ISSN 2358-2685
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA N.4 | 1O SEMESTRE DE 2015
JURÍDICA
LETRAS
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publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva N.4 | 1O SEMESTRE DE 2015 ORGANIZADOR Célio Stigert
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© 2015 Centro Universitário Newton Paiva N.4 | 1O semestre de 2015
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Centro Universitário Newton PAIVA ESCOLA DE DIREITO Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
apresentação É com grande satisfação que apresentamos, novamente, à comunidade acadêmica brasileira nossa Revista Letras Jurídicas. No já distante ano de 2013, em nosso primeiro número da revista, talvez não tivéssemos a devida dimensão do alcance que ela pudesse ter. Hoje, e já na sua 4ª edição podemos dizer que criamos um dos mais importantes periódicos eletrônicos do Brasil. Com a consciência de outrora tivemos o desejo e a ousadia de fazer uma publicação deste tipo, com periodicidade semestral; hoje temos a dádiva de ver o resultado obtido já que nela consagramos nossos melhores trabalhos acadêmicos, no círculo dos Trabalhos de Conclusão de Curso da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. A Revista Letras Jurídicas sem dúvida é um relevante meio de divulgação da identidade científica de nosso corpo discente, considerando que pela moderna via eletrônica a divulgação de nossos trabalhos acaba por nos inserir na plêiade acadêmica nacional, pelo fomento da pesquisa e publicação permanentes. É este então o nosso compromisso: propiciar a qualificação acadêmica de excelência, pautados pelo contexto hodierno e democrático, expandindo as fronteiras de nosso Curso de Direito ao infinito. Célio Stigert Editor
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expediente ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO Presidente do Grupo Splice: Antônio Roberto Beldi Reitor: João Paulo Beldi Vice-Reitora: Juliana Salvador Ferreira Diretor Administrativo e Financeiro: Cláudio Geraldo Amorim Sousa Secretária Geral: Jacqueline Guimarães Ribeiro Coordenador geral da escola de direito: Emerson Luiz de Castro COORDENAÇÃO do curso de direito: Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo e Valéria Edith Carvalho de Oliveira
ORGANIZADOR Célio Stigert
apoio técnico Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton pAIVA http://npa.newtonpaiva.br/npa Editora de Arte e Projeto Gráfico: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG diagramação: Ariane Lopes e Marina Pacheco (estagiárias do curso de Jornalismo)
sumário A Reinserção de EX-DETENTOS no mercado de trabalho: GARANTIA DE INTEGRAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL Eliana Ingrid Lara e Cristian Kiefer da Silva ...........................................................................................................................................................8
O SISTEMA DE REPARTIÇÃO TRIBUTÁRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: A discriminação dentro do sistema de repartição tributária brasileiro Mariana Hubner Villanueva e Tatiana Maria Oliveira Prates Motta ......................................................................................................................14
DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA A PARTIR DA INSEMINAÇÃO HETERÓLOGA Marta Regina Salim Araújo e Valéria Edith Carvalho De Oliveira ........................................................................................................................21
MAUS TRATOS CONTRA ANIMAIS: Crimes e abandono Danilo Santana de Oliveira e Ronaldo Passos Braga .........................................................................................................................................26
UMA ANÁLISE ACERCA DA POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DOS ABONOS DE FÉRIAS CONSTITUCIONAL E CONVENCIONAL Odília Tupy Nogueira e Daniela Lage Mejia Zapata ............................................................................................................................................29
A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Thássyla Martins Athayde Lobato e Bernardo Ribeiro Câmara ..........................................................................................................................38
IR E CSLL – COMPENSAÇÃO INTEGRAL DE PREJUIZO FISCAL E BASE DE CÁLCULO NEGATIVA NA EXTINÇÃO DA PJ Wanessa de Oliveira Souza Leite e Gustavo Henrique Carvalho da Mata .........................................................................................................45
ARQUITETURA CARCERÁRIA E O AMPARO ESTATAL Anny Loures de Castro Santos e Carlos Augusto Teixeira Magalhães ...............................................................................................................51
O DIREITO SUCESSÓRIO DO COMPANHEIRO E DO CÔNJUGE NO DIREITO BRASILEIRO Bernardo Henrique Fernandes e Valéria Edith Carvalho de Oiliveira...................................................................................................................57
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: AVANÇO OU RETROCESSO? Carolina Pereira Junqueira e Cristian Kiefer da Silva.............................................................................................................................................62
TERCEIRIZAÇÃO SEM LIMITE: na contramão do sistema constitucional de proteção social ao trabalhador Denise Ferreira de Oliveira de Souza e Tatiana Bhering Roxo ...........................................................................................................................69
CRIMES CIBERNÉTICOS: Aspectos controversos do artigo 154-A da nova Lei de Crimes Informáticos Fernanda Queiroz Canabrava e Cristian Kiefer da Silva.......................................................................................................................................77
AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: Aspectos e legalidade Frederico Viana Rocha e Ronaldo Passos Braga ...............................................................................................................................................82
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CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO: uma análise sob a perspectiva constitucional Marciana Vicentina de Sales Antunes e Valéria Edith Carvalho de Oliveira .......................................................................................................92
MEDIAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE RESOLUÇÂO DE CONFLITOS FAMILIARES DECORRENTES DA PRÁTICA DE ALIENAÇÃO PARENTAL Marianna Teobaldo Fernandes e Valéria Edith Carvalho de Oiliveira .................................................................................................................101
POTENCIALIDADES DO TESTAMENTO VITAL: promoção da autonomia pessoal Rômulo Garzon Guimarães e Valéria Edith Carvalho de Oiliveira....................................................................................................................107
PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA NO AGLOMERADO PEDREIRA PRADO LOPES: o policiamento estratégico de combate ao crime promovido pela Polícia Militar de Minas Gerais na região Weslley Jorge Gonçalves e Ludmila Castro Veado Stiger ................................................................................................................................113
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Camilla Nunes Araújo e Eduardo Nepomuceno de Sousa ................................................................................................................................121
A VISÃO EMPRESARIAL DA LEI DE COTAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: Inexistência de Critérios Objetivos para Aplicação das Penalidades. Victória Freire Amorim Ximenes e Tatiana Bhering Serradas Bom de Sousa Roxo ..........................................................................................126
O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A APLICABILIDADE DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS - ASPECTOS GERAIS. Virgínia Linhares de Meireles Rocha e Bernardo Ribeiro Câmara ......................................................................................................................133
A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS UNIÕES PARALELA E POLIAFETIVA Bernardo Nogueira, Luiza Helena Messias Soalheiro e Hiadilee Tolotti Grecco ................................................................................................ 140
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A Reinserção de EX-DETENTOS no mercado de trabalho: GARANTIA DE INTEGRAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL Eliana Ingrid Lara1 Cristian Kiefer2 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo identificar as dificuldades do ex- detento no processo de inserção no mercado de trabalho. O encarceramento por si só não contribui para a humanização, não permite ao condenado refletir e rever suas atitudes, esse retorno ao convívio social só é possível quando lhe é dado uma oportunidade de estudar e trabalhar. Um dos grandes desafios de ex- detentos e o de encontrar uma oportunidade no mercado de trabalho, seja por falta de políticas sociais para a implantação de mais programas de reinserção, de profissionalização, de educação ou pelos empresários que tem medo, receio de contratar um ex- detento para sua empresa. PALAVRAS – CHAVE: Reinserção de ex - detentos; egresso; mercado de trabalho. ABSTRACT: The aim of this work is to identify the former prisoner’s difficulties at the process of insertion in labor market. Only the incarceration does not contribute to humanization and does not allow the condemned to reflect and to reconsider his acts, this return to the social life is possible only when is given him an opportunity to study and work. One of the big challenges of former prisoners is finding an opportunity in labor market, either by a lack of social politics for implementation of more reinsertion, professionalization and education programs, or by the businessmen who have fear and misgiving to contract a former prisoner for their company. KEYWORDS: Former prisoner’s; labor market; reinsertion. Sumário: I Contextualização Histórica, I.I Evolução Das Ciências Criminais Do Brasil Colonial À Reforma Do Código Penal De 1940, I.II Os Sistemas Penitenciários, I.III O Sistema Prisional Brasileiro, II Os Direitos Do Preso E A Constituição Federal De 1988, II.I Os Direitos Humanos E O Preso , II.I.I O Direito À Dignidade Humana, II.II Os Direitos Sociais E O Preso, II.II.I O Direito À Educação. II.II.II O Direito Ao Trabalho, III A Administração Pública E A Ressocialização: Esperança De Um Tratamento Mais Justo, III.I A Necessidade De Políticas Públicas Efetivas, III.II A Realidade Numérica Revelando Fatos, IV A Reinserção De Ex-Detentos No Mercado De Trabalho, IV.I O Sistema Prisional Brasileiro E A Falência Na Proposta De Reinserção Social Do Apenado, IV.II Socialização E Ressocialização, IV.III Programas De Incentivo A Volta Do Egresso A Sociedade, IV.IV Uma Solução Para A Ressocialização, IV.V Resultados Da Pesquisa De Campo E Sugestões Pertinentes, V Conclusão, Referências.
rio e militar. Em 31 de dezembro de 1940 é publicado o novo Código Penal “Código é caracterizado segundo Shecaira e Corrêa Junior” pelo “tecnicismo jurídico e pelo desprezo à criminologia” (SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, 2002, p. 43). Apesar da criação em 1940, o atual Código só entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1942, o Código teve origem em projeto de José de Alcântara Machado, a interpretação do Código Penal à luz da Constituição Federal revela os seguintes princípios basilares: a legalidade, devido processo legal, culpabilidade, lesividade, proporcionalidade, individualização, humanização e valor social da pena, subsidiariedade, fragmentariedade. Enfim, a lei penal brasileira é uma barreira de defesa do indivíduo em face do poder punitivo do Estado. A substituição do Código Penal foi tentada pelo Decreto-lei n° 1.004, de 21 de outubro de 1969, mas as críticas foram tão grandes que foi ele modificado substancialmente pela Lei n° 6.016, de 31 de dezembro de 1973. Apesar de vários adiamentos para o começo de sua vigência foi revogado pela Lei n° 6.578, de 11 de outubro de 1978. Após o fracasso de uma grande revisão no sistema penal, em 27 de novembro de 1980 foi instituída uma comissão para a elaboração de um anteprojeto de lei de reforma da Parte Geral do Código Penal de 1940. Esta comissão foi presidida por Francisco de Assis Toledo e tinha como integrantes: Miguel Reale Júnior, Francisco Serrano Neves, dos debates da comissão e alterações legislativas a Lei n° 7.209, de 11 de julho de 1984, fez as alterações da Parte Geral, passando a viger seis meses após a data da publicação.
I - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA I.I - EVOLUÇÃO DAS CIÊNCIAS CRIMINAIS DO BRASIL COLONIAL À REFORMA DO CÓDIGO PENAL DE 1940 O nosso primeiro Código Penal surgiu no período do Brasil colonial, em 1.603, chamado Código Filipino. Nas Ordenações Filipinas orientava-se no sentido de generalizada criminalização e de severas punições, predominando a pena de morte, dentre outras, as penas vis (açoite, corte de membro, galés, mutilações, etc.); degredo; multa; e a pena-crime arbitrária, que ficava a critério do julgador, já que inexistia o princípio da legalidade. A preocupação de conter os maus pelo terror vinculava-se ao delito, que era confundido com pecado ou vício. Consagravam-se amplamente nas Ordenações a desigualdade de classes perante o crime, devendo o juiz aplicar a pena segundo a gravidade do caso e a qualidade da pessoa, por isso, em regra, os nobres eram punidos com multa e aos peões eram reservados os castigos mais severos e humilhantes. (GRECO, 2005, página 3). No período imperial que teve seu inicio em 1822, quando o Brasil conquistou sua independência de Portugal, não foram revogadas de imediato, pois iria se aguardar a elaboração de um novo código. Em 1824 foi outorgada a primeira constituição. Esta trazia garantias a liberdades públicas e dos direitos individuais. O novo diploma legal previu a necessidade de um código criminal, que deveria ter pilares fundados na justiça e equidade. Em 1937 com a entrada do Estado Novo, as mudanças na área política influenciaram a lei penal. A Constituição Federal é outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, sob o prisma do poder autoritá-
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I.II - OS SISTEMAS PENITENCIÁRIOS
O Direito Penal, até o século XVIII, era marcado por penas cruéis e desumanas, não havendo até então a privação de liberdade como forma de pena, mas sim como custódia, garantia de que o acusado não iria fugir e para a produção de provas por meio da tortura o que era uma forma legítima, até então, o encarceramento era um meio, não era o fim da punição. Foi apenas no século XVIII que a pena privativa de liberdade passou a fazer parte do rol de punições do Direito Penal, com o gradual banimento das penas cruéis e desumanas, a pena de prisão passa a exercer um papel de punição de fato, é tratada como a humanização das penas. Segundo Foucault “o modo de acabar com as punições imprevisíveis e ineficientes do soberano sobre o condenado, os reformistas concluem que o poder de julgar e punir deve ser melhor distribuído, deve haver proporcionalidade entre o crime e a punição já que o poder do Estado é tipo de Poder Público”. (FOUCAULT, 2000). No final do século XVIII e início do século XIX surge na Filadélfia os primeiros presídios que seguiam o sistema celular, ou sistema da Filadélfia como também é conhecido, era um sistema de reclusão total, no qual o preso ficava isolado do mundo externo e dos outros presos em sua cela, que além de repouso servia para trabalho e exercícios. Em 1820, outro sistema surge nos Estados Unidos, conhecido como “Sistema Auburn” ou “Sistema de Nova Iorque”, continha certa similaridade com o sistema da Filadélfia, a reclusão e o isolamento absoluto, mas neste novo sistema esta reclusão era apenas durante o período noturno. Já durante o dia as refeições e o trabalho eram coletivos, mas impunha-se regra de silêncio, os presos não podiam se comunicar ou mesmo trocar olhares, a vigilância era absoluta. Surge então o novo sistema irlandês, com uma quarta fase, antes da “liberdade condicional”, na qual o preso trabalhava em um ambiente aberto sem as restrições que um regime fechado compreende. Após esse período, vários outros sistemas de prisão foram surgindo, como o Sistema de Montesinos na Espanha que tinha trabalho remunerado, e previa um caráter regenerador na pena. Na Suíça criam um novo tipo de estabelecimento penitenciário, em que os presos ficavam na zona rural, trabalhavam ao ar livre, eram remunerados e a vigilância era menor. Assim então surge o sistema prisional. I.III - O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO
O sistema prisional brasileiro reflete uma realidade social, e não se trata de falarmos em um modo fácil e mediano de que a pobreza e a carência facilitam, estimulam e propiciam o indivíduo ao crime, ou ainda, que levem os mais necessitados a violência e ao encarceramento. O Sistema Prisional surge como uma realidade mais viva e próxima de uma parte da população carente do Brasil, uma parte desfavorecida de educação e oportunidades e que acaba engressando no mundo do crime. As prisões brasileiras se transformaram em um amontoado de pessoas sem expectativas de uma ressocialização. São indivíduos ignorados pela sociedade, guardados e esquecidos, por vezes nem lembramos que ali existem indivíduos que estão pagando pelo crime que cometeram nas prisões que em muitos casos mais se aproximam de masmorras da idade média. Acreditar simplesmente que esses indivíduos não existem, que essa população carcerária é somente um dado estatístico e distante da nossa realidade é ingenuidade e varrer a sujeira para debaixo do tapete, pois eles existem, são uma realidade para toda a sociedade e não só para o Estado. Na atual realidade, deixar o sistema penitenciário apos ter cumprido sua dívida para com a sociedade e tentar nela se reinserir é, por
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vezes, o maior desafio do egresso e que por vezes acaba voltando para a prisão novamente. Mais certo é que a falta de apoio e suporte adequado do Governo e a pouca informação da sociedade em aceitar esse indivíduo e ressocializá-lo como quem já cumpriu sua pena, o empurre novamente para uma vida de incertezas e criminalidade. Temos projetos por parte dos Estados, mas nem todos funcionam, e a população desconhece. Minas atualmente é um dos Estados que está mais avançado em termos da tentativa de ressocialização do preso, os presídios estão lotados, mas em termos dos direitos o preso está bem assistido. Eles têm assistência médica, odontológica, jurídica, religiosa, eles tem aulas de profissionalização estamos longe de um modelo perfeito, mas o caminho é trabalharem juntos, Estado e Sociedade. II - OS DIREITOS DO PRESO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 II.I - OS DIREITOS HUMANOS E O PRESO Os direitos dos presos (e das presas) estão indicados na Constituição Federal e na Lei de Execuções Penais, lei que trata do direito dos presos e de sua integração à sociedade. A Constituição em seu artigo 5º XLIX, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral, e a Lei de Execuções Penais determina que o Estado tenha obrigação e deverá prestar ao preso: I – Assistência Material: fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas; II - Assistência Saúde: atendimento médico, farmacêutico e odontológico, tanto preventivo, quanto curativo; III - Assistência Jurídica: destinada àqueles que não possuem recursos para contratar um advo-gado; IV - Assistência Educacional: o ensino do primeiro grau é obrigatório e é recomendada a existên-cia de ensino profissional e a presença de bibliotecas nas unidades prisionais. V - Assistência Social: deve amparar o preso conhecendo seus exames, acompanhando e auxili-ando em seus problemas, promovendo sua recreação, providenciando a obtenção de documen-tos e amparando a família do preso. A assistência social também deve preparar o preso para o retorno à liberdade VI - Assistência Religiosa: os presos devem ter liberdade de culto e os estabelecimentos deverão ter locais apropriados para as manifestações religiosas. No entanto, nenhum interno será obriga-do a participar de nenhuma atividade religiosa. VII - Assistência ao egresso: orientação para reintegração em sociedade, concessão (quando necessário) de alojamento e alimentação por um prazo de dois meses e auxílio para a obtenção de um trabalho. (LEI DE EXECUÇÃO PENAL Nº 7.210, 11 DE JULHO DE 1984) II.I.I - O DIREITO À DIGNIDADE HUMANA
A dignidade da pessoa humana consolida-se no artigo 1º, III da Constituição da República como um dos fundamentos do Brasil e do Estado Democrático de Direito, deixando claro em seu preâmbulo a centralidade do ordenamento jurídico brasileiro na pessoa humana, valor essencial perante os seguintes termos: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
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controvérsias, promu lgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (ARTIGO 1º DA CONSTITUIÇÃO DE 1988). A dignidade da pessoa humana trazida pela Constituição é princípio, fundamento e objetivo do Estado brasileiro. É o valor supremo sobre o qual se edifica a sociedade. O princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que relativizado, possui um núcleo essencial que deve ser preservado, impondo limites à própria atuação estatal. O preso somente perde o seu direito a liberdade, entretanto em nenhum momento o mesmo perde a sua condição humana, esse direito é nato de todo brasileiro. II.II - OS DIREITOS SOCIAIS E O PRESO II.II.I - O Direito À Educação
O Direito à educação é uma garantia constitucional, que é reconhecida a todas as pessoas indistintamente, sendo consagrado como direito universal do homem e norteado pelos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana. Todo preso tem direito a alfabetização, a instrução escolar e formação técnica essas são elementos mínimos necessários para que a reintegração do preso em sociedade seja bem sucedida. Por esta razão a Lei de Execução Penal, lei nº 7210 de 11 de julho de 1984, prevê: - Ensino fundamental obrigatório; - Oferecimento de ensino profissionalizante em nível de iniciação ou aperfeiçoamento; - Cursos especializados oferecidos em convênio com entidades públicas ou particulares; - Existência de biblioteca em todo estabelecimento prisional; - Aqueles que cumprem pena em regime semi-aberto, apresentam bom comportamento e já cumpriram 1/6 da pena, nos casos de réus primários e, 1/4 nos casos de reincidentes têm direito a pleitear uma autorização para frequentar curso profissionalizante, 2º grau ou ensino superior fora da prisão, desde que estes locais estejam localizados na mesma comarca em que o preso se encontra. (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, LEI Nº 7210 DE 11 DE JULHO DE 1984). II.II.I.I - O DIREITO AO TRABALHO
O direito ao trabalho é um dos elementos fundamentais para garantir a dignidade do ser humano, quando uma pessoa é presa, ela não perde este direito, na verdade, de acordo com a Lei de Execuções Penais, o trabalho é tanto um direito quanto um dever daqueles que foram condenados e se encontram nos estabelecimentos prisionais. O objetivo do trabalho destinado aos presos não é aplicar uma segunda punição àquele que já tem a liberdade cerceada, mas, pelo contrário, reabilitar e ressocializar o preso, auxiliando sua recuperação e preparando-o para a reinserção na vida em sociedade por meio do mercado de trabalho. O preso trabalhador não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e, por esta razão, não tem direito à férias, 13º salários, etc. Os presos têm uma cartilha onde encontra os direitos e deveres e nos direitos temos bem claro o direito de ter um trabalho adequado como vemos a seguir: São direitos do preso trabalhador: - realização de atividades seguras e em condições de higiene; - remuneração não inferior a três quartos do salário mínimo (o salário tem como finalidade reparar o dano provocado pelo crime que levou à prisão, prestar assistência à família do preso, ressarcir despesas do Estado e o restante deverá ser de-
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positado em poupança, a qual o preso terá acesso quando em liberdade); - previdência social - trabalho adequado às aptidões e capacidade de cada um (incluindo idosos e deficientes físicos); - jornada de trabalho não inferior a 6 horas nem superior a 8 horas; - descanso nos domingos e feriados; - remissão de 1 (um) dia de pena para cada 3 (três) de trabalho; O preso trabalhador não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e, por esta razão, não tem direito à férias, 13º salários, etc. Tipos de Trabalho: Existem diversos tipos de trabalho que podem ser realizados dentro do estabelecimento prisional: - serviços de manutenção e conservação da instituição, com remuneração garantida pelo Estado, - formação profissional oferecida por empresa pública ou fundação, que arca com a remuneração dos presos; - oficinas de trabalho construídas em convênios com a iniciativa privada, que arca com a remuneração dos presos. (CARTILHA DO PRESO, 2015). Para a realização de trabalhos fora do estabelecimento prisional (trabalho externo) é necessário que o preso tenha cumprido 1/6 da pena, tenha autorização da direção do estabelecimento, aptidão e bom comportamento. Apenas são admitidos trabalhos realizados em obras ou serviços públicos (ainda que prestados por empresa privada), desde que o total de presos trabalhando não seja acima de 10% do total de empregados na obra, e desde que existam proteções contra fugas e indisciplina. A professora Lívia Mendes Moreira Miraglia em seu artigo “O direito do trabalho e a dignidade da pessoa humana” ressalta o seguinte: “Defende que o trabalho é o meio de garantir ao homem acesso a recursos para usufruir de uma vida digna. Assim, o trabalho torna-se o meio de valorar sua condição humana, ou até mesmo resgatar a cidadania, na medida em que possibilita a sua integração na sociedade, o recebimento de remuneração, permitindo-lhe realizar a aquisição de bens, implicando na melhoria de vida da população como um todo” (Miraglia, 2010). III - A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A RESSOCIALIZAÇÃO: ESPERANÇA DE UM TRATAMENTO MAIS JUSTO III.I - A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS EFETIVAS A lei de execuções penais prevê todas as etapas e atendimentos necessários ao processo de recuperação do preso (LEP 7210/84), tudo minuciosamente expresso deste a arquitetura carcerária, a forma de tratamento dos apenados com todos os seus projetos profissionalizantes, atendimentos médicos, espaço reservado para conversa com seu advogado e para o Ministério Público, projetos de atividades físicas para os apenados. Os governos não avançam em políticas públicas de reinserção, pois para a própria sociedade isso não é interessante, e como se os presos não existissem como se fosse um desperdício usar o dinheiro público com os apenados, mas desperdício é deixar como está, pois cada vez mais a volta ao crime é certa. Precisamos mudar esse cenário, e basicamente são ações do Estado em conjunto com a iniciativa privada. Em Minas temos uma parceria entre o setor privado e o governo estadual que garante capacitação e contratação de egressos do sistema penitenciário. Estamos longe de ser modelo, mas o estado Mineiro tem obtido algum avanço. A última parceria foi na reforma do Estádio do Mineirão para a copa do mundo 2014 de acordo com a Lei Estadual 18.725/11, que regu-
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lamenta a contratação de mão de obra carcerária, prevê a reserva, por parte de empresa vencedora de licitação de obra pública, de até 10% das vagas de emprego para detentos, 28 detentos já estavam trabalhando no começo das obras todos os contratados até o momento são do regime semiaberto e cumprem pena na Penitenciária José Maria Alkimin, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Posteriormente, a parceria será estendida a outras unidades prisionais da RMBH. , e tinha uma estimativa de 200 para a fase final das obras. A cada três dias trabalhados, os presos têm direito a reduzir um dia da sentença, além de receberem salário mínimo. De acordo com o secretário de Defesa Social, Lafayette Andrada, a iniciativa é mais uma prova de como o Estado está investindo na humanização e ressocialização em seu sistema prisional. Precisamos de mais iniciativas dessas em todos os Estados para melhoramos a população carcerária brasileira. III.II - A REALIDADE NUMÉRICA REVELANDO FATOS
A população carcerária brasileira compõe se de 93,4% de homens e 6,6% de mulheres. Em geral, são de jovens com idade entre 18 e 29 anos, afrodescendente, com baixa escolaridade, sem profissão definida, baixa renda, muitos filhos e mãe solteira (no caso das mulheres). Em geral, praticam mais crimes contra o patrimônio (70%) e tráfico de entorpecentes (22%). Em uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça em Brasília/ DF em junho de 2014 revelou: - População no sistema prisional = 563.526 presos. - Capacidade do Sistema = 357.219 vagas. - Déficit de vagas = 206.307. - Presos em prisão domiciliar no Brasil = 147.937. - Total de pessoas presas = 711.463 presos. A alta taxa de reincidência criminal se situa em torno de 70%, é preciso uma reeducação um aprimoramento humano e profissional, pois quando voltam ao convívio social, geralmente se enveredam novamente no crime. A falta de qualificação acaba empurrando o ex-detento novamente para o crime, políticas públicas e uma maior interatividade com a sociedade é o melhor caminho para o preso poder retornar ao convívio social. Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça. IV - A REINSERÇÃO DE EX-DETENTOS NO MERCADO DE TRABALHO: IV.I - O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A FALÊNCIA NA PROPOSTA DE REINSERÇÃO SOCIAL DO APENADO O sistema prisional no Brasil está falido. A precariedade e as condições sub-humanas que os detentos vivem hoje são de muita violência. Os presídios se tornaram masmorras medievais, onde a superlotação acarreta violência sexual entre presos, faz com que doenças graves se proliferem, o mais forte, subordina o mais fraco. O artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal, prevê: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (ARTIGO 5º, XLIX, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988). Só que o Estado não garante a execução da lei. Mudanças neste sistema se fazem urgentes, pois as penitenciárias se transformaram em masmorras muros de pedras gigantes, que proporcionam mais revolta. A Juíza de Direito do Estado de Minas Gerais Ana Régia Santos Chagas acredita na reforma da lei de execução penal e relata a sua opinião: “O Estado deveria atuar nas unidades prisionais com medidas preventivas e educacionais, para melhorar de forma efe-
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tiva o panorama do sistema prisional, investindo, por exemplo, na construção de novas Unidades da Associação de Proteção e Apoio aos Condenados (APAC), para implementação do método que garanta o cumprimento humanizado da pena e a ressocialização do condenado” (ANA RÉGIA, 2014). Ocorre a necessidade urgente de modernização da arquitetura penitenciária, a sua descentralização com a construção de novas cadeias pelos municípios, ampla assistência jurídica, melhoria de assistência médica, psicológica e social, ampliação dos projetos visando o trabalho do preso e a ocupação, separação entre presos primários e reincidentes, acompanhamento na sua reintegração à vida social. A superlotação é inevitável, pois além da falta de novos estabelecimentos, muitos ali se encontram já com penas cumpridas e são esquecidos. IV.II - SOCIALIZAÇÃO E RESSOCIALIZAÇÃO Vamos iniciar com os conceitos de Socialização e Ressocialização, conceitos básicos do dicionário: A socialização pode ser definida como o processo de aprendizagem e interiorização de normas e valores, característicos de determinado meio social, do qual os indivíduos e os grupos são alvo, tendo assim como objetivo a integração do indivíduo na sociedade. Ressocialização: reintegrar uma pessoa novamente ao convívio social por meio de políticas humanisticas. tornar-se sociavel aquele que desviou por meio de condutas reprováveis pela sociedade e/ou normas positivadas. As duas caminham juntas, pois primeiro precisamos socializar para viver em sociedade, perdendo esse direito de conviver em sociedade precisamos novamente aprender a ressocializar para conviver novamente em sociedade e com o conjunto de normas e regras inerente desse direito. A ressocialização é vista como uma possibilidade para o apenado ter condições de se reerguer, e ao voltar à sociedade não cometa novos crimes. A repetição do erro cometido é a maior prova da deficiência do sistema e de que precisamos de mudanças, é possível perceber que as medidas tomadas não estão sendo suficientes para que haja diminuição nos índices de criminalidade. A LEP em seu artigo 10 menciona que: “Art. 10: A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Parágrafo único: “A assistência estende-se ao egresso.” (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, LEI Nº 7210 DE 11 DE JULHO DE 1984). Com os problemas que o egresso enfrenta para voltar a um convívio social digno, a repetição na prática dos crimes acontece com frequência, é necessário que haja maiores investimentos na assistência ao egresso e uma melhoria na sua reinserção na vida social, o Estado sozinho não está dando conta, mas se tivermos mais iniciativas para parcerias privadas, o caminho a solução ainda é a educação. IV.III - PROGRAMAS DE INCENTIVO A VOLTA DO EGRESSO A SOCIEDADE O Projeto Começar de Novo foi instituído por meio da Resolução 96 do Conselho Nacional de Justiça, integra o Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça, regulamentado pela Resolução 633/2010. O Projeto Começar de Novo compõe-se de um conjunto de ações voltadas à sensibilização de órgãos públicos e da sociedade civil com o propósito de coordenar, em âmbito nacional, as propostas de trabalho e de cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário, de modo a concretizar ações de cidadania e promover redução da reincidência.
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O Programa comporta as seguintes iniciativas: Realizar campanha de mobilização para a criação de uma rede de cidadania em favor da ressocialização; Estabelecer parcerias com associações de classe patronais, organizações civis e gestores públicos, para apoiar as ações de reinserção; Implementar iniciativas que propiciem o fortalecimento dos Conselhos da Comunidade, para o cumprimento de sua principal atribuição legal – reintegração social da pessoa encarcerada ou submetida a medidas e penas alternativas. Integrar os serviços sociais nos Estados para seleção dos beneficiários do projeto; Criar um banco de oportunidades de trabalho e de educação e capacitação profissional; Acompanhar os indicadores e as metas de reinserção. (www. cnj.jus.br) Atribuições: I - Implantar, manter e cumprir as metas do Projeto Começar de Novo; II - Formentar, coordenar e fiscalizar a implementação de projetos de capacitação profissional e de reinserção social de presos, egressos do sistema carcerário, e de cumpridores de medidas e penas alternativas. III - Acompanhar a instalação e o funcionamento, em todos os Estados, dos Patronatos e dos Conselhos da Comunidade de que tratam os arts. 78 79 e 80 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, em conjunto com o juiz da execução penal, relatando à Corregedoria Geral de Justiça, a cada três meses, no mínimo, suas atividades e carências, e propondo medidas necessárias ao seu aprimoramento. (www.cnj. jus.br, 2015). Temos outro projeto que é muito interessante é uma iniciativa privada são as APACs: APACs - Associação de Proteção e Assistência ao Condenado são inspiração do Advogado e Professor paulista Mário Ottoboni – tratando-se de uma Pessoa Jurídica de Direito Privado que administra Centros de Reintegração Social de presos. A metodologia ganhou força através da aplicação de seus 12 elementos: 1) Participação da comunidade; 2) Recuperando ajudando o recuperando; 3) Trabalho; 4) Religião; 5) Assistência jurídica; 6) Assistência à saúde; 7) Valorização humana; 8) A família; 9) O voluntário e sua formação; 10) Centro de Reintegração Social – CRS; 11) Mérito; 12) Jornada de libertação com Cristo. (www.cnj.jus.br, 2015). O Programa Novos Rumos na Execução Penal foi criado no ano de 2001 pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), buscando a humanização no cumprimento das penas privativas de liberdade mediante a aplicação do método APAC. A metodologia foi disseminada em diversas comarcas desde a implantação do Programa Novos Rumos, e atualmente dezenas de unidades APAC são mantidas por convênio pelo Estado de Minas Gerais. Desde 2006, o Estado de Minas Gerais tem dedicado recursos para construção dos Centros de Reintegração Social das APACs recomendadas pelo Tribunal de Justiça. Segundo a Secretaria de Estado
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de Defesa Social, uma vaga nos estabelecimentos construídos para abrigar os presos (recuperandos) de APAC tem custado 1/3 (um terço) do valor da vaga de uma penitenciária dedicada ao sistema comum. Estima-se que a reincidência entre os egressos das unidades APAC gira em torno de 15% (quinze por cento) enquanto que os oriundos do sistema comum alcançam o percentual de 70% (setenta por cento). O Programa Novos Rumos na Execução Penal foi criado no ano de 2001 pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), buscando a humanização no cumprimento das penas privativas de liberdade mediante a aplicação do método APAC. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais). IV.IV - UMA SOLUÇÃO PARA A RESSOCIALIZAÇÃO A melhor solução para a ressocialização é a educação, ou melhor, a reeducação do apenado, os programas profissionalizantes, a oportunidade de uma volta à sociedade depois de ter cumprido sua pena. Cumprido a pena de uma maneira justa como a lei determina assim adquirindo o direito de regressar a sociedade e ter todos os seus direitos novamente. Esse é o maior desafio do egresso ser aceito novamente pela sociedade, fazer com que todos o olhem novamente como um individuo que errou e pagou na forma da lei pelo crime cometido e estar apto ao convívio social novamente. Recebemos na Newton Paiva na nossa IV Semana Jurídica o coral da APAC- unidade de Nova Lima, evidente o talento dos 12 apenados que estão agarrando a oportunidade que tiveram de se restabelecer, seis deles voltaram a estudar estão empenhados em cumprir a pena e voltar novamente ao convívio com todos. Emocionante o depoimento de um deles contando como foi a primeira vez que disseram a ele que iriam cantar fora da APAC o medo de ver outras pessoas, o receio à falta de confiança até mesmo em si mesmo se voltaria com eles ou se tentaria fugir, mas o apoio e a confiança que recebe na APAC o fizeram voltar e se ressocializar de uma maneira correta e dentro da lei, frisando cada vez mais que o caminho é a educação, a profissionalização dos apenados. Necessitamos de mais politicas públicas voltadas para criação de mais APACs em outros Estados e que os mesmos ajudem e incentivem esses projetos. IV.V - RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO E SUGESTÕES PERTINENTES Todo ex- detento após cumprir sua pena enfrenta a realidade que acompanha a volta ao mercado de trabalho a maioria não está preparada para esse retorno, e a falta de oportunidades reserva basicamente uma única opção ao ex-detento voltar a infringir a lei. Há um preconceito de toda a sociedade. Isso tudo, sem dúvida, torna muito pouco provável a reabilitação. Em uma pesquisa de campo conversei com o Agente de Segurança Penitenciário Paulo Sérgio de Freitas do Presídio de Vespasiano/ Minas Gerais que me relatou a sua experiência, pois já está a 6 anos trabalhando no sistema penitenciario em um contato direto com os presos, e relata o seguinte: “acredito em uma maior participação do Estado para acompanhar melhor o apenado após a sua liberação do sistema penitenciário, pois é nesse momento que o egresso mais necessita de apoio para que não reincinda e volte a ser preso novamente”. (PAULO SÉRGIO, 2015) O sistema em Minas não é modelo, mas tem muitos programas de atividades profissionalizantes e parcerias com empresas privadas para o preso, o mesmo tem assessoria médica, odontologica, jurídica e até religiosa. Todavia, é preciso oferecer perspectiva de futuro ao preso, caso contrário, as penitenciárias vão seguir lotadas de reincidentes. Dar
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um tratamento digno ao preso, propiciando-lhe trabalho e educação, além da inserção no mercado de trabalho, é uma forma de combater o crime. Por isso, as empresas e o governo precisam incentivar a criação de oportunidades de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário, de modo a concretizar ações de cidadania, promover a ressocialização e conseqüente redução da reincidência. V - CONCLUSÃO Conclui nesse presente trabalho a carência do Estado para solucionar o problema da reinserção do egresso no mercado de trabalho, o caminho viável é a educação e a parceria do Estado com a Sociedade, precisamos voltar os olhares para além dos muros de uma penitenciária. Não podemos pegar um problema trancar e esquecer, cometeram um erro e após cumprir a pena precisam voltar ao convívio, e nesse momento que o Estado ainda devia acompanhar o egresso, não podemos só pensar em beneficio enquanto preso devemos ter solução para a volta dele a sociedade. Temos programas de incentivo privado junto com o Estado que estão tendo bons resultados, é necessário mais programas assim, pois a população carcerária vem aumentando. A educação é a solução para tudo até para prevenir que essa população aumente a cada dia e que tenhamos a reincidência, sem oportunidade de emprego e enfrentando o preconceito e convivendo todos os dias com desigualdade o egresso acaba voltando novamente para o crime. Que possamos olhar para o egresso como um cidadão que errou, cumpriu sua pena justa de acordo com a lei com seus direitos e deveres, e que após terá seu direito a liberdade e ao convívio com a sociedade restabelecido e tendo direito e deveres novamente, a vida é feita de direitos e deveres e deles não podemos fugir, pois a todo canto do mundo se tem normas e deveres a se cumprir. Meu direito termina aonde começa o direito do próximo, talvez falte uma disciplina nas escolas infantis de direito e deveres quem sabe assim podemos começar a pensar em construir menos presídios. “A Maneira da Sociedade se defender da reincidência é acolher o condenado, não mais como autor de um delito, mas na sua condição inafastável de pessoa humana.” Miguel Reale Júnior.
“Tribunal de Justiça de Minas Gerais” Projeto Começar de novo e APACs. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/portal/acoes-e-programas/novos-rumos/> acesso nos meses de março, abril, maio. Júnior, Miguel Reale, Novos Rumos do Sistema Criminal. Página 88. Freitas, Paulo Sérgio Emiliano- Agente de Segurança Penitenciário- Presídio de Vespasiano. Entrevista no dia 18 de abril de 2015. Shecaria, Sérgio Salomão; Correa Junior, Alceu. Teoria da pena – Finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Editora Revistados Tribunais, 2002. Pág. 43.
NOTAS DE FIM 1 Autora Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Orientador Professor Cristian Kiefer da Silva.
REFERÊNCIAS Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. LEP- Lei de Execução Penal nº7210 de 11 de julho de 1984. “Direito do preso ao trabalho” Disponível em: < http://www.guiadedireitos.org/ index.php?option=com_content&view=article&id=950&Itemid=203 > acesso em 20 de março. 2015. Miraglia, Lívia Mendes Moreira, O Direito do Trabalho e a Dignidade da Pessoa Humana - Pela necessidade de afirmação do Trabalho digno como Direito Fundamental / o trabalho foi publicado nos anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza- CE nos dias 09, 10,11 e 12 de junho de 2010. “Socialização” Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Socializa%C3%A7%C3%A3>acesso nos dias 11 março, 24 abril. 2015. Foucault, Michel. Vigiar e Punir. 22.ed. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de janeiro, vozes, 2000. CNJ- Conselho Nacional de Justiça- Cartilha da pessoa presa e Cartilha do Empregador. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-pena>acesso nos meses março, abril, maio. Pesquisa da população carcerária atual no Brasil Disponível<http://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/noticias/129733348/cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira> acesso em 20 abril 2015.
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O SISTEMA DE REPARTIÇÃO TRIBUTÁRIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: A discriminação dentro do sistema de repartição tributária brasileiro Mariana Hubner Villanueva1 Tatiana Maria Oliveira Prates Motta2 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o sistema de repartição das receitas tributárias diretas e indiretas no ordenamento jurídico brasileiro. Além dos repasses, questionam-se os benefícios da Zona Franca de Manaus em sua essência. O sistema atual é realmente efetivo, no sentido de propiciar o real desenvolvimento dos Estados, ou se esses passaram a depender dos valores apenas para arcar com as suas despesas. Resta claro que, face a crise atual, é essencial analisar a viabilidade e a necessidade de tais repasses para os estados. PALAVRAS-CHAVE: Repartição Tributária; Zona Franca de Manaus; Fundos de Participação; Reforma Tributária. ABSTRACT: This study aims to analyze the distribution system of direct and indirect tax revenues in the Brazilian legal system. The current system is really effective, in order to provide the actual development of the States, or if these come to depend on the values just to afford their expenses. In addition to lending, it is necessary to question the benefits of the Manaus Free Zone in their essence. It’s clear that, given the current crisis, it is essential to analyze the viability and the need for such transfers and their proportions to the states. KEY-WORDS: Tax Partition; Manaus Free Trade Zone; Participation Funds; Tributary Reform. SUMÁRIO: I Introdução; II Apontamentos Sobre O Federalismo Participativo Nas Constituições Pátrias; II.I As Constituições Prévias; II.II O Estado e a Tributação; II.III O Direito Tributário na Constituição de 1988; III A Constituição Da República De 1988; III.I Federalismo Participativo; III.II Repartição Tributária; IV Crítica aos Entraves Tributários; V Conclusão; Referências.
I - INTRODUÇÃO Analisar o sistema de repartição tributária é essencial nos dias de hoje, é necessário questionar até que ponto vivemos um federalismo participativo e não paternalista. As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste tornaram-se dependentes dos valores repassados, o que hodiernamente representa um óbice ao real desenvolvimento dessas regiões O maior exemplo disso é a Zona Franca de Manaus, que está em sua quarta prorrogação, foi instituída pelo Decreto-Lei nº 288/1967, então em 1986 teve sua primeira prorrogação, por meio do artigo 1º do Decreto 92.560, prorrogando por mais 10 anos o prazo estipulado até 1997, porém, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, alterou-se novamente o prazo, por meio do artigo 40 do ADCT, prorrogando os incentivos fiscais por mais 25 anos (perdurando até 2014); A terceira prorrogação se deu no ano de 2013 pela Emenda Constitucional nº 42/03, que modificou o artigo 42 do ADCT estendendo os incentivos fiscais por mais 10 anos (até 2023); Por fim, a Emenda Constitucional 83/2014 criou o artigo 92-A no ADCT da Constituição Federal, que acrescenta 50 anos ao prazo fixado, alterando o prazo final de 2023 para 2073. É essencial notar que algo que deveria ser temporário, tem sua permanência por tempo indefinido. É essencial a percepção de que quaisquer propostas feitas ao longo da exposição deste trabalho decorrem completamente do campo teórico, fazendo com que seja necessário não só o refinamento como também a sujeição a teses e projeções para verificar se são eficazes e plausíveis. Para tanto utiliza-se de exegese nas searas dos ramos do direito financeiro, tributário e constitucional. Sem de nenhuma maneira com a pretensão de esgotar tais assuntos.
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II - APONTAMENTOS SOBRE O FEDERALISMO PARTICIPATIVO NAS CONSTITUIÇÕES PÁTRIAS. II.I - As Constituições prévias A Federação Brasileira surgiu com o decreto n.1, de 15 de novembro de 1889, definitivamente implantada com a Constituição Federal de 1891, que também instituiu a forma republicana de governo. Não há que se falar em repartição tributária sem o federalismo, portanto, somente após a criação do Estado Federativo Brasileiro, com seus respectivos entes (União, Estados e Municípios). Foi então que as rendas tributárias foram discriminadas. Faz-se salutar, a conceituação do instituto do federalismo na ordem constitucional. Entende-se por federalismo a união de Estados organizados, baseada na Constituição, onde os Estados participantes perdem sua soberania ao ingressar na federação, mantendo, contudo, autonomia política limitada. Com maestria balizam o tema MENDES e GONET (2014, p. 806): É correto afirmar que o Estado Federal expressa um modo de ser do Estado (daí se dizer que é uma forma de Estado) em que se divisa uma organização descentralizada, tanto administrativa quanto politicamente, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central e os locais, consagrada na Constituição Federal, em que os Estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão. A primeira Constituição brasileira não trazia nenhuma discriminação do produto da arrecadação expressamente, somente citava em seu artigo 5º que ficava por conta de cada Estado prover para suprir suas necessidades administrativas, restando a União somente
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prestar socorro em eventual calamidade pública, se solicitado. Foi a Constituição de 1934 que ampliou os poderes da União, no texto dos artigos 5º e 6º, desenvolvendo a repartição das receitas tributárias. Foram instituídos os impostos de competência residual, que poderiam ser arrecadados pela União ou pelos Estados, dividindo-se o produto da arrecadação em 30% para a União, 50% para os Estados e 20% para os Municípios originários da receita. Surge também a possibilidade de transferência dos impostos privativos do Estado para os Municípios, sendo o poder de legislar ou somente a apropriação do produto da arrecadação, se o Estado assim determinasse. Também foi na Constituição de 1934 que foi criada a obrigatoriedade do auxílio ao Nordeste, destinando-se, no mínimo, 4% da receita tributária Federal a obras e serviços para combater as secas. A Carta de 1937 retirou essa obrigatoriedade, destinando o produto do imposto de competência residual exclusivamente ao poder tributante. A Constituição de 1946 instituía em seu artigo 198 que deveria ser transferido, no mínimo, 3% da receita Federal para o Nordeste e para a Amazônia, buscando promover obras e serviços de assistência econômica e social e destinava 1% da mesma receita por 20 anos para o plano de aproveitamento das possibilidades econômicas do Rio São Francisco. Em 1964 ocorreu o golpe militar, instituindo a ditadura. A Carta de 1967 concentrava a maioria dos poderes para a União, e, em 1969, com a edição da EC n. 1, foi reproduzido o texto anterior, refletindo, no campo tributário, uma concentração de tributos na esfera da União, como se vê no Capitulo 5 do texto, estabelecendo maior controle dos recursos fiscais. A reação dos Estados e Municípios a redução dos repasses pela União culminou na EC n. 23/1983, que alterou os artigos 18, 23 e 25, elevando os percentuais dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (fundo criado pela EC n.18/1965) fechando brechas legais que permitiam à União a redução de bases que incidiam os percentuais participativos dos Estados e Municípios na receita tributária. II.II - O Estado e a Tributação Mesmo que a centralização do Poder Político e, principalmente, a centralização das rendas tributárias, previamente à Constituição de 1988, direcionassem-nos a um Estado Unitário, na verdade o Brasil é um Estado Federal ou Federação. Ocorre que, no Brasil, independentemente da forma de Estado adotada, trata-se de uma economia capitalista, onde ambos, o Estado e a iniciativa privada, desenvolvem atividades financeiras. O Estado alcança seus objetivos por meio de aportes financeiros necessários e para tal desenvolve atividades para obter, gerenciar e aplicar esses recursos, quer com receitas originárias quer com derivadas. O Estado pode atuar diretamente ou não, seja explorando seu patrimônio em busca de lucro ou ao intervir no setor privado em defesa da coletividade. De um jeito ou de outro, em sua base, o Estado não dispensa os recursos financeiros arrecadados no setor privado ao exercer sua soberania. A tributação é, certamente, o instrumento central da economia capitalista, caso não existisse, seria impossível para o Estado realizar seus fins sociais, sendo o principal objeto contra a estatização da economia já que, no Brasil, a atividade estritamente econômica está entregue a iniciativa privada, salvo casos expressos na Constituição, que visam garantir a segurança nacional ou para satisfazer o interesse coletivo, como exemplifica o art. 173 da CR/88. É essencial, porém, que a carga tributária não seja demasiadamente desproporcional a iniciativa privada desestimulando-a, o que, infelizmente, vem sendo imposto no Brasil.
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O Estado é soberano, representando-se como outras Nações. Internamente, o Estado tem poder para governar os indivíduos que residem ou não em seu território. Sua soberania torna sua vontade superior às vontades individuais. É um princípio inerente à natureza humana, como ilustra HOBBES (1651): Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Como cita HOBBES (1651), a soberania do Estado é algo essencial a sociedade, para que se mantenha a ordem, Hobbes defende que é necessário um poder comum que mantenha a ordem e que paute suas atitudes em direção ao bem comum. O Estado atual assume a terceira hipótese oferecida como capazes de instituir tal poder comum, qual seja, nos entendimentos de HOBBES (1651): A outra é quando os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros. Este último pode ser chamado um Estado Político, ou um Estado por instituição. Assim, normalmente por meio de votação, a população elege seus representantes, que por sua vez, tomaram decisões e instituirão normas para manter a ordem na sociedade, portanto, mesmo quem não votou no representante elegido deve passar a concordar com o decidido por se tratar da minoria. II.III - O Direito Tributário na Constituição de 1988 Ao exercer sua soberania, o Estado exige que os indivíduos forneçam os recursos que lhe são necessários. Para isso o Estado usa do “poder de tributar”, por meio do qual institui tributos, expressando um dos aspectos da soberania estatal. Trata-se de uma relação jurídica e não de poder, embora esteja fundamentada na soberania do Estado. Atualmente admitir a relação tributaria como uma relação de poder não seria razoável, posto que o Estado se preside pela ideia da liberdade, que deve refletir, também, no campo tributário, nesse sentido explica BRITO (2014, p. 27) “Importante, porém, é observar que a relação de tributação não é simples relação de poder como alguns têm pretendido que seja. É relação jurídica, embora o seu fundamento seja a soberania do Estado.” Há uma grande diferença entre “poder de tributar” e “competência tributária”, geralmente quem tem a competência também detém o poder, mas nem sempre isso acontece. Poder é a aptidão para realizar a vontade pelo meio que for necessário, já competência é quem recebe uma atribuição que foi outorgada pelo direito. Os poderes são organizados pelo Estado juridicamente, por meio de sua Constituição, são divididos entre os Entes Federativos, sendo essas as competências tributárias. As competências são atribuídas pela Constituição da República, o que faz parte da própria organização jurídica do Estado, a competência pode ser atribuída somente a pessoas jurídicas de direito público, dotadas de poder legislativo, já que a competência tributária se perfaz através da lei, ainda há que se falar em capacidade tributária que é atribuída pela Constituição ou por lei, a ente estatal que tenha, ou não, poder legislativo. Exercido mediante atos administrativos, como ilustra BARROS (2014, p. 218): Não se confunde com a capacidade tributária ativa. Uma coisa é poder legislar, desenhando o perfil jurídico de um gravame ou
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regulando os expedientes necessários à sua funcionalidade; outra é reunir credenciais para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. O estudo da competência tributária é um momento anterior à existência mesma do tributo, situando-se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado no ensejo do desempenho das competências, quando o legislador elege as pessoas componentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece, no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa. III - A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 III.I - Federalismo Participativo Como instituído pela Constituição vigente, optou-se pelo Estado Federal que não baliza-se, tão só, em uma descentralização administrativa ou financeira, características estas comuns aos institutos dos Estados Unitário e Federal. O grande diferencial entre estes é que, no primeiro, os Estados que ingressam na federação mantêm uma autonomia política limitada, o que não ocorre no Estado Unitário como brilhantemente ilustram DERZI em sua atualização da obra de BALEEIRO (2008, p.586): O Estado federal, como se sabe, não é apenas uma descen-
Por fim, o Distrito Federal tem competência híbrida, cabendo à arrecadação de impostos estaduais e municipais, bem como a COSIP. A competência tributária é taxativa, ou seja, o poder de instituir e cobrar tributos estão divididos entre os entes políticos da Federação, visando garantir a autonomia financeira. A atribuição de competências (legislativas, administrativas e tri-
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tralização administrativa ou financeira, pois tais características também existem no Estado unitário. É mais do que isso. Todo Estado federal é, fundamentalmente, uma descentralização de poder que é a essência do Estado. O Federalismo Cooperativo é uma forma organização e distribuição de competências entre todos os Entes Federativos, desta forma a Constituição brasileira determina quais serão as competências de cada ente que compõe a Federação. Deste modo, compete a União atuar na política externa e relações internacionais (na figura de Nação), cuidar da política de segurança e defesa nacional, cuidar da economia nacional e das finanças do País, emitir a moeda, entre outros. Os Estados, Municípios e Distrito Federal têm sua competência taxativamente determinada pela Constituição da República Vigente. III.II - Repartição Tributária
A República Federativa do Brasil é formada pela a União, 26 Estados, o Distrito Federal e 5.570 Municípios. Insta salientar que a Constituição da República de 1988 atribui, taxativamente, as competências aos entes federados. Nesse diapasão a União, os Estados e os Municípios têm competência privativa para instituir os seguintes tributos:
butárias) entre os entes federados é primordial já que descentraliza o poder político, porém, essa atribuição não reduz as desigualdades econômicas existentes, face a discrepância dos valores arrecadados pelos entes com fincas a suprir essas diferenças que se fez necessária a repartição das receitas tributárias por parte da União. Assim, temos nos termos da repartição tributária pátria:
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Porém, além dos diretos, ainda há que se falar nos repasses indiretos, que serão:
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Os Fundos Participativos foram primordialmente traçados pela Constituição de 1934, em seu artigo 15, §4º, porém, só foram denominados “Fundo de Participação dos Municípios e Fundo de Participação dos Estados” na Constituição de 1969 e têm como objetivo a tentativa de equalizar a economia do país, como ilustra BALEEIRO (2008. P. 586): O objetivo político era não só melhorar a posição das Prefeituras na discriminação das rendas, mas também homogeneizar economicamente o País, de sorte que as regiões mais desenvolvidas do sul contribuíssem para a arrancada econômica das regiões mais atrasadas do Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Em dezembro de 2014 o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n. 84 que altera o repasse de 1% aos municípios do primeiro decêndio Fundo de Participação dos Municípios (mais conhecido como Fundo de Participação do 13º salário), acrescendo-se, a partir de julho de 2015 em 0,5% e em julho de 2016
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mais 0,5%, totalizando o aumento de 1%. Esse aumento, apesar de parecer pequeno, gera um valor significativo, estima-se que no ano de 2015 os 62 municípios do Estado do Amazonas deverão contar com R$ 30,79 milhões e em 2016 o montante de R$ 66,83 milhões em seus cofres, a capital do Estado, Manaus, será a mais beneficiada com o aumento. IV - CRITICA AOS ENTRAVES TRIBUTÁRIOS A Lei 7.827/89 veio regulamentar o artigo 159, I, “c” da CR/88, criando os Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Nordeste (FNE), e do Norte (FNO), buscando contribuir para o desenvolvimento econômico e social de tais regiões pela execução de programas de financiamento dos setores produtivos. Dos 3% destinados as regiões 0,6% cabe ao FNO, 0,6% cabe ao FCO e 1,8% ao FNE. Uma tentativa, inicialmente, louvável para estimular as regiões menos desenvolvidas do país, porém, como mostra a pesquisa realizada pelo Tesouro Nacional:
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Todos os Estados da região Centro Oeste estão na categoria que menos dependem dos repasses do Fundo de Participação dos Estados, onde há de se questionar, se não dependem desse Fundo porque precisam receber subsídios extras para seu desenvolvimento? Insta salientar, como demonstrado no tópico anterior, que a região Norte será a mais beneficiada com o aumento aprovado para o Fundo Participativo do 13º Salário. Mas além desses repasses, é importante relembrar que a região Norte, mais especificamente a Amazônia, tem a Zona Franca de Manaus, onde, em busca do desenvolvimento da área, as indústrias têm incentivos fiscais. Os incentivos são a isenção ou redução do Imposto sobre Importação (II); isenção do Imposto de Exportação (IE); Isenção ou crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); redução de 75% do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ); isenção, crédito ou restituição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); isenção por 10 anos do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), taxa de serviço de limpeza e conservação pública e da taxa de licença de funcionamento. De acordo com a pesquisa realizada por Ricardo Nunes de Miranda pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado, a Zona Franca de Manaus privou, com a isenção do IPI, a arrecadação de R$2,6 bilhões do orçamento de 20 Estados, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e dos Fundos Constitucionais de Investimento em 2010. É um valor superior ao valor do repasse efetuado pela União referente ao art. 159, I, “d”, da CR/88. NUNES (2013, p. 18), ainda ilustra: No tocante ao alto custo da Zona Franca de Manaus (ZFM), é decisivo levar em conta que, para o contribuinte brasileiro, a ZFM custaria, em 2010, cerca de R$ 15,2 bilhões em termos de incentivos e benefícios fiscais. Somente em relação ao Imposto sobre Produto Industrial (IPI), as empresas instaladas na ZFM teriam se beneficiado, em 2010, com a isenção de R$ 8,9 bilhões. Então, deve-se questionar, é realmente vantajoso para a população a Zona Franca de Manaus? Afinal, visava-se o desenvolvimento da área mas, até hoje, o que se vê é uma área que não é bem servida em transporte público ou tem estrutura lógica, o que eleva o valor dos produtos produzidos na região, fazendo com que a isenção oferecida seja em vão. Cabe ressaltar que, nos termos da Lei 13.023/14 estaria prorrogado, pela terceira vez, os subsídios da Zona Franca de Manaus até o dia 31 de dezembro de 2050, porém, a Emenda Constitucional 83/2014 prorroga os subsídios fiscais até 2073, fazendo com que algo que deveria ser temporário, se torne, praticamente, eterno, já que cada vez que o prazo final se aproxima ele acaba por ser prorrogado. Somando-se ao fato que, de acordo com a pesquisa de NUNES (2013, p. 18): Apenas na Região Norte, também é expressiva a concentração de benefícios fiscais na ZFM. Como já foi comentado nesta análise, em relação ao exercício de 2008, o TCU constatou que 54% dos incentivos fiscais destinados ao desenvolvimento regional sob responsabilidade da Sudam foram aplicados em Manaus. Caso tenha se repetido o mesmo processo de concentração em 2010, do total de R$ 3,4 bilhões previstos para a promoção do desenvolvimento regional na Amazônia, a Sudam teria destinado à ZFM o montante de R$ 1,8 bilhão e a todo o imenso espaço da Amazônia fora da ZFM o montante de R$ 1,6 bilhão. Conclui-se, portando, que, além de não trazer benefícios a população local ou nacional, a Zona Franca de Manaus acaba por sugar boa parte dos incentivos fiscais destinados ao desenvolvimento regional do Estado Amazonense.
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V - CONCLUSÃO Não resta senão que o sistema de repartição das receitas tributárias diretas ou indiretas adotados na seara Constitucional visa promover o equilíbrio financeiro adequado entre os entes federados. Porém, resta salutar o questionamento, se na hodierna conjuntura econômica Pátria, são necessários os repasses ou, na realidade, as regiões que recebem subsídios superiores se encontram dependentes de tal repasse. Os objetivos pautados quando da instituição do sistema de repartição tributária, ao que nos parece, quedaram-se uma vez que os entes federados que percebem tais valores para o pagamento de “suas contas” escudaram-se do seu objetivo primevo, qual seja o equilíbrio entre os entes que ilustram o quadro federativo. Tal argumento torna-se imperativo quando deparamo-nos com o modelo aplicado na Zona Franca de Manaus além de não trazer lucro, acaba por privar a arrecadação da Região, engessando o real desenvolvimento. Todavia, como já abordado no presente estudo, os Estados que não recebem esses subsídios vêm se desenvolvendo sem os programas de financiamento e, ainda, desde 2010 conclui-se que os Estado da região Centro-Oeste, que recebem tais subsídios, estão entre os Estados que menos dependem dos repasses efetuados pela União, restando a conclusão que os outros Estados, na verdade, podem se sentir prejudicados pela ausência dessa vantagem para alavancar, ainda mais, seu crescimento. Assim, conclui-se que a retirada brusca dos valores repassados face a repartição tributária levaria o sistema financeiro dos Estados, Municípios e Distrito Federal, entrarem em colapso. O presente modelo de repartição tributária, embora bem intencionado, não reflete a realidade do país, que hoje passa uma crise financeira substancial, se fazendo necessário uma análise profunda de seus prós e contras. Cremos que se faz ideal a restauração do sistema, bem como a reforma tributária, vez que são imperativos norteadores dos pilares de uma economia forte e confiável face aos demais países e, principalmente, a economia interna. REFERENCIAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro/ Luciano Amaro. – 20. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. ANDRADE, Luana de Oliveira. A repartição das receitas tributárias. Artigo Científico. Janeiro/2010. Disponível em: www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/.../luanaandrade.pdf - Acessado em 21/04/2015 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. – 11. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2008. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. – 26. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. P. 218 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 12ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2012. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Constitucionalidade das leis e do poder de tributas na Constituição de 1988/ Sacha Calmon Navarro Coelho. – Belo Horizonte: Del Rey, 1992. HARADA, Kyoshi. Direito financeiro e tributário. 16. ed. – São Paulo: Atlas, 2012. HOBBES, Thomas. Leviatã. – Inglaterra: 1651 Imagem Retirada de: http://direito.folha.uol.com.br/blog/repartio-da-receita-tributria. Acessado em 21/04/2015 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário/ Hugo de Brito Machado. – 35ª ed. rev. atual. e. ampl. São Paulo: Editora Malheiros, 2014.
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MENDES, Gilmar Ferreira, Curso de direito constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. MAZZA, Alexandre. Noções elementares de direito tributário: doutrina e jurisprudência/ Alexandre Mazza. – 2. ed. São Paulo: Ed. Damásio de Jesus, 2009. MIRANDA, Ricardo Nunes de. ZONA FRANCA DE MANAUS: Desafios e Vulnerabilidades. Núcleos de Estudos e Pesquisa do Senado Federal
NOTAS DE FIM 1 2
Aluna graduanda da Escola de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Orientadora Professora Tatiana Maria Oliveira Prates Motta.
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DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA A PARTIR DA INSEMINAÇÃO HETERÓLOGA Marta Regina Salim Araújo1 Valéria Edith Carvalho De Oliveira2 RESUMO: O presente trabalho pontua as discussões a respeito da reprodução humana assistida, no que tange ao direito ao conhecimento da origem genética pelo indivíduo gerado por meio da inseminação artificial heteróloga, quando em conflito com o direito ao sigilo dos doadores do material genético, tendo em vista o anonimato desses. Por não haver lei expressa nesse sentido, o que prevalece é o entendimento doutrinário, que de forma majoritária entende ser possível a quebra do sigilo para a satisfação do direito de personalidade do ser humano gerado por este procedimento. ABSTRACT: This study points to the discussions regarding to assisted human reproduction, regarding to the right to know the genetic origin for the individual generated by heterologous artificial insemination, when in conflict with the right of confidentiality of the donors of the genetic material, due the fact of the anonymity of these. Due the fact that there is no law expressed in this way, what works in fact is the doctrinal understanding, which forms the most of opinions in the meaning that’s possible to disclosure the information about the donors to the satisfaction of human’s right personality generated by this procedure. PALAVRAS-CHAVE: Inseminação Heteróloga; anonimato; origem genética; direito da personalidade. KEYWORDS: Heterologous insemination; anonymity; genetic origin; right of personality. SUMÁRIO: I Introdução; II As formas de concepção artificial e suas implicações jurídicas; II.I. Implicações jurídicas da inseminação artificial; II.II. Implicação jurídica em relação à presunção da filiação; II.III. Direito ao conhecimento da origem genética da pessoa a partir da inseminação artificial heteróloga; II.IV. O princípio da dignidade a pessoa humana como justificativa ao reconhecimento da origem genética; 2.5. A inviolabilidade da privacidade e intimidade do doador; 3. Confronto entre o sigilo do doador do material genético e o reconhecimento da origem genética; 4. Considerações Finais; Referências Bibliográficas.
I - INTRODUÇÃO Com o avanço da ciência, a infertilidade já não é mais um problema, tendo em vista as técnicas de reprodução humana assistida. Dentre as várias técnicas a serem utilizadas pela medicina destaca-se a inseminação artificial homóloga, que é aquela que utiliza o material genético dos próprios cônjuges ou companheiros e a inseminação artificial heteróloga, que é a realizada utilizando o material genético de um terceiro. No tocante à inseminação heteróloga surgem conflitos quanto à possibilidade de violação do sigilo dos doadores de material genético, uma vez que são anônimos, quando colidem com o direito ao reconhecimento da identidade genética do indivíduo que foi gerado pela inseminação heteróloga, tendo em vista que tal direito é personalíssimo e se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos da personalidade. O presente artigo objetiva analisar a possibilidade de identificação do doador apenas para garantir o conhecimento da origem genética do indivíduo gerado por meio de inseminação artificial heteróloga, sem que seja imputado ao doador a paternidade ou maternidade. II - AS FORMAS DE CONCEPÇÃO ARTIFICIAL E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS Com a evolução da espécie humana e com o progresso da ciência, foram desenvolvidas técnicas de reprodução assistida, podendo ser conceituado como a interferência do homem no processo natural de procriação. A inseminação artificial é um método utilizado pela medicina objetivando interferir no processo natural da procriação. No entendimento de Cunha e Ferreira:
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É o conjunto de operações que tem o objetivo de unir, de forma artificial, os gametas femininos e masculinos, dando origem a um ser humano. [...] tem como finalidade auxiliar a fertilização, colocando espermatozoides e óvulos em contato próximo.(CUNHA, FERREIRA, 2012) Esta técnica foi desenvolvida com o propósito de auxiliar as pessoas que não podem ter filhos, conforme dispõe a resolução do Conselho Federal de Medicina de nº 1.957 de 2010: As técnicas de reprodução assistida tem o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. A origem deste procedimento data de 1791, quando foi realizada a primeira experiência de inseminação artificial, por John Hunter, que inseminou o sêmen do marido no útero da mulher, mas não obteve resultados positivos. Posteriormente, em 1799, ocorreu a primeira gravidez resultante de inseminação artificial, utilizando os materiais genéticos dos cônjuges. No Brasil, a utilização da inseminação artificial se iniciou em 1980, quando a primeira criança brasileira, Anna Paula Caldeira, foi gerada por meio da fertilização in vitro (FIV), tendo sido o procedimento realizado pelo Doutor Milton Nakamura. A partir de então, as mulheres inférteis passaram a utilizar esse tipo de fertilização para realizarem o desejo da maternidade. Esta técnica gerou espécies que podem ser classificadas como inseminação homóloga e a inseminação heteróloga. A inseminação homóloga é aquela realizada com o material ge-
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nético dos cônjuges ou companheiros, seja o sêmen ou o óvulo. Segundo Venosa: É a utilizada em situações nas quais, apesar de ambos os cônjuges serem férteis, a fecundação não é possível por meio do ato sexual por várias etiologias (problemas endócrinos, impotência, vaginismo etc). (VENOSA, 2008) Já a inseminação heteróloga é aquela realizada com o material genético de terceiros, ou seja, quando se utiliza o sêmen ou o óvulo de uma pessoa que não é o cônjuge ou o companheiro, sendo essa pessoa anônima. Dessa forma, os cônjuges ou companheiros que não conseguem reproduzir naturalmente, podem recorrer aos bancos de doação para satisfazer o desejo da paternidade ou maternidade. II.I - IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL No entendimento de Sílvio Rodrigues, “filiação é a relação de parentesco, em primeiro grau e em linha reta, ligando uma pessoa àquelas que a geraram ou a receberam como se a tivesse gerado”. (RODRIGUES, 2002) Na mesma linha de raciocínio, Nelson Rosenvald entende que: [...] para que seja vivenciada a experiência da filiação não é necessária a geração biológica do filho. Ou seja, para que se efetive a relação filiatória não é preciso haver a transmissão de carga genética, pois o seu elemento essencial está na vivência e crescimento cotidiano, nessa mencionada busca pela realização e desenvolvimento pessoal. (ROSENVALD, 2014). A Constituição dispõe em seu artigo 227, parágrafo 6º que todos os filhos, sejam os havidos ou não da relação do casamento ou até mesmo por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, sendo que este entendimento se estende aos filhos concebidos por meio de inseminação artificial heteróloga, desde que com prévia autorização do marido. Deste modo, a filiação pode ser dar pelo critério biológico ou pelo critério não biológico, mais conhecido como filiação socioafetiva. A filiação socioafetiva implica no parentesco civil, não podendo ser a paternidade impugnada, como também não pode haver o pedido de reconhecimento de paternidade e ou maternidade por parte dos doadores. II.II - IMPLICAÇÃO JURÍDICA EM RELAÇÃO À PRESUNÇÃO DA FILIAÇÃO O Código Civil Brasileiro de 2002 trata do tema da inseminação artificial no artigo 1.597, em seus incisos IV e V: Art. 1597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) IV – Havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – Havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Quanto à inseminação homóloga, não há conflitos em relação à filiação, tendo em vista que o material genético a ser utilizado é o do próprio cônjuge. Já na inseminação heteróloga surge uma grande discussão, envolvendo a filiação, o reconhecimento da origem genética do indivíduo e o anonimato do doador do material genético. Neste tipo de inseminação artificial, a lei dispõe que é necessário o consentimento do marido para a realização da fertilização. Uma vez que esse consentimento é dado, não pode ser revogado e, consequentemente, a paternidade não poderá ser impugnada em razão
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do critério biológico. Maria Berenice Dias entende que “a manifestação do cônjuge corresponde a uma adoção antenatal, pois revela, sem possibilidade de retratação, o desejo de ser pai”. (DIAS, 2011). Nelson Rosenvald também se posiciona no sentido de não ser possível impugnar o consentimento, senão vejamos: Enfim, é caso típico de filiação socioafetiva, não se admitindo, via de consequência, a impugnação da paternidade, com base em prova pericial biológica, pois o vínculo paterno-filial se formou no instante em que se concedeu a aquiescência ao procedimento fertilizatório no cônjuge. (ROSENVALD, 2014). II.III - DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA DA PESSOA A PARTIR DA INSEMINAÇAO ARTIFICIAL HETERÓLOGA Conforme dito anteriormente, no Brasil, ainda não existe uma lei específica que trate sobre a inseminação artificial, mas as resoluções e os pareceres do Conselho Federal de Medicina dispõem sobre os procedimentos a serem seguidos quando da realização da inseminação artificial. A resolução 1.957 de 2010 do Conselho Federal de Medicina assegura ao doador de material genético o sigilo sobre a sua identidade, que somente poderá ser quebrado, em situações excepcionais, para os médicos, devendo ser resguardada a identidade civil do doador. Desta forma, conforme explicitado acima, os doadores serão anônimos, como também serão anônimos os receptores do material genético doado para a realização da inseminação artificial. As clínicas que realizam os procedimentos da inseminação artificial heteróloga, prezam pela não identificação dos doadores de material genético, objetivando impossibilitar uma futura e possível investigação de paternidade, como consequentemente uma reinvindicação de alimentos ou de herança. De acordo com a clínica Pro-seed, que se localiza em São Paulo – SP, as doações de material genético são anônimas, sendo uma forma de garantir o sigilo de todos os doadores. No momento da doação é assinado um termo pelo doador, no qual contém uma cláusula de anonimato, in verbis: CONCORDO e ACEITO ser vedado o meu acesso à identidade do receptor e da criança gerada pelo procedimento de fertilização assistida, da mesma forma que será preservado o sigilo da minha identidade e privacidade, de acordo com os termos da legislação vigente. Tenho total ciência de que os dados pertinentes à amostra de sêmen por mim doada poderão ser transmitidos ao médico-responsável por sua utilização, mantendo-se, entretanto, o sigilo de minha identidade e privacidade. Assim, é assegurado a todo doador o sigilo, sendo que somente poderá ser quebrado em casos excepcionais, podendo ser revelado somente ao médico, pois assim continuará sendo protegido o anonimato do doador. A inseminação heteróloga traz a discussão quanto à criança que é gerada por este procedimento, no tocante ao conhecimento de sua origem genética. A nossa Carta Magna não prevê esse direito, apesar de ser fundamental, tendo em vista que o direito ao conhecimento da origem genética é um direito da personalidade. O doutrinador Silvio Rodrigues entende que: Os direitos da personalidade são inatos, de forma que não se pode conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física e intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à imagem e àquilo que ele crê ser sua honra. (RODRIGUES, 1999)
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Dessa forma, a criança gerada por meio de inseminação artificial heteróloga também é detentora desses direitos, devendo ser concedido a ela o reconhecimento de sua origem genética. Nesse sentido, Ana Cláudia Brandão entende que o reconhecimento da origem genética se dá apenas para o conhecimento da origem, de onde a pessoa vem, sua árvore genealógica, senão vejamos: Consiste em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de entender seus traços (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais, conhecer a bagagem genético-cultural básica. Conhecer sua ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há como negar o direito a conhecer a verdade biológica, pela importância enquanto direito de personalidade. (BRANDÃO, 2011). Por ser um direito de personalidade, não pode ser negado ao indivíduo o direito de investigar sua origem, de onde descende. Este é um direito necessário para a construção sociocultural do indivíduo. O reconhecimento da origem genética é de grande importância para a pessoa, seja no aspecto jurídico, médico, psicológico ou até mesmo sociológico. Ana Cláudia Brandão alega que: [...] Na maioria das vezes, pretende-se ter acesso à origem genética por questões psicológicas, pela necessidade de se conhecer. Em certos casos concretos, o fato de não se saber de onde veio, do ponto de vista biológico, pode comprometer a integração psíquica da pessoa. (BRANDÃO, 2011) Como o tema em debate não está positivado em nosso ordenamento jurídico há várias discussões doutrinárias a respeito. As discussões seguem dois caminhos, uma que é a favor do anonimato do doador e a outra que é a favor do reconhecimento da origem genética, sendo esta a majoritária, devendo ser quebrado esse sigilo imposto pelas clínicas que realizam o procedimento da inseminação artificial heteróloga. Os doutrinadores que são a favor do anonimato do doador, defendem que somente os direitos tipificados na legislação é que merecem proteção, ou seja, como não há a positivação do direito ao reconhecimento da origem genética, este não seria um direito válido e, consequentemente, questionável. Já os doutrinadores que são a favor da quebra do sigilo, defendem que por ser um direito da personalidade, não importa se está ou não positivado, uma vez que este direito é reconhecido através do princípio da dignidade da pessoa humana, que é previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Portanto, os direitos que decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana, não podem ser excluídos, mesmo que esses não estejam positivados. II.IV - O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO JUSTIFICATIVA AO RECONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA A Constituição Federal Brasileira traz a dignidade da pessoa humana como um direito inerente à personalidade, sendo um princípio fundamental. Dessa forma, não se pode negar ao indivíduo o direito de reconhecer sua origem genética, pois estaria ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que é direito de todo ser humano saber sua origem. Segundo Lôbo, “o fundamento para se buscar o conhecimento da origem genética, com o intuito exclusivo de tutela do direito da personalidade, é a dignidade da pessoa humana, e esta só será plena quando se conhece sua origem”. (LÔBO, 2010).
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Ainda nesse sentido, Gabriela de Borges Henriques, entende que: Ainda que não conste de modo expresso o direito a investigação da origem biológica em casos de reprodução assistida, em especial a inseminação artificial heteróloga, com fulcro no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é concebível a investigação da origem genética no direito brasileiro, numa extensão do que seria o direito à identidade genética, ainda que já se tenha o estado de filiação estabelecido.(HENRIQUES, 2011) Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana garante o máximo de proteção ao ser humano, e com isso, considera que ao buscar por suas origens, está efetivamente cumprindo o mandamento deste princípio. II.V - A INVIOLABILIDADE DA PRIVACIDADE E INTIMIDADE DO DOADOR A Constituição Brasileira considera que são invioláveis a intimidade e a vida privada das pessoas, sendo que caso esse preceito seja descumprido, pode gerar uma indenização por dano material ou moral decorrente dessa violação. Ainda há o artigo 21 do Código Civil Brasileiro de 2002, que prevê a proteção à vida privada da pessoa natural. Dessa forma, percebe-se que essa proteção garantida pela Constituição e pelo Código Civil, abrange o direito ao sigilo do doador de material genético, tendo em vista que aquele que doa o faz com a devida garantia de que não terá sua intimidade revelada. Ocorre que uma vez que estes direito se chocam com o princípio da dignidade da pessoa humana, o que prevalecerá, será o último, uma vez que a não satisfação do direito da personalidade de conhecer a origem genética seria mais lesivo que a violação ao sigilo dos doadores anônimos, já que a identificação dos mesmos apenas revelaria a genealogia do indivíduo originado de reprodução heteróloga, não importando em reconhecimento de paternidade ou maternidade. III - CONFRONTO ENTRE O SIGILO DO DOADOR DO MATERIAL GENÉTICO E O RECONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA Conforme explicitado anteriormente, a inseminação artificial heteróloga é realizada quando se utiliza o material genético de um terceiro, sem ser o cônjuge ou companheiro, sendo que, este doador, ao realizar a doação, a faz anonimamente, uma vez que não possui o interesse da paternidade ou maternidade e, muito menos, possui o interesse de contrair obrigações quanto ao indivíduo que será gerado por este procedimento. Desta forma, há o entendimento de que o sigilo desses doadores, não devem ser violados, somente em casos excepcionais, para os médicos, sem ser revelado a identidade civil destes. Conforme explica Spode e Silva: No momento da doação do material genético, o doador tinhase por descompromissado de qualquer espécie de vínculo com a mãe ou com o concebido, encarando o processo apenas como um agente auxiliador [...]. (SPODE, SILVA, 2013). Frediani também diz a respeito deste procedimento: Verifica-se, que os doadores de gametas, gameta masculino (sêmen) e gameta feminino (óvulo), não poderão jamais pleitear ação de alimentos em face do filho concebido por meio do processo artificial de procriação, pois, a doação consiste no ato de vontade de doar o material genético especificamente, renunciando tacitamente a paternidade/maternidade. (FREDIANI, 2000). Assim, percebe-se que, os doadores são apenas agentes auxi-
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liadores do procedimento de fertilização, e o sigilo se faz necessário para evitar a criação de vínculo com o indivíduo gerado, pois, uma vez realizada a doação do material genético, o doador abre mão de seus direitos da paternidade ou maternidade, não tendo nenhum direito sobre a criança gerada e não podendo pleitear, de forma alguma, uma ação de reconhecimento de paternidade ou até mesmo de alimentos. Nas palavras de Rosenvald “a regra geral, frise-se à saciedade, é o anonimato, não decorrendo efeitos jurídicos entre o doador de sêmen ou óvulo e o filho nascido”. (ROSENVALD, 2014). De outro lado, tem-se que é garantido a todo o indivíduo, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento de sua origem genética, ou seja, investigar sua ancestralidade. A doutrina majoritária entende que este reconhecimento da origem do indivíduo, não gera obrigações, não cria vínculos com o doador do material genético, muito menos implica em presunção de filiação, ou seja, não gera prejuízos ao doador, senão vejamos: O direito ao conhecimento da origem genética não está coligado necessária ou exclusivamente à presunção de filiação e paternidade. Sua sede é o direito da personalidade, que toda pessoa humana é titular, na espécie direito à vida, pois as ciências biológicas têm ressaltado a insuperável relação entre medidas preventivas de saúde e ocorrências de doenças em parentes próximos. (LÔBO, 2008). Neste sentido, foi proferido em recurso especial a possibilidade da investigação da origem do indivíduo gerado por meio de inseminação heteróloga: Direito Civil. Família. Ação de declaração de relação avoenga. Buscada ancestralidade. Direito personalíssimo dos netos. Dignidade da pessoa humana. Legitimidade ativa e possibilidade jurídica do pedido. Peculiaridade. Mãe dos pretensos netos que também postula seu direito de meação dos bens que supostamente seriam herdados pelo marido falecido, porquanto pré-morto o avô.- Os direito da personalidade, entre eles o direito ao nome e ao conhecimento da origem genética são inalienáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes.- Os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e personalíssimo, de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô, ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à origem genética estão intimamente ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana.- O direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88.- [...] Recurso especial provido (807849 RJ 2006/0003284-7 - Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI - Data de Julgamento: 24/03/2010 – Segunda Seção – Data de Publicação: DJe 06/08/2010). É possível que a pessoa conheça sua origem genética, sem desconstituir a filiação socioafetiva, sem criar vínculos com o doador, uma vez que a busca somente serve para conhecer a ascendência biológica, reafirmando o direito personalíssimo garantido a todas as pessoas. Deste modo, a doutrinadora Leila Donizetti também entende que a busca pela origem genética não cria vínculo entre o doador e a pessoa que a realiza, apenas assegura o direito de personalidade, vejamos: Legítimo ao filho vindicar o acesso aos dados genéticos do doador anônimo de sêmen arquivados na instituição em que se deu a concepção tão somente para proteger os direitos da personalidade, sem, entretanto, fazê-lo com o intuito de investigar a paternidade. (DONIZETTI, 2007).
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Assim, por mais que seja reconhecido o direito ao sigilo do doador do material genético, quando este se choca com o direito ao reconhecimento da origem genética, o que prevalecerá, será o último, pois trata-se de um direito da personalidade humana. IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS A reprodução humana assistida, em especial a heteróloga, traz alguns conflitos no tocante ao reconhecimento da origem genética ao se confrontar com o sigilo dos doadores de material genético. No Brasil, ainda não existe uma lei que diga expressamente qual dos direitos deverá prevalecer, mas há vários posicionamentos doutrinários que entendem pela quebra do sigilo do doador, devendo ser prevalecido o direito ao reconhecimento da origem genética, uma vez que é um direito de personalidade, protegido pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, ao indivíduo que foi gerado por meio da reprodução assistida, não há que se falar em privação do direito de conhecer suas origens, pois se trata de um direito personalíssimo. Mas é importante ressaltar que a quebra do sigilo não se dará de qualquer forma e, também, não será para o conhecimento de paternidade ou maternidade, mas sim o conhecimento da origem biológica. Portanto, para que seja possível essa quebra do sigilo, se faz necessário uma declaração judicial que reconheça essa origem biológica, deixando claro que os encargos da paternidade ou maternidade não serão imputados ao doador do material genético. Assim, não há nenhum impedimento legal que possa indeferir o pedido de conhecimento da origem genética do indivíduo gerado por meio da inseminação heteróloga, devendo ser satisfeito esse direito personalíssimo. REFERÊNCIAS ACÓRDÃO STJ. Disponível em: <ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=200600032847&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 15 jun. 2015. CLÍNICA DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL. Disponível em: <www.proseed.com. br/doacao/como_funciona>. Acesso em: 30 abr. 2015. CUNHA, Karla Corrêa; FERREIRA, Adriana Moraes. Reprodução Humana Assistida: Direito à Identidade Genética x Direito ao Anonimato do Doador. LFG. Disponível em <http://lfg.com.br/artigo/20081209105317401_reproducao-humana-assistida-direito-a-identidade-genetica-x-direito-ao-anonimato-do-doador-adrianamoraes-ferreira-e-karla-correa-cunha.html>. Acesso em: 16 abr. 2015. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed., rev. e atual. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. DONIZETTI, Leila. Filiação socioafetiva e direito à identidade genética, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. ENEIAS, Miria Soares; SILVA, Priscilla Alves. Inseminação Artificial Heteróloga: o reconhecimento da origem genética à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em:.<http://imepac.edu.br/oPatriarca/v3/arquivos/trabalhos/ARTIGO03MIRIA.pdf.>. Acesso em: 03 jun. 2015. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil 6. Ed.2014. Editora JusPodivim. FEITOZA, Juliana de Aguiar. O uso do diagnóstico genético de pré-implantação na reprodução humana assistida e seus aspectos éticos, filosóficos, religiosos e jurídicos. FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 132 11 Ibid, p. 133. FREDIANI, Yone. Patrimônio Genético. Revista de Direito Privado. n. 2, v. 1, Coord. por Nelson Nery Júnior e Rosa Mª de Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.128-143.
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HENRIQUES, Gabriela de Borges. Inseminação artificial heteróloga e o direito fundamental ao conhecimento da origem genética. Disponível em: <www.advogadobr.com/ comentarios-aoCPC/monografia_03122008.PDF>.Acesso em: 27 mai. 2015. LEGISLAÇÃO on-line. Disponível em: <www.senado.gov.br/>. Acesso em: 06 mai. 2015. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva. 2008 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: EHRHARTD JÚNIOR, Marcos; et. al. (Coord.). Leituras Complementares do Direito Civil – Direitos das familias. Bahia: Jus Podivm, 2010, p. 51-71. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 61. In. Reprodução humana assistida e suas conseqüências nas relações de família (p. 126). RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito de Família, São Paulo: Saraiva, 17ª ed., 2002, vol. 6. SILVA, Jackeline de Melo, Inseminação Heteróloga: Direito a identidade genética x Direito ao sigilo do doador. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/monografias/monografia.asp?id_dh=13192.>. Acesso em: 18 mar. 2015. SPODE, Sheila e SILVA, Tatiana Vanessa Saccolda. O Direito ao conhecimento da origem genética em face da inseminação artificial com sêmen de doador anônimo.Revista eletrônica do curso de direito UFSM. RESENDE, Cecília Cardoso Silva Magalhães. As questões jurídicas da inseminação artificial heteróloga. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/ conteudo/quest%C3%B5es-jur%C3%ADdicas-da-insemina%C3%A7%C3%A3o -artificial-heter%C3%B3loga>. Acesso em: 16 jun. 2015. RESOLUÇÕES CFM. Disponível em: <www.portalmedico.org.br/resolucoes/ CFM/1992/1358_1992.htm>. Acesso em: 09 abr. 2015.
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Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
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Orientadora Professora Valéria Edith Carvalho De Oliveira.
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MAUS TRATOS CONTRA ANIMAIS: Crimes e abandono Danilo Santana de Oliveira1 Ronaldo Passos Braga2 RESUMO: Em pleno século XXI grande parte da população trata os animais como objetos descartáveis, não respeitam as leis e abusam dos bichos, ferindo-os, abandonando, e os deixando para morrer sem nenhum ressentimento. Isso ocorre muitas vezes porque a lei do nosso país não é eficiente para coibir esses criminosos. ABSTRACT: In full twenty-first century large part of the population treats animals as disposable objects, do not respect the laws and abuse of animals, and smote them, abandoning and leaving them to die without resentment. This is often because the law of our country is not effective to curb these criminals. PALAVRAS CHAVE: animais; abandono; crueldade; legislação; valorização KEYWORDS: animals; abandonment; cruelty; legislation; appreciation. SÚMÁRIO: I Introdução;II Legislação sobre a proteção dos animais; III Aumento das penas e multas como forma de coibir a violência; IV O tema no âmbito internacional; V Considerações Finais; Referências.
I - INTRODUÇÃO Os maus tratos contra animais são fatos comuns nos dias atuais. A mídia transmite e nas ruas se observa como esses seres estão sendo vítimas de violência e abandono. Os crimes contra animais foram tipificados pela primeira vez em 1934, no governo do Presidente Getúlio Vargas (Decreto lei N° 24.645, de julho de 1934). Hoje estão previstos no art. 32 da Lei 9.605/98, estabelecendo as penas. Há também crimes específicos contra os animais da fauna silvestre, como perseguir, caçar e matar. Essas leis estabelecem o animal como bem juridicamente tutelado. Ainda assim, vê-se no dia a dia a prática dos maus tratos. Outro aspecto desses maus tratos é o abandono do animal que já está domesticado e acostumado no lar em que vive, e ao ser largado nas ruas perde a referência que tem, ficam machucados, desnutridos, doentes e sofrendo até morrer. II - LEGISLAÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS Conforme o decreto lei nº 24.645 de Julho de 1934, instituído no governo do Presidente Getúlio Vargas, os animais estão amparados pelo Estado. O art. 3° do dispositivo citado enumera 31 situações consideradas “maus tratos”, e que sujeitam o indivíduo que os praticar às penalidades previstas, eis os mais comuns: Art. 3. - Consideram-se maus tratos: I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; V - Abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover inclusive assistência veterinária; XXVII - Ministrar ensino a animais com maus tratos físicos; XXVIII - Exercitar tiro ao alvo sobre pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca; XXIX - Realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado;
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Após a legislação acima citada, foi promulgado o decreto-lei 3.688/41, que embora tenha sido revogado tacitamente, estabelecia em seu 64° art. as crueldades contra os animais: Art. 64 - Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena - prisão simples, de 10 (dez) dias a 1 (um) mês, ou multa. § 1º - Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. § 2º - Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público. Pode-se observar que quase um século após a promulgação do decreto, grande parte da população ainda trata os animais como objetos descartáveis. Nos dias atuais, os maus tratos são disciplinados pelo art. 32 da Lei 9.605/98 (lei de crimes ambientais), que dispõe o seguinte sobre o tema: Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. Há também a Lei nº 11.794/2008, que regulamente o uso de animais nos laboratórios para experimentos científicos. Porém, no próprio texto da lei não há a eficácia quanto a proteção da fauna e de proibir o uso brutal de cobaias em experimentos. No final do mês Fevereiro de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 2833/11 que prevê pena de detenção de 1 a 3 anos para os crimes cometidos pela população contra os animais. Prevê ainda que a pena será aumentada de 1/3 se o crime for cometido com emprego de veneno, fogo, asfixia, espancamento, choque,
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arrastadura, tortura ou outro meio cruel. Esse projeto de lei, que seguiu para o Senado Federal, prevê a detenção de 1 a 3 anos para o agente público que detenha a função de preservar a vida de animais e não prestar socorro em situações de grave e iminente perigo, ou não pedir socorro da autoridade pública.
