Letras Jurídicas | 2 semestre 2015

Page 1

ISSN 2358-2685

PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA N.5 | 2O SEMESTRE DE 2015

JURÍDICA

LETRAS



ISSN 2358-2685

publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva Volume 3 | Número 2 | 2O SEMESTRE DE 2015 EDITOR Célio Stigert

JURÍDICA

LETRAS


© 2015, by o organizador © 2015, by Centro Universitário Newton Paiva Volume 3 | Numero 2 | 2O semestre de 2015

Centro Universitário Newton PAIVA ESCOLA DE DIREITO Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil


apresentação A nossa Revista Letras Jurídicas é um projeto idealizado por pensadores de vanguarda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva e com mais este número, continua a consolidar a publicação científica, com a intenção de intercambiar saberes produzidos por nossos acadêmicos na confecção de seus trabalhos de conclusão de curso, após submissão em banca examinadora. Não há notícia de meio mais adequado ao fomento da publicação que esta ferramenta de comunicação, considerando a extensão que alcança por força de sua divulgação física, mas especialmente eletrônica. A Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva tem a intenção de propiciar com esta publicação mais uma forma de fonte de pesquisa para os operadores do Direito, como também estimular a fertilidade das ideias, muitas vezes oprimidas pela vaidade acadêmica. Célio Stigert Editor

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


expediente ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO Presidente do Grupo Splice: Antônio Roberto Beldi Reitor: João Paulo Beldi Vice-Reitora: Juliana Salvador Ferreira Diretor Administrativo e Financeiro: Cláudio Geraldo Amorim Sousa Secretária Geral: Jacqueline Guimarães Ribeiro Coordenador geral da escola de direito: Emerson Luiz de Castro COORDENAÇÃO do curso de direito: Campus Buritis: Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo Campus Carlos Luz: Valéria Edith Carvalho de Oliveira

ORGANIZADOR Célio Stigert

apoio técnico Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton pAIVA http://npa.newtonpaiva.br/npa Editora de Arte e Projeto Gráfico: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG diagramação: Ariane Lopes, Marina Pacheco e Pedro de Paula (estagiários do curso de Jornalismo)


sumário AUXÍLIO RECLUSÃO: Uma releitura à luz do princípio da isonomia e princípios previdenciários Ana Carla Soares de Resende e Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi ............................................................................................................8

TERCEIRIZAÇÃO: da necessidade de regulamentação Ana Luiza de Mello Serra e Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo .......................................................................................................17

DIREITO E MODA: As Formas de Registro de Marcas e Patetes André Rafael Monteiro Lucas e Hugo Ribas Bretas.............................................................................................................................................22

PODER DIRETIVO (IUSVARIANDI) EM CONFRONTO COM O DIREITO DE RESISTÊNCIA Ana Rita Maciel Coutinho e Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi......................................................................................................................28

O ASSÉDIO MORAL NO SERVIÇO PÚBLICO: a configuração do assédio moral na avaliação periódica de desempenho como ato de improbidade administrativa Angélica Aparecida da Silva e Núbia Elizabette de Jesus Paula.........................................................................................................................35

ASPECTOS CONTROVERTIDOS EM RELAÇÃO À ATUAL REDAÇÃO DO ARTIGO 618 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E SUA APLICAÇÃO Arthur Senra Jacob e Omar Narciso Goulart Júnior.............................................................................................................................................43

RESPONSABILIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DO SÓCIO, GERENTE E ADMINISTRADOR DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO Bianca Gomes Modafferi e Gustavo Henrique Carvalho da Mata.......................................................................................................................48

A MEDIAÇÃO E A EFETIVIDADE DO ACESSO À JUSTIÇA Cristina Maria Dias e Ludmila Stigert....................................................................................................................................................................56

A RESPONSABILIDADE PENAL PELA TRANSMISSÃO DOLOSA DO VÍRUS HIV Camila Rodrigues Santiago Roncalle e Marcelo Sarsur Lucas da Silva..............................................................................................................62

A (I)LEGALIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA 665 CONVERTIDA NA LEI 13.134/15 EM FACE DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL Cleberson Rocha do Nascimento e Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo...........................................................................................67

LEI 13.015/2014: alteração no sistema recursal trabalhista e o incidente de uniformização de jurisprudência como requisito obrigatório de admissibilidade do Recurso de Revista Cleide Margarida Vieira e Amanda Azeredo Bonaccorsi.....................................................................................................................................72

A UTILIZAÇÃO DE MEIOS ELETRÔNICOS NO AMBIENTE DE TRABALHO Célio da Costa Ramalho e Amanda Helena Bonacorsi.......................................................................................................................................80

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


OS RUMOS DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL A MUDANÇA E A CONTINUIDADE Carolina Charine Valadares e Carlos Augusto Teixeira Magalhães.................................................................................................................88

MEDIAÇÃO versus CULTURA DO LITÍGIO: A efetividade da mediação na sociedade brasileira diante da cultura do litígio Ecilma Dalva Gomes Campos e Carlos Augusto Teixeira Magalhães.............................................................................................................92

COLABORAÇÃO PREMIADA NOS CRIMES ORGANIZADOS Evelyn Inaê Alves Gato e Ronaldo Passos Braga............................................................................................................................................99

(IN) CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS ADMINISTRATIVAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS Flávia Mata da Silva e Hugo Rios Breta...........................................................................................................................................................104

A INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO Fernanda Cristina Aparecida Soares e Gustavo Vidigal Costa.......................................................................................................................111

A EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAUDE E O PROGRAMA MAIS MÉDICOS Fabricio de Freitas Mourão Helt e Ludmila Stigert..........................................................................................................................................120

A (IN)IMPUTABILIDADE DOS PSICOPATAS Grazielle Gonçalves de Araújo e Carlos Augusto Teixeira Magalhães............................................................................................................125

DIREITO E POLÍTICA: O Sistema De Financiamento De Campanhas Brasileiro Guilherme Antônio Marinho e Tatiana Maria Oliveira Prates...........................................................................................................................130

DISPENSAS COLETIVAS Gabriel Costa Prado e Daniela Lage Mejia Zapata.........................................................................................................................................137

A RELEVÂNCIA DA CONDENAÇÃO EFETIVAMENTE COERCITIVA NA JUSTIÇA DO TRABALHO: como o Punitive Damages pode resgatar a Justiça Trabalhista do seu atual processo de autossabotagem Filipe Cordeiro Kinsky e Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi......................................................................................................................149

OS FUNDAMENTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 COMO INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Frederick Haendel Cunha Andrade e Célio Stigert.........................................................................................................................................155

ANÁLISE HISTÓRICO EVOLUTIVO DO AUXÍLIO-RECLUSÃO E A POLÊMICA PEC 304/2013 Giovanni Bruno de Araújo Savini e Mirella Karen de Carvalho Bifano............................................................................................................165

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: A INEFICÁCIA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Isadora Corradi Machado e Carlos Augusto Teixeira.....................................................................................................................................171

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ACUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE PELO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: UMA QUESTÃO DE ESCOLHA? Juliana Canuta Affonso de Morais Cedro e Amanda Azeredo Bonaccorsi.........................................................................................................178

O FIM DO JUS POSTULANDI NA JUSTIÇA DO TRABALHO Jonathan G. Rigueira Carlos e Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi............................................................................................................... 189

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Luiz Carlos Pereira de Lemar Neto e Ludmila Castro Veado ..............................................................................................................................196

USUCAPIÃO ESPECIAL DE BENS PÚBLICOS DOMINICAIS: uma possibilidade à luz do Estado Democrático de Direito Laura Lorena Stephanie Gomides Fernandes e Núbia Elizabette de Jesus ...................................................................................................... 203

A PREJUDICIALIDADE DA INTERPRETAÇÃO LITERAL NO CASO DA ISENÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 6 INCISO XIV DA LEI Nº 7.713 DE 1988 Luiza dos Santos e Tatiana Maria Oliveira Prates Motta......................................................................................................................................212

LIMITES DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO REGISTRO DE MARCAS: A REGISTRABILIDADE DE SIGNOS DE USO COMUM Márcio Roberto Lopes e Maraluce Maria Custódio............................................................................................................................................. 216

CONCURSO DE PESSOAS EM CRIMES CULPOSOS Marcella de Mont’ Serrat e Souza e Renato Martins........................................................................................................................................... 222

NOVO INSTRUMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À SOCIEDADE: PARCERIA PÚBLICO PRIVADA Flávia Mata da Silva e Hugo Rios Breta.............................................................................................................................................................. 227

A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DE SERVIÇOS DE INTERNET COM O ADVENTO DA LEI 12.965/14 Nathanny Alves Sena, Thiago Augusto de Freitas e Hudson Gilbert de Oliveira .............................................................................................. 236

A ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO Nathália Barbosa da Silva e Valéria Edith Carvalho ........................................................................................................................................... 245

A NOVA LEI DE GUARDA COMPARTILHADA E A ALIENAÇÃO PARENTAL Natália Goulart Andrade e Paula Maria Tecles ................................................................................................................................................... 250

A REINSERÇÃO DO EX-PRESIDIÁRIO NO MERCADO DE TRABALHO: um olhar sob a perspectiva da perda de identidade Rafaela Cristina Gomes de Paula e Carlos Augusto Teixeira Magalhães .......................................................................................................... 258

ABORTO SENTIMENTAL: ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS Renata Veloso Tobias e Cristian Kiefer da Silva ................................................................................................................................................. 265

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O DIREITO À MATERNIDADE DA DOADORA DE ÓVULO EM UMA RELAÇÃO HOMOAFETIVA Simone Rocha Pereira e Valéria Edith Carvalho ................................................................................................................................................. 271

O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORANEO À LUZ DO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O SETOR SUCROALCOOLEIRO Thábata Gomes Queiroz de Almeida e Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo ................................................................................... 278

SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO: violação às garantias constitucionais do contribuinte Thainá Fonseca Magalhães e Bráulio Lisboa Lopes ..........................................................................................................................................285

A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS REFERENTES À OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA Victor Gustavo Marques Torres e Núbia Elizabeth de Paula .............................................................................................................................. 291

O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: Uma análise sob a perspectiva do devido processo legal Victor Paulo Santos Rodrigues e Bernardo Ribeiro Câmara .............................................................................................................................. 301

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA



AUXÍLIO RECLUSÃO: Uma releitura à luz do princípio da isonomia e princípios previdenciários Ana Carla Soares de Resende1 Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO: A previdência e assistência social é um conjunto de ações que asseguram o direito à saúde, previdência e assistência social. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos. Assim visa garantir a todos os que vivem no território nacional o mínimo indispensável à sobrevivência com dignidade. E com o surgimento de certas contingências, possuem coberturas previdenciárias destinadas os segurados e aos dependentes. Uma delas é o auxílio-reclusão que garante não só ao segurado, mas também à sua família dependente economicamente, a subsistência em caso de eventos que não permitam a manutenção por conta própria por estar recluso ao sistema penitenciário. Contudo, só se tem direito a este benefício o segurado de baixa renda, esquecendo a legislação de levar em conta a situação econômica dos dependentes. ABSTRACT: The social security and welfare is a set of actions that ensure the right to health , social security and welfare . Social security comprises an integrated set of actions initiated by the public authorities and society, to ensure the rights . Thus aims to ensure everyone living in the country the bare minimum for survival with dignity. And with the emergence of certain contingencies , have social security coverage designed policyholders and dependents. One is the aid - seclusion that ensures not only the insured , but also to his economically dependent family subsistence in case of events that do not allow it to maintain on their own for being reclusive to the prison system. However, only be entitled to this benefit the insured low-income , forgetting the rules to take into account the economic status of dependents Palavras-Chave: Auxílio-Reclusão; Isonomia; Previdência Social; Seguridade Social.. Keywords: Allowance Solitude; Social Security; Equality. SUMÁRIO: 1. Introdução 2 Seguridade Social; 2.1 Princípios da seguridade social; 3 Introdução ao Direito Previdenciário 4 O regime Geral de Previdência Social (RGPS) ;4.1 Cobertura do plano de benefícios e os Beneficiários ; 4.1.1 O Segurado; 4.1.2 Os Dependentes ;5 Auxílio Reclusão; 5.1 Recentes alterações no Auxílio Reclusão ;5.2 Aspectos gerais do Auxílio Reclusão; 5.3 Dos princípios constitucionais basilares da previdência social frente à renda do segurado para o auxílio-reclusão; 6.1 O Princípio da isonomia frente ao entendimento previdenciário para Auxílio-Reclusão; 6 A afronta Constitucional frente à concessão do Auxílio- Reclusão para os dependentes de baixa renda ; 7 Conclusão; Referencias.

1 INTRODUÇÃO A Seguridade Social aparece através de um certo esforço dos Poderes Públicos afim de assegurar um bem coletivo e social onde efetiva os direitos sociais e a segurança jurídica como forma inerente a resguarda dos direitos individuais, garantindo os direitos sociais dos cidadãos, protegendo-os contra os riscos do trabalho e as contingências da própria existência humana velhice, maternidade, desemprego involuntário ou reclusão. A seguridade social é constituída para o indivíduo que não tem como prover o sustento da sua família por algum fator surpresa. No entanto, toda a sociedade contribui e usufrui para a seguridade social, independentemente de utilizar do benefício ou não, sendo um direito do cidadão segurado. A organização da Seguridade Social é feito por princípios que deverão ser baseados para o trato com os segurados, como exemplo, a universalidade da cobertura e do atendimento que tem como base em garantir a todos os que vivem no território nacional o mínimo indispensável à sobrevivência com dignidade. Momento em que surge a necessidade de recorrer ao princípio da seletividade que visa reduzir as desigualdades sociais e regionais, isso não significa que irá eliminar, mas sim executar meios para que garantia de condição mínima de sobrevivência com dignidade. Doutra banda, reduzindo as desigualdades distribuindo para os que mais necessitam com a finalidade de reduzir desigualdades, pode-se entender pela distributividade. Neste espeque, visando coibir as contingências, distribuindo para os que mais necessitam, visando reduzir as desigualdades so-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ciais, a Constituição assegurou o auxílio- reclusão aos dependentes dos segurados que foram presos para cumprir penas. Contudo, em total desrespeito ao principio da isonomia, tratando de forma diferente todos os iguais perante a lei, a Constituição determina que a concessão do benefício seja dada para aquele segurado de baixa renda e não do dependente.a Seguridade Social vem para proteger os direitos sociais dos cidadãos, contra os riscos do trabalho e as contingências da própria existência humana, mas esqueceu de apreciar o caso especifico da real necessidade e fim do auxílio-reclusão. 2 SEGURIDADE SOCIAL A Ordem social de um Estado é o grande instrumento com finco de propiciar o bem estar e justiça social, e nesta perspectiva nasce a seguridade social. Como o estudo de toda ciência positivada, podese dizer que a seguridade social para melhor compreensão desse instituto, deve-se tomar como ponto de partida o texto lei, que será justamente a Constituição da República. Verifica-se que o título VIII da Constituição Federal promulgada em Outubro de 1988, é batizado de “Da Ordem Social” sendo composto de diferentes capítulos. O mais importante para esta pesquisa é o capítulo II, que disciplina a seguridade social, e como parte integrante dela a saúde, a previdência social e a assistência social. Os demais capítulos tratam de disposições gerais da Ordem Social, sobre a educação, da ciência e tecnologia, da cultura e do desporto, da comunicação social, da criança, do adolescente, do meio ambiente,

10

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


da família do idoso e dos índios. Verifica-se que a própria Constituição fornece o conceito estampado no art. 194. Senão veja-se: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (BRASIL,1988) (g.n) Observa-se o caput do artigo mencionando que a Seguridade Social aparece e transparece com um meio ou esforço dos Poderes Públicos para assegurar um bem coletivo e social. Em outras palavras, para definir o instituto da seguridade social, o professor Ricardo Lobo Torres esboça distinção entre a sua repercussão na efetivação dos direitos sociais e a segurança jurídica como forma inerente a resguarda dos direitos individuais. A seguridade social compreende as ações e prestações do Estado tendentes a garantir os direitos sociais dos cidadãos, protegendo-os contra os riscos do trabalho e as contingências da própria existência humana (velhice, maternidade, desemprego involuntário, etc.). Distingue-se perfeitamente da segurança jurídica, que abrange a garantia dos direitos fundamentais e pode compreender as prestações positivas para a sua defesa, inclusive contra os riscos da vida. Seguese daí que a proteção estatal à vida, à propriedade, à locomoção, ao mínimo existencial e às condições necessárias ao exercício da liberdade, bem como a assistência aos miseráveis (e não aos pobres) enquadram-se na idéia de segurança dos diretos individuais; ao passo que a proteção aos direitos sociais e aos riscos provenientes da idade, do trabalho ou das demais contingências existenciais entende como a seguridade social. (TORRES. 2007)

É praticamente uma obrigação que o Estado tem com a sociedade, em outras palavras é o dever constitucional imposto aos Poderes Públicos para com a sociedade. Portanto, a seguridade social é o meio especifico de garantir a proteção social abrangida na Assistência Social, direito à saúde, e na Previdência Social. A proteção social e seu respectivo custeio podem ser organizados pelo Poder Público, nos termos do parágrafo único, do art. 194, CF/88, em vista das transformações econômicas e sociais e geradoras de novas reservas causadoras de necessidades. Em tese, a seguridade social é constituída para o indivíduo que não tem como prover o sustento da sua família, em razão de fatores não previsíveis que pegam de surpresa e compromete o sustento, como por exemplo, um caso de doença, invalidez e desemprego. Para esses imprevistos, basta ser segurado da previdência social e terá de forma efetiva um auxílio na forma de percebimento do benefício frente à necessidade que o surpreendeu. Além do mais, terá ainda o segurado à assistência a saúde. Embora que, o Estado hoje fornece ao não segurado, desde que preencha os requisitos legais, benefícios de assistência social e de assistência à saúde. Conclui-se então que toda a sociedade contribui e usufrui para a seguridade social, independentemente de utilizar do benefício ou não, como por exemplo, a saúde na medida em que é serviço coletivo, não havendo uma discriminação de quem dela poderia se beneficiar. Na assistência que é custeada por todos a fim de ser usufruído para transformar-se em prestações vinculadas aos necessitados, bem como ocorre na previdência, uma vez que os segurados, empregados e a União concorrem os benefícios. Nesse sentido, é possivelmente observado na doutrina opiniões

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

divergente sobre o tema. Abaixo, o repúdio da contribuição solidaria bem como o entendimento da individualização do contribuinte, nas palavras de Wladimir Novaes Martinez, in verbis: No momento da contribuição é a sociedade quem contribui. No instante da percepção da prestação, é o ser humano a usufruir. Embora no ato da contribuição seja possível individualizar o contribuinte, não é possível vincular cada uma das contribuições a cada um dos percipientes, pois há um fundo anônimo de recursos e um número determinável de beneficiários.( MARTINEZ. 2001) Portanto, concluí-se que a seguridade social está assentada na intenção de bem estar coletivo, uma vez que promove à sobrevivência, mesmo que no mínimo necessário, ao indivíduo, promovendo neste espeque a desigualdade social causada pelo falta de financiamento e custeio no orçamento familiar. Como dito, o foco da seguridade social é a prestação de três direcionais ou institutos divididos em assistência social, previdência social e direito à saúde. O auxílio da previdência social é o direito subjetivo dos segurados, ou seja, daqueles que contribuem para o custeio do sistema. Importante salientar que, conforme se verifica abaixo, embora a Previdência seja uma contraprestação, a Saúde é o contrário, sendo este instituto da Seguridade Social que é um direito do indivíduo, nos termos da Constituição Federal, 1988: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988) Também, o que difere ao último instituto da Seguridade, qual seja, a Assistência Social é o preenchimento de requisitos, independentemente do custeio. 2.1 Princípios da seguridade social Visto que o parágrafo único do art. 194, CF/88, conferiu ao Poder Público, competência para organizar a seguridade social, nota-se que são trazidos princípios para uma generalidade visando proteger exclusivamente os setores da seguridade social. Tem- se como exemplo, a universalidade da cobertura e do atendimento que tem como base em garantir a todos os que vivem no território nacional o mínimo indispensável à sobrevivência com dignidade. Por oportuno, urge dizer que esta garantia é um dever do Estado que impôs este direito e dever na Constituição. A cobertura nada mais é que o que motiva abranger os riscos e indenizações, mediante o percebimento do prêmio pelos segurados. A universalidade do atendimento nada mais é do que o direito constituído, ou seja, todos que vivem no território nacional têm o direito subjetivo a proteção fornecida pelo Estado que segurará e preservará o mínimo de dignidade da pessoa humana. A Constituição de 1988 eliminou toda e qualquer diferença no tanto da seguridade social no que tange aos trabalhadores rurais e urbanos. Contudo, há de pontuar que a equivalência determina que o valor das prestações deva ser iguais baseada na proporcionalidade. Por fim, a seletividade é princípio voltado para o legislador, ele irá selecionar as cotas geradoras das necessidades que a seguridade social irá cobrir. O objetivo é de reduzir as desigualdades sociais e regionais, isso não significa que irá eliminar, mas sim executar meios para que garantia de condição mínima de sobrevivência com dignidade. Doutra banda, a distributividade nada mais é do que a justiça social, reduzindo as desigualdades distribuindo para os que

11

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


mais necessitam com a finalidade de reduzir desigualdades. Seletividade e distributividade impedem que a interpretação da legislação conceda pagamentos de forma diversa da prevista expressamente pela legislação. Importante, dizer que, uma vez que foi concedida a prestação devido para suprir os mínimos necessários à sobrevivência, esta renda mensal não pode ser reduzida, como prevê o art. 201, § 4º, da CF A seguridade social será financiada por toda a sociedade,de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais, assim prevê o art. 195 da CF/88. O custeio é feito, por contribuições pagas pelo empregador, pela empresa ou entidade a ela equiparada (art.195, I), pelo trabalhador (art. 195, II), pelas contribuições incidentes sobre as receitas dos concursos de prognósticos (art. 195, III) e pelas contribuições pagas pelo importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar (art. 195, IV). Também pode-se dizer que o custeio é feito por meio de recursos orçamentários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. 3 INTRODUÇÃO AO DIREITO PREVIDENCIÁRIO O legislador do Direito Previdenciário trabalha baseado com objetivos de reduzir as desigualdades sociais, promovendo a dignidade da pessoa humana atento ao Estado Democrático de Direito, arts. 1º e 3º da CF/88. São fontes do Direito Previdenciário, a Lei Complementar, Emenda Constitucional, Lei Ordinária, Lei Delegada, Decreto Legislativo, Medida Provisória, Atos Administrativos Normativos, e jurisprudência dos Tribunais Superiores, contudo tem como principal fonte, a Constituição Federal promulgada em 1988. Pode-se dizer que a Ordem Social tem com base primordial o trabalho, pois só com o trabalho é possível o homem propiciar a dignidade da sua família, promovendo o efetivo sustento o que gera bem estar e reduz as desigualdades no Estado Democrático de Direito. Assim, o constituinte de 1988, escolheu o trabalho como o bem mais prestigiado, o que resultou o alicerce da Ordem Social voltado ao direito do trabalhador. Se verificar o art. 7º, CF/88, que o trabalho é indicado novamente com relação ao emprego, o que notavelmente indica que este é o pilar da Ordem Social. Importante a leitura do extenso art. 7º, CF/88, uma vez que ele traz todo o amparo de Ordem Social que o Estado visa proteção. Mas nem todos os direitos sociais estão voltados ao trabalhador especificados nos arts. 6º e 7º, também verifica-se por todo o texto constitucional que promova o bem estar e justiça social. Por exemplo, o art. XXV da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948. Assim o constituinte aduz que o Direito Previdenciário garante a redução das desigualdades sociais e regionais, sendo que a distribuição deve conceder benefícios à proporção de quem tem mais necessidade e menos benefícios aos menos necessitados. Portanto, o Direito Previdenciário é subjetivo dos segurados, daqueles que efetivaram o pagamento de contribuições previdenciárias. A previdência social em seu art. 201, CF/88, inaugura o título de Ordem Social nos seguintes termos: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei; (BRASIL. 1988)

Entidades Abertas de Previdência têm por objetivo instituir e operar planos de benefícios de caráter previdenciário concedido em forma de renda continuada ou pagamento único. São vinculadas de bancos e seguradoras, sendo subdivisão dessas empresas, instituídas de sociedades anônimas, podendo ter ou não fins lucrativos. Por sua vez, o sistema público previdenciário, chamado de Previdência Social afasta o caráter contratual da Instituição, sendo compulsório o financiamento realizado através de contribuições sociais e recursos orçamentários. Verifica-se dois modelos públicos, quais sejam, regime próprio dos servidores públicos (RPPS) e o regime geral de previdência social (RGPS). O primeiro possui caráter contributivo e solidário aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, o caráter contributivo e solidário observando os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, art. 40, CF/88. Já o regime geral de previdência social, aplica-se a generalidade da iniciativa privada, ou pessoas voluntárias que desejam contribuir, sendo gerido pelo INSS, conforme prevê o art. 201, da CF/88 e as Leis de nºs 8.212 e 8.213 ambas de 1991, que dispõem, respectivamente sobre o plano de custeio e planos de benefícios da previdência social. Pode-se dizer também que Decreto nº 3.048/99, que institui o regulamento da previdência social no Brasil. Como dito a filiação obrigatória de todos os trabalhadores, maiores de dezesseis anos, em exercício de atividade profissional remunerada e não enquadrada no regime público, RPPS, bem como filiados facultativos, salvo os menores aprendizes maiores de 16 anos, pois o ingresso destes podem ocorrer a partir dos 14 anos. Diante todo exposto, o que nota-se é o caráter e modo de contribuição e arrecadação do financiamento da seguridade social e a garantia do seguro para todos, inclusive para que em situações alheias a sua vontade não contribuiu suficientemente para a cobertura. Assim, se da o caráter principal da seguridade social. Este não se destina a suprir toda necessidade humana, mas irá garantir a possibilidade de suprir o necessário para uma existência digna, fornecendo benefícios previdenciários através de prestações pecuniárias aos segurados e a qualquer indivíduo que contribua para a previdência na forma dos planos previdenciários definidos em lei. Pode-se dizer que o Regime Geral de Previdência Social, possui caráter contributivo que significa o pagamento das contribuições para o custeio do sistema. Portanto, teoricamente só quem contribuiu ganho o perfil de segurado da Previdência Social, e se cumprida às carências do plano, terá por conseqüência todos os benefícios. Este critério é o mais importante da RGPS, uma vez que essas contribuições juntamente com a organização atuarial preservem o equilíbrio financeiro importante para financiamento das prestações. Cada qual possui seu papel importante na administração do fundo destinado a RGPS, para que o sistema não passe por deficiência na gestão. As causa possíveis geradoras das necessidades que farão requisição da cobertura previdenciária, são previstas no art. 201, CF/88, como acima transcrito, sendo elas: doença, invalidez, proteção à maternidade, morte e idade avançada; salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;especialmente à gestante; proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; e pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes.

4 O REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS) Pode-se vislumbrar também que o sistema previdenciário do Brasil é a primeira divisão em privado e público, no que concerne a previdência. Importante salientar que qualquer pessoa pode ter acesso as

4.1 Cobertura do plano de benefícios e os Beneficiários Verifica-se que as possíveis causas cobertas pelo plano de benefício, ou seja, as contingências são enumeradas no art. 1º da Lei n. 8.213/91. Essas contingências possuem coberturas previdenciárias destinadas os segurados e aos dependentes. Destaca-se que cada

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

12

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


um possui uma relação jurídica distinta da outra. O segurado se inicial quando deu ingressou compulsório no sistema de Previdência Social. Já a relação jurídica entre os dependentes se concretiza na falta do segurado, uma vez que na presença ou possibilidade deste não é possível estabelecer uma relação concomitante entre dependente e segurado. 4.1.1 O Segurado

Nada mais é que a pessoa física que contribui para o regime previdenciário. Este termo está empregado ao fato da Previdência Social ser um ramo da seguridade social que possui semelhança com o seguro. Portanto, a pessoa que contribuiu para o Regime Previdenciário terá direito a benefícios ou serviços de natureza previdenciária, assumindo neste instante o sujeito ativo da relação. Do contrário, os segurados são passivos quando estão custeando o financiamento social. A Lei n. 8.213/91, em seu art. 11º, especificou quem são os segurados obrigatórios, por exemplo, pessoas físicas (este requisito é para todos os segurados) como empregado, inciso I, do referido artigo. Entretanto, no art. 13º, também surge a natureza facultativa do segurado, aquela que na qualidade de pessoa ingressa no sistema por vontade própria. O meio de ingresso no sistema se da pela Filiação ou Inscrição. A Filiação é o vínculo entre o segurado e a Previdência Social, criando uma relação jurídica que geram direitos e obrigações para ambas as partes. Pode-se dizer que a Filiação é o caso dos segurados com contrato de trabalho vinculado e registrado na CTPS, a simples anotação na carteira já os torna filiados ao RGPS. Doutra banda, há necessidade de um ato formal, perante o INSS, para que se aperfeiçoe a filiação ao RGPS denominado de inscrição, sendo requisito para os segurados contribuintes individuais e os facultativos. 4.1.2 Os Dependentes

Como dito, a relação jurídica entre dependentes e INSS só acontece quando deixa de existir relação jurídica entre o INSS e o segurado, podendo ocorrer por dois motivos: primeiramente por sua morte de outro lado, pelo recolhimento à prisão. Não havendo possibilidade cobertura previdenciária ao dependente e ao segurado, ao mesmo tempo. Quando ocorrer o fato gerador para o requerimento do benefício a que tiver direito, o dependente deverá requerer sua inscrição, assim prevê o art. 1º, da Lei n. 8.213/91. Observa-se que os dependentes do segurado são os elencados nos incisos I a III do art. 16 da Lei n. 8.213/91: Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; (BRASIL.1991) Há uma hierarquia entre os dependentes, uma vez que a existência de dependentes de qualquer das classes, o art. 16, § 1º,exclui do direito às prestações os das classes seguintes. Portanto, havendo dependentes da 1ª classe, automaticamente exclui os dependentes das 2ª e 3ª classes. Ou seja, a existência de companheira do segurado (1ª classe), exclui o direito de seus irmãos (3ª classe). O benefício previdenciário em tese veio para suprir a necessi-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dade que a ausência do segurado irá resultar para sua família. Mas o termo família está abrangido para aquele dependente legal mais próximo, aquele que realmente será afetado na sua falta, ou seja, os dependentes da 1ª classe, têm em seu favor a presunção absoluta de dependência econômica em relação ao segurado faltante, seja ele recolhido à prisão ou falecido. São dependentes da 1ª classe: o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado de qualquer condição, menor de vinte e um anos ou inválido, estes gozam de presunção absoluta de dependência econômica, não precisando comprovar a dependência. Cônjuge é o mesmo da lei civil, ou seja, a pessoa casada. A legislação previdenciária em seu art. 16 não cita o cônjuge separado ou judicialmente e o divorciado. Entretanto, ao tratar do benefício previdenciário de pensão por morte, o cônjuge divorciado ou separado judicialmente que recebia pensão alimentícia, poderá concorrer em igualdade de condições, com os dependentes de 1ª classe, art. 76, § 2º, da Lei n.8.213/91. Os companheiros são definidos pelo § 3º do art. 16, sendo que é a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, na forma do § 3º do art. 226 da CF/88. A união estável é aquela configurada na convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, estabelecida com intenção de constituir família, observado o § 1º do art. 1.723 do Código Civil. E o filho menor de filho 21 anos, não emancipado ou inválido. 5 AUXÍLIO RECLUSÃO O Estado Democrático assegura o exercício dos direitos sociais e o bem estar coletivo garantindo a qualidade e dignidade de vida, a fim de reduzir a miséria. Desta forma, instituíram através do art. 201, CF/88, as formas de organização da previdência social e podese dizer que uma das formas mais polêmicas é o auxílio reclusão, uma vez que, o inciso IV, garantiu auxílio-reclusão aos dependentes dos segurados que possuem baixa renda. 5.1 Recentes alterações no Auxílio Reclusão Com as mudanças no trato das regras da previdência social, o novo ajuste feito pela medida provisória número 664/2014. Uma mudança significativa é a exigência de contribuição mensal de pelo menos 24 meses. Antes da medida provisória, bastava um mês e o benefício era concedido. Outra alteração importante é o valor mensal do benefício, que se baseia na média de 80% dos últimos maiores salários de contribuição, pagos desde 1994. Quem solicitar o auxilio reclusão a partir de agora terá direito a apenas 50% desse valor, mais 10% por dependente e não 100% como antes. O período de duração do benefício também sofreu alteração, sendo que nesta nova modalidade a duração será baseada na idade do cônjuge ou companheiro e em sua expectativa de vida, nas razões da tabela de mortalidade IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Para que os dependentes possam dar continuidade ao benefício, é necessária que comprovem a condição do preso no INSS, a cada três meses. Em caso de morte do segurado na cadeia, o auxílio é convertido para pensão. Observa-se dos artigos em destaque que o valor da renda bruta do segurado deverá ser considerado de baixa renda. Para que os dependentes tenham direito, é necessário que tenha como último salário recebido previsto pela legislação R$ 1.089,72 (hum mil, oitenta e nove reais e setenta e dois centavos), ou seja, se o segurado esteja recebendo acima deste valor, ele não terá direito ao benefício de reclusão. Os valores são tabelados pela Previdência Social e listados os valores limites de recebimento para dar entrada no benefício. Estes valores são atualizados por Portarias Ministeriais. Em tese, para que os dependentes tenham direito a dar entrada no

13

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


auxílio- reclusão, o último salário de contribuição do segurado que foi preso deverá receber mensalmente o valor igual ou inferior do estipulado na tabela da Previdência Social, conforme a data de afastamento do trabalho ou do mês que se refere à última contribuição. Vale frisar a necessidade de compreensão do que o que é a “qualidade de segurado”, pois para os dependentes fazer o requerimento do benefício, o detento precisa se encontrar na qualidade de segurado, ou seja, estar filiado ao INSS e possuir uma inscrição e estar recolhendo mensalmente a título de previdência social. Contudo, para manutenção dessa qualidade de curado, todos devem estar recolhendo os valores a título de previdência, como dito, ou algumas ressalvas caso do não recolhimento, conhecido como “período de graça”. 5.2 Aspectos Gerais do Auxílio Reclusão A Lei 8.213, de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social (PBPS) através do art. 80, deu tratamento às condições do auxilio reclusão. Da mesma forma que o Decreto nº 3.048, de 1999, aprovou o regulamento da Previdência Social, especificadamente nos arts. 116 a 119: Art. 116. O auxílio-reclusão será devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado recolhido à prisão que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço, desde que o seu último salário-de-contribuição seja inferior ou igual a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais).(...) Art. 117. O auxílio-reclusão será mantido enquanto o segurado permanecer detento ou recluso. .(...) Art. 118. Falecendo o segurado detido ou recluso, o auxílio-reclusão que estiver sendo pago será automaticamente convertido em pensão por morte. Parágrafo único. Não havendo concessão de auxílio-reclusão, em razão de salário-de-contribuição superior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), será devida pensão por morte aos dependentes se o óbito do segurado tiver ocorrido dentro do prazo previsto no inciso IV do art. 13. .(...) Art 119. É vedada a concessão do auxílio-reclusão após a soltura do segurado. (BRASIL, 1999) O art. 80, da PBPS, dispõe que o auxílio reclusão será concedido usando como parâmetro as condições da pensão por morte, para os dependentes do segurado que estiver cumprindo pena e que não estejam recebendo auxílio doença ou aposentadoria. O recolhimento à prisão deve ser atestado pela autoridade competente, conforme estabelece o art. 116, art. 116, § 2º, do RPS. Desta forma, para que o benefício seja mantido, os dependentes deverão cuidar da declaração de permanência na condição de presidiário, art. dependente do segurado recolhido à prisão, deverá não receber da empresa, ou nem receba auxílio-doença ou aposentadoria e desde que o último salário tenha sido igual ou inferior a R$ 1.089,72 (hum mil, oitenta e nove reais e setenta e dois centavos). A proteção é dada para os dependentes do segurado, contudo o art. 201, IV, CF/88, determina que a concessão do benefício será dada para aquele segurado de baixa renda e não do dependente. Nestes termos, também é determinado pelo art. 13, da Emenda Constitucional nº 20, que define a concessão será dada,. àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais). Por fim, cumpre dizer que o termo final para concessão do benefício é enquanto o segurado permanecer detento ou recluso, art. 117 do RPS. Podendo extinguir o benefício por outras razões, quais sejam, terá como termo final quando o segurado tiver cumprido a pena ou caso haja progressão para o regime aberto. Outro motivo é o de morte

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do segurado detido ou recluso, onde o auxílio-reclusão será convertido automaticamente em pensão por morte. No caso de extinção do benefício para os dependentes, pode-se dizer que, cada cota será extinta individualmente, quando houver morte do beneficiário; quando o dependente, no caso o filho, emancipar ou ao completar 21 anos, salvo se for inválido; quando houver cessação da invalidez; ou pela concessão de aposentadoria durante o período em que o segurado estiver preso. 5.3 Dos princípios constitucionais basilares da previdência social frente à renda do segurado para o auxílio-reclusão Como abordado, o auxílio-reclusão é um benefício dado aos dependentes do segurado, desde que a última remuneração percebida não seja superior ao deferido na tábua da Previdência Social, atualizada por Portarias Ministeriais. Assim, o que vale para concessão deste benefício não é o recolhimento a prisão do segurado do INSS, e sim a baixa renda comprovada por este. Esta condição está estampada pela EC nº 20, de 1998. Este Emenda a Constituição cuidou de especificar que os benefícios serão concedidos àqueles de baixa renda, ou seja, possuam renda mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), corrigidos pelos índices da previdência social. pronuncia a doutrina da seguinte forma: O princípio da seletividade consagra um critério distintivo para a escolha das prestações previdenciárias disponibilizadas (quais as contingências sociais que serão cobertas pelo sistema de proteção social em face de suas possibilidades financeiras), e também para a definição da clientela a ser atendida. Como exemplo de aplicação desse princípio, citem-se o salário família e o auxílio- reclusão, que, por força da Emenda Constitucional nº 20/98, são pagos apenas aos segurados considerados como de baixa renda. A seu turno, o princípio da distributividade colima eleger as necessidades mais prementes que deverão ser satisfeitas prioritariamente. (…) Quando o princípio da distributividade é vislumbrado sob o aspecto da seguridade social, então inclusive permitirá que determinadas prestações não sejam alcançadas a quem não tiver necessidade. (ROCHA, BALTAZAR. 2003) Portanto, em tese a Constituição fez a diferenciação entre os segurados, aplicando o princípio da igualdade, tratando desigualmente os desiguais. Ainda há de se dizer que o legislador ao estabelecer que o auxílio-reclusão é devido apenas aos dependentes do segurado, que por sua vez deverá ter recebido o último salário de acordo com a tabela do RPS, faz compreender que fora aplicado os princípios da seletividade e distributividade, uma vez que cuidou em amparar os dependentes mais necessitados dentre os segurados da Previdência Social, uma vez que, se estes não recebessem o auxílio, estariam reduzidos a miséria, por fato contra a que eles praticaram, pois quem manteve a conduta delituosa não foi a família e sim o próprio segurado. Contudo, entende-se que a intenção é devida, o auxílio-reclusão se aperfeiçoou nos moldes dos princípios da previdência social, no entanto, o que ficou de lado, fora a afronta a própria Constituição, dando tratamento diferente a um direito que deveria ser de todos, bem como não levando em consideração que o real necessitado é o dependente econômico, logo, a baixa renda vislumbrada deveria ser deste e não do segurado. Para ilustrar o instituto debatido, têm-se a jurisprudência:

14

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. AUXÍLIO -RECLUSÃO. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA NÃO COMPROVADA.

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


(...) 3. O auxílio-reclusão é devido aos dependentes de baixa renda, dos segurados recolhidos à prisão, que não recebam remuneração da empresa, nem estejam em gozo de auxíliodoença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço, desde que seu último salário-de-contribuição seja inferior ou igual a R$ 623,44 (seiscentos e vinte e três reais e quarenta e quatro centavos), conforme disposto no art. 201, inciso V, da Constituição Federal, artigo 80 da Lei n. 8.213/91, artigo 116 do Decreto n. 3048/99, bem como pelo artigo 5º da Portaria n. 822/05 do Ministério da Previdência Social. (...) (TRF - 4ª REGIÃO, APELAÇÃO CIVEL – 513475, Processo: 200204010286351, QUINTA TURMA, DJU DATA:16/04/2003, PÁGINA: 235, JUIZ PAULO AFONSO BRUM VAZ) Na jurisprudência acima, verifica-se as especificações do auxílio-reclusão, onde requer a comprovação do vínculo de dependência, sendo que é presumida em relação ao cônjuge e companheiro (a) e filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21, o agravo interposto foi negado, mesmo se tratando de verba de natureza alimentícia, mas a relação econômica tem que ser comprovada. Vale dizer que, o art. 201, IV, impõe a definição do conteúdo jurídico da expressão “baixa renda”, bem como e art. 13 da EC/20 exige, até a publicação de lei, a comprovação do requisito objetivo de renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), atualizado por Portarias Ministeriais. Portanto, concedendo o benefício contrariando a condição do segurado ou levando em conta a miserabilidade dos dependentes, seria inconstitucional. Urge salientar que, já que a Seguridade Social tem como principal intenção o bem estar coletivo, uma vez que promove a sobrevivência do ser humano, erradicando a miséria e promovendo a dignidade da pessoa humana, tratar com igualdade casos desiguais, não seria uma forma de inconstitucionalidade, veja bem, uma família reduzida à miséria, cujo segurado que era o responsável pela sobrevivência dessa família é preso, condenado a regime fechado, a família deste não ficará a mercê da sorte e em condição de miséria? 6 A AFRONTA CONSTITUCIONAL FRENTE À CONCESSÃO DO AUXÍLIO- RECLUSÃO PARA OS DEPENDENTES DE BAIXA RENDA Importante também salientar, que existem várias correntes de contra ao benefício, que arrastando várias considerações sobre a exclusão do auxílio-reclusão no rol dos benefícios da previdência visto a incoerência. Atualmente, encontra-se um projeto na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 304/2013, de autoria da deputada Antonia Lúcia, do partido PSC/AC, que propôs alterar o inciso IV do art. 201 e acrescenta o inciso VI ao art. 203 da Constituição Federal, para extinguir o auxílio- reclusão e criar benefício para a vítima de crime. A justificação da Deputada, é que não há previsão de benefício para amparar a família da vítima do criminoso, quando o crime promove seqüelas a vítima, dificultando atividade que garanta seu sustento e que no caso de morte da vítima, fica esta sem renda.3: De sorte, o projeto está aguardando parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Observa-se na justificação, hora nenhuma a Deputada pensa na família do segurado que foi recluso, pelo contrário, ela crê que a família do preso, “acaba se beneficiando da prática de atos criminosos que envolvam roubo, pois a renda é revertida também em favor da família”. O que a Deputado não levou em consideração é que o benefício é exclusivamente para os dependentes, e que o segurado não se beneficia dele. Ao contrário da Deputada, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari lecionam:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Sendo a Previdência um sistema que garante não só ao segurado, mas também à sua família, a subsistência em caso de eventos que não permitam a manutenção por conta própria, é justo que, da mesma forma que ocorre com a pensão por falecimento, os dependentes tenham direito ao custeio de sua sobrevivência pelo sistema de seguro social, diante do ideal de solidariedade. (CASTRO. 2014) Já debatido no presente trabalho o auxílio reclusão é um benefício concedido aos dependentes do segurado que foi recolhido à prisão, não podendo este estar recebendo remuneração, aposentadoria ou auxílio doença. O principal pilar que fundamenta este benefício é uma prestação social que o Estado tem para com a sociedade, que tem a pessoa que sustenta a família, que deixa de promover a subsistência do lar por se encontrar preso. E nesta linha sociológica tem a seguridade social, que é organizada para atender as mais variadas necessidades da sociedade, dentre as quais é a responsável pela manutenção digna dos dependentes do segurado de baixa renda. A intenção do auxílio reclusão é conceder o benefício para os dependentes do segurado que foram colocados em situação de vulnerabilidade social na falta daquele que é o responsável pela manutenção econômica, mas muito se discutido se é uma benefício justo para uma pessoa que descumpriu dos os deveres e condutas sociais. No entanto, o que esquece que o auxílio não é para o segurado e sim para o dependente do segurado. Merecendo esclarecimentos, como ensina o Mozart Victor Russomano: O criminoso, recolhido à prisão, por mais deprimente e dolorosa que seja sua posição, fica sob a responsabilidade do Estado. Mas, seus familiares perdem o apoio econômico que o segurado lhes dava e, muitas vezes, como se fossem os verdadeiros culpados, sofrem a condenação injusta de gravíssimas dificuldades. Inspirado por essas idéias, desde o início da década de 1930, isto é, no dealbar da fase de criação, no Brasil, dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, nosso legislador teve o cuidado de enfrentar o problema e atribuir ao sistema de Previdência Social o ônus de amparar, naquela contingência, os dependentes do segurado detendo ou recluso. (RUSSOMANO. 1981) Em outras palavras o que o Autor quis dizer na citação acima é que, por pior conduta da pessoa que foi recolhida a prisão, os dependentes não merecem passar por necessidades básicas, não merecem também sofrer a condenação, em virtude da coerção do Estado. Portanto, verifica-se uma grande preocupação com os dependentes do segurado recolhido a prisão. Neste mesmo raciocínio, leciona Hermes Arrais Alencar: É vital a presença do Estado em prol da família do preso com o fito de pôr fim ao círculo vicioso a que se vêem as pessoas mais humildes sujeitas. Não é raro, ao reverso, é o comum, que filhos de pai preso tornem-se pessoas marginalizadas, porque não têm quem lhes dê o sustento. Dessa forma, seguem o triste caminho trilhado pelo seu genitor. Reservando o destino àqueles o mesmo fim deste. Defendemos a manutenção desse benefício que em nada beneficia aquele que causou mal à sociedade. O benefício é imediato aos dependentes do recluso, que também sofrem com a situação sem terem em nada contribuído para tal. E é a sociedade a beneficiária mediata, porque com essa atuação terá, sem sombra de dúvida, contribuído para que filhos infratores também não venham a se tornar novos infratores. (ALENCAR. 2014) O doutrinado Hermes Alencar, chama atenção pelo círculo vicio-

15

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


são de que trata o art. 201, IV, da CF, com a redação que lhe conferiu a EC 20/98, é a do segurado preso e não a de seus dependentes (...). Com base nesse entendimento, o Tribunal, por maioria, proveu dois recursos extraordinários interpostos pelo INSS para reformar acórdãos proferidos por Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina, que aplicara o Enunciado da Súmula 5 da Turma Regional de Uniformização dos Juizados Especiais, segundo o qual ‘para fins de concessão do auxílio-reclusão, o conceito de renda bruta mensal se refere à renda auferida pelos dependentes e não à do segurado recluso’, e declarara a inconstitucionalidade do art. 116 do Regulamento da Previdência Social [...]’, que teve como objetivo regulamentar o art. 80 da Lei 8.213/91. (RE 587.365/SC, Informativo STF n.º 540) grifos nossos).

so pré-existente na família do preso, que nestes casos são humildes e carentes, ocorrendo à marginalização dos seus dependentes por falta de sustento. Esta falta de amparo econômico por muitas vezes, por este motivo os dependentes também comentem crimes. Como debatido, o principal objetivo da Seguridade Social é resguardar as contingências causadoras de necessidades, patrocinando recursos financeiros às necessidades advindas de acontecimentos que assolam a dignidade da pessoa humana. Tendo com um dos principais princípios o da universalidade de cobertura, entende-se que a proteção social deve alcançar todas as pessoas necessitadas para que sejam resguardadas. Então num caso prático, se imaginar um pai de família, que cometeu um crime crendo que dali iria subsidiar alimentos para seus filhos, num ato totalmente desesperado por estar desempregado a 4 meses, onde ele era o único meio de renda, tendo 4 dependentes, três filhos menores de 16 anos e sua companheira, tendo seu último salário no valor de R$ 1.070,00. Pode-se dessa situação fazer várias considerações: 1- A Companheira é considerada como dependente econômica, independente de casamento civil;

Asseverou-se que o inciso IV do art. 201 da CF comete à Previdência Social a obrigação de conceder ‘auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda’, e que se extrai, de sua interpretação literal, que a Constituição limita a concessão do citado benefício às pessoas que estejam presas, possuam dependentes, sejam seguradas da Previdência Social e tenham baixa renda. Observou-se que, caso a Constituição pretendesse o contrário, constaria do referido dispositivo a expressão ‘auxílio-reclusão para os dependentes de baixa renda dos segurados’. Aduziu-se que o auxílio- reclusão surgiu a partir da EC 20/98 e que o requisito ‘baixa renda’, desde a redação original do art. 201 da CF, ligava-se aos segurados e não aos dependentes. Ressaltou-se, ademais, que, mesmo ultrapassando o âmbito da interpretação literal dessa norma para adentrar na seara da interpretação teleológica, constatar-se-ia que, se o constituinte derivado tivesse pretendido escolher a renda dos dependentes do segurado como base de cálculo do benefício em questão, não teria inserido no texto a expressão ‘baixa renda’ como adjetivo para qualificar os ‘segurados’, mas para caracterizar os dependentes. Ou seja, teria buscado circunscrever o universo dos beneficiários do auxílio-reclusão apenas aos dependentes dos presos segurados de baixa renda, não a estendendo a qualquer detento, independentemente da renda por este auferida, talvez como medida de contenção de gastos. (RE 486.413/SP, Informativo STF n.º 540) (g. n).

2- Filhos menores não emancipados são automaticamente considerados como dependente; 3 - Cometeu o crime e foi recolhido a prisão no momento que estava de graça na seguridade, pois não foi tempo para perder a condição de segurado; 4 - A renda per capita da família era de R$ 267,50; 5 - Os dependentes não farão jus ao auxílio-reclusão. Nos presente capítulo, muito se falou do cuidado para com os dependentes, da garantia que a Seguridade Social vem para proteger os direitos sociais dos cidadãos, contra os riscos do trabalho e as contingências da própria existência humana, mas esqueceu de apreciar o caso especifico da real necessidade e fim do auxílio-reclusão. A Emenda Constitucional nº 20/98, ao alterar a redação do inciso IV, do artigo 201 da Constituição Federal/88, limitou o benefício para os dependentes do segurado de baixa renda. A esse respeito, merecida seria a ofensa à reserva a interpretação no legítimo processo de hermenêutica distinguindo a limitação da Emenda Constitucional. No caso em questão, fez o legislador atribuir um ônus ao segurado, ou seja, a obrigação em ter percebido um último salário tenda renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), nos termos do artigo 13 da EC. Contudo, uma interpretação à luz de princípios de status constitucional que orientam as regras da Seguridade Social, o benefício se destinaria aos dependentes do segurado, para dar dignidade à vida deles, portanto, sob o espeque de princípios tais como o da seletividade e distributividade na prestação de benefícios e serviços, a renda a ser conferida seria o dos dependentes, pois eles são os verdadeiros beneficiados com o auxílio-reclusão. O Supremo Tribunal Federal já discutiu o tema ao julgar os recursos extraordinários 486.413 e 587.365. No julgamento do RE 486.413/ SP. Naquele momento, entendeu-se que o conceito de renda bruta mensal ou baixa renda, refere-se à renda percebida pelo segurado recluso e não àquela auferida por seus dependentes, o que entendimento contrário, ofenderia direta aos artigos 194, parágrafo único, incisos I e III, e 201, incisos I, II (redação anterior à EC n.º 20/1998), e IV (redação dada pela EC n.º 20/1998), da Constituição Federal, e ao artigo 13, da Emenda Constitucional n.º 20/1998. Nos seguintes termos: A renda a ser considerada para a concessão do auxílio-reclu-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Portanto, pacificado foi o entendimento que o conceito de renda bruta mensal se refere à renda auferida pelos segurados e não à dos dependentes. 6.1 O Princípio da isonomia frente ao entendimento previdenciário para Auxílio-Reclusão Pode-se dizer que o princípio basilar do Estado Democrático de Direito é o princípio da isonomia, ou melhor, conhecido como o princípio da igualdade, trazendo tratamento justo aos cidadãos. Nesses termos, o princípio da isonomia assume um papel importante no Direito Previdenciário orientando a distribuição de benefícios aos segurados de forma justa. Teoricamente preconizam em tratar os igualmente os iguais e adequar desigualmente os desiguais, contudo postula a Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sustentando o respeito à dignidade humana. No caso em tela, pode-se dizer que no momento que a Seguridade Social deu tratamento diferenciado ao segurado, determinando que somente aquele que tenha percebido o último salário no valor de R$ 1.070,00, terá direito ao auxílio-reclusão, viola o princípio da isonomia, uma vez que mesmo se tivesse percebido o valor supe-

16

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


como limite o salário de contribuição do detento . O texto é claro ao expressar que “(...) esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais)”. A norma determina, portanto, que o referido “teto” seja aplicado à renda daqueles que receberão o benefício, quanto a isto não há dúvida, pois o auxílio-reclusão não é concedido ao detento, mas aos seus dependentes elencados no art. 16 da Lei 8.213/91. 2. Naquilo que a regulamentação do art. 116 do Dec. 3048/99 ultrapassa o disposto na Carta Magna, está a afrontar o princípio da legalidade, ao exigir ou dispor de forma contrária o que nem a Constituição ou a Lei o fizeram. 3. A renda da autora é inexistente, pois que à data da reclusão, a mesma contava 06 anos de idade e sua mãe, responsável por ela, estava desempregada à época. Assim, o limite para a renda bruta mensal estabelecido pela Emenda Constitucional 20/98 não foi ultrapassado, não existindo óbice, quanto a este aspecto, para que a autora receba o benefício em litígio. 4. A qualidade de segurado do detento está comprovada pelos documentos juntados aos autos. 5. O cálculo da verba honorária advocatícia deve ter por base o valor da condenação, ou seja, deve incidir sobre o somatório das prestações vencidas até a data de prolação da sentença. 6. Apelação da Autarquia improvida.

rior, este seria segurado igualmente a outrem. Contraditória a questão, por se tratar de um seguro, e todos os contribuintes aderem compulsoriamente este contrato com o Regime Geral de Previdência Social – RGPS, viola um direito de igualdade. Mas não saindo do foco do presente trabalho, entende-se que o requisito básico para o recebimento do auxílio- reclusão é o recolhimento do segurado a prisão, encontrando-se impedido de prover o sustento de seus dependentes, já que o seu é suportado pelo Estado. Portanto, a real renda a ser auferida para concessão do benefício é o segurado ou do dependente? Denota-se que houve um erro do legislador da Emenda Constitucional nº 20/98 modificar o art. 201, IV, da Constituição da República, trazendo a baila o conceito de baixa renda do segurado, pois o benefício não seria para ele; o segurado está preso tendo alimentação, saúde, garantida pelo Estado, ao contrário dos seus dependentes, estes sim estão à mercê. Todavia, a aplicação do conceito de baixa renda do segurado, gera protesto por parte dos segurados e dependente, que declaram a injustiça da lei, uma vez que a circunstância de o dependente não possuir renda e sendo retirado dele, o provedor financeiro que foi recluso pelo Estado coercitivo, veta a possibilidade de sua família manter-se. Verifica-se disposição em contrário ao analisar o art. 13 da EC nº 20/98: Art. 13. Até que a lei discipline o acesso ao salário-família e auxílio-reclusão para os servidores, segurados e seus dependentes , esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), que, até a publicação da lei, serão corrigidos pelos índices aplicados aos benefícios do regime geral da previdência social.(BRASIL, 1998)

Remessa oficial parcialmente provida.(TRF-3 - AC: 3511 SP 2000.61.12.003511-0, Relator: JUIZ CONVOCADO MAURICIO KATO, Data de Julgamento: 18/02/2003, SEGUNDA TURMA) PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 13 DA EC 20/98. BAIXA RENDA DOS DEPENDENTES. ART. 116 DO DECRETO 3.048/99. LIMITE REGULAMENTADOR EXTRAPOLADO. 1. O auxílio-reclusão visa a proteger os dependentes do segurado, sendo que a renda a ser considerada na época da prisão é a dos seus dependentes e não a do segurado. Essa é a interpretação que se extrai do disposto no artigo 13 da EC 20/98 quando refere que esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00. 2. Assim, o art. 116 do Decreto 3.048/99 extrapolou a sua função regulamentadora ao estabelecer que o auxílio-reclusão só seria devido quando o salário de contribuição do segurado fosse inferior ou igual ao R$ 360,00, pois o benefício de auxílio - reclusão, como é sabido, é concedido aos dependentes do segurado e não a este. 3. Considerando-se que, na época da prisão do segurado, os seus dependentes não possuíam renda fixa e nem superior aos limites fixados na legislação vigente naquele tempo, é de ser-lhes concedido o benefício de auxílio-reclusão desde a data do requerimento administrativo (05-03-03), conforme pedido na inicial, até a data em que obtida a liberdade (21-11-03). (TRF-4 - AC: 1477 RS 2003.71.14.001477-3, Relator: JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, Data de Julgamento: 27/09/2006, SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 25/10/2006 PÁGINA: 1029)

Portanto, como limitar o conceito de baixa renda ao segurado? Essa interpretação que se extrai do disposto no artigo 13 da EC 20/98 refere-se que esses benefícios serão concedidos àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00, não distinguindo se a renda a ser auferida é do dependente ou do segurado. Contudo, o. 116 do Decreto 3.048/99 regulamentar que o auxílio será devido aos dependentes do segurado baixa renda, extrapola a sua função regulamentadora e da novo parâmetro ao benefício violando os princípios da Seguridade Social. Neste entendimento, a precedente na jurisprudência que se opões a norma reguladora: PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO - CONCESSÃO. RENDA DOS DEPENDENTES. FUNÇÃO REGULAMENTADORA DO DECRETO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. - O art. 13 da EC nº 20, condiciona a concessão do benefício de auxílio- reclusão ao valor de renda percebido pelos dependentes do segurado, e não por este. - O decreto possui a mera função de regulamentar a lei, não podendo trazer inovação à ordem jurídica. - Os honorários advocatícios devem incidir somente sobre as parcelas vencidas até a prolação da sentença. (TRF4R, AC 2000.71.11.002673-5/RS, Rel.Juiz Fernando Quadros da Silva, 5ªT, DJU de 08-09-04, p. 543). PREVIDENCIÁRIO - AUXÍLIO-RECLUSÃO - EMENDA CONSTITUCIONAL 20/98 - DECRETO 3.048 ART. 116 - PRINCÍPIO DA LEGALIDADE - LIMITE PARA O SEGURADO DE BAIXA RENDA - QUALIDADE DE SEGURADO - LEI 8.213/91 - APLICAÇÃO - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. o artigo 116 do Dec. 3048/99 extrapola o texto constitucional, pois que resta claro na leitura do Art. 13 da Emenda 20/98 que em nenhum momento o legislador derivado quis que fosse estabelecido

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

O auxílio-reclusão visa a proteger os dependentes do segurado, sendo que a renda a ser considerada na época da prisão deveria ser dos dependentes e não a do segurados, pelo simples motivo de, a proteção social seria dirigida àqueles, desamparados financeiramente. O entendimento era tão lógico que dado ao tema, a Turma Regional de Uniformização da 4ª Região editou o enunciado nº 54 da sua súmula, segundo o qual para fins de concessão do auxílio-reclusão, o conceito de renda bruta mensal se refere à renda auferida pelos dependentes e não a do segurado recluso

17

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O INSS interpôs pedido de uniformização de interpretação de lei federal com fundamento no artigo 14, parágrafo 1º, da Lei nº. 10.259/01, no qual foi adotado o entendimento de que o auxílio-reclusão não será concedido aos dependentes de segurado que, quando recolhido à prisão, o que por todo exposto fica a crítica e um certo anseio de revisão do entendimento padronizador afim de respeitar a dignidade dos dependentes de baixa renda. 7 CONCLUSÃO Como se pode observar neste breve trabalho, em que pese às dificuldades de compreensão da real intenção do auxílio-reclusão e da Seguridade Social, devemos buscar a concretização de seus objetivos. A Seguridade Social aparece para assegurar um bem coletivo e social compreendendo as ações e prestações do Estado que visam garantir os direitos sociais dos cidadãos, que protegerá protegendoos contra as contingências da vida, como velhice, maternidade, desemprego involuntário, etc. Assim o Estado fica obrigado de zelar o bem da sociedade. No entanto, para esses imprevistos, basta ser segurado da previdência social e terá de forma efetiva um auxílio na forma de percebimento do benefício frente à necessidade que o surpreendeu. No entanto, com exceção da saúde, para usufruir tem que custear a seguridade social. O auxílio da previdência social é o direito subjetivo dos segurados, ou seja, daqueles que contribuem para o custeio do sistema. Nada mais é que a pessoa física que contribuiu para o regime previdenciário está em condição de segurado, promovendo a desigualdade social. No entanto, há de chamar atenção para a Constituição Federal de 1988, que dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio constitucional da igualdade, perante a lei. O princípio da isonomia ou também chamado de princípio da igualdade é o pilar, no entanto a Seguridade Social da tratamento diferenciado a seus segurados, um dos exemplos é no auxílio reclusão. O auxílio-reclusão será devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado recolhido à prisão que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço, desde que o seu último salário de contribuição seja inferior ou igual a R$ 360,00, assim reza o caput do art. 116 Decreto nº 3.048, de 1999. A proteção é dada para os dependentes do segurado, determina que a concessão do benefício será dada para aquele segurado de baixa renda e não do dependente. O principal pilar que fundamenta este benefício é uma prestação social que o Estado tem para com a sociedade, que tem a pessoa que sustenta a família, que deixa de promover a subsistência do lar por se encontrar preso. Se a intenção da Seguridade Social era proteger o ser humano, dando dignidade à sua vida, ao normatizar o Auxílio-Reclusão pecou o legislador. Primeiramente, entende-se que, o Segurado está preso, ou seja, está recebendo alimentação na prisão, o Estado está zelando e guardando sua saúde, etc. Quem ficou a mercê da sorte, é os dependentes do preso. Portanto, como analisar a renda do preso, e não dos dependentes? Assim, entende-se que a conclusão lógica deste embate seria a concessão do auxílio-reclusão para os dependentes de baixa renda dos segurados, havendo um erro na interpretação e um erro do legislador, uma vez que Decreto 3.048/99 ao regulamentar que o auxílio será devido aos dependentes do segurado baixa renda, extrapola a sua função regulamentadora e da novo parâmetro ao benefício violando os princípios da Seguridade Social.

