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JUBILEUS Jubileus e a Identidade Franciscana

Oano de 2023 marca o início de um tempo jubilar para o Movimento Franciscano. Este e os próximos três anos nos convidarão ao olhar retrospectivo que oferecerá a criativa oportunidade de mergulhar nos oitocentos anos de história franciscana. Tal mergulho, certamente, terá o condão de revigorar nossa maneira de ver o mundo e de viver a dádiva do seguimento de Cristo nos passos de Santa Clara e São Francisco de Assis. A celebração dos Jubileus franciscanos, para ser vivida como graça, deverá ser acolhida como convocação para olhar para trás, mas com olhos desejosos de enxergar o futuro. Este movimento, olhar para trás mirando o que virá, foi o que os Ministros Gerais propuseram, há quarenta anos, quando escreveram uma carta por ocasião da abertura do Jubileu de Nascimento de São Francisco: “O Centenário não é uma data para celebrar, mas um acontecimento a ser vivido”. Os Ministros das quatro obediências alertavam que a recordação do nascimento do Pobrezinho de Assis era “uma graça que deve estimular o rejuvenescimento do ideal franciscano em que tantos se inspiraram e inspiram ainda a própria vida (...). Perde a graça se for entendido como simples comemoração acadêmica de um feliz acontecimento histórico passado; é um acontecimento de fé e salvação para toda a humanidade, e em primeiro lugar para os próprios franciscanos. Um momento de salvação se for entendido como uma forte chamada para uma consciência maior de que somos seguidores de São Francisco e para renovarmos nossa vontade de agir como verdadeiros franciscanos”.

Outro elemento que aproxima o Jubileu celebrado em 1982 com os Jubileus que se seguirão a partir deste ano é a proposta de repensar nossa identidade. Assim se manifestaram os Ministros naquela ocasião: “Se nós franciscanos queremos aplicar, no mundo de hoje, aquela força de sedução que caracterizou o tempo das origens e reanimar-nos com a chegada de numerosas vocações, temos que meditar sobre a nossa identidade e avaliar-nos segundo o parâmetro do ideal primitivo. Será que a crise de hoje e a redução de perspectivas para o futuro não dependem do vazio espiritual que frequentemente congela nossa vida e de nosso conformismo com a sociedade de consumo? Impõe-se um severo exame de consciência, feito tu a tu como São Francisco diante do crucificado, para devolver sabor ao sal. Se todos nós, filhos espirituais do Poverello, voltarmos ao antigo fervor de santidade e nos entregarmos ao trabalho com espírito evangélico, es- taremos cumprindo de verdade nossa parte na história da salvação e contribuiremos para fazer com que o universo inteiro experimente mais de perto o dinamismo do mistério pascal”.

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Renovação da Identidade, convite dos Capítulos Gerais

O tema da redefinição da identidade, que acompanha a reflexão na Ordem há algum tempo, é sempre de novo visitado. Recordemos o que o Papa Francisco pediu aos frades em 2015, quando da visita feita ao Pontífice no transcurso do Capítulo Geral que acabara de eleger o Ministro Geral Frei Michael Anthony Perry. Na ocasião, o Papa abordou os dois elementos essenciais da identidade franciscana: a minoridade e a fraternidade. “A minoridade chama a ser e a sentir-se pequeno diante de Deus, entregando-se totalmente à sua infinita misericórdia”. “Quem não se reconhece como ‘menor’, como pecador, não compreende a misericórdia. Quanto mais cientes somos de ser pecadores, mais estaremos próximos da salvação”. “Minoridade significa também sair de nós mesmos, de nossos esquemas e visões pessoais; significa ir além das estruturas, dos hábitos e de nossas seguranças e testemunhar a proximidade concreta aos pobres, carentes e marginalizados, em atitude de partilha e serviço”. O Papa considerou a dimensão da fraternidade, frisando que ela também pertence ao testemunho evangélico. “A Família Franciscana é chamada a expressar esta fraternidade concreta, recuperando a confiança recíproca nos relacionamentos interpessoais, para que o mundo veja e creia”. “Nesta perspectiva é importante resgatar a consciência de que são portadores de misericórdia, reconciliação e paz. Se realizarem esta vocação – que corresponde ao seu carisma – serão uma Ordem ‘em saída’”.