IV - O TEMA NO ÂMBITO INTERNACIONAL O tema abordado é uma polêmica mundial, e por isso, foi proclamada em Bruxelas no ano de 1978 pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) a Declaração Universal dos Direitos dos Animais:
III - AUMENTO DAS PENAS E MULTAS COMO FORMA DE COIBIR OS CRIMES Maus tratos a animais são práticas muito comuns e são configurados por toda violência e desrespeito físico praticado contra o animal e para Érica Bechara, “configuram-se nas agressões gratuitas e atos de violência desnecessários, que logrem machucar, mutilar, matar, torturar e impor sofrimento aos animais”. Os crimes contra animais têm penas brandas e não tem se mostrado eficaz para coibir esse tipo de ilícito. Também não há uma investigação eficaz para solucionar os delitos. Na prática percebe-se que muitos animais sofrem com maus tratos e atos de crueldade, e que aplicação da lei ainda é muito precária. Nota-se que os seres humanos, embora estejam evoluindo no que tange a proteção dos animais, ainda criam leis que regulamentam situações em que é possível a exploração de animais. Por exemplo, a farra do boi que é uma das práticas de maus tratos mais sanguinárias e violentas. Trata- se de uma prática do litoral do Estado de Santa Catarina (SC), a qual tem uma conotação religiosa e tradição folclórica, ligada a ‘’Paixão de Cristo’’ e normalmente realizada na época da Páscoa. Neste ritual o boi é torturado, e solto pelas ruas, para a multidão de pessoas o perseguirem munidos de alguma ‘’arma’’ e agredir o boi - que representa Judas – com o objetivo de se livrarem de seus pecados.
Preâmbulo: Considerando que todo o animal possui direitos; Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza; Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo; Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros; Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante; Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais, Proclama-se o seguinte Artigo 1º - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência. Artigo 2º - 1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado; 2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais; 3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem. Artigo 3º - 1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia. Artigo 4º - 1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir; 2. Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito. Artigo 5º - 1. Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie; 2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito. Artigo 6º - 1. Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida conforme a sua longevidade natural; 2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante. Artigo 7º - Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso. Artigo 8º - 1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação; 2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas. Artigo 9º - Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor. Artigo 10º - 1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem; 2. As exibições de animais e os espetá-
Além disso, os infratores quando condenados poderão ter a pena substituída conforme o código penal brasileiro em seu artigo 44 que dispõe o seguinte: Art. 44 - As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; II - o réu não for reincidente em crime doloso; III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Pode-se apontar como uma solução para esses crimes contra animais, a criação de maior quantidade de delegacias especializadas nessa área, o aumento da pena de reclusão, concomitantemente com a pena de multa e a obrigação de reparar o dano quando o animal não estiver morto. Como um exemplo do que ocorre, o site www.globo.com publicou no dia 01 de Junho de 2015, por meio do portal G1, um caso referente a um cachorro que foi encontrado dentro de um bueiro com a face completamente desfigurada. A veterinária Paola que fez a reconstrução da face do animal afirmou que ele parecia um monstro quando adentrou no hospital veterinário. A pessoa que adotou o cachorro afirma, na mesma matéria citada no site, que quando as pessoas viam o animal atravessavam a rua com medo dele, pois parecia mesmo um monstro. Foi constatada nesse caso a violência humana, pois durante o procedimento cirúrgico realizado, foi encontrada pólvora proveniente de bomba na boca do animal.
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culos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal. Artigo 11º - Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um crime contra a vida. Artigo 12º - 1. Todo o ato que implique a morte de grande um número de animais selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra a espécie. 2. A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio. Artigo 13º - 1. O animal morto deve de ser tratado com respeito; 2. As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser interditas no cinema e na televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um atentado aos direitos do animal. Artigo 14º - 1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar representados a nível governamental; 2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem.
Lei n° 9605 de 12 de Fevereiro de 1998, disponível em http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l9605.htm; http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura &artigo_id=3115; acesso em 01 de Abril, 19:45; http://www.anda.jor.br/10/09/2012/leis-de-protecao-animal-no-brasil-e-no-mundo-parte-i; acesso em 06 de Junho, 14:30; http://www.dogheirs.com/, acesso em 01 de Junho de 2015 13:30.
NOTAS DE FIM 1 2
Aluno graduando da Escola de Direito pelo Centro Universitário Newton. Orientador Professor Ronaldo Passos Braga.
A suíça foi pioneira na proteção dos animais na Europa. O art. 80 da constituição do país descreve sobre o dever que o parlamento tem de legislar sobre a proteção dos animais em seu território. Por isso, em 1992, foram tutelados os direitos dos animais, concedendo valor a eles, e deveres das pessoas sobre sua proteção. Nos Estados Unidos crimes contra animais estão sendo tratados e penalizados veementemente. Segundo o site brasileiro anda.jor.br, o FBI passará a considerar os maus tratos contra animais como crimes agrupados na mesma categoria em que os assassinatos a pessoas se enquadram. Ainda nesse contexto, o site americano Dog Heirs informa que o FBI anunciou que os crimes contra os animais cometidos naquele país serão categorizados como crimes contra a sociedade. Isso ocorreu para ajudar a legislação a favor dos animais e consequentemente coibir o criminoso de praticar o ato. V - CONSIDERAÇÕES FINAIS O tema exposto é bastante atual e está muito presente no nosso cotidiano. Existem leis que tutelam o direito dos animais, mas não há eficácia no cumprimento do que está disposto. Viu-se que mesmo após um século da criação do primeiro dispositivo que tipifica e discrimina as penas nos crimes de maus tratos contra animais, grande parte da população não se importa com o bem estar e a dignidade dos animais, e continuam abandonando e ferindo -os sem serem punidos ou qualquer ressentimento quanto a isso. Conclui-se que a legislação penal brasileira deve ser aperfeiçoada em relação aos crimes, bem como novas leis devem ser criadas para coibir os maus tratos. REFERÊNCIAS BECHARA, Erika. A Proteção da Fauna sob a ótica Constitucional. Ed. Juarez de Oliveira, 2003; Constituição da Confederação Helvética de 1999, disponível em: http://www. admin.ch/org; Código Penal Brasileiro – disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm; Decreto Lei nº 24.645 de 10 de Julho de 1934, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d24645.htm; Decreto Lei n° 3.688 de 03 de Outubro de 1941, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm; DIAS, Edna Cardoso. A tutela jurídica dos animais. Mandamentos, 2000;
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1 ed., Belo Horizonte:
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UMA ANÁLISE ACERCA DA POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DOS ABONOS DE FÉRIAS CONSTITUCIONAL E CONVENCIONAL Odília Tupy Nogueira1 Daniela Lage Mejia Zapata2 RESUMO: Os direitos instituídos aos trabalhadores estão se tornando cada vez mais relevantes no contexto social. O presente estudo visa analisar a possibilidade de pagamento concomitante dos abonos de férias constitucional e convencional. ABSTRACT: The duties imposed on workers are becoming increasingly relevant in the social context. This study aims to examine the possibility of concurrent payment of holiday allowances constitutional and conventional PALAVRAS-CHAVE: Férias, abono de férias, direito individual do trabalho, direito coletivo do trabalho; princípios; direito do trabalho; direito constitucional. KEYWORDS: Vacation, vacation bonus, individual labor law, collective labor law; principles; labor law; constitutional law. SUMÁRIO: I Introdução; II Evolução Histórica Dos Direitos Trabalhistas No Brasil; III Direito Individual e Direito Coletivo do Trabalho; IV Princípios Protetivos do Trabalhador; V Convenção e Acordo Coletivos de Trabalho; VI O Direito a Férias; VII A Possibilidade de Concessão Simultânea dos Abonos de Férias, VIII Considerações Finais; Referências.
I - INTRODUÇÃO O presente trabalho situa-se no âmbito do Direito do Trabalho com interfaces no Direito Constitucional, abordando a temática dos direitos fundamentais, mais detidamente os direitos constitucionais do trabalho. Nesse diapasão, o trabalho visa esclarecer os direitos fundamentais do trabalhador, no que concerne o direito a férias, bem como o direito de recebimento ao adicional pelas mesmas, os quais são instituídos pela legislação brasileira. O plano de fundo para a devida compreensão do tema enseja o seu recorte dentro do contexto do Estado Democrático de Direito, bem como da necessidade intensa de busca pela construção das dimensões de dignidade do empregado em suas relações de trabalho. Desta maneira, a fruição dos direitos sociais se torna de suma importância. Logo, os direitos constitucionais do trabalho merecem destaque e consideração. Destaca-se, que o direito a férias constitui requisito fundamental para a saúde física e mental do trabalhador, sendo que a sua fruição implica no pagamento de um adicional de, no mínimo 1/3 (um terço) a mais da remuneração mensal auferida. (art. 7º, XVII, da Constituição Federal, de 1988). Todavia, além da previsão constitucionalmente assegurada, existem outras previsões normativas sobre o direito ao recebimento de adicional de férias. Assim, a pesquisa irá analisar a possibilidade de cumulação do direito de recebimento dos respectivos abonos de férias, a saber: o estabelecido na Constituição Federal e o decorrente de norma coletiva de trabalho. O tema não é harmônico na doutrina nem na jurisprudência brasileira, sendo o ponto central da pesquisa, a defesa pela possibilidade de pagamento simultâneo dos dois abonos de férias.
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II - EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS TRABALHISTAS NO BRASIL O processo de constitucionalização do Direito do Trabalho iniciou-se com a Constituição do México, de 1917 e a Constituição da Alemanha, de 1919, sendo ambas responsáveis pela inserção de significativas regras trabalhistas no texto constitucional. Desde então, as novas constituições passaram a inserir temas voltados à “ordem econômica e social” e aos “direitos sociais”, especialmente os de seguridade social e trabalhistas (Godinho, 2014). Em 1930 foi criado por Getúlio Vargas o Ministério do Trabalho em Emprego. Este foi o marco do surgimento do Direito do Trabalho no Brasil apresentado pela doutrina, muito embora já existisse um ambiente ideal ao surgimento, tendo em vista a legislação que o antecedera (Barros, 2013). A primeira constituição Brasileira a conter normas específicas do Direito do Trabalho foi a de 1934, por meio do art. 121, caput, § 1º, alíneas “a” até “j” e § 2º. Esta constituição foi a primeira a elevar os direitos trabalhistas ao patamar constitucional, devido à elaboração influenciada no constitucionalismo social da constituição Alemã de Weimar e da constituição Americana (Godinho, 2014). A partir de então, todos os textos constitucionais seguintes passaram a conter vários direitos trabalhistas (1937, 1967 e 1969). Entretanto, de acordo com o professor Maurício Godinho (2014), a constitucionalização do Direito do Trabalho, não seria apta a conferir origem a um verdadeiro Direito Constitucional do Trabalho, tendo em vista a falta de complexidade e extensão de matérias, ausência de métodos próprios de estruturação e lacuna no tocante a identificação de perspectivas próprias de regência normativa sobre a temática trabalhista. Verifica-se, que apenas a partir da Constituição Brasileira, de 1988 é que foi possível concretizar um real Direito Constitucional do Trabalho no país. Tal situação pode ser comprovada por diversos aspectos, como será demonstrado a seguir, segundo entendimento do professor Go-
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dinho em sua obra –Curso de Direito do Trabalho, 13ª Edição, 2014. Primeiramente, destaca-se que a Constituição Brasileira, de 1988 estruturou o conceito de Estado Democrático de Direito, com papel decisivo do Direito do Trabalho. O Estado Democrático de Direito é construído sobre um tripé conceitual: a pessoa humana e sua dignidade; a sociedade política, democrática e inclusiva e a sociedade civil, democrática e inclusiva. Essa ideia de centralidade da pessoa humana é concretizada nos princípios constitucionais com influência essencial do Direito do Trabalho. O segundo aspecto importante a ser considerado é em relação a outro conceito estrutural da Constituição com destaque do Direito do Trabalho, que refere-se à noção de direitos e garantias individuais e sociais fundamentais. Nessa linha de ideias, destacam-se os princípios constitucionais gerais que são compreendidos com a interferência do Direito Trabalho e seu papel na economia e na sociedade. Como por exemplo, os princípios da dignidade da pessoa humana; da justiça social; da inviolabilidade do direito à vida; do respeito à privacidade e à intimidade; da não discriminação; da valorização do trabalho e emprego; da proporcionalidade; da segurança; da subordinação da propriedade à função socioambiental; da vedação do retrocesso social. Godinho afirma que a Constituição ainda ressaltou a pessoa humana e o trabalho em todos os principais títulos normativos: Dos Princípios Fundamentais (Título I); Dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II); Da Ordem Econômica e Financeira (Título VII); Da Ordem Social (Título VIII). Acrescente-se, ainda, que a Constituição de 1988 constitucionalizou diversos princípios específicos do Direito Individual do Trabalho: os princípios da proteção; da norma mais favorável; da imperatividade das normas trabalhistas; da indisponibilidade dos direitos trabalhistas; da intangibilidade e irredutibilidade salariais, da primazia da realidade sobre a forma; da continuidade da relação de emprego; da irretroação das nulidades (Godinho, 2014). Também merece destaque a introdução de diversos princípios do Direito Coletivo de Trabalho, como os princípios da liberdade associativa e sindical; da autonomia sindical; da interveniência sindical na negociação coletiva; da lealdade e transparência na negociação coletiva; da equivalência entre os contratantes coletivos, da criatividade jurídica da negociação coletiva trabalhista; da adequação setorial negociada. Vale ressaltar, que a Constituição instituiu ou incorporou diversos outros direitos individuais, coletivos e sociais que também são de suma importância para os trabalhadores. Nesse diapasão, afirma Godinho: De maneira inovadora a Constituição reconheceu nova situação a regras internacionais ratificadas sobre os direitos humanos, também no que se refere aos direitos trabalhistas, além de incorporar direta ou indiretamente importantes princípios e regras internacionais de várias convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, a qual é definida pelo organismo tripartite, ou seja, é composta por representantes de entidades de trabalhadores, empregados e governo (Godinho, 2014, p. 63). Constata-se ainda, princípios e regras especiais concernentes à regência normativa entre servidores públicos (estatutários ou celetistas) e as respectivas entidades estatais do Direito Público. Na verdade, a Constituição instituiu características específicas aos vínculos de trabalho com entidades estatais (Godinho, 2014). Por fim, o Texto Magno organizou importantes princípios e regras no que tange à estruturação e funcionamento da Justiça do Trabalho e, ainda, quanto ao processo judicial trabalhista. Diante de tais considerações, verifica-se que a partir de então,
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passou a existir no país, um verdadeiro Direito Constitucional do Trabalho, o que de fato, tornou-se bastante relevante, alcançando todos os trabalhadores. III - DIREITO INDIVIDUAL E DIREITO COLETIVO DO TRABALHO Inicialmente, é importante mencionar a diferença entre o Direito Individual do Trabalho e o Direito Coletivo de Trabalho. O Direito Individual visa à melhoria das condições de pactuação de força produtiva por meio da intervenção do Estado para proteger a parte hipossuficiente da relação empregatícia (Godinho, 2014). No Direito Coletivo, ocorre a situação inversa, não há a intervenção do Estado para proteger uma das partes, uma vez que ambas encontram-se num nível de igualdade na relação coletiva. Alves destaca que o Direito Coletivo visa à autonomia privada por meio do Acordo Coletivo de Trabalho – ACT ou Convenção Coletiva de Trabalho – CCT. (apud Godinho, 2008, p. 499) Nessa trilha de raciocínio, a definição de Direto Coletivo do Trabalho segundo entendimento do professor Godinho: É o complexo de institutos, princípio e regras jurídicas que regulam as relações laborais de empregados e empregadores e outros grupos jurídicos normativamente especificados, considerada sua ação coletiva, realizada autonomamente ou através das respectivas entidades sindicais. (Godinho, 2014). Desta maneira, extrai-se que o Direito Coletivo engloba a noção básica de autonomia de vontades. O Sistema coletivo parte do princípio de que as partes envolvidas (Sindicato dos trabalhadores, empregados e/ou sindicato patronal) estão em igualdade de condições no que tange ao aspecto jurídico básico da negociação de normas coletivas, estando aptos à criação da norma jurídica autônoma (Alves, 2013). Verifica-se que o Direito Coletivo de Trabalho tem por função criar normas jurídicas diferentes daquelas cláusulas meramente obrigacionais. Quando o ACT ou CCT são pactuados, eles trazem a existência de normas jurídicas que incidem no mesmo plano e intensidade da norma heterônoma básica (CLT), nos contratos individuais de trabalho (Alves, 2013). Segundo Alves (2013), é por meio da negociação coletiva, que o Direito Coletivo de trabalho atua na pacificação de conflitos de natureza jurídica ou econômica, surgidos em torno da relação de emprego. Nesse sentido, Alves dispõe que: Os conflitos de natureza jurídica são aqueles relacionados à divergência de interpretação sobre regras ou princípios jurídicos já existentes, enquanto os conflitos de natureza econômica são aqueles que se referem às condições de trabalho da categoria, ou seja, divergências sobre normas coletivas que serão inseridas no instrumento coletivo negociado e que refletirão diretamente no contrato de trabalho e na vida dos empregados (Alves, 2013). Sendo assim, existe um importante papel do sindicato que pode introduzir um direito novo sem que haja a necessidade de intervenção do Estado, melhorando as condições de trabalho e situação dos representados. IV - PRINCÍPIOS PROTETIVOS DO TRABALHADOR Em que pese os direitos trabalhistas terem sido consagrados apenas em 1943, por meio da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, sancionada pelo Presidente Getúlio Vargas, percebe-se claramente que muitos direitos surgiram durante o processo de constitucionalização. Todavia, a CLT foi o marco que instituiu a regulamentação das relações individuais e coletivas de trabalho, fazendo-se cumprir to-
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das as leis e normas trabalhistas existentes. Assim entendem Amauri Nascimento e Sônia Nascimento em sua obra Curso de Direito do Trabalho, 29ª edição, 2014: A CLT, no artigo 8º, atribuiu ao princípio a função de integrar as lacunas da lei ao dispor que as decisões das autoridades, à falta de lei, devem ser fundadas nos princípios, com o que não lhes deu a função retificadora dos efeitos indesejáveis da aplicação de algumas normas (Nascimento; Nascimento, 2014, p. 466). Dispõe, ainda, no parágrafo único do respectivo artigo, que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste. Como mencionado inicialmente, foram estabelecidos vários princípios com a finalidade específica de proteção ao trabalhador, que é parte hipossuficiente na relação jurídica trabalhista. Os princípios possuem funções distintas, atuando na criação da norma e posteriormente à sua elaboração. Com efeito, faz-se necessário conhecer um pouco destes princípios para que seja possível adentrar no assunto “abono de férias” e entender os motivos pelos quais levaram o respectivo tema a ser o ponto principal de pesquisa deste trabalho. É importante destacar, que o presente trabalho não tem como objeto estudar e apresentar todos os princípios que foram preceituados nas Constituições que vigoraram e ainda vigoram em nosso País, tendo em vista que demandaria um estudo específico, o que não condiz com a hipótese vertente. Desta maneira, será feita uma breve exposição de alguns princípios individuais e coletivos para demonstrar a importância das férias e dos abonos de férias no contexto do Direito do Trabalho. IV.I - Princípios de Direito Individual do Trabalho Princípio da proteção O princípio da proteção é conhecido também como princípio tutelar ou tuitivo ou protetivo ou, ainda, tutelar-protetivo (Godinho, 2014). Tem a função de proteger a parte hipossuficiente na relação empregatícia, qual seja, o trabalhador, buscando o equilíbrio que deve existir na relação entre empregado e empregador (Barros, 2013). Destaca-se, que a doutrina majoritária o considera como sendo o princípio fundamental do Direito do Trabalho. Rodriguez (1993), considera que o princípio protetivo se manifesta em 3 (três) dimensões distintas, que serão abordadas adiante: o princípio in dubio pro operário, o princípio da norma mais favorável, e o princípio da condição mais benéfica. (apud Godinho, 2014, p. 197) Lado outro, Godinho (2014) pondera que o princípio tutelar não se desdobra apenas em três dimensões, abarcando quase todos (senão todos) os princípios de Direito Individual do Trabalho. Para ele, os demais princípios também criam uma proteção especial aos interesses contratuais do trabalhador. Ressalta-se, que para Godinho, o princípio tutelar exerce tanta influência que inspira todo o complexo de regras, princípios e institutos que compõem esse ramo jurídico especializado. Princípio da norma mais favorável Este princípio dispõe que o operador do Direito do Trabalho, ao aplicar uma norma, deve optar por aquela que mais favoreça o trabalhador, em três situações ou dimensões distintas: seja no momento da criação da regra, no contexto de confronto entre regras concorrentes ou no contexto de interpretação de regras jurídicas (Godinho, 2014). A visão mais ampla do princípio entende que atua, desse modo,
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em tríplice dimensão no Direito do Trabalho: informadora, interpretativa/normativa e hierarquizante (Nascimento, 1991). Barros (2007), por sua vez, defende que este princípio autoriza a aplicação da norma mais favorável, independentemente da hierarquia. Sendo assim, caso haja confronto entre uma norma Constitucional e uma norma Ordinária, sendo a norma Ordinária mais favorável ao trabalhador, esta deverá ser aplicada. Princípio da condição mais benéfica Também pode ser chamado de princípio da cláusula mais benéfica. Estabelece este princípio garantia de preservação, no decorrer do contrato, da cláusula contratual mais vantajosa ao empregado, tratando, na hipótese, de direito adquirido, como dispõe o artigo 5º, XXXVI, da CF/88. O respectivo princípio abrange cláusulas contratuais ou qualquer dispositivo que tenha essa natureza no Direito do Trabalho, encontrando respaldo no art. 468 da CLT, que tem a função de proteger situações mais benéficas. Segundo entendimento do professor Maurício Godinho, só poderá haver supressão das cláusulas contratuais benéficas, se houver a substituição por cláusulas ainda mais benéficas. Verifica-se, portanto, por meio das Súmulas 51 e 288 do TST que o mencionado princípio ampara-se no artigo 5º, XXXVI, da CF/88. Nesse diapasão: SÚMULA Nº 51 NORMA REGULAMENTAR. VANTAGENS E OPÇÃO PELO NOVO REGULAMENTO. ART. 468 DA CLT (incorporada a orientação jurisprudencial nº 163 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005. I - As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem, vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento. (ex-Súmula nº 51 – RA 41/1973, DJ 14.06.1973). No mesmo sentido, a Súmula 288 do C. TST dispõe: SÚMULA Nº 288 – COMPLEMENTAÇÃO DOS PROVENTOS DA APOSENTADORIA. I – A complementação dos proventos da aposentadoria é regida pelas normas em vigor na data da admissão do empregado, observando-se as alterações posteriores desde que mais favoráveis ao beneficiário do direito. (Grifei). Destarte, afirma-se que o princípio em comento preserva uma melhor condição ao empregado. Princípio in dúbio pro operário Dispõe que, havendo dúvida quanto à interpretação da norma jurídica, esta deve ser aplicada ou interpretada sempre em favor do empregado (in dubio pro misero). Inicialmente, é importante destacar que este princípio é controvertido. Para Godinho, existem dois problemas: o primeiro, considerado menos grave, consistente no fato de que a temática é acobertada por outro princípio, qual seja, o da norma mais favorável. O segundo, visto como o mais grave, no que tange a outra dimensão temática, entra em choque com o princípio jurídico geral da essência da civilização ocidental, hoje, e do Estado Democrático de Direito: o princípio do juiz natural (Godinho, 2014). A proposta do legislador é tentar corrigir desigualdades, criando uma superioridade a favor do empregado que é parte hipossuficiente da relação trabalhista (Barros, 2007). Princípio da imperatividade das normas trabalhistas Prevalece no segmento juslaborativo o domínio de regras jurí-
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dicas obrigatórias, em detrimento de regras apenas dispositivas. As regras justrabalhistas são essencialmente imperativas, não podendo ter sua regência contratual afastada pela simples manifestação de vontade das partes (Godinho, 2014). Em outras palavras, as normas são imperativas ou obrigatórias, impossibilitando transações ou renúncias, salvo se houver previsão legal que as autorize (Arts. 9º, 444 e 468 da CLT). Princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas Conhecido também como princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. Refere-se à projeção do princípio anterior de imperatividade das normas trabalhistas. Este princípio vai além do ato unilateral, interferindo também nos atos bilaterais de disposição de direitos (transação), não tornando válidas a renúncia ou transação que acarrete em prejuízo para o empregado. Um exemplo claro deste princípio é o direito a férias, que é irrenunciável (Arts. 9º, 444 e 468 da CLT). Princípio da inalterabilidade contratual Expressa que a alteração nos contratos individuais de trabalho, somente será lícita, se houver mútuo consentimento e, ainda, desde que não acarrete prejuízo direta ou indiretamente para o empregado (Art. 462 da CLT). Princípio da intangibilidade e irredutibilidade salariais O art. 462 da CLT dispõe que o empregador não pode descontos no salário do empregado, não estabelecidos em lei. Ressalvadas as hipóteses de adiantamento concedido ou dolo do empregado. A irredutibilidade salarial, por sua vez, assegura que uma vez estabelecido o salário do empregado, o empregador não poderá reduzi-lo. Salvo nos casos de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, devendo, para tanto, ser observado o percentual máximo de 25%. Insta salientar, que cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido aos empregados o restabelecimento dos salários reduzidos. Inteligência do art. 503, parágrafo único da CLT. Princípio da primazia da realidade sobre a forma Significa dizer que prevalecerá aquilo que realmente aconteceu, do que o simples registro em documentos. Na definição de Barros (2007), as relações jurídicas trabalhistas se definem pela situação de fato, isto é, pela forma como se realizou a prestação de serviços, pouco importando o nome que lhe foi atribuído pelas partes. O exemplo a seguir elucida o entendimento quanto ao respectivo princípio: o empregador que registrar um salário menor na carteira de trabalho do empregado, que aquele realmente pago, assumirá as conseqüências para os todos os efeitos trabalhistas, haja vista que prevalecerá o salário efetivamente recebido pelo empregado (Barros, 2007). Princípio da continuidade da relação de emprego Este princípio visa assegurar a preservação do emprego ao empregado, com o objetivo de lhe proporcionar segurança econômica (Barros, 2007). Encontra-se disposto no artigo 7º, I da CF/88, sendo garantido a todo trabalhador a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa. Logo, quis o legislador, atribuir ao empregado uma relação de emprego prolongada, caracterizando o ajuste do contrato de trabalho por tempo indeterminado. Contudo é possível afirmar que esse conjunto de princípios
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constitui um núcleo basilar do Direito Individual do Trabalho e a sua não observância ou descaracterização, compromete a própria noção de Direito do Trabalho na sociedade. iv.ii - Princípios do Direito Coletivo do Trabalho Princípio da liberdade associativa e sindical Segundo o professor Maurício Godinho (2014), este princípio pressupõe, constitucionalmente, liberdade de associação e liberdade sindical. No âmbito da liberdade de associação, a Constituição Federal (art. 5º, XVII) consagra regra geral que garante o direito de reunião pacífica e de associação sem caráter paramilitar, que é aplicado à reunião sindical. Destaca-se que tal princípio tem dimensão positiva (prerrogativa de livre criação e/ou vinculação a uma entidade associativa), como também dimensão negativa (prerrogativa de livre desfiliação), ambas garantidas constitucionalmente no inciso XX do supracitado artigo. A liberdade sindical segue no mesmo prisma da liberdade associativa, entretanto é aplicado especificamente à atuação sindical, nos termos do artigo 8º, inciso V, da Constituição Federal. Destarte, a liberdade sindical além de ser um princípio de Direito Coletivo de Trabalho, é também considerada um direito fundamental. Princípio da autonomia sindical Para Alves (2013), se existe liberdade associativa e sindical como princípio basilar do Direito Coletivo do Trabalho, o ente coletivo também deve ter autonomia para sua organização básica e atuação cotidiana. Tal princípio garante a autogestão às organizações associativas e sindicais de trabalhadores, sem que haja a interferência das empresas ou do Estado. Princípio da interveniência sindical na negociação coletiva Esse princípio estabelece que a participação do sindicato do trabalhador é fundamental ao processo negocial coletivo, não bastando a negociação patronal com determinado grupo de trabalhadores. A negociação do empregador ou do sindicato patronal, com um grupo de trabalhadores tem caráter de cláusula contratual individual, submetida às regras e princípios próprios do Direito Individual do Trabalho. A autonomia negocial coletiva pressupõe a presença do sindicato, sob pena de se revelar a desigualdade entre empregado e empregador (Godinho, 2014). Princípio da equivalência entre os contratantes coletivos Dispõe que os sujeitos do Direito Coletivo do Trabalho possuem a mesma natureza, uma vez que são seres coletivos trabalhistas. O empregador é considerado ente coletivo por interferir em maior ou menor intensidade na coletividade. Os sindicatos patronais e dos trabalhadores também são. Vale ressaltar, que os entes coletivos contam com instrumentos eficazes de atuação e pressão. Do lado patronal, o capital, os fatores de produção e o poder empregatício. Já do lado do trabalhador, a mobilização da coletividade e principalmente a greve (Alves, 2013). Princípio da lealdade e transparência na negociação coletiva Na visão de Godinho (2014), deve haver condições práticas de realização de igualdade entre os contratantes coletivos. As partes devem prezar pela boa-fé nas negociações e pela transparência das decisões coletivas e dos processos de tomadas de decisões.
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Princípio da criatividade jurídica da negociação coletiva trabalhista Esse princípio é considerado como um dos mais importantes para o Direito Coletivo do Trabalho. A negociação coletiva cria norma jurídica (ACT e CCT) vinculando toda a categoria de empregadores e empregos, ainda que não estejam representados isoladamente, firmando o compromisso coletivo. É norma geral e abstrata e não cláusula específica e pessoal como ocorre no Direito Individual. (Godinho, 2014)
Nesse sentido, vejamos algumas cláusulas convencionais, com o devido nº. de registro no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o período de vigência: Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado de Minas Gerais x Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Construção de Belo Horizonte. Número do Registro no M.T.E.: MG005388/2013 Vigência da CCT: 01-11-2013 a 31-10-2014
Princípio da adequação setorial negociada Está relacionado às possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva. A questão a ser analisada é em que medida as normas autônomas coletivas negociadas podem se contrapor às normas individuais heterônomas estatais. Nas palavras de Godinho (2014), as normas negociadas podem prevalecer em duas circunstâncias: quando as normas autônomas coletivas implementam padrão de direitos superior ao da legislação heterônoma aplicada e, ainda, quando as normas autônomas transacionam setorialmente parcelas de indisponibilidade relativa. Destaca-se que as normas no âmbito do Direito Individual de Trabalho são imperativas e os direitos trabalhistas indisponíveis. Todavia, no plano do Direito Coletivo de Trabalho, a disposição de direitos é possível, desde que observados alguns limites: impossibilidade de renúncia e impossibilidade de negociação inferior ao patamar civilizatório mínimo estabelecido em lei, salvo quando houver a possibilidade de flexibilização de direitos pela própria norma. Com efeito, os sindicatos devem atuar sempre em observância aos princípios coletivos, visando maior segura e efetividade no que concerne a implementação de direitos por meio da negociação coletiva autônoma.
CLÁUSULA DÉCIMA TERCEIRA - ABONO DE FÉRIAS. Com o objetivo de estimular a assiduidade ao trabalho, as empresas e empregadores concederão aos seus empregados um abono de férias anual, independentemente do abono constitucional, da seguinte forma: (Destaquei e grifei). A) Para os que percebem até R$902,00 (novecentos e dois reais), o abono será igual a 80 (oitenta) horas de trabalho, a serem calculadas sobre o salário contratual; B) Para os que percebem acima de R$902,00 (novecentos e dois reais), o abono será igual a 80 (oitenta) horas de trabalho, a serem calculadas sobre a porção do salário equivalente a R$902,00 (novecentos e dois reais). § 1º - Somente farão jus ao abono de férias ora ajustado os empregados que demonstrarem assiduidade no período aquisitivo das férias, completado durante a vigência deste acordo, entendendo-se por assiduidade a do empregado que houver faltado ao serviço até, no máximo, 3 (três) vezes durante o período aquisitivo das férias, excetuando-se as ausências previstas no art. 473 da CLT, devidamente comprovadas. § 2º - As horas de salário correspondentes ao abono de férias de que trata essa cláusula serão pagas ao empregado por ocasião do retorno das férias, após seu efetivo gozo, na primeira folha de pagamento subsequente. E serão estendidas, nas mesmas bases e condições ora convencionadas, à hipótese de indenização de férias adquiridas ou vencidas por ocasião da rescisão contratual. O mesmo não ocorrerá, porém, quando do pagamento de férias proporcionais no acerto final rescisório, no qual o abono de férias não será devido. (Destaquei e grifei). § 3º - O abono de férias de que trata esta cláusula será calculado apenas sobre o salário fixo auferido pelo empregado, sem considerar na sua composição quaisquer outras parcelas de natureza salarial, tais como horas extras, repousos remunerados, adicional noturno, adicional de insalubridade ou de periculosidade ou qualquer outro título. § 4º - O fato de o empregado haver convertido 1/3 (um terço) do período de férias a que tiver direito em abono pecuniário não importará na redução do presente abono de que trata esta cláusula. § 5º - Os empregados que receberem seus salários por mês terão esses salários convertidos em horas, para efeito de pagamento do abono ora instituído. § 6º - A faixa salarial referida nas letras A e B do “caput” desta cláusula sofrerá os mesmos reajustes e antecipações que, porventura, vierem a ser aplicados aos salários da categoria profissional convenente. § 7º - O abono de férias de que trata o caput desta cláusula não integrará a remuneração do empregado para os efeitos da legislação do trabalho e da previdência social (INSS), consoante dispõe o art. 144 da CLT.
v - CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO (CCT) E ACORDO COLETIVO DE TRABALHO (ACT) Segundo dispõe a CLT (art. 611, caput), convenção coletiva de trabalho corresponde ao acordo de caráter normativo pelo qual dois ou mais sindicatos representativos das categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho, aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho. A CCT é resultado das negociações realizadas por entidades sindicais dos empregados e empregadores e, portanto, sua abrangência é coletiva. O ACT, por sua vez, é o pacto de caráter normativo, pelo qual um sindicato representativo de determinada categoria profissional e uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas empresas (Godinho, 2014). Ressalta-se que o acordo coletivo é mais limitado que a convenção coletiva, uma vez que a abrangência, neste caso, ocorre somente entre a empresa ou empresas que participaram do respectivo acordo e, via de conseqüência, alcança somente os empregados destas empresas. Critérios adotados pelas CCT’s para concessão do abono de férias Diante da controvérsia existente quanto ao tema abordado, é imprescindível apresentar as formas e critérios estabelecidos para a concessão de pagamento do abono de férias convencional. Vale ressaltar que o assunto é tratado por diversas convenções coletivas de trabalho, mas que será demonstrado, aleatoriamente, o inteiro teor de apenas algumas convenções e cláusulas convencionais correspondentes ao sindicato da categoria que firmou a negociação em questão, não havendo a necessidade de elencar muitas delas aqui.
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Federação Trab Inds Meta Mec Mat Eletrico Estado de MG x Sindicato da Industria do Ferro no Estado de Minas Gerais x Sindicato Nacional da Industria de Maquinas x Sind Nacional Ind Componentes para Veiculos Automotores x Sind Nacional da Ind de Tref e Lamin de Metais Ferrosos x Sindicato da Ind Mecanica do Estado de Minas Gerais x Sindicato da Ind de Apar Elet Eletron Sim Est Minas Gerais.
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Número do Registro no M.T.E.: MG003691/2012 Vigência da CCT: 01-10-2011 a 30-09-2012 CLÁUSULA QUADRAGÉSIMA OITAVA - ABONO DE FÉRIAS. Ao empregado que durante o período aquisitivo de férias, não tiver mais de 7 (sete) faltas ao serviço, justificadas ou não, quando sair em gozo de férias, será pago um abono nos seguintes valores e condições: a. O abono será no valor correspondente a 1/3 (um terço) do salário nominal mensal, tendo como base o salário do dia do início do gozo de férias do empregado e não poderá superar o valor máximo de R$ 1.116,60 (hum mil cento e dezesseis reais e sessenta centavos), para o empregado que tiver 0 (zero) falta no período aquisitivo: b. O abono será no valor correspondente a 1/4 (um quarto) do salário nominal mensal, tendo como base os salários do dia do início do gozo de férias e não poderá superar o valor máximo de R$ 755,30 (setecentos e cinquenta e cinco reais e trinta centavos) para o empregado que não tiver mais de 4 (quatro) faltas ao serviço; c. O abono será no valor correspondente a 1/5 (um quinto) do salário nominal mensal, tendo como base os salários do dia do início do gozo de férias do empregado e não poderá superar o valor máximo de R$ 638,00 (seiscentos e trinta e oito reais), para o empregado que tiver mais de 4 (quatro) e até 7 (sete) faltas justificadas ou não. § 1º - Não serão consideradas faltas para os fins previstos nesta cláusula as seguintes ausências ao trabalho: I. As enumeradas no art. 473 da CLT; II. Por motivo de maternidade ou aborto, desde que observados os requisitos para a percepção do salário maternidade custeado pela Previdência Social e que o afastamento não seja superior a 120 (cento e vinte dias); III. Por motivo de acidente do trabalho desde que o afastamento dentro do período aquisitivo seja inferior a 6 (seis) meses; IV. Por motivo de doença, quando o afastamento for superior a 15 (quinze) dias contínuos e desde que o empregado tenha recebido da Previdência Social prestações de auxílio-doença por até 6 (seis) meses dentro do período aquisitivo. V. Por motivo de casamento, paternidade, morte do sogro ou sogra, sindical, atestado pediátrico, nos limites máximos remunerados por esta convenção. VI . Por motivo de acompanhamento de seus filhos menores de até 12 anos ao médico, nas condições previstas na cláusula 52ª (Atestados médicos pediátricos) desta Convenção Coletiva. § 2º - O abono previsto nesta cláusula somente será devido nos casos de gozo das férias e demissão do empregado pela empresa, sem justa causa, não sendo devido no caso de férias proporcionais; (Destaquei e grifei). § 3º - Na ocorrência de férias coletivas, gozando o empregado férias proporcionais, iniciando-se novo período aquisitivo, o abono será pago também proporcionalmente; § 4º - Quando as férias forem gozadas parceladamente o abono será pago na saída do maior período de gozo; § 5º - O empregado que gozar férias antecipadas, receber o abono e faltar mais de 7 (sete) vezes dentro do período aquisitivo, perderá o direito ao abono referente ao período aquisitivo subsequente; § 6º - Ao Dirigente Sindical que faltar, por convocação do seu Sindicato, pagar-se-á o abono de férias na mesma proporção das férias a que fizer jus; § 7º - Ficam excluídas da obrigatoriedade da presente Cláusula as empresas que já concedem abono ou gratificação de retorno de férias, em valores iguais ou superiores ao aqui estabelecido, bem
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como aquelas que concedem prêmio por assiduidade em valor igual ou superior ao da presente Cláusula; § 8º - O abono previsto nesta cláusula não se incorporará ao salário para quaisquer efeitos e não sofrerá incidências trabalhistas e previdenciárias, conforme expressamente previsto no art. 144 da CLT e no art. 28, § 9º, “e”, 6 da Lei 8.212, de 24/07/1991, respectivamente. Muito embora as mencionadas convenções coletivas do trabalhado pactuem o mesmo objeto (abono de férias), é possível verificar que há diferenças entre os critérios adotados. Cito, p.e., o número de faltas que o empregado possa vir a ter durante o período aquisitivo perante o empregador. Na primeira norma coletiva apresentada, o máximo de faltas por ano para recebimento do abono de 1/3 (um terço) é de três faltas; enquanto na outra norma coletiva, o empregado não poderá ter falta alguma no transcurso do mencionado período aquisitivo para recebimento do benefício de 1/3 (um terço), até quatro faltas para o recebimento de 1/4 (um quarto); sendo certo, que acima de quatro, no limite de sete faltas, também tem direito ao abono, mas em fração menor, ou seja, 1/5 (um quinto) do salário base. Verifica-se, que o abono não é devido nos casos de férias proporcionais, sendo assim, não será objeto de pagamento nas verbas rescisórias quando ocorrer a dispensa sem justa causa antes que se complete o período aquisitivo de um ano. (grifei) É importante salientar, que em ambas as CCT’s, as ausências preceituadas no art. 473 da CLT, (além das situações específicas de cada CCT), desde que devidamente comprovadas, são excluídas das hipóteses de faltas instituídas em cláusula convencional. A propósito, nesse sentido: Art. 473 da CLT – Hipóteses de faltas. Falecimento de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou dependente econômico; casamento; nascimento de filho no decorrer da primeira semana; doação voluntária de sangue; alistamento eleitoral; em cumprimento de exigências do Serviço Militar referidas na letra “c” do art. 65 da Lei nº. 4.375/64; realizando provas de exame vestibular; comparecimento em juízo; na qualidade de representante de entidade sindical quando estiver participando de reunião oficial de organismo internacional do qual o Brasil seja membro. Diante das exposições elucidadas acima, conclui-se que existem critérios a serem cumpridos para ensejar o pagamento do respectivo abono. O DIREITO ÀS FÉRIAS Antes de aprofundar o assunto, especificamente na possibilidade de cumulação do abono de férias decorrente de norma coletiva e do abono de 1/3 (um terço) constitucional, faz-se necessário entender a definição jurídica do que vem a ser às férias, bem como do respectivo abono de férias, ambos instituídos pelo ordenamento jurídico. Férias é o direito do empregado de suspender a prestação de serviços, por iniciativa do empregador, com direito à remuneração, na vigência do contrato de trabalho após o período aquisitivo de doze meses e, por um determinado número de dias, de acordo com a tabela abaixo. (Portal da Educação. Disponível em <http://www.portaleducacao.com.br/Artigo/Imprimir/24683>) Sendo assim, o trabalhador deixa de prestar serviços, dando lugar ao descanso para recuperação física e mental.
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Fonte: C&T Consultores e Associados. Disponível em: <http://www.cetconsultores.com.br/index.php>
No Brasil, o direito às férias surgiu em 1925, entretanto somente para algumas empresas. Em 1943, o direito às férias foi convertido em lei, estendendo-se a todos os trabalhadores. No tocante ao abono de 1/3 (um terço) de férias, este direito foi instituído na CF/1988, que também consagrou outras alterações importantes para o Direito do Trabalho. Diante do exposto, o direito às férias é concedido anualmente a todos os empregados, urbanos ou rurais, com remuneração integral, acrescida de no mínimo 1/3 (um terço), conforme estabelecido no art. 129 da CLT, cumulado com o art. 7º, XVII, da CF/88. Abono constitucional O acréscimo de 1/3 (um terço) mencionado anteriormente corresponde ao abono de férias preceituado no art. 7º, XVII, da CF/88 e art. 142 e ss. da Consolidação das Leis do Trabalho, podendo, ainda ser estabelecido em convenção coletiva de trabalho. Destaca-se que o abono de férias convencional não é uma premiação e sim uma obrigação imposta ao empregador diante da existência do contrato de trabalho (Godinho, 2014). Não se pode deixar de considerar, ainda, a aplicação da proporcionalidade, uma vez que o abono de 1/3 (um terço) constitucional é devido a todo trabalhador, caso haja a cessação do contrato de trabalho em toda e qualquer modalidade de rescisão contratual, desde que não ensejada por justa causa, será devido o pagamento na proporção de 1/12 por mês de serviço prestado ou fração superior a 14 (quatorze) dias, conforme dispõe o art. 147 da CLT, cumulado com a Convenção 132 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e Súmula nº. 171 do TST. Vale ressalvar que a proporcionalidade demonstrada na tabela anterior também será aplicada no cálculo das férias proporcionais na rescisão contratual. Abono convencional Lado outro, o abono de férias decorrente de determinadas normas coletivas (como p. e.: Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de Minas Gerais, Sindicato da Indústria de Ferro do Estado de Minas Gerais, Sindicato Nacional da Indústria de Máquinas, etc) define-se como uma faculdade do empregador em premiar o empregado assíduo. Sendo assim, para que o empregado possa ter jus ao abono de férias em questão, deve ser observado o número de faltas, justificadas ou não, apresentadas durante o período de um ano de trabalho. É certo dizer, que o empregado que deixar de cumprir os requisitos necessários, não recebe o abono instituído por meio de negociação coletiva. Insta salientar que o abono de férias estabelecido em norma coletiva somente é devido ao empregado que completar 1 (um) ano de trabalho perante ao mesmo empregador, mediante cumprimento
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dos critérios adotados, os quais serão tratados adiante, em tópico específico deste trabalho. A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO SIMULTÂNEA DOS ABONOS DE FÉRIAS A cumulação dos abonos de férias supracitados permite uma maior satisfação do empregado diante da expectativa em receber um plus salarial, via de consequência o empregador é beneficiado por meio da redução do índice de absenteísmo, e ainda, por meio da probabilidade de aumento na produtividade e qualidade dos serviços prestados. Tal situação também pode ser visualizada nos casos de terceirização, visto que haverá uma possível redução de glosas no faturamento perante o tomador de serviços, diminuindo a preocupação da empresa prestadora de serviços em relação à substituição do posto de trabalho do empregado ausente nesse período, gerando, desta forma, uma majoração no lucro do empregador (prestador de serviços). Com efeito, o que se faz entender é que a possibilidade de pagamento dos abonos favorece tanto o empregado, quanto o empregador, uma vez que a satisfação pode ser vista de maneira recíproca. Insta salientar que o abono de férias estipulado no art. 7º, XVII, da Constituição Federal Brasileira é claro ao expressar que: “as férias anuais devem ser remuneradas com pelo menos 1/3 (um terço) a mais que a base salarial mensal”. Trata-se de direito fundamental, o qual o pagamento é obrigatório por todo empregador. (Grifei) Ora, “pelo menos 1/3 a mais”, significa dizer, que pode, por liberalidade ser acrescido por qualquer fração superior a constitucional. Não há dúvida quanto a isso, o que acaba por contrariar o disposto na Orientação Jurisprudencial 50 SBDI-1 T do TST. Nesse diapasão: FÉRIAS. ABONO INSTITUÍDO POR INSTRUMENTO NORMATIVO E TERÇO CONSTITUCIONAL. SIMULTANEIDADE INVIÁVEL (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 231 da SBDI-1) - DJ 20.04.2005. O abono de férias decorrente de instrumento normativo e o abono de 1/3 (um terço) previsto no art. 7º, XVII, da CF/88 têm idêntica natureza jurídica, destinação e finalidade, constituindo-se “bis in idem” seu pagamento simultâneo, sendo legítimo o direito do empregador de obter compensação de valores porventura pagos. (ex-OJ nº 231 da SDI-1 - inserida em 20.06.01). No caso em apreço, entender pela aplicação da respectiva OJ levará por consequência, a afronta constitucional, uma vez que a norma legal autoriza o pagamento superior a 1/3 do salário mensal. É possível afirmar que a cumulação dos abonos de férias possui a mesma natureza jurídica (indenizatória – não incide contribuições previdenciárias, verbas trabalhistas e previdenciárias), entretanto ambas não se confundem no que diz respeito à destinação e finalidade. Se por um lado o pagamento do abono constitucional se destina
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CLT exige que a afronta seja direta e literal. GRATIFICAÇÃO DE FÉRIAS DEFERIDA EM NORMA COLETIVA. EXCLUSÃO DO ADICIONAL DE 1/3 SOBRE AS FÉRIAS. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XVII, DA CF/88. Ao afirmar o aresto regional que a gratificação de férias paga por força de norma coletiva, superior à devida pelo art. 7º da CF/88, tem idêntica finalidade e mesma natureza jurídica, cabendo compensação, não incide em afronta direta e literal ao dispositivo constitucional em testilha. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR: 4787976319985015555 478797-63.1998.5.01.5555, Relator: José Antônio Pancotti, Data de Julgamento: 26/11/2003, 4ª Turma,, Data de Publicação: DJ 30/01/2004.)
a recompensar o empregado pelo trabalho realizado durante o período aquisitivo daquela vantagem, por outro, o pagamento do abono convencional se destina somente aos empregados assíduos, ou seja, aquele que cumpriu as exigências estabelecidas para que tivesse jus ao recebimento da parcela. O abono convencional possui características de assiduidade, trata-se de um abono motivacional, que tem objetivo premiar o empregado que não falta ao serviço. Enquanto o abono constitucional trata-se de obrigação do empregador perante ao empregado. Nesse sentido, segundo o ministro Humberto Martins (STJ): O abono constitucional, assim como as férias, tem o objetivo de reparar o desgaste sofrido pelo trabalhador em decorrência do exercício normal de sua profissão durante o período aquisitivo. O dinheiro recebido serve para atividades de lazer, de forma a permitir a recomposição do estado de saúde física e mental do trabalhador. Consultor Jurídico. Disponível em http// www.conjur.com.br/2015-mai-01/imposto-renda-incide-tercoférias-decide-stj Percebe-se claramente que há uma grande diferença na destinação e finalidade dos respectivos abonos. Como destacado anteriormente, o professor Maurício Godinho, afirma que não poderá haver supressão parcial ou total de direito. Inteligência do princípio da condição mais benéfica. Desta maneira, deve prevalecer a possibilidade de pagamento simultâneo dos abonos em comento, sob pena de violação literal à Constituição Federal Brasileira, não havendo, portanto, que se falar em bis in idem pelo C. TST.
Nesse sentido, a OJ nº. 50 da SBDI-1 T do C. TST: FÉRIAS. ABONO INSTITUÍDO POR INSTRUMENTO NORMATIVO E TERÇO CONSTITUCIONAL. SIMULTANEIDADE INVIÁVEL (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 231 da SBDI-1) - DJ 20.04.2005. O abono de férias decorrente de instrumento normativo e o abono de 1/3 (um terço) previsto no art. 7º, XVII, da CF/88 têm idêntica natureza jurídica, destinação e finalidade, constituindo-se “bis in idem” seu pagamento simultâneo, sendo legítimo o direito do empregador de obter compensação de valores porventura pagos. (ex-OJ nº 231 da SDI-1 - inserida em 20.06.01). Lado outro, algumas turmas do TRT defendem que é possível a cumulação do pagamento de abono de férias. Nesse giro, a 4ª Turma da 3ª Região proferiu a seguinte decisão: EMENTA: ABONO DE FÉRIAS. TERÇO CONSTITUCIONAL. DISTINÇÃO. NÃO APLICABILIDADE DA OJ nº. 50 da SDI 1 - T, do TST. O abono de férias ajustado por norma coletiva, que visa premiar o empregado e desestimular a ausência injustificada ao trabalho, não se confunde com o terço das férias assegurado pelo art. 7º, inciso XVII, do texto constitucional, que implementou um plus salarial àquele que completa o período aquisitivo para fruição das férias regulamentares. Na hipótese, observa-se que o intuito das entidades sindicais que firmaram a convenção coletiva objeto de controvérsia foi estimular o empregado a se abster de faltar ao trabalho, conforme critérios estabelecidos por meio de cláusula normativa. Diferentemente o terço constitucional sobre as férias, direito fundamental que não está sujeito a negociação coletiva e muito menos vinculado a qualquer critério ou regras específicas para efeito de pagamento, que é obrigatório e assegurado a todo o empregado que tem jus às férias anuais. Recurso desprovido. (TRT3 – RO: 02299201307503006 02299.2013.075.03.00.6, Relator: Des. Paulo Chaves Corrêa Filho. Data de Julgamento: 20/10/2014, 4ª Turma).
Divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da cumulação dos abonos de férias Tendo em vista, que o Direito autoriza interpretações diversas, pretende-se discutir o posicionamento que vem sendo adotado pelo C. Tribunal Superior do Trabalho – TST para o caso em questão. Algumas turmas do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais – TRT3ª região, defendem a possibilidade de cumulação do pagamento de abono de férias, todavia o Tribunal Superior do Trabalho parte do pressuposto de que tal pagamento simultâneo caracteriza bis in idem e, ainda, atribui à empresa o direito de restituição dos valores pagos a igual título. Vejamos: NULIDADE DO ACÓRDÃO REGIONAL POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. O aresto regional, ao afirmar que a correção seria devida a partir da data do rompimento do pacto laboral e não a partir do prazo estipulado no § 6º do art. 477 consolidado, não respeitado, concluiu por não ter havido o pagamento da correção monetária, nos termos da condenação, rejeitando a alegação de pagamento da correção monetária como deferida. Razão porque a rejeição dos embargos não implicou violação dos arts. 832 da CLT e 93, IX, da Constituição Federal de 1988. CORREÇÃO MONETÁRIA SOBRE A PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS. ART. 477, § 6º, DA CLT. VIOLAÇÃO DO ART. 5º, II, DA CF/88.Não há ofensa direta e literal ao inciso II do art. 5º da CF/88 na decisão que, ao interpretar o alcance do § 6º do art. 477 da CLT, conclui que, não observado o lapso temporal, legal, para a quitação das rescisórias e sendo devida a participação nos lucros na data do rompimento do vínculo, a correção monetária incide a partir da data do rompimento do pacto laboral. Descabe reexame por eventual violação indireta, reflexa ou disfarçada. O permissivo da alínea c do art. 896 da
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Consoante ao entendimento adotado pela 4ª turma do TRT 3ª Região, também se manifestou a 5ª turma, mantendo a decisão a favor do pagamento simultâneo dos respectivos abonos de férias. Nesse sentido:
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EMENTA: ABONO DE FÉRIAS DECORRENTE DE NORMA COLETIVA. O abono constitucional de 1/3 sobre férias previsto na Constituição da República em nada se confunde com o abono de férias previsto nas normas coletivas aplicáveis ao caso, já que este último, embora pago juntamente com as férias, está muito mais relacionado à assiduidade do trabalhador, sendo conce-
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dido como verdadeiro prêmio para aqueles que lograram não faltar ao serviço. Recurso desprovido. (TRT3 – RO: 000182013-178-03-00-8 RO, Relatora: Juíza Convocada Maristela Iris S. Malheiros. Data de Julgamento: 19/05/2014, 5ª Turma). Em que pese o TST ter firmado entendimento quanto ao tema, por meio de OJ, não se pode simplesmente ignorar os entendimentos adotados por diversas turmas dos tribunais regionais. O assunto em questão deve ser analisado e interpretado de forma mais cautelosa, a fim de propiciar ao empregado a vantagem que fora objeto de negociação com o intuito de atender àquele que é parte hipossuficiente na relação de trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo foi realizado sob a ótica dos princípios do Direito Individual e Coletivo do Trabalho, visando à melhor exegese da Lei Maior e dos textos convencionais pactuados, com o fito de estabelecer maiores condições de igualdade entre as partes. Se por um lado o pagamento do abono constitucional se destina a recompensar o empregado pelo trabalho realizado durante o período aquisitivo daquela vantagem, por outro, o pagamento do abono convencional se destina somente aos empregados assíduos, ou seja, aquele que cumpriu as exigências estabelecidas para que tivesse jus ao recebimento da parcela. Com efeito, o abono convencional possui características de assiduidade, trata-se de um abono motivacional, que tem objetivo de premiar o empregado que não falta ao serviço. Pelo exposto, comungamos do entendimento vislumbrado por algumas turmas do TRT3ª região, de que é possível a cumulação do abono de férias constitucional e convencional, uma vez que a interpretação do artigo 7º, XVII, da Constituição Federal Brasileira não limita, mas apenas estabelece um patamar mínimo a ser cumprido. Logo, não caracterizado bis in idem quanto ao pagamento dos respectivos abonos, indevida a restituição de valores pagos pelo empregador. Diante das considerações apresentadas, verifica-se a possibilidade do pagamento simultâneo ora defendido, com a necessidade de uma melhor análise pelo Poder Judiciário quanto ao tema abordado, tendo em vista que a inviabilidade do pagamento em questão prejudica a parte hipossuficiente da relação jurídico trabalhista.
BRASILEIRO, Ada Magaly Matias. Manual de Produção de Textos Acadêmicos e Científicos. Editora Atlas: São Paulo, 2013. C&T Consultores e Associados. Tabela de férias em função do número de faltas não justificadas. Disponível em: http://www.cetconsultores.com.br/index.php> Acesso em 22 Mai. 2015. Consolidação das Leis do Trabalho. Ed. LTr: São Paulo, 2012. Consultor Jurídico. Objetivo do abono de férias convencional. Disponível em: <http//www.conjur.com.br/2015-mai-01/imposto-renda-incide-terco-férias-decide-stj> Acesso em 01 Jun. 2015. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13ª edição. Editora LTr: São Paulo, 2014. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. Guia Trabalhista. Férias: Aspectos gerais. Disponível em: <http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/ferias.htm> Acesso em: 03 Mai. 2015. MONTEIRO, Alice de Barros. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. Editora LTr: São Paulo, 2007. MORAES, Alexandre de (org.) REPÚBLICA, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. 40ª ed. Atlas: São Paulo, 2014. NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 29ª edição. Editora Saraiva: São Paulo, 2014. Portal Educação. Artigo sobre férias: Conceito e Natureza Jurídica. Disponível em: <http://www.portaleducacao.com.br/Artigo/Imprimir/24683> Acesso em: 27 Out. 2014. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Editora LTr: São Paulo, 1993.
NOTAS DE FIM 1 Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Orientador Professora Daniela Lage Mejia Zapata.
REFERÊNCIAS ALVES, Amauri Cesar. Direito do Trabalho Essencial: Doutrina, legislação, jurisprudência, exercícios. 1ª edição. Editora LTr: São Paulo, 2013. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho Ementa: Abono de férias decorrente de norma coletiva. Disponível em: < https://as1.trt3.jus.br/juris/consultaBaseCompleta.htm> Acesso em 29 Out. 2014. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho Ementa: Abono de férias. Terço constitucional. Distinção. Não aplicabilidade da OJ. Nº 50 da SDI 1 – T, do TST. Disponível em: <https://as1.trt3.jus.br/juris/detalhe.htm?conversationId=5708> Acesso em 29 Out. 2014. Brasil. Tribunal Superior do Trabalho. Orientação Jurisprudencial nº 50 - Seção de Dissídios Individuais I Transitória - SDI Transitória. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1_Transitoria/n_transitoria.html#Tema50>. Acesso em: 03 Out. 2014. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho Ementa: Gratificação de férias deferida em norma coletiva. Exclusão do adicional de 1/3 sobre as férias. Disponível em: <http:// tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1758152/recurso-de-revista -rr-4787976319985015555-478797-6319985015555> Acesso em: 23 Out. 2014.
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A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Thássyla Martins Athayde Lobato¹ Bernardo Ribeiro Câmara² RESUMO: O direito a alimentos é um direito fundamental previsto no artigo 6º da Constituição da República e como tal merece um tratamento diferenciado por parte do legislador. O procedimento executivo reveste-se de grande importância na medida em que torna efetivo o direito existente. O Código de Processo Civil de 1973 passou por diversas reformas, em especial no que tange ao processo de execução, visando tornar o processo mais efetivo. O Código de Processo Civil de 2015 altera a execução de alimentos de forma significativa através de medidas que visam tutelar o direito a alimentos e atender as atuais necessidades da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: crédito alimentar; execução de alimentos; reforma; novo Código de Processo Civil. ABSTRACT: The right to food is a fundamental right provided in the article 6º of the Constitution of the Republic and as such desserves a differentiated treatment by the legislator. The process of execution is of coeted great importance in that it makes effective the existing law.. The Code of Civil Process of 1973 has undergone several reforms, particularly with regard to the implementation process, in order to make the process more effective. The Code of Civil Process of 2015 changes the execution of food significantly by measures to protect the right to food and meet the current needs of society. KEYWORDS: food credit; execution of food; reform; new code of Civil Process. SUMÁRIO: I- Introdução; II- A execução de alimentos frente às diversas reformas do Código de Processo Civil; III- Alterações trazidas pelo novo Código de Processo Civil na execução de alimentos, III.I– Do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, III.II- Da execução de alimentos de título executivo extrajudicial, III.III - Do protesto judicial, III.IV- Prisão em regime fechado, III.V- Crime de abandono material, III.VI -Inclusão do exequente em folha de pagamento de pessoa jurídica de notória capacidade econômica, III.VII- Constituição de capital cuja renda assegure o pagamento do valor mensal da pensão; IV- Dos avanços e retrocessos trazidos pelas alterações do novo CPC à execução de alimentos; V- Considerações Finais; Referências Bibliográficas.
I. INTRODUÇÃO O procedimento executivo reveste-se de grande importância na medida em que torna efetivo o direito ao recebimento de alimentos, por isso esse procedimento precisa ser revestido de celeridade evitando que ocorra o perecimento do direito tutelado. Dessa forma, é mister que a tutela jurisdicional executiva opere com eficiência e para isso se faz necessária a existência de um modelo processual adequado que forneça meios precisos e eficazes, ainda mais quando a obrigação de pagar for de natureza alimentar. As diversas reformas sofridas pelo Código de Processo Civil ao longo do tempo foram justamente com o objetivo de tornar o processo mais célere e efetivo. Com o novo CPC não é diferente, o legislador optou por implementar um processo moderno que atendesse as reais necessidades da sociedade e socorresse o judiciário de seu maior revés, a morosidade. O novo CPC traz em seu artigo 1º o princípio basilar para a interpretação do diploma legal em sua integralidade, dispondo que os valores e as normas fundamentais estabelecidas na Constituição da República servirão para ordenar o processo civil. O direito a alimentos é um direito fundamental previsto no artigo 6º da Constituição da República³ e relaciona-se diretamente a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, esse direito merece uma proteção especial por parte do legislador, não só por ser uma garantia fundamental, mas também por ser revestido de urgência, vez que sem alimentos não há vida com dignidade. Sendo assim, o novo CPC busca trazer uma maior proteção ao crédito alimentar, implementando na execução de alimentos medidas que visam coibir o inadimplemento e facilitar o pagamento da dívida alimentícia, tutelando-se com rigor a dignidade da pessoa humana.
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II. A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS FRENTE ÀS DIVERSAS REFORMAS DO PROCESSO DE EXECUÇÃO O Código de Processo Civil de 1973 passou por diversas reformas. O processo de execução está dentre os procedimentos que mais sofreram alterações com essas reformas. No que diz respeito á execução de alimentos a Lei 6.515/77 foi sua primeira reforma desde a vigência do Código de 1973 e a única que a modificou diretamente ao dar nova redação ao parágrafo 2º do artigo 733. O artigo 733 do Código de Processo Civil de 1973 dispõe que: Art. 733 Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
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Em sua redação antiga o parágrafo 2º dispunha que: (...) § 2º O cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas ou vincendas; mas o juiz não lhe imporá segunda pena, ainda que haja inadimplemento posterior.
Após a reforma o parágrafo segundo passou a aduzir que: (...) § 2o O cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas.
A pena referida no parágrafo segundo é a pena de prisão,
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tendo em vista que o parágrafo primeiro do mesmo artigo dispõe que se o devedor não pagar e nem se escusar, deverá o juiz decretar prisão pelo prazo de um a três meses. Sendo assim, diante da redação dada pela Lei 6.515/77, passou a ser possível a decretação de quantas penas de prisão forem necessárias caso haja inadimplemento posterior. Importante destacar que a prisão nunca poderá ser decretada mais de uma vez diante do mesmo crédito alimentar, mas sim diante de créditos posteriores. As alterações mais recentes no processo de execução se deram através das leis 11.187/05, 11.232/05, 11.276/05, 11.277/06, 11.280/06 e 11.382/06. Dentre elas as mais significati-vas foram a Lei 11.232/05, que trouxe ao ordenamento o instituto do cumprimento de sentença nas obrigações de pagar quantia certa, e a Lei 11.382/06, que modificou a execução de títulos extrajudiciais e o procedimento de liquidação de sentença. Tais reformas trouxeram sim alterações significativas ao processo de execução, entretanto o legislador permaneceu silente no que diz respeito à execução de alimentos, já que diante de tais reformas ela não foi alterada diretamente, com artigos revogados ou inclusão de novos dispositivos legais. Esse silêncio do legislador causou discussões doutrinárias e jurisprudenciais calorosas. Dentre os pontos de grande debate está o referente ao cumprimento de sentença. Cumprimento de sentença constitui-se na possibilidade de, após a prolação da sentença, dar-se início à atividade executiva nos mesmos autos do processo de conhecimento, é o chamado processo sincrético que visa garantir simplicidade e celeridade ao processo judicial. Maria Helena Diniz (2007, pg.11) defende que: Portanto, o crédito alimentar está sob a égide da Lei 11.232/05, podendo ser buscado o cumprimento da sentença nos mesmos autos da ação em que os alimentos foram fixados (CPC, art. 475-J). Houve mero descuido do legislador ao não retificar a parte final dos arts. 732 e 735 do CPC e fazer remissão ao Capítulo X, do Título VII: “Do Processo de Conhecimento”. Em sentido contrário Humberto Theodoro Júnior (2010, pg. 387) dispõe: Como a Lei nº 11.232/2005 não alterou o art. 732 do CPC, continua prevalecendo nas ações de alimentos o primitivo sistema dual, em que acertamento e execução forçada reclamam o sucessivo manejo de duas ações separadas a autônomas: uma para condenar o devedor a prestar alimentos e outra para forçá-lo a cumprir a condenação. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu que: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA - EXECUÇÃO DE ALIMENTOS - AJUIZAMENTO SOB O RITO DO ART. 732 DO CPC - APLICAÇÃO DAS REGRAS CONCERNENTES AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, NOS TERMOS DO ART. 475-I, DO CPC - PRECEDENTES - EMBARGOS À EXECUÇÃO - DESCABIMENTO - NECESSIDADE DE SEGURANÇA DO JUÍZO PARA O RECEBIMENTO DA PEÇA IMPUGNATIVA AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - INTELIGÊNCIA DO ART. 475-J, § 1º, do CPC - RECURSO NÃO PROVIDO - SENTENÇA MANTIDA. 1. Malgrado a controvérsia jurisprudencial e doutrinária existente a respeito da aplicação das regras do cumprimento de sentença às execuções alimentícias fulcradas no art. 732 do CPC, o c. Superior Tribunal de Justiça já firmou o entendimento de que o crédito alimentar reveste-se de prioridade e urgência, devendo ser garantido ao credor o meio mais eficaz de cobrança, o qual se realiza no sincretismo executório trazido pela
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Lei n. 11.232/05. 2. Reputando-se aplicável a sistemática do cumprimento de sentença à execução direta de alimentos, cumpre ao devedor resistir ao procedimento executório por intermédio da impugnação ao cumprimento da sentença. 3. A impugnação ao cumprimento da sentença tem sua admissibilidade vinculada à prévia garantia do juízo para possibilitar que, acaso desacolhida a impugnação, possa o credor ser satisfeito em seu crédito. 4. Recurso não provido. 5. Sentença mantida. (TJ-MG, Relator: Raimundo Messias Júnior, Data de Julgamento: 25/03/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL) Essa divergência doutrinária e jurisprudencial ocasiona interpretações divergentes nos dispositivos referentes à execução de alimentos do CPC de 1973, tendo em vista que parte da doutrina, como Humberto Theodoro e Araken de Assis, entendem pela inaplicabilidade da Lei 11.232/05 à execução de alimentos e outra parte, como Maria Helena Diniz, entende, de forma correta, pela aplicabilidade, utilizando-se para isso de uma interpretação dos artigos 732 a 735 do CPC de 1973 à luz dos artigos 475-I a 475-J, também do Código de Processo Civil de 1973. Outro ponto de grande discussão, e também como consequência direta da aplicabilidade da Lei 11.232/05 à execução de alimentos, diz respeito à possibilidade de aplicação da multa do 475-J do CPC de 1973, correspondente ao artigo 523 do CPC 2015, à execução de alimentos. Nesse sentido, Marinoni (2014, pg. 398), dispõe que: Não cumprida a sentença, o montante dos alimentos será acrescido de multa, no percentual de dez por cento. De acordo com o artigo 475-J do CPC, o não cumprimento da sentença, além de sujeitar o devedor a tal multa, faculta ao credor o requerimento de penhora e avaliação. Todavia, em sentido contrário, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal no julgamento do Agravo de Instrumento 100004420108070000 decidiu que: DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA. MULTA DO ART. 475-J DO CPC. INAPLICABILIDADE. DECISÃO MANTIDA. A EXECUÇÃO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA À PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS ESTÁ SUBMETIDA AO PROCEDIMENTO ESPECÍFICO, NÃO SENDO APLICÁVEL À HIPÓTESE A MULTA PREVISTA NO ART. 475 - J DO CPC, POIS, A LEI Nº 11.232/05, QUE INSTAUROU A FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, NÃO MODIFICOU OU REVOGOU OS ARTIGOS 732 E SEGUINTES DO CPC, TAMPOUCO, O DISPOSTO NO ART. 18 DA LEI Nº 5.478/68. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJ-DF - AI: 100004420108070000 DF 001000044.2010.807.0000, Relator: ANGELO PASSARELI, Data de Julgamento: 01/12/2010, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 03/12/2010, DJ-e Pág. 173) Data vênia, o entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal resta infundado, tendo em vista que, sendo o artigo 475-J introduzido no CPC de 1973 através da lei 11.232/05, por uma interpretação lógica e coerente é irrefutável sua aplicação à execução de alimentos, tendo em vista toda a importância que reveste o crédito alimentar. Uma vez superada a discussão a respeito do cabimento da multa de 10% ao crédito alimentar cumpre esclarecer que o executado poderá apresentar impugnação da decisão que condena ao pagamento dessa multa no prazo de 15 dias contados da intimação da penhora, segundo disposição do artigo 475-J, dirimindo-se eventuais
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prejuízos por parte do devedor de alimentos. Dessa forma, é evidente que toda a simplificação e celeridade implantada no ordenamento jurídico através da lei 11.232/05 deve refletir também na execução de alimentos, tendo em vista, principalmente, a importância do crédito alimentar. Essa discussão é válida enquanto vigorar o CPC de 1973, entretanto não terá mais sentido diante do CPC de 2015, tendo em vista que o novo diploma legal separa os institutos de cumprimento de sentença e execução dentro da execução de alimentos, dispondo sobre o procedimento de cada um. No tocante à aplicação da multa de 10%, o parágrafo 8º do artigo 528 do novo diploma legal ao fazer referência ao Título II do Capítulo III, que dispõe sobre a aplicação da multa de 10% em seu artigo 523,§ 1º, deixa clara a possibilidade de aplicação dessa multa à execução alimentar.
primento de sentença não se aplica à execução de alimentos pelo fato de a Lei 11.232/05 não ter modificado o artigo 732 do Código de Processo Civil de 1973. Discussão que, por mais que pareça já estar superada ainda divide os grandes doutrinadores processualistas. Ademais, o parágrafo oitavo do artigo 528 deixa clara a possibilidade de aplicação da multa de 10% à dívida alimentar, podendo o credor optar entre a aplicação dessa multa ou a prisão civil do devedor. O parágrafo dispõe ainda que recaindo a penhora em dinheiro, a concessão de efeito suspensivo à impugnação não obsta que o exequente levante mensalmente o valor da prestação. Importante é o papel do CPC de 2015 ao sanar essas omissões, tendo em vista que o crédito alimentar merece uma especial proteção do legislador, tendo em vista que o bem jurídico que está tutelado é a vida e a dignidade da pessoa humana.
III. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
III.II. DA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL A execução de alimentos está prevista nos artigos 911 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015. Uma das grandes novidades trazidas pelo novo Código de Processo Civil é a regulamentação da execução de alimentos fundada em título executivo extrajudicial. O procedimento executivo com base em título executivo extrajudicial, execução, mesmo sem regulamentação pelo Código de 1973 no que diz respeito ao crédito alimentar, é comumente utilizado para a execução das dívidas alimentares. Como exemplo de título executivo extrajudicial utilizado para esse fim é possível citar o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores, previsto no artigo 585, inciso II do Código de Processo Civil de 1973. Entretanto, parte da jurisprudência não aceita o uso da coerção pessoal na execução de alimentos fundada em título executivo extrajudicial. Como se pode ver na decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. ART. 733, CPC. PRISÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. A ação de execução de alimentos sob o rito coercitivo deve ser fundada em título executivo judicial, não podendo, pois, ter como base título extrajudicial. Isto porque, o art. 733 do CPC é claro ao mencionar que a execução sob aquele rito somente pode ter como base sentença ou decisão judicial. Entendimento diverso significaria dar amplitude à disposição legal que, ao fim e ao cabo, é meio de segregação do devedor e, portanto, deve ter interpretação restritiva. CONCEDERAM A ORDEM. UNÂNIME. (Habeas Corpus Nº 70058593963, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 27/02/2014) (TJ-RS - HC: 70058593963 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 27/02/2014, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 10/03/2014)
III.I. DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA QUE RECONHEÇA A EXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS (APLICAÇÃO DA MULTA DE 10%) A atividade executiva pode ocorrer de duas formas, através do processo de execução ou através do cumprimento de sentença. O processo de execução se origina através dos títulos executivos extrajudiciais, que estão previstos de forma taxativa no artigo 784 do CPC 2015, e trazem certa presunção de verossimilhança e fumus boni iuris, tendo em vista que para eles o legislador dispensou o processo de conhecimento e garantiu ao credor sua imediata execução. O cumprimento de sentença é a atividade executiva que se inicia através de um título executivo judicial que se origina de um processo de conhecimento. Esse instituto foi introduzido pelas leis 8.952/94, 10.444/02 e 11.232/05 e trouxe ao ordenamento jurídico pátrio o processo sincrético, que constitui-se na possibilidade de processo de conhecimento e processo de execução nos mesmos autos, dispensando-se portanto, a necessidade de ajuizar outra ação para que a sentença que condena ao pagamento de quantia certa seja executada. Como exposto no capítulo anterior, grande foi a discussão doutrinária e jurisprudencial a despeito da aplicação do cumprimento de sentença à execução de alimentos. No entanto, um dos grandes avanços do CPC 2015 foi colocar fim a essa discussão ao dispor separadamente dos institutos de execução e cumprimento de sentença da execução de alimentos. No Código de Processo Civil de 1973 a execução de prestação alimentícia está prevista nos artigos 732 e seguintes. O Código de Processo Civil de 2015 dispõe sobre a atividade executiva alimentícia em dois momentos distintos, primeiramente nos artigos 528 a 533, onde trata do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos e em um segundo momento nos artigos 911 e seguintes em que regulamenta a execução de alimentos, ou seja, a execução fundada em título executivo extrajudicial. O artigo 528 do Código de Processo Civil de 2015 dispõe que: Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. Esse dispositivo guarda similaridade com o artigo 733 do Código de 1973, entretanto, aqui trata-se especificamente do cumprimento de sentença, ou seja, da possibilidade de forçar o adimplemento do crédito alimentar nos autos do processo de conhecimento. O artigo 528 veio para colocar fim à discussão de que o cum-
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Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, apesar de em decisões anteriores entender não ser possível a utilização do rito do artigo 733 na execução de alimentos fundada em título executivo extrajudicial, em 2013 a 5ª Câmara Cível decidiu pela possibilidade: APELAÇÃO CÍVEL - EXECUÇÃO DE ALIMENTOS - ACORDO REGISTRADO EM CARTÓRIO FIRMADO ENTRE AS PARTES COM A ASSINATURA DE DUAS TESTEMUNHAS - TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - ARTIGO 585, II, DO CPC - POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO PELO RITO ESTABELECIDO NO ART. 733. - O acordo firmado entre as partes com a assinatura de duas testemunhas e lavrado em cartório constitui título executivo extrajudicial, nos moldes do art. 585, II, do CPC e, portanto,
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é apto a embasar a execução de alimentos no rito do art. 733 do mesmo diploma legal. (TJ-MG - AC: 10416100007374001 MG, Relator: Versiani Penna, Data de Julgamento: 07/03/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 12/03/2013)
prazo para pagamento voluntário previsto no art. 523. §1o Para efetivar o protesto, incumbe ao exequente apresentar certidão de teor da decisão. § 2o A certidão de teor da decisão deverá ser fornecida no prazo de 3 (três) dias e indicará o nome e a qualificação do exequente e do executado, o número do processo, o valor da dívida e a data de decurso do prazo para pagamento voluntário. § 3o O executado que tiver proposto ação rescisória para impugnar a decisão exequenda pode requerer, a suas expensas e sob sua responsabilidade, a anotação da propositura da ação à margem do título protestado. § 4o A requerimento do executado, o protesto será cancelado por determinação do juiz, mediante ofício a ser expedido ao cartório, no prazo de 3 (três) dias, contado da data de protocolo do requerimento, desde que comprovada a satisfação integral da obrigação.
Essa é mais uma controvérsia jurisprudencial que o Novo CPC colocará fim, tendo em vista que seu artigo 911 dispõe que: Art. 911. Na execução fundada em título executivo extrajudicial que contenha obrigação alimentar, o juiz mandará citar o executado para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento das parcelas anteriores ao início da execução e das que se vencerem no seu curso, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo. Parágrafo único. Aplicam-se, no que couber, os §§ 2o a 7o do art. 528. O parágrafo 3º do artigo 528 aduz: § 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1o, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses. Dessa forma, não restará mais dúvidas de que a execução de alimentos fundada em título executivo extrajudicial poderá ter como meio de execução a coerção pessoal. Esse é um avanço que trará efetividade para a execução dos créditos alimentares. O título executivo extrajudicial, por iniciar de imediato a execução apresenta forte valor probante, não havendo razões para que o legislador não reconheça a coerção pessoal nessa forma de execução. III.III. DO PROTESTO JUDICIAL Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. § 1° Caso o executado, no prazo referido no caput, não efetue o pagamento, não prove que o efetuou ou não apresente justificativa da impossibilidade de efetuá-lo, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 517. O protesto é um ato formal através do qual é possível dar publicidade ao inadimplemento do devedor. Para realizar esse procedimento o credor deve levar o título ao cartório onde o tabelião irá lavrar o protesto. Tal procedimento se reveste de duas finalidades, dar publicidade ao atraso do devedor e resguardar o direito de crédito do credor. O novo CPC trouxe essa possibilidade para dentro da execução de alimentos, uma novidade no novo ordenamento. Segundo o disposto no parágrafo primeiro do artigo 528 se o devedor no prazo de três dias não efetuar o pagamento e não provar a impossibilidade de fazê-lo o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial. O referido artigo menciona ainda a possibilidade de aplicar, naquilo que for compatível, o disposto no artigo 517, que dispõe que:
O credor de alimentos, para que possa levar a protesto o crédito alimentar, deverá levar ao cartório certidão com o teor da decisão que condenou o devedor a pagar alimentos, que deverá ser fornecida pela secretaria no prazo de três dias. Ressalta-se ainda o direito de o executado informar a propositura de ação rescisória, pois caso a sentença esteja eivada de algum dos vícios do artigo 966 do Código de Processo Civil de 2015, resguarda-se eventual direito do devedor. Importante ressaltar que, diferentemente do protesto judicial do artigo 517, também do CPC de 2015, o protesto judicial de alimentos não exige exclusivamente sentença judicial transitada em julgado, podendo ocorrer o protesto da dívida alimentar fixada por sentença ou decisão interlocutória, ressaltase aqui um amparo maior ao crédito alimentar. Diante do exposto constata-se que essa possibilidade de levar a protesto a decisão que condena ao pagamento de alimentos visa a garantir uma maior proteção ao crédito alimentar que além da proteção judicial passa a ter também uma proteção extrajudicial por meio dos cartórios. Sendo assim, o devedor de alimentos quando for realizar um financiamento, por exemplo, não irá obter êxito se tiver algum protesto em seu nome, pois as instituições financeiras ao consultarem os tabelionatos terão a informação de que aquela pessoa possui dívida em seu nome. Essa é uma medida que visa desincentivar a inadimplência do crédito alimentar, pois afeta de uma forma mais direta a vida privada do devedor de alimentos, que passa a ter consequências do seu inadimplemento não só na esfera judicial, mas também extrajudicialmente com uma maior interferência em sua vida financeira, tendo em vista que o protesto impedirá que ele realize empréstimos e financiamentos, por exemplo. III.IV. PRISÃO EM REGIME FECHADO No Direito Civil pátrio existem duas formas de responsabilizar o devedor pelo inadimplemento de suas obrigações, de forma patrimonial, que é a regra em nosso ordenamento jurídico, e de forma pessoal, exceção possível somente no caso da prisão civil do devedor de alimentos. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
Art. 517. A decisão judicial transitada em julgado poderá ser levada a protesto, nos termos da lei, depois de transcorrido o
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responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
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O pacto de San José da Costa Rica, assinado pelo Brasil em 1992, deixa clara a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel. Dessa forma, após muita discussão doutrinária e jurisprudencial o STF já declarou a ilegalidade da prisão civil do depositário infiel na súmula vinculante 25, admitindo-se atualmente somente a prisão civil do devedor de alimentos. Todavia, apesar de possível, a prisão civil do devedor de alimentos somente é cabível em caráter excepcional, quando não for possível garantir o adimplemento da dívida por outros meios. No mesmo sentido, se o inadimplemento se der por caso fortuito ou força maior, a prisão também não será cabível, nesse sentido Marinoni (2014, pg. 392) dispõe que: Caso o inadimplemento decorra de justificativa legítima ou de causa involuntária (como o caso fortuito ou força maior), não se poderá recorrer à prisão civil. Assim, se o devedor encontrase impossibilitado de cumprir a prestação porque, por exemplo, não dispõe de recursos em razão de estar desempregado, ou por causa da iliquidez do seu patrimônio, descabe a aplicação da medida. Importante ressaltar também que, nos termos da súmula 309 do STJ, o débito que autoriza a prisão é o relativo apenas às três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo. Além disso, segundo os artigos 733 do Código de Processo Civil de 1973 e o artigo 19 da Lei 5478/68, a prisão civil será decretada pelo tempo máximo de três meses. Toda essa excepcionalidade dada à prisão civil deve-se ao fato de ela não ter o mesmo caráter punitivo e ressocializador da prisão penal, seu objetivo é única e exclusivamente a coerção para o adimplemento do débito alimentar por parte daquele que pode, mas não quer pagar. O CPC de 1973 não menciona qual o regime a ser cumprido pelo devedor de alimentos, deixando essa escolha ao arbítrio dos magistrados que se dividem nesse aspecto. Segundo a jurisprudência, os juízes que preferem a condenação nos regimes aberto e semiaberto fundamentam-se no sentido de facilitar o trabalho diurno remunerado e também na ausência de caráter punitivo da prisão civil. Já os que preferem a condenação em regime fechado alegam ser esse o regime mais adequado para uma coação, devendo ocorrer a conversão para um regime mais ameno somente em casos excepcionais. O novo Código de Processo Civil acaba com essa divergência e estabelece a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, conforme o disposto no parágrafo 4º do artigo 526: Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. (...) § 4o A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns. O Código Penal em seu artigo 33, § 1º, alínea “a”, estabelece que o regime fechado é aquele em que a execução da pena é realizada em estabelecimento de segurança máxima ou média. O artigo 34, § 1º, também do Código Penal, dispõe que o preso ficará sujeito a trabalho no período diurno e isolamento durante o repouso noturno, o parágrafo terceiro estabelece ainda que o trabalho externo será admissível somente em serviços ou obras públicas. Já no regime semiaberto o preso trabalha de dia em colônias
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penais ou industriais e dorme na prisão a noite, cumprindo a pena em colônia agrícola, industrial ou similar. No regime aberto o preso trabalha fora durante o dia e dorme em casa de albergado ou em sua própria casa. O regime fechado, sem dúvidas, é o que limita mais a liberdade do preso. Surge então a dúvida a respeito do cabimento de tal regime para a prisão civil do devedor de alimentos. O primeiro ponto polêmico diz respeito ao estabelecimento em que o regime fechado é cumprido, estabelecimento de segurança máxima ou média, o que não se faz cabível para um devedor de alimentos, que não oferece perigo para a sociedade. O segundo ponto está no fato da limitação para o trabalho, já que o preso em regime fechado só pode trabalhar em serviços ou obras públicas, o que limita sua possibilidade de auferir renda, impossibilitando ainda mais a condição de quitar sua dívida. A intenção do legislador do novo CPC ao estabelecer o regime fechado para o devedor de alimentos foi, sem dúvidas, intimidar o devedor, utilizando uma técnica de prevenção. Parte-se do pressuposto que a prisão civil só é decretada para aquele devedor que não quer pagar, pois, em regra, aquele que realmente não tem condições financeiras, não deve ser preso. Dessa forma, não houve por parte do legislador preocupação em facilitar o trabalho do preso, mas sim em estabelecer uma pena que visa inibir o descumprimento da obrigação. III.V. CRIME DE ABANDONO MATERIAL O crime de abandono material está previsto no artigo 244 do Código Penal Brasileiro e dispõe que: Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. (Redação dada pela Lei nº 5.478, de 1968) Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. (Incluído pela Lei nº 5.478, de 1968). Importante ressaltar que essa modalidade de prisão não se confunde com a prisão civil prevista no artigo 528 § 3º do Novo CPC (correspondente com o artigo 733, § 1º, do CPC de 1973). Aqui, há intenção de punir e ressocializar o devedor, não é medida coercitiva para garantir o adimplemento do crédito como ocorre na prisão civil. Apesar de intimamente relacionado com o direito civil, em especial, com o direito de família, esse crime não é mencionado no Código de Processo Civil de 1973. Entretanto, o CPC de 2015 trouxe essa inovação e inseriu no Capítulo IV, Do cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos, o artigo 532, que aduz: Art. 532. Verificada a conduta procrastinatória do executado, o juiz deverá, se for o caso, dar ciência ao Ministério Público dos indícios da prática do crime de abandono material. Trata-se de mais uma medida que visa inibir o devedor de alimentos, pois coloca como dever do juiz, não como faculdade, dar
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ciência ao Ministério Público dos indícios da prática do crime de abandono material. Sem dúvidas, esse dispositivo legal vai aumentar o número de devedores que respondem pelo crime do artigo 244 do Código Penal. O novo CPC procurou ampliar sua esfera adentrando no direito penal para coibir condutas procrastinatórias do devedor. III.VI. CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL CUJA RENDA ASSEGURE O PAGAMENTO DO VALOR MENSAL DA PENSÃO A obrigação de prestar alimentos não é devida apenas quando existe relação de parentesco, mas também quando da ocorrência de ato ilícito que incapacite o ofendido de exercer seu ofício ou profissão de forma total ou parcial, nos termos do artigo 950 do Código Civil e também no caso de homicídio, caso em que o ofensor se obriga a prestar alimentos à família do ofendido, conforme o artigo 948, inciso II, também do Código Civil. No que diz respeito à execução desses alimentos, o CPC de 1973 a regulamenta no artigo 475-Q e seus parágrafos. O CPC de 2015 manteve a mesma redação do caput desse dispositivo, que passará a vigorar no artigo 533. Todavia, a despeito de a redação do parágrafo primeiro do artigo 533 ser quase idêntica a do mesmo parágrafo do artigo 475-Q, uma mudança significativa aparece: Art. 533. Quando a indenização por ato ilícito incluir prestação de alimentos, caberá ao executado, a requerimento do exequente, constituir capital cuja renda assegure o pagamento do valor mensal da pensão. § 1o O capital a que se refere o caput, representado por imóveis ou por direitos reais sobre imóveis suscetíveis de alienação, títulos da dívida pública ou aplicações financeiras em banco oficial, será inalienável e impenhorável enquanto durar a obrigação do executado, além de constituir-se em patrimônio de afetação.
O desconto em folha constitui-se em um dos meios mais eficientes para obter o adimplemento do débito alimentar, tendo em vista que a renda do devedor já é certa e comprovada, bastando apenas que um terceiro, aquele que realiza o pagamento do devedor, desconte a quantia da folha de pagamento. O parágrafo segundo do artigo 529 ressalta a necessidade de o ofício expedido com a finalidade de realizar o desconto trazer informações relativas aos dados pessoais do devedor, a importância a ser descontada, o tempo de sua duração e a conta na qual deve ser feito o depósito, evitando-se dessa forma a ocorrência de equívocos, garantindo-se uma maior segurança tanto para o credor quanto para o devedor. Já o parágrafo terceiro dispõe sobre a possibilidade de se descontar também as parcelas devidas já vencidas, mas estabelece limitações na medida em que a soma das parcelas vencidas e vincendas não ultrapasse cinquenta por cento dos ganhos líquidos do devedor, tendo em vista que ele também necessita prover a sua própria subsistência e, talvez, de outras pessoas que também dependam dele. Esse parágrafo visa proteger as garantias individuais do devedor, utilizando da razoabilidade e proporcionalidade. Outra novidade está prevista no parágrafo primeiro do artigo 529, que, apesar de corresponder ao parágrafo único do artigo 732 do CPC de 1973, apresenta uma pequena diferença: (...) § 1o Ao proferir a decisão, o juiz oficiará à autoridade, à empresa ou ao empregador, determinando, sob pena de crime de desobediência, o desconto a partir da primeira remuneração posterior do executado, a contar do protocolo do ofício.
Tal mudança consiste na possibilidade de os direitos reais sobre imóveis, previstos no artigo 1225 do Código Civil, figurarem como garantia do crédito alimentar. Essa medida diminui os riscos de inadimplemento por parte do devedor e consequentemente aumenta as chances de adimplemento do crédito alimentar, pois caso o devedor não tenha um imóvel poderá, por exemplo, dar uma hipoteca como garantia.
Essa diferença consiste na possibilidade da ocorrência do crime de desobediência caso a autoridade, empresa ou empregador não proceda à determinação judicial de descontar da folha de pagamento do executado, a partir da primeira remuneração posterior a determinação, o valor fixado. O crime de desobediência está previsto no artigo 330 do Código Penal e a pena cominada é de detenção de 15 dias a 6 meses. A medida de desconto em folha que já é muito eficiente em garantir o adimplemento do débito alimentar, passa a contar com mais uma forma de coação, já que o empregador do executado está obrigado, sob pena de cometer ilícito penal, a cumprir a determinação judicial.
