tabu da velhice, por exemplo? Seria realmente a velhice esse amontoado de estereótipos caquéticos que a indústria farmacêutica, a medicina, a mídia, etc. nos impõem? Falando especificamente deste fenômeno, a velhice, observamos que o idoso tem características e especificidades que outros grupos etários ainda não exercitam, pois ainda não lhes cabem determinadas características, direcionadas a esta parcela da população. Haveria, no entanto, que observar que, quando o indivíduo não apresenta essas características, que estariam sociológica e historicamente delegadas ao seu grupo etário, isto é visto com certo estranhamento. Por que esse estranhamento? Por que a inquietação quando algo se confronta com uma “verdade” pré-estabelecida? Seria o inquietante freudiano (FREUD, 2010), algo que aparece e enfraquece as “verdades” e que por isso mesmo faz levantar o questionamento Nietzschiano (NIETZSCHE, 2012, p. 36): O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são. 198
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“Verdades” então são conceitos inventados em determinada época e contexto social para, e somente para, suprir uma determinada necessidade de crença que se fez surgir a partir de uma determinada inquietação? Haja vista a necessidade intrínseca de crença da criatura humana, de que para viver é preciso ter algo em que acreditar, aproxima-se, talvez, a nossa afirmação de que a invenção de mentiras que se tornam verdades seria uma necessidade humana. Talvez haja uma vontade de verdade na condição humana, que partiria sim de uma necessidade de crer para poder sobreviver, ou ainda viver. Segundo Nietzsche (2012, p. 84), “A vontade de verdade é a crença, que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro. A questão não é propriamente a essência da verdade, mas a crença na verdade”. Por que essa necessidade de acreditar em uma verdade? Seria a vida insustentável sem ela? Como seria a vida se não nos auto -enganássemos com a ideia de verdade? Haveria civilização sem a ideia de verdade? Que seria do homem sem a crença na ideia de verdade? Seria essa obsessão na crença de uma verdade a evitação de algo que traria um desconforto, pois “no momento em que aprende a questionar a si mesma, a verdade talvez termine por revelar alguma não-verdade à sua base, prestando um testemunho inteiramente inesperado sobre si próprio (NIETZSCHE, 2012, p. 9). Em “Coisas ocultas desde a fundação do mundo” (GIRARD, 2008), o antropólogo René Girard nos mostra o conceito de mimese, que seria a característica do ser humano de imitar o comportamento de outros seres humanos sem questionar sua origem e necessidade de fazê-lo. Poderíamos inferir, talvez, que essa necessidade humana de crença em uma verdade ou em “verdades” inquestionáveis, seria uma característica estratégica de sobrevivência humana que se mostrou, e ainda se mostra eficiente para sobrevivência da nossa espécie? Segundo Nietzsche (2012, p. 11), 199
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Como meio para a conservação do indivíduo, o intelecto desenrola suas principais forças na dissimulação; pois esta constitui o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais é denegado empreender uma luta pela existência com chifres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulação atinge seu cume.
Essa dissimulação mimética, proporcionada pela crença inquebrantável em uma verdade ou em “verdades”, talvez venha ser aquela característica de “espírito de rebanho” que Nietzsche nos aponta em seus escritos. Fazendo uma analogia com os animais que vivem em grupo e tem essa característica mimética, a ovelha, por exemplo, observamos que esses animais se utilizam do fator imitação para garantir sua sobrevivência em meio às adversidades e incertezas da vida. Essa característica mimética das ovelhas é transmitida geneticamente e fortalecida na vivência desses animais, com os seus pares, até o fim de suas vidas. Não posso confirmar que a crença do homem na verdade tem um fundo genético, mas provavelmente ela se fortaleceu e continua se fortalecendo na vivência, e esse tipo de vivência vem sendo transmitido de geração a geração. Pois como diz Nietzsche (2012, p.11-12), Quando justamente a mesma imagem foi gerada milhões de vezes e foi herdada por muitas gerações de homens [...] então ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo o mesmo significado para o homem, como se fosse à imagem exclusivamente necessária [...] assim como um sonho que se repete eternamente seria, sem dúvida, sentido e julgado como efetividade.
Aproximar a mimética dos animais à dos seres humanos seria uma afronta a estes últimos, mas poderíamos fazer algumas aproxi200
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mações para poder tentar entender algumas características que fazem com que os seres humanos sejam unânimes na crença da verdade. A linguagem aí seria o grande nivelador mimético da humanidade, pois já nascemos em um mundo onde tudo se encontra nomeado, “etiquetado”, pronto para ser assimilado como verdadeiro. Pronto para ser assumido como inquestionável. Como o que está aí! Que se aceite e cumpra-se! Essa é a ordem silenciosa e silenciante que nos aborda assim que chegamos a este mundo formatado e não se tem mais o que fazer, pois tudo já está feito. Como tudo já está nomeado, já existem palavras pra tudo, não preciso fazer ou criar mais nada, pois tudo já está aí, meu ser aí já está aí! Mas e aí? Segundo Barros “Para Nietzsche, todavia, as palavras nos iludem quando as tomamos à risca e deixamos de perceber, por meio delas, acontecimentos que elas mesmas não podem assimilar” (NIETZSCHE, 2012, p.12). Então, posso inferir que já entramos nesse mundo nos auto -enganando sem saber que estamos nos auto-enganando, e que isso seria um modus operandi que faz parte do aparelho cognitivo dos seres humanos? Como nos incita Nietzsche (2012, p.13) a pensar: O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo! [...] Não lhe emudece a natureza acerca de todas as outras coisas, até mesmo acerca de seu corpo, para bani-lo e trancafiá-lo numa consciência orgulhosa e enganadora, ao largo dos movimentos intestinais, do veloz fluxo das correntes sanguíneas e nas complexas vibrações das fibras! Ela jogou fora a chave: e coitada da desastrosa curiosidade que, através de uma fissura, fosse capaz de sair uma vez sequer da câmara da consciência e olhar para baixo, pressentindo que, na indiferença de seu não saber, o homem repousa sobre o impiedoso, o voraz, o insaciável.
Ora, indiferente ao seu não saber, o homem se agarra à verdade acreditando ter derrotado a sua ignorância, acomodando-se dessa 201
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forma a um modelo hermeticamente fechado de saber sobre si mesmo que explicaria de uma só vez, a totalidade das suas vivências, todas as suas tendências, todas as suas experiências, enfim toda a sua existência. A idéia de verdade seria então o “antídoto” para o “veneno” da dúvida, a “cura” para a “doença” da ignorância, o apaziguamento da eterna luta de todos contra todos, fruto da discórdia e dos conflitos existentes desde o inicio da humanidade. Haveria então alguma forma de “escaparmos” desse sonho, ou pesadelo, nessa crença na existência da verdade? Não seria possível que sabendo que estamos, inconscientemente, nos auto-enganando, desenvolvermos estratégias para subjugarmos, esse “mecanismo” da crença na verdade, ao nosso desejo consciente de superação da necessidade dessa crença? Seria tal feito possível, ou estaríamos nós condenados eternamente à manutenção dessa necessidade, sonhadora, da crença na verdade? De acordo com Nietzsche (2012), é possível, sim, ao homem acordar desse sonho, ou pesadelo, na crença da verdade, pois “para tanto o homem consente, à noite, e através de toda uma vida, ser enganado em sonho, sem que seu sentimento moral jamais tentasse evitar isso: não obstante deve haver homens que, pela força de vontade, deixaram de roncar (NIETZSCHE, 2012, p, 13). É possível, segundo o pensador alemão, acordar desse sonho, ou desse pesadelo, e para isso é necessário força de vontade para não se render à sensualidade das sensações inebriantes que a vida nos apresenta pelos órgãos dos nossos sentidos. Esforçar-se, “esfregar os olhos” se preciso for para ver além do “invisível” e superar o “insuperável”. A necessidade da ressignificação de todos os fenômenos significantes, que nos foram e continuam sendo ministrados por meio de nossos órgãos dos sentidos, é uma possibilidade que se coloca à nossa disposição, mas que ao mesmo tempo é de difícil aquisição e manutenção, pois existem muitas “forças” com as quais teremos que “lutar”. A frase instigante e ao mesmo tempo esclarecedora: “Eu me 202
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contradigo? Pois bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões” (Walt Whitman) ilustra com bastante clareza o combate de forças, aparentemente indomáveis, que nos habitam e que dominam e são dominadas, num incansável jogo que só se finda com a morte. Para Nietzsche (2012, p. 27-28), essa união de forças concorrentes, nada mais é do que um mecanismo desenvolvido para a sobrevivência da espécie humana, pois como estratégia a mesma atuaria da seguinte maneira: Como um meio para a conservação do individuo, o intelecto desenrola suas principais forças na dissimulação; pois esta constitui o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais é denegado empreender uma luta pela existência com chifres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulação atinge seu cume: aqui, o engano, o adular, mentir, enganar, o falar pelas costas, o representar, o viver em esplendor consentido, o mascaramento, a convenção arrebatadora, o fazer drama diante dos outros e de si mesmo, numa palavra, o constante saracotear em torno da chama única da vaidade, constitui a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais incompreensível do que como pode vir à luz entre os homens um legitimo e puro impulso à verdade.
A crença na verdade nada mais seria do que um fenômeno que nasce para neutralizar a discórdia e fomentar a concórdia? Mecanismo que busca por meio da dissimulação fazer valer a sua força, a crença na verdade exige dos seus credores, a docilidade da aceitação incondicional da sua existência, com o objetivo de eliminar os conflitos pela neutralização das diferenças. Diferenças essas, que são eliminadas já no âmbito da linguagem, onde o indivíduo, pelo uso da palavra, tudo nomeia com o intuito de generalizar e buscar a uniformidade, como na seguinte metáfora de Nietzsche: “tão cer203
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to como uma folha nunca é totalmente igual à outra, é certo que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferençável (NIETZSCHE, 2012, p.15). Haveria o homem desenvolvido a crença na verdade para lhe economizar o pensar? Pois quem não pensa obedece, e sempre é mais fácil e confortável obedecer do que pensar, já que não mais existiria a necessidade de reavaliar, questionar, observar, inventar.
Conclusão Mecanismo econômico do pensar, o auto-engano na crença da verdade seria a grande “mola” propulsora da humanidade, porque viria a fornecer ao homem algo pelo que lutar amar, destruir, conquistar, sonhar. Enfim, uma justificativa para viver em sociedade e assim se perpetuar como espécie dominante. Na visão de Nietzsche (2012, p.47), essa característica auto-enganadora do homem se explica pelo fato de que O próprio homem tem uma inclinação imbatível a deixar-se enganar e fica como que encantado de felicidade quando o rapsodo narra-lhe contos épicos como se estes fossem verdadeiros, ou, então, quando o ator, no espetáculo, representa o rei ainda mais soberanamente do que o exibe a efetividade. O intelecto esse mestre da dissimulação, acha-se, pois livre e desobrigado de todo seu serviço de escravo sempre que pode enganar sem causar prejuízo, e festeja, então, suas Saturnais; nunca ele é mais opulento, rico, orgulhoso e arrojado. Será mesmo que esse auto-engano na crença da verdade não traria nenhum prejuízo ao homem? Não haveria um déficit na sua forma de pensar o mundo das coisas e dos homens, justamente por pensá-los e imaginá-los de uma forma tão unilateral? Essa subserviência do homem ao auto-engano na crença da verdade, não teria feito o homem escravo de uma forma única de pensar a sua existência, eximindo-o assim de outras formas de pensar que poderiam ser geradas pelo conflito de ideias divergentes? Talvez a busca pela 204
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unicidade e pela unanimidade da verdade teria feito o homem desenvolver o auto-engano da crença na verdade, afastando-o assim dos supostos conflitos gerados pela sua condição humana real. Mas, e se negássemos o auto-engano na crença na verdade? Se começássemos a encarar a crença na verdade como um “capricho” do ser humano pela seleção de crenças naquilo que mais lhe apraz? E se, pelo contrário, apoiássemos o pensamento de Simmel quando argumenta que “a verdade só é válida pelo que dela pode resultar de útil e prático, de eficaz para espécie humana, isto é, as representações verdadeiras só nascem pela seleção” (SIMMEL, 1983, p.17). E se os conflitos, em contraposição à unanimidade, não fossem em nada negativos, mas pelo contrário, fossem mais uma forma de sociabilidade, além da dominação e subordinação? Algo que nos levasse a exercer uma nova forma de lidar com as necessidades da vida, questionando verdades pré-estabelecidas, contrapondo-as a outras formas de pensar a realidade. Seguindo nos passos desses questionamentos, Simmel nos conduz a pensar que “há sempre uma realidade que não podemos apreender cientificamente em sua totalidade e imediaticidade, mas que deve ser considerada de diversos pontos de vista separados, criando assim uma pluralidade de objetos científicos independentes uns dos outros” (SIMMEL, 1983, p.74). Ou seja, talvez pelo conflito de ideias pudéssemos alcançar uma aproximação daquilo que cremos acreditar ser a verdade, pois a mesma, a nós nos parece condicional e circunstancial. Em Simmel, encontramos um exemplo característico da condicionalidade e circunstancialidade, ou melhor, dizendo da provisoriedade da verdade, quando o sociólogo nos reporta que “entre os aborígenes brasileiros em geral não é permitido a um homem se casar com a filha de sua irmã ou irmão. Quanto maior a tribo, mais severo se torna esse tabu, enquanto que em hordas menores e mais isoladas, frequentemente o irmão e a irmã vivem juntos” (SIMMEL, 1983, p.105). Seria o auto-engano da crença na verdade uma adequação da 205
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realidade ao intelecto? De acordo com Nietzsche, “a vida é o contrário da verdade e da bondade. Dizer sim à vida é dizer sim à mentira. E se a vida é falsa, o ideal de verdade é uma negação da vida” (NIETZSCHE apud MACHADO, 1984, p.122). Então, seguindo o raciocínio do filosofo do martelo, a estratégia hominídea de adequar a realidade ao intelecto com a intenção de desenvolver uma relação harmônica deste com aquela esteve, está e estará, sempre, fadada ao fracasso, pois a força da vida impõe com “mão de ferro” a sua vontade de mentira em detrimento da vontade de verdade da humanidade.
Referências FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FOUCAULT, Michel. A coragem de verdade: o governo de si e dos outros II. Curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo: a revelação destruidora do mecanismo vitimário. São Paulo: Paz e Terra, 2008. MACHADO, Roberto Cabral de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. São Paulo: Hedra, 2008. __________________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008. SIMMEL, George. George Simmel: Sociologia. Org.: [da coletânea] Evaristo Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1983.