Brasília: Senado, 1988. BRASIL. EC nº 20/98. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm> Acesso em 03 nov. 2015. BRASIL. Lei 8.212, de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8212cons.htm> Acesso em 03 nov. 2015. BRASIL. Lei 8.213, de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm> Acesso em 03 nov. 2015. CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 2014. p. 823. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios de Direito Previdenciário, 4ª edição, São Paulo, LTR, 2001. RE 486.413/SP, Informativo STF n.º 540; Disponível em:<http://www.jusbrasil.com. br/diarios/59796081/trf-2-jud-jfrj-02-10-2013-pg-2554> Acesso em 03 nov. 2015. RE 587.365/SC, Informativo STF n.º 540; Disponível em:<http://www.jusbrasil.com. br/diarios/59796081/trf-2-jud-jfrj-02-10-2013-pg-2554> Acesso em 03 nov. 2015. ROCHA, Daniel Machado da & BALTAZAR JR., José Paulo. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, 3ª edição, Livraria do Advogado, 2003, p. 42 SSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) - AC: 1477 RS 2003.71.14.0014773, Relator: JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA. Data de Julgamento: 27/09/2006, SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 25/10/2006 PÁGINA: 1029. Disponível em: <http://trf-4.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1228975/apelacao-civel -ac-1477/inteiro-teor-13915149> Acesso em 03 nov. 2015. Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) - AC: 3511 SP 2000.61.12.0035110, Relator: JUIZ CONVOCADO MAURICIO KATO, Data de Julgamento: 18/02/2003, Segunda Turma. Disponível em: <http://trf- 3.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/17610332/apelacao-civel-ac-3511-sp-20006112003511-0-trf3> Acesso em 03 nov. 2015. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, volume IV: Os tributos na Constituição. 3ª ed. Revista e atualizada – Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 579 Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) - TRF - 4ª REGIÃO, APELAÇÃO CIVEL – 513475, Processo: 200204010286351, QUINTA TURMA, DJU DATA:16/04/2003, PÁGINA: 235, JUIZ PAULO AFONSO BRUM VAZ; ; Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/diarios/98230349/trf-3-judicial-ii-jef-20-082015-pg-529> Acesso em 03 nov. 2015.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

3 http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=589892

http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=sumulas_tru4

4

REFERÊNCIAS ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios Previdenciários. 4ª ed. São Paulo: Leud, 2009, p.553-554. BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

18

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


TERCEIRIZAÇÃO: da necessidade de regulamentação Ana Luiza de Mello Serra1 Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo2 RESUMO: Terceirizar significa, em resumo, delegar o exercício da atividade-meio de uma empresa, à outra, sendo essa empresa periférica responsável pela contratação e direitos dos empregados. Cerca de 12 milhões de brasileiros já são terceirizados, isso representa cerca de 27% do total de trabalhadores formais. Atualmente, há uma omissão legal referente ao assunto, apenas a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, trata do tema e dispõe que a terceirização trabalhista é admitida em serviços especializados ligados à atividade-meio da empresa, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. Mesmo existido esse grande número de terceirizados, não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma legislação especifica que ampara, garantindo direitos e deveres aos terceirizados. O Projeto de Lei n. 4330/2004 visa regulamentar esse mecanismo de contratação. Este trabalho tem como objetivo fazer uma analisa critica a esse Projeto de Lei e, apresentar sugestões constitucionalmente adequadas para a regulamentação da terceirização. ABSTRACT: Outsource means, in short, delegate the exercise of the activity-through a company to the other, and this peripheral company responsible for hiring and employee rights. About 12 million Brazilians are already outsourced, this represents about 27% of formal workers. Currently, there is a legal omission regarding the subject, just Precedent 331 of the Superior Labor Court, deals with the issue and states that the labor outsourcing is admitted to specialized services related to core business through the company, since non-existent personhood and subordination direct. Even existed this large number of outsourced, there is the Brazilian legal system no specific legislation that supports, ensuring rights and duties to third parties. The bill n. 4330/2004 aims to regulate this contracting mechanism. This paper aims to make a critical analysis to this bill and introduce constitutionally appropriate suggestions for the regulation of outsourcing. Palavras-chave: Terceirização. Regulamentação. Projeto de Lei n. 4330/2004. Keywords: Outsourcing. Regulation. Bill n. 4330/2004. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Terceirização; 2.1 Conceito e evolução histórica; 2.2 Regulamentação atual; 3 Análise crítica do Projeto de Lei n. 4330/2004; 4 Sugestões à regulamentação da terceirização – necessária adequação ao ordenamento jurídico; 5 Considerações finais; Referências Bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO Os direitos trabalhistas são Direitos Sociais, garantias fundamentais, constitucionalmente regulamentados na Carta Magna, promulgada em 1988, que instituiu o Estado Democrático de Direito, ainda em desenvolvimento. A terceirização emergiu e foi impulsionada pela globalização. Terceirizar significa, em resumo, delegar o exercício da atividade-meio de uma empresa, à outra, sendo essa empresa periférica responsável pela contratação e direitos dos empregados. Cerca de 12 milhões de brasileiros já são terceirizados, essa estimativa é do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos). Isso representa cerca de 27% do total de trabalhadores formais. Mesmo existindo esse grande número de terceirizados, não há no ordenamento jurídico brasileiro legislação especifica que regulamenta essa situação, garantindo direitos e deveres aos terceirizados. O Projeto de Lei n. 4330/2004 visa regulamentar esse mecanismo de contratação. Este trabalho tem como objetivo fazer uma analisa critica à esse Projeto de Lei e apresentar sugestões constitucionalmente adequadas para a regulamentação da terceirização. Inicialmente faz se necessário estudar o conceito de terceirização, sua evolução histórica, e apresentar a regulamentação atual, sem a intenção de esgotar o tema. Logo após, será feita a análise crítica ao Projeto de Lei, apontando em que pontos ele avança e em quais retrocede, no que diz respeito aos direitos trabalhistas, não dei-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

xando de citar as mudanças que ele trará. Por fim, apresentar-se-á sugestões para a regulamentação da terceirização. 2 TERCEIRIZAÇÃO 2.1 Conceito e evolução histórica Historicamente, a terceirização teve início através da necessidade de modernização das empresas, impulsionada pela globalização e pelo consequente aumento da concorrência. Diante da busca por maior produtividade aliada a menores custos, as empresas direcionaram seus esforços para as atividades específicas, permitindo e transferindo para outras empresas a execução de tarefas intermediárias, surgindo assim, a terceirização. (MARIANO, 2010) A terceirização trabalhista consiste no repasse de uma atividade secundária de uma empresa para que outra a realize através da contratação de terceiros. Este terceiro, o trabalhador, participa do processo produtivo da empresa prestando-lhe serviços, sem que haja vínculos trabalhistas com esta. Segundo entendimento doutrinário, é uma relação trilateral entre o obreiro, o prestador de serviços e à empresa tomadora de serviços (DELGADO, 2013). Segundo nos ensina Mauricio Godinho Delgado (2013), o fenômeno da terceirização é relativamente novo no Direito do Trabalho Brasileiro ganhando maior destaque nas últimas três décadas. Para Miraglia (2008), a terceirização trabalhista emerge como forma de, supostamente, aliviar as empresas dos encargos advindos com a formação do vínculo empregatício. A diminuição dos custos

19

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


com a mão-de-obra e a delegação do exercício das atividades-meio a empresas periféricas parecem imprescindíveis para a sobrevivência do empreendimento. Miraglia (2008), narra, ainda, o porquê do surgimento da terceirização e suas consequências: Teoricamente a terceirização erige-se como forma de aumentar a competitividade do empreendimento e como solução para baratear os preços dos produtos. Contudo, a euforia inicial advinda da terceirização não resultou em grandes lucros. Para o empregador, o lucro gerado pela contratação de mão-de-obra terceirizada não alcançou as expectativas. Por outro lado, o empregado teve seus direitos mitigados, suas condições de trabalho precarizadas e viu-se duplamente subordinado, sem, contudo, receber por tal. (MIRAGLIA, 2008, p. 115). A República Federativa do Brasil está em desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana e na valorização social do trabalho (Art. 1º, incisos III e IV, Constituição Federal de 1988), ficando o processo da terceirização limitado de maneira genérica, através de seu conjunto normativo e seu âmbito principiológico. (GODINHO, 2013). Miraglia (2008) ao dizer que “A terceirização aparece na contramão desses princípios”, corrobora com o entendimento de Godinho, e afirma, ainda, que: A terceirização afeta diretamente o princípio da proteção do trabalhador, ou princípio tuitivo, basilar do Direito do Trabalho. O referido baluarte justrabalhista que busca igualar juridicamente partes que se encontram em situação de desigualdade econômica, mediante a proteção jurídica da parte hipossuficiente na relação de trabalho: o obreiro. (MIRAGLIA, 2008, p. 132).

Essa Súmula vedava, desde 1986, a terceirização e afirmava o vínculo diretamente com o tomador de serviços. Em 1993, ela foi revisada e a terceirização passou a ser permitida nos casos de serviços de vigilância e de asseio e conservação, como mencionado anteriormente. Vale ressaltar que a Lei de Licitações e Contratações (8.666/93) tornou a administração pública isenta de qualquer responsabilidade caso as prestadoras não pagasse o salário dos trabalhadores. A Súmula 256 do TST foi cancelada e, em seu lugar, surgiu a Súmula 331, com interpretação exposta relativa às hipóteses de terceirização lícita de ordem jurídica, econômica e social brasileiras, estabelecendo a responsabilidade subsidiária do contratante. (GODINHO, 2013). É o conteúdo da Súmula 331 do TST: 331 - Contrato de prestação de serviços. Legalidade (Revisão da Súmula nº 256 - Res. 23/1993, DJ 21.12.1993. Inciso IV alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000. Nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI - Res. 174/2011 - DeJT 27/05/2011) I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade- meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. (Nova Redação - Res. 174/2011 - DeJT 27/05/2011) V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. (Inserido - Res. 174/2011 - DeJT 27/05/2011) VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral. (Inserido - Res. 174/2011 - DeJT 27/05/2011)

A ruptura com a fórmula bilateral de contratação de trabalho subordinado (empregador-empregado – Arts. 2º e 3º da CLT), em virtude do avanço da fórmula trilateral terceirizante, conduziu a certo desajuste teórico do legislador trabalhista do país. (GODINHO, 2013). E é sobre esse desajuste que a atual regulamentação normativa e jurisprudencial da terceirização se apresenta, como veremos a seguir.

2.1 Regulamentação atual A regulamentação normativa da terceirização, no ramo privado, ocorreu inicialmente através de dois modelos de contratação, presentes na Lei n. 6.019/74 (Lei do Trabalho Temporário nas Empresas Urbanas) e a na Lei n. 7.102/83 (Lei da Segurança Bancária). Naquela foi regulamentado o trabalho temporário, que era uma forma de contratar terceiros, e nesta, mais tarde, ocorreu a legitimação do trabalho de vigilância bancária, nota-se que é uma atividade meio de uma instituição bancária. O laconismo de regras legais em torno de tão relevante fenômeno sociojurídico conduziu à prática de intensa atividade interpretativa pela jurisprudência, em busca de assimilar a inovação sociotrabalhista ao cenário normativo existente no país. Nesse contexto normativo, jurisprudencial e doutrinário, foram editadas a Súmula 256 e posteriormente a Súmula 331 ambas do TST. É o conteúdo da primeira, Súmula 256 do TST: 256 - Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nºs 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Miraglia (2008) comenta alguns itens desta Súmula. Diz que o item I vedou a simples interposição de mão-de-obra por determinado empreendimento, com objetivo de evitar o ‘comércio de trabalhadores’ proibido pela Constituição Federal de 1988. Além disso, afirma ainda que a Súmula tentou regularizar a contratação de serviços não essenciais por empresa terceira permitindo a terceirização, desde que existam, de fato, a autonomia econômica e a independência jurídica da empresa prestadora em relação ao empreendimento contratante. Já o derradeiro item IV tratou da responsabilização das empresas por

20

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


verbas trabalhistas inadimplidas, devendo ser configurada a responsabilidade subsidiária da empresa contratante, mesmo que está seja pertencente à ente público. A Súmula 331 do TST é admitida em serviços especializados ligados à atividade-meio da empresa, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. Importante lembrar que a atividade-meio não pode coincidir com o objetivo precípuo da empresa (atividade-fim). Miraglia (2008), sobre esses dois termos: Outros dois termos importantes que devem ser definidos são: atividade-meio e atividade-fim. A importância da distinção entre essas atividades suporta-se na necessidade de se estabelecer um parâmetro entre terceirização lícita e ilícita. Sabe-se que é vedada a terceirização de atividade fim da empresa, pois constituiria fraude ao Direito do Trabalho, além de ferir o princípio de proteção ao trabalhador. (MIRAGLIA, 2008, p. 159). O judiciário tentou através da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, suprir a lacuna deixada pela legislação trabalhista, mas na prática essa alternativa não se mostra satisfatória por diversas razões, a mais notória é em relação a isonomia remuneratória, posto que os trabalhadores terceirizados que exercem as mesmas funções que os empregados da empresa tomadora, precisam pleitear esse direito na justiça. Conclui-se esse assunto com entendimento de Miraglia (2008): Pela breve exposição da evolução normativa sobre a terceirização trabalhista no Brasil, fica fácil e claro concluir que as regulamentações são esparsas e ineficientes diante do cenário atual brasileiro, pois não tratam o fenômeno de maneira global (como seria apropriado, uma vez ter se tonado uma prática globalizada), e sim de um modo simplista, que exclui a maior parte das modalidades terceirizantes presentes hodiernamente. (2008, p. 145) Curiosamente, mas não por acaso, e principalmente no setor privado, a terceirização não recebeu, até hoje, o imprescindível respaldo jurídico para sua utilização. Isso porque não é interessante para o capital a regulamentação da prática pautada nos princípios justrabalhistas. (MIRAGLIA, 2008). O sistema atual capitalista far-se-á necessário lembrar que quem faz o sistema se movimentar são as pessoas, especificamente os trabalhadores, através de sua mão-de-obra. Para que eles mantenham e acelere essa maquina é preciso que estejam em condições físicas e psicológicas de agir, e para isso mister se faz garantir direitos e condições adequadas de trabalho, o Projeto de Lei n. 4330/2004 tem este objetivo.

3 ANÁLISE CRÍTICA AO PROJETO DE LEI N. 4330/2004 Na tentativa de suprir a lacuna de regulamentação acerca da terceirização, foi proposto o PL nº 4.330/2004, que tramita há mais de dez anos no Congresso Nacional e que tem como objetivo a formalização do mercado de trabalho para terceirizados. Primeiramente, há uma generalização do tema, dada pelas ilimitadas hipóteses de terceirização. Nesse sentido, efetivamente, a terceirização causa a precarização das relações trabalhistas, pois o trabalhador tem seus direitos fragmentados na medida em que há a redução de empregos formais, decorrente da rotatividade da mão de obra. De outro lado, esses mecanismos adotados pelas empresas serão para ela benéficos, pois promove o aumento da produtividade,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do lucro e da competitividade, tudo isso advém da redução dos custos e do partilhamento dos riscos. Mas vale destacar um problema frequente, percebido principalmente quando há ações trabalhistas em que os trabalhadores pleiteiam o pagamento de verbas trabalhistas e reparações acidentárias, a insuficiência econômica da prestadora em relação a tomadora, muitas daquelas não têm idoneidade financeira para suportar os pagamentos deferidos, pois essas prestadoras são muitas vezes, tão de deficientes economicamente quanto os trabalhadores prejudicados, são quase sempre preposto do capital. Quanto à representação sindical, o PL nº 4.330/2004 aumenta ainda mais a fragmentação sindical, pois esses trabalhadores terceirizados não são representados sindicalmente como os trabalhadores contratados diretamente pelas empresas, mas por um sindicato de prestadora de serviços terceirizado. Exemplificando, em uma mesma empresa poderemos ter diferentes representações sindicais, o sindicato dos trabalhadores contratados pela empresa tomadora e os sindicatos dos terceirizados da limpeza, da segurança, do transporte, se nela houver terceirizados contratados nessas categorias. Um exemplo de sindicato que luta contra a fragmentação sindical e permite tanto a sindicalização dos trabalhadores contratados quanto dos terceirizados é o Sintusp, sindicato dos trabalhadores da USP. Vale ressaltar ainda que o PL em comento traz à empresa contratante a responsabilidade subsidiaria pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, há previsão da responsabilidade solidária, mas somente quanto às obrigações trabalhistas pela empresa prestadora de serviços que subcontratar outra empresa. A principal mudança objetivada por este PL é a permissão da contratação de serviços terceirizados para qualquer atividade ou setor de uma empresa privada. Pode-se concluir que este PL não será benéfico para os empregados. Isso pode ser percebido através das manifestações de oposição ao texto, realizadas por diversas instituições e agentes políticos. Entre elas pode-se citar o Ministério Público do Trabalho, os sindicatos, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e alguns deputados federais. Em notícia vinculada no site da Câmara dos Deputados, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Carlos Eduardo Lima, avaliou: Temos estatísticas que comprovam que o terceirizado, mesmo com grau de especialização semelhante ao contratado, trabalha mais horas, ganha menos, se acidenta muito mais e isso é ruim para sociedade sob todos os aspectos. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015) Já em outra notícia, extraída do site do Ministério Público do Trabalho na Bahia³ (2015), o procurador do trabalho Helder Santos Amorim disse: Terceirizar atividade finalística é inconstitucional. Atinge direitos fundamentais como o direito a greve, acordos e convenções coletivas, reduz a remuneração dos trabalhadores e as contribuições para a Previdência. O projeto, entre outras coisas, dispersa a organização sindical. Isso é proposital e atende os interesses do empresário, que quer esvaziar o direito de greve. E a representante da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a juíza do trabalho Noêmia Aparecida Garcia Porto³ (2015) expos que “Baixos salários, aumento dos acidentes de trabalho e burla ao direito de férias. Lei não cria emprego, mas pode contribuir muito para a precarização da qualidade do emprego em nosso país”.

21

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Essas manifestações demonstram que as instituições representadas mantém oposição ao Projeto de lei. Durante a 63ª Sessão da Câmara dos Deputados, que ocorreu no dia 08 de abril deste ano, alguns deputados manifestaram sua oposição ao Projeto de Lei nº 4.330/2004. A deputada Noema Gramacho disse: Presidente, eu estou sentindo que está havendo aqui muita distorção sobre o que significa o Projeto de Lei nº 4.330, de 2004. Não é simplesmente uma terceirização do que já existe hoje, é uma terceirização da atividade-fim. Portanto, é a terceirização da terceirização, é a quarteirização, é a subtração de direitos, é a exploração do trabalhador; s. É uma pauperização, é uma precarização da relação trabalhista. Alguns Deputados não estão entendendo isso. Não se trata de regulamentar a atividade dos que já estão terceirizados. Aliás, nós queremos regulamentar a atividade dos que já estão terceirizados, para que eles tenham direitos iguais aos de todos os outros profissionais. O que se está propondo neste projeto não é isso, é acabar com a relação de trabalho. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 153). E a deputada Alice Portugal se expressou com as seguintes palavras: Sr. Presidente Carlos Manato, quero dizer neste 1 minuto que, no início do século XXI, estamos rasgando todos os direitos dos trabalhadores brasileiros conquistados no século XX. A CLT tem suas imperfeições, no entanto regulamentou o trabalho a partir de meados da década de 30. Hoje, não estamos tratando de proteger os terceirizados de então; estamos desprotegendo os terceirizados de então e fadando os terceirizados do futuro à completa desproteção. Estamos levando o empresariado usurário – não agravando todos – a ter uma empresa sem um empregado sequer, terceirizando e quarteirizando toda a sua área produtiva. Teremos um grande prejuízo para os trabalhadores brasileiros. Digo “não” ao Projeto de Lei nº 4.330, de 2004! (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 153). Por fim, vale transcrever o que disse o deputado Waldenor Pereira: A aprovação desse projeto representará a perda de direitos trabalhistas, o enfraquecimento dos sindicatos e a precarização das condições de trabalho. Esse projeto poderá induzir ao trabalho escravo e representará, acima de tudo, a r___edução de salários, a redução do poder de compra dos trabalhadores. Portanto, quero, publicamente, assumir a posição de votar contrariamente a esse projeto e dizer que quem é a favor dos trabalhadores vota “não” ao PL 4.330. (Diário da Câmara dos Deputados, 2015, p. 153). Todas estas manifestações de opinião apresentam argumentos que confirmam que há mais retrocessos do que avanços no que diz respeito aos direitos históricos já conquistados. 4 SUGESTÕES À REGULAMENTAÇÃO DA TERCEIRIZAÇÃO – necessária adequação ao ordenamento jurídico Considerando a regulamentação atual da terceirização ou havendo a provável conversão do PL 4330/2004 em lei, pode-se concluir que as vantagens para os trabalhadores são e continuarão sendo ínfimas ou até mesmo inexistentes. Miraglia (2008) aponta dois problemas decorrentes da terceirização: a rotatividade da mão-de-obra e a perda da identidade do trabalhador. E explicita, “os empregados terceirizados não estabelecem vínculos jurídicos com a tomadora ou com o produto final de seu labor. Daí surge o segundo problema: a perda da identidade de classe do trabalhador”.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Vale ressaltar o problema da discriminação gerada no próprio ambiente interno da empresa tomadora, entre os trabalhadores terceirizados e os empregados efetivos, inclusive destes com aqueles: Destarte, afetam-se também as condições de saúde e segurança do obreiro, eliminam-se benefícios sociais diretos e indiretos, promovendo-se insegurança laborativa, vez que a remuneração torna- se incerta e o recebimento das vantagens e benefícios decorrentes de um contrato de trabalho clássico ou de normas coletivas não é auferido pelo trabalhador. (MIRAGLIA, 2008, p. 130) Miraglia (2008) aponta como pontos principais na regulamentação da terceirização: a isonomia salarial entre trabalhadores terceirizados e trabalhadores da empresa contratante da mesma categoria; a responsabilização da tomadora pelos créditos trabalhistas dos terceirizados; a vinculação sindical dos trabalhadores terceirizados ao sindicato da categoria dos trabalhadores permanentes da empresa contratante; e, finalmente, a igualdade de condições laborais, quanto à saúde e segurança no ambiente de trabalho. Os senadores Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e Paulo Paim (PT -RS) apresentaram, dia 24 de outubro deste ano, o PLS 554/2015 para regulamentar os contratos de terceirização e as relações de trabalho dele decorrentes. O projeto foi apresentado a partir de sugestões da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho). O projeto apresentado contribui ao debate da terceirização, visa aprimorar o projeto que encontra-se tramitando no Senado, e propõe: 1. positivar, com segurança jurídica, o critério da distinção entre atividades essenciais (ou inerentes) e atividades não-essenciais (ou não-inerentes, ou ainda atividades-meio) como fator de legitimação legal da terceirização de serviços no Brasil; 2. estabelecer a regra da responsabilidade solidária da empresa tomadora de serviços em relação aos direitos dos trabalhadores terceirizados, inclusive nos acidentes de trabalho e nas doenças profissionais e do trabalho; 3. estabelecer a representação sindical pelo sindicato da categoria profissional predominante no âmbito da empresa tomadora; 4. estabelecer mínima isonomia salarial entre trabalhadores terceirizados e trabalhadores efetivos (empregados da empresa tomadora). 5. normatizar o princípio da norma mais benéfica em favor dos trabalhadores terceirizados, no âmbito da concorrência de normas estatais e convencionais, inclusive quanto às convencionadas no âmbito da tomadora dos serviços; 6. vedar a “quarteirização” e todas as subcontratações sucessivas; 7. vedar a terceirização por pessoas físicas, ainda que profissionais liberais ou produtores rurais; 8. proteger trabalhadores especialmente vulneráveis e reforçar a correspondente fiscalização. (PLS 554/2015) Esses oito pontos tratam com louvor o tema e podem ser considerados uma sugestão constitucionalmente adequada de regulamentação da terceirização, pois é perceptível o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, no item 2; em obediência ao art.5º da Constituição Federal de 1988; do valor social do trabalho, no item 3; com previsão nos arts. 7º, 170 e 173 da Carta Magna; da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, no item 6; e da proteção do trabalhador, que o próprio legislador deve observar, e o faz ao apresentar o PLS 554/2015.

22

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Constituição Federal de 1988 instituiu teoricamente o Estado Democrático de Direito e regulamentou os direitos trabalhistas no rol dos Direitos Sociais, são estes, portanto garantias fundamentais. O cenário atual demonstrado no decorrer deste estudo aponta que a terceirização provoca, entre outros problemas, a rotatividade de mão-de-obra, a perda da identidade do trabalhador e a discriminação deste no ambiente interno da empresa. Caso o PL 4330/2004 seja aprovado, permitindo a contratação de serviços terceirizados para qualquer atividade ou setor de uma empresa privada, haverá cumulado aos problemas citados, o enfraquecimento dos sindicatos, e acima de tudo, a redução dos benefícios e do investimento nos trabalhadores, o que afetará a economia brasileira. Após a realização desta pesquisa, ficou evidente e demonstrado que, no que tange à regulamentação da terceirização, tanto a regulamentação atual quanto a prevista no Projeto de Lei N. 4330/2004 não são constitucionalmente adequadas ao ordenamento jurídico brasileiro. Vale ressaltar que cabe ao legislador o dever de observar o princípio da proteção do trabalhador, e assim o faz, quando legisla regulamentando uma situação futura ou pretérita, como é o caso da terceirização. Miraglia (2008) aponta como pontos principais na regulamentação da terceirização: a isonomia salarial entre trabalhadores terceirizados e trabalhadores da empresa contratante da mesma categoria; a responsabilização da tomadora pelos créditos trabalhistas dos terceirizados; a vinculação sindical dos trabalhadores terceirizados ao sindicato da categoria dos trabalhadores permanentes da empresa contratante; e, finalmente, a igualdade de condições laborais, quanto à saúde e segurança no ambiente de trabalho. No dia 24 de outubro deste ano, os senadores Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e Paulo Paim (PT-RS) a partir de sugestões da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) apresentaram o PLS 554/2015, que contribui ao debate da terceirização e visa aprimorar o projeto que encontra-se tramitando no Senado. Esta proposta pode ser apontada como uma sugestão constitucionalmente adequada de regulamentação da terceirização, pois é perceptível o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho, da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, e principalmente o da proteção do trabalhador, observado quando da apresentação do PLS 554/2015.

MARIANO, Luciano Rocha. A terceirização e seus efeitos na relação trabalhista. Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.cgvadvogados.com.br/sites/default/files/terceirizacao.pdf>. Acesso em: 19 de Nov. 2015. MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. A terceirização trabalhista no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2008. 224 p. SILVA, Rogério Geraldo. A terceirização no Brasil e a Súmula 331 do TST. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande do Sul, n.92, set. 2011. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10278>. Acesso em: 20 de abr. 2015.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BRASIL. Câmara dos Deputados. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXX, nº053, 09 abr. 2015. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD0020150409000530000.PDF #page=150>. Acesso em: 25 de jun. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. PL Nº 4.330/2004. Dispõe sobre os contratos de terceirização e as relações de trabalho deles decorrentes. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2 67841>. Acesso em: 20 de abr. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Relator defende terceirização, mas Ministério Público é contra projeto. Câmara notícias. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/485253RELATOR-DEFENDE-TERCEIRIZACAO,-MAS-MINISTERIO-PUBLICO-E- CONTRA -PROJETO.html>. Acesso em: 25 de jun. 2015. CHALFIN, Goldberg e Vainboim. A terceirização e seus efeitos na relação trabalhista. Disponível em: <http://www.cgvadvogados.com.br/sites/default/files/terceirizacao.pdf>. Acesso em: 20 de abr. 2015. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12ª Ed. – São Paulo: LTr, 2013.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

23

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


DIREITO E MODA As Formas de Registro de Marcas e Patetes André Rafael Monteiro Lucas1 Hugo Ribas Bretas2

RESUMO: O presente estudo aborda as formas de registro de moda no cenário Frances, Estadunidense e também o pátrio em relação a propriedade industrial e os direitos autorais. Abordando a omissão dos registros sobre a moda ABSTRACT: This paper addresses the ways fashion record in setting French, American and also the parental rights in relation to intellectual property and copyright . Addressing the omission of records on fashion PALAVRAS-CHAVE: Direito e Moda; Fashion Law; Droit du Luxe; patentes; Formas de Registro; Propriedade Industrial; Direito Autoral; Copyright KEYWORDS: Fashion Law; Droit du Luxe; Patent ; Registration forms; Industrial property; Copyright SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Conceitos Basilares; 2.1 Conceito de Moda; 2.2 Conceito de Direito e Moda; 3 Do Direito e Moda Análise Internacional - breve histórico; 3.1 Da Legislação Francesa e o “Droit du Luxe; 3.2 Da legislação Estadunidense e o “Fashion Law”; 4 Da Legislação Nacional; 4.1 Da Lei de Propriedade Industrial; 4.2 Da Lei Sobre Direitos Autorais; 4.3 Do Código de Defesa do Consumidor; 5 Conclusão; Referências

1 INTRODUÇÃO Cento e setenta bilhões é o faturamento que o mercado da moda movimenta somente no varejo ¹ sendo o mercado que mais cresce no Brasil ². Com notável relevância econômica tal setor vem demandando cada vez mais uma proteção jurisdicional. No ordenamento jurídico brasileiro não encontramos uma proteção direcionada para tal setor, ao contrário de países como França, EUA... que possuem um ramo do direito especializado para cuidar da moda. Desta feita com a crescente da moda brasileira no cenário internacional não contamos com as mesmas técnicas legais de registro que tais nações possuem tornando mais atraentes para estilistas e designs nacionais o registro no exterior do que o pátrio. É notório ressaltar além da falta de preparo legislativo o material humano do judiciário não colabora para a análise das questões ligadas ao direito e moda, ou “fashion Law”, sendo que o desconhecimento de grande parte dos advogados, juízes, promotores e demais autoridades sobre o assunto em voga denuncia o despreparo atual de todo o judiciário sobre questões emanadas não só das formas de registro de moda, mas de várias especificidades do setor. Tendo em vista este despreparo o presente artigo visa analisar as formas de registro e patentes no setor da moda considerando o cenário internacional, principalmente nos Estados Unidos e na França e as legislações nacionais que podem ser aplicáveis ao setor como: a lei de propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), lei sobre direitos autorais (Lei nº 9.610/98) e o código de defesa do consumidor. Com base nessas legislações temos dois locais principais para o registro, sendo eles o INPI (instituto nacional de propriedade industrial) e a Biblioteca Nacional, onde o primeiro visa o registro de propriedades industriais e o segundo dos direitos de autor. Principalmente na moda têxtil há uma dificuldade maior para a identificação de qual registro realizar uma vez que um modelo desenvolvido para uma pessoa específica, assim um direito autoral, pode ser copiado e utilizado de maneira industrial tornando-se uma propriedade industrial. Tendo em vista os temas abordados para melhor compreensão

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

destes é preciso partir das premissas basilares que serão apresentadas no próximo tópico, visando o conceito de moda e o conceito de “fashion law” direito e moda. 2.TÓPICOS BASILARES Antes de analisarmos o direito e moda no caráter internacional e as legislações que podem ser aplicadas ao tema é necessário ter domínio de conceitos básicos de moda e de direito e moda. 2.1.CONCEITO DE MODA Conceitua moda o renomado autor Joffily (apud Treptow, 1999 p.27) como: Moda é o fenômeno social ou cultural, de caráter mais ou menos coercitivo[1], que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter uma determinada posição social. Para o dicionário Aurélio moda é: 1 Uso passageiro que regula, de acordo com o gosto do momento, a forma de viver, de se vestir, etc. 2 Maneira de vestir 3 Modo, costume, vontade 4 Ária, cantiga... É relevante ressaltar que a moda além de uma maneira de comunicação tem um caráter inovador, se reconstruindo periodicamente. Na idade média durante os séculos XI e XII não houve nenhuma alteração importante na moda têxtil, entretanto atualmente chegamos a ter seis coleções lançadas ao ano, indo além das quatro estações que normalmente pautavam as coleções. Essa progressão de inovações da moda têxtil, esta sendo incorporada a várias outras indústrias, por exemplo, a de veículos que renovam seus modelos cada vez com mais freqüência. Alem dessas mudanças periódicas a moda é uma forma de comunicação podendo demonstrar gostos musicais, pessoais e até o

24

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


as participações individuais em obras coletivas e as reproduções de imagem e voz humanas, garantida a fiscalização do seu aproveitamento econômico (CF, art. 5º, XXVIII). Além disso, também são protegidos os autores de inventos industriais quanto ao privilégio de sua utilização, suas criações industriais, a titularidade das marcas, dos nomes empresariais e outros signos distintivos (CF, art. 5º, XXIX).

trabalho de determinada pessoa. Talvez por tal abrangência os autores não tenham uma definição unânime de moda, sem a intenção de fechar tal conceituação, é importante, neste momento construir o conceito de Direito e Moda. 2.2CONCEITO DE DIREITO E MODA O direito é uno e indivisível, havendo divisão para fins meramente didáticos, nas palavras de Pedro Lenza: O direito deve ser definido e estudado como um grande sistema, em que tudo se harmoniza no conjunto. A divisão em ramos do direito é meramente didática, a fim de facilitar o entendimento da matéria, vale dizer: questão de conveniência acadêmica. (LENZA, 2012, pág. 53). Não há por parte da doutrina uma unanimidade sobre a fixação do Direito e Moda como ramo do direito, mas pode-se afirmar que tal setor versa sobre propriedade industrial e direito autoral. No célebre artigo “Fashion Law: Key Issues in an Emerging Legal Discipline” os autores Guillermo C. Jimenez, Barbara Kolsun, George Gottlieb e Marc Misthal apresentaram o conceito seguinte conceito para o Direito e Moda: Direito e Moda é a área do direito que lida com os problemas do dia-a- dia da indústria da moda. Tal como acontece com outras subespecialidades, recentemente desenvolvidos do direito empresarial (por exemplo, direito do entretenimento, direito desportivo, ou direito da arte), direito da moda é na verdade uma compilação de várias disciplinas jurídicas diferentes. Assim, o direito de moda incorpora conceitos relevantes de propriedade intelectual, as vendas comerciais, costumes, imobiliário, emprego e do direito de publicidade, entre outros. (Tradução Livre) Tendo por base o Direito Francês, os escritórios especializados no direito da alta custura ou “Droit du Luxe” demonstram a importância na prática do conhecimento jurídico na área de moda, nas palavras de Annabelle Gauberti, advogada do escritório Crefovi, especialista em “Droit du Luxe”: Hoje, nomear advogados comerciais de alto desempenho é a melhor opção, mesmo que os seus serviços inicialmente possam parecer caro, devido a uma concorrência muito elevada no setor de luxo e intensificaram as ameaças externas para o bem-estar das casas deluxo. Como um exemplo de concorrência da indústria, o grupo Arnault utilizadas as normas legais e do sistema legal para ganhar o controle da LVMH, a maior empresa de bens de luxo no mundo, no final dos anos 80, é reveladora: depois a fusão entre a Louis Vuitton e Moet- Hennessy, do grupo Arnault adquirido mais de 93% dos bônus de subscrição de obrigações com warrants (OBSAs) emitidos por Moët- Hennessy. (Tradução Livre). Tendo em vista todo o apresentado, da conceituação dos autores estadunidenses a visão prática de Annabelle Gauberti podemos inferir a importância de tal setor para a economia mundial e que as conceituações internacionais apresentadas não encontram no Brasil um óbice para a sua aplicação, principalmente se levarmos os ditames constitucionais do artigo 5° que já nos traz uma proteção aos inventos, sejam eles no mundo da moda ou não. Abrão (1997, p. 87) demonstra que aos autores é assegurado o direito exclusivo de utilização, publicação e reprodução de suas obras (CF, art. 5º, XXVII), além de serem protegidas

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

3. DO DIREITO E MODA ANÁLISE INTERNACIONAL – BREVE HISTÓRICO O direito é inerente a sociedade, sendo assim onde há uma sociedade há regras, há Direito, de maneira que o Direito e moda podem ser notados em socidedas antigas no cenário internacional como demonstrado por Susan Scafidi: No Ocidente, as leis suntuárias que regiam o consumo e utilização de bens, incluindo roupas, remontam pelo menos à Grécia clássica. Sobre séculos, a legislação destinada a regular os limites de luxo colocado em uma infinidade de adornos físicos, de sedas, peles e pedras preciosas. Além de contenção excessos percebidos, leis suntuárias também têm servido para policiar as fronteiras de classe social. Por exemplo, a lei Inglesa que restringiu o uso de qualquer seda de cor roxo para os membros da nobreza. Leis similares foram projetados para identificar profissões específicas, nomeadamente professores, prostitutas e sacerdotes, ou para identificar as características como estado civil ou, de gênero. Similarmente leis modernas que regulam a cópia de várias formas de expressão, tanto a letra e o espírito destes leis suntuárias eram difíceis de serem cumpridas. (Tradução livre) A preocupação com a vestimenta e sua adequação ao local e contexto social que vem ao longo se séculos sendo importante ao homem de maneira igual também está a preocupação de assegurar ao inventor os direitos sobre sua invenção, em continuidade na linha temporal assevera David Jenkinsi. Apesar das complexidades da regulação vestido, leis suntuárias continuaram a multiplicar durante o período medieval e moderno quanto as mudanças na distribuição da riqueza combinada com novas tecnologias que ofereçam maior acesso para roupas de luxo. Entre essas novas tecnologias foi a imprensa, que não só facilitou a distribuição de Bíblias e tratados políticos, mas também produziu os precursores de revistas de moda modernas, assim disseminando imagens de novo estilos além do estreito círculo da elite. Mais tecnologia avançada também fornecida uma forma menos dispendiosa para colocar imagens na tela, em comparação com labor intensivo da pintura à mão ou bordados. Ao mesmo tempo, a melhoria da meios de tecelagem aumentou a disponibilidade de preços acessíveis e tecidos assim, as oportunidades para copiar peças de vestuário de moda. Cópias de cada vez mais baratos novos modelos inovadores, de tecido logo em seguida. (Tradução Livre) Com estes avanços tecnológicos da produção têxtil surgiu uma industria que remodelou as leis voltadas na limitação do consumo de modo a facilitação a produção, assim começou a surgir a capital da moda. 3.1.DA LEGISLAÇÃO FRANCESA E O “DROIT DU LUXE” A França é considerada a capital da moda sendo que em seu território estão as principais grifes internacionais, para comprender

25

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


massa; No entanto, aqueles itens que ando muito perto das versões originais podem encontrar-se sujeitos a ações legais. Enquanto a lei de propriedade intelectual francesa tem de nenhuma maneira eliminado projeto pirataria, em casa ou no exterior, a protecção de que gozam por designers que trabalham em Paris contribuiu para a força da indústria e sua influência global ao longo de o século XX e para o XXI. Hoje, a alta costura serve principalmente como uma propaganda para próprios estilos de seus estilistas pronto- a-vestir, e a estrutura hierárquica da criatividade no mundo da moda foi substituído com uma difusão muito mais democrático de idéias influentes. Mesmo assim, a França tem os direitos autorais e conexos mais fortes proteções legais do mundo para design de moda, Paris e continua a ser o capital moda do mundo.( Tradução Livre).

esse fenômeno precisamos entender o contexto histórico em que isto ocorreu analisando juntamente a evolução legislativa francesa, para isto necessário se faz citar o estudo de Scafidi que aduz: No XVIII cedo século, os tecelões de seda de Lyon, França, tornam-se os primeiros a exigir proteção da propriedade intelectual de seus desenhos originais, e até 1787 um decreto real estendeu a proteção a fabricantes de seda em todo o país Para não ficar atrás, fabricantes de têxteis britânicos nesse mesmo ano garantidos proteção para competir vários tipos de tecido de linho, ou seja, algodão, chita, e musselina e outras linhas no mesmo sentido como Atos anteriores relativas às gravuras e estampas. Após a industrialização da produção têxtil, do século XIX testemunhado tanto o estabelecimento da moderna de alta-costura em Paris e na ascensão da indústria de vestuário pronto-a-vestir. Estas duas facetas da produção de vestuário acabaria por desenvolver uma relação jurídica e prática complexa, mas ao apenas o início Couture teve qualquer influência significativa sobre o desenvolvimento de novos estilos. Quando Charles Worth, geralmente reconhecido como o primeiro costureiro, estabeleceu o seu atelier no final dos anos 1850, a maioria das peças de vestuário foram as criações exclusivas de um indivíduo de costura em casa ou dá instruções a sua costureira. Que vale a pena em vez desenvolvido um sistema de apresentação de uma série de novos modelos e cada estação em seguida, recebendo ordens para os projetos dos clientes individuais, para quem as roupas foram feitos para medir. Este sistema, que existe até os dias atuais, com sede a influência de estilistas profissionais durante a direção de moda. “Ela também gerou uma indústria de artistas knockoff ansioso para fabricar e vender menosversões de originais caros de Paris. A indústria de alta-costura francesa respondeu ao aumento da pirataria projeto em dois maneiras: primeiro, buscando proteção à propriedade intelectual para desenhos de moda originais; e, segundo, por meio do licenciamento desses projetos para fabricantes de renome, tanto interno e externo. Em sua busca para inclusão na propriedade intelectual sistema, os designers franceses foram capazes de confiar em tanto a lei de direitos de autor 1793, como alterado em 1902 e 1806 a lei de desenho industrial, alterado em 1.909. Ambos os tipos de proteção, sem dúvida aplicada ao design de moda, uma interpretação que os tribunais confirmadas em processos movidos por nas primeiras décadas do século XX século designers conhecidos como Jeanne Paquin, Madeline Vionnet, e Gabrielle “Coco” Chanel. ‘Assim, armado com uma arma legal contra copistas flagrantes em sua próprio mercado doméstico, costureiros exportadores da moda francesa para as mulheres em todo o mundo. A maioria dos clientes influentes viajaram para Paris para receberam acessórios pessoais e vestuário em primeiro lugar, a classe média comprou cópias licenciadas do departamento local lojas e boutiques, e à relativa falta de dinheiro, quer costurava suas próprias versões em casa ou esperavam os modelos ficarem mias baratos. Além de um breve hiato durante a Segunda Guerra Mundial, desta forma top-down sistema permaneceu praticamente inalterado até os anos 1960, e ele ainda exerce significativa influência sobre as tendências atuais da moda. Modernas cadeias de “fast fashion”, o equivalente indumentária da indústria do fast food, são hábeis em reinterpretando rapidamente as inovações da alta-costura para o mercado de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Atualmente o ordenamento jurídico francês possui o código de propriedade intelectual, criado pela Lei no 92.597 de 1 de Julho de 1992. Ele inclui a maioria das antigas leis que regem ramos da propriedade intelectual que são a propriedade industrial, a literária e a artística. Ele é atualizado regularmente pelo Parlamento. Em seu Livro I trata dos Direitos Autorais, na Parte II aborda a Propriedade Industrial e em seu Livro V os Designs. Em maio de 2004, um grupo de advogados franceses liderados por Annabelle Gauberti publicaram um artigo intitulado “Droit du luxe” (lei de luxo) na revista jurídica francesa de prestígio “Revue Lamy Droit des Affaires” . Este artigo explorou várias questões jurídicas e fiscais específicas nos setores de moda e artigos de luxo, e foi uma interação entre o campo jurídico e as indústrias da moda e artigos de luxo. Com efeito, enquanto os europeus preferem se referir a este campo sub-legal como a lei de bens de luxo, os americanos preferem usar o termo mais “democrática” da “lei de moda”. 3.2DA LEGISLAÇÃO ESTADUNIDENSE E O “FASHION LAW” Em Fordham Law School no ano de 2006 a Professora Susan Scafidi ofereceu o primeiro curso em Direito Moda, e em 2008 escreveu sobre o Fashion Law, alcançando grande reconhecimento no mundo direito. Em 2010, foi inaugurado o primeiro centro acadêmico dedicado ao “Fashion Law” do mundo, o Instituto de Direito lançada com o apoio de Diane von Furstenberg e do Conselho de Estilistas de Moda da América. Para melhor definir a história americana dentro do universo da moda, traz este artigo o texto da precursora do “fashion Law”, Susan Scafidi:

26

Enquanto a França desenvolveu uma indústria de moda criativa e intelectual com leis de propriedade e demais proteções bastante avançadas os Estados Unidos, se tornou um refúgio para projetos piratas que resistiram tenazmente esforços para introduzir leis que protegem moda. Como observou, alguma desta cópia foi o produto de um regime de licenças legítimas com casas de alta costura francesa, mas Seventh Avenue, em Nova York geralmente prosperaram em vez disso, o fabrico e venda de cópias baratas. Em termos históricos, o padrão de desenvolvimento industrial nos Estados Unidos e as economias emergentes mais recentes, muitas vezes começa com um período de inicial pirataria, durante o qual uma nova indústria tem raiz por meio ofcopying. Estes resultados na rápida acumulação do capital e perícia. O final dos anos XVIII e desenvolvimento precoce do século XIX da indústria têxtil em New England foi um exemplo per-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


feito desse crescimento econômico por meio de roubo de propriedade intelectual, como aspirante industriais memorizados e transportados tecnologias proprietárias do outro lado do atlantico “Idealmente, o país pirata começa a desenvolver seu próprio criativo sector da indústria, que por sua vez leva a promulgação da propriedade intelectual proteção para promover ainda mais o seu crescimento. Este foi o padrão seguido na música e da edição indústrias, em que os Estados Unidos já foi um notório nação pirata, mas agora é um promotor de aplicação da propriedade intelectual. No caso da indústria da moda americana, no entanto, o padrão usual de cópia irrestrita seguida de forma constante o reforço da proteção jurídica não é presente. Uma análise dos fatores culturais que contribuíram para a negação de proteção à propriedade intelectual específicos para design de moda vai além do escopo deste capítulo. A fim de compreender o estado atual da propriedade intelectual dos EUA e do direito de propriedade com respeito ao vestuário, no entanto, uma breve turnê de esforços legais passadas é em ordem. Projetos têxteis e de vestuário, que são criações estéticas que também tem funções úteis, poderiam, teoricamente, ser elegíveis para proteção sob qualquer regime de direitos de autor ou de um regime de design industrial. França, como indicado, optou pela ambos os tipos de proteção de pelo menos no início do século XX; os Estados Unidos efetivamente não tinha eleito nenhum. Embora a legislação dos EUA previa patentes de design a partir de 1842, as normas rigorosas impedido de registro da maioria dos desenhos de moda. Em 1882 com a negação de uma patente para uma empresa de manufatura de seda galvanizado a indústria começou a fazer lobby para a proteção, mas sem êxito A rota foi copyright não mais bem-sucedida para designers criativos, apesar do Registro de Direitos de Autor de chamada explícita em 1913 para alteração da Lei de Direitos Autorais para seguir o francês modelo e permitir o registro de desenhos de moda ao lado das “belas artes”, em seguida, a proteção proporcionou na verdade, a única concessão legislativa ou judicial dos EUA para proteção de têxteis ou vestuário durante as primeiras décadas do século XX Propriedade Intelectual e Design de Moda 119 1913 foi o Kahn Act, que se destinava a proteger os designers europeus que recusaram a enviar os seus trabalhos para o iminente Panamá-Pacific International. Exposição sem primeiras garantias requeridas contra a pirataria americana.

4. Da Legislação Nacional Realizada a analise do contexto histórico, legislativo e doutrinário dos Estados Unidos e da França sobre o direito e moda podemos enfim tentar trazer tais considerações internacionais para a luz do direito pátrio de modo a dirimir conflitos que possam existir no nosso país com a expansão atual do setor da moda, além de dar mais segurança jurídica e ajudar na resolução dos conflitos atuais. Para isto devemos separar situações de registro de roupas para uso na indústria, como as “fast fashions”, e de registro de determinado modelo de vestuário exclusivo, ou seja, de fabricação única ou quase única de determinada peça geralmente desenvolvida pela costura de luxo. É importante ressaltar que tais casos, apesar de serem ambos contidos no direito da moda, possuem formas de registro totalmente diferentes no Brasil. Ao contrário do modelo Francês que possui um código mais

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

abrangente quanto a situações de registro o ornamento brasileiro não comunica as diferentes formas de registro, basicamente INPI não tem ciência do registro da Biblioteca Nacional e vice-versa, sendo assim possibilitando que um estilista com um registro na Biblioteca nacional de um vestuário possa ser copiado e este terceiro possa legalmente registrar essa cópia no Instituto Nacional de propriedade Industrial. Para melhor entender o abordado vamos a uma breve análise sobre as legislações pátrias aplicáveis, sendo elas: a lei de propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), lei sobre direitos autorais (Lei nº 9.610/98) e o código de defesa do consumidor. 4.1.Da Lei de Propriedade Industrial A propriedade industrial surge do ditame constitucional do artigo 5°,XXIX, visando proteger a figura do inventor, mas também a sociedade, sendo assim este terá um determinado tempo para usufruir de seu invento e a sociedade poderá a partir do término deste período temporal ter domínio sobre tal propriedade. De acordo com a sua patente que será submetida ao registro no INPI. Nesta seara aborda sobre patentes Tomazette: A fim de proteger as invenções, foi desenvolvido o sistema de patentes, pelo qual se garante ao inventor o direito de utilização exclusiva da invenções por um certo período de tempo ( art. 5°, XXIX da Constituição Federal de 1988). Por meio desse sistema, o inventor tem um privilégio temporário sobre a invenção, isto é, temporariamente há um monopólio da utilização da invenção. Nem toda invenção é patenteável, trazendo a lei 9.279/96 requisitos para o registro em seu artigo 8°, sendo eles a atividade inventiva, aplicação industrial e a novidade, mas a lei também exclui algumas situações, de acordo com o artigo 10 da mesma legislação: Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I - descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos; II concepções puramente abstratas; III - esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização; IV - as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética; V - programas de computador em si; VI - apresentação de informações; VII - regras de jogo; VIII - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal; e IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais. Desta maneira ficam afastada as criações da moda seja pelo disposto no artigo 10, inciso IV, lei 9.279/96 ou pelo não preenchimento do critério da novidade uma vez que são consideradas criações de moda como estado da técnica. Apesar disto o INPI realiza registros oriundos do mundo da moda, principalmente das “fast Fashions”, sendo possível uma peça de vestuário ser patenteada como desenho industrial. Para isto este

27

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação;

terá que obedecer aos seguintes requisitos: Novidade, Originalidade, Industriabilidade e Legalidade. 4.2.DA LEI SOBRE DIREITOS AUTORAIS O instituto do direito autoral é mais receptivo ao direito e moda por sua própria natureza, mas em nenhum momento a lei 9.610/98 trata especificamente sobre moda, nem ao menos citando a palavra, de maneira que o mais próximo que chega é a expressão “artística”, possibilitando assim pelo fundamento do artigo 5°, inciso I, o registro de moda. Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - publicação - o oferecimento de obra literária, artística ou científica ao conhecimento do público, com o consentimento do autor, ou de qualquer outro titular de direito de autor, por qualquer forma ou processo;

IX - fonograma - toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual; X - editor - a pessoa física ou jurídica à qual se atribui o direito exclusivo de reprodução da obra e o dever de divulgá-la, nos limites previstos no contrato de edição; XI - produtor - a pessoa física ou jurídica que toma a iniciativa e tem a responsabilidade econômica da primeira fixação do fonograma ou da obra audiovisual, qualquer que seja a natureza do suporte utilizado;

II - transmissão ou emissão - a difusão de sons ou de sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas; sinais de satélite; fio, cabo ou outro condutor; meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético;

XII - radiodifusão - a transmissão sem fio, inclusive por satélites, de sons ou imagens e sons ou das representações desses, para recepção ao público e a transmissão de sinais codificados, quando os meios de decodificação sejam oferecidos ao público pelo organismo de radiodifusão ou com seu consentimento;

III - retransmissão - a emissão simultânea da transmissão de uma empresa por outra; IV - distribuição - a colocação à disposição do público do original ou cópia de obras literárias, artísticas ou científicas, interpretações ou execuções fixadas e fonogramas, mediante a venda, locação ou qualquer outra forma de transferência de propriedade ou posse;

XIII - artistas intérpretes ou executantes - todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore.

V - comunicação ao público - ato mediante o qual a obra é colocada ao alcance do público, por qualquer meio ou procedimento e que não consista na distribuição de exemplares; VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido; VII - contrafação - a reprodução não autorizada; VIII - obra: a) em co-autoria - quando é criada em comum, por dois ou mais autores; b) anônima - quando não se indica o nome do autor, por sua vontade ou por ser desconhecido; c) pseudônima - quando o autor se oculta sob nome suposto; d) inédita - a que não haja sido objeto de publicação; e) póstuma - a que se publique após a morte do autor; f) originária - a criação primígena; g) derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária; h) coletiva - a criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma; i) audiovisual - a que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

XIV - titular originário - o autor de obra intelectual, o intérprete, o executante, o produtor fonográfico e as empresas de radiodifusão. (Incluído pela Lei nº 12.853, de 2013) Ressalto que o registro de Direitos autoral é realizado na Biblioteca Nacional e não no INPI. Não havendo comunicação entre esses locais de registro. De certo esse instituto não é o mais adequado a moda, pois não atende as necessidades do setor, visando mais a proteção literária e musical. Em certos pontos é mais aconselhável do que o INPI, pois pelo menos traz proteção ao caráter artístico das obras de moda, mas é omisso no caráter econômico. 4.3.DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Além dos designers de moda, dos estilistas, das indústrias de “fast fashion”, juízes, advogados... existem também os consumidores que podem ser lesados principalmente quando levado ao engano quanto a originalidade de determinado produto, violando direito básicos dos consumidores contido no artigo 6° do Código de Defesa do Consumidor.

28

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes pro-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


dutos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados; VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Universitária, 2003. BRASIL, Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Diretrizes de exame Análise de Marcas.– Diretoria de Patentes, 2012. Disponível em http://www.inpi.gov.br/ images/stories/downloads/pdf/diretrizes_de_analise_de_ marcas_17-12-2010. pdf. Acesso: 18/10/2014. BRASIL, Lei nº 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998, queAltera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil: Poder Legislativo, Brasília, DF, 19 fev 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm>. Acesso em 2/09/2013. BRASIL. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 2008. BRASIL, lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 GAUBERTI, Annabelle. “Droit du Luxe”. 2000 JIMENEZ,Guillermo C.; KOLSUN, Barbara; GOTTLIEB, George; MISTHA, Marc. Fashion Law: Key Issues in an Emerging Legal Discipline. em:.<http://www.grr. com/download/FashionLawNYSBA.pdf> acesso 25 jun 2015. LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 2012, pág. 53. SCAFIDI,Susan. Intellectual Property and Fashion Design. 2006. TOMAZETTE, Marlon. Teoria Geral e Direito Societário. Vol.1. 6° Ed. 2015

Notas de fim IX - (Vetado);

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. De grande relevância também se faz citar o instituto da concorrência desleal contido também no artigo supra mencionado, sendo este um dos artigos mais utilizados para a resolução dos conflitos de moda atuais, tendo em vista a omissão legislativa quanto à moda. 5 Conclusão A moda é setor relevante não só no Brasil, mas no mundo inteiro tendo questões jurídicas de grande repercussão sendo discutidas no mundo inteiro. Nos Estados Unidos a moda é tratada como um ramo emergente do direito e através dos estudos de Scafidi e tantos outros doutrinadores vêm construindo um setor de moda cada vez mais forte. A França possui maior tradição no mundo da moda, sendo até hoje a capital da moda, mas desde o ano 2000 vem sofrendo uma revolução no setor tendo uma alteração da postura jurídica, principalmente dos escritórios de direito, visando uma maior proteção a indústria do luxo, principalmente depois das crises econômicas e queda do setor da moda no país, com isto para continuar com a alta costura forte é necessário uma legislação forte e coercitiva. No contexto brasileiro a dualidade de registro (INPI x Biblioteca Nacional) deixam os designs e estilistas num limbo, onde nenhum dos registros da real proteção, tendo que documentar todo seu processo produtivo, contando com o uso do Direito do Consumidor para ter uma real proteção. REFERÊNCIAS ABRÃO, Eliane Y. Direito Autoral e Propriedade Industrial como espécies do gênero Propriedade Intelectual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, ano 86, v. 739, p. 86-95. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

29

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


PODER DIRETIVO (IUSVARIANDI)EM CONFRONTO COM O DIREITO DE RESISTÊNCIA Ana Rita Maciel Coutinho1 Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO:Este artigo foi elaborado a partir do estudo de doutrinas e análise da jurisprudência, bem como internet, links jurídicos e jornais. Tem por objetivo demonstrar a fragilidade do empregado ao exercer o seu direito de resistência em face do poder diretivo no âmbito da relação de emprego. O confronto entre poder diretivo e os direitos constitucionais assegurados ao empregado. Considerando-se, o conflito com as garantias constitucionais que protegem os direitos da personalidade (intimidade, vida privada, honra, imagem e sigilo de correspondência e de comunicações em geral, dentre outros), conforme disposto no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, bem como o manifesto abuso do poder diretivo do empregador busca-se estabelecer critérios para efetividade das normas. Embora a legislação brasileira não apresentar solução para o problema, em que pese à fragilidade do empregado por não ter a garantia do emprego, uma vez que no Brasil não há proteção contra dispensa arbitrária, e ser rechaçado pelo capitalismo exacerbado além do enorme contingente de mão de obra, decisões pertinentes e decisões justas com aplicação de indenizações podem ajudar a solucionar os conflitos entre o poder do empregador e a resistência do empregado no caso concreto. Ao final, conclui-se que não há regra absolutamente capaz de solucionar o conflito, devendo cada caso ser analisado em sua dimensão e valor, aplicando a justiça e a busca pelos direitos fundamentais, como melhor forma de razoabilidade e proporcionalidade. ABSTRACT: This article was compiled from the study of doctrines and case law analysis, as well as Internet links and legal newspapers. Aims to demonstrate the fragility of the employee to exercise their right of resistance in the face of the guiding power in the employment relationship. The confrontation between power steering and the constitutional rights guaranteed to the employee. Considering the conflict with the constitutional guarantees provided in Article 5, sections V and X of the Federal Constitution, which protect the rights of personality (intimacy, privacy, honor, image and secrecy of correspondence and communications in general, among others) as well as the manifest abuse of the directive power of the employer seeks to establish criteria for effectiveness of the rules. Although Brazilian law does not provide solution to the problem, despite the fragility of the employee for not securing employment and being hated by capitalism exacerbated beyond the huge pool of manpower, relevant decisions and decisions with the application of fair compensation may help resolve conflicts between the power of employer and employee strength of the case. Finally, we conclude that there is no rule absolutely able to resolve the conflict and each case is analyzed in its size and value, applying the search for justice and fundamental rights as the best form of reasonableness and proportionality. PALAVRAS-CHAVE:Poder. Relação de emprego. Direitos fundamentais. Privacidade. Intimidade. Princípios. Colisão de direitos. Dignidadehumana; proporcionalidade/ razoabilidade. KEYWORDS:Power; Relationship of Employment; Fundamental Rights, Privacy, Intimacy;Principles; Collision of Rights, Human Dignity; Proportionality/ Reasonableness. SUMÁRIO:1 Introdução; 2 O Poder Diretivo; 2.1 O Fenômeno do Poder e a Democracia;3 Direitos Constitucionais do Trabalhador em Face do Poder Diretivo; 3.1 Direitos Fundamentais; 3.2 Direito a Vida Privada; 4Crises no Direito do Trabalho e a Era do Capitalismo; 4.1 Flexibilização do Direito do Trabalho; 5 Dispensa Arbitrária; 5.1Convenção 158; 6 O Direito de Resistência; 6.1 A Luta pelo Direito de Resistência no Campo da Relação de Emprego; 7 Conclusão, Referências.