III.VII. INCLUSÃO DO EXEQUENTE EM FOLHA DE PAGAMENTO DE PESSOA JURÍDICA DE NOTÓRIA CAPACIDADE ECONÔMICA O desconto em folha, modalidade de execução já prevista no Código de 1973, surge no Código de 2015 com dois parágrafos a mais que visam regulamentar e dar maior efetividade a essa modalidade. Esses parágrafos dispõem que: Art. 529. Quando o executado for funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa ou empregado sujeito à legislação do trabalho, o exequente poderá requerer o desconto em folha de pagamento da importância da prestação alimentícia. (...) § 2o O ofício conterá o nome e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do exequente e do executado, a importância a ser descontada mensalmente, o tempo de sua duração e a conta na qual deve ser feito o depósito. § 3o Sem prejuízo do pagamento dos alimentos vincendos, o débito objeto de execução pode ser descontado dos rendimentos ou rendas do executado, de forma parcelada, nos termos do caput deste artigo, contanto que, somado à parcela devida, não ultrapasse cinquenta por cento de seus ganhos líquidos.
IV. DOS AVANÇOS E RETROCESSOS TRAZIDOS PELAS ALTERAÇÕES DO NOVO CPC À EXECUÇÃO DE ALIMENTOS No que se refere à execução de alimentos as mudanças que o novo CPC traz são benéficas em sua totalidade, pois visam a celeridade e efetividade do procedimento através de um processo moderno. Tais mudanças são frutos de conquistas doutrinárias e jurisprudenciais que o legislador do Novo CPC entendeu por bem consolidar no novo diploma legal, tendo em vista que a lei eficaz é aquela que acompanha a mudança de mentalidade de seus aplicadores. A implementação de um capítulo dispondo exclusivamente sobre o cumprimento de sentença na execução de alimentos constitui um grande avanço trazido pelo novo CPC, tendo em vista que colocase fim a ideia ultrapassada de que tal instituto não se aplica a execução alimentar. Essa mudança refletirá diretamente na celeridade do judiciário, pois os advogados poderão dar início a atividade executiva nos próprios autos e requerer ainda a aplicação da multa de 10% sem precisar dispender tempo discutindo o cabimento de tais medidas. Da mesma forma encontra-se a previsão expressa de processo de execução fundado em título executivo extrajudicial, o novo CPC regulamentou esse procedimento que apesar de comumente utilizado
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não tem previsão no CPC de 1973. Outras novidades como a prisão em regime fechado, o crime de abandono material e o protesto judicial, apesar de em um primeiro momento parecerem medidas excessivas, na verdade visam coibir o inadimplemento por parte do devedor, visando assim uma maior satisfação do crédito alimentar. Já a constituição de capital cuja renda assegure o pagamento do valor mensal da pensão aparece no novo CPC de forma mais abrangente do que no CPC de 1973, pois torna-se possível dar como garantia direitos reais sobre bens imóveis, ampliando-se a esfera de possibilidades do adimplemento do crédito alimentar. No mesmo sentido está o desconto em folha, que sem dúvidas, no modelo processual da atualidade, é o meio de coerção mais eficaz para se garantir o pagamento satisfatório da pensão alimentícia. Todavia, o novo CPC buscou ampliar ainda mais essa efetividade incluindo o crime de desobediência como consequência da transgressão por parte do empregador em proceder a realização do desconto do valor arbitrado na folha de pagamento do executado, dessa forma o novo diploma legal visa cercar por todos os lados as chances de inadimplemento. V. CONSIDERAÇÕES FINAIS A reforma legislativa ocorre para atender as necessidades da sociedade. Primeiro a mentalidade da sociedade muda, os costumes mudam, os aplicadores do direito mudam e como necessidade de atender os novos anseios a lei também muda. O CPC de 1973 já está em vigor há 42 anos, durante esse tempo o conceito de família mudou, a postura dos magistrados frente as controvérsias mudou, até as formas de solucionar conflitos mudou, pois o universo jurídico se atentou para a necessidade de meios alternativos de solução de conflitos, tendo em vista a sobrecarga do judiciário. Entretanto, nem sempre é possível solucionar os conflitos através das formas alternativas e diante disso se faz necessário um processo efetivo. O novo CPC procura atender essas necessidades atuais da sociedade, priorizando as formas alternativas para solucionar conflitos, mas também tornando a atividade jurisdicional mais eficiente. Diversas são as críticas em torno do CPC 2015, entretanto, no viés da execução alimentar as mudanças foram positivas, seu objetivo não é sanar toda a mazela do judiciário, até porque isso seria impossível, mas consertar aquilo que está ao seu alcance como lei. Todavia, a lei por si só não é o suficiente, para que o novo CPC alcance os resultados almejados dependerá muito da postura dos magistrados, dos advogados e das próprias partes em se adequarem ao novo procedimento. Sendo assim, a proposta do novo CPC é positiva, a execução alimentar aparece com um caráter mais protetor para o alimentando, mas sem ferir os direitos fundamentais do alimentante e em alguns momentos até facilitando a forma de adimplir o débito. Entretanto, apesar de a nova execução de alimentos apresentar os requisitos necessários para prosperar, somente o tempo poderá mostrar o resultado real dessas mudanças. O que o legislador espera e o que toda a sociedade espera, é que as mudanças atendam as necessidades do jurisdicionado de forma rápida e eficiente, pois o judiciário precisa de celeridade e o jurisdicionado, além da celeridade, precisa de efetividade, pois de nada adianta uma prestação jurisdicional célere, mas que não tutele os direitos de forma adequada.
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REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de. Manual da execução. 10ª ed. São Paulo: RT, 2006. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v.III. BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. DIAS, Maria Helena Berenice. A execução de alimentos frente às reformas do CPC. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/29_-_a_execu%E7%E3o_dos_alimentos_frente_%E0s_reformas_do_cpc.pdf. Acesso em: 10 de mar. de 2015. DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. 5ª ed., Salvador: Jus Podivm, 2013, v. IV. FIGUEIREDO, Antônio Macena de; SOUZA, Soraia Riva Goudinho de. Como elaborar projetos, monografias, dissertações e teses. 4ª ed.,Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. 6ª ed. São Paulo: RT, 2014, v.III. MEDINA, José Miguel Garcia. Processo de execução e cumprimento de sentença. 3ª ed. São Paulo: RT, 2014, v. III. NEVES, Daniel Assumpção Amorim. Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Gen, 2015. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; CAMARA, Bernardo; SOARES, Carlos. Curso de Direito Processual Civil – Fundamentação e Aplicação. 2ª ed. Belo Horizonte: Forum, 2013. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, v. II.
NOTAS DE FIM ¹ Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ² Orientador Professor Bernardo Ribeiro Câmara.
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IR E CSLL – COMPENSAÇÃO INTEGRAL DE PREJUIZO FISCAL E BASE DE CÁLCULO NEGATIVA NA EXTINÇÃO DA PJ Wanessa de Oliveira Souza Leite1 Gustavo Henrique Carvalho da Mata2 RESUMO: O presente estudo visa analisar os limites à compensação do prejuízo fiscal e base de cálculo negativa quando a pessoa jurídica que requerer a compensação estiver sendo extinta, contribuindo para alcançar a medida mais equânime e justa a ser aplicada, apontando solução didática para a situação nos casos concretos, a todos aqueles que pleiteiam o referido instituto. PALAVRAS-CHAVE: prejuízo fiscal e base de cálculo negativa; compensação integral; extinção da pessoa jurídica. ABSTRACT: The present study aims to analyze OS limits on compensation to tax loss and negative base of calculation when one corporate require compensation is being extinct, contributing for achieve a more equitable and just one measure be applied, pointing didactic solution for a situation the concrete case to all those Who plead such possibility. KEYWORDS: tax losses and negative tax basis; full compensation; termination of the legal entity. SUMÁRIO: I Introdução; II Imposto Sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza; III Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido; IV Base de Cálculo; IV.I Conceito; IV.II Lucro Real, Lucro Presumido, e Lucro Arbitrado; V Lucro, Prejuízo Fiscal e Base de Cálculo Negativa; VI Compensação do Prejuízo Fiscal e Base de Cálculo Negativa no Exercício Seguinte; VI.I Evolução Histórica; VI.II Limitação a Compensação do Prejuízo Fiscal e Base de Cálculo Negativa; VI.III Natureza Jurídica da Compensação; VI.IV Entendimento nas esferas Administrativa Jurisprudencial e Doutrinária; VII Nosso entendimento; VIII Conclusão, Referências.
I INTRODUÇÃO Neste trabalho, trataremos acerca da compensação do prejuízo fiscal e da base de cálculo negativa da CSLL da Pessoa Jurídica contribuinte. A Constituição outorgou à União a competência para instituir o Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza e a Contribuição Social a sobre o lucro líquido, conforme preceitua os artigos 153, III e 195, I, “c” da CR/88 que deverá ser pago trimestralmente, ou por interesse do contribuinte, anualmente, neste caso observando uma antecipação mensal estimada. Tanto em um como noutro caso, a legislação prevê a possibilidade de um instituto denominado compensação, que consiste em compensar os prejuízos percebidos em determinado período na base de cálculo de períodos posteriores. Essa possibilidade garante ao contribuinte a premissa maior, estabelecida na Constituição, de que os referidos tributos irão incidir sobre lucro. Se em determinado período verifica-se que não houve acréscimo de renda à pessoa jurídica, mas sim um prejuízo, a compensação permite o restabelecimento da renda realmente auferida, porquanto permite que o prejuízo sofrido seja deduzido da base de cálculo do período posterior. Malgrado essa possibilidade, o legislador criou uma limitação quantitativa para essa compensação, qual seja 30% sobre o lucro percebido em determinado período, sem prejuízo de que seja novamente compensado o prejuízo remanescente, observando a mesma limitação, em períodos posteriores. No entanto, a lei não previu o que aconteceria se a empresa que requeresse a compensação estivesse sendo extinta, e, portanto, não teria a oportunidade de compensar eventual prejuízo em momentos posteriores. Esta é a questão sobre a qual iremos debruçar a fim de encontrar a medida mais equânime a ser aplicada. Para melhor elucidação do tema, traremos as definições e características dos referidos tributos. Abordaremos de forma sucinta
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as modalidades de apuração da base de cálculo, a forma de arrecadação e os conceitos de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa e, adentrando ao tema central do presente trabalho, abordaremos a limitação à compensação, sua evolução histórica, a natureza jurídica da compensação e o posicionamento no âmbito administrativo, doutrinário e jurisprudencial. O nosso objetivo não é exaurir o assunto, mas tão somente tecer argumentos que se fazem coerentes a partir do presente estudo. II IMPOSTO SOBRE A RENDA E PROVENTOS DE QUALQUER NATUREZA (IR) O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza está previsto no artigo 153, III da Constituição de 1988 (CR/88) e artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN), a saber: Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (...) III - renda e proventos de qualquer natureza; Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior. Trata-se de espécie de tributo que incide sobre todo o acréscimo patrimonial auferido por uma pessoa física ou jurídica titular de renda ou provento de qualquer natureza, em um determinado período. Tendo em vista a sua natureza de imposto, a ele se aplicam os princípios da desafetação do produto arrecado e a desvinculação a ato estatal. Em outras palavras, o produto da arrecadação não possui destinação específica, tampouco necessita de preceder ou ser posterior a um ato da administração. No entanto, essas considerações
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não se confundem com a sua finalidade, qual seja a redistribuição de renda entre as diferentes pessoas e regiões do país, mantendo assim um equilíbrio econômico entre as regiões, razão pela qual a sua competência foi dada à União.
em regra, opcional, devendo a pessoa jurídica avaliar qual o sistema de apuração que melhor lhe convém. No entanto, a utilização do sistema lucro real é obrigatória para algumas empresas, como ocorre nos casos elencadas no art. 14 da Lei n.° 9.718/98, conforme se verifica:
III CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LÍQUIDO (CSLL) Antes de analisar as Contribuições Sociais Sobre o Lucro Líquido (CLSS), é necessária uma breve explicação sobre as Contribuições Sociais para melhor elucidação do tema. A possibilidade de se instituir as Contribuições Sociais está prevista no art. 149 e 195, I, “c” da Constituição de 1988, que dispõe:
Art. 14. Estão obrigadas à apuração do lucro real as pessoas jurídicas: I - cuja receita total, no ano-calendário anterior seja superior ao limite de R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais), ou proporcional ao número de meses do período, quando inferior a 12 (doze) meses; II - cujas atividades sejam de bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras de títulos, valores mobiliários e câmbio, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e de capitalização e entidades de previdência privada aberta; III - que tiverem lucros, rendimentos ou ganhos de capital oriundos do exterior; IV - que, autorizadas pela legislação tributária, usufruam de benefícios fiscais relativos à isenção ou redução do imposto; V - que, no decorrer do ano-calendário, tenham efetuado pagamento mensal pelo regime de estimativa, na forma do art. 2° da Lei n° 9.430 de 1196; VI - que explorem as atividades de prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e a receber, compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring). VII - que explorem as atividades de securitização de créditos imobiliários, financeiros e do agronegócio.
Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas. Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: c) o lucro; Verifica-se que essas contribuições caracterizam-se pela correspondente finalidade. Segundo Hugo de Brito, as Contribuições Sociais são: “espécie de tributo com finalidade constitucionalmente definida, a saber, intervenção no domínio econômico, interesse de categorias profissionais ou econômicas e seguridade social”. Ultrapassada a definição de Contribuição Social, passa-se à análise das Contribuições Sociais Sobre o Lucro Líquido (CSLL). O Art. 1º da Lei n° 7.689/88 determina que “Fica instituída contribuição social sobre o lucro das pessoas jurídicas, destinada ao financiamento da seguridade social”. Dessa forma observa-se que a CSLL é espécie de Contribuição Social, e, ao contrário do que ocorre no Imposto de Renda, as citadas Contribuições são afetadas, isto é, o produto arrecadado tem destinação específica, qual seja, o custeio da seguridade social. Da leitura do artigo ainda é possível destacar outro ponto cuja análise se faz importante. Nota-se a referência, como sujeito passivo da obrigação, somente as pessoas jurídicas, no entanto, a interpretação do indigitado artigo deve ser no seguinte sentido: são contribuintes da CSLL as pessoas jurídicas domiciliadas no país e as pessoas físicas a elas equiparadas pela legislação do IRPJ. IV BASE DE CÁLCULO IV.I Conceito A Base de Cálculo é o montante sobre o qual o tributo irá incidir, tratando-se de pessoa jurídica, será o lucro tributável por ela auferido, que poderá ser o Lucro Real, Lucro Presumido ou Lucro Arbitrado. IV.II Lucro Real, Lucro Presumido e Lucro Arbitrado Ab initio, o presente estudo tem como enfoque trabalhar apenas a forma de apuração pelo Lucro Real. No entanto, para melhor entendimento, faz-se necessário uma breve explanação sobre os referidos institutos. A utilização do Lucro Real (LR) ou do Lucro Presumido (LP) é,
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Não obstante a faculdade de se optar pela utilização de um ou outro sistema, é necessário atentar para o fato de que, optando pela utilização do lucro real para incidência do IR, o mesmo deverá ser utilizado para apurar o valor da CSLL a ser pago. É o que se depreende do art. 57 da Lei n° 8.981/95: Art. 57. Aplicam-se à Contribuição Social sobre o Lucro (Lei nº 7.689, de 1988) as mesmas normas de apuração e de pagamento estabelecidas para o imposto de renda das pessoas jurídicas, inclusive no que se refere ao disposto no art. 38, mantidas a base de cálculo e as alíquotas previstas na legislação em vigor, com as alterações introduzidas por esta Lei. O Lucro Presumido (LP) é aquele que a lei o presume, tendo em vista a atividade exercida pela Pessoa Jurídica, por meio de percentuais pré-determinados. Para obtenção da base de cálculo neste sistema, multiplica-se a receita bruta auferida no período por um percentual definido em lei, sob o qual incidirá a alíquota do imposto. É o que dispõe o artigo 15, §1° da Lei n.°9.249/1995. O Lucro Real (LR) é aquele resultante da diferença da receita bruta, deduzidos as despesas necessárias, ou seja, é o lucro realmente auferido em um determinado período-base. Desta forma, ter-se-á a base de cálculo do lucro real pela seguinte equação: receita menos custos e despesas dedutíveis, observando-se as adições e exclusões previstas na legislação. Há de se mencionar que a escolha do sistema a ser utilizado é feita no início de cada ano e será utilizado como base para todo o
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ano calendário, conforme determina o artigo 3° da Lei 9.430/96. Dessa forma, torna-se muito importante a análise meticulosa de qual modo de apuração adotar, tendo em vista que poderá resultar em profundas diferenças. Já o Lucro Arbitrado é aquele em que a base de cálculo do imposto é arbitrada pela autoridade tributária. É aplicável quando a pessoa jurídica deixa de cumprir as obrigações relativas à determinação do lucro real ou presumido, ou que por motivos de ordem externa, seja impossível aferi-los. 4.3) Modo de Apuração – Lucro Real De acordo com a Lei n° 9.430/96, a Pessoa Jurídica, contribuinte do IR e CSLL, poderá optar por utilizar a forma de apuração do lucro real trimestral ou anual. Os optantes pelo modo de apuração trimestral deverão calcular o lucro real observando os prazos previstos no art. 1° da referida lei, senão vejamos: Art. 1º A partir do ano-calendário de 1997, o imposto de renda das pessoas jurídicas será determinado com base no lucro real, presumido, ou arbitrado, por períodos de apuração trimestrais, encerrados nos dias 31 de março, 30 de junho, 30 de setembro e 31 de dezembro de cada ano-calendário, observada a legislação vigente, com as alterações desta Lei. § 1º Nos casos de incorporação, fusão ou cisão, a apuração da base de cálculo e do imposto de renda devido será efetuada na data do evento, observado o disposto no art. 21 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. § 2° Na extinção da pessoa jurídica, pelo encerramento da liquidação, a apuração da base de cálculo e do imposto devido será efetuada na data desse evento. Ademais, optando pela forma de apuração anual, deverão calcular o lucro real no dia 31 de dezembro, devendo, entretanto, recolher mensalmente o imposto por estimativa, como preconiza o artigo 2° da mesma lei. Art. 2o A pessoa jurídica sujeita a tributação com base no lucro real poderá optar pelo pagamento do imposto, em cada mês, determinado sobre base de cálculo estimada, mediante a aplicação dos percentuais de que trata o art. 15 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, sobre a receita bruta definida pelo art. 12 do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, auferida mensalmente, deduzida das devoluções, vendas canceladas e dos descontos incondicionais concedidos, observado o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 29 e nos arts. 30, 32, 34 e 35 da Lei no 8.981, de 20 de janeiro de 1995. O valor da tributação por estimativa, ou trimestral, leva em conta somente percepção positiva desta apuração (lucro – que será trabalhado no capítulo 5), ou seja, se em determinado momento não se verificou base de cálculo positiva, não há que se falar em pagamento do tributo, pois não houve lucro. V LUCRO, PREJUÍZO FISCAL E BASE DE CÁLCULO NEGATIVA No desenvolvimento de uma atividade empresarial o lucro pode existir ou não. Verifica-se o lucro ou renda quando, das transações realizadas por determinada pessoa jurídica, a receita bruta auferida supera o valor total de todos os custos e despesas, trazendo, dessa forma, lucro líquido propriamente dito. Em outros termos é a diferença positiva entre a receita total da pessoa jurídica, subtraídos todos os custos necessários à manutenção da atividade. O lucro, referido neste parágrafo, é o lucro contábil, que não se confunde com o lucro para
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fins de base de cálculo dos tributos. Ao final de cada período de apuração do IR e/ou CSLL, quando da determinação do lucro real por meio de ajustes de adições e exclusões previstos em lei, é possível que se verifique resultado negativo. Isso ocorre quando o valor do lucro líquido acrescido das despesas e exclusões for superior ao somatório de receitas e adições. O resultado negativo do Imposto de Renda é chamado de Prejuízo fiscal, e o da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, é denominado Base de Cálculo negativa. O lucro referido neste parágrafo é o lucro tributável. Conforme exposto no capítulo 4.2, optar pela utilização do sistema de lucro presumido para fins de fixação da base de cálculo, implica dizer que o montante que sofrerá a incidência do tributo não leva em conta as despesas reais, já que a Base de Cálculo é encontrada através da aplicação de um percentual a título de coeficiente sobre a receita bruta. Já no sistema lucro real, diferentemente da previsibilidade acima demonstrada, há grande variação na apuração do referido montante. Isso ocorre em razão de questões externas de ordens econômicas, políticas, além de outras, que fomentam ou desestimulam o mercado, atingindo assim, o lucro real daqueles que optam pela sua utilização Por tais considerações acerca do lucro real, a legislação prevê a possibilidade das compensações, que consiste em deduzir o prejuízo apurado em determinado período-base, na base de cálculo dos períodos posteriores. Ademais o citado instituto da compensação do prejuízo fiscal (quando se tratar de IR) e/ou da base de cálculo negativa (tratando-se CSLL) possui requisitos e limitações que será objeto de maior aprofundamento nos capítulos 7 e seguintes. VI COMPENSAÇÃO DO PREJUÍZO FISCAL E BASE DE CÁLCULO NEGATIVA Trata-se de compensar o prejuízo percebido em determinado período, com a base tributável positiva de períodos posteriores. Não obstante essa possibilidade, o legislador instituiu uma constrição a ser observada, qual seja uma trava de 30%, por período de apuração, para limitar o aproveitamento de eventual prejuízo fiscal e base de cálculo negativa. VI.I Evolução Histórica Importante se faz, à análise da questão, uma breve evolução no aspecto legislativo acerca da limitação à compensação que, apesar de não ser assunto novo, ainda é tema bastante polêmico. Ao observar a legislação acerca da compensação, observa-se que ora a norma foi flexível, ora a norma foi mais rígida impondo determinações conflitantes e antagônicas. A legislação que começa a tratar do assunto é de 1947 quando pela primeira vez falou-se de dedução dos prejuízos fiscais limitando esse direito a três exercícios seguintes a da apuração do prejuízo. Após 1977, esse prazo foi alterado para quatro anos. Em 1991, a legislação permitia a utilização plena dos prejuízos apurados sem limites temporais ou quantitativos. No ano seguinte, a Lei n° 8.531 reintroduziu a limitação de quatro anos para utilização do crédito. No ano de 1995, a Lei n° 8.981 substituiu essa limitação temporal de quatro anos por uma limitação quantitativa. VI.II Limitação de 30% à Compensação A referida trava de 30% limita a porção do prejuízo de um período que poderá ser utilizada para abater a base tributável dos lucros de períodos posteriores. Esta previsão está disposta nos artigos 42 e 58 da Lei n° 8.981/95 conforme se lê:
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Art. 42. A partir de 1º de janeiro de 1995, para efeito de determinar o lucro real, o lucro líquido ajustado pelas adições e exclusões previstas ou autorizadas pela legislação do Imposto de Renda, poderá ser reduzido em, no máximo, trinta por cento.
ser revista pelo Estado. Ausência de direito adquirido 2. A Lei n. 8.981/95 não incide sobre fatos geradores ocorridos antes do início de sua vigência. Prejuízos ocorridos em exercícios anteriores não afetam fato gerador nenhum. Recurso extraordinário a que se nega provimento. Desse modo, no entender da nossa mais elevada Corte, as compensações poderiam até ter sido extintas sem macular o Texto Excelso. Uma vez caracterizada como benefício fiscal, que pode ser revogado a qualquer tempo pelo legislador, não é correta a interpretação que eu havia acompanhado anteriormente, qual seja, a de que houve uma troca de limites legais ou que o limite material (30%) só se legitima em razão da supressão do limite temporal a possibilitar a compensação futura dos 70%. Era essa interpretação que sustentava a não aplicação do limite de 30% no caso da extinção de sociedades, a qual não se coaduna com o posicionamento do STF sobre a questão. Como o legislador não excepcionou as hipóteses de descontinuidade das sociedades da aplicação do limite de 30% e tal limite não macula a ordem jurídica, não há que ser desconsiderado. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Processo nº 11052.000024/2010¬50 Recurso nº Voluntário Acórdão nº 1202¬001.257 – 2ª Câmara / 2ª Turma Ordinária Sessão de 25 de março de 2015.
Art. 58. Para efeito de determinação da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro, o lucro líquido ajustado poderá ser reduzido por compensação da base de cálculo negativa, apurada em períodos-base anteriores em, no máximo, trinta por cento. Verifica-se, pois, que o legislador não previu o que aconteceria caso a pessoa jurídica que estivesse pretendendo a redução avinda de prejuízo ou base de cálculo negativa, de período anterior, estivesse sendo extinta e, sendo assim, não lhes seria oportunizado compensar seu crédito em períodos seguintes. VI.III Natureza jurídica da compensação Faz-se relevante breve análise na natureza jurídica da compensação em questão, a fim de concluir pela legitimidade ou não da trava estabelecida em lei. Se estivermos diante de um benefício fiscal, afigura-se possível instituir uma limitação à compensação, mas, se pelo contrário, tratar-se de um direito do contribuinte, certamente estará havendo uma constrição ilegítima. Não obstante essas considerações, o que ocorre é que o legislador não se posicionou sobre a real natureza da compensação em questão, criando, portanto, várias possibilidades e precedentes a serem discutidos. VI.IV Entendimento nas esferas Administrativa Jurisprudencial e Doutrinária No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais é possível identificar, em decisões recentes, posições antagônicas em relação ao tema, conforme voto das decisões colacionadas: ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA -IRPJ Ano calendário: 2004 COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZO FISCAL — LIMITE DE 30% — INCORPORAÇÃO Conforme entendimento do STF, a compensação de prejuízo fiscal caracteriza-se como benefício fiscal, passível, pois, de ser revogado. Desse modo, não há razão jurídica para deixar de aplicar à empresa extinta por incorporação, no período do evento, o limite de 30% do lucro líquido ajustado em relação ao prejuízo fiscal acumulado de períodos anteriores. [...] Foi a decisão no RE 344994 publicada em 28/08/2009 apenas um dia após o julgado em que eu havia me posicionado sobre -a questão –, em que a Corte Suprema adotou como fundamento de decidir a premissa de que a compensação de prejuízos fiscais é um benefício fiscal, conforme podemos constatar pela redação da ementa: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DEDUÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS. LIMITAÇÕES. ARTIGOS 42 E 58 DA LEI N. 8.981/95. CONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 150, INCISO III, ALÍNEAS “A” E “B”, E 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O direito ao abatimento dos prejuízos fiscais acumulados em exercícios anteriores é expressivo de benefício fiscal em favor do contribuinte. Instrumento de política tributária que pode
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De acordo com decisão, o voto vencedor, do conselheiro Guilherme Adolfo dos Santos Mendes, afirmou que a compensação é um benefício fiscal, dessa forma poderia ser revogado ao interesse do Estado, por não constituir direito do contribuinte. Afirmou ainda que, se o legislador não a previu, não pode o interprete da lei fazê-lo. Em sentido contrário a este tem se verifica a seguinte decisão: ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA -IRPJ Ano calendário: 2007 PESSOA JURÍDICA EXTINTA POR INCORPORAÇÃO. COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS SEM A TRAVA DE 30%. A pessoa jurídica incorporada pode compensar no balanço de encerramento de atividades o prejuízo fiscal acumulado sem observância da “trava” de 30%. [...] Observe-se que a lei não impediu a compensação do total de prejuízos fiscais, cuidou especificamente de estabelecer regra geral impositiva de limites de valor por período de apuração, permitindo o aproveitamento de saldos remanescentes em etapas futuras. Na prática, optou o legislador por distribuir no tempo o aproveitamento do prejuízo para fins de compensação, procurando assegurar a continuidade da arrecadação tributária. Tal distribuição no tempo se sustenta no postulado contábil da continuidade das entidades, cuja definição mereceu o seguinte comentário de Eliseu Martins, Sérgio de Iudícibus e Ernesto Gelbcke no “Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações”3 , como se vê abaixo: “A Contabilidade, entre a vida e a morte, escolhe sempre a primeira. De fato, esta é uma constatação do histórico dos negócios; não existe, a priori, nenhum motivo para julgar que um organismo vivo venha a ter morte súbita ou dentro de curto prazo. Ainda mais, as entidades são organismos que renovam suas células vitais através do processo de reinvestimento. O Postulado da Continuidade tem outro sentido mais profundo que é o de encarar a entidade como algo capaz de produzir riqueza e gerar valor
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continuamente, sem interrupções. Na verdade, o exercício financeiro anual ou semestral é uma ficção determinada pela necessidade de se tomar o pulso do empreendimento de tempos em tempos. Mas as operações produtivas da entidade têm uma continuidade fluidificante: do processo de financiamento ao de estocagem de fatores de produção, passando pelo uso desse no processo produtivo, até a venda que irá financiar novo ciclo e assim por diante.” A aplicação da trava de 30% é justificável enquanto existente a presunção de continuidade da pessoa jurídica. A extinção via incorporação afasta a exigência de observância do limite à compensação. Entendimento contrário significaria negação da faculdade conferida à contribuinte e resultaria no abandono forçado de um ativo seu, de origem tributária, assegurado em lei. Lembram os autores mencionados, na mesma obra, que na cessação de atividades, “determinados ativos, como, por exemplo, os valores diferidos, deixarão de ostentar tal condição, passando à condição de despesas, em face da impossibilidade de sua recuperação mediante as atividades operacionais usualmente dirigidas à geração de receitas.” Processo nº 16561.720100/2012¬82 Recurso nº Voluntário Acórdão nº 1103¬001.129 – 1ª Câmara / 3ª Turma Ordinária Sessão de 22 de outubro de 2014. O conselheiro entendeu que a limitação do prejuízo a ser compensado pressupõe uma continuidade da atividade. Logo não haveria razão de existir a limitação no caso de extinção da pessoa jurídica. No judiciário verifica-se entendimento não muito favorável aos contribuintes. O STF em 2009 julgou improcedente o pedido de compensação integral do prejuízo fiscal. A saber: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. DEDUÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS. LIMITAÇÕES. ARTIGOS 42 E 58 DA LEI N. 8.981/95. CONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 150, INCISO III, ALÍNEAS A E B, E 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O direito ao abatimento dos prejuízos fiscais acumulados em exercícios anteriores é expressivo de benefício fiscal em favor do contribuinte. Instrumento de política tributária que pode ser revista pelo Estado. Ausência de direito adquirido 2. A Lei n. 8.981/95 não incide sobre fatos geradores ocorridos antes do início de sua vigência. Prejuízos ocorridos em exercícios anteriores não afetam fato gerador nenhum. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF - RE: 344994 PR , Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 25/03/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-162 DIVULG 27-08-2009 PUBLIC 28-08-2009 EMENT VOL-02371-04 PP-00683 RDDT n. 170, 2009, p. 186-194) O Supremo entendeu pela constitucionalidade dos artigos limitadores à compensação, não obstante, não analisou a situação específica de possibilitar compensação integral, nos casos de extinção da PJ. Dessa forma, conclui-se que o assunto ainda não possui uma análise pronta e acabada, tendo em vista que o objeto da decisão do STF, que vinculou diversas mudanças de entendimento acerca da trava de 30%, analisou tão somente a sua legalidade, não encerrando, dessa forma, o debate. Na doutrina, há forte entendimento no sentido de afastar a incidência da limitação à compensação do prejuízo apurado no caso de extinção da pessoa jurídica. Para o doutrinador Fábio Junqueira Carvalho a trava não deve ser observada na extinção da Pessoa Jurídica, tendo em vista que a
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compensação não se trata de favor legislativo, mas sim de imperativo constitucional, que deve ser respeitado, caso contrário haveria tributação sobre perda patrimonial. Conforme se lê: A compensação de prejuízos não ser encarada como um benefício ou um favor do legislador ordinário ao contribuinte. Ora, se um contribuinte tem perda de 100 em um determinado exercício e no exercício seguinte apura lucro de 50, permanece ele com um déficit de 50, sem ter auferido qualquer acréscimo em seu patrimônio. É imperativo constitucional e de justiça que se promova a compensação integral desse prejuízo, haja vista que caso isso não ocorra, estar-se-á tributando perda patrimonial. A admissão de compensação não cuida de favor legislativo, mas sim de obediência a conceitos e princípios expressos na nossa Constituição. No mesmo sentido é o entendimento de Roque Antônio Carraza, que tece as seguintes considerações: Sujeitar à tributação apenas os lucros obtidos num exercício financeiro, isto é, com desconsideração dos eventos econômicos relevantes, verificados nos anos anteriores, significa, em última análise, admitir o absurdo da hipótese de a pessoa jurídica ser obrigada a pagar imposto (que – tornamos a repetir – incide sobre a renda) ainda que se encontre, considerandose o termo inicial de suas atividades (e não apenas o período de apuração), em situação de prejuízo. À mesma conclusão chegou Humberto Ávila: a comunicação entre os períodos de apuração e a compensação de prejuízos fiscais anteriores em anos-calendário subsequentes são consequências normativas necessárias do conceito de renda como acréscimo patrimonial líquido configurado com base no critério da progressividade. Em outras palavras, nem a incomunicabilidade entre os períodos é imposição constitucional, nem a compensação de prejuízos fiscais é cortesia legal. Ao contrário, a comunicabilidade de períodos e o direito de compensação de prejuízos físicas é que são implicações normativas inafastáveis da ordem constitucional. Todavia, há doutrinadores que esposam entendimento contrário á possibilidade de se afastar a incidência da trava. Para estes, a limitação imposta se pauta na premissa de que a compensação é um benefício fiscal. Portanto, a interpretação deve ser restritiva de modo que, se a lei não traz expressamente a possibilidade de se afastar a trava nos casos de extinção da PJ, não cabe ao interprete fazê-lo. Outro ponto de extrema relevância é a possibilidade de tentar burlar a lei, por meio da falsa extinção, a fim de compensar todos os prejuízos e, em seguida, passar a existir novamente. Neste contexto, o artigo 34 do Decreto-Lei n° 2.341/1987 determina que “a pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar prejuízos fiscais da sucedida” dessa forma seria possível visualizar uma forma clara de burlar a lei. Ora, se é possibilitado à Pessoa Jurídica que está sendo extinta, a possibilidade de aproveitar a integralidade do prejuízo, estar-se-á apenas dando nova roupagem a algo que a lei não permite, pois ela poderia estar sendo transferida à sucessora por uma via oblíqua. Ademais, argumentam os defensores desta tese que, quando a lei entendeu que caberia uma exceção à regra da compensação, ela o fez. As empresas que exercem atividade rural,por exemplo, são autorizadas pela legislação a realizar a compensação integral, logo, não o tendo feito, neste caso especifico, é porque de fato deverá haver a incidência da trava. Comungando com o entendimento da necessária aplicação da tra-
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va de 30% tem-se o doutrinador Ricardo Mariz de Oliveira, que preconiza: todo empreendimento econômico tem que ser segmentado em seu desenvolvimento temporal, para inúmeros efeitos empresariais e jurídicos, sob pena de que, somente no encerramento definitivo da própria atividade jurídica que se pretende desenvolver através da pessoa jurídica, seria possível determinar com segurança e em definitivo a existência e o montante do incremento patrimonial produzido por tal atividade. VII NOSSO ENTENDIMENTO O IR e a CSLL são tributos que tem como fato gerador auferir renda. Dessa forma, por imperativo legal, somente sobre esta pode haver a sua incidência. Ora, impossibilitando que a Pessoa Jurídica exerça seu direito a compensação integral ao prejuízo sofrido, significa dizer que ela estará sendo impedida de recompor seu patrimônio, logo, ela foi tributada sob uma renda que na realidade, não auferiu. Aliás, está sendo tributada por perda. O regramento legal, quando estabelece um limite a ser observado no momento da compensação, possui caráter notadamente de política fiscal, ou seja, de ordem meramente arrecadatória. É que, em verdade, não há um óbice ao acesso ao direito de compensar, mas tão somente uma distribuição por período. Presumese que haverá continuidade das atividades da PJ, para que esta possa, sem limitação temporal, compensar eventual prejuízo percebido. Essa limitação pode se justificar como uma forma permitir um equilíbrio orçamentário, para que o ente federado não arque sozinho com o prejuízo e de uma só vez, no caso de eventual baixa no mercado econômico. Dessa forma, tal restrição só encontraria sentido para as empresas que continuarem existindo. Seguindo esta linha de raciocínio, tem-se que a possibilidade da compensação integral decorre naturalmente da própria interpretação sistemática e teleológica da lei, que em nenhum momento impossibilitou o acesso direito de compensar. Todavia, há de se atentar, como oportunamente mencionado, para a tentativa de se utilizar da compensação integral como uma forma de burlar a aplicação da lei. Deste modo, os entendimentos extremos, quais sejam, aqueles que entendem que nunca será cabível a compensação integral, ou por outro lado, aqueles que entendem que sempre deverá ocorrer, não nos parece ser a medida mais justa e razoável a ser aplicada. Se a fiscalização conseguir demonstrar que a extinção de determinada pessoa jurídica, foi um ato que se denominou dessa forma, mas que de fato não aconteceu, deve haver a incidência da trava. VIII CONCLUSÃO Por todo o exposto é forçoso concluir pela não incidência da trava de 30% para as compensações de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa na extinção da PJ. É que estaríamos diante de clara constrição de direitos da pessoa jurídica. É imperioso salientar que a interpretação das normas requer a apreciação de todo o sistema normativo, bem como de seus motivos norteadores e não somente da análise positivista da lei. A limitação a compensação de prejuízos na extinção da PJ, não encontra qualquer outro respaldo senão a ausência expressa de sua autorização, o que, por si só não parece suficiente a legitimar um prejuízo econômico às pessoas jurídicas. O ideal, portanto, é analisar cada caso de forma detalhada e específica. Verificando que há uma situação abusiva, com claro intuito de fraudar a lei, deve haver a incidência da limitação. Lado outro, se verificado que não há o intuito de burlar a lei, nada mais coerente e
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justo do que permitir a sua compensação integral. Saliente-se que não há aqui, uma crítica à forma escalonada de acesso ao restabelecimento de renda, limitada quantitativamente por período de apuração, mas sim uma defesa veemente de que essa limitação não se traduza em ilegítima restrição. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995. Altera a legislação tributária Federal e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8981.htm. Acesso em junho 2015. BRASIL.Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social, o processo administrativo de consulta e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L9430compilada.htm. Acesso em junho 2015. BRASIL.Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992.Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8560.htm. Acesso em junho 2015. BRASIL.Decreto-Lei nº 2.341, de 29 de junho de 1987. Dispõe sobre a correção monetária das demonstrações financeiras, para efeitos de determinar o lucro real, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2341.htm. Acesso em junho 2015. CARVALHO, Fábio Junqueira de. MURGEL, Maria Inês. – Teoria e Prática Jurídica - 2° Ed. 2000. CARRAZA, Roque Antonio. Imposto Sobre a Renda – Perfil Constitucional e Temas Específicos. 2005 CHIMENTI, Ricardo Cunha. Direito Tributário – Col. Sinopses Jurídicas. Vol. 16 . Conselho administrativo de recursos fiscais. Disponível em: https://idg.carf.fazenda.gov.br/ Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário - 34ª Ed. 2014. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. 2008. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário - 3ª Ed. 2011. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/PessoaJuridica/DIPJ/2005/PergResp2005/pr617a633.htm e http://www.receita.fazenda.gov.br/PessoaJuridica/DIPJ/2005/PergResp2005/ pr473a482.htm. Acesso em junho 2015.
NOTAS DE FIM 1 Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Orientador Professor Gustavo Henrique Carvalho da Mata.
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ARQUITETURA CARCERÁRIA E O AMPARO ESTATAL Anny Loures de Castro Santos1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 RESUMO: O sistema carcerário é visto como um instrumento de controle social, à medida que sanciona aos que infringem as regras comportamentais impostas ao convívio coletivo. O presente trabalho visa analisar a paralaxe da função ressocializadora da pena e a atual conjuntura carcerária, abordando os modelos arquiteturais mundialmente desenvolvidos, e seus reflexos quando implantados no sistema brasileiro. Propõe uma mudança no olhar Estatal ao sistema, que atualmente é considerado perdido, mas que, na verdade, necessita de investimentos não somente no que diz ao espaço para abrigar a ascendente população carcerária, mas em ambientes que favoreçam o psicológico dos apenados, em busca da reinserção. PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura Carcerária. Ressocialização do Condenado. Sistemas Prisionais. Criminologia. ABSTRACT: The prison system is seen as an instrument of social control, as it punishes those who infringe the behavioral rules imposed on collective living. This study aims to analyze the parallax of ressocialization function pen and the current prison situation, addressing the architectural models developed world, and its effects when implanted in the Brazilian system. Proposes a change in the State look at the system, which is currently considered lost, but actually require investments not only when it comes to space to house the rising prison population, but in environments which the psychological of convicts in search reinsertion. KEYWORDS: Prison architecture. Rehabilitation of the Damned . Prison Systems. Criminology. SUMÁRIO: I Introdução; II Origem e evolução mundial do Sistema Penitenciário; III Apanhado do Sistema Penitenciário no Brasil; IV O modelo Arquitetônico das Penitenciárias Brasileiras; V Análise da Problemática; VI O Método APAC; VII Considerações Finais; Referências.
I INTRODUÇÃO O trabalho tem como objetivo, analisar de forma consciente e absorta de imparcialidade a problemática das penitenciárias diante a improfícua reinserção social do indivíduo condenado: família, posição na sociedade, políticas governamentais, saúde mental, psicologia carcerária e design, serão os temas abordados no decorrer do projeto. Especificamente, pretende-se incitar ponderações correlatadas a atuação da Administração Pública no ambiente carcerário e identificar a discrepância entre o princípio ressocializador da pena diante dos papéis realmente desempenhados, pois, atualmente, as condições a que os condenados são submetidos levam a conclusão de que o Estado visa apenas satisfazer o desejo de vingança da sociedade. Devem ser observados e repensados os métodos de controle, os modelos arquitetônicos e práticas de custódia levando os conhecimentos da criminologia em consideração. O objetivo do presente trabalho é a reavaliação da questão carcerária no que diz respeito às edificações e ao arranjo arquitetônico que conduzirão a uma melhor aplicação da pena, em prol de efeitos benéficos que afastem a reincidência. II ORIGEM E EVOLUÇÃO MUNDIAL DO SISTEMA PENITENCIÁRIO A arquitetura é a arte de projetar espaços organizados e criativos, preencher o contorno de um vazio que, em seguida, será habitado. No âmbito carcerário, a disposição dos elementos que compõem os espaços que, segundo Alvino Augusto de Sá, projeta o confronto direto do homem com o mesmo [...] é a arte em relação à qual o ser humano não é mero observador, em cujo espaço ele penetra, passa a integrá-lo e estabelece com ela uma relação vital” (DE SÁ, 2014)3. A problemática dos crimes e punições está presente desde as civilizações primitivas, tomando dimensões maiores à medida do crescimento do corpo social. As primeiras prisões a que se tem conhecimento aparecem em fossas e gaiolas de madeiras localizadas em palácios, onde os acusados eram amarrados.
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A prisão canônica, implantada pela Igreja, criou uma nova forma de sanção com o sistema de solidão e silêncio. Na Idade Média, a Igreja passou a castigar monges infratores, colocando-os em celas onde deveriam pedir perdão a Deus por meio de penitência e oração. Até o século XVIII, a privação da liberdade não era a finalidade da punição aos infratores, e sim um meio de assegurar que o condenado receberia a pena que posteriormente seria aplicada. Durante este período, o crime era considerado um insulto ao poder, tomando a punição caráter de vingança. O modo de punir passou a ser o castigo em praça pública, com o objetivo de repreender possíveis afrontas ao soberano. Entretanto, pelo risco desta modalidade de vingança, a prisão tornou-se oculta. Neste momento, devido as transições políticas da época, da ascensão burguesa e a queda do antigo regime, as penas públicas e desumanas foram banidas e a privação da liberdade tornou-se um tipo de punição, onde tomou origem a denominada “humanização” das penas, que, segundo Foucault, deixa de punir o corpo e passa a punir a “alma”. (FOUCAULT, 2007).4 Sob o argumento de garantir “proporcionalidade” entre o crime e as punições passaram a ser construídos estabelecimentos de detenção que, no entanto, não observavam normas básicas de sobrevivência e dignidade, como higiene e moral. O filósofo e jurista Jeremy Bentham defendia que a punição rigorosa era o modelo eficaz para modificar os hábitos do infrator, e em 1787 idealizou o “Panóptico”, penitenciária com estrutura circular, em que o vigilante, localizado no centro, teria visão completa das celas onde estariam localizados os presos, sem que estes o vissem. Michel Foucault visualizou o modelo Panóptico como uma alternativa também para instituições de ensino, de assistência, trabalho e hospitais, em prol da disciplina conquistada com mecanismos psicológicos. Ao final do século XVIII, surgiram novas estruturas arquiteturais que vieram a ser implantadas, e as formas de encarceramento dos
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delinquentes passaram a ser discutidas com maior intensidade. A nomenclatura prisão viera a se tornar familiar em todo o mundo. O modelo prisional da Filadélfia, em 1790, de William Penn, tinha como principal característica a reclusão absoluta do preso, em um sistema de isolamento durante todo o período de sua condenação. Fundamentado nos princípios de que a religião era a única e suficiente base da educação e, somente assim, o indivíduo seria levado a refletir seus atos e arrepender-se de seus pecados, a bíblia era o único objeto permitido dentro das celas. Segundo Foucault: No isolamento absoluto não se pede a requalificação do criminoso ao exercício de uma lei comum, mas à relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminá-lo de dentro. Desse modo, chegamos à conclusão de que no regime adotado na Filadélfia, as únicas operações de correção do indivíduo foram a consciência e a arquitetura que isolava o indivíduo de todo contato com outro ser humano. (FOUCAULT, 2007)5 Outro sistema semelhante surgiu em 1821 na cidade de Nova York, denominado “Sistema Auburn”, com a diferença de que durante o dia eram realizados trabalhos e refeições coletivas com a regra absoluta do silêncio. Prezava-se pela convivência “social”, observando-se o respeito às hierarquias e normas a serem obedecidas, sob o argumento de que desta forma, os indivíduos estariam sendo preparados para o retorno à sociedade. Em 1840, na ilha de Norfolk, nasceu um sistema progressivo, idealizado por Alexander Maconochie, chamado de Mark System, que agregou aspectos dos outros dois sistemas, dividindo-se em três fases: O regime inicial, denominado probatório, de absoluta reclusão; após certo período, o recluso era submetido ao regime de trabalho comum e silêncio absoluto diário e reclusão noturna; e por méritos de trabalho e comportamento, poderia alcançar a etapa final, do benefício da liberdade condicional. Esse modelo foi levado para a Inglaterra e aperfeiçoado na Irlanda, idealizado no ano de 1853, por Walter Crofton, que propôs em seu projeto a criação de uma nova fase, que precedia a liberdade condicional, com a intenção de preparar o indivíduo para o retorno à sociedade. Denominada Prisão Intermediária, nesta fase, o interno era transferido para um sistema comedido, em que era permitido conversar e trabalhar no campo. Portanto, a reclusão fracionava-se em quatro fases: a primeira de reclusão absoluta; a segunda de regime coletivo diurno em silêncio absoluto e regime noturno individual; a terceira de prisão intermediária; e na quarta fase, a liberdade condicional. III APANHADO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL O histórico do Sistema Carcerário no Brasil é marcado pela falta de zelo à área penal e nas dificuldades de execução de políticas públicas neste ramo. A primeira alusão à prisão no Brasil se deu pelo código português utilizado durante o Brasil-Colônia, ou seja, as Ordenações Filipinas do Reino, que utilizava as colônias como presídio dos exilados. Até 1830, antes da criação do Código Penal, o sistema jurídico continha penas rigorosas que variavam desde o confisco de bens e multa, até humilhação pública, mutilações e penas de morte por esquartejamento ou forca. As disposições das Ordenações Filipinas foram vagarosamente revogadas a partir da Independência do Brasil em 1822, mas ainda sim foram substituídas por textos que a tomavam como base. Nova variante penal somente foi implantada pela Constituição da República
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de 1824, pelo Código Criminal do Império, o primeiro código penal brasileiro que mudou as penas e crimes no Brasil. De caráter liberal, foi inspirado nos Códigos Francês de 1810, Napolitano de 1819 e na doutrina utilitarista de Jeremy Bentham. Com a intenção de individualizar a aplicação da pena, as novas normas previam a análise de circunstâncias atenuantes e agravantes e indenização pelo dano causado assim como um tratamento diferenciado para menores. Foram mantidas as penas de galés e de morte nos casos de insurreição de escravos, homicídio com agravante e latrocínio. Por assimilar a necessidade do sistema penitenciário no Brasil, tornou a privação da liberdade a principal forma de punição, mas pela falta de estrutura para esta nova modalidade, não havia previsão de um sistema penitenciário específico. Por esta razão, seus artigos determinavam que, na inexistência de estabelecimentos prisionais para a aplicação da prisão simples, determinava-se, como alternativa, a prisão com trabalho, diversificando o período de cumprimento da pena desde alguns dias de reclusão até prisão perpétua. Diante da notável dificuldade de implantação dos presídios, a Lei Imperial de 1828 criou as Câmaras Municipais que, dentre suas atribuições, ficaram encarregadas pela realização de visitas e acompanhamento dos melhoramentos necessários nas prisões e estabelecimentos públicos de caridade. As comissões nomeadas para a produção dos relatórios trouxeram à tona a realidade precária desses estabelecimentos, e apontavam para deficiências como instalações sujas, escuras, insalubres e superlotadas, onde havia mistura indistinta dos presos independente do delito, profissão, condenados ou aguardando julgamento. O descaso da administração pública era visível, submetia os presos a condições subumanas e claras ofensas às disposições da Constituição de 1824, que pretendia, de maneira utópica, resguardar a segurança do Estado, reduzindo a criminalidade através da “recuperação” dos condenados na prisão. Visivelmente, toda a estrutura legislativa dedicada à regulamentação dos presídios não foi suficiente para promover a humanização do sistema carcerário. Houve, na verdade, um desvirtuamento da finalidade precípua das prisões que prezava ideologicamente pela readaptação social. Então, em 1841, as comissões além dos relatórios, trouxeram propostas de reformas nos ambientes carcerários. A partir disso, tomaram início pesquisas acerca dos sistemas penitenciários mundiais, e análise de quais seriam eficazes de serem implantados no Brasil. A primeira penitenciária brasileira, chamada Casa de Correção da Corte, localizada no Rio de Janeiro, teve sua planta inspirada nos modelos Panóptico e Sistema de Auburn, que tinha como característica principal o trabalho em absoluto silêncio no período diurno, e o isolamento noturno. O modelo prezava pela disciplina e uniformidade dos presos que tinham os cabelos raspados, usavam roupas listradas e correntes. Na tentativa de dar fim às punições, tinha como princípio explícito a recuperação dos apenados através da disciplina, controle, manutenção da limpeza em prol de um ambiente salubre e trabalho coletivo em oficinas. O governo pretendia que as próprias oficinas de trabalho custeassem as despesas da penitenciária, no entanto, a Casa não era rentável como o esperado. Críticos alegaram a ineficácia do sistema auburniano, e a construção incorreta do estilo Panóptico. Em 1890, ano seguinte à Proclamação da República, foi editado o novo Código Penal, alvo de diversas críticas acerca de seus erros e falhas. Duras críticas vieram de setores das elites republicanas, que já assimilavam novos instrumentos de administração da ordem social,
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não contemplados no código. Apesar das diversas propostas de revisão e substituição, as previsões foram mantidas conforme foram implementadas. O novo código extinguiu a pena de morte e a pena de galés, estabeleceu o limite de 30 anos para as prisões perpétuas e permitiu o abatimento na condenação do período de prisão preventiva. Adotou novas penas, como a prisão com trabalho obrigatório, prisão com isolamento celular, prisão disciplinar, reclusão, interdição, assim como suspensão e perda de serviço público e multa: Art. 43. As penas estabelecidas neste codigo são as seguintes: a) prisão cellular; b) banimento; c) reclusão; d) prisão com trabalho obrigatorio; e) prisão disciplinar; f) interdicção; g) suspensão e perda do emprego publico, com ou sem inhabilitação para exercer outro; h) multa. Art. 44. Não ha penas infamantes. As penas restrictivas da liberdade individual são temporarias e não excederão de 30 annos. (CÓDIGO PENAL DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL.1890)6 Essa nova idealização da estrutura penitenciária passou a considerar a função da pena no regresso social do apenado, no entanto, havia um conflito de interesses, diante da realidade carcerária da época. Tamanha a desorganização do sistema penitenciário, os projetos para recuperação do preso ficavam impossibilitados de ser executados pela falta de aparato Estatal, que não fornecia os meios adequados para sua execução, e acabava por piorar o quadro vivenciado, uma vez que as metas eram executadas parcialmente ou de maneira incorreta. Portanto, o novo sistema também foi alvo de críticas. Dentre as diversas reformas prisionais deste período, destacase a Colônia Correcional de Dois Rios, criada em 1908. Inspirada na Colônia Correcional da Fazenda Boa-Vista, que fundou em 1893 o modelo que também foi implantado em diversos cantos do país, tinha como referência, fazendas construídas com a finalidade de reduzir a marginalidade das cidades, retirando das ruas os “reincidentes, ociosos e imorais” (PEDROSO, 2006)7, sem distinção de sua raça, etnia, sexo e idade. Juntamente com as colônias de correção, também houve a tentativa de deslocar a comunidade carente para a área rural, através da criação de um núcleo de trabalhadores, que receberiam abrigos em troca de mão de obra remunerada. Claramente, os ideais originários foram desvirtuados, uma vez que a realidade encontrada era de uma visível tentativa de isolamento social dos negros, pobres e criminosos, numa forma de “expulsar” os rejeitados socialmente. No início do século XX, em busca de aprimorar a administração dos sistemas carcerários, surgiram novos tipos prisionais, onde os presos passaram a ser qualificados conforme as categorias de crimes em que se enquadravam, e alocados em prisões específicas para cada qualificação. Neste momento houve a separação por periculosidade do infrator, gravidade do crime, e a criação de um espaço próprio para menores e mulheres, fator que permitia uma analise direta das necessidades de cada categoria, e melhor organização e execução das penas. Entretanto, sua definitiva implantação era impossibilitada diante da realidade, ainda precária, do sistema, que utilizava da tortura e punição do preso como uma maneira de suprir as imperfeições do sistema, que, de fato, não oferecia os instrumentos adequados para a regeneração dos infratores. A criminalidade ainda era um tema bastante debatido e ainda havia esperanças de modificação desse quadro, e, nesse segmento, em 1924, foi deliberada a Escola de Reforma do Direito Penal, que,
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com a finalidade preventiva, acolhia os menores reincidentes, carentes de acompanhamentos e orientações. Mas a mentalidade da época ainda confrontava com os novos ideais, pois a metrópole era associada à idéia de progresso, enquanto o campo era sinônimo de atraso, portanto, na prática, o que se tinha era reformatórios agrícolas, que, embora não representassem nenhuma inovação, foram os modelos penitenciários mais utilizados nas décadas de 1920 e 1930, devido aos custos mais baixos que os urbanos, e que, por serem localizados fora dos perímetros urbanos, dariam fim à população delinquente das cidades, ocultando-a nas prisões rurais. Paralelamente, também havia quem se preocupasse e atuasse em prol da melhoria carcerária, como o Presídio do Engenho da Conceição, que teve seu espaço ampliado, evitando a superlotação, e criou acomodações para os seus vigilantes. Com a intenção de reduzir a problemática do cárcere, foi proposta em 1934 a Circulação de um Selo Penitenciário, que, segundo Cândido Mendes de Almeida, presidente do Conselho Penitenciário, ligado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores8, reputava relevante a implantação dessa alternativa por considerar que as condições dos estabelecimentos carcerários eram insuficientes para a execução da pena de forma eficaz9. Para Cândido Mendes, o valor recebido seria destinado a melhorias nos estabelecimentos penitenciários, em investimentos na Administração das Penitenciárias, na assistência aos familiares dos condenados e no patrocínio de representantes brasileiros em congressos internacionais10. No entanto, críticos alegaram dificuldade em arrecadar esse imposto, sob o argumento de que os impasses sociais não se resumiam ao ambiente carcerário, e outros fragmentos sociais também clamavam por amparo. Neste mesmo ano, foi instaurada a Inspetoria Penitenciária, composta pelo Conselho Penitenciário do Distrito Federal, dependendo de aprovação do Ministério da Justiça, que tinha como função tomar as atitudes necessárias ao resguardo dos presos, abrangendo projetos de reformas em edificações, administração e elaboração de projetos de lei nas penitenciárias. Em 1935, foi sancionado o Código Penitenciário da República com normatização voltada aos indivíduos condenados judicialmente. Criando um alicerce com o Código Criminal de 1890, que visava à recuperação do apenado, instituiu a criação dos sanatórios para os presos com doenças mentais, físicas, viciados, etc. Porém, o novo código também previa sanções severas aos presos que não seguissem sua rigidez, o que facilitou que a cobrança da disciplina fosse utilizada como meio de repreensão, não de recuperação, pois sempre se procurava brechas para aplicar punições. Em 1937, quaisquer contrariedades às determinações do Estado passaram a ser consideradas crime, e os condenados pelo tribunal especial para julgamentos de crimes políticos, alocados nas prisões agrícolas, no intuito de inibir a propagação de novas ideologias sociais. As Casas de Detenção e Casas de Correção mantiveram as mesmas disposições da legislação anterior, o trabalho obrigatório do detento, que não poderia ser submetido ao ócio. A verdadeira mudança no sistema carcerário brasileiro teria início em 1920, no estado de São Paulo, com a Penitenciária do Estado. Considerada como penitenciária modelo, pretendia promover a modernização do sistema prisional, e contava com inovações desde suas edificações até sua política organizacional. A oportunidade dada aos condenados de produzir e ocupar sua mente com o trabalho, como o uso da mão-de-obra dos presos para a construção de rodovias, demonstrava a preocupação em promover o cumprimento da pena visando a recuperação dos apenados.
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Mais uma vez, ao realizar uma análise das propostas e das mudanças, o mito de inovação é desfeito, uma vez que, na prática não ocorreram alterações significativas na conjuntura carcerária e a imagem de uma estrutura exemplar é afastada. O início do Estado Novo é marcado pela preparação de um Plano Penitenciário Nacional, com a implantação de novas unidades e melhorias nas edificações já existentes, visando à introdução de princípios humanizadores nas prisões. Ainda assim, também foi alvo de denúncias por desvirtuamento de seus princípios, ao ser colocado em prática. No início de 1940, na denominada Era Vargas, devido ao aumento significativo da população carcerária, constava insistentemente nos relatórios do Conselho Penitenciário, a necessidade de novas construções para abrigar os condenados, vez que a superlotação era um dos principais impasses abordados sobre o quadro. Diversas obras foram executadas no Distrito Federal, com a intenção de trazer ao país investimentos que trouxessem resultados positivos, como o Presídio de Bangú, a criação da Colônia Penal Cândido Mendes, a Penitenciária de Mulheres, o anexo da Penitenciária Lemos Britto, além da construção de novos pavilhões no Presídio no Distrito Federal (MJ, Arquivo Nacional, 2015)11. Com a transferência da Capital do país para Brasília em 1960, e o aumento das necessidades do sistema carcerário, o Estado ficou impossibilitado de suprir os investimentos necessários para que mantivessem o nível anteriormente conquistado nas penitenciárias, e esses aspectos contribuíram para a crise do sistema na sociedade capitalista. IV O MODELO ARQUITETONICO DAS PENITENCIÁRIAS BRASILEIRAS Os primeiros estabelecimentos prisionais no Brasil não foram projetados, eram, em sua grande maioria, anexos em edifícios de repartições públicas, em uma tentativa de solução mediata das necessidades provenientes da Reforma Penal que ocorria naquele momento. As Casas de Correção de São Paulo e Rio de Janeiro, inspiradas nos modelos europeus, foram as primeiras edificações projetadas por arquitetos especialistas em estabelecimentos prisionais. No período republicano, a arquitetura carcerária brasileira buscava alicerces na Ciência Penitenciária pelo Modelo da Pensilvânia, considerado o sustentáculo das penitenciárias, denominado “casa de arrependimento”, onde os aprisionados deveriam refletir sobre seus erros por meio do contato com a evangelização, considerada esta, a única maneira de reabilitação. Os presos eram escoltados para a prisão com vendas, para que não fosse possível ver o exterior dos pavilhões, no propósito de evitar planejamentos de fuga. O objetivo era a reclusão absoluta nas celas individuais, e o único contato com o meio externo se dava, em absoluto silêncio, no pátio privado de banho de sol, uma hora por dia. A partir da década de 70, foram estipuladas regras para definir os moldes de uma arquitetura penitenciária brasileira própria, no intuito de evitar a implantação distorcida de modelos alienígenas que não teriam eficácia no país. A arquitetura modular foi a escolhida como padrão, e o estilo pavilhonar como referência, pois propiciava a segurança em edificações mais adequadas para as execuções das penas, que eram, gradativamente, transferidas para regimes menos gravosos, possibilitando, desta forma, a separação por tipo de confinamento. Em 1994, os padrões definidos para as arquiteturas penitenciárias foram relativizados pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em prol de projetos inovadores e criativos que beneficiassem a situação dos estabelecimentos carcerários. Entre os anos 1990 e 2000, projetos de penitenciárias federais foram elaborados e a Penitenciária Federal foi construída em pontos periféricos, de cinco estados do país. Com “área construída aproxima-
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da de 12,7 mil m² e 208 vagas para presos homens em celas individuais”12, considerado presídio de nível máximo de segurança, o projeto foi baseado em misturas de projetos arquitetônicos, que resultaram em celas no modelo pavilhonar, que se interligavam por edificações nos moldes de “espinha de peixe” com torres de vigilância direta, além de portas e grades dividindo ambientes. No ano 2000, surgiu um projeto arquitetônico paralelo, utilizado até os dias de hoje em São Paulo. Trata-se da Penitenciária Compacta, com torres de vigilância indireta e muros com proteção, ambientes separados por portões e grades, com “celas individuais e celas coletivas para 12 presos, capacidade para 768 abrigados em regime fechado, oferecendo mais condições de recuperação através de oficinas, salas de aula, cozinhas, cuidados médicos, e locais adequados para banho de sol”13. O modelo formulado da Penitenciária para Jovens Adultos do Pronasci também é modulado pelo estilo de pavilhões separados por atribuições determinadas. Considerado também de segurança máxima, conta com “área construída de 11,5 mil m², com 423 vagas para presos homens, celas coletivas para seis ocupantes cada, e individuais”14, cercas e torres de vigilância direta e contenções em cada pavilhão. A última manifestação pública de observância aos rumos da arquitetura penitenciária se deu com o Projeto de Lei “Da Arquitetura e Engenharia dos Estabelecimentos Penais”15, proposto pela Comissão Parlamentar de Inquérito em 2008, que institui o estatuto Penitenciário Nacional. O sistema penal tem procurado diminuir os diversos problemas decorrentes da aplicação da privação de liberdade, mas apesar das evoluções, as edificações carcerárias impossibilitam a recuperação ou o tratamento de quem está preso. Enquanto isso, o sistema se mantém inerte à idéia de reintegração do criminoso à sociedade, ao convívio social e seu restabelecimento, mas condena as diversas formas de violência dentro dos presídios, rebeliões e altos índices de reincidência. V ANÁLISE DA PROBLEMÁTICA A falta de compromisso Estatal com o sentenciado é evidente. Há uma grande preocupação em reprimir a criminalidade, mas as raízes que levam ao crime não são levadas em consideração. A saúde mental prejudicada do regresso também afeta seus familiares, e influencia, não somente a reincidência, mas o despertar de um sentimento de revolta antagônico pela falta de amparo Estatal no qual todos os cidadãos têm direito. Partindo do pressuposto de que já conhecemos e compreendemos os fatores econômicos e psicossociais que promovem a delinquência e instigam a criminalidade, nos resta a dúvida sobre como evitar, de modo eficiente, a reincidência do condenado brasileiro, como contornar as conseqüências do encarceramento massivo, resultante da criminologia midiática vingativa, que domina o ocidente. Como o layout arquitetônico e prognósticos mentais interferem nos programas de inclusão do condenado ao meio social? A grande questão se encontra no próprio ato prisional, onde são cobrados comportamentos ajustados segundo o pacto social, sem o fornecimento dos meios para que se promovam. A aplicação da pena de prisão com isolamento, punições, e ambientes sórdidos é antagônica ao objetivo de reinserção do indivíduo. Para o aprisionado, o cárcere desencadeia um quadro de angustia e “insegurança, o embrutecimento, a solidão, a ociosidade, o abandono da família, o desajuste sexual e as incertezas quanto ao futuro livre” (OLIVEIRA, 2007)16, uma vez que vive em meio a uma infindável disputa de poderes, através da violência entre os presos que tentam dominar as prisões, e o Estado que tenta reprimir as revoltas
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através de um jogo de forças. Segundo Erving Goffman: A prisão não objetiva as mutilações do eu ou a vitória cultural sobre o preso. Trata-se apenas de racionalizações de um sistema que as usa como estratégia para o controle dos homens, criado do esforço para controlar a vida diária de um grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos (GOFFMAN. 2005)17. O Sistema Penitenciário brasileiro, com pouquíssimas exceções, é arruinado pela carência de estruturas humanizadas e recursos materiais, orçamentários e administrativos. Poucas penitenciárias são projetadas com o intuito de promover o tratamento do psicológico dos indivíduos. São, basicamente, ambientes sem vida e perspectiva, onde os condenados e presos provisórios são alocados após uma catalogação grosseira de sua periculosidade. Sua valoração está em promover segurança máxima. Nada mais é, do que uma característica do descomprometimento estatal, que submete seus cidadãos a condições ilegais e desumanas, promovendo a segregação social dos infratores em troca de uma satisfação da veia vingativa da sociedade. Relatos das Comissões Parlamentares registraram que “os presos no Brasil, em sua esmagadora maioria, recebem tratamento pior do que o concedido aos animais: como lixo humano” (Relatório Final da CPI do Sistema Carcerário, Brasil, 2009)18.
O sistema penitenciário brasileiro e as condições subumanas que oferece reforçam as condutas ilícitas pelas quais os detentos deveriam, em tese, se afastar. O tão mencionado direito à ressocialização que justifica a supressão da liberdade é imensamente desrespeitado, e a pena é aplicada somente para retribuir a má conduta praticada. E esse fato ocorre porque o Estado desmerece a função da Arquitetura Penitenciária, considerando-a apenas um aparato de segurança máxima, deixando de lado a função social que deveria assumir. De fato, a condenação ao cárcere privado, por si só, representa um ato de violação à dignidade humana, e a melhor alternativa de reinserção não é fornecida pelas prisões. Mas, diante da conjuntura, deve-se levar em consideração edificações que possibilitem um cumprimento mais justo das penas. Como exemplo de que a estrutura prisional humanizada pode promover alternativas de recuperação, com presídios de pequeno porte, melhor projetado, aliado a outros princípios basilares, como o de co-responsabilidade de seus internos pela ressocialização, fazemos menção a criação das APACs, que trouxe uma perspectiva inovadora que tem surtido efeitos positivos. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Da Revolução. Trad. Fernando Vieira. Brasília: Ed. Unb, 1988. ANISTIA Internacional. Brasil: Aqui ninguém dorme sossegado - Violações de direitos humanos contra detentos. São Paulo, Anistia Internacional: 1999. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.
VI O MÉTODO APAC A APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, é uma entidade civil de Direito Privado, com personalidade jurídica própria, é uma alternativa na execução penal, dedicada à recuperação e reintegração social dos condenados as penas privativas de liberdade, suprindo a deficiência do Estado nessa área, atuando como Órgão Auxiliar da Justiça e da Segurança na Execução da Pena, conforme seu Estatuto Social19. Para Mario Ottoboni, a APAC “protege a sociedade devolvendo ao seu convívio apenas homens em condições de respeitá-la”20. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais lançou em 2001, o Projeto Novos Rumos na Execução Penal21, incentivando a criação e expansão da APAC, por ser considerada uma alternativa de humanização do sistema prisional do Estado. Objetivando outro tipo de diálogo de fato com a sociedade, mudando a mentalidade de que o preso deve ser afastado do convívio social, ficando a mercê de um sistema falido, criando um lugar que mantenha a condição humana e a condição digna das pessoas e o seu direito de continuar responder a sociedade pelos seus próprios atos. As APACs rompem a idéia de controle que vem se fortalecendo dentro do campo da segurança pública e fortalecem a idéia de colaboração em busca da reintegração. VII CONSIDERAÇÕES FINAIS A construção social do indivíduo surge em um conjunto de relações que refletem significativamente nas suas ações cotidianas. A personalidade do indivíduo é estruturada também pelo meio que convive. O ser humano se espelha e interage com o espaço em que habita e reflete a realidade transmitida pela organização espacial. A estrutura prisional atual favorece a criação de barreiras que separam o interno da possibilidade de se restabelecer, tendo em vista as condições inexistentes da dignidade da pessoa humana, uma vez que nesses ambientes não se conta com fatores essenciais para a saúde mental e “readaptação” social, quais sejam a identidade, privacidade e convivência interpessoal.
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O DIREITO SUCESSÓRIO DO COMPANHEIRO E DO CÔNJUGE NO DIREITO BRASILEIRO Bernardo Henrique Fernandes¹ Valéria Edith Carvalho de Oiliveira2 RESUMO: O presente artigo busca apresentar as principais diferenças entre a sucessão dos companheiros e dos cônjuges no ordenamento jurídico brasileiro, passando por uma evolução histórico-legislativa até os dias atuais, destacando os pontos mais controvertidos e criticados pela doutrina. Aborda ainda os aspectos diferenciadores do direito sucessório dos companheiros e dos cônjuges, passando pela hipótese do companheiro como herdeiro necessário, pelo direito real de habitação, pela reserva legal e finalizando em uma análise embasada por grandes doutrinadores sobre a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil de 2002. PALAVRAS-CHAVE: sucessão; companheiro; cônjuge. ABSTRACT: This article seeks to explain the main differences between the succession of mates and spouses in the brazilian legal system, through a historical-legislative developments to the present day, highlighting the most controversial points and criticized by the doctrine. Addressing on the different aspects of the law of succession of mates and spouses, through the hypothesis of the mate being a necessary heir, the real right to dwelling, the subject of the legal reserve and ending on an informed analysis by major scholars on the unconstitutionality of article 1790 Civil Code 2002. KEYWORDS: succession; mates; spouses. SUMÁRIO: I Introdução; II Análise Histórico-Legislativa da Sucessão do Companheiro e do Cônjuge no Direito Brasileiro; III Aspectos Diferenciadores da Sucessão do Cônjuge e da Sucessão do Companheiro; IV Considerações Finais; Referências.
I INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 expandiu o conceito de família, quando, em seu artigo 226 §3º, reconheceu a união estável como entidade familiar, se assemelhando em direitos ao casamento, e como tal merecendo ser protegida. O Código Civil também buscou reconhecer, em seu artigo 1723, a união estável, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família, como entidade familiar. Ocorre que, quanto aos direitos sucessórios, o artigo 1790 do Código Civil nos mostrou uma diferenciação entre os direitos dos cônjuges e dos companheiros. O presente artigo tem como finalidade analisar e demonstrar tais diferenciações. II ANÁLISE HISTÓRICO-LEGISLATIVA DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO E DO CÔNJUGE NO DIREITO BRASILEIRO Tendo como ponto de partida o Código Civil de 1916, analisamos que, conforme disposto no artigo 1603, o cônjuge sobrevivente figurava em terceiro lugar na ordem de sucessão, ficando atrás dos descendentes e dos ascendentes, e com eles não concorrendo. Observando o artigo 1721 do Código Civil de 1916, vê-se que o cônjuge poderia até mesmo ficar fora da sucessão, pois não era considerado como herdeiro necessário. O antigo Código Civil nada dispunha sobre os direitos sucessórios dos concubinos, hoje em dia denominados de companheiros. Esse contexto foi modificado com o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226 §3º. Com tal modificação, o direito passou a proteger todas as formas de família, não apenas as derivadas do casamento, mostrando um grande avanço na ordem jurídica brasileira. Maria Berenice Dias faz uma análise histórica dos direitos sucesLETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/2015 | ISSN 2358-2685
sórios dos companheiros após a Constituição de 1988, nos seguintes termos: Mesmo com o advento da norma constitucional, que reconheceu a união estável como entidade familiar (CF 226§3º), a jurisprudência resistiu em conceder direito sucessório aos companheiros. (...) foi somente com o advento da legislação que regulou a norma constitucional que a união estável foi admitida como família, com direitos sucessórios iguais ao casamento (Lei 8971/1994 e 9278/1996). (DIAS, 2008).
Após ser reconhecida como entidade familiar, vieram leis ordinárias para tratar dos direitos dos companheiros. Em 1994 foi promulgada a lei n. 8.971 que, em seu artigo 2º, disciplinava, pela primeira vez, o direito dos companheiros à sucessão. Art. 2º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições: I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns; II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.
Posteriormente foi promulgada a Lei n. 9.278/96, segunda a tratar sobre os direitos dos companheiros, que em seu artigo 1º nos mostra que “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituir família”. Com o advento do Código Civil de 2002, o direito à sucessão
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dos companheiros foi previsto no artigo, 1790, inserido no capítulo das “Disposições Gerais”. Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Enquanto a Constituição Federal concedeu especial proteção à união estável, reconhecendo-a como entidade familiar, o Código Civil de 2002 acabou por restringir aos companheiros alguns direitos concedidos aos cônjuges. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: Causa estranheza a péssima localização das regras constantes no artigo 1790 do Código Civil. O Legislador, inadvertidamente, resolveu inserir o regramento específico da sucessão legítima pelo (a) companheiro (a) viúvo (a) entre as regras gerais e os princípios do Direito das Sucessões. (FILHO; GAGLIANO, 2014). No mesmo sentido, Silvio Salvo Venosa mostra que: O mais novo código civil conseguiu ser perfeitamente inadequado ao tratar do direito sucessório dos companheiros, traçando em apenas um único dispositivo o direito sucessório
vel, ao menos em cinco aspectos, trouxe inegável prejuízo ao companheiro sobrevivente: (a) não o reconheceu como herdeiro necessário; (b) não lhe assegurou quota mínima; (c) o inseriu no quarto lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos colaterais; (d) limitou o direito concorrente aos bens adquiridos onerosamente durante a união; e (e) não lhe conferiu direito real de habitação. (DIAS, 2008). Segundo o Código Civil de 2002, após a morte de um dos companheiros, deve-se analisar quais bens serão parte na sucessão do companheiro sobrevivente. Se os bens forem adquiridos onerosamente na constância da união estável aplica-se o artigo 1790, se adquiridos de forma diversa, aplica-se as regras do 1829, afastando o companheiro da sucessão, diferentemente do que ocorre com o cônjuge, que não poderá ser excluído. III.I O SUCESSOR COMO HERDEIRO NECESSÁRIO O artigo 1845 do Código Civil de 2002 estabelece os chamados herdeiros necessários, ou seja, aqueles que não poderão ficar de fora da sucessão do de cujus. São eles os descendentes, os ascendentes e o cônjuge sobrevivente. Observa-se, portanto, que o companheiro não foi incluído no rol do citado artigo, não pertencendo a classe dos herdeiros necessários, podendo ficar de fora da sucessão. O caput do artigo 1790 do Código Civil nos traz apenas sobre a sucessão de bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, ou seja, se em toda a convivência, os companheiros não houverem adquirido bens onerosamente, não haverá, para o sobrevivente, a sucessão, podendo ficar fora da partilha dos bens. Problema este que não ocorre para os cônjuges, que, como mostrado, não poderá ser excluído da sucessão.
dos companheiros no artigo 1790 CC/02, em local absolutamente
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves entendem que: Limitando o direito hereditário do companheiro aos bens adquiridos onerosamente durante a constância da união estável, além de implicar em injustificável discriminação do companheiro, importa em ignorar a realidade da maioria do povo brasileiro. (FARIAS; ROSENVALD, 2014).
excêntrico, entre as disposições gerais, fora da ordem de vocação hereditária. (VENOSA, 2013).
E complementa ainda afirmando que: A impressão que o dispositivo transmite é de que o legislador teve rebuços em classificar os companheiros como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina da ordem de vocação hereditária. (VENOSA, 2013). Existe um retrocesso na amplitude dos direitos hereditários dos companheiros no atual Código Civil, pois, segundo a Lei 8.971/94, já citada anteriormente, não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes do convivente morto, o companheiro sobrevivente recolheria toda a herança. No sistema atual, segundo o artigo 1790 CC/02, havendo colaterais sucessíveis, o convivente apenas terá direito a um terço da herança, por força do inciso III do citado artigo, ou seja, o companheiro já entra em posição de inferioridade até mesmo em relação aos colaterais, somente recebendo integralmente a herança se não existirem colaterais até o 4º grau. III ASPECTOS DIFERENCIADORES DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE E DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO O atual ordenamento jurídico brasileiro apresenta distinções quanto a sucessão do cônjuge e do companheiro, apesar da Constituição Federal reconhecer a união estável, tal como o casamento, como entidade familiar. Para Maria Berenice Dias, o atual Código Civil trouxe prejuízo para o companheiro sobrevivente nos termos seguintes: O Código Civil, ao tratar do direito sucessório na união está-
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E complementam que: O companheiro se encontra em posição inferior até mesmo em relação aos colaterais, somente tendo direito ao recebimento integral da herança se não existirem, sequer, colaterais até o 4º grau do falecido – o que é, convenhamos, quase impossível. (FARIAS; ROSENVALD, 2014). Observa-se, portanto, uma distinção criada pelo legislador ao colocar o cônjuge no rol dos herdeiros necessário e excluir o companheiro, tratando-o apenas na parte das disposições gerais das sucessões. Tal distinção gera debates na doutrina brasileira. Maria Berenice Dias considera o companheiro como herdeiro necessário, afirmando ser injustificável sua não inserção na ordem de vocação hereditária: Aos herdeiros necessários é reservada a legítima, que corresponde à metade deste patrimônio. A outra metade é a parte disponível que seu titular pode dispor por meio de testamento. Como o companheiro não é herdeiro necessário – por injustificadamente não ter sido inserido na ordem de vocação hereditária -, não tem direito à legítima. (DIAS, 2008).
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E continua: No atual Código Civil o cônjuge foi promovido à condição de CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA
herdeiro necessário (CC 1845), mas o companheiro não. O cônjuge ocupa terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. O seu direito é garantido, faz jus à legítima, ou seja, à metade do acervo que integra a herança. Assim, quando do falecimento de um dos cônjuges, na ausência de descendentes ou ascendentes, a herança obrigatoriamente é transmitida ao sobrevivente. O companheiro na união estável não goza do mesmo privilégio. É simplesmente herdeiro legítimo e não herdeiro necessário (CC 1790). Como herdeiro facultativo pode imotivadamente ser excluído da sucessão (CC 1850). (DIAS, 2008). Já Maria Helena Diniz ressalta que: Pelo art. 1790, I a IV, do Código Civil, tratando-se de concubinato puro (união estável), o companheiro supérstite não é herdeiro necessário e nem tem direito à legítima, mas participa da sucessão do de cujus na qualidade de sucessor regular, sendo herdeiro sui generis, somente quanto à “meação” do falecido relativa aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. (DINIZ, 2013).
Para completar, a doutrina majoritária não considera o companheiro herdeiro necessário, seguindo a literalidade do artigo 1845 do Código Civil de 2002, possuindo apenas o direito a meação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. III.II DIREITO REAL DE HABITAÇÃO O direito real de habitação do companheiro, previsto pelo artigo 7º da lei 9278/96, se dá quando a união estável é dissolvida pela morte de um dos conviventes, e o sobrevivente, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, habita o imóvel destinado à residência da família. Observa-se que a citada lei mostra apenas que o companheiro terá direito real de habitação enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento. Posteriormente, o Código Civil de 2002 se mostrou parcialmente omisso quanto ao assunto, pois, em seu artigo 1831, conferiu o direito real de habitação apenas ao cônjuge sobrevivente, nada dispondo sobre o companheiro. Destaca-se que o direito conferido ao cônjuge sobrevivente ainda está livre de algumas limitações que são impostas ao companheiro, por meio da Lei 9278/96, pois, mesmo que constitua nova união ou mesmo novo casamento, o cônjuge não perderia seu direito de habitação. Conforme demonstrado, apesar de não disposto expressamente em nosso Código Civil, para alguns doutrinadores como Sílvio de Salvo Venosa e Maria Helena Diniz, o artigo 7º da lei 9278/96 continua em vigor, como, por esta mesma é demonstrado: O companheiro sobrevivente, por força da Lei nº 9278/96, art. 7º, parágrafo único, e, analogicamente, pelo disposto nos arts. 1831 do CC e 6º da CF (...), também terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família; mas pelo Código Civil tal direito só é deferido ao cônjuge sobrevivente. Diante da omissão do Código Civil (norma geral), o art. 7º, parágrafo único daquela Lei estaria vigente, no nosso entender, por ser norma especial. (DINIZ, 2013).
Maria Berenice Dias muito bem afirma que “o cochilo da lei não permite que se afaste o direito do companheiro de continuar na posse
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do bem que servia de residência à família. ” (DIAS, 2008). Existe ainda enunciado das jornadas de Direito Civil, nº 117, sobre o tema que traz o seguinte entendimento: 117. Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada precisão da lei nº 9278/1996, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/198. Conforme demonstrado, deve-se prevalecer o disposto no artigo 7º da Lei 9278/96, por ser lei especial, em face da parcial omissão que o legislador nos trouxe com o Código Civil de 2002. III.III A RESERVA LEGAL COMO DIREITO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE No direito brasileiro, a sucessão poderá dar-se para mais de uma pessoa, devendo ser destinada aos parentes mais próximos do de cujus, respeitando a ordem de vocação hereditária estipulada pelo artigo 1829 do Código Civil de 2002: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais. Para que o cônjuge ou o companheiro não saiam com uma parte muito pequena da herança, o Código Civil tratou de estabelecer um instituto chamado de reserva legal. Quanto aos cônjuges, o artigo 1832 do citado código, no traz que: Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer. Observa-se que, se o cônjuge concorrer na sucessão com descendentes caberá a ele quinhão igual ao dos demais, entretanto, sua quota não poderá ser inferior a 1/4 se for ascendente dos herdeiros. Se concorrer com os ascendentes de primeiro grau, caberá ao cônjuge 1/3 da herança. Se com apenas um dos ascendentes ou em maiores graus, ficará reservado 1/2 de herança, como dispõe o artigo 1837 do Código Civil: Art. 1.837. Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau.
Já para os companheiros, o instituto da reserva legal é regulado pelo artigo 1790 do Código Civil. O parágrafo primeiro do citado artigo prevê que, concorrendo com filhos comuns, o companheiro terá direito a mesma quota recebida por eles. Já em seu parágrafo segundo, estipula que, se concorrer com descendentes só do autor da herança receberá a metade do que couber a cada um destes. O parágrafo terceiro dispõe que, se concorrer com quaisquer parentes sucessíveis, ficará resguardado 1/3 da herança. Por fim, o parágrafo quarto prevê que, na falta de parentes sucessíveis, o companheiro herdará sozinho.
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Note-se que, concorrendo com qualquer parente sucessível, ficará o companheiro com apenas 1/3 da herança, ficando os demais com 2/3. Portanto, cria-se uma diferenciação na sucessão dos companheiros e dos cônjuges também quanto ao instituto da reserva legal. Não havendo descendentes ou ascendentes o cônjuge herdará sozinho. Já para os companheiros, se existir um primo distante, a ele ficará 2/3 da herança, ficando o companheiro com apenas 1/3. Maria Berenice Dias considera absurda essa regra, pois gera um enriquecimento injustificado dos parentes em detrimento do com-
Pensamos que o artigo 1.790 do Código Civil, deve ser destinado à lata do lixo, sendo declarado inconstitucional e, a partir daí, simplesmente ignorado, a não ser para fins de estudo histórico da evolução do direito. Tal artigo, num futuro não muito distante, poderá ser apontado como exemplo dos estertores de uma época em que o legislador discriminava a família que se formava a partir da união estável, tratando-a como se fosse família de segunda categoria. (JUNIOR, 2005).
panheiro: O companheiro só faz jus à integralidade da herança quando não há nenhum outro herdeiro legítimo (CC 1790 IV). Basta a existência, por exemplo, de um único primo para a herança ser transferida a ele. A sorte é que o primo não fica com tudo. Em face do direito de concorrência, o companheiro recebe um terço da herança e dois terços ficam com o parente colateral de quarto grau (CC 1790 III). O resultado da aplicação desta regra é totalmente absurda, pois gera o enriquecimento injustificado dos parentes em detrimento do companheiro. (DIAS, 2008).
Portanto, se já devidamente regulado e igualado pela Constituição Federal, não é correto que uma lei posterior venha com entendimento contrário, criando tais distinções, violando o princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Vale ressaltar que a constitucionalidade dos direitos sucessórios diferenciados para companheiros e cônjuges será discutida pelo STF. Já houve o reconhecimento da repercussão geral por unanimidade do plenário e será analisado pelo relator ministro Luís Roberto Barroso.
Completa ainda que: A união estável é reconhecida como entidade familiar pela Constituição Federal (CF 226§ 3º), que não concedeu tratamento diferenciado a qualquer das formas de constituição da família. Conforme Zeno Veloso, o art. 1790 merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substancia. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco. (DIAS, 2008). Destaca-se também um acordão do TJRS, entendendo pela inaplicabilidade do artigo 1790, III do Código Civil: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. PARENTES COLATERAIS. EXCLUSÃO DOS IRMÃOS DA SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 1790, INC. III, DO CC/02. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 480 DO CPC. Não se aplica a regra contida no art. 1790, inc. III, do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da herança. Incidente de inconstitucionalidade argüido, de ofício, na forma do art. 480 do CPC. Incidente rejeitado, por maioria. Recurso desprovido, por maioria. (Agravo de Instrumento Nº 70017169335, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 08/03/2007).
Alguns doutrinadores, como Arnaldo Ward, consideram o dispositivo que trata da sucessão do companheiro no nosso atual código civil como inconstitucional, fundamentando que: No lugar de dar especial proteção a família fundada no companheirismo (CF, art. 226, caput, e § 3º), ele retira direitos e vantagens anteriormente existentes em favor dos companheiros. O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, a sucessão em favor dos companheiros. (WALD, 2009). Aldemiro Rezende completa que: LETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/20145| ISSN 2358-2685
IV CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme demonstrado, existe atualmente no Brasil uma crítica por parte da doutrina quanto a diferenciação dada em nosso Código Civil para os direitos sucessórios dos companheiros e dos cônjuges. Tal diferenciação se mostra controversa, uma vez que, tanto a união estável, quanto o casamento são vistos como entidades familiares, e como tais, merecem toda a proteção necessária, não podendo, o companheiro, em alguns casos, ficar totalmente desamparado por nossa legislação. O cônjuge recebeu a devida proteção pelo Código Civil de 2002, sendo considerado herdeiro necessário, não podendo ficar de fora da sucessão do de cujus. Não existindo descendentes ou ascendentes o cônjuge herdará sozinho, independe do regime de bens. Foi contemplado ainda com o expresso direito real de habitação pelo Código Civil, livre de algumas das condições estabelecidas aos companheiros pela Lei 9.278/96. O companheiro, por outro lado, não recebeu a devida proteção do Código Civil de 2002, não sendo considerado herdeiro necessário, poderá ficar fora da sucessão caso os bens do outro não forem adquiridos onerosamente na constância da união estável. Se concorrer com quaisquer parentes sucessíveis, ficará apenas com um terço da herança, somente herdando sozinho caso não exista nenhum parente sucessível do companheiro falecido. Ademais não recebeu expressamente pelo Código Civil o direito real de habitação, porém, conforme demonstrado pelo enunciado de jornada de Direito Civil nº117, deverá ser utilizada a Lei 9278/96, pelo fato de não ter sido revogada, devendo o direito real de habitação ser estendido aos companheiros. Por fim, existe uma forte corrente na doutrina Brasileira propagando a inconstitucionalidade do art. 1790 CC/02, defendendo a valoração da relação afetiva, conforme a especial proteção do Estado conferida a família, pelo artigo 226 da Constituição Federal. REFERÊNCIAS BRASIL, Código Civil. IN: VADE MECUM SARAIVA. 19º ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pág.153 à 287; BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. IN: VADE MECUM SARAIVA. 19º ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pág.5 à 75; BRASIL, Palácio do Planalto. Código Civil de 1916. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em 02 jun. 2015; BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº 70017169335. Rela-tor: José Ataídes Siqueira Trindade. 08 de março de
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2007; < http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Justi%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70017169335&num_processo=70017169335&codEmenta=1781202&temIntTeor=true>. Acesso em 02 jun. 2015; DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008; DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. Volume 6. São Paulo: Saraiva, 2013; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 6ª ed. v. 6. Salvador: JusPodivm, 2014; FILHO, Rodolfo Pamplona; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões, v. 7. São Paulo: Saraiva, 2014; JUNIOR, Aldemiro Rezende Dantas. Concorrência sucessória do companheiro sobrevivo. Revista Brasileira de Direito de Família, ano VII, n.29. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, 2005; LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das sucessões. Volume 6. São Paulo: Saraiva, 2006; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito das secessões. 19ª ed. 6v. Rio de Janeiro: Forense, 2011 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: direito das sucessões. Volume 7. São Paulo: Saraiva, 2007; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 13ª ed. v. 7. São Paulo: Atlas, 2013; WALD, Arnoldo. Direito Civil: Direito das sucessões. 14ª ed. V. 6. São Paulo: Saraiva, 2009.