O Capítulo Geral seguinte, em 2021, entre as resoluções apresentadas, novamente indicou a necessidade de renovação de nossa identidade franciscana e da vida fraterna. Retomando o que o Papa havia intuído seis anos antes, o Capítulo ressaltou a Minoridade e a Fraternidade como os dois pulmões da identidade franciscana: “Esses dois pulmões que possibilitam o sopro do Espírito Santo para animar todo o nosso modo de ser no mundo são Fraternidade e Minoridade. Primeiramente, somos todos irmãos e o modo da nossa vida fraterna é a minoridade voluntária, na sociedade e na Igreja. As pressões sociais, como a cultura prevalente do individualismo, e as pressões eclesiais, como o clericalismo, não têm lugar naquele que abraça com autenticidade a vida franciscana (...). Reconhece- mos que, como todas as pessoas, também nós somos influenciados pelos contextos em mudanças de nossas comunidades locais e globais (...). Os membros da Ordem dos Frades Menores não são imunes a essas mudanças e devemos lembrar que a nossa vocação é a de ser peregrinos e forasteiros no mundo e, por isso, ser discípulos missionários no mundo, mas não partidários do mundo. O Capítulo recordou ainda que “a tarefa de renovar nossa identidade franciscana requer discernimento, estudo, formação e ação. O povo de Deus pede mais de nós, em virtude de nosso empenho público de ser frades menores, a exemplo de São Francisco. Jamais precisamos ter medo de recomeçar pois, como nos recorda Celano, no fim de sua vida, São Francisco ‘não julgava que tivesse alcançado e, permanecendo infatigável no propósito da santa renovação, esperava sempre recomeçar’. Não basta chamar-nos simplesmente de Frades Menores, é preciso também pôr em prática o que nosso nome pede: assumir a causa daqueles que, contra sua vontade, são ‘menorizados’ em nosso mundo, de maneira que nós, que voluntariamente nos identificamos com aqueles que estão à margem, possamos acompanhar e defender nossos irmãos e irmãs em necessidade”.

A busca da Identidade, exigência dos tempos atuais

A definição dos tempos atuais como uma “mudança de época” parece balizar o movimento que há nos diferentes setores da sociedade que empenham esforços na redefinição da sua identidade. No turbilhão das grandes transformações que tomam forma nos nossos dias, instituições, grupos, povos, indivíduos, todos enfim, sentem-se provocados a revelar as motivações, mostrar as razões, elucidar os contornos que dão forma à sua existência e garantem sua significância. Num contexto assim, a proposta pela redefinição da identidade não soa como privilégio da Ordem ou do Movimento Franciscano. Mais ainda, não só não significa um privilégio, como se impõe como urgência. Assim, devemos perfazer nosso caminho e evitar os riscos que este itinerário pode esconder.

Um dos mais danosos riscos quando algum grupo ou instituição se envolve, sem critérios, no projeto de definir e garantir a sua identidade é o fechamento sobre si mesmo. Tragada pelos arroubos de auto referencialidade, a busca pela própria identidade pode, facilmente, desviar-se para o sectarismo. Do sectarismo pode nascer a autossuficiência, ou uma postura complacente com os percalços ou decisões equivocadas que, ao longo da existência, podem ter levado à descaracterização da sua finalidade ou missão.

Há registros de movimentos identitários que se popularizaram sobretudo na Europa no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial que afirmava o direito dos europeus a uma cultura e territórios exclusivamente seus. Este olhar restritivo ganhou proporções globais e infestou culturas em todos os Continentes. Na contramão da proposta de um mundo globalizado, promotor da igualdade entre os povos e da compreensão da possibilidade de convivência harmoniosa entre todas as culturas, tais movimentos não conseguem esconder seu apreço pela xenofobia, pelo racismo ou outros pensamentos supremacistas. Por vezes, utilizam de um discurso tornado palatável e pretensamente sustentado pela racionalidade. Assim, procuram fazer críveis as ideais dos seus manuais. Apropriam-se de valores universais, anunciam-se como seus promotores e defensores, entretanto, suas escolhas revelam exatamente o contrário.

O identitarismo também pode ser verificado a partir de grupos sociais formados por pessoas que compartilham aspectos da sua identidade e, por aproximação, identificam interesses, perspectivas e demandas em comum. Trata-se da agrupação de pessoas com características similares, como orientação sexual, etnia, classe, nacionalidade, que busca visibilizar suas dificuldades e lutar por seus direitos. Embora distinguidos por demandas específicas, os grupos que se empenham na luta pela igualdade de gênero, pelo fim do racismo, pela preservação ambiental, entre outras lutas, devem reservar atenção e crescer na percepção de que a raiz de muitos desmandos e ameaças se alimentam do mesmo terreno e promovem o empobrecimento, a violência, a violação dos direitos, a morte. A consideração da existência de um “inimigo” comum, antes de prejudicar, favorece a configuração da própria identidade.