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13. O ensino da filosofia. “Filosofia: isto é educação” Rodrigo Mafalda
Introdução Como provocação inicial, coloco duas questões: qual o valor e o caráter da formação filosófica? E como concretizar essa formação? Para refletir e buscar responder a essas questões, foi preciso avaliar alguns dos reconhecidos trajetos do ensino de filosofia e, com isso, perceber que uma justa avaliação implicaria certa decisão metodológica. Por isso, a pauta dos encontros foi o reconhecimento de algumas metodologias para o ensino de filosofia. Mas não só isso, pois era preciso lembrar-se inicialmente que o sentido próprio do ensino de filosofia é o filosofar. Porém, não se pode interiorizar o filosofar sem o diálogo constante com a própria filosofia e sua história. Dito isso, há diferentes olhares para pensar a relação entre a filosofia e a educação: 1. uma corrente filosófica lê a educação e oferece a sua verdade, o seu sentido, os seus fins, a sua interpretação, enfim, o que em cada caso seja mais apropriado; 2. adotar uma postura eclética, em que se considere todas as correntes possíveis; e 3. organizar a apresentação da disciplina é uma pergunta, um problema que é debatido na forma de seminários, como um tema gerador do pensamento. Compreende-se também que a filosofia pensa a educação em três esferas: epistemológica, axiológica e ontologicamente. Desse modo, é preciso que o professor seja um filósofo da educação e não apenas um transmissor de filosofias. Filosofia: isto é educação, propõe, então, que a filosofia é um modo de vida que está para além do cuidado com a riqueza, a fama e a honra, que preocupa-se com o pensamento, a verdade e o espírito. Nesse sentido, não é possível “viver da filosofia”, mas na fi207
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losofia, e de certa forma, fazer com que outros a vivam, pois esse também é o sentido de filosofar, assim como, pensar sobre a autoformação. Estamos falando do cuidado de si e da direção contraria da barbárie atual e da banalização do conhecimento e do caráter do professor. Em relação a isso, há o exemplo de Sócrates e o notório enigma de uma vida em que ele não pretendeu escrevê-la por si própria, mas que seus educandos não conseguiram não escrever. Porque Sócrates vive filosofando, isto é, educando. Ele vive segundo a filosofia, portanto, segundo a educação. Na ética socrática, devemos frisar, temos uma ética professoral, o filósofo volta-se para a caverna, assim como na educação em geral, o filósofo como educador está na caverna da sala de aula, tamanha é sua responsabilidade. E do filósofo moral para o filósofo trágico podemos citar como exemplo Nietzsche, como andarilho e como Educador. A imagem da caverna dá lugar para a imagem da Escola de Atenas de Rafael de Sanzio, ali podemos preservar a pluralidade de ideias como força agonística e cultural. Para Nietzsche o fim da tragédia grega foi o resultado da racionalização da arte, fruto do processo progressivo de supremacia do espírito apolíneo, em função da influência de Sócrates. Eurípedes já dá sinais de ir eliminando da tragédia o dionisíaco, em favor de elementos morais e intelectuais pregados pelo socratismo. Sócrates é visto como modelo de homem teórico - quis dominar a vida com a razão e aí teria começado a decadência da humanidade. Sócrates faz triunfar o mundo abstrato do pensamento e toda a civilização ocidental acaba invadida pelo racionalismo. Sócrates acusa a arte de irracional, de representar o agradável e não o útil. Nietzsche sonha com um processo de reestetização do mundo, isto é um renascimento do espírito dionisíaco sem abandonar o apolíneo e assim fazer e construir uma existência artística (HARDT, 2010, p.9). 208
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E enfim, da perspectiva moral socrática à trágica nietzschiana, mantenho a provocação aos valores atuais: Filosofia: isto é educação. Porém, como ensinar filosofia?
Para viajar ou em busca de novos roteiros A viagem, o viajante e o andarilho são fios condutores e também chave de interpretação, servem para refletir sobre o que é fazer filosofia. A partir de duas categorias principais, do viajante e do andarilho, a Filosofia da Viagem, de Jelson Oliveira (2014), é a síntese de dois modelos da filosofia quando vamos “ensinar o filosofar” e o “filosofar a marteladas”. A partir dos períodos da história da filosofia e das embarcações do pensamento humano, pode-se refletir sobre o que é ensinar filosofia. Antes de qualquer explicitação exclusiva vamos recorrer à metáfora da viagem, citada acima, e a outras metáforas. E perceber que também é possível ensinar filosofia de uma forma criativa, poética e transfiguradora, na direção da sensibilização do pensar e na busca da produção e apropriação de conceitos, em que entende-se o texto filosófico como uma trama metafórica. Assim, a partir da proposta de Filosofia da viagem, estabelecer uma relação metafórica em que entende-se a filosofia como uma “viagem”. Mas não se trata da banalização da “viagem” para o estado alucinatório provocado, por exemplo, pelo consumo de drogas. Pois, podemos reafirmar, que a filosofia procura um lugar oposto ao estado alucinatório da droga ou do “delírio”. E não é isso fazer filosofia? E o que é então fazer filosofia? Axiologicamente falando: é a filosofia como desintoxicação do espírito que importa como valor. Por isso, é válido a afirmação do martelo: “que droga de filosofia!”. E a questão é: em que condições a filosofia é uma droga?21 Em que condições o seu ensino é uma droga? E não é por acaso, que muitas das contendas da filosofia, transformam-se em um estado alucinatóCom “Que bagulho é isto – filosofia?”, Roberto Goto envereda pelo acidentado terreno em que se dá a busca e/ou conquista de conceituações que expliquem e justifiquem a presença da disciplina no ensino. Seguindo trilhas e questionando atalhos, passa em revista as relações (que muito nos interessou) entre, o conhecimento filosófico e o científico, a didática baseada na etimologia e, sobretudo as perquirições de cunho utilitarista, que atraem o ensino da disciplina para os lados da aprendizagem técnica. 21
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rio de divagações e delírios, mar de preconceitos que se arrastam no bojo biográfico de um e outro filósofo. Mesmo assim, de biografias e cartas não se destrói filosofias. Estamos falando de conceitos e ideias, com biografias e cartas, às vezes o que fazemos é ampliar a contenda de preconceitos. Qualquer transposição filosófica é arriscada quando apresentamos a relação entre filosofia e loucura, filosofia e educação, mas não podemos seguir apenas pelo caminho explícito e descrito como os escritos sobre a educação. É válido também o que está implícito e o que é paradoxal, dizendo, com a comparação acima, que não é fácil recorrer à razão ou a fé na Verdade, procurando a realidade como se o lugar oposto do estado alucinatório da droga realmente fosse à razão, a fé e a vigília da Verdade com “V” maiúsculo explicitamente falando. Qualquer estado incondicional de vigília ao texto e contexto explícito de qualquer filósofo pode ser um sintoma de vício e delírio. Polêmicas à parte, o ato de viajar na filosofia então implica: i) novos territórios para o pensamento: não dá para respirar dentro de uma única cultura; ii) pensar a metáfora da viagem a partir da filosofia significa observar a educação do filósofo através das viagens. “De que viajar é uma das principais atividades para a autoformação do filósofo” (FEITOSA, 2006, p.278); iii) trata-se da vivência de um deslocamento que opõe o viajante ao homem sedentário. Quem viaja vive a experiência de um interregno que rompe com as estruturas preestabelecidas e os quadrantes marcados da vida social gregária (OLIVEIRA, 2014); iv) sem chão próprio, o viajante está num não-lugar, numa verdadeira utopia. Livre das amarras, ele recusa as prisões dos compromissos sociais, das relações ensaiadas, das coerções fastidiosas. Prefere o tempo das “durações subjetivas” (ONFRAY, 2009, apud. OLIVEIRA, 2014). v) através de viagens, na juventude, tornar-se insensível para o nacional. (NIETZSCHE, 1874, apud. OLIVEIRA, 2014). 210
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vi) viajante aquele que pertence à via, que se põe a caminho, que está na estrada. (OLIVEIRA, 2014). E quem viaja (o viajante) constrói seu próprio caminho e deve cuidar e proteger a via que percorre (o método), o que não significa planejar todos os trajetos. Porque quando fala-se de uma filosofia da viagem e de um método, não se refere ao turismo de massa: que faz da viagem um passeio sob condições controladas e anteriormente planejadas. A viagem permanece sendo, assim como a vida, algo que acontece à revelia de nossos planos. Por isso o método, assim como todo fundamento, serve apenas como diretrizes, que se constituem a partir do efetivo, e como movimento, todo método é provisório e discutível. Viajar então é: i) relativizar as verdades e fazer circular ideias e ii) refletir mais profundamente sobre as supostas certezas da vida. Desse modo, filosofar é, então, deslocar o horizonte da própria compreensão. E não só Nietzsche que toca esse tema, mas Platão é tomado como viajante. Platão compara suas viagens a Sicília com as aventuras de Ulisses na Odisseia. Na Carta VII de Platão, não se trata apenas de um relato das excursões do filósofo à Sicília, é também o diário de uma expedição frustrada pelo território da política que revelou tanto o seu caráter filosófico, e sua inadaptação ao clima (FEITOSA, 2006, p.282). Que clima? Nesse caso se diz “ao clima traiçoeiro daqueles que controlam o governo, quanto à inadaptação dos tiranos à atmosfera filosófica que Platão quis produzir com sua presença” (FEITOSA, 2006. p.282). Segundo a filosofia da viagem, há dois modos de viajar que pode-se observar como modelos: o modo do viajante e o modo do andarilho, metaforicamente, o professor viajante e o professor andarilho. Conforme Oliveira (2014), como há dois modos de viajar, há dois tempos históricos para cada um deles, o moderno e o contemporâneo. No primeiro caso, a metáfora do caminho, do método é significativa (que em grego significa caminho). Com todas as suas contradições, a modernidade é representada a partir da excelência 211
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dos conquistadores e exploradores modernos. A modernidade é a medida e o controle da natureza a partir do método, da matemática, das ciências naturais e do cálculo preciso. Mas é o cenário contemporâneo representado pelo andarilho que provê que o homem contemporâneo viaje como um andarilho. De que a filosofia é peripatética como apontou Aristóteles. Porém, marcado pelo niilismo, no entanto, “ele viaja na forma de uma errância” (OLIVEIRA, 2014). Para o andarilho, conforme o autor, “o mundo se esgarça sob os pés em cego rodopio de um cisco cósmico sem direção” (OLIVEIRA, 2014). Em todo caso, podemos concordar de que o excesso empobrece – na era do efêmero ¬–, viajamos mais, questiona-se então: de que adianta viajar sem motivações e sentidos? Assim com Severino (2014), pergunta-se: e como ensinar filosofia se hoje atravessamos um tempo antropo-epistemológico em que se demanda ao conhecimento marca uma maior afirmação das diferenças, das identidades, das diversidades e afirmação da autonomia, das singularidades e não identidades gerais, unificadoras e totalizantes? Nessa direção, alguns problemas surgem para pensar o método no momento de ensinar filosofia, pois uma corrente filosófica lê a educação e oferece a sua verdade, o seu sentido, os seus fins, a sua interpretação, enfim, o que em cada caso seja mais apropriado. Já outra corrente reside em adotar uma postura eclética, o que torna necessário levar em conta todas as correntes possíveis. E, além dessas correntes, há aquela que organiza a apresentação da disciplina por meio de uma pergunta, ou seja, um problema que é apresentado na forma de seminários, como um tema gerador do pensamento. Como já foi citado no início da seção, a filosofia pensa a educação a partir de três esferas principais, conforme Severino (2014): Epistemológica, Axiológica e Ontologicamente. Por isso, o objetivo é pensar um professor que seja um filósofo da educação e não apenas um transmissor de filosofias, a partir de manuais e programas prontos de filosofia. Portanto, um dos nossos encontros de formação 212
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foi baseado na análise teórica e metodológica do programa de filosofia para crianças apresentado por Kohan (2014), sobre Lipman, e o sentido de um programa de filosofia para crianças. A partir de debates em torno da filosofia da educação, propomos viagens às vezes desconhecidas para muitos, necessariamente importantes quando o percurso exigia novo(s) caminho(s).
Sobre os nossos passeios ou mas porque e por onde andamos? As formações preocuparam-se sempre com as questões teóricas e práticas, o eixo condutor da discussão era um texto teórico para refletir no coletivo uma determinada postura metodológica e didática para o ensino da filosofia. Como apontou Rodrigo (2007), no âmbito específico da filosofia, trata-se de enfrentar, por um lado, a realidade instituída pela ampliação quantitativa do ensino fundamental/médio e, por outro, o desafio de trabalhar na perspectiva de uma efetiva democratização do acesso ao saber. As dificuldades suscitadas pelo ensino filosófico “de massa”, contudo, jamais devem fazer perder de vista a especificidade da disciplina, para trilhar o caminho fácil e demagógico de sua banalização. Conforme a autora, podemos assinalar à didática da filosofia, em termos gerais, uma dupla finalidade: 1) ser instrumento facilitador da aprendizagem; 2) promover a transição para a construção da capacidade de pensar por conta própria, de modo que o estudante consiga progressivamente dispensar mediações heterônimas, construindo ele próprio suas mediações com o pensador e com o texto filosófico (RODRIGO, 2007).
Foi nessa direção que inseriu-se nas formações os debates em torno do fazer filosofia na escola, com isso, muitas demandas surgiram no decorrer de dois anos de trabalho na rede, mesmo com 213
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um só encontro por mês, avançou-se bastante. Desse modo, há as experiências dos professores, tanto efetivos quanto contratados temporariamente, a partir do caderno pedagógico apresentado pela rede e o uso de livros de filosofia para o ensino, e aquelas a partir das didáticas e metodologias vivenciadas na prática da sala de aula, com isso, reflete-se sobre a necessidade de novas apropriações e de outras metodologias e didáticas para o ensino de filosofia. De modo geral, os encontros serviram para que os professores repensassem sua prática, em que cada um adequou o que discutiu nos encontros à sua prática em sala de aula. O que aconteceu muitas vezes foi a tentativa de transposição didática do que foi abordado, como forma, conteúdo, currículo, metodologia e ensino, no entanto, sabe-se que essa transposição da teoria para prática é difícil de ser feita e não é recomendada. Com isso, partimos para pensar o ensino da filosofia para crianças para além dos manuais e das novelas filosóficas, reconhecidas no caderno pedagógico da rede, disponível para os professores de filosofia. Sem dispensar a importância do programa, aprofundou-se a reflexão específica sobre filosofia para crianças a partir de abordagens teóricas, metodológicas e didáticas do programa de Lipman (2014), observando cada influência teórica do programa, como as contribuições do livro Filosofia para Crianças, de Walter Omar Kohan, de 2008. Portanto, este artigo é um resumo e um apoio para novas pesquisas e novas propostas, agora também reconhecidas pelos professores da área: O que se tem além de alguns métodos? Há algumas conclusões, como a que nenhuma metodologia deve servir como único parâmetro, tendo em vista que a proposta metodológica é prioritariamente a pluralidade de propostas. Assim, as metodologias foram utilizadas apenas como parâmetro do debate e dos encontros do grupo. Enfim, o resultado foi um registro virtual dos encontros, dos estudos sobre algumas das metodologias para o ensino da filosofia, muitas delas apresentadas nos livros utilizados e que estão na referência deste texto. O ambiente virtual foi estruturado a partir dos andamentos 214
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dos encontros, nesse ambiente encontram-se sugestões de aulas, apresentações elaboradas pelo consultor do grupo e pelos demais participantes, inclusive com materiais didáticos, e-books, elaborados pelos professores da rede e seus alunos. Com base nessas produções, na próxima seção será apresentada, de forma resumida, algumas alternativas metodológicas e didáticas vistas ao longo dos encontros.