NOTAS DE FIM 1
Aluno graduando da Escola de Direito no Centro Universitário Newton Paiva
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Orientador Professora Valéria Edith Carvalho de Oiliveira.
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REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: AVANÇO OU RETROCESSO? Carolina Pereira Junqueira ¹ Cristian Kiefer da Silva² RESUMO: A sociedade atualmente vive uma situação de grande desconforto e insegurança devido ao grande aumento da criminalidade nos centros urbanos, principalmente porque uma grande parte das infrações são cometidas por pessoas inimputáveis criminalmente, dando, portanto a sensação de impunidade. Este trabalho tem o objetivo de demonstrar que a redução da maioridade penal não seria viável no nosso ordenamento jurídico, tendo em vista os ditames constitucionais. Ademais, não se demonstraria eficaz, vez que, apesar da sociedade clamar pela redução, nós não estaríamos prontos para a reabilitação e reinserção dos menores infratores à sociedade. PALAVRAS-CHAVES: Maioridade Penal; Redução; Constitucionalidade; Políticas-públicas. ABSTRACT: The society currently experiencing a situation of great discomfort and insecurity due to the large increase in crime in urban areas, mainly because a large proportion of offenses are committed by people criminally imputable, giving therefore a sense of impunity. This work aims to demonstrate that the reduction of criminal majority wouldn’t be feasible in our legal system, in view of the constitutional dictates. Moreover, no effectiveness is demonstrated, because, despite the society want the reduction, we wouldn’t be ready for the rehabilitation and reintegration of young offenders into society. KEYWORDS: Majority Criminal; Reduction; Constitutionality; Public Policy. SUMÁRIO: I Introdução; II Contextualização Histórica; III Conceito de Maioridade Penal; IV Opção Legislativa; V A Redução da Maioridade Penal e a Constituição da República; VI A Redução da Maioridade Penal e o Código Penal; VII A Redução da Maioridade Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente; VIII A Redução da Maioridade Penal como Medida Populista – Projeto de Emenda à Constituição nº 171/1993; IX Considerações Finais; Referências.
I INTRODUÇÃO A sociedade atualmente vive uma situação de grande desconforto e insegurança devido ao grande aumento da criminalidade nos centros urbanos, principalmente porque uma grande parte das infrações são cometidas por agentes inimputáveis criminalmente, dando, portanto a sensação de impunidade. Dessa forma, o que tem se discutido é a possibilidade de redução da maioridade penal para que, assim, não se tenha mais a dita impunidade. Os argumentos são amplos e extrapolam o âmbito jurídico, alguns defendem a redução da maioridade penal e outros a condenam ferrenhamente. Em resposta ao clamor público, o Congresso Nacional colocou em pauta o Projeto de Emenda à Constituição nº 171 de 1993, como o objetivo de reduzir a maioridade penal de dezoito anos para dezesseis anos de idade. Contudo, analisando os diplomas legais que regem o ordenamento jurídico brasileiro observa-se que não é possível que tal alteração seja feita, tanto por vedações constitucionais, quanto por questões sociais de ordem pública. A redução da maioridade penal, dentro do contexto jurídico brasileiro mostra-se inadequada e até impossível, tendo em vista que vai de encontro com as normas constitucionais, inclusive, violando o princípio que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda, é contrária as normas infraconstitucionais, quais sejam, o Código Penal Brasileiro e o Estatuto da Criança e do Adolescente. No atual cenário social brasileiro também seria inviável a redução da maioridade penal, porque não possuímos condições de estruturação física para ressocializar o menor, muito menos temos aceitação popular para sua reinserção no mercado de trabalho. Além disso, já há no ordenamento jurídico brasileiro medidas
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socioeducativas aplicáveis aos menores infratores, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, que não são formas de punição, mas sim de ressocialização dos menores. Portanto, a efetiva aplicação das medidas socioeducativas aos menores, em conjunto com o investimento em políticas públicas, seriam suficientes para reduzir o índice de cometimento de ato infracional, e trazer à sociedade a tão sonhada segurança pública. II CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA O ordenamento jurídico brasileiro, desde a época do império vem se preocupando em disciplinar a maioridade penal. Especificamente, em 1830, com o Código Criminal do Império do Brazil, foi introduzido a primeira noção de maioridade penal no ordenamento brasileiro. O art. 10 do referido diploma legal dispunha que: Art. 10. Também não se julgarão criminosos: 1º Os menores de quatorze annos (...). Contudo, somente com o Decreto 847 de 1890, promulgado pelo General Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório dos Estados Unidos do Brazil, para reformar o regime pena à época, é que se efetivou a aplicação do Código Penal brasileiro e, por consequência, a maioridade penal no Brasil. Tal Decreto previa duas regras relativas a maioridade penal, ao contrário daquela disposta no Código Criminal do Império do Brazil, que somente considerava inimputável os menores de quatorze anos. No caso, o Decreto considerava inimputável os menores de 9 (nove) anos de idade completos e também os maiores de 9 (nove) e menores de 14 (quatorze) anos de idade, sem o devido discernimento, in verbis:
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Art. 27. Não são criminosos: § 1º Os menores de 9 annos completos; § 2º Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento; (...) O art. 30 do referido decreto previa também que os maiores de nove anos e menores de quatorze anos de idade que agissem com discernimento seriam recolhidos em estabelecimentos disciplinares, pelo tempo determinado pelo juiz, desde que não exceda à idade de dezessete anos do agente do crime. Nesse momento, o que se observa é o início da vontade do legislador em resguardar o direito do menor, é o primeiro indício de que a sociedade começou a se preocupar com o direito dos menores, e não só com a punição relativa à eles. O próximo passo dado pelo legislador, diante de um novo quadro onde a sociedade passou a se preocupar com os direitos das crianças e dos adolescentes e não mais somente com as punições aplicadas a eles quando do cometimento de algum crime, foi o de criar, em 1927, o Código de Menores, que tratava, além das questões penais que envolviam os menores, da real proteção deles. O art. 1º do Código de Menores classificava os menores infratores em abandonados e delinquentes, e sendo assim, qualquer destes que fosse menor de 18 (dezoito) anos de idade estaria regido pelo texto legal: Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistência e protecção contidas neste Código. Com o advento do Código Penal de 1940 (vigente até os dias atuais), consolidou-se o critério biológico para a fixação da maioridade penal, ou seja, entendeu e ainda entende que basta a pessoa ser menor de 18 (dezoito) anos para ser inimputável. Apesar de já ter sofrido várias alterações durante os anos, a essência relativa a inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos se manteve. Ao tempo de sua promulgação, o art. 23 do CP dispunha que: Art. 23. Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Após diversas alterações, a mais recente feita pela Lei 7.209/1984, a redação do artigo e sua disposição no Código Penal foi modificada, contudo, o critério biológico se manteve aos menores de dezoito anos. Atualmente, a matéria está disposta no art. 27, do CP: Art. 27 - Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Consolidando ainda mais a inimputabilidade penal aos menores de dezoito anos, foi promulgada a Constituição da República de 1988, nosso diploma normativo superior, que no art. 228, reafirmou o que já estava disposto em nosso Código Penal, ou seja, que os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, estando sujeitos a legislação especial. Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. A lei especial regente àquele momento era o Código de Menores, apesar de ter sofrido muitas alterações desde de 1927, inclusive, sendo revogada em 1979, e substituída por um novo Código, que manteve sua nomenclatura, mas teve seu conteúdo modificado.
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Porém, devido as alterações legislativas do Código Penal e a promulgação de nossa Carta Magna (CR/88), mostrou necessária uma alteração legislativa em relação ao Código de Menores, o que ocorreu em 1990, com o advento da Lei 8.069, o atual Estatuto da Criança e do Adolescente, que ratificou as disposições em relacionadas a inimputabilidade penal dos menores dezoito anos e garantiu direitos e garantias às crianças e adolescentes. III CONCEITO DE MAIORIDADE PENAL Para que se possa entender o conceito de maioridade penal é necessário conhecimento sobre culpabilidade, mais precisamente sobre a imputabilidade penal no ordenamento jurídico brasileiro. Considera-se crime quando o agente pratica uma conduta típica, ilícita e culpável. O que nos interessa é o estudo da culpabilidade. A culpabilidade está relacionada com a reprovabilidade da conduta praticada pelo agente, é a responsabilidade penal do sujeito, ou seja, as característica do agente do delito, sendo composta de alguns elementos normativos, conforme dispõe Rogério Greco: Nos moldes da concepção trazida pelo finalismo de Welzel, a culpabilidade é composta pelos seguintes elementos normativos: imputabilidade; potencial consciência sobre a ilicitude do fato; exigibilidade de conduta diversa. (GRECO, 2014) A imputabilidade é a capacidade do agente de ser culpável, ou seja, é a possibilidade de se atribuir fato típico e ilícito ao agente. A regra no ordenamento jurídico brasileiro é a imputabilidade do agente, contudo, há exceções, casos de inimputabilidade expressos no texto normativo. É neste contexto da inimputabilidade é que se encontra o conceito de maioridade penal, uma vez que o Código Penal determina que além de serem inimputáveis aqueles que possuem doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou que ainda, ao tempo da ação ou omissão era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 26, CP), determina também, nos termos do art. 27 do referido diploma, que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos de idade, que ficam sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. A Constituição da República de 1988, em seu art. 228, consolidando tal entendimento já estabelecido pelo Código Penal, reafirmou a idade mínima de dezoito anos para que o sujeito venha a ser julgado criminalmente pela prática de condutas que configurem ilícito penal. Ou seja, a maioridade penal no Brasil começa quando o sujeito atinge os dezoito anos de idade. Neste momento ele passa a ter responsabilidade penal, ficando sujeito as sanções penais estabelecidas caso pratique algum ato delitivo. Importante destacar que, com relação ao aspecto da inimputabilidade penal relativa a idade o ordenamento brasileiro adotou puramente o critério biológico, ou seja, a idade do autor, sem levar em conta o desenvolvimento mental do menor, que não está sujeito a sanção penal, mesmo que seja plenamente capaz de entender o caráter ilícito da conduta e se determinar de acordo com esse entendimento. Para Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini: Trata-se de uma presunção absoluta de imputabilidade que faz com que o menor seja considerado como tendo desenvolvimento mental incompleto em decorrência de um critério de política criminal. Implicitamente a lei estabelece que o menor de 18 anos não é capaz de entender as normas da vida social e agir conforme esse entendimento.(MIRABETE E FABRRUNI, 2014)
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No mesmo sentido dispõe Rogério Greco: A imputabilidade por imaturidade natural ocorre em virtude de uma presunção legal, em que, por questões de política criminal, entendeu o legislador brasileiro que os menores de 18 anos não gozam de plena capacidade de entendimento que lhes permita imputar a prática de um fato típico e ilícito. Adotou-se, portanto, o critério puramente biológico. (GRECO, 2014) Dessa forma, como visto, o agente passa a ser penalmente imputável quando completa 18 anos de idade, conforme a legislação vigente, ou seja, a maioridade penal é a idade mínima (18 anos) para um sujeito ser responsabilizado penalmente por condutas praticadas. IV OPÇÃO LEGISLATIVA Como já exposto, a Constituição Federal de 1988 em seu art. 228 determinou como inimputáveis os menores de 18 anos: Art. 228: São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. No mesmo sentido dispõe o art. 27 do Código Penal: Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente imputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Tais dispositivos demonstram a opção do legislador ao determinar a maioridade penal no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda, remetem à aplicação de uma legislação especial, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina a aplicação de medidas socioeducativas ao jovem infrator, além de assegurar os direitos dos menores de 18 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 – popularmente conhecido como ECA traz diversas disposições que asseguram o direito das crianças e dos adolescentes. O art. 2º do ECA define quem é considerada criança e quem é considerado adolescente para fins de aplicação das normas especiais, in verbis: Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. Já o art. 104, também do Estatuto, determina que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, devendo ser submetidos às suas disposições. Ainda, no § único do referido artigo é disposto que deve ser considerada a idade do adolescente na data do fato delituoso: Art. 104. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei. Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato. Dessa forma, fica clara a opção do legislador quando definiu a maioridade penal em 18 anos levando em consideração o critério biológico, de preservar e proteger o menor, aplicando a eles medidas socioeducativas para que possam ser reinseridos/inseridos na sociedade.
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V A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 Conforme já visto a Constituição da República de 1988 elegeu o critério biológico para determinar a maioridade penal em dezoito anos, nos termos do art. 228. Sendo este um dispositivo constitucional é necessário para que seja modificado a criação de uma emenda à constituição. Contudo, é sabido que há alguns dispositivos da Constituição que não podem ser modificados para pior, as determinadas cláusulas pétreas. As cláusulas pétreas estão, em regra, elencadas no art. 60, §4º CR/88: Art. 60: (...) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. A maioridade penal estabelecida no art. 228, CR/88 é uma cláusula pétrea implícita, uma vez que assegura o direito do menor de dezoito anos de não ser processado e julgado pela justiça comum, ou seja, é um direito individual do menor. Sendo assim, tal dispositivo não pode ser alterado com a finalidade de reduzir o direito do menor, passando a responsabilizá-lo penalmente por conduta típica prevista no Código Penal Nesse sentido é o entendimento do jurista Luís Flávio Gomes: “[...] Muito se discute se, em razão dessa previsão constitucional a menoridade penal assumiu ou não status de cláusula pétrea. Segundo nosso ver, não há como negar que se trata de norma constitucional que compõe o conteúdo rígido da nossa Constituição Federal, tendo em vista o disposto nos artigos 5º, § 2º e 60, § 4º, ambos do aludido diploma. Assim sendo, nem mesmo por meio de emenda constitucional é possível alterar a idade mínima da imputabilidade penal, haja vista que se apresenta como questão intrinsecamente vinculada à própria personalidade humana.” (GOMES, 2007) Outro aspecto relevante é o que o ilustre professor Marcelo Neves chama de constitucionalismo simbólico, que são normas constitucionais que apesar de vigentes não são eficazes, nem mesmo legítimas, apenas propiciam um conforto simbólico à sociedade. É o caso da alteração constitucional para reduzir a maioridade penal, que traria uma satisfação popular, mas que efetivamente não melhoraria o cenário criminal no Brasil, assunto que será tratado em momento oportuno. V.I Princípios constitucionais O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto como um direito fundamental em nosso ordenamento jurídico, positivado no art. 1º, III, CR/88, in verbis: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; Ele representa o fundamento básico para o Estado Democrático de Direito o qual vivemos. Determina que as pessoas humanas tem que ter condições e serem tratadas dignamente, conforme suas necessidades, não podendo ser tratadas como
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meros instrumentos. Em decorrência de tal princípio foi estabelecido também o princípio da igualdade ou da isonomia, previsto no art. 5º, caput, CR/88, que determina que todos são iguais na medida das duas desigualdades. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) O art. 5º da nossa Carta Magna ainda prevê em seu inciso XLVIII, o princípio da individualização da pena que determina que o cumprimento da pena deve ser em estabelecimento distintos de acordo com as características do fato criminoso e do apenado. Art. 5º: (..) XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; A redução da maioridade penal violaria tais princípios constitucionais. Isto porque, o menor deve ser tratado de maneira igualitária na medida de sua desigualdade, ou seja, entre os iguais (menores) o menor deve ser tratado de forma isonômica, contudo comparando-o com adultos, devem ser tratado de forma diversa. Ainda, deve ser feita uma analogia in bonan partem com relação ao princípio da individualização da pena, pois apesar do jovem infrator não estar sujeito ao cumprimento de pena, está sujeito ao cumprimento de medidas socioeducativas, devendo ser acolhidos em estabelecimentos específicos conforme suas características biológicas (etária), ou seja, não é possível o acautelamento de um menor, que conforme entendimento legislativo não possui desenvolvimento pleno (apesar da independência de comprovação) junto a um adulto delinquente. Por fim, observa-se que o tratamento igualitário entre jovens e adultos, que seriam jogados conjuntamente em estabelecimentos penitenciários caso aprovada a redução da maioridade penal, viola diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana. VI A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E O CÓDIGO PENAL O Código Penal brasileiro dispõe que são inimputáveis, além dos que possuem doença ou retardo mental, aqueles menores de dezoito anos de idade. A inimputabilidade é uma causa de exclusão da culpabilidade, que se relaciona com a reprovabilidade da conduta do agente. O menor de dezoito anos é inimputável pois entende-se que sua conduta não é juridicamente reprovável. Isto porque, em razão de presunção absoluta, o menor não alcançou a capacidade plena de discernimento e determinação, devendo ter um tratamento diferenciado daqueles que possuem desenvolvimento completo. Vale lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro se filiou ao critério biológico ao determinar a maioridade penal, não sendo necessário a comprovação da capacidade concreta do menor, quando do cometimento do ato infracional análogo ao crime. Portanto, como o menor é inimputável, ou seja, não é culpável, não há que se falar em cometimento de crime/contravenção penal. VII A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 – é uma lei especial que foi criada com a finalidade de assegurar direitos ao menores de dezoito anos e em casos especiais ao maiores de
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dezoito e menores de vinte e um anos de idade. Entre os direitos é assegurado ao menor o direito de ser processado e julgado por justiça especializada. No que concerne ao campo do direto penal no ECA, como já exposto, o art. 104 determina a maioridade penal quando o agente completa dezoito anos, estando sujeito as sanções previstas no Código Penal. Contudo, quando ainda é menor de dezoito anos fica sujeito as normas estabelecidas por lei especial, qual seja, o Estatuto. São essas normas relevantes para o estudo da redução da maioridade penal no ordenamento jurídico brasileiro. Há no imaginário popular a crença de que o menor infrator não sofre nenhuma reprimenda pela prática de conduta delituosa. Porém, o ECA determina a aplicação de medidas socioeducativas aos jovens infratores. Primeiramente, deve se esclarecer que o menor infrator não comete crime, vez que lhe falta a capacidade de ser culpável por ser inimputável. Dessa forma, o Estatuto determinou que o jovem infrator comete ato infracional análogo ao crime/contravenção penal, sendo aplicado a ele as medidas socioeducativas relativas aos crimes/contravenções correspondentes. As medidas socioeducativas estão previstas no art. 112 na Lei nº 8.069/90 – ECA: Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. (...) Analisando a legislação brasileira como um todo, percebe-se que o legislador ao inserir as medidas socioeducativas no ordenamento jurídico tentou “recuperar” o jovem infrator, pressupondo que, por ser biologicamente imaturo, seria possível sua ressocialização. Importante destacar que tais medidas possuem caráter educativo e não punitivo, pois tem como objetivo a reintegração do menor à sociedade. Portanto, ao contrário do conhecimento popular, o ECA, além de assegurar os direitos dos menores de dezoito anos também os responsabiliza pelo cometimento de atos infracionais, contudo, a maneira como é tratada é diversa, uma vez que os sujeitos infratores possuem como presunção a “recuperabilidade” social. VIII A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL COMO MEDIDA POPULISTA – PROJETO DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 171/1993 Atualmente, tramita no Congresso Nacional o projeto de Emenda à Constituição de nº 171, apresentada em 19/08/1993, pelo então deputado Benedito Domingos. O objetivo da presente emenda é alterar a redação do art. 228 da CR/88, reduzindo a maioridade penal de 18 anos, conforme previsto, para 16 anos de idade, ou seja, o agente com dezesseis anos de idade já poderá ser responsabilizado pela prática de crime e ficará sujeito às sanções penais. Após um longo período parada, em resposta ao apelo popular por melhores condições de segurança pública, a PEC 171/1993 retomou suas forças, e com ela, veio as justificativas de que a insegurança instalada no país se deu por conta do aumento de “crimes” cometidos por menores. Contudo, não seria eficaz a redução da maioridade penal, tendo
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em vista que os jovens infratores seriam encarcerados em um sistema penitenciário já falido, ou seja, a possibilidade de reinserção à sociedade, a convivência familiar e ao mercado de trabalho ficariam nulas. Sendo assim, pode-se depreender que a medida extrema que o legislativo está tentando aprovar é puramente populista, uma vez que dará a sensação de segurança à sociedade, contudo, não será efetivamente eficaz, tornando-se uma norma simbólica, ou seja, com aplicabilidade mas sem eficácia, criada apenas como arrimo político. Em entrevista ao programa Conexão Inconfidência, em 15/05/2013 a juíza Valéria Rodrigues, da Vara Infracional da Infância e Juventude de Belo Horizonte afirmou que, conforme notícia publicada no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: (...)os juízes das varas da infância e juventude, em geral, são contra a redução da forma como vem sendo defendida. Segundo a juíza, trata-se de uma proposta midiática e política, e que não vem com o viés técnico, ou seja, com a análise dos prós e contras e se realmente sua aplicação seria eficaz no combate ao crime. Para a juíza, a proposta de redução da maioridade tem sido usada por políticos, em época pré-eleitoral, aproveitando o clamor popular provocado pelos crimes violentos cometidos por menores. Ela chamou a atenção para os dados estatísticos que mostram que o sistema de punição proposto atualmente para o menor infrator é muito mais eficaz do que o sistema penitenciário, considerando que, em Belo Horizonte, por exemplo, a reincidência dos menores é de apenas 15%. Valéria Rodrigues defende, entretanto, que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja revisto quanto aos crimes violentos. Ela defende um tempo de internação maior nesses casos. Segundo a juíza, em Belo Horizonte, 6% dos menores apreendidos cometeram crimes violentos, enquanto 94% cometeram delitos menos graves. ‘É preciso que a população entenda que a punição maior tem que ser para o adulto que se utiliza de menores nos crimes graves’, afirmou a juíza. Ela afirma que 90% dos adolescentes infratores são usados por adultos em crimes. Valéria acredita que o aumento da pena para o adulto, nesse caso, seria uma boa solução, mas que não há nenhum projeto de lei atualmente nesse sentido. (Assessoria de Comunicação TJMG, 2013) A inibição da prática delitiva pelo menor ocorreria se fosse respeitado o mínimo para se manter a dignidade da pessoa humana, haja vista que o menor infrator, em sua maioria, é socialmente excluído, sem condições de saúde, educação, moradia, lazer, etc., condições estas que o remetem a criminalidade. Segundo Miguel Reale: Os adolescentes são muito mais que vitimas de crimes do que autores, contribuindo este fato para a queda da expectativa de vida no Brasil, pois se existe um “risco Brasil” este reside na violência da periferia das grandes e medias cidades. Dado impressionante é o de que 65% dos infratores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abandonada pelo marido, que por vezes tem filhos de outras uniões também desfeitas e luta para dar sobrevivência à sua prole. (REALE, 2009) A efetiva aplicação das medidas socioeducativas previstas no ECA seriam, em conjunto com o investimento em políticas públicas pelo governo, suficientes para inibir a prática criminosa dos adolescentes, concedendo-lhes uma vida digna com oportunidades de sobrevivência. Nesse sentido dispõe o promotor de justiça do estado de São Paulo José Heitor dos Santos:
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(...)A questão, portanto, não é reduzir a maioridade penal, que na prática já foi reduzida, mas discutir o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, que é completamente falho, corrigi-lo, pô-lo em funcionamento e, além disso, aperfeiçoá-lo, buscando assim a recuperação de jovens que se envolvem em crimes, evitando-se, de outro lado, com esse atual processo de execução, semelhante ao adotado para o maior, que é reconhecidamente falido, corrompê-los ainda mais. O Estado, Poder Público, Família e Sociedade, que têm por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente (menores), não podem, para cobrir suas falhas e faltas, que são gritantes e vergonhosas, exigir que a maioridade penal seja reduzida. (...) Não bastasse isso, o que, por si só, já é extremamente grave, pretendem alguns reduzir a maioridade penal, tentando, com a proposta, diminuir sua culpa e eliminar os problemas da criminalidade, esquecendo-se, porém, além de tantos outros aspectos, que metade da população é composta de crianças e adolescentes, os quais, contudo, são autores de apenas 10% dos crimes praticados. A proposta de redução busca encobrir as falhas dos Poderes, das Instituições, da Família e da Sociedade e, de outro lado, revela a falta de coragem de muitos em enfrentar o problema na sua raiz, cumprindo ou compelindo os faltosos a cumprir com seus deveres, o que é lamentável pois preferem atingir os mais fracos - crianças e adolescentes -, que muitas vezes não têm, para socorrê-los, sequer o auxílio da família. (SANTOS, 2009) VIII.I A falência do sistema prisional brasileiro e o menor Conforme determina a Lei de Execuções Penais, o preso deve ser acautelado em estabelecimento penitenciário, não apenas como forma de punição para alguma conduta ilícita por ele praticado, mas também para que ele possa ser ressocializado. Contudo, o que se vê na realidade é que as penitenciárias não possuem o mínimo de condições para a recuperação do preso, ao contrário, atualmente são efetivas “escolas do crime”, devido à falta de investimento do poder público que os abandona. Conforme ilustra o mestre Aury Lopes Jr.: A falência da pena de prisão é inegável. Não serve como elemento de prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Dessarte, o Direito Penal deve ser mínimo e a pena de prisão reservada para os crimes realmente graves. O que deve ser máximo é o Estado Social.” (LOPES, 2005)
No mesmo sentido são os centros de internação para menores infratores, que podem ser comparados a verdadeiras penitenciárias, uma vez que não possuem o mínimo de condições para a recuperação do jovem que fica jogado a própria sorte. Rogério Grego dispõe que: (...)No entanto, os movimentos populares, estimulados pela mídia, forçam os legisladores a tratar os adolescentes cada vez de forma mais severa. O que era para ser a exceção (a privação da liberdade), acabou tornando-se a regra. Por essa razão, as instituições encarregadas de abrigar os menores passaram a ter os mesmos problemas existentes nas penitenciárias, principalmente no que diz respeito à superlotação.
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Na verdade, se fizermos uma comparação das acomodações, bem como com os tratamentos oferecidos a esses menores, verificaremos que em nada ou em muito pouco diferem daqueles existentes nos centros penitenciários. Os mesmos tratamentos cruéis, desumanos e degradantes são aplicados aos menores. As arbitrariedades são constantes; a humilhação, uma regra existente nessas instituições. Os adolescentes passam pelas mãos de funcionários despreparados, para não chamá-los, em muitos casos, de verdadeiros psicopatas, que descarregam toda sua raiva, toda sua ira nos corpos dos menores, que estão ali para se recuperar e retornar ao convívio em sociedade. (...) (GRECO, 2015) Além disso, a sociedade brasileira, ainda muito conservadora, não está preparada para acolher os ex-presidiários, concedendo-lhe emprego para sua sobrevivência, que, portanto, voltam a delinquir. Corrobora com tal informação o número de ex-detentos desempregados que voltam à criminalidade, ou que se tornam infratores de maior gravidade após o cumprimento de sua pena. Nesse contexto, mostra-se ainda mais absurda a proposta de redução da maioridade penal, pois o Estado não consegue suprir nem as demandas atuais do sistema penitenciário brasileiro, quiçá corresponderá as demandas futuras decorrentes da redução. O senador Randolfe Rodrigues (FRANCO, 2014) em votação no Plenário sobre a PEC 33/2012, alegou que “O nosso sistema prisional não é feito para ressocializar. Não há dados de que o rebaixamento da maioridade penal reduz o índice de delinquência juvenil. Há aumento de chance de reincidência” Portanto, a solução para se acabar com a insegurança que vivemos não é a redução da maioridade penal, mas sim a correta aplicação das medidas socioeducativas previstas no ECA, uma vez que, além das vedações constitucionais, o sistema carcerário brasileiro já está falido não conseguindo ressocializar os seu presos, então nada conseguirá fazer em relação aos menores, a não ser torná-los piores. IX CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho em tela buscou demonstrar as vedações constitucionais e legais existentes em relação a proposta de redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos de idade no ordenamento jurídico brasileiro, e também os óbices sociais que envolvem o tema. Embora haja quem defenda a redução da maioridade penal, entende que tal medida encontra-se em desacordo com a legislação vigente e também com o cenário social brasileiro. Isto porque, as normas do nosso ordenamento são expressas ao determinar a idade mínima para o sujeito ser responsabilizado criminalmente, qual seja, 18 anos de idade, tendo a legislação adotado para tanto o critério biológico (etário). A legislação brasileira determinou que o direito penal seria utilizado como “ultima ratio”, ou seja, seria utilizado no último caso, uma vez que, traz como sanção a restrição de um direito fundamental do indivíduo, a liberdade. Sendo assim, não deve ser aplicado arbitrariamente, devendo atingir somente aqueles que possuem o discernimento necessário quanto às suas condutas. Ademais, apesar de não ser necessária a comprovação devido a opção legislativa pelo critério biológico na fixação da maioridade penal conforme já explicitado, o menor de dezoito anos de idade não possui desenvolvimento completo que o permita entender a ilicitude do ato e de se determinar de acordo com esse entendimento. Socialmente, há também vedações quanto a redução da maioridade penal, tendo em vista que a sociedade brasileira não está prepa-
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rada para ressocializar os menores, da mesma forma que não ampara o maior que já praticou algum delito. O ECA prevê medidas socioeducativas que possuem o objetivo de recuperar o jovem delinquente. Tais medidas seriam suficientes caso fossem efetivamente aplicadas aos infratores, contudo, pela ausência de planejamento governamental não há investimento em sua aplicação, uma vez que aos olhos dos poderes executivo e legislativo e também do popular, é mais fácil a construção de penitenciárias de segurança máxima, sem condições de recuperabilidade social e a redução da maioridade penal do que mantê-la e investir na aplicação das medidas socioeducativas, e principalmente, em políticas públicas inclusivas (saúde, educação, lazer, cultura, etc). Dessa forma, a redução da maioridade penal mostra-se uma medida extremamente populista e irresponsável, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista social. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral 1. 20ª ed. Ed. Saraiva, 2014 BRASIL. Código Criminal do Império do Brazil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Acesso em: 26/05/2015. BRASIL. Código de Menores de 1927. Disponível em http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943Aimpressao.htm. Acesso em: 26 junho 2015 BRASIL. Código de Menores de 1979. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/1970-1979/L6697.htm#art123. Acesso em: 26 junho 2015 BRASIL. Código Penal Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm#art361. Acesso em: 26 junho 2015 BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Disponível em http:// www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 26/05/2015 BRASIL. Constituição da República de 1988. Disponível em http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 26 junho 2015 BRASIL. Lei 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8069.htm. Acesso em 25 junho 2015 FRANCO, Simone. CCJ rejeita redução da maioridade penal e senadores sugerem mudanças no ECA. Agência Senado, 2014. Disponível em: http://www12. senado.gov.br/noticias/materias/2014/02/19/ccj-rejeita-reducao-da-maioridade-penal-e-senadores-sugerem-mudancas-no-eca. Acesso em: 28 junho 2015 GOMES, Luiz Flávio. Maioridade penal: cláusula pétrea? Disponível em http:// ww3.lfg.com.br/artigo/20070213065503211_menoridade-penal-clausula-petrea. html. Acesso em: 09 julho 2015 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 16ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014 GRECO. Rogério. Reflexões sobre a redução da maioridade penal. Disponível em http://www.rogeriogreco.com.br/?p=2910. Acesso em 05 junho 2015 LOPES Jr., Aury ; Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3ª ed., Rio de Janeiro : Ed. Lumen Juris, 2005 MIRABETE, Julio Fabbrini e FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal – parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 30ª ed. Ed. Atlas, 2014. REALE Junior, Miguel. Instituições de Direito Penal. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. SANTOS, José Heitor dos. Redução da Maioridade Penal. Disponível em http:// www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_34_2_2.php. Acesso em: 11 junho 2015
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REDUÇÃO da maioridade penal é tema de programa da Rádio Inconfidência. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Belo Horizonte, Assessoria de Comunicação. Disponível em http://www.tjmg.jus.br/portal/imprensa/noticias/reducao-da -maioridade-penal-e-tema-de-programa-da-radio-inconfidencia.htm#.VXoGLvlViko. Acesso em: 09 julho 2015
NOTAS DE FIM ¹ Aluna graduanda da Escola de Direito no Centro Universitário Newton Paiva ² Orientador Professor Cristian Kiefer da Silva.
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TERCEIRIZAÇÃO SEM LIMITE: na contramão do sistema constitucional de proteção social ao trabalhador Denise Ferreira de Oliveira de Souza Tatiana Bhering Roxo RESUMO: O presente artigo objetiva avaliar, sob o viés do sistema constitucional de proteção social ao trabalhador, vigente, a proposta de liberação da prática da terceirização trabalhista na atividade-fim da empresa, abordando os pontos mais relevantes que envolvem esta questão na tentativa de demonstrar como a terceirização está diretamente relacionada à precarização do trabalho humano no Brasil. Inicialmente, a fim de compreender o fenômeno social da terceirização trabalhista e seus reflexos negativos nas relações de trabalho, o presente estudo discorrerá sobre o contexto histórico no qual este fenômeno está inserido, bem como apontará os temas mais polêmicos do Projeto de Lei nº 4.330/04, em tramitação no Congresso Nacional, que pretende regular os contratos de terceirização e as relações de trabalho deles decorrentes no âmbito da iniciativa privada. Por fim, a partir do entendimento doutrinário e jurisprudencial, bem como mediante informações fornecidas por instituições oficiais do Estado, buscará demonstrar como a terceirização na atividade-fim é prejudicial para a garantia e efetividade dos direitos fundamentais do trabalhador, uma vez que se revela como instrumento de fraude à relação de emprego e como instrumento de precarização do trabalho humano. PALAVRAS-CHAVE: Terceirização; Projeto de Lei nº 4.330/04; Precarização do Trabalho. ABSTRACT: This article aims to evaluate, under the bias of the constitutional system of social protection to workers in effect, the proposed release of the practice of outsourcing labor in the core business of the company, addressing the most relevant issues surrounding this issue in an attempt to demonstrate how outsourcing is directly related to the precariousness of human labor in Brazil. Initially, in order to understand the social phenomenon of labor outsourcing and its negative effects on labor relations, this study will talk about the historical context in which this phenomenon is in, and appoint the most controversial issues of the Bill n. 4,330 / 04, in the National Congress, which aims to regulate the outsourcing contracts and labor relations thereunder within the private sector. Finally, from the doctrinal and jurisprudential understanding as well as by information provided by official state institutions, seek to demonstrate how outsourcing the core business is detrimental to the effectiveness and guarantee the fundamental rights of workers, since it reveals how fraud instrument to the employment relationship and how precarious instrument of human labor. KEYWORDS: Outsourcing; Bill 4.330/04; Precarious Work. SUMÁRIO: I Introdução; II Terceirização Trabalhista: evolução histórica e conceito; III A Proposta da Terceirização Ilimitada na Iniciativa Privada: Projeto de Lei n. 4.330/04; IV Crítica e Possíveis Consequências: liberação da terceirização em qualquer atividade na iniciativa privada; IV.I Terceirização: como instrumento de fraude à relação de emprego; IV.II Terceirização: como instrumento de precarização do trabalho humano; V Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO A terceirização trabalhista sempre foi motivo de discussão entre o capital e o trabalho, tendo em vista que se trata de modalidade de contratação de mão de obra cada vez mais consolidada no ambiente empresarial, que flexibiliza as relações de trabalho a fim de viabilizar a competitividade da empresa em um mercado cada vez mais globalizado e concorrente. Atualmente, este tema ganhou destaque na mídia brasileira em virtude do Projeto de Lei nº 4.330/04, em tramitação no Congresso Nacional há mais de 10 anos, foi aprovado na Câmara dos Deputados e, no momento, está em processo de análise no Senado Federal. O projeto pretende regular os contratos de terceirização e as relações de trabalho deles decorrentes no âmbito da iniciativa privada. O texto do Projeto de Lei aborda vários pontos polêmicos, mas a questão mais delicada da proposta é a possibilidade de terceirizar qualquer atividade da empresa, ou seja, se aprovado o projeto, a vedação da terceirização na atividade-fim, imposta pela jurisprudência trabalhista, conforme Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho, será suprimida e todas as atividades da empresa serão passíveis de terceirização. Não há legislação que regulamenta a terceirização no Brasil. No entanto, diante da crescente utilização da terceirização na organizaLETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/2015 | ISSN 2358-2685
ção de produção das empresas, o sistema jurídico brasileiro carece de legislação específica para regular este fenômeno social. Assim, no presente trabalho será analisado se a prática da terceirização trabalhista em qualquer atividade da empresa, conforme propõe o Projeto de nº Lei 4.330/04, está ou não em conformidade com o sistema constitucional de proteção social ao trabalhador, tendo em vista o conjunto principiológico contido no texto da Constituição Federal de 1988 que valoriza socialmente o trabalho humano. O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar criticamente, sob o viés da proteção social ao trabalhador estabelecida pela Constituição de 1988, a proposta de liberação da prática da terceirização trabalhista na atividade-fim da empresa. Primeiramente, o presente estudo discorrerá sobre o contexto histórico no qual este fenômeno está inserido, abordando sobre a evolução histórica da terceirização, bem como seu significado a partir do ponto de vista de renomados juristas. Posteriormente, apontará os temas mais delicados do Projeto de Lei nº 4.330/04, para então, a partir do entendimento doutrinário e jurisprudencial, bem como mediante informações fornecidas por instituições oficiais do Estado, demonstrar como a terceirização na atividade-fim é prejudicial para a garantia e efetividade dos direitos
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fundamentais do trabalhador, uma vez que se revela como instrumento de fraude à relação de emprego e como instrumento de precarização do trabalho humano. II. TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA: evolução histórica e conceito Para dar início ao estudo sobre o fenômeno da terceirização e seus efeitos precarizantes nas condições de trabalho, importante compreender o seu significado, bem como o contexto histórico em que este fenômeno social está inserido. A terceirização deriva do processo de implantação do modelo toyotista de produção em substituição ao modelo taylorista/fordista. Até as últimas décadas do século XX, o modelo taylorista/ fordista predominava no cenário empresarial, processo de produção criado pelo engenheiro Frederick Winslow Talylor e o empresário Henry Ford. Neste modelo, o processo produtivo concentrava-se em um único estabelecimento empresarial no qual todos os operários trabalhavam de forma fragmentada, cada um responsável por uma parte do processo de construção do produto final e respondendo ao tomador direto dos seus serviços: o dono da fábrica (COURA, 2011). No modelo taylorista/fordista, a concentração de todo o processo produtivo resultava em uma máquina empresarial inchada, pois todo processo se dava em um mesmo estabelecimento e pela mesma pessoa jurídica empresária. A partir da década de 70 inicia-se a inserção do novo modelo toyotista no mercado. Este novo processo produtivo adota uma política de redução do estabelecimento empresarial, transferindo para um terceiro atividades acessórias do processo de produção, para que a empresa possa se concentrar em sua atividade principal. Assim, “a empresa se torna enxuta e a produção passa a ser feita por uma rede de empresas” (COURA, 2011, p. 253). O sistema toyotista japonês, com sua nova estrutura de organização de produção, proporcionou às empresas ganhos superiores ao alcançado pelo modelo fordista. A título de exemplo, conforme ilustra Márcio Pochmann (2007), em 1980 a Toyota com 65 mil empregados contratados diretamente conseguiu produzir cerca de 4,5 milhões de automóveis, enquanto que a General Motors conseguiu, neste mesmo ano, produzir 8 milhões, número superior ao da Toyota, entretanto com 750 mil empregados diretos. Calculando, a Toyota conseguiu produzir 69 carros por trabalhador enquanto a General Motors conseguiu apenas 9 carros por trabalhador. A Toyota aderiu ao modelo de empresa mais enxuta, embora contasse com uma “rede com mais de 150 empreendimentos associados a trabalhadores indiretamente contratados” (POCHMANN, 2007, p. 1). Deste modo, não haverá mais neste novo modelo a concentração de todo o processo de produção em um único estabelecimento empresarial e sim uma fragmentação do processo de produção, pois ao contrário do que ocorria no modelo taylorista/fordista em que as fábricas eram inchadas, neste novo modelo a empresa se torna enxuta e parte da produção passa a ser feita por outras empresas que serão responsáveis pela execução de atividades especializadas, que não configuram como atividade principal daquele empreendimento. Assim, houve uma reestruturação no modo de produção empresarial. Nesse sentido explica Solange Coura (2011, p. 253): A reestruturação empresarial atingiu, pois, dois aspectos distintos, mas profundamente vinculados entre si: houve uma alteração quanto à própria organização das empresas e uma alteração quanto ao processo de trabalho. O formato das empresas foi alterado, tanto quanto a forma de prestação de trabalho e é em meio a essas transformações que a terceirização garantiu seu espaço. Essa reestruturação na organização produtiva empresarial,
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com a possibilidade de terceirizar para outras empresas atividades periféricas, encontra fundamento na teoria do foco, da Ciência da Administração, segundo a qual a empresa deve concentrar-se na atividade que constitui sua especialidade, ou seja, naquilo que é essencial para o seu negócio, horizontalizando, deste modo, para outras empresas aquelas atividades tidas como acessórias, periféricas para a empresa principal, entretanto, principais para a empresa terceirizada (CASTRO, 2014). De acordo com Amorim (2013), a transferência de demais atividades tidas como periféricas a outras empresas tem como objetivo alcançar a máxima especialização produtiva de modo a obter melhor qualidade do produto e menor custo de produção. Entretanto, a terceirização desenvolvida no Brasil não tinha como objetivo a especialização da atividade e a qualificação do produto. De acordo com Márcio Pochmann (2007), diferentemente do que ocorreu com os países desenvolvidos, no caso brasileiro “o sentido da terceirização vem se revelando um processo de reestruturação produtiva defensiva, mais caracterizada pela minimização de custos e adoção de estratégias empresariais de resistência (sobrevivência)” (POCHMANN, 2007, p.1). Inicialmente, as empresas não buscavam a qualificação do produto, mas meios de garantir a própria sobrevivência e encontraram na terceirização uma forma de reduzir seus custos com mão de obra. Todavia, embora traga benefícios para a empresa, trata-se de uma modalidade de contratação que flexibiliza as relações de trabalho para viabilizar a competividade da empresa em um mercado cada vez mais globalizado e concorrente. Segundo Delgado, M. (2010, p. 414), terceirização é “o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente”. De acordo com o autor, haverá uma separação da relação econômica da relação jurídico trabalhista, pois neste processo há a configuração de uma relação trilateral, na qual o trabalhador disponibiliza a sua força de trabalho ao tomador de serviços, porém não será este o seu empregador formal, como ocorre na relação bilateral entre o empregado e o empregador, partes da relação de emprego. Nesta relação triangular o trabalhador se torna o ponto de ligação entre a prestadora dos serviços e a tomadora, configurando uma exceção à relação típica de emprego bilateral. A terceirização permite uma modificação nos conceitos de empregado e empregador, previstos nos artigos 2º, caput, e 3º, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho. Segundo Castro (2014), esta modificação ocorre porque a tomadora dos serviços e a prestadora compartilham os riscos da atividade econômica, ficando, no entanto, por conta da prestadora a admissão e assalariamento do trabalhador, entretanto o terceirizado prestará seus serviços de forma pessoal à tomadora e não ao seu empregador formal. Em relação ao empregado, a modificação se dá quanto ao destinatário final dos seus serviços que no caso de terceirização não será a empresa prestadora, com quem possui contrato de trabalho, mas sim a tomadora dos seus serviços. Conforme os entendimentos de Delgado, G. (2014), há duas possibilidades de terceirização, são elas: a terceirização interna e a terceirização externa. Na terceirização interna, hipótese adotada pela Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), há a terceirização de serviços que ocorre quando a empresa tomadora dos serviços insere em sua organização empresarial de produção empregados contratados pela empresa prestadora dos serviços, o fornecedor de mão de obra especializada. De acordo com a autora “a tomadora continua sendo responsável pela produção de bens e atividades, com a única ressalva de que utilizará mão de obra terceirizada em suas atividades” (DELGADO, G., 2014, p. 58). Por sua vez, na terceirização externa, ocorre a terceirização
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de atividades, neste caso “a empresa tomadora descentraliza atividades de seu processo produtivo para empresas periféricas, que se responsabilizam pela dinâmica produtiva, na condição de empresas autônomas”, é o que ocorre na indústria automobilística no setor de produção automotora (DELGADO, G., 2014, p. 58). À época da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o legislador não abordou diretamente este instituto no texto da CLT, fazendo constar de forma positivada apenas os institutos da empreitada e subempreitada previstos no artigo 455 da CLT e da pequena empreitada previsto no artigo 652, “a”, III, da CLT, ambos relacionados a subcontratação de mão de obra (DELGADO, M., 2010). Vale dizer, que posteriormente, foi inserido no texto da CLT o parágrafo único ao artigo 442 dispondo sobre a ausência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados, bem como entre estes e os tomadores de serviços da cooperativa, traduzindo em uma nova hipótese de terceirização de acordo com os entendimentos de Delgado, M. (2010). Após a edição da Consolidação das Leis do Trabalho, os primeiros diplomas legais que trataram especificamente sobre a utilização da terceirização nas relações de trabalho foram o Decreto-Lei nº 200 de 1967 e a Lei 5.645 de 1970, que permitiram e estimularam a contratação indireta, no âmbito da Administração Pública, para a realização de atividades-meio. Deste modo, a Administração estaria livre para o melhor desempenho de sua atividade principal como tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle, ficando a cargo da execução indireta pela iniciativa privada, mediante contrato, de atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza, dentre outras, conforme dispõe o art. 10, §7º do Decreto-Lei nº 200/67 e o então vigente à época artigo 3º, parágrafo único, da Lei 5.645/70. Após alguns anos da edição dos referidos diplomas legais no âmbito da Administração Pública, o legislador entendeu por autorizar no âmbito privado a prática da terceirização de forma restrita, pois tratava-se de exceção à relação bilateral de contratação de trabalho subordinado imposta pela Consolidação das Leis do Trabalho, mediante o trabalho temporário, regulado pela Lei 6.019 de 1974, e o trabalho de vigilância bancária, regulado pela Lei 7.102 de 1983. Entretanto, de acordo com Delgado, M. (2010), a prática da terceirização trabalhista no âmbito privado não se conteve apenas às restrições impostas pelas leis mencionadas acima, verificou-se uma crescente utilização da terceirização em atividades de conservação e limpeza. Nas palavras do renomado jurista “o processo terceirizante expandiu-se largamente no âmbito privado da economia fora das hipóteses jurídicas previstas nessas duas leis, mediante fórmula de terceirização permanente sem regulação expressa em textos legais trabalhistas” (DELGADO, M., 2010, p. 419). Com a expansão indiscriminada da terceirização no cenário da economia brasileira sob diferentes formas e em diversas atividades, e diante de decisões judiciais divergentes, a Justiça do Trabalho, a fim de equilibrar os interesses do capital e do trabalho e unificar o entendimento jurisprudencial a respeito da terceirização, se manifestou sobre o tema em questão por meio do Enunciado nº 256 e, posteriormente, pela Súmula nº 331, ambos do Tribunal Superior do Trabalho. Em um primeiro momento a jurisprudência trabalhista considerava ser ilícita a terceirização de qualquer atividade fora daquelas hipóteses autorizadas por lei, como a contratação temporária e os serviços de vigilância. Dessa forma, o Tribunal Superior do Trabalho editou o Enunciado nº 256 de 1986 proibindo a contratação de trabalhadores por empresa interposta formando-se vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços (DELGADO, G., 2014). Conforme esse entendimento, a contratação de empresa prestadora de serviço diferente daqueles permitidos pela lei configuraria
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locação de mão de obra e, portanto, ato ilícito. Deste modo, seguindo a aplicação rigorosa do Enunciado nº 256, apenas o trabalho temporário, não excedendo o período de três meses conforme Lei nº 6.019/74, e os serviços de vigilância bancária ou transportes de valores, conforme Lei 7.102/83, poderiam ser objeto de contratação por empresa interposta sem configurar o vínculo empregatício com o tomador de serviços. Contudo, verificou-se a existência de outros serviços fora das exceções citadas pelo Enunciado nº 256, que poderiam ser prestados por terceiros e que não poderiam ser considerados como atos ilícitos, diante da inexistência de preceito legal proibindo o trabalho de empresas prestadoras de serviços, como é o caso do serviço de conservação e limpeza (MARTINS, 2005). Deste modo, o Tribunal Superior do Trabalho passou a adotar em suas decisões o entendimento de que a aplicação do Enunciado nº 256 apenas se daria nos casos de fraude. Neste cenário editou-se a Súmula nº 331 do TST, com o propósito de revisão do Enunciado nº 256, que por sua vez foi cancelado pela Resolução nº 121 do TST, de 19 de novembro de 2003 (MARTINS, 2005). De acordo com Delgado, G. (2014), diante da nova realidade de organização econômica brasileira devido à adoção do modelo toyotista, a jurisprudência trabalhista, mediante a Súmula nº 331 do TST , admite a terceirização de serviços de conservação e limpeza e de serviços especializados direcionados a atividade-meio do tomador dos serviços, além do trabalho temporário e dos serviços de vigilância já autorizados em lei. A Súmula nº 331 do TST identifica em seu texto as hipóteses de terceirização lícitas, que são: o trabalho temporário, já regulamentado pela Lei 6.019 de 1974; os serviços de vigilância, já regulamentado pela Lei 7.102 de 1983; os serviços de conservação e limpeza e os serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Deste modo, as demais formas de terceirização não citadas pela referida súmula são consideradas ilícitas. O entendimento jurisprudencial expresso na Súmula nº 331 do TST foi influenciado de forma determinante pela legislação que permitiu a terceirização de algumas atividades no âmbito da Administração Pública, de modo que a súmula passou admitir a terceirização na atividade-meio das empresas privadas (DELGADO, G., 2014). Para Zéu Palmeira Sobrinho, citado por Castro (2014), a Súmula nº 331 do TST quando admitiu a terceirização nos serviços especializados direcionados a atividade-meio, difundiu a prática da terceirização. Assim, deu abertura para a discussão em torno da definição do que seja atividade-meio e atividade-fim, em virtude da dificuldade de se alcançar uma definição clara e precisa do que seja uma ou outra. Pela leitura da Súmula nº 331, percebe-se que ela identifica as hipóteses de terceirização lícita de serviços, dividindo-as em terceirização temporária e permanente, considerando como temporária apenas o trabalho temporário regido pela Lei 6.019/74, a única exceção em que pode haver subordinação e pessoalidade direta entre o trabalhador terceirizado e o tomador dos serviços e em que é possível terceirizar a atividade-fim da empresa (DELGADO, G., 2014). As formas de terceirização fora das permissões previstas na súmula são consideradas intermediação ilícita de mão de obra não admitida pelo Direito do Trabalho. No que diz respeito ao trabalho temporário, necessária a observância dos requisitos previstos na Lei 6.019/74, que conforme previsão no artigo 2º, para a contratação temporária de trabalhadores pela empresa privada, esta deve ser realizada em atendimento à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços. O entendimento sumulado em questão também tratou da responsabilização do tomador dos serviços, fixando a responsabilidade subsidi-
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ária do tomador pelo pagamento das obrigações trabalhistas derivadas da terceirização. Deste modo, sendo subsidiária a responsabilidade, necessária se faz a inadimplência do prestador de serviços das obrigações trabalhistas, para que ocorra a responsabilização do tomador dos serviços, pois somente após a inadimplência do devedor principal é que se pode falar em acionar de forma secundária o tomador dos serviços para o adimplemento das obrigações laborais (DELGADO, M., 2010). A responsabilidade subsidiária também se aplicará às entidades da Administração Pública direta e indireta, se comprovada culpa na má escolha do contratante sem a observância das obrigações previstas na Lei 8.666/93 ou confirmada má fiscalização das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora, conforme inciso V da Súmula nº 331 do TST. Vale mencionar que o texto original da Súmula nº 331 foi alterado no que se refere à responsabilidade subsidiária da Administração Pública, em virtude do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16-DF. O Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADC nº 16 considerou constitucional o artigo 71 da Lei 8.666/93 que veda a responsabilização automática do ente público, entretanto, também entendeu que quando comprovada irregularidades no processo licitatório ou verificada a não fiscalização do ente público quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, a Justiça do Trabalho poderá imputar à Administração Pública responsabilidade subsidiária pelas obrigações inadimplidas pela contratada (PIMENTA, 2011). Vale dizer que a responsabilidade subsidiária prevista na Súmula nº 331, incisos IV e V, do TST, ocorre na hipótese de terceirização lícita. No caso de terceirização ilícita, conforme entendimento jurisprudencial, a responsabilidade do tomador de serviços será solidária por caracterizar fraude à legislação trabalhista. Por fim, percebe-se que no que se refere à atividade-fim da empresa, permanece o entendimento de ser indispensável a contratação direta de trabalhadores para a realização das atividades essenciais da empresa, a fim de cumprir os preceitos constitucionais de proteção social aos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem como a função social da empresa, previstos na Constituição de 1988. Nesse sentido, leciona Delgado, G. (2014, p. 32): A jurisprudência trabalhista procurou retratar, na Súmula n. 331 do TST, o pacto compromissório constitucional entre capital e trabalho. Assim, a Súmula n. 331 compatibilizou a liberdade de contratação da terceirização nas atividades-meio com a preservação da função social da empresa em manejar o trabalho, como fator de produção, em suas atividades essenciais, as atividades-fim, preservando nesse núcleo essencial da empresa o espaço indispensável à contratação direta de trabalhadores. Deste modo, a Súmula nº 331 do TST tem sido o marco jurídico do fenômeno da terceirização na iniciativa privada tendo em vista que não há até o momento regulamentação legal a esse respeito. Vale mencionar que se encontra em tramitação no Congresso Nacional há mais de 10 anos o Projeto de Lei nº 4.330/04, aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente em análise no Senado Federal, que pretende, dentre outras disposições, preencher a lacuna existente no plano legal brasileiro, regulamentando o fenômeno social da terceirização de modo que esta modalidade de contratação de mão de obra possa ser exercida em qualquer atividade da empresa, suprindo, portanto, os limites impostos pela jurisprudência trabalhista. III. A PROPOSTA DA TERCEIRIZAÇÃO ILIMITADA NA INICIATIVA PRIVADA: Projeto de Lei n. 4.330/04 Como dito acima, tramita no Congresso Nacional, há mais de 10
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anos, o Projeto de Lei nº 4.330/04, que pretende regular os contratos de terceirização e as relações deles decorrentes no âmbito da iniciativa privada. O texto original de autoria do deputado Sandro Mabel (PMDBGO) substituído, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, pelo texto do deputado e relator do projeto Arthur Oliveira Maia (SD-BA), após algumas emendas, foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal identificado como Projeto de Lei da Câmara nº 30 de 28 de abril de 2015 e, se aprovado, será encaminhado para a sanção ou veto da Presidente da República. Pretende-se abordar sucintamente os pontos mais polêmicos do referido projeto para, em seguida, expor os efeitos precarizantes da terceirização nas condições de trabalho. Deste modo, inicia-se pela questão mais delicada da proposta: a liberação da terceirização em qualquer atividade da empresa contratante, conforme dispõe o artigo 2º, I e II e artigo 4º do projeto. A proposta não menciona em seu texto os termos atividade-meio e atividade-fim, se aprovado o Projeto de Lei, a vedação da terceirização na atividadefim da empresa, imposta pela jurisprudência trabalhista, será suprimida e todas as atividades da empresa serão passíveis de terceirização. Outro ponto que merece destaque é a possibilidade da empresa contratada terceirizar parcela específica da execução do objeto do contrato, sendo o único requisito a especialização dos serviços, formando-se a chamada quarteirização de serviços, conforme dispõe o artigo 3º, § 2º. O projeto permite, ainda, que associações, fundações, bem como empresas individuais, possam atuar como terceirizadas e, como contratantes, possam atuar o produtor rural pessoa física, bem como o profissional liberal, conforme dispõe o artigo 2º, III e § 1º. Também vale mencionar a hipótese que trata o artigo 8° o qual prevê que os trabalhadores terceirizados somente serão representados pelo mesmo sindicato que representa os empregados diretos da contratante se a terceirizada pertencer à mesma categoria econômica da contratante. O referido projeto também propõe, de acordo com o artigo 14, a possibilidade de contratação sucessiva para a prestação dos mesmos serviços terceirizados, sendo possível a admissão de empregados da antiga contratada. Vale mencionar que o parágrafo 1º do mesmo dispositivo prevê que o período concessivo das férias destes empregados deve coincidir com os últimos seis meses do período aquisitivo, impedindo a aplicação da norma trabalhista prevista no caput do artigo 134 da Consolidação das Leis do Trabalho. O projeto prevê uma espécie de quarentena a fim de evitar a contratação de ex-empregados por meio de empresas individuais. A quarenta consiste no período que aqueles que tenham prestado serviço para a contratante, na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, têm que aguardar para firmarem com ela contrato na qualidade de sócio ou dono de empresa contratada para a prestação de serviços terceirizados. Após a aprovação das emendas, reduziu de 24 meses para 12 meses o período de quarentena, previsto no artigo 2º, § 2º, III do projeto em questão. No que se refere à responsabilidade do tomador, inicialmente o texto-base do referido projeto apenas previa a responsabilidade subsidiária da empresa contratante, sendo possível a responsabilidade solidária apenas na hipótese de ausência de fiscalização da contratante em relação ao cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias devidas pela contratada. Após as emendas aprovadas, a proposta prevê responsabilidade solidária da contratante em relação às obrigações trabalhistas e previdenciárias devidas pela contratada como o pagamento de salários, adicionais, horas extras, repouso semanal remunerado, décimo terceiro salário, concessão de férias remuneradas e pagamento do
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respectivo adicional, concessão do vale-transporte e depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, de acordo com os artigos 15 e 16, incisos I a VI, do referido projeto. A proposta, ainda, dispõe que, conforme previsão no artigo 12, na hipótese dos serviços serem executados nas dependências da contratante ou em local por ela designado, o trabalhador terceirizado terá acesso à alimentação garantida aos empregados da contratante, quando oferecidas em refeitórios, transporte, atendimento médico e ambulatorial existentes nas dependências da contratante e treinamento adequado quando a atividade exigir. Contudo, os trabalhadores terceirizados não terão os mesmos direitos dos empregados diretos, permanecendo a desigualdade de salários e de direitos entre os trabalhadores contratados diretamente e os terceirizados. A regulamentação legal da terceirização trabalhista é necessária diante da realidade brasileira na qual a prática desta modalidade de contratação está cada vez mais consolidada no ambiente empresarial. Entretanto, este tema deve ser discutido com a máxima cautela em virtude das consequências precarizantes que a liberação da terceirização em qualquer atividade pode gerar nas relações trabalhistas, consequências que serão abordadas no tópico a seguir. IV. CRÍTICA E POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS: liberação da terceirização em qualquer atividade na iniciativa privada Conforme os entendimentos de José Pastore (2008), a terceirização é um processo irreversível e faz parte da nova divisão do trabalho. Para Pastore, a terceirização é essencial na formação de redes de produção, bem como para a manutenção das empresas e dos empregos. Pastore (2008) defende que nos dias atuais há uma crescente demanda para se reformular as leis trabalhistas, tendo em vista o complexo mercado do trabalho caracterizado pela multiplicação de relações triangulares e quadrangulares, o que exige, segundo ele, mudança nas formas atuais de proteção do trabalho. Entretanto, a prática da terceirização trabalhista em qualquer atividade da empresa, conforme proposta legislativa abordada em tópico anterior, está na contramão do sistema constitucional de proteção social ao trabalhador, tendo em vista o conjunto principiológico contido no texto da Constituição de 1988 que valoriza socialmente o trabalho humano. De acordo com Delgado, G. (2014), os princípios constitucionais como o valor social do trabalho, o trabalho humano como fundamento da ordem econômica, o trabalho como veículo de justiça social, bem como a função social da empresa se concretizam em regras constitucionais de direitos fundamentais do trabalhador previstas nos artigos 7º a 11 da Constituição de 1988, dentre elas a relação de emprego protegida. Deste modo, a proposta que pretende liberar a terceirização em qualquer setor da empresa não está em conformidade com o sistema constitucional vigente, que prioriza a formação da relação de emprego direta tendo em vista que esta é a relação de trabalho que mais beneficia o trabalhador, uma vez que viabiliza o pleno gozo dos seus direitos fundamentais. IV.I. Terceirização: como instrumento de fraude à relação de emprego O vínculo empregatício bilateral estabelecido entre o trabalhador e o beneficiário final da sua força de trabalho é a regra no sistema constitucional de proteção ao trabalhador, parte hipossuficiente na relação trabalhista. Há a configuração da relação de emprego quando o trabalho é prestado pessoalmente por pessoa física em favor de outrem, de forma onerosa, não eventual e subordinada. Vale dizer que para a relação de emprego restar configurada, é necessária a reunião destes cinco elementos, sendo que nos casos de terceirização trabalhista não podem estar presentes a pessoalidade e a subordinação na relação entre o trabalhador terceirizado e o
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tomador dos serviços, salvo na hipótese do trabalho temporário. Como visto no decorrer deste estudo, a jurisprudência trabalhista considera excepcional a prática da terceirização, permitindo restritivamente esta modalidade de contratação de mão de obra apenas nas hipóteses lícitas de terceirização, previstas na Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Isso porque a terceirização trabalhista na atividade-fim da empresa constitui uma das principais formas de flexibilização da legislação trabalhista, indo de encontro ao conjunto principiológico de proteção social ao trabalhador previsto na Constituição de 1988, bem como no texto da Consolidação das Leis do Trabalho. Para dar início à breve reflexão acerca da terceirização na atividade-fim como instrumento de fraude à relação de emprego direta, relevante compreender a noção de fraude para o Direito do Trabalho. Assim, importante se faz os ensinamentos de Delgado, G. (2014, p. 60): A noção de fraude para o Direito do Trabalho está intimamente ligada à ideia de frustração de sua finalidade protetiva, de fracasso de sua missão humanizadora da relação de emprego, de esvaziamento do seu potencial desmercantilizador do trabalho humano e, enfim, de frustração de sua própria razão histórica, que é a promoção do trabalho regulado e protegido como instrumento de afirmação social e de emancipação coletiva. O objetivo fundamental do sistema justrabalhista é garantir ao trabalhador o gozo de seus direitos fundamentais e uma das formas de concretização deste objetivo é a proteção à relação de emprego direta. Deste modo, qualquer ato praticado com a finalidade de impedir, frustrar ou fraudar a aplicação dos preceitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho será nulo de pleno direito, conforme dispõe o artigo 9º da CLT. Nesse sentido, a jurisprudência trabalhista entende que a terceirização da atividade-fim constitui simples forma de transferir para terceiros a contratação de trabalhadores a fim de reduzir os custos de produção em prejuízo dos direitos do trabalhador terceirizado. Deste modo, sua prática na atividade essencial da empresa é contrária aos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, ambos consagrados pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho, RR - 95700-37.2009.5.03.0015, Relator: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 2010). De acordo com Delgado, G. (2014), a prática da terceirização em atividade-fim da empresa pode ser vista como instrumento de fraude à relação de emprego, tendo em vista que o tomador dos serviços, com o objetivo de reduzir os custos de produção, visando a obtenção de lucro, utiliza-se da mão de obra terceirizada em regime de emprego rarefeito, pois apesar de os trabalhadores terceirizados continuarem formalmente submetidos ao regime de emprego com a empresa prestadora de serviços, este vínculo carece de efetividade normativa. Isso ocorre porque há uma redução do padrão de garantia e de eficácia de seus direitos em comparação ao padrão constitucionalmente garantido às relações de emprego diretas entre o trabalhador e o tomador dos serviços. A título de exemplo, vale mencionar o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), conhecida como CPI das Carvoarias, instalada pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com o objetivo de investigar as condições de trabalho dos profissionais que atuam na indústria extrativa de Minas Gerais. A CPI constatou a existência de diversas irregularidades nas empresas investigadas decorrentes da terceirização por elas promovida (ALMG, 2002). As informações obtidas pela CPI das Carvoarias juntamente com os dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho levaram à constatação de que a prestação de serviços pelos trabalhadores terceirizados às empresas investigadas caracterizava fraude trabalhista na
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medida em que a contratação dos obreiros por empresa interposta era utilizada como artifício para impedir a aplicação das normas trabalhistas (ALMG, 2002). Os dados da investigação provaram a realização da terceirização nas atividades-fim das empresas investigadas, bem como a existência da subordinação e da pessoalidade na relação entre os trabalhadores terceirizados e o tomador dos serviços. Ainda, os dados da investigação apontaram, dentre outros fatos, as desigualdades de salários entre os empregados diretos e terceirizados apesar de exercerem a mesma função, fato que ocorre, por exemplo, na Fertilizantes Fosfatados Fosfértil S.A. Segundo a referida CPI, nas oficinas de tornearia e de manutenção de equipamentos desta empresa, foram encontrados trabalhadores diretamente contratados lado a lado com terceirizados executando tarefas idênticas, entretanto, os terceirizados percebiam salários mais baixos, apesar de exercerem a mesma função (ALMG, 2002). Vale dizer que é assegurado ao trabalhador terceirizado todos os direitos trabalhistas previstos no texto da Consolidação das Leis do Trabalho. Entretanto, a relação triangular formada entre o tomador dos serviços, o trabalhador e o prestador dos serviços traduz em uma relação de emprego flexível que reduz a eficácia dos direitos dos trabalhadores terceirizados. Diante do exposto, percebe-se que a liberação da terceirização em qualquer atividade da empresa é incompatível com o sistema de proteção social ao trabalhador, uma vez que a forma como a terceirização é praticada, atualmente, é prejudicial ao trabalhador e, caso venha a ser realizada na atividade-fim, intensificará negativamente este quadro. IV.II. Terceirização: como instrumento de precarização do trabalho humano A reestruturação na organização produtiva empresarial abordada no início deste trabalho tem como foco a utilização da terceirização trabalhista, uma vez que esta proporciona à empresa maior produtividade com o menor número de trabalhadores, contudo, sua prática generalizada precariza as condições de trabalho como será demonstrado a seguir. De acordo com Antunes e Druck (2013), a terceirização é o fio condutor da precarização do trabalho no Brasil, pois é uma prática de gestão que provoca a discriminação entre os trabalhadores, além de ser uma forma de contrato flexível e sem proteção trabalhista, isso devido à desigualdade nas condições de trabalho existente entre os trabalhadores contratados diretamente pelo tomador dos serviços e os terceirizados. As condições de trabalho diferenciadas são demonstradas nos salários menores percebidos pelos terceirizados, na intensificação do trabalho, na maior rotatividade, nas jornadas mais extensas, bem como no maior índice de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho entre os trabalhadores terceirizados, decorrentes das condições de saúde e segurança precárias a que são submetidos (ANTUNES; DRUCK, 2013). Os trabalhadores terceirizados, além de terem reduzidos seus direitos trabalhistas, se sentem como trabalhadores de segunda classe, inferiores, em relação aos trabalhadores diretamente contratados. É o que se verifica no depoimento de trabalhadores terceirizados disponibilizado em pesquisa que teve como objetivo investigar a construção da identidade destes trabalhadores que prestam serviços em ambientes produtivos diversificados: Ser trabalhadora terceirizada é ter que trabalhar igual ou até mais que os outros e ter menos direitos do que todo mundo. É assim que me sinto. Nosso trabalho não é reconhecido e é considerado inferior (BRITO; CARRIERI; MARRA, 2012, p. 84). Sinto que a principal discriminação vem dos encarregados, e
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não é só em palavras, em atitudes também. Vai ter um treinamento para todo mundo sobre algo que é importante pra você. A gente não pode participar, é terceirizado. Vão dar um presente no natal, a gente não vai ganhar. São apenas algumas situações para você ter de exemplo (BRITO; CARRIERI; MARRA, 2012, p. 87). Em setembro de 2011, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), divulgou estudo demonstrando o impacto da terceirização sobre os trabalhadores . Este levantamento apontou em números a desigualdade existente entre os trabalhadores terceirizados em comparação aos trabalhadores diretamente contratados. O estudo revelou que a terceirização está diretamente relacionada com a precarização do trabalho, uma vez que a remuneração percebida pelos terceirizados é 27,1% menor do que os demais trabalhadores; a jornada de trabalho é três horas a mais para os terceirizados; o tempo de permanência no emprego também é menor no caso dos terceirizados, pois enquanto trabalhadores diretos permanecem no trabalho 5,8 anos, em média, para os terceirizados este tempo é de 2,6 anos; a alta taxa de rotatividade nas empresas tipicamente terceirizadas é de 44,9% contra 22% nas empresas que contratam diretamente seus trabalhadores (DIEESE, 2011). Vale mencionar que em relação à saúde, segurança e mortes no trabalho, o quadro é ainda mais preocupante devido à elevada incidência de acidentes de trabalho, graves e fatais, entre trabalhadores terceirizados, em setores como o de energia elétrica, extração e refino de petróleo e siderurgia, conforme estudo da subseção do DIEESE do Sindieletro Minas Gerais, realizado em 2010 com base em dados da Fundação Coge (DIEESE, 2011). O referido estudo apontou que, entre 2006 e 2008, morreram 239 trabalhadores por acidente de trabalho, dentre os quais 80,7% eram trabalhadores terceirizados, quase a totalidade dos trabalhadores. Ainda, conforme os dados da mesma fundação, as mortes entre trabalhadores terceirizados evidencia a vulnerabilidade destes obreiros, pois em 2009 foram 4 mortes de trabalhadores diretos contra 63 de trabalhadores terceirizados; já em 2010 este número aumentou sendo 7 mortes de trabalhadores diretos contra 75 mortes de trabalhadores terceirizados (DIEESE, 2011). Esses indicadores revelam a elevada incidência de acidentes de trabalho com vítimas fatais entre os terceirizados, decorrentes da acentuada exposição destes trabalhadores aos riscos de acidente de trabalho em virtude da inexistência de adoção de medidas de segurança, pois em muitas situações as empresas prestadoras de mão de obra terceirizada não possuem condições técnicas e econômicas para arcar com esse encargo. Diante destes dados, percebe-se a necessidade da proteção ao trabalhador, pois muitos trabalhadores possuem apenas a força de trabalho como meio de sua subsistência e se sujeitam a trabalhos em condições precárias, por não terem outra escolha. O Ministério Público do Trabalho (MPT), em dossiê elaborado para demonstrar a atuação do Parquet contra as fraudes nas relações de emprego provocadas pela terceirização excessiva na atividade-fim da empresa, mostra como esta prática causa danos expressivos nas condições de trabalho. A atuação do Parquet teve como objeto prioritário de investigação a terceirização em atividade-fim das empresas de silviculturas e de manejo florestal, estas investigações tiveram início após denúncias realizadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, citada em tópico anterior, que relatavam acidentes de trabalho e condições precárias de higiene, além da contratação informal de empregados terceirizados por empresas inidôneas.
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No referido dossiê foram citados 50 exemplos de ações para a proteção do emprego na atividade-fim da empresa. As empresas, além de terceirizar atividades essenciais à realização do seu negócio, submetiam os trabalhadores a condições de trabalho precárias. De acordo com as informações apresentadas no referido dossiê, em uma das ações ajuizadas contra estas empresas, os trabalhadores terceirizados eram submetidos a extensas jornadas de trabalho com péssimas condições de saúde, higiene e segurança como: [..] ausência de EPIs, transporte irregular, alojamentos precários, falta de água potável, ausência de instalações sanitárias, ausência de local para fazer as refeições e esquentar a comida, ausência de proteção contra animais peçonhentos no local (escorpiões, lacraias e cobras), ausência de caixa de primeiros socorros, pagamento inferior ao salário mínimo e por produção (BRASIL, Ministério Público do Trabalho, p.21). Em outras ações foi relatado o desrespeito aos direitos trabalhistas mínimos como a “retenção de salários, falta de registro, jornada excessiva sem contraprestação. [...] inidoneidade financeira das empreiteiras, que são responsáveis por todas as obrigações trabalhistas e previdenciárias” (BRASIL, Ministério Público do Trabalho, p.36). A título de exemplo, a fim de demonstrar como a terceirização precariza as condições de trabalho, vale mencionar o caso que deu origem ao tema de repercussão geral nº 725 - Terceirização de Serviços para a Consecução de Atividade-fim da Empresa, que se encontra no Supremo Tribunal Federal. O Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública contra a Celulose Nipo Brasileira S/A – Cenibra, pois, dentre outras irregularidades, constatou que a Cenibra contratava diretamente trabalhadores para a execução de atividade mecanizada de corte de árvores para áreas de topografia plana. No entanto, para os terrenos em que não era possível o corte mecanizado, a Cenibra executava a atividade de corte de árvore com machado e motosserra mediante trabalhadores terceirizados contratados pela fornecedora Emflora, que desenvolve suas atividades com extrema precarização e prejuízo aos direitos dos trabalhadores terceirizados, o que traduz uma terceirização seletiva que evidencia a lógica mercantilista da intermediação de mão de obra, conforme relatado no referido dossiê. Dentre outras irregularidades, vale mencionar que a partir de um período a Cenibra passou a terceirizar parcialmente a realização de atividade que desempenhava diretamente por empregados próprios, foi o que constatou a 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região em processo de número 01261-2006-013-03-00-0: [...] Naquele julgamento, o TRT da 3ª Região constatou que a partir do ano de 1994 a Cenibra, que exercia diretamente as atividades de florestamento, passou a terceirizá-las parcialmente. A partir daquele ano, os empregados que exerciam as funções de trabalhador florestal, operador de motosserra, entre outras funções, foram dispensados e recontratados, na sua grande maioria, pelas empresas terceirizadas (BRASIL, Ministério Público do Trabalho, p.42). Essas informações apontam como a terceirização está diretamente relacionada às condições precárias de trabalho, utilizada pelas empresas para fraudar a legislação trabalhista, desvalorizando o trabalho humano cada vez mais. Assim, reitera-se que a liberação da terceirização em qualquer atividade da empresa, precisa ser discutida com cautela, uma vez que se revela como instrumento de precarização do trabalho e consequente redução dos direitos trabalhistas.
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V. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado neste trabalho, verifica-se que a prática da terceirização trabalhista em qualquer atividade da empresa, conforme propõe o Projeto de Lei nº 4.330/04, está na contramão do sistema constitucional de proteção social ao trabalhador, tendo em vista o conjunto de princípios enunciados ao longo do texto constitucional que valoriza socialmente o trabalho humano. Estes princípios se materializam nos direitos fundamentais previstos nos artigos 7º a 11 da Constituição Federal de 1988, dentre eles está a relação de emprego protegida. Dessa forma, não há como admitir a terceirização generalizada sob o argumento de que esta modalidade de contratação de mão de obra é essencial para a organização produtiva, bem como para a manutenção das empresas e dos empregos, tendo em vista que esta prática se dá em prejuízo do trabalhador, pois da forma como é realizada pelas empresas, se revela como instrumento de fraude à relação de emprego e de precarização do trabalho humano. É assegurado ao trabalhador terceirizado todos os direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, contudo estes trabalhadores são submetidos a uma relação de emprego flexível que reduz a eficácia destes direitos. Ademais, a terceirização resulta em salários mais baixos para os trabalhadores terceirizados, jornadas de trabalho mais extensas, maior rotatividade, maior índice de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, graves e fatais, entre os terceirizados, além da discriminação que a terceirização provoca entre os trabalhadores no ambiente de trabalho, conforme dados apresentados no presente artigo. Deste modo, a proposta que pretende liberar a terceirização em qualquer atividade da empresa não está em conformidade com o sistema constitucional vigente, que prioriza a formação da relação de emprego direta tendo em vista que esta é a relação de trabalho que mais beneficia o trabalhador, uma vez que viabiliza o pleno gozo dos seus direitos fundamentais. Portanto, entende-se pela manutenção da vedação da terceirização na atividade-fim da empresa, estabelecida pela jurisprudência trabalhista. No entanto, necessária se faz a criação de lei que confirme os limites impostos à terceirização, bem como estabeleça claramente os direitos dos trabalhadores terceirizados, de modo que também possa ser assegurado a estes trabalhadores o mesmo padrão de garantia e de eficácia de seus direitos constitucionalmente garantido às relações de emprego constituídas entre o trabalhador e o beneficiário final da sua força de trabalho. REFERÊNCIAS AMORIM, Helder Santos. O PL 4.330/2004-A e a inconstitucionalidade da terceirização sem limite. Disponível em: <http://www.prt3.mpt.gov.br/images/Ascom/ Artigo-Terceiriza%C3%A7%C3%A3o_Helder-Amorim.pdf>. Acesso em: 26 de set. de 2014. ANTUNES, Ricardo; DRUCK, Graça. A terceirização como regra? Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v. 79, n. 4, 2013. Disponível em: <http:// aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/55995/011_antunes_druck. pdf?sequence=1>. Acesso em: 06 de jun. de 2015. BRASIL. Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/del0200.htm>. Acesso em: 29 de maio de 2015. BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 29 de maio de 2015. 70. Estabelece diretrizes para a classificação de cargos dos serviços civis da União e das autarquias federais, e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/L5645.htm>. Acesso em: 29 de maio de 2015.
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NOTAS DE FIM Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientadora Professora Tatiana Bhering Roxo. 3 CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011. I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral (Brasil, Tribunal Superior do Trabalho). 4 Até a finalização do presente trabalho, ocorrida em 17 de junho de 2015, o Projeto de Lei n. 30, de 28 de abril de 2015 (n. 4.330/2004, na Casa de origem) ainda encontra-se em tramitação no Senado Federal. 5 MINAS GERAIS, Assembleia Legislativa de. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as condições de trabalho dos profissionais que atuam na indústria extrativa de Minas Gerais. Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. Disponível em: <http://dspace. almg.gov.br/xmlui/handle/11037/14441>. Acesso em: 09 de jun. de 2015. 6 DIEESE/CUT. Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha. Dossiê sobre o impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos. DIEESE/CUT, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.sinttel.org.br/downloads/dossie_terceirizacao_cut.pdf>. Acesso 1 2
em: 25 de nov. de 2014. BRASIL, Ministério Público do Trabalho. Terceirização de atividade-fim na iniciativa privada. Dossiê sobre a atuação do Ministério Público do Trabalho contra
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CRIMES CIBERNÉTICOS: Aspectos controversos do artigo 154-A da nova Lei de Crimes Informáticos Fernanda Queiroz Canabrava1 Cristian Kiefer da Silva2 RESUMO: Em razão das inúmeras relações jurídicas advindas do meio digital, fez surgir no direito um novo ramo. Com o aumento da tecnologia, as condutas criminosas no mundo virtual tornaram-se bastante diversificados, não sendo acompanhado pelo Direito Penal. Ante a necessidade de adequar normas a essa realidade, os legisladores, editam leis sem a devida preocupação com os conteúdos técnicos que estas envolvem. Diante a realidade, o presente trabalho irá abordar os aspectos controversos e suas possíveis consequências jurídicas a cerca da redação dada pelo art. 154-A da Lei 12.737 de 2012, conhecida como Lei Carolina Dickmann, que dispõe sobre crimes de invasão de dispositivos informáticos. ABSTRACT: Because of numerous legal relations arising from the digital media, has given rise to a new branch on Law. With increasing technology, criminal behavior in the virtual world has become quite diverse and is not accompanied by criminal law. Faced with the needed to adapt standards with reality, legislators, editing laws without due concern for the technical content that these involve. Faced with the reality, this paper will address the controversial aspects and possible legal consequences about the wording of art. 154 -A of Law 12,737 of 2012, known as the Carolina Dickmann’s Law, which provides computerized devices invasion crimes. PALAVRAS-CHAVE: Crime digital; invasão de dispositivos informáticos, aspectos controversos; lei Carolina Dickmann. KEYWORDS: Cybercrime; invasion of computing devices; controversial aspects; Carolina Dicknann’s Law. SUMÁRIO: I Introdução; II Direito Digital; II Crimes Informáticos; III.I Da classificação dos crimes informáticos. IV Nova Lei dos Crimes Informáticos; IV.I Invasão de dispositivos informáticos; IV.II Pontos controversos do artigo 154-A; V Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO A crescente evolução da tecnologia e a globalização mundial, fez com que as distâncias fossem encurtadas, e as relações entre as pessoas passassem a ser feitas, pelo surgimento de um novo fenômeno, a internet. A rede mundial de computadores acabou se tornando uma Era digital, onde fez com o que diferentes culturas tivessem a possibilidade de desenvolver novas relações sociais, utilizando a internet para as mais variadas finalidades, tais como comunicação, compartilhamento de informações e dados, pesquisas científicas, até mesmo relações afetivas. O uso da internet é um benefício que virou parte do nosso cotidiano nos dias atuais, e esse novo sistema trouxe diversas possibilidades para comunicação entre as pessoas, tornando-as assim, mais irradiada. A propagação de conteúdos e informações é ocorrida pelos mais diversificados meios, e através dos mais variados dispositivos, desde computadores, notebooks à smartphones, tabets e afins, que possuírem uma enorme capacidade de armazenar informações e dados em suas memórias. Essa nova realidade virtual acabou se tornando também, um ambiente propício ao cometimento de diversos tipos de condutas delituosas, que em grande maioria restavam impunes, ante a escassa legislação sobre o assunto. Haja vista várias tentativas anteriores de legislar sobre o assunto, em 30 de novembro de 2012, foi promulgada a Lei nº 12.737 de 2012, otimizando coibir os abusos cometidos através dos sistemas informáticos, visando punir seus responsáveis. Sob o foco do Direito Penal, será abordado logo mais os aspectos dos chamados crimes de informática: as condutas classificadas como crimes, bem como sua classificação e os pontos controversos da referida Lei. II. DIREITO DIGITAL A tecnologia teve um grande avanço nos últimos tempos, especialmente na área da informática, o que vem afetando cada vez mais LETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/2015 | ISSN 2358-2685
as relações sociais, e tendo por consequência, a transformação do cotidiano, na vida moderna. Em decorrer disto, as inovações tecnológicas incidiram diretamente no Direito, principalmente nas relações que decorrem dos mais variados tipos de operações relacionadas ao comércio, tais como trocas, compra e venda, propaganda, além de serviços como os dos profissionais liberais e os financeiros e uma infinidade de outras relações comerciais. A internet, ao mesmo tempo em que criou novas possibilidades de relacionamento, trouxe ao Judiciário, demandas e conflitos até então não existente. Quando o universo virtual surgiu, não existiam regras especificas no direito sobre o assunto, e as leis tiveram que acompanhar as mudanças. O Direito Autoral é um ramo comercial que está constantemente sob ataque na rede, tendo como um dos principais crimes, a pirataria, que viola os vários tipos de propriedade intelectual. A área bancaria também foi outro ramo que sofreu impactos tantos quanto mortificativos em razão da tecnologia envolvendo a internet, pois para dar mais comodidade e facilitar a vida dos clientes, eles utilizam da rede, que possibilita a resolução de problemas, sem precisar sair de casa, usando apenas um clique. Porém, ao oferecer serviços bancários na internet atrai a atenção dos criminosos cibernéticos, que se utilizam dela para o cometimento de fraudes e roubos. Podemos observar, que são inúmeras as situações que envolvam a informática no cotidiano da sociedade, e a partir dai que surgem as relações jurídicas, deixando assim, claro a necessidade de legislação específica para informática e internet. É importante ressaltar que, algumas questões já foram resolvidas com a elaboração de novas normas, porém outras, tais como omissão, tiveram que ser levadas aos Tribunais Superiores para julgamento dos ministros em conformidade com as normas já existentes. Os aplicadores do Direito tentam enquadrar, na medida do possível, esses atos lesivos aos tipos penais previstos no Código Penal e na legislação esparsa, mas muitas, por não se
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enquadrarem em nenhum dos tipos penais previstos no sistema jurídico-penal do nosso país, ficam impunes, já que não são consideradas como condutas criminosas e sim como fatos atípicos. (FERREIRA. Lóren Formiga de Printo, 2009). Para a resolução desse tipo de demanda, o Judiciário teve de se adequar e ainda não pacificou a questão, porém as decisões dão uma idéia da linha a ser seguida. “A internet trouxe uma série de facilidades, um ganho grande em termos de informação e de mobilização das pessoas, mas temos de manter os mesmo valores que tínhamos antes”, é o que diz a advogada especialista em direito digital Sandra Tomazi. III. CRIMES INFORMÁTICOS O tema ora apresentado, apesar de restar escasso de material, doutrinadores costumam utilizar de várias nomenclaturas para conceituar os crimes informáticos como, por exemplo, “Delitos Informáticos” (VIANNA, 2013), “Crimes Digitais” (CORREA, 2000), “Crimes de Computador” (BITTENCOURT, 2000) ou “Crimes Via Internet” (MIRANDA, 2001). No presente artigo, chamaremos de Crimes Informáticos, nomenclatura que engloba desde os crimes cometidos na internet, tanto aqueles cometidos através de dispositivos de sistemas computacionais, tais como smartephones, tablets, televisão, notebooks, pendrives, etc., observando que é a mesma nomenclatura utilizada na lei objeto desse estudo. Em rigor, para que um delito seja considerado de caráter informático, é necessário que o bem jurídico por ele protegido seja a inviolabilidade de informações de dados, consequência do direito fundamental á privacidade e intimidade (art. 5º, X da CR/88). Marco Aurélio Rodrigues da Costa afirma que grande parte dos doutrinadores define crime de informática como a conduta que atenta contra o estado natural dos dados e recursos oferecidos por um sistema de processamento de dados, seja pela transformação, armazenamento ou transmissão de dados, na sua forma, compreendida, pelos elementos do sistema de tratamento, transmissão ou armazenagem dos mesmos, ou ainda, na forma mais rudimentar. (COSTA, 1997). Tulio Vianna e Felipe Machado sustentam que: A simples utilização pelo agente do computador para execução de um delito, por si só, não configuraria um crime informático, caso o direito afetado não seja a informação automatizada. Ocorre, no entanto, que muitos autores acabaram, por analogia, denominando como crimes informáticos as infrações penais em que o computador serviu como mero instrumento utilizado na prática do delito. (VIANNA; MACHADO, 2013, p. 29) Carla Rodrigues Araújo de Castro conceitua crime de informática como: É aquele praticado contra o sistema de informática ou através deste, compreendendo os crimes praticados contra o computador e seus acessórios e os perpetrados através do computador. Inclui-se neste conceito os delitos praticados através da Internet. (RODRIGUES, 2003, p. 9) Já para Marco Aurélio Rodrigues da Costa, o conceito de crimes de informática é: Todo aquele procedimento que atenta contra os dados, que o faz na forma em que estejam armazenados, compilados, transmissíveis ou em transmissão. Assim, pressupõe dois elementos: contra os dados e também através do computador, utilizando-se software e hardware para perpetrá-lo. (COSTA, 1997).