1 INTRODUÇÃO O poder diretivo é um tema que permeará o início deste trabalho, tendo em vista que tal fenômeno assume inúmeras formas dentro da dinâmica social, bem como na relação empregatícia. Em meio a várias relações vividas pelo homem, destacam-se as relações de emprego que na maioria são pautadas pelo confronto entre poder e resistência desde a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil. No capítulo 3 serão explanados os direitos considerados fundamentais, enfocados a partir do art. 5º da Constituição da República sob a ótica da dignidade humana e da valorização do trabalho como valores essenciais a relação de emprego, uma vez que tais relações privadas devem observar as normas e princípios constitucionais. Será comentado caso concreto e colacionadasalgumas jurisprudências. Em seguida, no capítulo 4, será feita a análise da influência do sistema econômico brasileiro nas relações de emprego, tendo em

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

vista que, diante do sistema econômico brasileiro não existe uma relação na qual não esteja presente a força do capitalismo gerando uma busca desenfreada pelo lucro ao ponto de suprimir direitos constitucionais do empregado como violação da sua imagem. Este poder quase sempre exteriorizado por um contrato de trabalho que não permiti qualquer tipo de resistência por parte do empregado por não ter a garantia de seu emprego além do problema gerado pela flexibilização. No capítulo 5 será feita a análise da dispensa arbitrária sob a ótica da Convenção 158 da OIT(Organização Internacional do Trabalho) em face das normas jurídicas do ordenamento jurídico brasileiro, visando explanar a função das normas em nortear e limitar o exercício do poder no contexto da relação de emprego. No segundo momento, o trabalho será desenvolvido em torno dos aspectos gerais do direito de resistência, expondo um breve relato da submissão, bem como será explanada de forma bem sucinta a luta pelo direito de resistência no campo da relação de emprego. A

30

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


análise deste tema será objeto de discussão do capitulo 6. A discussão geral se perfaz de um lado acerca da ordem jurídica que reconhece a legitimidade do exercício do poder pelo empregador, e, de outro, o direito de resistência do empregado que se coaduna ao princípio da dignidade humana, bem como o direito à vida, que, por consequência, resulta nos direitos de personalidade (intimidade, vida privada, honra e imagem), tendo em vista que o empregado tem o direito de resistir ao poder diretivo abusivo, imoral e ilícito. 2 PODER DIRETIVO Neste capítulo, será realizada uma sucinta explanação acerca do poder empregatício de forma a se concretizar em níveis distintos, chamados pela teoria jus trabalhista de poder diretivo, disciplinar, regulamentar e fiscalizatório. Durante décadas a teoria jus trabalhista buscou a origem destes poderes e a fixação da sua natureza jurídica, tal investigação é relevante uma vez que o fenômeno do poder empregatício gera consequências no interior da ordem jurídica brasileira. Ressalta-se que na maioria das vezes não há um equilíbrio entre poder diretivo e o direito de resistência, o que torna necessário medidas urgentes para que haja a efetividade das leis e consequentemente a geração de equilíbrio e limites entre as relações de emprego vividas entre empresários e seus empregados. Na busca pela compreensão da origem do poder empregatício foram eleitas algumas correntes, quais sejam correntes privatistas que se remete a ideia de propriedade privada, da corrente institucionalista que se reporta a empresa como instituição, da corrente publicística que se remete ao poder empregatício como delegação do poder público e finalmente das concepções contratualistas. Segundo Godinho (2009, p. 165) a propriedade privada, como título e fundamento do poder empresarial interno é talvez a corrente mais antiga dentre as concepções, remontando ainda aos primórdios do direito do trabalho. Entre todas as concepções, merece destaque a que atribui a existência jurídica do poder diretivo ao contrato de emprego. O pacto de vontades que dá origem a relação de emprego se materializa em um conjunto de direitos e deveres para ambas as partes e como a noção de contrato e extremamente ampla podendo abarcar várias tantas situações, inclusive hierárquica. Porém deve-se atentar ao fato de que o contrato de emprego embora perfaça sua origem na bilateralidade, pode muitas vezes se multilateralizar pela interveniência de terceiros dentro da dinâmica empresarial onde a busca pelo lucro não tem limites. Uma reflexão ilustra a pertinência deste capítulo. Observe-se que por trás do fenômeno do poder diretivo as empresas cometem extremos abusos como obrigar o empregado a usar uniformes contendo propagandas de diversos produtos, transformando-os em outdoors humanos, o que viola totalmente os direitos da personalidade contidos no art. 5º, incisos V, X e art. 7º ambos da Constituição da República(Acesso em: 20 set. 2015). Muitas empresas escondem por trás do poder diretivo uma face autoritária e retrógrada incompatível com as garantias fundamentais a que tem direito o trabalhador brasileiro. É sabido que o poder diretivo é atribuído ao empregador para determinar as regras de caráter organizacional de modo que possa o trabalhador cumprir as suas obrigações. Consiste basicamente no poder de organizar o espaço e as estruturas do processo de trabalho, orientando a totalidade das prestações de serviços. Assim, para que possa coibir os abusos, o poder do empregador deve ser exercido de acordo com os princípios gerais do direito e

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

de acordo com a s leis, qualquer outra forma de aplicação deve ser considerada ilícita e passível de reparação. 2.1 O Fenômeno do Poder e a Democracia Nas lições de Godinho (2009, p. 25) o poder é fenômeno que ocupa posição de destaque em qualquer ramo do conhecimento que tenha por objeto relações humanas. O fenômeno do poder assume diversas dimensões desde uma simples relação própria a estrutura familiar, como em casos mais amplos como poder econômico, político, ideológico e o poder no âmbito da relação empregatícia. A forma mais expressiva pela qual o fenômeno do poder se configura nos dias atuais e a Democracia. Essa integração entre o poder e a democracia é ainda mais evidente no âmbito da relação empregatícia. Há um nexo entre o mercado de trabalho e a sociedade política. Segundo Godinho democracia se inter-relaciona com trabalho livre, ainda que subordinado, eis um elemento sócio histórico essencial à compreensão do fenômeno democrático contemporâneo. O trabalho assalariado surge com a ruptura do sistema feudal ao longo da idade moderna, alcançando as relações de produção das indústrias, sendo a presença do trabalhador vinculada ao pode produtivo o fator essencial ao fenômeno da democracia. Por outro lado, na relação de emprego a liberdade é limitada, tendo em vista ao aderir a um contrato de trabalho, o trabalhador restringe a atuação de sua vontade ao aderir as cláusulas previamente estabelecida além da observação das normas trabalhistas obrigatórias que incidem sobre este contrato. Há, portanto, uma preponderância da vontade do empregador no âmbito da relação de emprego. Desse modo, mesmo que seja limitada a liberdade do trabalhador diante do poder do empregador, a presença da liberdade é fundamental na configuração da relação empregatícia e pressuposto para o fenômeno democrático. Nesse quadro surge uma legislação na forma de produto social que se conjuga com a atuação do trabalhador, figurando o padrão democrático da classe operária. Godinho (2009, p. 127) explica que poder e democracia são fenômenos que se integram em distintas dimensões da vida social. Elementos virtualmente conceituais da sociedade política contemporânea constituem também fenômenos recorrentes e relevantes à configuração das relações centrais que compõem a sociedade civil, hoje. No contexto destas últimas relações, os fenômenos da democracia e do poder cumprem papel crucial à estrutura e dinâmica da relação de produção básica ao sistema sócio produtivo atual – a relação de emprego. 3 DIREITOS CONSTITUCIONAIS DO TRABALHADOR EM FACE DO PODER DIRETIVO 3.1 Direitos Fundamentais Direitos fundamentais são direitos jurídicos e institucionalmente garantidos ao homem reconhecido na esfera do direito constitucional positivo do Estado em que vive o indivíduo. O direito à vida, à liberdade, privacidade, subsistência, igualdade, paz devem ser considerados fundamentais. Segundo Martins (2008, p. 665) a palavra fundamental tem o sentido de básico, essencial, necessário, indispensável. Ainda segundo o autor os publicitas alemães utilizam a denominação de direitos fundamentais. Esses autores usam a palavra grundrecht, que é proveniente da Constituição de Weimar, cuja parte II tratava dos “Direitos e Deveres fundamentais dos alemães. São os direitos previstos na Constituição, nas leis, nos tratados internacionais. A constitucionalização e a consolidação dos direitos fundamen-

31

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tais no Brasil se deram de forma gradativa, sendo marcada por retrocessos e avanços, sendo promulgação a Consolidação das Leis do Trabalho, somente em 1943. Somente com Constituição de 1988 que houve o destaque da matéria quanto aos direitos fundamentais, o que pode ser verificado no próprio preâmbulo ao fazer menção ao Estado Democrático de Direito e em vários artigos. Leciona Martins (2008, p. 67) que os direitos contidos no art. 5º da Constituição de 1988 não são exaustivos, mas meramente exemplificativos, pois o § 2º da mesma norma dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Os direitos e garantias fundamentais não estão apenas no art. 5º da Constituição, mas podem estar em outros dispositivos dela, desde que estejam previstos na Constituição. A Constituição não faz qualquer limitação no sentido de que estariam os direitos e garantias fundamentais apenas em seu art. 5º. O regime e os princípios adotados pela Constituição mostram que existem outros direitos fundamentais. Outros dispositivos da Constituição evidenciam que o ordenamento jurídico vigente se pauta pela lógica do direito social, tais como o artigo 1° que consagra o princípio da dignidade e o artigo 7ºque consagra os direitos sociais. O art. 5º além de assegurar o direito à vida também determina que todos são iguais perante a lei. A garantia à inviolabilidade do direito à vida, por consequência, resulta nos direitos de personalidade, quais sejam intimidade, vida privada, honra, imagem, sigilo de correspondência e de comunicações em geral. Em que pese tais valores acima transcritos, deve-se atentar que a intimidade se relaciona com privacidade, vida privada, sendo que todos esses valores convergem por traduzirem a noção de direito. Os direitos de personalidade e o princípio da dignidade se complementam, uma vez que são valores cultivados pelo homem e que se realizam juridicamente visando proteger o seu patrimônio moral em suas dimensões psicológica, social, ideológica, individual e estética. Desse modo, os direitos de personalidade são oponíveis erga omnes, inclusive no âmbito da relação de emprego, sendo irrelevante a circunstância de estar o empregado no local de trabalho, sob o poder de direção do empregador. 3.2 Direito à Vida Privada

Intimidade, palavra proveniente do latim intimu, ou seja, intimo é o que há de mais profundo e secreto. Nos dias atuais, em meio à busca desenfreada do capitalismo pelo lucro podemos verificar que a intimidade, embora seja garantida constitucionalmente não é respeitada pela maioria dos empregadores que sequer reconhecem o fato de que o trabalhador tem direito a proteção de sua intimidade. A constituição de 1988 assegura em seu art. 5º, V o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. E ainda, dispõe no inciso X do ar. 5º que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Diante do comando legal, o empregador deve respeitar os direitos do trabalhador e não exigir do empregado a prática de atividades que o exponha a situações constrangedoras ou vexatórias, pois um dos princípios constitucionais é a dignidade da pessoa, o que compreendi os direitos a vida, intimidade, imagem entre outros.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou uma grande empresa a pagar indenização de cinco mil reais por uso de marcas de produtos de fornecedores em uniforme dos empregados sem a autorização do trabalhador. (Acesso em: 16 out. 2015). Apesar de todas as atribuições do trabalhador prevista em contrato de trabalho, deve-se atentar ao fato de que a determinação de uso de uniforme com logotipos de produtos comercializados, sem a concordância do empregado ou mesmo pagamento para isso, “viola seu direito de uso da imagem”. Note-se que o art. 20 do Código Civil de 2002 proíbe expressamente a exposição da imagem de uma pessoa ao ponto de lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais. Mais interessante, ainda, é o fato de que o discurso capitalista distorce a verdade dos fatos fazendo com que a sociedade seja conivente com este tipo de despropósito e entendendo que a empresa estaria utilizando o exercício regular do seu poder diretivo, e por isso, o fato não representaria ofensa à honra ou à imagem do trabalhador além de que não haveria exploração indevida e desautorizada da do trabalhador. No entanto, maquiar práticas ilícitas sob a alegação de exercício regular do poder diretivo não deve ser o comportamento das empresas, muito menos algo aceitável pela sociedade, uma vez que utilizar a imagem de uma pessoa, violar a sua vida privada, passar por cima dos seus direitos evidencia manifesto abuso do poder diretivo do empregador, devendo o trabalhador ser indenizado nos termos do art. 5º, incisos V e X. (Acesso em: 16 out. 2015). Claro que, alguns trabalhadores, nos arranjos sociais, tendem a buscar na justiça uma reparação ao dano sofrido a sua imagem e a vida privada, mas tantos outros preferem ou se veem constrangidas a se calar, pois precisam do emprego para sobrevivência de sua família. É por isso que, espera-se que seja aplicada as leis e que a Justiça do Trabalho evite o aviltamento da condição social e econômica do empregado fornecendo um patrimônio jurídico eficaz e sólido de modo a desestimular os empregadores dentro da relação de emprego a práticas abusivas como destinar a imagem de seus empregados para fins comerciais sem a sua autorização e sem o pagamento devido. Não é possível, portanto, vislumbrar uma relação de emprego que não seja pautada nas bases legais e morais para o desenvolvimento de uma sociedade totalmente capitalista. Foi por acreditar na aplicação da lei e buscando salvaguardar os direitos fundamentais do ser humano e tendo em vista a dignidade da pessoa, é que recentemente os Tribunais do Trabalho tem decidido contra práticas de manifesto abuso do poder diretivo condenando as empresas ao pagamento de indenizações pelo uso indevido da imagem de seus funcionários. Desse modo faz-se necessário trazer ao conhecimento do leitor e enriquecimento deste trabalho alguns julgados: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. DIREITO DE IMAGEM. EMPREGADA DE SUPERMERCADO. ATENDENDE DE CAIXA. UTILIZAÇÃ O DE CAMISETAS COM PROPAGANDA DE FORNECEDORES DE PRODUTOS. Não é viável o conhecimento do recurso de revista por divergência jurisprudencial quando os arestos são inservíveis (Súmula n° 337 do TST) ou inespecíficos (Súmula n° 296 do TST), tampouco por violação de dispositivos de lei federal, quando a matéria é eminentemente interpretativa (Súmula n° 221 do TST). O TRT concluiu que é devido o pagamento da indenização por dano moral, por afronta ao direito de imagem, porque a reclamante, atendente de caixa, utilizava camisetas com propagandas de fornecedores de produtos, por imposição do supermercado, sem ajuste individual e sem remuneração correspondente. Agravo de instrumento a que se nega provimen-

32

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


to-. (AIRR-56840-68.2006.5.01.0001; DEJT 28.5.2010). AGRAVO DE INSTRUMENTO. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO POR USO DA IMAGEM. LOJA DE ELETRODOMÉSTICOS. UTILIZAÇÃO DE UNIFORME COM LOGOMARCAS DE FORNECEDORES. Caracterizada a divergência jurisprudencial, merece processamento o recurso de revista, na via do art. 896, -a-, da CLT. Agravo de instrumento conhecido e provido. II - RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO POR USO DA IMAGEM. LOJA DE ELETRODOMÉSTICOS. UTILIZAÇÃO DE UNIFORME COM LOGOMARCAS DE FORNECEDORES. A determinação de uso de uniforme com logotipos de produtos comercializados pelo empregador, sem que haja concordância do empregado ou compensação pecuniária, viola seu direito de uso da imagem, conforme dispõe o art. 20 do Código Civil. Tal conduta evidencia manifesto abuso do poder diretivo do empregador, a justificar sua condenação ao pagamento de indenização, com fulcro nos arts. 187 e 927 do mesmo diploma legal. Recurso de revista conhecido e provido.(RR-264100- 25.2010.5.03.0000; DEJT30.03.2011) E, como dito, a relação de emprego não pode estar sujeita a vontade livre e desenfreada das empresas sob uma perspectiva de interesses de que quem se vale de tais serviços, sobretudo porque a atividade capitalista precisa ser planejada e organizada de modo que a norma legal seja respeitada e a dignidade do trabalhador privilegiada a qualquer custo, por isso a justiça trabalhista já decidiu pelo cabimento de indenização por uso indevido da imagem em situações análogas. Até porque a vinculação na relação de emprego não retira do trabalhador o seu direito subjetivo fundamental, qual seja o direito da personalidade, que se introduz no contexto da proteção da dignidade humana, e que pode ser exercido em face de qualquer pessoa. Nas relações empregatícias o empregador deve encontra seus limites na ordem jurídica e no princípio da boa-fé. Os direitos de personalidade são garantidos ao trabalhador e devem ser exercidos em face do flagrante abuso do empregador, sendo agressão a esses direitos o trabalho em condições que explorem a imagem do trabalhador e, sobretudo a cessação da possibilidade de o empregado ser dispensado de forma arbitrária, tendo em vista que perde o meio de sua subsistência, sem sequer saber o motivo para tanto. 4 CRISES NO DIREITO DO TRABALHO E A ERA DO CAPITALISMO Inicialmente, a legislação trabalhista significou um importante marco teórico para impulsionar e maquiar a exploração capitalista sobre a força de trabalho do trabalhador brasileiro. Com o tempo a legislação trabalhista adquiriu valores próprios de um ramo do direito cujos propósitos passaram a ser divergentes dos propostos inicialmente, ser empregado passa a ser uma posição social relevante, sendo a aplicação da normatividade do Direito do Trabalho determinante para preservar esse valor. Mas, ao longo dos anos, a busca desenfreada pelo lucro, a era do capital determinando as regras do mercado e a submissão econômica do trabalhador foi gerando uma situação degradante e fatalmente a precarização das leis trabalhistas. Ao fazer uma análise passada do trabalho Viana (2006, p. 18), explica que devido às inúmeras contradições emergidas do sistema capitalista, movimentos sociais ligados aos trabalhadores se fortalecem por toda a parte. Por causa de sua organização, da intensidade das lutas e de sua imprescindibilidade na produção, já no início deste século houve um aumento no leque dos direitos fundamentais, alte-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

rando o conteúdo dos direitos individuais, principalmente no que diz respeito a uma relativização do conceito de propriedade. Com essa nova visão do direito do trabalho o Brasil é marcado pela transição de um Estado Liberal para um Estado Social onde se almejava a elevação da condição social e econômica do trabalhador para evolução do capitalismo. Embora estas são, apenas, linhas gerais do direito do trabalho em sua fase embrionária, é importante observar que no túnel do tempo, as peças que mantinham o jogo do poder sofrem grande transformação, dando uma outra feição ao direito do trabalho. Acreditar que a existência das leis seria suficiente para proteger o trabalhador seria um tanto bucólico por parte dos legisladores e da sociedade trabalhadora, uma vez que a economia é a principal responsável pelas regras do jogo na relação empregatícia. Segundo Viana (2006) pode-se dizer que o desenvolvimento do capitalismo nos anos cinquenta e sessenta, a chamada “era do ouro”, assenta- se sobre dois elementos básicos: inovação técnica e ampliação dos mercados. Se de um lado há um aumento na produtividade, através da incorporação de novas tecnologias à produção, de outro, como decorrência, recua a demanda de mão de obra. Para coordenar este tênue equilíbrio, o Estado intervém nas relações sociais e econômicas. Como se já não bastasse os conflitos de interesses e a falta de efetividade das leis surge um novo fenômeno sob a perspectiva de desenvolvimento das forças produtivas, é a globalização. Este fenômeno representaria um processo de integração dos povos em torno do comércio a nível internacional. É a derrocada dos Estados que perdem totalmente o poder de controlar a economia, e com isso, deixam de mediar às negociações entre trabalho e capital, vindo a recessão massacrar ainda mais os direitos do trabalhador e aniquilar de vez a sua resistência. No caso do Brasil, o país sempre esteve vulnerável a incidência de um período de recessão econômica, onde a economia brasileira sofre um declínio significativo na sua taxa de crescimento econômico, ou seja, haveria o decréscimo nas atividades comerciais, afetando diretamente as indústrias onde os empregados são afetados diretamente. Nessa fase o país enfrenta entre outras consequências, uma espécie de efeito dominó, onde a diminuição da disponibilidade de crédito acabaria por acarretar a diminuição do consumo e, consequentemente da produção levando as empresas a investir e produzir menos, vindo o tão temido desemprego. Imputar tão somente ao capitalismo e a má distribuição da riqueza a culpa pela vulnerabilidade do empregado que não pode resistir aos abusos do empregador que para aumentar o seu lucro utiliza-se muitas vezes de forma ilícita o seu poder diretivo seria no mínimo ingenuidade, uma vez que a falta de efetividade das normas já existentes, bem como a necessidade de leis que garantam o emprego ao obreiro também são fatores marcantes para configurar o conflito dentro da relação de emprego diante da impossibilidade de autodefesa do empregado em face do seu empregador. Apontar limites e possíveis soluções para controlar o abuso do empregador, que muitas vezes é camuflado pelas vestes de ser inerente ao poder exige uma releitura acerca dos valores, repensando a legislação brasileira diante do caso concreto e tendo em vista os direitos e garantias constitucionais. Por óbvio que o sistema econômico, como estruturado ainda nos tempos modernos, não tem o condão de proteger o empregado, pois o empregador não sofre sanções, ao contrário do empregado que não tem proteção contra aplicação de represálias por parte do empregador e vive no quadro de incertezas em relação à dispensa arbitrária, uma vez que a regra do art. 7º, I, da Constituição da República

33

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


é considerada não auto executável. É visível o faro de que o sistema capitalista apresenta contradições das quis o trabalhador não consegue escapar e, com a prevalência do mercado cada vez mais consumidor e para isso ocorrera uma incorporação tecnológica muito grande na busca de grandes produções em tempos menores, a eliminação da mão de obra proporcionara o aumento do exército de reserva, o que faz do trabalhador totalmente submisso ao poder diretivo do empregador. Há de se perceber que, adaptar o direito do trabalho aos desajustes do capitalismo ou validar juridicamente práticas das empresas, como por exemplo, banco de horas, não está ampliando a proteção dos direitos dos trabalhadores, sendo isso na verdade uma grande ilusão. Assim, é flagrante a relação de poder existente na relação de emprego sob a ótica de um capitalismo desenfreado, motivo pelo qual o ordenamento jurídico deve apresentar soluções acerca do conflito entre o poder diretivo e direito de resistência do empregado, não permitindo que a dispensa arbitrária faça do empregado um ser totalmente vulnerável e sem condições de exercer os direitos constitucionais como os direitos insculpidos nos artigos 7º e 5º, V e X, ambos da Constituição da República. 4.1 Desregulamentação do Direito do Trabalho Para Viana (2006, p. 23) interessa bastante, nos dias de hoje, o peso dos gastos do capitalismo com o trabalhador. Outrora bandeira de luta e fruto de conquistas, a remuneração deste vem sendo minada de todas as formas. Tudo isso sob a moderna expressão flexibilização das leis trabalhistas. Os países subdesenvolvidos como o Brasil, buscando adaptar aos novos tempos, e sob a desculpa de combater o desemprego vem cumprindo as pautas impostas pelas corporações internacionais e promovem significativas alterações no direito do trabalho. A flexibilização dos direitos trabalhistas foi defendida desde o início como um reflexo da inabalável da globalização. O pressuposto acerca da necessidade de transformações no Direito do Trabalho em prol do fortalecimento das empresas e da economia, não encontra qualquer respaldo moral, pois o que se pretende é tão somente a diminuição do custo do trabalho, ou seja, acredita-se que o custo do trabalho é elemento determinante na concorrência e que se algo não for feito todo o país terá a sequela da perda da corrida econômica. Como sustentado ao longo deste trabalho, o direito do trabalho deve garantir a integralidade a melhoria das condições de trabalho do trabalhador, preservando-lhe a dignidade e os direitos e garantias fundamentais e garantindo- lhe salários coerentes com a sua real forca de trabalho despendida. Nossa economia deve adotar critérios eficazes sem precisar fazer alterações ao direito de trabalho para proteger apenas o capital. É necessário impor limites legais para que as empresas não abusem de seus poderes. Segundo Viana (2006, p. 155) se nos conformamos em ceder inteiramente as sugestões que nos chegam prontas de fora, flexibilizando as normas laborais com foco tão somente no capital, acabamos por restringir a presença no mercado da maioria da população, dificultando a retomada do desenvolvimento. Conclui-se, portanto, que a flexibilização das leis trabalhistas tem pouco impacto para a economia, pois ao contrário do que alegam a despeito de servir para acabar com o desemprego, acaba por provocar um maior número de trabalhadores desempregados. 5 DISPENSA ARBITRÁRIA Nas lições de Jorge Souto maior (Acesso em: 10 set. 2015) a

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dispensa imotivada de trabalhadores, em um mundo marcado por altas taxas de desemprego, que favorece o império da lei da oferta e da procura e que impõe, certamente, aos trabalhadores condições de trabalho subumanas e diminuição de suas garantias e salários, agride a consciência ética que se deve ter para com a dignidade do trabalhador e, por isso, deve ser, eficazmente, inibida pelo ordenamento jurídico. O desemprego é o maior problema social da atualidade em uma sociedade capitalista causando a destruição emocional do ser humano atingindo totalmente a sociedade. A omissão na legislação trabalhista acaba por conferir aos empregadores certa facilidade jurídica para dispensarem seus empregados provocando um grande contingente de mão-de-obra, o que impulsiona o desemprego e favorece a insegurança nas relações trabalhistas. O fim para qual foi criado o direito do trabalho não é para satisfazer os interesses capitalistas, mas para proteger a relação de emprego para que a dignidade do empregado não seja violada e evitar o desemprego desmesurado. Sob este aspecto, é categórico o fato de que temos que sopesar que a dispensa imotivada de trabalhadores não foi recepcionada pela Constituição de 1988, visto que esta conferiu aos empregados, no inciso I do seu artigo 7º, a garantia da proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. Para afastar a hipótese da dispensa arbitrária deve-se considerar situações em que a dispensa do empregado se deu sob a forma motivada, ou seja, o trabalhador cometeu alguma falta que pode ser disciplinar, técnica, financeira e econômica nos termos do art. 165 da Consolidação das Leis do Trabalho. Explica Martins (2008, p. 176) que o ato arbitrário é praticado pelo empregador, ao dispensar o empregado sem justificativa. A justa causa é praticada pelo empregado. Ensina também o referido autor (2008, p. 176) que, a dispensa sem justa causa é a feita pelo empregador sem motivo dado pelo empregado. 5.1 Convenção 158 OIT (Organização Internacional do Trabalho) Em junho de 1982 na cidade de Genebra foi aprovada a Convenção 158 que trata do termino da relação de trabalho por iniciativa do empregador, entrando em vigor no âmbito internacional somente em novembro de 1985. Em 1988 foi encaminhado foi encaminhado o texto da convenção 158 da OIT(Organização Internacional do Trabalho)ao Congresso Nacional, sendo o parecer do poder executivo totalmente favorável Segundo Martins argumenta-se que Convenção 158 da OIT(Organização Internacional do Trabalho), contraria o inciso I, do art. 7º, da Constituição, que especifica que lei complementar irá tratar da proteção da relação de emprego contra dispensa arbitrária ou sem justa causa, prevendo também indenização compensatória. Como as convenções da OIT(Organização Internacional do Trabalho)são recepcionadas em nosso sistema jurídico com hierarquia de lei ordinária e não de lei complementar, desde que ratificadas, estaria violado o referido preceito constitucional. Há divergência doutrinária acerca da constitucionalidade da Convenção 158. Para Martins a Convenção não é inconstitucional, pois não colide com o inciso I do artigo 7º da Constituição em razão de que o artigo 10 da referida norma internacional remete o interprete à legislação e prática nacionais. No Brasil a aplicabilidade da convenção 158 coibiria as práticas abusivas do empregador ao utilizar o seu poder diretivo, pois ao dispensar o empregado teria que indicar os motivos da dispensa, sob

34

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pena do trabalhador discutir a questão em juízo. Ensina Martins que, caso não haja prova sobre a questão, o empregado tem direito ao pagamento de uma indenização, pois o inciso I do artigo 7º da Constituição exclui o direito de reintegração, prevendo apenas o pagamento de indenização, que no nosso sistema jurídico é o pagamento do aviso prévio, do levantamento dos depósitos do FGTS(Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e da indenização de 40%. Enfim, depois de tantas discussões a convenção 158 perde a sua vigência no Brasil em 1997, sendo denunciada pelo chefe do Poder Executivo. Em outras palavras, não tem o trabalhador brasileiro nenhuma garantia contra a dispensa arbitrária, vivendo em um plano marcado por sua vulnerabilidade e sendo acometido pelos devaneios cometidos pelas empresas sob o manto do poder diretivo. 6 O DIREITO DE RESISTÊNCIA O direito de resistência na forma prevista no ordenamento jurídico é um instituto que pode ser utilizado pelo empregado na insurgência contra o empregador para ter os seus direitos constitucionais, sobretudo dos direitos fundamentais consolidados. É importante que o trabalhador conheça as possibilidades jurídicas para garantir os seus direitos constitucionais coibindo a ação abusiva do poder diretivo do empregador. Nas lições de Viana (2006, p. 24), Prometeu enfrentou a cólera de Zeus para defender os homens. Cristo dava a outra face ao agressor, mas chicoteou os mercadores no templo. Lampião e Maria Bonita guerreavam na caatinga. Luther King e Malcom enfrentaram o ódio branco. Spartacus fez tremer as legiões. O Vietnã respirou bombas napalm até expulsar o inimigo. João dos Santos, pedreiro, 52 anos, perdeu o filho porque não tinha o remédio, não tinha o remédio porque não tinha dinheiro, não tinha dinheiro porque não tinha emprego, não tinha emprego porque reclamou do patrão, e reclamou do patrão porque não tinha dinheiro. Em todos os casos acima verifica-se a reação do homem, como elemento inerente a sua natureza. Diante do capitalismo e momentos marcados pela recessão, é necessária uma releitura da legislação trabalhista de modo que seja possível ao empregado se defender aos abusos do empregador sem medo de sofrer retaliações, sendo a pior delas o desemprego. Há um contraponto ao direito de resistência do empregado e o poder diretivo do empregador que na maioria das vezes age com excesso em seu controle, fiscalização e até na organização. Acredita-se que havendo consonância entre o poder diretivo e o direito de resistência haverá harmonia na relação de emprego. Entretanto, para que isso ocorra é necessário que o direito do trabalho crie condições de equilíbrio e que as leis sejam efetivadas. 6.1 A Luta pelo direito de resistência no campo da relação de emprego Desde o início dos primórdios o desafio do homem sempre foi resistir a desigualdade, a violência, e todo tipo de abuso em prol da sua sobrevivência. As lutas de resistência marcaram os tempos no Brasil. Quem nunca ouviu falar da luta contra a escravidão, da Balaiada, insurreição armada do Maranhão, da República dos Palmares em Alagoas, o banditismo no Nordeste, as greves no Estado de São Paulo, a ditadura de Getúlio Vargas, as lutas da igreja católica e sua ideologia de libertação, ao Plano cruzado em que os pecuaristas escondiam seus gados, o episódio Collor, os movimentos dos sem-terra, a luta de Chico Mendes na Amazônia, a resistência da mulher e a lei Maria da Penha, enfim todos exemplos de resistência demonstram que é inato

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ao ser humano resistir. Segundo Viana (2006, p. 43) a luta não é um elemento estranho ao direito, mas, ao contrário, integra a sua natureza. E é uma luta sem tréguas. Como o homem o direito nasce em parto doloroso e difícil. E se não defendido, não sobrevive. O direito de resistência aplicado no direito do trabalho não é diferente aos casos de lutas, uma vez que a história do trabalhador se confunde com a própria história do direito do trabalho e os princípios que norteiam o direito do trabalho estão contidos na constituição tendo como elemento fundamental a proteção da dignidade humana. Márcio Túlio Viana (2006, p. 69), citando Ihering, explica que se a luta faz parte da própria essência do direito, é no interior da relação de emprego que ela se trava de modo mais intenso, mais constante, e por vezes mais cruel. Na luta referida pelo autor participam empregados e empregadores. Os conflitos são frequentes no campo trabalhista. O trabalhador pode lutar com a lei, em face da lei e contra a desobediência do empregador. O contrato de trabalho autoriza o trabalhador a resistir ordens do empregador quando estas são abusivas, imorais e ilícitas. O poder hierárquico contratado não é absoluto. Embora o poder diretivo seja uma peculiaridade do contrato de trabalho, o direito de resistência surge como seu contra face, ambos caminham juntos, concomitantemente, observado que o uso irregular do primeiro pelo empregador faz nascer instantaneamente o segundo para o trabalhador. Por tudo isso, podemos concluir que o direito de resistência é uma garantia fundamental do trabalhador. Nesse sentido a jurisprudência tem evoluído, o que pode ser verificado pelos julgados colacionados a este trabalho em que a Empresa Ricardo Eletro foi condenada ao pagamento de indenização por uso de marcas e produtos de fornecedores em uniforme de seus empregados sem a autorização do trabalhador. Segundo o TST(Tribunal Superior do Trabalho) (Acesso em: 17 out. 2015) restou evidenciado manifesto abuso do poder diretivo, uma vez que o artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, que protegem os direitos da personalidade. 7 CONCLUSÃO O trabalho é uma forma de inclusão social, e os direitos fundamentais dos Trabalhadores são direitos que visam manter sua dignidade. O sistema capitalista e a corrida das empresas para driblar a concorrência, por si só, jamais pode justificar a prática abusiva das empresas sob a maquiagem de poder diretivo. A percepção rígida de poder se transmuda dentro da relação de emprego, passando este a ser considerado dento de uma relação jurídica contratual e complexa. O direito do trabalho surge como reflexo das lutas pelos trabalhadores sob a forma de resistência em prol da valorização do trabalho. No Brasil devido o ciclo da escalada do sistema capitalista é que o direito do trabalho foi fruto de uma reação popular, embora o trabalho seja para o capitalismo, apenas mais um fator de produção. A valorização do trabalho apresenta como algo que torna possível a sobrevivência do próprio capital, sendo a legislação trabalhista ponto crucial para tal valorização. O grande desafio é trazer harmonia para relação empregatícia, limitando o poder diretivo e dando condições de resistência ao trabalhador que diante da recessão econômica e o grande contingente de mão de obras se cala temendo o desemprego. Para reverter esta situação a qual vive o trabalhador brasileiro acreditamos numa possível solução, qual seja a vedação da dispensa arbitrária, efetividade das normas, alterações econômicas e mudan-

35

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ças na estrutura social. Além disso, faz-se necessário uma redefinição do direito do trabalho, resguardado os seus princípios e fundamentos para ter-se um direito mais forte, coerente estruturado, condizente com a realidade a que vivemos e, portanto, mais justo. É interessante notar que, mesmo sob a criação de um capitalismo desenfreado, vivemos dentro de um Estado Social devendo por isso, lutar pela valorização do trabalho e reconhecendo direitos como os trazidos pela convenção 158 onde é vedada a dispensa arbitrária. O direito de resistência é algo inerente a essência da raça humana, caminhando até sua positivação na constituição onde é consolidado os direitos fundamentais, bem como dentro dos textos legais. E mais, o direito de resistir deriva do abuso do poder diretivo. O direito de resistência é legítimo quando busca a concretizar os direitos trabalhistas. A condição para garantir o direito de resistência é a garantia do emprego.

NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhosacadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton. 2011.Disponível em:<http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Norm alizacao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 07 de abr. de 2015. Publicado por Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (extraído pelo JusBrasil) –Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/.../trt-7-judiciario>. Acesso em: 16 out. 2015. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 2000. TAUCEDA BRANCO, Ana Paula. A colisão de princípios constitucionais no direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 2007. VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 2006.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Revista dosTribunais, 2010. BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: <http://www.tst.gov.br>. Acesso em: 17out. 2015. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho.8. ed. São Paulo: LTr, 2009. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. ver., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2005. LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. – 7ª Edição – 5ª reimpressão. – São Paulo: Atlas, 2010. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério público do trabalho:doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo :LTr, 1998. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 19 ed., São Paulo: Atlas, 2004. MAIOR, Jorge Luiz Souto. A relação de emprego. São Paulo: LTR, 2008, v. II. MAIOR, Jorge Luiz Souto.Convenção 158 da OIT. Dispositivo que veda a dispensa arbitrária é auto- aplicável.Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 475, 25 out. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5820>. Acesso em: 10set. 2015. MAIOR, Jorge Luiz Souto. Jurisprudência trabalhista. Síntese Trabalhista. Porto Alegre, v. 17, n. 196, out. 2005. MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTR, 2000. MARTINS, Sérgio Pinto. Direitos fundamentais trabalhistas. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2008. MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho: doutrina e prática forense: modelos de petições, recursos, sentenças e outros. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2008. MINAS GERAIS. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região. Disponível em: <http://www.trt3.jus.br>. Acesso em: 20set. 2015.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

36

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O ASSÉDIO MORAL NO SERVIÇO PÚBLICO: a configuração do assédio moral na avaliação periódica de desempenho como ato de improbidade administrativa Angélica Aparecida da Silva1 Núbia Elizabette de Jesus Paula2 RESUMO: O presente trabalho visa demonstrar como a prática do assédio moral pode prejudicar não somente a saúde psíquica e a integridade física do servidor público como também pode afetar o serviço público como um todo, tendo seus efeitos refletidos na prestação do serviço público. Como não existe tutela específica desta conduta, cumpre demonstrar que a sua prática no ambiente público, por meio da avaliação periódica de desempenho, viola vários princípios norteadores da atuação da Administração Pública, tratando-se, pois, de conduta ímproba, devendo receber as sanções previstas na Lei n° 8.429/92. ABSTRACT: This paper aims to demonstrate how the practice of bullying can harm not only the mental health and physical integrity of civil servants but can also affect the public service as a whole, and its effects reflected in the provision of public service. As there is no specific protection of this conduct, we must show that his practice in the public environment, through periodic performance evaluation, violates several principles guiding the work of the Public Administration, in the case because of dishonesty conduct and should receive sanctions provided for in Law No. 8,429 / 92. PALAVRAS-CHAVE: Assédio moral; Serviço público; Princípios; Improbidade administrativa. KEYWORDS: Bullying; Public service; Principles; Administrative dishonesty. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O assédio moral e suas peculiaridades; 2.1 Definição; 2.2 Formas de assédio moral e suas consequências; 2.3 O assédio moral no serviço público; 2.4 A ausência de tutela específica contra o assédio moral; 3 A materialização do assédio moral na avaliação periódica de desempenho; 4 O assédio moral na avaliação periódica de desempenho como ato administrativo nulo; 5 Violação da finalidade do ato administrativo como violação aos princípios administrativos; 6 O assédio moral como ato de improbidade administrativa; 7 Considerações finais; Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO Durante a evolução da sociedade sempre surgiram conflitos entre os homens. Não seria diferente nas relações laborais, na qual a existência de um superior e um subordinado alimenta a prática de inúmeras arbitrariedades, causando prejuízos que afetam tanto a integridade física quanto psíquica do indivíduo. O assédio moral sempre existiu, mas somente a partir da década de 80 que o seu estudo passou a ter relevância entre a comunidade científica. O conceito de assédio moral (mobbing) foi desenvolvido pela psicologia do trabalho quando no desenvolvimento de um estudo sobre a perversidade nas relações sociais no ambiente de trabalho e as consequentes patologias psicossomáticas decorrentes dessa prática lamentável. (MAOEKA, 2012, p. 82-83) Mas, o assédio moral não ocorre apenas nas relações trabalhistas privadas, a sua incidência no serviço público é prática comum, numa intensidade maior e por um período de tempo superior àquele que ocorre nas repartições privadas. (HIRIGOYEN, 2011, p. 124) Isto ocorre devido às peculiaridades existentes no serviço público, dentre uma delas a estabilidade do servidor. O superior hierárquico que não detém controle funcional do subordinado se utiliza do assédio moral para subjugar, humilhar, amedrontar perseguir, coagir ou diminuir a autoestima dos servidores por motivos diversos. Diante de tão complexo tema e a frequência de casos de assédio moral nas relações de trabalho no mundo atual, principalmente sua ocorrência alarmante no serviço público, o presente trabalho

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

visa discorrer sobre o tema, sem, contudo, esgotar o assunto, pois muito ainda há que se fazer para prevenir e punir o assédio moral nas relações laborais. Necessário sempre discutir e estudar sobre os problemas sociais que ferem direitos dos indivíduos, principalmente no presente caso, onde ocorre a violência psíquica, tão grave quanto à física e que causa consequências ainda mais profundas nas vidas das pessoas que sofrem o assédio moral. Buscará se demonstrar os graves prejuízos que o assédio moral causa não só na vida do servidor público assediado, mas também a influência negativa no serviço público como um todo, pois além de ferir princípios da administração pública é ato de improbidade administrativa, devendo ser punido como tal. Por fim, será tratado o tema da avaliação periódica de desempenho realizada de forma negativa pelo assediador como instrumento de materialização do assédio moral contra servidor público, tratandose de ato administrativo que, além de ilegal é imoral, indo de encontro aos preceitos que devem ser seguidos pelo detentor de cargo público. 2 O ASSÉDIO MORAL E SUAS PECULIARIDADES 2.1 DEFINIÇÃO O assédio moral é um tipo de violência psicológica configurada na exposição dos trabalhadores a situações humilhantes, na qual o assediador persegue a vítima em atos que se prolongam por certo período de tempo, infligindo-lhe vários tipos de agressões que vão,

35

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pouco a pouco, destruindo a sua saúde física e mental. (SINASEMPU. Cartilha sobre assédio moral. Brasília, DF, 23 p.) Este tipo de violência pode causar, na maioria das vezes, sequelas ainda piores que uma violência física, pois o psicológico da pessoa que será afetado, sendo destruída, paulatinamente, a sua autoestima, a vontade de viver, a capacidade de se relacionar com as pessoas, a sua carreira profissional, a sua saúde, dentre outras inúmeras consequências graves e, na maioria das vezes, irreversíveis para a vítima. O precursor dos estudos sobre assédio moral, Heinz Leymann, apud Maoeka, define este tipo de violência como: [...] um processo de interação social pelo qual um indivíduo (raramente mais de um) é atacado por um ou mais (raramente mais de quatro) indivíduos, com frequência ao menos semanal e com duração de vários meses; levando a vítima a uma posição indefesa com um alto potencial de exclusão. (MAEOKA, Erika. A Violência na Administração Pública e o Princípio da Eficiência: O Assédio Moral e a Avaliação Periódica de Desempenho.São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 921, 2012, p.86.) O modus operandi do mobbing também é fornecido pelo precursor do seu estudo Heinz Leymann apud Maoeka: Na vida laboral tolera uma comunicação hostil e desprovida de ética que é administrada de forma sistemática por um ou poucos indivíduos, principalmente contra um único individuo, que é exortado a uma situação solitária e sem defesa prolongada, a base de ações de hostilização frequentes e persistentes (definição estatística: ao menos uma vez por semana) e ao longo de um prolongado período (definição estatística: ao menos durante seis meses). Como consequencia da alta frequência e da larga duração destas condutas hostis, tal mau-trato se traduz em enorme suplicio psicológico, psicossomático e social. (MAEOKA, Erika. A Violência na Administração Pública e o Princípio da Eficiência: O Assédio Moral e a Avaliação Periódica de Desempenho. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 921, 2012, p.86-87, 2012.) No mesmo sentido, a vitimóloga Hirigoyen define o assédio moral no trabalho como sendo: Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. (HIRIGOYEN, M.F. Assédio Moral: A violência perversa do Cotidiano. Rio de Janeiro, RJ: Betrand Brasil, 2002. p. 65). Observa-se a clara demonstração de que deve haver certa frequência nos atos de violência moral exercidos pelo assediador em face de sua(s) vítima(s), sendo este um fator imprescindível para diagnosticar a existência da prática desta conduta deplorável, além de distinguir o assédio moral de uma simples exasperação ou mesmo falta de preparo profissional do superior hierárquico nas relações trabalhistas. Em seu estudo, Hirigoyen elucida que a violência psicológica também pode ocorrer no ambiente familiar, podendo ser realizada entre pais e filhos ou ainda entre os casais, quando praticada por um dos parceiros, em relacionamentos onde impera a possessão e o poder. (HIRIGOYEN apud GUEDES, 2002, p.19) Da mesma forma, não é diferente no ambiente escolar, onde o assédio moral pode ocorrer tanto na relação professor/aluno ou mesmo entre funcionários e empregadores, sendo frequente sua incidência tanto em instituições públicas ou privadas.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

No entanto, é nas relações laborais que o assédio moral tem maior incidência, pois a relação de hierarquia e subordinação dos assalariados torna o ambiente propício para a atuação do assediador. 2.2 FORMAS DE ASSÉDIO MORAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS Existem três tipos mais comuns de assédio moral na classificação de Hirigoyen, podendo este ser ascendente, ou seja, do subordinado para o seu superior hierárquico; horizontal ou transversal que é aquele que ocorre entre os próprios colegas de trabalho, e, por último, o assédio descendente, que é o mais comum, ocorrendo do superior hierárquico para seus subordinados. (HIRIGOYEN, 2011, p.111-115) O assédio moral pode se manifestar de várias formas, inclusive podendo ocorrer vários tipos de assédio sendo cometidos em face de uma única vítima, aniquilando completamente a sua dignidade humana e/ou integridade física. As formas mais comuns de assédio moral são: isolamento; excesso de trabalho ou deixar o trabalhador na ociosidade propositalmente; ameaças; agressões e ofensas pessoais; ridicularizarão em público; desvio de função; delegação de tarefas impossíveis de serem realizadas ou ordens contraditórias induzindo o trabalhador a erro; condutas discriminatórias envolvendo trabalhadores doentes ou que sofreram acidente de trabalho e são reabilitados no serviço; mulheres grávidas; segregação de trabalhadores reintegrados ao serviço por sentenças judiciais, etc. (SINASEMPU. Cartilha sobre assédio moral.2015. Brasília, DF, 23 p.) Inúmeras são as formas de assédio moral como também são inúmeras as consequências que este tipo de violência acarreta para o trabalhador, podendo lhe trazer doenças físicas e/ou psicológicas, levando muitas vezes a pessoa se afastar do trabalho para realizar tratamento médico. Os reflexos de quem sofre os ataques do assediador, suportando humilhações por um período prolongado de tempo, são significativos e podem gerar estresse, ansiedade, distúrbios psicossomáticos, depressão, dentre outros graves problemas. (HIRIGOYEN, 2011, p.159-163) Mas, segundo especialistas, a consequência mais grave da prática de assédio moral é o aniquilamento por completo da integridade psíquica da vítima levando-a a um desequilíbrio tão grave que esta não vê outra alternativa a não ser retirar a sua própria vida, por não poder suportar as humilhações diárias em seu ambiente laboral. Como exemplo, pode-se citar o grande trabalho realizado pela médica Margarida Barreto, em pesquisa levantada para a elaboração de sua tese de mestrado, defendida no ano de 2000. A médica ouviu 2.072 trabalhadores, dentre homens e mulheres, de 97 empresas no Estado de São Paulo, dos quais 42% admitiram já ter sofrido humilhações no local de trabalho. Neste trabalho foi verificado que todos os 376 homens entrevistados admitiram que, além de usar drogas, especialmente o álcool, pensaram na possibilidade ou já tentaram cometer suicídio, observando ser uma tendência mais frequente entre os homens do que entre as mulheres. (GUEDES, 2004, p.114) Mas o assédio pode também trazer influências negativas para as empresas, como a redução na capacidade produtiva e da sua eficácia; elevada taxa de ausências por motivos de doença e despesas com processos judiciais. Segundo Guedes, “está provado que um trabalhador submetido à violência psicológica tem um rendimento inferior a 60% em termos de produtividade e eficiência, em relação a outros trabalhadores, e seu custo para o empregador é de 180% a mais.” (GUEDES, 2004, p.115) Não pode deixar de falar do prejuízo causado à Administração Pública quando a violência psicológica é realizada dentro do serviço público. Isto porque, quando o assédio ocorre em face de um servidor

36

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


em: < http://www.ensp.fiocruz.br/portal- ensp/informe/site/ materia/detalhe/11818 > Acesso em: 10 out. de 2015.)

público, a lesão não será limitada aos prejuízos causados a vítima, mas há também um reflexo na prestação do serviço público em si, e, consequentemente, será afetado o interesse coletivo. 2.3 O ASSÉDIO MORAL NO SERVIÇO PÚBLICO Como visto, o assédio moral é a manifestação do que há de mais perverso no ser humano, que se utiliza de sua posição nas relações trabalhistas para alcançar seus objetivos, profissionais ou mesmo pessoais, aniquilando a identidade do trabalhador. Sendo sua prática frequente nas relações laborais, o assédio moral não deixaria de estar presente no serviço público. O assédio moral no serviço público é considerado pelos especialistas como o mais grave, uma vez que suas consequências na vida das vítimas são as mais degradantes, pois o superior não detém controle sobre o vínculo funcional do servidor e por isso o assédio dura mais tempo. (HIRIGOYEN, 2011, p.124) A estabilidade é garantia constitucional prevista no art. 41 da CRFB que consiste na permanência no serviço público e não no cargo, assegurada ao servidor público estatutário nomeado para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público, que tenha cumprido o período de três anos de estágio probatório, devendo ter seu desempenho aprovado por comissão constituída para esta finalidade. Após a aquisição da estabilidade, o servidor somente perderá o cargo por meio de processo administrativo onde lhe serão garantidos o contraditório e a ampla defesa, por processo judicial transitado em julgado ou por insuficiência de desempenho verificada em avaliação periódica, conforme prevê o art. 41, § 1° da CRFB. Afora estas hipóteses, também há a possibilidade de exoneração do servidor público estável para adequação de despesas de pessoal aos limites fixados na Lei Complementar n.° 101/2000, que regulamentou o art. 169 da CRFB, este alterado pela EC 19/1998, devendo ser esta a última opção do Administrador Público, pois antes deverá reduzir em 20% as despesas com cargos em comissão e funções de confiança e, se ainda não for suficiente, promover a exoneração de servidores não estáveis. Como se nota, a estabilidade é um empecilho para o assediador quando este quer retirar alguém do seu caminho, pois não pode simplesmente demitir a vítima. Por isso o assediador humilha e persegue o servidor público até que este peça sua exoneração ou consegue removê-lo para outro local, situação esta que pode durar vários anos, causando consequências gravíssimas no psicológico e na saúde física do servidor. Em palestra realizada na Escola Nacional de Saúde Pública ENSP a médica e pesquisadora Margarida Barreto explica como é grave a violência moral nas empresas públicas e o seu tempo de duração: Não existe um local que não exista assédio moral. Ele ocorre em empresas privadas, empresas públicas, organizações não- governamentais, instituições filantrópicas, sindicatos e igrejas e em todo lugar onde há trabalhadores. O assédio nas empresas públicas está muito ligado às políticas de ascensão funcional e ao modelo de gestão. De certa forma, o que eu venho observando é que o processo tende a ser mais perverso e penoso do que nas empresas privadas, pois a pessoa suporta o assédio sempre com esperança de que, quando mudar o comando, as coisas mudem. Por outro lado, como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muitas vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, muitas vezes, faz com que ela volte a ser assediada. Nós já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio. (Disponível

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Os motivos do assédio podem ser variados, além da intenção de obrigar a vítima a pedir exoneração, a perseguição poderá ter como objetivo mudar a forma de proceder do trabalhador em relação a algum assunto como deixar de apoiar o sindicato, por discriminações de vários tipos, ou mesmo se dar por motivos políticos, o que ocorre com frequência com a mudança de chefes do executivo federais, estaduais e municipais. (SINASEMPU. Cartilha sobre assédio moral. Brasília, DF, 23 p.03) Outro fator de grande influência para que o assédio moral se desenvolva no serviço público é o fato de que os detentores dos cargos de direção e chefia não assumem o cargo em decorrência de sua capacidade técnica ou preparo profissional, mas sim por indicação política ou por laços de amizade ou de parentesco. Assim, os detentores de cargos no topo na hierarquia no serviço público, muitas vezes, não possuem o devido preparo para atuar em tal função, se utilizando do assédio para acobertar sua incompetência em exercer o cargo ocupado, assegurados pelos vínculos que os conduziram aquele posto. Mas a atuação do assediador na Administração Pública, quando a vítima específica que tutele o tema. Os atos de assédio moral no serviço público podem ser considerados como faltas disciplinares de acordo com o regramento jurídico do servidor. Em âmbito federal, nos termos da Lei n.° 8.112/90, as condutas de violência moral podem ser enquadradas como sendo violações ao dever de moralidade administrativa, de lealdade às instituições a que o servidor servir, além de poder ser consideradas como incontinência pública e escandalosa na repartição. Acrescenta-se ainda que a referida lei prevê proibições ao servidor público como valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em prejuízo da dignidade da função pública (art. 117, IX) e promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição (art. 117, V), proibições que são efetivamente violadas com a prática do assédio moral, podendo o acusado de assédio sofrer penalidades de acordo com a gravidade da irregularidade cometida, devendo, contudo, ser precedida de sindicância e processo administrativo disciplinar, garantido o contraditório e a ampla defesa. (SINASEMPU. Cartilha sobre assédio moral. Brasília, DF, 23 p.) Ademais, em decorrência do princípio da independência das instâncias, a vítima pode ainda requerer a reparação civil, no caso de indenização pelos danos morais e materiais sofridos, sendo o Estado responsabilizado objetivamente pelos danos que servidor público causar a outrem, podendo processar o assediador em ação de regresso para que este ressarça os prejuízos sofridos ao erário público. Isto demonstra o quão grave e prejudicial é a prática de assédio moral na Administração Pública, que acarreta inúmeros prejuízos financeiros como gastos com afastamentos e licenças por motivo de saúde, perda de funcionários eficientes e produtivos, reparação civil dos prejuízos, reestruturação do setor com a saída de um servidor público, mobilização da máquina administrativa para a apuração de casos de assédio, dentre outros. Por isso, em decorrência da gravidade deste tipo de violência, o assédio moral no serviço público também deve ser qualificado com ato de improbidade administrativa tendo em vista os graves prejuízos causados ao interesse público, além daqueles causados à vítima, pois a violação dos princípios administrativos atingidos com a sua prática causa prejuízo a toda a coletividade, que sãos verdadeiros destinatários do serviço público afetado.

37

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Ainda mais com a ausência de norma que efetivamente coíba e puna quem cometer tal tipo de atrocidade no ambiente do trabalho, tais servidores assediadores continuam a cometer atos de perversidade no serviço público, atuando totalmente contra as regras da ética administrativa e em claro desrespeito aos princípios norteadores da Administração Pública, cientes da sua impunidade em decorrência da omissão legislativa. 2.4 AUSÊNCIA DE TUTELA ESPECÍFICA CONTRA O ASSÉDIO MORAL

Apesar da importância e da gravidade deste problema social, tão presente nas relações trabalhistas, tanto privadas quanto públicas, não existe no Brasil uma legislação específica e de amplitude nacional sobre o assédio moral, apenas existindo legislações esparsas, estaduais e municipais, sobre o assunto. Diferente do que ocorre na França que desde 2002 tutela este tipo de violência no capítulo 4 da Lei de Modernização Social e na Argentina que criou a Lei n.° 13.168 aprovada em 2004, o Brasil ainda se mostra silente em relação ao assédio moral nas relações trabalhistas, apenas tutelando o assédio sexual como ilícito penal no art. 216-A do Código Penal Brasileiro. (Disponível em: <http://www.assediomoral. org/spip.php?rubrique23> Acesso em 07 out. de 2015) Esta omissão legislativa é um problema grave no Brasil, pois a incidência da violência moral nas relações laborais é até muito mais frequente que o assédio sexual, e não menos grave que este. Isto faz com que os assediadores se sintam livres para cometerem suas perversidades, muitas vezes até incentivados pela omissão legislativa sobre o tema, como se já não bastasse a grande dificuldade com a qual as vítimas têm para obter provas da violência que vem sofrendo. Este é outro grande problema, pois o assédio moral é um crime silencioso que muitas vezes não deixa vestígios e quando existem testemunhas que tenham presenciado este tipo de violência contra o trabalhador esta também se omite por medo de se tornar outro alvo deste tipo de perversidade. Atualmente existem vários projetos de leis no âmbito federal que buscam coibir a violência moral no local do trabalho, se referindo a expressão assédio moral ou coação moral, sendo uma lista disponibilizada pelo sítio eletrônico Assédio Moral.org, importante instrumento de ajuda e fornecimento de informações para as vítimas deste tipo de violência. Podemos citar o projeto de Lei n.° 2.369, originalmente apresentado em 2003, de iniciativa do Deputado Federal Mauro Passos, PT/ SC, que visa coibir a prática de assédio moral nas relações trabalhistas, sendo que desde 2010 a proposição esta sujeita a apreciação conclusiva pelas comissões. Dois projetos de lei para tipificação penal do assédio moral, Projeto n.° 4.742/2001 e n. ° 5.971/2001, de iniciativa do deputado federal Marcos de Jesus e Inácio Arruda, respectivamente. Em relação ao assédio moral no serviço público, existem as propostas de reforma da Lei n.° 8.112/90 por meio do Projeto de lei n.° 4.591/2001, de iniciativa da Deputada Federal Rita Camata, e Projeto de lei n.° 5.972/2001, de iniciativa do Deputado Federal Inácio Arruda, sendo que ambas dispõem sobre a aplicação de penalidades à prática de “assédio moral” por parte de servidores públicos da União, das autarquias e fundações públicas federais, sendo, contudo, arquivados. Como o mais importante e relevante para o presente trabalho, cita-se o Projeto de Lei do Senado de n.° 121/09, também de iniciativa do então Senador Inácio Arruda. Inicialmente proposto com a finalidade de estabelecer vedação à prática do assédio moral no serviço público federal, promovendo, para isso, alterações na Lei n° 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais) em seus art. 117 e art. 132, inciso XIII, incluindo o assédio moral como uma das transgres-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

sões puníveis com demissão. Contudo, devida a existência de um possível vício de iniciativa, em violação ao que dispõe o art. 61, § 1°, lI, c, da Constituição Federal, foi proposto um substitutivo pela Comissão de Constituição e Justiça, no qual tipifica o assédio moral como ato de improbidade administrativa visto ser a sua prática conduta que viola os princípios da administração pública, devendo, pois, ser incluído o assédio moral expressamente na Lei n.° 8.429/92. Para esta modificação do Projeto de Lei foi relevante a decisão do STJ que reconheceu o assédio moral de um ex-prefeito contra servidora municipal como ato de improbidade administrativa no julgamento do Recurso Especial (REsp) n°. 1286466/RS, ReI. Min. Eliana Calmon, no dia 3 de setembro de 2013. De acordo com o substitutivo, será considerado ato de improbidade administrativa: [...] coagir moralmente subordinado, através de atos ou expressões reiteradas que tenham por objetivo atingir a sua dignidade ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade conferida pela posição hierárquica (Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codt eor=1327348&filename=PRL+1+CTASP+%3D%3E+PL+8178/2014 > Acesso em: 30 out. de 2015) Tal proposta é um grande passo que precisa ser tomado pelo legislador brasileiro para ajudar a coibir e punir a prática deste tipo de violência tão presente no serviço público nacional. Em âmbito estadual, diversos Estados já possuem leis que proíbem a prática do assédio moral no serviço público, como São Paulo (Lei n.° 12.250/06), Rio Grande do Sul (LC n.° 12.561/06), Rio de Janeiro (Lei n.° 3.921/01), Mato Grosso (LC de 2009 que alterou a LC n.° 04/90) e Minas Gerais (LC n.° 116/2011, regulamentada pelo Decreto n.° 46.060/12). Fora estas, existem atualmente cerca de 56 leis municipais aprovadas que coíbem a prática de assédio moral no serviço público e mais outros 80 Projetos de Leis com a mesma finalidade. (Disponível em: < http://www.assediomoral.org/spip.php?rubrique20 > Acesso em: 07 out. de 2015) 3 A MATERIALIZAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL NA AVALIAÇÃO PERIÓDICA DE DESEMPENHO Como vimos o assédio moral não é prática comum apenas no ambiente de trabalho privado, possuindo também incidência nas repartições públicas com frequência maior e consequências ainda mais graves às vítimas deste tipo de terrorismo psicológico devido à estabilidade no servidor público, devendo, portanto, ser combatido de forma ainda mais efetiva. As formas de assédio moral no serviço público também costumam ser as mesmas, se utilizando o assediador de várias táticas perversas para desestabilizar e prejudicar o servidor assediado. Contudo, um dos instrumentos mais utilizados pelos assediadores no setor público é a avaliação periódica de desempenho, sendo este instituto utilizado de forma totalmente pessoal, como sendo mais um mecanismo para prejudicar a sua vítima, conforme elucida MAIA apud MAOEKA: Em muitos casos, o assediador aproveita este instrumento para humilhar, subjugar, diminuir “em números” o trabalho do servidor, provando o quão distante são as relações de poder que os cercam, mostrando, com isso, a superioridade do cargo que ocupa, em detrimento do hipossuficiente e dependente de “pontos”: servidor público. (MAOEKA, 2012, p. 103)

38

Na verdade, o que ocorre é uma distorção do instituto de ava-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


liação, usado ao bel prazer de pessoas titulares de cargo/função pública que deveriam estar atuando em prol do interesse coletivo e em concordância com os princípios da Administração Pública, ocorrendo, nestes casos uma verdadeira supremacia do interesse privado sobre o público. Hirigoyen (2011, p. 126) explica que no serviço público o assédio moral, quando vindo de um superior hierárquico direto, primeiramente se manifesta por meio da diminuição ou bloqueio da nota de avaliação. Isto por que: […] os argumentos de salário não dependem da competência, mas de um quadro de evolução da carreira, os servidores se preocupam muito com as notas de avaliação, pois fazem parte dos critérios de promoção ao escalão superior. Em certos órgãos, a nota é sempre máxima, salvo em caso de punição. (HIRIGOYEN, 2011, p. 126) No serviço público brasileiro há dois tipos de avaliação as quais os servidores são submetidos. A primeira é a avaliação especial de desempenho, realizada por comissão especial instituída para esta finalidade, sendo requisito indispensável para o servidor público adquirir a sua estabilidade depois de cumprido o estágio probatório, conforme dispõe o art. 41, § 4° da CRFB. O segundo tipo é a avaliação periódica de desempenho, criada com o intuito de levantamento de informações sobre a eficiência do servidor público, além de ser critério para a ascensão funcional do mesmo. Os dois tipos de avaliação são largamente utilizados pelos assediadores nas repartições públicas, mas vamos nos ater no presente trabalho à avaliação periódica de desempenho, por se tratar de uma ferramenta de uso frequente de assédio moral. A criação da avaliação periódica de desempenho foi introduzida no âmbito da Administração Pública Brasileira para atender, dentre outras medidas, o princípio da eficiência, acrescentado ao art. 37, caput da CRFB por meio da EC n.° 19/98, que trouxe ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução dos fins que cabem ao Estado alcançar. (DI PIETRO apud MAOEKA, 2012, p. 104) A avaliação periódica de desempenho é um instrumento que analisa o exercício das atividades dos servidores e ao mesmo tempo oferece meios para que o servidor possa ascender na carreira pública, por meio da progressão ou promoção, (além de outras regras previstas em leis disciplinadoras de regimes funcionais) incentivando a melhora na prestação do serviço público. A distinção da promoção e da progressão do servidor público pode ser assim definida: Naquela o servidor é alçado de cargo integrante de uma classe para cargo de outra, ao passo que na progressão o servidor permanece no mesmo cargo, mas dentro dele percorre o iter funcional, normalmente simbolizado por índices ou padrões, em que a melhoria vai sendo materializada por elevação nos vencimentos. (CARVALHO, 2014, p. 624) Nesse sentido, observa-se o quão dependente da avaliação é o servidor, o qual necessita da avaliação do superior hierárquico como uma das formas de progressão funcional, o que acaba sendo totalmente tolhida pelo assediador, que o avalia negativamente para prejudicá-lo. Se não bastasse, conforme inovação trazida com a EC n.° 19/98, o art.41, § 1°, inciso III da CRFB dispõe que o servidor estável, que tenha sido avaliado com insuficiência de desempenho, pode ser exonerado do cargo, devidamente comprovado em processo administrativo onde lhe seja sempre garantido o contraditório e a ampla defesa,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

e, conforme bem assinala CARVALHO (2014, p. 684), neste caso a necessidade do processo administrativo é ainda maior para se evitar arbitrariedades e perseguições, já antevendo a utilização do instituto para fins alheios ao interesse público, como na situação estudada. Nesse sentido, observa-se outra consequência grave do assédio moral, que além de trazer prejuízos incalculáveis à saúde do servidor pode levar a sua exoneração do cargo que ocupa, sendo, portanto, uma ferramenta de poder na mão de assediadores no serviço público. A exoneração por insuficiência de desempenho ainda deve ser disciplinada por lei complementar, o que ainda não aconteceu no ordenamento brasileiro, que deve analisar de forma ponderada o uso deste instituto. 4 O ASSÉDIO MORAL NA AVALIAÇÃO PERIÓDICA DE DESEMPENHO COMO ATO ADMINISTRATIVO NULO É por meio de seus agentes públicos que o Estado realiza materialmente os seus atos e manifesta a sua vontade, sob o regime de direito público, gozando das prerrogativas e obrigações que lhes são inerentes, como obedecer às regras e a princípios específicos. Conforme esclarece CARVALHO (2014, p.101) quando se pratica ato administrativo, a vontade individual se subsume na vontade administrativa, ou seja, a exteriorização da vontade é considerada como proveniente do órgão administrativo, e não do agente visto como individualidade própria. Quando um agente público realiza uma avaliação periódica de desempenho está atuando em nome do Estado, devendo atender ao fim a que este instituto é destinado, além de seguir as regras que lhe são próprias. Quando utiliza deste instituto como uma forma de assediar a sua vítima, além de ferir graves princípios norteadores do Direito Administrativo, também desrespeita um dos elementos dos atos administrativos, que é a sua finalidade. A finalidade do ato administrativo é um dos seus elementos, juntamente com a competência, o objeto, o motivo e a forma. Nas palavras de CARVALHO, pode assim ser conceituado: Finalidade é o elemento pelo qual todo ato administrativo deve estar dirigido ao interesse público. Realmente não se pode conceber que o administrador, como gestor de bens e interesses da coletividade, possa estar voltado a interesses privados. O intuito de sua atividade deve ser o bem comum, o atendimento aos reclamos da comunidade, porque essa é de fato a sua função. (CARVALHO, 2014, p. 120) Ademais, muitos autores entendem que a finalidade pode ser considerada como uma das facetas do princípio da impessoalidade, uma vez que a finalidade de atender ao interesse público deve ser sempre a determinante de toda atuação administrativa. Uma vez ocorrendo atuação diversa da busca da satisfação do interesse coletivo ocorre o abuso de poder sob a forma de desvio de finalidade. (CARVALHO, 2014, p. 120) Observa-se como os institutos estão interligados no caso de assédio moral no serviço público materializado no uso indevido da avaliação periódica de desempenho, uma vez que o servidor assediador usa o instituto de forma totalmente pessoal (prejudicar a sua vítima), praticando atos administrativos com o objetivo único de satisfação de interesses privados. Acrescenta-se ainda, clara violação ao princípio da moralidade administrativa, pois a conduta do servidor vai de encontro aos preceitos éticos que devem estar pautada a sua atuação no serviço público. Assim, ocorrendo o desrespeito ao elemento do ato administrativo da finalidade, a avaliação periódica negativa, com a intenção do assediador de prejudicar seu colega de trabalho, é ato nulo, pois, con-