Esclarecimentos, propostas e metodologias A proposta metodológica inicial foi Por uma “eterna introdução” ao pensar: fora dela, com ela e através da filosofia. Compreendendo que a filosofia pode ser interpretada como o próprio ato de filosofar. É preciso esclarecer também que o ensino da filosofia e o filosofar não são de forma alguma antagônicos, simplesmente porque é preciso recorrer à tradição filosófica para pensar o sentido próprio do que significa realmente filosofar, o sentido de filosofar e fazer filosofia. E é a partir da tradição que recorremos às principais disciplinas e campos de estudo e pesquisas da área para discutirmos as metodologias de ensino, entendendo as disciplinas reconhecidas nos currículos da formação acadêmica e universitária como fundamentais. Antes de qualquer crítica ao ensino na universidade e da erudição em geral, é necessário ressaltar o privilégio de uma educação filosófica universitária nos dias atuais. Quando trata-se da educação, faz-se necessário compreender os contextos educacionais e filosóficos para entender que preservar o patrimônio histórico do conhecimento filosófico grego/latino/romano/europeu, isto é, toda influência ocidental é uma estratégia contra a barbárie da colonização e da exploração dos povos e das culturas. Desse modo, quem sabe pode-se reordenar a crítica aos valores europeus sobre as influências ruins questionando-se: de qual tradição erudita ruim podemos falar no Brasil? De qual colonização do pensamento realmente precisamos nos livrar para pensar a cultura e o pensar autênticos? E também para pensar juntos então e melhor uma 215
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crítica ao contexto europeu que sustentamos que: Filosofia: isto é educação é o mesmo que libertação. Após esse movimento de reflexão e crítica ao intrínseco preconceito da filosofia e o continente europeu, seguem outras abordagens e discussões estabelecidas ao longo das formações. O método apresentado a seguir é de certa forma um plano do panorama geral que a maioria dos professores de filosofia passa ou passou na docência, e as áreas específicas da filosofia reconhecidas mundialmente. O objeto do ensino da filosofia embasa-se, didaticamente, na seguinte pergunta: o que é filosofia? Ampliando-se a questão para: o que é filosofia da educação? A partir dessas questões podemos apresentar o significado da filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea, sem esquecer obviamente do que se entende por filosofia e história antiga, medieval, moderna e contemporânea a partir de diferenciações entre a história da filosofia, pensamento humano e a história monumental (universal) contadas ao longo do tempo nos livros de história, sobre documentos e fatos de cada período. E contemplar com os alunos a história da humanidade, e o que temos preservado como relevante desta história no pensamento humano. Sem esquecer, filosoficamente falando, do que foi desprezado pela tradição em cada momento histórico. Não se trata de uma introdução ao filosofar, mas de um primeiro grande passo da tradição para chegar como meta ao terceiro item do método que corresponde ao filosofar. No primeiro momento, vamos olhar para o espelho e ver o objeto “filosofia”, os filósofos principais de cada período e refletir com o termo “filosofia” em questão sem perder de vista o que é peculiar para cada período. A metodologia então começaria com a perspectiva histórica do pensamento e a partir da disciplina História da Filosofia I, II, III e IV (os quatro períodos principais). Para cada contexto e tempo determinado, faz-se uma avaliação para seguir para uma segunda etapa e novas avaliações do percurso que segue em mais duas etapas. Na segunda etapa, apresentam-se as obras clássicas que valorizamos como proposta de ensino 216
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para o interior da filosofia, o caminho agora parte da perspectiva disciplinar: ontologia, epistemologia, estética, lógica, ética, filosofia da educação, antropologia filosófica, entre outras. A orientação neste momento é internalizar o modo com o qual se constitui a filosofia, partindo-se de uma obra específica e de um determinado filósofo invertendo-se o movimento geral, histórico e exterior da filosofia proposto no início. O objetivo, portanto, nesta etapa, é apropriar-se de uma obra específica, seu estilo e suas abordagens: estéticas, epistemológicas, ontológicas, éticas e políticas, reconhecendo no todo da obra a relação do que é epistemológico, ontológico, ético e político. Sem se deter muito em um conteúdo específico, mas reconhecer cada área disciplinar da filosofia e, para cada filósofo, sua importância. Por exemplo, é impossível pensar no filósofo Hobbes sem pensar em política, na obra Leviatã, onde o filósofo tratou de esclarecer sua antropologia, sua visão do que é humano, isto é, e a importância desta visão do humano para suas considerações políticas. A partir dos textos clássicos da filosofia, compreendem-se as determinadas disciplinas da filosofia, algumas delas acima citadas, e percebe-se, o que é, por exemplo, a filosofia da educação a partir da República (2004) de Platão, suas considerações éticas, políticas e estéticas, e o modo como o discurso é elaborado. Observando o tipo de enunciado a partir do tema específico/disciplinar sem desprezar obviamente a totalidade ou a hierarquia de cada capítulo da obra. Enfim, identificar a dimensão ontológica, epistemológica, política da obra escolhida como exercício de leitura, escrita e interpretação é o objetivo desta segunda etapa formativa. O que se quer é habilitar o aluno para o debate posterior a partir de cada contexto específico e exclusivo das obras clássicas da filosofia, desenvolvendo sua capacidade de análise de cada campo de pesquisa, seus problemas específicos. Depois de alçado o voo em torno da filosofia, da sua história e depois de seguir para seu interior para dentro das obras e de suas principais disciplinas, uma terceira etapa aparece como preponde217
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rante e caminho para a formação do filosofar. Como terceiro movimento, agora sim, apresentar a filosofia a partir de citações, temas e problemas, e levantar questões de modo que toda a classificação histórica dos períodos e das disciplinas faça sentido: com o contexto atual do mundo, da comunidade e das opiniões do aluno. Nesse momento a intervenção do aluno e do professor é ponto crucial, a partir de determinado tema o que se quer é abrir a filosofia para o diálogo do grupo. Propõe, então, por meio da filosofia alcançar o que foi objetivado: o filosofar. A caminho de uma pedagogia hermenêutica, reconhecer o pensar filosófico, isto é, também o filosofar como fator constituinte da formação humana, o que também significa não descartar o acúmulo e a energia das forças próprias do pensamento filosófico ao longo da sua trajetória histórica, disciplinar e temática. Muitas foram as discussões do grupo em torno desta metodologia, aqui apresentado sucintamente, mas foi preciso avançar no debate, para perceber mais de perto a difícil relação do substantivo filosofia e o verbo filosofar. Foi necessário, cada vez mais, procurar respostas para as seguintes questões: como organizar as aulas e as avaliações da turma? Pensando o que é possível aprender com a filosofia, como conquistar com êxito a ação do filosofar? Mesmo que a abrangência seja propositadamente tradicional e até conteudista, as construções didáticas necessárias para o êxito do trajeto devem fazer a diferença, por isso, a questão aqui considerada chave permanece: e como ensinar filosofia? E mais adiante teorizar e aprofundar. E é possível ensinar filosofia? Desse modo, foi necessário movimentar um parâmetro mínimo, um caminho a favor do ensino, apresentado acima, um exemplo de como organizar o currículo e o material para as aulas de filosofia, pensando as avaliações a partir de cada etapa, então foi possível contemplar uma formação na direção do filosofar. De qualquer forma, foi preciso avançar nas questões sobre os fundamentos da educação e da filosofia em geral. Além disso, foi preciso pensar na filosofia como uma filoso218
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fia da educação e do ensino, o que significou na prática pensar no nexo ou não e na importância de uma introdução à filosofia. Como fez Heidegger, por exemplo, no livro Introdução a filosofia (2009). Avançou-se nessa direção assim como fez esse autor, sem perder de vista algumas das questões que servem sempre como guia dos encontros: filosofia é filosofar? Afinal, a filosofia é uma ciência? Existe uma diferença entre ensino de filosofia e o ato de filosofar? Qual é a atividade do filósofo? Como é possível uma formação do pensar por si mesmo? Qual é o sentido de uma formação filosófica, de uma filosofia da educação? Ser humano já significa filosofar? Essas questões serviram de reflexão para muitas das investidas teóricas de Heidegger, bem como de reflexão para o grupo. “Ser homem já significa filosofar”, é o que Heidegger (2009, p.2) afirma no momento em que analisa o sentido de uma introdução à filosofia. Operar a problemática de ensinar filosofia a partir da importância ou não de uma introdução à filosofia é a estratégia percorrida pelo próprio filósofo, caminho escolhido também pelo grupo de professores em formação. Uma importante questão para o autor quando o assunto é o ensino da filosofia é pensar sobre qual é a tarefa de uma introdução à filosofia. O pressuposto inicial é que quando destacamos a importância de uma introdução estamos sendo introduzidos “para dentro da filosofia” (2009, p.4). Heidegger questiona sobre “obter uma visão panorâmica de todos os filósofos e de toda história da filosofia” (2009, p.4). É o que fazemos no ensino em geral quando pensamos em ensinar filosofia a partir da história da filosofia. Com algumas nuances a respeito do âmbito historiográfico, o mais relevante é perceber o aspecto sistemático característico das investigações filosóficas. Segundo Heidegger (2009), esses dois aspectos precisam se completar da maneira mais harmônica possível: âmbito historiográfico e o aspecto sistemático, como buscou-se fazer acima. Mas o âmbito, na verdade, é muito multifacetado. Heidegger (2009) chega a afirmar que o homem, em múltiplos níveis e graus 219
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de lucidez, pode encontrar-se de diversas maneiras na filosofia. “De modo correspondente, a filosofia como tal pode permanecer velada ou manifestar-se no mito, na religião, na poesia, nas ciências, sem que seja reconhecida como filosofia” (HEIDEGGER, 2009. p. 4). No entanto, a imponência da questão é compreender por si só, que não faz sentido uma condução para o interior do âmbito da filosofia a partir de um lugar situado fora dela. Por isso ele afirma: [...] a questão é que não estamos de forma alguma “fora” da filosofia; e isso não porque, por exemplo, talvez tenhamos uma certa bagagem de conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido em que já sempre filosofamos (HEIDEGGER, 2009. p. 3).
Se o ser humano já se encontra essencialmente na filosofia, talvez, pensar uma introdução à filosofia tradicionalmente falando, não faça mais sentido. Não faz sentido ensinar filosofia de uma forma digamos exclusivamente objetiva. Dessa perspectiva teórica, filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não façamos filosofia, isto é, também a partir do mito, da religião, da poesia e das ciências, sem que seja reconhecida como filosofia.
Filosofia e educação: discernimento e construção de conceitos Outra reflexão que é importante para o registro do trabalho foi compreender a filosofia enquanto discernimento, texto de Alexandre Filordi de Carvalho (2013), que aparece com título O ensino de filosofia e discernimento no mundo contemporâneo: questões atuais. Era preciso avançar nas questões acima descritas, isto é, sem desviar de questões contemporâneas, e distanciar-se da proposta clássica apresentada anteriormente que serviu apenas como primeira possibilidade de organização do ensino da filosofia. E deste artigo, 220
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desenvolver a ideia de que é preciso investir no ensino de Filosofia como ferramenta de produção de discernimento. A hipótese é a de que o discernimento seria a capacidade elementar que se aprende para poder agir com o pensamento, com as ações e as atitudes para consigo mesmo e para com o mundo. Para tanto, o texto elege três níveis de questões atuais que desafiam o discernimento pelo aprendizado da Filosofia: a experiência dos sujeitos com a sociedade capitalística e de consumo, a homogeneização das potencialidades subjetivas e, por fim, a colonização do sentimento de impotência na transformação da própria realidade social (CARVALHO, 2013, p.89).
Discernir e Discernir-se na sociedade capitalista e de consumo é agir no e com este mundo delineado historicamente. E que materiais didáticos temos para esse primeiro discernimento de produção de experiências subjetivas para o consumo? A constatação geral é que a capacidade de escolha própria tornou-se uma fechadura enferrujada para o sujeito contemporâneo. O tempo todo ele é teleguiado e condicionado pelos signos massificadores. Problematizou-se como enxergar, ouvir, sentir, provar, interagir, mostrar-se, falar, imaginar, mas também o que, quando, para quê e para quem fazer isso. Assim, o papel da instituição escolar na sociedade é discernir e discernir-se na homogeneização das potencialidades. E o pensamento de Deleuze e Guattari (1997) foram então convocados como fundo teórico e analítico dessa proposta. Em que discernir é também perceber que a filosofia pode apenas contribuir para um acúmulo de conhecimentos implicados em outra tarefa burocrática curricular, cumprindo apenas a ordem sistemática de conteúdos traduzidos na arte professoral igualmente burocrática ou que ela pode vir a ser uma ferramenta potencializadora de transformações nos sujeitos que entram em contato com ela, quer seja com respeito ao mundo em que vivem, consigo mesmo ou com os outros. Afetar a própria forma do ensino de filosofia já seria, talvez, uma 221
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maneira de indicar que alguma as transformações são possíveis. O que está em jogo é o fato de que a experiência com a filosofia sempre corre o risco de se burocratizar. E é importante a observação feita sobre a institucionalização da filosofia, pois, ela pode ser apenas outro tipo de apetrecho estatal capaz de manter o conhecimento pelo conhecimento como direito adquirido de quem passa pela escola, e não como ferramenta de discernimento entre o que ocorre quando se é educado e a destinação final do educando na própria sociedade. Teoricamente, discernir e discernir-se na impotência da ação transformadora de si e da realidade social não é uma mera aposta ao esclarecimento cognocentrista, ou ao velho sapere aude kantiano, cuja aposta na coragem de fazer uso do próprio entendimento bastaria ao projeto da Aufklärung. A aposta está no fazer, na busca pela ruptura de toda ordem do significante; está no poder optar agir fora da “mesma coisa”, da “repetição como morte”, da “serialidade”, dos “mesmos circuitos”, das “modelagens reguladoras”, conforme termos empregados por Guattari (1997), e desenvolvidos no presente artigo. E passar dessa concepção de filosofia como discernimento para a concepção filosófica proposta por Silvio Gallo foi, como se diz popularmente, “o pulo do gato”. Manteve-se como pano de fundo Deleuze e Guattari, e acrescentou-se Gallo para falar diretamente das aquisições importantes da filosofia da educação e de uma metodologia própria para o ensino da filosofia, que contribui significativamente para a formação prática de todo o grupo. Com Silvio Gallo (2012) ampliou-se as potencialidades e as demais perspectivas metodológicas apresentadas anteriormente para seguir com os devidos debates em torno da construção de conceitos a partir de sua metodologia: sensibilização, problematização, investigação e conceituação, apresentadas na obra Metodologia do ensino de filosofia de 2012. Após essas discussões, organizou-se um roteiro como experimento a partir dos exemplos do livro e do método apresentado, o que oportunizou a ampliação do método, com a relação do tema es222
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colhido e a alegoria da caverna de Platão como o cenário clássico da filosofia e do seu ensino. A primeira parte do roteiro então consistia na relação entre o tema escolhido para roteiro e a alegoria da caverna descrita no Livro VII da República de Platão. Para depois partir para as etapas propostas pelo autor: sensibilização, problematização, investigação e conceituação. Assim, por exemplo, se o tema é ética, primeiramente perguntar: em que momento do texto da Caverna de Platão podemos inferir como propriamente ético? No olhar do grupo, é exatamente o momento em que o filósofo volta-se para a caverna na direção das sombras e dos seus semelhantes, retornando ao interior da caverna. Na etapa da sensibilização proposta por essa metodologia, introduziu-se a temática da ética com o filme Minority report: a nova lei, junto à leitura do conto do escritor norte-americano Philip K. Dick, que serviu de base para a construção do roteiro do filme. Isso foi base para sensibilização e para as questões posteriores. Na problematização, o que se tem como experimento e foco são as questões relacionadas ao tema, como o exemplo do livro de Gallo (2012): os nossos atos são sempre predeterminados pelas circunstâncias? Como decidimos como agir? Podemos mudar nossas decisões e nossas ações? Como pautamos nosso comportamento? Já na investigação, é preciso investigar e reconhecer determinadas linhas teóricas. Por exemplo, a partir de três modelos de ética encontrados em diferentes momentos da história, um texto para uma ética orientada para a felicidade (Aristóteles 2007); uma ética orientada para o dever (Kant 1986); e uma ética orientada para a liberdade (Sartre 1987). A conceituação é um enfrentamento aos problemas do início do plano e do roteiro, das questões. Para isso, é importante manejar os conceitos como ferramentas, aplicando-os à problemática em questão. O aluno não precisa criar os conceitos, basta apropriar-se de conceitos estudados nos textos da investigação e da filosofia e relacioná-los. Respondendo a reconhecidos problemas e interpretações, intervindo com o seu próprio juízo. Dessa proposta, avançou-se também pelo método regressivo 223
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apresentado, isto é, a partir de um conceito ou conjunto de conceitos criados por um filósofo, regredir ao problema ou problemas que o levou(aram) a criá-lo. A proposta aqui é seguir do conceito para a problematização, novo incremento para a interpretação e estudo de textos filosóficos. E, para finalizar os encontros, tratou-se de um dos mais importantes debates em torno da filosofia da educação, dialogando com o grupo e com os seguintes autores: Jorge Larrosa, Nietzsche e Hannah Arendt. Uma descrição e um texto importante a ser escrito para um próximo encontro de pesquisas sobre: civilização, valores, leitura e escrita.