Portanto, a autorreferência desprovida de autocrítica, o fundamentalismo associado ao totalitarismo, ou a configuração de uma identidade fluida, podem desvirtuar ou até impedir a oportunidade criativa da redescoberta dos valores da experiência primeva, bem como da fecundidade dos frutos colhidos ao longo da história, seja dos indivíduos, seja das instituições.

Mudar para permanecer fiel

Em 1982 recordamos o nascimento de São Francisco. Quarenta anos depois somos convidados a reviver momentos marcantes da sua trajetória de santificação. Separados por oitocentos anos, o tempo que viu nascer o Movimento Franciscano e os tempos hodiernos compreendem algumas similaridades. Ambos são caracterizados como um período de profundas mudanças na forma de ver o mundo e de organizar a vida. A palavra crise pode ser usada para identificar os dois momentos históricos. Aliás, a crise das estruturas externas, como faz com os corações e mentes atualmente, sem sombra de dúvidas, deixou marcas na experiência pessoal de São Francisco. Assim podemos afirmar que a crise, não aquela percepção amedrontadora e paralisante que faz tudo perder o sentido, mas aquele dinamismo purificador que, inclusive supõe dolorosas rupturas, forjou o luzidio Movimento Franciscano.

Desde sua primeira intuição, São Francisco foi construindo sua identidade e apontando elementos que até hoje identificam sua obra. O encontro com o Evangelho, assumido sem tergiversações; a escolha afetiva e efetiva por estar entre os últimos da sociedade e a disposição corajosa de servi-los; a intuição de que a forma mais eloquente de anunciar o Reino de Deus é promover a fraternidade, evidenciam as raízes da vida franciscana e são suas irrenunciáveis referências.

Nós, privilegiados por herança tão fecunda, somos instados a, corajosamente, buscar a construção e atualização da identidade franciscana. Ao nos desafiar dizendo “Eu fiz a minha parte... Que o Cristo vos ensine a vossa”, o próprio Francisco deixa ver que nas respostas construídas por ele há uma sabedoria a ser preservada; concomitantemente, há uma novidade a ser construída. Na busca da redefinição da identidade franciscana, certamente, alguns traços hão de permanecer, outros poderão ou até deverão ser revistos, renovados ou até deixados.

Neste ano, além do oitavo centenário do presépio, somos convidados a recordar a aprovação da Regra Franciscana. Como nos convidou Frei Fidêncio nas Comunicações de janeiro, “a celebração dos 800 anos da Regra Bulada é uma ocasião propícia, um tempo favorável, para ressignificar o próprio da nossa vocação franciscana, isto é, rever, revisitar e revigorar a nossa identidade carismática em vista da missão evangelizadora professada por cada um de nós: Eu possa tender constantemente para a perfeita caridade, ao serviço de Deus, à Igreja e aos homens (CCGG art. 5)”. Eis o tempo oportuno. A graça não nos faltará.

Ano Da Regra De Vida Dos

Frades Menores

Cap Tulo Iii

Uma Espiritualidade Que Perpasse A Vida

O8º Centenário da aprovação da Regra Bulada foi assumido pela Ordem dos Frades Menores como convite à ressignificação de sua própria identidade enquanto fraternidade de homens consagrados a Deus. Como forma de ajudar a corresponder a este convite, este artigo se soma à proposta de lançar luz sobre o texto da Regra em vista da recordação daquilo com que cada Frade Menor se comprometeu buscar e viver por toda sua vida.

Depois de apresentar os fundamentos de nossa Forma de Vida: o Evangelho, os votos e a comunhão eclesial (Cap. 1), e de estabelecer o modo como cada irmão deverá ser recebido “na obediência” da Ordem quando descobrir-se chamado pelo Senhor (Cap. 2), a Regra se volta para a vida de oração e jejum, assim como para o modo como os frades deverão apresentar-se diante das pessoas (Cap. 3). Sem se deter nos detalhes das temáticas abordadas – o que pode ser acessado pela leitura do próprio capítulo da Regra – buscar-se-á dar acento à intenção presumida de São Francisco de Assis e os secretários da Ordem.

A PARTIR DA ORAÇÃO... (vv. 1-5)

O terceiro Capítulo da Regra Bulada, ao falar da oração, determina que os frades rezem a Liturgia das Horas e participem da celebração eucarística, seguindo a prática de toda a Igreja e, para aqueles que não sabem ler, rezem o “ofício dos Pai Nossos”. Além disso, estabelece que cada irmão reze os devidos sufrágios por um confrade falecido.