39

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tém vício insanável, não podendo assim produzir efeitos no mundo jurídico, devendo o seu autor ser devidamente punido por esta prática. 5 VIOLAÇÃO DA FINALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO COMO VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS O direito administrativo não possui um código específico, possuindo leis esparsas que regulam a atuação do Estado, a relação deste com os seus administrados e de seus agentes públicos. Neste ramo do direito há a relevância muito grande dos princípios, sendo estes norteadores da atuação do Estado quando no exercício de suas funções administrativas, conforme definição de Celso Antonio Bandeira de Mello: Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhes a tônica que lhe dá sentido harmônico. (MELLO, 2009, p.53) Muita já se questionou sobre a força normativa dos princípios, mas atualmente é indiscutível o seu caráter imperativo, devendo ser obrigatoriamente observados por órgãos e entidades da Administração Pública em todos os poderes e níveis, sendo de extrema relevância para o regime jurídico- administrativo, conforme esclarece ainda MELLO: Violar um princípio é muito mais grave do que violar uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irreversível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. (MELLO, 2009, p.53) O art.37, caput, da Constituição da República enumera os princípios norteadores da atuação administrativa brasileira: legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência. Afora estes, ainda existem princípios disseminados ao longo da Constituição Federal e também em leis esparsas, explicitamente derivados destes acima ou mesmo estando implícitos em seu texto. Sabe-se que os princípios administrativos existentes não são estáticos e nem podem ser estudados isoladamente, pois muitos estão intrinsecamente ligados e até mesmo um único ato pode envolver vários princípios administrativos, devendo ocorrer uma interpretação conjunta e não isolada, conforme bem elucida JÚNIOR: Os princípios constitucionais da Administração devem ser compreendidos imbricados, de forma que cada um funciona como elemento constitutivo do outro. Assim, a agressão à moralidade administrativa implica na legalidade, dado que no cotejo entre motivos e a finalidade do ato se aloja na lei. A eficiência, sem a moralidade, não é eficiência administrativa, mas simples objetivo técnico-instrumental. A moralidade não se basta sem a impessoalidade, dado que qualquer estipulação moralmente válida pressupõe a isonomia dos destinatários da norma. A garantia da legalidade dos atos administrativos não prescinde da publicidade, que tem o efeito de torná-los obrigatórios. E assim por diante, numa infinita sobreposição de fatores sob variadas articulações. (JÚNIOR, 2008, p.6)

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Este entendimento tem ainda mais relevância ao se analisar o assédio moral no serviço público, pois, no caso em apreço, verifica-se a clara violação a vários princípios administrativos. A utilização da avaliação periódica de desempenho em discordância aos preceitos determinados na lei configura-se a uma atuação contrária ao princípio da legalidade, uma vez que o agente público se utiliza deste instituto para praticar o assedio moral no exercício de sua atividade funcional. No mesmo sentido, não é respeitado o princípio da impessoalidade, uma vez que o servidor atua com parcialidade na sua avaliação, esquecendo-se que administrar é uma atividade institucional e que toda conduta funcional do agente público sugere compromisso com a objetividade, isto é, imunidade ao subjetivismo patrocinador de vínculos pessoais negativos. (JÚNIOR, 2008, p.11) Ainda, se verifica desrespeito à moralidade administrativa, uma vez que a avaliação periódica é ato administrativo praticado por um servidor com violação a sua finalidade, sendo, portanto, ato ilegal e contrário a moral administrativa. Sabe-se que a moralidade administrativa diverge da moral comum, sendo a primeira relacionada a uma atuação pautada na ética, na boa-fé, na honestidade, no modo correto de agir com a res publica, conforme observa JÚNIOR: O princípio da moralidade administrativa é compreendido como a necessária correspondência entre os motivos determinantes da conduta administrativa e suas finalidades concretas. Então, é aferida sob a luz da coerente adequação de meios e fins, vale dizer, considera- se observada pelo fato de não se desviar da finalidade constante da lei, o interesse público, operando por meios legais. (JÚNIOR, 2008, p.14) Não há dúvida de que o assédio moral no serviço público é ato contrário a moralidade administrativa, visto que não há correspondência na atuação do agente assediador com a finalidade definida em lei, qual seja o interesse público, mas apenas a satisfação de anseios e interesses próprios, na sua vontade livre e consciente de prejudicar a sua vítima. 6 O ASSÉDIO MORAL CONSIDERADO COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA No direito brasileiro houve uma evolução histórica sobre a improbidade administrativa desde a Carta Constitucional de 1824 até a atual Constituição que instituiu o Estado Democrático de Direito. (SIMÃO, 2014, p. 70) A conduta ímproba recebeu tratamento no § 4° do art. 37 da Carta Magna, no qual o constituinte trouxe a aplicação de sanções de suspensão de direitos políticos, perda da função pública e ressarcimento ao erário, além da medida preventiva de indisponibilidade de bens, aplicadas aos sujeitos ativos de tais atos na esfera pública. Mas coube a legislação ordinária dar efetividade ao dispositivo constitucional, papel este desempenhado pela Lei n.° 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, instituto de defesa da moralidade administrativa, que veio a definir as condutas ímprobas, a forma de graduação das sanções, os sujeitos ativos e passivos e o seu procedimento administrativo e judicial. Muito de discute na doutrina administrativista a respeito do sentido de probidade e moralidade administrativa, visto que a própria Constituição da República e a Lei n.° 8.429/92 não conceituaram o que seja ato de improbidade administrativa. Há autores que consideram como termos distintos, tratando-se da probidade como um subprincípio da moralidade. Outros entendem que a probidade é um conceito mais amplo, porque não abarcaria

40

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


apenas elementos morais. Alguns ainda defendem que os termos se equivalem, sendo a moralidade um princípio e a improbidade a lesão a este princípio, sendo este o posicionamento de José dos Santos Carvalho Filho, que entende desnecessária a busca de diferenciação semântica, pois as expressões são utilizadas para o mesmo fim – a preservação do princípio da moralidade. (CARVALHO, 2014, p. 1088-1089) Interessante a compreensão do tema por FAZZIO JÚNIOR: Imoralidade e improbidade não são a mesma coisa, conquanto possam advir do mesmo tronco. A imoralidade é o oposto de um dos princípios constitucionais da Administração (o da moralidade), ao passo que a improbidade surge na lei n.° 8.429/92, como a antítese não de um princípio, mas do conjunto coordenado dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. (JÚNIOR, 2008, p. 72) Concluindo, o mesmo autor defende que o ato de improbidade administrativa é ato ilegal, fundado na má-fé do agente público que, isoladamente ou com a participação de terceiro, viola o dever de probidade administrativa, com ou sem proveito econômico, produzindo ou não lesão ao patrimônio público econômico. (JÚNIOR, 2008, p. 74) Em seu texto, a Lei n.° 8.429/92 tutela os atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito (art. 9°), atos de improbidade que causem danos ao erário (art. 10) e atos que atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11). É neste contexto que se enquadra o assédio moral na avaliação periódica de desempenho, visto se tratar ato que atente contra os princípios ordenadores da atuação pública. Dispõe o art. 11 da referida Lei: Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade as instituições. A agressão ao conjunto de deveres impostos aos ocupantes de posições administrativas constitui atentado contra os princípios constitucionais da Administração Pública (CF, art. 37, caput), pelos quais o agente público deve velar (art.4° da Lei de Improbidade Administrativa), conforme esclarece JÚNIOR. ( 2008, 164) Importa observar que o art. 11 da referida Lei, trouxe no seu caput atenção maior a valores imprescindíveis para a atuação do agente público, mas que não houve esgotamento de atos que possam se enquadrar como improbidade administrativa. Ademais, os incisos do citado artigo enumeram condutas de forma exemplificativa, não exaurindo ainda as possibilidades de condutas que podem ser sancionadas pela lei. É nesta hipótese que se enquadra o assedio moral como conduta ímproba, pois conforme demonstrado, a prática do terror psicológico no ambiente laboral das repartições públicas e, especificamente, na utilização da avaliação periódica, além de ser ato nulo, pois não cumpre com a sua finalidade, é também conduta que viola e fere vários princípios reguladores da atividade administrativa, quais sejam, a legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa. Ademais, verifica-se não se tratar de mera irregularidade cometida no âmbito do serviço público, uma vez que este age dolosamente, agindo de forma livre e consciente na utilização deliberada da avaliação periódica para prejudicar o servidor e assim satisfazer interesses próprios, desvirtuando a real finalidade deste instituto e prejudicando o servidor público assediado, causando-lhe graves problemas de saúde (física e psicológica) e, consequentemente, prejudicando a

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

prestação de serviço público de forma eficiente. A configuração do assédio moral no serviço público como ato de improbidade administrativa já possui um precedente jurisprudencial por meio do provimento do Recurso Especial n.° 1.286.466- RS. (2011/0058560-5) pelo Superior Tribunal de Justiça, no qual reconheceu o assédio moral como ato de improbidade administrativa, previsto no art.11, caput, da lei 8.429/92. O referido julgado trata-se de Ação Civil Pública de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, proposta pelo Ministério Público Estadual em decorrência de atos praticados pelo ex-prefeito da cidade de Canguçu/RS que teria perseguido a servidora Célis Terezinha Bitencourt Madrid que denunciou a existência de dívida do município com o Fundo de Aposentadoria dos Servidores Públicos. O ex-prefeito teria se valido de seu cargo para submeter a servidora a situações constrangedoras, afastá-la de suas funções e realizar ameaças. Para a relatora ministra Eliana Calmon o que ocorreu com a servidora pública foi um caso clássico de assédio moral, agravado por motivo torpe, acertadamente observado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que estavam presentes ao caso todas as características inerentes ao assédio moral. ((RESP n.° 1.286.466RS.2011/0058560-5) Apesar da dificuldade probatória, a servidora assediada conseguiu comprovar a perseguição sofrida no ambiente público, facilitando assim a análise do caso que culminou, acertadamente, na configuração do assédio moral como ato que afronta dos princípios reguladores da Administração Pública, destacando-se o entendimento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no referido acórdão: A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pública todos os agentes que demonstrem pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. A partir dessas premissas, não tenho dúvida de que comportamentos como o presente, enquadram-se em ‘atos atentatórios aos princípios da administração pública’, pois ‘violam os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições’, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. (RESP n.° 1.286.466RS.2011/0058560-5) A configuração do assédio moral como prática de improbidade administrativa foi uma decisão inovadora no direito pátrio, tendo em vista que é prática habitual do agente público brasileiro se utilizar da máquina pública para satisfazer interesses pessoais, atitude totalmente contrária ao princípio vetor da Administração que é a supremacia do interesse público sobre o privado. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Observa-se a necessidade latente na implantação de medidas que coíbam a prática do assédio moral no serviço público, não somente na avaliação periódica de desempenho como nas outras inúmeras formas existentes no âmbito das repartições públicas. Se o servidor assediador se utiliza deste meio para levar a êxito seu objetivo de prejudicar o servidor assediado uma das formas de se evitar o desvirtuamento deste instituto seria a sua configuração como ato de improbidade administrativa. Pode-se notar que não consta o assédio moral dentre as condutas tipificadas na Lei 8.429/92, muito menos em outras leis, visto que este crime não foi ainda tutelado pelo direito pátrio. A caracterização do assédio moral, não somente o comprovadamente ocorrido na avaliação periódica de desempenho, mas todo aquele ato que interfere

41

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


negativamente na saúde do servidor bem como ao bom funcionamento do serviço público, é o primeiro passo para se buscar reprimir esta conduta tão frequente na administração pública. O assédio moral materializado na avaliação periódica de desempenho negativa por motivos pessoais caracteriza a prática pelo servidor de um ato administrativo nulo, pois este não esta cumprindo com um dos elementos do ato administrativo que é a sua finalidade, configurando prática de improbidade administrativa. O desvio de finalidade do ato, consequentemente, fere os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, vetores do regime jurídico administrativo e que devem ser seguidos obrigatoriamente pelos agentes públicos. Sendo assim, restou demonstrado que, mesmo não estando tipificado na Lei n°. 8.429/92 (LIA), o assédio moral no serviço público é considerado um ato de improbidade, pois fere os princípios da moralidade e da pessoalidade, podendo então enquadrar o agente público que o pratica nas hipóteses previstas no seu art. 11, imputando-lhes as penalidades previstas na supracitada lei. Este entendimento se mostra de extrema importância para o ordenamento jurídico brasileiro na atualidade, pois se deve buscar o quanto antes medidas que coíbam esta e outras práticas deploráveis realizadas por aqueles que ocupam cargos públicos, que, infelizmente, se utilizam da sua função para satisfação de interesses próprios em detrimento do interesse da coletividade.

GUEDES, Márcia Novaes. Terror Psicológico no Trabalho. 2ª Ed. São Paulo: Editora LTR, 2005. HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa do cotidiano. Trad. Maria Helena kuhner. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. HIRIGOYEN, Marie-France. Mal estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Trad. Rejane Janowitzer. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2010. JÚNIOR, Waldo Fazzio. Atos de Improbidade Administrativa: Doutrina, Legislação e Jurisprudência. 2ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2008. MAEOKA, Erika. A Violência na Administração Pública e o Princípio da Eficiência: O Assédio Moral e a Avaliação Periódica de Desempenho. Revista dos Tribunais, v. 921, p. 81 a 117, julho. 2012. MAIA, Derniere Temoteo Monteiro. Assédio moral aos servidores públicos do Poder Judiciário – Contornos de uma relação jurídica delicada. Disponível em: < http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10211 > Acesso em: 09 set. de 2015. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. SIMÃO, Calil. Improbidade Administrativa. Teoria e Prática. 2ª Ed. São Paulo: JH Mizuno, 2014.

Notas de Fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

REFERÊNCIAS ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO. Sitio com artigos, análises e informações diversas sobre o assédio moral no trabalho. Disponível em: <http://www.assediomoral.org/ > Acesso em: 07 out. de 2015.

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.292 p. BRASIL. Lei n.° 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Vade Mecum Compacto, São Paulo, SP, 15ª Ed, p. 1.255 – 1.278, 2014. BRASIL. Lei n.° 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Vade Mecum Compacto, São Paulo, SP, 15ª Ed, p. 1.333 -1.336, 2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.° 1.286.466- RS. (2011/0058560-5). Enquadramento de conduta de assédio moral praticada por servidor público como improbidade administrativa. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Odilon Almeida Mesko. Relatora: Ministra Eliana Calmon. Brasília, 03 de Setembro de 2013. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos. ea&tipoPesq uisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201100585605 > Acesso em: 25 set. de 2015. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projetos de leis e outras proposições. Projeto de Lei n.° 8.178/14. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra?codteor=1327348&filename=PRL+1+CTASP+%3D%3E+PL+8178/2014. > Acesso em: 30 out. de 2015. CARTILHA SOBRE ASSÉDIO MORAL NO SERVIÇO PÚBLICO. Brasília, DF: Sindicato nacional dos Servidores do Ministério Público da União, 2007. Disponível em: < http://www.ouvidoria.mppr.mp.br/arquivos/File/cartilha.pdf > Acesso em: 07 out. de 2015. ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA SÉRGIO AROUCA. Assédio moral: risco não visível no ambiente de trabalho. Disponível em: < http://www.ensp. fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/11818 > Acesso em: 10 out. de 2015. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2014.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

42

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ASPECTOS CONTROVERTIDOS EM RELAÇÃO À ATUAL REDAÇÃO DO ARTIGO 618 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E SUA APLICAÇÃO Arthur Senra Jacob¹ Omar Narciso Goulart Júnior² RESUMO: Pretende-se discorrer acerca da revogação do artigo 1.245 do Código Civil de 1916, em função da entrada em vigor do Código atual, em 2002, que passou a regular a matéria em seu art. 618. A partir da análise do parágrafo único que lhe foi acrescentado desde então, o presente estudo tem por escopo indicar as inovações da Lei Civil que indicam não ser mais possível o entendimento consubstanciado na Súmula 194 do STJ, a respeito do prazo prescricional aplicável à espécie. ABSTRACT: This paper intends to discourse about the revocation of the section 1.245 from the Brazilian Civil Code, from 1916, due to the promulgation of the current Code, in 2002, which passed to regulate the subject in its section 618. From the analysis of the unique paragraph added to it since then, this study has as is goal to indicate the innovation in the Civil Law which indicate that the rule contained in the precedent 194, from STJ, about the limitation period which should be applied to the case, should not be observed anymore PALAVRAS-CHAVE: contrato de empreitada; garantia; direito de ação; responsabilidade do empreiteiro. KEYWORDS: works contract; guarantee; action right; contractor’s responsibility SUMÁRIO: 1-Considerações Iniciais; 2-Da natureza do quinquênio previsto no caput do art. 618 do código civil; 3- Do prazo para a propositura de ação contra o empreiteiro; 4-Do prazo prescricional aplicável; 5- Considerações Finais; 6- Bibliografia.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao dispor sobre a responsabilidade do empreiteiro pela segurança e solidez da obra entregue ao proprietário, o Código Civil de 1916 trazia em seu artigo 1.245 a seguinte previsão: “Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo, exceto, quanto a este, se, não achando firme, preveniu em tempo o dono da obra.” Com a entrada em vigor do Código Reale, em 2002, a matéria passou a ser tratada no artigo 618 da nova codificação, oportunidade na qual o dispositivo teve seu texto alterado, passando a vigorar nos seguintes termos: “Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo”. Parágrafo único. “Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.” Diante de tal alteração promovida pela edição do novo Código, controvérsias surgiram acerca da interpretação do dispositivo, seu âmbito de abrangência, bem como da intenção legislativa ao incluir em seu novo parágrafo único um prazo para a propositura de ação em face do empreiteiro com vistas ao exercício do direito assegurado ao dono da obra.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

2 DA NATUREZA DO QUINQUÊNIO PREVISTO NO CAPUT DO ART. 618 DO CÓDIGO CIVIL Da leitura do caput, infere-se que o dispositivo legal em epígrafe estatuiu um quinquênio irredutível, dentro do qual fica o empreiteiro de materiais e execução responsável pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Em que pese tenham sido travadas discussões acerca de qual seria a natureza jurídica do quinquênio em questão à época, inexistem dúvidas atualmente de que se trata de simples prazo de garantia, despido de qualquer natureza prescricional ou decadencial, dentro do qual responde objetivamente o empreiteiro por quaisquer vícios relacionados à solidez e segurança da edificação. Nesse sentido, foi aprovado na 3ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça federal no ano de 2004, o enunciado 181, elaborado nos seguintes termos: 181 – Art. 618: O prazo referido no art. 618, parágrafo único, do CC refere-se unicamente à garantia prevista no caput, sem prejuízo de poder o dono da obra, com base no mau cumprimento do contrato de empreitada, demandar perdas e danos. No tocante ao âmbito de abrangência da garantia legal em questão, deve ser prestigiado o entendimento segundo o qual devem ser excluídos de sua tutela jurídica os defeitos de menor monta para a estrutura do edifício, assim considerados aqueles insuficientes a comprometer segurança ou solidez da obra, ou da saúde e bem estar de quem a venha habitar. Nesse sentido, merecem destaque as palavras de Arnaldo Rizzardo sobre o assunto: “A responsabilidade prevista no artigo 618 deve estar relacionada à segurança e solidez da edificação. Envolverá vícios de

43

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


fundamental importância para o prédio, e que comprometam as partes estruturais, a ponto de colocar em risco a integridade do prédio e a vida dos ocupantes. Nesta categoria, incluem-se o emprego de materiais inapropriados e de qualidade inferior, a falta de fundações profundas e que encontrem resistência no solo, a utilização de tijolos inconsistentes na estrutura, a insuficiência de ferragens nas vigas, a desproporção da medida na mistura de areia e cimento, a ausência de liga entre as paredes e de impermeabilização do teto.” (...) “Nos vícios do artigo 618 não estão compreendidas as imperfeições na qualidade, no aspecto externo, no acabamento, que denotam desídia, levando a entregar obra não condizente com o padrão prometido. Inconcebível que se admita um prazo tão longo para simples defeitos, como problemas de pintura, manchas nas paredes, mau funcionamento das fechaduras, vazamento nas torneiras, riscos no assoalho, instalação elétrica e hidráulica, e mesmo o emprego de certos materiais de uma qualidade inferior, desde que não se dê o comprometimento da segurança e da solidez.” (ARNALDO;RIZZARDO;2011;p.517) Sendo assim, se por desídia do empreiteiro vier a obra a ser maculada por tais imperfeições de menor relevância, o dono da obra deverá observar os prazos decadenciais previstos no art. 26, do Código de Defesa do Consumidor, para exigir sua correção em tempo hábil, já que o referido dispositivo consumerista dispõe sobre a reclamação por vícios aparentes ou de fácil constatação. “ Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito. Caso não se trate de uma relação de consumo, poderá dono da obra rejeitar a coisa, redibindo o contrato, ou reclamar abatimento proporcional em seu preço, conforme dispõem os arts. 441 e seguintes do Código Civil, onde se encontra a disciplina dos vícios redibitórios. Afirmativa em sentido contrário importaria violação à intenção do legislador, que, ao instituir garantia de tamanha extensão no caput do artigo 618, CC, tinha por objetivo proteger o dono da obra em face de vícios que, dada a sua gravidade, poderiam comprometer a estrutura da edificação e, eventualmente, causar sua ruína, podendo representar real risco á vida humana. Por tal razão, conferir a vícios de menor relevância, muitas vezes de caráter predominantemente estético, a mesma proteção jurídica, consistiria em medida contrária aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 3 DO PRAZO PARA A PROPOSITURA DE AÇÃo CONTRA O EMPREITEIRO. Conforme se depreende do que já foi exposto no presente estudo, o caput do artigo 618, Código Civil, prevê tão somente um prazo de garantia, cuja extensão é de 05 anos, durante o qual fica o emprei-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

teiro objetivamente responsável pelos vícios relacionados à solidez e segurança da edificação, e não por todo e qualquer vício que porventura surgir. Já o parágrafo único do mencionado artigo prevê que “Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.” Diante da literalidade do dispositivo, surgem dúvidas a respeito da harmonização entre a garantia prevista no caput e o prazo decadencial previsto no parágrafo único. Entende-se por prazo de natureza decadencial aquele que se destina ao exercício de um direito potestativo pertencente á esfera jurídica de seu titular, sendo certo que, ao contrário dos prazos prescricionais, os decadenciais, em regra, são inexoráveis, o que importa dizer que não admitem suspensão, interrupção ou impedimento. No tocante á distinção entre direitos potestativos e subjetivos, Agnelo Morim leciona que: “Segundo CHIOVENDA (Instituições, 1/35 e segs.), os direitos subjetivos se dividem em duas grandes categorias: A primeira compreende aqueles direitos que têm por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma prestação, positiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito passivo. Recebem eles, de CHIOVENDA, a denominação de “direitos a uma prestação”, e como exemplos poderíamos citar todos aqueles que compõem as duas numerosas classes dos direitos reais e pessoais. Nessas duas classes há sempre um sujeito passivo obrigado a uma prestação, seja positiva (dar ou fazer), como nos direitos de crédito, seja negativa (absterse), como nos direitos de propriedade. A segunda grande categoria é a dos denominados “direitos potestativos”, e compreende aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras, sem o concurso da vontade dessas. Desenvolvendo a conceituação dos direitos potestativos, diz CHIOVENDA: Esses poderes (que não se devem confundir com as simples manifestações de capacidade jurídica, como a faculdade de testar, de contratar e semelhantes, a que não corresponde nenhuma sujeição alheia), se exercitam e atuam mediante simples declaração de vontade, mas, em alguns casos, com a necessária intervenção do Juiz. Têm todas de comum tender à produção de um efeito jurídico a favor de um sujeito e a cargo de outro, o qual nada deve fazer, mas nem por isso pode esquivar-se àquele efeito, permanecendo sujeito à sua produção. A sujeição é um estado jurídico que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude dele. São poderes puramente ideais, criados e concebidos pela lei..., e, pois, que se apresentam como um bem, não há excluí-los de entre os direitos, como realmente não os exclui o senso comum e o uso jurídico. É mera petição de princípio afirmar que não se pode imaginar um direito a que não corresponda uma obrigação. (Instituições, trad. port., 1/41, 42).” Ao estabelecer que o dono da obra decairá do direito á garantia quinquenal assegurada no caput do art. 618, CC, caso não venha a ajuizar a ação contra o empreiteiro nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento de eventual vício ou defeito na edificação, o parágrafo único daquele artigo impõe um limite temporal para o exercício de um direito potestativo por parte do dono da obra, qual seja, o de acionar a referida garantia, impondo ao empreiteiro de materiais e execução um dever de sujeição ao referido direito. Em relação ao prazo de 180 dias para propositura da ação com vistas a exercer o direito à garantia contemplada pelo caput do artigo 618, constante do parágrafo único que lhe foi acrescido, há de se elogiar, ainda, a opção do legislador que, ao fazê-lo, rendeu homenagens ao secular princípio do neminem laedere, o que, nos dizeres de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias:

44

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


“... revela uma visível preocupação com a boa- fé objetiva do dono da obra perante o empreiteiro. Pois bem, respeitando a confiança do empreiteiro, caso o empreitante descubra algum defeito dentro do prazo legal de garantia (cinco anos), terá o direito potestativo de reclamá-lo em cento e oitenta dias, contados de sua descoberta” (ROSENVALD; NELSON; CHAVES DE FARIAS; CRISTIANO; 2013; p.849). Por todos os motivos já expostos, é possível afirmar com veemência a natureza decadencial do prazo em análise, já que consiste em um lapso temporal conferido ao empreitante para o exercício de um direito potestativo, qual seja, o direito de reclamar pela existência dos vícios através do exercício da ação com vistas ao acionamento da garantia quinquenal estatuída pelo caput do art. 618, in verbis: “Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo”. Nesse ponto, surge a seguinte pergunta: Qual seria o efeito prático do acionamento de tal garantia? Para responder a tal indagação, faz-se pertinente a seguinte menção á obra de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias: “É de se notar que são prazos de diferentes naturezas. O prazo de garantia (caput do art. 618 do Código Civil) é de cinco anos, contados da entrega da obra. Durante este lapso temporal, surgindo algum vício de solidez e segurança o empreendedor responde. Já o prazo decadencial para a reclamação de defeitos de solidez e segurança na obra (Parágrafo Único do artigo 618 da Lei Civil) é de cento e oitenta dias, a contar do conhecimento do vício. Então, se o vício é constatado após quatro anos e dez meses da entrega do prédio, o empreitante disporá do prazo de cento e oitenta dias a partir de então para exercer o direito de resolução contratual, apesar de já ter sido superado o quinquênio da garantia. Ou seja, se a obra foi entregue há um ano e o defeito é descoberto, a partir desse momento fluirá o prazo decadencial de cento e oitenta dias para que se reclame o defeito, com o desfazimento do negócio jurídico (ação redibitória) ou o abatimento do preço (ação estimatória ou quanti minoris). Ultrapassado esse prazo de cento e oitenta dias, a garantia restará esvaída, não sendo possível ao dono da obra reclamar o desfazimento do contrato. Nada impedirá, de qualquer sorte, que reclame eventuais perdas e danos, no prazo prescricional comum (três anos, se o contrato de empreitada for civil, e cinco anos, em se tratando de relação consumerista). (ROSENVALD; NELSON; CHAVES DE FARIAS; CRISTIANO; 2013; p.850). De acordo com os citados autores, uma vez descoberto o defeito, inicia-se a fluência do prazo decadencial de cento e oitenta dias, dentro do qual incumbe ao dono da obra intentar ação redibitória, com vistas a desfazer o negócio jurídico, ou ação estimatória, com vista á obtenção de abatimento proporcional no preço. No entanto, tal entendimento é passível de uma pequena correção, já que, nos termos em que afirmado pelos doutrinadores, incumbiria ao autor da ação optar entre o desfazimento do negócio ou seu regular prosseguimento com o devido abatimento no preço, de acordo com o que lhe fosse mais conveniente, o que consistiria em afronta ao princípio da conservação dos contratos, segundo o qual, diante de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

algum defeito passível de convalidação, prefere-se seu saneamento à resolução contratual, ainda que por via judicial. Perceba-se que o prazo decadencial em debate diz respeito tão somente ao exercício do direito de ação pelo dono da obra, caso este deseje acionar a garantia irredutível de que se trata no presente estudo. Caso se esvaia o prazo de cento e oitenta dias, somente o direito à garantia será extinto, o que não impede a propositura da ação discutindo dever de reparação civil, pois esta submete-se somente ao prazo prescricional de 03 anos previsto no §3º do art. 206, Código Civil, ou, tratando-se de relação de consumo, ao prazo prescricional de 05 anos previsto no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, o acionamento de tal garantia é feito sem que se discuta a existência de culpa por parte do empreiteiro em relação aos vícios apontados na edificação. Assim, caso pretenda o dono da obra, além de acionar a garantia legal em voga, obter em juízo reparação por perdas e danos oriundos da má execução contratual, tratar-se-á do exercício de pretensão à reparação civil, cuja inércia por parte do titular ensejaria, por sua vez, a ocorrência de prescrição, eis que, nos termos do artigo 189 do Código Civil de 2002 “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.” De tais afirmativas, infere-se que, na hipótese sob análise, incidem de forma concomitante três prazos legais de distintas naturezas, quais sejam, uma garantia legal, de cinco anos, um prazo decadencial de cento e oitenta dias para que se proceda ao acionamento de tal garantia, o que deverá ser feito mediante ação judicial, conforme exigência do próprio dispositivo de lei, e, por fim, um prazo de natureza prescricional para o exercício de eventual pretensão reparatória, se houver, sobre o qual paira atualmente forte controvérsia, o que será abordado em tópico específico deste estudo. Em caso de esgotamento da garantia quinquenal prevista no art. 618, estabelecida em favor do dono da obra, naturalmente restará ao dono da obra apenas o direito de reparação por eventuais perdas e danos experimentados, a ser exercido dentro do prazo prescricional pertinente, cuja contagem se iniciará a partir do conhecimento do defeito. Nessa situação, não se haveria de cogitar a existência de responsabilidade objetiva do empreiteiro pela reparação civil, já que aquela contempla como regra geral a modalidade subjetiva, somente podendo ser elidida por previsão legal ou convenção em sentido contrário, a não ser que se trate de relação consumerista, onde impera a regra de responsabilidade objetiva. 4 DO PRAZO PRESCRICIONAL APLICÁVEL No que diz respeito aoprazo prescricional para o exercício do direito à reparação civil, as opiniões dividem-se sensivelmente. Quando ainda encontrava-se em vigor o Código de 1916, o Superior Tribunal de Justiça, através da edição da súmula 194, afirmou que seria aplicável à situação em análise o prazo de vinte anos, concernente à regra geral de prescrição existente à época. “STJ Súmula nº 194 - 24/09/1997 - DJ 03.10.1997 Prescrição - Construtor - Indenização - Defeitos da Obra Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos da obra.” Em decorrência da referida orientaçãohá quem permaneça sustentando o entendimento de que, mesmo após o advento do Novo Código, o prazo a ser aplicado à espécie permanece sendo a regra

45

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


geral de responsabilidade civil do direito brasileiro (CC, art 927.). Nesse caso, o prazo para exercício da pretensão indenizatória será de três anos, se o negócio estiver submetido ao Código Civil, ou de cinco anos, quando o contrato estiver caracterizado como uma relação de consumo. Numa hipótese ou na outra, o termo inicial para a sua fluência é o conhecimento do fato,aplicada a tese da actio nata.

geral de prescrição, que foi reduzido de vinte para dez anos com a entrada e vigor da nova codificação. Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor. Para ilustrar o que ora se expõe, colaciona-se o seguinte o voto da lavra do Desembargador José Arthur Filho, da 9ª Câmara Cível do TJMG, relator no julgamento da Apelação Cível 1.0027.09.208941-9/001, ocasião na qual foi acompanhado na íntegra por seus pares. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - INDENIZAÇÃO - VÍCIO DE CONSTRUÇÃO - DANOS MATERIAIS - DECADÊNCIA PRESCRIÇÃO - APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL 2002. Aos defeitos verificados antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, não se aplica o prazo de decadência previsto no § único do art. 618, sem correspondente no Código revogado. Na pretensão de reparação de danos por defeitos construtivos em imóvel, o prazo prescricional a ser observado é o vintenário, previsto no art. 177 do Código Civil de 1.916, ou o decenal, previsto no art. 205 do Código Civil de 2002, respeitada a regra de transição prevista no art. 2028 deste último. STJ. (TJMG - Apelação Cível 1.0027.09.208941-9/001, Relator(a): Des.(a) José Arthur Filho , 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/03/2015, publicação da súmula em 23/03/2015)” Em que pese sejam inúmeros os arestos provenientes dos tribunais pátrios a sufragar entendimento idêntico ao aqui exposto, parece-nos tratar-se de grave equívoco interpretativo, a desconsiderar as novas regras de prescrição trazidas no bojo do Código Reale. Observe-se que o Código Civil de 2002 traz inovadora previsão em relação aos prazos prescricionais, passando a dispor especificamente sobre o prazo de três anos para o exercício de pretensão à reparação civil, fenômeno que jamais havia ocorrido durante a vigência de seu antecessor: “Art. 206. Prescreve: (...) § 3º Em três anos: V - a pretensão de reparação civil;” Desta feita, é compreensível que, ante a inexistência de regra específica de prescrição aplicável ao direito de reparação por danos oriundos da má execução do contrato de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, tenha o STJ, em 1997, chegado à conclusão de que a melhor opção seria aplicar à hipótese em estudo, residualmente, a prescrição vintenária, consistente na regra geral vigente à época. O que se mostra de impossível compreensão é o fato de que, mesmo após ter sido promulgada a nova Lei Civil, extremamente inovadora ao prever um triênio prescricional que perfeitamente se amolda ao objeto do presente estudo, seja tal previsão legal ignorada pelos tribunais pátrios para que se continue a prestigiar a já defasada súmula 194, STJ. Em defesa da aplicação do triênio prescricional nos dias atuais, contado da data do fato, assevera Nelson Rosenvald (2013): “De qualquer sorte, superado o prazo de garantia (cinco anos) – estabelecido em favor do dono da obra ou de terceiro adquirente neste período -, o empreiteiro continuará respondendo pelos eventuais vícios existentes na obra, desde que provada sua culpa (responsabilidade subjetiva com culpa provada pela vítima), como consagra o sistema

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Das informações expostas no presente estudo, infere-se que a responsabilidade objetiva do empreiteiro de materiais e execução pela solidez e segurança de seu trabalho, que dá ensejo á garantia com duração de, no mínimo, cinco anos, da qual o dono da obra é beneficiário, somente poderá ser invocada em se tratando de vícios de maior monta, que, dada a sua gravidade, poderiam comprometer a estrutura da edificação e, eventualmente, atentar contra a integridade física dos ocupantes do imóvel. A referida garantia quinquenal, conforme exaustivamente afirmado ao longo do texto, é despida de qualquer natureza prescricional ou decadencial, sendo certo que consiste tão somente em prazo dentro do qual responde objetivamente o empreiteiro por quaisquer vícios relacionados à solidez e segurança da edificação, não se admitindo discussão sobre quaisquer elementos subjetivos de sua conduta por parte do dono da obra ao acioná -la, o que será feito mediante o exercício do direito de reclamação por eventuais vícios. Ademais, percebe-se que, para poder exercer seu direito á garantia supracitada, o dono da obra é obrigado, por força da previsão contida no Parágrafo Único do artigo 618, Código Civil, a intentar ação contra o empreiteiro nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito, o que significa dizer que o Código inovou ao estabelecer prazo decadencial ( e não prescricional ) para o exercício de um direito de ação específico. E, no tocante ao prazo prescricional a ser aplicado a eventual pretensão á reparação civil, formulada pelo dono da obra em face do empreiteiro, caso a invocação da garantia quinquenal prevista no caput. do art. 618 não se mostre suficiente á resolução de todos os problemas decorrentes dos vícios apontados na obra, ressalta-se através deste trabalho, a necessidade de que seja aplicado à espécie, atualmente, o triênio prescricional contemplado no artigo 206 do Código Civil de 2002 em detrimento do vintênio previsto na antiga súmula 194, STJ, por ser o único entendimento amparado pela Lei Civil atualmente em vigor. BIBLIOGRAFIA Rosenvald, Nelson; Farias, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil, Teoria Geral e Contratos Em Espécie, 3ªed., Salvador: Juspodium, 2013. Agnelo Amorim Filho, Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-132, jan./jun. 1961. Rizzardo, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 1ª Ed., Gen, 2011. Tartuce, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos Em Espécie - Vol. 3, Gen, 2013. Enunciado 181 do Conselho da Justiça federal, 2004 (http://www.cjf.jus.br/CEJCoedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito- civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf)

46

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Repositório Oficial de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. (Apelação Cível 1.0027.09.208941-9/001, Relator(a): Des.(a) José Arthur Filho, 9ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/03/2015, publicação da súmula em 23/03/2015)” Código Civil de 1916 Código Civil de 2002 Súmula 194, Superior Tribunal de Justiça.

Notas de fim 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

47

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


RESPONSABILIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DO SÓCIO, GERENTE E ADMINISTRADOR DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO Bianca Gomes Modafferi1 Gustavo Henrique Carvalho da Mata2 RESUMO: O presente trabalho pontua as discussões acerca da responsabilização pelo credito tributário em relação ao sócio gerente e administrador da pessoa jurídica de direito privado a que se vinculam, com enfoque nas hipóteses dos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional. E tem por finalidade garantir o adimplemento do crédito tributário ou sancionar o responsável. Tenta-se propor uma solução pacificadora e ilustrar, através da doutrina e de jurisprudência, por meio de técnicas indutivas e dedutivas acerca dos diversos posicionamentos a respeito da matéria. Serão mencionadas algumas teses sobre o tema proposto, com indicação da resolução utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça da celeuma que se encontra sob a égide da sistemática dos recursos repetitivos. ABSTRACT: The present work punctuates the discussions about personal liability of directors’ managers or representatives of legal entities for the corporation’s tax debts, focusing on the hypothesis of Articles 134 and 135 of Brazilian tax code and it was designed to ensure the fulfillment of tax obligation or to sanction the legal responsible. First it will proposes pacifying solution and illustrate, through the doctrine and jurisprudence, through deductive and inductive techniques, concerning the different positions on the matter. Will be mentioned some theses on the topic proposed, with indication of the resolution used by the Brazilian Superior Court of Justice of the stir that lies under the aegis of the systematic repetitive resources. PALAVRAS-CHAVE: Direito Tributário; Obrigação tributária; Responsabilidade tributária; Natureza Solidária. KEYWORDS: Tax Law; Brazilian Tax Code; Tax Obligation; Subjective and Solidary Nature. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Natureza Jurídica da Imputação à um terceiro dos débitos tributários da sociedade empresária; 2.1 A Responsabilidade Tributária Indireta por Substituição; 2.2 A responsabilidade Tributária indireta por Transferência; 2.3 Teoria da responsabilidade objetiva e solidária; 3. Previsão do inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional; 3 4. Infrações para fins de imputação do crédito tributário ao terceiro; 4.1 Dissolução desregular da Pessoa Jurídica; 5. Considerações finais; Referências.

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho se propõe a abordar o tema da responsabilidade tributária dos sócios, com ênfase aos casos previstos no artigo 135, III do Código Tributário Nacional. O estudo se fundamenta nas várias formas de responsabilização sobre os débitos tributários da pessoa jurídica, uma vez que para esta é conferida grande autonomia patrimonial. Neste sentido o presente estudo busca e avança no que tange compreender o princípio da responsabilidade dos sócios pelos débitos tributários da sociedade. Com o fim de melhor entender o tema, é necessário tecer algumas considerações sobre os aspectos conceituais da natureza da obrigação tributária, os sujeitos dessa relação, bem como as espécies de responsabilidade tributária. Embora seja notório que a contagem de prazo prescricional para a Fazenda Pública promover o redirecionamento da cobrança do crédito tributário no âmbito da Execução Fiscal seja um dos temas basilares e fundamentais para discussão do assunto, estabeleceremos enfoque na compreensão lógica da imputação da responsabilidade tributária ao sócio e sua amplitude, estudando especificamente a previsão do artigo 134, e 135 do Código Tributário Nacional, o qual vem sendo, ao longo dos últimos anos, objeto de controvérsia no cunho doutrinário e jurisprudencial, especialmente junto ao Superior Tribunal de Justiça.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Um dos pontos a ser estudado está na identificação do sujeito passivo da obrigação, o qual conforme defendido pelo professor Luciano Amaro (2014), dependerá apenas de verificar quem é a pessoa que, à vista da lei, tem o dever legal de realizar o pagamento da obrigação, não importando em indagar qual o tipo de relação que ela possui com o fato gerador. Em detida análise do assunto, o STJ decidiu avaliar a matéria discutida no Recurso Especial de nº 1108031 - PR 2008/0269966-6, de relatoria do Ministro Sérgio Kukina, integrante de sua 1ª. Turma, visando, assim, à pacificação do tema nessa instância superior. Ademias, cumpre esclarecer que a responsabilidade Tributária tem previsão nos artigos 128 a 138, dividindo-a em “responsabilidade dos sucessores”, “responsabilidade de terceiros” e, finalmente, “responsabilidade por infrações”, contudo teremos como enfoque as possibilidades de responsabilização de terceiros e a responsabilidade por infrações. O referido diploma normativo esclarece que: Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

48

Outrossim, conforme estabelece o artigo 135 do Código Tributário

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Nacional, o terceiro será pessoalmente responsável pelos créditos tributários, respondendo inclusive com seu patrimônio pessoal, em virtude de ter praticado atos com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos, sendo esta a questão principal a ser explorada. É possível encontrar na problemática alguns pontos de grande relevância, particularmente no que diz respeito à natureza da responsabilidade tributária tratada pelo artigo 135 do Código Tributário Nacional. Considerando esse aspecto, estaríamos diante de uma hipótese legal de responsabilidade subsidiária, solidária, ou por transferência? Dessa forma, é necessário fazer algumas considerações sobre as classificações baseada na doutrina, pertinentes ao trabalho, em detrimento daquela trazida pelo Código Tributário Nacional, qual seja a responsabilidade por substituição, responsabilidade por transferência, por imputação legal, também chamada de responsabilidade de terceiros. A imputação do pagamento do débito tributário a um terceiro ocorre com uma modificação subjetiva do polo passivo da obrigação, portanto na posição que seria ocupada pelo contribuinte figura o responsável do qual será caracterizado conforme fatos e eventos que serão indicados pela lei. O objetivo não é esgotar os pontos tratados neste artigo, mas através de uma análise crítica indicar recursos para interpretação do tema, buscando não só a satisfazer a pretensão da Administração Pública, cujo montante arrecadado propicia o alcance de políticas públicas em benefício da população, mas também a garantir a segurança jurídica aos sujeitos passivos da relação tributária. 2. NATUREZA JURÍDICA DA IMPUTAÇÃO À UM TERCEIRO DOS DÉBITOS TRIBUTÁRIOS DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA É fundamental entender a natureza obrigacional relativa ao tema proposto, assim é possível identificar os dois polos da relação que envolvem os débitos tributários, quais sejam o polo ativo (credor) representado pelos entes tributantes, quais sejam, as pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados, Municípios e o Distrito Federal), bem como o polo passivo (devedor) representado por pessoas físicas e jurídicas, ou seja, contribuintes. Cumpre esclarecer que o termo responsabilidade e a pessoa que a detém, conhecida como responsável, serão tratados como uma das espécies de sujeito passivo da obrigação tributária, neste sentido o artigo 121 do Código Tributário Nacional dispõe: Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se: I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador; II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei. Assim pode ser denominado contribuinte quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador, ou responsável quando sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei, para tanto, os sujeitos passivos da relação tributária podem ser divididos em sujeito passivo direto e sujeito passivo indireto, sobre o tema, ensina Aliomar Baleeiro (2003): O Código Tributário Nacional reporta-se a fatos geradores que são situação de fato e a fato geradores que são situação jurídica. (...) O que o Código Tributário Nacional quer dizer é que existem certos fatos geradores que configuram singela execução ou situação de fato de obrigações oriundas de outros fatos jurídicos múltiplos e numerosos, em que a relevância tributária

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

não está posta no ato ou negócio mercantil originário, mas na execução ou efeitos concretos deles resultantes. Amílcar de Araújo Falcão (1971), antes do advento do Código Tributário Nacional, escreveu que o contribuinte seria identificado pelo interprete sem necessidade de menção a lei, tendo em vista que a simples realização do fato gerador já faria sobressair sua atribuição à pessoa. Neste sentido, seria satisfatório identificar a pessoa que aufira algum benefício para identificar sujeito passivo de uma obrigação tributária. De outra maneira, os outros sujeitos passivos são representados pela instituição de norma legal expressa, podendo a responsabilidade “ir da solidariedade à substituição completa do contribuinte” (Amaro, 2014). Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça proferiu o seguinte entendimento: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE. MONTADORA/FABRICANTE (SUBSTITUTA) E CONCESSIONÁRIA/ REVENDEDORA (SUBSTITUÍDA). VEÍCULOS AUTOMOTORES. VALOR DO FRETE. INCLUSÃO NA BASE DE CÁLCULO QUANDO O TRANSPORTE É EFETUADO PELA MONTADORA OU POR SUA ORDEM. EXCLUSÃO NA HIPÓTESE EXCEPCIONAL EM QUE O TRANSPORTE É CONTRATADO PELA PRÓPRIA CONCESSIONÁRIA. ARTIGOS 8º, II, “B”, C/C 13, § 1º, II, “B”, DA LC 87/96. ARTIGO 128, DO CTN. APLICAÇÃO. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535, DO CPC. INOCORRÊNCIA. [...] 5. Deveras, doutrina abalizada elucida o conteúdo normativo do artigo 128, do Codex Tributário: “O artigo pretende consubstanciar uma norma geral formalizada em duas ideias básicas, a saber: 1) a responsabilidade tributária é aquela definida no capítulo; 2) a lei, entretanto, pode estabelecer outros tipos de responsabilidade não previstos no capítulo a terceiros. O artigo começa com a expressão ‘sem prejuízo do disposto neste Capítulo’, que deve ser entendida como exclusão da possibilidade de a lei determinar alguma forma de responsabilidade conflitante com a determinada no Código. Isso vale dizer que a responsabilidade não prevista pelo Capítulo pode ser objeto de lei, não podendo, entretanto, a lei determinar nenhuma responsabilidade que entre em choque com os arts. 128 a 138. A seguir o artigo continua: ‘a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa’, determinando, de plano, que esta escolha de um terceiro somente pode ser feita se clara, inequívoca e cristalinamente exposta na lei. Uma responsabilidade, entretanto, sugerida, indefinida, pretendidamente encontrada por esforço de interpretação nem sempre juridicamente fundamentado, não pode ser aceita, diante da nitidez do dispositivo, que exige deva a determinação ser apresentada ‘de forma expressa’. Por outro lado, fala o legislador, em ‘crédito tributário’, de tal maneira que a expressão abrange tanto os tributos como as multas,quando assim a lei o determinar. Significa dizer que o crédito tributário, cuja obrigação de pagar for transferida a terceiros, sempre que não limitado, por força do CTN ou de lei promulgada nesses moldes, à tributação apenas, deve ser entendido por crédito tributário total. Em havendo, todavia, qualquer limitação expressa, a transferência da responsabilidade pela liquidação do crédito só se dará nos limites da determinação legal.” (Ives Gandra da Silva Martins, in “Comentários ao Código Tributário

49

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Nacional”, vol. 2, Ed. Saraiva, 1998, p. 232/234). 6. Nesse segmento, Paulo de Barros Carvalho, enfatizando que o substituído permanece à distância, como importante fonte de referência para o esclarecimento de aspectos que dizem com o nascimento, a vida e a extinção da obrigação tributária, consigna que: “A responsabilidade tributária por substituição ocorre quando um terceiro, na condição de sujeito passivo por especificação da lei, ostenta a integral responsabilidade pelo quantum devido a título de tributo. ‘Enquanto nas outras hipóteses permanece a responsabilidade supletiva do contribuinte, aqui o substituto absorve totalmente o debitum, assumindo, na plenitude, os deveres de sujeito passivo, quer os pertinentes à prestação patrimonial, quer os que dizem respeito aos expedientes de caráter instrumental, que a lei costuma chamar de ‘obrigações acessórias’. Paralelamente, os direitos porventura advindos do nascimento da obrigação, ingressam no patrimônio jurídico do substituto, que poderá defender suas prerrogativas, administrativa ou judicialmente, formulando impugnações ou recursos, bem como deduzindo suas pretensões em juízo para, sobre elas, obter a prestação jurisdicional do Estado.” (In “Direito Tributário - Fundamentos Jurídicos da Incidência”, Ed. Saraiva, 4ª ed., 2006, São Paulo, págs. 158/177) 7. Consequentemente, “o tributo é indevido pela concessionária nesse caso, não por que houve sua incidência na operação anterior, mas, antes, porquanto em sendo o regime da substituição tributária, técnica de arrecadação, e sendo uma das característica da técnica a consideração presumida da base de cálculo, nas hipóteses em que um dos dados que a integram não se realiza na operação promovida pelo substituído, deve o Fisco buscar a diferença junto ao substituto. Com efeito, cobrando o valor faltante do substituído, como faz o requerido, está considerando como sujeito passivo quem não figura na relação jurídico-tributária.” (REsp 865.792/ RS, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 23.04.2009, DJe 27.05.2009). [...] 9. Outrossim, ressalvando-se o entendimento de que a obrigação tributária admite a sua dicotomização em débito (shuld) e responsabilidade (haftung), merece destaque a lição do saudoso tributarista Alfredo Augusto Becker, segundo o qual inexiste relação jurídica entre o substituído e o Estado: “145. Embriogenia e conceito de substituto legal tributário (...) A fenomenologia jurídica da substituição legal tributária consiste, pois, no seguinte: Existe substituto legal tributário toda a vez em que o legislador escolher para sujeito passivo da relação jurídica tributária um outro qualquer indivíduo, em substituição daquele determinado indivíduo de cuja renda ou capital a hipótese de incidência é fato- signo presuntivo. Em síntese: se em lugar daquele determinado indivíduo (de cuja renda ou capital a hipótese de incidência é signo presuntivo) o legislador escolheu para sujeito passivo da relação jurídica tributária um outro qualquer indivíduo, este outro qualquer indivíduo é o substituto legal tributário. (...) 149. Natureza da relação jurídica entre substituto e substituído (...) Todo o problema referente à natureza das relações jurídicas entre substituto e substituído resolve-se pelas três conclusões adiante indicadas. O fundamento científico-jurídico sobre o qual estão baseadas as três conclusões foi exposto quando se demonstrou que a valorização dos interesses em conflito e o critério de preferência que inspiraram a solução legislativa (regra jurídica) participam da objetividade da regra jurídica e não podem ser reexaminados, nem suavizados pelo intérprete sob o pretexto de uma melhor adequação à realidade econômico-social. As

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

três referidas conclusões são as seguintes: Primeira conclusão: Não existe qualquer relação jurídica entre substituído e o Estado. O substituído não é sujeito passivo da relação jurídica tributária, nem mesmo quando sofre a repercussão jurídica do tributo em virtude do substituto legal tributário exercer o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte. Segunda conclusão: Em todos os casos de substituição legal tributária, mesmo naqueles em que o substituto tem perante o substituído o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte, o único sujeito passivo da relação jurídica tributária (o único cuja prestação jurídica reveste-se de natureza tributária) é o substituto (nunca o substituído). Terceira conclusão: O substituído não paga ‘tributo’ ao substituto. A prestação jurídica do substituído que satisfaz o direito (de reembolso ou de retenção na fonte) do substituto, não é de natureza tributária, mas, sim, de natureza privada. (...) 150. Inexistência de relação jurídica entre substituído e Estado A inexistência de qualquer relação jurídica entre substituído e Estado é conclusão que decorre facilmente das duas premissas já analisadas. Primeira: embriogenia e conceito do substituto legal tributário. Segunda: natureza da relação jurídica entre substituto e substituído. (...)” (Alfredo Augusto Becker, in “Teoria Geral do Direito Tributário”, Ed. Noeses, 4ª ed., 2007, São Paulo, págs. 581/586 e 595/601) 10. Impende ainda ressaltar que a transportadora não tem qualquer vinculação com o fato gerador do ICMS incidente sobre a comercialização de veículos, o que reforça a tese de que não subsiste qualquer saldo de imposto a ser cobrado da concessionária que contratou o serviço de transporte. [...] Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. (REsp 931.727/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe 14/09/2009 – grifei). No que diz respeito ao sujeito passivo direto ou contribuinte, se caracteriza pela pessoa, física ou jurídica, que tenha relação de natureza econômica, pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador (art. 121, parágrafo único, I, do CTN). Assim, “sua responsabilidade é originária, existindo uma relação de identidade entre a pessoa que deve pagar o tributo e a que participou diretamente do fato gerador, dele se beneficiando economicamente” (SABBAG, 2009). De forma indispensável a doutrina costuma estabelecer distinções entre responsável tributário e substituto tributário. Como dito, o próprio CTN, tem previsão para obrigar um terceiro ao pagamento de tributos, de que não é o contribuinte que se constitui na condição de responsável tributário, assim são ampliadas as subespécies de responsabilidade com características específicas. Outrossim, o sujeito passivo indireto pode ser apontado como responsável tributário, mesmo que não seja contribuinte, terá obrigação decorrente de expressa disposição legal e mesmo que não possua relação de natureza econômica, pessoal e direta com o fato gerador, terá sua responsabilidade derivada, pois decorre da lei e não da referida relação conforme parágrafo único, II do artigo 121 do CTN. Com o fim de estabelecer algumas garantias e limitar de certo modo o poder do estado em promover o debito tributário, a lei estabelece de forma expressa que o responsável deve possuir um vínculo indireto com a situação que corresponda ao fato gerador, assim a responsabilidade pelo pagamento de tributo não pode ser atribuída a qualquer terceiro. O Código Tributário Nacional delineou a responsabilidade tributária indireta de forma que pode ser dividida em responsabilidade por

50

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


substituição e por transferência. Conforme Eduardo Sabbag (2009) na substituição tributária o terceiro ocupará o lugar daquele que dá origem ao fato gerador, desonerando o contribuinte de quaisquer deveres; na responsabilidade tributária por transferência “terceira pessoa vem e ocupa o lugar do contribuinte após a ocorrência do fato gerador em razão de um evento a partir do qual desloca o ônus tributário para um terceiro escolhido por lei”. Por fim, em relação a natureza jurídica da responsabilidade, é uma problemática frente a doutrina, uma vez que enquanto alguns entendem que a responsabilidade tem natureza civil como Zenildo Bodnar (BODNAR, 2008, p. 81.), outros entendem que tem natureza tributária como Maria Rita Ferragut (FERRAGUT, 2007, p. 20.) e, em parte, Paulo de Barros Carvalho (CARVALHO, 2009, 352-359). Considerando as duas posições doutrinárias, parece ser correta aquela que afirma ter natureza jurídica tributária, uma vez que há uma mudança na sujeição passiva ampliando a responsabilização pelo débito tributário. Por fim, o credito tributário nasce do não pagamento obrigação, conforme dispõe o art. 139 do CTN, o qual, por conseguinte, tem a mesma natureza desta, ou seja, tributária, assim, conforme ensina MACHADO (2011, p. 172.) “o vínculo jurídico, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado (sujeito ativo) pode exigir do particular, o contribuinte ou responsável (sujeito passivo) o tributo ou da penalidade pecuniária (objeto da relação obrigacional)”. 2.1 A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA INDIRETA POR SUBSTITUIÇÃO A responsabilidade por substituição como dito, se refere a responsabilidade de que cuida o art. 135, existe a solidariedade desde o princípio da relação jurídica, o qual o responsável se coloca junto do contribuinte desde a ocorrência do fato gerador. A Fazenda credora pode dirigir a execução contra o contribuinte ou o responsável não importando, nesses casos, que o contribuinte tenha, ou não, patrimônio para responder pela obrigação tributária. Sobre o tema Paulo de Barros Carvalho ensina: “A responsabilidade tributária por substituição ocorre quando um terceiro, na condição de sujeito passivo por especificação da lei, ostenta integral responsabilidade pelo quantum devido a título de tributo. ‘Enquanto nas outras hipóteses permanece a responsabilidade supletiva do contribuinte, aqui substituto absorve totalmente o debitum, assumindo, na plenitude, os deveres de sujeito passivo, quer os pertinentes à prestação patrimonial, quer os que dizem respeito aos expedientes de caráter instrumental, que a lei costuma chamar de do nascimento da obrigação, ingressam no patrimônio jurídico do substituto, que poderá defender suas prerrogativas, administrativas ou judicialmente, formulando impugnações ou recurso, bem com deduzindo suas pretensões em juízo para, sobre elas, obter a prestação jurisdicional do Estado.” (In “Direto Tributário - Fundamentos Jurídicos da Incidência”, Ed. Sariva, 4ªed., 206, São Paulo, págs.158/17). Importante destacar o entendimento divergente de Alfredo Augusto Becker na obra Teoria Geral do Direito Tributário sobre o assunto, no qual entende que o substituto tributário sofre incidência jurídica, mas não econômica do fato gerador, uma vez que a capacidade contributiva é auferida em face do contribuinte e não do substituto. A sua inclusão tem finalidade de facilitar a arrecadação, ademais sustenta que o responsável nunca será o contribuinte tendo uma posição de fidúcia na relação jurídica e não de prestação tributária (Becker, 2007, p. 586-595).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

No que diz respeito ao tema central proposto relativo ao tipo de responsabilidade que seria atraído pelo administrador nos casos do inciso III do artigo 135 do CTN, temos uma divergência doutrinaria na qual para o professor Hugo de Brito Machado, sustenta que o administrador seria solidariamente responsável com o contribuinte, noutro ponto para a professora Misabel Derzi, a responsabilidade nesses casos seria substitutiva e, para o professor Leandro Paulsen, ela seria solidária, mas somente nas hipóteses em que a pessoa jurídica se beneficiasse do ato ilegal, ou praticado com excesso de poderes pelo administrador. Cumpre esclarecer que o significativo entendimento de Misabel Derzi em que se refere à responsabilidade por substituição no que diz respeito ao inciso III do artigo 135 do CTN, ficando apenas o responsável no polo passivo no lugar do próprio contribuinte. Uma crítica a aplicação da tese da responsabilidade subsidiária, para os fins de imputação à um terceiro da cobrança judicial do crédito tributário, é de que são criados fundamentos utilizados como impedimentos para o efetivo e ágil recebimento de débitos dessa natureza, não contemplados pela Constituição da República, sequer pelo Código Tributário Nacional, assim, em termos práticos, retarda a execução e por consequência a possibilidade de êxito na cobrança do crédito tributário, o que vai de encontro aos interesses da população. 2.2

A

RESPONSABILIDADE

TRIBUTÁRIA

INDIRETA

POR

TRANSFERÊNCIA

A responsabilidade por transferência de ônus, no qual a condição de sujeito passivo da obrigação tributária é transferida ao terceiro, pode ser verificada pela ocorrência de um fato posterior ao surgimento da obrigação, ademais também ocorre por expressa previsão legal. Essa transferência poderá excluir a responsabilidade do contribuinte ou atribuí-la em caráter suplementar. Cumpre frisar que a responsabilidade por transferência pode se derivar de três situações, quais sejam, a responsabilidade por solidariedade, a responsabilidade dos sucessores e a responsabilidade de terceiros, a qual constitui o objeto de análise do presente artigo. Para exemplificar e possibilitar uma melhor compreensão, sobre o tema ensina o Professor Luciano Amaro (2006, p. 308): “[...] a transferência, diversamente, dependeria de um evento cuja ocorrência viesse a deslocar para um terceiro a condição de devedor. A sucessão é apresentada como o exemplo mais típico de responsabilidade por transferência, pois a obrigação que era do sucedido desloca-se, em razão do evento sucessório, para a pessoa do sucessor”. Em suma, enquanto a responsabilidade por substituição a imputação do débito tributário ocorre antes da existência do fato gerador, na responsabilidade por transferência a sujeição passiva surge posteriormente à ocorrência do fato gerador, ambos previstos em lei. 2.3 A RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA

No que diz respeito a responsabilidade pelos débitos tributários da pessoa jurídica, há também a possibilidade de ser imputada de forma objetiva (independente de dolo ou culpa) a seus administradores. Neste sentido, seria permitido que o mero inadimplemento da obrigação tributária pela pessoa jurídica ensejaria a inclusão em dívida ativa do nome de seus administradores, na condição de devedores solidários. Estas as palavras de Hugo de Brito Machado sobre a questão: Se o não pagamento do tributo fosse infração à lei capaz de ensejar a responsabilidade dos diretores de uma sociedade por quotas, ou de uma sociedade anônima, simplesmente inexistiria qualquer limitação da responsabilidade destes em relação ao Fisco. (1997, p. 113).