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Então, chegamos à conclusão que crimes informáticos são aqueles em que o bem jurídico tutelado pelo Estado é violado com a utilização de sistema informático como instrumento. Este sistema é formado por dois elementos bem distintos: o robô e a receita. O primeiro é um sistema eletrônico apto para receber instruções, aspecto físico, ou seja, as máquinas propriamente ditas, o qual se chamará de hardwere. Enquanto o segundo, as próprias instruções lógicas, ou seja, os programas de computador, que se denominará software. III.I. Da classificação dos crimes informáticos Os crimes informáticos podem ser próprios, impróprios, ou mistos. Os próprios são as condutas típicas nas quais o computador serviu como instrumento para a execução de um crime, mas não houve ofensa ao bem jurídico inviolabilidade da informação automatizada (dados). Já os crimes em que há a infringência à inviolabilidade da informação automatizada serão denominados impróprios. E no que diz respeito de crimes complexos, em que, além de proteção à inviolabilidade dos dados, a norma visar à tutela de bem jurídico diverso, será chamados crimes informáticos mistos. [...] os crimes digitais próprios, aqueles cometidos contra dados, informações ou sistemas de informação, ao revés dos crimes digitais impróprios, quando os sistemas de informação apenas servem como meio para se praticar o delito. (HAIAKAL; PINHEIRO. 2013) Para melhor visualizarmos o instituto dos crimes informáticos próprios, podemos citar o exemplo dos crimes de violação de e-mail, a criação e divulgação de programas de computadores destrutivos (conhecido como vírus), pirataria de software, divulgação de material sigiloso, entre outros. Por se tratar de uma realidade nova, somada a uma escassa legislação, alguns crimes acabavam sendo considerados atípicos, onde na maioria das vezes, seus autores restavam impunes. No que diz respeito dos crimes informáticos impróprios, estes, não dependem de dispositivos informáticos para se caracterizem, são aqueles em que o computador é usado como instrumento para a execução do crime que já se encontra tipificado em nossa legislação, a hipótese clássica de delitos contra a honra, cometido pelo simples envio de um e-mail. Tulio Vianna e Felipe Machado sustentam que: O envio de um e-mail é uma ação absolutamente simples, que não exige conhecimentos especializados e que permite que não só a execução de delitos contra a honra, mas também o empreendimento dos crimes de induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio (art. 122 do CPB), ameaça (art. 147 do CPB), violação de segredo profissional (art. 154 do CPB), incitação ao crime (art. 286 do CPB) e apologia de crime ou criminoso (art. 287 do CPB), entre outros. (VIANNA; MACHADO, 2013. p. 30) Destaca-se dentre os crimes informáticos impróprios praticados na Internet, o crime de estelionato, em que seu sucesso depende, em geral, da confiança que a vítima deposita nos autores. A prostituição, o trafico de drogas, também são exemplos, ambos podendo ser realizados com a simples criação de uma página na Internet. No tocante do que diz respeito dos crimes informáticos mistos, são aqueles denominados crimes complexos, aquele que representa a fusão unitária de mais de um tipo legal (ex,: roubo, estupro) (HUNGRIA, 1958, p. 53), em que, além da proteção da inviolabilidade dos dados, a norma visa a tutelar bem jurídico de natureza diversa. São delitos derivados da invasão de dispositivo informático que ganharam o status de crimes sui generes, dada a importância do bem jurídico
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protegido diverso da inviolabilidade dos dados informáticos, é o que afirma Tulio Vianna e Felipe Machado. Podemos perceber que as classificações para os crimes informáticos estão longe de serem análogos. Não obstante, para Marco Aurélio Rodrigues da Costa, crimes informáticos podem ser comum, puro ou misto. Crime de informática comum é aquele em que o agente usa o sistema informático apenas como instrumento para o cometimento de um crime comum tipificado na lei, pois pode ser perpetrado por outro meio, como por exemplo, o crime de estelionato. Enquanto o crime de informática puro é aquele em que o agente visa especificamente o sistema informático em todas as suas formas, hardwares e softwares, computadores e seus dados, onde o agente pode atentar física ou tecnicamente contra tais sistemas. Por último, os crimes de informática mistos são aqueles em que o agente visa um bem juridicamente protegido diverso da informática, mas o crime só se consuma por meio do uso de um sistema informático, como por exemplo, uma transferência ilícita de valores bancários com o uso da internet. Importante salientar, o tocante que diz respeito do sujeito ativo, que no caso é qualquer pessoa humana não autorizada a acessar os dados, exceto o proprietário do dispositivo informático no qual os dados estão armazenados. Ao passo que o sujeito passivo é qualquer pessoa, física ou jurídica, proprietária dos dados informáticos, ainda que não necessariamente do sistema computacional. IV. DA NOVA LEI DE CRIMES INFORMÁTICOS No dia 3 de dezembro de 2012, foi publicada no Diário Oficial da União, Lei nº 12.737 de 30 de novembro de 2012, que tipifica delitos informáticos, alterando o Código Penal. A Lei acrescenta primeiramente os artigos 154-A e 154-B, definindo o crime de invasão de dispositivo informático. A Lei também altera a redação dos artigos 266 e 298 do Código Penal, sendo que o primeiro se refere à interrupção de serviço telemático ou de informação de utilidade pública, e o segundo, equipara a documento particular o cartão de crédito e de débito. IV.I. Invasão de dispositivos informáticos O novo art. 154-A, do Código Penal, tipifica a conduta de: Artigo 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput. § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. § 4º Na hipótese do § 3o, aumenta-se a pena de um a dois ter-
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ços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos. § 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra: I - Presidente da República, governadores e prefeitos; II - Presidente do Supremo Tribunal Federal; III - Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembléia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou IV - dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. (BRASIL, 20012). IV.II. Pontos controversos do artigo 154-A Ao se fazer uma análise do referido artigo, nos deparamos com vários pontos controversos, que podem gerar dúvidas quanto à aplicabilidade das normas, onde as impropriedades técnicas poderão culminar na impossibilidade jurídica de punir certas condutas, haja vista a sua atipicidade. Fica nítida que, o bem jurídico penalmente tutelado é a inviolabilidade dos dados informáticos, corolário do direito a privacidade e intimidade presentes na Constituição Federal, em seu art. 5º, X. A inviolabilidade compreende não só o direito á privacidade e ao sigilo dos dados, como também à integridade destes e sua proteção contra qualquer destruição ou mesmo alteração. No texto legal, ao optar pela expressão “invadir dispositivo informático alheio” o legislador tornou atípica a conduta de quem invade dispositivo informático próprio para obter indevidamente dados informáticos alheios lá armazenados. Em lan houses ou “cyber cafés”, por exemplo, o proprietário dos dispositivos informáticos não praticará o crime se acessar sem autorização os dados do usuário que alugar a máquina. Da mesma forma, será atípica a conduta do empregador que acessar e-mails pessoais do empregado sem sua autorização. Podemos observar também que redação refere a ”dispositivo informático”, com isso, sabiamente o legislador optou por não apresentar uma lista exaustiva de dispositivos, haja vista a infinidade de dispositivos existentes como PCs, notebooks, netbooks, smartphones, tablets, desktop, pendrives, cartões de memória, HDs externos, mp3 players e tantos outros que ainda virão a existir com o avanço da tecnologia, capazes de armazenar dados passíveis de violação. Refere-se também sobre “mecanismo de segurança”, não apresentando um rol específico, evitando também que novos tipos de mecanismos não se enquadrassem na lei. Conquanto, poderão surgir, em novos casos, dúvidas a respeito do que é ou não um “dispositivo informático” ou “mecanismo de segurança” e qual critério seria usado para distingui-los. Ainda a respeito do subsídio normativo “mediante violação indevida de mecanismos de segurança”, este elemento faz com que seja atípica a conduta quando o dispositivo informático não possuir qualquer mecanismo de segurança, tais como senhas de acesso, antivírus, firewalls ou similares. Para que a conduta seja tipificada, é imprescindível que o agente supere obstáculos tecnológicos como estes. Notamos que, se o computador estava protegido por antivírus, mas o agente o acessou e não lhe foi solicitado qualquer senha de acesso, não houve a “violação indevida de mecanismo de segurança”, tornando assim, atípica a conduta. No contexto, para a lei, é imprescindível a violação dos mecanismos de segurança. A questão ora estudada, trata-se evidentemente de uma la-
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cuna grave na lei que não tutela os dados informáticos dos usuários inexperientes que não protegem suas máquinas com os tais “mecanismos de segurança”. Analogicamente, essa situação seria como se o legislador não punisse o furto de uma residência sem alarmes ou de um veículo que se encontrava com a porta destrancada, entre outras situações. Ainda há o elemento normativo que merece destaque, sendo ele: “sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo”. Autorização expressa é aquela feita de maneira formal, ou seja, por meio de documento (impresso ou eletrônico) com assinatura, ou por qualquer outro meio de manifestação de vontade do titular do dispositivo. Já a autorização tácita, é aquela fornecida por atos que demonstram inequivocamente a permissão do titular dos dados para que o agente os acesse. A título de exemplo, podemos citar o fornecimento de login de usuário e senha para um amigo. Ambos os tipos de autorização tornam conduta atípica, mas a aprovação tácita exige, evidentemente, uma prova em juízo mais complexa do que a simples apresentação de documentos de autorização expressa. Nota-se o elemento normativo “conectado a rede de computadores”. A conduta será típica mesmo se o dispositivo informático invadido não esteja conectado a uma rede. Ademais, não podemos deixar de mencionar a diferença entre o delito de interceptação não autorizada de comunicação de sistemas informáticos e telemáticos (art. 10, Lei nº 9.296/96) e a conduta tipificada de invasão de dispositivos informáticos, prevista no art. 154-A, do CPB. No primeiro não há a invasão de dispositivo informático, sendo que as informações (dados) são obtidas (interceptadas) durante a sua transferência, de um dispositivo informático a outro. Já na invasão de dispositivo informático ou de instalação de vulnerabilidades, para obtenção, adulteração ou destruição de dados ou informações, ocorre antes ou depois da transmissão dos dados, demandando em todo caso, a necessária invasão do referido dispositivo que guarda informações. Portanto, nas duas hipóteses acima estamos diante de crimes informáticos próprios, já que o bem jurídico protegido é a inviolabilidade dos dados informáticos. Os crimes da referida Lei somente é previsto na modalidade dolosa. O agente deve ter consciência e vontade de praticas a ação típica. Se o agente não pretendia invadir o dispositivo informático alheio, mas por negligência, imprudência ou imperícia acaba por invadi-lo, não há que se falar de crime, visto que não há previsão culposa para a modalidade. Pelo mesmo motivo não são puníveis os casos de erro de tipo neste crime. Além do mais, notamos também, que podem ocorrer também, aquelas condutas que não poderão ser tipificadas como crime, por exemplo, uma situação possível e muito comum no ambiente de trabalho, casos em que o sistema informático fica desprotegido, ocorre quando um usuário ao entrar com sua senha em seu dispositivo, se abstém de reativá-la após o uso, possibilitando que qualquer pessoa venha a devassar esse equipamento. Nesse caso entendemos que o usuário que devassou o dispositivo alheio não invadiu o sistema, nem violou dispositivo de segurança, vez que o usuário ao não reativar a senha, deixou o sistema exposto; é como se fosse um álbum de fotos deixado aberto na mesa e não quisermos que as fotos ali expostas sejam vistas. Devemos também nos ater a respeito dos verbos típicos invadir e instalar, Tulio Vianna e Felipe Machado asseguram: Invadir é a ação de acessar dados armazenados em dispositivos informáticos alheios, seja por meio de leitura, da escrita ou da execução. [...] Instalar (vulnerabilidades) por sua vez, é a escrita e execução do software no dispositivo informático da vítima capaz de debilitar seus “mecanismos de segurança”, de
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forma a viabilizar o acesso posterior pelo próprio agente ou por terceiros. (VIANNA; MACHADO, 2013) Vale ressaltar a distinção que existe entre “invadir” e “ter acesso”, vez que se pode ter acesso a determinados sistemas informáticos sem, necessariamente, invadi-los, exemplo disto, é quando clicamos sobre algum nome na lista de usuários do wifi, estaremos entrando em contato com o roteador (sistema informático) alheio, sem com isso, estarmos invadindo. Acerca do verbo nuclear do tipo penal, leciona com clareza Renato Opice Blum: Este verbo conceitualmente traz a idéia de entrada à força, ingresso hostil, violação de barreira. Portanto, casos de obtenção indevida de dados através de técnicas de engenharia social e outros meios (divulgação de senha pelo próprio titular do bem a terceiros, por exemplo) em tese não estariam enquadrados na tipificação recém-nascida. Isto porque não haveria qualquer violação, mas apenas o acesso não autorizado. (BLUM, 2013) Para termos a real extensão da imputação penal, precisamos analisar as descrições acerca do tipo penal, pois caso a conduta praticada não preencher o disposto no artigo 154-A, haverá ausência de elementares do tipo penal, vejamos sua redação: Artigo 154-A Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita [...] Fernando Capez explica que as elementares provêm de elemento, que significa componente básico fundamental, configurando assim todos os dados fundamentais para a ocorrência do fato típico, as quais, na sua falta, a figura típica desaparece. (CAPEZ, 2012, p. 381). E reforça o autor sobre o conceito de elementar: [...] é todo componente essencial da figura típica, sem o qual esta desaparece (atipicidade absoluta) ou se transforma (atipicidade relativa). Encontra-se sempre no chamado tipo fundamental ou tipo básico, que é o caput do tipo incriminador. (CAPEZ, 2012, p. 475) Assim, para a caracterização da figura típica enumerada no artigo 154-A, haverá a necessidade de que a conduta do agente preencha todas as elementares, invadir sistema informático + mediante violação + com o fim de obter, adquirir ou destruir dados ou informações, na falta de um destes elementos, culminará na atipicidade da conduta. Nesta linha de raciocínio, leciona Rogério Greco: Não é incomum que pessoas evitem colocar senhas de acesso, por exemplo, em seus computadores permitindo, assim, que qualquer pessoa que a eles tenha acesso, possa conhecer seu conteúdo. No entanto, mesmo sem a existência de senha de acesso, a ninguém é dado invadir o computador alheio, a não ser que ocorra a permissão expressa ou tácita de seu proprietário. No entanto, para fins de configuração típica, tendo em vista a exigência contida no tipo penal em análise, somente haverá a infração penal se houver, por parte do agente invasor, uma violação indevida do mecanismo de segurança. (GREGO, 2013, p. 601-602). Se as condutas fossem típicas na ausência de alguma das ele-
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mentares, fato típico seria o caso em que um indivíduo se conecta a uma rede wireless sem senha, onde o sinal do vizinho entra em sua residência, que a utiliza porque não havia senha, sabendo disso ou não. Frise-se que alguns dispositivos se conectam automaticamente a uma rede aberta ou sem sistemas de segurança. O mesmo ocorrerá, se o agente adentra o sistema informático, mas não causa dano, nem se apropria de dados ou informações, como no exemplo dado acima, onde o agente só entra em um sistema, exclusivamente por satisfação pessoal, caso em que será restringido o alcance da norma. À primeira vista, estas questões não parecem ser muito polêmicas, a não ser com a ocorrência de casos concretos, onde podemos antever fartas discussões nos tribunais, fazendo com que a lei possa surtir efeito diferente do almejado, seja punindo um inocente, seja deixando impune um criminoso. Finalmente, para que haja a proteção dos sistemas informáticos e o proveito da nova lei, se faz necessário que se tome o maior cuidado possível para evitar o acesso não autorizado, com o uso de senhas, códigos de acesso, dados biométrico, assim como manter sempre ativos e atualizados os antivírus, firewalls, enfim, tudo que possa dificultar ou obstar o acesso indevido pelos criminosos. Em caso de ocorrer a suspeita de que alguém possa estar tentando invadir um sistema informático, deve-se comunicar as autoridades e evitar usá-lo, para que se possa preservar as provas digitais contidas neles a serem periciadas, para assim, se chagar ao invasor. V. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o ritmo acelerado que a tecnologia vem evoluindo, as novidades são cotidianas; o mesmo acontece o meio virtual (internet) e informático, que vêm desenvolvendo com uma imensa rapidez, por está sendo mais acessível, tornou-se parte essencial na vida das pessoas, e acabou tendo cada vez mais um maior número de usuários, por ser um meio que serve como excelente instrumento para o desenvolvimento profissional, cultural e social, abrindo, assim, inúmeras possibilidades. Trazendo as mais diversas finalidades, a informática tornou-se uma ferramenta indispensável na vida das pessoas, acarretando juntamente com essa revolução tecnológica, inúmeras e inevitáveis relações jurídicas. Simultaneamente, essa nova realidade, fez surgir novas condutas anti-sociais, fazendo dos sistemas informáticos instrumentos para o cometimento de condutas delituosas, tanto tipo antigos já expostos no rol do código penal, como é o caso do estelionato, quanto de tipos penais novos, como o crime de invasão de sistemas informáticos. Todavia, a legislação não consegue acompanhar com tanta velocidade, as mudanças trazidas com a tecnologia e as relações jurídicas advindas desse meio, que, somadas a fatores como o desconhecimento técnico do legislador a respeito das áreas envolvidas, juntamente a falta de estudo minucioso sobre o assunto, e até mesmo as pressões da mídia, colaboram com o desequilíbrio entre elas, dispondo, algumas vezes, por conta de casos concretos, sua auto-regulamentação. E por consequência, são criadas leis que já nascem desatualizadas, pouco efetivas ou até mesmo inócuas, e cheias de lacunas. Sendo assim, a atividade legislativa deve ocorrer de forma precisa, com estudos meticulosos e com auxílio conjunto dos especialistas da área jurídica e da informática, a fim de evitar incoerências ou omissões legislativas e fartas discussões doutrinárias e nos tribunais, que geram dificuldades na aplicação da lei impunidades ou injustiças. Por fim, deve-se conscientizar o maior número de usuários de sistemas informáticos possível, sobre a necessidade de utilizar todos os meios de proteção disponíveis para estes sistemas, a fim de se resguardarem de futuros ataques de criminosos, bem como para ga-
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rantirem a proteção dada pela lei. REFERÊNCIAS BLUM, Renato Opice. Crimes eletrônicos – a nova lei é suficiente?.fev. 2013. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI172711,101048-Crimes+eletronicos+a+nova+lei+e+suficiente> Acesso em: 10 jun. 2013. BRASIL. Código Penal. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. BRANT, Cássio Augusto Barros. Os direitos da personalidade na era da informática. Revista de Direito Privado, São Paulo, SP, v.11, n.42. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre a Lei nº 12.737/12 e o crime de invasão de dispositivo informático. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3493, 23 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23522>. Acesso em: 17 jan. 2015. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.1. CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Crimes de Informática e seus Aspectos Processuais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos jurídicos da internet. São Paulo: Saraiva COSTA, Marco Aurélio Rodrigues da. Crimes de Informática. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 12, 5 maio 1997 . Disponível em:<http://jus.com.br/artigos/1826>. Acesso em: 18 nov. 2013. FERREIRA, Lóren Formiga de Pinto; FERREIRA JÚNIOR, José Carlos Macedo de Pinto. Os “crimes de informática” e seu enquadramento no direito penal pátrio. Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, SP, v.99, n.893. GOUVÊA, Sandra. O Direito na Era Digital: crimes praticados por meio da informática. Rio de Janeiro: Mauad, 1997. GRECO, Rogério. Curso de direito penal.volume II: parte especial, artigo 121 a 154B. 10. ed. rev. ampl.. e atual. Niterói: Impetus. 2013. PINHEIRO, Patricia Peck. Direito digital.2. ed. rev., atual. eampl. São Paulo: Saraiva, 2007. PINHEIRO, Patrícia Peck. HAIAKAL, Victor Auilo. A nova lei de crimes digitais. abril. 2013. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/artigos/conteudo.phtml?id=1362035&tit=A-nova-lei-de-crimes-digitais> Acesso: em 10 set. 2013. ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2006. SILVA, Rita de Cássia Lopes. Direito penal e sistema informático. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático. Rio de Janeiro: Forense, 2003. VIANNA, Túlio. MACHADO, Felipe. Crimes Informáticos – Conforme Lei nº 12.737/2012. 1 ed. Belo Horizonte: Fórum. 2013.
NOTAS DE FIM Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientador Professor Cristian Kiefer da Silva.
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AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: Aspectos e legalidade Frederico Viana Rocha1 Ronaldo Passos Braga2 RESUMO: Estudo das Audiências de Custódia na ordem jurídica penal vigente, com análise dos aspectos legais sob a ótica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, e a viabilidade da implantação do procedimento em torno de toda a sistemática processual. PALAVRAS-CHAVE: audiência custódia; tratados internacionais; implantação; viabilidade; procedimento. ABSTRACT: Study of the Custody hearings in the current penal law, with analysis of the legal issues from the perspective of international human rights Treaties ratified by Brazil, and the feasibility of the implementation of the procedure around all the systematic procedure. KEY WORDS: custody hearing; international treaties; deployment; viability; procedure. SUMÁRIO: I Introdução; II Aspectos Históricos; III Diplomas Internacionais; IV Posicionamento dos Tribunais Brasileiros; V Das Fases de Implantação; VI Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo remeter a uma reflexão crítica acerca das garantias legais que englobam o sistema processual penal vigente. Numa análise correlata e contemporânea, abordaremos o procedimento das Audiências de Custódia, desde a sua implantação no ordenamento jurídico brasileiro, através da assinatura de acordos e tratados internacionais, assim como sua real importância no sistema penal, e consequentemente na defesa das garantias constitucionais. Ainda sim, visualizaremos as barreiras contrapostas a este instituto e as peculiaridades para torná-las efetivas na ordem jurídica atual. Para tanto, se faz necessário o estudo do projeto de lei n.º 54 de 2011 do Senado Federal em debate na casa legislativa que regulamenta a matéria tendente a dirimir a discussão nos tribunais de todo o país que ainda não adotam um posicionamento sólido acerca do tema, como veremos aqui explanado da mesma forma. Por fim, se tratando de uma inovação nos procedimentos processuais, será analisado o parecer dos atores que figuram no feito (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Policia Civil, Ordem dos Advogados do Brasil) além do planejamento estratégico do Conselho Nacional de Justiça, que por sua competência dada após a Emenda Constitucional n.º 45 de 2004, teve a atribuição de executar e fiscalizar projetos desta natureza, atualmente implantados gradativamente por todo o país com a parceria e apoio do governo federal. II. ASPECTOS HISTÓRICOS O processo histórico-político do Brasil apesar de colecionar algumas obscuridades, pode ser encarado com grande avanço quando tratamos das relações humanas e na forma do Estado fazer valer das suas prerrogativas. Não obstante, foi na ditadura militar que encontramos os maiores reflexos acerca do que representa a nossa Constituição Federal promulgada em 1988, base de todo ordenamento jurídico vigente. As indagações ainda pertinentes sobre o movimento militar de 1964 que perdurou por mais de duas décadas no Brasil e que covardemente vitimou milhares de pessoas, ensejaram um clamor de justiça que nos fez por enxergar a necessidade na ampliação de defesa dos direitos inerentes à pessoa humana, sobretudo em respeito ao que ela representa.
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O ser humano antes tratado sem o devido amparo estatal encontra hoje no próprio Estado a sua representatividade. Por outro lado o Estado impõe limites na sua própria atuação, não estando mais autorizado a responder pela antecipação do sentido, sem julgamento justo daqueles que se arriscam a suplantar o marco da lei. Passados alguns anos, vivenciamos ainda um pouco dos resquícios daquela era. A era punitiva ao qual pensávamos estar livres ainda ronda os anseios da sociedade, e as lacunas de toda uma história ainda sim abarcam no Direito Penal, tornando-o um instrumento que serve como lição ao indivíduo, quando na realidade, a sua forma e sua essência, presume efeito contrário. O Direito Penal em conformidade a nossa Magna Carta nasceu com o intuito de atender ao disposto da preservação da vida, na premissa da continuidade do convívio social, da paz, e de harmonia entre todos os seres. E nesse sentido a ressocialização do indivíduo surge como forma de demonstração da sua capacidade de se tornar uma pessoa melhor para a sociedade, quando instalado num ambiente favorável, de condições propícias, dignamente humanas, oferecidas pelo Estado. Partindo do princípio basilar da presunção de inocência, e já deixando de lado o objetivo punitivo da sociedade e do Estado, quando na promiscuidade entre o sentimento de justiça e o sentimento de vingança, satisfar-se-á ao objeto do presente trabalho com enfoque voltado à defesa dos direitos da pessoa humana, que historicamente o fez ter sentido, mesmo depois de intensas guerras já vivenciadas. Nesse aspecto, e como forma de ilustração do tema proposto, é válido o estudo das ferramentas presentes em nosso ordenamento jurídico, em especial nossa legislação processual penal a fim de viabilizar e enriquecer a discussão sobre o procedimento das Audiências de Custódia e sua institucionalização entre os diversos setores da justiça. A prisão cautelar no processo penal é tida como ultima ratio no que se refere às medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Para o autor José Frederico MARQUES2, é um mal necessário, tendo em vista que o Estado não pode deixar de executá-las, sob pena de enfraquecimento na repressão dos crimes. Guilherme de Souza NUCCI, afirma que “Há posição doutrinária em sentido contrário, considerando que a obrigação de se recolher à prisão, ao réu reincidente ou com maus antecedentes, fere o princípio da presunção de inocência”.3 Ainda sim, muito embora seja usada como prática rotineira nos
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tribunais de justiça de todo o país, sem aqui querer generalizar a matéria, a prisão cautelar deve ser aplicada em última ocasião, quando não atendido os requisitos das diversas medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, haja vista que nosso ordenamento jurídico preza pela presunção de inocência e que ninguém será privado de sua liberdade senão em decorrência de um julgamento justo não mais passível de discussão judicial. Em sua renomada obra4 Foucault afirma que: Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando não inútil. E, entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão. O Supremo Tribunal Federal tem o entendimento de que o Princípio da Presunção de Inocência não impede a prisão do réu antes da condenação transitada em julgado. Nesse sentido e na mesma tese, o Superior Tribunal de Justiça, editou a súmula n.º 09, na qual autoriza expressamente a prisão cautelar afirmando não haver qualquer violação ao princípio questionado, na seguinte redação: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência” 5. Trata-se de uma prisão processual, e assim sendo nunca deverá ser aplicada como forma de antecipação da pena. Deve obedecer aos requisitos processuais, e prover necessariamente da devida fundamentação, sob pena de abuso por parte do ente estatal. A prisão em flagrante, com previsão no artigo 301 do Código de Processo Penal, tão logo ocorra, e levado ao conhecimento da Autoridade Policial, deverá ser formalizada no respectivo Auto de Prisão em Flagrante, com a indispensável comunicação em até 24 (vinte e quatro) horas as autoridades competentes, sejam elas: Defensoria Pública, Ministério Público e Juiz, em conformidade a regra do artigo 306, §1º, do referido diploma. Seguindo os trâmites processuais, preliminarmente o magistrado deve adotar as medidas pertinentes no tocante à prisão do acusado definidas no artigo 310 do Código de Processo Penal. Até então, se tratam de medidas, que podem, observadas a circunstâncias do delito, motivar ou não a manutenção da prisão em flagrante nas seguintes faculdades adotadas pelo Juiz: (i) relaxamento da prisão, (ii) conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, (iii) concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, desde que todas estas estejam consubstanciadas de vasta fundamentação jurídica. É nesse ponto crucial do processo, que vem à tona o objeto da discussão da presente obra. A utilização das ferramentas processuais e a lei vigente permitem ao magistrado, assim que formalizado pela Autoridade Policial a prisão do autor através do Auto de Prisão em Flagrante Delito, que este indivíduo seja de imediato encaminhado a presença de um Juiz competente para análise das circunstâncias da manutenção ou não de sua prisão. Trata-se de um contato face a face, incorporado em um espaço democrático. Ou seja, é a primeiro contato do magistrado com o preso, e nessa fase preliminar algumas regras devem ser observadas tais como: (i) tolher o Juiz de apreciar os fatos que originaram a prisão; (ii) e se abster à discussão probatória que ensejou a prisão do acusado. Pode ser definida como uma entrevista, e não um interrogatório. É imprescindível que o magistrado nesse primeiro momento promova e prime pelas circunstâncias que ocasionaram a prisão, e ainda sim, complemente o contato com o preso como forma de inibir a prática de abuso de poder, seja decorrente do excesso praticado na prisão, ou seja, pelo desvio da conduta por parte dos agentes estatais. Nesse viés, as Audiências de Custódia proporcionam uma compreensão mais abrangente do magistrado que poderá tomar suas
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decisões com maiores informações, acerca das motivações do autor, assim como sobre a sua conduta permitindo analisar a legalidade do ato num todo. Caio Paiva destaca a importância do procedimento para inibir qualquer excesso por parte dos agentes estatais: Obviamente, porém, que não se pode esperar que a audiência de custódia, sozinha, elimine a tortura policial, uma prática que não apenas atravessou todo o período ditatorial, mas continua presente na democracia pós-Constituição Federal de 1988, agindo como uma espécie de “sistema penal subterrâneo”, aprovada por considerável parte da opinião pública e de agentes de segurança. No entanto, a medida pode contribuir para a redução da tortura policial num dos momentos mais cruciais para a integridade física do cidadão, o qual corresponde às primeiras horas após a prisão, quando o cidadão fica absolutamente fora de custódia, sem proteção alguma diante de (provável) violência policial. 6 Ao preso, na primazia de suas garantias constitucionais e no decorrer da realização da audiência, será lhe informado do direito de silêncio, assim como do direito à prévia entrevista com seu defensor, seja público, seja particular. Ouvido o conduzido neste primeiro momento, concomitantemente a Defesa e o Ministério Público, o Juiz decidirá na própria audiência, fundamentadamente nos moldes do artigo 310 do Código de Processo Penal, sobre a homologação do flagrante ou a aplicação das medidas cautelares previstas no artigo 319 também do referido diploma. Há de se ressaltar que toda essa entrevista, seguirá em autos apartados, não ensejando qualquer vínculo ao processo principal que seguirá seu trâmite e rito normal. A regulamentação do procedimento está disposta no Projeto de Lei do Senado n.º 554/2011 no qual analisaremos pormenorizadamente em momento oportuno, e segue com a seguinte redação: (...) a oitiva que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apa rtados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. No proposto projeto não há de se falar em uma faculdade do magistrado e sim numa formalidade a ser respeitada. Ressalta-se que a aplicação do procedimento das Audiências de Custódia, como aqui já afirmado, tem respaldo legal. O Brasil é signatário de acordos internacionais, e estes por sua vez passam pelo devido processo legislativo, que os tornam normas de aplicação obrigatória, sejam elas definidas com status de norma constitucional, ou com status de norma supra legal, estas no que diz respeito abaixo da constituição e acima das leis internas. No caso das Audiências de Custódia, o procedimento legislativo tornou a norma com caráter de lei infraconstitucional e supra legal, assim sendo obedece à tese defendida por Hans Kelsen7, partindo da Teoria pura do Direito, que estabelece uma estrutura hierárquica entre norma superior-fundante e norma inferior-fundada. Tratando-se de norma superior-fundante aquelas as quais regulamenta e institui a criação e os métodos utilizados na norma inferior-fundada. Ou seja, a Constituição Federal se sobrepondo as demais leis e servindo como parâmetro e base para sua essencialidade. No julgamento do Recurso Especial n.º 466.343 no Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, ficou estabe-
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lecido o atual entendimento da Corte no que diz respeito à hierarquia das normas jurídicas no direito brasileiro. Apontou o Supremo que os tratados internacionais que versem sobre a matéria relacionada a Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supra legal, excepcionando os tratados os quais tem aprovação por três quintos em dois turnos em cada casa legislativa, os quais na redação do artigo 5º, §3º da Constituição Federal possuirão natureza constitucional. E nesse sentido proferiu seu voto8. Ante o exposto, a confirmação do Supremo Tribunal Federal só fez por valer o entendimento da Constituição da República de não se eximir a aplicação da norma, considerando o princípio da supremacia constitucional. O instituto das Audiências de Custódia tem base legal, e devem servir como mais um instrumento das garantias fundamentais que nortearão o devido processo legal que levará a absolvição ou condenação do réu. Trata-se de um direito do acusado de ser apresentado a um Juiz e não pode ser entendido como uma inovação legislativa. O simples fato de não ser rotina nos tribunais não é motivo para afastar a sua aplicação. O Conselho Nacional de Justiça, ao apontar pela efetivação da Audiência de Custódia assim o definiu: O objetivo do projeto é garantir que, em até 24 (vinte e quatro) horas, o preso seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o Juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O Juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.9 Abaixo, em momento oportuno, serão explanados os diversos diplomas internacionais nos quais o Brasil se comprometeu a seguir em matéria de Direitos Humanos. É certo que os órgãos estatais assim como Poder Judiciário, e Ministério Público carecem de recursos, tanto humanos quanto materiais para a implantação efetiva em âmbito geral para a realização das premissas audiências. É certo também compreender a necessidade de um período de adequação para que o Poder Público torne viável a realização do procedimento. A respeito dessa adequação, o Conselho Nacional de Justiça é o Órgão Judiciário que promove essa iniciativa, com a fixação de projetos pilotos nos tribunais de justiça do País, e já o faz, inicialmente no Estado de São Paulo, por meio do provimento conjunto n.º 03, com a Corregedoria Geral da Justiça. Assim no seu artigo primeiro, o provimento já faz consolidar a relação dos tratados internacionais com nosso ordenamento jurídico. Art. 1º Determinar, em cumprimento ao disposto no artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (pacto de San Jose da Costa Rica), a apresentação de pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão, para participar de audiência de custódia.10
depois de efetivada a sua prisão em flagrante. Nesse sentido, o texto propõe que o preso deverá ser conduzido a presença do juiz competente, juntamente com o auto de prisão em flagrante, acompanhado das oitivas colhidas. Nessa perspectiva já não se trata mais de uma faculdade do Magistrado e sim de uma obrigatoriedade imposta pela lei. O Projeto não abriga em si uma inovação legislativa, como aqui já mencionada. Ele tem por único objetivo incorporar a norma processual à redação dos diplomas internacionais ratificados pelo Brasil. Pode ser que ainda leve tempo para apreciação das casas legislativas, mas o projeto encontra-se em fase final de discussão na comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJ) da supracitada casa. Ainda sim apresenta algumas indagações que são peculiares a aplicação do feito. Num primeiro momento as emendas apresentadas, se restringem a discussão da viabilidade da realização destas audiências mediante uso de videoconferência, porém pode ocorrer o desvio da sua finalidade conforme entendimento no parecer do relator Senador Humberto Rocha: (...) mesmo que a presença virtual seja considerada real, não trará as garantias necessárias para a realização de um julgamento eficaz pela autoridade judiciária, além de não assegurar de forma pela a preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana, objeto principal dessa preposição. Num segundo ponto, a discussão remete a utilização das audiências pela Justiça Federal, tendo em vista as peculiaridades em relação a quando comparamos as esferas estaduais. Na análise da questão, o projeto se propôs a adotar a possibilidade de apresentação do preso para a realização da Audiência de Custódia no Juízo de Direito local, quando não houver vara federal instalada, com o intuito de tornar exeqüível referido procedimento. Nesses moldes, finda o intenso debate em torno do referido projeto, o então relator Ministro Humberto Costa, apresenta o texto final apto a ser destinado à apreciação da comissão, para posterior deliberação ao plenário da casa passando a tramitar o texto com a seguinte redação:
Ocorre que o Poder Público não pode ser omisso ao ponto de afastar direitos garantidos a todos os cidadãos, ainda mais quando se tratam de tamanha relevância definidos em regulamentos inatos. Não obstante, a discussão do tema chegou ao Poder Legislativo, por meio do projeto de lei do Senado Federal n.º 554 de 2011, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares. O projeto tem como texto base a alteração do artigo 306, parágrafo 1º do Código de Processo Penal, para determinar o prazo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial,
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PROJETO DE LEI DO SENADO Nº. 554, DE 2011 Altera o art. 306 do Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para determinar o prazo máximo de vinte e quatro horas para a apresentação do preso à autoridade judicial, após efetivada sua prisão em flagrante pelo delegado de polícia competente e dá outras providências. O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º O art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente pelo delegado de polícia responsável pela lavratura do auto de prisão em flagrante ao juiz competente, ao Ministério Público e à Defensoria Pública quando não houver advogado habilitado nos autos, bem como à família do preso ou à pessoa por ele indicada. § 1o Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado pelo delegado de polícia ao juiz competente e ao Ministério Público o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública respectiva.
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§ 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pelo delegado de polícia, com o motivo da prisão, capitulação jurídica, o nome do condutor e os das testemunhas.
das e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.” (NR)
§ 3o Imediatamente após a lavratura do auto de prisão em flagrante, diante da ocorrência de suposta violação aos direitos fundamentais da pessoa presa, o delegado de polícia em despacho fundamentado determinará a adoção das medidas cabíveis para a preservação da integridade do preso, além de determinar a apuração das violações apontadas, instaurando de imediato inquérito policial para apuração dos fatos, requisitando a realização de perícias, exames complementares, também determinando a busca de outros meios de prova cabíveis.
Ante o exposto, fica a cargo do Congresso Nacional Brasileiro dar prosseguimento ao texto que já se encontra em estágio final.
§ 4o No prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judiciária tomar as mediadas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 5º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo quarto, o juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida, ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310. § 6º A oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 7º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo sexto, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310. § 8º Na impossibilidade, devidamente certificada e comprovada, da autoridade judiciária realizar a inquirição do preso quando da sua apresentação, a autoridade custodiante ou o delegado de polícia, por meio de seus agentes, tomará recibo do serventuário judiciário responsável, determinando a juntada nos autos neste último caso, retornando com o preso e comunicando o fato de imediato ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Conselho Nacional de Justiça. § 9º Nos casos de crimes de competência da Polícia Federal, quando o município do local da lavratura do flagrante delito não coincidir com sede da Justiça Federal, a autoridade custodiante ou o delegado de polícia federal deverá determinar a seus agentes que conduza o preso ao Juízo de Direito do local da lavratura da peça flagrancial no prazo máximo de vinte e quatro horas, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhi-
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Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
III. DIPLOMAS INTERNACIONAIS O Brasil é signatário de vários tratados internacionais no tocante a matéria de Direitos Humanos. Entre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, foi um tratado assinado entre países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica. Referido tratado, que serviu como base do sistema interamericano de Direitos Humanos, somente foi ratificado pelo país em Setembro de 1992. O Brasil, assim como os Estados signatários se comprometeram a respeitar os direitos e liberdades nele reconhecidos e a garantir o livre e pleno exercício a toda pessoa que sujeita à sua jurisdição, sem qualquer discriminação. O documento é composto por 81 (oitenta e um) artigos, incluindo as disposições transitórias, que estabelecem os direitos fundamentais da pessoa humana, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à integridade pessoal e moral, à educação, entre outros. A convenção proíbe a escravidão e a servidão humana, trata das garantias judiciais, da liberdade de consciência e religião, de pensamento e expressão, bem como da liberdade de associação e da proteção a família. A partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 (Reforma do Judiciário), os tratados relativos aos direitos humanos assinados pelo Brasil, passaram a ser equiparados às normas constitucionais, devendo ser aprovados em dois turnos, por pelo menos três quintos dos votos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Para tanto, e aqui a parte que nos interessa, base da discussão sobre as Audiências de Custódia, o artigo 7.5 do referido diploma internacional determina que: Toda pessoa presa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. Inicialmente a interpretação do artigo nos remete a algumas reflexões, principalmente em torno do termo “sem demora”. A expressão é vaga, e não afirma em si o tempo necessário para apresentação do preso a Autoridade competente. Assim sendo deve ser interpretada como tempo justo, que não provoque um perecimento na real finalidade da norma. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, também criada pelo Pacto de San José da Costa Rica, tem por finalidade julgar casos de violação aos Direitos Humanos ocorridos em países membros da Organização dos Estados Americanos. Foi reconhecida pelo Brasil em 1988, e em julgamentos acerca da matéria tem se posicionado no sentido que as Audiências de Custódia servem como instrumento de controle judicial imediato idôneo, que evitam prisões arbitrárias e ilegais, pois atribui ao julgador garantir os direitos do preso, autorizando a adoção de medidas cautelares ou de coerção quando estritamente necessária, conforme julgado no caso Acosta Calderón contra Equador.
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In casu, a Corte Interamericana entendeu não ser suficiente a mera comunicação da prisão ao Juiz. (...) o simples conhecimento por parte de um Juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao Juiz ou autoridade competente. 11 Ainda sim, aduz o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que: “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial”. O pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado pelas Organizações das Nações Unidas em 16 de Dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 1992, por meio do Decreto n.º 592, no seu artigo 9º, número 3, estabelece que: (...) Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do Juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.12 No que se refere ao prazo de apresentação a autoridade competente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Chaparro Alvarez13 contra o Equador, e no caso Cabrera García y Montiel Flores14 contra o México, reconheceu violação dessa garantia quando respectivamente os presos foram apresentados quatro e cinco dias respectivamente após a sua prisão.
IV. POSICIONAMENTO DOS TRINUNAIS BRASILEIROS Por se tratar de matéria recente, as Audiências de Custódia vêm ganhando espaço nas discussões dos tribunais em todo o país. Como o assunto é um tanto polêmico na seara processual penal, operadores do Direito se divergem em vários pontos e estabelecem uma discussão que parece não ter fim. O Movimento de Defesa da Advocacia15 defende o instituto como uma iniciativa “brilhante e inovadora”, a qual procede ao respeito às garantias constitucionais. A entidade afirma que a iniciativa permitirá maior controle sobre a legalidade de prisões, e enxerga como positiva para lei processual penal brasileira, colocando o Brasil no mesmo patamar dos demais países ocidentais democráticos e definem as audiências como “Olho no olho”. A Defensoria Pública da União é favorável à institucionalização das Audiências de Custódia por todo o país. Em várias ações o órgão promoveu a defesa dos cidadãos sob a tese de respeito aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil em sede de Direitos Humanos. No processo n.º 0005393-50.2013.4.02.5110, em tramitação na 4ª Vara Federal de São João do Meriti, Seção Judiciária do Rio de Janeiro, a defensora pública Taísa Queiroz, na inicial16 sustentou a importância da realização das Audiências de Custódia. (...) revela-se determinante para a preservação da dignidade humana, haja vista os alarmantes números brasileiros de casos de prisões preventivas, várias delas que poderiam ser substituídas por medidas cautelares de outra natureza, caso pudesse o juiz arguir diretamente o detido para formar sua convicção.
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A defensora argumenta ainda na exordial que a apresentação pessoal do preso ao juiz tem uma finalidade direta e outra indireta. Na primeira, busca-se proteger a integridade física e psíquica da pessoa, vez que são os momentos cruciais para prevenção da tortura. Na finalidade indireta, o comparecimento ao juiz: “proporciona evidentes garantias ao estabelecimento da verdade real sobre os fatos que resultaram na prisão”, permitindo decidir melhor pela substituição por medida alternativa, pela manutenção ou mesmo pela simples revogação. O Ministério Público de São Paulo17, em contrapartida discorda do formato das audiências. A associação de representantes do órgão diz que somente por meio de uma lei federal é que o procedimento poderia ser incorporado ao Código de Processo Penal. No Judiciário, em decisão recente, a desembargadora federal Mônica Sifuentes, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, atendeu ao pedido da Defensoria Pública nos autos do processo n.º 0006708-76.2015.4.01.0000, para determinar que o Juiz de Mato Grosso proceda à oitiva de dois homens presos em flagrante, suspeitos de praticar crime de roubo a uma agência dos Correios, em janeiro deste ano. Na decisão18 publicada a desembargadora considerou que as Audiências de Custódia não estão contempladas no ordenamento jurídico brasileiro, porém afirmou que deixaria de aplicar esta tese tendo em vista a meta prioritária estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça para universalizar o uso dessas audiências, fundamentando sua decisão no Pacto de San José da Costa Rica ratificado pelo Brasil em 1992. Em outra decisão19, publicada em 25 de Janeiro de 2015, o Desembargador Luiz Noronha Dantas, da Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no julgamento do Habeas Corpus n.º 0064910-46.2014.8.19.0000, foi contra a decisão do magistrado singular que indeferiu o pedido feito pela defesa dos réus para realização da Audiência de Custódia. Nesse sentido, e visivelmente indignado com a decisão de primeira instância, o desembargador concedeu a ordem. Conforme abaixo destacado, vale a pena à leitura integral da decisão. Sexta Câmara Criminal Habeas Corpus nº 0064910-46.2014.8.19.0000 Relator: Des. LUIZ NORONHA DANTAS
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Solicitadas informações, veio a ser nestas esclarecido que o pedido defensivo vertido nos autos principais e que aqui anima o universo impetracional foi finalmente apreciado e indeferido, nos seguintes termos: “Quanto ao requerimento de relaxamento da prisão, com fundamento na audiência de custódia, não assiste a razão à defesa ante ausência de previsão no CPP e na lei especial. Ressalte-se que o Pacto São José da Costa Rica exige que o preso seja apresentado à autoridade judicial sem qualquer fixação de prazo para esta ocorrência. Ademais, o mencionado Pacto não dispõe acerca de qualquer ilegalidade relativa a não apresentação do preso no momento pretendido pela defesa, o que se coaduna com a realidade, eis que absolutamente inviável a realização da audiência imediatamente após a prisão de cada réu. Por todo o exposto, indefiro o pedido de relaxamento da prisão preventiva dos acusados Ueslei e Rafael”. Concessa maxima venia, ressoa absurdo e teratológico o decisum em questão. Em primeiro lugar, porque a ausência de expressa previsão legal deste imprescindível ato procedimental no C.P.P. não pode ser manejado para inviabilizar a sua ocorrência, uma vez
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que,figurando o Brasil como signatário destes acordos e tendo ratificado, por seu Legislativo, os respectivos conteúdos, as normas daí advindas não são inexistentes, como quer fazer crer a nobre Autoridade coatora, mas sim, presentes e de hierarquia equivalente a dos primados constitucionais. Aliás e a esse respeito, mas seguindo o equivocado raciocínio desenvolvido pelo Juízo de piso, caberia a lembrança de que vários são os princípios constitucionais que não receberam assento formal no Código de Processo Penal e, nem por isso, a existência ou eficácia destes pode ser discutida ou questionada. Pois, no caso vertente, acontece exatamente a mesma coisa!!!
‘sem demora’(...) O estabelecimento de 24 (vinte e quatro) horas para apresentar ao Juiz competente a pessoa privada de liberdade constitui prazo razoável, considerando que a própria lei processual penal já determina que o auto de prisão em flagrante seja enviado à autoridade judicial dentro deste espaço de tempo, após a efetivação da prisão...” – GRIFOS PRÓPRIOS EM NEGRITO E EM SUBLINHADO. E como se tudo isto não bastasse, ainda consta do Boletim Informativo Eletrônico da Diretoria-Geral de Comunicação e de Difusão de Conhecimento deste Pretório, Edição nº 07 deste ano, do dia 16.01.2015, na sua principal matéria de destaque que: “O Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério da Justiça lançarão no dia 6 de fevereiro um projeto para garantir que presos em flagrante sejam apresentados a um juiz num prazo máximo de 24 horas. O ‘Projeto Audiência de Custódia’ consiste na criação de uma estrutura multidisciplinar nos Tribunais de Justiça que receberá presos em flagrante para uma primeira análise sobre o cabimento e a necessidade de manutenção desta prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere. O projeto teve o seu termo de abertura iniciado na quintafeira (15), após ser aprovado pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, Ministro Ricardo Lewandowski” – GRIFO PRÓPRIO EM SUBLINHADO.
Em segundo lugar, ofende a sensatez e a razoabilidade a argumentação sustentada pelo Juízo de piso a partir da qual não foi realizada a Audiência de Custódia porque inexiste prazo fixado para tanto. Relembre-se que tanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, 5) –“Toda a pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”, GRIFOS PRÓPRIOS – como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos ( art. 9º, 3) – “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgado em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá ser condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença”, GRIFOS PRÓPRIOS – estabelecem que tal imprescindível iniciativa para se assegurar o resguardo à integridade física e psíquica do preso determinam que isto se dê sem demora, a significar, de imediato, ou seja, num prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, já que qualquer outra metrificação de tempo ofenderá a mens legis.
Em terceiro lugar e que também não pode ser chancelada está a mais do que absurda linha argumentativa, desenvolvida pelo Juízo de piso, segundo a qual “o mencionado Pacto não dispõe acerca de qualquer ilegalidade relativa a não apresentação do preso no momento pretendido pela defesa” (???!!!). Ora, o descumprimento de um primado afeto à garantia dos direitos humanos, contido em acordo inte_rnacional e cujo teor foi ratificado pelo Brasil, repise-se, ostenta hierarquia equivalente àquela concernente aos princípios constitucionais, parecendo incabível ingenuidade crer-se que o seu descumprimento restará impune e sem gerar conseqüências processuais imediatas. Por último, mas não menos importante, cabe descartar o argumento final e meta jurídico, sustentado pelo primitivo Juízo, a partir do qual, considerou que a realização deste imprescindível ato não “se coaduna com a realidade, eis que absolutamente inviável a realização da audiência imediatamente após a prisão de cada réu” (???!!!). Este, permissa venia, é o absurdo dos absurdos!!! Isto porque não só não pode um Magistrado deixar de aplicar uma norma de status constitucional porque não tem meios materiais para tanto –como, por exemplo, seguir no julgamento de um feito, sem realizar a Instrução deste, porque, simplesmente, não possui meios de transportar réus presos e/ ou intimar e requisitar a apresentação de testemunhas –como também tal avaliação não é da sua competência, mas sim, da Administração Superior deste Tribunal de Justiça, cabendo ao Juiz cumprir a lei e os primados constitucionais próprios, e, caso não possua condições concretas de realizar o seu mister, que acione a Colenda Presidência e a Egrégia Corregedoria-Geral deste Pretório, solicitando ajuda e demonstrando a imprescindibilidade da medida que precisa ser adotada.
Outro não é o entendimento contido no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (item 44) que trata especificamente da necessidade de realização da audiência de custódia: “Criação da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro para garantia da apresentação pessoal do preso à autoridade judiciária em até 24 horas após o ato da prisão em flagrante, em consonância com o artigo 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica), à qual o Brasil se vinculou em 1992” – GRIFO PRÓPRIO SUBLINHADO. Também seguiu este norte o Projeto de Lei nº 554/2011 do Senado Federal, que trata de alteração ao texto vigente do art. 306 do C.P.P., visando combater e prevenir a tortura e outros tratamentos cruéis, quando alinha que: “...O Pacto de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos trazem obrigações internacionais para o Estado brasileiro, de reconhecimento, respeito e proteção às garantias dos cidadãos, que podem invocá-las a qualquer instante. Seja qual for o motivo de uma prisão, há o direto da pessoa presa exigir ser levada à presença de um juiz, ou de uma autoridade judicial
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Inclusive, porque tal medida já vem sendo adotada há aproximadamente dois anos pelo Dr. JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES
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TORRES, Juiz da 1ª Vara do Júri da Comarca de Campinas, no Estado de São Paulo, exemplo este que foi seguido pelo Dr. LUIZ CARLOS VALOIS, quem, no dia 03.01.2015, atuava como Magistrado em regime de Plantão Judiciário na Comarca de Manaus/AM, durante o qual, segundo foi noticiado pela rede mundial de computadores, realizou-se a Audiência de Custódia, estabelecendo-se contato visual e direto entre aquele Juiz e a pessoa privada de liberdade, tendo restado registrado quanto ao que seu durante tal ato: “Na audiência, constatouse que o acusado sofreu lesões que não foram citadas no laudo. Segundo o autuado, a agressão física foi realizada pela Polícia no ato da prisão, fato que motivou a realização de novo exame de corpo de delito do acusado. Após o registro, o Promotor de Justiça, Armando Gurgel Maia, reconsiderou a posição anterior para manifestar-se favoravelmente à concessão da liberdade provisória ao suspeito, sob a condição de que o preso apresente, no prazo de trinta dias, identificação civil e comprovante de residência, sendo acompanhado pelo juiz. Assim, o juiz determinou a expedição de alvará de soltura do indiciado”. Por derradeiro e para sepultar o impróprio, indevido e equivocado juízo de infactibilidade material de condições à realização da Audiência de Custódia, segue-se na transcrição de outros dois parágrafos daquela matéria contida no Boletim Informativo Eletrônico deste Pretório, mencionado quatro parágrafos acima: “...O objetivo do projeto é garantir que, em até 24 horas, o preso seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiências em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público e da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades...” –GRIFO PRÓPRIO EM SUBLINHADO. Assim e diante da mais do que flagrante ilegalidade advinda da opção de ignorar e de negar a validade e necessidade da realização da Audiência de Custódia, DEFIRO a liminar pretendida e determino a expedição de Alvarás de Soltura condicionado em favor do Paciente, UESLEI HERCULANO AZEVEDO. Deixo de impor aos mesmos o cumprimento das cautelares alternativas à prisional, em face da ilegalidade ora sanada na medida segregacional. Comunique-se o inteiro teor da presente ao Juízo originário. Após, à douta Procuradoria de Justiça. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 2015. Ademais, em outra decisão20, válida também para enriquecimento da presente obra, o Desembargador Federal Messod Azulay Neto, da 2ª Turma Especializada, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no julgamento do Habeas Corpus n.º 2014.02.01.003188-7, em 20 de Maio de 2014, impetrado pela Defensoria Pública da União, contra decisão do Juízo da 2ª Vara Federal, da Seção Judiciária de Vitória no Estado do Espírito Santo, concedeu parcialmente a ordem para determinar a apresentação pessoal do preso perante o Juiz sob o fundamento de que “o resguardo deste não pode depender de norma futura, quando já se tem incorporado ao direito pátrio, por
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meio de Convenção Internacional da qual o Brasil é signatário...”. Aduz o desembargador: Tal apresentação visa precipuamente a salvaguarda à integridade física e psíquica do preso, que deverá ser ouvido pelo juiz, com evidentes garantias ao estabelecimento da verdade real sobre os fatos, possibilitando, ainda, a análise judicial dos motivos da prisão, não se substituindo pela mera notificação da ocorrência desta. E assim concluiu: (..) que o Brasil ao subscrever a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, aceitou a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já possui precedentes de condenação de alguns Estados pela não observância ao disposto no já referido e transcrito inciso 5, do art. 7º daquela convenção. Assim sendo, deve o paciente ser levado à presença da juiz, em 24 horas a partir desta decisão, a fim de que o mesmo seja ouvido, na presença do seu defensor, devendo ainda a oitiva ser registrada em autos apartados, versando exclusivamente sobre a integridade física e psíquica do preso, o resguardo a seus direitos fundamentais, bem como sobre os requisitos da prisão preventiva, cuja necessidade poderá ser revista pelo juízo monocrático. (GRIFOS PRÓPRIOS) Por fim, em decisão21 já em contrário às acima aludidas, o Desembargador Federal Ney Bello, da Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em julgamento de Habeas Corpus n.º 0038979-75.2014.4.01.0000/AM, na data de 23 de Setembro de 2014, impetrado pela Defensoria Pública da União, contra decisão do Juízo Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Amazonas, denegou a ordem indeferindo o pedido de realização da Audiência de Custódia, sob o fundamento de que a absoluta falta de previsão legal, não consubstancia constrangimento ilegal, passível de reparação por habeas corpus. A Defensoria Pública da União suscitou em defesa dos réus a tese de que embora as Audiências de Custódia não estejam previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, encontram respaldo legal na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, os quais contam com a adesão do Brasil. No entanto a teste não foi deferida pelo Desembargador, que rejeitou a liminar em concordância a decisão do magistrado de primeiro grau, completando ainda sua fundamentação nos seguintes moldes: Atualmente, a lei brasileira apenas prevê o encaminhamento do auto de prisão em flagrante delito para que o juiz competente analise a legalidade e a necessidade da manutenção da prisão cautelar. Não a condução pessoal do preso ao magistrado”. (GRIFOS PRÒPRIOS) Nesse sentido, o Ministério Público Federal também opinou pela denegação da ordem aos pacientes. Para preconizar a enérgica controvérsia recente acerca da matéria, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ajuizou22 no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5240, em 12 de Fevereiro de 2015, questionando a legalidade do provimento conjunto do Tribunal de Justiça de São Paulo e da Corregedoria Geral de Justiça do Estado n.º 03/2015, no qual torna obrigatória a apresentação pela autoridade policial ao Juiz, da pessoa detida em flagrante em até 24 (vinte e quatro) horas após a prisão. A Associação sustenta que as Audiências de Custódia inovam no ordenamento jurídico processual penal, e que somente poderiam ser criadas mediante lei federal, e jamais por provimento autônomo.
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Ainda assim, argumenta na ação que a norma repercutiu nos interesses institucionais dos Delegados de Polícia, cujas atribuições são previstas pela Constituição Federal, no artigo 144, parágrafos 4º e 6º. A ação está em tramitação no Supremo Tribunal Federal, e tem como relator o Ministro Luiz Fux. No mesmo sentido o Ministério Público do Estado de São Paulo, resiste veementemente ao modelo das Audiências de Custódia, e negou-se por meio do seu representante a assinar o termo de cooperação entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, para implantação de projeto piloto no Estado no início do ano. O parquet avalia que reunir tantos representantes com o Juiz transforma um momento pré-processual em uma fase de prova. Fortifica que a polícia já era obrigada a informar prisões em flagrante em 24 (vinte e quatro) horas, e a validade dessas medidas já era analisada por todos os órgãos nos gabinetes, sem a obrigação do encontro pessoal23. V. DAS FASES DE IMPLANTAÇÃO Visando consolidar o entendimento uniforme nos tribunais de todo o país, o Conselho Nacional de Justiça por meio dos seus representantes, em Fevereiro do corrente ano, em parceria com o Ministério da Justiça e com o Tribunal de Justiça de São Paulo lançou o projeto Audiência de Custódia na capital paulista. Além da apresentação do preso ao Juiz competente no prazo máximo de 24 (vinte e quatro horas) quando da sua prisão, o projeto prevê também a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, que serão responsáveis por representar ao Juiz opções ao encarceramento provisório. Num primeiro balanço24 apresentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de fonte do próprio portal, os dados demonstram que apenas nos primeiros quatro dias iniciais do projeto de implantação, das 57 (cinqüenta e sete) prisões em flagrante, totalizando 76 (conduzidos), foram concedidos 32 (trinta e dois) alvarás de soltura, sendo 9 (nove) com recolhimento de fiança, sendo que os demais 44 (quarenta e quatro) tiveram a sua prisão mantida, ou seja, 58% dos detidos permaneceram presos. Ainda segundo o portal, em 16 de Abril deste ano, o projeto já havia ultrapassado a marca de mil audiências. Desse total, 571 (quinhentos e setenta e um) presos tiveram o flagrante convertido em prisão preventiva, e 439 (quatrocentos e trinta e nove) foram liberados, sendo que 115 (cento e quinze) mediante o pagamento de fiança, 304 (trezentos e quatro) sem pagamento de fiança, e 20 (vinte) tiveram o relaxamento da prisão em flagrante. Com otimismo acerca dos resultados do projeto o Tribunal de Justiça de São Paulo já estuda a possibilidade de expansão das audiências. A segunda fase terá como objetivo a introdução das audiências nos finais de semana, com incremento também do atendimento nas comarcas do interior do Estado. Na mesma direção, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Ricardo Lewandowski, se mostra favorável ao reconhecimento das Audiências de Custódia por todo o Brasil. Em acordo de cooperação técnica assinado com o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no último dia 09 de Abril, as autoridades se comprometeram a facilitar a implantação do projeto “Audiências de Custódia” em todo o país, com incentivo à aplicação de medidas alternativas cautelares. O presidente do Supremo Tribunal Federal se mostrou convicto ao afirmar que um dos principais objetivos do acordo assinado seria o de acabar com a cultura do encarceramento no país, assegurando a todos as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal e
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nos pactos de Direitos Humanos assinados pelo Brasil.25 Na visão do governo, o Ministro da Justiça, afirmou que as Audiências de Custódia podem reduzir o número de detentos encarcerados, contribuindo dessa forma para solução do problema do sistema penitenciário brasileiro. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça apontados em diagnóstico26 publicado neste mês de Junho, o Brasil tem hoje cerca de 711 (setecentos e onze) mil presos, dos quais 41% são presos provisórios. Ainda sim, segundo a fonte, o país é o terceiro que mais encarcera pessoas em todo o mundo. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça trabalha para a concretização do instituto no incentivo ao combate à cultura do encarceramento. O projeto das Audiências de Custódia segundo o Conselho coíbe a tortura policial e acaba facilitando o trabalho de todos os atores de Justiça com a antecipação das fases processuais, reforçando a pauta dos direitos individuais no processo penal. O órgão pretende até no fim deste ano introduzir novas execuções do projeto por todo o país. Estados como Amazonas, Tocantins, Mato Grosso, Paraíba, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e Distrito Federal já estão em vias de institucionalização do projeto. Já no Estado do Maranhão o projeto vem sendo aplicado nos mesmos moldes que no Estado de São Paulo. Minas Gerais também ganha espaço. O Tribunal de Justiça trabalha no sentido de executar o projeto proposto pelo Conselho Nacional de Justiça. A idéia inicial é promover um estudo que vai analisar a implantação do projeto piloto na cidade de Belo Horizonte. A comissão terá participação da Defensoria Pública, Ministério Público e Secretaria de Estado de Defesa Social. Para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais o projeto vai complementar o que já existe na prática na capital mineira com a Central de Flagrantes (CEFLAN). A estrutura implantada em 2014, conta com trabalho conjunto da Polícia Militar, Polícia Civil, Defensoria Pública, Ministério Público, e Poder Judiciário, nos procedimentos quanto à prisão em flagrante, dividindo todos os órgãos o mesmo espaço. Nestes casos, a Central de Flagrantes específica o atendimento a prisões em flagrante delito da capital. Depois de formalizado pela Polícia Civil o auto de prisão é encaminhado para análise do Juiz para daí então decidir sobre a manutenção ou não da prisão do conduzido, sem prescindir de uma audiência inaugural, com acompanhamento do Ministério Público e Defensoria Pública. Neste caso o projeto piloto proposto pelo Conselho Nacional de Justiça apenas adequaria as Audiências de Custódia ao modelo já existente na cidade. A Central de Flagrantes, segundo o desembargador Hebert Carneiro27 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, recebe hoje em Belo Horizonte entre 10 (dez) a 15 (quinze) flagrantes por dia durante a semana e cerca de 45 (quarenta e cinco) nos finais de semana. Segundo dados28 do Conselho Nacional de Justiça, no último diagnóstico mencionado, o Estado de Minas Gerais contava com mais de 57.000 (cinqüenta e sete) mil presos, dos quais 41% são presos provisórios, se igualando a média nacional conforme já informado. VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS Muito são os argumentos que vão contra a instalação do modelo no país. As dificuldades vão desde os aspectos logísticos dos diversos atores que participam do evento, até a insuficiência de carência pessoal e funcional que atinge toda a estrutura pública. Isso sem pensar na complexidade das regiões mais distantes dos centros urbanos que padecem ainda mais de recursos como falta de viaturas para deslocamento, além da insuficiência de policiais civis e militares, defensores públicos, promotores de justiça, e juízes.
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A aplicação deve ser analisada sob todos esses aspectos para que as Audiências de Custódia atinjam sua efetiva finalidade, sob pena de se criar um modelo precário, utópico e que não fique apenas em letras no papel. É necessário um estudo minucioso das regiões que comportam esse formato de procedimento, pois de nada adiantará, se nenhum dos atores participantes de todo o processo conseguir executar plenamente a sua parte. E quando afirmamos em executar a sua parte, é fazê-la de forma a não ababelar o trabalho de qualquer outra natureza que já vem sendo executado pelas instituições. Ou seja, de nada adiantará como exemplo, tirar uma viatura para deslocamento do preso até uma comarca onde exista um juiz, se na cidade de onde esta viatura saiu não existam outras, assim como não existam mais policiais para prestar segurança aos cidadãos. Daí há de se entender num primeiro momento o descontentamento e a certa desconfiança pela grande maioria daqueles que atuarão no feito, seja Ministério Público, seja a Polícia Civil, Polícia Militar, a Defensoria Pública, e até mesmo o Poder Judiciário na integralidade de sua estrutura. O projeto de lei em si, prestes a ser colocado em pauta no Congresso Nacional para discussão, não pode ser abraçado pelo governo com status de política pública, no intuito de resolver a questão da superlotação nos presídios brasileiros como defende veementemente o governo. Deve haver a distinção dos institutos, mesmo porque não há ligação alguma quanto à finalidade e objetivo de ambos. Enquanto as Audiências de Custódia visam à garantia de prerrogativas do Estado Democrático Brasileiro na aplicação na lei processual penal vigente, o sistema carcerário brasileiro pede clamor com falta de estrutura, em contramão às garantias constitucionais no que se refere à dignidade da pessoa humana. É necessário por parte do Congresso Nacional um intenso debate para a apreciação da matéria com a participação de todos os atores nela envolvidos. As Audiências de Custódia representam um grande passo no sentido da evolução civilizatória do processo penal brasileiro e já chega com muito atraso, mas ainda assim vai vir a sofrer bastante crítica. É preciso otimismo, pois não se pode negar que o projeto ainda em fase de experimentos e estudo é um modelo que veio para ficar, tendo em vista a tendência garantista que o Estado Democrático de Direito representa em toda a sua forma e concepção. REFERÊNCIAS
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Portal Tribunal de Justiça de São Paulo. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br> Acesso em 28 abr. 2015. Portal Tribunal Regional Federal 1ª Região. Disponível em: <http://www.trf1.jus. br> Acesso em 20 mar. 2015 Portal Tribunal Regional Federal 2ª Região. Disponível em: <http://www.trf2.jus. br> Acesso em 20 mar. 2015.
NOTAS DE FIM
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39 ed. Petrópolis: Vozes, 2011. Giacomolli, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 2 ed. Atual. Campinas: Millenium, 2000. NADER, Paulo, Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 2008. PAIVA, Caio, Na Série “Audiência de Custódia”: conceito, previsão normativa, e finalidades. Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/03/na-serie-audiencia-de-custodia-conceito-previsao-normativa-e-finalidades/>. Acesso em: 18 abr. 2015. Portal Associação Brasileira de Normas Técnicas. Disponível em: <http://www. abnt.org.br> Acesso em 02 mar. 2015. Portal Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <http://
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www.cidh.org> Acesso em 15 abr. 2015.
1 Estudante matriculado regularmente no 9º período do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. É servidor público efetivo é está exercendo cargo de Investigador de Polícia, na Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. 2MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal.2 ed.atual. Campinas: Millenium, 2000.p. 64. NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 569 4 Foucault, Michel. Vigiar e punir. 39. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 218. 5 Súmula n.º 09 Superior Tribunal de Justiça 6Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/03/na-serie-audiencia-decustodia-conceito-previsao-normativa-e-finalidades/> 7KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo, 1987, p. 240 8“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento
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jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supra legal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). [...] (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto) — (grifo próprio). 9Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-13/limite-penal-afinalquem-medo-audiencia-custodia-parte> 10Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br> 11Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_129_ esp1.pdf> 12Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/ D0592.htm> 13Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_170_ esp.pdf> 14Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_170_ esp.pdf> 15Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/mda-oficio-audiencias-custodia. pdf> 16Disponível em: <http://www.dpu.gov.br/images/Requerimento_Aud_Cust. compressed.pdf> 17Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-24/audiencia-custodiacomeca-resistencia-ministerio-publico> 18Disponível em: <http://www.trf1.jus.br> 19Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br> 20Disponível em: <http://www.trf2.jus.br> 21Disponível em: <http://www.trf1.jus.br> 22Disponível em: <http://www.stf.jus.br> 23Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-fev-24/audiencia-custodiacomeca-resistencia-ministerio-publico> 24Disponível em: <https://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=9&nuDiario=1838&cdCaderno=10&nuSeqpagina=1> 25Disponível em: <http://www.stf.jus.br> 26 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_ pessoas_presas_correcao.pdf> 27 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/77308-cnj-detalha-projetoda-audiencia-de-custodia-ao-tjmg> 28Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf>
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Aluno graduando Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientador Professor Ronaldo Passos Braga.
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CASAMENTO CIVIL HOMOAFETIVO: uma análise sob a perspectiva constitucional Marciana Vicentina de Sales Antunes¹ Valéria Edith Carvalho de Oliveira² RESUMO: A realização do casamento homoafetivo no Brasil já é uma realidade, por força de um ato normativo expedido pelo Conselho Nacional de Justiça-CNJ que proíbe as autoridades competentes a recusarem os pedidos de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Todavia, não existe no Direito pátrio uma norma jurídica expressa nesse sentido, o que provoca muitas discussões acerca da competência do CNJ para regulamentar a matéria. O presente texto tem por objetivo demonstrar as principais características do novo Direito Constitucional, do qual emergem fundamentos significativos e suficientes para instigar reflexões e conclusões sobre a legitimidade do casamento homoafetivo, a despeito da ausência de norma, no sentido formal, que assegure aos homossexuais a igualdade do direito de se casarem. ABSTRACT: Same-sex marriage is already a reality in Brazil, pursuant to a Regulatory Act issued by the National Justice Council (CNJ) which prohibits the competent authorities of rejecting requests of marriage licenses and ceremonies or conversions of civil union into civil marriage between individuals of the same sex. However, in the Brazilian laws there is not a legal instrument expressed in this sense, which causes debate about the constitutionality of CNJ in regulating the matter. The goal of this study is to demonstrate the main characteristics of modern constitutional law, from which significant and sufficient grounds for debating and legitimating same-sex marriage will emerge, even without the instrument, in the legal sense, that assures marriage equality to the LGBT community. PALAVRAS-CHAVE: união estável; casamento homoafetivo; pós-positivismo; neoconstitucionalismo. KEYWORDS: civil union; same-sex marriage; postpositivism; modern constitutionalism. SUMÁRIO: I Introdução; II Ambiente Pós-Positivista e Diretrizes Constitucionais; II.I A Teoria Crítica do Direito; II.II Os Mecanismos de Controle do Direito Constitucionalizado no Brasil; III O Atual Amparo Normativo dos Casais Homoafetivos que Pretendem se Casar; IV Síntese dos Debates Acerca do Reconhecimento Jurídico da União Estável e do Casamento Homoafetivo; V Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO A homossexualidade há tempos é uma questão bastante discutida e polemizada pela sociedade em geral, tanto quanto por diversos setores do conhecimento. Todavia, a discriminação histórica e a consequente marginalização dos homossexuais são fatores que sempre influenciaram na formação de uma concepção indesejada e preconceituosa sobre o tema. Tanto é que, até não muito tempo atrás, a afetividade entre pessoas do mesmo sexo era considerada como um desvio de comportamento, devendo, por isso, receber tratamento médico psiquiátrico. Progressivamente, esse cenário tem sido transformado não só no sentido de maior tolerância social, mas principalmente pelas importantes mudanças que ocorrem no sistema judiciário brasileiro que, pautado nos princípios da liberdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana (direitos fundamentais), vem assegurando mais efetiva proteção aos direitos dos casais homossexuais. O elemento central que identifica o conteúdo e o alcance do tema proposto nesse texto é o direito ao casamento civil homoafetivo no Brasil, frente à recente decisão do Supremo Tribunal Federal – STF que, em sede de julgamento conjunto das ADI 4277/DF e ADPF 132/ RJ, equiparou a união estável dos casais homossexuais àquela constituída entre um homem e uma mulher, essa já tutelada pelo ordenamento jurídico brasileiro e, por conseguinte, a edição da Resolução 175/13 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que veda aos cartórios a recusa à habilitação, à celebração de casamento civil, ou à conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. A partir dessas decisões do STF e do CNJ, busca-se refletir so-
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bre a configuração familiar composta pela união de pessoas do mesmo sexo e a consequente demanda para a proteção de suas relações segundo o Direito de Família, visto que, por muito tempo, as uniões homoafetivas foram tratadas pelos tribunais como um negócio jurídico de cunho obrigacional, sendo os conflitos patrimoniais relativos à extinção da convivência resolvidos pelo Direito de Empresa. A despeito de o Direito de Família vigente não contemplar regramento explícito acerca das uniões entre pessoas do mesmo sexo, o STF, em face dos preceitos principiológicos da Constituição da República, conferiu a essa modalidade de união o caráter de entidade familiar, concedendo-lhe a mesma proteção jurídica prevista às demais entidades familiares formadas pela união estável. Todavia, o conteúdo da Resolução 175/13 do CNJ instaurou polêmicas sobre a possibilidade de a união homoafetiva constituir-se pelo casamento direto e ou por conversão da união estável em casamento. O contexto jurídico em que se deram essas decisões envolve o processo de evolução do direito constitucional no Brasil ao longo dos últimos tempos. Trata-se do fenômeno da constitucionalização do Direito, que orienta uma releitura de todo o sistema jurídico à luz dos preceitos constitucionais. Tal fenômeno se desenvolve no ambiente filosófico pós-positivista, do qual se extrai a valorização dos princípios constitucionais na medida em que se verifica o desequilíbrio entre a norma positivada e a verdadeira realidade social. Desse ambiente, resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, não cabendo mais ao operador do direito tão somente se valer do método de subsunção do fato à norma em abstrato. E nesse contexto que o presente trabalho busca identificar os
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principais argumentos que fundamentaram a decisão do STF que conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição, para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, de forma a subsidiar a reflexão sobre a possibilidade de acolhimento da decisão do CNJ que, por meio da Resolução 175/13, obriga os cartórios à realização do casamento civil homoafetivo. Pretende-se, também, a compilação de manifestações contrárias e favoráveis sobre essas decisões, para que possamos perceber o cenário político no qual se apresentam as discussões acerca da legitimidade de as uniões homoafetivas se formarem juridicamente pelo casamento, até que o Congresso Nacional resolva regulamentar a questão. Ao final, esperamos poder correlacionar essa possibilidade com a ideia de família na contemporaneidade, dentro da lógica pós-positivista da constitucionalização do Direito, fenômeno que confere um papel de destaque aos direitos fundamentais nas discussões jurídicas. II. AMBIENTE PÓS-POSITIVISTA E DIRETRIZES CONSTITUCIONAIS A Constituição da República de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar representam o marco histórico de um novo Direito Constitucional no Brasil, fenômeno designado como a constitucionalização do direito ou, neoconstitucionalismo. Tem-se como marco filosófico desse novo Direito a ideia do pós-positivismo que, na sua essência, busca a interpretação do sistema normativo para além da legalidade estrita sem desprezar, no entanto, o direito posto pela lei. Didaticamente, ao discorrer sobre o neoconstitucionalismo no Brasil, Daniel Sarmento afirma tratar-se de um novo paradigma que, sob a égide da Constituição de 88, tem promovido mudanças, tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais. Sobre os diversos fenômenos que envolvem essa mudança, sintetiza: (a) Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos” mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teoria da argumentação etc.; (c) constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d) reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder Judiciário (SARMENTO, 2009). Para melhor compreender a emergência desses novos parâmetros, oportuna é uma breve síntese das circunstâncias históricas que suscitou o surgimento do neoconstitucionalismo. Na Europa, até a Segunda Guerra, predominava a cultura jurídica na qual a lei positivada ocupava uma posição central na defesa dos direitos, praticamente como fonte exclusiva. Dessa forma, só era possível invocar algum direito na medida em que fosse protegido pelas leis. Às constituições não era dado o papel normativo, elas, basicamente, representavam programas políticos que deveriam inspirar a atuação do legislador, que era “livre” para limitar os direitos como bem lhe aprouvesse; eram tempos em que os direitos fundamentais ainda não envolviam garantias contra o “arbítrio” parlamentar. Buscava-se a objetividade da ciência jurídica, em contraposição ao modelo anterior do jusnaturalismo que reconhecia a existência de um conjunto de valores e pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma positivada,
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sendo, por isso, considerado metafísico e anticientífico. Instala-se nesse ambiente o positivismo jurídico, separando o Direito da moral e dos valores transcendentes. Luís Roberto Barroso, afirmando o apogeu do positivismo jurídico na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, sintetiza suas principais características: (i) a aproximação quase plena entre Direito e norma; (ii) a afirmação da estabilidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado; (iii) a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; (iv) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão (BARROSO, 2009). Não é objetivo desse texto enveredar sobre o desenvolvimento teórico do juspositivismo, isso demandaria a abertura de novo tema. Aqui, é suficiente compreendermos que nas primeiras décadas do século XX o Direito, ainda, reduzia-se ao conjunto de normas em vigor e, por óbvio, tinha uma concepção eminentemente formal e avalorativa. Interessante perceber que esse foi o grande problema do modelo positivista, visto que, diante do caso concreto não havia a possibilidade de qualquer correção argumentativa do direito. O ambiente europeu devastado pelos efeitos da Segunda Guerra Mundial e vivendo os dissabores econômicos e sociais dos governos totalitários até então vigentes, em especial o regime nazista alemão e o fascismo italiano, contribuiu para o abandono do paradigma positivista, visto que a concepção de justiça formal não mais era capaz de fornecer mecanismos de conformação do Direito à realidade social. A respeito da decadência do positivismo, escreveu Barroso: Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO, op. Cit.). É nesse cenário que ganham importância as teorias pós-positivistas e se inicia o caminho da constitucionalização do Direito em boa parte dos países da Europa Ocidental, inspirados pela experiência dos Estados Unidos. Às Constituições é atribuído o autêntico papel de norma jurídica com força capaz de limitar o exercício do Poder Legislativo, podendo justificar a invalidação de leis. São documentos repletos de normas de alto teor axiológico que reaproximaram o Direito e a Moral e, por consequência, criam ou fortalecem a jurisdição constitucional cuja função precípua é a de preservar os valores e mandamentos constitucionais. Segundo Barroso (2007, p. 10) “a fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados em relação ao processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário”. Nesse contexto, cresceu a importância política do Poder Judici-
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positivação, do reconhecimento expresso pela estrutura do poder (BARROSO, 2009).
ário, como esclarece Daniel Sarmento: Uma interpretação extensiva e abrangente das normas constitucionais pelo Poder Judiciário deu origem ao fenômeno de constitucionalização da ordem jurídica, que ampliou a influência das constituições sobre todo o ordenamento, levando à adoção de novas leituras de normas e institutos nos mais variados ramos do Direito. Como boa parcela das normas mais relevantes destas constituições caracteriza-se pela abertura e indeterminação semânticas - são, em grande parte, princípios e não regras - a sua aplicação direta pelo Poder Judiciário importou na adoção de novas técnicas e estilos hermenêuticos, ao lado da tradicional subsunção. [...] E a busca de legitimidade para estas decisões, no marco de sociedades plurais e complexas, impulsionou o desenvolvimento de diversas teorias da argumentação jurídica, que incorporaram ao Direito elementos que o positivismo clássico costumava desprezar, como considerações de natureza moral, ou relacionadas ao campo empírico subjacente às normas. [...] Com frequência cada vez maior, questões polêmicas e relevantes para a sociedade passaram a ser decididas por magistrados, e sobretudo por cortes constitucionais [...] o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo (SARMENTO, D., 2009). A partir da segunda metade do Século XX essa trajetória foi reproduzida por diversos países, inclusive pelo Brasil que, a partir da década de 80 e com nuances próprias, começa a desenvolver o processo de constitucionalização do nosso Direito, consolidando-se sob a vigência da Constituição de 1988 que marcou historicamente o novo Direito Constitucional Brasileiro, como citado anteriormente. II.I. A Teoria Crítica do Direito Antes de prosseguirmos, vale algumas considerações, mesmo que breves, a respeito da teoria crítica do direito que tem contribuído para a construção, sempre inacabada, de uma nova forma de pensar o Direito. A expressão “teoria crítica do direito” surgiu como legado da Escola de Frankfurt, (Alemanha), quando na década de 1960 eram desenvolvidas reflexões críticas acerca dos problemas do capitalismo moderno, lançando como base da teoria crítica o questionamento sobre o postulado positivista da separação entre ciência e ética, como esclarece Luís Roberto Barroso: Sob a designação genérica de teoria crítica do direito, abriga-se um conjunto de ideias que questionam o saber jurídico tradicional na maior parte de suas premissas: cientificidade, objetividade, neutralidade, estabilidade, completude. Fundase na constatação de que o Direito não lida com fenômenos que se ordenem independentemente da atuação do sujeito, seja o legislador, seja o juiz ou o jurista. Esse engajamento entre sujeito e objeto compromete a pretensão científica do Direito e, como consequência, seu ideal de objetividade, de um conhecimento que não seja contaminado por opiniões, preferências, interesses e preconceitos. [...] Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissão de que o Direito possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir independentemente da bênção estatal, da
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Também nesse sentido, informa Luiz Fernando Coelho: A teoria crítica considera que as decisões judiciais não são neutras, no sentido da racionalidade positivista. O magistrado é portador de valores, crenças e preconceitos de toda ordem, conscientes ou não, herdeiro da tradição e de um passado teórico que interfere no ato decisório. Por isso opõe-lhe o princípio da politicidade das decisões judiciais (grifo do autor). O que se procura estabelecer com esse princípio é a diferença entre imparcialidade e neutralidade do juiz, submetendo-se à evidência de que, nas decisões judiciais, se o magistrado deve ser imparcial em relação aos interesses sub judice, ele não deve ser neutro em relação aos problemas que a aplicação das normas jurídicas soe suscitar no meio social (COELHO, 2011). No Brasil, a teoria crítica compartilhou desses mesmos fundamentos e prestou inquestionável contribuição científica, no entanto enfrentou um poderoso inimigo: “a ditadura militar e seu arsenal de violência institucional, censura e dissimulação” (BARROSO, op. Cit., p. 318). Descrevendo as circunstâncias daquele desastroso período, continua o autor: “Além da hegemonia quase absoluta da dogmática convencional [...] A atitude filosófica em relação à ordem jurídica era afetada pela existência de uma legalidade paralela – dos atos institucionais e da segurança nacional [...] Não eram tempos amenos para o pensamento de esquerda e para o questionamento das estruturas do poder político e de opressão social” (BARROSO, 2009). Não obstante, o tempo das trevas passou. As reflexões doutrinárias gozam de liberdade para apontar novos caminhos para o pensamento jurídico, inspirando o aplicador da lei ao uso do razoável e da sua capacidade de fazer a justiça no caso concreto. II.II. Os Mecanismos de Controle do Direito Constitucionalizado no Brasil Direito constitucionalizado é aquele que obriga uma leitura de todo o ordenamento jurídico à luz dos preceitos constitucionais. A Constituição, Lei Maior do Estado, ocupa o centro do ordenamento, irradiando seus valores e princípios que impregnam todo o sistema normativo de forma vinculante. Em suma, a Constituição é um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito, de modo a realizar os valores nela consagrados. Dessa maneira, a constitucionalização repercute no modo de agir dos poderes estatais, impondo deveres ao legislador e ao administrador para que observem os limites e realizem os fins ditados pela Constituição. Ao Judiciário incumbe a preservação formal e axiológica da Carta Magna. No Brasil, essa preservação pode ser realizada de diferentes maneiras, como ensina Barroso: A constitucionalização, no entanto, é obra precípua da jurisdição constitucional, que no Brasil pode ser exercida, difusamente, por juízes e tribunais, e concentradamente pelo Supremo Tribunal Federal, quando o paradigma for a Constituição Federal. Esta realização concreta da supremacia formal e axiológica da Constituição envolve diferentes técnicas e possibilidades interpretativas, que incluem: a) o reconhecimento da revogação das normas infraconstitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional),
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quando com ela incompatíveis; b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis; c) a declaração da inconstitucionalidade por omissão, com a consequente convocação à atuação do legislador; d) a interpretação conforme a Constituição, que pode significar: (i) a leitura da norma infraconstitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes; (ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possível da norma - geralmente a mais óbvia - e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição (BARROSO, 2006). Em que pese a relevância das diversas técnicas de controle de constitucionalidade, por força do objeto do presente texto, consistente na reflexão a cerca da legitimidade do casamento civil homoafetivo, interessa-nos discorrer, mesmo que brevemente, sobre a interpretação conforme a Constituição, por ter sido essa a técnica utilizada pelo STF quando decidiu pela equiparação da união dos casais homossexuais à união estável constituída entre um homem e uma mulher. A interpretação conforme a Constituição cuida da escolha, dentre as possíveis, de uma linha de interpretação de uma norma legal que deve ser seguida por se revelar compatível com a Lei Maior. Dessa maneira, o Tribunal preserva o dispositivo impugnado e especifica as interpretações condizentes com o conteúdo normativo da Constituição, com exclusão expressa de outras possibilidades interpretativas, reputadas inconstitucionais. Didaticamente, o processo de interpretação conforme a Constituição comporta a decomposição do processo nos seguintes elementos: 1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita. 2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. 3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4) Por via de sequência, a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal (BARROSO, 2009). Em síntese, aplicando a interpretação conforme a Constituição, o Tribunal declara constitucional a norma questionada com a interpretação que a compatibiliza com a Constituição Federal, sem reduzir o conteúdo do texto legal. Transitada em julgado, a decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, conforme previsto no art. 28 da Lei 9.868/99, que dispõe sobre o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o STF.
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III. O ATUAL AMPARO NORMATIVO DOS CASAIS HOMOAFETIVOS QUE PRETENDEM SE CASAR O ordenamento jurídico brasileiro não contempla qualquer regramento explícito acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo. “O fato é que, em algum momento da história humana, foi estabelecido que somente fosse possível haver uma relação carnal e de afetividade entre um homem e uma mulher” (FARO e JARDIM, 2013, p.114). Vias de consequência, até pouco tempo atrás, à vida em comum dos casais homoafetivos nem mesmo era conferido o caráter de entidade familiar. Não obstante, na medida em que os homossexuais foram assumindo publicamente os laços de uma convivência duradoura e contínua e, por consequência, gerando fatos juridicamente relevantes e, diante da ausência de disciplina própria, cada vez mais o judiciário foi sendo chamado a resolver questões das mais diversas ordens, a exemplo da adoção, de direitos sucessórios e previdenciários. No entanto, não foram raros os casos em que os tribunais, Brasil a fora, ora proviam ora negavam os petitórios. Essa situação perdurou por muitos anos, até que, em maio de 2011, a Suprema Corte brasileira, em julgamento conjunto da ADI 4277/RS e da ADPF 132/RJ, asseverou pela interpretação conforme a Constituição do art. 1723 do Código Civil de 20023, passando a reconhecer a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como uma modalidade familiar a ser tutelada pelo Direito, nos moldes da união estável heterossexual, consagrada no art. 226, parágrafo 3º, da Constituição da República4. Essa decisão representou uma importante quebra de paradigmas e um avanço considerável para o nosso Direito das Famílias. No entanto, os casais homoafetivos continuaram enfrentando dificuldades nos cartórios brasileiros para formalizar a união estável ou convertê-la em casamento. Diante do impasse, em 14 de maio de 2013, o CNJ, em sessão plenária, aprovou a Resolução nº 175 que proíbe as autoridades competentes de se recusarem a habilitar, celebrar casamento civil homoafetivo ou de converter união estável em casamento. Com a nova norma em vigor, havendo descumprimento por parte de algum cartório, o casal interessado pode levar ao conhecimento do respectivo juiz corregedor a fim de que determine as medidas cabíveis. O CNJ fundamentou sua decisão no acórdão prolatado em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, pelo qual o STF reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas homoafetivas; bem como no julgamento do Recurso Especial 1.183.378/RS, pelo qual o Superior Tribunal de Justiça - STJ decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo. O tema da Resolução foi proposto pelo então presidente do CNJ, Ministro Joaquim Barbosa, sob o argumento de ser um contrassenso as situações em que alguns cartórios não vinham cumprindo a decisão do STF pelo reconhecimento da união homoafetiva. Na ocasião, dentre a totalidade dos entes federativos, apenas o Distrito Federal e mais doze Estados brasileiros5 expediram atos regulamentares orientando os cartórios na realização do casamento direto ou por conversão da união estável, e nos demais a decisão continuava a critério do juiz corregedor do registro civil de cada comarca. Frente a esse impasse, o proponente da Resolução 175 declarou que com a edição de tal normativo o CNJ estaria removendo obstáculos administrativos à efetivação de uma decisão tomada pelo Supremo, que é vinculante para todos. Destarte, o casamento civil homoafetivo deve ser realizado nos moldes do Código Civil de 2002, conferindo aos consortes todos os efeitos produzidos pelo instituto do casamento, pelo menos até que o STF se pronuncie sobre a constitucionalidade da Resolução 175 do
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pessoas que estão tendo os seus direitos lesionados. Volto a citar uma passagem [...], a meu ver, muito expressiva do jusfilósofo e constitucionalista Robert Alexy, quando diz que o parlamento representa o cidadão politicamente, o Tribunal Constitucional o representa argumentativamente. (fl. 141).
CNJ, que é questionada em sede da ADI 4966 ajuizada pelo Partido Social Cristão – PSC. IV. SÍNTESE DOS DEBATES A CERCA DO RECONHECIMENTO JURÍDICO DA UNIÃO ESTÁVEL E DO CASAMENTO HOMOAFETIVO. Com efeito, a provação da Resolução 175/13 foi consectário do efeito vinculante da decisão proferida pelo STF na ADPF 132 e na ADI 4277 pelo reconhecimento da união estável homoafetiva. A existência dessa decisão instou a atuação do CNJ para disciplinar nacionalmente a questão, afim de que compreensões regionalizadas dos serviços cartorários infirmassem o passo já dado pelo STF no sentido de superar o tratamento discriminatório dos homossexuais. Por isso a conveniência de apreciarmos alguns fundamentos que sustentaram os votos quando do julgamento das ações supracitadas, de forma a subsidiar a reflexão sobre a legitimidade do casamento civil homoafetivo no Brasil. O acórdão do julgamento das ações foi unânime sendo que, na totalidade dos votos, uns mais outros menos intensamente, os Ministros recorreram a argumentos relacionados com a evolução do conceito de família na contemporaneidade, bem como à carga axiológica das normas constitucionais, especialmente intensificada pela primazia dos direitos fundamentais. Em suma, os princípios da igualdade, da liberdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana foram a retórica da votação, merecendo destaque alguns trechos pela consonância com o ambiente pós-positivista e com as diretrizes do neoconstitucionalismo abordados anteriormente no presente texto. Sobre a evolução do conceito de família e a ausência de norma expressa voltada à proteção das relações homoafetivas, manifestou-se o Ministro Ricardo Lewandowski: Com efeito, a ninguém é dado ignorar – ouso dizer - que estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes. (fl. 110) Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional.
[...] entendo existirem fundamentos jurídicos suficientes e expressos que autorizam o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo [...] como decorrência de direitos de minorias, de direitos fundamentais básicos em nossa Constituição, do direito fundamental à liberdade de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo e da garantia de não discriminação dessa liberdade de opção (art. 5º, XLI, CF) – dentre outros [...], os quais exigem um correspondente dever de proteção, por meio de um modelo de proteção institucional que até hoje não foi regulamentado pelo Congresso. (fl. 194). Destaco que a decisão do Supremo não significa óbice à atuação do Poder Legislativo. Pelo contrário, a nossa decisão deve ser entendida como um imperativo de regulação da união homoafetiva, como decorrência da necessidade de concretização de um dever de proteção de direitos fundamentais relacionados a essa relação jurídica. Trata-se de um estímulo institucional para que, de fato, as mais diversas situações jurídicas que envolvem a união entre pessoas do mesmo sexo venham a ser disciplinadas. (fl. 196). [...]é dever de proteção do Estado e, ultima ratio, é dever da Corte Constitucional e da jurisdição constitucional dar essa proteção se, de alguma forma, ela não foi engendrada ou concebida pelo órgão competente. (fl.198). Ciente da existência de opiniões contrárias ao reconhecimento da família homoafetiva e, ainda, das alegações de um suposto excesso de ativismo judicial por parte do STF, manifestou-se o Ministro Marco Aurélio: A corrente contrária a tal reconhecimento argumenta que o § 3º do artigo 226 da Carta da República remete tão somente à união estável entre homem e mulher, o que se poderia entender como silêncio eloquente do constituinte no tocante à união entre pessoas de mesmo sexo. Além disso, o artigo 1.723 do Código Civil de 2002 apenas repetiria a redação do texto constitucional, sem fazer referência à união homoafetiva, a revelar a dupla omissão, o que afastaria do âmbito de incidência da norma a união de pessoas de sexo igual.