Conclusão É preciso seguir e ampliar ainda mais as reflexões em torno do ensino da filosofia. Importante como conclusão e como estratégia foi orientar os debates a partir da relação entre filosofia e educação. Este foi o diferencial e o contexto de todos os encontros. E por caminhos diferentes e diversos realmente modificar os meios pelos quais o ensino de filosofia pode potencializar os caminhos da educação. Perguntamos no início: Filosofia da educação ou Filosofia e Educação? Nem um nem outro. Para, enfim dizer, como fez Walter Omar Kohan em 2014: Filosofia: isto é educação. Neste sentido não é simplesmente à filosofia como fim: uma filosofia para educação, alvo, meta e destino. Nem como precedência: a filosofia originando-se na educação. Nem a filosofia como causa: uma filosofia pela educação. Pois a educação não pertence ou corresponde á uma filosofia. Filosofia: isto é educação não como utilidade concreta. Ás vezes uma pergunta, um questionamento, uma maneira diferente de pensar têm um efeito em nossa vida, têm um sentido para nossa vida que não percebemos imediatamente. Por isso não confundir sentido com utilidade. Por outro lado, a filosofia é a coisa mais concreta que existe, o ser humano já se encontra essencialmente na filosofia. E por isso, não há nenhuma razão para inibir a infância do campo 224
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filosófico. Ao contrário, é necessário, é importante, porque a filosofia vai ser mais um espaço para que tudo o que uma criança possa fazer com o seu pensamento, ela faça de maneira mais intensa, mais aberta, mais reflexiva. Dessa perspectiva teórica, filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não façamos filosofia, isto é, também a partir do mito, da religião, da poesia e das ciências, sem que seja reconhecida como filosofia.
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Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação
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TERCEIRA PARTE
Valores na tradição e prática religiosa
Colóquio Civilização – 2015
14. Valores Religiosos e Mundo do Trabalho: uma questão de educação Deise Miranda Felipe Gustavo Koch Buttelli
Introdução No período em que vivemos, em que a sociedade cada vez mais caminha para o individualismo, toda e qualquer tentativa de se quebrar este ciclo parece-nos válida, ainda mais se considerarmos que os maiores avanços sociais, a citar: liberdade de expressão, direito de ir e vir, de igualdade perante a lei, etc. só foram alcançados de forma coletiva. No mundo corporativo, o pensamento individualista aliado à falta de perspectiva contribuem para um cenário de desmotivação por parte do funcionário e de perda de rendimento por parte da empresa. Neste sentido, algumas empresas começam a se preocupar com a saúde mental/espiritual de seus funcionários, abrindo espaço para que possam se integrar socialmente utilizando a religião como ferramenta de socialização. O tema dos valores religiosos e o mundo do trabalho consiste em problematizar e verificar se a prática religiosa de orações de origem cristã em uma linha de produção industrial de uma empresa de telecomunicações pode ou não contribuir com um contexto de relações mais humanizado. O presente estudo procurará entender como se dá esta cerimônia dentro das empresas, utilizando como referência uma empresa que iremos nos referir como empresa “X” para preservar a empresa observada. Também procuraremos compreender este fenômeno, levando em conta: a origem do fenômeno, de quem partiu a ideia e de como as pessoas ingressam neste grupo. Buscaremos também obser229
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var se há algum tipo de discriminação para aqueles que pertencem a outras religiões diferentes da cristã, evidenciando desta forma, se o que ocorre nesta atividade pode ser considerado como um diálogo Inter-religioso ou ainda, se podemos identificar algum tipo de proselitismo ou intolerância religiosa. Procuraremos respostas para a seguinte questão: como em um ambiente fabril, “hostil” e “profano” por sua natureza, onde o rendimento do trabalho do ser humano não se diferencia daquele exigido das máquinas, relacionando tempo e número de unidades produzidas, pode haver alguma preocupação com a espiritualidade do empregado? Outra pergunta que se pode fazer é como conciliar pluralidade religiosa com rituais religiosos pertencentes a uma única vertente, tendo em vista que agora, mais do que nunca, buscam-se ambientes laicos, justamente com intuito de preservar o direito de cada indivíduo?
Conceito Contemporâneo de Religião Antes de adentramos propriamente na questão central, fazse necessário uma breve introdução ao tema religião, apresentando aqui, segundo Wilfred Cantwell Smith em seu livro O Sentido e o Fim da Religião, a visão de quem participa da vida religiosa (devoto ou insider) e daquele que a observa de fora (outsider). Assim como o conhecimento passa por evoluções ao longo dos anos, a vida religiosa e as tradições religiosas de uma forma geral também passam por mudanças, contudo representam uma parcela limitada do processo global. A humanidade tem verificado a existência da religião por longo tempo e em diversas culturas, ainda que de forma diversificada, até chegar ao formato moderno: sistemático, racional e identificável. O conceito contemporâneo de religião é recente, condicionado a alguns pressupostos da modernidade ocidental e, por isso mesmo, bastante questionável. A validade e uso dos conceitos “religião” e “as religiões” está sendo colocada em xeque. Um novo modelo 230
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conceitual se faz necessário de maneira a dirimir o mal-estar e as insatisfações provocadas pelo esquema conceitual vigente (SMITH, 2006). Há um desconforto enorme para aqueles que têm fé, no que diz respeito ao modo de experimentá-la a seu modo dentro de sua cultura e tradição. O transcendente – em suas diversas acepções não revela religiões, revela a si mesmo, ou seja, religiões são sistemas mundanos não transcendentes. Assim, para a pessoa de fé, o conceito de religião institucionalizada é insuficiente para abarcar o todo da experiência religiosa, pois nada substitui ou mesmo interfere na relação do ser humano no seu encontro com o sagrado, ainda que as religiões sejam modos de expressar esse encontro e de procurar celebrar sua memória. O sistema religioso não tem origem divina, pelo contrário, é idealizado por observadores “outsiders” que analisam o movimento de fora para dentro, não necessariamente tendo qualquer sentimento pelo transcendente (SMITH, 2006). Embora o observador possa saber tudo sobre um sistema religioso, é incapaz de compreender o cerne da questão, pois esta só é compreendida de dentro para fora, da relação íntima com o transcendente. A impessoalidade do outsider o impede de compreender a questão central da vida de qualquer comunidade religiosa: o significado da vida religiosa está em entender a experiência que a fé proporciona ao fiel. Independentemente do sistema de religião estudado, o observador conceituará religião sempre sobre aspectos passíveis de observação, ou seja, o transcendente, que não pode ser observado, mas sim sentido, é negligenciado pelo outsider. Aqueles que analisam do lado de fora e que desejam compreender o devoto de qualquer religião em sua essência precisam entender sua religiosidade ao invés de sua religião. As questões conceituais são de análise bastante complexa, ainda mais se considerarmos a pluralidade religiosa desenvolvida ao longo do tempo. As religiões específicas como budismo, cristianis231
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mo, islamismo, zoroastrismo, etc, se diferenciam entre si e este foi sem dúvida um dos processos mais significativos, não só religiosos, mas na história da humanidade como um todo. Este modelo sistemático e abstrato de observar e definir o fenômeno religioso começa a ruir na medida em que não mais representa fielmente a sociedade heterogênea e confusa dos tempos atuais. Diversas são as fontes que influenciam a sociedade contemporânea, sendo que a religião é apenas mais uma fonte de influência dentre várias.
Religiosidade dentro da empresa Retomando o tema central, parte-se da suposição de que o empregador, conhecedor da mecânica de sua empresa, entende que a prática religiosa pode trazer algum “diferencial competitivo” para a empresa, uma vez que cria um sentimento de união, acolhimento, compaixão e inter-relacionamento entre as pessoas, melhorando consequentemente o rendimento e a sinergia dos empregados. Por outro lado, como manter uma harmonia entre os trabalhadores com a crescente pluralidade religiosa em uma empresa com um grande número de empregados de diferentes religiões? Como a empresa deverá se portar mediante esta realidade do fenômeno da globalização? Como permitir que sejam realizadas atividades religiosas dentro da empresa sem gerar conflitos? As práticas religiosas realizadas em empresas costumam ter como principal objetivo o bem-estar social e a satisfação pessoal. Mesmo se tratando de uma atividade coletiva e muito bem organizada, os participantes não compreendem este espaço como tendo uma finalidade de reivindicação ou manifestação de origem ideológica ou política, ainda que isto possa ser resultado decorrente da experiência religiosa. Neste contexto observado, não se deve levantar nenhuma bandeira por melhores condições de trabalho, por melhores salários ou por melhores benefícios. Muito embora seja identificado que as pessoas que participam destas atividades estejam em 232
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um mesmo grupo, com características muito parecidas, ainda assim esta atividade está totalmente desassociada de atividades que podemos encontrar nos movimentos sociais ou sindicais, que possuem objetivos bem centralizados na busca por mudanças e melhorias em contextos relacionados a ideais políticos, econômicos, culturais, sociais e religiosos ou ainda com algum tipo de mobilização de defesa, conquistas e ampliação de direito sociais. Essas práticas religiosas, no contexto referido e observado, têm como principal objetivo que as pessoas possam ter um momento para fazer sua oração, seja para si, para um amigo, familiar ou simplesmente para que possam se reunir para fazer um agradecimento, dividir suas angústias, seus medos e orar desejando um bom dia. Desde quando iniciaram-se as atividades na empresa “X”, há 37 anos, não se tinha ideia de que continuariam a praticar por tanto tempo. No início a empresa era bem menor e com um número de funcionários bem inferior ao que tem hoje. Todos eram católicos e por essa razão não havia a preocupação de que alguém pudesse intervir contra a realização desta atividade. Agora, porém, poder-se-ia imaginar que a empresa (diretoria) poderia ir contra esta atividade, alegando algum tido de desconforto frente à diversidade religiosa em um contingente bem maior de colaboradores. O que se viu, no entanto, foi uma integração cada vez maior entre colegas de diferentes crenças e um apoio efetivo da diretoria. Os funcionários agora compartilham experiências e dialogam abertamente sobre assuntos relacionados às suas crenças sem pudor ou receio. Assim, mesmo tendo como precursores funcionários católicos, isso não limitou aos outros colegas, que não eram católicos, de participar das atividades religiosas. O espaço é aberto a todos, inclusive aos que não pertencem a religiões de matriz cristã. A intensão desta atividade na empresa é fazer com que esta prática seja algo bom para todos, sem preconceito. Segundo Faustino Teixeira: “O diálogo autêntico traduz um encontro de interlocutores pontuado pela dinâmica da alteridade, do intercâmbio e da reciprocidade” (TEIXEIRA, 2008, p.124). É 233
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justamente isto que podemos observar, todos os participantes se respeitam e se ajudam independentemente de sua pertença, tornando-se mais unidos. Ainda segundo Faustino Teixeira, “diálogo-inter-religioso implica partilhar de vida, experiência e conhecimento. Ele acontece entre pessoas que estão enraizadas em (e compromissadas com) sua fé específica, mas igualmente disponíveis ao aprendizado da diferença” (TEIXEIRA 2008, p.141). É isso que acontece nesta empresa: algumas pessoas que já possuíam sua fé fora da empresa, que já praticavam suas atividades em suas instituições religiosas e na sua comunidade, sentiram a necessidade de realizar atividades também dentro da empresa. Nestas atividades, todas as pessoas são iguais independentemente da posição que ocupam na empresa, seja presidente, montadora, gerente, serviços gerais, supervisora, líder, ou administrativo, todos participam das mesmas atividades. Neste momento, todos são iguais independentemente de sua condição financeira; todos se dão as mãos e oram com os mesmos objetivos: de fazer o bem e desejar de que todos tenham um bom dia. Outro ponto fundamental que vale a pena ser abordado está relacionado com o estudo do fenômeno religioso. Acredita-se que há uma conotação filosófica (metafísica, antropológica e ética), que justifica este fenômeno. Empresas, no modelo de Capitalismo selvagem, se preocupam única e exclusivamente com o lucro, sendo seus empregados apenas meios de produção, como uma ferramenta, para se obter rentabilidade. Felizmente este tipo de empresa começa a passar por um processo de reestruturação com uma nova roupagem, adequando-se a esta realidade com novas metodologias, preocupando-se também com o bem-estar do trabalhador. A empresa moderna tenta criar um ambiente agradável a seu funcionário, dando apoio tanto material (plano de saúde, assistência Odontológica, auxílio creche para seus filhos e outros) quanto emocional/espiritual (liberdade religiosa e incentivo a orações, bem como desenvolvimento pessoal através de cursos de aperfeiçoamento, além de um ambiente amistoso e de cooperação entre os empre234
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gados, etc.). Neste sentido, a prática religiosa, associada ao trabalho, pode ser mais um benefício oferecido pelo empregador e que pode ter retorno, na medida em que este passa a ter trabalhadores não somente saudáveis fisicamente, mas espiritualmente e socialmente também. As práticas religiosas realizadas no local de trabalho podem trazer para a empresa um local mais humanizado, onde as pessoas tenham um comportamento ético e se preocupem mais umas com as outras. Certamente, trabalhadores mais comprometidos tendem a produzir mais e com maior qualidade, pois quando se está satisfeito, motivado e se sentido parte da empresa como uma família, as pessoas realmente se dedicam mais e dão mais de si para alcançar os objetivos propostos, assim como define Hawkins: Quando você aplicar os princípios espirituais no trabalho e encarar o escritório como sua “igreja” ou “templo”, ficará mais calmo, mais orientado para o interior de seu ser, e menos afetado pelas circunstâncias. Pensará de forma mais clara, tomará decisões mais sábias e atrairá pessoas positivas. Estará aberto a experiências que alimentem seu crescimento espiritual. Saberá que há um Poder para o bem em sua vida e que, com ele, pode realizar qualquer coisa (HAWKINS, 1998, p. 177).
Atualmente, onde cada vez mais se pensa em si, e pouco se importa com o outro, mesmo o outro sendo a pessoa com quem você passa a maior parte de seu dia, é muito importante que as empresas comecem a atentar para esta tendência do individualismo no ambiente de trabalho. Pensando em prevenir esta tendência do individualismo no ambiente de trabalho, muitas empresas estão utilizando de práticas de espiritualidade em seu ambiente de trabalho. Segundo (BORBA, 2011, p.5) “Trata-se do modelo de integralidade proporcionado pela espiritualidade em sentido amplo, que integra o ser huma235
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no e determina o seu comportamento com alma, mente e coração no trabalho” desta forma o trabalhador se sente mais integrado ao ambiente de trabalho. Segundo Milliman (2003) existem três princípios que são básicos para a construção da espiritualidade dentro das empresas, são eles: sentido de comunidade, alinhamento dos valores dos indivíduos com os valores das organizações e trabalho com significado. As pessoas passam a maior parte de suas vidas dentro do local de trabalho, então é importante que este ambiente seja agradável, harmonioso, onde as pessoas possam socializar e que tenham uma boa relação umas com as outras. Caso contrário, o ambiente se torna doentio e competitivo demais. É importante que junto ao resultado de se adquirir bens materiais, também se pense em uma política estratégica que resulte em um melhor desenvolvimento pessoal e que realmente se preocupe com o bem-estar do trabalhador, pois a empresa também se beneficiará com esse desenvolvimento na vida de seu funcionário. É importante para o trabalhador saber que a empresa se importa com o bem-estar dele, e uma forma de a empresa demonstrar isso, é permitindo que seus colaboradores tenham a oportunidade de praticar algo que os faça bem, seja realizando uma oração antes de iniciar as atividades de trabalho, seja um relaxamento, ou até mesmo um momento de reflexão, enfim algo que o faça se sentir bem e que o prepare para suportar as pressões do mundo moderno: instável, volátil, imediatista, individual e estressante.