51

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Há doutrinadores que entendem pelo caráter sancionador da norma tributária, esta ideia decorre da possibilidade de responsabilidade solidária da lei. No que diz respeito a casos semelhantes “um sujeito pode ser obrigado a cumprir a prestação tributária a título de sanção, em decorrência do inadimplemento de deveres fixados por outras normas tributárias” (Gian Antonio Michelli, Curso, cit., p. 144 apud AMARO, 2006). Neste sentido, delineia-se que haveria um definição sancionadora na obrigação tributária, embora sua estruturação legal não seja a de sanção de ilícito. Possível notar a tendência de construir a responsabilidade solidária como uma obrigação de garantia assimilável a figura da fiança (Ramon Falcon y Tella, La solidariedad tributaria, RDT, n. 35. p. 39 apud Luciano Amaro, 2006). Esta ideia, foi amplamente amparada pelo Superior Tribunal de Justiça a alguns anos, quando passou a perder força, ao passo que atualmente é uma espécie praticamente extinta. Ademais, ultimamente o tema já foi analisado pelo regime de recursos repetitivos do STJ com o fim de obstar a tentativa de responsabilização do débito fiscal pelo mero inadimplemento, como se pode identificar na súmula 430 do colendo Tribunal. 3. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA CONFORME A PREVISÃO DO INCISO III DO ARTIGO 135 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL O alcance da norma insculpida no artigo 135 do Código Tributário Nacional merece ser abordado, principalmente quanto ao conceito de infração à lei para os fins que são determinados nela. Assim dispõe o artigo em questão: Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. Verifica-se que conforme o artigo 135 do Código Tributário Nacional, o terceiro será pessoalmente responsável pelos créditos tributários, respondendo inclusive com seu patrimônio pessoal, em razão de ter praticado atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, sendo esta a questão principal a ser explorada. A grande questão é definir os atos praticados pelos os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Neste sentido a expressão “excesso de poderes” é utilizada para indicar atos praticados fora da outorga ou autoridade conferida. Hugo de Brito (2004 p. 586.) ao comentar o artigo 135 do CTN explica a expressão “atos praticados com excesso de poderes”: A referência a atos praticados com excesso de poderes indica muito claramente que a atribuição de responsabilidade tributária a terceiros diz respeito aos créditos tributários originados de atos abusivos, não aos créditos tributários em geral não quitados por simples insuficiência da capacidade econômicofinanceira da pessoa jurídica. A atribuição da responsabilidade pelo crédito ao terceiro pode ser observada da norma do artigo 135 do Código Tributário Nacional, que se caracteriza por ser exclusiva e independente do sujeito passivo originário, retirando-o da relação jurídica, não sendo, assim, nem

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

subsidiária, nem solidária (Luciano Amaro, 2014). Noutra esteira, a Fazenda Pública em geral sustentava que o mero inadimplemento pelo devedor principal caracterizaria infração à lei, e essa situação teria o condão de autorizar o redirecionamento da cobrança do crédito tributário no âmbito da execução fiscal para aqueles elencados no rol do artigo 135 do Código Tributário Nacional. Assim, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo teceu algumas considerações: Uma questão interessante concerne à caracterização do mero inadimplemento de tributo como “ato praticado com infração à lei”, para efeito de enquadramento no art. 135 do CTN. Os fiscos das diferentes esferas da Federação costumam propugnar que a simples falta de pagamento de um tributo já é suficiente para considerar que a pessoa que deveria ter efetuado o pagamento – por exemplo, o diretor ou o sócio- gerente de uma empresa – atuou com “infração à lei”, aplicando-se a ela o art. 135 do CTN. Embora, outrora, Superior Tribunal de Justiça tenha tido e entendimento que o mero inadimplemento já ensejava o redirecionamento do crédito tributário da pessoa jurídica aos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado no âmbito da execução fiscal, o colendo tribunal reviu o seu posicionamento, a fim de não considerar o mero inadimplemento tributário causa suficiente para autorizar a sujeição passiva da cobrança do crédito tributário, assim vejamos o entendimento atual firmado, inclusive objeto de julgamento pelo regime do artigo 543-C do CPC: TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. TRIBUTO DECLARADO PELO CONTRIBUINTE. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. DISPENSA. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO. TRIBUTO NÃO PAGO PELA SOCIEDADE. 1. A jurisprudência desta Corte, reafirmada pela Seção inclusive em julgamento pelo regime do art. 543-C do CPC, é no sentido de que “a apresentação de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza, prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensando, para isso, qualquer outra providência por parte do Fisco” (REsp 962.379, 1ª Seção, DJ de 28.10.08). 2. É igualmente pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta a responsabilidade subsidiária do sócio, prevista no art. 135 do CTN. É indispensável, para tanto, que tenha agido com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa (EREsp 374.139/RS, 1ª Seção, DJ de 28.02.2005). 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543C do CPC e da Resolução STJ 08/08. (STJ - REsp: 1101728 SP 2008/0244024-6, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 11/03/2009, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 23/03/2009) Destarte, a questão hoje está superada, inclusive sumulada, tendo a jurisprudência do colendo STJ se pacificado no sentido de que o mero inadimplemento não constitui causa suficiente para sozinha autorizar a sujeição passiva da cobrança do crédito tributário como sustentado pelo artigo 135 do Código Tributário Nacional: Súmula 430: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.

52

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O administrador que abusa ou excede de seus poderes de administração previstos em lei, mandato ou contrato social ou estatuto, com dolo específico contra a pessoa jurídica seria o responsável por substituição. Esta passa à condição de vítima de seu administrador, que, segundo os defensores da interpretação de que ora se trata, não fosse o disposto no artigo 135, inciso III, do CTN, veria surgir em seu nome dívida não autorizada. Nesta linha de pensamento se coloca Misabel Derzi: Ocorrendo dolo, o responsável passa a responder pessoal e diretamente pelas dívidas contraídas em nome do contribuinte, conforme dispõe em seguida o artigo 135. [...] O Código Tributário Nacional gradua ainda, segundo o grau de culpa, a responsabilidade dos terceiros arrolados no art. 134. Se houver dolo no descumprimento do dever por parte daqueles terceiros, aplicar-se-á espécie o art. 135 e não o 134; e mais, a responsabilidade estender-se-á às infrações, segundo o artigo 137, III. (DERZI, 2003, p. 753-755). Noutra ponta, em caso de dissolução irregular da sociedade empresária, sem a devida baixa de seus atos constitutivos na Junta Comercial ou no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas, e sem a comunicação aos demais órgãos competentes, é uma das principais causas, que autoriza a inclusão do polo passivo do terceiro com esteio no dispositivo legal ora em estudo. 4. INFRAÇÕES PARA FINS DE IMPUTAÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO AO TERCEIRO É preciso que realmente, seja verificado o excesso ou a infração de seus administradores que atuaram fora dos limites de suas competências, para que se possa efetuar a substituição, atribuindo a responsabilidade aos sócios-administradores, diretores ou gerentes, isso por que, a pessoa jurídica tem personalidade própria e nunca se confunde com a pessoa de seus sócios. MACHADO (2004, p 589 e 590) complementa em seus comentários ao CTN assim dizendo: Sendo assim, a violação a lei societária pode ocorrer, dando azo à responsabilização do sócio-gerente ou diretor, em dois momentos distintos. O primeiro, quando o fato gerador é praticado pelo diretor ou sócio-gerente fora de suas funções, extrapolando os limites impostos pelos atos constitutivos ou pela lei societária. É o caso, por exemplo, do sócio-gerente que realiza operação mercantil vedada pelo contrato social. O segundo, quando embora o fato gerador tenha sido realizado pela pessoa jurídica, a dívida tributária não for adimplida em virtude de ato contrário à lei societária praticado pelo diretor ou sócio-gerente, como é o caso da liquidação irregular da sociedade, do desvio de recursos desta para a pessoa natural do diretor ou quaisquer outros atos que, no dizer de Misabel Abreu Machado Derzi, embora praticados em nome do contribuinte, são contrários aos seus interesses. PAULSEN (2000. p. 469) esclarece mais ainda essa questão ao dizer que é preciso demonstrar o excesso ou a infração para que haja a responsabilidade ao sócio, assim expondo: Se, e somente se os dirigentes, controladores ou representantes das empresas houverem agido de modo estritamente ilícito no trato da matéria em questão, afrontando a lei, o contrato social ou estatuto – cometendo fraudes ou sonegação fiscal em termos claros e estritos – serão eles igualmente responsáveis por tais débitos. Para isso, ao autuar a sociedade, o credor tributário deve necessariamente estender a autuação aos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

seus dirigentes, se sinais houver desde logo desses ilícitos, de modo a que no ensejo do procedimento administrativo – que ao final vai conceder poder de inscrição e título executivo ao credor fiscal – essa responsabilização fique apurada. Assim podemos perceber que para a responsabilização dos sócios, é necessário que este esteja ao tempo dos fatos geradores, na administração da pessoa jurídica, e tenha praticado atos alheios aos interesses desta, o que justifica que as execuções fiscais contra as pessoas jurídicas possam vir a ser redirecionadas aos administradores, ou ainda, seja este incluído na Certidão de Dívida Ativa desde que haja elementos suficientes que demonstrem ter havido o excesso ou infração. Adotando a tese, cite-se excerto do voto proferido pelo Ministro Luiz Fux, então integrante da 1ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça no bojo do REsp 1.104.064/RS, publicado no DJe 14.12.2010: Com efeito, da dicção do caput do art. 135 do CTN, dessumese que a responsabilidade do diretor, gerente ou representante de pessoa jurídica de direito privado, pela prática de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, é de natureza pessoal, verbis: [...] Deveras, o efeito gerado pela responsabilidade pessoal reside na exclusão do sujeito passivo da obrigação tributária (in casu, a empresa executada), que não mais será levado a responder pelo crédito tributário, tão logo seja comprovada qualquer das condutas dolosas previstas no art. 135 do CTN. Demais disso, corolário lógico que exigir do ente público o esgotamento dos atos executórios junto ao devedor originário, quando presentes uma das causas contidas no artigo 135 do Código Tributário Nacional, para só depois autorizar a busca de bens junto ao devedor responsável, fatalmente propiciará à dilapidação de bens deste, dificultando, ainda mais, a cobrança do crédito tributário, com inequívoco atraso na prestação jurisdicional, fazendo com que as Execuções Fiscais demorem, ainda mais, a chegarem ao seu fim, em dissonância ao disposto no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República. Noutra ponta, poderá ser agravada a obrigação do responsável quando adotado a tese da responsabilidade pessoal do terceiro, com a exclusão do devedor originário, da mesma maneira além de reduzir as garantias e meios para o recebimento do crédito tributário, não se coadunando com o escopo das normas tributárias. MISABEL ABREU MACHADO DERZI, leciona sobre o assunto em notas de atualização da obra “Direito Tributário Brasileiro”, do eminente Aliomar Baleeiro, diferenciando as hipóteses de responsabilidade de terceiros previstas nos artigos 134 e 135, do Código Tributário Nacional: “Merece destaque o fato de que o art. 134 cria para o terceiro, que tem deveres de representação, administração e fiscalização, espécie de sanção por ato ilícito, responsabilizando-o subsidiariamente pelo pagamento do tributo devido pelo contribuinte. O art. 134 supõe apenas a culpa do responsável, ainda que levíssima, e a negligência no perfeito cumprimento de tais deveres, em relação aos atos em que intervier ou às omissões cometidas. Ocorrendo dolo, o responsável passa a responder pessoal e diretamente pelas dívidas contraídas em nome do contribuinte, conforme dispõe em seguida o art. 135”. Pelo exposto, cumpre dizer que é possível compreender que diante de uma responsabilidade tributária subsidiária, o qual rol de responsáveis, se encontrariam obrigados o pelo débito tributário nos casos de impossibilidade do cumprimento da obrigação principal

53

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pelo contribuinte, sujeito passivo principal, igualando as hipóteses previstas no artigo 135 do Código Tributário Nacional àquelas contidas no artigo 134 desse mesmo diploma legal. Não se pode descuidar também da hipótese em que há utilização fraudulenta do instituto da exclusão da pessoa jurídica do polo passivo da cobrança tributária, como bem advertido por Sacha Calmon Navarro Coêlho, senão vejamos: O que não se pode admitir é que grandes empresas, até mesmo multinacionais, por pura matroca obriguem seus diretores contratados, com poucos bens ou sem eles, a ficar responsáveis por atos deliberadamente praticados em proveito da empresa, com excesso de poder ou infração de lei ou contrato. A exclusão das empresas daria lugar a enormes injustiças e à indução de “planejamentos tributários” marotos. Além disso, tornaria as funções gerenciais um tipo de atividade de alto risco. (COÊLHO, 2002, p. 405). A tese de que o administrador é substituto tributário exclusivamente quando age com dolo contra a própria pessoa jurídica administrada deve ser afastada nestes casos, pois pode assumir um papel de vítima em relação a sociedade empresaria. 4.1 DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE EMPRESARIA O artigo 966 do Código Civil de 2002 trata o empresário que é sujeito de direitos e deveres, o qual aparece nas relações jurídicas, necessariamente quem exercerá a atividade econômica, por esse motivo à ele será dirigido os atos jurídicos, bem como será esse sujeito quem contrairá obrigações e exercerá seus direitos. A dissolução irregular da sociedade empresaria ocorre, conforme ANDRADE FILHO (2005, p. 120): Quando os sócios de uma sociedade abandonam a empresa (ou transferem os seus bens para outras pessoas jurídicas) e não cuidam para que ocorra a liquidação regular da sociedade, podem cometer abuso do direito por desvio de função. O abuso, no caso, advém da falta de observância do dever de diligência por deixar de adotar as providências operacionais e legais necessárias à liquidação da sociedade. A questão também restou igualmente sumulada pelo Tribunal: Súmula 435 – Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. Após detida análise da dissolução irregular da sociedade empresaria e o redirecionamento dos débitos tributários nos termos do inciso III do artigo 135 do CTN, permeia pela a explicação da Ilustre Professora Misabel Derzi (2003), o qual grande parte da doutrina tributarista pátria por vezes não consegue explicar, que é a responsabilização dos administradores pela dissolução irregular da sociedade. Conforme se extrai da lição da referida autora sobre a expressão “infração de lei” constante do artigo 135 do CTN “O ilícito é assim prévio ou concomitante ao surgimento da obrigação tributária (mas exterior à norma tributária) e não posterior, como seria o caso do não pagamento do tributo” (2003, p. 756). A dissolução irregular da sociedade é ato posterior ao surgimento da obrigação tributária assim como é o não pagamento do tributo. Neste sentido, na hipótese da responsabilização por dissolução irregular da pessoa jurídica, a obrigação tributária nasce contra esta e, em virtude de ilícito posterior, ocorre a responsabilização do administrador, o que afastaria a inclusão da hipótese na norma do artigo 135

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do CTN, segundo a referida doutrina. Árduo resolver a questão que permanece sem solução na doutrina em apreço, a necessidade de imputação de responsabilidade aos administradores que realizaram irregularmente a atividade empresarial, dissolvendo o ativo patrimonial da pessoa jurídica que a exercia e frustrando os créditos fazendários. Já teve o Superior Tribunal de Justiça oportunidade de assim decidir: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO, IMPOSSIBILIDADE. MERO INADIMPLEMENTO DE TRIBUTO E AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO DE AUTOFALÊNCIA. NÃO AUTORIZAÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO DO SÓCIOGERENTE. PRECEDENTES. 1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal de origem dirime, fundamentadamente, as questões que lhe são submetidas, apreciando integralmente a controvérsia posta nos presentes autos. 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o mero inadimplemento da obrigação de pagar tributos e a ausência de requerimento de autofalência, por si sós, não configuram causas de redirecionamento da execução fiscal contra o sócio gerente, porquanto não relacionadas de maneira direta com a obrigação tributária objeto da execução. Precedentes: REsp 907.253/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ 22/03/2007; REsp 442.301/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 05/12/2005, p. 220) 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no AREsp: 539113 RS 2014/0157114-4, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 16/10/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/10/2014) O dispositivo legal invocado para justificar essa atribuição de responsabilidade, no direito tributário, é o artigo 135, inciso III, do CTN, como se extrai das palavras da Min. Nancy Andrighi, ao relatar o Recurso Especial n. 121.021/PR: A responsabilidade tributária prevista no art. 135, III, do CTN, imposta ao sócio-gerente, ao administrador ou ao diretor de empresa comercial só se caracteriza quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova a prática de atos de abuso de gestão ou de violação da lei ou do contrato. Tendo em vista que o inciso VII do artigo 134 trata apenas de sociedades em que o sócio responde pessoalmente pelos débitos sociais, não é possível enquadrar a dissolução irregular da pessoa jurídica a outro dispositivo no CTN. Neste sentido a retirada de tal hipótese do asilo do artigo 135, inciso III, do Digesto Tributário deixaria sem amparo legal a responsabilização dos administradores pelos débitos tributários da pessoa jurídica irregularmente dissolvida e desamparada a Fazenda Pública, que não teria como exigir seus créditos dos promoventes da dissolução ilícita. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Primordialmente, cabe destacar que a obrigação tributária é o vínculo jurídico entre dois sujeitos, classificados em Sujeito Ativo e Sujeito Passivo, e é instaurada com a ocorrência do fato gerador. Desta obrigação tributária nascem obrigações ao sujeito passivo e direitos ao sujeito ativo. O sujeito passivo poderá ser tanto o contribuinte quanto um terceiro responsável, que de alguma maneira esteja ligado ao fato gerador ensejador da obrigação tributária. O Código Tributário Nacional reporta-se a dois tipos de responsabilidade, a responsabilidade tributária por substituição e a responsabilidade tributária por transferência, onde a primeira seria nos casos em que, por força da lei, um terceiro assume o lugar do contribuinte, enquanto que na segunda, a obrigação tributária é transferida a um

54

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


terceiro responsável. O tema, a responsabilidade tributária do sócio-administrado, artigo 135, III do Código Tributário Nacional enquadra especificamente na Responsabilidade Pessoal de Terceiros. O artigo 135 do Código Tributário Nacional prevê a possibilidade de ser responsável o sócio, que na condição de administrador da empresa tenha praticado atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. O elemento que possibilita imputação da responsabilidade ao sócio, prevista no artigo mencionado é a infringência dos deveres de fiscalização, de representação e de boa administração da empresa, seja por ação ou omissão. Contudo, a simples falta de pagamento do tributo não determina a responsabilização do sócio, sendo fundamental que ele tenha agido com ilegalidade ou infração de lei, levando-se em conta o elemento subjetivo, qual seja, o dolo. No mais, verifica-se também que a mera condição de sócio não é suficiente para caracterizar a responsabilidade disposta no artigo 135 do Código Tributário Nacional é preciso que o sócio esteja revestido na condição de administrador da empresa à época do fato gerador, uma vez, conforme amplamente debatido a própria lei determina a responsabilidade, dos diretores gerentes ou representantes da pessoa jurídica, quando verificado determinado ato praticado com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatuto. Não há que se falar, em desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que o Código Tributário Nacional de modo expresso, em seu artigo 135, elege legalmente o responsável para imputação da responsabilidade tributária, no qual poderá ser atribuída aos administradores não havendo desconsideração da personalidade jurídica. Uma vez apurada a responsabilidade do sócio pela obrigação tributária, responderá este pessoalmente perante o fisco, atingindo inclusive seu patrimônio pessoal pelas dívidas da sociedade pela qual detenha participação. Com isso, será mantida no polo passivo apenas a figura do responsável que substituirá o contribuinte.

Paulo: Atlas, 2004. p. 586. MELO, José Eduardo Soares. Curso de Direito Tributário. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2007. p. 249.DE MATTOS, Eloá Alves Ferreira; DE MATTOS, Fernando Cesar Baptista. Op. cit. nota 2. p.409/410. NUNES, Patrícia Araujo. Responsabilidade Tributária do Sócio-Administrador, Artigo 135, III do CTN e o Ônus da Prova. Ibet - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Porto Alegre 2012. Disponível em http://www.ibet.com.br/WEB/monografias/2011.2/219.pdf. Acesso 18 de novembro de 2015. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário, Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado: ESMAFE, 2000. p. 469 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Notas de Fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Manual de Direito Tributário. 2. ed. Niterói: Editora Impetus, 2005. AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Desconsideração da personalidade jurídica no novo Código Civil. São Paulo: MP editora, 2005. ASSIS, Araken de. Manual de Execução. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. BRASIL, Lei nº. 5172, de 25 de outubro de 1966. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 out. 1966. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. STJ CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Volume II. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. DE MATTOS, Eloá Alves Ferreira; DE MATTOS, Fernando Cesar Baptista. Curso de Direito Tributário Brasileiro, vol 1. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 408. DERZI, Misabel. Direito tributário brasileiro, p. 753-757. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 2ª edição. Editora Revistas dos Tribunais. São Paulo, 1971, p 160. Disponível em: < http://download.rj.gov.br/documentos/10112/1051740/DLFE-53161.pdf/REVISTA25454.pdf > Acesso em 03/11/2015. GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. Volume I. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. v. II. São

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

55

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A MEDIAÇÃO E A EFETIVIDADE DO ACESSO À JUSTIÇA Cristina Maria Dias1 Ludmila Stigert2 Resumo: O presente artigo se propõe a demonstrar como o instituto da mediação promove o direito fundamental de acesso à justiça representando um importante instrumento de efetivação da cidadania e da pacificação social. O objetivo principal é mostrar como tem ocorrido a aplicabilidade da mediação no Brasil ressaltando conceitos, princípios, vantagens e objetivos dentre os quais se destaca a promoção do acesso à justiça, na medida em que seus participantes têm a oportunidade de resolver pacificamente seus conflitos de acordo com seus próprios interesses estabelecendo deste modo uma ordem justa. Com enfoque direcionado para a eficácia da prestação jurisdicional em face das garantias constitucionais, a mediação se apresenta como um instrumento de inclusão social, tendo em vista que confere autonomia às partes integrantes do conflito e oportuniza, sobretudo às pessoas excluídas o conhecimento dos seus direitos e deveres no contexto do Estado Democrático de Direito. Abstract: This article aims to demonstrate how the mediation Institute promotes the fundamental right of access to justice represent an important tool for effective citizenship and social peace.The main objective is to show how there has been the applicability of mediation in Brazil highlighting concepts, principles, advantages and objectives among which stands out the promotion of access to justice, in that its participants have the opportunity to peacefully resolve their conflicts in accordance with their own interests thereby establishing a just order. With a focus directed to the effectiveness of judicial assistance in the face of constitutional guarantees, mediation is presented as an instrument of social inclusion, considering that gives autonomy to the constituent parts of the conflict and gives opportunity, especially to those excluded from the knowledge of their rights and duties in the context of the democratic rule of law. Palavras-chave: Mediação, acesso à justiça, efetivação Keywords: Mediation, access to justice, effective. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Acesso à Justiça e os Métodos Aucompositivos de Soluções de Conflitos; 3 A Mediação; 3.1 Conceito; 3.2 Escolas de Mediação; 3.3 Embasamento Jurídico; 3.4 Espécies; 3.5 Princípios Norteadores; 4 A Efetividade do Acesso à Justiça Através da Mediação; 5 Conclusão; Referêmcias.

1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo a análise da Mediação como forma de efetivação do Acesso à Justiça, pois, como veremos, o Acesso à Justiça não compreende somente o acesso ao Poder Judiciário, mais sim o acesso a todos os mecanismos da ordem jurídica constitucional que promova os direitos fundamentais e a todos os meios de solução do conflito, sejam eles judiciais ou extrajudiciais. Uma das maiores dificuldades sobre as garantias de todos os direitos do ser humano é possibilitar o efetivo Acesso à Justiça. O estudo dos obstáculos que impossibilitam o Acesso à Justiça se faz necessário para se buscar soluções e formas de diminuí-los. A Mediação é uma das formas de garantia do efetivo acesso à Justiça. A Mediação como um método de solução de conflito traz inúmeros benefícios àqueles que a procuram. Dentre eles pode-se destacar a autonomia da vontade entre as partes, a menor morosidade para solução do conflito, a economia processual, dentre outros. Pretende-se, ainda, demonstrar a relevância da mediação de conflitos como instrumento do poder comunicativo em uma sociedade democrática e plural, especialmente como instrumento da comunicação construtiva e da restauração instrumental, permanente, dos vínculos afetivos comunitários, familiares, corporativos, ambientais e internacionais. 2 O ACESSO À JUSTIÇA E OS MÉTODOS AUTOCOMPOSTIVOS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS O acesso à justiça, sob a perspectiva tradicional, quer dizer, acesso ao Poder Judiciário e está expressamente positivado como

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

direito fundamental, vez que figura como um dos direitos e deveres individuais e coletivos. Conforme dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. (República, 1988) Na perspectiva ampla, o direito de acesso à justiça também se caracteriza como direito fundamental. Considera-se o acesso a justiça como direito a uma tutela jurisdicional justa e efetiva, por meio da qual o cidadão busca a proteção de seus direitos eventualmente violados ou ameaçados. Desse modo, o acesso à justiça objetiva concretizar os direitos garantidos ao cidadão pela ordem jurídica. Trata-se da demonstração constitucional do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual significa, em linhas gerais, que o Estado não pode negar-se a solucionar quaisquer conflitos em que alguém alegue lesão ou ameaça de direito. Sendo assim, o cidadão, por meio do direito de ação, isto é, direito de postular em juízo, postulará a tutela jurisdicional ao Estado. Alterações legislativas realizadas nas últimas décadas, no ordenamento brasileiro, impulsionadas também pela Constituição de 1988, objetivaram proporcionar ao cidadão maior acesso à justiça. O direito de acesso à justiça, por sua vez, não se limita ao direito de ação. O Estado exerce o monopólio do poder jurisdicional, sendo vedado ao particular, em regra, a busca da concretização de seus direitos por outra via que não seja a jurisdicional. Em situações excepcionais o ordenamento autoriza a autotutela e a arbitragem. Desse modo, não pairam dúvidas de que, diante des-

56

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sa restrição, o Estado terá que garantir ao cidadão o acesso à justiça, instituindo órgãos jurisdicionais e permitindo que as pessoas a eles tenham acesso. O acesso à justiça traduz-se como um direito fundamental de extrema relevância em um Estado que se afigure democrático e que pretende promover os direitos dos cidadãos. Entendido não apenas como o acesso ao Judiciário, mas, sobretudo, como o acesso a uma ordem jurídica justa, este importante direito tem sido progressivamente aceito como o mais básico dentre todos os direitos, eis que imprescindível à satisfação dos demais direitos fundamentais. Diante de tal quadro, a superação dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça torna-se um desafio inadiável. Como se vê, o modelo de jurisdição voltado para a aplicação do que determina a lei ao caso concreto, tendo o Estado assumido a função de monopólio da Jurisdição como meio legítimo de tratamento dos conflitos não tem mais espaço diante das novas necessidades sociais. Conforme Castellanos (1999, pg.51) [...] O efetivo acesso à justiça pressupõe o estabelecimento de instrumentos que possibilitem a consecução da igualdade substancial, o que engloba a já referida paridade de armas para todos os litigantes, procedimentos e políticas públicas que permitam a proteção eficaz dos direitos outorgados (não somente os tradicionais “direitos subjetivos individuais”, mas também os direitos de ordem coletiva e difusa), bem como a ênfase em uma tutela preventiva. Diante dessa situação, o surgimento de novas possibilidades de tratamento dos conflitos tornou- se inevitável. A conciliação, mediação, e a arbitragem são meios e modos adequados de solução alternativa de conflitos, com total exclusão da jurisdição do Poder Judiciário. Todos têm a mesma finalidade, qual seja, a resolução extrajudicial do conflito, mas não se confundem, pois têm características e natureza próprias. A arbitragem é uma forma de solução de conflitos em que as partes, por livre e espontânea vontade, elegem um terceiro, o árbitro ou o Tribunal Arbitral, para que este resolva a controvérsia, de acordo com as regras estabelecidas no Manual de Procedimento Arbitral das Centrais de Conciliação, Mediação e Arbitragem. O árbitro ou Tribunal Arbitral escolhido pelas partes emitirá uma sentença que terá a mesma força de título executivo judicial, contra a qual não caberá qualquer recurso, exceto embargos de declaração. É, o árbitro, juiz de fato e de direito, especializado no assunto em conflito, exercendo seu trabalho com imparcialidade e confidencialidade. A Conciliação é uma forma de resolução de conflitos, onde um terceiro, neutro e imparcial, chamado conciliador, facilita a comunicação entre pessoas que mantém uma relação pontual na busca de seus interesses e na identificação de suas questões, através de sua orientação pessoal e direta, buscando um acordo satisfatório para ambas. A Mediação, por sua vez, é a forma de resolução de conflitos, onde um terceiro, neutro e imparcial chamado mediador, facilita a comunicação entre pessoas que mantém uma relação continuada no tempo, na busca de seus interesses e na identificação de suas questões com uma composição satisfatória para ambas. Conforme Caetano (2002), os meios ditos alternativos não se contrapõem ao Poder Judiciário. Também são modo e meio de solução de conflitos distintos deste, e anteriores a sua criação. Esses meios não vão resolver o problema do Judiciário, que está terrivelmente assoberbado pelo número de ações judiciais, mas colaborar na solução da crise existente, na medida em que, conforme se solucionam os conflitos por meio dos métodos alternativos, se evitam novos processos no Judiciário. Nesse condão alude Caetano: [...] os meios alternativos da solução de conflitos são ágeis, informais, céleres, sigilosos, econômicos e eficazes. Deles é constatado

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

que são facilmente provocados e, por isso, são ágeis; céleres porque rapidamente atingem a solução do conflito; sigilosos porque as manifestações das partes e sua solução são confidenciais; econômicos porque têm baixo custo; eficazes pela certeza da satisfação do conflito. (CAETANO, 2002, p. 104) O Acesso à Justiça é um direito fundamental que visa garantir o amplo e efetivo acesso a todos os meios de solução de conflito, sendo eles judiciais ou extrajudiciais. Grinover (2007) propõe, no âmbito judicial, o desenvolvimento de uma justiça conciliativa, a partir de três fundamentos. O fundamento funcional, que visa enfrentar a inacessibilidade, a morosidade e o custo do Judiciário; o fundamento social, consistente na função de pacificação social, o qual não é alcançada pela sentença, que se limita a ditar a regra, autoritariamente, para o caso concreto, sem pacificar a lide sociológica; e o fundamento político, consistente na participação popular na administração da justiça, configurando meio de intervenção popular direta pelos canais institucionais de conciliação e mediação. A Mediação tem por objetivo tornar o Acesso à Justiça mais fácil. Ela facilita ainda a solução da controvérsia, visto que a decisão acerca do litígio não é imposta por um terceiro, mais sim, acordada pelas partes. Além disso, a Mediação, por ser um meio autocompositivo de solução de conflito, faz com que as pessoas alcancem a solução de uma forma mais rápida e com uma menor morosidade do que se procurasse a via judicial. 3 A MEDIAÇÃO 3.1 Conceito A Lei n.º 13.140/2015 trouxe um marco legal e assim a definiu: [...]Art. 1º, Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. (REPÙBLICA, 2015). A mediação é uma forma extrajudicial de solução de conflitos, no qual as partes em litígio nomeiam ou aceitam a intervenção de um terceiro, denominado de mediador, para que as auxiliem a resolver o conflito através da melhora da qualidade da comunicação. O mediador é um técnico da comunicação, e faz com que as próprias partes cheguem à solução do problema, assim, o mediador não impõe soluções e não interfere no mérito do litígio. Comenta Vezzulla (1998, p.15) que: [...] mediação é a técnica privada de solução de conflitos que vem demonstrando, no mundo, sua grande eficiência nos conflitos interpessoais, pois com ela, são as próprias partes que acham as soluções. O mediador somente as ajuda a procurá-las, introduzindo, com suas técnicas, os critérios e os raciocínios que lhes permitirão um entendimento melhor. Portanto, a mediação é uma atividade técnica em que as partes interessadas escolhem ou aceitam em comum acordo pessoas neutras, pacíficas para a solução do litígio, onde estas irão os orientar com o propósito de chegar na melhor solução para o conflito de interesses. São as partes que controlarão o resultado do processo. Com o instituto da Mediação é possível conseguir a mesma certeza e segurança oferecidas pelo Poder Judiciário, porém, sem a demora, os custos e os desgastes, que as lides oficiais podem provocar. A mediação trabalha com questões, interesses e emoções dos envolvidos e se atenta à preservação dos vínculos existentes entre as partes envolvidas no conflito. Neste método, o mediador é neutro e imparcial, não pode dar palpites ou sugestões. Sua função é levar às partes a se desarmarem das mágoas provenientes do conflito, para

57

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


poderem dialogar e chegarem a uma solução aceitável. Frise-se que a decisão final é constituída unicamente pelas partes. A mediação parte de uma ideia de devolução às partes do poder de gerir e resolver seus próprios conflitos, no sentido de que são elas as mais indicadas para solucionar seus problemas. Pode-se fazer uso da mediação em diversas áreas, em especial onde existe vínculo anterior entre as partes. Uma mediação bem estruturada e aceita pelas partes tem grandes chances de gerar frutos em diversas áreas, tais como, familiares, comerciais, cíveis, organizacionais, internacionais, escolares, comunitários, meio ambiente, etc., ou seja, onde existir uma continuada entre pessoas físicas e jurídicas. 3.2 Escolas de Mediação Com a globalização e o acesso a outras culturas, a mediação ganhou destaque devido à sua eficácia, celeridade e custo, significadamente, mais baixo que a via judicial, tornando-se, então, uma técnica cada vez mais utilizada, também, em outros países como: Canadá, França, Argentina, Portugal, Espanha e Inglaterra, o que a fez tomar diferentes formas e procedimentos, pois ela pode ser moldada de acordo com o contexto econômico, social e jurídico de cada país. Segundo Caetano (2002), a mediação nasceu nos Estados Unidos da América na década de 1970. Seu crescimento foi muito rápido e logo foi incorporada ao sistema legal, e em alguns Estados tornou-se obrigatória anteriormente ao procedimento judicial. De acordo com o Modelo de Harvard, a comunicação é entendida no sentido linear, centrada no verbal, importando o conteúdo. A função do mediador é ser um facilitador da comunicação. Esse modelo baseia-se numa causalidade linear do conflito, não levando em conta o contexto no qual esse conflito foi produzido, nem sua história. (Nazareth,2009). Esta escola enfatiza o aspecto intrapsíquico, sem levar em conta o fator relacional. Nesse modelo a mediação tem por objetivo diminuir as diferenças entre as partes, ou eliminá-las, eis que está centrado no acordo. Não há preocupação com a relação existente entre as partes e tampouco com a transformação dessa relação. Já o Modelo Transformativo de Bush e Folger (1996), parte dos novos modelos comunicacionais e está centrado na relação interpessoal. Parte de uma concepção de causalidade circular do conflito, a qual pode levar a uma retroalimentação do mesmo. Não se estabelece uma relação linear entre causa e efeito do conflito. Esse modelo trabalha para alcançar, fundamentalmente, o desenvolvimento potencial de mudanças nas pessoas ao descobrir suas próprias habilidades, suas responsabilidades, e o reconhecimento do outro como parte do conflito. Tem por objetivo modificar a relação entre as partes, não importando se chegam ou não a um acordo. Não está centrado na chamada “resolução” do conflito, mas sim na “transformação relacional. (Nazareth,2009). No modelo proposto por Sarah Cobb (1995), a comunicação é entendida como um todo no qual estão incluídas duas ou mais pessoas e a mensagem que se transmite. Inclui os elementos verbais (o conteúdo) e os para-verbais (corporais, gestuais, etc.) ao tomar a comunicação como um todo, as partes não podem não se comunicar. Não há uma causa única que produza um determinado resultado, mas sim uma causalidade circular, que permanentemente se retroalimenta. (Nazareth,2009). O Modelo Circular Narrativo, ora aludido, busca fomentar a reflexão, mudar o significado da história e do conflito, possibilitando que as partes interajam de forma diferente, mudem o discurso e alcancem um acordo, ainda que essa não seja a meta fundamental. Analisando os modelos acima referidos, infere-se que não é o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

caso de considerar que um modelo seja melhor que o outro, mas que, dependendo da situação, um pode ser mais adequado que o outro. Acredita-se, por exemplo, que o Modelo Tradicional de Harvard pode ser mais adequado para conflitos na área de empresas, enquanto o Modelo Transformativo é recomendado para todos os casos onde estão muito envolvidas as relações interpessoais. O Modelo CircularNarrativo tem a vantagem de sua grande aplicabilidade, uma vez que está centrado tanto nas relações quanto nos acordos. Segundo Caetano (2002), o modelo que mais se pratica é o tradicional de Harvard, onde se busca uma “negociação efetiva” pelos próprios mediados, pela atuação do mediador que as induz a tanto. Em mediação não haverá um modelo-padrão para todos os conflitos, pois, como referido, são muitas e várias as áreas de aplicação da mediação. Assim, pela especificação do conflito a ser mediado, pode ser utilizado o método que melhor se aplique sua solução. 3.3 Embasamento Jurídico O Concelho Nacional de Justiça inicia uma nova era da Conciliação e Mediação com a edição da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, que deu um importante passo para estimular a Mediação e a Conciliação, ao instituir a Política Judiciária Nacional de tratamento aos conflitos de interesses, incumbindo aos órgãos judiciários, de oferecer mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem como prestar atendimento e orientação ao cidadão. A Resolução trata da ampliação do acesso à justiça e da pacificação do conflito por meio dos métodos autocompositivos, considerando que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que sua apropriada disciplina em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças, sendo imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais. Pela Resolução, foi determinado aos Tribunais, a criação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, para atender aos Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e Fazendários, foi determinado a criação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, conhecidos como os CEJUSCs, incumbidos de realizarem as sessões de conciliação e mediação pré-processuais, cujas audiências são realizadas por conciliadores e mediadores credenciados junto ao Tribunal. A partir de então, iniciou-se um processo de treinamento de conciliadores e mediadores, com a multiplicação de Cursos de Capacitação, supervisionados pelo próprio CNJ e Tribunais, para o fim de treinamento dos interessados, para a nova atividade então estimulada. Pode-se aduzir que uma nova era na mediação e conciliação foi iniciada numa ação que está vencendo muitas resistências entre os operadores do direito em geral, onde, muitos de seus integrantes, não se mostram adeptos da nova técnica de solução pacífica dos conflitos, por se sentirem ameaçados de perderem seu espaço. O Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) e a Lei de Mediação (Lei nº 13.105/2015) disseminam a “Cultura da Paz”, trazendo grande destaque para a Mediação e Conciliação, bem como para a autocomposição em geral. Para se firmarem enquanto instrumentos de solução de conflitos de métodos autocompositivos de forma rápida e eficiente, por certo, exigirá mudança de ações, pois, até os dias de hoje, o modelo conflitual caracteriza-se pela oposição de interesses entre as partes, que esperam pelo Estado (terceiro autônomo, neutro e imparcial) que deve dizer a quem pertence o direito.

58

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Ademais, o Poder Judiciário passou a ser alvo de severas críticas dirigidas ao seu funcionamento, tanto por parte da sociedade civil e dos demais poderes, como pelos próprios pensadores e operadores do direito, afetados por um descontentamento e uma frustração no que se refere ao exercício de duas funções e a repercussão extrajudicial dessas. São bastante conhecidas as dificuldades arrostadas pelo Judiciário brasileiro, tais como: o aumento do número e da complexidade dos conflitos, a morosidade da prestação jurisdicional, as custas judiciais excessivas. A mediação pode evitar o início de causas judiciais. Atualmente, o Judiciário brasileiro possui mais de 100 milhões de processos em trâmite. Com a prática da mediação, ações que invariavelmente ingressariam no judiciário para serem resolvidas, podem ser finalizadas por meio da mediação. O novo Código de Processo Civil surge como forma de política pública, no intuito de facilitar o acesso dos brasileiros à justiça, uma vez que se reduzirá o número de demandas e de recursos que dificultam o andamento dos processos. A expectativa é a de que se reduza pela metade o tempo de trâmite de uma ação no Judiciário, permitindo mais rapidez e celeridade nos processos. O seu artigo 135, trata da realização de conciliação ou mediação, a qual deverá ser estimulada por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. A lei segue três linhas mestras, quais sejam, reduzir a litigiosidade, simplificar procedimentos na Justiça e dar clareza e transparência a algumas questões. Por essas razões, o novo CPC procurou, legitimar práticas às quais a Justiça já está recorrendo, como a conciliação e a mediação, para tentar solucionar os conflitos, evitando novos processos. Ademais, a adoção da conciliação e da mediação judicial como meio de composição de conflitos representa um avanço. Na atualidade, deve-se priorizar uma coexistência pacífica entre as partes, estimulando o diálogo e participação dos protagonistas do conflito, preservando-se as relações, voltada, portanto a uma maior humanização do conflito. Atualmente, a mudança de paradigma está construindo novos rumos para os processos de mediação. Hoje, a proposta orientadora para a mediação considera que o conflito é também uma oportunidade de crescimento e desenvolvimento. A mediação possibilita a transformação da “cultura do conflito” em “cultura do diálogo” na medida em que estimula a resolução das querelas pelas próprias partes, nos casos que envolvem direitos disponíveis. A valorização das pessoas é um ponto importante, eis que elas são os atores principais e responsáveis pela resolução da divergência. A nova lei de Mediação (lei 13.140/2015), que entrará em vigor em 26/12/2015 traz como benefício principal dar a esse instrumento a legalidade que antes não existia. A lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. 3.4 Espécies São espécies de mediação: a judicial e extrajudicial. A mediação judicial é subdividida em judicial processual e pré -processual. Mediação judicial processual é aquela realizada no curso do processo, dentro das dependências do Fórum. Nessa espécie de mediação as partes são intimadas a participarem da mediação. Tem como principal enfoque as Varas de Família, pela característica da mediação em tratar do restabelecimento, ou até na preservação do vínculo que, nesses casos, sempre há entre os mediados; O art. 24 da lei de mediação dispõe que [...] Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de ses-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

sões e audiências de conciliação e mediação, pré-processuais e processuais, e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. (REPÚBLICA, 2015) Já a mediação pré-processual, antecede a instauração do processo judicial, sendo ofertada em uma modalidade de procedimento externo à jurisdição, quando o próprio interessado busca a solução do conflito com o auxílio de agentes conciliadores. Esse procedimento se constitui em um método de prevenção de litígios e funciona como opção alternativa ao ingresso na via judicial, objetivando evitar o alargamento do número de demandas nos foros e a abreviação de tempo na solução das pendências, sendo acessível a qualquer interessado em um sistema simples ao alcance de todos. O foco é o florescimento, no Brasil, do poder comunicativo, dialogal, restaurativo, praticado nos âmbitos judiciais e extrajudiciais da mediação de conflitos, dos círculos restaurativos e das negociações baseadas em princípios, num sistema multiportas de acesso à justiça. Sistema este agora acolhido pelo novo Código de Processo Civil e pela Lei da Mediação, em que se estabelece que as soluções consensuais passem a ser prioritárias. A iniciativa irá evitar a realização de, aproximadamente, 500 audiências convencionais por mês, substituindo-as por audiências pré-processuais, bem como a redução da entrada de cerca de 50 novos processos por dia. A mediação extrajudicial é voluntária, ou seja, as partes a procuram, e é realizada fora do processo e do ambiente do fórum, podendo, no entanto, versar igualmente sobre os casos de direito de família e sobre caos que já estejam sob a apreciação do judiciário. Nos países em que a conciliação e a mediação são mais frequentes, existem “empresas” que se dedicam unicamente a desempenhar tais atividades em caráter privado, oferecendo isso como um serviço à população. O novo código de Processo Civil (2015) previu a existência dessa atividade e denominou tais “empresas” de “câmaras privadas de mediação e conciliação”. Os órgãos e entidades da administração pública poderão criar câmaras para a resolução de conflitos entre particulares, que versem sobre atividades por eles reguladas ou supervisionadas (art. 43). É o caso, por exemplo, do PROCON que pode criar uma câmara de mediação para intermediar a solução dos conflitos entre consumidores e fornecedores. Os conciliadores, os mediadores e as câmaras privadas de conciliação e mediação serão inscritos em cadastro nacional e em cadastros dos Tribunais de Justiça ou dos Tribunais Regionais Federais, que manterão registro de profissionais habilitados, com indicação de sua área profissional (art. 167 do CPC 2015). Em outras palavras, os TJs e TRFs terão nomes de conciliadores e mediadores em uma espécie de cadastro. O art. 32 da Lei 13.140/2015 dispõe que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública. Existe também a mediação comunitária. Esta espécie de mediação promove uma maior responsabilidade e participação da comunidade na solução dos seus conflitos, abrindo novos caminhos para uma positiva transformação sócio-cultural. O mediador comunitário é uma pessoa da comunidade, escolhida pelas partes para facilitar e estimular o diálogo, atuando no sentido de ajudar na prevenção e solução do conflito, sem indicar a solução, para que essas sejam capazes de, por si próprias, chega-

59

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


rem a um acordo que proteja os seus reais interesses. O mediador comunitário desenvolve trabalho voluntário, com base da Lei do Voluntariado (Lei nº. 9.608, de 18.12.1998). 3.5 Princípios Norteadores O artigo 2°da Lei 13.140/2015 disciplina os princípios norteadores da mediação, a saber: 1.A Imparcialidade do mediador; dever de agir com ausência de favoritismo, preferência ou preconceito, assegurando que valores e conceitos pessoais não interfiram no resultado do trabalho, compreendendo a realidade dos envolvidos no conflito e jamais aceitando qualquer espécie de favor ou presente. 2.A Isonomia entre as partes; deve existir igualdade no diálogo, evitando que uma parte use da manipulação ou venha a coagir a outra. 3.Oralidade; a mediação é um processo informal, onde as partes têm a oportunidade de debaterem os problemas que lhes envolvem, visando encontrar a melhor solução para ambas. 4.Informalidade; na mediação não há ritos rígidos que devem ser perseguidos. O processo não se configura em uma única condução. 5.Autonomia da vontade das partes; ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação. 6.Busca do consenso; na mediação todos os envolvidos devem ganhar. Isto é, através do diálogo e das discussões, deve-se alcançar uma solução que seja mutuamente satisfatória. Todas as opiniões são ouvidas, ponderadas. Não se incentiva a competição, mas a cooperação; 7.Confidencialidade; como dever de manter sigilo sobre todas as informações obtidas na sessão, salvo autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes, não podendo ser testemunhado caso, nem atuar como advogado dos envolvidos, em qualquer hipótese; 8.Boa-fé; este princípio está relacionado com a colaboração das partes. Estes se obrigam a agir com lealdade e probidade, tanto na exposição dos fatos com observância da verdade, quanto no comportamento tendente à efetiva solução do litígio, com observância do respeito mútuo e da retidão de comportamento. Não se admitem comportamentos meramente dilatórios. 4 A EFETIVIDADE DO ACESSO À JUSTIÇA ATRAVÉS DA MEDIAÇÃO Embora seja considerado como direito individual, constituindo-se em cláusula pétrea, a garantia de acesso à justiça vem sendo cerceada por diversos fatores. Em razão disso, é preciso relembrar os ensinamentos de Cappelletti (1998). Com base na teoria das “três ondas do acesso à justiça”, ele apresenta as soluções para o efetivo acesso à justiça. Segundo esclarece, o acesso à justiça serve para proporcionar a igualdade de acessibilidade ao sistema para todas as pessoas e, também, para a produção de resultados justos, tanto no campo individual como no social. O conceito de acesso à justiça está em crescente evolução em razão das transformações sofridas na área de processo civil. Considerava-se, de início, que os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para que fossem protegidos. O Estado permanecia passivo em relação aos problemas que envolviam o reconhecimento e a defesa dos direitos do indivíduo. Com isso, a justiça só poderia ser buscada por aqueles que pudessem pagar seus custos. Aqueles que não podiam arcar com as despesas processuais eram discriminados e excluídos desse benefício. A partir da Constituição Federal de 1988, o direito ao acesso efe-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tivo vem sendo reconhecido de forma gradativa, destacando-se como de fundamental importância entre os direitos individuais e sociais. De acordo com o citado autor, o acesso à justiça pode ser considerado como o mais básico dos direitos humanos, caracterizando-se como requisito essencial para o sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir. É necessário, principalmente, que o maior número de pessoas tenha o direito de demandar e se defender adequadamente diante do Poder Judiciário, buscando obter a solução dos seus conflitos. É em razão da morosidade da justiça que determinados países se valem dos métodos autocompositivos enquanto instrumentos alternativos, como forma de satisfazer, eficazmente, os interesses das partes conflitantes. Não se pode aceitar que os litigantes fiquem sem solução para os seus conflitos ou que essa solução venha tardiamente. Portanto, se o processo judicial é falho, porque não utilizar esses meios facilitadores da solução dos litígios? Porém, é preciso frisar que sua utilização é restrita, seja pela falta de legislação própria ou pela deficiente aplicação desses meios. Na realidade brasileira, o método mais utilizado para a solução dos conflitos é o processo judicial, no qual as partes litigantes procuram o Poder Judiciário para a prestação da tutela jurisdicional. Esse conflito é levado ao juiz, representante do Estado, que tem competência para julgar os litígios. Assim, as partes transferem para o juiz a solução do conflito de interesses, a quem compete distribuir a justiça. Para tornar o Poder Judiciário acessível a todos, de forma igualitária, é preciso que os indivíduos tenham a capacidade de reconhecer seus direitos, de poder constituir profissionais aptos a suscitar o controle jurisdicional e de postular em juízo em igualdade de condições com a outra parte. Conforme Cappelletti (1988, pg.8) [...] O direito de acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos. [...] O acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica. O problema do acesso à justiça nos países do ocidente tem sido alvo de estudos, sobretudo os desenvolvidos por Cappelletti e Garth. Os referidos autores classificaram como “ondas renovatórias” do Direito as soluções criadas para dirimir tal problema (CAPPELLETTI e GARTH, 2002) [...] Três iniciativas ou ondas estão sendo vistas, inicialmente, como as mais básicas no sentido da efetividade do acesso à justiça: a primeira intenta frustrar o obstáculo econômico na fruição dos direitos humanos, o que se viabiliza pela assistência judiciária gratuita para as pessoas de baixa renda. A segunda tem como finalidade combater o obstáculo organizacional, possibilitando a defesa de interesses de grupo, difusos ou coletivos, por meio das ações populares ou coletivas. Já a terceira onda, objetiva combater o obstáculo processual de acesso à justiça, mediante a expansão e o reconhecimento dos

60

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


direitos humanos, por todos os meios que reduzam o congestionamento dos sistemas judiciários internos da maioria dos Estados. Desta forma, podemos observar que um movimento pelo efetivo acesso à justiça tem sido feito, o qual busca, primeiramente, corrigir o processo judicial, visando à fidelidade aos seus fundamentos democráticos. 5 CONCLUSÃO Com o presente estudo, pode-se observar que o acesso à Justiça não deve ser compreendido apenas como acesso ao Poder Judiciário. Ele é muito maior que a mera possibilidade de proporcionar que alguém ingresse com uma ação judicial. O acesso à justiça é um dos mais importantes direitos fundamentais. O acesso à justiça tem por finalidade oferecer as pessoas a possibilidade de resolver sua lide através da tutela do Estado e ainda, o acesso à justiça é um direito que possibilita a promoção dos outros direitos, ou seja, é por meio dele que se exige a garantia de tutela dos demais direitos face às lesões ou ameaças de lesões. Atualmente, o acesso a Justiça deve abranger também o acesso aos métodos alternativos de solução de conflitos. Nestas incluem-se a arbitragem, conciliação, negociação e o foco do estudo realizado, a mediação. Como já visto, para que se tenha um efetivo acesso à justiça é necessária a superação de alguns obstáculos. Nesse contexto surge a mediação como um facilitador. A mediação como forma de efetivação do acesso à Justiça é um mecanismo que possibilitará a visão do conflito de um prisma diferenciado, por ter um mediador participando, a fim de auxiliar as partes na solução que seja boa para os dois lados. Nessa forma de solução, o indivíduo é estimulado a desenvolver habilidades de diálogo e cooperação, relegando a ignorância em favor de práticas altruístas, que melhor atenderão às expectativas e necessidades dos mediados. A mediação vem para mostrar um olhar diferenciado e restaurador da Justiça, com vistas, cada vez maior, entre o direito e a sociedade. Além disso, o procedimento da mediação também visa incluir socialmente o indivíduo, ampliando seu universo cultural, possibilitando o conhecimento de seus direitos e deveres, dirimindo a hostilidade. O que se busca com esse procedimento é o necessário fomento à paz e o incentivo a práticas de cidadania, sendo requisitos essenciais no contexto do Estado Democrático de Direito, previsto na Constituição Federal. A mediação permite a simplificação do processo e a realização da verdadeira pacificação social. Isto porque, no momento em que as partes chegam ao consenso não existe um vencedor ou perdedor: todos saem ganhando. Além disso, as chances de o acordo ser cumprido são grandes o que evita, ou ao menos diminui, a principal causa de lentidão do Judiciário: os recursos! A verdadeira pacificação demanda a busca da resolução do conflito de modo mais amigável, menos impositivo e o menos gravoso possível, com o propósito de aproximar as partes e desenvolver sentimentos de compreensão e harmonia que aprimorarão seu relacionamento. A busca de novas formas de solução de conflitos não tem o objetivo único de dirimir a carga do serviço judiciário e o retardo da prestação jurisdicional. Está evoluindo para um conceito mais pleno de realização de justiça, com a atuação de terceiros desvinculados dos interesses em litigio, empenhados em sua solução, sem os constrangimentos e amarras legais a que se submete o juiz.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

REFERÊNCIAS CAETANO, Luiz Antunes. Arbitragem e Mediação: rudimentos. São Paulo: Atlas, 2002. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. p. 8. NAZARETH, Eliana Riberti. Mediação o Conflito e a Solução. Editora: Artepaubrasil, São Paulo 2009 SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e Mediação de Conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. Imprenta: São Paulo, Método, 2014. VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e prática da mediação. Curitiba: IMAB, 1998.