O que se pretende [...], não é, à evidência, substituir a vontade do constituinte por outra arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência de um vácuo normativo, procurar reger uma realidade social superveniente a essa vontade, ainda que de forma provisória, ou seja, até que o Parlamento lhe dê o adequado tratamento legislativo. (fl. 111). Destacando a importância da atuação do STF frente à proteção dos valores constitucionais, o Ministro Gilmar Mendes enfatizou o entendimento de que a Corte não estaria exorbitando quando foi chamada a decidir um caso que diz respeito aos direitos fundamentais: [...]de fato, a nossa omissão representaria um agravamento no quadro de desproteção de minorias ou de desproteção de
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Daí a dificuldade hermenêutica: seria possível incluir nesse regime uma situação que não foi originalmente prevista pelo legislador ao estabelecer a premissa para a consequência jurídica? Não haveria transbordamento dos limites da atividade jurisdicional? A resposta à última questão, adianto, é desenganadamente negativa. (fl. 202). A partir de 1988, ocorreu a ressignificação do ordenamento jurídico. Como é cediço, compete aos intérpretes efetuar a filtragem constitucional dos institutos previstos na legislação infraconstitucional. Esse fenômeno denominado “constitucionalização do Direito”, na expressão de uso mais corriqueiro, revela que não podemos nos ater ao dogmatismo ultrapassado, que então prevalecia no Direito Civil. (fl. 209).
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[...] ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie. (fl. 212).
legislador não tenha querido fazer, mas que a Suprema Corte acenou que está disposta a fazê-lo. Isso me fez rememorar [...] Fernando Pessoa, quando afirma que há momentos em que devemos fazer a travessia. É hora da travessia, e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para a eternidade, à margem de nós mesmos. Os homoafetivos vieram aqui pleitear uma equiparação, pleitear que eles fossem reconhecidos à luz da comunhão que têm, da unidade, da identidade e, acima de tudo, porque eles querem erigir um projeto de vida. Mas a Suprema Corte concederá aos homoafetivos mais do que um projeto de vida [...] nós daremos a esse segmento de nobres brasileiros um projeto de felicidade. (fl. 85).
No mais, ressalto o caráter tipicamente contra majoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República [...] (fl. 213). Enfatizando o papel do Direito Constitucional de proteger todos contra qualquer forma de preconceito, a Ministra Carmem Lúcia destacou a função precípua do STF na tarefa de interpretar e preservar as normas e valores da Constituição: Sistema que é, a Constituição haverá de ser interpretada como um conjunto harmônico de normas, no qual se põe uma finalidade voltada à concretização de valores nela adotados como princípios. Ensina José Afonso da Silva que “a tarefa da hermenêutica constitucional consiste em desvendar o sentido mais profundo da Constituição pela captação de seu significado interno, da relação de suas partes entre si e, mais latamente, de sua relação com o espírito da época – ou seja, a compreensão histórica de seu conteúdo, sua compreensão gramatical na sua relação com a linguagem e sua compreensão espiritual na sua relação com a visão total da época. Em outras palavras, o sentido da Constituição se alcançará pela aplicação de três formas de hermenêutica: a) a hermenêutica das palavras; b) a hermenêutica do espírito; c) a hermenêutica do sentido – segundo Richard Palmer – que prefiro chamar de ‘hermenêutica contextual”[...] Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva, a dizer, de pessoas do mesmo sexo seja, constitucionalmente, intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito (fl. 92). É ainda o Professor José Afonso da Silva que leciona: “o intérprete da Constituição tem que partir da idéia (sic) de que ela é um texto que tem algo a dizer-nos que ainda ignoramos. É função da interpretação desvendar o sentido do texto constitucional; a interpretação é, assim, uma maneira pela qual o significado mais profundo do texto é revelado, para além mesmo do seu conteúdo material” (fl. 95). Por fim, com o objetivo de ilustrar o esmero de algumas argumentações desenvolvidas, vale a transcrição de um trecho do voto do Ministro Luiz Fux: [...] sempre me encantou a máxima ub societas ibi ius, “onde há sociedade há o Direito”. E, se a sociedade evoluiu, o Direito evolui, e a Suprema Corte evolui junto, porque ela é a intérprete maior desse Direito que transcende aos limites intersubjetivos de um litígio entre partes. De sorte que, esse momento, que não deixa de ser de ousadia judicial- mas a vida é uma ousadia, ou, então, ela não é nada -, é o momento de uma travessia. A travessia que, talvez, o
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Em tese, não haveria como se questionar a legitimidade da decisão proferida pelo STF. No entanto, como alhures mencionado, não foram raros os casos de recusa ao acatamento da decisão. Mesmo antes do STF proferir o acórdão do julgamento já corriam manifestações contrárias aos pedidos formulados pelos autores da ADPF 132 e da ADI 4277, a exemplo de artigo publicado por Lenio Luiz Streck: O que preocupa neste tipo de pedido de tutela judicial é que ele traz consigo – de modo subterrâneo – uma idéia que tem ganhado terreno e aceitação por parte da dogmática jurídica nacional: a necessidade de se recorrer a “bons ativismos judiciais” para resolver questões que a sociedade em constante evolução acarreta e que os meios políticos de decisão (mormente o legislativo) não conseguem acompanhar. De plano, salta aos olhos a seguinte questão: a efetivação de uma tal medida importa(ria) transformar o Tribunal em um órgão com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de mutação constitucional (Verfassungswandlung) que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de alteração formal da Constituição (Verfassungsänderung), reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional (STRECK, 2009). Nesse mesmo sentido pronunciou-se Ives Gandra Martins, em publicação posterior à divulgação do referido acordão: “Apesar de ser esta a posição atual do Pretório Excelso, inúmeros juristas têm tecido considerações de natureza jurídico-constitucional discordando de tal interpretação”. Continua ou autor: [...] o texto constitucional contém rigorosamente o que deveria conter, e o que o Supremo Tribunal Federal fez foi acrescentar ao texto situação não prevista nem pelo constituinte, nem pelo legislador, transformando o Pretório Excelso em autêntico constituinte derivado, ou seja, acrescentando disposição constitucional que o constituinte originário não produziu. Em outras palavras, sem o processo das duas votações nas duas Casas, com 3/5 de todos os segmentos do povo, a Suprema Corte, criou norma constitucional inexistente, acrescentando situações e palavras ao texto supremo, que, [...] jamais foi intenção do constituinte acrescentar (MARTINS, 2011). Sucintamente, esse foi o eixo das discussões ocorridas nas mais variadas esferas, desde as camadas politicas à comunidade acadêmica, mesmo porque as relações homoafetivas já vinham sendo reconhecidas dia após dia pelos tribunais de primeiro grau que, no caso concreto, concediam aos parceiros homossexuais alguns direitos decorrentes da convivência pública, contínua e duradoura. A razão dos debates opositores teve como destaque o receio ao excesso de
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de ADI “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. Nesse mesmo sentido, os efeitos das decisões em sede de ADPF.
ativismo judicial por parte do STF que, na grande maioria das opiniões, estaria promovendo “mutações constitucionais”. O tom dessa preocupação ganhou proporções muito maiores quando da aprovação da Resolução 175 pelo CNJ, pois agora, não mais se discute o reconhecimento da união estável homoafetiva e sim a obrigatoriedade da realização do casamento civil quando requerido pelos consortes. O CNJ, além de inovar a decisão do STF que tão somente reconheceu a união estável homoafetiva não teria competência normativa para obrigar a realização do casamento direto. São essas as premissas básicas das vozes contrárias à Resolução 175, que foram reforçadas pelo Partido Social Cristão nos fundamentos da ADI 4966/13, na qual requer que o STF declare a inconstitucionalidade da resolução do CNJ. Argumenta o Partido que, ao editar a Resolução 175, o CNJ invadiu competência constitucional para votação e discussão da matéria e que não há qualquer fundamento jurídico capaz de reconhecer como possível que o órgão possa, mediante resoluções, substituir-se à vontade geral do Poder Legislativo. Afirma ainda que, no julgamento da ADPF 132, o Supremo apenas reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não se pronunciando sobre o casamento civil, por isso o CNJ estaria inovando e dilatando o objeto da ADPF. Paralelamente, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo 871/13, de autoria do Deputado Arolde de Oliveira, do Partido Social Democrático-PSD, que visa a sustação dos efeitos da Resolução 175. Alega o autor que, ”independentemente da análise de mérito, a resolução extrapola as competências do CNJ e usurpa a competência do Congresso Nacional ao ir além do poder de regulamentar, não apenas esclarecendo uma determinada lei, mas normatizando como se lei fosse”6. Por outra banda, há os que aprovam a medida do CNJ, a exemplo do comentário de Octávio G. de Almeida Bueno: [...] a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça aponta, em seus “considerandos”, como fundamentos das decisões contidas em seu texto, decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Em relação às decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal, devem ser feitas duas análises concomitantes: o conteúdo dessas decisões e os efeitos dessas decisões. Sobre o seu conteúdo, tratam da inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo. É verdade que as decisões não dispuseram, assim, sobre o casamento civil. Mas os fundamentos dessas decisões, em razão dos quais se proferiu decisão aplicável diretamente às uniões homoafetivas, podem ser aplicadas, igualmente, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não há motivos para se concluir o contrário. [...] Inexiste na ordem constitucional brasileira vigente ou mesmo na doutrina nacional qualquer determinação ou autorização de aplicação desigual de direitos em razão de orientação sexual. E mais: qualquer previsão infraconstitucional nesse sentido seria, certamente, tida como inconstitucional. Assim, superada está qualquer possibilidade de argumentação de não aplicação do conteúdo dessas decisões ao casamento civil.
É verdade que os denominados Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais não integram a Administração Direta ou Indireta. Nos termos do artigo 236 da Constituição, os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. São, dessa forma, particulares em colaboração com o Poder Público, por delegação [...]. Essa constatação não exclui, contudo, a submissão desses profissionais do Direito à decisões proferidas pelo Judiciário, em especial às dos Tribunais Superiores, às quais a Constituição atribui os efeitos acima mencionados (BUENO, 2013).
E é nesta esteira que não se sustenta mais a alegação que apenas lei formal poderia inovar no ordenamento quando há um fundamento de validade constitucional. Desatualizada, por isso, é a doutrina da legalidade estrita que sustenta ter sido a resolução 175 do CNJ usurpadora de função legislativa (SARMENTO, L., 2013). O Partido Popular Socialista – PPS, entendendo pela procedência da Resolução 175, ajuizou perante o STF um requerimento para ingressar na qualidade de amicus curiae na ADI 4966 proposta pelo Partido Social Cristão. Defende a legenda que seria totalmente ilógico supor que, em se tratando de um casal heteroafetivo o casamento civil direto fosse permitido e, em uma incompreensível discriminação, não fosse assegurado o mesmo direito aos homoafetivos. Para o partido, essa ideia se choca com “as mais comezinhas noções de isonomia”. Pretendeu-se até aqui, na medida do necessário, lograr algumas argumentações dentre a vastidão encontrada, para que possamos avançar na reflexão sobre a legitimidade do casamento civil homoafetivo no Brasil, do que passamos a cuidar a seguir. Mas, antes disso, há que se recordar um expressivo magistério do jusfilósofo e constitucionalista Robert Alexy: É possível conciliar muita coisa com o texto das disposições constitucionais, mas não tudo. O fato de o texto requerer ou excluir uma determinada interpretação é um argumento muito forte a favor ou contra essa interpretação. [...] Mas afirmar que o argumento semântico é um argumento muito forte não significa que ele sempre prevaleça (ALEXY, tradução de Virgílio Afonso da Silva, 2006).
Sobre a sua forma, deve-se observar [...]. Nos termos do artigo 102, § 2º, da Constituição, as decisões proferidas em sede
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E ainda, como destacou Leonardo Sarmento: [...] trago os ensinamentos do ex-ministro Carlos Ayres Britto, que proclama que as resoluções do CNJ são como as leis um dos atos normativos primários possíveis, como o são as resoluções do Senado Federal, as MPs, decreto-regulamento autônomo e regimentos internos dos tribunais. Todos esses atos normativos buscam seus fundamentos de validade na CRFB sem a necessidade de interposta espécie legislativa diversa, podendo inovar no ordenamento jurídico a partir de um fundamento de validade constitucional. Foi exatamente o que aconteceu com a Resolução 7 do CNJ, que buscou seu fundamento de validade nos princípios da Eficiência, da Moralidade Administrativa e da Impessoalidade.
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Essa é uma das propostas para um Direito sempre novo.
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V. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma vez atentos aos propósitos das ideias pós-positivistas e às diretrizes do Direito Constitucionalizado, não se mostra nada temerosa a conclusão pela legitimidade do casamento homoafetivo. De fato, o Estado Democrático de Direito, no seu mais puro sentido e desprovido de qualquer escusa intenção, impõe a todos a rejeição de toda forma discriminatória, seja ligada à origem, raça, sexo, cor ou idade, como preceitua a nossa Constituição da República. Não é por menos que a Constituição de 1988 marcou tão acentuadamente a história do país, visto que, de lá adiante, abre-se a cada dia tão importante espaço político no qual é possível o livre debate de novos rumos. É certo que há muito a se construir, mas também é inquestionável o quanto já se trilhou. Em que pese os posicionamentos ainda presentes na cultura jurídica positivista, as teorias neoconstitucionalistas buscam dar lugar a discussões de métodos argumentativos que permitam o encontro racional da melhor resposta do Direito para os casos difíceis, como é a questão do preconceito à homosexualidade. Na esteira dos tribunais que já vinham tutelando certos direitos, o reconhecimento da família homoafetiva pelo STF significou um importante avanço para o Direito das Famílias que ainda carece de absoluta consonância com os valores constitucionais, especialmente com o princípio da não discriminação. Como bem destacado por alguns Ministros ao votaram a ADPF 132 e a ADI 4277, o caminho está aberto para o constituinte derivado e para o legislador ordinário corrigirem a literalidade das normas, de forma a soterrar qualquer discussão acerca da legalidade do casamento homoafetivo. Quanto à Resolução 175 do CNJ que obriga os cartórios a realizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, do ponto de vista neoconstitucional, talvez não seja exagero concluirmos pela incipiência da discussão sobre a sua legalidade. A garantia visada pelo CNJ, além de não interferir ou violar direito de terceiro, é causa indiscutivelmente mais relevante que o discernimento da competência normativa de um ou de outro órgão. Essa questão é meramente político formal, não devendo prevalecer em detrimento do direito de igualdade das pessoas. Com efeito, não é plausível concluirmos que a Constituição tenha primado pelos direitos fundamentais, dentre eles a igualdade de tratamento perante a lei, para depois querer ou permitir a exclusão de alguns cidadãos por mero capricho político. A discriminação é repudiada pelo sistema constitucional. Isso já seria argumento suficiente para o desapego à literalidade da lei, mas de qualquer maneira, a visão contemporânea de democracia e o novo constitucionalismo colocaram à disposição do cidadão a jurisdição constitucional para por fim à indefinição de resposta pelos enunciados normativos. Desde que respaldado pela capacidade institucional de manejar argumentos que se reputem valiosos e válidos para a correção do direito positivado, o ativismo do Tribunal Constitucional demonstra-se um processo decisório importante diante da insuficiência do legislador na regulação dos direitos. Inclusive, essa possibilidade é uma das principais marcas do novo Direito Constitucional. Para o neoconstitucionalismo, não é válido apenas aquilo que se possa extrair do que já está posto, como postulavam algumas correntes positivistas. A argumentação discursiva empregada na resolução das questões práticas a serem equacionadas é um importante instrumento capaz de conferir eficácia jurídica aos demais elementos normativos, a exemplo dos valores constitucionais, principalmente quando a matéria envolver violação a direitos fundamentais. A exigência mínima, segundo consenso na doutrina consultada, é que as pretensões políticas respeitem o direito que cada
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cidadão ostenta de somente se submeter a decisões fundamentadas em argumentos compatíveis com sua igual dignidade, sendo esse um dos principais desafios do neoconstitucionalismo. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ______. Ponderação, jurisdição constitucional e representação popular. Tradução de Thomas da Rosa de Bustamante. In: NETO, Cláudio Pereira de Souza; SARMENTO, Daniel (org.) A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Jures. 2007, p. 295-304. BALDOMÁ, Nicolás Sales López. CNJ e casamento homoafetivo: os fins justificam os meios?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3605, 15 maio 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24444>. Acesso em: 8 mar. 2015. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista Quaestio Iures, v. 2, n. 01, Rio de Janeiro, 2006, p. 1-48. ______. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf. Acesso em: 12 nov. 2014. BARROSO, Luís Roberto (Org.) Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In. A nova interpretação constitucional. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BRASIL. Lei 9.868 de 10 de novembro de 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm. Acesso em: 5 mai. 2015. BUENO, Octávio Ginez de Almeida. Casamento homoafetivo e Resolução do CNJ: efetivação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3612, 22 maio 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24504>. Acesso em: 9 mai. 2015. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ática: São Paulo, 2000. COELHO, Luiz Fernando. Fumaça do bom direito: ensaios de filosofia e teoria do direito. Curitiba: Bonijures, 2011. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2009. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. JUNIOR, Assis Moreira Silva. Casamento civil homoafetivo e (in)segurança jurídica. In: Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. n. 428, junho 2013, p. 9-32. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.6, n.24, jun./jul.2004, p. 8. LUNARDI, Soraya Gasparetto; DIMOULIS, Dimitri. Interpretação conforme a Constituição e declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto: problemas da aplicação judicial do direito constitucional. In: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte: Fórum, n. 29, mai./ago. 2014, p. 403-425. FARO, Julio Pinheiro; JARDIM, Lícia Bonesi. Uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo são como casamentos, com outro nome. In: Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. n. 427, maio 2013, p. 111-139. FRANCISCO, José Carlos. Ambiente contemporâneo, positivismo e juiz ordinário. In:
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NOTAS DE FIM Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientadora Professora Valéria Edith Carvalho de Oliveira. 3 Art. 1723, CC/2002: É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 4 Art. 226, §3º, CR/88: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 5 Estados brasileiros nos quais foram expedidos atos regulamentares orientando os cartórios na realização do casamento direto ou por conversão da união estável, em conformidade com a decisão do STF no julgamento das ADPF132 e ADI4277: Alagoas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Paraíba, Paraná, Piauí, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe, Mato Grosso do Sul e Rondônia. 6 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias 1 2
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MEDIAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE RESOLUÇÂO DE CONFLITOS FAMILIARES DECORRENTES DA PRÁTICA DE ALIENAÇÃO PARENTAL Marianna Teobaldo Fernandes1 Valéria Edith Carvalho de Oiliveira2 Resumo: Em virtude da importância e atualidade dos temas Alienação Parental e Mediação Familiar, o presente artigo tem como objetivo expor acerca destes dois institutos, apresentando seus conceitos e características. De forma sucinta, tem-se que a Síndrome da Alienação Parental representa um distúrbio decorrente da manipulação psicológica cometida por um dos genitores em seu filho, de modo a fazer com que este tenha ódio ou medo do outro genitor, de forma injustificada. Nota-se, assim, que o núcleo familiar se desestruturou, afetando o desenvolvimento sadio da criança e/ou adolescente. A Lei 12.318/2010, tem o propósito de inibir a prática de Alienação Parental, mas não prevê o uso da Mediação como forma de resolução de conflitos que envolvam a SAP. Assim sendo, o presente artigo tratará da ocorrência da Síndrome da Alienação Parental, bem como a possibilidade de a Mediação ser usada como uma alternativa para prevenir e combater o conflito de forma mais benéfica para todos os envolvidos. Palavras chaves: Direito de Família. Alienação Parental. Mediação Familiar. Abstract: Because of the importance and relevance of the subjects Parental Alienation and Family Mediation, this article aims to expose about these two institutes presented their concepts and features. Briefly, it has the Parental Alienation Syndrome is a disorder resulting from psychological manipulation committed by a parent in your child so as to cause it to have hate or fear the other parent, unjustifiably. Note, therefore, that the family unit is disrupted, affecting the child’s healthy development and / or adolescent. The Law 12,318 / 2010, is intended to inhibit the practice of Parental Alienation, but does not provide for the use of mediation as a means of resolving conflicts involving SAP. Therefore, this article will deal with the occurrence of Parental Alienation Syndrome, as well as the possibility of mediation be used as an alternative to prevent and combat the most beneficial form of conflict for all involved. Key Words: Family Law. Parental alienation. Family Mediation. Sumário: I. Introdução; II. Alienação Parental e seus efeitos no âmbito familiar; II.I. Origem da alienação parental; II.II. Alienação parental e a Síndrome de Alienação Parental; II.III Critérios de identificação da Alienação Parental; III. Tratamento legislativo da Alienação Parental no Direito Brasileiro: a Lei 12.328/10; III.I. Veto presidencial; IV. A mediação como solução de conflitos familiares; IV.I. Contexto histórico; IV.II. Conceito de mediação e elementos necessários; IV.III. Mediação e a Alienação Parental; V. Considerações finais; Referências
I. INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu artigo 226, que a família, como base da sociedade, tem especial proteção do Estado e, ainda, o artigo 227 consagra os direitos de crianças e adolescentes como direitos fundamentais e de proteção integral. A Constituição Federal assegura também que o Estado deve garantir às crianças e aos adolescentes direitos fundamentais específicos, quais sejam: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ainda, ela trouxe tratamento isonômico para homem e a mulher, para que estes vivam em igualdade de direitos e deveres. Em conformidade com a Constituição Federal, o Código Civil de 2002 dispõe, em seu artigo 1.511, que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Um casamento é construído, a princípio, no sentido da permanência, contudo, a liberdade de casar se choca com a inversão dessa mesma liberdade, a de não permanecer casado. O Estado protege a entidade familiar para que não ocorra sua dissolução, mas quando essa situação é inevitável, o Estado passa, então, a proteger com especial cuidado os interesses dos
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menores envolvidos. Os pais têm o dever de dar amor, carinho, proteção, orientação, bem como dar condições que propiciem segurança física e psicológica para o desenvolvimento da criança e valores para que possam crescer dentro dos princípios da ética e do caráter. Ocorre que, muitas vezes, com a dissolução do casamento, os filhos são usados como “instrumentos” por um dos pais para atacar o ex-cônjuge, prática essa denominada de Alienação Parental. Desta feita, surge em 2010 a Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/10), que tem como objetivo reforçar o direito da criança e adolescente protegido constitucionalmente. Sob este prisma, necessário se faz um instrumento de transformação de condutas, ou seja, a mediação. Nesse contexto, a mediação familiar inserida no âmbito do Direito de Família - através da figura dos mediadores – consistiria em uma forma preventiva, minimizadora e transformadora de conflitos advindos da prática de alienação parental. Este instituto funcionará como um minimizador de conflitos entre os pais, recém-separados, mas, principalmente, trabalhará em prol da criança e do adolescente. II. ALIENAÇÃO PARENTAL E SEUS EFEITOS NO ÂMBITO FAMILIAR Diversos são os fatores que desencadeiam a dissolução do casamento, colocando, desta forma, fim à entidade familiar.
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Com o rompimento do vínculo afetivo, os envolvidos optam por buscar um responsável pelo fim do relacionamento. Não raras vezes nesta situação a inconformidade,, a mágoa ou outros sentimentos negativos que permeiam este momento , faz com que os filhos sejam trazidos para o centro do conflito por um dos genitores, ,ou até mesmo pelos dois, como um aliado para atingir o ex parceiro. O praticante desta conduta chamado alienador, passa à prática da alienação parental como uma forma de “vingança” contra o outro, criando e implantando falsas memórias na criança e no adolescente, o que trará sérias consequências psicológicas e que repercutirá futuramente nesta criança ou adolescente quando esta for adulta. II.I. Origem da Alienação Parental A origem da alienação parental está nas transformações ocorridas na família nas ultimas décadas. Atualmente a família tem como pilar fundamental o afeto e não um direito de propriedade. Estas modificações foram aliadas a uma participação mais ativa dos pais na vida dos filhos. Segundo Magalhães, nos anos 60, as mães resolveram aprimorar seus estudos e ingressar numa carreira profissional ao passo que os pais passaram a se envolver com a responsabilidade financeira e com os cuidados com as crianças. (MAGALHÃES, 2010) Nos anos 70, a Lei do Divórcio ocasionou uma avalanche de divórcios e em seguida a este fenômeno surgiu a guarda compartilhada, onde o melhor interesse da criança é prioridade. No entanto, até então era necessário o acordo dos pais para que a guarda compartilhada fosse aplicada. Desta forma, quando havia desentendimento entre os genitores, o conflito era levado a juízo onde era travada uma verdadeira guerra judicial para demonstrar quem era o mau genitor. Contudo, foi na década de 80 que os conflitos familiares tornaram-se mais complexos, pois após o rompimento conjugal, os pais também passaram a reivindicar a guarda dos filhos. No entanto, a ruptura conjugal gera no genitor detentor da guarda um sentimento de abandono, rejeição e traição, surgindo uma tendência vingativa muito grande, havendo casos de desvio do afeto das crianças para apenas um de seus genitores em detrimento do outro. Esse fenômeno foi identificado como Síndrome da Alienação Parental. A Síndrome da Alienação Parental foi definida, então, pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1987, por Richard Gardner; mais tarde, no ano de 2001, passou a ser difundida na Europa por F. Podevyn. A partir de então, para analisar a questão, o direito se uniu à psicologia, buscando desmistificar os fenômenos emocionais que ocorrem com os envolvidos no fim de um relacionamento. II.II. Alienação Parental e a Síndrome de Alienação Parental Com base nas ideias divulgadas por Podevyn, passou-se a compreender a síndrome da alienação parental como um processo que consiste na programação da criança para odiar o outro genitor, sem justificativa, expondo-o a uma verdadeira campanha de desmoralização. Comenta Maria Berenice Dias: O alienador, em sua maioria a mulher, monitora o tempo e o sentimento da criança, desencadeando verdadeira campanha para desmoralizar o outro. O filho é levado a afastar-se de quem o ama, o que gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo afetivo. Acaba também aceitando como verdadeiro tudo que lhe é informado. (DIAS, 2013) O alienador ao denegrir a imagem do outro, destruindo a relação deste com o filho, assume o controle total da situação. O outro tornase um invasor, um intruso, que deve ser mantido a distância.
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A Alienação Parental seria o afastamento do filho do outro genitor, e a Síndrome de Alienação Parental seria os sintomas e sequelas psicológicas e comportamentais causados nas vítimas do evento. Ensina Priscila Maria Pereira Corrêa da Fonseca: A síndrome de alienação parental não se confunde, portanto, com a mera alienação parental. Aquela geralmente é decorrente desta, ou seja, a alienação parental é o afastamento do filho de um dos genitores, provocado pelo outro, via de regra, o titular da custódia. A síndrome, por seu turno, diz respeito às sequelas emocionais e comportamentais de que vem a padecer a criança vítima daquele alijamento. Assim, enquanto a síndrome refere-se à conduta do filho que se recusa terminante e obstinadamente a ter contato com um dos progenitores e que já sofre as mazelas oriundas daquele rompimento, a alienação parental relaciona-se com o processo desencadeado pelo progenitor que intenta arredar o outro genitor da vida do filho. (FONSECA, 2009) A Síndrome da Alienação Parental decorre das dissoluções conjugais litigiosas e consiste numa forma de abuso psicológico praticado contra o filho, onde um genitor promove o afastamento deste do outro genitor. Nesse sentido, Gardner, em 1985, definiu a síndrome de alienação parental como: Um distúrbio que surge principalmente no contexto das disputas pela guarda e custódia das crianças. A sua primeira manifestação é uma campanha de difamação contra um dos genitores por parte da criança, campanha essa que não tem justificação. O fenômeno resulta da combinação da doutrinação sistemática (lavagem cerebral) e das próprias contribuições da criança dirigidas à difamação do progenitor objetivo dessa campanha. (GARDNER apud SILVA, 2010) O conceito legal da alienação parental, no Direito Brasileiro, está disposto no artigo 2º da Lei 12.318, de 2010, no qual é definida como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por qualquer pessoa para que esta repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Portanto, a alienação parental é o afastamento do filho de um dos genitores, provocado pelo outro, que em regra é o titular da guarda do menor. O genitor que promove o afastamento é denominado alienador ou alienante já o genitor que é afastado do convívio com o filho é denominado alienado.
II.III. Critérios de identificação da Alienação Parental A dissolução do casamento ou união estável, quando litigiosa, em regra, deixa mágoa e um sentimento de vingança nos ex-cônjuges, e é nesse meio que a alienação parental surge. Muitas vezes o ex-cônjuge sente que o filho é tudo que lhe restou e tenta de diversas maneiras afastar o outro genitor. O genitor alienador apresenta grande resistência para se submeter a avaliação de um especialista, para que não se descubra suas manipulações e falhas. Por isso, a alienação parental é uma forma de abuso moral sem visibilidade diante da dificuldade de constatação. No entanto, a lei da Alienação Parental em seu artigo 2º, parágrafo único, exemplifica alguns sintomas da síndrome. Por sua vez, Gardner apud Magalhães exemplificam alguns comportamentos do alienador, que quando ocorrem com frequência, são essenciais para identificação do genitor alienador e, por consequência, da alienação parental:
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(...) recusar-se a passar as chamadas telefônicas aos filhos; excluir o genitor alienado de exercer o direito de visitas; apresentar o novo cônjuge como sua nova mãe ou pai; interceptar cartas e presentes; desvalorizar e insultar o outro genitor; recusar informações sobre as atividades escolares, a saúde e os esportes dos filhos; criticar o novo cônjuge do outro genitor; impedir a visita do outro genitor; envolver pessoas próximas na lavagem cerebral de seus filhos; ameaçar e punir os filhos de se comunicarem com o outro genitor; culpar o outro genitor pelo mau comportamento dos filhos, dentre outras. (GARDNER apud MAGALHÃES, 2010) Percebe-se, assim, que o alienador cria uma relação controladora e obsessiva com o filho, na qual se coloca como o melhor progenitor. Importante destacar que a alienação parental é uma doença mental que precisa de identificação rápida e tratamento especial. Muitas vezes, a criança não consegue entender que está sendo manipulada e acaba acreditando naquilo que lhe é dito insistente e repetidamente. Com o tempo, nem mesmo o alienador consegue distinguir a diferença entre a mentiras ditas e a verdade. Os efeitos nas crianças vítimas da síndrome de alienação parental podem ser diversos, como: depressão crônica, transtornos de identidade,incapacidade de se adaptar aos ambientes sociais, desespero, comportamento agressivo, tendência ao isolamento,consumo de álcool e/ou drogas e algumas vezes suicídios ou outros transtornos psiquiátricos. Além disso, podem ocorrer também sentimentos incontroláveis de culpa quando a criança, já adulta, percebe que foi cúmplice inconsciente de uma grande injustiça ao genitor alienado. Afirmam Evandro Luiz Silva e Mário Resende: Assim é que, a ausência de um dos pais que conviveu com a criança pode gerar nela sintomas. Esses sintomas, como já foi dito anteriormente, surgem da sensação de abandono que estas crianças fantasiam sofrer e pela falta (da realidade) causada pelo ausente. São crianças que, por exemplo, costumavam ser ótimas alunas e repentinamente, ante a ausência do pai ou da mãe,apresentam uma queda no rendimento escolar, muitas vezes levando a reprovação; outras passam a ter insônia; outras ficam ansiosas, agressivas, deprimidas, enfim, marcadas por algum sofrimento. (SILVA; RESENDE, 2008) Desta forma, verifica-se que as consequências da prática de alienação parental, além de gravíssimas, deixam marcas permanentes nos envolvidos. III. TRATAMENTO LEGISLATIVO DA ALIENAÇÃO PARENTAL NO DIREITO BRASILEIRO: A LEI 12.328/10 A prática de alienação parental, que atinge diversos direitos fundamentais da criança e/ou adolescente, está cada vez mais comum no nosso cotidiano, restando ao Poder Judiciário intervir para proteção dos menores. Assim, entra em vigor no Brasil, em 26 de agosto de 2010, a esperada Lei 12.318, que passou a dispor acerca da Alienação Parental. A nova norma trouxe o conceito de Alienação Parental, um rol exemplificativo de atos que possam significar tal prática, bem como medidas para o combate do problema e punições ao alienador. Um exemplo clássico que a Lei identifica como alienação parental está previsto no inciso I do artigo 2º: “Realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade”. Essa conduta do genitor alienador é muito frequente e a prática da alienação parental ocorre quando o alienador visa LETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/2015 | ISSN 2358-2685
desqualificar as atitudes do outro, sempre buscando provar para a criança que este genitor é falho e que suas atitudes são erradas. Com o objetivo de apontar, advertir e punir os responsáveis, a Lei 12.318/2010 foi criada, afim de garantir os direitos às crianças e adolescentes, que se encontram vulneráveis diante de uma situação criada pelos seus genitores e/ou responsáveis. A Lei dispõe que dificultar o exercício da autoridade parental, atrapalhar o contato dos filhos com o genitor (a), realizar campanha de desqualificação, criar empecilhos para a convivência familiar, omitir deliberadamente informações relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, medidas ou alterações de endereços que dificulta a convivência com o outro genitor, com familiares ou com avós configura alienação parental. As formas de punição previstas na Lei 12.318/10 podem ser utilizadas cumulativamente ou não, ou seja, dependerá do caso concreto, podendo o Juiz aplicar mais de uma punição ao genitor alienador. De toda forma, para uma correta aplicação e bom resultado, é essencial uma análise minuciosa do caso, levando em consideração o estágio em que se encontra a alienação parental, bem como a análise de cada mecanismo para a aplicação no caso concreto. III.I. Veto presidencial Em que pese a Lei 12.318/2010 tenha representado um considerável avanço no direito das vítimas da Alienação Parental, muito o que podia ser feito, ainda não foi, em virtude dos dois artigos vetados, à época, pelo Presidente da República. De fato, o artigo 9° da referia lei, que tratava da mediação como solução dos casos de Síndrome da Alienação Parental, foi vetado sob o fundamento de que os reflexos da convivência familiar não podem ser decididos extrajudicialmente, eis que “o direito da criança e do adolescente à convivência familiar é indisponível, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal”, além de contrariar o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê ”a aplicação do princípio da intervenção mínima”. O artigo supracitado assim dispunha: Art. 9°. As partes, por iniciativa própria ou sugestão do juiz, do Ministério Público ou do Conselho Tutelar, poderão utilizar-se do procedimento da mediação para a solução do litígio, antes ou no curso do processo judicial. § 1º O acordo que estabelecer a mediação indicará o prazo de eventual suspensão do processo e o correspondente regime provisório para regular as questões controvertidas, o qual não vinculará eventual decisão judicial superveniente. § 2º O mediador será livremente escolhido pelas partes, mas o juízo competente, o Ministério Público e o Conselho Tutelar formarão cadastros de mediadores habilitados a examinar questões relacionadas à alienação parental. § 3º O termo que ajustar o procedimento de mediação ou o que dele resultar deverá ser submetido ao exame do Ministério Público e à homologação judicial. (BRASIL, 2010) Já o artigo 10 previa a possibilidade de prisão aos responsáveis pela prática de Alienação Parental, sanção esta de natureza eminentemente penal. Foi vetado sob o argumento de que a prisão, em um momento tão delicado para as partes, resultaria em maior sofrimento para os filhos. Muitos doutrinadores criticam o veto dos dois artigos, vez que representa um enorme retrocesso no âmbito do Direito de família. Comenta Maria Berenice Dias: De forma para lá de desarrazoada foram vetados dois procedimentos dos mais salutares: a utilização da mediação e a pe-
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nalização de quem apresenta relato falso que possa restringir a convivência do filho com o genitor. Assim a lei que vem com absoluto vanguardismo deixa de incorporar prática que tem demonstrado ser a mais adequada para solver conflitos familiares. (DIAS, 2010) Diante de toda a questão causada pela Síndrome da Alienação Parental, já mencionada, necessário se faz a utilização de meios que realmente tragam resultados, seja na prevenção ou na recuperação das vítimas. A mediação pode ser encarada como forma de combate à Alienação Parental, vez que auxiliará os pais no comportamento perante seus filhos e conscientizará o alienador que o menor necessita do convívio com o outro genitor para sua formação, especialmente, psicológica. Nesse prisma, sabiamente, o legislador tentou inserir, no artigo 9° da Lei 12.318/10, a mediação como meio de solução da Alienação Parental. Contudo, conforme já dito, tal artigo foi vetado pelo Presidente da República. Deste modo, a Lei é benéfica em inúmeros aspectos, entretanto, deixou a desejar quando não permitiu a possibilidade de mediação em casos de alienação parental. IV. A MEDIAÇÃO COMO SOLUÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES Ao longo dos anos, a família vem sofrendo uma profunda transformação em razão dos fatores econômicos, sociais e culturais. Diante dessas transformações, inúmeros tipos de conflitos apresentaramse no núcleo familiar, tendo em vista que a família atual é inovadora, igualitária e democrática. Os conflitos familiares são antecedidos de sofrimento, portanto, antes mesmo de serem conflitos de direito, são conflitos afetivos e psicológicos. Logo, para a solução destes, necessário se faz observar os aspectos emocionais e relacionais através do diálogo. É justamente nos conflitos familiares que surgem sentimentos como: vingança, depressão, mágoa, hostilidade, arrependimento, etc., dificultando o diálogo entre as partes. Nessa perspectiva, a mediação tem o papel de incentivar a comunicação entre os mediados, bem como desconstruir o conflito, fazendo com que as partes encontrem os reais motivos de suas disputas e, juntos, a solução destas. IV.I. Contexto histórico Há muito tempo a mediação é usada em várias culturas no mundo, como a judaica, a cristã, a islâmica, hinduísta, budista e até mesmo as indígenas. Na Roma Antiga já era previsto o procedimento in iure (na presença do juiz) e o in iudicio (na presença do mediador ou árbitro). Ressalta-se que, posteriormente, no ordenamento romano republicano, a mediação não representava um instituto de direito, mas sim uma regra de mera cortesia. Pela ótica histórica, a mediação é usada nos Estados Unidos desde o século XVII por seitas religiosas. De acordo com Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, a mediação teve sua fundamentação teórica na Universidade de Harvard. A autora conta que, em 1976, o professor Frank E.A. Sander apresentou um estudo denominado “multi-door courthouse – Tribunal de Muitas Portas”, no qual um tribunal poderia receber demandas por diferentes programas, vez que além do processo judicial tradicional, haveriam meios alternativos, como a arbitragem e mediação. Somente em último caso, o problema seria resolvido pelo sistema judiciário. (TARGA, 2004)
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Em 17 de agosto de 2001, foi aprovada e regulamentada a Uniform Mediation Act, para aplicação em todos os estados americanos. Na França, a mediação é regulada pela Lei 95.125/1995 e pelo Decreto 96.652/1996. A referida lei tem por objetivo incentivar o emprego da mediação, assegurando a paz social, por meio de uma solução aceita ou até mesmo proposta por uma das partes. A mediação na Argentina foi fundada por meio de vários diplomas. Somente em 1995 foi regulada pela Lei 24.573/1995, instituindo obrigatoriamente a mediação prévia. Portugal, assim como muitos outros países da Europa, já possui legislação específica que permite e regulamenta a prática da mediação como forma alternativa de resolução de conflitos em diversas áreas, incluindo os conflitos no âmbito familiar. A regulamentação espanhola teve início com o Real Decreto-Lei n° 5/1979, que criou o Instituto da Mediação, Arbitragem e Conciliação. No entanto, a mediação começou a ser realizada na Espanha no início da década de 90, quando foi aberto, na Catalunia, um centro privado de mediação. Já no Brasil, foi aprovada pelo Senado, somente em junho deste ano, a proposta que regulamenta a medição judicial e extrajudicial para solução de conflitos no país. Recém aprovada no Brasil, a primeira Lei de Mediação brasileira tem como objetivo primordial estimular que as divergências sejam resolvidas com o auxílio de um mediador, alguém capacitado para tanto e aceito pelas partes interessadas, evitando que essas demandas cheguem aos tribunais, onde poderão se prolongar por muito tempo. IV.II. Conceito de Mediação e elementos necessários A mediação vem se configurando como um dos meios mais eficazes na condução de conflitos. Apesar de ser uma prática antiga, só muito recentemente surgiu como alternativa válida na nossa sociedade. Pode a mediação ser definida como um método consensual de conflitos, voluntário, no qual duas ou mais pessoas, com o auxílio de um mediador – terceiro imparcial e capacitado – discutem pacificamente, almejando a melhor solução para o conflito e de forma satisfatória para as partes. Além de proporcionar celeridade, a mediação promove aproximação entre as partes e lhes confere protagonismo. Ou seja, a possibilidade de buscar soluções para suas próprias demandas e com total liberdade para apresentar seu ponto de vista. Atualmente, muito se fala na aplicação da mediação no âmbito familiar. Acerca disso, comenta Marlova Stavinski Fuga: A mediação familiar é uma prática para restabelecer relações, quando tudo indica que a família está desmantelada por consequência da dissociação entre o homem e a mulher, tentando minorar os prejuízos para os filhos. Com a intervenção da mediação familiar, é possível compreender que a separação e o divórcio não significam a dissolução da família, mas sua reorganização. [...]. Em matéria de família, só consegue avaliar bem o que ocorre quem está passando pelo sentimento, seja de amor, de ódio ou indiferença. Por isso, são as partes as únicas que podem interpretar seus afetos: nem o advogado, nem o juiz, nem o mediador podem fazê-lo. Por isso, a sociedade civil tem afrontado tanto o direito de família. O amor não pode ser interpretado por normas. [grifei] (FUGA, 2003) O mediador, nesse contexto, é o terceiro imparcial, escolhido e aceito pelas partes interessadas, que conduzirá o processo de mediação, permitindo e facilitando o diálogo entre os envolvidos. Outro aspecto fundamental é que o mediador, diferentemen-
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te do árbitro, do juiz e até do conciliador, irá apenas conduzir os discordantes ao entendimento, de forma imparcial e sem interferências diretas. Os profissionais que podem trabalhar como mediadores são: psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados, médicos e áreas afins. A capacitação do mediador envolve o estudo teórico e prático, devendo sempre lembrar que seu papel é de facilitador da comunicação e de não juiz ou árbitro. Em sua função, o mediador deverá agir com imparcialidade, competência e confidencialidade, oferecendo sempre o tratamento igualitário entre as partes. Mas, acima de tudo, o mediador precisa conquistar a confiança dos envolvidos, principalmente no que diz respeito aos conflitos familiares. Isto porque as partes já vêm com uma bagagem emocional muito grande e precisam sentir-se confortáveis e seguras para exprimir seus sentimentos e intimidades. No ordenamento brasileiro, a Lei recém aprovada pelo Senado permite que a mediação se torne a primeira fase de um processo judicial. Quando um processo for distribuído, o Juiz poderá enviar cada caso ao mediador judicial e a negociação poderá durar 60 dias. Neste período, o processo fica suspenso. Ninguém deve ser obrigado a adotar o procedimento. Na esfera extrajudicial, qualquer pessoa de confiança das partes poderá ser o mediador, sem precisar se inscrever em qualquer tipo de associação ou conselho. Não haverá prazo para que o diálogo seja concluído. IV.III. Mediação e a Alienação Parental Conforme já exposto anteriormente, o Projeto de Lei que deu origem à Lei 12.318/2010 possuía um dispositivo que permitia às partes utilizar-se da mediação como meio de solucionar o conflito decorrente da prática de Alienação Parental, antes de se instaurar o processo judicial, ou até mesmo, no seu curso. Entretanto, tal dispositivo legal foi vetado sob a fundamentação de que o direito da criança e do adolescente representa direito indisponível, razão pela qual não caberia mecanismo extrajudicial para resolução de conflitos. Contudo, a mediação é tão somente uma alternativa para a solução de conflitos, que não contraria nem afronta a Constituição. Ademais, toda e qualquer decisão decorrente da mediação, para que seja exigível judicialmente, deve ser levada à averiguação do Ministério Público e do Poder Judiciário, que poderá ou não homologar o termo. Desta forma, não prospera o argumento de inconstitucionalidade usado para justificar o veto do artigo 9º da Lei 12.318/10. Como já mencionado, na mediação, as próprias partes buscam solução para seus conflitos, através do diálogo auxiliado pelo mediador. O ideal seria, então, que um casal, que deseja se separar, mas não consegue manter um mínimo diálogo, antes mesmo de acionar o Poder Judiciário, recorresse à mediação. É possível que a mediação prévia seja capaz de minimizar ou até mesmo dar fim ao “estado de guerra” dos recém separados, o que repercute totalmente na questão da Alienação Parental, uma vez que esta surge, principalmente, no contexto da separação/divórcio. A Alienação Parental é um problema complexo, que envolve uma enorme carga emocional. Assim, mais do que amparo judicial, os envolvidos necessitam de amparo psicológico. Na realidade atual do judiciário, um Juiz não tem tempo nem condições de dedicar-se a cada caso, ouvir e aconselhar as partes, como faria o mediador. Este poderá orientar e fazer como que as partes consigam enxergam as consequências de um litígio, assim como expor as possibilidades para uma possível conciliação.
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Importante ressaltar que o mediador não decidirá pelos mediados, vez que a essência desse instituto é permitir que os envolvidos fortaleçam-se, resgatando a responsabilidade de suas escolhas. Aquele que causa a Alienação Parental precisa de ajuda para resolver seus conflitos e, principalmente, entender as consequências de seus atos. Mas certamente não será o judiciário que o auxiliará, e sim, um terceiro, alheio à situação, que poderá aconselhar, ouvir, orientar e expor a realidade dos fatos. É certo que a mediação, por si só, não será capaz de findar todos os problemas dos casais e coibir a prática alienadora. O que se defende é a mediação como uma das formas de solução de conflitos, meio este que traz diversos benefícios aos envolvidos, especialmente no âmbito das relações familiares. V. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que o presente trabalho sugere a solução dos conflitos com base no diálogo, sem a rivalidade comum do processo judicial. Os conflitos familiares merecem especial atenção, principalmente quando estiverem envolvidos interesses de menores. Mais do que direitos expressamente previstos em lei, ao menor devem ser garantidas condições mínimas de sobrevivência, incluindo-se condições morais e psíquicas. E os pais, diretamente responsáveis pelos conflitos em torno do menor, são também responsáveis por oferecer ao mesmo esse ambiente saudável, tão necessário para que ele se desenvolva e se transforme num adulto bem resolvido. O principal papel do Poder Judiciário é a preservação da paz na sociedade e o presente trabalho busca demonstrar que esse objetivo pode ser alcançado por outras instituições. Portanto, o instituto da mediação, como meio de solução de conflitos, representa uma ferramenta bastante eficaz no emprego do diálogo entre familiares que estejam vivenciando um conflito, fazendo com que os mesmos consigam praticar suas funções de forma pacífica. A mediação, diferente do procedimento judicial, permite que as partes, com o auxílio do mediador, resolvam seus próprios conflitos, de modo que elas fiquem responsáveis por suas decisões e cumpram o que foi ajustado, pois o acordo foi construído e não imposto. Assim, incentivar a prática da medição entre as partes que passam por um conflito familiar só trará benefícios para os envolvidos, vez que terão a oportunidade de solucionar esse conflito de modo satisfatório. Contudo, a mediação jamais poderá ser interpretada como uma solução mágica para os desgostos que impedem a realização de justiça no Brasil, mas sim como uma alternativa para que, em determinados conflitos, ela permita a melhor solução para as partes envolvidas e também possibilite melhoria no serviço jurisdicional. REFERÊNCIAS BARROS, Sérgio Resende de. O direito ao afeto. 2002, On-line. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=50. Acesso em: 16 de maio de 2015. BRASIL.Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25 Mai.2015. BRASIL. Lei 10.406/02. Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 19 Out. 2012. BRASIL. Lei 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: . Acesso em: 25 Mai.2015. BRASIL, Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação paren-
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tal e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm>. Acesso em: 14 mai. 2015. BRASIL. Lei 12.318/10. Dispõe sobre a alienação parental. Disponível em: . Acesso em: 25 Mai.2015. CARBONERA. Silvana. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 277. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2010, On-line. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/home.dept. Acessado em: 17 de maio de 2015. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XVII-XVIII. FONSECA, Priscila Maria Pereira Corrêa da.Síndrome de alienação parental. Pediatria, São Paulo, v. 28(3), 2006. FONSECA, Priscila Maria Pereira Corrêa da. Síndrome de alienação parental. Revista do CAO Cível. Belém, v. 11, n. 15, p. 49-60, Jan-/Dez, 2009 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Direito de Família. Vol. 06. Ed. 09ª. São Paulo. Saraiva: 2012, pag. 23 MAGALHÃES, Maria Valéria de Oliveira. Alienação Parental e Sua Síndrome: Aspectos Psicológicos e Jurídicos no Exercício da Guarda Após a Separação Judicial. 1. Ed. Recife: Editora Bagaço, 2010. PODEVYN, François. SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL. Disponível em: < http://www.apase.org.br/94001-sindrome.htm> Acessado em: 31 de maio de 2015. SILVA, Evandro Luiz; RESENDE, Mário. Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião: Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos. 1. Ed. São Paulo: Editora Equilíbrio, 2008. TARGA, Maria Inês Corrêa de Cerqueira César. Mediação em juízo. São Paulo: LTr, 2004, p. 142. TRINDADE, Jorge. Síndrome da alienação parental. In: Dias, Maria Berenice (coord.). Incesto e alienação parental: realidades que a justiça insiste em não ver. 2. Ed. rev., atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
NOTA DE FIM 1 2
Aluna graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientadora Professora Valéria Edith Carvalho de Oiliveira.
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POTENCIALIDADES DO TESTAMENTO VITAL: promoção da autonomia pessoal Rômulo Garzon Guimarães¹ Valéria Edith Carvalho de Oiliveira2 RESUMO: A implantação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro pode ser conferida à amplitude da autonomia pessoal, assegurando a decisão de uma pessoa que explicita sua não vontade de submeter a tratamentos e procedimentos médicos diante um diagnóstico de doença terminal. Neste sentido, a Constituição Federal Brasileira apresenta os princípios da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1°, III) e da Autonomia Privada (princípio implícito no art. 5º), que podem ser aplicados quando se fala de testamento vital. Desta forma, este estudo sugere a reflexão da legalidade da manifestação antecipada de vontade, instituída no Brasil por meio da Resolução nº. 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina, justificando-se pela necessidade de tornar conhecidas as potencialidades do testamento vital. PALAVRAS-CHAVE: Autonomia pessoal, Direito a morrer, Testamento, Vital ABSTRACT: The implementation of living wills in the Brazilian legal system can be conferred on the amplitude of personal autonomy, ensuring the decision of a person who explains his no desire to undergo medical treatments and procedures before a diagnosis of terminal illness. In this sense, the Brazilian Federal Constitution sets out the principles of Human Dignity (art. 1, III) and Private Autonomy (implicit principle in art. 5), which can be applied when it comes to living will. Thus, this study suggests the reflection of the legality of early manifestation of will , established in Brazil through Resolution no. 1,995 / 12 of the Federal Medical Council , justified by the need to make known the potential of the living will . KEYWORDS: Personal autonomy, Right to die, Testament to as life, SUMÁRIO: I Introdução; II Testamento Vital; III Análises sobre a eutanásia, distanásia e ortotanásia; IV Possibilidades Jurídicas das Diretivas Antecipadas de Vontade no Brasil; V Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO A autonomia e autodeterminação do indivíduo, considerando o livre arbítrio, é um direito que deve ser respeitado, pois, a qualquer pessoa deve ser garantida possibilidade de dispor de seu próprio corpo, permitindo abdicar-se a qualquer dos procedimentos ou tratamentos médicos que lhe forem sugeridos, mesmo que com isso seu processo de morte seja abreviado. A implantação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro pode ser conferida à amplitude da autonomia pessoal, assegurando a decisão de uma pessoa que explicita sua não vontade de submeter a tratamentos e procedimentos médicos diante um diagnóstico de doença terminal. Como o testamento vital não possui uma legislação específica no Brasil e atentando para a promoção da autonomia pessoal, a legalização do testamento vital pode ser uma ferramenta pertinente e eficaz, considerando os anseios, opções e opinião do indivíduo quanto aos tratamentos e procedimentos médicos que poderá se submeter, principalmente quando ressaltada a hipótese em que não possa manifestar suas escolhas. A Constituição Federal Brasileira apresenta os princípios da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1°, III) e da Autonomia Privada (princípio implícito no art. 5º), que podem ser aplicados quando se fala de testamento vital. Sendo assim obrigar um indivíduo a se submeter a procedimentos ou tratamentos que ele não deseja, é contrariar os princípios constitucionais apontados. Desta forma, com o crescente avanço da medicina, evidenciase uma a falha no que se refere às leis e normas da autonomia pessoal no tratamento médico em que, por algum evento cause a incapacidade percepção do indivíduo. Sendo assim este estudo sugere a reflexão da legalidade da manifestação antecipada de vontade, instituída no Brasil por meio da Resolução nº. 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina, justificanLETRAS JURÍDICAS | N.4 | 1/2015 | ISSN 2358-2685
do-se pela necessidade de tornar conhecidas as potencialidades do testamento vital, até então sem legislação específica no Brasil, além de contribuir com o debate acerca do direito a morte, e o princípio da dignidade da pessoa humana, com abordagem na autonomia individual de cada pessoa. II. TESTAMENTO VITAL O prolongamento artificial da vida vem suscitando conflitos éticos e morais que necessitam ser avaliados, pois de um lado estão os adeptos à aplicação do princípio do direito à liberdade de autodeterminação, e do outro, os que teorizam contra, sustentando sua posição pelo princípio do direito à vida como bem indisponível. Desta forma o Testamento Vital, documento com diretrizes antecipadas, configurase como um estatuto adequado para atualizar o arcabouço jurídico brasileiro (PICCINI, 2011). O Testamento Vital é um procedimento pouco conhecido no Brasil, pois não há uma lei determinada para tal. Surgiu pelo vocábulo Living Will, no qual Dadalto (2009) descreve traduções de will em três
substantivos, vontade, desejo e testamento, e em paralelo, a interpretação de living como substantivo sustento, o adjetivo vivo ou o verbo vivendo. Originado nos Estados Unidos por Luis Kutner, o Testamento Vital propõe a ser um documento de proteção do direito individual a permitir sua morte, ou seja, o paciente tem o direito de se recusar a ser submetido a tratamento médico cujo objetivo seja o prolongamento da vida, quando seu estado clínico for irreversível ou estiver em estado vegetativo persistente (DADALTO, TUPINABÁS & GRECO, 2013). De acordo com Grinberg & Chehaibar (2012), a expressão sobre os tipos de tratamento que o paciente deseja dos profissionais de saúde e dos cuidadores durante o estágio terminal de vida, registrada ainda com qualidade de vida preservada, é conhecida como Testa-
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mento Vital e já existente em países como Espanha, Japão, Estados Unidos da América, Portugal e Uruguai. Neste contexto, a declaração prévia de vontade para o fim da vida, também conhecido por testamento vital, é um documento de pronunciamentos de vontade pelo qual uma pessoa capaz manifesta seus anseios sobre os tratamentos médicos a qual deve ser submetida, a ser utilizado quando o outorgante estiver em estado terminal, em estado vegetativo persistente ou com uma doença crônica incurável, impossibilitando de manifestar livre e conscientemente sua vontade (DADALTO, 2013). Nunes (2012) esclarece que o Testamento Vital, surgiu há quatro décadas com o objetivo de permitir a uma pessoa, devidamente esclarecida, recusar determinado tipo de tratamento que no seu quadro de valores são claramente inaceitáveis e também explicita qualidades essenciais do Testamento Vital, como contribuição para o empoderamento dos doentes, reforçando o exercício do seu legítimo direito à autodeterminação em matéria de cuidados de saúde, e o planejamento do momento da morte, dado que esta, por diversas ordens de razões, é pura e simplesmente ignorada pela maioria das pessoas e por muitos profissionais de saúde. De acordo com Godinho (2010), o Testamento Vital consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, ou seja, objetiva registrar a linha de conduta a ser seguida pelo médico nas hipóteses de inconsciência do paciente, que fica impossibilitado de exprimir sua vontade pelo estado de incapacidade, ou na presença de sequela que torne a vida do paciente impossível sem o auxílio permanente de um cuidador. Nessas circunstancias, o Testamento Vital apresenta-se como um documento preparado por um indivíduo capaz e lúcido, declarando por escrito sua pretensão de submeter-se ao tratamento médico ou simplesmente optar por tratamentos paliativos à procura de uma morte digna, ou seja, uma manifestação do ser sobre determinada escolha. Esta escolha pode estar relacionada à decisão de não prolongar sofrimento que entenda como provocador de indignidade, mesmo que leve à morte. Esta escolha inclui no debate à eutanásia, distanásia e ortotanásia. III. ANÁLISES SOBRE A EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA O comprometimento com a proteção do indivíduo parece ser uma inquietação polêmica e popular no que se refere à dignidade da vida humana em situações que abrangem a discussão sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia. Para Siqueira-Batista e Schramm (2004), a morte é um assunto de difícil questionamento, mas que envolve aspectos relacionados com precariedade e qualidade de vida, no qual são levantadas questões sobre a manutenção e prolongamento da vida, quando se abordam temas sobre eutanásia, distanásia e ortotanásia. Segundo Kovács (2014), pessoas com doenças degenerativas ou múltiplos sintomas podem expressar o desejo de morrer, e a eutanásia (que em seu sentido original significa boa morte) ainda não está legalizada no Brasil, mas é reconhecida em três países europeus, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. No que diz respeito à eutanásia, Gomes e Menezes, relatam que: ...A possibilidade de prolongamento da vida com os recentes avanços tecnológicos coloca em foco o debate em torno da eutanásia, definida como a interrupção da vida, causando a
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morte de alguém com doença terminal ou incurável. A eutanásia ativa envolve uma ação médica, como administração de injeção letal; e a passiva usualmente se refere à omissão de recursos, tais como medicamentos, hidratação e alimentação. A eutanásia pode ser voluntária, segundo o desejo expresso pelo doente, ou involuntária, quando a pessoa está incapacitada de dar consentimento (GOMES & MENEZES, 2008). Neste contexto, Felix et al.(2013) definem como o ato de tirar a vida do ser humano, um sofrimento desnecessário, entendida como uma prática para abreviar a vida, a fim de aliviar ou evitar sofrimento para os pacientes. Sendo assim, a eutanásia é atualmente conceituada como a ação que tem por finalidade levar à retirada da vida do ser humano por considerações tidas como humanísticas, à pessoa ou à sociedade (BIONDO, SILVA & SECCO, 2009). Sobre a distanásia, Pessini (2009) descreve como prolongamento exagerado da morte de um paciente, no qual este indivíduo é sujeitado a um tratamento inútil, ou seja, a atitude da equipe médica, visando salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande sofrimento, prolongando o processo de morrer. É uma intervenção terapêutica sem qualidade de vida e sem dignidade que visa manter a vida do paciente terminal, sujeito a muito sofrimento (MENEZES, SELLI & ALVES, 2009). Já a ortotanásia, significa morte correta, o não prolongamento artificial da vida, ou o processo natural da morte (ROCHA, 2014). Para Ascensão (2014), a ortotanásia é valorativa, por isso compatível em caso de morte iminente e inevitável, medicamente atestada, no qual ortotanásia se contrapõe aos processos de eutanásia e distanásia, pois exclui os tratamentos desproporcionados, mas supõe todos os cuidados de que o paciente necessita sem recurso a intervenções extraordinárias. Segundo Vilas-Bôas (2009), a ortotanásia configura-se no objetivo médico quando já não se pode buscar a cura, visando o conforto ao paciente, sem interferir no momento da morte, sem encurtar o tempo natural de vida nem adiá-lo indevida e artificialmente, possibilitando que a morte chegue na hora certa, quando o organismo efetivamente alcançou um grau de deterioração incontornável. Embora aparentemente seja tênue a linha divisória que delimita as práticas da eutanásia, da ortotanásia e da distanásia, percebe-se que as condutas são, significativamente, distintas. (ROCHA, 2014). A despeito do entendimento por alguns doutrinadores, a eutanásia se priva de realizar os tratamentos ordinários mais conhecidos pela Medicina como cuidados paliativos (promovendo o óbito), enquanto a ortotanásia se abstém de tratamentos extraordinários (fúteis), suspendendo os esforços terapêuticos, ao passo que a distanásia se dedica a prolongar o máximo a quantidade de vida humana. No campo da ciência jurídica, estas práticas tocam diretamente o chamado direito de morrer, e é associado frequentemente aos cuidados paliativos, que visam a prevenção e alívio do sofrimento e tratamento da dor (DADALTO, 2013). Portanto a eutanásia propõe um ato de indulgência ao proporcionar ao paciente incurável que padece de uma doença degenerativa uma morte suave e indolor, a distanásia não beneficia o paciente em fase terminal e a ortotanásia serviria, assim, para evitar a distanásia, isto é, o prolongamento artificial da vida, quando a morte se fizer, naturalmente, iminente. IV. POSSIBILIDADE JURÍDICA DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO BRASIL A ciência médica recorre aos mais avançados métodos diagnósticos e terapêuticos, de modo que o objetivo principal é manter a vida a qualquer custo, para aumentar a expectativa de vida e afastar a
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morte iminente (OLIVEIRA, SÁ E SILVA, 2007). A bioética discute alguns princípios importantes como beneficência, dignidade, competência e autonomia, inserindo também a possibilidade de rehumanização do morrer, opondo-se à ideia da morte como o inimigo a ser combatido a todo custo, ou seja, a morte é vista como parte do processo da vida e, no adoecimento, em que os tratamentos devem visar à qualidade dessa vida e o bem estar da pessoa, mesmo quando a cura não é possível (KOVACS, 2003). Interessante citar que, de acordo com Ribeiro (2006), movimentos se desenvolvem e constroem soluções para a discussão da autonomia e a dignidade no fim da vida. Como resultado desses movimentos, o Ministério da Saúde editou a Portaria n. 675/GM de 30 de março de 2006, aprovando a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, consolidando, num documento único, os direitos e deveres do exercício da cidadania na saúde em todo o Brasil. Esta portaria garante ao usuário o direito à informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas de acordo com sua condição clínica, considerando as evidências científicas e a relação custo-benefício das alternativas de tratamento, com direito à recusa (BRASIL, 2006). Segundo Oliveira (2012), muitos doentes sofrem pela falta de perspectiva de vida, alguns jamais poderão se levantar de suas camas, outros dependerão de aparelhos que os ajude a respirar e muitos dos que passam por esse sofrimento chegam a pedir para morrer, pois não querem sobreviver da única maneira que lhes resta, não querem se tornar um peso na vida de seus familiares, não querem estar limitados. Não sendo possível viver bem e não se resignando a essa forma de vida, essas pessoas esperam que seja atendida sua vontade de morrer dignamente. Neste sentido, o respeito à autonomia pessoal é a base para a suspensão de esforço terapêutico dos usuários dos serviços de saúde, no qual médicos e demais profissionais de saúde têm o dever de respeitar a decisão do usuário, deixando que a morte ocorra no local, no tempo e em companhia de quem o doente quiser. (RIBEIRO, 2006). Desta forma, a vontade da pessoa envolvida nos procedimentos médicos passa a ser reconhecida quando o princípio da autonomia é observado pelo médico (PEREIRA, 2007). Por conseguinte, o respeito à dignidade humana sugere em perceber e acatar as indigências de cada um, considerando os valores pessoais e a diminuição do sofrimento, no qual se faz fundamental constituir diretrizes para uma morte com dignidade para pacientes terminais. Quanto à autonomia, esta representa o poder de estabelecer por si, e não por imposição externa, as regras da própria conduta (DADALTO, 2013). Segundo Siqueira-Batista & Schramm (2008), para que ocorra o respeito à autonomia é imprescindível que seja respeitada a liberdade de escolha do homem que padece, isto é, sua competência em decidir, autonomamente, aquilo que considera importante para viver sua vida, incluindo nesta vivência o processo de morrer, de acordo com seus valores e interesses legítimos. De acordo com Ribeiro (2006), a palavra autonomia foi utilizada, originariamente, para expressar o autogoverno das cidades-estados independentes, e na década de 1970 incorporou-se à biomedicina para significar atribuição de poder para se tomar decisões sobre assuntos médicos, no qual uma pessoa com autonomia plena tem os mesmos poderes e garantias que um Estado. O Princípio da Autonomia da Vontade resulta de uma época na qual o Estado interferia na esfera individual, ou seja, o Estado não tinha como objetivo proteger os indivíduos, pressupondo assim que os indivíduos eram autônomos e tinham condição proporcionar o equilíbrio necessário. Porém com o aumento da industrialização, o Estado aumentou sua intervenção na esfera privada, no qual as relações co-
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meçaram a ser regidas por princípios como a função social, em que o Princípio da Autonomia da Vontade transferiu para a condição do Princípio da Autonomia Privada (DADALTO, 2013). Desta forma, Mayer Lux (2011) relata que o princípio da autonomia e respeito à autonomia do paciente envolve na capacidade dos indivíduos de decisão, implica no poder de autodeterminação, no controle das atitudes em cuidados de saúde, mesmo no fim da vida, e nos propósitos pessoais que o paciente toma em relação à aceitação ou recusa de intervenções médicas que afetam sua integridade física ou a saúde. Neste contexto, Santos descreve que, ...Diante da possibilidade de manifestação da pessoa consciente sobre os tratamentos médicos a serem utilizados em momento futuro, enquanto não puder manifestar sua vontade, surge a questão da vontade antecipada do paciente, que comumente ocorre por meio do denominado Testamento Vital (SANTOS, 2014). Logo, autonomia significa propriamente a competência humana em produzir suas próprias leis, a autodeterminação para o indivíduo tomar decisões que afetam sua vida, saúde, integridade físico-psíquica e relações sociais, ou seja, a capacidade do ser humano de decidir o que é bom para seu bem-estar (MORAIS, 2010). Sendo assim, a autonomia tem por fundamento a liberdade do indivíduo, e é possível verificar que a Constituição vigente representa um marco no trato normativo da autonomia privada no ordenamento jurídico, uma vez que as normas públicas e privadas coexistem com a garantia dos direitos individuais e sociais, como direito à liberdade e à saúde (DADALTO, 2013). Nestas circunstâncias, compreende-se que a autonomia da vontade constitui a liberdade de agir do indivíduo, na exteriorização dos seus desejos e com intuito que estas vontades sejam respeitadas, como expressa a Resolução 1.995\2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM). A Resolução 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina incitou a curiosidade dos meios de comunicação social brasileiros sobre um assunto bastante polêmico por se tratar das diretivas antecipadas de vontade, também conhecidas como testamento vital, nos quais constituem os critérios para que qualquer indivíduo possa definir junto ao seu médico, desde que maior de idade e plenamente consciente, quais abordagem terapêuticas quer se submeter em fase terminal (NUNES & ANJOS, 2014). Conforme cita a Resolução CFM nº 1.995/2012, em seu artigo 1º, fica definido as diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (BRASIL/CFM, 2012). Nesta circunstância, a Resolução 1995/12 é a primeira regulamentação no país, com a qual o Conselho Federal de Medicina se posicionou sobre temas bioéticos antes do Poder Legislativo, optando por reconhecer, em um mesmo documento, o Testamento Vital e o mandato duradouro (DADALTO, 2013). De acordo com Bussinguer & Barcellos (2014), a Resolução expressa e garante antecipadamente o direito da pessoa em decidir como deseja conduzir os últimos momentos de sua vida, resgatando, assim, a dignidade e a autonomia no final vida, em que a perda e/ou incapacidade da consciência não podem tirar do indivíduo o poder de decidir seu propósito de vida de forma antecipada. O CFM afirmou que esta Resolução respeita a vontade o paciente conforme o conceito de ortotanásia e não possui qualquer rela-
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ção com a prática da eutanásia. A Resolução ainda estabelece que o médico registrará no prontuário as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente, representando um avanço nas discussões referentes as diretivas antecipadas no Brasil (DADALTO, 2013). Segundo Alves, Fernandes e Goldim, ...a denominação Diretivas Antecipadas de Vontade, utilizada na Resolução 1955/2012, caracteriza adequadamente o seu propósito: a) Diretiva, por ser um indicador, uma instrução, uma orientação, e não uma obrigação; b) Antecipada, pois é dita de antemão, fora do conjunto das circunstâncias do momento atual da decisão; c) Vontade, ao caracterizar uma manifestação de desejos, com base na capacidade de tomar decisão no seu melhor interesse (ALVES, FERNANDES & GOLDIM, 2012). Sendo assim, a Resolução CFM 1.995/12, suscitou a discussão sobre a necessidade de regulamentação legislativa sobre as diretivas antecipadas, no qual muitos cidadãos brasileiros já têm procurado cartórios de notas visando registrar suas diretivas antecipadas, evidenciando que o tema tem importância social para justificar o debate (DADALTO, TUPINAMBÁS & GRECO, 2013). Neste sentido, a Resolução enfrenta uma dificuldade que faz parte do cotidiano de médicos e profissionais da saúde que lidam com pacientes terminais e fora de possibilidade terapêutica, que é o prolongamento artificial e desproporcional da vida (BUSSINGUER & BARCELLOS 2014). Desta maneira, o CFM descreve cinco justificativas para a Resolução, consistindo em dificuldade de comunicação do paciente em fim de vida, receptividade dos médicos às diretivas antecipadas de vontade, receptividade dos pacientes, o que dizem os códigos de ética da Espanha, Itália e Portugal, e o os Comitês de Bioética (BRASIL, 2012). Neste contexto Dadalto (2013), descreve que a Resolução nº 1.995/2012, considera a vontade do indivíduo como soberana, se não houver recomendação médica suficiente para sua contraposição e para se prevenir sobre o respeito à sua vontade de não se submeter a tratamentos invasivos, inúteis, dolorosos, e que prolonguem a vida sem dignidade, e neste caso, tem-se a pertinência da elaboração do testamento vital. Portanto, conclui-se que a Resolução reconhece o direito do indivíduo ciente e capaz, de recusar terapêuticas que não proporcionarão benefícios reais ao paciente, ou seja, tratamento sem perspectivas ou garantias que promovam a qualidade de vida do ser, cujo o dever ético do médico seria de observar a vontade do doente que se encontra disciplinado na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diante os progressos na Medicina, sobretudo com a ampliação de tratamentos que propendem prolongar o fato morte, discute-se o direito do paciente em manifestar a sua vontade em relação a prováveis situações de incapacidade e quais tratamentos médicos quer ou não se sujeitar-se estado de incapacidade (BOMTEMPO, 2012). No domínio das relações constituídas entre médicos e pacientes, o consentimento informado expressa a autonomia atribuída ao paciente para aceitar ou recusar terapêuticas ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos que serão seguidos (GODINHO, 2012). Segundo Penalva (2008), o indivíduo afirmou-se como centro do ordenamento jurídico a partir da Constituição da República de 1988, o que confere à pessoa humana uma esfera de atuação jurídica no
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âmbito do Direito Privado, que atrelado à recepção da dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito pode ser entendido como legitimador do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. A declaração prévia de vontade para o fim da vida é conhecido por testamento vital, documento que deverá ser escrito por indivíduo consciente e que será eficaz apenas em situações que as terapêuticas não são mais úteis, deve ser também registrado em cartório, considerando que paciente terminal deve ser tratado de modo digno, recebendo tratamentos que minimizem o sofrimento, garantindo assim qualidade de vida (DADALTO, 2013). Nesta conjuntura que se implanta a proposta das Diretivas Antecipadas de Vontade como um modo de prover uma provável omissão no que diz respeito à autodeterminação do paciente, através da manifestação antecipada de suas escolhas para quando estiver incapacitado de decidir (PATTELA, ALVES & LOCH, 2014). Sendo assim, Dadalto especifica que, ...o paciente terminal deve ser tratado de modo digno, recebendo cuidados paliativos para amenizar o sofrimento, para assegurar-lhe qualidade de vida, pois o ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, assim, a aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa, razão pela qual alguns pesquisadores afirmam que o paciente pode apenas recusar os tratamentos extraordinários, que visam apenas prolongar a vida, corroborado pelo Conselho Federal de Medicina na edição do novo CEM. (DADALTO, 2013). Neste âmbito, as diretivas antecipadas proporcionam métodos para que a autonomia privada do paciente possa ser exercida assegurando a sua dignidade e autonomia, direcionando o profissional médico e sua equipe para que seja empregado o tratamento e cuidados previamente escolhidos pelo próprio paciente, ou seja, as diretivas antecipadas seria o instrumento mais adequado para garantir a autodeterminação do paciente terminal que se encontra incapaz ou inconsciente, sendo o meio hábil a assegurar a declaração prévia de vontade deste indivíduo. (BOMTEMPO, 2012). Relevante citar que há precedentes legislativos e estatutários, no Brasil, que confirmam e legitimam a informação de que o paciente é livre para optar pela realização ou recusa a quaisquer tipos de tratamentos e intervenções, garantidos nos termos do art. 15 do Código Civil, no qual estabelece que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica; no Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) que exige a prestação de esclarecimentos ao consumidor, em diversas disposições, destacando-se o art. 14, que impõe ao fornecedor de serviços a responsabilidade por prestar informações insuficientes e inadequadas; e também no consentimento informado, constatado em Resoluções do Conselho Federal de Medicina (n. 1.081/82, 1.890/09 e 1.957/2010),7 do Conselho Nacional de Saúde (n. 196/96)8 e também no Código de Ética Médica em vigor (GODINHO,2012). Nestas circunstâncias, Rocha et al. (2013), infere que o cenário normativo admite ser primordial adotar reflexões baseadas no princípio do respeito à autonomia que busquem consolidar o cumprimento da vontade do paciente em torno da declaração prévia de vontade do paciente terminal. Portanto, Pattela, Alves & Loch, (2014), caracterizam que a diretiva antecipada de vontade é uma possibilidade que o indivíduo tem de demonstrar e estipular quais tratamentos deseja ou não, em caso de incapacidade; referi a necessidade de que o paciente expressamente dê ciência ao médico e até mesmo aos familiares para exercer sua
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autodeterminação; e enfim representa um avanço no sentido de reconhecer o direito e a autonomia do paciente em gerenciar seu próprio espaço privado sem retirar do médico a capacidade decisória para o caso em concreto. Assim, a declaração prévia de vontade para o fim da vida é um instrumento legal que evita o constrangimento do paciente ser submetido a tratamentos fúteis, que apenas potencializam o risco de vida, sendo importante mencionar que, no panorama brasileiro, encontrase uma proposta legislativa para instituir as Diretivas Antecipadas, um Projeto de Lei com 12 artigos, nos quais asseguram a toda pessoa capaz o direito de redigir diretivas antecipadas para o fim da vida, as diretivas antecipadas devem ser redigidas de forma clara, é permito ao paciente dispor sobre suspensão de hidratação e alimentação, as diretivas antecipadas podem ser revogadas e/ou modificadas a qualquer tempo pelo outorgante, entre outras condutas (DADALTO, 2013). Em síntese, as disposições de vontade do indivíduo deverão ser atendidas, respeitando assim o grande pilar do Estado Democrático de Direito, enfatizado na dignidade da pessoa humana.
php/revista/article/view/P.0304-2340.2014v64p493 Acesso em: 30 de mai. 2015.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diversas questões foram apontadas neste estudo, com o intuito de mencionar as potencialidades do testamento vital, embora o Brasil não possua um regulamento jurídico que o normalize, mas também não há motivo que evite o debate de sua validade, por apresentar possibilidades reais de amenizar e eliminar eventuais conflitos, tanto entre profissionais de saúde, parentes e mesmo entre o consentimento destes e a verdadeira intenção do paciente. Acredita-se também que faz-se necessário que o Estado não omita esforços para garantir ao ser humano uma vida digna, sendo assim a vontade expressa do paciente no Testamento Vital deverá ser escrito por pessoa com discernimento e terá eficácia somente quando o paciente estiver em estado de terminalidade da vida, podendo ser revisado a qualquer momento, garantindo ao paciente um tratamento digno. Constatou-se aqui, que o paciente terminal é sujeito de direito no ordenamento jurídico brasileiro, e assim sendo a declaração prévia de vontade do paciente terminal desponta como instrumento válido desde que respeite as normas vigentes e que, em seu conteúdo, o paciente opte pela interrupção dos tratamentos ditos fúteis, reconhecendo a autonomia do sujeito, é garantindo o indivíduo o direito de ser condutor de sua própria existência. Conclui-se que as diretivas antecipadas devem encontrar imediato reconhecimento no ordenamento brasileiro, e propõe-se com este estudo, uma regulamentação mais consistente que contribua para determinar definidamente o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter, afirmando assim a autonomia nas relações médico-paciente.
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NOTA DE FIM Aluno graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
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Orientadora Professora Valéria Edith Carvalho de Oiliveira.
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PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA NO AGLOMERADO PEDREIRA PRADO LOPES: o policiamento estratégico de combate ao crime promovido pela Polícia Militar de Minas Gerais na região Weslley Jorge Gonçalves 1 Ludmila Castro Veado Stiger 2 RESUMO: A finalidade deste trabalho foi verificar os efeitos que o Grupo Especializado de Policiamento em Área de Risco (GEPAR) proporcionou para a diminuição dos crimes violentos que vem ocorrendo ao longo dos anos no aglomerado Pedreira Prado Lopes situado na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. O grupo encontra-se sob a reponsabilidade da 21ª CIA do 34° Batalhão da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Destacando a repressão qualificada, o grupamento criado, utiliza-se, também, de um novo modelo de policiamento em que se aplica à Polícia Comunitária e os Direitos Humanos como instrumentos responsáveis para atrair a participação da comunidade. A partir dessas novas estratégias, a sociedade local oferece maior credibilidade ao projeto e aceita a presença constante do Estado por meio da Polícia Militar. Ao criar este vínculo, os policiais capacitados e que atuam na região possuem maior facilidade em identificar e conter os motivos e infratores de forma pontual para a promoção da ordem pública o qual é o objetivo principal do grupo. Os resultados apresentados através dos gráficos atinentes aos crimes violentos, demostram uma redução significativa após a implantação do GEPAR no aglomerado em análise. PALAVRAS CHAVES: GEPAR; Criminalidade; Aglomerado; Ordem Pública. ABSTRACT:The purpose of this study was to assess the effects that the Expert Group on Policing Risk Area (GEPAR) provided for the decrease in violent crime that has taken place over the years in the crowded Pedreira Prado Lopes located in Belo Horizonte, in Minas Gerais. The group is under the 21st liability CIA’s 34 Battalion of the Military Police of Minas Gerais. Highlighting the qualified repression, the grouping created, it uses also a new policing model as it applies to the Community Policing and Human Rights as instruments responsible to attract community participation. From these new strategies, local society provides greater credibility to the project and accept the constant presence of the State through PMMG. By creating this bond, the trained police and operating in the region have easier to identify and contain the reasons and offenders in a timely manner to promote public order which is the main objective of the group. The results presented through graphs relating to violent crimes, demonstrate a significant reduction after the implementation of GEPAR in the cluster under consideration. KEYWORDS: GEPAR; Crime; Particleboard; Public Order. SUMÁRIO: I Introdução; II Histórico e Aspectos Sociais e Econômicos do aglomerado; II.I Criminalidade; III Plano de Controle da Criminalidade; III.I Programa de Controle de Homicídios: “Fica Vivo!”; III.II Grupo Especializado em Patrulhamento em Área de Risco (gepar); III.II.I Incumbência do GEPAR; III.II.I.I Repressão Qualificada; III.II.I.II Prevenção; III.II.I.III Promoção Social; IV. Inserção do GEPAR na Pedreira Prado Lopes; IV.I Análise Estatística de Crimes na PPL; V. Conclusões a Partir dos Dados Apurados; VI Considerações Finais; VI.I Conclusão; Referências; Lista de Abreviaturas e Siglas; Notas de Fim.
I. INTRODUÇÃO O contexto atual se abre a diversas realidades distintas sendo uma delas o submundo dos aglomerados. A constante metamorfose da sociedade e do crime de forma intimidante, nestes locais, proporciona uma necessidade de segurança que suplanta a envergadura dos próprios órgãos de Segurança Pública. Verifica-se, nesse processo de mutação, que o modelo de policiamento utilizado no passado, principalmente voltado na repressão, já não é concludente. Faz-se necessária nova alternativa de policiamento na qual se baseia diretamente ao problema de forma resolutiva. A comunidade da Pedreira Padre Lopes (PPL) apresenta um cenário alarmante no que tange ao seu alto índice de criminalidade. Nesse interim, como advertido, requer uma eficiente atuação da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) em seus arredores visando um controle maior da marginalidade e da sua consequente alta taxa de crimes e tráfico de drogas na regão. É inegável que a preservação da ordem pública é um direito elencado no art. 144 da Constituição Federal de 1988, a saber:
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Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...] V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. [...] § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (BRASIL. Constituição, 1988). Sendo um dever do Estado, este, como ratificado acima, utiliza como um dos instrumentos para esta manutenção a Polícia Militar de forma ostensiva. No entanto, esse órgão deve utilizar-se de novas ferramentas para combater a criminalidade que está sempre em evolução. Nesse sentido, faz-se surgir um plano de ação em torno não só da repressão, mas do policiamento estratégico voltado para as dificuldades apresentadas na região. Com isso faz surgir de forma prática o emprego da Polícia Comunitária e dos Direitos Humanos.