Conclusão Neste texto procuramos fazer a articulação de três grandezas temáticas. O tema dos valores no desenvolvimento da ação prática e teórica; uma apresentação da crítica do processo de reificação do conceito de religião elaborada por Wilfred Cantwell Smith, segundo a qual a religião não pode ser resumida à perspectiva do outsider observador, mas à profundidade da experiência do insider; e a te236
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mática da espiritualidade nas empresas. Ainda que este texto não tenha explorado profundamente os resultados desta iniciativa mais ampla, foi possível constatar que a vivência da fé, independente do formato religioso que se queira estipular desde uma descrição de outsider, contribui para a criação de um ambiente de trabalho mais saudável para o trabalhador e mais proveitoso para o empregador. A vivência da espiritualidade no cotidiano da vida parece ser, portanto, um valor que pode construir para a vida em sociedade no mundo contemporâneo. A crítica que se poderia fazer, que talvez seja fundamental para a continuidade deste debate, é de que modo que essa vivência da espiritualidade poderia contribuir também para a transformação das relações de trabalho e da ordem da cultura capitalista e individualista, para que a vivência da espiritualidade não seja reduzida ao mero “ópio”, como referia Karl Marx, tornando “mais suportável” a dureza da exploração do trabalho, mas que oportunize um encontro com o transcendente que impulsione também para uma transformação da sociedade como um todo. Desta maneira, o problema poderia ser resolvido profilaticamente na origem e não remediado posteriormente.
Referências BORBA, V.R. (2011). Espiritualidade na Gestão Empresarial: como ser feliz no trabalho. Rio de Janeiro: Qualitymark. HAWKINS, Kathleen. Espiritualidade no Trabalho e nos Negócios: como seguir o caminho espiritual das 8 às 18. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras Editora, 1998. MILLIMAN, J., Ferguson, J. (2008), “In search of the “Spiritual”. In: Spiritual Leadership: A Case Study of Entrepreneur Steve Bigari. Business Renaissance Quarterly, Vol.3, Nº1. 237
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SMITH, Wilfred Cantwell. O sentido e o fim da religião.[tradução de] Geraldo Korndorfer. São Leopoldo: Sinodal, 2006. TEIXEIRA, Faustino; ZWINGLIO, M. Dias. Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte do possível. Aparecida: Ed. Santuário, 2008.
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15. Os valores adquiridos na tradição cumulativa no tratamento de dependentes químicos Evantuir Juttel Pereira
Introdução O presente capítulo tem a finalidade de analisar os valores adquiridos na tradição cumulativa no tratamento de dependentes químicos. E ainda, o foco geral de estudo será os valores adquiridos pelos indivíduos na Associação de Assistência Social e Educacional O Bom Samaritano. Para a realização desta tarefa organizou-se a pesquisa em três sub-capítulos distintos. Primeiramente, a função da religião no tratamento de dependentes químicos: estudo de caso na AASEOBS, onde se discorre sobre alguns aspectos históricos da religião Cristã Assembleia de Deus e partes do estudo de caso na instituição Associação de Assistência Social e Educacional O Bom Samaritano; no segundo sub-capítulo se apresentará a definição sobre tradição cumulativa; já no último sub-capítulo se analisará sobre os valores e como os valores adquiridos podem contribuir para formação da personalidade do indivíduo.
A função social da religião no tratamento de dependentes químicos: estudo de caso na ASSEOBS Para melhor compreendermos sobre o assunto ventilado no capítulo, se faz necessário trazer a origem do cristianismo e alguns aspectos históricos da igreja Assembleia de Deus, e também, da As239
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sociação de Assistência Social e Educacional O Bom Samaritano, em São José, SC. A origem e a história da religião Cristã teve seu início no judaísmo e era descrita pelos judeus como sendo uma seita judaica, o apóstolo Paulo de Tarso entrava nas sinagogas judaicas e pregava um Cristo ressurreto. (WILGES, p. 67, 2010). Diante disso, nota-se que os cristãos na época da fundação da igreja, ou seja, no tempo dos apóstolos, sofriam perseguições, entretanto, o evangelho era pregado pelos apóstolos e principalmente por Paulo de Tarso, que se converteu do judaísmo para o cristianismo, após a morte de Jesus Cristo. Já a história da igreja cristã Assembleia de Deus, no Brasil, tem origem no fogo do reavivamento que varreu o mundo em meados de 1900, início do Séc. XX, principalmente na América do Norte. Os integrantes desse reavivamento ficaram cheios do Espírito Santo igualmente os discípulos e os seguidores de Jesus no período da festa Judaica do Pentecostes, no princípio da Igreja Primitiva, segundo está escrito em Atos dos Apóstolos cap. 2. De tal modo, eles foram chamados de “pentecostais”. Justamente como os crentes que se encontram no Cenáculo, os precursores do reavivamento do Século XX falaram em outras línguas que não as suas tradicionais quando receberam o batismo no Espírito Santo e diversas manifestações sobrenaturais como interpretação de línguas, profecias, conversões e curas também ocorreram (CGADB.COM.BR, p. 1-2, 2015). O local onde ocorreu a análise da pesquisa científica é na Associação de Assistência Social e Educacional o Bom Samaritano, em São José, SC, uma Casa de Apoio Social, mais conhecida como Desafio Jovem, baseada na fé e no amor de Cristo. A instituição AASEOBS, foi fundada em 1997, a chácara masculina está localizada no bairro Alto Forquilhas, em São José, SC. A instituição atende atualmente 82 homens, dependentes químicos, mendigos, andarilhos e outros que andavam a margem da sociedade, e ainda, a instituição AASEOBS possui dormitório, cozinha, refeitório, padaria, escola e 240
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escritório (OBOMSAMARITANO.COM.BR, p. 1-2, 2015). Por seguinte, se percebe a necessidade de conceituar à dependência química, legalmente, o juízo crítico dos diagnósticos das doenças, assim como Lesões e Causas de Óbitos são realizadas com embasamento na décima revisão da Classificação Internacional das Doenças (CID-10), constituída pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Desta feita, a doença mental está sinalizada pelo CID F, que junta os transtornos mentais e comportamentais, isto é, as doenças psiquiátricas, entre às quais a dependência química (STAHELIN, p. 11, 2002). Deste modo, se torna indispensável informar que a dependência química está classificada entre os transtornos psiquiátricos, sendo considerada uma doença crônica que pode ser tratada e controlada simultaneamente como doença e como problema social (OMS, p. 58-61, 2001). Nesta seara, se faz necessário entender o conceito de religião, Passos e Usarski (2013, p. 144) descrevem que “uma religião é um sistema de práticas, experiências, pensamentos, sentimentos e convicções que se voltam, ao menos em intenção fundamental”. No sentido etimológico, “Cícero afirma que a palavra “religião” vem de re-legere (reler), considerar atentamente o que pertence ao culto divino, ler de novo, ou então reunir. Temos aqui o aspecto comunidade” (WILGES, p. 15, 2010).A definição de Religião pela teologia Cristã, Agostinho acrescenta um novo termo para a questão etimologia da palavra: Santo Agostinho também se ocupou da questão etimológica do termo. Inicialmente não se opondo totalmente a Cícero e propondo uma via intermediária: de relegere a religere, reeleger, no sentido de um retorno a Deus. Seria a passagem da negligência para com Deus a uma relação reconstruída com Ele agora escolhido, recolocado no centro da atenção e do amor do homem (AZEVEDO, p. 94, 2010). 241
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E ainda, na visão de “Agostinho re-eligere (re-eleger), tornar a escolher Deus, perdido pelo pecado. A história da palavra religião parece corroborar o significado da posição de Cícero” (WILGES, p, 15, 2010). Deste modo, cabe ressaltar que “a religião é uma das formas mais significativas de consciência utópica, uma das expressões mais ricas do princípio esperança” (TEIXEIRA, p. 31, 2011). Além do mais, “é a religião que, diante da fatalidade e da frustração da vida social, se torna horizonte para o qual o corpo irá caminhar e que, simbolicamente, articulará o universo pelo qual ele irá suspirar” (REBLIN, p. 99, 2009). Sendo assim, vale dizer que “a religião tem como sua verdadeira função, não é de nos fazer pensar, de acrescentar às representações que devemos à ciência representações de outra origem e de outro caráter, mas de fazer-nos agir, de ajudar-nos a viver” (TEIXEIRA, p. 58, 2011). É importante dizer o quanto é fundamental no tratamento de dependência química, o relacionamento do usuário de substâncias psicoativas com o ser superior, que poderá ser feito por meio da oração para obter sucesso no tratamento: A importância dada à oração, que é a conversa com Deus, como o método para controlar a fissura pela droga, que atua como forte ansiolítico. Para os evangélicos e os católicos, a confissão e o perdão, respectivamente, pela conversão (fé) ou pelas penitências, exercem forte apelo à reestruturação da vida e ao aumento da autoestima (SANCHES e NAPPO, p. 78, 2007).
É importante ressaltar que para Mauss “a oração é um dos módulos distintos de qualquer evento religioso: a oração é um rito religioso, oral, que se refere diretamente a coisas sagradas” (FILORAMO e PRANDI, p. 104, 1999). Diante disso, pode-se dizer que a oração é um instrumento de contato do com o transcendente, e ain242
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da, que através da oração o indivíduo pode solicitar ajuda ao sagrado para se livrar do uso de substâncias psicoativas. Para compreender sobre religião e religiosidade, se faz necessário perceber o sentido da busca do homem pelo sagrado e o sentido da vida: A religiosidade pode ser entendida, como uma tendência do homem em se aproximar do sagrado. O sentimento religioso se manifesta unicamente no ser humano, isto equivale a dizer que a religiosidade é uma expressão humana. Porém, não é possível afirmar que todos os homens sejam profundamente religiosos. A prática de uma religião depende da relação que a pessoa tem com alguma tradição religiosa. Para algumas pessoas, a religião é uma maneira de significar a vida, mas existem diversas formas de espiritualidade, ou experiências não centradas na existência e ação da divindade. Entretanto, estas formas são também procuradas pelo homem nessa busca por uma significação de vida (LUZ, p. 35, 2007).
Desta feita, é fundamental dizer que de uma experiência em que o homem se sente em relação com poderes a ele superiores, mesmo de natureza psicológica, a religião em suas manifestações objetivas aparece como atitudes, ritos, credos e instituições; já nas manifestações subjetivas consistem de impulsos, desejos, objetivos, sentimentos, emoções e ideais ligadas às ações e às instituições religiosas. (FILORAMO e PRANDI, p. 164, 1999). Neste sentido, cabe dizer que “toda experiência religiosa está intimamente ligada à vida ativa, como um conjunto de práticas sociais dentro de um grupo definido. Por sua vez, essas práticas são espelho da doutrina contida nas escrituras Sagradas ou no ciclo de mitos”. (CROATTO, p. 409, 2010). Em suma, nota-se que na AASEOBS está realizando serviços sociais ligados à área da saúde humana, com o objetivo de restau243
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ração e ressocialização do ser humano a sociedade. Após apresentar as características principais referentes à função social da religião no tratamento de dependência química, realizado na AASEOBS; o próximo capítulo irá tratar da reflexão sobre os aspectos relevantes da tradição cumulativa, enquanto conceito sugerido por Wilfred Cantwell Smith para substituir a noção ocidental de religião.
A tradição cumulativa Após demonstrar as características principais referentes à função social da religião no tratamento de dependência química, realizado na AASEOBS; passa-se a tratar da reflexão sobre os aspectos relevantes da tradição cumulativa, enquanto conceito sugerido por Wilfred Cantwell Smith para substituir a noção ocidental de religião. Por seguinte, se percebe a necessidade de definição de tradição cumulativa enquanto conceito sugerido por Smith para substituir a noção ocidental de religião: O conjunto de dados objetivos públicos que constituem o depósito histórico, por assim dizer, da vida religiosa passada da comunidade em questão: templos, escrituras, sistemas teológicos, tipos de dança, instituições legais e outras instituições sociais, convenções, códigos morais, mitos, etc., qualquer coisa que pode e é transmitida de pessoa para pessoa, de geração para geração e que um historiador pode observar (SMITH, p. 145, 2006).
Deste modo, cabe dizer que “os materiais de uma tradição cumulativa persistem porque servem para cada geração como fundamento de uma fé transcendente”. (SMITH, p. 148, 2006). E ainda, se observa que “elementos de uma tradição cumulativa podem ser abandonados assim como acrescentados; costumes desaparecem, observâncias deixam de ser seguidas, templos transformam-se em ruínas” (SMITH, p. 148, 2006). 244
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Neste sentido, é notável que na tradição cumulativa os ensinamentos e aprendizagem, passam de pessoa para pessoa ao longo dos tempos, ultrapassando gerações. Porém, os elementos da tradição cumulativa podem ser modificados ou até mesmo acrescentados novos rudimentos no decorrer dos tempos vindouros. Desta feita, se nota que “a tradição cumulativa é integralmente histórica, mas a história não é um sistema fechado, pois como agente dentro dela se situa o ser humano e seu espírito, em alguma medida, está aberto para o transcendente” (SMITH, p. 149, 2006). Vale lembrar que “a tradição cumulativa, portanto, do que se chamou de religião e de cada religião particular é dinâmica, diversa e observável”. (SMITH, p. 154, 2006). Em suma, pode-se dizer que a tradição cumulativa está abertamente para novas ideias, ocasionando mudanças e transformações em seu interior, e ainda, a tradição cumulativa faz parte da história da humanidade e tem como seu agente, o ser humano e, também que está em pleno movimento e em evidência. Após apresentar as características principais referentes aos aspectos salientes da tradição cumulativa, enquanto definição sugerida por Wilfred Cantwell Smith para transformar a noção ocidental de religião; o último capítulo irá abordar alguns valores resultantes da experiência religiosa, ou no âmbito da tradição cumulativa, para usar a expressão de Smith, como o aspecto da confiança pessoal, a autoconfiança e a aceitação do grupo.