NOTAS DE FIM Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

61

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A RESPONSABILIDADE PENAL PELA TRANSMISSÃO DOLOSA DO VÍRUS HIV Camila Rodrigues Santiago Roncalle1 Marcelo Sarsur Lucas da Silva2 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar se existe responsabilidade penal para quem,conscientemente, transmite o vírus causador da AIDS/HIV através da prática conhecida comobarebacking, onde determinada pessoa consente em manter relação sexual com um terceiro, sem uso de preservativo, sabendo que o terceiro possa ser portador do vírus causador da AIDS, com ointuito de ou adquirir o vírus, ou arriscar-se propositalmente a adquiri-lo,em festa realizada com essa finalidade. O objetivo principal deste trabalho é discutir se o consentimento do ofendido pode ser utilizado como causa de exclusão da ilicitude. ABSTRACT: This study aims to analyze the criminal responsibility of a person who willfully engages in transmitting the HIV/AIDS virus to a consenting sexual partner during bareback (unprotected) sexual acts, practiced among partners who are unaware of their current health status. It concludes that the subject’s consent can be correctly invoked as a clause to exclude criminal responsibility. PALAVRAS-CHAVE: Consentimento do Ofendido; Causa de Exclusão da Ilicitude; Prática do Barebacking;AIDS. KEYWORDS: Consent; Justification clauses; Barebacking; AIDS. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 AIDS 2.1 Conceito de AIDS 2.2 Do Diagnóstico 2.3. AIDS no Brasil; 3 A Prática do Barebacking 3.1 O que é Barebacking 3.2 Barebacking no Brasil; 4 O Consentimento do Ofendido Como Clausula da Exclusão da Ilicitude 4.1 Conceito de Crime 4.2 O Consentimento do Ofendido 4.3 Responsabilidade Penal; 5 Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO A AIDS é uma doença que alcançou um caráter epidêmico na década de 1980, que ataca o sistema imunológico devido à destruição dos glóbulos brancos. É considerada um dos maiores problemas de saúde da atualidade pelo caráter e pela gravidade. A doença não tem cura.Entretanto, os portadores do HIV, chamados de soropositivos, dispõem de tratamento oferecido pelo Governo. A finalidade do tratamento é de prolongar e tentar garantir uma sobrevidacom mais qualidade de vida ao portador, através de uma redução da carga viral e reconstituição do sistema imunológico. Recentemente se noticiou, pelos meios de comunicação (jornal, internet e revistas), que existem determinados grupos de portadores do vírus HIV, em suas maiorias homossexuais, reunindo em festas privadas conhecidas como o “Clube do Carimbo”, em que o objetivo é manter relações sexuais desprotegidas, nas quais os frequentadores podem transmitir ou adquirir o HIV. Trata-se de uma modalidade de sexo sem preservativos ou qualquer cuidado, em que há uma “roleta -russa” na forma de sexo promíscuo, no qual não se sabe quem são os portadores soropositivos e os negativos. O presente trabalho tem como objetivo discutir, no ponto de vista do Direito Penal, se a conduta praticada por quem contamina outra pessoa com o vírus HIV, através do consentimento do ofendido,pode ser considerada como crime. 2 A AIDS 2.1 Conceito de AIDS A AIDS (ou SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é um conjunto de doenças decorrentes da infecção do vírus HIV no corpo, que se encontra presente no sangue, sêmen, secreção vaginal e leite materno, atacando o sistema imunológico responsável pela defesa do organismo, deixando, desta forma, o organismo mais vulnerável e propenso a adquirir doenças. As células mais atingidas são os linfócitos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

T CD4 +, ou células auxiliares, que são as responsáveis em organizar o sistema imunológico no enfrentamento de alguns microrganismos, incluindo as infecções causadas por fungos, bactérias e vírus.(DEPARTAMENTO DE DSTs, AIDS E HEPATITES VIRAIS, 2015). O vírus altera o DNA da célula, usando-o para fazer cópias de si mesmo, e, após se multiplicar, rompe os linfócitos em buscas de outras células para continuar a infecção. Com o ataque às células de defesa do corpo, o organismo fica mais vulnerável a diversas doenças, quando, então, um simples resfriado pode se tornar uma infecção mais grave como pneumonia, tuberculose oualgo bem piorde tal forma que o tratamento dessas doenças adquiridas fica bem prejudicado. (DEPARTAMENTO DE DSTs, AIDS E HEPATITES VIRAIS, 2015). 2.2. Do diagnóstico A forma de constatar se uma pessoa possui o vírus HIV seria através darealização do teste diagnóstico, geralmente por meio de amostra de sangue. Entretanto, Ninguém pode ser obrigado a fazer o exame. Nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) do Ministério da Saúde, o teste diagnóstico é gratuito e anônimo. O exame também pode ser feito em outras unidades de saúde e por laboratórios particulares, sempre respeitando as normas definidas pelo Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O tratamento com antirretroviral é bastante complexo, podendo ocasionar efeitos colaterais, e deve ser assistido por uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde, que oferece atendimento integral ao paciente: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, entre outros. Além disso, os exames que acompanham o estado de saúde do paciente devem ser feitos periodicamente. 2.3 A AIDS no Brasil O SUS – Sistema Único de Saúde– fornece os medicamentos

62

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


chamados antirretrovirais gratuitamente desde 1996, distribuídos em diversas unidades de saúde, sempre sob acompanhamento profissional, que impedem a multiplicação do vírus no organismo atuando em várias etapas de seu ciclo reprodutivo. O HIV não é eliminado, mas é fundamental o tratamento por diminuir a carga viral, aumentando o tempo de vida do portador, como também reduzindo o risco de desenvolver as doenças relacionadas a AIDS, como a tuberculose e a pneumonia, por exemplo. O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) reconhece o Brasil como referência mundial no controle da epidemia, tendo em vista que foi o primeiro a derrubar as patentes dos medicamentos e a fornecê- los gratuitamente à população. 3 A PRÁTICA DO BAREBACKING 3.1 O que é o Barebacking O barebacking surgiu nos rodeios norte-americanos como uma modalidade de esporte sem proteção, significando, literalmente, cavalgar ou montar sem cela. Tal denominação, posteriormente, passou a ser usado no contexto da comunidade gay(norte-americana), em meados de 1990, de forma analógica, para designar o sexo sem preservativo (LÉOBON, FRIGAULT, apudSILVA). Nessa modalidade de sexo, existe uma experiência corporal, sensorial, que se concretiza a partir de um contato mais intenso com o parceiro, causando um prazer excedente que surge pela expansão e transgressão das fronteiras e limites do próprio corpo. Com a realização desse prazer, as pessoas parecem adquirir, ou pensam adquirir, mais autonomia e liberdade frente às normas e discursos socialmente estabelecidos. 3.2 Barebacking no Brasil No Brasil existem determinados grupos de contaminados, em sua maioria homossexuais, com o vírus HIV, se reunindo, secretamente, em festas denomidas “bare”, organizadas com o intiuto de difundir o Barebacking, pelos seus participantes.Seus adeptos, soropositivos ou não, “brincam de roleta- russa”. A roleta-russa é uma modalidade de aposta na qual o objeto em disputa é a própria vida. Nessa “brincadeira macabra “utilizandose de um revólver, os apostadores colocam apenas uma munição no tambor do armamento, fechando-o aleatoriamente. A partir desse momento, realiza-se o disparo, comumente com o cano da arma apontado para a cabeça, até a ocorrência da percussão da munição. Vence aquele que sobreviver (FERREIRA, 2011). No caso do barebacking, a munição nessa espécie de “roleta- russa” é a iminente possibilidade em adquirir o vírus causador da AIDS, sendo que os participantes praticam sexo sem preservativos ou qualquer outro cuidado, com o intuito de se tornar soropositivo, ou assumindo conscientemente o risco de contrair o vírus. Os adeptos desses “Bares” alegam que, em função dos avanços atuais relacionados ao tratamento anti-HIV e à facilidade de acesso a ele, caso sejam contaminados não perderão em qualidade de vida. As consequências, no entanto, relacionadas à prática nem sempre se traduzem de forma positiva, como supõem seus praticantes. Antirretrovirais não são os únicos responsáveis pela qualidade de vida de um HIV. A prática do sexo sem o uso de preservativo continua cada vez maisa conquistar novos adeptos. As campanhas realizadas pelo Ministério da Saúde sobre o tema não têm sido eficazes como deveriam. Apesar de o Brasil ser pioneiro no combate à doença, cada vez mais tem surgido novos infectados, em sua maioria homossexuais. O conceito de barebacking é associado a orgias frequentadas

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

por homens que praticam sexo com outros homens, entre qualquer pessoa, independentemente de orientação sexual, e que buscam o prazer sem se preocupar em utilizar qualquer tipo de preventivos. 4 O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO COMO CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE 4.1 Conceito de Crime Para se analisar se há ou não uma conduta criminosa é necessário primeiramente definir o que é previsto, no direito brasileiro, como crime. O Código Penal brasileiro não fornece um conceito específico do que seria crime;contudo, aduz, no artigo 1° da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto- lei nº 3.914/1941), que para o crime é reservada uma pena de reclusão ou detenção, podendo ser cominada alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Desta forma, o conceito de crime que adotamos é decorrente da doutrina. Diversos doutrinadores,durante anos, vêm fornecendo seus conceitos de crime. Os mais difundidos até hoje são os conceitos formal, material e analítico, sendo este último adotado pela maioria dos estudiosos brasileiros.Neste trabalho, lança-se mão do conceito analítico de crime aceito pela doutrina jurídico-penal brasileira. O conceito analítico de crime, como já diz o nome, tem a função de analisar todos os elementos ou características que integram o conceito de infração penal, verificando se há existência ou não de infração, através de uma análise criteriosa da conduta, da tipicidade e da culpabilidade. Nesse sentido nas lições de Francisco de AssisToledo: “O crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico- penais) protegidos. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essências ou os elementos estruturais do conceito de crime. Dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fundamentais do fato crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável. ”(TOLEDO, 2008:80). Diante do conceito analíticode crime, o que importa para o foco da discussão sobre a transmissão dolosa do vírus causador da AIDS é a ilicitude. O conceito de ilicitude, segundo Francisco de Assis Toledo,“é a relação de antagonismo que estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado” (TOLEDO, 2008:163). Quando se fala em ilicitude, é preciso haver uma contrariedade da conduta a uma norma jurídica anteriormente imposta. Contudo, o artigo 23 do Código Penal previu expressamente quatro causas de exclusão da ilicitude. Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. O Estado de necessidade é a situação de perigo atual, para interesse legítimo, que só podem ser afastadas por meio de lesão de interesse de outrem, igualmente legítimo. A legítima defesa éo uso moderado dos meios necessários, para

63

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ADQUIRIDA). VÍTIMA CUJA MOLÉSTIA PERMANECE ASSINTOMÁTICA. DESINFLUÊNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA UM DOS CRIMES PREVISTOS NO CAPÍTULO III, TÍTULO I, PARTE ESPECIAL, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. SURSIS HUMANITÁRIO. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DAS INSTÂNCIAS ANTECEDENTES NO PONTO, E DE DEMONSTRAÇÃO SOBRE O ESTADO DE SAÚDE DO PACIENTE. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DENEGADO.1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 98.712/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (1.ª Turma, DJe de 17/12/2010), firmou a compreensão de que a conduta de praticar ato sexual com a finalidade de transmitir AIDS não configura crime doloso contra a vida. Assim não há constrangimento ilegal a ser reparado de ofício, em razão de não ter sido o caso julgado pelo Tribunal do Júri. 2. O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida não é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do Código Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no julgamento do HC 98.712/RJ, o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte, naquele caso, conferir ao delito a classificação de “Perigo de contágio de moléstia grave” (art. 131, do Código Penal), esclareceu que, “no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art. 131”.3. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a conduta deverá será apenada com mais rigor do que o ato de contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme previsão clara do art. 129, § 2.º inciso II, do Código Penal.4. A alegação de que a Vítima não manifestou sintomas não serve para afastar a configuração do delito previsto no art. 129, § 2, inciso II, do Código Penal. É de notória sabença que o contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante acompanhamento médico e de administração de remédios específicos, o que aumenta as probabilidades de que a enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento não enseja a cura da moléstia. 5. Não pode ser conhecido o pedido de sursis humanitário se não há, nos autos, notícias de que tal pretensão foi avaliada pelas instâncias antecedentes, nem qualquer informação acerca do estado de saúde do Paciente. 6. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado. (HC 160.982/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 17/05/2012, DJe 28/05/2012). (grifo nosso)

reprimir injusta agressão, ou iminente, a direito próprio ou de outrem. O estrito cumprimento de dever legal ocorre quando o sujeito se desincumbe de uma conduta que lhe é imposta por norma legal, sem extrapolar os limites que lhe são inerentes. O exercício regular do direito é aquele que se contém nos limites impostos pelo fim econômico ou social do direito em causa, pela boa fé e pelos costumes. 4.2 O Consentimento do ofendido A doutrina italiana sempre adotou o consentimento do ofendido em seu ordenamento jurídico-penal, sendo invejada por inúmeros outros doutrinadores. O artigo 50 do Código de 1930 estabelece: “Não é punível quem ofende ou põe em perigo direto, com o consentimento da pessoa que dele podia validamente dispor”.(Pirangeli, 2001, p. 81) No projeto original do Código Penal de 1940, havia uma previsão do consentimento do ofendido como uma das causas de exclusão da ilicitude.Entretanto, a comissão Revisora do Código de 1940, excluiu o dispositivo no fundamento de ser supérfluo. Com a reforma ocorrida na Parte Geral do Código Penal, o artigo 23 também não incluiu o consentimento do ofendido entre as causas de exclusão da ilicitude. O consentimento é adotado, no ordenamento jurídico brasileiro, como causa supralegal de justificação, contudo, somente terá validade conforme o critério de Welzel, na teoria da ação jurídica, quando a conduta estiver em conformidade com o consentimento. O consentimento deve corresponder à verdadeira vontade daquele que consentiu, pois o mesmo é caracterizado pela renúncia à tutela que a norma penal outorga a ele, devendo ser afastado os consentimentos obtidos mediante ameaça, por fraude ou engano, como também aquele dado pelos ébrios. (Pirangeli, 2001: 80). Parte da doutrina entende que o consentimento do ofendido exclui tão somente a ilicitude (antijuridicidade), outra parte entende que não só exclui a ilicitude como pode constituir também causa de exclusão da atipicidade. Contudo, o entendimento que tem prevalecido é que o consentimento deve excluir somente a ilicitude. O consentimento pode excluir tanto a ilicitude, quanto a tipicidade, sendo que, nesse último caso, só quando o tipo penal depende de um dissenso entre a vontade do agente e a do ofendido, isso ocorre como por exemplo no crime de invasão de domicílio, em que a pessoa éconvidada a adentrar a residência de uma determinada pessoa e, após se encontrar no local torna inconveniente sua permanência no local, passando a ocorrer o crime de invasão de domicilio. Neste caso estamos diante de causa de exclusão da tipicidade, pois houve um dissenso entre as partes. Trazendo o consentimento do ofendido ao contexto da transmissão do vírus causador da AIDS, nas festas chamadas “bare” – termo diminutivo de barebacking- surge a seguinte dúvida: Existe responsabilidade penal para aqueles que transmitem o vírus da AIDS a outra pessoa que sabia e provavelmente queria recebe-lo? A resposta a essa pergunta deve passar por uma análise do contexto em que ocorreu a transmissão do vírus. O primeiro ponto a ser analisado e levado em consideração seria se houve realmente o conhecimento e a permissão do parceiro. O segundo ponto, principal foco da discussão, é se houve o consentimento e interesse da pessoa ao querer adquirir o vírus. No primeiro ponto levantado, aquele que transmitiu o vírus causador da AIDS sem o consentimento deve responder por crime de lesão corporal gravíssima, tipificado no artigo 129, § 2°, inciso II, do Código Penal, sendo este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme in verbis: HABEAS CORPUS. ART. 129, § 2.º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. PACIENTE QUE TRANSMITIU ENFERMIDADE INCURÁVEL À OFENDIDA (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

No segundo ponto, que trata da transmissão com o consentimento do parceiro e vontade em adquirir o vírus, não deve haver responsabilidade penal ao transmissor da doença, uma vez que quem recebeu o vírus consentiu, de forma livre e consciente, sabendo de todas as futuras consequências desse fato. José Henrique Pierangeli dispõe, em seu livro, que o consentimento do ofendido é clausula de exclusão da ilicitude, nos delitos em que o único titular do bem é a pessoa que consentiu, conforme litteris: “(...) O consentimento do ofendido pode se constituir em causa de exclusão da antijuridicidade unicamente nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce (“acordo” ou “consentimento”) e que por livremente dele dispor. De uma maneira geral, estes delitos podem ser incluídos em quatro grupos diversos (...) b) delitos contra a integridade física (...)” (PIERANGELI,2001:98)

64

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A dúvida que surge nesse aspecto é, se quem adquirir (por consentimento) o vírus da AIDS, essa pessoa estaria dispondo do seu direito à vida? A resposta mais plausível a essa pergunta é que NÃO, tendo em vista que ser portador do vírus HIV não significa ter seu atestado de óbito assinado, pois,com o avanço da medicina, existem diversos tratamentos para a doença, permitindo queo portador tenha uma vida normal, assim como diversas outras pessoas que são portadoras de doenças crônicas e continuam tendo uma vida normal. A Constituição Brasileira traz como princípio fundamental, no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana; igualmente, o artigo 5°, “caput”, da Constituição resguarda os direitos à vida e à liberdade, além de trazer, no inciso X do mesmo artigo, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Entretanto, o Código Civil de 2002, no artigo 13, limita o direito a uso do próprio corpo, proibindo as disposições corporais que não se pautam por necessidades médicas, ou que afrontem os ditos “bons costumes”. A importância da discussão sobre a autonomia do corpo vai muito além do que apenas os “bons costumes”. Questões como aborto, eutanásia, venda de órgãos e tantas outras são reguladas pelo direito. Mas, afinal, no que se baseiam os “bons costumes”? Fundamenta-se na vontade – e nos preconceitos – da maioria, numa tentativa de impor uma visão única e suprema do que seria o “bem viver”. Se formos levar em consideração os “bons costumes”, por que é permitido que os indivíduos façam mal a si mesmos? Por que há liberdade para fumar ou beber – e com isso destruir seus órgãos ao longo do tempo –, mas não há para que o indivíduo conscientemente realize a prática do Bareback? Dois pesos, duas medidas. Logo, o Código Civil estaria em contrariedade com a Lei Fundamental, uma vez que se um sujeito de direito considera que para ter uma vida digna é necessário ser portador do vírus HIV, por que aquele que transmitiu a doença a ele deve ser responsabilizado penalmente? Não existe um crime especifico, tipificado no Código Penal ou na legislação extravagante, que defina o crime de transmitir, dolosamente, o HIV a terceiros, existindo vários entendimentos doutrinários a esse respeito. Porque punir aquele que transmitiu o vírus causador da AIDS, e não punir as lesões nos esportes violentos, tais como,por exemplo,Boxe, Muay Thai, luta livre, Karatê. Qual a diferença entre essas lesões ao bem jurídico? A única diferença que existe é que, nos esportes violentos, o Estado lucra com altos impostos, como também com o alto público que esses tipos de esporte atraem, já a prática do barebacking ocorre somente entre particulares. A pessoa que luta, sabe que pode morrer (tanto que assina um termo de responsabilidade) e conscientemente e com autorização da sociedade entra no ringue para apanhar, bater, arriscar a matar, apenas para divertir e ganhar dinheiro. Existe aqui, uma violação do princípio da isonomia, quando o Estado limita determinadas condutas e permite outras condutas que também dispõem do bem jurídico tutelado. Desta forma, não há de se falar em disposição do bem jurídico relativo à vida humana, tendo em vista que a AIDS não é a doença que possui o maior índice de mortalidade. Segundo levantamento recente do Ministério da Saúde, a doença com maior índice de mortalidade é a diabetes. Se consideramos esse aspecto de mortalidade, dever-se-ia proibir todo produto comercializado com açúcar, uma vez que eles são potenciais causadores de diabetes, que trazem como consequência o óbito, como também deveria ser imputada responsabilidade penal a quem produz esses produtos, assim como aos que comercializam, como se veneno ou droga fossem. Mas o que temos é que as mesmas são legalizadas.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Nesta mesma linha de raciocínio, fazendo uma analogia aos esportes “radicais” ou perigosos, porque o Estado permite uma pessoa a pular de paraquedas ou bungee jumping e base jump, sendo que este último possui um dos maiores índices de mortalidade, o que fez diversos países,como por exemplo Suíça e Noruega, proibirema prática de tal esporte. Encontramos de fato uma controvérsia por parte do Estado, ao permitir determinadas condutas mais gravosas à vida Humana, como a prática do base jump e proíbe outras condutas, como a pratica de sexo sem camisinha, onde ambos versam sobre o mesmo bem jurídico tutelado. Nota aqui uma perda da credibilidade do Estado ao querer determinar quais bens jurídicos são disponíveis ou não. Desta forma podemos concluir que não há que se falar em responsabilidade penal para quem transmite o vírus da AIDS com o consentimento do ofendido, tendo em vista que quem consentiu é único titular do bem juridicamente protegido e, livremente, quis dispor do bem tutelado, para se tornar portador do vírus da HIV. 4.3 Responsabilidade Penal O princípio da legalidade, estabelecido no artigo 1° do Código Penal, estabeleceque não há crime sem lei anterior que o defina. Na conduta de transmitir o vírus da AIDS com o consentimento do ofendido, não existe nenhuma tipificação adequada no Código Penal, nem em qualquer legislação esparsa no ordenamento jurídico punir a prática dessa conduta é fazer uma interpretação extensiva de algum dispositivo da lei penal,e extrapola a vontade do legislador. Não se pode falar em punição para aquele que transmite o vírus,nem para o receptor. O atual ordenamento jurídico não pune a autolesão, sendo considerada conduta atípica. Entretanto, o receptor da doença, ao consentir com a transmissão do vírus, abriu mão da proteção jurídica do bem tutelado pelo Estado. Nesse sentido, quando há uma renúncia do bem tutelado, (FERRARA apud PIERANGELI, 2001:79) afirma que “o proprietário que permite a violação de direito seu, que constitui induvidosamente um caso de consentimento, também renuncia à proteção jurídica” Retomamos novamente a pergunta: Existe responsabilidade penal ao transmissor da doença? Já se respondeu que, em razão do consentimento, não há responsabilidade. Neste sentido, Daniela de Freitas Marques dispõe: Ora, tanto os “doadores de presente” quanto os “caçadores de vírus” agem conjuntamente na violação de um determinado bem: a vida ou a saúde. (...) A alternativa possível, no caso específico do “barebacking”, é a criação de uma figura típica, em razão do conflito existente entre o bem vida ou saúde é o valor liberdade de expressão sexual. (FREITAS,2010: 85) No caso de responsabilização penal, surge mais outra dúvida. Qual seria a ação penal cabível? Ação penal de iniciativa privada? Ação penal pública? Quem tem a legitimidade para propor a ação? Façamos uma breve síntese de ação penal, focando somente na parte em que interessa para a discussão. Nas ações privadas, quem tem legitimidade de propor a ação é aquele que teve seu direito violado, ou seja, o ofendido. Vale ressaltar que o perdão concedido a um dos querelados é extensivo a todos que violaram o direito, não podendo ser oferecido a apena uma determinada pessoa. Nos crimes cuja ação penal é púbica, o órgão do Ministério Público, ao ofertar a denúncia, tem a obrigatoriedade em oferecer em desfavor a todos aqueles que são autores da conduta proibitiva, uma vez que a ação penal e indivisível. A ação privada, aqui, não e razoável, primeiramente por não

65

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


estar presente uma das condições da ação, o interesse de agir, e segundo porque quem tem legitimidade de propor a ação é a mesma pessoa que consentiu manter relação sexual, com intuito de adquirir o vírus. Em razão do princípio da razoabilidade, como também da igualdade, o perdão concedido ao receptor do vírus deve ser extensivo ao transmissor, tendo em vista que, ao consentir que um terceiro lhe transmitisse o vírus causador da AIDS/HIV, este abriu mão do seu direito tutelado pelo Estado, conforme exposto acima, estando ambos nas mesmas condições. Desta forma, no caso de ação penal de iniciativa pública, cabe ao Estado duas hipóteses: a primeira é oferecer a denúncia em desfavor dos dois, e a segunda é estender o perdão concedido ao receptor ao transmissor. Em nosso estudo adotamos a segunda hipótese como forma de defesa, uma vez que o Estado, ao punir a autolesão, estaria indo contra os seus próprios princípios, que são os pilares do ordenamento jurídico. Com relação a pessoa que recebe o vírus causador da AIDS, trazendo no enfoque ao direito da personalidade, entendemos que não há uma renúncia ao direito da personalidade, conforme dispõe o artigo 11 do Código Civil, em que os direitos da personalidade são irrenunciáveis ou intransmissíveis; pelo contrário, temos uma afirmação desse direito, pois quem adquire o vírus entende que ser portador do HIV, faz parte de sua personalidade, de seu conceito de pessoa. Neste mesmo sentido Stanciolie (2010:98) afirma que“uma renúncia ao direito ao direito da personalidade, no plano valorativo, é a afirmação da autonomia da vontade da pessoa natural”. Coibir tais condutas é proibir o livre exercício ao direito da personalidade, afrontando direito fundamental previsto pela Constituição de 1988.

SILVA, Luís Augusto Vasconcelos. Práticas e sentidos do barebacking entre homens que vivem com HIV e fazem sexo com homens. Disponível em <http:// www.scielo.br/pdf/icse/2010nahead/aop2210> acesso em 25/08/2015 TOLEDO, Francisco de Assis - Princípios básicos de direito penal/ Francisco de Assis Toledo. – 5. Ed. - São Paulo: Saraiva, 1994. Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/ Anne Joyce Angher, organização. - 20. ed. – São Paulo: Rideel, 2015. (Série Vade Mecum). Código Penal Brasileiro. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal/ volume I, parte geral / 10. Ed rev. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Notas de Fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

5

CONCLUSÃO Para aduzir responsabilidade penal ao transmissor, no caso foco deste estudo, teria-se que haver responsabilidade penal tanto para o transmissor quanto ao receptor, uma vez que, como podemos extrair do trabalho, o adquirente do vírus renunciou ao seu bem jurídico tutelado pelo Estado, ao consentir que um terceiro portador do vírus lhe transmitisse a doença. Não se pune a autolesão no Direito brasileiro, e tal condição deve ser estendida ao transmissor, uma vez que as ações penais são indivisíveis, não se pode punir apenas uma pessoa que pratica um crime em concurso com a outra, e deixar de punir o coautor ou partícipe, sem justificativa legal. Após uma análise detalhada sobre a transmissão do vírus doHIV/AIDS, realizada através da prática do barebacking, concluímos que não existe responsabilidade penal para aquele que transmite o vírus, uma vez que quem recebeu o vírus, valendo-se da autonomia sobre o próprio corpo, como também no exercício de seus direitos inerentes à personalidade, dispôs de seu direito para poder ter sua afirmação como pessoa, assim como também para exercer seus direitos de acordo com seus critérios valorativos. REFERENCIAS DEPARTAMENTO DE DTS, AIDS E HEPATITES VIRAIS. Disponível em <http://www.aids.gov.br/ pagina/o-que-e-hiv> Acesso em 10 de maio de 2015. FERREIRA, Henderson William Alves.O Direito Penal e as festas “barebacking”. Disponível <http://jus.com.br/artigos/19875/o-direito-penal-e-as-festas-barebacking> - acessado em 25/08/2015. MARQUES, Daniela de Freitas.A herança do vento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n.39, 2001. p. 77-106. STANCIOLI, Brunello. Renúncia Horizonte: Del Rey. 2010.

ao

exercício

da

personalidade. Belo

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

66

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A (I)LEGALIDADE DA MEDIDA PROVISÓRIA 665 CONVERTIDA NA LEI 13.134/15 EM FACE DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL Cleberson Rocha do Nascimento1 Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo2 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo oferecer argumentos jurídicos que servirão para reflexão do leitor sobre a (i)legalidade da medida provisória 665 convertida na lei 13.134/15.Será utilizada de fonte jurídica que não está descrita expressamente no texto constitucional, entretanto é utilizada como norma. Trata-se do princípio da vedação do retrocesso social. Parte-se do conceito deste princípio para o estudo comparado, entendimento jurisprudencial e doutrinário para que assim chegar à conclusão. ABSTRACT: This work aims to provide legal arguments that will serve for the reader’s reflection on the (il) legality of the provisional measure 665 converted into Law 13,134 / 15. It will be used for legal source that is not expressly described in the Constitution, though it is used as standard. This is the principle of sealing the social regression. We start from the concept of this principle to the comparative study, jurisprudential and doctrinal understanding so that the reader reaches its conclusion. PALAVRAS-CHAVE: direitos sociais; direito do trabalho; Medida provisória 665; cláusula de reserva do financeiramente possível; o princípio da vedação do retrocesso social. KEYWORDS: social rights; labor law; Provisional measure 665; reserve clause of the financially possible; the principle of sealing the social regression. SUMARIO: 1 Introdução; 2 A Medida Provisória;2.1)Conceito e Características; 3 O Benefício Seguro-Desemprego;3.1) Contexto Histórico;3.2) Regras-Análise;4 O Princípio Da Vedação Do Retrocesso Social; 4.1) O Princípio Da Vedação Do Retrocesso Social No Direito Comparado; 4.2) O Princípio da Vedação Do Retrocesso Social no Brasil; 5) Análise Da Medida Provisória 665 Convertida a Lei 13.134/15 Em Face Do Princípio da Vedação Do Retrocesso Social;6) Conclusão; Referências,Notas de Fim.

1. INTRODUÇÃO Os Direitos Sociais são direitos que fundamentam a dignidade da pessoa humana; preceito constitucional. Contudo recentes políticas de governo surgiram na tentativa de diminuí-los como forma de solução para uma crise, em escala mundial que atravessa diversos países. O presente trabalho trás à discussão a (i)legalidade da medida provisória 665, convertida na lei 13.134/15 em face Princípio da Vedação do Retrocesso Social. Em primeiro momento dá-se o conceito de medida provisória e suas características. Após entende-se aspectos básicos do benefício seguro desemprego, tais como: o contexto histórico e as regras para concessão.Mais adiante se trabalha o Princípio da Vedação do Retrocesso Social, contextualizando sua origem, como é visto no direito comparado e no Brasil. Para desenvolver,destaca-se a experiência de países como Alemanha, Argentina e protocolos internacionais. Fala-se do Princípio da Reserva do Possível, do Mínimo Existencial, da Dignidade da Pessoa Humana, da Razoabilidade e Proporcionalidade. Dá-se ênfase a julgados de cortes nacionais e internacionais, para assim chegar à análise da medida provisória em questão e sua (i)legalidade, considerando os princípios constitucionais. Para enriquecer usa-se pensamentos de doutrinadores, tais como José Joaquim Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Celso de Melo, Vicente Paulo ,Marcelo Alexandrino, e demais. Ao final chega-se à conclusão com um posicionamento que poderá ser usado na busca pela solução para o problema enfrentado.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

2. A MEDIDA PROVISÓRIA 2.1 - Conceito e características Inicialmente estudar-se-á a medida provisória, dando o conceito, características, sua importância e como se dá seu processo de votação até a promulgação. O legislador criou um instituto jurídico que dá suporte ao Governo para que, no exercício da gestão do país, em casos de urgência e relevância, possa adotar medidas solucionadoras dos problemas econômicos, sociais e financeiros, a curto prazo.Trata-se das medidas provisórias. As medidas provisórias (Alexandrino, 2014, p. 559) são atos normativos primários, provisórios e sob condição resolutiva, de caráter excepcional no quadro da separação dos poderes, editados pelo Presidente da República situados no processo de elaboração normativa ao lado da lei. A vigente Constituição aboliu o decreto-lei do processo legislativo, substituindo-o pela medida provisória, instituída no artigo 59 da Carta Magna e disciplinada em seu artigo 62. Segundo Paulo e Alexandrino, para argumentar: [...] As medidas provisórias tiveram dois regimes jurídicos distintos, desde a data da promulgação da Constituição Federal até hoje: o primeiro vigorou da promulgação da Constituição Federal até a promulgação da EC 32,de 11.09.2001: o outro regime, hoje vigente,foi introduzido pela EC 32/2001, e é aplicável às medidas provisórias editadas em data posterior à promulgação desta emenda constitucional[...] (2014,p.559-560).

67

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Em caso de urgência ou relevância, adotada a medida provisória pelo chefe do executivo, esta deve ser submetida ao Congresso Nacional, que terá o prazo de 60 dias para apreciá-la, podendo ser prorrogável por igual período. No Congresso Nacional, a medida provisória será apreciada por uma comissão mista que apresentará um parecer favorável ou desfavorável à sua conversão em lei; este parecer prévio é meramente opinativo, porém, é obrigatório e sua inobservância configura inconstitucionalidade formal. A votação da medida provisória será iniciada obrigatoriamente pela Câmara dos Deputados. Emitido o parecer, o plenário das casas legislativas examinará a medida provisória e, sendo convertida integralmente em lei, o presidente do Senado Federal a promulgará, remetendo-a para publicação. Se integralmente rejeitada ou, caso perca a eficácia por decurso de prazo, a medida provisória será arquivada. Nas palavras de Paulo e Alexandrino (2014, p.563): Caso sejam introduzidas modificações no texto adotado pelo Presidente da República (conversão parcial), a medida provisória será transformada em projeto de lei de conversão, e o texto aprovado no Legislativo será encaminhado ao Presidente da República, para que sancione ou vete. Conforme disciplinado no artigo 62, §1º da Constituição Federal de 1988, as medidas provisórias não podem disciplinar qualquer matéria, pois existem limitações constitucionais à sua edição. O texto constitucional veda edição normativa que trata de nacionalidade, cidadania, direitos políticos, eleitorais, direito penal, processo penal, processo civil, organização dos poderes, planos plurianuais, matérias que visem a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro. Além disso, a medida provisória não trata de matéria reservada à lei complementar. Em suma, não há, conforme exposição supracitada, nenhuma limitação quanto à edição de medida provisória, em que pese os direitos sociais disciplinados no art. 6° e art. 7° da Constituição Federal, tais como: direitos sociais à educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados. Após a conceituação de medida provisória e suas características, passa-se ao estudo do benefício do seguro-desemprego.

3. O BENEFÍCIO DO SEGURO-DESEMPREGO 3.1 - Contexto Histórico O seguro-desemprego é um benefício concedido pelo Governo Federal ao trabalhador desempregado, com o fim de prestar-lhe assistência temporária, em razão de dispensa imotivada, rescisão indireta ou paralisação das atividades do empregador. Embora previsto na Constituição de 1946, foi introduzido no Brasil no ano de 1986 por intermédio do Decreto-Lei n° 2.284 de 10 de março de 1986 e Regulamentado pelo Decreto n° 92.608,de 30 de abril de 1998(ARAÚJO,2008). Após a Constituição de 1988, o benefício seguro-desemprego passou a integrar o Programa de seguro-desemprego que tem por objetivo, além de prover assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado em virtude de dispensa imotivada, inclusive a indireta, dar manutenção enquanto busca recolocação no mercado de trabalho dando qualificação profissional e orientação(ARAÚJO,2008). O programa foi criado por intermédio da Lei 7.998,de 11 de janeiro de 1990,com a instituição do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT o que permitiu mudanças nas normas para o cálculo dos valores

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do benefício seguro-desemprego(ARAÚJO,2008). Em 1991 o Governo Federal, através da Lei 8.352, alterou o Programa de Seguro-desemprego promovendo novos critérios, visando maior abrangência do benefício. A partir de 1994 entrou em vigor a Lei 8.900 que estabeleceu critérios diferenciados de parcelas do benefício. Em novembro de 1998 foi instituída a Medida Provisória 1.726, alterada pelas Medidas Provisórias 1.779-6, 1.779-7 e 1.779-11, estabelecendo o pagamento de até três parcelas do benefício para os trabalhadores de desemprego de longa duração(ARAÚJO,2008). Passa-se então, à análise das regras do benefício seguro-desemprego na vigência de Lei 7.998/90 e alterações posteriores. 3.2 -Regras – Análise Com o advento da Medida Provisória 665 de 2014, convertida na Lei de n° 13.134 de 2015, houve mudanças nas regras de concessão do benefício para os trabalhadores dispensados sem justa causa. Na vigência da Lei 7.998/90, era exigido que o trabalhador tivesse recebido de pessoa física ou jurídica, salário relativo a cada um dos seis meses imediatamente anteriores à data da dispensa. Com a vigência da medida provisória 665, o trabalhador terá que comprovar vínculo com o empregador por pelo menos 18 meses na primeira vez em que requerer o benefício. Na segunda solicitação, o período de carência será 12 meses. A partir do terceiro pedido, a carência voltará a ser de 06 meses (VERDÉLIO,2015). Com a promulgação Lei 13.134/15, o trabalhador terá que comprovar vínculo com o empregador de no mínimo 12 meses na primeira vez em que requerer o benefício, e na segunda solicitação, o período de carência será de 09 meses. Nas demais solicitações não houve alteração. Fazendo uma análise da revogação da Lei 7.998/90, com a criação da medida provisória 665 e conversão na Lei 13.134/15, percebe-se que houve maior exigência de período de vínculo empregatício, tanto na vigência da medida provisória, como após a promulgação da lei em questão. Atrelado a esta mudança, vivencia-se a crise econômica e dispensa imotivada nos setores de serviço e indústria no país. Destacamse as palavras do professor José Pastore: No final de 2014 e inicio de 2015, o quadro virou, e o mercado de trabalho, que estava relativamente blindado, passou a sentir o peso dos desequilíbrios. Já em janeiro, o desemprego nas regiões metropolitanas saltou dos 4,3%, registrados em dezembro de 2014, para 5,3%. Em março, passou para 6,2% e, em abril, para 6,4%. Ficou claro que os desequilíbrios provocados pelas políticas equivocadas do governo federal estavam chegando ao mercado de trabalho. O desemprego em todo o País, medido pela Pnad Contínua2, chegou a 7,9%. Entre os jovens, atingiu 18% entre os que tinham de 18 a 24 anos. Hoje em dia, o Brasil possui cerca de 8 milhões de pessoas desempregadas. Trata-se de um número muito alto quando se considera o desempenho recente do mercado de trabalho e os gastos que isso provoca nas contas públicas, em especial, no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), de cerca de R$ 40 bilhões anuais, para atender às necessidades do seguro-desemprego. O número é grave também quando se considera que o trabalho desprotegido do mercado informal ainda atinge cerca de 40 milhões de brasileiros. (PASTORE,2015). Após análise da alteração da norma, passa-se ao estudo do Princípio da Vedação do Retrocesso Social.

68

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


4. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL 4.1 - O Princípio da Vedação do Retrocesso Social – Origem O princípio da proibição do retrocesso social surge a partir das modificações das características do Estado, ou seja, da transição de Estado de Direito para o Estado Social e, posteriormente, para Estado Democrático do Direito. Sampaio (2005, apud Lisboa,2013) adverte que o princípio surgiu no século XIX quando se tornou importante a participação do legislador na concretização dos direitos fundamentais. Para Lisboa (2013), o reconhecimento do Princípio da Proibição do Retrocesso Social foi a crise financeira e econômica vivenciada após as duas grandes guerras e o fenômeno da globalização e formação de blocos econômicos. Derbi (2007, apud Lisboa,2013) aborda de forma estreita o fenômeno da globalização porque, segundo autor, por intermédio da supremacia das questões mercadológicas, a forma de se conceber o Estado passou a ser relativizada, já que se colocou em cheque o conceito de soberania, na medida em que manifestações normativas passaram a abranger o terreno maior que a dimensão de apenas um Estado. Os blocos econômicos passaram a ditar as regras da economia por meio de acordos e tratados internacionais e as constituições foram perdendo seu poder normativo, passando a não mais serem instrumentos aptos a garantir a efetividade dos direitos sociais.Assim, surgiu a necessidade de se utilizar de princípios. No Brasil, o Princípio da Vedação do Retrocesso Social está em desenvolvimento, contudo, apesar de não ser positivado em lei é utilizado como fonte jurídica. Segundo Lisboa (2013), em outros países esse princípio já se desenvolveu principalmente na Alemanha e em Portugal. A experiência internacional é o principal elemento para a busca do fundamento do princípio, razão pela qual passa-se à análise do direito comparado. 4.1 - O Princípio da Vedação do Retrocesso Social no Direito Comparado Na Alemanha, a crise econômica colocou em cheque a certeza da manutenção dos benefícios sociais proporcionados pelo Estado Social. E a tese da proibição do retrocesso social surgiu com a modificação legislativa em relação ao serviço de previdência. Diante da mudança previdenciária, evidenciou-se a instabilidade dos direitos subjetivos, transportando a discussão para a seara constitucional, sendo analisada pelo Tribunal Constitucional Alemão (SARLET, 2007). Desenvolveu-se uma discussão doutrinária e jurisprudencial em relação aos limites que o princípio constitucional do Estado Social colocaria a uma intervenção legislativa que afetasse os benefícios concedidos. Os Direitos Sociais não constavam na Constituição alemã. Ficando o povo alemão à mercê de uma possível revogação legislativa. Surge-se então, a necessidade de se criar um princípio que confrontasse com o legislador, para impedir a perda parcial ou total de direitos já sedimentados no âmbito social alemão. Cabe ressaltar que os direitos sociais fundamentais não vêm expressos na Lei de Bonn de 1949, especialmente os de segunda geração, como saúde, direitos dos trabalhadores e moradia. Segundo Krell(2002, apud Lisboa,2013,p.190) “esta ausência justifica-se devido à descrença dos alemães em relação à carta de Weimar de 1919,pois alguns institutos nela previstos foram utilizados para legitimar a atuação dos nazistas,como o plebiscito”. Assim, entende-se que a Constituição contribuiu para “[...]a radicalização da política desse país nos anos 20 e a tomada do poder pelos nazistas em 1933” (KRELL, 2002 apud LISBOA, 2013 p, 190). Entretanto, há peculiaridade no sistema Alemão, já que ele “[…] fixa, de maneira obrigatória, as tarefas e a direção da atuação estatal presente e futura,sem, no entanto, criar direitos subjetivos para sua

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

realização”(KRELL,2002 apud LISBOA, 2013,p.190). Houve adesão por parte dos estados latino-americanos ao Pacto Internacional de Direitos Sociais,Econômicos e Culturais e ao Protocolo de San Salvador,que por si só já implica comprometimento jurídico com o dever de progressiva realização de tais direitos e, em conseqüência, com a correlata proibição de regressividade (SARTET,2009). Na Argentina, em julgado proferido pela Câmara de Apelações do Contencioso Administrativo e Tributário da Cidade de Buenos Aires, estava em causa a garantia de uma habitação digna para pessoas submetidas à condições de vida precárias, em ambiente marcado por forte exclusão social. O caso envolvia a negação de acesso à moradia por parte do autor da demanda. O tribunal argumentou que a descontinuidade das prestações sociais viola o princípio da proibição do retrocesso, pois uma vez reconhecido e efetivado um direito social, quando se trata de pessoas que se encontram em situação econômica e social precária, não é possível eliminar esta condição básica de inclusão social, quando faltam alternativas razoáveis adotadas por parte do poder público (SARLET, 2009). Ademais, observa-se que internacionalmente há uma preocupação com os direitos sociais, buscando impedir que políticas estatais possam atingi-los. Passa-se à análise do princípio da vedação do retrocesso social no Brasil. 4.3 Princípio da Vedação do Retrocesso Social no Brasil A proibição do retrocesso social em matéria de direitos sociais é uma categoria reconhecida, em processo de crescente difusão e elaboração doutrinária e jurisprudencial em várias ordens jurídicas,inclusive em função da sua consagração no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos (SARLET,2009). Melo(2011) defende que o Princípio da Vedação do Retrocesso Social é uma garantia constitucional implícita, decorrente do denominado bloco de constitucionalidade,tendo sua matriz axiológica nos Princípios da Segurança, da Máxima Efetividade dos Direitos Constitucionais e da Dignidade da Pessoa Humana, mas se constitui em um princípio autônomo, com carga valorativa eficiente própria. O Princípio tem como conteúdo a proibição do legislador em reduzir, suprimir, diminuir, ainda que parcialmente, o direito social já materializado em âmbito legislativo e na consciência geral. A doutrina majoritária, seguindo os ensinamentos de Sarlet (2009), entende que o princípio da Proibição ao Retrocesso Social tem como base os princípios do Estado Democrático e Social de Direito, da Dignidade da Pessoa Humana, da Máxima Efetividade das Normas Constitucionais (art. 5°, §1º da Constituição da República Federativa do Brasil), que também é princípio hermenêutico, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé. Teria este princípio alicerce na própria dignidade da pessoa humana, de onde derivam quase todos os demais direitos, tais como:direito à saúde, educação, ao trabalho, à liberdade e propriedade. Registra-se abaixo a conexão principiológica: [...] o que sempre fizemos questão de sublinhar, também resulta evidente que se registra, conforme já lembrado, uma inquestionável conexão entre ambas figuras(proibição do retrocesso e segurança jurídica), assim como se revela como sendo incontornável o liame entre proibição de retrocesso e outros princípios e institutos jurídico-constitucionais, com destaque para o da proporcionalidade e razoabilidade, assim como com a própria dignidade da pessoa humana[...] (SARLET, 2009,p.125).

69

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 581352/AM, traz também uma definição do Princípio da Proibição ao Retrocesso, conforme a seguir: EMENTA: AMPLIAÇÃO E MELHORIA NO ATENDIMENTO DE GESTANTES EM MATERNIDADES ESTADUAIS. DEVER ESTATAL DE ASSISTÊNCIA MATERNO-INFANTIL RESULTANTE DE NORMA CONSTITUCIONAL. OBRIGAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, INCLUSIVE AOS ESTADOS-MEMBROS. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO ESTADO-MEMBRO. DESRESPEITO. À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA (RTJ 185/794-796). A QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE, SEMPRE QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191197). O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO. A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO. A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDOPROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS (CF, ART. 227). A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROIBIÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO). DOUTRINA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220). POSSIBILIDADE JURÍDICO-PROCESSUAL DE UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” (CPC, ART. 461, § 5º) COMO MEIO COERCITIVO INDIRETO. EXISTÊNCIA, NO CASO EM EXAME, DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL. Sábias as palavras de MELO (2013, p.14), “refiro-me ao Princípio da Proibição do Retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”. Para o Ministro Melo (2013), o princípio da proibição do retrocesso social impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão. Em matéria social, traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa, pertinente aos direitos sociais de natureza prestacionais, impedindo que os níveis desta concretização uma vez alcançados, venham a ser reduzidos ou suprimidos. Por outro lado, poderá ser reduzido ou suprimido caso

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais. Caso haja supressão, configurará clara violação do Princípio da Proteção da Confiança e da Segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana(Melo, 2013). Canotilho (2003) afirma que os direitos sociais econômicos, incluindo os direitos dos trabalhadores, uma vez obtidos em determinado grau de realização, passam a constituir simultaneamente uma garantia institucional e um direito subjetivo. A proibição do retrocesso social nada pode fazer contra recessões e crises econômicas, mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos, tal como o direito ao subsídio do seguro-desemprego; em clara violação do Princípio da Proteção da Confiança e da Segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. Na mesma linha, Paulo e Alexandrino (2014), destacam que, os Direitos Sociais, por exigirem disponibilidade financeira do Estado, estão sujeitos à denominada cláusula da reserva do possível.Esse princípio implícito tem como consequência o reconhecimento de que os direitos sociais assegurados na Constituição devem ser efetivados pelo poder público, mas na medida em que isso seja possível. Cabe destacar que este princípio não pode ser utilizado genericamente pelo Estado como justificativa para deixar de cumprir suas obrigações, sob alegações de que não há recursos suficientes.A não efetivação ou efetivação parcial de direitos constitucionalmente assegurados, somente se justifica se, em cada caso, for possível demonstrar a impossibilidade financeira de sua concretização. Dentro dos princípios do Estado Democrático e Social de Direito, há um subprincípio que exige a manutenção de um patamar mínimo, em termos de proteção social e segurança jurídica. Trata-se do Princípio da Garantia do Mínimo Existencial, também postulado implícito na Constituição Federal de 1988,que atua como um limite à cláusula da reserva do financeiramente possível Paulo e Alexandrino(2014). Diz-se que a dificuldade estatal, decorrente da limitação de recursos financeiros, não afasta o dever de o Estado de garantir um mínimo necessário para a existência digna da população(Paulo e Alexandrino,2014). Desta feita, identifica-se que o pensamento dominante veda a redução, supressão dos direitos sociais, por ferir o Princípio da Vedação do Retrocesso Social. 5. ANÁLISE DA MEDIDA PROVISÓRIA 665 CONVERTIDA NA LEI 13.134/15 EM FACE DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL Os direitos sociais, segundo Paulo e Alexandrino (2014), vinculam o legislador infraconstitucional, exigindo deste um comportamento positivo para regulamentação dos serviços e políticas públicas. O Princípio da Proibição do Retrocesso Social, embora não previsto na Constituição, está consagrado na ordem constitucional. Uma vez regulamentado determinado dispositivo de índole social,o legislador não poderia retroceder no tocante à matéria,prejudicando o direito já reconhecido ou concretizado. A MP 665 alterou a lei 7.998/90, que regula o Programa do Seguro-Desemprego,pois anteriormente, após seis meses de trabalho, o trabalhador tinha direito ao benefício,mas, após a aprovação da medida provisória, passou a exigir maior tempo de vínculo empregatício para concessão do benefício. Isto significa uma redução/restrição de direito em que determi-

70

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


nados trabalhadores, ou seja, aqueles que trabalharam 17 meses ou menos no primeiro emprego, no advento da medida provisória, não receberão tal benefício. Com o advento da Lei 13.134/15, aqueles que trabalharem menos de 12 meses, também não receberão o benefício. Pode-se considerar a legislação discutida como ilegal, por ferir o Princípio da Vedação do Retrocesso Social.Ressalta-se que durante a crise o governo não tem implementado políticas compensatórias para esta quantidade de desempregados, pelo contrário, determinou corte orçamentário em diversos setores da econômica. Atrelado à implantação da medida provisória 665, o governo propôs a medida provisória 664 que estabeleceu uma reforma no sistema previdenciário, modificando as regras de concessão do auxílio doença,pensão por morte, delimitando a obtenção do benefício. No entanto, a medida provisória foi aprovada e o governo propôs medidas compensatórias, que não estão sendo cumpridas.Não houve fundamentação nem motivo que justificasse a cláusula da reserva do possível, pois a medida atingiu a todos trabalhadores e não casos concretos.Em tempos de crise, deve-se preservar o mínimo para garantia existencial de cidadão. Deve-se preservar os direitos já sedimentados, sob a ótica da dignidade da pessoa humana. 6. CONCLUSÃO Assim como em virtude dos efeitos perversos da globalização, em particular no plano econômico, não se pode simplesmente negligenciar a relevância do reconhecimento de uma proibição de retrocesso como categoria jurídico-constitucional, ainda mais quando a maioria das reformas não dispensa mudanças no plano das políticas públicas e da legislação SARLET(2009). Situa-se dentro destes efeitos, a supressão de garantias dos trabalhadores, sem falar no crescimento dos níveis de desemprego e índices de subemprego. É indiscutível o enorme prejuízo suportado pelo trabalhador desempregado, em virtude da crise, face a impossibilidade de recebimento do benefício do seguro-desemprego, tendo que disputar o mercado informal. Não se recolocando, não terá o mínimo existencial para viver com dignidade neste período. Sarlet Observa: “O Mínimo existencial abrange bem mais do que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser restringido, portanto, à noção de um mínimo vital” (SARLET 2009, p.140). Ferem-se assim os princípios constitucionais; que são a Dignidade da Pessoa Humana, a Garantia do Mínimo Existencial, a Reserva do Possível e o Princípio da Vedação do Retrocesso Social. Sabe-se que a discussão sobre o assunto vai muito além da exposição acima, tanto o princípio, quanto a legislação colocada são recentes e carecem de estudos aprofundados. O Princípio Da Vedação do Retrocesso em conjunto com os demais é reconhecido internacionalmente, como fonte de garantia dos direitos do cidadão, por isso, motivou o desenvolvimento deste trabalho. Chega-se à conclusão entendendo que a legislação foi aprovada em um momento de crise econômica, objetivando realizar cortes de gastos com receitas públicas, trazendo prejuízo para os trabalhadores, devendo assim, ser revogada, modulando seus efeitos. REFERÊNCIAS ALVES,Cândice Lisbôa.Direito à saúde.Efetividade e proibição do retrocesso social.Belo Horizonte.D’plácido,2013.

mentários do Juiz Jorge Alberto Araújo.Disponível em: http://direitoetrabalho. com/seguro-desemprego/. Acesso em: 01/11/2015. BRASIL. Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES. Fundo de Amparo ao trabalhador – FAT. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/ bndes_pt/Institucional/BNDES_Transparente/Fundos/Fat/index.html. Acessado em 11/10/2015. ______.Constituição (1988).Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:Senado Federal,1988. ______. Medida Provisória 664 de 30 de dezembro de 2014. Altera as Leis no 8.213, de 24 de julho de 1991, nº 10.876, de 2 junho de 2004, nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e a Lei nº 10.666, de 8 de maio de 2003.Diário Oficial da República do Brasil,Poder Executivo,Brasília,DF,30 de dez.2014.Seção 1,p.1. ______. Medida Provisória nº 665 de 30 de dezembro de 2014. Altera a Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990, que regula o Programa do Seguro-Desemprego, o Abono Salarial e institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, altera a Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003, que dispõe sobre o seguro desemprego para o pescador artesanal, e dá outras providências.Diário Oficial da República do Brasil,Poder Executivo,Brasília, DF, 30 dez. 2014.Seção 1,p. 2. ______. Ministério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Políticas Públicas de Emprego. Departamento de Emprego e Salário. Manual de Atendimento. Programa Seguro Desemprego. Disponível em: http://www.borgmanninformatica. com.br/downloads/manualsegurodesemprego.pdf. Acesso em 13/11/2015. ______. Supremo Tribunal Federal.Recurso Extraordinário 581352 RE/AM.Rel. Min.Celso de Melo.Julgamentoem:24/09/13.Disponívelem:http://www.stf.jus. br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28581352%2ENUME%2E+OU+581352%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http:// tinyurl.com/mhgantl. Acesso em 01/10/15. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7.ed.Coimbra:Almedina,2003. KRELL,Andreas J.Direitos Socias e controle judicial no Brasil e na Alemanha:os (dês)caminhos de um direito constitucional “comparado”.Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris,2002. MELO,Geraldo Magela.O Direito do Trabalho e o Princípio da Vedação do Retrocesso.Revista Magister deDireito do Trabalho nº42 Maio-Jun/2011, p,113 -123. NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro universitário Newton. 2011. Disponível em: http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_Paiva_2011.pdf. Acesso em: 25/10/2014. PASTORE, J.Emprego e desemprego em 2015:baixo desemprego com baixo crescimento. Edição nº30.Revista Interesse Nacional.Ano 8 jul/set 2015. Disponível em: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoes-revista/emprego-e-desemprego-em-2015/. Acesso em:13/11/2105. PAULO, Vicente; Alexandrino, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado. 13.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. SARLET,Ingo Wolfgang.Notas Sobre a Assim Designada Proibição de Retrocesso Social No Constitucionalismo Latino-Americano. Revista do tribunal Superior do Trabalho.Brasília.Vol. 75,nº3,jul/set 2009 p, 117-149.

VERDÉLIO, Andreia.Mudanças no seguro-desemprego valem para demitidos a partir deste sábado.Agência Brasil,Brasília, fev. 2015.Disponível em:http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2015-02/ mudancas-no-seguro-desemprego-valem-para-demitidos-partir-deste-sabado. Acesso em:01 set.2015. Notas de fim Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

ARAÚJO, Jorge Alberto.Direito do Trabalho.Processo do Trabalho.Artigos e Co-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

71

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


LEI 13.015/2014: alteração no sistema recursal trabalhista e o incidente de uniformização de jurisprudência como requisito obrigatório de admissibilidade do Recurso de Revista Cleide Margarida Vieira1 Amanda Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO: O presente artigo objetiva avaliar, sob o viés do Sistema Recursal Trabalhista, as principais mudanças ocorridas recentemente quanto ao modo de interposição e novos pressupostos de admissibilidade acerca de determinados Recursos da seara trabalhista. A Lei nº 13015/2014, com vacância legal de sessenta dias, publicada no Diário Oficial da União, edição de 22 de julho de 2014, trouxe modificações no recurso de embargos no Tribunal Superior do Trabalho, ao recurso de revista, aos embargos de declaração, ao agravo de instrumento e referente ao incidente de recursos repetitivos. Serão abordados com maior realce os temas que tem apresentado maior repercussão referente às mudanças do Recurso de Revista, bem como apontará os novos procedimentos para o incidente de uniformização de jurisprudência que se apresenta como pressuposto obrigatório de admissibilidade do mesmo. Demonstrando ainda, o principal objetivo da referida mudança, qual seja; a segurança jurídica, que se apresenta em nosso ordenamento jurídico como um dos principais pilares da justiça, e que concede aos indivíduos a garantia para o desenvolvimento das relações sociais que é a finalidade maior do Direito. ABSTRACT: This article aims to evaluate, under the bias of the Labour Appeals System, the main recent changes regarding the filing mode and new admissibility assumptions about certain features of the labor harvest. Law No. 13015/2014, with sixty days cool vacancy, published in the Official Gazette, edition of July 22, 2014, brought changes to the embargoes feature in TST, to an appeal, to requests for clarification, the grievance instrument and related the incident of repetitive appeals.Will be addressed with more emphasis on the issues that have had a greater impact related to changes in the review appeal and appoint the new procedures for the case-law of uniformity incident that presents itself as a mandatory prerequisite for the acceptance of it. Demonstrating yet, the main purpose of that change, namely; legal certainty, which is presented in our legal system as one of the main pillars of justice, and that gives individuals the guarantee required for the development of social relations, which is the highest purpose of the law. PALAVRAS-CHAVE: Lei nº 13015/2014, Recurso de Revista, Incidente de Uniformização de Jurisprudência. KEYWORDS: Law No. 13015/2014, review appeal, Incident standardization of jurisprudence, Legal Security. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Caracterização do Direito do Trabalho: definição, denominação e função; 3 Considerações Acerca do Sistema Recursal Brasileiro; 3.1 Os Pressupostos Recursais no Direito Processual Trabalhista; 4 Recurso de Revista e sua Aplicabilidade no Sistema Recursal Trabalhista; 5 A Aplicabilidade do Incidente de Uniformização de Jurisprudência em Conformidade Com o Atual Código de Processo Civil; 6 Lei nº 13015/2014 - Alterações no Sistema Recursal Trabalhista Com Ênfase na Aplicação do Incidente de Uniformização de Jurisprudência no Recurso de Revista; 7 Considerações Acerca da Aplicabilidade da Lei nº 13015/2014 no Recurso de Revista; 8 Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO Recentemente, o Sistema Recursal Trabalhista passou por uma grande transformação no qual ocorreram algumas mudanças quanto a certos procedimentos de admissibilidade, e de interposição de determinados recursos, o que está gerando grande discussão no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente este tema ganhou destaque entre doutrinadores, juristas, Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, advogados, desembargadores, dentre outros profissionais que exercem atividade jurídica. O Projeto de Lei 2214/11 elaborado pelo Deputado Valtenir Pereira (PROS-MT), desencadeou a recente Lei nº 13.015/2014, com vacância legal de sessenta dias, publicada no Diário Oficial da União, edição de 22 de julho de 2014. A Lei 13015/2014, alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que fora aprovada pelo Decreto-Lei nº 5452 de 1º de Maio de 1943, Lei essa instituída para dispor sobre o processamento de recursos no âmbito da Justiça do Trabalho, e foram alterados os artigos 894, 896, 897-A e 899 da CLT, o que significa dizer, as matérias pertinentes ao recurso de embargos no TST,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ao recurso de revista, aos embargos de declaração, ao agravo de instrumento e referente ao incidente de recursos repetitivos. No presente trabalho, será abordado com maior ênfase a alteração do artigo 896, §3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, que trouxe como requisito de admissibilidade do Recurso de Revista à obrigatoriedade do incidente de uniformização de jurisprudência, dada à intensidade dos impactos que esse novo regramento impôs ao Sistema Recursal Trabalhista. Outro fato importante que será objeto da presente pesquisa e que se tem questionado muito no âmbito jurídico, refere-se à questão da nova Lei ir ao desencontro da celeridade processual, o qual se apresenta no direito do trabalho como um modelo ideal a ser seguido e que sempre foi almejado no ramo jus trabalhista. Verificaremos também, a questão da segurança jurídica, que é um dos principais objetivos do novo texto do Recurso de Revista. O presente estudo discorrerá ainda, acerca de algumas das principais características do Direito do Trabalho, bem como considerações acerca do sistema recursal trabalhista, dos pressupostos recur-

72

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sais, das principais características do recurso de Revista e do incidente de uniformização de jurisprudência no ordenamento jurídico pátrio. Por fim, apontará as principais mudanças que a Lei 13015/2014, trouxe ao sistema recursal trabalhista, e os fatores benéficos ocorridos no Recurso de Revista. 2 CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO: definição, denominação e função Para dar início ao estudo sobre o sistema recursal trabalhista, importante se faz compreender a importância do Direito do Trabalho, bem como suas denominações, funções e o contexto em que este fenômeno social está inserido em nossa sociedade. O Direito do Trabalho é um ramo jurídico especializado que regula a relação de trabalho no meio em que vivemos. A definição de Direito do Trabalho pode ser compreendida em duas modalidades; uma refere-se ao Direito Individual do Trabalho se apresentando como um complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam às pessoas e matérias envolvidas à relação empregatícia de trabalho, bem como outras relações laborativas especificadas. (DELGADO, 2015, p. 47) Já no que diz respeito ao Direito Coletivo do Trabalho, esse pode ser definido como o complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam as relações de trabalho entre empregados e empregadores, além da existência de outros grupos especificados, considerando-se sua ação coletiva, realizada de forma autônoma ou através das respectivas associações. (DELGADO, G, 2015, p. 47) Dessa forma, tem se que o Direito Individual e o Direito Coletivo do Trabalho compreendem-se no Direito Material do Trabalho, podendo esse, ser simplesmente denominado como Direito do Trabalho. Nesse sentido explica (DELGADO G. 2015, p. 47), que a qualificação de Direito do Trabalho pode ser definida como: Complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam a relação empregatícia de trabalho e outras relações normativamente especificadas, englobando, também, os institutos, regras e princípios jurídicos concernentes às relações coletivas entre trabalhadores e tomadores de serviços, em especial através de suas associações coletivas. Ressalta-se que sob o ponto de vista de seu conteúdo, o Direito do Trabalho é fundamentalmente o Direito voltado aos empregados, que especificamente assim são considerados. Contudo, destaca-se que tal ramo jurídico não se apresenta como o Direito de todos os trabalhadores considerados em seu gênero, pois dessa área de abrangência especializada são excluídas inúmeras categorias específicas de trabalhadores não empregatícios. Dessa forma, a título exemplificativo podemos citar os trabalhadores autônomos, os eventuais, os estagiários, além dos servidores públicos não empregaticiamente contratados, ou seja, os servidores sob regime administrativo. (DELGADO G. 2015, p. 52). Estes não fazem parte da categoria dos trabalhadores empregados, não podendo ser considerados conteúdo principal do ramo justrabalhista. Já no que se refere à denominação do Direito do Trabalho, tal instituto tornou-se homogêneo na atual conjuntura em que se encontram os estudos jurídicos sobre o tema. Vale ressaltar que o ramo jurídico em estudo, já recebeu diferentes denominações, no século XX. O mesmo já recebeu a qualificação de Direito Industrial, Direito Operário, Direito Corporativo, Direito Sindical e Direito Social. Contudo, nenhum desses prevaleceu, conforme nos ensina (DELGADO G., 2015, p. 48). Estando consagrada desde meados do século XIX a expressão Direito do Trabalho.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Importante se faz ressaltar que todo Direito incorpora e realiza um conjunto de valores socialmente relevantes. O ramo justrabalhista incorpora no conjunto de seus princípios, regras e institutos, um valor finalístico essencial, que marca a direção de todo sistema jurídico que o compõe. (DELGADO G., 2015, p. 54). Este valor refere-se na melhoria, e supervisão das condições de pacto da força do trabalho na ordem socioeconômica. Sem o referido valor e direção ao qual se aplica o Direito do Trabalho não se compreenderia e sequer se justificaria socialmente, podendo deixar de até mesmo cumprir sua principal função na sociedade. Essa função que busca a melhoria das condições de labor é decisiva para frear a disponibilização sem a devida proteção da força de trabalho no sistema socioeconômico capitalista e tem como intuito principal restringir o livre exercício das forças do mercado no comando da oferta e da administração do trabalho humano. Conforme nos ensina DELGADO G., (2015, P. 54), outra função notável do Direito do Trabalho refere-se a sua peculiaridade moderna e progressista do ponto de vista econômico social. A legislação trabalhista desde seu surgimento cumpriu com o relevante papel de generalizar condutas e direitos alcançados pelos trabalhadores nos seguimentos mais avançados da economia, impondo assim, condições mais modernas, ágeis e civilizadas de gestão da força do trabalho. No Brasil, tal fato pôde ser observado em meados de 2003, onde deflagrou-se um perceptível processo de formalização empregatícia, aumentando de forma considerável o montante de trabalhadores formalmente incorporados ao Direito do Trabalho na economia e na sociedade. Foi nesse período que o país vivenciou um expressivo processo de inclusão social e econômica de pessoas e famílias, permitindo se observar com clareza o significativo papel civilizatório e progressista do Direito do Trabalho em nosso meio. (DELGADO. G, 2015, p. 57). O Direito do Trabalho se apresenta como um dos meios mais infalíveis no que se refere a instrumentos de gestão e moderação de uma das mais importantes relações jurídicas existentes na sociedade contemporânea, a relação de emprego. Salienta-se ainda, que o direito regula toda a vida social, e na esfera trabalhista houve a necessidade do surgimento do direito processual do trabalho, esse, utilizando-se de regras próprias proporcionando uma maior efetividade e segurança na aplicação do Direito do Trabalho. Para Mário Pasco, citado por Schiavi (2013 p, 109), o Direito Processual do Trabalho tem por finalidade tornar efetivo o Direito substantivo do Trabalho. E para esse fim, o processo deve guardar adequação com a natureza dos direitos que se controvertem. Além disso, o Direito Processual do Trabalho tem como um de seus principais objetivos solucionar com justiça o conflito trabalhista tanto entre empregado e empregador, como o conflito coletivo do grupo, da categoria, e das classes profissional e econômica. (SCHIAVI M., 2013, p. 111). A legislação processual trabalhista visa impulsionar o cumprimento da legislação do trabalho. Assim, como o Direito do Trabalho visa proteger o trabalhador, e a melhoria de sua condição social, o Direito Processual do Trabalho busca propiciar o acesso dos trabalhadores à Justiça, visando garantir como dito anteriormente, os valores sociais do trabalho, resguardar a dignidade do trabalhador, bem como a composição justa do conflito trabalhista. (SCHIAVI M., 2013, p. 111). 3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SISTEMA RECURSAL TRABALHISTA Inicialmente temos que os recursos são usualmente as medidas processuais mais utilizadas para impugnar determi-

73

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


nadas decisões judiciais. Os recursos devem estar expressamente previstos em lei, e de acordo com o que determina o Princípio da Taxatividade é de competência privativa da União legislar sobre direito processual, conforme consta o texto da Constituição Federal da República de 1988, em seu artigo 22, inciso I. Dessa forma, verifica-se que somente através de Lei Federal é que se podem criar recursos judiciais. Conforme nos ensina BEZERRA L. (2014, p. 825), Os recursos se apresentam como numerus clausus, ou seja, estão taxativamente previstos em Lei Federal. A palavra recurso pode ser entendida em sentido amplo e em sentido estrito. Em sentido amplo, é um remédio, ou seja, um meio de proteger um direito através de ações, recursos processuais ou administrativos. Em sentido estrito, é a provocação de um novo julgamento, na mesma relação processual, pela mesma ou por outra autoridade judiciária superior. (BEZERRA L. 2014, p. 790). Parte da doutrina conceitua os recursos como uma espécie de remédio processual, ou seja, um direito assegurado por lei para que as partes, o terceiro juridicamente interessado ou o Ministério Público possam provocar o reexame da decisão proferida na mesma relação jurídica processual, retardando, assim, a formação da coisa julgada. (BEZERRA L. 2014, p. 791) Pois bem, diversos são os conceitos formulados sobre os recursos. Contudo, iremos utilizar o conceito utilizado pelo doutrinador Pedro Batista Martins, citado por Bezerra Leite (2014). Recurso, referese ao poder de proporcionar à parte vencida, em qualquer incidente ou no mérito da demanda, a possibilidade de provocar o reexame da questão decidida pela mesma autoridade judiciária ou por outra de hierarquia superior. No que se refere à natureza jurídica dos recursos trabalhistas, existe uma corrente minoritária que entende que o recurso é uma ação autônoma, independente daquela que surgiu com a petição inicial. Para essa parte da doutrina, o direito de recorrer constitui novo exercício, após a decisão judicial, do próprio direito de ação. Porém, a segunda corrente que é majoritária defende que recurso é a continuação do procedimento, atuando como prolongamento do exercício do direito de ação dentro de um mesmo processo, essa é a que prevalece no nosso ordenamento jurídico. No sistema recursal trabalhista brasileiro prevalece o sistema ampliativo dos recursos, sobre o referido tema o ilustre doutrinador (BEZERRA L. 2014, p. 796), nos demonstra o seu conceito, qual seja: Sistema ampliativo é aquele que admite inúmeros recursos, de maneira a assegurar aos litigantes o amplo direito de impugnação doas decisões judiciais. Dito de outro modo, no sistema ampliativo não existe decisão irrecorrível. Este sistema constitui corolário do princípio do duplo grau de jurisdição e seu escopo consiste, basicamente em outorgar maior segurança jurídica aos julgados. Diante do exposto tem-se que o sistema ampliativo é aquele que admite inúmeros recursos, de maneira a propiciar as partes o amplo direito de impugnar ou atacar as decisões judiciais, não existindo para essa modalidade decisão irrecorrível. Ademais, o sistema ampliativo dos recursos constitui como um dos principais requisitos para o princípio do duplo grau de jurisdição e sua finalidade consiste basicamente em proporcionar maior segurança jurídica aos julgados. 3.1 Os pressupostos recursais no direito processual trabalhista Os pressupostos recursais são denominados como requisitos de admissibilidade dos recursos, pois constituem requisitos prévios que o recorrente deve preencher para que seu recurso seja conhe-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

cido e julgado pelo Tribunal. Trata-se de pressupostos processuais de validade e desenvolvimento do recurso que viabilizará a pretensão recursal, ou seja, são condições da ação na esfera recursal. (SCHIAVI M., 2013, p. 801). Deste modo, percebe-se que os pressupostos processuais se apresentam como meio essencial para admissibilidade do recurso interposto pelo recorrente. Estão previstos em lei, devem ser seguidos e devidamente respeitados para que haja o reconhecimento do recurso interposto. Assim, temos que a falta de quaisquer dos pressupostos de admissibilidade impede o exame do mérito do recurso pelo órgão julgador competente, impedindo a sua devida apreciação. (BEZERRA L. 2014, p. 825). Ainda, a doutrina divide em três grupos os pressupostos processuais para admissibilidade dos recursos, quais sejam; os pressupostos subjetivos, os pressupostos objetivos, e ainda os específicos. (BEZERRA L. 2014, p. 825). Os pressupostos subjetivos estão ligados às características do recorrente, que é a pessoa interessada em recorrer de alguma decisão, tais pressupostos se classificam de acordo com a legitimidade, capacidade e interesse do recorrente. De acordo com PINTO M. 2007 p 404, tem legitimidade para recorrer àquele que teve uma sentença que lhe foi desfavorável, no todo ou em parte. Tendo também legitimidade para compor a relação processual, o terceiro prejudicado ou terceiro interessado, bem como, o Ministério Público do Trabalho, e o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, conforme demonstrado no texto do artigo 898 da Consolidação das Leis do Trabalho. Contudo, não basta haver somente a legitimidade, é preciso que haja também capacidade recursal do recorrente no momento da interposição do recurso conforme determina os artigos 3º, 4º e 5º do Código Civil Brasileiro. Importante se faz ressaltar que na impossibilidade do recorrente praticar atos da vida civil e ainda, o mesmo não esteja plenamente capaz de exercê-los, deverá estar representado, conforme hipótese do Código de Processo Civil Brasileiro em seu artigo 8º. Já no que se refere ao tema do interesse recursal, temos que o recurso deve ser necessário ao recorrente, o recurso deve ser interposto com a finalidade de obter anulação ou reforma da decisão atacada. Em andamento ao presente estudo, importante adentrarmos no tema referente aos pressupostos objetivos. Conforme entendimento do doutrinador BEZERRA L. 2014, tais pressupostos se relacionam com os aspectos extrínsecos dos recursos, são classificados da seguinte forma: recorribilidade do ato, adequação, tempestividade, representação e por fim, o preparo. No que se refere à recorribilidade do ato, tem-se que somente poderá ser admitido o recurso se não existir no ordenamento jurídico pátrio, impedimento ao exercício de recorrer. (BEZERRA L. 2014, p. 828). A adequação no sistema recursal trabalhista determina a imprescindibilidade de que o recurso utilizado esteja em conformidade com a lei, ou seja, é necessário interpor recurso adequado e próprio para atacar o ato judicial passível de impugnação recursal. Esse procedimento se apresenta como a Unirrecorribilidade recursal, e determina a interposição de somente um recurso para cada decisão. (SCHIAVI M. 2013, p. 780). Contudo, o incorreto manejo do recurso não pode prejudicar o recorrente, existe no ordenamento jurídico o princípio da fungibilidade, o qual possibilita o órgão julgador de conhecer um recurso interposto de forma equivocada por outro recurso previsto em lei, desde que comprovado que não houve má-fé do recorrente, não tratar-se de erro grosseiro e ser tempestivo. Conforme demonstra PINTO M. 2007 p 394, outro fator a ser