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Partindo dessas premissas, Magno3 (2013) afirma que na medida em que o laço entre a polícia e a comunidade se fortalece, com o tempo, a nova parceria se torna mais capaz de apontar e abrandar as causas subjacentes ao crime. Contudo, para que haja essa coesão, é preciso que os órgãos de Segurança Pública criem planos e atividades em conjuto com a comunidade das áreas de risco. Assim, juntas, possam discutir e sanar a questão da criminalidade. Ressalta-se afirmar que os projetos nessas zonas além de serem individualizados devem ser contínuos baseando-se na prevenção, no respeito e participação mútua sem perder a característica repressiva de forma qualificada. Dentro desse novo modelo de polícia criaram-se várias vicissitudes de combate o qual se pode destacar o Grupo Especializado em Patrulhamento em Áreas de Risco (GEPAR) que, subordinado pela PMMG, é alicerçado na prevenção, repressão qualificada e a promoção social. Salienta-se verificar quais os efeitos que o emprego desse novo modelo de policiamento influenciou de fato na Pedreira Prado Lopes visando à redução da criminalidade. Desse modo, esse artigo aspirou conferir se a implementação do GEPAR no aglomerado Pedreira Prado Lopes está cumprido as finalidades prefixadas inicialmente pela diretriz, e se as ações promovidas no local estão surtindo efeitos positivos. II. HISTÓRICO E ASPECTOS SOCIAIS E ECONÔMICOS DO AGLOMERADO O aglomerado Pedreira Prado Lopes, conforme dados fornecidos pelo portal da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH, 2015), é considerado a vila mais velha da cidade no que tange a ocupação. Conhecida também como Pedreira da Lagoinha, Vila Senhor dos Passos, Fazenda Palmital, Vila João Pessoa, Vila Santo André tem o principal nome em alusão ao Dr. Antônio Prado Lopes Pereira, o qual foi dono de uma considerável quantidade de terras na região da pedreira, após a construção da cidade de BH. Na década de 1910, depois do esgotamento da pedreira, sua área foi ocupada por acomodações de sapé por trabalhadores pobres que contribuíram para a construção da cidade. De sol a sol, centenas de operários se revezavam na extração das rochas que formariam Belo Horizonte, em turnos de trabalho que duravam até 14 horas por dia. E, somada às precaríssimas condições de salubridade do local, a exaustão de um dia de trabalho semiescravo fazia com que muitos deles não conseguissem sequer voltar para casa. Ficavam por ali mesmo, espalhados em barracas improvisadas que acabariam se tornando a moradia fixa de muitas famílias. Através desta ocupação, quase que involuntária, nasceu aquela que é hoje uma das maiores e mais violentas favelas de Belo Horizonte (NASCIMENTO, 2004, p. 56). Hoje, segundo a PBH (2015), há aproximadamente 8.900 moradores em uma área compreendida de 141 mil metros quadrados. Ela se originou a partir, principalmente, da migração desenfreada de pessoas que trabalhavam para a construção da cidade. Seduzidos pela proximidade com o centro da capital e do Bairro Lagoinha, permaneceram no local pela presença de serviços na região. Aliado a isso, foi à saída desses trabalhadores ao pagamento do aluguel que era alto naquele momento. Outro fator preponderante para o crescimento da região foi a assistência médica, a qual era considerada referência em termos de estrutura e equipamentos naquela época. O local acolheu habitantes expulsos ou de outros aglomerados que foram extintos. Levando em consideração os aspectos sociais e econômicos, a Prefeitura do município informou, por meio de pesquisa feita pelo
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Plano Global Específico (PGE), que a renda de 66% das famílias é de 0 a 3 salários mínimos. Já em nível de educação, 73,1% concluíram o primeiro grau; 6,2% o segundo grau; 0,7% frequentam supletivo; 0,1% possuem curso superior ou mais e 18,8% não possuem formação. A Pedreira Prado Lopes foi beneficiada pelo Programa Vila Viva4. Com este programa, cerca de 9 mil moradores estão sendo beneficiados com o recurso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Tal investimento gira em torno dos R$ 49 milhões os quais foram apontados pelo PGE e confeccionados pelos técnicos da URBEL em 1998. O PGE foi criado pela Lei Municipal nº 8.137/00 que visa estudar a realidade dos aglomerados para criar alternativas para a melhoria tornando, dessa forma, o local mais adequado pra se viver. São verificadas questões físico-ambiental, jurídico-legal e sócio organizativo. Ao identificar todas as necessidades são estabelecidas ordens de preferências para a execução das ações e obras. No aglomerado Pedreira Prado Lopes, após vários estudos, foi apurado a existência de ambientes insalubres, saneamento básico e habitação precários, além da dificuldade de acesso em virtude do crescimento vertical e do acesso viário que é insuficiente. Todos esses fatores contribuíram para existência e a manutenção da criminalidade no local. II.I. Criminalidade Observa-se que o país vive uma realidade marcada pela grande desigualdade na distribuição de renda. Esse problema é agravado principalmente com a chegada das tecnologias. O pequeno desenvolvimento nacional pode ter como um dos motivos o rápido e desproporcional aumento da população associado ao baixo crescimento da renda. O resultado disso é a fragmentação de culturas e valores. Na PPL tal situação é facilmente identificada. Desde a criação ela é marcada pela heterogeneidade social, cultural e econômico. A segregação física e moral de pessoas e famílias que chegam, constantemente, associada a um ambiente físico comprometido, fazendo com que a comunidade local deixe de organizar-se uniformemente. Tal conjuntura atenua para o insulamento dessa comunidade no município em geral. A consequência é o desconforto das pessoas que, impossibilitadas de suprirem suas necessidades primárias, e desacreditadas com o Estado, por falta de oportunidades, recorrem aos meios ilícitos. O efeito dessas atitudes leva o surgimento e aumento da criminalidade e da violência. A discrepância da comunidade faz surgir a anomia5 social. O as pessoas do aglomerado passam a questionar o correto e considerar vantajoso com o intuito de auferir renda o caminho marcado pela ilicitude. Destarte, é nesse panorama de desigualdade levando em consideração os aspectos sociais, econômicos, espaciais e de segurança pública que a criminalidade se instalou. A divergência no relacionamento entre a comunidade local e a polícia vista como uma instituição violenta e obsoleta é um fator agravante. De um lado, dado os graves problemas relativos à segurança gerados pelas gangues, este é um dos serviços mais almejados pela população. As cenas explícitas do uso de armas, venda e consumo de drogas em público são indicativos do nível de desordem e incivilidade nas comunidades. Por outro lado, o despreparo policial em lidar com situações desta natureza em aglomerados urbanos, aliados à desinformação a respeito da atividade criminosa no local, termina por gerar um sem número de dificuldades de interação com as comunidades locais. Essas gangues e grupos se tornam tão fortes que começam a enfrentar o único órgão estatal que esporadicamente se faz presente nestas áreas: a Polícia. Os confrontos são
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constantes, as ações das gangues cada vez mais ousadas e a polícia cada vez mais repressora e violenta. A comunidade desses grupos passa a ficar oprimida tanto pelas ações dos traficantes, quanto pelas ações da polícia, gerando grande insatisfação social (GUEDES, 2008, p.29). A ausência da presença efetiva do Estado tornou o aglomerado um local inseguro o qual contribuiu para o desenvolvimento intenso da prática do tráfico de drogas. Em face disso aumentou-se consideravelmente do índice de homicídio que, devido à repercussão trazida, passou a ser um assunto discutido com mais atenção pelo Governo do Estado de Minas Gerais. III. PLANO DE CONTROLE DA CRIMINALIDADE Por ser a criminalidade associada à segurança pública, o Estado de Minas Gerais criou a Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). A partir da Lei Delegada N° 56, de 29 de Janeiro de 2003, que uniu as Secretarias de Estado da Justiça e Direitos Humanos. Tal iniciativa visou inovar a estratégia no que tange à segurança pública saindo da prática tradicional viciosa. As atuais reformas na área policial estão fundadas na premissa de que a eficácia de uma política de prevenção do crime e produção de segurança está relacionada à existência de uma relação sólida e positiva entre a polícia e a sociedade. Fórmulas tradicionais como sofisticação tecnológica, agressividade nas ruas e rapidez no atendimento de chamadas do 190 se revelam limitadas na inibição do crime, quando não contribuem para acirrar os níveis de tensão e descrença entre policiais e cidadãos. Mais além, a enorme desproporção entre os recursos humanos e materiais disponíveis e o volume de problemas, forçou a polícia a buscar fórmulas alternativas capazes de maximizar o seu potencial de intervenção. Isto significa o reconhecimento de que a gestão da segurança não é responsabilidade exclusiva da polícia, mas da sociedade como um todo. (DIAS NETO, 2013 p.84)6. A SEDS, buscando o controle e a arrefecimento da criminalidade e da violência, programou uma política que ajustava o planejamento das atuações bem como a coordenação, gestão, domínio e por fim a avaliação. Desse modo ficou sob a responsabilidade dela a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros Militar, Secretaria de Administração Penitenciária e a Defensoria Pública. Esta secretaria passou a comandar as atividades de caráter operacional com a finalidade prevenir e controlar a criminalidade, atender os adolescentes no cumprimento de medidas socioeducativas, administrar o sistema penitenciário do Estado a fim de recuperar e reincidir pessoas autores de praticas ilícitas além de integrar todos os órgãos de segurança pública existentes no Estado. III.I. Programa de controle de homicídios: “fica vivo!” A Polícia Militar juntamente com a Polícia Civil e com o Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP/UFMG) criou o Programa de Controle de Homicídios através do Decreto N°. 43334, de 20 de maio de 2003. Programa este conhecido como “fica vivo!”: Art. 2° - O Programa de Controle de Homicídios tem por objetivo reduzir a incidência de homicídios dolosos, mediante ações de prevenção e repressão, nas áreas de risco da Região Metropolitana de Belo Horizonte e em outros municípios do Estado cujos indicadores de criminalidade violenta o justifiquem, contando, para sua execução, com a ação integrada dos exe-
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cutivos federal, estadual e municipal, do Poder Judiciário, do Ministério Público Estadual, bem como das organizações não governamentais de atendimento ou assistência social e da sociedade em geral (MINAS GERAIS, 2003, p.1). O Programa foi fundado a partir do cruzamento de informações dos órgãos de Segurança Pública os quais concluíram que a prática delituosa e violenta em Belo Horizonte era mais frequente nos aglomerados. Concluíram ainda que o crime estava contribuindo para o aumento da taxa de homicídios e que as vítimas em grande parte eram jovens quem viviam nesses locais. Tal projeto iniciou-se no Morro Das Pedras e embutido posteriormente em outras vilas e aglomerados. Como o próprio nome pronuncia, o objetivo principal é a redução dos homicídios além da realização de trabalhos envolvendo oficinas para jovens entre 12 e 24 anos que residem nos locais de risco. Na Pedreira Prado Lopes o programa foi inserido em outubro de 2004. Tendo como base a diretriz pré-determinada propõem ações de prevenção para todos, contudo para os jovens em específico a fim de reduzir os indicadores de homicídios e melhorar a qualidade de vida da comunidade local. Para isso são realizadas campanhas educativas e mobilizações comunitárias para conscientizar e afastar os jovens do tráfico de drogas e do uso dele. III.II. Grupo Especializado em Patrulhamento em Área de Risco (GEPAR) O Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco (GEPAR) foi criado pela Polícia Militar de Minas Gerais a través da Instrução nº 002/2005. O grupo surgiu da necessidade de encontrar novas formas para suprir tais deficiências por parte da PM no combate a criminalidade. Influenciado, principalmente, pelo “FICA VIVO” por meio do Grupo de Intervenção Estratégica (GIE7) o GEPAR foi mais uma criação da SEDS dentre várias outras como resposta de contenção á criminalidade e a diminuição dos homicídios em Belo Horizonte e região. Ele foi instituído primeiramente no Aglomerado Morro das pedras localizado na região oeste de Belo Horizonte. O grupamento passou a ser uma nova ferramenta utilizada pelo Estado de Minas Gerais com o intuito de se estabelecer em locais em que o crime de forma organizada estava substituindo o próprio Estado e impondo as próprias regras. Subjetivamente a comunidade de forma compulsória cumpria as imposições, uma vez que não aceitando as determinações dos criminosos são reprimidos por ameaças e a violências tanto físicas quando psíquicas. Homicídios de adolescentes provocados por disputas de território entre gangues que movimentam o tráfico de drogas nestas áreas passam a ser uma constante e a vida passa a ser banalizada. Essas gangues e grupos se tornam tão fortes que começam a enfrentar o único órgão estatal que esporadicamente se faz presente nestas áreas: a polícia. Os confrontos são constantes, as ações das gangues cada vez mais ousadas e a polícia cada vez mais repressora e violenta. A comunidade desses grupos passa a ficar oprimida tanto pelas ações dos traficantes quanto da polícia, gerando grande insatisfação social. (MINAS GERAIS, 2005, p. 7). O GEPAR se espelhou no Grupo de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), promovido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ) no ano de 2000. Percebe-se que a atuação policial nos aglomerados é diferenciada das demais atividades ostensiva rotineira. A repressão qualificada da criminalidade no local se evidencia pela permanência constante de forma preventiva ressaltando o respeito aos
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Direitos Humanos e atraindo a comunidade. III.II.I. Incumbência do GEPAR
Baseando-se na repressão qualificada e na prevenção, o grupamento atua nos focos em que verifica ser, a priori, de extrema necessidade. Destaca-se, no entanto, a identificação territorial, os locais com maiores índices de crimes violentos juntamente com os horários e modus operandi. Nesse caso, devem ser levados em consideração os lugares onde há mais riscos e com maior reincidência de crimes violentos, além do conhecimento das pessoas residentes. A atualização constante desses dados é de suma importância para a manutenção do GEPAR nas áreas de risco a fim de angariar a promoção social. São objetivos gerais do GEPAR conforme Instrução nº 002/2005 do Comando-Geral da Polícia Militar de Minas Gerais: 2 MISSÃO 2.1 Geral 2.1.1 Executar o policiamento ostensivo diuturno dos aglomerados, vilas e locais violentos (áreas de risco), onde o número de homicídios evoluam para um quadro de descontrole, bem como outros crimes violentos, devidamente constatado pela SEDS ou outros órgãos do sistema de defesa social; e em locais onde estejam implantados ou possam emergir focos de associações delituosas(crime organizado) voltadas para a quebra da Paz Social. 2.1.2 Atuar diretamente na prevenção de crimes violentos, em especial o homicídio, bem como o tráfico ilícito de entorpecentes no interior desses locais. 2.1.3 Neutralizar, de maneira preventiva e repressiva, as “guerras de quadrilhas rivais” existentes nas áreas de risco evitando a eclosão de homicídios e outros crimes violentos. 2.1.4 Priorizar as ações de caráter preventivo, especialmente aquelas inibidoras dos crimes contra a pessoa. 2.1.5 Desenvolver e participar de projetos sociais que visem a interação da comunidade com a Polícia Militar e demais órgãos do sistema de defesa social, melhorando assim o relacionamento e a visão dos moradores destes locais com a polícia e resgatando a dignidade dessas pessoas (MINAS GERAIS, 2005, p. 9). III.II.I.I. Repressão qualificada
Resume-se no monitoramento territorial e das gangues que operam na região. Fazendo periodicamente atualização nos cadastros de infratores e observando o modo de operação deles de forma ostensiva e imediata. O reconhecimento dos indivíduos e das chamadas “zonas quentes de criminalidade” (ZQC) é de grande valia, porque faz com que o GEPAR atue diretamente no problema não trazendo perturbação para o cidadão de bem que ali reside. III.II.I.II. Prevenção
A Polícia Militar como um todo nem mesmo o GEPAR que realiza um policiamento diferenciado não consegue sozinho prevenir o crime. É necessário envolver todas as partes para proporcionarem convergências em ideias básicas em prol da sociedade. Para atuar na comunidade é preciso conhecê-la. Para isso carece tomar algumas medidas tais como: coleta de informações, análise da comunidade, identificação dos grupos relevantes, a identificação da liderança, reunião dos líderes dos grupos relevantes dentre outros. A prevenção eficiente do crime só é lograda com êxito caso exista auxilio mútuo dos esforços. O controle só é alcançado por meio das
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experiências e do auxílio direto de todos aqueles que querem e que são inseridos inteiramente no conflito e almejam a solução dele. Esse modelo de prevenção é um padrão de policiamento comunitário utilizado nos EUA como Policing Oriented Problem Solving (O Policiamento Orientando para o Problema - POP). O Policiamento Orientado ao Problema é mais um meio de engajamento social. A premissa baseia-se no conceito de que a polícia deixa de reagir ao crime (crime fighting policing) e passa a mobilizar os seus recursos e esforços na busca de respostas preventivas para os problemas locais (problem-oriented policing); ao invés de reagir contra incidentes, isto é, aos sintomas dos problemas, a polícia passa a trabalhar para a solução dos próprios problemas. A noção do que constitui um problema desde uma perspectiva policial expande-se consideravelmente para abranger o incrível leque de distúrbios que levam o cidadão a evocar a presença policial. A expectativa é de que ao contribuir para o encaminhamento de soluções aos problemas, a polícia atrairá a boa vontade e a cooperação dos cidadãos, além de contribuir para eliminar condições propiciadoras de sensação de insegurança, desordem e criminalidade.” (CURSO NACIONAL DE MULTIPLICADOR DE POLÍCIA COMUNITÁRIA, 2013, p.112). Desenvolvido na década de 1970 nos EUA, o POP formulou uma diretriz para resolver o problema no crime. Esse método ficou conhecido como SARA (Scanning, Analysis, Response and Assessment) que implantado e traduzido no Brasil ficou conhecida como IARA (Identificação, Análise, Resposta e Avaliação). De forma lacônica identificar o problema é verificar aquele que é mais constante e problemático no meio social, o qual irá se inteirar o máximo sobre ele. Analisar o problema é verificar em que situações ele ocorre, intensidade e o que poderá ser feito para cessar essa dificuldade. Responder equivale a realizar uma estratégia e executá-lo, com a participação de todos os interessados para esgotar a problema. E por fim avaliar que se resume em apreciar se o objetivo foi cumprido integralmente e se não, estabelecer novas metodologias. III.II.I.III. Promoção social
A participação do GEPAR nas áreas de risco deve ser voltada também com o foco de atrair a simpatia e a credibilidade da comunidade geral. O estreitamento dessa relação auxilia para a prestação da segurança pública com mais qualidade. Para isso é importante a participação do grupo em ações de entretenimento de cunho social, cultural e educacional que abordem criança e moradores. A confiança das pessoas através do trabalho social afeta diretamente na questão da segurança. Um serviço policial que se aproxime das pessoas, com o nome e cara bem definidos, com um comportamento regulado pela frequência pública cotidiana, submetido, portanto, às regras de convivência cidadã, pode parecer um ovo de Colombo (algo difícil, mas não é). A proposta de Polícia Comunitária oferece uma resposta tão simples que parece irreal: personalize a polícia, faça dela uma presença também comum. (FERNANDES, 1994. p.10).
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Se não houver uma disposição da polícia de pelo menos tolerar a influência do público sobre suas operações, o policiamento comunitário será percebido como “relações públicas” e a distância entre a polícia e o público será cada vez maior. (DIAS NETO, 2013 p.84)8.
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do GIE, o qual possui a competência de delinear as intervenções nos problemas que estão proeminência. Nesse sentido, conforme aduz a própria Instrução nº 002/2005 da PMMG, ocorre a repressão aos focos da prática do tráfico de drogas e outros ilícitos, apreensão de armas e no cumprimento de mandados de prisão e busca e apreensão dos delinquentes. A repressão é o resultado da promoção social aliado à prevenção qualificada.
Destarte, a aproximação do Estado com sociedade demostra uma forma exata e inteligente de se fazer Segurança Pública. O que se via no modelo clássico era a utilização de metodos que ultrapassados, ineficazes e inadequados era questionado como arbitrário e repressor por parte dos cidadãos. IV. INSERÇÃO DO GEPAR NA PEDREIRA PRADO LOPES Levando em consideração ao novo emprego de policiamento baseado na redução da criminalidade e dos homicídios GEPAR foi criado na Pedreira Prado Lopes em 20 de abril de 2004. Ele pertence ao setor 34.16 da 21° Companhia do 34° Batalhão de Policia Militar (34°BPM) o qual possui responsabilidade sobre a região Noroeste de Belo Horizonte. O GEPAR da Pedreira Prado Lopes é comandada de forma imediata por um oficial de polícia com a graduação de 2° Tenente. Conta atualmente com um efetivo de 24 Militares e quatro viaturas. Levando em consideração a locomoção, por meio da parceria com a Secretária Nacional de Segurança Pública (SENASP) há duas GM Blazer e dois Fiat/Adventure Locker. A atividade castrense é promovida no local em um período compreendido de 10 horas e dividido em três turnos de serviços e duas equipes de forma interrupta. Os participantes são primeiramente submetidos ao Curso GEPAR a fim de se nivelarem a respeito da filosofia do grupo além do emprego dos Direitos Humanos e da Polícia Comunitária. O trabalho do GEPAR na PPL baseando-se nos três pilares de instituição que são a promoção social, prevenção e repressão qualificada se dá de forma prática das seguintes formas: Distribuição de cestas básicas e roupas para os necessitados. Dessa forma, os moradores vão adquirindo maior confiança no policial que atua constantemente no local. É nesse momento que os integrantes vão obtendo informações de relevância para o combate a criminalidade. A comunidade vai percebendo que o trabalho policial não se resume apenas na repressão qualificada e sim no bem estar de todos a qualquer custo; Realização da prevenção em paralelo com a promoção social. Durante a assistência é possível colher informações de outras necessidades que a comunidade anseia no quesito segurança além de obter maior conhecimento mapeando o físico do local. Assim, há mais facilidade de acompanhar os infratores e monitorá-los mirando à reintegração social o qual muitas vezes são dificultados pela própria exclusão no meio social. Paralelamente, é promovida a ordem púbica; Atuação em conjunto com a Polícia Civil (PC) e Ministério Público (MP) em operações que visam à desarticulação de gangues ligada ao tráfico de drogas. Vale ressaltar a importância
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O GEPAR é a declaração de presença e de força do Estado que por meio da repressão esquadrinha a diminuição da pratica criminosa e consequentemente a redução dos homicídios. Essa iniciativa gera efeitos em torno de todo o aglomerado que faz também diminuir a pratica de ilícitos de forma subjetiva em virtude da simples presença da polícia de forma ostensiva. Neste período de instituição, o aglomerado PPL vivia um momento conturbado em virtude da guerra existente entre gangues para o controle do tráfico de drogas na região. Como resposta imediata a sociedade ao combate a criminalidade, o GEPAR da PPL foi requerido com urgência para agir exclusivamente no problema. IV.I Análise estatística de crimes na PPL Consoante à análise estatística da 21ª Cia do 34° Batalhão (2004), todo o tráfico de drogas na Pedreira Prado Lopes (PPL) era comandada pelo traficante conhecido como Roni Peixoto. No ano de 1996 ele é preso pela Polícia Federal e transferido para a penitenciária José Maria De Alquimim, onde fugiu, refugiando-se na cidade do Rio de Janeiro. No retorno dele a Belo Horizonte, percebeu que um indivíduo conhecido como Serginho Cascola havia assumido o controle do trafico na PPL sendo Roni preso novamente em 1996. O interesse pelo controle geral do tráfico de drogas na região fez com que a PPL no final de 1999 e início de 2000, fosse dividida em quatro territórios de comando e controle: Coração, Son, Tatu e Rodriguinho. No ano de 2003 Roni Peixoto ao ser solto tentou novamente assumir o comando dos pontos de venda de drogas, contudo foi preso novamente no mesmo ano. Atualmente, existem na PPL quatro facções principais: Guapé (favelinha) parte alta do complexo, Carmo do Rio Claro, parte intermediária e Marcazita e Terreirão, os quais correspondem à parte baixa. Neste contexto, o GEPAR da PPL foi criado em um momento em que o local deparava-se com intenso conflito entre gangues no monopólio do trafico. E para demostrar a o interesse do Estado em pacificar o local e estar presente constante, os diversos combates com a PMMG foram invitáveis.
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Como se pode visualizar, nos gráficos acima, quando a PPL era comandada de forma uniforme o índice de homicídios e de tentativa deste apresentava poucas oscilações de um ano para outro. O auge ocorreu em 2004 com a instituição do GEPAR e com a divisão do território em áreas de comando e de tráfico de drogas. Nesse período, todos os chefes do tráfico eram desfavoráveis ao novo projeto da Polícia Militar em inserir diuturnamente militares no aglomerado. A presença incessante do policiamento compromete diretamente na mercancia e prática destes e de outros ilícitos. Atrelado a isso, todos os pontos de tráfico, aproveitando-se da situação de conflito tentava assumir os outros pontos e promover um novo monopólio. A comunidade, inicialmente, desconfiava do GEPAR, pois a sensação de insegurança aumentou em virtude da instabilidade que
o local apresentava. Contudo, por meio da aplicação dos institutos basilares do grupamento, tais como a repressão qualificada, prevenção e promoção social, o quadro foi se invertendo. Os cidadãos percebendo a possibilidade de mudança além de obter confiança nos militares que atuavam passaram a auxiliar o poder público na articulação do crime organizado. Observa-se, no entanto, que com o passar dos anos os índices de criminalidade decresceu atingindo índices considerávies e, praticamente estáveis a partir da implantação do GEPAR. Além dos homicídios, outras naturezas criminosas também reduziram significativamente como se podem observar os números abaixo.
Como citado, em termos do crime de homicídio tentado e consumado houve uma redução significativa ao longo dos anos a partir da instituição do GEPAR. Percebe-se, no entanto, que outras práticas criminosas houve oscilações em termos de incidência a partir da criação do grupo. O quadro acima demonstra que o crime de roubo foi a que mais ocorreu e em maior número e anos levando em comparação ao estupro e ao sequestro/Cárcere Privado.
redução das infrações não se resume apenas aos homicídos, mas em várias outras modalidades existentes e praticadas corriqueiramente no aglomerado. O trabalho intensivo dos policiais alicerçados no policiamento orientado para a resolução de problemas contribuiu de fato no local. Os comportamentos deles na região favoreceram para aprensão dos infratores a margem da lei e dos instrumentos que colaboram para prática criminosa como, por exemplo, a arma de fogo. Foi verificado que a existência de um planejamento é de extrema importância para lograr exito no trabalho. E isso é verificado atraves do mapeamento do espaço físico, do monitoramento dos supostos infratores por meio das informações colhidas pelos militares junto com os cidadãos, que com esta base atue diretamente no problema. A incerção de policiais submetidos a uma prévia capacitação
V. CONCLUSÕES A PARTIR DOS DADOS APURADOS Tendo em vista os dados estatisticos adquiridos há a ratificação que após a inauguração do GEPAR, o índice da criminalidade incluindo, principalmente, os homicídos, tanto consumado quanto tentado tiveram uma redução significativa ao longo dos anos. Os gráficos apresentados comprovam através dos anos que a
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por meio de cursos baseados na polícia Comunitária e nos Direitos Humanos além dos treinamentos práticos subsidiou para uma satisfatória comuncação entre os moradores que, respeitados, adquiram confiança no grupamento facilitando a permanência destes e influênciado diretamente para a solidificação do projeto na região. A inovação no modelo de policiamento adotado baseado na estratégia e na Polícia Comunitária é de grande importância. A partir das pesquisas do real problema é que se pode gerar um plano de ação capaz de combater com eficácia e eficiência os anseios que os cidadãos comunidade aspiram. Nesse contexto, ratifica-se que o GEPAR, projeto de conteção por parte da PMMG, assistiu a retomada do poder do Estado. Realidade esta, que não se via com o crime organizado. Assim o dever do Estado no aglomerado Pedreira Prado Lopes está sendo cumprindo no que diz respeito à promoção segurança pública e a desarticulalção da criminalidade. Do mesmo modo, está fazendo cumprir parte do art.144 da CR/88 onde o dispositivo legal assegura que a segurança pública é responsabilidade de todos. Ressalta-se que, de fato, o novo conceito de polícia e policiamento gera efeitos positivos. Mas, em virtude da própria biografia do local à respeito do surgimento e da criminalidade que vem se arrastando a anos. VI CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização deste trabalho teve como escopo revelar os resultados que o Grupo Especializado em Area de Risco (GEPAR) proporcionou para a Pedreira Prado Lopes para a redução da criminalidade. Grupo este criado pelo Estado de Minas Gerais, por meio da PMMG em parceria com outros orgãos como a Polícia Civil e o Ministério Público a fim de servir de instrumento para a preservação da Ordem Pública e que é garantido na Constituição da República de 1988. 6.1 Conclusão Desta forma, admite-se que o GEPAR da PPL obedece a Instrução n. 002/05-CG correspondendo os três pilares (prevenção, repressão qualificada e promoção social) de forma eficiente. Com isso, vem resgantando gradativamente a confiaça da comunidade local que de forma sbujetiva interage com o grupo apresentando informações do local de suma importância. A permanência constante da Polícia Militar, agindo não somente de forma repressiva, mas de forma preventiva e integrada com a comunidade é capaz de reduzir a criminalidade e promover a manutenção da ordem pública no local conforme asegura a CF/88. Pelo sucesso desta ferramenta, o GEPAR não deve ser interrompido em virtude da própria história do local apresenada. Os efeitos, são de médio em longo prazo. Constata-se que a afinidade dos policiais com a comunidade colaborou para a redução dos índeces de cirminalidade. A potencialização dessa conexão é de suma importância para uma maior redução dessas práticas criminoas. Dessa maneira, as pessoas da região, sentindo-se valorizadas, participam com mais afinco nas decisões de interesse local. O aumento de recursos lógistico e humano por meio da inserção da base comunitária em conjunto com policiamento a pé, e com a bike patrulha seria uma alternativa do grupamento de consubstanciar essa relação. A partir da nova estratégia de policiamento alocada, se faz necessário a fomentação de ponderações com a comunidade e com os integrantes do GEPAR, a fim de analisar o grau de satisfação de ambas as partes e de verificar o alcançe do objetivo proposto de interação e convergência na resolução dos conflitos existentes.
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Por fim, a submissão periódica dos policiais integrantes do grupamento em capacitações na área da Polícia Comunitária, Direitos Humanos além da própria instrução normativa que regula a criação do GEPAR. Essa pratica denota a importância da existência do policial especializado com tal destreza no local. Igualmente, a partir das informações apresentadas, o GEPAR orientado pelos princípios da Polícia Comunitária e Direitos Humanos para a solução dos problemas locais denota uma nova forma de se fazer polícia e segurança pública a qual enquadara-se com o estado de direito que hoje é uma realidade. REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Conflitualidade e Violência: Reflexões Sobre a Anomia na Contemporaneidade. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, SP: v.10, n.01.p.24, 1998. 2 Ibid,Ibid. BATISTA, Nilson Dias Pereira. O Emprego Do Grupo Especializado Em Policiamento De Áreas De Risco (Gepar) Da Décima Quinta COMPANHIA DE Policia Militar Independente (15ª CIA PM IND) Em Sabará Frente À Filosofia De Polícia Comunitária. Belo Horizonte: Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. 2013. BELO HORIZONTE, Prefeitura de. Historias de bairros de Belo Horizonte: Regional Noroeste. Belo Horizone: Prefeitura de Belo Horizonte.2008. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. BRASIL. Ministério da Justiça. Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária. Brasília: Secretaria Nacional de Segurança Pública, 2013. CARVALHO, Glauber da Silva. Policiamento Comunitário: Origens. São Paulo: POLICIAL ESP, Apostila,1998. DALLARI, Dalmo de Abreu in: O Papel da Polícia no Regime Democrático. São Paulo: Mageart, 1996. DIAS NETO, Theodomiro. Segurança Urbana: o modelo da nova prevenção. Editora Revista dos Tribunais: Fundação Getúlio Vargas, 2005. EDER, Reinaldo Ribeiro. Adequação Do Emprego Do Grupo Especializado Em Policiamento De Área De Risco (GEPAR) Às Normas E Regulamentos Da Polícia Militar De Minas Gerais (PMMG). BELO HORIZONTE: Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. 2010. FERNANDES, Rubem César. Policiamento Comunitário: como começar. Rio de Janeiro: POLICIAL RJ, 1994. GUEDES, Breno Castilho Da Silva. O Grupo Especializado em Policiamento de Áreas de Risco (GEPAR) como Agente Externo de controle da comunidade: o surgimento de um modelo do policiamento comunitário em aglomerado urbano. Belo Horizonte: Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, 2008. LEITE, Lana Leite. O Programa Fica Vivo! – Uma análise sob a perspectiva do capital social. Belo Horizonte: Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, 2003. MINAS GERAIS, Polícia Militar. Comando Geral. Diretriz para a produção de serviços de segurança pública n°02/2005-CG – DPSSP n° 02/2005-CG Regula a criação e Emprego do GEPAR, 2005. MINAS GERAIS. Decreto n. 43.334, de 20 de maio de 2003. Cria o Programa Controle de Homicídios do Estado de Minas Gerais. Minas Gerais Diário do Executivo. Belo Horizonte, 21 maio 2003. MURPHY, Patrick V. Grupo de Trabalho para Implantação da Polícia Comunitária. São Paulo: POLICIALESP/Conselho Geral da Comunidade, 1993. NASCIMENTO, Luís Felipe Zilli do. Violência e criminalidade em vilas e favelas dos grandes centros urbanos: um estudo de caso da Pedreira Prado Lopes. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG- Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004.
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Pública – SENASP (2013, p.84). 7 O Grupo de Intervenção Estratégica é formado por representantes do Poder Judiciário de Minas Gerais (Tribunal de Justiça), Militar e Civil de Minas Gerais, da Polícia Federal, do Ministério Público, da Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG, de Prefeituras e da Secretaria de Defesa Social (SEDS).Os membros do Ministério Público, integrantes do grupo, atuam nas áreas da Infância e Juventude, Tribunal do Júri, Promotores Criminais e de Combate ao Crime Organizado. O Poder Judiciário é representado por Juízes das Varas de Tóxicos, Criminais e de Execução Penal. (LEITE, 2003, p.148) 8 Theodomiro Dias Neto, do livro Policiamento Comunitário e o Controle Social o qual suas concepções foram incluídas na obra do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária idealizado pela Secretária Nacional de Segurança Pública – SENASP no ano de 2013. 9 Os dados estatísticos adquiridos até 2005 foram obtidos na 21ª Cia Esp. do 34°BPM. Após esse período foi adquirido na estatística do 34°BPM, a partir da criação do SIDS e digitalização dos números.
URBEL. Plano Global Específico da Pedreira Prado Lopes. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/PBH. 1998.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BH BPM CG CR/88 CRISP EUA GEPAR GIE GPAE IARA MP PAC PBH PC PGE PMMG– PMRJ POP PPL SEDS SENASP UFMG URBEL ZQC
– Belo Horizonte – Batalhão de Polícia Militar – Comando Geral – Constituição da República de 1988 – Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública – Estados Unidos da América – Grupo Especializado de Policiamento em Área de Risco – O Grupo de Intervenção Estratégica – Grupo de Policiamento em Áreas Especiais – Identificação, Análise, Resposta e Avaliação – Ministério Público – Programa de Aceleração do Crescimento – Prefeitura de Belo Horizonte – Polícia Civil – Plano Global Específico – Polícia Militar de Minas Gerais – Polícia Militar do Rio de Janeiro – Orientado para o problema – Pedreira Prado Lopes – Secretaria de Estado de Defesa Social – Secretária Nacional de Segurança Pública – Universidade Federal de Minas Gerais – Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – Zonas Quentes de Criminalidade
NOTAS DE FIM 1 Aluno graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Orientador Professora Ludmila Castro Veado Stiger. 3 Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Histórico e aspectos sociais, 2015. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet& pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=8178&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=0&idConteudo=27125&chPlc=27125>. Acesso em: 14 de junho de 215 4 O Programa Vila Viva de intervenção, conforme informações disponibilizadas pelo portal da prefeitura de Belo Horizonte, almeja à urbanização, o desenvolvimento social e a regularização dos assentamentos já existentes dentro dos aglomerados. Consolidado em 1993, este projeto se deu por meio da Política Municipal de Habitação através da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL. 5 Anomia é uma condição social em que as normas reguladoras do comportamento das pessoas perdem a validade. Onde prevalece a impunidade, a eficácia das normas está em perigo. As normas parecem não mais a existir ou, quando invocadas, resultam sem efeito. Tal processo aponta no sentido da transformação da autoridade legítima (o Estado) em poder arbitrário e cruel. (ADORNO, 1998, p. 24). 6 Theodomiro Dias Neto, do livro Policiamento Comunitário e o Controle Social o qual suas concepções foram incluídas na obra do Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária idealizado pela Secretária Nacional de Segurança
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A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Camilla Nunes Araújo¹ Eduardo Nepomuceno de Sousa² RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a previsão constante no art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro e verificar a possiblidade de sua aplicação. A evasão do condutor do local do acidente para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída não poderia ser configurada como crime, uma vez que tal conduta está resguardada pelos princípios constitucionais da ampla defesa, da igualdade e da não auto incriminação. Trata-se, pois, de imposição que viola diretamente alguns dos princípios basilares do ordenamento jurídico. Atualmente, a inconstitucionalidade do referido delito vem sendo alvo de intensas discussões no âmbito doutrinário e dos tribunais. PALAVRAS-CHAVE: fuga; responsabilidade civil; responsabilidade penal; princípios; inconstitucionalidade. ABSTRACT: This study aims to analyze the constant provision in art. 305 of the Brazilian Traffic Code and verify the possibility of its application. The avoidance of the driver from the crash site to escape criminal or civil liability that may be entrusted could not be configured as a crime, since such conduct is guarded by the constitutional principles of legal defense, equality and non-self incrimination. It is therefore of taxation which directly violates some of the basic principles of the legal system. Currently, the unconstitutionality of this offense has been the subject of intense discussions in the doctrinal part and the courts. KEYWORDS: escape; civil responsability; criminal liability; principles; unconstitutional. SUMÁRIO: I Introdução; I.I Elementos do tipo penal, I.II Objetivos do legislador; II Princípios Constitucionais, II.I Princípio da Ampla Defesa, II.I Princípio da Não Auto Incriminação; II.III Principio da Igualdade; III Inconstitucionalidade do art. 305 do CTB, III.I Objeto ilícito, III.II Tratamento Jurídico nos demais delitos do Código Penal; IV Posição Jurisprudencial; IV.I Comentários pertinentes; V Considerações Finais; Referências.
I. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar a constitucionalidade da norma contida no artigo 305 do Código Trânsito Brasileiro, levando em consideração as prerrogativas e garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição da República do Brasil, principalmente no tocante aos princípios expressos da ampla defesa, da igualdade e da não auto incriminação. Trata-se de tema de grande relevância, pois, além de envolver garantias fundamentais, representa elemento indispensável para configuração de um processo justo, respeitando os princípios e normas do direito processual penal e os direitos previstos na Carta Magna, matriz do ordenamento jurídico brasileiro. Durante a formulação do presente artigo, fez-se necessária a interpretação de diversos dispositivos de maneira adequada e congruente, além da análise de todo o procedimento criminal sob a ótica dos princípios constitucionais, com foco principalmente naqueles norteadores do processo penal. Fez-se necessário, ainda, o estudo acerca do Código de Trânsito Brasileiro, explicitando qual era o objetivo do legislador ao tipificar a conduta descrita no artigo em tela, além de analisar a razão de sua inconstitucionalidade. Será avaliado, portanto, todos os aspectos do delito previsto no artigo 305 do CTB e a possibilidade de sua aplicação no processo criminal, com base principalmente nas diretrizes e princípios fundamentais presentes no ordenamento jurídico brasileiro. I.I. ELEMENTOS DO TIPO PENAL O delito previsto no artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei nº 9.503 de 23 de setembro de 1997, prevê a
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tipificação da conduta “afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída”. A pena do referido artigo é de seis meses a um ano, ou multa. Trata-se de crime próprio, que somente pode ser cometido pelo condutor do veículo envolvido no acidente e que foge do local. É classificado como crime de mera conduta ou formal, isto é, consuma-se no exato momento em que a ação é praticada e independe de qualquer resultado. Dessa forma, o tipo penal não exige que o acidente de trânsito tenha vítimas ou feridos. O sujeito passivo do delito em questão é o Estado e, de forma secundária, a pessoa prejudicada pela conduta. Somente responde pelo delito o indivíduo que age com dolo direto, ou seja, aquele que, por vontade própria, se afasta do local do acontecimento. Além disso, trata-se de crime que admite tentativa, desde que o agente não obtenha êxito em se afastar do local. A ação penal é pública incondicionada e de competência do Juizado Especial Criminal, uma vez que a pena máxima não ultrapassa 02 (dois) anos, sendo considerado um crime de menor potencial ofensivo, nos termos do artigo 61 da Lei 9.0099/95. Importante ressaltar ainda, que poderá ocorrer em concurso material com diversos outros crimes previstos no Código de Trânsito Brasileiro, na medida em que, praticando mais de uma ação tipificada, o agente estará incorrendo em mais de um crime. Assim, em primeiro lugar, é possível que o condutor pratique uma lesão corporal culposa no trânsito e, após, evada no local para fugir à responsabilidade penal. Assim, no entendimento atual, as condutas são consideradas como dois delitos distintos, com sanções diferenciadas.
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I.II. OBJETIVOS DO LEGISLADOR Em primeiro lugar, cumpre salientar que o delito em comento não se trata de crime de trânsito propriamente dito, uma vez que não atenta contra a segurança do tráfego terrestre. Ao criminalizar a conduta, o legislador entendeu que esta representaria um indício de culpa do condutor, que estaria criando obstáculos e/ou dificultando o trabalho da Justiça tanto em relação ao esclarecimento do fato, quanto no tocante à sua identificação. De acordo com o tipo penal, a conduta do agente é tipificada somente quando se afasta do local do acidente para uma finalidade específica, qual seja, a de fugir a responsabilidade civil ou criminal que eventualmente lhe seja atribuída. Assim, ao definir este tipo penal, o legislador estaria preocupado em resguardar a identificação do condutor do veículo envolvido para fins da persecução penal, finalidade esta que não encontra mais respaldo jurídico em razão dos diversos fundamentos expostos no decorrer do presente trabalho. Assim, o objetivo de imprimir um maior rigor à punição dos fatos envolvendo veículos automotores, levou o legislador a descrever uma conduta que não deveria ser considerada como crime e, consequentemente, não poderia, em hipótese alguma, ser punível. II. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS O termo princípio pode ser utilizado nos mais diversos contextos, expressando vários significados. Trata-se de norma com alto grau de abstração que reflete os valores fundamentais da sociedade, servindo de parâmetro na atividade interpretativa dos dispositivos e de base para todo o ordenamento jurídico. Inicialmente, os princípios não possuíam força de norma jurídica, ou seja, eram apenas a exteriorização dos reflexos da ordem moral. Atualmente, não mais são considerados como simples orientações gerais, mas sim, como comandos dotados de real efetividade. “Com o passar do tempo e com a evolução do Direito, os princípios foram reconhecidos como verdadeiras normas com eficácia jurídica e aplicabilidade direta e imediata” (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p.149). Os princípios, assim, têm por finalidade nortear e inspirar as normas e ciências jurídicas. Na mesma linha de pensamento, Celso Antônio Bandeira de Mello (2000, p.747-48), afirma que: Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. Todos os ramos do direito, incluindo o direito penal, para adquirirem a plena eficácia, devem ser compatíveis e devem observar com máximo rigor os princípios descritos na Carta Magna. Os princípios podem ser vistos como bases reguladoras da matéria penal, sendo verdadeiros norteadores dos fundamentos, características, aplicação e execução do Direto Penal. Por isso, podem ser considerados como os “pilares sobre os quais assentam as instituições jurídico-penais: os delitos, as contravenções, as penas e as medidas de segurança, assim como os critérios que inspiram as exigências político-criminais”. (PRADO, Luiz Regis, 2010.) II.I. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA Os direitos fundamentais sempre foram alvo de preocupação e é de extrema importância que sejam assegurados pelo legislador. Dentre os direitos fundamentais, está previsto o direito de defesa, que têm como finalidade principal a garantia da liberdade individual.
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Acerca da ampla defesa, Moraes (2003, p. 124) assevera: Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto que o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa da feita pelo autor. A Defesa é o mais legítimo direito dos homens. O princípio da ampla defesa se relaciona com o princípio do contraditório e encontra-se consagrado no art. 5º, inciso LV da Constituição da República de 1988. Trata-se de garantia fornecida ao indivíduo para que este possa ter uma defesa completa no tocante à imputação que lhe foi realizada, levando em consideração a fragilidade e hipossuficiência que o investigado possui frente ao poder punitivo do Estado. Alguns doutrinadores, ao opinarem sobre o referido tema, entendem que a ampla defesa se subdivide em dois aspectos diferentes. O primeiro aspecto seria o positivo, no qual é garantida ao indivíduo a efetiva utilização dos instrumentos e dos meios de produção. Já o aspecto negativo deste princípio, consiste na não produção de elementos probatórios que possam prejudicar o acusado, isto é, a não produção de provas que possam causar risco à sua defesa. Assim, tal direito é mais do que a simples possibilidade de manifestação do acusado no processo. O exercício da ampla defesa é composto por alguns direitos básicos que devem ser observados para garantir a real proteção do indivíduo. II.II. PRINCÍPIO DA NÃO AUTO INCRIMINAÇÃO O princípio da não autoincriminação, também conhecido como “nemo tenetur se detegere”, encontra-se implícito na Constituição Federal e decorre de princípios constitucionais expressos. Está relacionado, assim, ao direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXIII, CF, à presunção de inocência, constante no art. 5º, LVII, CF, e à ampla defesa, presente no art. 5º, LV, CF. Além disso, há uma previsão expressa do supracitado princípio no Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, que em seu artigo 8º, declara que ninguém é obrigado a fazer prova ou a declarar contra si mesmo, isto é, ninguém é obrigado a auto-incriminar-se”. Também chamado de Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o pacto foi firmado pelo Brasil e incorporado ao ordenamento jurídico pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. O direito a não autoincriminação dá ao agente diversas prerrogativas, tais como o direito de permanecer em silêncio, de não produzir elementos de incriminação contra si, o direito de se recusar a participar de procedimentos probatórios que lhe possam afetar negativamente, de não ceder seu corpo para produção de prova incriminatória, de não colaborar com a investigação, de não confessar e o direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa. Portanto, ninguém pode ser obrigado a fornecer, exceto por vontade própria, qualquer tipo de informação ou prova que o incrimine. O princípio “nemo tenetur se degere” desde então, tem assumido fortemente um “caráter garantístico no processo penal, resguardando a liberdade moral do acusado para decidir, conscientemente, se coopera ou não com os órgãos de investigação e com a autoridade judiciária” (QUEIJO, Maria Elizabeth, 2003. p. 27). Importante ressaltar ainda que, no Processo Penal, a faculdade de não colaborar ou de permanecer em silêncio, não pode acarretar
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em obrigação penal? De outro lado, sendo legítima a exigência de ficar no local, por que impor essa obrigação apenas em relação aos delitos de trânsito, sabendo-se que o homicida doloso, o estuprador, etc. não contam com obrigação semelhante? Ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, a declarar contra si mesmo, ou seja, a auto incriminar-se (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8). O dispositivo em questão resulta numa espécie de auto-incriminação. (1999 - pg. 46-47)
ao indivíduo nenhum tipo de prejuízo. O exercício do referido direito faz com que a ausência de declaração não seja interpretada em desfavor do investigado e nem seja considerada como indício negativo durante a condução do procedimento criminal. II.III. PRINCÍPIO DA IGUALDADE De acordo com a previsão constante no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, não podendo haver distinção de qualquer natureza, sendo garantida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O princípio da igualdade pode ser estudado sobre duas óticas distintas. Em primeiro lugar, destinada ao legislador, quando da edição de leis e atos normativos. Eles não podem criar tratamentos abusivamente diferenciados a indivíduos que encontram-se em situação idêntica. Por outro lado, a autoridade pública, no momento de aplicar a lei, deve fazê-lo de maneira igualitária, sem diferenciar agentes em razão de critérios subjetivos. Por meio deste princípio, a Constituição tem por objetivo atingir todos os indivíduos, garantindo o direito a justiça igualitária pela lei, independente de características pessoais ou de outros critérios, visando à segurança dos direitos fundamentais face às ações arbitrárias e não fundamentadas. Isto significa que a igualdade jurisdicional é destinada ao legislador, proibindo-o de elaborar dispositivos que tragam desigualdade entre os indivíduos, privilegiando alguns em detrimento de outros. Tal limitação também deve ser observada pelo o juiz, não sendo possível fazer distinção entre situações iguais no momento da aplicação a lei. Por essa razão, resta-se demonstrado que nenhum dispositivo pode prejudicar agentes que se enquadram em uma mesma situação. Dessa maneira, a fuga não poderia ser configurada como crime em certos tipos de delito e ser desconsiderada nos demais. Trata-se de situação em que se vislumbra o completo desrespeito ao princípio da igualdade, previsto na matriz do ordenamento jurídico brasileiro. III. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 305 DO CPB Prevê o artigo 305 do CTB, a criminalização da conduta do indivíduo de afastar-se do local do acidente para se escusar de responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Nesse caso, nos termos do supracitado artigo, o condutor seria obrigado a aguardar as providências cíveis e criminais que eventualmente seriam cabíveis. Entretanto, enquanto o Código de Trânsito exige a permanência do condutor no local onde ocorreu o delito, os princípios da ampla defesa e da não auto incriminação garantem ao indivíduo a sua autodefesa, uma vez que conferem a prerrogativa de não produzir elementos de incriminação contra si e/ou de se recusar a participar de procedimentos probatórios que lhe possam afetar negativamente. Torna-se nítido, dessa forma, que a previsão do supracitado artigo entra em contradição direta com os princípios constitucionais expressos na Constituição Federal Brasileira. Certo é que estão presentes na Carta Magna preceitos que objetivam a proteção do indivíduo do poder soberano do Estado e, por consequência, todos os indivíduos podem se valer de tais garantias visando resguardar, principalmente, a sua liberdade. No âmbito doutrinário, as discussões acerca da constitucionalidade do artigo 305 do CTB estão cada vez mais constantes. Luiz Flávio Gomes, expressa brilhantemente a necessidade de diferenciar a obrigação moral de questões penais, ressaltando que: [...] todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que provocamos não existe a menor dúvida. Mas a questão é a seguinte: pode uma obrigação moral converter-se
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A Constituição da República é constituída por direitos fundamentais, que devem ser observados e respeitados para garantir que o indivíduo seja sempre amparado frente ao poder punitivo do Estado. Em virtude do exposto, faz-se necessário que toda a legislação brasileira, acompanhe as mudanças sociais e se adeque a todos os preceitos instituídos ao longo do tempo. Assim, as condutas, antes criminalizadas, podem ser observadas por outra ótica a partir da consolidação dos princípios presentes no ordenamento jurídico. Da mesma maneira, Guilheme de Souza Nucci, ao tratar do art. 305, expressa que: Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria, frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo - nemo tenetur se detegere. Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto-acusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as conseqüências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o artigo 305 da Lei 9.503/97. (1998 - p. 848). Grande parte da doutrina e da jurisprudência tem sustentado, assim, a não aplicabilidade e inconstitucionalidade do dispositivo em questão, principalmente em razão da impossibilidade de impor ao indivíduo a sua permanência no local do delito para produzir provas contra si. A aplicabilidade do delito previsto no artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro é afastada à medida que são analisados e observados os princípios constitucionais. Primeiramente, no tocante ao princípio da ampla defesa, em seu aspecto negativo, o indivíduo tem por direito a não produção de elementos probatórios que possam o prejudicar. Trata-se de direito fundamental frente à fragilidade que o agente possui face ao poder punitivo do Estado. Ademais, em observância ao princípio da igualdade, não seria possível a aplicação da norma, levando em consideração que a fuga do local do acidente, regra geral, não é considerada crime, sendo uma conduta praticada pela maior parte dos criminosos após a execução do delito. Importante salientar que é necessário levar em consideração, principalmente, o princípio da não auto incriminação. A partir da análise deste princípio, o indivíduo tem o direito de não produzir elementos de incriminação contra si, não colaborando com a investigação e não praticando nenhum comportamento ativo que possa lhe comprometer. E o fato de não ter colaborado, não pode, em hipótese alguma, acarretar ao indivíduo qualquer prejuízo. Portanto, o fato de se afastar do local, preservando o seu direito de não produzir provas contra si, jamais poderia ser considerado como crime. Basta observar os preceitos previstos na Carta Magna para ficar nítido que a punição do agente pela prática da referida conduta é manifestadamente inconstitucional. III.I. OBJETO ILÍCITO A finalidade da norma prevista no artigo 305 do CTB pode ser alcan-
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çada por outros meios ou pela aplicação de outros dispositivos. Isto significa que a responsabilização civil ou criminal do indivíduo, não depende da criminalização da conduta relacionada à sua evasão do local do acidente. Nesse sentido, na ocorrência de um acidente de trânsito, por exemplo, há a possibilidade de aplicação da norma civil, que atribui ao agente responsabilidade pela reparação dos danos que houver causado. Além disso, em caso de enquadramento em algum delito previsto, é possível aplicar o tipo penal cabível, que descreva como crime a conduta praticada pelo agente responsável. Diante do exposto, o bem jurídico protegido no delito em questão pode ser alcançado pela simples aplicação dos dispositivos supramencionados, sem que seja necessária a incriminação da fuga do condutor do local. Importante salientar ainda que, há alguns anos, os meios hábeis ou tecnológicos para a identificação do indivíduo eram escassos, de forma que o trabalho da autoridade policial fosse mais complicado e houvesse uma maior necessidade de que o indivíduo prestasse identificação à polícia. Contudo, o passar do tempo e o grande avanço tecnológico permitiu que se tornasse mais fácil a identificação de indivíduo, por meio de programas digitais, tais como câmeras de segurança e redes de informações integradas, por exemplo. Tal evolução possibilitou que o trabalho da autoridade policial se tornasse menos trabalhoso no que diz respeito à descoberta da identidade do sujeito. Por efeito dos avanços tecnológicos e do sistema informatizado da Polícia, a criminalização da fuga do local do acidente não se justifica atualmente, uma vez que a autoridade policial pode promover a qualificação e identificar o causador do dano. Resguardado pelos princípios constitucionais da ampla defesa, da não auto incriminação e da igualdade, o sujeito tem o direito de afastar-se para fugir a responsabilidade civil ou penal que lhe possa ser atribuída. Portanto, mais uma vez, não há que se falar na aplicabilidade do art. 305 do CTB, pois além de o indivíduo encontrar-se amparado pelos princípios constitucionais, a sua responsabilização pelas eventuais consequências do acidente não está vinculada à necessidade de criminalizar a sua evasão do local do delito. III.II. TRATAMENTO JURÍDICO NOS DEMAIS DELITOS DO CÓDIGO PENAL Cada cidadão tem direito a autodefesa, podendo contestar, se calar a respeito das incriminações feitas, e podendo, inclusive, se esquivar delas. Não há como, dessa maneira, obrigar alguém a permanecer no local onde ocorreu o acidente veicular para aguardar a chegada de policiais e assumir a responsabilidade pelo ato criminoso. A exigência dessa conduta se assemelharia à obrigação de que o autor de um homicídio se mantivesse no local do assassinato, de que o autor de furto não fugisse com os bens furtados, ou ainda de que o autor de um latrocínio, aguardasse no local para receber a punição que lhe fosse cabível. Na mesma linha de pensamento, Damásio de Jesus nos ensina que: [...] a lei pode exigir que, no campo penal, o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente? Como diz Ariosvaldo de Campos Pires, ‘a proposição incriminadora é constitucionalmente duvidosa* (Parecer sobre o Projeto de Lei 73/94, que instituiu o CTB, oferecido ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, 23/07/1996). Cometido um homicídio doloso, o sujeito não tem a obrigação de permanecer no local. Como exigir essa conduta num crime de trânsito? De observar o artigo 8º, II, g, do Pacto de São José: ninguém tem o dever de autoincriminar-se [...] (2006 - p. 142-143). Tal delito causa perplexidade, uma vez que a fuga, isoladamente, não constitui crime mesmo que realizada por indivíduo preso, custodiado pelo Estado, nos casos de prisão em flagrante, preventiva, tem-
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porária, administrativa, ou em razão de sentença penal condenatória transitada em julgado. Da mesma forma, o indivíduo que pratica latrocínio consumado ou delitos hediondos, com penas que alcançam até os 30 anos de reclusão, poderia fugir sem que incorresse em nenhuma conduta típica, devido à ausência de previsão legal. Nesse sentido, Damásio Evangelista de Jesus, em sua obra Código Penal anotado (1989 – p.352), afirma que a simples fuga sem violência não constitui delito, considerada conduta normal (anseio de liberdade do indivíduo). Levando em consideração o princípio da igualdade, já explicitado, o crime em tela não poderia ter tratamento jurídico diferenciado dos demais previstos no Código Penal. A mera evasão do local não é configurada como crime em nenhum outro caso, exceto para o autor do ilícito envolvendo acidente veicular. Assim sendo, o autor estaria sendo punindo por um comportamento praticado por qualquer outro delinquente. A evasão da cena do delito ocorre quase na totalidade da prática de crimes, sem que os agentes recebam sanções mais altas ou que suas penas sejam mais gravosas em decorrência da referida conduta. IV. POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL Nos dias atuais, o entendimento acerca da impossibilidade de aplicação do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro vem se consolidando. Apesar de não haver manifestação expressa dos Tribunais Superiores sobre a inconstitucionalidade da matéria, diversos tribunais já estão proferindo decisões que afastam a incidência do tipo penal em estudo. Este também já é o entendimento da maior parte dos promotores dos Juizados Especiais Criminais, que, arquivam os autos ainda nas audiências preliminares. Somente a título exemplificativo tem-se a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “EMENTA: INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - RESERVA DE PLENÁRIO - ART. 305, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO - INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO - INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. (TJMG - INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE N° 1.0000.07.4560210/000 - COMARCA DE LAGOA DA PRATA - REQUERENTE(S): QUINTA CÂMARA CRIMINAL DO TJMG - REQUERIDO(A)(S): CORTE SUPERIOR DO TJMG - RELATOR: EXMO. SR. DES. SÉRGIO RESENDE - Belo Horizonte, 11 de junho de 2008). ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE - APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 305 DO CTB - FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE PARA ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OU PENAL - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DE SILÊNCIO E DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO (CF/88, ART. 5º, LXIII)- AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE - TRATAMENTO DIFERENCIADO SEM MOTIVAÇÃO IDÔNEA - PROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO. Não se pode conceber a premissa de que, pelo simples fato de estar na condução de um veículo, o motorista que se envolve em um acidente de trânsito tenha que aguardar a chegada da autoridade competente para averiguação de eventual responsabilidade civil ou penal porquanto reconhecer tal norma como aplicável, seria impor ao condutor a obrigação de produzir prova contra si, hipótese vedada pela Constituição Federal por ofender o preceito da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV), além de incorrer em malferição ao direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII). Ademais, estar-se-ia punindo o agente por uma conduta praticada por qualquer outro delinquente, qual seja, a evasão da cena do delito, sem que por tal conduta recebam sanção mais alta ou acarrete maior gravosidade em suas penas, estabelecendo-se forte contrariedade aos princípios da isonomia e da proporcionalidade. Desse modo, afigura-se inviável vislumbrar outra responsabilidade penal a ser imputada ao motorista que se evade do local em que estivera envolvido em acidente de trânsito com vítima que
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não a omissão de socorro, situação com disposição específica no CTB (art. 304). Assim, se o condutor que se encontra nessas circunstâncias, que resultaram apenas em danos materiais, pode ter sua liberdade cerceada, está-se criando nova modalidade de prisão por responsabilidade civil, matéria que encontra limites constitucionais inestendíveis pelo legislador ordinário, o qual sofre limitação pelo art. 5º, LXVII da CF/88, que impede a prisão civil por dívida, afora as hipóteses nele excetuadas. (TJSC- Argüição de Inconstitucionalidade na Apelação Criminal nº 262229 SC 2009.026222-9. Relatora Des. Salete Silva Sommariva. Julgado em 8 de junho de 2011) Foram proferidas decisões nesse mesmo sentido por diversos Tribunais, tais como o do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espirito Santos, Rio de Janeiro e São Paulo. IV.I. COMENTÁRIOS PERTINENTES Diante da decisão proferida, torna-se nítido que o citado delito contraria diretamente o sistema jurídico brasileiro, que admite em qualquer outro delito a possibilidade de fugir à responsabilidade. A imposição ao indivíduo de auto-acusar, permanecendo no local para responder pelas consequências, é nitidamente inviável. Em primeiro lugar, vai de encontro ao principio da não auto incriminação. Ademais, é possível afirmar que contraria, ainda, os princípios da ampla defesa e da igualdade, conforme entendimento exarado pelos Tribunais. Na decisão foi explicitado que o objetivo do tipo penal pode ser alcançado de outras formas. Conforme entendimento da douta Desembargadora, nenhuma responsabilidade penal poderia ser aplicada ao motorista envolvido em acidente de trânsito, senão a de omissão de socorro, no caso de desamparo à vítima. A evasão do local não poderia ser considerada como crime independente, tal como é tratada no artigo objeto de estudo. Além disso, no caso da responsabilidade civil, o entendimento foi que, ao obrigar a permanência do condutor no local do acidente, estaria sendo criada uma nova forma de prisão por responsabilidade civil, que é vedada no ordenamento jurídico. Em virtude de todo o exposto, são vários os fundamentos que justificam a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, vez que o dispositivo não mais encontra embasamento jurídico por não estar em consonância com princípios garantidos a todos os indivíduos pela Constituição da República. V. CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer da elaboração do presente artigo foi necessária a análise de todos os princípios constitucionais relacionados ao crime objeto de estudo. Foi possível perceber, que, por serem norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, inclusive das matérias penais, os princípios jamais poderiam deixar de ser observados no momento da criação e aplicação da norma jurídica. É de extrema relevância no universo jurídico a discussão acerca da inconstitucionalidade do artigo 305 do CTB, posto que o direito penal é ramo que pode cercear a liberdade e trazer consequências imensuráveis se for aplicado de maneira incorreta. Em razão de tamanha importância, o tema passou a ser alvo de intensa divergência doutrinária e judicial, sendo proferidas algumas decisões reconhecendo, a inconstitucionalidade do delito previsto no artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Assim, considerando a incontestável contradição entre os citados princípios constitucionais e a norma em questão, é possível perceber que a exigência da referida conduta fere indiscutivelmente garantias previstas constitucionalmente, posto que pretende obrigar o sujeito a permanecer no local e a produzir provas contra si.
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Diante de todo exposto, o ato de evadir do local do acidente deveria ser entendido tão somente como uma modalidade de defesa própria, isto é, como um ato legítimo de impedir o cerceamento de sua liberdade, uma vez que, com base nos fundamentos explicitados, ninguém pode ser obrigado a aguardar no local para assumir a eventual responsabilidade que lhe possa ser atribuída. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.232, abr./jun. 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988,disponívelem:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em Abril/2015. BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: Abril/2015. BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Argüição de Inconstitucionalidade na Apelação Criminal nº 262229 SC 2009.026222-9. Relatora Des. Salete Silva Sommariva. Julgado em 8 de junho de 2011. Disponível em http:// http:// www.tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14458111/apelacao-criminal-acr262229-sc-2009026222-9/inteiro-teor-19879506. Acesso em 01 de junho de 2015. FUKASSAWA, Fernado Y. Crimes de Trânsito. São Paulo. Ed.Oliveira Mendes,1998. GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal e Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição - 2ª tiragem, 1999. JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. 6ª ed. São Paulo. Ed: Saraiva, 2006. JESUS, Damásio Eugenio de. Crimes de Trânsito,1998. LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.. Lei Nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Brasília, disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: Abril/2015. Lei Nº 9.503, 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Brasília, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm. Acesso em: Abril/2015. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. Crimes de Trânsito, São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Crimes do código de trânsito: de acordo com a lei federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997: comentários, jurisprudência e legislação, São Paulo, Atlas, 1999. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 2006. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003.
NOTAS DE FIM ¹Aluna graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. ² Orientador Professor Eduardo Nepomuceno de Sousa.
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A VISÃO EMPRESARIAL DA LEI DE COTAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: Inexistência de Critérios Objetivos para Aplicação das Penalidades Victória Freire Amorim Ximenes1 Tatiana Bhering Serradas Bom de Sousa Roxo2
RESUMO: O presente trabalho visa trazer à tona uma discussão acerca do sistema de cotas para pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitada e a visão empresarial, mais especificamente no que tange aos critérios de aplicação de penalidades em caso de descumprimento da lei 8.213/90. PALAVRAS-CHAVE: Sistema de Cotas; Pessoas com deficiência; Beneficiários reabilitados; Fiscalização; Descumprimento de lei; Penalidades. ABSTRACT: This paper aims to bring up a discussion about the quota system for people with disabilities or rehabilitated beneficiaries and the corporate vision , specifically when it comes to penalties to criteria in the event of violation of the law 8.213/90. KEYWORDS: Quota system; People with disabilities; beneficiaries rehabilitated; inspection; Breach of law; penalties SUMÁRIO: I Introdução. II A Regra de Contratação de Pessoas com Deficiência e Beneficiários Reabilitados. III A Atuação do Ministério Público do Trabalho na Fiscalização da Contratação das Pessoas com Deficiência ou Beneficiários Reabilitados. IV Análise das Dificuldades das Empresas em Cumprir o Sistema de Cotas e a Aplicação das Penalidades pelo Descumprimento. V Conclusão; Referências.
I. INTRODUÇÃO O objeto do presente trabalho será a Lei 8.213/1990, que instituiu o sistema compulsório de cotas para pessoas com deficiência e beneficiários reabilitados, que tem por finalidade além da inserção destes no mercado de trabalho, a abordagem da visão empresarial desse sistema. O enfoque será a aplicação de penalidades para o caso do insucesso do cumprimento das cotas impostas às empresas que possuem mais que cem empregados em seu quadro, seguindo a proporcionalidade estabelecida pela referida lei. Faz-se necessário a análise dos critérios utilizados para que ocorra o preenchimento das cotas estabelecidas pela lei. O objeto de indagação neste artigo é a aplicabilidade de penalidades impostas ao setor empresarial, visto que há discussões acerca desta medida adotada pelos órgãos de fiscalização integrantes do Ministério do Trabalho e Emprego, que tem por objetivo a promoção de justiça social. Desta forma, o intuito deste é demonstrar a insuficiência de critérios objetivos para aplicação das penalidades, bem como demonstrar as dificuldades encontradas pelo setor empresarial na busca pelo preenchimento das cotas impostas. É de grande importância vislumbrar o papel desempenhado pelas empresas nessa promoção social, porém não basta a vontade do setor empresarial e a imposição do Poder Público para obter a inclusão dos portadores de deficiência e beneficiários reabilitados no mercado de trabalho. Faz-se necessário o interesse e a contribuição daqueles para que seja efetiva a finalidade precípua da lei que é promover a inserção dos deficientes e beneficiários reabilitados no mercado de trabalho. II. A REGRA DE CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E BENEFICIÁRIOS REABILITADOS A Constituição Federal de 1988, com o advento do Estado Democrático de Direito, foi o marco principal da defesa e garantia dos direitos sociais, inspirando-se no princípio da igualdade, buscando a
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justiça social pautada na proporcionalidade e razoabilidade. Diante dessa preocupação em diminuir as desigualdades, surgiu o sistema de cotas, que defende e garante a inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, tendo em vista serem carecedoras de proteção do Estado. Conforme Sandra Morais de Brito Costa: O sistema de cotas, ou sistema de reserva legal, consiste em um mecanismo compensatório utilizado para a inserção de determinados grupos sociais em nosso contexto comunitário, facilitando o exercício o exercício dos direitos ao trabalho, à educação, à saúde, ao esporte etc. É uma forma de ação afirmativa com intuito de tentar promover a igualdade, o equilíbrio de oportunidades entre diversos grupos sociais. (COSTA, 2008, p.105) O trabalho é instrumento essencial para a garantia da dignidade humana, um dos pilares dos direitos fundamentais trazidos pelo Estado Democrático de Direito, por isso a Constituição Federal prevê claramente a impossibilidade de qualquer discriminação no tocante ao salário e critérios de contratação de pessoas portadoras de deficiência ou reabilitadas. O Estado vem buscando garantir a integração dos portadores de deficiência com políticas afirmativas, com o intuito de promover a igualdade, o equilíbrio de oportunidades entre os diversos grupos sociais, nessa perspectiva vem criando leis que tem por objetivo principal, a inserção daqueles no mercado de trabalho de forma isonômica, para que seja possível erradicar o preconceito e a discriminação. Desta forma, assevera Sandra Morais de Brito Costa: A adoção de ações afirmativas denota o intuito do legislador constitucional e ordinário de promover a igualdade material, indispensável para assegurar às pessoas com deficiência iguais oportunidades. (COSTA, 2008, p.122)
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Várias leis foram editadas e publicadas com esse propósito, CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA
mas o foco no presente trabalho é a Lei 8.213 de 24.07.1991, que criou o sistema de cotas. O sistema de cotas foi implementado para estabelecer a reserva de mercado de trabalho às pessoas com deficiência nos concursos públicos e nas empresas privadas com mais de cem empregados. Porém, o foco do trabalho será a obrigatoriedade impostas às empresas privadas, seguindo a proporcionalidade estabelecida em lei. A lei 8.213/91, em seu artigo 93, obriga apenas as empresas que possuem mais de 100 empregados a contratar pessoas com deficiência ou reabilitadas, seguindo proporção nele descrita, sendo: Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I - até 200 empregados.....................................................2%; II - de 201 a 500................................................................3%; III - de 501 a 1.000...........................................................4%; IV - de 1.001 em diante. ..................................................5%. Neste aspecto Luiz Eduardo Amaral de Mendonça destaca que: O empregador que se enquadre dentro do padrão estabelecido pela norma está obrigado a reservar vagas e contratar, sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, com vínculo empregatício, pessoas com deficiência para preenche-las sob pena de prática discriminatória. (MENDONÇA, 2010, p.113) Porém, não basta ser deficiente ou reabilitado para que possa ser integrado na cota imposta pelo sistema, uma vez que devem ser atendidas as exigências descritas pelo mandamento legal supracitado. Primeiramente, a condição de deficiente deve ser sempre comprovada através de laudo, emitido por um médico, seja do trabalho do próprio empregador, seja outro particular, desde que comprove o enquadramento legal do empregado, de acordo com as definições estabelecidas pela Convenção n.159 da OIT, Parte I, art. 1; Decreto n.3.298/99, artigos 3° e 4°, com as devidas alterações dadas pelo artigo 70 do Decreto n. 5.296/04, para que esteja efetivamente integrado no sistema de cotas. Neste sentido, dispõe Luiz Eduardo Amaral de Mendonça, que: A condição de pessoa com deficiência deverá ser comprovada por meio de: Laudo médico, que pode ser emitido por médico do trabalho da empresa ou outro médico, atestando enquadramento legal do(a) empregado(a) para integrar na cota, de acordo com as definições estabelecidas na Convenção n.159 da OIT, Parte I, art.1; Decreto n.3.298/99, arts.3° e 4°, com as alterações dadas pelo art.70 do Decreto 5.296/04. O laudo deverá especificar o tipo de deficiência e ter autorização expressa do(a) empregado(a) para utilização do mesmo pela empresa, tornando pública a sua condição; Certificado de Reabilitação Profissional emitido pelo INSS. (MENDONÇA, 2010, p.113) Como se depreende do trecho descrito acima, além da comprovação da deficiência é necessária autorização do empregado, para que seja sua deficiência descrita no laudo, e assim a empresa possa utilizar a informação, uma vez que para enquadrar o empregado no sistema de cotas é necessário dar publicidade da situação perante os órgãos competentes.
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Porém, quando se tratar de beneficiários reabilitados, será necessário apenas um Certificado de Reabilitação Profissional emitida pelo INSS, para que seja realizado o enquadramento legal. A contratação deve ser realizada sem nenhum tipo de ato discriminatório, sem que sejam avaliados critérios pessoais. Nesse sentido existem algumas orientações do Ministério do Trabalho e Emprego, que defendem que a seleção deve ser realizada atendendo as peculiaridades do cargo, sem que restrinja o cargo à condição de normalidade que a sociedade descreve. Além disso, instrui as empreas, a não fazer exigências em relação à experiência profissional e escolaridade, uma vez que antigamente esse tipo de oportunidade não era dada aos portadores de deficiências. O contrato de trabalho seguirá o regime da Consolidação das Leis do Trabalho, caracterizando vínculo empregatício comum, conforme explica Sandra Morais de Brito Costa, “Não há regra específica quanto à assinatura da CTPS e formalização do contrato de trabalho da pessoa com deficiência para o preenchimento das cotas.” (COSTA, 2008, p.138) Porém, o empregado deficiente poderá ter uma jornada de trabalho especial em decorrência de suas necessidades, cabendo até mesmo o pagamento do salário de forma proporcional. Entendimento este extraído das orientações do Ministério do Trabalho e Emprego, que assim expressa: (...) pode ter um horário flexível e reduzido, com proporcionalidade de salário, quando tais procedimentos forem necessários em razão do seu grau de deficiência. Para atender, por exemplo, a necessidades especiais, como locomoção, tratamento médico, etc. (art. 35, § 2º, do Decreto nº 3.298/99) Ocorre que, em regra, são vedadas as diferenças salariais entre os empregados que exercem a mesma função, como se infere do texto Constitucional em seu artigo 7° XXX e XXXI, que assim estabelece: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:(...) XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; Maurício Godinho Delgado neste sentido ressalta que: Uma inovação constitucional de grande relevância encontrase na situação jurídica do obreiro portador de deficiência. É que o art. 7° XXXI, da Constituição estabelece a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência. (DELGADO, 2014, p.850) Salientando ainda, que: “O princípio da não discriminação seria, em consequência, a diretriz geral vedatória de tratamento diferenciado à pessoa em virtude de fator injustamente desqualificante.” (DELGADO, 2014, p. 833) Além da imposição de contratar pessoas com deficiência e beneficiários reabilitados, as empresas estão adstritas à lei no que tange à dispensa desse empregado, pois não podem dispensar sem justo motivo, salvo se já tiver contratado substituto em condição semelhante, considerando assim uma espécie de dispensa protegida. Nestes termos, dispõe o parágrafo 1° do art.93 da Lei n. 8.213/1991 que: Art.93. (...)
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§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. O instituto da dispensa protegida que prevista na lei 8.213/1991 não se confunde com a estabilidade de emprego, vez que a proteção dada pelo sistema de cotas possui caráter coletivo, protegendo toda a classe e não o indivíduo por si só, tanto que autoriza a dispensa, desde que já substituído por outro em condições semelhantes, visando assim apenas a finalidade precípua da norma, a inclusão social. Para Maurício Godinho Delgado: (...) a proteção manifesta-se pela garantia de emprego indireta, consistente no fato de que a dispensa desse trabalhador ‘... só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante” (Parágrafo 1°, in fine, do art.93). (DELGADO,.2014, p. 850) Ainda, conforme Luiz Eduardo Amaral de Mendonça “Com efeito, se a dispensa está autorizada pela lei (desde que cumpridos os requisitos de validade), parece-nos evidente que o determinado profissional com deficiência dispensado não goza de estabilidade”. (MENDONÇA, 2010, p.118) Enfim, a finalidade do sistema de cotas é assegurar às pessoas com deficiência ou reabilitadas reservas nos quadros das empresas, de acordo com o percentual estabelecido em lei, garantindo assim uma atividade profissional diária, na qual possam obter condições de vida digna e interação social. III. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO NA FISCALIZAÇÃO DA CONTRATAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA OU BENEFICIÁRIOS REABILITADOS. O sistema de cotas tem por objetivo a inserção dos deficientes e beneficiários reabilitados no mercado de trabalho, estabelecendo políticas afirmativas que visam a proteção e a consequente promoção da justiça social. Diante da criação de políticas afirmativas em favor dos interesses individuais ou coletivos, há a necessidade de fiscalização, vez que possui natureza pública e é de interesse coletivo, tornando portanto obrigatória a intervenção do Ministério Público. O Ministério Público normalmente atua como custos legis, que nada mais é do que a fiscalização para garantir o fiel cumprimento da lei, defendendo assim a ordem jurídica, os interesses sociais, individuais e indisponíveis, bem como proteger o regime democrático. Desta forma, assevera Carlos Henrique Bezerra Leite que o Ministério Público do Trabalho é, “(...) essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe precipuamente a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. (LEITE, 2014, p.168) A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 128, estabelece dois ramos deste órgão, sendo o primeiro o Ministério Público da União, dividido em Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, e o segundo ramo que são os Ministérios Públicos dos Estados. Cada um em sua área específica, porém com a mesma incumbência acima descrita. No presente trabalho o enfoque é a atribuição do Ministério Público do Trabalho, que pode atuar de forma judicial ou extrajudicial. Na forma judicial, ocorre a participação do órgão em processos judiciais, seja como parte, no polo passivo ou ativo, ou como fiscal da lei.
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Neste sentido Carlos Henrique Bezerra Leite diz, “Quando atua judicialmente, o Ministério Público do Trabalho poderá fazê-lo na condição de parte ou de custos legis.” (LEITE, 2014, p. 176) Já na forma extrajudicial, exerce primeiramente suas funções pelas vias administrativas, quando verificada alguma irregularidade no fiel cumprimento da lei, caso haja a persistência desta poderá a medida administrativa converter em uma atuação judicial. Luiz Eduardo Amaral de Mendonça, descreve algumas formas de atuação do MPT: O Ministério Público do Trabalho também atua como árbitro e mediador na solução de conflitos trabalhista de natureza coletiva, envolvendo trabalhadores e empresas ou entidades sindicais que os representam(...). A atuação do Órgão Agente envolve o recebimento de denúncias, a instauração de procedimentos investigatórios, inquéritos civis públicos, e outras medidas administrativas ou ajuizamento de ações judiciais, quando comprovada existência de irregularidade.(MENDONÇA, 2010, p.126) Ainda, existe outro mecanismo importante na atuação do MPT que possui caráter administrativo, é o chamado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O TAC é forma de assegurar o fiel cumprimento das leis através de acordos. Quando verificada alguma irregularidade no cumprimento de um mandamento legal, o MPT tenta firmar compromisso com aquele que encontra-se eivado de irregularidades, oferecendo prazo para que sejam estas sanadas, sob pena de multa. Neste sentido, o artigo 5°, parágrafo 6° da Lei n° 7.347/1985 dispõe o seguinte: Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromissos de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações que terá eficácia de título executivo extrajudicial. Segundo Carlos Henrique Bezerra Leite: (...) o Termo de Ajustamento de Conduta–TAC pode ser tomado por outros órgãos públicos legitimados para promover ação civil pública. Na prática, porém, o TAC é quase sempre firmado pelo MPT. (LEITE, 2014, p.182/183) Ainda sobre o Termo de Ajustamento de Conduta esclarece Luiz Eduardo Amaral de Mendonça, que: Importante instituto de atuação do Ministério Público do Trabalho, de natureza administrativa, é o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta(TAC), que prevê multa caso seja descumprido e que pode ser executado perante as Varas do Trabalho, por ser título executivo extrajudicial.(MENDONÇA, 2010,p.126) Este instituto, quando utilizado pelo Ministério Público do Trabalho proporciona aos empregadores a chance de regularizar aquilo que está em descordo com o mandamento legal, prevendo como consequência, em caso de descumprimento do TAC, uma multa. Por ter natureza de título executivo extrajudicial, poderá ser executado nas Varas do Trabalho em caso de descumprimento. O Termo de Ajustamento de Conduta antigamente era uma das medidas mais utilizadas quando se falava em cumprimento do sistema de cotas, pois as empresas normalmente eram convidadas a comprovar o cumprimento do mandamento legal, e aquelas que não estivessem cumprindo, consequentemente receberiam a proposta do órgão para que fizesse a assinatura do TAC.
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Este procedimento era realizado com mais frequência pela Secretaria de Inspeção do Trabalho em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, na vigência da Instrução Normativa n.20 de 19.1.2001 primava pelo ajustamento de conduta, a fim de obter o cumprimento da totalidade das cotas imposta aquela determinada empresa. Porém, este procedimento deixou de ser utilizado com frequência, como assevera Luiz Eduardo Amaral de Mendonça: Até outubro de 2003, vigorava a Instrução Normativa n.20, de 19.1.2001, da Secretaria de Inspeção do Trabalho- MTE, a qual orientava os fiscais do trabalho (auditores) a buscarem o cumprimento da cota por meio de ajustes de conduta, em atuação combinada com o Ministério Público do Trabalho.(MENDONÇA, 2010, p.123) A Lei 7.853/1989, em seu artigo 15, concedeu a competência para o Ministério do Trabalho e Emprego e seus órgãos de fiscalização das irregularidades existentes quando se tratar de pessoas com deficiência, in verbis: Art. 15. Para atendimento e fiel cumprimento do que dispõe esta Lei, será reestruturada a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, e serão instituídos, no Ministério do Trabalho, no Ministério da Saúde e no Ministério da Previdência e Assistência Social, órgão da coordenação setorial dos assuntos concernentes às pessoas portadoras de deficiência. O Ministério do Trabalho e Emprego por sua vez possui um órgão responsável por realizar as fiscalizações, que são as Delegacias Regionais do Trabalho. De acordo com o acima descrito, antigamente, vigorava a Instrução Normativa n. 20, de 19/01/2001, da Secretaria de Inspeção do Trabalho- MTE, que primava pelo ajustamento de condutas quando constatado pelos auditores do trabalho o descumprimento ao sistema de cotas. Porém, foi publicada a Portaria 1.199 de 28 de outubro de 2003, na qual foi aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego normas que permitem a aplicação de multas administrativas já previstas no artigo 133 da Lei 8.213/1991, quando ocorrer o descumprimento da cota imposta pelo artigo 93 da mesma Lei. Nas palavras de Luiz Eduardo Amaral de Mendonça “com a entrada em vigor desta Portaria, os auditores fiscais do trabalho conquistaram a regulamentação necessária para aplicação de penalidades aos infratores.” (MENDONÇA, 2010, p.124) Em se tratando da multa administrativa aprovada pela referida Portaria, entende Sandra Morais de Brito Costa que esta “(..) não é a forma ideal, a ser utilizada isoladamente, mas não há outro modo efetivo na legislação brasileira”. (COSTA, 2008, p.207) Ante a publicação desta Portaria em 2003, o Ministério Público do Trabalho, em conjunto com as Delegacias Regionais do Trabalho, intensificaram as fiscalizações, a fim de obter o efetivo cumprimento da Lei 8.213/1991. Atualmente, são realizadas inspeções pelos Auditores Fiscais do Trabalho, que realiza a lavratura de Autos de Infrações, que possui caráter repressivo, a fim de que as empresas providencie o cumprimento das cotas que lhes cabe. Podendo ainda, se valer das Mesas de Entendimento, que consiste na possibilidade de transacionar. A competência dos auditores fiscais foi outorgada pela Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 626, da qual se infere: Art. 626. Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho e Previdência Social, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho.
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Parágrafo Único. Os fiscais dos Institutos Nacional e de Previdência Social e das entidades paraestatais em geral dependentes do Ministério do Trabalho e Previdência Social serão competentes para fiscalização a que se refere o presente artigo, na forma das instruções que forem expedidas pelo Ministro do Trabalho e Previdência Social. Ocorre que a atuação tem sido realizada de forma desproporcional, como pode se extrair do entendimento de Luiz Eduardo Amaral de Mendonça: (...) tem-se notado um certo excesso de rigor do Ministério Público que, na luta pela justiça social e pela inclusão, acaba ajuizando ações consideradas prematuras pela Justiça, sem procurar entender os reais motivos que empresas possuem para deixar de cumprir a cota legal.(MENDONÇA, 2010, p.128) Por óbvio que as empresas tenham uma função social a ser desempenhada, porém, são várias as dificuldades encontradas por elas para que se cumpra a exigência, que na maioria das vezes ocorre por motivos alheios à sua vontade. Sendo necessária a avaliação de caso a caso quando houver o descumprimento, vez que o fato de não ter preenchido o número total da cota imposta a uma determinada empresa, não faz com que ela tenha cometido ato discriminatório e preconceituoso face aos deficientes. IV. ANÁLISE DAS DIFICULDADES DAS EMPRESAS EM CUMPRIR O SISTEMA DE COTAS E A APLICAÇÃO DAS PENALIDADES PELO DESCUMPRIMENTO Conforme já exposto, a fiscalização é realizada pelos Auditores Fiscais do Trabalho, que fazem parte das Delegacias Regionais do Trabalho, cabendo a eles a verificação do cumprimento das cotas exigidas pela lei. Quando há a verificação do descumprimento do sistema de cotas, o Auditor pode lavrar o auto de infração, para que caso haja a persistência do descumprimento, seja aplicada a multa, podendo ainda encaminhar o auto de infração ao Ministério Público do Trabalho para que tome a medida que couber ao caso. Dispõe neste sentido Sandra Morais de Brito Costa: O descumprimento da lei de cotas pode resultar em auto de infração e multa. Também é possível encaminhar relatório ao Ministério Público do Trabalho para as medidas legais cabíveis, o que depreende do art. 10, parágrafo 5°, c/c art. 15 da Instrução Normativa 20/01. (COSTA, 2008, p.182) A Portaria 1.199/2003 possibilitou a aplicação de multas no caso de descumprimento do artigo 93 da Lei 8.213/90, e instituiu o sistema de cotas, porém desde a edição desta Lei em seu artigo 133, que foram fixados os critérios quantitativos para aplicação de multas, in verbis: Art. 133. A infração a qualquer dispositivo desta Lei, para a qual não haja penalidade expressamente cominada, sujeita o responsável, conforme a gravidade da infração, à multa variável de Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros) a Cr$ 10.000.000,00 (dez milhões de cruzeiros). No entanto, carecia este artigo de regulamentação, que foi realizada pela Portaria 1.199/2003, que estabelece proporções a serem seguidas. Como se extrai do texto de Sandra Morais de Brito Costa: A multa está prevista no art.133 da Lei n.8.213, de 24 de julho de 1991, calculada na seguinte proporção, conforme estabelece a Portaria 1.199, de 28 de outubro de 2003:
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I - para empresas com cem a duzentos empregados, multiplicar-se-á o número de trabalhadores portadores de deficiência
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ou beneficiários reabilitados que deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de zero a vinte por cento; II - para empresas com duzentos e um a quinhentos empregados, multiplicar-se-á o número de trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de vinte a trinta por cento; III - para empresas com quinhentos e um a mil empregados, multiplicar-se-á o número de trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de trinta a quarenta por cento; IV - para empresas com mais de mil empregados, multiplicarse-á o número de trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de quarenta a cinqüenta por cento; § 1º O valor mínimo legal a que se referem os incisos I a IV deste artigo é o previsto no artigo 133, da Lei nº 8.213, de 1.991. § 2º O valor resultante da aplicação dos parâmetros previstos neste artigo não poderá ultrapassar o máximo estabelecido no artigo 133 da Lei nº 8.213, de 1991.(COSTA, 2008, p.183) Os valores mínimo e máximo são definidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego, através de Portaria. A imposição de multa trazida pela referida Lei tem o intuito de fazer com que as empresas cumpram o mandamento legal, e consequentemente promovam a justiça social que o Estado almeja junto à sociedade. As políticas afirmativas são positivas e possuem a finalidade de inserção dos deficientes ou beneficiários reabilitados no mercado de trabalho, ocorre que na maioria das vezes os órgãos competentes para fiscalizar aplicam de forma literal o que diz o sistema de cotas, ou seja, se não possuem empregados contratados na quantidade legal, arcará com as consequências disto. A crítica a ser feita é a ausência de proporcionalidade e razoabilidade, quando da aplicação de penalidade, pois são inúmeras as dificuldades encontradas pelas empresas quando da contratação de pessoas com deficiência. Luiz Eduardo Amaral de Mendonça se manifesta nesse sentido: (...) As ações afirmativas e mais especificamente a fiscalização do trabalho têm importante papel na procura por igualdade dessas oportunidades, separando “joio do trigo”. Notando-se que houve desigualdade na oferta de mão de obra de profissionais com deficiência para determinada empresa, defendemos a posição de que a fiscalização do trabalho (auditores fiscais da DRT e representantes do Ministério Público do Trabalho) deve aplicar o princípio da razoabilidade e da igualdade concedendo prazos razoáveis para que a empresa possa preencher a cota. Infelizmente, salvo algumas exceções, não é essa a realidade que se tem visto atualmente nas fiscalizações onde os auditores fiscais, quando muito, concedem prazos bimestrais para que a empresa cumpra as costas, sem, contudo, analisar essa questão da desigualdade de oportunidades na oferta de mão de obra.(MENDONÇA, 2010, p.184) A ausência de proporcionalidade e razoabilidade não está relacionada apenas aos prazos concedidos às empresas para que preencham as cotas que lhes caibam, mas também à ausência de uma
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análise minuciosa dos motivos que levaram as empresas a deixar de contratar pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitados, vez que cada caso possui uma particular realidade. Como se infere da seguinte jurisprudência: BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho(3° Região). EMENTA. PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. SISTEMA DE COTAS. PREENCHIMENTO. Evidenciado nos autos que a empresa não se descurou de seu dever de buscar atender ao sistema de cotas previsto no art. 93 da Lei 8.213/91, não subiste a autuação fiscal por suposta infração à lei. Recurso Ordinário n° 000259233.2013.5.03.0008 RO. Recorrente: União Federal. Recorrida: Diefra Engenharia e Consultoria LTDA. Relator: Convocada Luciana Alves Viotti. Belo Horizonte, Acordão em 25 de maio de 2015. LEX: Jurisprudência Tribunal Regional do Trabalho( 3° Região). Disponível em https://as1.trt3.jus.br/juris/detalhe. htm?conversationId=6802. Acesso em: 15/06/2015. Em análise do caso em apreço, o Tribunal Regional do Trabalho ( 3° Região), entendeu pela manutenção da sentença que julgou procedente a ação anulatória, vez que a empresa havia sido multada em razão do não cumprimento das cotas, porém carreou aos autos provas de que promove ações internas e externas, a fim de contratar pessoas com deficiência e que seu insucesso são por situações alheias à sua vontade. Com a análise desta jurisprudência é possível demonstrar que no ato da fiscalização é feita a contagem do número de empregados e consequentemente a análise de quantos devem ou deveriam estar enquadrados no sistema de cotas naquela empresa, aplicando-se a norma em seu sentindo literal. Ocorre que, de acordo com a Douta Turma julgadora, que confirmou a sentença proferida em primeira instância, deve-se levar em consideração o objetivo principal da norma, que é a inserção das pessoas com deficiência e beneficiários reabilitados no mercado de trabalho, não apenas a sua aplicação literal. Neste sentindo, se expressa Luiz Eduardo Amaral de Mendonça: (...) A ideia é demonstrar que a fiscalização do trabalho muitas vezes acaba por autuar administrativamente as empresas que porventura venham a descumprir a lei de cotas, olvidando-se de analisar caso a caso e o mérito ou todo o esforço das empresas em preencher as vagas destinadas para os profissionais com deficiência. (...)Busca-se sugerir uma interpretação do princípio da igualdade e razoabilidade em conjunto com o conceito dos direitos sociais para se justificar o sistema de cotas e a forma de fiscalização do trabalho sobre as empresas(...).(MENDONÇA, 2010, p.183) Os princípios da igualdade e razoabilidade são imprescindíveis na aplicação das sanções, vez que muitas das vezes as empresas fazem a reserva legal para que sejam contratadas pessoas com deficiência, mas por motivos alheios à sua vontade a cota não é preenchida. Ressalte-se que o fato de não preencher a cota não configura ato discriminatório por parte do empresariado. Como se extrai texto de Luiz Eduardo Amaral de Mendonça: (...) Importa, nesse momento, tentar demonstrar a visão da empresa com relação ao sistema de cotas, que, muitas vezes, se vê impossibilitada de cumprir a reserva legal por motivos alheios a sua vontade. Ao contrário do que boa parte da doutrina pensa acerca da questão da inclusão social da pessoa com deficiência, a nossa experiência revelou que muitas empresas se preocupam
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com o tema, disponibilizando vagas reservadas para pessoas com deficiência. Chegam, inclusive, a promover campanhas internas para a contratação das pessoas com deficiência, mas, ao final, não conseguem atingir a cota legal por problemas que muitas vezes são ignorados pelo auditores fiscais do trabalho.(MENDONÇA, 2010, p.173) Como pode-se observar, diversas são as dificuldades encontradas pelas empresas na hora de cumprir o mandamento legal, por isso a necessidade de realizar uma análise de caso a caso, verificando o interesse das empresas em cumprir a norma e o insucesso por fato superveniente à sua vontade. Desse modo, assevera Luiz Eduardo Amaral de Mendonça ( Ed.2010- pág 167)
(...) o limite de exigência da lei de cotas está diretamente condicionada à reserva de vagas, sendo que a se a empresa comprovar que tentou localizar candidatos para as vagas e que promoveu a reserva legal do possível, não pode ser onerada pelo eventual insucesso. Há, nesse caso, que se prestigiar o princípio da boa-fé tão esquecido em nosso ordenamento jurídico. A primeira dificuldade que se vislumbra é a falta de incentivo Estatal para que as empresas contratem pessoas com deficiência, pois a empresa, ao admitir uma pessoa portadora de deficiência, se vê na obrigação de realizar mudanças em sua infraestrutura, nos equipamentos, treinamentos, entre outras adaptações, que tornam a contratação mais onerosa e difícil, mas que são essenciais para a adaptação do empregado deficiente no ambiente de trabalho. Conforme, Sandra Morais de Brito Costa: De fato, a contratação de pessoas com deficiência implica, normalmente, modificações arquitetônicas, aquisição de equipamentos especiais, treinamento dos trabalhadores com deficiência, ou não, para que aprendam a conviver. (COSTA, 2008, p. 107) Se houvesse subsídio estatal para as empresas na contratação de deficientes, o sistema de cotas seria mais eficiente e menos oneroso, pois haveria um estímulo à inclusão social, se acompanhado de medidas complementares que criassem condições para que a empresa preencha o número de cotas, de forma respeitosa e digna, sem que tenha medo de sofrer punições exacerbadas ou que se afogue em dívidas advindas de penalidades e investimentos com infraestruturas. Luiz Eduardo Amaral de Mendonça assevera a necessidade do subsidiar a inclusão social: (...) Estimula-se a inclusão social, passando para as empresas públicas ou privadas uma obrigação que precipuamente era do Estado, mas, em contrapartida, se minimizam os gastos das contratações. (...) cabe aqui uma sugestão: a revisão do atual sistema com relação ao estímulo governamental às empresas como forma de criar incentivos fiscais, ainda que temporários, para a contratação e bônus àqueles que superem as cotas.(MENDONÇA, 2010, p.174/175) O Benefício de Prestação Continuada, trazido pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 208, garante benefício previdenciário mensal no importe de um salário mínimo aos portadores de deficiência, desde que comprovada a ausência de meios próprios de prover sua manutenção, independentemente de contribuição a seguridade social. Para Marcelo Leonardo Tavares por se tratar de benefício que
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independe de contribuição, possui caráter de assistência social, afirmando que: “Tratando-se, no entanto, de prestação a deficiente, firma-se a natureza de serviço de assistência social, devido à falta de caráter retributivo”. (TAVARES, 2014, p.215) A concessão deste é um obstáculo para as contratações, uma vez que cessa o benefício quando o beneficiário adquire um emprego, pois assim poderá prover o seu próprio sustento. Desta forma, depreende-se do texto de Luiz Eduardo Amaral de Mendonça: Há quem afirme que as pessoas com deficiência que encontrarem um local de trabalho e forem contratadas perdem ad eternum a condição de inativo economicamente, já que, por óbvio, estarão comprovando que possuem condições de prover o próprio sustento. Em outras palavras, nunca mais poderiam requerer o benefício, nem mesmo em caso de desemprego. (MENDONÇA, 2010, p.178) A assistência social nesse aspecto é um dificultador para as empresas, tendo em vista que há grupos de pessoas com deficiências que não possuem interesse em serem inseridos no mercado de trabalho, para não correr o risco de perder o seu benefício e, ainda, ressalta-se que receber o auxílio é cômodo e não os traz condição de adaptação. Outro entrave é a escassez de mão de obra, visto o aumento da oferta de vagas de emprego para as pessoas com deficiência e o restrito o número de interessados no mercado de trabalho, a concorrência entre as empresas é acirrada, pois há uma tentativa de cumprir as cotas que lhes são exigidas. Por fim, é importante ressaltar que ao empregador é obrigatório o preenchimento daquele determinado número de vagas, sob pena de multa, mas o legislador se olvidou que para que o fenômeno da “admissão” aconteça, são necessários dois sujeitos: empregador e empregado, ou seja, não basta que o empregador tenha interesse em preencher as vagas, uma vez que a celebração do contrato de trabalho é bilateral, ultrapassando então os limites da empresa, e carecendo da aceitação do candidato, de forma livre. Assevera Luiz Eduardo Amaral de Mendonça neste sentido: (...) resta pacífico em nossa doutrina que o contrato de trabalho é negocio jurídico bilateral e, portanto dependente da manifestação de vontade ou da aceitação de ambas as partes(empregador e empregado). Uma empresa não pode obrigar um trabalhador, tampouco uma pessoa com deficiência a celebrar contrato de trabalho com ela. (MENDONÇA, 2010, p.153) Na hipótese de não aceitação pelo candidato, resta clara a tentativa da empresa e a frustação alheia à sua vontade, sendo imprópria a aplicação de sanção administrativa nesta hipótese, mas atualmente é o que mais acontece. Outra dificuldade enfrentada pelas empresas é a falta de qualificação profissional, primeiramente no que tange a escolaridade, que muitas vezes as pessoas que possuem uma deficiência congênita, por exemplo, não possui sequer ensino fundamental completo, seja pelo medo, pela discriminação, ou mesmo por comodismo, e isso se torna um dificultador na hora de serem inseridas no mercado de trabalho, pois muitos cargos exigem habilidades e conhecimentos específicos, para que não seja posto em risco o fim da atividade econômica empresarial. No que tange à qualificação profissional, afirma Sandra Morais de Brito Costa: “Às pessoas com deficiência também não foram dadas iguais oportunidades de acesso à educação”. O que torna desta
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forma, um empecilho na hora de contratar. (COSTA, 2008, p.161) Portanto, ante o estudo realizado, conclui-se que a ausência de critérios objetivos da norma trazida pela Lei 8.213/90, merece ser regulamentada para que não perpetue o sistema de cotas como mera imposição legal, e sim meio aquedado e efetivo de promover a inserção de deficientes e beneficiários reabilitados no mercado de trabalho. V. CONCLUSÃO Ante todo o exposto e as diversas pesquisas realizadas na elaboração do presente trabalho, conclui-se que a ideia do sistema de cotas é plausível, vez que a promoção de justiça social é um dos pilares trazidos pela Constituição Federal de 1988 que estabeleceu o Estado Democrático de Direito, e tem como um de seus objetivos a erradicação das discriminações em seus diversos aspectos. Ocorre que o problema que se destaca é a dificuldade encontrada pelas empresas em cumprir o mandamento legal, bem como as sanções impostas em caso de descumprimento, sem que seja feita análise do caso concreto. A sugestão inicial é que seja dada às empresas no ato da fiscalização a possibilidade de provar o motivo pelo qual deixasse de preencher a cota que lhe cabe, mesmo que nas vias administrativas, vez que são várias as dificuldades encontradas nas contratações, que devem ser levadas em consideração para que sejam aplicadas as sanções decorrentes do insucesso do cumprimento da lei. Vislumbra-se que as dificuldades encontradas pelas empresas são as mais diversas, porém no presente trabalho foi dado maior enfoque à falta de incentivo Estatal, à concessão de benefício continuado, à escassez de mão de obra e por fim a falta de qualificação profissional, pois são obstáculos totalmente alheios a vontade do empresariado, sendo injusta a aplicação de sanções sem análise do caso concreto. Ressalta-se que com base no estudo realizado, a análise de caso a caso,aqui sugerida, é no sentindo de que, se o empresariado comprovar que promove ações com o intuito de preencher as cotas, mesmo que não logre êxito nas contratações, o insucesso não tem que ser punido, vez que não há ato discriminatório, mas sim a tentativa frustrada de promover a inclusão social. Conclui-se por fim, que não há nexo em aplicar uma punição a uma empresa por fato alheio à sua vontade. A sugestão é que haja uma dilação probatória, em vias administrativas para que os órgãos fiscalizadores façam uma análise concreta, caso a caso, de cada empresa a ser penalizada, com critérios objetivos de avaliação. Poderá, assim, a empresa, diante dos meios de provas admitidos em direito, comprovar que promove a publicação extensiva dentro da sua área de atuação das vagas para pessoas com deficiência, quais sejam, publicações por meio de jornais de alta circulação, internet, campanhas internas e/ou qualquer outro meio que seja capaz de atingir o objetivo, que é buscar por profissionais portadores de deficiência. Na criação de um processo administrativo mais robusto, será possível a obtenção de uma decisão que assegure os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, contraditório, ampla defesa e devido processo legal mesmo que em vias administrativas ou judiciais, garantindo assim a finalidade precípua do sistema de cotas. Fazendo com que se torne eficaz, ou seja, que se tenha de fato uma inserção dos deficientes que realmente querem ser inseridos, sem que o setor empresarial seja sobrecarregado com as penalidades desproporcionais e até mesmo sem razoabilidade. É necessária a luta pela inclusão social, porém o sistema de cotas deveria avaliar os sujeitos envolvidos nas relações, conscientizando não apenas o setor empresarial de que deve cumprir com a sua função social sem que retire dela seu objetivo econômico, mas tam-
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bém deve haver meios de conscientizar as pessoas com deficiência para que elas também se adaptem à essa nova realidade e tenham interesse em serem inseridas no mercado de trabalho. Mas para que isso aconteça carece de vontade dos sujeitos sociais envolvidos, a profissionalização dos deficientes e adaptação das empresas para que os receberem, bem como o incentivo governamental para que atinja a finalidade do sistema que não a fiscalização exacerbada. REFERÊNCIAS MENDONÇA, Luiz Eduardo Amaral de. Lei de Cotas- Pessoas com DeficiênciaA Visão Empresarial. São Paulo: LTR Editora LTDA., 2010. COSTA, Sandra Morais de Brito. Dignidade Humana e Pessoa com Deficiência. 1ª ed. São Paulo: LTR Editora LTDA., 2008. DELGADO, Maurício Godinho; Curso de Direito do Trabalho. 13 ed. São Paulo: LTR, 2014. TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito Previdenciário- Regime Geral de Previdência Social e Regras Constitucionais dos Regimes Próprios de Previdência Social. 15° ed. Niterói/RJ: Editora IMPETUS. EMPRESAS desconhecem regras para contratar deficientes. Disponível em: <http://www.deficienteonline.com.br/empresas-desconhecem-regras-paracontratar-deficientes_pcdsc_234.html>. Acesso em 15/06/2015 às 22:30 horas. MINISTÉRIO do Trabalho e Emprego. Disponível em: http://www3.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/lei_cotas_6.asp. 10/06/2015 às 23:05 horas.