Não há dúvidas de que São Francisco entendia que o primado da existência pertence a Deus e que este princípio é a base de toda vida que se pretenda religiosa. Caberia ao Frade Menor assumir como seu primeiro “ofício” o zelo pela relação com Deus. Este fundamento, longe de se opor à vida apostólica, deve ser assumido como adoção da dinâmica evangélica de alternância entre a “montanha e a planície”, elevando as necessidades e experiências da vida e da missão à oração enquanto as perpassa e as motiva com a intimidade cultivada com Deus. Sem o cultivo de uma profunda experiência de fé, porque um frade sairia a evangelizar? Sem o cultivo de reais relacionamentos humanos e fraternos, sem a dedicação à ação evangelizadora, o que um frade traria às suas orações? Apenas a si mesmo?

A partir desta perspectiva, tornam-se mais claros os demais princípios da vida de oração do Frade Menor: ao estabelecer um único ofício dentre tantas outras possibilidades, São Francisco queria garantir unidade entre as Fraternidades e a fidelidade/proximidade com a Igreja Romana. Estas intenções permeiam outras escolhas feitas pela Ordem, mas é importante que se ressalte como elas também estão presentes na prática da oração comunitária. Onde quer que um frade esteja, como residente ou visitante, a mesma oração oficial da Igreja será rezada. Ali ele terá a possibilidade de participar da celebração eucarística, fonte da comunhão entre os irmãos. Saberá que, aqueles irmãos que estiverem impossibilitados de rezar comunitariamente, serão recordados e incluídos nas preces dos demais. A oração comunitária é apresentada, deste modo, como forte elo de comunhão e de identidade fraterna do Frade Menor.

A proximidade com a Igreja Romana manifestada na adoção do modo proposto por ela para rezar e celebrar revela-se como elegante modo de fidelidade e unidade com seu Magistério. Mesmo os irmãos iletrados, incomuns em nosso tempo, podem rezar o Pai Nosso, oração ensinada pelo próprio Filho de Deus, conhecida de cor – mente e coração – por todos, e legada como patrimônio espiritual para toda a Igreja. Tal leitura não impede a inculturação, tão estimada e estimulada, especialmente em nossa realidade de América Latina, pelo contrário, oferece importantes balizas para que a criatividade própria do Espírito Santo suscite adaptações que não firam a unidade do único Corpo de Cristo.

Por fim, a lembrança da oração pelos confrades falecidos faz recordar a comunhão dos santos e fortalecer a vivência da unidade da Ordem. Os frades rezam movidos pela gratidão pela vida dos irmãos que os precederam e dos seus esforços consagrados à construção do Reino e a evangelização a partir da Ordem. Confiam-se a sua intercessão para que possam, em seu tempo, continuar a dar passos e oferecer seu contributo à História da Salvação.

Assim, a oração é entendida como meio ou exercício para o cultivo da comunhão e intimidade fraterna e dos irmãos com Deus. Como tal, sempre haverá espaço para a reflexão de como ela tem sido vivida nas Fraternidades, ou com que espírito os irmãos têm celebrado juntos. Se a oração tem ajudado os irmãos a estarem em consonância com Deus e entre si.

...FIRMANDO-SE NO ESSENCIAL DA VIDA... (vv. 6-10)

Já sobre a ascese, o Capítulo estabelece três quaresmas a serem vividas (a da Epifania, do Natal e da Páscoa) sendo que apenas as duas últimas permanecem prescritas pelas Constituições Gerais atuais, além de apresentar as sextas-feiras como dias de jejum para a Ordem.

O próprio texto da Regra, após estas determinações, revela o espírito pretendido por São Francisco nesta dimensão ascética: “em tempo de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal”. Mesmo que sob o olhar de nosso tempo não esteja claro, o texto da Regra já havia reduzido a prática dos jejuns ao mais essencial, o que fica mais evidente quando comparado com outras Regras e Constituições religiosas. São Francisco aproximava a vivência da dimensão ascética por parte dos frades à pratica de todo fiel cristão. E, ainda, a expressão por demais vaga para um texto legislativo “tempo de manifesta necessidade”, confia à maturidade e responsabilidade de cada irmão e Fraternidade esclarecer, caso por caso, quando a necessidade justificaria a amenização do exercício ascético tão próprio da vida religiosa. Assim, evidencia-se o espírito paternal e humano de São Francisco que se sobrepõe ao frio legalismo que poderia limitar a misericórdia.