74

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


observado dentre os pressupostos recursais trata-se da tempestividade recursal. Tal instituto dá o direito da parte recorrer, porém deve-se respeitar o prazo legalmente fixado e estipulado em lei, que no caso dos recursos trabalhistas em sua grande maioria será de oito dias conforme artigo 6º da Lei 5584/1970 que unificou os prazos recursais trabalhistas, não podendo as partes prorrogá-los ou alterá-los. Contudo, existem exceções a essa regra, quais sejam; os embargos de declaração que tem prazo para ser interposto de cinco dias, conforme dispõe o artigo 897-A da Consolidação das Leis do Trabalho e o recurso extraordinário que deve ser interposto no prazo de quinze dias, embora não seja um recurso trabalhista em sentido estrito, é cabível no Processo do Trabalho. A regularidade de representação é outro fator extremamente importante para que se possa obter êxito na interposição dos recursos. Na ceara trabalhista, ainda deve-se destacar que é admitido o jus postulandi, o que possibilita aos empregados e empregadores reclamarem pessoalmente perante a Justiça do Trabalho, lhes sendo facultado a possibilidade de constituírem advogados ou não, podendo as mesmas acompanharem o processo até o fim, conforme demonstra o artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho. Contudo, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 425, que limita o jus postuland às Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho, não alcançando os recursos da competência do Tribunal Superior do Trabalho. Dessa forma, com a edição da referida Súmula temos que para a parte interpor recurso de competência do Tribunal Superior do Trabalho deverá a parte estar devidamente assistida por um advogado que a represente. Na opinião de Carlos Henrique Bezerra Leite 2014, p. 832, são poucos os processos em que a parte atua pessoalmente, pois na grande maioria das vezes a mesma encontra-se amparada por advogados particulares ou por advogados constituídos por sindicatos. Assim, se a parte estiver representada por advogado, este deverá estar constituído nos autos, mediante procuração, tendo em vista que a regularidade de representação como um dos pressupostos válidos para admissibilidade dos recursos deverá ser feita no momento da interposição do recurso. (BEZERRA L. 2014, p. 833). Ressalta-se ainda a importância do preparo como um dos pressupostos de admissibilidade dos recursos. Neste quesito, o direito processual do trabalho se difere do processo civil, pois em alguns casos para que ocorra a interposição do recurso trabalhista ocorre à exigência não só do recolhimento das custas, mas há também a necessidade de realização do depósito recursal. O depósito recursal refere-se ao valor pecuniário a ser depositado na conta do reclamante vinculada ao FGTS, devido quando há condenação em pecúnia em valor fixado por Lei, nada mais é do que condição para o devido conhecimento de recurso interposto pela reclamada. (SCHIAVI M., 2013, p 809). Ainda, de acordo com o entendimento de SCHIAVI M., p 810, o depósito recursal tem natureza híbrida, porque além de ser um pressuposto recursal que deve ser preenchido sob pena de deserção do recurso é também uma garantia de futura execução por quantia certa. Somente o empregador que deverá efetuar o depósito recursal. O empregado não realiza o depósito, uma vez que a exigência do referido depósito é uma das exteriorizações do protecionismo processual em favor do empregado na justiça do trabalho. Ressalta-se que o depósito recursal só é devido se a sentença condenatória atribuir ao vencido obrigação de caráter pecuniário. (BEZERRA L. 2014, p. 852). Ademais, conforme artigo 7º da Lei 5.584/1970, se faz necessário que a comprovação do depósito recursal seja realizado mediante guia própria e dentro do prazo estipulado para interposição de cada

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

recurso, sob pena de deserção. Por fim, tem-se um terceiro e último tópico a ser abordado que se refere ao pressuposto recursal específico, esse é comum aos recursos de natureza extraordinária, tais como; o Recurso Extraordinário, Embargos no TST e Recurso de Revista, esse, se apresenta como tema principal do presente artigo e será abordado com maior ênfase nos próximos tópicos. 4 RECURSO DE REVISTA E SUA APLICABILIDADE NO SISTEMA RECURSAL TRABALHISTA Para um melhor entendimento acerca do recurso de revista, o qual se apresenta como tema principal do presente artigo, necessário se faz o aprofundamento em algumas de suas principais características. Conforme nos ensina o doutrinador BEZERRA L. 2014, o recurso de revista se apresenta no sistema recursal trabalhista como um recurso de natureza extraordinária e sua utilização não se presta à observância do duplo grau de jurisdição. Ainda, no entendimento de SCHIAVI M., 2013, p 860, o Recurso de Revista tem natureza extraordinária, cabível em face de acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho em dissídios individuais, tendo por objetivo uniformizar a interpretação da legislação estadual, federal e constitucional no âmbito de competência da justiça do trabalho, bem como resguardar a aplicabilidade de tais instrumentos normativos. Ressalta-se que o Recurso de Revista não é o meio utilizado para corrigir justiça ou injustiça dos acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho. Diante do exposto, importante transcrever o artigo 896 caput da Consolidação das Leis do Trabalho que nos demonstra de que forma se dará o seu cabimento, vejamos: (...)Art. 896 – Cabe Recurso de Revista para Turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho (...) Para BEZERRA L. 2014, o objeto do recurso de revista consiste em impugnar acórdão regional que contenha determinados vícios. O doutrinador ainda nos ensina que o recurso de revista, assim como os demais recursos têm por objeto aprimorar a excelência, bem como a qualidade dos pronunciamentos judiciais, com intuito de evitar ilegalidades que eventualmente possam vir a ocorrer nas decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho. Em complemento ao tema referente aos principais objetivos do Recurso de Revista, ressalta-se ainda a sua finalidade em corrigir decisão que violar a literalidade de lei, bem como, a finalidade precípua de uniformizar a jurisprudência nacional. 5 A APLICABILIDADE DO INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA EM CONFORMIDADE COM O ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL A jurisprudência se apresenta como uma fonte escrita do direito moderno, e é encontrada nas decisões dos tribunais que são denominadas como sentenças e acórdãos. Isso significa dizer que a jurisprudência além de importante fonte do direito, nos possibilita resolver dúvidas jurídicas e pacificar os conflitos sociais. (DIMOULIS D. 2014, p. 176). Para DIMOULIS, 2014, p. 177, pode-se entender a jurisprudência como um conjunto de decisões uniformes dos tribunais, que resultam da aplicação das mesmas normas em casos semelhantes. De acordo com o doutrinador (FILHO T. 2014, p. 28), o incidente de uniformização de jurisprudência existe no ordenamento jurídico brasileiro desde meados de 1939 no extinto Código de Processo Civil (CPC). Naquele período sua aplicabilidade estava presente entre os

75

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


artigos 853 a 861, os quais se referiam ao suprimido recurso de revista aplicado naquele período. O Código de Processo Civil de 1939 foi eliminado pelo atual Código Processual de 1973, o qual instaurou o incidente de uniformização de jurisprudência. (FILHO T. 2014, p. 28). Na atualidade o incidente de uniformização de jurisprudência está disciplinado pelos artigos 476 a 479 do Código de Processo Civil, e se destina a garantir uma maior segurança jurídica às partes mediante a uniformização e estabilização da jurisprudência no âmbito das cortes regionais. Diante do exposto, se faz necessário demonstrar as hipóteses de cabimento do procedimento de uniformização de jurisprudência conforme determina o atual Código de Processo Civil: Art. 476. Compete a qualquer juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito quando: I - verificar que, a seu respeito, ocorre divergência; II - no julgamento recorrido a interpretação for diversa da que Ihe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas. Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentadamente, que o julgamento obedeça ao disposto neste artigo. Parágrafo único. A parte poderá, ao arrazoar o recurso ou em petição avulsa, requerer, fundamentadamente, que o julgamento obedeça ao disposto neste artigo. Art. 477. Reconhecida a divergência, será lavrado o acórdão, indo os autos ao presidente do tribunal para designar a sessão de julgamento. A secretaria distribuirá a todos os juízes cópia do acórdão. Art. 478. O tribunal, reconhecendo a divergência, dará a interpretação a ser observada, cabendo a cada juiz emitir o seu voto em exposição fundamentada. Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal. Parágrafo único. Em qualquer caso, será ouvido o chefe do Ministério Público que funciona perante o tribunal. Art. 479. O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. Parágrafo único. Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante. O Código de Processo Civil de 1973, também disciplina em seu artigo 557 ”caput”, os benefícios que a uniformização trará, senão vejamos: Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. § 1o Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento. § 2o Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

O dispositivo ora em comento dá ao relator poderes para negar seguimento ou dar provimento de plano ao recurso, visando agilizar e simplificar as formas procedimentais de forma a ensejar, tanto quanto possível, a efetividade do processo como pressuposto do Estado de Direito Democrático. Retornando ao tema da segurança jurídica, o especialista em Direito Processual Civil Dr., Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva, nos ensina que o referido tema é alcançado não apenas pela imutabilidade das decisões, mas também pela previsibilidade dos seus resultados, bem como, é colocada como essencial à credibilidade e à eficácia jurídica com solidez do sistema aplicada no ordenamento jurídico pátrio. Ao resolver casos idênticos de forma igualitária tem-se por afirmada a isonomia e a duração razoável do processo, além de contar com a uniformização na interpretação e aplicação do direito que é um requisito indispensável ao Estado de Direito. Decorreu das necessidades apontadas acima, o instituto de se uniformizar os pronunciamentos jurisdicionais, a fim de formar a jurisprudência, com intuito de presar pelo respeito ao precedente judicial. Ciente dessas circunstâncias, o legislador inseriu no atual ordenamento jurídico o incidente de uniformização de jurisprudência. (Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva, 2011). O incidente de uniformização de jurisprudência pode ser suscitado por qualquer legitimado, ou seja, pelo juiz votante, partes, terceiro juridicamente interessado ou o Ministério Público. Devendo ser indicados os precedentes que evidenciem a divergência interna, cabendo ao órgão fracionário decidir da existência do dissídio e da suspensão do processo. (Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva, 2011). O especialista Rinaldo Mouzalas, nos ensina que a deliberação do órgão uniformizador na acareação da divergência pode se dar por maioria simples ou maioria absoluta. Se a acareação se der por maioria simples a vinculação à deliberação ocorrerá apenas entre as partes do processo. Nos ensina também, caso a acareação se der por maioria absoluta a deliberação transmudar-se-á em enunciado da súmula de jurisprudência, que, não sendo vinculante, servirá de base para o não provimento monocrático de recursos contrários ao seu teor. Por fim, sobre o referido assunto tem-se que uma ocasional interposição de recurso deve provocar o acórdão que completa o julgamento do caso que está sendo discutido e não a decisão plenária que resolveu o incidente de uniformização. 6 LEI 13015/2014 - ALTERAÇÕES NO SISTEMA RECURSAL TRABALHISTA COM ÊNFASE NA APLICAÇÃO DO INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA NO RECURSO DE REVISTA O projeto de Lei 2214/11 elaborado pelo Deputado Valtenir Pereira (PROS-MT), desencadeou a recente Lei nº 13.015/2014 com vacância legal de sessenta dias, publicada no Diário Oficial da União, edição de 22 de julho de 2014. A referida Lei altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5452 de 1º de Maio de 1943, Lei essa instituída para dispor sobre o processamento de recursos no âmbito da Justiça do Trabalho. Em decorrência dessa nova norma legal foram alterados os artigos 894, 896, 897-A e 899 da CLT, o que significa dizer, as matérias pertinentes elencadas abaixo: a) Ao recurso de embargos no TST, b) Ao recurso de revista, c) Aos embargos de declaração, d) Ao agravo de instrumento, e) O Incidente de recursos repetitivos.

76

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


No que se refere ao Recurso de Revista, o Deputado Valtenir Pereira, trouxe como foco das modificações, a possibilidade de se propiciar efetividade e celeridade aos processos, visando uma maior agilidade nas ações trabalhistas, bem como conferir maior segurança jurídica aos litigantes, especificamente quando decorrente da uniformização da interpretação das normas de proteção ao trabalho. O novo texto legal dificulta os chamados recursos protelatórios, propostos com a única intenção de atrasar o andamento dos processos, adiando assim, o cumprimento das decisões judiciais. Entende-se que com a aplicação da nova Lei, os ministros do Tribunal Superior do Trabalho poderão rejeitar recursos quando contrariarem a jurisprudência do Tribunal. Ainda, referente ao Recurso de Revista, a nova norma obriga os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT’s), a uniformizar sua jurisprudência e aplicar o mecanismo de demandas repetitivas, quer dizer, a mesma decisão valerá para ações trabalhistas com pedido semelhante. Assim, divergências entre turmas de um mesmo TRT poderão ser uniformizadas no próprio Tribunal Regional, como aponta o Deputado Valtenir Pereira. Ressalta-se também, que a referida alteração irá reduzir o volume de Recursos de Revista no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. Para um melhor entendimento acerca das principais alterações realizadas no Recurso de Revista introduzidas pela Lei 13015/2014, é importante demonstrar o artigo 896 da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como seus parágrafos e incisos. Vejamos: Art. 896 - Cabe Recurso de Revista para Turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando: a) derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional do Trabalho, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou contrariarem súmula de jurisprudência uniforme dessa Corte ou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal; § 1o O recurso de revista, dotado de efeito apenas devolutivo, será interposto perante o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, que, por decisão fundamentada, poderá recebê-lo ou denegá-lo. § 1o-A. Sob pena de não conhecimento, é ônus da parte: I - indicar o trecho da decisão recorrida que consubstancia o prequestionamento da controvérsia objeto do recurso de revista; II - indicar, de forma explícita e fundamentada, contrariedade a dispositivo de lei, súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho que conflite com a decisão regional; III - expor as razões do pedido de reforma, impugnando todos os fundamentos jurídicos da decisão recorrida, inclusive mediante demonstração analítica de cada dispositivo de lei, da Constituição Federal, de súmula ou orientação jurisprudencial cuja contrariedade aponte. § 2o Das decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho ou por suas Turmas, em execução de sentença, inclusive em processo incidente de embargos de terceiro. Não caberá Recurso de Revista, salvo na hipótese de ofensa direta e literal de norma da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei n. 9.756, de 17.12.1998). § 3o Os Tribunais Regionais do Trabalho procederão, obrigatoriamente, à uniformização de sua jurisprudência e aplicarão, nas causas da competência da Justiça do Trabalho, no que couber, o incidente de uniformização de jurisprudência previsto nos termos do Capítulo I do Título IX do Livro I da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). (Grifos nossos) § 4o Ao constatar, de ofício ou mediante provocação de qualquer das partes ou do Ministério Público do Trabalho, a existência de decisões atuais e conflitantes no âmbito do mesmo Tribunal Re-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

gional do Trabalho sobre o tema objeto de recurso de revista, o Tribunal Superior do Trabalho determinará o retorno dos autos à Corte de origem, a fim de que proceda à uniformização da jurisprudência. (Grifos nossos) § 5o A providência a que se refere o § 4o deverá ser determinada pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, ao emitir juízo de admissibilidade sobre o recurso de revista, ou pelo Ministro Relator, mediante decisões irrecorríveis. (Grifos nossos) § 6o Após o julgamento do incidente a que se refere o § 3o, unicamente a súmula regional ou a tese jurídica prevalecente no Tribunal Regional do Trabalho e não conflitante com súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho servirá como paradigma para viabilizar o conhecimento do recurso de revista, por divergência. (Grifos nossos) § 7o A divergência apta a ensejar o recurso de revista deve ser atual, não se considerando como tal a ultrapassada por súmula do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal, ou superada por iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. § 8o Quando o recurso fundar-se em dissenso de julgados, incumbe ao recorrente o ônus de produzir prova da divergência jurisprudencial, mediante certidão, cópia ou citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que houver sido publicada a decisão divergente, ou ainda pela reprodução de julgado disponível na internet, com indicação da respectiva fonte, mencionando, em qualquer caso, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. § 9o Nas causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo, somente será admitido recurso de revista por contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho ou a súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal e por violação direta da Constituição Federal. § 10. Cabe recurso de revista por violação a lei federal, por divergência jurisprudencial e por ofensa à Constituição Federal nas execuções fiscais e nas controvérsias da fase de execução que envolvam a Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT), criada pela Lei no 12.440, de 7 de julho de 2011. § 11. Quando o recurso tempestivo contiver defeito formal que não se repute grave, o Tribunal Superior do Trabalho poderá desconsiderar o vício ou mandar saná-lo, julgando o mérito. § 12. Da decisão denegatória caberá agravo, no prazo de 8 (oito) dias. § 13. Dada a relevância da matéria, por iniciativa de um dos membros da Seção Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, aprovada pela maioria dos integrantes da Seção, o julgamento a que se refere o § 3o poderá ser afeto ao Tribunal Pleno.” (NR) A Lei 13015/2014, trouxe a obrigatoriedade da uniformização de jurisprudência para o sistema recursal trabalhista, o qual foi inserido no § 3º do artigo 896 da Consolidação das Leis do Trabalho. Na opinião de Claudio Brandão 2015, p 56, não se trata de algo novo a obrigação dos Tribunais Regionais do Trabalho uniformizarem suas jurisprudências. Contudo, na prática, a regra ficou sem efetividade, e a diversidade de entendimentos no âmbito interno dos tribunais passou a ser comum, com isso, as jurisprudências não estavam sendo uniformizadas. As inúmeras teses jurídicas acolhidas no âmbito dos TRT’s, colaborou nos últimos anos para o incremento de recursos no Tribunal Superior do Trabalho, que passou a exercer papel que é atribuído ao Pleno dos TRT’s, ou em outros casos por norma regimental, ao Órgão Especial; por via indireta, definir questões jurídicas oriundas de diver-

77

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


gências entre turmas. (BRANDÃO. C, 2015, p. 57). Assim, diante do exposto tem-se que a uniformização da jurisprudência é fator muito importante para o sistema recursal trabalhista, pois além de determinar o entendimento predominante no tribunal acerca de determinado assunto, se destina também, a contribuir com a segurança jurídica aos jurisdicionados. Em sequência ao entendimento demonstrado acima, os parágrafos 4º, 5º e 6º da Lei 13015/2014, demonstram como se dará o procedimento do incidente de uniformização de jurisprudência. Nos ensina Cláudio Brandão (2015, p 57), que ao receber o Recurso de Revista, a primeira providência a ser adotada pelo Ministro Relator é de realizar a admissibilidade dos pressupostos extrínsecos do recurso. Deverá consultar os sítios dos TRT’s para constatar a existência de decisões conflitantes da matéria objeto do recurso posta ao exame do Tribunal Superior do Trabalho, caso encontre pelo menos uma, deverá determinar o retorno dos autos para o Tribunal Regional para que assim, se adote a medida do § 3º do artigo 896, qual seja, proceder à uniformização de sua jurisprudência. No ponto abordado acima, nota-se que à uniformização de jurisprudência não se trata de uma faculdade, e sim de uma imposição. O responsável primário por essa verificação será o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, se ainda não o fizer, será o Ministro relator do processo. (FILHO. T, 2015, p. 49). A jurisprudência no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho será sedimentada sob as súmulas que representam a consolidação da tese jurídica no julgamento dos incidentes de uniformização de jurisprudência conforme previsto no artigo 479 do Código de Processo Civil, e sob as teses jurídicas prevalecentes, essas representam o resultado do julgamento de incidente de uniformização de jurisprudência quando não atingido o quórum para edição de súmula. (BRANDÃO. C, 2015, p. 58). Assim, complementando tal entendimento, nos ensina Manoel Antônio Teixeira Filho, 2015, p 48, que resolvida à questão pelo Tribunal Regional, o incidente de uniformização de jurisprudência somente poderá ser apresentado como elemento para admissibilidade do Recurso de Revista no Tribunal Superior do Trabalho; a súmula regional ou a tese jurídica predominante do Tribunal Regional do Trabalho, desde que uma e outra não conflitem com súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho. Tem-se como exemplo de incidente de uniformização de jurisprudência o recente julgamento do Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região, que julgou inválida a negociação coletiva que estabelece jornada superior a oito horas em turnos ininterruptos de revezamento, vejamos: EMENTA: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ART. 896, § 4º, DA CLT. LEI Nº 13.015/2014. TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. NEGOCIAÇÃO COLETIVA. JORNADA SUPERIOR A OITO HORAS. INVALIDADE. HORAS EXTRAS A PARTIR DA SEXTA DIÁRIA. Constatado pelo judicioso parecer elaborado pela d. Comissão de Jurisprudência que “é inválida a negociação coletiva que estabelece jornada superior a oito horas em turnos ininterruptos de revezamento, ainda que o excesso de trabalho objetive a compensação da ausência de trabalho em qualquer outro dia, inclusive aos sábados, sendo devido o pagamento das horas laboradas acima da sexta diária, acrescidas do respectivo adicional, com adoção do divisor 180” constitui tese jurídica majoritária no âmbito deste eg. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, propõe-se a edição de Súmula de jurisprudência uniforme. Outro exemplo de incidente de uniformização de jurisprudência,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

julgado recentemente determina que a recusa da empregada gestante dispensada à oferta de reintegração ao emprego não afasta o direito aos salários e consectários pertinentes, conforme demonstrado a seguir: EMENTA: INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ART. 896, § 4º, DA CLT. LEI Nº 13.015/2014. GARANTIA PROVISÓRIA DE EMPREGO À GESTANTE. RECUSA À OFERTA DE REINTEGRAÇÃO AO EMPREGO. RENÚNCIA AO DIREITO QUE NÃO SE VERIFICA. Embora se possa vislumbrar, na garantia provisória de emprego à gestante, um escopo tutelar ao mercado de trabalho da mulher, dúvida não há de que prevalece a proteção dirigida à pessoa da gestante e ao nascituro. Vale dizer: a visão que mais se coaduna com o primado da dignidade da pessoa humana é aquela que faz preponderar a tutela à pessoa da mulher e ao nascituro, deixando em segundo plano - sem, contudo, desconsiderar por completo - a visão da gestante enquanto ocupante de um posto no mercado de trabalho. Neste contexto, eventual recusa à reintegração não pode ser considerada como renúncia à garantia constitucional, sendo este o entendimento majoritariamente perfilhado neste Regional. Por fim, diante de todo exposto, mostra-se clara a importância do procedimento da uniformização de jurisprudência no âmbito dos Tribunais do Trabalho, pois permitem aos jurisdicionados orientar-se em seus atos da vida particular ou profissional, reduzindo as disparidades que a ausência da uniformização acarreta no campo jurídico. 7 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA APLICABILIDADE DA LEI 13015/2014 NO RECURSO DE REVISTA Conforme entendimento de Manoel Antônio Teixeira Filho, 2015, p 40, o incidente de uniformização de jurisprudência apresenta dois grandes pontos importantes no direito processual, uma benéfica e outra prejudicial. E como exposto no tópico anterior, uma das principais finalidades da uniformização da jurisprudência que se apresenta como benéfica refere-se a segurança jurídica aos jurisdicionados, contudo, não é o único instrumento da garantia jurídica. Outro ponto importante a ser observado é a previsibilidade objetiva das decisões judiciais. Em princípio, com a jurisprudência dos Tribunais Regionais uniformizadas haverá a possibilidade de consultar qual o atual pensamento do Tribunal a respeito de determinado assunto, e desse modo, ter uma noção acerca do possível resultado do julgamento que se espera e suas consequências na esfera jurídica. Esse prévio conhecimento da jurisprudência dominante no Tribunal pode representar uma forma preventiva de conflitos. (FILHO. T, 2015, p. 41). Quanto à obrigatoriedade do incidente de uniformização de jurisprudência como um dos pressupostos de admissibilidade do Recurso de Revista, Manoel Antônio Teixeira Filho, 2015, p 48, demonstra que poderá ocorrer o retardamento quanto ao julgamento do recurso, o que se apresenta como ponto prejudicial da nova Lei. Pois, se o recurso interposto apresentar inúmeros temas e somente um destes necessitar submeter-se a uniformização de jurisprudência, haverá a necessidade de aguardar a conclusão do incidente de uniformização, fato que poderá demandar um longo período de tempo. Dessa forma, a celeridade que é uma das principais características da legislação trabalhista, e também se apresentou como uma das finalidades do Projeto que desencadeou a Lei 13015/2014, estaria ameaçada. No que se refere ao Recurso de Revista, estas tem sido as principais indagações acerca do novo sistema recursal trabalhista.

78

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Levando-se em consideração os temas abordados no presente artigo, pode-se concluir que o instituto da uniformização de jurisprudência é um meio eficaz e seguro que se destina a proporcionar uma maior segurança jurídica às partes, além de apresentar um importante papel de integração do ordenamento jurídico. No Direito do Trabalho, a aplicação da uniformização de jurisprudência não se apresenta como novidade, a mesma consta na legislação trabalhista desde o antigo texto do artigo 896, § 3º da Consolidação das Leis do Trabalho. Contudo, tal determinação legal não era devidamente realizada, e poucos eram os Tribunais Regionais que procediam com a uniformização de suas jurisprudências. A explicação mais viável que demonstra o não cumprimento da referida determinação legal, talvez tenha sido o fato do Tribunal Superior do Trabalho não possuir um meio eficaz para conduzir a determinada uniformização, tendo que se limitar a um procedimento falho e ineficaz. Verificou-se ainda, que a falta de um procedimento que unificasse o entendimento entre os diversos tribunais regionais estava causando grande prejuízo às partes, pois as diversas decisões distintas dentro de um mesmo tribunal sobre uma mesma matéria estavam sendo proferidos constantemente, ocasionando grande insatisfação para os jurisdicionados, além da insegurança jurídica. É perceptível que havia a real necessidade de transformação do sistema recursal trabalhista, o qual determinasse um entendimento predominante dentro dos Tribunais Regionais. A Lei 13015/2014, tem importante papel na transformação do sistema recursal trabalhista. O Deputado Valtenir Pereira, em seu Projeto de Lei nº 2214/11, visou promover no âmbito judicial, atualizações e aperfeiçoamentos na sistemática atual que compreende a fase recursal do processo do trabalho; provocando alterações necessárias a contemplar uma maior celeridade, bem como, segurança jurídica aos jurisdicionados, a qual representa um atributo inalienável do Estado Democrático de Direito. Portanto, percebe-se que é de suma importância o procedimento de uniformização de jurisprudência no âmbito do Direito do Trabalho, pois é uma forma rápida de solução dos conflitos, além de como dito inúmeras vezes ao longo do presente trabalho possuir a finalidade de preservar a segurança jurídica acerca dos reclames da sociedade ao ser definido entendimento semelhante para casos idênticos. Essa providência é extremamente importante, na medida em que viabiliza a pacificação jurídica. REFERÊNCIAS Angher, Anne Joyce. Vade Mecum Universitário de Direito Rideel. 15ª Ed. São Paulo: Rideel. 2014 Aprovado PL que altera CLT e otimiza processamento de recurso na JT. Disponível em: processo http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI179951,31047-Aprovado+PL+que+altera+CLT+e+otimiza+processamento+de+recurso+na+JT. Acesso em: 10 de outubro de 2014. BRANDÃO, Cláudio. Reforma do Sistema Recursal Trabalhista, Comentários à Lei nº 13.015/2014. 1ª Ed. São Paulo: LTr, 2015. BRASIL. Lei nº 13015 de 21 de julho de 2014. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, para dispor sobre o processamento de recursos no âmbito da Justiça do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/ l13015.htm. Acesso em 10 de outubro de 2014.

2AE7CA429EC8DF1D026B.proposicoesWeb1?codteor=917221&filename=PL+2214/2011. Acesso em 06 de outubro de 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso de Revista. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ART. 896, § 4º DA CLT. LEI Nº 13.015/2014. TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO n. TRT- 11697.2013.087.03.00.3. Recorrente: Alcoa Alumínio S/A. Desembargador redator: Marcelo Lamego Pertence. Acórdão de 14 de maio de 2015. Pesquisa de jurisprudência disponível em: http://as1.trt3.jus.br/consulta/consultaAcordaoPeloNumero.htm. Acesso em 25 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso de Revista. INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. ART. 894, § 4º DA CLT. LEI Nº 13.015/2014. GARANTIA DE EMPREGO À GESTANTE. RECUSA À OFERTA DE REINTEGRAÇÃO AO EMPREGO. RENÚNCIA AO DIRETO QUE NÃO SE VERIFICA. n TRT 11668.2014.030.03.03.00.1. Desembargador redator: Márcio Flavio Salem Vidigal. Acórdão de 09 de julho de 2015. Pesquisa de jurisprudência disponível em: http://as1.trt3.jus.br/consulta/consultaAcordaoPeloNumero.htm. Acesso em 25 de novembro de 2015. CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA, Núcleo de Bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos : padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2011. Disponível em: <http:// www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_ Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2015. CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA. Normas de Publicação. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?page_id=17 >. Acesso em: 14 de jun. de 2015. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTr, 2015. DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. FILHO, Manoel Antônio Teixeira. Comentários à Lei nº 13015/2014 em destaque: Uniformização da Jurisprudência Recursos Repetitivos. 1ª Ed. São Paulo: LTr, 2014. FILHO, Manoel Antônio Teixeira. Comentários à Lei nº 13015/2014 em Destaque: Uniformização da Jurisprudência, Recursos Repetitivos, De Acordo Com o Ato nº 401/2014, da Presidência do TST. 2ª Ed. São Paulo: LTr, 2015. Isabelli Gravatá, Leandro Antunes, Leticia Aidar, Simone Belfort. CLT ORGANIZADA. 7ª Ed. São Paulo: LTr, 2015. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 12ª Ed. São Paulo: LTr, 2014. Isabelli Gravatá, Leandro Antunes, Leticia Aidar, Simone Belfort. CLT ORGANIZADA. 7ª Ed. São Paulo: LTr, 2015. MARTINS, Sergio Pinto. Direito Processual do Trabalho. Doutrina e prática forense. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007. SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 6ª Ed. São Paulo: LTr, 2013. SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. O incidente de uniformização de jurisprudência. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/19155/o-incidente-de-uniformizacao-dos-arts-476-a-479-do-codigo-de-processo-civil/2. Acesso em: 06 de outubro de 2015.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

BRASIL. Projeto de Lei nº 2214/2011. Disponível em: http://www2.camara. leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5C8F8778178E-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

79

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A UTILIZAÇÃO DE MEIOS ELETRÔNICOS NO AMBIENTE DE TRABALHO Célio da Costa Ramalho1 Amanda Helena Bonacorsi2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar o papel dos aparelhos eletrônicos no ambiente de trabalho, no que diz respeito à atuação do empregador e a utilização desses meios, a fim de que não viole ou atinja os direitos da personalidade dos seus empregados. A metodologia utilizada para este trabalho foi pesquisa bibliografia e estudo de processos para exemplificar o objetivo do mesmo. O resultado do trabalho foi a importância da fiscalização da preservação da privacidade do empregado diante do usos dos meios de comunicação por parte do empregador. Portanto, os meios de comunicação podem ser utilizados para facilitar o trabalho cotidiano do empregador e dos empregados de tal forma que nenhum de seus direitos fundamentais sejam violados. ABSTRACT: This paper aims to present the role of electronic devices in the workplace, with regard to the employer’s operations and the use of these means in order to not violate or reaches the personality rights of their employees. The methodology used for this study was to search literature and study processes to illustrate the purpose of it. The result of the work was the importance of monitoring the preservation of employee privacy on the uses of by the employer media. Therefore, the media can be used to facilitate the daily work of the employer and employees in such a way that none of his fundamental rights are violated. Palavras-chave: meios de comunicação, CLT, direitos fundamentais, poder empregatício e direito. Keywords: Media, Clt, Fundamental Rights, Employment And The Right Power. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS; 3. O PODER E O EMPREGO; 4. Natureza Jurídica; 5. Classificação do poder empregatício; 6. O AMBIENTE DE TRABALHO: A UTILIZAÇÃO DOS MEIOS ELETRÔNICOS; 6.1 O uso de correios eletrônicos ou e-mails; 5. Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO Os meios eletrônicos no ambiente de trabalho tornaram-se rotina na vida dos empregados e das empresas, uma vez que facilitam o trabalho e contribuem para resultados mais eficientes e precisos. A CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) expressa que é do empregador o direito de dirigir e regular a prestação de serviço dos empregados. Em contrapartida, o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal dispõe ser inviolável a intimidade, a vida privada e a honra. O presente trabalho abordará as questões relacionadas ao uso dos meios de comunicação para aprimorar a produção como, por exemplo, o uso de maquinários modernos, facilitar a comunicação através de e-mail ou telefone ou até mesmo controlar e fiscalizar os empregados por meio de câmeras de vídeo. Os meios apresentados devem ser utilizados sem invadir a intimidade e demais direitos fundamentais garantidos à pessoa humana. Em primeiro lugar, será apresentada uma visão geral sobre os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, através de aspectos históricos e constitucionalistas. Em segundo lugar, será conceituada a palavra “poder”, com enfoque para aquele inerente ao empregador e serão discutidos aspectos como natureza jurídica, as dimensões do poder diretivo e suas limitações. Por fim, será tratada a utilização dos meios eletrônicos no ambiente de trabalho, abordando o uso do e-mail e dos correios eletrônicos, dos telefones e das câmeras de vídeo. O objetivo principal do trabalho é apresentar os limites que devem haver entre a atuação do empregador e a utilização desses meios, a fim de que não se viole ou atinja os direitos da personalidade de seus empregados.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS SEUS DIREITOS FUNDAMENTAIS O direito constitucional tem sofrido significativas transformações nos últimos tempos. O Estado não mais preenche seu centro, tendo em vista a preponderância dos direitos constitucionais do homem, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. É possível observar, tanto na mídia quanto na vivência do âmbito jurídico, a enorme necessidade de defender e propagar a proteção dos direitos fundamentais. Isso ocorre devido à tendência mundial de aprofundamento e difusão desta matéria. Tal base de pensamento permite uma reflexão crítica neste trabalho a cerca da importância dessa evolução quanto à normatização da relação de emprego. O Positivismo Jurídico, teoria do filósofo italiano Noberto Bobbio, é uma das obras mais importantes e mais discutidas no âmbito jurídico brasileiro, tendo em vista sua aplicação em todos os ramos do direito. Através de definições e distinções de vários pensadores, Bobbio construiu a tese de que a identidade de um povo é formada pelo direito a ele posto. Esse direito é passível de mutações à medida que os costumes evoluem ou outras normas são criadas. Tendo em vista que cada povo estabelecia limitações inerentes ao seu modo de vida, o direito positivo era conhecido como especial ou particular. Contrapondo esta ideia, o direito natural não possui limitações e não é passível de mudanças no decorrer do tempo. Na época clássica era conhecido como direito comum, principalmente pelo fato de ser imutável. Porém, na Idade Média, não mais era enxergado desse modo, passando a ter fundamento na vontade Divina, tornando-se assim superior ao direito positivista.

80

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida” (SARLET. 2012, p.73).

Assim, com a formação do Estado Moderno, surgiu, dentre os demais, o poder de criar o direito. MELHADO apud BOBBIO (2003), então, define direito como: “um conjunto de regras que são consideradas (ou sentidas) como obrigatórias em uma determinada sociedade porque sua violação dará, provavelmente, lugar à intervenção de um ‘terceiro’ (magistrado ou eventualmente árbitro) que dirimirá a controvérsia emanando uma decisão seguida de uma sanção ao que violou a norma” (p. 23) O juiz é um órgão do Estado, aplicando o direito com base não somente nas leis, mas também nos costumes e demais princípios gerais do direito. Entretanto, Bobbio reconhece que é impossível o legislador prever todas as situações e relações existentes ou que possam vir a existir, ocasionando casos em que não haverá norma regulamentadora para determinado caso, ou que “lacunas na lei” impedirão sua solução. Isto nada mais é do que um resquício do direito natural, onde normas não possuíam mutabilidade mesmo que novos costumes ou relações adentrassem naquela identidade social. Sendo assim, após inúmeras investigações históricas e doutrinárias, Bobbio define direito positivo como aquelas postas pelo Estado soberano observadas normas gerais, princípios e costumes como “leis”. Desse modo, o positivismo jurídico nasce quando a lei torna-se fonte exclusiva do direito, ou seja, a partir de sua codificação. Segundo MELHADO apud BOBBIO (2006): “nasce de uma dupla exigência, uma que é a de pôr ordem no caos do direto primitivo e a outra de fornecer ao Estado um instrumento eficaz para a intervenção na vida social”. (p.35) O positivismo, pensamento preponderante e alicerce para a construção das teorias jurídicas da época, foi plenamente incapaz de obstar tal violação aos direitos fundamentais, já que definia a moral e os valores como destituídos de relevância jurídica. Nesse contexto surge o pós-positivismo. O objetivo deste novo pensamento é promover uma releitura dos direitos fundamentais, desenvolvendo–os a partir da criação de novos paradigmas aptos a produção da justiça e efetivação da dignidade humana. Barroso (2004) assim define: [...] “pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspetos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética” (BARROSO, 2004. p.349-350). A partir daí houve uma reafirmação da denominada constitucionalização do direito. Ou seja, foi reconhecida a existência de uma Constituição rígida, com garantia judicial e força normativa plena, que exerce grande influência sobre as relações políticas, fazendo se necessário que os aplicadores do direito adotassem uma nova postura a fim de se adequar àquele pensamento. A dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico. Segundo Sarlet (2012), temos como definição: [...] “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e con-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Em outras palavras, a dignidade humana garante autonomia aos indivíduos sem a interferência do Estado, assim como os proporciona uma garantia de proteção, seja em face do próprio Estado, seja em face dos abusos inerentes as relações de convívio. Com previsão legal no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988, o constituinte reconheceu, de certo modo, que o Estado existe em favor da pessoa humana. Ou seja, que exerce papel de instrumento de garantia e promoção da dignidade. Partindo desse pressuposto, a dignidade da pessoa humana classifica-se como um valor fundamental e um dos princípios normativos de nosso ordenamento. Dessa maneira, exige-se como pressuposto de validade e eficácia seu reconhecimento e proteção pelos direitos fundamentais, embora nem todo direito fundamental tenha como fundamento a dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu artigo 7º um rol contendo uma série de direitos fundamentais trabalhistas, a fim de servir de parâmetro na decisão de situações cotidianas dessa relação. Após uma série de discussões tanto na doutrina quanto na jurisprudência, chegou- se a conclusão de que não adianta garantir ao indivíduo uma série de direitos individuais se não lhe permitir o direito ao trabalho. Esse direito é visto como uma tentativa de diminuir a discrepância econômica entre o empregador e o empregado.1 Todos os direitos elencados no rol do art. 7º visam proteger o empregado, parte mais fraca da relação de emprego. Deverão ser observados em qualquer relação laboral, tendo em vista que são classificados como fundamentais. Além disso, funcionam como limites ao poder empregatício do empregador, seja no âmbito da fiscalização ou até mesmo no diretivo, ou seja, na estipulação do regimento e funcionamento da atividade. O poder diretivo do empregador e seus limites são os temas do próximo capitulo. 3. O PODER E O EMPREGO A palavra poder se origina do latim potere, e tem como significado principal a ideia de posse, força, influência, subordinação. Segundo Barros (1997): [...] o poder é a capacidade do indivíduo pôr em prática a sua vontade, apesar da resistência encontrada; surge no instinto da luta, podendo resultar de uma demonstração de superioridade ou de influência psicológica sobre os homens. Esse poder coercitivo é mesclado pelo poder convencional, exteriorizado por meio da negociação e não do comando” (BARROS. 1997, p.559). Para MELHADO (2003): “Em sentido geral, poder designa capacidade de produzir determinado resultado. No conhecido Dicionário de política, de N. Bobbio e N. Matteucci, o poder é definido, no sentido social, como um fenômeno que, mais do que simples capacidade de realizar determinado resultado, se converte na ‘capacidade do homem para determinar a conduta do homem:

81

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


poder do homem sobre o homem. O homem não é só o sujeito senão também o objeto do poder social’, importando sempre em uma relação triádica: há uma pessoa ou grupo que detém o poder, há uma pessoa ou grupo que se submete a este poder, e há uma esfera de poder” (MELHADO. 2003, p. 23). Desse modo, para coexistir em um grupo social poder e liberdade, ambos devem estar em equilíbrio. Ou seja, o poder demandado do chefe deve observar os limites impostos pela lei. Foi com a Revolução Industrial que a subordinação do empregado deixou de ser pessoal para se tornar jurídica. O trabalhador passou a se vincular ao empregador através de um instrumento de contrato, obtendo, dessa maneira, o direito de receber um salário pela prestação realizada. Essa mudança na subordinação acarretou um maior cuidado pelo empregador de fiscalizar e otimizar o trabalho realizado por seu subordinado, tendo em vista que qualquer conduta imprópria poderia gerar uma queda na produção e, consequentemente, nos lucros. Os trabalhadores ficavam durante horas nas fábricas, exercendo sua atividade com condições mínimas de higiene e segurança, e recebendo uma quantia simbólica pelo seu trabalho. Nesse contexto nasce o Direito do Trabalho, cujo objetivo principal seria proteger os trabalhadores dessas práticas abusivas e das condições precárias em que exerciam seu labor. Surge então o “dirigismo contratual”, que estabelecia que as relações de emprego passariam a ser regidas por normas impostas pelo Estado, limitando a autonomia tanto do empregador quanto do empregado. Parz Delgado (2006): “Por meio da centralidade do trabalho e do emprego, a nova matriz cultural submetia a dinâmica do capitalismo a certa função social, ao mesmo tempo em que restringia as tendências autofágicas, destrutivas, irracionais e desigualitárias que a história comprovou serem inerentes ao dinamismo normal desse sistema econômico” (DELGADO. 2006, p. 28. 102). Sob esse prisma, o emprego passa a ser o principal veículo de inserção do trabalhador no âmbito socioeconômico capitalista, tendo em vista que lhe proporcionava condições para uma vida digna, com melhores condições econômicas, sociais e éticas. Com o desenvolvimento tecnológico, meios eletrônicos foram inseridos no ambiente de trabalho fazendo com que os empregados pudessem ser fiscalizados mesmo à distância por seu empregador. Essa inserção nada mais é do que o desenvolvimento do exercício do poder diretivo. A constante evolução tanto nos modos de produção quanto nas relações de emprego mostram a existência de um poder exercido pelo empregador, que permite fiscalizar, regulamentar e controlar tanto as atividades realizadas quanto o processo produtivo dos trabalhadores. Esse poder é denominado “poder empregatício”. Segundo DELGADO (2006): “Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços” (DELGADO. 2006, p. 629. 103). Os fundamentos jurídicos do poder empregatício, assim como

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

as relações laborais, foram evoluindo com o passar dos anos. A teoria mais antiga é a denominada Teoria da Propriedade Privada ou Privatística. Para BARROS (1997): “Os seguidores dessa teoria partem do pressuposto de que quem tem a propriedade tem o direito exclusivo de usá-la e dela desfrutar, Logo, o dono de uma empresa deve dirigi-la” (BARROS. 1997, p. 565). Desse modo, o fundamento estaria no fato de o empregador ser o dono da empresa, dos meios de produção e dos bens produzidos, tendo, portanto, o direito de dirigi-la do modo como achar conveniente. Maurício Godinho Delgado critica essa teoria afirmando que o desequilíbrio na relação de emprego não possibilita ao empregado uma condição juridicamente livre, e que essa forma de poder desmedido causa uma aproximação com as relações escravocratas remotas. O doutrinador Nélio Reis, citado por Barros (1997), aduz que: [...] “os defensores desta doutrina se impressionaram mais com os aspectos econômicos do que com os aspectos jurídicos que devem presidir a análise do problema. Não há dúvida de que economicamente e até que se opere uma transformação no regime capitalista em que vivemos, o patrão é o dono da empresa compreendida esta no seu todo perfeito. Mas a integração nesta dos trabalhadores não se opera pelo direito de propriedade, e, sim, pela via contratual, à semelhança das ligações entre a empresa e outros organismos da vida social. O empregador possui a empresa e, em nome desta, em relação ao elemento humano de sua execução, contrata os prestadores de serviço, os empregados” (BARROS apud REIS. 1997, p. 565-566). Já a segunda teoria defende que o poder empregatício tem fundamento na própria natureza da empresa. Ou seja, esta, como agrupamento social, necessita de uma organização hierárquica a fim que possa atingir seus fins. O poder diretivo, nas palavras Mesquita citado por DELGADO (1990): [...] “encontra fundamento no interesse social da empresa, que exige uma perfeita organização profissional do trabalho fornecido por seus colaboradores a fim de se restringir um bem comum de ordem econômico- social. A ordem na organização técnica da produção e na administração interna da empresa exige uma direção nesse sentido” (p. 64). (DELGADO apud MESQUITA, 1990, p. 168) Para Godinho, essa teoria também não é capaz de explicar o fundamento jurídico do poder empregatício, vez que apenas justifica a situação desigual de seu poder na relação com seus empregados. Do mesmo modo, BARROS (1997) aduz que essa concepção: “[...] possui um caráter mais político e social do que jurídico, encontrando-se em franco declive” (BARROS. 1997, p. 571. 106). A terceira corrente, em contrapartida, afirma que é o Estado o titular do poder, devendo assim delegar aos particulares o exercício desse poder. Godinho aplica a essa teoria as mesmas críticas tecidas à primeira. A liberdade, a vontade e a dialética do poder não são observadas, de modo a acentuar cada vez mais o desequilíbrio na relação de emprego. Além disso, nem todas as relações laborais são passíveis de delegação do Estado. A maioria dos contratos de trabalho é formada observada a vontade das partes e no âmbito particular, não havendo intervenção estatal direta.

82

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A quarta teoria, por fim, é a denominada contratualística ou teoria do contrato. Segundo ela, é o contrato de trabalho que faz surgir para o empregador o poder de gerir, fiscalizar e regulamentar a atividade laboral, e para o empregado o dever de prestar uma determinada atividade, observando as normas estabelecidas por seu superior. O fundamento do poder empregatício, então, é a vontade e a autonomia das partes. BARROS (2007) defende que esta é a teoria mais consistente: “Esses poderes são consequência imediata da celebração do ajuste entre empregado e empregador, o qual coloca sob a responsabilidade deste último a organização e a disciplina do trabalho realizado na empresa, quer vista sob a forma de empresa capitalista, quer sob o prisma da empresa socializada” (BARROS. 2007, p. 571).

de exercida, como, por exemplo, o respeito as normas de segurança. Por fim, o artigo 373-A dispõe sobre a vedação à violação do direito à intimidade e à privacidade dos empregados, tema tratado neste trabalho.

Do mesmo modo, DELGADO (1996): “Efetivamente o pacto de vontades (expresso ou tácito) que dá origem à relação de emprego importa em um conjunto complexo de direitos e deveres interagentes de ambas as partes, em que se integra o poder empresarial interno” (DELGADO. 2006 p. 172). Para Magano (1982): “[...] o fundamento do poder disciplinar é o pluralismo democrático, de cujo ponto de vista se há de conceber a sociedade como composta de vários centros de poder, colocados em vários níveis inferiores ao do Estado, mas dotados de autonomia. O grau de participação dos indivíduos nos referidos centros de poder varia conforme a sua influência na realização dos valores por estes colimados” (MAGANO.1982, p. 154-155).

Esta teoria define o poder como um direito potestativo, ou seja, aquele que permite a instituição de uma relação jurídica entre as partes, assim como sua modificação ou extinção de maneira unilateral. O conceito limitado do poder e a falta de participação do empregado na relação laboral fez com que a teoria perdesse força. A segunda teoria classifica o poder como um direito subjetivo, ou seja, a norma jurídica é que confere o poder ao empregador, mediante uma contraprestação e de acordo com as cláusulas estipuladas no contrato. Apesar da teoria ter feito com que a vontade unilateral do empregador perdesse força, a teoria não prosperou. Para GODINHO (2006): “não ultrapassa a percepção unilateral, rígida e assimétrica do fenômeno, já que mantém no empresário a isolada titularidade de uma vantagem propiciada pela conduta em conformidade com a ordem jurídica” (DELGADO. 2006. p. 651).

É possível observar que esta é a teoria mais aceita entre nossos doutrinadores. Logo, o fundamento jurídico do poder empregatício em nosso ordenamento jurídico é o contrato. Através deste, é estabelecida uma subordinação jurídica a qual se vinculam os sujeitos da relação empregatícia.

A terceira corrente trata do poder como um instrumento de busca do interesse comunitário. O poder, para BARROS (2007), consiste em: “[...] um atributo natural do empregador, enquanto se concretiza como organizador dos fatores de produção[...]” (BARROS.2007. p. 575).

Alguns dispositivos normativos existentes em nossas leis infraconstitucionais brasileiras podem também caracterizar o fundamento do poder empregatício. Embora não haja nenhuma norma expressa a cerca do tema, o instituto é previsto e regulamentado de maneira implícita ou indireta. O artigo 2º, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT1943), define o empregador com sendo a “empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”. Assim, é implícito o entendimento de que o empregador tem o dever de dirigir a prestação de serviços de seus subordinados. Com base no mesmo pensamento, o empregador poderá realizar unilateralmente modificações na prestação de serviços, observadas as necessidades extraordinárias. Um exemplo dessa modificação é o disposto no parágrafo único do artigo 468 CLT, que trata da reversão ao cargo efetivo do empregado ocupante de cargo de confiança; ou ainda o artigo 469 da mesma lei, que dispõe sobre a transferência do empregado de local de trabalho. Alguns artigos do mesmo diploma legal supracitado impõem limites às sanções que podem ser aplicadas ao empregado por seu empregador. É o caso do artigo 474 que fixa limites temporais à suspensão disciplinar, por exemplo. Encontramos ainda normas, como o artigo 158, que estabelecem os deveres dos empregados quanto às peculiaridades da ativida-

A posição do empregador como “senhor” do empregado acentua ainda mais a desigualdade de posições na relação laboral, desse modo, a teoria também não prosperou. Surgiu então a quarta teoria, denominada “direito-função”. Nela, o poder era atribuído ao empregador para agir em tutela dos empregados, em seu exclusivo interesse. Magano (1982) entende: “O esquema é praticamente o mesmo da concepção tradicional, do poder diretivo como emanação de direito potestativo: de um lado, o poder do empregador; de outro lado, a sujeição do empregado, manifestada por intermédio do dever de obediência. A diferença reside apenas na orientação do aludido poder, que, concebido como direito-função, deve visar à satisfação do interesse não do empresário mas da empresa” (MAGANO. 1982, p. 65).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

4. Natureza Jurídica Cinco são as teorias mais citadas pelos doutrinadores a fim de explicar a natureza jurídica do poder empregatício. A primeira delas, nas palavras de DELGADO (1996): “[...] prerrogativa assegurada pela ordem jurídica a seu titular de alcançar efeitos jurídicos de seu interesse mediante o exclusivo exercício de sua própria vontade. O poder, em suma, de influir sobre situações jurídicas de modo próprio, unilateral e automático” (DELGADO. 1996 p. 181).