Valores Após demonstrar os aspectos relevantes da tradição cumulativa, enquanto conceito sugerido por Wilfred Cantwell Smith para substituir a noção ocidental de religião; passa-se a tratar dos valores resultantes da experiência religiosa, ou no âmbito da tradição cumulativa, para usar a expressão de Smith, como o aspecto da confiança pessoal, a autoconfiança e a aceitação do grupo. Ao se referir aos aspectos da confiança pessoal, em todos os 245
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momentos da vida, confiar em si tem que estar presente. Nota-se que o serviço do cotidiano, por mais insignificante que seja, tem que existir a sua presença imprescindível. Sendo que passa despercebida nesses requerimentos habituais devido às suas familiaridades, logo, não necessitando ser atualizado na lembrança a todo o momento, sendo automaticamente implícita (TAVARES, p. 2, 2010). Vale salientar em qualquer ação que o indivíduo impõe um valor expressivo, idealizando um desafio para alcançar o auge do sucesso, a primeira emoção que nasce é o de medo. Assim, alguma coisa não muito bem definida desperta esse temor. A impressão de derrota surge de maneira viva. A pretensão de abandonar, aos poucos, vai tornando-se forte. A vontade de não desejar continuar começa a bater no pensamento de modo insistente (TAVARES, p. 2, 2010). Desta forma, pode-se dizer que é preciso ter confiança em si mesmo. Pois, a confiança não encontrar-se presente na consciência. Sendo um fato normal, nenhuma pessoa dá atenção a isso. O ato é instintivo. Nenhuma pessoa fica refletindo em cada movimento que vai concretizar. Já na autoconfiança, se traz à baila à segurança no período relativo à sua capacidade, poder e a própria dignidade, independente da circunstância em que você se está. Sendo que se alguma pessoa que é autoconfiante apresenta um intenso senso de convicção e certeza em si mesmo. O indivíduo exibe tranquilidade, serenidade e é autoconsciente (LUCAS, p. 2, 2011). Diante disso, cabe salientar que a autoconfiança se faz necessário estar presente na vida cotidiana do indivíduo, caso contrário, estará muito próximo do insucesso e do fracasso, perdendo a oportunidade de alcançar objetivos e tornando-se uma pessoa triste e frustrada. Ao fazer referência a coesão de grupo, em que ao ser relacionado a serviço, refere-se ao nível de empenho de cada pessoa com o grupo para obter as metas e alvos comuns. Logo, a coesão social evidencia a relação interpessoal entre os componentes do grupo. (GOMES, p. 2, 2011). 246
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Por seguinte, se percebe que o modelo de Carron é mais usado em ambientes em grupos distintos e, que o formato proporciona quatro (04) fatores importantes que comprometem o desenvolver da coesão do grupo. Tais como: Fatores Ambientais influenciam diretamente os fatores pessoais, de liderança e de equipe. Portanto é necessário fazer uma avaliação das responsabilidades contratuais (bolsas de estudos, expectativas familiares entre outros) e da orientação organizacional (tamanho do grupo; uniformes diferentes; oportunidade de interação e comunicação com indivíduos mais próximos), pois podem favorecer o desenvolvimento do grupo e o nível de coesão aumentar. Fatores Pessoais estão diretamente ligados às características individuais dos componentes do grupo. Por conseguinte as variações entre as características são muitas. Em comparação, os fatores ambientais apresentam se mais tendenciosos a uma constante, aos quais se aplicam aos participantes de uma Liga, por exemplo. Fatores de liderança, intimamente ligados ao estilo e comportamento dos líderes do grupo. A comunicação do líder com seus membros devem apresentar clareza e consistência quanto aos objetivos da equipe, tarefas do grupo e responsabilidades dos membros. Fatores de Equipe é o fator influenciado por todos os outros fatores exemplificado acima. Em contra partida não influencia nenhum outro fator (GOMES, p. 1-2, 2011, grifo nosso).
Desta feita, observa-se que o grau de coesão, adquirido pelo grupo no decorrer de seus períodos juntos, influencia os saldos adquiridos pelo grupo e individualmente. Ao mencionar a aceitação de grupo, a maior resistência para que os dependentes químicos e alcoólicos sejam tratados da dependência química está na capacidade de aceitação do próprio dependente. Reconhecer-se dependente e aceitar ser ajudado. A capacidade de aceitação do próprio 247
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dependente em reconhecer-se dependente e aceitar ser ajudado. E ainda, a aceitação do grupo faz-se necessário para bom andamento do tratamento e a recuperação dos dependentes químicos do uso de substâncias psicoativas. Consequentemente, diante do uso e consumo de substâncias psicoativas, ocorre uma mudança repentina em suas atitudes do indivíduo, se tornando dependente químico: Os dependentes mudam totalmente sua rotina, passam a se irritar sem motivo aparente, explodem a qualquer momento, vivem inquietos e impacientes; muitos se tornam agressivos e violentos, sentindo angústia e depressão. O rendimento escolar ou no trabalho sofre uma queda, passando a ter dificuldades de raciocinar e em se concentrar, desistindo facilmente dessas atividades. Os drogados têm insônia, isolam-se no quarto, evitando contato com amigos e familiares. Passam, também, a dormir de dia e a ficarem acordados à noite, vendo televisão ou utilizando o computador horas a fio. Podem aparecer, ainda, objetos estranhos em seus pertences, como cachimbos, comprimidos estranhos ou cigarros diferentes. Nesse contexto, a família nota desaparecimentos de valores e objetos, ou, então, o indivíduo passa a exigir cada vez mais dinheiro sem ter como explicar a sua destinação. Más companhias também podem começar a fazer parte da vida do dependente (PREMIUM, p. 1-2, 2013).
Deste modo, pode-se afirmar que a dependência química de substâncias psicoativas é doença séria, complexa e difícil de ser combatida, por sua vez, a recuperação de dependentes químicos é um tema complicado e merece cuidado e estudo. Vale salientar que caso o indivíduo volte a sentir desejo latente, com uma vontade de consumir, não ficando sem resistir às substâncias psicoativas. É bem provavelmente que ocorram as recaídas, 248
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pois é muito corriqueiro nos pacientes em tratamento de dependência química.
Conclusão É importante dizer que a religião sempre esteve na pauta de discussão referente ao controle de massas juntamente com o estado, na evangelização dos povos e na prática da caridade, com os mais pobres e necessitados. Porém, nos últimos tempos a religião tem apresentado uma nova função, a de fazer-nos agir, de ajudar-nos a viver melhor, por sua vez, realizando trabalhos comunitários e terapêuticos, ou seja, de tratar os indivíduos com dependência química pelo uso de substâncias psicoativas, no âmbito da religião e da espiritualidade. Por seguinte, cabe dizer que estudos realizados mostram que a religião perante a fatalidade e a frustração da vida social, se apresenta como meio de escape pelo qual o corpo irá caminhar e que, teoricamente, declarará o ambiente pelo qual o indivíduo irá suspirar. Deste modo, a religião tem como sua primorosa função, não é de nos fazer refletir, de adicionar aos aspectos que devemos à ciência, aspectos de outra procedência e de outra personalidade, mas de fazernos atuar, de ajudar-nos a alcançarmos uma convivência saudável. Por fim, se faz necessário destacar que os valores adquiridos na convivência diária dos internos na instituição AASEOBS, tais como: amizade, determinação, disciplina, esperança, introspecção, paciência, respeito, etc.; colaboram para o desenvolvimento de uma pessoa notavelmente consistente, com a intenção de fazê-los agir e auxiliá-los para viver períodos aprazíveis, bem longe de substâncias psicoativas, proporcionando novas expectativas de vida ao indivíduo.
Referências AZEVEDO, Cristiane Almeida de. A procura do conceito de religio: entre o relegere e o religare. Juiz de Fora: UFJF, Re249
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16. A bandeira do divino espírito santo no aspecto de Valores religiosos e culturais baseados em tradições cumulativas Janice Gayer Moreira Monguilhott Felipe Gustavo Koch Buttelli
Introdução A vida em sociedade reflete em valores de convivência social, embasados em leis, senso comum, valores morais, éticos, religiosos, culturais que pertencem ao cotidiano das pessoas e que de certa forma gera influência sobre seus valores pessoais. Esse capítulo possibilita uma análise do comportamento humano no que se refere ao envolvimento religioso com o símbolo da Bandeira do Divino e no movimento cultural que a Festa do Divino Espírito Santo representa na Comunidade de Santo Antônio de Lisboa, localizado em Florianópolis, SC.
Aspecto cultural e religioso da festa do Divino Espírito Santo A Festa do Divino Espírito Santo é popularmente conhecida pela história da Realeza Portuguesa, a Rainha D. Isabel de Aragão fez uma promessa ao Espírito Santo pedindo ao seu reino a paz, em forma de gratidão, ela doou sua Coroa Real ao Espírito Santo. Diante disso, coroar um imperador (criança) de modo a representar o Divino Espírito Santo tornou-se um hábito tradicional da Festa. Além disso, era também, oferecido um banquete (o bodo) reunindo os nobres e o povo da Vila de Alenquer, em Lisboa. Nesse sentido, a 253
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compreensão é de que a Realeza uniu os pobres e nobres a comer na mesma mesa. (SCHMITZ, s/d, 2014). No Brasil é considerada uma Festa religiosa, a Igreja celebra junto à comunidade. Nos açores, a Festa era considerada do povo e realizada pela sociedade, segundo Chaves (2010) havia uma relação com o culto ao vegetal, mas com a sua popularização pela Rainha Isabel na devoção ao Divino, a Igreja também passou a fazer parte, aproveitando a oportunidade para a evangelização. Assim, a Festa se propagou pelo mundo e também no Brasil, passando a fazer parte da cultura de diversas localidades que incorporaram os aspectos da Festa em suas tradições, e isso envolve as novenas, missas, cantorias, peditórios, coroação, cortejo imperial, atrações musicais, artísticas, folclóricas, comidas e etc (NUNES, 2010). Neste caso, depara-se também com a religiosidade da Festa ao Divino Espírito Santo, nas orações, missas, novenas. Percebese o envolvimento das pessoas com os símbolos que representam o Divino, são estes: a bandeira, a pomba, as cores das fitas, e também com os símbolos da Festa que são a coroa, o cetro, a salva, casal imperial, corte, festeiros, pãezinhos, a coroação do Imperador, as cavalhadas, as Pastorinhas dentre outros (CRUZ, 2009; SCHMITZ, s/d; NUNES, 2010). A Festa envolve as pessoas da comunidade nas suas atrações musicais, festejos, culinária, o folclore local, permitindo que todos participem do evento podendo prestigiar, e se reunir com as pessoas. Da mesma forma, a Festa possui um conjunto de cerimônias, como novenas, missas solenes, coroação, bênçãos e orações que destacam o sentido religioso (NUNES, 2010). Com isso, percebe-se que a religião permeia no conjunto da Festa, deste modo, convém compreender que “cada religião é história da participação do ser humano em um contexto em evolução de realidades observáveis e em algo não diretamente observável pela pesquisa histórica”. Assim, pois cada religião acompanha a sua fé transcendental e possuem diferentes percepções entre si (SMITH, 2006, p. 144). 254
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Isso significa que cada religião tem uma percepção daquilo que lhe é sagrado, valioso, integro, transcendental. Não significa que o “Deus” deles é o mesmo, ou ainda que seja o mesmo em diferentes interpretações. Portanto, não há como provar a transcendência na esfera mundana. Nem tampouco afirmar se faz parte da imaginação ou se de fato há a existência de outro mundo. Por que cada pessoa vê na sua religião uma posição diferente a respeito e á a sua crença que vai determinar o seu ângulo de visão (SMITH, 2006). Os valores estão incorporados nas crenças, naquilo em que se acredita e que se atribui uma importância. Para Abreu (2014) cada pessoa precisa ter seus próprios valores e “[...] isso envolve aceitar determinadas coisas e repudiar outras, esses valores são impostos desde o nascimento e são aperfeiçoados com o passar do tempo”. Da mesma forma a religião cria valores a serem seguidos. A pessoa não nasce religiosa, recebe de cultura, das pessoas, das tradições que o envolvem socialmente e com isso aprende determinados valores que o definem em sua religião, em suas crenças, ou também incorpora seus próprios valores, aperfeiçoa, acrescenta e altera de acordo com aquilo que atribui a suas percepções (SMITH, 2006). Assim, tal capítulo, escolheu como objeto o símbolo da Bandeira do Divino por ter um valor de grande relevância para a Festa e por ser caracterizada de forma cultural e religiosa envolvendo uma sequência de ritos, significados e valores para as pessoas.
Conclusão O valor que as pessoas atribuem a algo faz parte da construção do seu ser. Representa um significado para esta pessoa e para cada ser esse significado é diferente e a percepção de valor também. Quando se trata do envolvimento no sentido do Transcendente esse sentimento é muito mais emocional, envolve uma série de questões 255
Valores: Formação Humana e o Desenvolvimento da Ação
relacionadas com a fé, crença, costumes, cultura e religião. O valor da Bandeira como símbolo da Festa do Divino é um exemplo do quanto podemos atribuir valor a algo e o quanto isso pode influenciar em nossas vidas, fazendo com que tenhamos um “determinado” comportamento quando estamos perante a este símbolo, isso, pois, o atribuímos um valor e um significado para si. No capítulo foram abordadas as atitudes de comportamento que as pessoas tem na presença da bandeira, como o ato em beijar, orar e dentre outros já apresentados. Isso reflete na sua crença, naquilo que a tradição representa para esta pessoa. Enfim, a sociedade se espelha em valores refletidos nas suas vidas, sejam por meio da religião, família, trabalho, meio social, política e dentre outros, desde que venha a agregar algum significado para si mesmas. O capítulo apresenta o resultado da identificação cultural e religiosa da trajetória da Bandeira, incluindo a Festa do Divino Espírito Santo da comunidade de Santo Antônio de Lisboa. Transitando nos valores que envolvem as pessoas com o fenômeno do símbolo representado pela fé e o comportamento das pessoas com a Bandeira do Divino.
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17. O discurso da ICAR: valores, família e fé no século XXI Maria das Graças Soares
Introdução Este capítulo dá continuidade às discussões sobre Discurso Religioso, Fé e Valores, trazendo como contribuição uma análise de dois textos escritos em tempo e espaço diferenciados, mas que representam os valores da fé cristã nas palavras de representantes oficiais da ICAR. Notadamente, situa-se nesse capítulo a questão do saber pregar como um dos requisitos fundamentais dos representantes da ICAR desde o início do cristianismo no período do Império Romano, quando iniciaram-se as pregações por meio de parábolas. Na atualidade, o uso desse recurso linguístico se faz presente no que se convencionou chamar de preleção. A preleção significa o discurso proferido pelo sujeito que se coloca como veículo de transmissão da voz divina aos humanos. Quando se fala em discurso religioso, também se fala em recurso argumentativo ou o uso da linguagem para convencer, persuadir. Assim, o discurso religioso pode ser classificado sob a perspectiva da retórica como forma de argumentar sobre algum tema específico. Ao ler o Sermão da Sexagésima, o que se destaca de antemão é a persuasão argumentativa usada por Pe. Vieira22 para falar sobre o bom pregador e o que este deve fazer para que seu discurso seja ouvido (e assimilado) pelo público ouvinte. Quando se observa as discussões do século XXI sobre a religiosidade, identifica-se nessas discussões a importância do discurso para o convencimento/converPadre Antônio Vieira nasceu em Lisboa, em 1608, e morreu na Bahia, em 1697. Com sete anos de idade, veio para o Brasil e entrou para a Companhia de Jesus. Por defender posições favoráveis aos índios e aos judeus, foi condenado à prisão pela Inquisição, onde ficou por dois anos (MURARO, 2008). 22
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são das massas ou para a evasão do público das igrejas ou templos fundados no cristianismo. Nos primórdios do cristianismo, considerando um vasto tempo, de 3.500 a.C. até 476 d.C., que compreende o Império Romano (MACHADO, 2005), os ensinamentos veiculados mediante o discurso eram feitos por meio de parábolas, conforme ficaram marcadas na histórica do cristianismo ocidental na figura de Jesus Cristo. Dentre elas, destacam-se duas, a do Semeador e a da Rede, ambas falando sobre a função do pregador. Eis que o semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao pé do caminho, e vieram as aves e comeram-na; e outra parte caiu em pedregais, onde não havia terra bastante, e logo nasceu, porque não tinha terra funda. Mas, vindo o Sol, queimou-se e secou-se, porque não tinha raiz. E outra caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na. E outra caiu em [9] boa terra e deu fruto: um, a cem, outro, a sessenta, e outro, a trinta. Mateus 13:3-8 (ESTATE, 2013, p. 13). O reino dos Céus é semelhante a uma rede lançada ao mar e que apanha toda qualidade de peixes. E, estando cheia, a puxam para a praia e, assentando-se, apanham para os cestos os bons; os ruins, porém, lançam fora. Assim será na consumação dos séculos: virão os anjos e separarão os maus dentre os justos. E lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali, haverá pranto e ranger de dentes. Mateus 13:47-50 (ESTATE, 2013, p. 73). O conceito situado principalmente na Parábola do Semeador foi retomado por Pe. Antônio Vieira no século XVII, em seu Sermão da Sexagésima, ao definir ao pregador três elementos básicos, o saber ver, o saber falar e o saber ouvir (MURARO, 2008). Em relação à Igreja Católica Apostólica Romana ICAR, um dos aspectos que vem sendo observado nos discursos do Papa Francisco é a exortação dos fiéis à caridade, à fraternidade e ao uso da catequese como meio de orientar os cristãos desde cedo aos caminhos do Cristo. Desse modo, o discurso está voltado para o trabalho de base e para a orientação de que a catequese não deve ser retórica 260
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e sim um encontro com Cristo (SANTA SÉ, 2013). Mas para os efeitos deste capítulo, nos situamos com a Homilia do Papa Francisco sobre a oração e sobre a família, exemplos que se coadunam com os ensinamentos de Pe. Vieira. Nesse sentido, a pergunta norteadora das reflexões é: O que os ensinamentos inscritos no Sermão da Sexagésima e a retórica da ICAR do século XXI têm em comum no que trata da retórica, da fé e dos valores? O método de abordagem é o da revisão de literatura (ECO, 2007) e o estudo comparativo entre o discurso da ICAR e o discurso social a respeito de família. As hipóteses que fundamentam este capítulo são as de que a ICAR ao mesmo tempo em que defende um estatuto de família tradicional aos moldes antigos, oscila entre os novos valores sociais que entendem a família não mais sob a perspectiva consanguínea e sim pelos laços afetivos, independente da sexualidade, que estão compondo núcleos familiares modernos.