O modo de São Francisco entender a ascese não desconsidera sua importância enquanto exercício que favorece a busca do essencial da vida e da experiência de fé, entretanto, ele evidencia a consciência de que esta não passa de um recurso para aquilo que é essencial e alerta, ao mesmo tempo, que ela pode ser assumida como falso critério de santidade. O jejum é um exercício proposto pela Igreja e pelos documentos da Ordem, ele é exercício de experiência de ausência, de abnegação de coisas com as quais o frade se acostumou, para recordá-lo d’Aquele a quem quer sempre buscar, mas, por vezes, acaba se esquecendo. O jejum, assim, lança o frade novamente na busca por Deus e, além disso, pode despertá-lo à outra característica tão própria da espiritualidade cristã: a caridade. Pois, o movimento da ascese só é completo quando ele provoca a doação de si e do que se tem ao outro, quando se deixa de buscar apenas a si, para buscar a Deus.

Contemplando tal perspectiva, importa refletir porque a ascese não encontra seu devido espaço na vida cotidiana e prática de fé, colocada muitas vezes sob desconfiança ou entendida como tema desgastado e ultrapassado. Afinal, exercitar-se na abnegação de si em vista da doação do que de melhor se possui a Deus e ao próximo não está no âmago da fé cristã?

A ascese corporal, quando devidamente empregada, é um recurso que pode ser grande auxílio na conversão de todas as energias em direção da razão primeira de sua vida. Porém vale dizer: a ascese é tudo isso, mas apenas isso.

...PARA REVELÁ-LO AO MUNDO (vv. 11-15).

São Francisco entendia que a vida do Frade Menor deve se realizar no mundo, em meio às pessoas que estão no mundo. Concluindo o Capítulo 3 da Regra, ele descreve o modo como esta grande “Fraternidade em missão” deverá se apresentar. O texto afirma: os frades devem ir desarmados de qualquer julgamento, ímpeto de discussão e divisão. Devem ser mansos, pacíficos e humildes e tratar a todos com o devido respeito.

O que está sendo descrito pelas letras da Regra é o espírito de minoridade que deve caracterizar o modo do Frade viver e se relacionar com as pessoas. Espera-se que ele não busque reivindicar a razão, a posse da verdade, ou incitar discussões com o mesquinho intuito de derrotar os outros. Espera-se que ele não assuma a posição de julgamento sobre os outros, postura de quem se sente superior aos demais. Tais atitudes fomentam violência e São Francisco era declaradamente contrário a ela.

A minoridade, ainda, conduz a pessoa à libertação da autorreferencialidade narcisista, tornando-a disponível para estabelecer relações realmente marcadas pelo respeito, amor e paz. Torna o indivíduo manso, pacífico e modesto, como prometeu ao se tornar Frade Menor.

Assim, entende-se que, para São Francisco, o anúncio da paz, marca da evangelização ao modo franciscano, não é restrito a uma teoria retórica, mas se revela como compromisso a ser exercitado pessoalmente pelo frade. Seu modo de se portar diante das pessoas e de se relacionar com cada uma delas deve ser marcado por esta busca existencial.

As demais normativas seguem este lastro da sensibilidade minorítica que impele o frade a tratar cada pessoa com cortesia, para que as relações de paz possam crescer; a se importar com as condições e realidades das pessoas que participam das ações evangelizadoras, de modo que suas escolhas sejam condizentes e coerentes com a minoridade.

A missão dos frades, como se deixa entender, não é apresentada como nenhuma ação específica, mas ela será sempre marcada por uma postura humilde e pacífica diante de todos e assim, e somente assim, o Frade Menor evangelizará e continuará a contribuir com a Igreja sendo fiel ao seu carisma, em qualquer serviço ao qual ele se dedicar. Esta afirmação deve provocar a reflexão pessoal: é com este modo de proceder que cada um tem se relacionado com os irmãos e com o povo em sua vida e missão?

Concluindo

O Capítulo 3 da Regra Bulada, tendo estabelecido o cultivo do espírito de oração e devoção em Fraternidade como a fonte primeira da vivência da forma de vida religiosa franciscana, passou à ampliação do horizonte ao voltar-se para a razão de ser da Ordem: seu modo de ir pelo mundo. A dimensão contemplativa que, quando bem cultivada, revela-se como verdadeira fonte a jorrar a água benfazeja da presença de Deus em toda a sua vida e missão. Estas, fazem orientar este rio de vida por onde o Frade passar, irrigando os projetos evangelizadores e a comunidade a qual pertencer, concedendo evangélico sentido àquilo que prometeu ser e fazer.

CROCOLI, A.; SUSIN, L. C.

A Regra de São Francisco de Assis Vozes: Petrópolis, 2013.

URIBE, F. La Regra de San Francisco: letra y espiritu. Editorial Espigas: Murcia, 2006.

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