Acesso
em
TRIBUNAL Regional do Trabalho – 3ª Região. Disponível em: <https://as1.trt3.jus.br/juris/detalhe.htm?conversationId=6802>. Acesso em 15/06/2015 às 23:40 horas.
NOTAS DE FIM 1 2
Aluna Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Orientadora Professora Tatiana Bhering Serradas Bom de Sousa Roxo.
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O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A APLICABILIDADE DO SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS - ASPECTOS GERAIS Virgínia Linhares de Meireles Rocha¹ Bernardo Ribeiro Câmara² RESUMO: Este trabalho tem por objetivo abordar a aplicabilidade do sistema de precedentes judiciais como fonte de direito, inserida em nosso ordenamento jurídico através da aprovação da Lei 13.105, de 16 de março de 2015 - o Novo Código de Processo Civil. Faremos uma detida análise acerca da evolução ocorrida dentro do contexto jurídico brasileiro, demonstrando a aproximação de sua atual sistemática - com espeque no instituto do civil law, enraizado na estrutura romano-germânico - edificada a sua organização por meio de códigos de caráter escrito do direito, junto ao sistema jurídico da common law, de tradição anglo-saxônica, que tem como base em seu ordenamento os precedentes, ou seja, o direito aplicável não extraído somente da lei, mas, principalmente, dos costumes e da jurisprudência. Passando pelos motivos que trouxeram a inter-relação destes dois modelos na atual disposição hierárquica de normas brasileiras, passaremos a análise da aplicabilidade da teoria dos precedentes judiciais, ressaltando-se a importância deste instituto submeter-se aos preceitos emanados de um Estado Democrático de Direito. ABSTRACT: This study aims to address the applicability of judicial precedents system as a source of law, inserted in our legal system through the adoption of Law 13,105, of March 16, 2015 - the New Code of Civil Procedure. We will make a detailed analysis of developments occurring within the Brazilian legal framework, demonstrating the approach of your current system - with stanchion in the civil law institute, rooted in Roman-Germanic structure - built their organization through character codes written law, with the legal system of common law, Anglo-Saxon tradition, which is based on your previous order, ie, the duty not detached from the law only, but mainly, customs and jurisprudence. Passing the reasons that brought the interrelationship of these two models in the current hierarchical arrangement of Brazilian standards, we will review the applicability of the theory of judicial precedents, emphasizing the importance of this institution to submit to the precepts emanating from a democratic state. PALAVRAS-CHAVE: precedentes judiciais; civil law; common law; novo código de processo civil; estado democrático de direito. KEYWORDS: judicial precedents; civil law; common law; New Code of Civil Procedure; democratic rule of law SUMÁRIO: I Introdução; II Tempo e processo: A eterna luta entre efetividade e celeridade; III O Novo CPC e o seu principal desafio; IV A novidade do precedente judicial, IV.I Conceito e origem, IV.II Vantagens e desvantagens; IV.III A não aplicação do precedente pela técnica da superação (overruling); IV.IV A não aplicação do precedente pela técnica da distinção (distinguishing), IV.V Premissas para aplicação do novo sistema de precedentes no Estado Democrático de Direito, V Considerações Finais; Referências Bibliográficas.
I. INTRODUÇÃO Na constante busca por uma solução inovadora e adequada perante a atual conjuntura de sobrecarga e descrédito que permeia o Poder Judiciário, com o advento da aprovação da Lei 13.105 de 16 de março de 2015 - o Novo Código de Processo Civil -, um novo cenário foi apresentado à tradição jurídica brasileira: a adoção dos precedentes judiciais como fonte de direito. Ao propor o PLC 8046/2010, a comissão de juristas sustentou que sua principal intenção era tornar o processo civil mais célere, possibilitando levar à sociedade as respostas esperadas quando do exercício de seu direito à justiça, ainda que estes problemas sejam sanados sob uma nova ótica do dispositivo processual, ou seja, um processo que se comprometa muito mais em garantir valores constitucionais sem preocupar-se somente com a sua natureza instrumental basilar: a resolução de conflitos. É neste contexto que se baseia o presente trabalho, que tem por fim o estudo da aplicabilidade dos precedentes judiciais como fonte de direito no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, a presente pesquisa foi construída precedida da investigação da origem do precedente, bem como de breves considerações acerca dos principais modelos jurídicos existentes, o civil law e o common law e os limites de aproximação destes dois sistemas. Por fim, a análise da composição do precedente judicial diante
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das técnicas de confronto e de superação, aliada à importância de demonstrar sua relevância frente à busca de celeridade e efetividade na atuação jurisdicional sem, contudo, abalar os princípios da segurança jurídica, isonomia e manutenção de um Estado Democrático de Direito. II. TEMPO E PROCESSO: A ATERNA LUTA ENTRE EFETIVIDADE E CELERIDADE A emenda de nº 45/04 inseriu no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, o inciso LXXVIII, o princípio da razoável duração do processo, bem como a celeridade de sua tramitação: [...] Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). [...] Neste contexto, depois de insculpida na Carta Magna tal garantia erigida a direito fundamental, é de se notar que dentre o atual cenário do Poder Judiciário permeiam crescentes discussões acerca da tênue linha existente entre celeridade e efetividade.
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Atualmente a máquina judiciária encontra-se em total descompasso frente à enorme e crescente quantidade de demandas que batem à sua porta diariamente, e este fato reflete diretamente na sociedade, quando diagnosticamos ser a morosidade processual uma das principais causas aliadas ao descrédito existente entre os cidadãos frente ao Poder Judiciário. Contudo, apesar de ser a morosidade uma das grandes dificuldades a ser combatida por meio do novo CPC, a forma pela qual será prestada a atuação jurisdicional considerando que aconteça em tempo razoável, não deve ser confundida com a efetividade processual. Neste aspecto, importante ter em mente que o tempo deverá ser vislumbrado como um aliado ao exercício do direito, e ser enxergado como um fator essencial com o fim de garantir que o processo se encarregue de consumar seu propósito. Neste sentido, faz-se-mister trazer à baila importantes lições de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, na qual assevera que a demora exagerada é que deve ser vencida, evadindo-se as dilações indevidas, que normalmente são frutos de períodos prolongados de paralisia processual, devendo preservar-se a razoável duração do processo, ou seja, a prestação jurisdicional em tempo hábil, obtida mediante o processo sem dilações indevidas. Por fim, conclui o nobre doutrinador dizendo que estaria o Estado impedido de desferir ao povo a aceleração dos procedimentos pela diminuição das demais garantias processuais constitucionais, mostrando que o processo tem seu tempo adequado. (BRÊTAS, 2010, p. 153-158). No mesmo sentido, Alexandre Freitas Câmara orienta (2006, pg. 59): [...] Não se pode considerar que o princípio da tempestividade da tutela jurisdicional sirva de base para a construção de processos instantâneos. O que se assegura com esse princípio constitucional é a construção de um sistema processual em que não haja dilações indevidas. Em outros termos, o processo não deve demorar mais do que o estritamente necessário para que se possa alcançar os resultados justos visados por força da garantia do devido processo. Deve, porém, o processo demorar todo o tempo necessário para que tal resultado possa ser alcançado [...]. Entretanto, em sentido contrário revelam diversos adeptos ao entendimento de que o tempo, na verdade, configura-se como um fator adverso à efetiva prestação da tutela jurisdicional, sustentando que, mesmo aliado às garantias do contraditório, da ampla defesa e da participação dos interessados, a sistemática processual suscita prejuízos às partes, eis que, o exercício judiciário, instrumentalizado através do processo, gera obstáculos durante a atuação estatal. (BEDAQUE, 2010) Neste diapasão, tem-se que a relativização diante daquilo que se permita durante o contraditório - sem prejuízo no alcance dos objetivos - seria medida eficaz para que o sistema pudesse fluir com mais rapidez, evitando-se que o tempo decomponha a utilidade prática da decisão judicial almejada. É nesta órbita que se fundam as explanações trazidas na Exposição de Motivos do NCPC, que reuniu esforços para combater a morosidade do sistema judiciário, todavia há de se valorizar que a garantia da razoável duração do processo deverá alcançar um provimento jurisdicional feito pelas partes, em processo democrático que assegure as devidas garantias constitucionais, no intuito de ser célere sem deixar de ser seguro, considerando que o tempo não pode ser considerado maléfico ao processo, eis que o sazonamento é fator essencial para a construção de uma decisão imparcial e uniforme.
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III. O NOVO CPC E O SEU PRINCIPAL DESAFIO O Presidente da Comissão de Juristas encarregados da elaboração do Novo Código de processo Civil, Ministro Luiz Fux, ao encaminhar o anteprojeto ao Presidente do senado, apresentou as seguintes elucidações acerca dos principais objetivos almejados pelo novo código (BRASIL, 2010): [...] Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere. Como desincumbir-se da prestação da Justiça em um prazo razoável diante de um processo prenhe de solenidades e recursos? Como prestar justiça célere numa parte desse mundo de Deus, onde de cada cinco habitantes um litiga judicialmente? [...] [...] O tempo não nos fez medrar e de pronto a Comissão enfrentou atormentosa questão da morosidade judicial. Queremos justiça!!! Prestem-na com presteza; dizem os cidadãos.[...] [...] O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça. [...]. Nesse passo, a Comissão deixou claro que o grande desafio a ser enfrentado por eles quando da elaboração do Novo Código, era simplificar o processo, respeitando os limites da lei, corrigindo as adversidades que conta o sistema processual nos dias atuais, conferindo coerência para que deste modo se possa aperfeiçoar o complexo quadro de litigiosidade que se instaurou em nosso país, preconizando o texto constitucional. Destarte, todo o trâmite processual foi reestruturado com vistas a aniquilar embaraços que, durante a prestação estatal, venha a comprometer o tempo das respostas emanadas pelo sistema judiciário, o que invocou a construção de um sistema que priorizasse a rapidez na resolução das demandas judiciais sem afetar a garantia de manutenção dos princípios basilares na qual se funda um Estado Democrático de Direito. No intuito de alcançar os desafios acima lançados, mudanças substanciais foram realizadas. A nova estrutura do codex processual é composta por uma parte geral composta de seis livros, e em outra parte especial composta de três livros, e ao todo tem 1.072 artigos, dos quais sete deles foram vetados pela presidente. Já em sua inauguração há uma singularidade, qual seja uma parte geral no Livro I - que trata das normas fundamentais. Ademais, são relevantes as demais técnicas inseridas, tais como: o estímulo a meios alternativos para a solução de conflitos, com a criação de mecanismos que voltados à mediação e conciliação; multas para recursos protelatórios; possibilidade de acordo das partes para alteração de atos e procedimentos processuais; redução do número de recursos e unificação dos prazos recursais; simplificação da defesa do réu; o julgamento dos processos em ordem cronológica; aplicação de precedentes judiciais, entre outras. Dentre todas estas novidades citadas, merece destaque a inclusão de precedente judicial no sistema jurídico brasileiro como fonte de direito que é a temática escolhida como objeto de análise do presente artigo, ora insculpido em texto de lei com vistas a dar efetividade ao direito jurisprudencial.
IV. A NOVIDADE DO PRECEDENTE JUDICIAL Neste cenário de reforma da técnica processual, significativa
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alteração foi incluída, que representa a principal fonte de inspiração para grande parte das reformas realizadas: a inserção de precedentes judiciais como fonte de direito, conforme se infere de alguns trechos extraídos do projeto do novo Código de Processo Civil (Brasil, 2010): [...] Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize. [...] A segurança jurídica fica comprometida com a brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito. Encampou-se, por isso, expressamente princípio no sentido de que, uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como norma, ser mantida, salvo se houver relevantes razões recomendando sua alteração. Trata-se, na verdade, de um outro viés do princípio da segurança jurídica, que recomendaria que a jurisprudência, uma vez pacificada ou sumulada, tendesse a ser mais estável. [...] Diz, expressa e explicitamente, o novo Código que: A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas [...]. Firmado no propósito de conferir celeridade às demandas judiciais, princípio norteador do novo CPC, o livro III da Parte Especial “Dos Processos nos Tribunais e dos Meios de Impugnação das Decisões Judiciais”, traz o seguinte dispositivo: [... ] Art. 926: Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. § 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. § “2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem aterse às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. [...] Para tanto, visando direcionar os aplicadores do direito no sentido de respeitar a hierarquia pretendida, qual seja, as decisões dos órgãos superiores, mencionamos abaixo o artigo 927 inserido no mesmo codex: [...] Art. 927: Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. § 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo. § 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de
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súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese. § 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica. § 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. § 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores. [...] Assim, consagra-se a adoção de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como finalidade principal harmonizar o sistema processual, no sentido de respeitar as regras (princípios) constitucionalmente consolidadas frente às demandas que assolam o poder judiciário, buscando reforçar os pronunciamentos jurisdicionais, de modo que as decisões por ele emanadas sejam proferidas dentre regras formuladas no propósito de conduzir uniformidade e, principalmente, estabilidade do sistema jurisdicional. Neste sentido, importante mencionar sábias lições de Marinoni (2010, p. 139-140): [...] ...o precedente vinculando permite ao jurisdicionado prever as consequências jurídicas de seus atos e condutas, tendo o efeito de permitir confiança nas decisões já tomadas – então vistas como critérios para definir o seu comportamento – e nas decisões que podem vir a ser proferidas – compreendidas como decisões que podem atingir as suas esferas jurídicas. [...]. No Brasil, a influência do common law e da doutrina do stare decisis exteriorizaram-se materialmente na edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, sobretudo, com a criação da Súmula Vinculante prevista no art. 103-A da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Foi seguindo essa tendência que o Novo Código de Processo Civil sistematizou normas que visam garantir eficácia vinculante aos precedentes dos tribunais superiores e dos tribunais de segundo grau. IV.I. CONCEITO E ORIGENS O precedente existe em todos os sistemas jurídicos do mundo, eis que, ao emitir um pronunciamento jurisdicional a determinado caso concreto, está o aplicador do direito a emanar uma decisão que poderá servir como fonte de inspiração em casos análogos futuros. É neste sentido que o precedente é compreendido. Todavia, cada sistema jurídico consagra a sua forma de aplicação, levando em consideração seus traços históricos, culturais, políticos e sociais, sobrepondo a ele a forma pela qual atuará na aplicação do direito. Apesar de não serem os únicos modelos jurídicos existentes, o civil law e o common law são os principais sistemas norteadores que dominam o ocidente. Na tradição civil law, a lei é a fonte primária do direito, preponderando a atuação do direito objetivo, tendo o precedente atuação apenas persuasiva, ou seja, interpretando ou esclarecendo determinada norma. (SOUZA, 2008)
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Já nos sistemas jurídicos que se filiam ao common law, a função jurisdicional se pauta na autoridade da decisão judicial, ou seja, naquilo que é aplicado pela jurisprudência, criando-se o precedente. (SOUZA, 2008) A atual sistemática do nosso ordenamento jurídico foi erguida com pilares no sistema da civil law – da família romano-germânica, que se formou na Europa continental, a partir do século XIII d.C., perpassando dos princípios do direito romano e do direito canônico à junção dos costumes germânicos naquela época praticados, criando um conjunto de normas jurídicas que estão contidas nos ordenamentos de vários países do continente europeu. Este sistema basicamente se funda na aplicação da lei como a principal fonte de direito, buscando efetividade e segurança jurídica somente através do texto legal codificado, não havendo espaço para interpretações dos juízes. (SOUZA, 2008) Em uma metodização oposta, no modelo da common law, que é originário da concepção do direito medieval inglês, sua construção se deu através da premissa de que as decisões dos tribunais refletiam efeitos comuns aos indivíduos incluídos naquela esfera, permitindo-se assim extrair regras gerais que se convertem em orientações que norteiam os juízes em casos análogo. Tais premissas, que são derivadas da Teoria do Stare Decisis, que funda a construção de um precedente, tendo por base conferir a este aplicabilidade obrigatória de modo a persuadir as decisões, mantendo isonomia entre casos anteriores e casos atuais, que sejam similares. (SOUZA, 2008) Neste diapasão, pertinente abrir espaço para a exposição sobre os conceitos fundamentais basilares da doutrina do stare decisis: a ratio decidendi, obter dictum, distinguishing e overruling A ratio decidendi é a motivação do juiz, representando os fundamentos e argumentos que serão por ele utilizados, e que serão determinantes para inspirar como paradigma decisões ulteriores semelhantes. Trata-se então de um conceito base da teoria dos precedentes, na qual as razões de decidir de um precedente são partes relevantes do julgamento, que serão aplicados no futuro. Assim, o operador do direito, frente a um precedente, deverá identificá-lo e conseguinte distingui-lo de situações iguais, proporcionando uma justa decisão. É o elemento vinculante do precedente. (MARINONI, 2010) Em se tratando do relevante conceito do obter dictum, em síntese, são hipóteses da decisão e nela estão presentes, todavia não integram a ratio decidendi. São partes secundárias, hipóteses utilizadas para construção da decisão, desempenhando papel apenas persuasivo e argumentativo, que pode ser relevante para fundamentações de casos análogos, porém casos futuros não se sujeitam a ela. (MARINONI, 2010) Por fim, a doutrina do stare decisis incrementou estratégias que possibilitam o afastamento de aplicação de um determinado precedente considerado obrigatório em um primeiro momento. A técnica comumente utilizada para este fim é conhecida como distinção. Por meio deste método, o juiz ou mesmo o próprio tribunal confrontam um caso posterior, avaliando se os fatos fundamentais que constituem o precedente a que se vincula coincidem com os fatos fundamentais do caso em julgamento. Apurada a não coincidência entre os fatos fundamentais, aplicar-se a distinção, e o precedente não é utilizado. (MARINONI, 2010) Neste mesmo contexto existe também a possibilidade de afastamento caso seja constatada haver alguma alteração substancial frente às circunstâncias que nortearam a construção do precedente, ou ainda quando determinada decisão tenha sido proferida no desconhecimento de um precedente obrigatório ou de alguma lei aplicável ao caso. (MARINONI, 2010) Cabe ressaltar que para este último caso, para ocorrer o afastamento
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do precedente deverá restar comprovado que se a corte tivesse conhecimento da lei ou do precedente ignorado, o veredito seria diferente. Outra estratégia adotada com a evolução da doutrina foi a técnica da superação, que previa a revogação de um precedente, desde que precedido de demonstração cabal de que existe injustiça, imprecisão ou inconveniência para a sua manutenção, além de pormenorizada avaliação sobre quais serão as sequelas perante a estabilidade e também credibilidade do sistema. (SOUZA, 2008) No novo CPC, tais técnicas são identificadas no art. 489, § 1°, inciso VI, que trata dos elementos essenciais da sentença, na qual diz que a decisão não será considerada fundamentada quando “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Contudo, a remodelagem do sistema jurídico brasileiro deverá contar com o fortalecimento da jurisdição pautada em um Estado de Direito garantido constitucionalmente, na qual promova a suas alterações, desde que pautadas na importância de reaver o modelo teórico adotado, e não somente uma “adaptação” de um sistema convergente ao atualmente instaurado. IV.II. VANTAGENS E DESVANTAGENS Ao convencionar esse procedimento, a discussão acerca do instituto se mantém, permanecendo as divergências doutrinárias entre os adeptos ao uso do precedente e aqueles que entendem não ser possível aplicá-lo ao ordenamento jurídico brasileiro. Neste contexto, os defensores deste instituto enumeram uma série de vantagens que se vinculam aos próprios motivos explanados pela comissão de juristas que elaborou o novo CPC: razoável duração do processo, economia processual, imparcialidade do aplicador da lei, aprimoramento do duplo grau de jurisdição. (MARINONI, 2010) Enquanto que, em sentido oposto, entendem alguns juristas – a exemplo do professor José Maria Rosa Tesheiner que escreveu um breve artigo intitulado “Contra os Precedentes Obrigatórios” – que os precedentes representam um verdadeiro óbice à construção de adequadas decisões judiciais consubstanciadas face ao atual contexto social, bem como violam os princípios do juiz natural, do acesso à justiça e representam grave ameaça à segurança jurídica. Nesse cenário, é de suma importância destacar as considerações do nobre doutrinador Marinoni (2010, p. 123), ao explanar sobre o precedente e segurança jurídica: [...] Não obstante, para que a ideia de segurança jurídica não se perca em uma extrema generalidade, convém discriminar dois elementos imprescindíveis à sua caracterização. Para que o cidadão possa esperar um comportamento ou se postar de determinado modo, é necessário que haja univocidade na qualificação das situações jurídicas. Além disso, há que se garantir-lhe previsibilidade em relação às consequências de suas ações. O cidadão deve saber, na medida do possível, não apenas os efeitos que as suas ações poderão produzir, mas também como os terceiros poderão reagir diante delas. Nota-se, contudo, que a previsibilidade das consequências oriundas da prática de conduta ou ato pressupõe univocidade em relação à qualificação das situações jurídicas, o que torna esses elementos indissociavelmente ligados. [...]. Neste entendimento, consagrado na Constituição como princípio fundamental, o Estado deverá efetivamente tutelar a segurança jurídica, incumbindo-se de reverenciar sua aplicação, e, ao mesmo tempo, deter-se de praticar atos que não a valorizem. Outro fator vantajoso a ser ponderado relaciona-se com a eco-
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nomia processual, na qual muito se ganharia em termos hermenêuticos e argumentativos ao ter por base decisões reiteradas, construídas e com bases sólidas perante os tribunais, o que vai de encontro à isonomia, quando se assegura uma interpretação-padrão, formando um conjunto de ações positivas. Portanto, os motivos que versam sobre a não utilização dos precedentes demonstram muito mais aparentes do que reais, restando claro que os fundamentos que fortaleceram as teses que justificam o seu uso demonstram muito mais credibilidade, tanto em um plano teórico quanto em um plano prático, demonstrando a importância de seu uso no atual cenário. Contudo, a forma pela qual o instituto para será aplicado deverá respeitar os princípios constitucionais consolidados em nosso sistema jurídico, sistematizando suas regras consoantes as diretrizes e as necessidades de nosso Estado, e não apenas incorporando regras e aplicações utilizadas em ordenamento jurídico alheio. IV.III. A NÃO APLICAÇÃO DO PRECEDENTE PELA TÉCNICA DE SUPERAÇÃO (OVERRULING) Conforme tratado no item 4.1, o overruling, ou técnica de superação, é a estratégia adotada através da evolução da doutrina do stare decisis (base do sistema common law, originário da Inglaterra), na qual prevê a revogação de um precedente, desde que precedido de demonstração cabal de que existe injustiça, imprecisão ou inconveniência para a sua manutenção, além de pormenorizada avaliação sobre quais serão as sequelas perante a estabilidade e também credibilidade do sistema. Cabe ressaltar que a justificativa fundada em apenas um destes requisitos é suficiente para um juiz requerer a superação do precedente. Tal técnica representa a ratio decidendi de um precedente que fora revogado, na qual perde sua eficácia vinculante perante casos posteriores, não se confundindo com a simples reforma de uma decisão feita por instância superior em recurso dentro do mesmo processo. O sistema common law raramente prevê a aplicação do direito embasada por textos de lei. O magistrado, quando vai realizar um julgamento, se norteia pelos pronunciamentos judiciais pretéritos, aos costumes jurídicos erguidos diante de um caso específico, ao passo que o ordenamento jurídico brasileiro foi construído com base em textos normativos, não havendo qualquer área do direito que se utilize de costumes como referência. (LOPES FILHO, 2014) Em nosso sistema existe a lei, na qual prevê a aplicabilidade dos preceitos fundamentais garantidos constitucionalmente, em um modelo onde a racio decidendi é item obrigatório para a construção do provimento jurisdicional, conforme se infere do incidente de decretação de inconstitucionalidade (arts. 948 a 950) e o julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivos (art. 1036). De outro lado, verifica-se que o novo CPC, ao inserir no texto legal os arts. 926 a 928 fez readequação da sistemática do common law. (NEVES, 2015) No art. 927, em seu inciso IV, passam a ter eficácia vinculante os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional. Já o inciso V do mesmo artigo prevê a eficácia vinculante à orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados aos juízes e tribunais. Todavia, deparando-se com o § 5º do referido artigo, percebe-se que a redação do dispositivo está igual a redação que constava no anteprojeto do CPC e não foi mantida no texto aprovado, pois ele trata da divulgação dos precedentes dos tribunais e da forma que serão organizados , mas não remete ao que será de fato considerado um precedente do tribunal, se apenas o que prevê o caput de art. 927 ou
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se todos os seus julgamentos daquele tribunal. (NEVES, 2015) Já o § 1º do art. 927 informa que deverá os juízes e tribunais observar o que dispõe o art. 10 e também o § 1º do art. 489, quando sua decisão por ele se pautar. Ocorre que o art. 489, § 1º determinou que não será considerada fundamentada a decisão judicial que, nos termos do inciso V “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” e no inciso VI “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso do julgamento ou a superação no entendimento.” A respeito do supramencionado artigo, destacamos o entendimento do nobre Professor Cassio Scarpinella Bueno: (2015, p. 573) [...] Destarte, embora não haja, no novo CPC, previsão expressa como a que havia no § 5º do art. 521 do Projeto da Câmara, que não foi mantida pelo Senado na última etapa do processo legislativo (v. infra), é inegável que a observância dos precedentes referidos dos incisos do art. 927 (ainda que não se queira dar a eles caráter vinculante) pressupõe a similaridade do caso (na perspectiva fática e jurídica) e a correlata demonstração desta similaridade. É este o alcance da fundamentação exigida para a espécie, nos termos dos incisos V e IV do § 1º do art. 489, aplicáveis à espécie por força do § 1º do art. 927. A existência de distinção do caso para justificar a não observância do precedente é elemento inerente a uma verdadeira teoria dos precedentes a ser construída, com os devidos temperos nacionais, pela doutrina brasileira. Tanto quanto a demonstração fundamentada de que o precedente aplica-se por causa das peculiaridades do caso concreto. [...] Com efeito, pelas razões esposadas, enxerga-se a não possibilidade de utilizar superação de um precedente pautada na técnica advinda da doutrina estrangeira perante o ordenamento brasileiro, porquanto esta tendência poderia caminhar para o engessamento do direito, já que forma que nossos tribunais se posicionam hierarquicamente restringem a possibilidade de propiciar às partes, valendo-se de argumentos novos e peculiaridades essenciais que podem superar as razões anteriores, influenciarem na formação das decisões e prestigiar o devido processo legal e respeito ao processo constitucional. Nesse sentido Dierle Nunes, Alexandre Freire, Daniel Godoy e Danilo Corrêa explicam (2013): [...] Assim, é de se esperar que as mesmas razões que induziram a criação das técnicas de overruling e distinguishing no common law se façam sentir na prática forense pátria. O exemplo histórico do common law demonstra que uma rigidez excessiva em relação a aplicação de precedentes judiciais pode levar a resultados indesejáveis, sendo necessário admitir mecanismos que confiram alguma maleabilidade a atividade judicante, mesmo diante de casos aparentemente já assentados na jurisprudência. [...] A necessidade de que os Tribunais Superiores reconheçam algum mecanismo processual para a realização do distinguishing (e do overruling) no âmbito dos julgamentos por amostragem (segurança jurídica, isonomia, celeridade) com o caráter dinâmico e discursivo do direito. Algo que na atualidade se busca mediante o CPC projetado, ora em análise na Câmara dos Deputados [...]. Por derradeiro, o que se pretende demonstrar é que a preocupação em dar uniformidade e estabilidade aos pronunciamentos judiciais ante
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as invocações trazidas pelo novo CPC se mostra pertinente, contudo deverá ser cuidadosamente implementada e delineada, para que promova os próprios princípios fundamentais basilares que foram prestigiados na Constituição e que nortearam a construção da nova técnica processual. IV.IV. A NÃO APLICAÇÃO DO PRECEDENTE PELA TÉCNICA DE DISTINÇÃO (DISTINGUISHING) Tal como explanado no tópico anterior, o precedente judicial não se submete à técnica de distinção, prevista na sistemática do stare decisis. Entende-se como distinguishing, ou técnica de distinção, a maneira comumente utilizada no propósito de promover o afastamento de aplicação de um determinado precedente, considerado obrigatório em um primeiro caso. Por meio deste método, o juiz ou mesmo o próprio tribunal confronta um caso posterior, avaliando se os fatos fundamentais que constituem o precedente a que se vincula coincidem com os fatos fundamentais do caso em julgamento. Apurada a não coincidência entre os fatos fundamentais, aplicar-se a distinção, e o precedente não é utilizado. (SOUZA, 2008) Conforme já dito alhures, nas instâncias superiores é percebido que a valorização dos precedentes, no decorrer dos anos utilizou-se de mecanismos buscavam dificultar o seu acesso, limitando que as partes consigam levar à discussão pelo STJ alguma questão que já fora tratada por ela. Seguindo esse raciocínio, frisa-se a impossibilidade de utilizar a técnica de distinção, nas mesmas razões em que não se vislumbra a possibilidade de uso da técnica de superação, já que existe um sistema eivado de barreiras que impedem o acesso ao órgão superior responsável pela criação e pela revisão dos precedentes. A esse respeito, novamente se mostra de suma importância enfatizar as sábias considerações de Dierle Nunes, Alexandre Freire, Daniel Godoy e Danilo Corrêa (2013): [...] Pode-se afirmar que um precedente judicial é uma decisão estabelecida em um caso jurídico anterior que seja vinculante ou persuasiva para o mesmo órgão judicial ou para outro ao decidir casos subsequentes como questões jurídicas ou fatos similares. Church afirma que existem várias outras razões pelas quais seria algumas vezes difícil ou impossível verificar uma clara ratio decidendi em um precedente. Obviamente, ainda que haja uma única teoria plausível para explicar a decisão de um tribunal em um precedente, ainda existirá grande ambiguidade na busca do grau com que o tribunal aplicará aquela teoria posteriormente. Existem em todos os casos diversas maneiras de se interpretar uma decisão todas condizentes com o mesmo princípio genérico, mas dissonantes no tocante ao aspecto mais genérico ao mais específico. Percebe-se, assim, a dificuldade de se proceder de modo “tão certo e evidente” a identidade entre os casos para aplicação de precedentes, como as reformas processuais vêm implementando no direito brasileiro, especialmente em face do modelo processual de formação desses padrões decisórios pela técnica de pinçamento (causa piloto) pela via dos recursos extraordinários e especiais repetitivos, sem viabilizar um contraditório dinâmico de formação e aplicação. [...] Apontada tais premissas, voltamos à mesma situação: a ausência de técnicas processuais constitucionalizadas no novo CPC faz com que o judiciário se utilize de técnicas alheias ao nosso sistema, que ofertam insegurança ao sistema. Verificar se um julgado é idêntico a um modelo padrão ou se este é diverso daquele para que comporte um julgamento autônomo, na forma que adotada pela doutrina stare
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decisis através da técnica de distinção causará uma criação pautada em subjetividade, o que não vai de encontro com a tão frisada estabilidade que o novo CPC tanto buscou. Finalizo este item com as seguintes considerações dos mesmos autores acima destacados (2013): [...] Pode-se conceber que, independentemente do mecanismo processual que eventualmente venha a ser considerado adequado para a realização do distinguishing(e do overruling), seja exigida uma fundamentação vinculada, concernente à demonstração objetiva de peculiaridades que justifiquem a não aplicação do precedente àquele caso, ou à exposição de novos argumentos que não tenham sido levados em conta no julgamento paradigma (com o objetivo v.g. de convencer o Tribunal a realizar o overruling). A mera insurgência contra a tese jurídica fixada no paradigma, a repetição de argumentos já enfrentados no julgamento-modelo ou a simples exposição de argumentos que não se voltem a fim específico de proceder à distinção ou superação do precedente seriam motivos para obstar, com base em razões processuais, a tentativa de abertura das instâncias extraordinárias, à semelhança do que já ocorre, hoje, com o juízo de admissibilidade dos recursos especiais por divergência jurisprudencial. [...]. IV.V. PREMISSAS PARA A APLICAÇÃO DO NOVO SISTEMA DE PRECEDENTES NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO No advento da promulgação da Constituição da República, o Brasil, através do artigo 1º, foi reconhecido como um Estado Democrático de Direito, perfazendo-se então, a partir daquele momento, a tarefa de superar desigualdades e, através de uma democracia representativa, permitir o controle dos atos do estado pelo próprio povo, legitimando-se assim a legislação e garantindo o efetivo exercício dos direitos fundamentais, quais sejam: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Assim, um estado Democrático de Direito deve ser pautada através de uma visão constitucionalista do processo, que advém da observância de ser o processo um procedimento em contraditório, na qual deve também garantir a aplicabilidade dos direitos fundamentais constantes no texto constitucional. Neste sentido, cumpre ressaltar que diferenciar conceitos e utilizá-los de forma adequada também contribui para a correta construção de uma sistemática segura e apta a valer-se da aplicação de precedentes, pois a legislação brasileira confere um tratamento distinto a cada uma destas espécies de pronunciamento jurisdicional: o precedente, a jurisprudência e a súmula. O precedente deve ser entendido como um o julgamento que ocasiona um ganho hermenêutico, e que passa a ser utilizado como padrão para casos futuros em situações hermenêuticas similares. A jurisprudência é uma atividade jurisdicional, que consiste em um conjunto de decisões sobre o mesmo assunto, com propósito de interpretar textos legais e se manifestar, não havendo necessidade de constatar similaridade mais constrita para realizar a hermenêutica e, por fim, traduz-se como súmula aquilo que decorre de uma atividade administrativa, um ato na qual exterioriza os ditames da jurisprudência dominante e pacífica de um determinado tribunal (LOPES FILHO, 2014). É nesta esteira que se pretende enfatizar a necessidade de que a aplicação do sistema de precedentes em solo brasileiro seja construída mediante a observância da validade democrática de sua criação, pautada em uma técnica adequadamente construída, enraizada na realidade de nosso ordenamento jurídico. Assim, podemos vislumbrar que não se trata de migrar a sistemática do commom law para nosso ordenamento, mas sim da
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remodelagem de um sistema que foi adequado constitucionalmente com vistas à atender aos princípios que o norteiam, buscando decisões sólidas e fundamentadamente construídas com vistas à efetividade de todo o procedimento. Por fim, resta ponderar que o Brasil não adotou o sistema de precedentes, mas sim a construção de “provimentos vinculantes” (STRECK, 2015) cuja aplicação fará com que determinadas decisões tenham força não apenas persuasiva como já debatemos em tópicos anteriores, mas sim vinculantes, na forma que o NCPC estipulou. Ou seja, não é qualquer decisão que será vinculante – lembrando que jurisprudência não é sinônimo de precedente – mas sim aquelas que a lei determinou como de observância obrigatória, e quando não cumprido pelos tribunais e pelos juízes, acarretará em violação de lei federal. V. CONSIDERAÇÕES FINAIS De forma totalmente garantidora e generosa, a Constituição de 1988 produziu para os cidadãos, em grande quantidade, direitos e diversos mecanismos capazes de instrumentalizar seu acesso à justiça. Com efeito, o modelo constitucionalmente conferido à sociedade para a satisfação de seus anseios de justiça foram muito além daquilo que os poderes estavam preparados, e com o passar do tempo, a solução conduzida pela Constituição mostrou-se inócua, uma vez que o aumento das demandas judiciais cresceu, e o acesso à justiça não era mais a tão almejada solução, mas sim um grande problema a ser resolvido. Neste diapasão, desde a década de 90, a legislação processual passou a realizar várias modificações, na tentativa de equacionar a problemática advinda da promulgação da Carta Magna. Ocorre que tais medidas muito mais se assemelhavam a barreiras que dificultavam o acesso ao judiciário. Vislumbra-se frente a esse cenário a utilização de precedentes, que de maneira gradativa foi conferindo importância às súmulas, que com o advento da EC 45/04, deixavam de serem apenas orientações para exercer um papel persuasivo, norteador, de modo a conferir aos aplicadores do direito as diretrizes prévias, de observância obrigatória no âmbito de sua competência, as súmulas vinculantes. Na mesma emenda à constituição veio a repercussão geral das questões constitucionais no Recurso Extraordinário, o julgamento dos recursos especiais repetitivos, entre outras. Registrada tais considerações associadas à atual conjuntura do sistema judiciário brasileiro, há que se constatar que tais medidas não foram capazes de melhorar sua sistemática, levando a ser a morosidade processual o principal gargalo do judiciário a ser enfrentado em uma nova legislação processual - a Lei nº 13.105 aprovada em 16 de março de 2015 - cuja proposta principal foi apostar no sistema common law que utiliza precedentes, e vislumbrar neste instituto a possível solução para uma problemática cada vez mais crescente, e que a tradição construída através do civil law não foi capaz de resolver. Todavia, caso as propostas trazidas pelo novo texto de lei não sejam aproveitadas pelos operadores do direito, consubstanciandose em uma efetiva mudança cultural, representará apenas mais uma modificação textual que não fora colocada em prática na forma que se propõe, a qual estará fadada ao insucesso por não ser capaz de atingir tal objetivo, que nesta órbita é o fator mais relevante do que a própria modificação legislativa, porquanto não há quer se refutar somente ao novo CPC a solução de todas as mazelas que atualmente permeiam o poder judiciário. Destarte, cumpre salientar que a inclusão do precedente judicial – ou provimentos vinculantes - e seus institutos também serão medidas inócuas se não restar superada as mazelas advindas da crença de uma ultrapassada visão do processo como instrumento de jurisdição apenas.
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Neste sentido, pressupõe ao direto ir além, sendo amplamente efetivado de maneira igualitária, de modo a propiciar que todos os cidadãos possam contribuir com a construção de um sistema jurisdicional fundado em um Estado Democrático de Direito, e adotando o sistema de precedentes sem prejuízo aos princípios constitucionais e ao devido processo legal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1997. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2010. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, 17 de março de 2015. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm. Acesso em 23/03/2015. BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de processo Civil Anotado. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. CÂMARA, Alexandre de Freitas. Lições de direito processual civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho, Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2014. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MEDINA, José Miguel Garcia. Anteprojeto do novo código de processo civil. Obtido na internet. Disponível em http://www.direitointegral.com/2010/04/anteprojeto-novo-codigo-processo-civil.html. Acesso em 23/03/2015. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de processo Civil. São Paulo: Gen, 2015. NUNES, Dierle. Precedentes, padronização decisória preventiva e coletivização. In WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 245-276. NUNES, Dierle; FREIRE, Alexandre; GODOY, Daniel; CARVALHO, Danilo Corrêa Lima de. Precedentes: Alguns problemas na adoção do Distinguishing no Brasil. Minas Gerais: Revista Libertas. Jan. Jul. 2013. SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2008. TESHEINER, José Maria Rosa. Contra os precedentes obrigatórios. Páginas de direito. Disponível em:http://www.tex.pro.br/home/artigos/258-artigos-dez -2013/6371-contra-os-precedentes-obrigatorios. Acesso em 28/05/2015. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional.Insuficiência da reforma das leis processuais. 2004. Obtido na internet. Disponível em: http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo51.htm. Acesso em 23/03/2015.
NOTAS DE FIM ¹ Aluna Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ² Orientador Professor Bernardo Ribeiro Câmara.
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A NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS UNIÕES PARALELA E POLIAFETIVA Bernardo Nogueira1 Luiza Helena Messias Soalheiro2 Hiadilee Tolotti Grecco3
RESUMO: Há muito se pratica a poligamia. No Brasil temos a vedação da prática com a tipificação do crime no Código Penal Brasileiro. A Constituição Federal abrange a pluralidade familiar. Assim, temos uma divergência na lei sobre o tema. Ocorre que a prática é recorrente na sociedade e os indivíduos envolvidos são postos à margem pela falta de reconhecimento dessas uniões, denominadas paralela e poliafetiva. Com isso, pretende-se discutir o assunto, trazer conhecimento ao leitor, demonstrar algumas problemáticas deste não reconhecimento e, ainda, questionar a marginalização dos que apenas querem amar e não se limitar a uma estipulação arcaica trazida pela religião e que perdura até hoje em um Estado laico. Por fim, faz-se uma breve constatação da importância da ligação entre a literatura e o direito e a utilização do tema em obras literárias e musicais. ABSTRACT: For long it has been practiced the polygamy. In Brazil we have the prohibition of the practice with the tipification on the Codigo Penal Brasileiro. The Federal Constitution covers the family plurality. This way we have a divergency on the law about the theme.It turns out that the practice is recurrent on the society and the individuals involved are relegated to the margins by the lack of recognition of such unions,called parallel and polyafective. With this, we intend to discuss the matter, bring knowledge to the reader, demonstrate some key issues of this non-recognition and, even, questioning the marginalization of those who just want to love and not be limited to an archaic stipulation brought by religion that continues today in a secular State. Lastly, we make a brief statement of the importance of the link between literature and law and the use of the theme in literary and musical works PALAVRAS CHAVES: poliafetividade; pluralismo familiar; direito de Família; bigamia. KEYWORDS: polyafective; family plurality; family rights; bigamy. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A Invenção Monogâmica; 3. Modelos Poligâmicos Atuais Pormenorizados; 4. Princípios Constitucionais, 4.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 4.2 Princípio da Afetividade; 4.3 Princípio da Autonomia Privada; 4.4 Princípio da Igualdade; 4.5 Princípio do Devido Processo Legal; 4.6 O Não Reconhecimento da Monogamia como Princípio Jurídico; 4.7 Princípio da Pluralidade Familiar 5. Problemática do Não Reconhecimento 6. Casos Reconhecidos no Brasil; 7. Quando o direito não alcança o humano: à guisa de uma conclusão. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO Muitas regras do Direito Romano se incorporaram ao antigo Código Civil de 1916 e ainda hoje pode-se perceber a sua influência e seus resquícios na legislação vigente. Na época da promulgação do antigo Código, regia a família patriarcal, patrimonialista e a indissolubilidade do. O art. 233 do Código Civil de 1916 designava o marido como único chefe da sociedade conjugal e à mulher era atribuída apenas a função de colaboração no exercício dos encargos da família, uma vez que era considerada relativamente incapaz, conforme estabelecia o artigo 240 do mesmo diploma legal. Com o passar do tempo e a mudança da sociedade, pode-se, em 1977, através da Lei nº 6.515 dissolver o casamento por meio do divórcio, afastando-se, assim, seu caráter eminentemente religioso. A lei do divórcio, como era conhecida a Lei nº 6.515/1977, teve extrema importância, vez que concedeu o direito à mulher optar ou não pelo uso do nome de família de seu marido e elevou o regime da comunhão parcial de bens a status de regime legal, além da possibilidade dos vínculos familiares se encerrarem com o divórcio. Da mesma forma, a Lei 4.121/1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, também inovou ao permitir a mulher a exercer profissão fora do lar sem a necessidade de autorização do marido. Porém, transformação maior veio com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Tal diploma legal reconheceu as mudanças sociais e, juridicamente, permitiu o surgimento de novos modelos de
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família, entre as quais, pode-se mencionar a união estável, as famílias monoparentais e as famílias recompostas. Diante da nova perspectiva da família, o modelo de família tradicional formado por um homem e uma mulher e seus filhos, passou a ser apenas mais uma forma de constituir um núcleo familiar. De fato, a família se transformou em um núcleo social funcionalizado, promovendo o desenvolvimento da personalidade e dignidade de seus membros (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010). Em seguida, no ano de 2002 tivemos a promulgação do novo Código Civil. Porém, ele é fruto do projeto de lei n° 634 de 1975 e precisou ser severamente alterado, o que não foi suficiente para que o mesmo nascesse atualizado. Enfim, o que era para ser um grande avanço foi, em alguns aspectos, um grande retrocesso. Afinal, boa parte dos direitos que seriam conquistados, já haviam inclusive sido contemplados na Constituição Federal de 1988. Independentemente desses contratempos, é notável que existam mudanças trazidas pelo Código Civil de 2002 no campo de Direito de Família se comparado ao antigo Código Civil. Neste tocante, a família se desvinculou do casamento como único meio de formação, deixou de existir a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos além de dá luz e força a igualdade de gêneros. Já adentrando ao tema principal deste estudo, relevante mencionar que em momento algum a Constituição da República faz menção a poligamia ou poliafetividade. Nem proibindo e nem reconhe-
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cendo. Porém, tais práticas estão presentes no mundo fático desde sempre, como se demonstrará no decorrer deste estudo. No Brasil, essa realidade não é diferente, contudo, existe quem entenda que a vedação dessas práticas se dá com o princípio da monogamia. Entretanto, a monogamia não é princípio jurídico, é apenas valor, como será explicado em momento oportuno. Há de forma expressa a vedação no Código Penal com a tipificação do crime de bigamia. Contudo, se analisarmos a CF/88 em uma interpretação neoconstitucionalista, devemos compreender que o artigo 226 não é um rol taxativo. O rol é meramente exemplificativo e traz uma ideia de pluralismo familiar: famílias constituídas pelo casamento, união estável ou por qualquer dos pais e/ou seus descendentes, ou outras famílias. A leitura do referido artigo deixa clara a ideia de que a Carta Magna quis abranger todas as formas de constituição de família e apenas exemplificou alguns modelos já existentes. Assim, a vedação a bigamia, presente no Código Penal, deve ser analisada com novos olhares, a partir da Constituição Federal de 1988, mesmo porque a realidade social hoje é outra, diferente da época de elaboração e promulgação do mencionado diploma legal. Nesse sentido, discorre o professor Paulo Lôbo (2002, p.44): No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos. Desta forma, tal artigo do Código Penal, que é do ano de 1940, vai de encontro com a própria Constituição Federal de 1988, a qual nos permite constituir o modelo de família que mais se adequa a realização pessoal e desenvolvimento da personalidade de cada um, necessária, então, se torna a mudança interpretativa bem como legislativa quanto ao tema.. 2 A INVENÇÃO MONOGÂMICA Na Antiguidade, a primeira etapa de família, segundo Friedrich Engels (2006), foi a família consanguínea, onde todos eram, entre si, marido e mulher. Com o tempo esse modelo deu lugar a família punaluana, onde foi excluída a prática da relação sexual entre os membros da própria família e proibindo o casamento entre primos de segundo e terceiro graus. A partir daí a família foi se fortalecendo enquanto instituição social e religiosa e deu espaço a família pré-monogâmica, onde a mulher deixou de relacionar-se com outros homens para ser de propriedade de um só, enquanto o homem poderia praticar a poligamia. Nos outros modelos de família o homem tinha facilidade em encontrar mulheres. Porém, com o advento da pré-monogamia, a escassez de mulheres começou a surgir e raptos de mulheres começaram a acontecer. Com a raridade de mulheres solteiras e desimpedidas, o casamento tornou-se a única maneira de ter para si uma mulher e deu origem à família monogâmica, caracterizada pelo casamento e pela procriação.
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Já no Direito Romano, a família detinha a figura do pater familias. Assim, habitava no centro da entidade a figura masculina e era ele quem detinha o poder. Em Roma, reinava o autoritarismo e a falta de direitos aos membros da família, especialmente quanto aos filhos e à mulher. A família romana, era de fato um “conjunto de pessoas sujeitas ao poder do pater familias, ora grupo de parentes unidos pelo vínculo de cognição, ora o patrimônio, ora a herança” (GOMES; ORLANDO, 2002, p.33). Nesse aspecto, a família era uma unidade religiosa, econômica, política e jurisdicional. Neste cenário, a mulher não possuía capacidade jurídica e nem autonomia. Era vista como um ser que cuidava da casa e procriava. Aqui também há a diferenciação de filhos legítimos e ilegítimos, onde apenas o primeiro computa-se como familiar e tem direito à herança. Sobre tal diferenciação, leciona Jorge Shiguemitsu (FUJITA, 2009, p. 13): De 149 e 126 a. C. até 303 d.C. os filhos eram classificados como: iusti ou legitimi (filhos havidos do casamento e adotivos) e os uulgo quaesitii, uulgo concepti ou spurii (havidos de uma união ilegítima). De 303 d.C. até 565 d.C., surgiram mais duas classificações: naturales liberi (filhos havidos de um concubinato) e os legitimados (equiparados aos iusti ou legitimi). Os filhos iusti ou legitimi deviam respeitar e reverenciar o chefe de família e, por consequência disso, eram proibidos de ajuizarem qualquer ação contra seu pai. Os filhos uulgo quaesitii, havidos de uma relação não matrimonial, não podiam, de forma alguma, ser reconhecidos por seu genitor, e, portanto, não havia direitos e deveres entre eles. Assim, eles ingressavam na família materna, adquirindo todos os direitos e deveres em relação à genitora. Os filhos naturales liberi reconhecidos apenas no período pós-clássico do direito romano, eram resultantes de uma relação de concubinato. Entre genitor e filho havia o direito de alimentos entre si e sucessão legítima. Os filhos legitimados eram aqueles anteriormente naturales liberi que passaram a ser filhos legitimi ou iusti por um dos três motivos: posterior casamento entre os pais, por rescrito do príncipe (ordem do imperador) ou oblação (oferecimento) à cúria. As mulheres incapazes de reprodução eram automaticamente excluídas da sociedade. Por haver tal importância, de forma alguma a mulher poderia ter outros relacionamentos senão o casamento. Já para o homem, era pacífica a aceitação da poligamia. A constituição da família no Brasil tem características trazidas pelos colonizadores. Com os índios a prática da poligamia era vista como algo natural, e foi sendo modificada com a nova cultura trazida pelos colonizadores e sua educação europeia. Com a chegada dos portugueses no Brasil, houve a incorporação do cristianismo e começou-se a praticar a monogamia por indução da igreja católica, onde o casamento era visto como indissolúvel e sacramental. Aqui, os senhores de terras tinham relações com as escravas. Porém, por reconhecerem escravos como objetos, isso não passava de um reforço do poder de sua autoridade. A prática do adultério pelos homens, semelhantemente ao que ocorria nas famílias romanas denunciava uma instituição poligâmica pouco ou quase nada disfarçada, e servia para reforçar a ausência total de isonomia dos direitos entre homens e mulheres. No ano de 1996 a revista Super Interessante publicou um artigo intitulado “Vos declaro marido e mulher” onde os autores Cristiane Costa e Enor Paiano lembram que ao reconhecer o significado político do casamento, a Igreja instituiu, em meados do século IX, a cerimônia religiosa, a qual não obteve sucesso imediatamente. Até então, ela
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não admitia que no casamento pudesse haver um bem positivo ou que o afeto entre o marido e a mulher fosse algo desejável. Dessa forma, a sociedade via o casamento como algo ruim e era definido até mesmo como superior quem optava por não casar. Com Concílio de Florença, em 1439, o matrimônio fora transformado no sétimo sacramento e o papa Eugênio IV conseguiu impor sua autoridade. Assim, o casamento tornou-se, então, indissolúvel – “o que Deus une, o homem não separa” -, e a poligamia e o concubinato, interditados. Tais regras que prevalecem até os dias atuais. Graças à consideração do casamento como sacramento e do adultério como pecado, a Igreja passava a assumir a responsabilidade pela criação do sentimento de culpa – no caso do rompimento do contrato de fidelidade – entre os cônjuges. A ela é igualmente lícito atribuir-se a intocabilidade deste mito, que é a monogamia (HOEBEL e FROST, 1976). Tanto é verdade que os 10 mandamentos da Bíblia traçam, teoricamente, comportamentos a serem adotados. A monogamia está presente em dois deles – não cometerás adultério e não cobiçarás a mulher do próximo. Na evolução biológica, tão importante quanto à sobrevivência do mais forte, é também a seleção sexual. Afinal, a evolução favorece quem mais se reproduz. Podemos observar isso nos chipanzés e nos gorilas, onde o macho dominante se reproduz com todas as fêmeas presente no habitat pois, naturalmente, o número de descendentes da fêmea é limitado, diferente do macho que pode se reproduzir de forma quase ilimitada e terá maior sucesso reprodutivo se conseguir o maior número de parceiras (IAMARINO, 2014). Desse modo, percebe-se que a monogamia, atualmente, pode ser considerada regra, mas isso não a faz prática constante no mundo animal. Mesmo espécies que antes eram consideradas monogâmicas, hoje, com avançados dos testes de DNA, são descobertas como infiéis. A naturalidade no mundo biológico já demonstra a infidelidade, diferente não seria no mundo humano. Noely Montes Moraes (2007, p. 41), em sua obra, leciona: A etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida or grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. O antropólogo George Murdock pesquisou 238 sociedades diversas e a monogamia só estava presente em 43 delas. Teoricamente, a monogamia social é raridade. Porém, na sociedade moderna, considerada mais civilizada, difícil é a sinceridade a respeito da fidelidade. Entretanto, há como mensurar tal afirmação vista a quantidade de resultados de paternidade discordante. Contrariando o que se diz, a poligamia é mais presente do que a monogamia. Considerando que o discurso predominante defende o contrato de fidelidade, a conclusão não menos óbvia é de que a monogamia é o discurso da hipocrisia (FROST, 1976). Neste sentido, a psicoterapeuta especializada em Terapia de Família e Terapia de Casal, Elizabeth van Gysel Franck (2004) leciona: A infidelidade tem ramificações importantes no estudo do comportamento humano. Ignorar esse aspecto da condição humana deixaria grandes lacunas em nosso conhecimento. Do ponto de vista estritamente reprodutivo, a poligamia seria o ideal. Mais exatamente, a “poliginia”: um homem para várias mulheres. Ela aumenta a variedade da prole, o que diminui a probabilidade de ocorrência de doenças geneticamente transmissíveis e torna a espécie humana mais adaptável à mudanças de ambiente. A realidade é que a monogamia não é a regra, pelos padrões de hoje. Estimativas moderadas são de
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que 60% dos homens e 40% das mulheres venham a ter um caso extraconjugal. Essas cifras são ainda mais significativas se considerarmos o número total de casamentos em questão, pois é improvável que todos os homens e mulheres que tenham casos venham a casar-se um com outro. Se mesmo metade das mulheres que tenham casos (20%) se casarem com homens não incluídos nos 60% que tenham caso, pelo menos um cônjuge terá um caso em aproximadamente 80% de todos os casamentos. Com tantos casamentos atingidos, é pouco sensato pensar que os casos sejam devidos apenas a fracassos e falhas de maridos ou esposas individualmente. A maioria das pessoas supõe que a monogamia seja um aspecto normal do casamento e este é apenas um dos mitos enganosos que a sociedade como um todo, insiste em acreditar. Dessa forma, a poligamia, mesmo que ainda não reconhecida, já faz parte da sociedade desde sempre. A crença da monogamia não mudou este aspecto, apenas fez com que fosse velado os relacionamentos paralelos em detrimento do relacionamento “principal” – aquele que o indivíduo assume perante os outros. 3 MODELOS POLIGÂMICOS ATUAIS PORMENORIZADOS A monogamia nada mais é do que um contrato de exclusividade afetiva e sexual com seu parceiro atual. Porém, existem casais que entendem que um relacionamento estável não é suficiente para eliminar o desejo de estar com outras pessoas e decidem, em comum acordo, que tal desejo não deve ser reprimido. Aqui devemos encarar não só o desejo, mas também o amor. A cantora Mc Mayara4 traz à tona a indagação que se faz base no atual trabalho: “Teoria da Branca de Neve: Por que só ter um se eu posso ter sete?” Afinal, amamos inúmeros no âmbito familiar, sem exclusão por amar o outro. Porém, ao se chegar ao âmbito amoroso, somos compelidos a contentar com a possibilidade de amar apenas um e obrigados a reprimir nossas vontades, desejos e amores por causa de crenças, dogmas e afins. Ainda sobre o tema, Paula Toller5 compõe: O amor o sorriso e as flores, Paraíso de Dante; Meus amores não são implicantes com meus outros amantes; Corcovado ou escada rolante, tudo isso convém; Todo homem merece um harém, toda mulher também; Abastece de óleo os neurônios , Esquece o monopólio de hormônios, prazeres já temos de menos, ciúmes já temos demais. (Grifo nosso) Assim, aos casais que decidem por serem livres às suas vontades têm as relações praticadas denominadas “poliafetividade” ou “relação poliafetiva” (DIAS, 2010), posta aqui como gênero, tem suas espécies das mais variadas. Ou seja, há relacionamentos poligâmicos de diversas formas, todos eles fazendo surgir novos modelos de contratos em relação ao romance ali vivido e até mesmo famílias. Diferente da monogamia, que existe apenas um modelo específico – ou seja, o relacionamento exclusivo com o parceiro, a poligamia engloba variados tipos de relacionamentos. A fim de trazer maior conhecimento sobre o assunto, pertinente se faz a exemplificação de alguns modelos já praticados na atualidade. O termo poligamia se refere tão somente ao casamento ou relação de um homem com diversas mulheres, diferente do termo poliandria, termo este que faz referência à união de uma mulher com diversos homens. Em relações homoafetivas os termos podem ser utilizados se adaptando ao gênero do indivíduo poligâmico central/ principal (COMPTON, 1997). O poliamor se refere basicamente a uma relação estável onde
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a poliandria (uma mulher com vários maridos). Nos Himalaias (norte da Índia), junto à fronteira com o Tibete, existem comunidades que sobrevivem graças à poliandria. Aí, o mais comum é encontrar-se uma mulher com vários maridos – normalmente, irmãos. Também há casos de duas ou três irmãs que partilham meia dúzia de irmãos, garantindo assim que os bens das duas famílias se juntem e solidifiquem a posição social e económica da nova família. Os filhos são partilhados por todos os pais. Também no Uzbequistão existem comunidades onde se pratica a poliandria. Aqui, as causas evocadas são de natureza psicológica e económica. Há também razões de natureza cultural que justificam essa opção, pois não é bem visto o homem que é abandonado pela esposa. Em Angola, existem até hoje comunidades poligâmicas, podendo avançar-se razões de natureza demográfica, económica e cultural para tal opção. O mais comum é a poliginia, mas existem também casos de poliandria. Desde já, é preciso esclarecer que (contrariamente ao que se afirma na comunicação social) a poliginia não ocorre somente em comunidades patriarcais. Inclusivamente por Angola, existe poliginia em sociedades matriarcais. A matrilinearidade tem a ver com direitos de sucessão e de herança, não implicando necessariamente, pela mesma lógica, o género de casamento.
cada um dos indivíduos pode se relacionar com outros devendo haver consensualidade, ética, respeito e aceitação de todos os envolvidos. Nesse modelo de relacionamento não-monogâmico tem-se a ideia múltiplos romances, não envolvendo tão somente a prática de sexo mas sim, construindo relações amorosas, duradouras e profundas. A prática é também relatada pela banda Type O’Negative6, a qual compôs a música “My girlfriend’s girlfriend” a respeito: A namorada da minha namorada, ela parece com você; a namorada da minha namorada é minha garota também. Ela e eu e ela e ela e eu, um casal espaçoso; somos nós três. Hey nós não ligamos para o que as pessoas dizem, nós andamos de mãos dadas na Estrada King’s. Duas por uma hoje.7. Na polifidelidade o pacto é de que um determinado grupo de pessoas pode se envolver, física ou emocionalmente, tão somente entre elas. Diferentes das relações abertas onde há uma união estável e os indivíduos são livres para se envolver sexualmente com outros. Ainda, existe a chamada relação moni/poli onde apenas um dos parceiros escolhe se relacionar com outros, enquanto o segundo prefere viver a monogamia. Aqui, onde a poligamia é exercida de forma unilateral, podemos compreender que assim como a monogamia, tais denominações só traduzem uma escolha estritamente pessoal onde o individuo envolvido consegue perceber o que melhor lhe atrai e não precisa do auxílio do Estado para chegar em tal conclusão. Esses são apenas alguns dos diversos modelos contratuais, feitos verbalmente entre os envolvidos, que podem reger um relacionamento poligâmico. Porém, com isso, percebemos que há muito mais no mundo fático que apenas a monogamia e, mesmo assim, é o único protegido no direito. Nesse sentido, leciona Azeredo (2009, p.19): (...) deixar o Direito ao livre sabor de preceitos morais dominantes é impor a chamada “ditadura da maioria, negando respeito e, até mesmo, existência à eventual minoria. Isso se acentua quando se trata de aspectos morais, que, como visto, são de ordem subjetiva e pessoal – situação em que o Direito estará, embora consonante como a moral majoritária, certamente distanciado de um ideal de justiça. Fustel de Coulanges (1961, p. 11) versa: As grandes transformações, que de tempos em tempos aparecem na constituição das sociedades, não podem ser efeito do acaso, ou apenas da força. A causa que as provoca deve ser poderosa, e essa causa deve estar no próprio homem. Se as leis da associação humana não são mais as mesmas de antigamente, é porque apareceu no homem alguma mudança. Com efeito, parte de nosso ser modifica-se de século em século: nossa inteligência. Ela evitar-lhe um sofrimento maior –, ela não justifica a mentira como conduta moral”. Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 332. Grifos no original. 13NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mau, ou Prelúdio de Uma Filosofia do Futuro. Trad. Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001, p. 90. 16 está sempre em movimento, quase sempre em progresso, e por sua causa nossas instituições e leis estão sujeitas a transformações. O sociólogo Paulo de Carvalho (1993), que atuou como jornalista no Seminário Angolense, se pôs a estudar tal prática. Com seus estudos, foram colhidos dados que chegaram à conclusão de que: Não há apenas casos de poliginia, motivados por razões de natureza cultural, social, demográfica, económica ou religiosa. Há, também, comunidades onde se incentiva e se promove
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Dessa forma, deve o direito promover a justiça, abrir os olhos para os novos modelos de família e, de forma alguma, criminalizar quem escolhe viver de forma diferente da tida como “normal”, “comum”. 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Os modelos supracitados são modelos de famílias que já são praticados há tempos e estão cada vez mais comuns na atualidade. Tais famílias devem ser abrangidas pela norma jurídica visto que não contrariam nenhum mandamento constitucional. Ora, são formas variadas de constituição de família que devem ser protegidas, respeitadas e que não devem sofrer a influência do Estado de modo a determinar um modelo ideal de família, visto que não há quebra de nenhuma cláusula jurídica. Para tanto, temos princípios constitucionais que serão aqui abrangidos que vão de acordo com a afirmação acima. 4.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O princípio da dignidade humana não é um princípio imutável. Pelo contrário, ele deve se adequar à sociedade e as mudanças sofridas por ela. Tal princípio visa proteger os anseios populares e amparar as diversidades que surgem da própria evolução do ser. Tem, assim, que promover situações para que o ser humano se desenvolva de forma digna e feliz. Por óbvio, a entidade familiar tem um dos papéis mais importantes para tal desenvolvimento. Ora, a família é a primeira sociedade com a qual o individuo tem contato e, muito provavelmente, a única que permanecerá para todo o sempre. Tão importante tal conceito que merece destaque na própria Constituição Federal, em seu art. 226, quando este leciona: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” (BRASIL, 1998). Dessa forma, cabe a família ser instrumento de desenvolvimento pessoal, valorizando a pessoa. Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 60) conceitua a dignidade da pessoa humana: [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
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venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. De tal forma, chega-se a conclusão de que este princípio deve ser utilizado de maneira efetiva e eficaz, sob pena de estagnação pessoal e infelicidade do ser humano. 4.2 Princípio da Afetividade Segundo Maria Berenice Dias (2006, p. 61): A família transforma-se na medida em que se acentuam as relações de sentimentos entre seus membros: valorizam-se as funções afetivas da família. [...] A comunhão de afeto é incompatível com o modelo único, matrimonializado da família. Por isso, a afetividade entrou nas cogitações dos juristas, buscando explicar as relações familiares contemporâneas. Os princípios jurídicos são concebidos como abstrações realizadas pelos intérpretes, a partir das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais. O supramencionado princípio não está previsto de forma expressa em nosso ordenamento, mas, sabendo que a Carta Magna reconhece a pluralidade familiar, compreendemos tal princípio como base para a constituição de família, sendo imprescindível para a criação de vínculo entre os indivíduos e na busca de realização de cada membro. Giselle Câmara Groeninga (2008, p. 28), em sua obra, pondera: O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade. Há diversas jurisprudências que confirmam e se utilizam do princípio da afetividade para pautar suas decisões. O reconhecimento das uniões homoafetivas é um exemplo claro, mas há também sentenças indenizando pelo abandono afetivo no âmbito familiar e reconhecimento de parentesco pela socioafetividade, deixando indiscutível a afetividade tratar-se de um princípio de extrema importância no Direito das Famílias. Ricardo Lucas Calderon (2012), em sua dissertação de mestrado defendida na UFPR, corrobora com a afirmação acima: Parece possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento. Ainda, Maria Berenice Dias (2005, p. 25) aduz que: Cada vez mais se reconhece que é no âmbito das relações afetivas que se estrutura a personalidade da pessoa. É a afetividade, e não a vontade, o elemento constitutivo dos vínculos interpessoais: o afeto entre as pessoas organiza e orienta o seu desenvolvimento.
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Por fim, Paulo Lôbo (2011, p. 17) leciona: A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida. Logo, não resta dúvidas de que o referido princípio deve ser posto como base para o reconhecimento das uniões paralela e poliafetiva, visto que, as uniões aqui trabalhadas são expressões nítidas de relação pautada na vontade e no desejo pelo outro e não na obrigatoriedade de continuidade de relação por imposição de religião ou sociedade. Nesse aspecto, Cássia Eller8 já nos ensinou cantando que “não basta o compromisso, vale mais o coração”, fazendo refletir sobre a importância do que se sente. 4.3 Princípio da Autonomia Privada O princípio da autonomia privada versa sobre a possibilidade de escolhas do indivíduo sem que essa escolha seja contraria às restrições demarcadas pelo legislador. Assim, assegura as partes a possibilidade de acordar o que melhor lhe convier, desde que tal acordo não vá de encontro com normas jurídicas. Sabe-se que o legislador tipificou no Código Penal brasileiro o casamento de pessoa já casada e impossibilitou a mesma prática no Código Civil brasileiro. Porém, há diversas indagações sobre tais normas. Independente, no presente trabalho, defende-se o reconhecimento jurídico de uniões onde há a ciência das partes e, mesmo se não houver – no caso de união paralela, não há impedimento legal visto que não há o casamento da mesma pessoa mais de uma vez, e sim, há diversas uniões estáveis. O princípio supracitado conversa com o princípio da não intervenção estatal nas relações familiares, onde prega a retirada do poder regulatório do Estado em assuntos estritamente particulares. Reconhecidamente, há a necessidade do poder regulador do Estado em determinados aspectos, porém, nada justifica a pretensão do Estado em regular a prática sexual e o afeto do indivíduo. Nesse campo, a autonomia privada deve ter máximo alcance, de forma a deixar o ser livre para escolher o que lhe melhor satisfaz e o põe mais próximo da almejada dignidade e felicidade. O referido princípio assegura o indivíduo o poder de comportarse da maneira que melhor lhe convier, inclusive o modo de gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais. Dessa forma, não havendo norma que restringe mais de uma união estável – visto que não se deve utilizar de interpretação análoga se esta for para restringir o sujeito, são livres as uniões poliafetivas para se formarem da maneira que os participantes assim acordarem. Em entrevista cedida ao IBDFAM, o advogado Marcos Alves da Silva (2012) corrobora com tal entendimento ao afirmar que “a efetiva democracia pressupõe a construção de espaços jurídicos para todos. Esta liberdade somente se instala se o Estado abster-se da pretensão da regulação totalitária da sexualidade, que era viável para a os intentos da Igreja Católica à época do Concílio de Trento. Hoje, não há espaço para esse tipo de pretensão regulatória”. 4.4 Princípio da Igualdade O referido princípio encontra-se resguardado no art. 5º da CF/88, que versa: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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[ . . ] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Ora, o não reconhecimento das uniões poliafetivas resta claro a distinção feita em face de casais monogâmicos e demonstra o não respeito pelo diferente a tal situação. Não reconhecer como família uma união formada por mais de duas pessoas configura discriminação e viola o princípio da igualdade. 4.5 Princípio do Devido Processo Legal A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5°, inciso LIV prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Não reconhecer a união poliafetiva e tipifica-la é, nitidamente, privar o individuo da liberdade. Todos são livres para escolher o que melhor se adequa em se tratando de relacionamento. Dessa maneira, privar o indivíduo de tal escolha é privar o indivíduo do devido processo legal. Nesse sentido, no caso de n° 2:11-cv0652-CW, o juiz Clark Waddoups, o qual descriminalizou a bigamia nos EUA, leciona: Estes estatutos também privam os amantes da liberdade sem os devidos processos legais em violação da 14ª emenda. A liberdade de se casar foi reconhecida há tempos como um dos direitos vitais para a devida busca pela felicidade pelo homem livre. Sob a nossa Constituição, a liberdade de se casar, ou não, com uma pessoa de outra raça reside no indivíduo e não pode ser infringida pelo Estado9. 4.6 O Não Reconhecimento da Monogamia Como Princípio Jurídico As famílias atuais têm como base o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da afetividade. Dessa forma, não há nexo em tratar a monogamia como se também princípio fosse. Ora, tal princípio vai de encontro com os dois pilares das uniões. Como já dito anteriormente, a monogamia adveio da doutrina da Igreja Católica. Ocorre que, como já sabido, a Constituição Federal de 1988 afirma ser o Brasil um país laico. Dessa forma, há a possibilidade do cidadão escolher viver em um relacionamento monogâmico, porém, em hipótese alguma, essa escolha deve ser imposta a quem, por simples autonomia, decidir que não lhe satisfaz tal decisão. Maria Berenice Dias (2011, p. 51) leciona que “ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. [...]”. De fato, não há, em momento algum, a menção da monogamia em nossa Carta Magna. Inclusive, tratar a monogamia com determinada força, fere o princípio da autonomia privada, que é o extremo oposto do aqui trabalhado. A autora prossegue afirmando que: Pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um ou, pior, a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel (DIAS, 2011, p. 51). Dessa forma, a monogamia pode – e deve, ser vista apenas como um valor moral. Algo que o indivíduo pode querer – ou não para si. Deve-se encarar a vontade de seguir um relacionamento com apenas uma pessoa como exatamente o que é: apenas uma vontade.
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Uma escolha individual, uma decisão particular. Assim, a monogamia pode ser vista apenas como uma forma de pautar um determinado tipo de relacionamento dentre os tantos existentes – o monogâmico. Essa escolha é determinada pelo casal que o achar conveniente. O Estado, nessa questão, não tem que opinar em absoluto, sob pena de acabar com todos os preceitos de um Estado Democrático de Direito. 4.7 Princípio do Pluralismo Familiar O princípio do pluralismo familiar, disposto no art. 226 da Constituição Federal de 1988,versa sobre a diversidade de hipóteses de constituir uma entidade familiar, podendo o núcleo familiar ser constituído não apenas pelo casamento, mas também por maneiras diversas. A sociedade e, por consequência, a família, vive em constante mutação, o que acaba por gerar novos conceitos – como o trazido pela banda Titãs na música “Família”, princípios e leis que tentam disciplinar o assunto. Conforme já mencionado, no Código Civil de 1916, a única maneira de se constituir família era através do matrimônio; após, decorrido certo lapso temporal, com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a ser reconhecida à união estável, as famílias monoparentais10 ou qualquer outra forma de entidade familiar, daí o surgimento do . Princípio do Pluralismo Familiar. Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, in Dias (2007, p.64), nos ensina: “O princípio do pluralismo das entidades familiares é encarado como o reconhecimento pelo Estado da existência de várias possibilidades de arranjos familiares”. 5 PROBLEMÁTICA DO NÃO RECONHECIMENTO Esclarece Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2012, p. 2): No que diz respeito, propriamente, aos modelos familiares de conjugalidades concomitantes, isto é, as famílias conjugais (por casamento ou por união estável) paralelas ou simultâneas, o assunto tem caminhado a passos duros e lentos, com a maioria dos julgados não reconhecendo a possibilidade de tutela concomitante. Mas, aqui e ali, se apresentam decisões que, corajosamente, já têm chancelado a possibilidade de reconhecimento. Chegaremos lá, num futuro nem tão longínquo, quiçá, quando a jurisprudência se enrobustecerá e o Poder Legislativo – ou o ativismo do Poder Judiciário – entenderem que “a lei não refaz a sociedade, mas que a sociedade refaz a lei!” Cediço é a prática em questão. Afinal, todos conhecem alguém que vive em união paralela ou poliafetiva. Em breve será demonstrado que existem decisões aqui e acolá que reconhecem os direitos dos indivíduos envolvidos em uniões poligâmicas. Ocorre que a lentidão para garantir direitos para esses casais acaba por colocá-los em um limbo jurídico e os obriga a recorrer à justiça – que já tem demanda em excesso - para resolver questões simples e práticas que, se já previstos, seriam resolvidas inclusive em cartório – como já é possível para casados ou companheiros. Imagine um casal poliafetivo tradicional: “A” tem uma união estável com “B” e outra com “C”, enquanto “B” também se relaciona com “D”. “A” vem a falecer. Os bens de “A” ficariam para “B”? E “C” seria tratado pela justiça como se nunca houvesse existido? Qual o parâmetro utilizado pela justiça para decidir tal impasse? Se tal caso fosse levado para o judiciário, comumente seria reconhecida uma das uniões de “A” e a outra seria tida como nula. Ocorre que a anulabilidade de uma delas traria prejuízo financeiro para um sujeito, além de profunda tristeza diante o sentimento de inexistência de toda a relação que teve com o agora falecido. Em um ímpeto de se fazer justiça, o
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poder judiciário acaba por injustiçar alguém que estava de boa-fé. Em um estudo que indaga a validade da monogamia no cenário atual, a estudante Anna Carolina Aguero Mazzo (2015) pontua: Há que se pensar, por exemplo, que o surgimento de um novo arranjo familiar implica em novas consequências no âmbito da filiação, da sucessão, do regime de bens, dos débitos alimentares, entre outros. Para isso, contudo, é imprescindível repensar esse ramo do Direito e buscar decisões igualitárias que atendam as necessidades dessa família contemporânea. Dessarte, o legislador deve abster-se de preconceitos e dogmas, reconhecer as novas entidades familiares e por fim responder aos anseios coletivos e individuais dando possíveis soluções para os casos apresentados na sociedade contemporânea sob pena de ferir a dignidade dos envolvidos e coloca-los em uma situação onde, por uma falta normativa, deve escolher entre seus amores para apenas um habitar no “status de oficial”. 6 CASOS RECONHECIDOS NO BRASIL Como já mencionado, existem julgados no sentido de reconhecer a nova realidade social como fez, por exemplo, o Tribunal do Maranhão: DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL SIMULTÂNEOS. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO. 1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável. 2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. 3. Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: Na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é concebido como estritamente adulterino,e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridade próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere a famílias paralelas. O preconceito - ainda que amenizado nos dias atuais, sem dúvida - ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial. 4. Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de procedência do pedido formulado em ação declaratória. 5. Apelação cível provida. DECISÃO: ACORDAM os senhores desembargadores da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por votação unânime, conhecer do recurso e darlhe provimento, nos termos do voto do relator, que integra este acórdão. (Acordão Nº 149918/2014, Apelação Cível Nº
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19048/2013 (728-90.2007.8.10.0115), Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do MA, Relator: Desembargador Lourival Serejo, Julgado em 10/07/2014). No mesmo sentido, decidiu o TJRS na apelação cível abaixo: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE AUTORIZA O RECONHECIMENTO. SENTENÇA QUE MERECE MANTIDA. AGRAVO RETIDO DESPROVIDO. PEDIDO DA AUTORA PARA SER NOMEADA COMO ADMINISTRADORA DOS BENS DO ESPÓLIO. DESCABIMENTO NO CASO CONCRETO. O PEDIDO DA AUTORA ENVOLVE QUESTÕES QUE DEVEM SER LEVANTADAS, DISCUTIDAS E DECIDIDAS NOS AUTOS DO INVENTÁRIO DOS BENS DEIXADOS PELO FALECIDO. Demonstrado que, mesmo não estando separado de fato da esposa, o falecido viveu por mais de cinqüenta anos em união afetiva com a autora, resta configurada a união estável paralela ao matrimônio, com todos os requisitos legais pertinentes. Agravo retido e Recurso de apelação desprovidos. (TJRS, Apelação Cível nº 70028251171, Rel Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. 14/10/2009) Por fim, decisão do TJMG versa: DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva – pública contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa – mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro. DERAM PROVIMENTO PARCIAL. (TJMG, Apelação Cível nº 1.0017.05.016882-6/003, Relª. Des. ª Maria Elza, public. 10/12/2008).
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7 QUANDO O DIREITO NÃO ALCANÇA O HUMANO: À GUISA DE UMA CONCLUSÃO
guador, mas que fomente esse caráter mais desejante. Sem reprimir o amor, o desejo, uma postura mais transgressora.
Resta clara a prática aqui trabalhada como um fato. No Código Civil de 1916, com o intuito de proteção à propriedade privada, a família era tida como a formada apenas pelo casamento. Com o advento da Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, famílias são constituídas por união estável, casamento, há a figura do filho adotivo como se consanguíneo fosse, da família monoparental, homoafetiva, e esses são apenas alguns exemplos, como já mencionado anteriormente. Com isso, se faz nítido o entendimento de que, hoje, no direito, o reconhecimento de família se dá com base na afetividade presente na relação exposta, garantindo a isonomia, proporcionando a dignidade e respeitando a autonomia privada do indivíduo. Dessa forma, não se vê, senão como um resquício deixado pela crença católica, motivo plausível para o não reconhecimento dessa união que liberta o indivíduo e não o limita a amar apenas um. Há não muito tempo, a união homoafetiva era proibida em nosso ordenamento jurídico, assim como no cristianismo, mas isso não significa que era menos praticada na vida real. Assim se faz as uniões paralela e poliafetiva hoje. A prática, já tratada inclusive na literatura, é mais antiga que a própria monogamia, porém, por esbarrar em um dogma religioso, se mantém à margem. Faz-se necessário, todavia, recordar que o Brasil é um país laico, assim como o catolicismo não deve ser considerado como sempre certo, visto a Santa Inquisição e suas terríveis condutas e consequências. Devemos entender que a falta de reconhecimento jurídico das uniões poligâmicas nada mais é do que uma forma de tolher o sentimento de amor dos envolvidos. Sentimento este que serve, desde muito, como inspiração para obras literárias, musicais e cinematográficas. O professor Lênio Streck (2014) faz uma ligação direta entre o direito e a literatura e, conclui que diversas vezes a literatura antecipa uma norma, colocando em pauta uma atitude social que ainda não foi regulamentada no âmbito jurídico. Em 1966, Jorge Amado escreve a história de Floripedes Paiva (Dona Flor), uma jovem moça que encontra o amor em seus dois casamentos. No primeiro, com um boêmio de alcunha Vadinho, vive um romance tórrido por 7 anos, quando o mesmo vem a falecer. Tempo depois se casa com Teodoro, um farmacêutico que lhe provem uma vida monótona, mas segura financeira e emocionalmente. Um ano depois de casada com Teodoro, Dona Flor começa a receber a visita do fantasma de Vadinho e se vê em uma luta interna, pois ama tanto o primeiro quanto o segundo marido. Sucumbindo às investidas do falecido, Dona Flor começa a ter com Vadinho uma relação paralela e vive a dupla face do amor com ele e com o farmacêutico simultaneamente. Consequentemente, se faz fática a percepção de Streck à respeito da relação do direito com a literatura, onde a obra trouxe uma realidade vivida por diversas pessoas que, ainda hoje, se veem sem regulamentação. Ainda, reforçando essa relação, em 1984, inspirado no título de Jorge Amado, Luís Aberto Warat publica “A Ciência Jurídica e Seus Dois Maridos” onde Dona Flor, personagem central, se traduz como a Ciência Jurídica, Vadinho representa os anseios da sociedade e toda sua complexidade e Teodoro é o Estado aplicando as normas existentes e a política. Já o antropólogo Roberto da Mata coloca Teodoro representando a ordem enquanto Vadinho representa a mudança, o progresso. Homero José Vizeu Araújo, nesse sentido, reflete: Há uma teodorização do Direito, este é vivido como uma forma dogmática, fechada, é preciso Vadinhar o Direito, tentar compreender o direito, produzir um discurso que não seja apazi-
E não só o poliamor serviu de inspiração para tanto. O tema de relação paralela já ajudou na composição de diversas músicas como é o caso do “Velório do Heitor” de Paulinho da Viola, “Eu sou a outra” de Maria Bethânia, o samba “Matriz e Filial” cantado por Jamelão são apenas alguns exemplos e demonstrativos da normalidade das relações aqui propostas no cotidiano da sociedade. Por fim, “Todo mundo tem direito de ser feliz da maneira que achar melhor” declarou Mister Catra11 sobre o assunto, e continua afirmando: “Eu (se pudesse) iria conceder o direito de casar homem com homem, mulher com mulher, homem com duas mulheres. Vou liberar o amor. Todo mundo tem que ser feliz sem prejudicar o próximo”. Pois, como já cantou Lulu Santos12 “[...] consideramos justa, toda forma de amor”.
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7 My girldfriend’s girlfriend, She looks like you; My girlfriend’s girlfriend, She’s my girl too. Her and me and her and she and me, An uncrowded couple; are we three; Hey we don’t care what people say when walking hand in hand down kings highway; Two for one today 8 Cássia Rejane Eller foi uma cantora e violonista do rock brasileiro dos anos 1990. Foi eleita a 18ª maior voz e 40ª maior artista da música brasileira pela revista Rolling Stone Brasil. 9 These statutes also deprive the Lovings of liberty without due process of law in violation of the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment. The freedom to marry has long been recognized as one of the vital personal rights essential to the orderly pursuit of happiness by free men. Under our Constitution, the freedom to marry, or not marry, a person of another race resides with the individual and cannot be infringed by the State 10 Renato Russo (nome artístico de Renato Manfredini Júnior, foi um cantor e compositor brasileiro, célebre por ter sido o vocalista e fundador da banda de rock Legião Urbana) exemplifica bem as famílias monoparentais em sua música Pais e Filhos: “eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar...” -, onde um membro da família seja ele o pai ou a mãe convive sozinho com seu filho. 11 Mr. Catra, nome artístico de Wagner Domingues da Costa, é um compositor e cantor brasileiro. 12 Luiz Maurício Pragana dos Santos, simplesmente conhecido como Lulu Santos, é um cantor, compositor e guitarrista brasileiro. A música “Toda Forma de Amor” é do ano de 1988 e faz parte do sexto álbum de estúdio do cantor que tem o mesmo nome da música.
RUSSO, Renato. 1° de Julho. In: ELLER, Cássia. Acústico MTV. Rio de Janeiro: Warner Music Brasil, 2001. 1 CD, faixa 6. RUSSO, Renato. Pais e Filhos. In: URBANA, Legião. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI. 1989. 1 CD, faixa 2. SANTOS, Lulu. Toda Forma de Amor. Toda Forma de Amor. Rio de Janeiro: RCA Victor. 1988. 1 CD, faixa 7. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, 2001. STEELE, Peter. My Girlfriend’s Girlfriend. In: NEGATIVE, Type O’. October Rust. Nova Iorque: Roadrunner Records. 1996. 1 CD, faixa 7. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. RODRIGUES, Renata de Lima. O direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo. Atlas, 2010. TJ-MA - Acórdão nº 149918/2014, AC: 19048/2013 (728-90.2007.8.10.0115), Relator: Desembargador Lourival Serejo, Data de julgamento: 10/07/2014, Terceira Câmara Cível VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União estável poliafetiva: breves considerações acerca de sua constitucionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3395, 17 out. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22830>. Acesso em: 28 out. 2014.
NOTAS 1Doutorando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Especializado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Conselheiro Lafaiete. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor de Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas de Itabirito(FCJI - UNIPAC). Professor do curso de Pós-Graduação Lato Sensu - Especialização em Gestão Pública e Orçamento da UNIPAC/ITABIRITO. Coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia, Teoria do Direito e da Constituição, na UNIPAC/ITABIRITO. 2Advogada. Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Arnaldo Janssen. Graduada pelo Centro Universitário Newton Paiva. Bolsista Fapemig. 3Estudante de graduação em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 4 Mayara Juliana de Souza, mais conhecida como MC Mayara, é uma cantora brasileira de eletrofunk. A música “Teoria da Branca de Neve”, publicada no álbum homônimo, é seu maior sucesso até o presente momento. 5 Paula Toller Amora é uma cantora e compositora brasileira, conhecida como vocalista da banda Kid Abelha. A música “Poligamia” foi composta com George Israel no ano de 2005. 6 Type O Negative foi uma banda norte-americana de metal.
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