Religião, fé, valores e discursos da ICAR Até o século XIX, os discursos religiosos centravam-se na afirmação do sobrenatural, na existência de um Deus que se sobrepunha a tudo e a todos, responsável pelo que houvesse. Para Gaarder, Hellern e Notaker (2000, p. 264), o Naturalismo do século XIX, “marcado pelo materialismo mecanicista” decorrente do capitalismo e industrialização, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento de uma percepção mais sistêmica e natural da vida, o que pode ter contribuído para arrefecer o discurso religioso do sobrenatural como explicação para todas as ações humanas e eventos naturais decorrentes dessas ações. Pode-se dizer que as sociedades capitalistas de certo modo foram relegando menor importância à função da igreja na vida social dos indivíduos, mantendo-se no campo espiritual e marcada pelo processo de “secularização” (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000, p. 276). Já Para Lopes Junior (2011), a modernidade é o fator preponderante nesse processo, porque o homem moderno passou a 261
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questionar as doutrinas, os discursos e valores pregados pelas instituições religiosas, notadamente a ICAR. O século XX, por sua vez, foi marcado por uma série de acontecimentos sociais, políticos e econômicos que acentuaram o afastamento da ICAR das relações de poder do Estado e que influenciaram o contexto brasileiro. Isso pode ter contribuído para, de certo modo, maior abrangência dessa Instituição religiosa a partir de seu envolvimento com diferentes questões sociais e políticas, sem a interferência estatal (SOUZA, 2004). No Brasil, identifica-se maior influência da ICAR nos trabalhos eclesiais de base, com incidência em ações partidárias de esquerda, a exemplo do Movimento dos Sem Terra, da Juventude Rural e de ações práticas em comunidades carentes. Nesses casos, pode-se dizer que o discurso político da ICAR assumiu a voz de parcelas desvalidas da população, o que talvez tenha entrado em contradição com a posição elitizada dessa instituição enquanto seu poder atrelava-se às decisões macro estatais (VAZ, 1998; SOUZA, 2004). Os movimentos bélicos, o massacre étnico-racial e religioso, as crises econômicas e sociais dos países de Terceiro Mundo, com os consequentes movimentos populares reivindicatórios de direitos, conforme Vaz (1998, p. 231; SOUZA, 2004), ao mesmo tempo em que movimentaram o mundo político também refletiram no contexto das religiões, notadamente da ICAR, cujo representante máximo do século XX foi o Papa João Paulo II. Após sua morte, os que assumiram o pontificado pode-se dizer que foram pouco representativos, a exemplo do Papa Bento XVI, que pouco fez para resolver problemas que afetaram a comunidade católica pelo envolvimento de padres nas questões de pedofilia, por exemplo, até a segunda década do Século XXI, quando Francisco23 assumiu o papado e tornou-se mundialmente conhecido por seus discursos ora centrados no conservadorismo ora na possibilidade de abertura para discussões importantes que refletem na sociedade contemporânea, a exemplo da Papa Francisco (1939) é o 226º pontífice da história da ICAR e o primeiro latino-americano a assumir esse cargo, tendo sido eleito no conclave de 13 de março de 2013. Papa Francisco (1936) ou Jorge Mario Bergoglio nasceu no bairro de Flores, em Buenos Aires, Argentina, no dia 17 de dezembro de 1936. Filho de Mario Bergoglio, ferroviário, e de Regina Maria Sivoni, dona de casa. Iniciou o noviciado na Companhia de Jesus aos 21 anos e formou-se em filosofia. (E-BIOGRAFIAS, 2015). 23
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família, da mulher, da juventude, da catequese e da diversidade, que inclui aspectos relevantes relacionados à família homossexual. Na Idade Média, o discurso religioso demonstrava a influência da ICAR nos assuntos de Estado e em todas as circunstâncias da vida social e particular dos indivíduos. Mas também se faz importante pensar o discurso religioso a partir da teologia, haja vista que ela é a responsável, desde os tempos mitológicos, por condicionar o pensamento dos homens à existência de Deus e a considerar essa existência a partir da fé. Situamos essa relevância, entre teologia, discurso religioso e fé, porque a entendemos como o fundamento da crença religiosa: se não há fé, não há crença, pois, acreditar em algo, corresponde a ter fé e vice-versa. A crença, nesse caso, é a responsável pela propagação da fé, ou seja, pronuncia-se a fé a partir do momento em que se crê em um Deus, no que transcende. Ao relacionar teologia, crença e fé, também pensamos a questão da ciência da religião, que seria, em breve análise, a reflexão “[...] sobre o fenômeno cultural da religião em geral ou duma religião em particular, sem ter, necessariamente, um compromisso com a fé” (ZILLES, 2013, p. 110). Separam-se, de certo modo, teologia, fé, crença e ciência da religião, sendo esta última a responsável por compreender a religião como um fenômeno cultural no qual distinguem-se diferentes situações, sendo a crença na existência de um Deus o princípio da crença religiosa e consequentemente da fé religiosa. Buscamos, desse modo, um panorama breve e sucinto da teologia, fé, crença e religião da época medieval até a contemporaneidade (ZILLES, 2013). Não buscamos explicar a teologia e a ciência da religião, mas entendemos sua importância na compreensão do fenômeno religioso, daí a necessidade de situarmos essas duas instâncias. Ou fazemos com a intenção de mostrar que em diferentes situações e áreas de estudo o que está concreto, que faz circular e mediar a fé, a crença, a cultura, a religião, a teologia e a ciência da religião é o discurso, é a palavra. E a palavra tem sido nosso foco, pois é a partir dela, com ela 263
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e por ela que analisamos os discursos religiosos nas palavras de Pe. Antônio Vieira, precisamente no Sermão da Sexagésima, e do Papa Francisco, notadamente em uma de suas homilias sobre a família, que também situa o pensamento da ICAR a respeito dos valores a serem considerados na questão da fé e da família sob a percepção católica apostólica romana.
Retórica, discurso da fé e valores no século XXI Pe. Antônio Vieira coloca em seu sermão a questão do saber pregar, levando em conta que todos ouvem, colocando a metáfora da pedra, do espinho, do solo fértil. De algum modo, as sementes nascem, ou seja, todos ouvem, mas somente os que já possuem o que podemos chamar de discurso da fé conseguem fazer frutificar as palavras do pregador. Os demais ouvem, mas o discurso não lhes é suficiente para seguir os caminhos indicados pelo pregador. Daí o Pe.Vieira considerar que o problema está, principalmente, naquele que discursa, em não saber ouvir, identificar naquele que ouve o que lhe falta para compreender e acreditar. Conforme Zilles (2013, p. 111), “A fé, como resposta à Palavra de Deus, é também conhecimento, de acordo com as exigências próprias de um espírito humano, historicamente condicionado. A fé busca uma compreensão sempre mais completa da Palavra de Deus”. Na homilia proferida no dia 27 de outubro de 2013 (SANTA SÉ, 2013), Papa Francisco segue os passos de um sermão tradicional, adaptado para a realidade do século XXI, portanto breve nas colocações e com figuras de linguagem, usando de introdução, proposição, desenvolvimento e conclusão. Em sua introdução define o que vai tratar: as características fundamentais da família cristã. Desenvolvimento e proposição caminham juntas nessa homilia. Para desenvolver seu raciocínio, de modo enumerado, situa primeiro a oração como fundamental e retoma o Evangelho sobre o fariseu e o publicano como exemplo, sendo o publicano o bom exemplo. Na sequência dirige perguntas aos fiéis e finaliza com a explicação do 264
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como deve ser uma oração em família. Esse modelo é seguido para a segunda característica que é da “guardar a fé”, usando como exemplo as colocações do apóstolo São Paulo. A terceira característica é a do “viver a alegria”, usando como exemplo comparativo o Salmo Responsorial24 e as palavras do apóstolo São Paulo25. Para a conclusão, faz uma exortação ao que deve ser a família cristã e finaliza com o exemplo da Sagrada Família de Nazaré. Identifica-se nessas colocações uma questão fundamental, a palavra, o discurso proferido pelos representantes da Igreja. A fé, a crença, se dá a partir da palavra, a partir da força discursiva de quem profere a palavra. Para Bourdieu (1989), a linguagem não pode ser considerada como neutra, porque nela encerram-se - em palavras nossas - os valores, o saber e as intenções de quem as profere. De acordo com Foucault (2009), o discurso, quando proferido por “uma pessoa que ocupa um espaço institucional”. Essa afirmativa traz em seu bojo o poder do qual esse sujeito está imbuído (GIACOMONI; VARGAS, 2010, p. 122), daí a impossibilidade de um discurso neutro. E, resultante desse entendimento do discurso como um dispositivo de poder, pensarmos que o discurso religioso também não é neutro, porque nele estão circunscritos os valores da Igreja, neste caso, da ICAR. O Papa, ocupante de um cargo institucional, quando profere seus discursos, o faz mediante o apoio e concepções da instituição que representa. Ao transpormos essas considerações para o objeto de nossa discussão, os discursos religiosos representados pelo Sermão da Sexagésima, de Pe. Vieira, e a homilia, do Papa Francisco, consideramos pertinente pensar que o Papa Francisco, em seus discursos, diDe acordo com a Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia (2013): “o Salmo Responsorial está situado dentro do corpo da Liturgia da Palavra que, por sua vez, realiza-se após os ritos iniciais e antes da Liturgia Sacramental, em todos os sacramentos e sacramentais”. Nas palavras de Papa Francisco: No Salmo Responsorial, encontramos esta expressão: «ouçam os humildes e se alegrem» (33,4). Todo este Salmo é um hino ao Senhor, fonte de alegria e de paz. Qual é o motivo desta alegria? É este: o Senhor está perto, escuta o grito dos humildes e os liberta do mal (SANTA SÉ, 2013). 25 A importância de se manter fiel a Deus está registrada na carta do apóstolo Paulo a Timoteo (2Tm 4,6-8), escrita como uma espécie de balanço de sua vida (ROSA, 2013).Nas palavras de Papa Francisco: “A segunda Leitura nos sugere outro ponto: a família guarda a fé. O apóstolo Paulo, no ocaso da sua vida, faz um balanço fundamental, e diz: «guardei a fé» (2Tm 4,7). Mas, como a guardou? Não em um cofre! Nem a escondeu debaixo da terra, como o servo um pouco preguiçoso dos talentos. São Paulo compara a sua vida com uma batalha e com uma corrida. Guardou a fé, porque não se limitou a defendê-la, mas a anunciou, irradiou-a, levou-a longe” (SANTA SÉ, 2013). 24
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reciona suas palavras para um grupo de fiéis que considera legítimos da ICAR, que seguem os ensinamentos dessa Igreja, e “semeia” essas mesmas palavras entre aqueles que não estão “nos caminhos da fé” católica e da ortodoxia dessa instituição religiosa. Não se pode afirmar ainda que haja aceitação ou negação desses fiéis por parte da ICAR, mas pode-se pensar que o discurso envolve a questão do trazer “as ovelhas desgarradas” de volta ao rebanho, ou seja, os que não compartilham e não vivem a doutrina cristã da ICAR precisam ser reconduzidos aos valores dessa Instituição secular. Conforme Buttelli (2009), para que a performance institua a realidade ela “deve ser executada a) pela pessoa certa, b) no lugar certo, c) no momento certo, d) durando o tempo certo, e) fazendo uso do comportamento correto, f) utilizando a linguagem [...] correta, g) vestindo a indumentária correta e h) utilizando os instrumentos corretos”. No que trata do Sermão da Sexagésima em comparação com a Homilia do Papa Francisco, identifica-se no discurso atual a convergência com alguns dos ensinamentos de Pe. Vieira sobre a arte do bem pregar e do valor do discurso como processo de fortalecimento da fé ou de caminho para a fé daqueles que ainda não se encontram em paridade com os ensinamentos da ICAR. Essa análise parte do pressuposto de que os discursos do Papa Francisco são proferidos em um momento de transformações sociais, políticas e religiosas que influenciam nos posicionamentos da ICAR, a exemplo dos valores de família e da questão da homossexualidade nesse contexto. Ao pensarmos essas colocações, nos situamos no campo da “modernidade líquida” de que fala Bauman (2001), um tempo de acentuada fluidez de conceitos, de situações. Na modernidade, os conceitos até então tidos como sólidos, imutáveis, inquestionáveis. Nas palavras desse autor: “Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho”, a exemplo de conceitos de política, hegemonia, Estado, sociedade “[...] e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas”. Se a modernidade influen266
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cia todas as esferas, o campo religioso também parece ser afetado por esse estado de fluidez de ideias, pensamentos, verdades. Pode-se pensar com o autor, então, que “[...] os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12). Identifica-se essas influências no campo religioso como um momento de divergências entre antigos valores e os valores impostos por uma sociedade marcada pela diversidade, que se transforma e forma outras possibilidades de compreensão do mundo moderno. Nos situamos, assim, nas questões relativas aos discursos que, assim como se manifestam no âmbito da religiosidade, também são recorrentes no espaço político e social. Os mais recentes envolvem a questão da diversidade, como já citado, foco de disputas políticas importantes e que interferem na questão dos direitos, como o discurso de Estado já consolidado, e da aceitação do diferente, situação bastante complexa para os que consideravam família, por exemplo, um fato consumado, acabado e que a mesma sempre foi e seria formada por laços consanguíneos, a partir da união estável entre homem e mulher. Note-se que não defendemos esse discurso, não estamos nos posicionando a favor ou contra, mas trazendo para a discussão os fatos que nos levam a pensar o discurso religioso na atualidade. Desse modo, o discurso veiculado no espaço político acaba ganhando as ruas e reflete o conflito contemporâneo entre liberdade de expressão, direitos das minorias, igualdade de direitos, a exemplo dos manifestos pró e contra o movimento Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) e seus desdobramentos com a Parada Gay realizada em São Paulo neste ano de 2015. A imagem do cristo crucificado gerou polêmicas das mais diversas e dissidências até mesmo entre os LGBT e os conservadores religiosos. Não há como não considerar essas novas formas discursivas e o uso de um discurso midiático tendo como base a religiosidade no mundo contemporâneo. Os países Islâmicos, principalmente os que abrigam grupos radicais, fomentados pelos interesses do Ocidente 267
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continuam em guerra por poder econômico, mas sua bandeira de luta é o fundamentalismo religioso. A ICAR, na pessoa de Jorge Mario Bergoglioe na figura do Papa Francisco batalha para fazer valer seus valores seculares, muitos deles assemelhados aos defendidos pelas bancadas religiosas no parlamento brasileiro. Neste caso, é possível pensar que segmentos do Estado e Igreja vão seguindo caminhos comuns de influência e poder capazes de colocar abaixo séculos de batalhas de diferentes sociedades para a paridade e igualdade social.
Conclusão O Sermão da Sexagésima condiz a uma retomada da Parábola do Semeador registrada no Evangelho segundo São Lucas, cuja identificação, Semen est verbum Dei, o que nos leva para a metáfora da semente como a palavra de Deus aos homens. A metáfora criada por Vieira é a de que pregar é como semear e esta ação deriva das escolhas do semeador, escolhas que também o definem e qualificam como bom ou mau pregador. Se a semente for lançada em terra fértil, certamente dará frutos, mas quando lançada em solo pedregoso ou entre espinhos, por exemplo, a tendência é a de que as sementes brotem, mas morram ser dar frutos. Na questão do discurso religioso, aos fiéis, toda palavra se frutifica, mas aos que não são da igreja, há que se trabalhar mais para que as sementes germinem. O que se entende dessa metáfora é que o bom semeador não é tão-somente aquele que prega entre fiéis, mas aquele que trabalha para que as sementes germinem entre os que ainda não seguem os ensinamentos religiosos da fé professada pelo pregador. Esses ensinamentos se aplicam ao discurso religioso na atualidade, haja vista que há fiéis, simpatizantes e aqueles que não se coadunam com as palavras da ICAR. Nesse caso, transpondo os ensinamentos de Vieira às homilias de Francisco, identifica-se uma permanência de características tanto do discurso quanto dos valores que fundamentaram e se mantém como valores da ICAR há séculos. Daí nosso entendimento de que os valores de família estão sujeitos à 268
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fé nos discursos do Papa Francisco e suas palavras condicionam os ouvintes à manutenção de uma tradição familiar. Ao definir a família formada pela união matrimonial de homem e mulher e a filiação sanguínea, o Papa, de certo modo, fecha a discussão para as questões que envolvam as famílias modernas, o que implica na diversidade de formações muito mais relacionadas com o afeto do que com a consanguinidade.
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18. A laicidade enquanto Valor Jeison Rodrigo Coelho
Laicidade Para que possamos argumentar a favor da laicidade enquanto valor no contexto contemporâneo de diversidade e pluralidade religiosa, científica e filosófica, se faz necessário conceituar esse termo tão importante na formação da sociedade moderna globalizada. Neste sentido dialogamos com Ari Pedro Oro, que define da seguinte forma laicidade: A laicidade é um neologismo francês que aparece na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1871, no contexto do ideal republicano da liberdade de opinião – na qual está inserida a noção de liberdade religiosa do reconhecimento e aceitação de diferentes confissões religiosas e da fundação estritamente política do Estado contra a monarquia e a vontade divina. Este último ponto é importante. O princípio da laicidade reside na separação entre o poder político e o poder religioso, que está na própria origem e consolidação do Estado moderno (ORO, 2008, pp. 81-82).
Como podemos observar nas palavras de Oro, o berço da laicidade é a França no contexto da disputa entre ideais republicanos e monárquicos que culminou com a separação entre Igreja e Estado, ou seja, a laicidade é resultado de uma disputa política que demarcou as fronteiras entre a religião e a política. Com a ascensão do ideal republica, a ideia de liberdade religiosa vem atado ao ideal de liberdade de opinião, muito forte no movimento republicano francês. 273
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Contudo, na própria França berço da laicidade, o respeito à liberdade religiosa é cerceado. Podemos citar o passado, durante a própria revolução francesa, o assassinato de padres e as igrejas destruídas ou tomadas pelos republicanos, obviamente não podemos negligenciar o contexto de guerra daquela época, porém está ai marcado uma aversão à religião e a vontade de extingui-la da sociedade. Transportando essa aversão à religião para tempos modernos, podemos trazer à tona a proibição do uso do véu nas escolas públicas francesas por meninas muçulmanas, o que é contraditório em um país que assume uma postura de liberdade e respeito à diversidade. Isso acontece porque basicamente há duas correntes laicas na França, uma que parte de uma perspectiva durkheimiana de laicidade, na qual toda a religião é verdadeira e merece ser respeitada e outra que é extremante crítica a religião e pratica o que podemos chamar de ativismo laico, ou ativismo secular. Neste sentido há discussões sobre um possível controle dos meios de comunicações por uma elite secular que propaga mensagens negativas sobre as religiões. Um exemplo seria o jornal Charlie Hebdo, que através de suas charges “politicamente incorretas” propagaria o escárnio sobre as religiões. Isto porque a laicidade também é uma categoria política em disputa, saindo do contexto francês e voltando nossos olhares para o caso brasileiro contemporâneo, vejamos a atuação da bancada evangélica. Enquanto no passado esse grupo, enquanto minoria lutava pelas liberdades laicas de consciência e prática religiosa, hoje procura restringir direitos de outros grupos minoritários, como LGBTTT e feministas, por exemplo. Não estamos negligenciando aqui os contextos, cientes de que quando falamos de evangélicos lutando por liberdade nos reportamos aos protestantes históricos que aqui chegaram e eram discriminados pela maioria católica, assim como o atual contexto de atuação da bancada evangélica demanda maiores debates, porém está claro que baseados em valores cristão, tantos LGBTTT quando as mulheres sofrem para que suas demandas sejam atendidas. 274
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Enfim, esse breve exposição sobre laicidade, nos mostra como mesmo na própria França a laicidade possui suas nuances. Contudo o artigo 1º da Declaração Universal da Laicidade no Século XXI26 deixa claro o papel fundamental da laicidade enquanto valor da sociedade moderna: Todos os seres humanos têm direito as respeito à sua liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva. Este respeito implica a liberdade de se aderir ou não a uma religião ou a convicções filosóficas (incluindo o ateísmo e o agnosticismo), o reconhecimento da autonomia da consciência individual, da liberdade pessoal dos seres humanos e de sua livre escolha em matéria de religião e de convicção. Isso também implica o respeito pelo Estado, dentro dos limites de uma ordem pública democrática e do respeito aos direitos fundamentais, à autonomia das religiões e das convicções filosóficas (2008, p. 7).
A laicidade nestes termos se apresenta como valor central que atende as demandas da sociedade moderna diversa e plural que possui fronteiras cada vez mais estreitas. É fundamental termos em mente que a laicidade não exclui a religião, pelo contrário, ela a inclui e a protege quando afirma que todo ser humano possui a liberdade de aderir ou não a uma religião e garante que o Estado não interfira nos assuntos religiosos. Partindo destes pressupostos, seguimos discutindo a laicidade enquanto valor.
A laicidade enquanto valor Podemos conceituar valores como princípios que conduzem as ações dos seres humanos. Tais convicções fomentam a visão de mundo do ser humano e/ou da sociedade como um todo. O valores Declaração apresentada ao senado francês, em 09 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do centenário da separação Estado-Igrejas na França; cuja redação esteve a cargo de Jean Baubérot (França), Micheline Milot (Canadá) e Roberto Blancarte (México). 26
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vão de encontro ainda com aquilo que é sensato ou adequado. Neste sentido os valores tradicionais, geralmente paralelos à religião, sofrem com as mudanças da modernidade e entram em choque com novos valores diversos e plurais que são característicos do mundo globalizado contemporâneo. Nas sociedades tradicionais os valores eram fundamentados em preceitos religiosos, ou seja, a religião era o ponto central que dava sentido à vida como um todo, trazendo as respostas míticas a todos as inquietudes humanas. A religião era ainda o ponto de coesão social e podemos conjecturar, o único caminho a seguir. Contudo, eis que surge a modernidade trazendo novas convicções científicas e filosóficas, a religião deixa de se apresentar como o único modo de ver o mundo, com a modernidade surgem novos valores, as fronteiras se estreitam, a expressão globalização nunca fez tanto sentido como no mundo contemporâneo com o grande movimento migratório e a velocidade de informações oferecidos pela evolução tecnológica. Essa transformação tão brevemente lembrada, traz consigo uma série de problemas. O que ontem era verdade absoluta agora se transforma na frente de nossos olhos, certezas escorrem entre nossos dedos como areia que se esvai de nossa mão, o que fazia sentido ontem, hoje já não faz. Essa falta de sentido acarreta em diversos problemas, um deles é o fundamentalismo. Lembramos que quando estamos aqui citando fundamentalismo não estamos restritos a religião, esse fenômeno moderno é característico da sociedade como um todo em todas as esferas, basta um breve olhar para guerra fria, por exemplo. Outra marcante característica modernidade é a diversidade e pluralidade cultural, além do encontro de diversas culturas. Olhando para nosso país, por exemplo, mesmo com as características peculiares brasileiras, temos inúmeros culturas que estão dentro do grande guarda-chuva cultural que é o Brasil. O fluxo migratório contemporâneo deixa claro de como as fronteiras a cada dia diminuem e diante esse fato é impossível evitar o choque de culturas. Neste sentido a plena liberdade de convicções 276
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filosóficas ou religiosas é imprescindível para um convivência harmoniosa e pacifica neste contexto diverso. Assim sendo, a laicidade enquanto valor garante tal liberdade, pois um dos principais valores da laicidade é o respeito e a liberdade de consciência e prática religiosa, sendo marcante a separação entre o Estado e a religião para que o primeiro possa garantir o tratamento igualitários a todas as convicções. Segundo o artigo segundo da Declaração Universal de Laicidade do Século XXI: Para que os Estados tenham condições de garantir um tratamento igualitário aos seres humanos e às diferentes religiões e crenças (dentro dos limites indicados), a ordem política deve ter a liberdade para elaborar normas coletivas sem que alguma religião ou crença domine o poder e as instituições públicas (2008, p. 7).
Ou seja, o Estado laico democrático soberano, através dos legisladores representantes da sociedade, formulam leis para garantir a liberdade religiosa e salvaguardar aqueles que decidirem não seguir religião alguma. Essas normas e leis fundamentadas em valores laicos vão de encontro a atual realidade de diversidade e pluralidade religiosa e cultural. Porém, isso não significa excluir o fator religiosos destas discussões, segundo Blancarte: Os grupos religiosos podem opinar, mas não são mais aqueles que podem influenciar decididamente sobre a criação das leis ou estruturar as políticas públicas. Estas, pelo contrário, são definidas pelo povo, através de suas formas de representação, particularmente as parlamentares. A soberania popular, em respeito aos direitos humanos, é a única que pode definir, a partir de um certo momento, o que é válido e o que não é, o que é permitido e o que é proibido (BLANCARTE, 2008, p. 26). 277
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Grupos religiosos organizados para discutir os caminhos políticos do país fortalecem a democracia, e como já citamos anteriormente a laicidade não excluí a religião. Contudo não é mais a religião que norteia a criação das leis, é o Estado que possui esse poder e o desafio em atender as demandas multiculturais da modernidade. Para isso não se pode negar o diálogo com os movimentos sociais e grupos religiosos também possuem o direito de participar dessas discussões. Voltando nossos olhares para o contexto brasileiro novamente, não podemos negligenciar a história de nosso país, desde a colonização portuguesa católica a atual efervescência evangélica neopentecostal, é evidente a importância do fator religioso e seria ingenuidade pensarmos em um Estado totalmente afastado de valores religiosos, religião e política no Brasil sempre estiveram lado a lado. Blancarte nos chama a atenção sobre esse aspecto: Evidentemente, a moral pública não pode estar totalmente secularizada, à medida que as religiões formam parte essencial da cultura dos povos, portanto, é impossível que não influenciem em suas concepções morais sobre o que é correto ou incorreto, sobre o que é bom ou mau. Os legisladores e os funcionários públicos estão influenciados em sua visão de mundo pelas suas respectivas religiões e cosmovisões (BLANCARTE, 2008, p. 27).
No entanto a laicidade enquanto valor aponta para uma sociedade que não nega sua história ou a religiosidade dos indivíduos e sim valoriza a individualidade de cada um, a diversidade de escolhas e a pluralidade de ideias, assim como a concepção e visão de mundo de cada um. Uma das formas de olhar o mundo é o religiosa e este também deve ser respeitado seja qual for sua matriz. A laicidade promove a oportunidade de grupos religiosos se articularem e levarem suas demandas em forma de grupos organiza278
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dos com a mesma legitimidade de grupos seculares. Essencial para o reconhecimento destes grupos religiosos, segundo Maria das Dores Campos Machado, é abandonar seu viés ideológico, nas próprias palavras da autora: O caminho para uma compreensão do estatuto da religião no mundo moderno seria abandonar o viés ideológico que caracteriza como ilegítima toda e qualquer atuação pública das religiões e verificar as diferentes possibilidades de articulação dos grupos confessionais com a sociedade política (MACHADO, 2008, p. 146).
Desse modo grupos como a bancada evangélica no Congresso Nacional, poderia ser afirmar como grupos legítimos perante a sociedade como um todo, porém alguns legisladores acabam se apegando no viés ideológico fundamentalista, o que acaba deturbando o olhar para esse grupo. Não estamos aqui lançando juízo de valor sobre a ação da bancada evangélica, está é somente um exemplo de como todos os pontos de vista são respeitados e possuem voz diante a laicidade do Estado, seja ele religioso ou não. A laicidade também é essencial para a defesa das minorias, basta pensarmos mais uma vez no contexto brasileiro. O último censo do IBGE apresentou a sociedade brasileira com quase 90% de cristãos, números que mostram que a pluralidade religiosa brasileira se restringe ao ambiente cristão. Não é à toa os recentes casos de intolerância religiosa contra as religiões de matriz afro e contra a comunidade LGBTTT, aliás, o Brasil apresenta números assustadores de assassinatos a homossexuais só pelo fato de serem homossexuais. O Artigo nono da Declaração Universal de Laicidade do Século XXI é enfática sobre esse assunto: O respeito concreto à liberdade de consciência e a não-discriminação, assim como a autonomia da política e da sociedade frente as normas 279
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particulares, devem ser aplicadas aos debates necessários relativos às questões associadas ao corpo e à sexualidade, com a enfermidade e a morte, com a emancipação das mulheres, a educação dos filhos, os matrimônios mistos, a condição dos adeptos de minorias religiosas ou não religiosas, dos não-crentes e daqueles que criticam a religião (2008, p.9).
Nesse sentido a laicidade resguardar melhor as minorias, garantindo a liberdade individual e coletivas de grupos religiosos e seculares, defendendo a diversidade de identidades sexuais e identidades religiosas. Enfim, podemos ainda afirmar que a laicidade é homogênea ao multiculturalismo, ao pluralismo e a diversidade em todos os sentidos e em todas as esferas e esse é o valor primordial na sociedade moderna contemporânea, o do respeito a diversidade e as convicções individuais, para um convívio harmônico nas sociedades plurais.
Conclusão A laicidade se apresenta na modernidade como ponto fundamental para que a diversidade religiosa seja plenamente respeitada assim como a liberdade de consciência e prática individual, sejam elas religiosas ou não. Como podemos observar, a laicidade, apresenta elementos essenciais para um convívio harmônico nas sociedades pluralistas e o mundo moderno está cada vez mais plural. Assim, podemos conjecturar uma moralidade laica com capacidade de promover uma identidade moral sólida culminando em uma consciência coletiva de respeito ao diferente, pautada no respeito à diversidade religiosa, na garantia às liberdades individuais, coletivas e por fim na crença à dignidade humana. Além de garantir ainda o tratamento igualitário às diferentes religiões e a autonomia de crença e práticas a todas manifestações. Enfim, o valor primordial da modernidade é o respeito ao outro. Nunca se teve tanto contato com o diferente, com o outro, e a laicidade apresenta diversas características que vão de encontro a 280
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esse cenário multicultural ou de embates cultuais. A laicidade surge como mediadora nessas relações presentes no mundo contemporâneo marcado pela diversidade e pluralidade, garantido o respeito a todos as convicções e valorizando todas as manifestações de forma igualitária.
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