Dessa maneira, a teoria do “direito-função” também conferia ao poder um caráter unilateral, assim como a teoria do direito potestativo. GODINHO (2007), em sua obra, formulou a quinta teoria denominada teoria da relação jurídica contratual complexa. Em suas palavras: “O poder intra-empresarial não é um poder do empregador (e, obviamente, nem do empregado). É uma relação de poder própria a uma realidade socioeconômica e jurídica específica, a relação de emprego. É, assim, um poder empregatício, um

83

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


poder específico à relação e contrato empregatícios e não a um único de seus sujeitos. É relação que assume intensidade e sincronia distintas quanto à participação de sujeitos envolvidos e conteúdo distinto quanto aos direitos e obrigações resultantes da respectiva relação jurídica contratual de poder” (DELGADO. 2007 p. 193-194). Essa teoria, portanto, defende que a assimetria na relação empregado-empregador permite a explicar a natureza jurídica do poder, mesmo com as constantes modificações nas relações laborais. Esta é a teoria mais aceita hoje. 5. Classificação do poder empregatício A organização do trabalho, a regulamentação através de normas, o controle e a fiscalização do modo de realização da atividade laboral e a aplicação de sanções disciplinares são algumas das dimensões do poder empregatício. O poder diretivo ou de comando, para GODINHO (2007), consiste em: “Seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços” (DELGADO. 2007. p. 631). Assim, o poder diretivo nada mais é do que uma forma de dirigir a atividade laboral. Ou seja, o empregador estipula como a empresa se organizará internamente, a maneira como a atividade laboral será realizada, a organização referente aos fins econômicos, sua regulamentação e como a produção deverá ser otimizada, por exemplo. O poder hierárquico, por sua vez, é conceituado por Mesquita, citado na obra de Alice Monteiro de Barros, da seguinte maneira: “A faculdade em virtude da qual uma pessoa, o sujeito ativo chamado superior hierárquico, exerce um direito-função sobre a atividade humana profissional de outra, o sujeito passivo, chamado de inferior hierárquico, segundo o interesse social da instituição, para legislar, governar e sancionar, no que respeita à ordem profissional da empresa” (MESQUITA apud BARROS. 2007, p.569). Portanto, pode ser compreendido como o conjunto de atributos e atividades inerentes á prestação de serviços, como a direção, fiscalização e otimização da produção. Para Godinho, por exemplo, o poder hierárquico é incompatível com a democrática tese do poder intra empresarial, vez que confere ao empregador unilateralidade excessiva dentro da relação laboral. Já o poder regulamentador é aquele que confere ao empregador a prerrogativa de fixar regras e comandos a fim de organizar a atividade exercida. Essa regulamentação pode se dar de diferentes modos, através dos meios formais e informais de comunicação dentro da empresa. O objetivo principal é uniformizar as questões do trabalho, estabelecendo padrões a ser seguidos por todos os sujeitos da relação, mediante cláusulas obrigacionais. A título exemplificativo, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 51, que dispõe sobre a viabilidade dos regulamentos de empresa: “Cláusula Regulamentar - Vantagem Anterior I - As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

II - Havendo a coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro. (ex-OJ nº 163 da SBDI-1 - inserida em 26.03.1999)”. O poder de fiscalização ou vigilância é aquele que permite ao empregador um acompanhamento contínuo das atividades prestadas pelo empregado. A utilização de meios eletrônicos no ambiente de trabalho é um modo de fiscalização. Através de câmeras de segurança e softwares de rastreamento de atividades desenvolvidas no computador, o empregador possui meios de dirigir a atividade que está sendo exercida dentro de sua empresa. Por fim, o poder disciplinar do empregador é aquele através do qual são aplicadas sanções ou penalidades ao empregado infrator. A aplicação dessas medidas tidas como extremas deve observar os limites figurados em lei, de acordo com a tipicidade da conduta e sua gravidade, dolo ou culpa e ao nexo de causalidade. Segundo Santos (2008): “O desnível atual no exercício do poder disciplinar pelo empregador opera com maior intensidade nas atividades laborais no setor privado, no qual predomina a ampla liberdade do empregador, que enfeixa em suas mãos um poder quase absoluto, potestativo, em uma época de desenvolvimento histórico, político e cultural em que a sociedade já não tolera mais direitos absolutos e quaisquer formas de discriminação, especialmente em face dos hipossuficientes” (SANTOS. 2008, p.79). Além disso, não há qualquer procedimento especial que assegure ampla defesa ao trabalhador na aferição de faltas e aplicação das penalidades, fazendo com que esta seja uma prerrogativa unilateral do empregador. Entretanto, vale ressaltar que o empregador deverá observar os direitos constitucionais do trabalhador, assim como aqueles previstos na legislação trabalhista, nos regulamentos e no contrato de trabalho, sendo estes limites ao exercício de seu poder. Deve-se ter em mente que a subordinação do empregado é jurídica, e não pessoal. 6. O AMBIENTE DE TRABALHO: A UTILIZAÇÃO DOS MEIOS ELETRÔNICOS 6.1 O uso de correios eletrônicos ou e-mails Temos no Brasil cerca de 77 bilhões de e-mails, sendo que, cerca de 30 bilhões destes se originam ou se relacionam a alguma atividade empresária1. A Carta Magna em seu artigo 5º, XII, expressa que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou processual penal”. Para a maioria dos doutrinadores, Gomes (2005), o e-mail possui natureza jurídica de correspondência. Lipmann (1998) argumenta que, a natureza é de correspondência fechada, sendo necessário o uso da senha pra acessá-la. Por sua vez, Vânia Aieta (2006) defende que se trata de uma correspondência comercial, já que leva o nome da empresa. As classificações ainda o diferem como cartão postal, conversa telefônica e até mesmo como um instituto sui generis. Em relação à aplicabilidade do artigo supracitado na utilização de e-mails, existem várias correntes. Dentre elas, é incontroverso que trata-se de um mecanismo disposto por instrumento eletrônico cujo objetivo é a transmissão e recepção de conteúdo e dados. A primeira corrente, defendida por Belmonte (2004), expressa

84

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


que o e-mail pode ser interceptado desde que haja autorização judicial para isso. A teoria funda-se no argumento de que a expressão “último caso” aferida na lei, relaciona-se à transmissão de dados. A segunda teoria, defendida por Vicente Greco (2005), expressa que o sigilo constitucional se aplica apenas às correspondências pessoais, não se aplicando às profissionais. Desse modo, se o empregado recebeu aquele e-mail em ambiente de trabalho, presume-se que é relacionado à função exercida na empresa e permite ao empregador seu controle. Por fim, a terceira corrente, defendida por Gomes (1997), entende que, no exercício do poder diretivo, o empregador pode monitorar os e-mails recebidos e enviados por seu empregado, tendo em vista que se trata de instrumento de trabalho. Contrapondo-se a esse pensamento, ainda há a teoria aduzida por Zainaghi de que o e-mail é protegido pelo sigilo constitucional, sendo ele, portanto, inviolável. Ou ainda que, mesmo não sendo protegido pelo sigilo, seria inviolável observados os princípios da privacidade e intimidade do empregado. É através do avanço da tecnologia e do uso de computadores no ambiente de trabalho, que as empresas vêm se desenvolvendo e aprimorando suas técnicas de armazenamento de informações e atendimento. Porém, através dessa utilização, cada vez mais a internet é instrumento para disseminar conteúdos pornográficos, assim como mensagens difamatórias e referentes a demais assuntos que não se relacionam ao ambiente de trabalho de um modo geral. Nas palavras de Carneiro (2007): “Como um instrumento de trabalho, o e-mail deve conter informações pertinentes somente à empresa; a imagem e a honra a serem respeitadas são as do empregador, uma vez que o computador e o e-mail coorporativos se prestam ao uso exclusivo laboral e em benefício do trabalho” (CARNEIRO.2007, p.89). Assim, o modo mais usado de controle pelo empregador é a fiscalização do e- mail. Esta não se configura como violação, tendo em vista que o que é inviolável são as informações da vida privada, não adequadas ao uso do e-mail corporativo. Não há em nosso ordenamento nenhuma norma que discipline esse conflito entre o poder diretivo do empregador e o direito à intimidade do empregado. Ao contrário. Segundo BARROS (1997), consiste em um dos requisitos para caracterizar o empregado: “a subordinação jurídica, através da qual o empregado renuncia, em parte, à sua liberdade de ação, aceitando, até certo ponto o controle do empregador” (BARROS. 1997, p.72). É notória a grande preocupação das empresas em introduzirem mecanismos de proteção frente a eventuais responsabilizações pelos atos de seus empregados. Desse modo, a fiscalização eletrônica ganharia força não só por monitorar o uso do e-mail corporativo apenas para assuntos relacionados ao trabalho, como também prevenir eventuais invasões no sistema da empresa, resultando na perda ou violação de informações. Segundo Domingos Zainaghi (2005): “[...] se o empregador concede aos empregados uma conta de e-mail, é evidente que o faz para que este seja um instrumento de trabalho, e não um meio para ser utilizado como distração ou passatempo, ou ainda para práticas criminosas. O mesmo se diga do uso da internet para acesso a páginas pornográficas ou outras, que nada têm que ver com a atividade profissional. Quando o empregador concede conta de e-mail aos empregados, é evidente que não o faz para que

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

estes se utilizem da mesma para subtrair horas de trabalho ou para comprometer o nome da empresa, inclusive colocando -a em risco de sofrer ações judiciais de reparação de danos. [...] E mesmo o acesso a sites não permite o empregador que seja para visitas a páginas de pornografia ou de práticas criminosas. Os empregadores têm todo o direito de exigir que não sejam utilizados seus computadores para acessos a sites que não os relacionados à atividade profissional, bem como têm o direito de proibir o uso do e-mail corporativo para assuntos particulares. Hoje qualquer pessoa pode ter uma conta de e-mail gratuita, e, vamos mais longe, o empregador tem direito de proibir o acesso desta durante o expediente. [...] Se o empregador concede e-mail e dá acesso livre a internet a seus empregados, tendo sido estes avisados de que haverá controle, não há qualquer agressão à dignidade do trabalhador a proibição de acesso a sites não relacionados à atividade profissional e, ainda, que o e-mail concedido pela empresa é para assuntos profissionais. A não obediência ao regulamentado pelo empregado, poderá dar ensejo à dispensa do mesmo por justa causa” (ZAINAGHI, Domingos Sávio, 2005 p. 691). Exemplificando o disposto acima, temos decisão do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul (4º Região): DESPEDIDA POR JUSTA CAUSA. MAU PROCEDIMENTO. USO INDEVIDO DE CORREIO ELETRÔNICO. QUANDO SE CARACTERIZA. Prova que evidencia a utilização do e-mail funcional, pelo empregado, para difundir informações tendentes a denegrir a imagem da empregadora. Constitui justa causa para a despedida o uso indevido do correio eletrônico fornecido pelo empregador, não se podendo cogitar de infração ao disposto no artigo 5º, inciso XII da CF, já que o serviço de “e-mail” é ferramenta fornecida para uso estritamente profissional. Sentença mantida. (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. RO 00168.2007.203.04.00.3, 2ª Turma, Rel. Desembargador Flávio Portinho Sirangelo. Publicação da decisão no DOE em 19 nov. 2008). Apesar do grande número de julgados nesse sentido, uma corrente ainda defende que, mesmo o e-mail sendo corporativo, deve ser inviolável. O argumento mais utilizado é que o empregado possui discernimento suficiente para controlar e mensurar suas atividades na internet. Nesse sentido, temos a seguinte decisão do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo: E-MAIL. INVASÃO DE PRIVACIDADE. JUSTA CAUSA. E-MAIL. ENVIO POR COMPUTADOR DE EMPRESA. NATUREZA DE CORRESPONDÊNCIA PESSOAL. PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR. VIOLAÇÃO À INTIMIDADE. EXEGESE. Justa Causa. “E-mail” caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviada por computador da empresa não lhe tira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede a direito do obreiro à intimidade (CF, 5°., VIII). Um único e- mail, enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa. Recurso provido (SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. RO 2000034734-0, 6ª Turma, Rel. Desembargador Fernando Antônio Sampaio da Silva. Publicação da decisão no DOE em: 8 ago. 2000). O fato de o empregado possuir correio eletrônico fornecido pela empresa, portanto, não permite que quaisquer interceptações sejam realizadas a qualquer momento e sem nenhuma justificativa. Tal com-

85

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


portamento ofende a liberdade de expressão do empregado e impede seu desenvolvimento, gerando uma pressão desmedida e infrutífera no ambiente de trabalho. Desse modo, conforme doutrina de Neto e Paiva (2014): “O monitoramento do e-mail do empregado impede o exercício do direito à liberdade de expressão, do direito à crítica e até de reflexão sobre as condições de trabalho. De sorte que, a interceptação das mensagens impede que o trabalhador possa discutir, com os demais, as formas de desempenho das funções, os desgostos com os superiores, a desconfiança de uma prática ilícita e a reivindicação por melhores condições de trabalho. Permitir o acesso ao conteúdo das mensagens é exigir um comportamento dócil e conformista do empregado diante do órgão empresarial, que nos tempos atuais tem por obrigação atuar de maneira ética e de acordo com uma finalidade social que não se resuma a consecução do lucro, puro e simples. O monitoramento irrestrito do conteúdo das mensagens eletrônicas conduz a um controle abusivo sobre a personalidade do trabalhador. [...] Cumpre salientar que a proibição de leitura do conteúdo do e-mail [...] não exclui a possibilidade da empresa, com base no seu poder de direção, fixar regras e vedações para utilização da correspondência eletrônica” (SILVEIRA NETO. Mário Antônio Lobato de. Op. cit. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4292/a- privacidade-do-trabalhador-no-meio-informatico>. Acesso em: 06 de outubro de 2014). Observadas as duas vertentes conclui-se que o bom senso, a proporcionalidade e a razoabilidade devem prevalecer, de modo a evitar que a relação de trabalho se funde nos extremos. Vale salientar que, caso haja suspeita de alguma conduta ilícita exercida pelo empregado através do e-mail ou da internet, o empregador deverá pedir auxílio judicial. Não é recomendável que o empregador faça por si só uma investigação, sob pena de as provas não prosperarem na superveniência de um processo judicial. 6.2 O uso das câmeras de vídeo

As câmeras de vídeo são um dos meios mais utilizados pelo empregador para monitorar tanto a atividade dos empregados quanto o movimento de seu estabelecimento. Embora a legislação brasileira não proíba sua utilização, o empregador deve se atentar para o local onde instala a câmera, visando não ofender nem violar nenhum direito fundamental conferido ao empregado. Desse modo, é proibida a instalação de câmeras em locais como banheiros e vestuários, por exemplo, assim como ressaltado na decisão do Tribunal do Trabalho de Minas Gerais: PODER DE DIREÇÃO. USO DE APARELHOS AUDIOVISUAIS EM SANITÁRIOS. INVASÃO DA INTIMIDADE DO EMPREGADO. A legislação brasileira permite que o poder de fiscalização conferido ao empregado, em determinadas circunstâncias, se verifique, por meio de aparelhos audiovisuais, como decorrência do avanço tecnológico, desde que o empregado deles tenha ciência. Inadmissível é entender que o conjunto de locais do estabelecimento esteja sob total controle do empregador e autorizar a introdução desses aparelhos, indistintamente, como no banheiro, lugar que é privado por natureza. A utilização de câmera de vídeo nos sanitários gera compensação por dano moral, em face da flagrante violação ao direito à intimidade do empregado, assegurado por preceito constitucional (art. 5º X) e conceituado como a faculdade concedida às pessoas de se verem protegidas “contra o sentido dos outros, principal-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

mente dos olhos e dos ouvidos”. A vigilância eletrônica poderá ter um futuro promissor, desde que usada de forma humana, combatendo-se os abusos na sua utilização. Instalação de aparelho audiovisual no banheiro caracteriza o que a OIT denomina ‘química da intrusão’, comportamento repudiado pelo ordenamento jurídico nacional e internacional (MINAS GERAIS Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. RO 00117-2004044-03-00-3, 2ª Turma, Relª. Desembargadora Alice Monteiro de Barros. Data de Publicação no DJMG em 25 out. 2004). A partir dessa ideia, surgiu um posicionamento doutrinário que defende o uso das câmeras apenas para fiscalizar o maquinário e resguardar a segurança do estabelecimento, argumentando que, se a fiscalização fosse sob os trabalhadores, sua liberdade e intimidade estariam sendo violadas, mesmo que a conduta exercida seja totalmente compatível com a atividade realizada. Independente se a câmera for utilizada para fiscalizar o maquinário ou monitorar os empregados, deve haver razoabilidade em seu uso, não podendo atingir o direito a intimidade e privacidade das pessoas que ali trabalham. 5. Conclusão Devido a grande globalização tecnológica vivida nos dias de hoje, cada vez mais, as pessoas tem facilidade de se comunicar seja no âmbito regional e principalmente no global. Devido a essa facilidade surgiu à necessidade das empresas de utilização desses meios a fim de potencializar e aperfeiçoar a produção e as relações de trabalho. Neste trabalho foram abordados os meios mais usuais, como: o e-mail e correios eletrônicos, as câmeras de vídeo e o telefone. Porém, a grande problemática é que tais meios, quando usados de maneira desmedida, podem atingir ou ferir os direitos fundamentais dos empregados. Dentro da esfera de poderes do empregador nos deparamos com o poder empregatício. Tal poder confere a seu titular o direito de regulamentar, organizar, dirigir, fiscalizar e direcionar a prestação de serviço, de acordo com o que fora acordado no contrato. Esse contrato é regido e pactuado mediante uma autonomia de vontades que garante, inclusive, o respeito à dignidade, à intimidade do trabalhador entre outros direitos da personalidade. Na relação de trabalho o empregador é visto como parte mais forte, tendo em vista que essa assimetria decorre do fato de deter o processo produtivo e dirigir a atividade laboral. Desse modo, a legislação brasileira permite a incidência de normas de ordem pública, a fim de equilibrar ou amenizar essa discrepância. Uma das maneiras utilizadas para diminuir essa divergência é limitar os poderes do empregador. A maioria dessas limitações está na Carta Magna e reforça a preservação dos direitos fundamentais. Esses direitos, diversas vezes citados nesta dissertação, consistem em normas que expressam valores a serem preservados e garantidos do melhor modo possível, e desde que dentro dos limites jurídicos. Caso haja, em um caso concreto, colisão de princípios deverá ser usada a proporcionalidade para resolvê-la. Por exemplo, as câmeras de vídeo usadas para fiscalização da produção não devem ser instaladas em locais como vestiários, banheiros, etc. Esses locais são reservados para a intimidade do trabalhador, não podendo ser violados. Para resolver as questões em que há conflito deve-se ainda tomar como base o princípio da dignidade humana, vez que este jamais pode ser violado. Assim, a socialização do poder empregatício no ambiente la-

86

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


boral é que permitirá a utilização dos meios eletrônicos de maneira sensata e eficiente. Desse modo, os empregados, através de sindicatos, podem participar da regulamentação das normas inerentes a sua função, pertencentes ao poder diretivo. Um exemplo clássico é a participação do sindicato na estipulação de penalidades para determinados atos. Essa democracia permitirá uma justiça maior entre a relação assimétrica formada entre empregador e empregado. Portando, pode-se concluir que sempre que houver divergências entre os direitos inerentes a personalidade e o poder empregatício exercido pelo empregador, através dos meios eletrônicos, deverá haver sempre uma proporcionalidade das medidas aplicáveis, assim como uma razoabilidade nas relações a fim de respeitar sempre à dignidade humana do empregado. REFERÊNCIAS AIETA, Vânia Siciliano. A violação da intimidade no ambiente de trabalho e o monitoramento eletrônico dos empregados. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 14, n. 55, 2006. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2007.

entre capital e trabalho e o conceito de subordinação. São Paulo: LTr, 2003. SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Limites ao poder disciplinar do empregador: a tese do poder disciplinar compartilhado. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 34, n. 129, 2008. SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. RO 2000034734-0, 6ª Turma, Rel. Desembargador Fernando Antônio Sampaio da Silva. Publicação da decisão no DOE em: 8 ago. 2000 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9.ed.rev.atual.2.tir. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. SILVEIRA NETO, Antônio; PAIVA, Mário Antônio Lobato de. Op. cit. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4292/a-privacidade-do-trabalhador-no-meio-informatico>. Acesso em: 06 de outubro de 2014 TEIXEIRA JR., Sérgio. E-mail é pra sempre. Exame. São Paulo: Abril, 27/04/2005. ZAINAGHI, Domingos Sávio. O uso do e-mail pelos empregados e o direito à privacidade. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, v. 41, n. 153/05.

Notas de fim Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

BARROS, Alice monteiro de. Poder hierárquico do empregador: poder diretivo. In: Curso de Direito do Trabalho: estudos em memória de Celso Goyatá. BARROS, Alice Monteiro de (coord.) 3 ed.rev., atual e ampl. São Paulo: LTr, 1997, p.559

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

BARROS, Alice Monteiro. Proteção à intimidade do empregado. São Paulo: LTr, 1997. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. BELMONTE, Alexandre Agra. O controle de correspondência eletrônica nas relações de trabalho. Revista LTr, São Paulo, v. 68, n. 9, set. 2004. CARNEIRO, Joana Zago. O monitoramento dos e-mails corporativos à luz dos princípios constitucionais. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo , v.33, n.127 , jul./set. 2007. DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. Entre o paradigma da destruição e os caminhos da reconstrução. São Paulo: LTr, 2006. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5 ed. São Paulo: LTr, 2006. DELGADO, Maurício Godinho. O poder empregatício. São Paulo: LTr, 1996. FERNANDEZ, Leandro. O direito diretivo: a necessária revisão da dogmática acerca dos poderes do empregador a luz da teoria dos direitos fundamentais. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo v. 38, 2012). GOMES, Daniela Alves. Direito à intimidade do empregado. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, v. 41, n. 148/05, 2005. GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica. São Paulo: Saraiva, 2005. LEWICKI, Bruno. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2003). LIPMANN, Ernesto. Do direito à privacidade do empregado, nos tempos da internet. Revista LTr, São Paulo, v. 62, n. 4, abr. 1998, p. 483-486. MAGANO, Octavio Bueno. Do poder diretivo na empresa. São Paulo: Saraiva, 1982. MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição: os fundamentos da relação de poder

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

87

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


OS RUMOS DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL A MUDANÇA E A CONTINUIDADE Carolina Charine Valadares1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 RESUMO: A crise vivenciada pelo ensino jurídico brasileiro, que por conseguinte sofre e ocasiona influência real nas demais crises também vivenciadas nos setores políticos, sociais, econômicos e jurídicos, consequentes de um dissabor com os protótipos da Modernidade. E apresentando propostas condicentes com o novo perfil almejado para o operador jurídico. ABSTRACT: The crisis experienced by the Brazilian legal education, which therefore suffers and causes real influence on others also experienced crises in the political sectors, social, economic and legal, consequential of a disappointment with the prototypes of modernity. And condicentes presenting proposals with the new desired profile for the legal operator PALAVRAS – CHAVE: Ensino Jurídico; Crise do Ensino Jurídico; Estado Constitucional. KEYWORDS: Legal education ; Crisis of Legal Education ; Constitutional state. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Surgimento das Faculdades de Direito no Brasil; 3 Realidade do Ensino Jurídico Atual; 4 As demandas do Ensino Jurídico na Atualidade; 5 Como o Ensino Jurídico irá se Adequar; 6 Onde o próprio curso de Direito deve ser alterado; 7 Considerações Finais; Referências.

1. Introdução O ensino jurídico tem sofrido crises e ocasiona influência nos setores sociais, econômicos, políticos e jurídicos, derivado de uma geral insatisfação com os protótipos da Modernidade, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tendo em vista os fatos ocorridos naquela época, influências não tão boas e nem satisfatórias. Em razão dos fatos vividos naquele período da história da humanidade, a visão reducionista dos acontecimentos jurídicos provocada pelo positivismo foi discutida, surgindo uma necessidade geral de articular, agora, num pensamento mais integral, mais amplo. No entanto, o Estado ainda permanece ligado a um sistema de normas jurídicas que afastam o Direito da realidade social, assim como a formação dos operadores do direito, a capacitação dos mesmos deveria se direcionar para uma aplicação mais eficaz das normas, princípios, direitos e garantias fundamentais, pormenorizadamente relacionados às questões sociais, éticas e morais. Essa falta de sincronia entre a realidade social, política e econômica, pode resultar de uma crise no sistema de ensino jurídico, devido a esse afastamento, que impede a aplicação da realidade fora da sala com o conhecimento adquirido durante o curso. Enfim, com as alterações já ocorridas no sistema jurídico, se faz necessário a análise do perfil do operador do direito que deverá ter uma postura mais crítica, valorativa, em conexão com a realidade social. 2. Surgimento das faculdades de direito no Brasil A implantação dos dois primeiros cursos de Direito no Brasil, conforme Bittar aconteceram no século XIX, especificamente com a promulgação da Lei que instituiu os primeiros cursos de “Ciências Jurídicas e Sociais” em 11 de agosto de 1827, quando, em São Paulo e em Recife, se instalaram as primeiras escolas de Direito do país, com a finalidade básica de atender às demandas burocráticas do recém surgido Estado Brasileiro, resultado da Independência. Ressalte-se que a finalidade dessas escolas jamais foi o de suprir as enormes necessidades em sentido amplo de um principiante

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

país, isto é, produzindo o conhecimento para aplicação numa determinada sociedade, mas sim prover às necessidades eminentemente burocráticas do Estado recém criado, sendo certo que os estudantes dessas Faculdades de Direito, durante muitos anos, eram quase que exclusivamente filhos das elites nacionais, cuja intenção era a manutenção da estrutura de poder, formando um setor importante e tradicional do conhecimento que iria apostar na burocracia para administrar o novo país independente, por meio de um longo processo de construção do Estado Brasileiro. Os bacharéis formados nestas Faculdades de Direito, exerceram atividades na administração pública, nos foros, na vida política, em cargos legislativos e sobretudo executivos, diversos presidentes brasileiros eram provenientes destes cursos, na imprensa e na literatura, aliás até hoje, muitos jornalistas e escritores são de formação jurídica, e até mesmo na educação, pois na falta de professores as escolas os contratavam, onde ensinavam quase tudo: latim, história, geografia, português, etc. Essas duas Escolas de Direito assumiram as questões nacionais, mas chegando a ser contraditórias, pois se de um lado defendiam princípios liberais, de outro criaram uma elite burocrática para construir todo o poder estatal. Até o início do século XX, o ensino jurídico continuava limitado às duas pioneiras faculdades, quando novos cursos de direito começaram a se espalhar pelo nosso território, a primeira dessas faculdades criadas foi a da Bahia em 1891, ano da promulgação da nossa primeira Constituição Republicana, sucedendo o Rio de Janeiro marcando presença ligeiramente, pois já era a nova Capital da Republica, além de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Inicia-se aqui na República Velha do começo do século XX, uma certa “estereotipagem”, de acordo com os padrões da época, uma ampliação indistinta dos cursos de Direito, por meio de um termo batizado de “fábrica de bacharéis”, criado relativamente ao modelo “fordista” de produção industrial em série, este termo retrata o aumento descontrolado de vagas ocorrido no ensino jurídico brasileiro, sem notícias históricas de qualquer alteração peculiar.

88

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Por conseguinte, no ano de 1927, quando celebrou o centenário da criação dos cursos de Direito no Brasil, ao término da República Velha, proximamente a instaurar a Era Vargas, apontava a existência de quatorze, Faculdades de Direito e três mil e duzentos alunos matriculados. Da mesma forma que o grande número de alunos ingressantes nas instituições de ensino jurídico já podiam ser reputados “fábrica de bacharéis” “massificados” sob um modelo “fordista” de produção, imagine-se na atualidade. Neste contexto, cumpre ressaltar também histórico da fundação da Faculdade Católica de Direito de Santos, no litoral de São Paulo, em 1953, como a primeira Faculdade criada no Brasil, fora de uma capital de Estado-Membro. A “Casa Amarela” como ficou conhecida esta Faculdade, é a origem da Universidade Católica de Santos – UNISANTOS de hoje. 3. Realidade do Ensino Jurídico Atual Desde a segunda metade do século XX os protótipos que conduziam o pensamento jurídico contemporâneo e o próprio Direito têm sido centro de grandes reflexões, apontando um momento de crise, a qual é caraterizada por Faria como exaustão paradigmática. Contudo ao conferir o surgimento dessa crise ao fenômeno da globalização, o autor destaca que qualquer ligação imediata dessas dificuldades a fórmulas propostas pelo positivismo jurídico ou pelas políticas jurídicas, ou ás revoltas contra códigos e leis infrutíferas é na verdade precipitoso e singelo. Faria compreende que a crise vivenciada pelo ensino jurídico e pelo próprio direito é decorrente singularmente de uma outra crise, cujas raízes podem estar no século XIX, na discordância entre as instituições jurídicas do Estado Liberal e as estruturas sociais e econômicas do Estado Keynesiano. Essa crise é vista como a representação de uma sociedade contaminada de incoerências, onde “a ordem jurídica é contrariada por acontecimentos para os quais ela não consegue oferecer soluções ou respostas técnicas e funcionalmente eficazes” Nesse mesmo contexto, Faria afirma, a crise jurídica está muito além desse panorama social, pois o positivismo jurídico, que de certa forma foi gerado com a evolução científica do Direito, trouxe consigo algumas verdades teóricas que desprezaram qualquer elemento axiológico ou metajurídico e, portanto, seriam aptos para exercer o controle social, tudo minuciosamente explicado e proferido no que ficou conhecido como “dogmática jurídica positivista”. Todavia, as mudanças e crises vivenciadas nos variados setores da sociedade, ressalta o autor, no fenômeno da globalização, demonstraram a incapacidade, por parte dessa dogmática jurídica positivista, de captar os fatos novos que surgem dessas transformações. Assim sendo, a Ciência do Direito está igualmente incluída nesse turbilhão paradigmático que percorre todos os setores do pensamento humano. A lógica, as certezas e a racionalidade que eram próprias da Modernidade são hoje temas constantemente questionados quanto à sua validade e eficácia diante de um mundo excessivamente astucioso, sensível e mutante. O paradigma do positivismo jurídico, que retira da norma toda a questão de valor e comprometimento com o social, também está em risco. Questões como princípios, Leis justas, validade material, são temas rotineiros entre estudiosos e operadores jurídicos. Segundo afirma Miguel Reale, as normas jurídicas estão em franca reparação, apreensivo agora com o futuro da humanidade não sendo possível abarcar uma Ciência Jurídica distante dos conflitos sociais. O autor acredita que, “o direito que se quer ou que se espera, passa a ganhar terreno sobre o direito que se tem e ama”. As alterações que mais afetam o Estado e com ele o sistema normativo, é a globalização que influencia as crises vivenciadas nesse

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tempo de transição, especialmente a globalização econômica, que integra o cotidiano dos estudantes e operadores do direito. Pode se afirmar que hoje não há setor na sociedade que não tenha sido drasticamente infectado por todas essas rupturas de paradigmas e comportamentos, o que não significa necessariamente que os mesmos tenham sido definitivamente modificados pelos novos modelos, pois estes ainda estão em construção. É fato que todas essas modificações refletem diretamente na seara do Direito, seja no âmbito social, político ou econômico, uma vez que está também no processo de reflexão e revisão de seus paradigmas. 4. As demandas do Ensino Jurídico na atualidade O exercício das profissões jurídicas, especialmente a advocacia, encontra amparo e reconhecimento explícito no texto constitucional, o qual, no seu art.133, identifica o advogado como “indispensável a administração da justiça”. Para Álvaro de Mello Filho (1977, p.13), a graduação em Direito visa desenvolver o conhecimento básico da ciência jurídica paralelamente à formação profissional, com o instrumento teórico prático. É indispensável versar sobre a seleção de diretrizes curriculares sobre o ensino jurídico e os métodos de teste de avaliação da qualidade dos cursos, tudo incluído no contexto dentro do qual o ensino é ofertado e trabalhado. Apesar da ocorrência de várias pequenas reformas nos primeiros cinquenta anos de existência do curso jurídico, uma das primeiras inovações sucedidas foi a implementação, no ano de 1879, da “Reforma do ensino Livre”, no qual o estudante não precisava frequentar as aulas somente prestar os exames finais para se alcançar a aprovação. Tal inovação, não foi uma universalidade de consenso, numa análise geral poderia se afirmar que foi um fiasco educacional. Um entendimento mais real de flexibilização do alicerce curricular dos cursos jurídicos aconteceu em 1972, com a edição pelo Conselho Federal de Educação da Resolução nº. 3/1972. Dentre os dilemas regulados pela Resolução estão a divisão entre disciplinas básicas e profissionais; a indicação de oito matérias optativas; a exigência de Estágio Curricular e do Estudo dos Problemas Brasileiros – EPB; a carga horária mínima da duração do curso e a possibilidade de criação pelas IES de habilidade específicas. Entretanto uma das principais críticas da grande maioria dos especialistas do ensino jurídico a essa Resolução, foi a inexistência de um trabalho interdisciplinar voltado para as necessidades sociais, especialmente o mercado de trabalho. Na década de 80, José Eduardo Faria publicou uma obra chamada “A Reforma do Ensino Jurídico”, onde afirma que a problemática dos cursos jurídicos está relacionada com a crise do próprio Direito o qual, segundo o autor, naquele período, encontrava-se num dilema entre ser arte ou ciência, ou seja, entre ser uma técnica de controle social ou ser uma atividade verdadeiramente científica. No segundo momento, a sua eficiência implicaria num ensino multidisciplinar, formativo e não dogmático, com reflexões acerca da ordem jurídica, econômica e social. Levando a análise histórica para o mundo acadêmico do Direito, é preciso apreciar se o ensino jurídico não está diretamente naquele ponto em que se encontrava o racionalismo no auge da Modernidade: até que momento o Direito que percorre pelas escolas de Direito alcança as “ruas” e a realidade social da comunidade que está do lado de fora dos muros da Faculdade? O que de fato os futuros Operadores do Direito estudam sobre Direito, Sociedade e Justiça? Será que o Direito que se conhece em sala de aula permanece detido naquele “sistema de normas válidas”, perdido nos intelectos de seus especialistas sem apoiar-se na realidade que está oculta ao seu redor? É fato que os operadores do Direito, ainda opõem-se a essa nova realidade

89

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


que vem surgindo a mais de meio século. É evidente que o conjunto dessas crises revela a necessidade de profissionais capacitados para lidarem com todo esse complexo paradoxo que intercala os vários setores sociais, trançados entre si pelas consequências que as crises de um geram aos demais. Para Eduardo Bittar, seria necessária uma reforma do modo como o Direito é ensinado, numa maior interação entre teoria e prática, entre a academia e as atividades profissionais e entre as reflexões acadêmicas e a postura institucional. Dentre as várias sugestões apresentadas pelo autor, sobressai, o estímulo à ação comunicativa entre escola e sociedade; convidar os educadores e docentes do ensino jurídico para uma contestação ao pensamento compartimentado, fragmentado e unilateral; e uma análise crítica aos modelos de formação técnica com intuito de definir o que se é pelo que o mercado exige do indivíduo. 5. Como o Ensino Jurídico ira se adequar A adequação do ensino jurídico à nova realidade que se denomina mais paradoxal, complexa e humana, para que possa atingir a realidade e ter um contato mais natural com o meio social em que a Universidade está posta, necessita primeiro metodizar sua estrutura curricular, ter um corpo administrativo com vista atualizada e coerente com o papel que a faculdade deve praticar e, essencialmente, ter docentes capacitados com práticas pedagógicas condizentes com o novo modelo de ensino e engajados com as atividades de pesquisa e extensão. Quanto à sistematização curricular, os órgãos governamentais oferecem as diretrizes básicas e o currículo mínimo e, apesar das críticas que podem surgir quanto à qualidade dessas linhas gerais, cabe às instituições de ensino o conteúdo dessa estrutura, de modo a torná-la completa, íntegra e condizente com as necessidades sociais e regionais. O projeto político pedagógico tem o condão de delinear o perfil do curso através da descrição do tipo de profissional que aquele curso jurídico planeja confiar à sociedade. Para Bittar, os objetivos do curso de Direito se materializam em sua grade curricular, que deve ser formulada com a coparticipação dos docentes, que terá como conteúdos disciplinas das diversas áreas do Direito e das demais áreas de conhecimento semelhante, estabelecendo uma conexão entre si, com a prática deve conter fatores de suma importância, como o perfil desejado do egresso e as condições econômicas, sociais e de oportunidade de emprego na região em que o curso é ofertado. O autor afirma ainda que as políticas institucionais deveram ser permanentes no intuito de possibilitar a implementação das intenções descritas no Projeto Pedagógico, com a devida ponderação da distribuição de disciplinas no semestre letivo, os programas de atividades curriculares, extracurriculares, de pesquisa, de extensão, e com a formação do corpo docente hábil e dedicação exclusiva. No entanto, mesmo que a instituição de ensino tenha um currículo pleno, com as disciplinas dos eixos de formação divididas em matérias que atendam a plena formação do discente e tenham um projeto pedagógico com visão de formação com maior valoração do ser humano, essas indagações seriam irrelevantes se não forem levadas a efeito pela verdadeira prática pedagógica que incluem desde o apoio do regimento administrativo até a percepção do discente, que por ser a sustentação deste processo liga a instituição ao aluno. Cabe a instituição de ensino debater e produzir seu projeto pedagógico, a mesma tem o dever de identificar qual o perfil desejado para seu egresso, e com base nele, conduzir toda a produção do projeto pedagógico, que acarreta, imperiosamente, na orientação das posturas pedagógicas a serem utilizadas pelo corpo docente. Oliveira afirma que a missão da Universidade é a “criação e

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

transmissão de saberes necessários para um maior desenvolvimento da sociedade”. Enfatiza o autor que é a instituição que dará respostas as demandas políticas, sociais e culturais que se encontra em crise. Adverte que os alunos que se tornam bacharéis não têm consciência de sua profissão. A descrença da sociedade perante as atividades jurídicas é consequência de tudo isso, não há nas faculdades um espaço adequado para pesquisa, discurso e novas formar de solução de litígios. A crítica do autor se encontra fundamentada, no fato de que esses obstáculos ao ensino jurídico pertinente provêm das “correntes dominantes ligadas ao positivismo jurídico e ao jusnaturalismo”. Assevera o autor que essas correntes doutrinárias não abarcam a totalidade do fenômeno jurídico. Seus pensamentos não condizem com a realidade social, não ensinando assim ao acadêmico a sua complexidade. A saída para essa questão deveria ser uma “teoria crítica do direito”, com novas idealizações teóricas e uma prática conexa as atividades de pesquisa e extensão. Ressalta o autor que o estudante do curso de direito deveria ter um contato direto com a comunidade que circunda a faculdade logo no início do curso, em disciplinas como a sociologia e até mesmo na área de pesquisa jurídica, de maneira a possibilitar a conexão do acadêmico com o mundo político, social e cultural daquela comunidade. Essa conexão com o todo social ira estimular o aluno a uma visão ampla, voltada para os Direitos Fundamentais e não somente a visão individualizada, concentrada apenas na questão individual posto pelo cidadão. A possibilidade de superação da crise vivenciada pelo Ensino Jurídico, é um desafio a ser superado. 6. Onde o próprio curso de Direito deve ser alterado As disciplinas associadas à formação profissional deveriam necessariamente, provocar a discussão e análise de conteúdos que façam referência a questões éticas e comportamentais e que estejam relacionados com a política e a economia. Os planos de ensino dos cursos jurídicos necessitam, na grande maioria, de uma reestruturação, com a inserção de conteúdos que sejam aptos a incitar o espírito crítico do aprendiz e, neste propósito, a Política Jurídica deve ser parte integrante desta reestruturação. O controle dos princípios, direitos e garantias fundamentais preditos na Constituição, cumulado com as frequentes transformações padecidas pela sociedade, demanda um operador jurídico de olhar amplo, postura ética e capaz de perceber os anseios da sociedade em que está incluído, sendo este capaz de adotar decisões fundadas que efetivamente promovam a garantia do bem estar social e a cidadania. Desempenho docente que favorece a visão humanística, conteúdo curricular, crítica e ética do fenômeno jurídico, que traga o acadêmico como elemento principal do método de ensino e aprendizagem, que se relaciona com a comunidade em que estão incluídos e que habilitem o aluno para a compreensão e interpretação do Direito a partir do padrão de um Estado Constitucional de Direitos, tudo isso é considerado e ansiado por parte da sociedade jurídica e acadêmica, mas só terá êxito se houver uma Universidade de fato empenhada com a sociedade e com a qualidade da educação a que objetiva oferecer. Desta forma, pode-se atestar que o ensino jurídico almejado só poderá ser alcançado se houver uma dominação conjunta de todos esses desafios, acontece que esses desafios necessitam de atitude dinâmica empenhada do docente, juntamente com a instituição de Ensino para uma visão voltada para a qualificação do ensino e para o futuro consciente de que é na época atual que se forma a sociedade do amanhã.

90

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A Portaria nº1886/94 foi criada pelo MEC com propósito de regular as diretrizes curriculares mínimas para os cursos de Direito no Brasil, instaurando uma nova etapa na abordagem dos cursos jurídicos, visto que além de manter as determinações de um currículo mínimo, passa a impor as diretrizes curriculares as quais foram entendidas pelos autores como um relevante progresso na flexibilização curricular e autonomia das universidades. A intervenção estatal substanciou a política de fiscalização e avaliação recorrente das Instituições de Ensino Superior, gerando assim efeitos positivos no cenário do direito. A exigência de que cada curso de Direito conservasse um acervo jurídico de, pelo menos, dez mil volumes de obras jurídicas, além de jurisprudência, legislação e doutrina são exemplos dessa nova compostura. A sugestão para uma possível mudança no ensino jurídico, envolveria uma reunião de representantes do Ministério Público, de instituições de classe, representantes de diversos cursos de direito, para que juntos, cada qual com seu conhecimento, pudesse debater de forma a relacionar questões que norteiam o mundo jurídico, discutindo o ponto de vista de cada uma das partes, para, quem sabe, chegar a uma razoável proposta de mudança. Talvez uma possível mudança nos propósitos dos envolvidos no método de ensino e conhecimento, ou seja, se os mestres agissem marcados pelo compromisso ético de conduzir o conhecimento respeitando a experiência intelectual do acadêmico, decerto a qualidade do ensino jurídico seria satisfatoriamente superior. Grande parte dessa crise no ensino jurídico se associa com a existência humana e afeta praticamente todas as áreas de conhecimento. Desta forma não é possível enfocar a má qualidade do ensino jurídico sem condizer com a crise geral que afeta a sociedade.

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a Lei de Diretrizes e bases da educação. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L9394.htm>. Acesso em 20 de agosto de 2015. FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1987. ________. Direito na economia globalizada. 1 ed. 4º tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. Ministério da Educação – Conselho Nacional de Educação – Diretrizes Curriculares do Curso de Direito. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ sesu/arquivos/pdf/dir_dire.pdf>Acesso em 12 de outubro de 2015. MELO FILHO, Álvaro. Currículos jurídicos: novas diretrizes curriculares. OAB – Ensino Jurídico: novas diretrizes curriculares. Brasília: OAB, 1996. ________. Juspedagogia: ensinar direito o Direito. OAB – Ensino Jurídico: balanço de uma experiência. Brasília: OAB, 2000. OLIVEIRA, André Macedo de. Ensino Jurídico: diálogo entre teoria e prática. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 4º ed. São Paulo: Saraiva,1984. SANTOS, André Luiz Lopes dos. Ensino Jurídico – Uma Abordagem Político Educacional. São Paulo: Edicamp, 2002.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

7. Considerações Finais O ensino jurídico precisa ser revisado, tendo em vista que por ser um curso que provoca mudanças de mentalidade e reflexos sociais, econômicos e políticos, destaca-se a importância desse processo substancial para o desenvolvimento humano. É gradativo o surgimento de profissionais do Direito sem a menor condição para desenvolver a atividade jurídica em relação às quais o curso compromete-se a capacitar. Muito provavelmente não será possível ultrapassar os graves problemas que contaminam a sociedade e, mesmo havendo uma intensa recapitulação no sistema educacional, este sempre repercutirá as relações que são mantidas na estrutura social. É primordial uma liberdade maior no processo de ensino, de forma a provocar no acadêmico o proveito pela pesquisa e, por conseguinte, a procura por suas próprias conclusões, sem se restringir ao vínculo de uma metodização em que somente o docente detém o conhecimento. Não deveria ser dessa forma, pois o propósito é ensinar para a vida de maneira a se atingir uma modificação mais relevante da realidade social. REFERÊNCIAS BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil e as suas personalidades históricas – uma recuperação do passado para reconhecer seu futuro. Ensino jurídico-OAB: 170 anos de cursos jurídicos no Brasil. Brasília: OAB, 1997. _______ -O ensino jurídico no Brasil. 2 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Lumens Júris, 2000. BITTAR, Eduardo C. B. Crise da ideologia positivista: por um novo paradigma pedagógico para om ensino jurídico a partir da escola de Frankfurt. Disponível em<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/eduardobittar/bittar_crise_ideologia_positivista.pdf>, acesso em 20 de agosto de 2015. ________. Direito e ensino jurídico: legislação educacional. São Paulo: Atlas, 2001

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

91

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


MEDIAÇÃO versus CULTURA DO LITÍGIO: A efetividade da mediação na sociedade brasileira diante da cultura do litígio Ecilma Dalva Gomes Campos1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 RESUMO: Mesmo com toda a crise no judiciário, ainda prevalece na sociedade brasileira a cultura do litígio que se sobrepõe à cultura do consenso. Trata-se de uma cultura arraigada na sociedade brasileira, pois esta parte do pressuposto que seus direitos somente serão garantidos e que a justiça somente será alcançada a partir de uma decisão, de uma sentença proferida por um juiz togado. O presente trabalho tem o objetivo de discutir a crise pela qual vem passando o judiciário, analisar os meios alternativos de solução de conflitos como a mediação, conciliação e arbitragem, dando ênfase à mediação que é o principal objeto de estudo, além de possíveis ações que poderão contribuir para a efetivação da mediação, e por fim, analisar a cultura do litígio como um dos principais entraves à sua efetivação. ABSTRACT: Even with all the crisis in the judiciary, it is still prevalent in Brazilian society the litigation culture that overrides the consensus culture. It is an ingrained culture in Brazilian society, since it assumes that only their rights will be guaranteed and that justice will only be achieved from a decision of a sentence handed down by a judge robin. This paper aims to discuss the crisis that has been going the judiciary, examine alternative means of dispute resolution such as mediation, conciliation and arbitration, with an emphasis on mediation which is the main object of study, and possible actions could contribute to the effectiveness of the mediation, and finally, analyze the dispute culture as a major obstacle to its realization. PALAVRAS –CHAVE: Jurisdição; crise judiciário; (MASC); Cultura do litígio. KEYWORDS:Jurisdiction; judicialcrisis;(MASC); Cultureofthe dispute. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Jurisdição; 3 A crise no judiciário; 4 A questão do acesso à justiça; 5 Meios alternativos de solução de conflitos; 6 Cultura do litígio versus acesso à justiça; 7 Considerações finais; 8 Referências.

1. INTRODUÇÃO A sociedade brasileira é adepta ao litígio e não tem a cultura de procurar meios alternativos para solucionar seus conflitos, Ana Karina França Merlo (2012), em trabalho versando sobre mediação, conciliação e celeridade processual ressalta que a sociedade brasileira está acostumada e acomodada ao litígio e parte do pressuposto que a justiça somente será alcançada, que seus direitos somente serão assegurados a partir de uma decisão proferida por um juiz togado. Destarte, o brasileiro imagina que em quaisquer métodos alternativos jamais encontrarão segurança jurídica ou resultados práticos satisfatórios para a resolução dos seus conflitos, isso ocorre em parte, devido à falta de informação sobre a existência e sobre o funcionamento e os benefícios de cada método alternativo de solução de conflito. Segundo Merlo(2012), essa dependência do poder judiciário causa superlotação de processos que tramitam nas secretarias, processos esses que se prolongam no tempo, além de provocar a dificuldade de acesso à justiça. Tudo isso se contrapõe à tão esperada celeridade processual. Além de dificultar a solução de problemas graves, muitas vezes impossibilitando o sucesso buscado nas decisões definitivas devido à burocracia e demora. O conflito é inerente à sociedade, e uma vez que a mesma é formada por uma pluralidade de grupos com valores e ambições próprias, os conflitos tornam-se inevitáveis. Onde há sociedade, há conflitos e o fato de existirem normas que regulam a cooperação entre as pessoas e atribui a elas os bens não é suficiente para eliminar esses conflitos. De acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco (2009), nos dias atuais, quando surge um conflito entre pessoas, em regra, o direito impõe que para pôr fim a essa querela, seja chamado o estado-juiz para que, LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

após analisar o caso concreto, diga qual a vontade do ordenamento jurídico, e assim o Estado exerce sua função principal que é a pacificação social. Mas no passado, a realidade era completamente diferente. Até chegar o momento em que o Estado tomou para si a responsabilidade de declarar qual direito será aplicado no caso concreto, a sociedade passou por várias fases distintas, essa evolução não se deu de forma simples, como toda evolução, teve avanços, tropeços e retrocessos (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009). Nas civilizações primitivas, quando o Estado ainda era ausente, o que imperava era a força física. Quando uma pessoa tinha uma pretensão de obter ou fazer algo, e essa pretensão não era satisfeita devido à resistência alheia, ela tratava de conseguir o que queria por meio da força física. Nesta época os atos criminosos eram reprimidos em regime de vingança privava, e mesmo quando o Estado chamou para si o jus punitionis, que era uma forma de autotutela onde uma parte era o juiz e sendo ele a parte mais forte, impunha sua decisão à outra sem qualquer interferência. Imperava nessa época a lei do mais forte, do mais astuto ou do mais ousado que impunha sua vontade sobre o mais fraco ou mais tímido. Esse regime é chamado de AUTOTUTELA (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009). Tempos depois, com a evolução da sociedade, veio a AUTOCOMPOSIÇÃO que é um instituto onde uma das partes ou ambas abrem mão de seu interesse ou de parte dele para solucionar o conflito. A autocomposição se dá pela desistência, onde o indivíduo renuncia, abre mão da pretensão; pela submissão onde uma das partes cede a outra, ou ainda pela transação, onde há concessões recíprocas das partes (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2009) Aos poucos as pessoas começaram a preferir uma solução

92

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


mais amigável e imparcial através de um terceiro (árbitros), que era pessoa de confiança mútua das partes, normalmente sacerdotes que, por sua ligação com Deus, tinham sabedoria para resolver os conflitos. Podia ser também qualquer outro que tivesse ligação com a divindade ou ainda, alguém que conhecia profundamente os costumes do grupo integrados pelos interessados (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2009). Com o passar do tempo o Estado foi-se afirmando e conseguiu se impor aos particulares, com isso, nasceu de forma gradativa a tendência do Estado absorver o poder de ditar as soluções para os conflitos. Isso ocorreu no direito romano arcaico, nessa época o Estado participava das atividades destinadas a indicar qual o mandamento que iria predominar no caso concreto de um conflito de interesses (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2009). Nesse período o Estado já tinha uma participação mesmo que pequena na solução dos conflitos,aos poucos se fortalece e conquista o poder de nomear o árbitro que até então era nomeado pelas partes e apenas investido pelo magistrado. A arbitragem passa a ser obrigatória e não mais facultativa. Há uma publicidade da arbitragem. Para facilitar a sujeição das partes às decisões de terceiros, a autoridade pública começa a preestabelecer regras destinadas a servir de critério objetivo e vinculativo para dar segurança jurídica, afastando os temores de julgamento arbitrário e subjetivo. Surge então o legislador. Um marco histórico fundamental desta época é a Lei das XII Tábuas, do ano 450 a.C. (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2009) Após o período arcaico e o período clássico, veio uma nova fase, iniciada no século III d.C., e conhecida como período da cognitio extra ordinem. Nesse período, o pretor passou a conhecer ele mesmo do mérito e proferir sentença ao invés de delegar essa função para o árbitro. Com essa fase completou-se o ciclo da evolução da justiça privada para a justiça pública. Nesse momento, o estado já fortalecido, impõe-se sobre os particulares e impõe-lhes de forma autoritária sua solução para os conflitos de interesses. Essa atividade chama-se jurisdição onde os juízes substituem as partes, e estas não podendo agir por contra própria, fazem agir provocando a jurisdição (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2009). 2. JURISDIÇÃO Nos dias atuais, quando há conflitos entre as pessoas, o Estado moderno tem o poder/dever de solucionar esses conflitos exercendo sua função essencial que é a pacificação social através do seu poder estatal, decidindo sobre as pretensões apresentadas e impondo suas decisões. O principal escopo da jurisdição é a pacificação social, como explica Grinover, Cintra e Dinamarco (2009, p 30): A pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por consequência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um. O Estado para alcançar os objetivos da jurisdição, como a pacificação com justiça, institui o sistema processual, dita normas, e exerce seu poder através dos órgãos jurisdicionais criados por ele. Para Ada, Cintra e Dinamarco (2009), a partir desse conceito provisório de jurisdição e do próprio sistema processual, já se percebe que é uma função inserida entre as diversas funções do Estado, mas que ela sempre esteve incluída como uma responsabilidade estatal, mesmo quando prevalecia a ultrapassada filosofia política do Estado Liberal que era muito restritiva em relação às funções do Estado.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Ao cidadão é garantido o acesso à justiça, é o que está esculpido na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, XXXV que assegura a apreciação de lesão ou ameaça a direito por parte do poder judiciário, eis o texto legal “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça do direito”, esse dispositivo assegura ao cidadão a possibilidade de resolver seu litígio através do poder judiciário sem que haja obstáculo. No entanto, nos últimos tempos, a população tornou-se mais ciente dos seus direitos como cidadãos e consequentemente da garantia do efetivo acesso à justiça. É cada vez maior o número de cidadãos que sabe que se esses direitos forem ofendidos ou ameaçados, poderão recorrer ao judiciário para terem reparados suas perdas. 3. A CRISE NO JUDICIÁRIO É notório que nos tempos atuais, o judiciário está à beira de um colapso e vem sendo largamente criticado por toda a sociedade brasileira, uma vez que está abarrotado de processos e não consegue dar respostas às pretensões apresentadas de forma satisfatória e em tempo razoável. Dentre outros fatores, a conscientização da sociedade quanto aos seus direitos, surgimento dos novos direitos e o número excessivo de recursos faz com que o judiciário não consiga comportar a demanda, seja por excesso de processos, uma vez que o mundo contemporâneo proporciona múltiplas relações, e essas relações aumentam significativamente os conflitos interpessoais que deverão ser apreciados pelo judiciário, seja pela falta de pessoal qualificado. Certo é, que o judiciário brasileiro, há várias décadas, tem dificuldades de prestar um serviço público de qualidade à população. Essa crise não é inerente apenas ao Direito brasileiro, ocorre também em outras nações, vez que as demandas não têm fim, as matérias são das mais variadas e abrangem temas que eram inimagináveis tempos atrás, soma-se a isso o surgimento dos novos direitos que têm o objetivo de assegurar a todos garantias antes não reconhecidas(REVISTA DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBICAS – UNIFAFIBE,2014). Ricardo Goretti Santos (2008, p. 83) em artigo versando sobre “Ponderações sobre os obstáculos à efetivação de uma via alternativa de solução de conflitos”, ressalta que o Brasil tem como característica o elevado crescimento demográfico, econômico e de consumo e consequentemente de conflitos de interesses emanados de uma sociedade dinâmica, segundo ele: O crescimento da demanda pela prestação jurisdicional no decorrer dos anos pode ser atribuído a diversos fatores, dentre os quais pontuamos: o surgimento de novos direitos; umacrescente – embora tímida – popularização dos serviços de assistência judiciária gratuita; o advento do Código de Defesa do Consumidor, que despertou uma consciência e exercício de direitos como jamais visto; o advento dos Juizados Especiais e o amadurecimento do processo de democratização do país. Os processos têm se prolongado no tempo sem respeitar um prazo razoável para o seu término, mesmo após a introdução do princípio da duração razoável do processo pela Emenda Constitucional 45, de 08 de dezembro de 2004, medida editada por força do pacto de estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano. Essa morosidade gera um alto custo tanto para o Estado quanto para as partes (REVISTA DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBICAS – UNIFAFIBE, 2014). De acordo com a 10° edição do Relatório em Número de 2014 ano base 2013 do CNJ, o gasto pelo Poder Judiciário foi de aproximadamente R$ 61,6 bilhões, com crescimento de 1,5% em relação ao ano de 2012, e em 8,9% em relação ao triênio (2011-2013). Essa

93

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


despesa é equivalente a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, 2,7% do total gasto pela União, pelos estados e pelos Municípios no ano de 2013 e a R$ 306,35 por habitante. A despesa da Justiça Estadual é a maior de todas e representa mais da metade (55,2%) de todo o gasto do Poder Judiciário (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – RELATÓRIO JUSTIÇA EM NÚMERO 2014, p.32). O artigo 5°, XXXV além de afirmar que a lei não poderá excluir do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, garante também tempestividade da tutela jurisdicional, vez quea Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou ao artigo 5° da Constituição Federal o inciso que cria o direito fundamental à duração razoável do processo e aos meios necessários para que sua tramitação seja célere. Eis o texto legal do inciso LXXVIII, “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Trata-se de um direito que além de incidir sobre o Executivo e Legislativo, incide também sobre o Judiciário. Assim, o Judiciário tem que se organizar de forma adequada, equipar de forma efetiva os órgãos judiciários, adotar técnicas processuais ideais para permitir a tempestividade da tutela jurisdicional, além de se abster de praticar atos omissivos ou comissivos que retardem de forma injustificada o processo (LUIZ GUILHERME MARINONE, 2014). De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em seu relatório ”justiça em número 2014”, constata-se que há um progressivo e constante aumento no acervo processual, este acervo tem crescido a um percentual médio de 3,4% a cada ano. Ainda de acordo com o mesmo relatório, “tramitaram aproximadamente 95,14 milhões de processos na Justiça, sendo que, dentre eles, 70%, ou seja, 66,8 milhões já estavam pendentes desde o início de 2013, com ingresso no decorrer do ano de 28,3 milhões de casos novos (30%). Somandose a isto os novos casos, o resultado é que o total de processos em tramitação cresceu, em números absolutos, em quase 12 milhões em relação ao observado em 2009 (variação no quinquênio de 13,9%)” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – RELATÓRIO JUSTIÇA EM NÚMEROS 2014, p.34) A população está extremamente insatisfeita com a prestação jurisdicional, não resta dúvida. Esta insatisfação é demonstrada com clareza em pesquisa de opinião realizada pelo IPEA, no âmbito do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), em 2010, onde a avaliação geral da justiça foi de 4,55 diante de pergunta que solicitava a atribuição de nota de zero a dez à justiça. Esta nota está muito abaixo do ponto médio da escala adotada pela pesquisa. Em outra pesquisa também realizada pelo CNJ em setembro de 2011, no “Questionário de Pesquisa de Satisfação de Usuários. Dos entrevistados, 62% responderam que as audiências não são realizadas no horário previsto, 56,7% disseram que os processos não são concluídos no prazo previsto na forma da legislação e 64,8% afirmaram que quando utilizam um canal de contato, as respostas não são dadas em tempo hábil. 4. A QUESTÃO DO ACESSO À JUSTIÇA. O texto legal do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 preceitua que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça do direito”, esse artigo resguarda o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional, garantindo ao cidadão o acesso à justiça. Destarte, para Luiz Guilherme Marinoni (2014, p 197), tanto o custo do processo quanto a demora processual são obstáculos para um efetivo acesso à justiça. O mais obvio obstáculo para um efetivo acesso à justiça é o do “custo do processo”. Esse problema se relaciona com as custas judiciais devidas aos órgãos jurisdicionais, com as des-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

pesas para a contratação de advogado e com aquelas necessárias para a produção de provas. Ainda segundo o autor (2014, p.198): Não há dúvidas que os obstáculos sociais para o acesso à jurisdição também atingem o réu, mas também é inegável que o direito de acesso, quando relacionados à efetividade da proteção dos direitos, vincula-se mais nitidamente à posição do autor e dessa maneira, ao direito de ação. O custo do processo pode impedir o cidadão de propor a ação, ainda que tenha convicção de que seu direito foi violado ou está sendo ameaçado de violação. Isso significa que por razões financeiras, expressiva parte dos brasileiros pode ser obrigada a abrir mão dos seus direitos. Como solução para essa questão o próprio Marinoni cita a justiça gratuita resguardada pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5°, LXXIV que afirma que “O estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que provarem insuficiência de recursos”. Outro obstáculo citado por Marinoni (2014) é a demora processual, que é considerada por parte da doutrina como sem importância para um discurso científico, mas importante para a outra parte da doutrina na medida em que importa o significado que o tempo assume e como ele repercute sobre a efetiva proteção do direito. Em grande parte dos casos, o autor pretende alterar uma situação que já está estabilizada em favor do réu. Assim conclui-se que o autor da demanda com razão, acaba por ser prejudicado pelo tempo da justiça enquanto que o réu sem razão é beneficiado por ele na mesma medida. Na explicação de Marinoni (2014, p.200): O tempo do processo, diante da proibição da autotutela tornou-se indispensável para o juiz amadurecer o seu juízo sobre os litígios. Isso significa que o tempo é, antes de tudo, um problema da jurisdição, que por esse motivo deve zelar para que o réu não abuse do seu direito de defesa ou pratique atos objetivando a protelação dos feitos. Fiuza (1995) corrobora esse entendimento e admite que a lentidão do processo serve como entrave ao acesso à justiça. Apesar do tempo do processo ser indispensável para que o juiz possa amadurecer seu juízo sobre o litígio, olhando por outro ângulo, essa lentidão é inimiga de direitos que requerem respostas ágeis e rápidas como, por exemplo, o Direito Mercantil. Outro entrave citado pelo autor é a forma, apesar de ser importante como suporte da legalidade e da imparcialidade, além de garantia contra o arbítrio. ”No momento que se estabelece adoração à forma deixa o processo de ser formal tornando-se formalista e a forma passa a ser o fim em si mesmo” (FIUZA, 1995, p.36). O exemplo citado é o número de recursos existentes, o autor cita também como entrave ao acesso à justiça além do formalismo, os altos custos da demanda judicial e a lentidão, e conclui que “tudo isso torna o processo judicial ineficaz, distanciando da sociedade, em função da qual, em última instância deveria existir” (FIUZA, 1995, p.36). Fiuza (apudBATISTA, AMAGIS VOL 7, N° 17, p. 140-142).), considera importante o comentário que Luiz Otavio Baptista tece a respeito do assunto quando afirma: A grande queixa que se tem do judiciário é a da despesa e do tempo consumido. É verdade que os custos são largamente subsidiados pelo Governo. Aquilo que se cobra a título de custas, dos litigantes, não é suficiente para pagar os custos reais do Estado com a solução da disputa. Acrescente-se a isto aquelas despesas que nós todos sabemos que não são reem-

94

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


bolsadas, tais como honorários de advogados (muitas vezes fixados pelos juízes em limites inferiores àqueles do mercado ou da convenção entre as partes), honorários de peritos que quase sempre exigem algo a mais do que aquilo que o juiz fixa, diligências de oficial de justiça (que tradicionalmente são cobrados dos advogados em tarifas muito superiores àquelas fixadas pelos Tribunais), gratificações dadas aos cartórios (também indispensáveis para obter aqueles serviços que o cartório deveria prestar e que de outra maneira não prestará ou prestará de maneira inadequada e atrasada. Todas essas são despesas que encarecem e que tornam muitas vezes economicamente proibitivo o acesso aos Tribunais. Entretanto muitas vezes não param aí as críticas que se fazem aos Tribunais. Fala-se, com certa frequência, nos problemas que decorrem da limitação dos poderes dos Tribunais, em razão do formalismo do processo. Muitas vezes, vemo-nos forçados a frustrar as aspirações de nossos clientes por falta de possibilidade jurídica de obter a prestação almejada. Com efeito, nem sempre o trabalho legislativo acompanha o crescimento da sociedade, e o juiz tem que agir nos limites do que a lei lhe faculta. Soma-se a essas críticas, a natureza do processo judicial, pois quando as partes são colocadas como adversários, estas se antagonizam, e assim, a disputa judicial pode impedir que retomem um relacionamento que poderia vir a ser amigável, como exemplo pode-se citar a dissolução do casamento ou de sociedade que quase sempre levam à impossibilidade de diálogo posterior entre as partes (Fiuza apud BATISTA, AMAGIS vol.7, n° 17). Outro ponto importante é a natureza especializada de determinadas disputas, já que a maior parte dos juízes tem formação generalista, isso leva a soluções que não são adequadas do ponto de vista da equidade, da justiça ou mesmo do ponto de vista legal (Fiuza apud BATISTA, AMAGIS vol.7, n°17). Destarte, a soma de todas essas críticas leva boa parte dos doutrinadores a buscarem formas alternativas para promover a pacificação social de forma mais célere e menos burocrática. Serão abordados alguns dos meios alternativos de solução de conflitos, mas de forma superficial uma vez que o que tem relevância para esse trabalho é o instituto da Mediação. 5. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS OU MESC (Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos) Cada conflito tem suas particularidades, sendo assim, a solução dos mesmos requer métodos adequados à sua natureza, características dos envolvidos, experiências anteriores das pessoas envolvidas e a outros fatores que combinam entre si para indicar o caminho mais adequado. Dentre os métodos extrajudiciais para solução de conflitos, os mais utilizados são a arbitragem, conciliação e mediação(FIORELLI; OSMIR, 2015). 5.1 Conciliação Dentre os meios alternativos de solução de conflitos, destacamse a Conciliação e a Mediação. Na conciliação, as partes, consensualmente, procuram a resolução de seu(s) conflito(s), com a presença de um terceiro, o qual interfere no processo visando à obtenção de um acordo, a fim de evitar que o litígio seja levado à apreciação de um juiz. Trata-se de método cooperativo no tratamento de conflitos, tem como objetivo colocar fim à questão trazida pelas partes. O conciliador interfere e questiona os litigantes na busca por soluções, e se envolve segundo sua visão do que é justo ou não, no entanto, não tem

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

poder de decisão, esta decisão deve ser tomada cooperativamente pelas partes. Não há interesse em identificar as razões que levaram ao litígio ou quaisquer outras questões pessoais das partes envolvidas. No Brasil, a conciliação é amplamente utilizada pelo Poder Judiciário, com várias previsões normativas disciplinando sua aplicação no âmbito jurisdicional. O Conselho Nacional de Justiça, CNJ, criou o Projeto “Movimento pela Conciliação”, com o tema “Conciliar é Legal”, e instituiu o dia nacional da conciliação, ocorrido em 8 de dezembro de 2006, oportunidade na qual foi organizado, pelo Poder Judiciário de todo o país força tarefa (com convocação de escritórios universitários de práticas jurídicas, conciliadores, estudantes, professores universitários, juízes), para a resolução do maior número de litígios possível por esta via. Desde então, todos os anos, o evento da semana nacional de conciliação vem acontecendo com resultados extremamente satisfatórios, sendo que a campanha de 2014 foi realizada entre os dias 24 a 28 de novembro, e teve o seguinte resultado: 7.309 audiências designadas, 5.509 audiências realizadas e 2.408 acordos homologados. (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4° REGIÃO). 5.2 Arbitragem

Trata-se de um método adversarial onde a decisão cabe a um terceiro escolhido pelas partes, é aplicado quando há “cláusulas compromissórias” ou “compromisso arbitral” firmado pelos interessados. As partes influenciam diretamente na escolha do árbitro que é escolhido livremente pelos litigantes. Esta liberdade na escolha do árbitro se reflete na confiança que este inspira às partes, confiança que se baseia na especialidade que detém sobre determinada matéria e na idoneidade que se consolida ao longo da sua vida profissional e pessoal (FIORELLI; OSMIR, 2015). Devido ao despreparo do Estado para julgar determinados conflitos que requerem um conhecimento técnico específico em determinada área, houve uma tendência de transferir determinadas demandas endereçadas ao Poder Judiciário para os tribunais arbitrais, tendência essa fortalecida pela Lei da Arbitragem (Lei 9307/96), que dispõe no seu artigo 1° que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. A Lei também dispõe que esses litígios podem ser julgados por qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes (art. 13 caput), e ainda, que as partes interessadas podem submeter a solução dos seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem que são as cláusulas compromissórias e o compromisso arbitral (art. 3°). A Lei também deixa claro que além da decisão do árbitro não precisar ser homologada pelo judiciário, também não pode ser novamente ser posta em discussão (MARINONI, 2014). Trata-se de um meio alternativo de solução de conflitos onde a decisão do Juiz Arbitral tem a mesma eficácia da sentença Judicial e se destina a solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (ex: cheques, notas promissórias, contratos, notas de vendas, acidentes de trânsito, recibos, etc.). Da arbitragem são excluídas as questões que envolvem menores de 18 anos, questões de família, de ordem pública (Município, Estado e União) e ainda questões criminais. Os árbitros são cidadãos capazes, de reputação ilibada, preparados e treinados para exercer a função de árbitro (advogados, economistas, administradores, engenheiros, etc.). Nos termos do artigo 18 da Lei 9.307/96“O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Na arbitragem, a critério das partes, o julgamento pode ser por equidade, nos princípios gerais do direito, nos usos e costumes ou no livre convencimento dos árbitros, diferente da justiça comum onde o Juiz é obrigado a fundamentar sua decisão na lei. O sigilo é regra universal, o prazo máximo para apresentação

95

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


da sentença é de 180 dias se outro não for estipulado em comum acordo pelas partes. A sentença arbitral não está sujeita a recursos ou homologação prévia do Judiciário já que é considerada como título executivo judicial. 5.3Mediação

No entendimento de FIORELLI; OSMIR (2015), a mediação é um método de resolução de conflitos onde um terceiro imparcial e neutro procura facilitar o diálogo entre as partes, ajudando-as a identificar as questões do conflito para que elas construam com autonomia e solidariedade a melhor solução para os problemas, avaliando objetivos e opções e buscando restabelecer a comunicação. Trata-se de um procedimento consensual que busca mútua satisfação das partes envolvidas. É um método onde o mediador explora o conflito com o objetivo de identificar os interesses ocultos nas queixas manifestas. O mediador não decide, não sugere soluções, apenas trabalha para que as partes (mediandos) as encontrem. O mediador se empenha para que haja o reconhecimento do ponto de vista do outro, além disso, é fundamental também que os participantes aceitem a ajuda do mediador para lidar com suas diferenças. Para melhor explicar, conforme FIORELLI e OSMIR (2015, p.403): A mediação trabalha com as emoções, promovendo deslocamento de emoções negativas para positivas; facilidade para migrar das posições enunciadas para fazer emergir os reais interesses dos participantes; concentração nas emoções positivas; desenho do futuro com base no sucesso das ações relacionadas com essas emoções. Focaliza-se o bom e trabalha-se para construí-lo. O resultado dessa estratégia é o apaziguamento, o que não significa reconciliação ou reatamento de relações interpessoais. A permanência de uma inimizade não implica na continuidade de um conflito, desde que exista cooperação para superá-lo, em benefício das partes. Trata-se de um procedimento estruturado, sem prazo definido e que pode terminar ou não em acordo, vez que as partes têm autonomia para buscar soluções compatíveis com seus interesses e necessidades. É um processo consensual breve, que busca uma efetiva harmonização social e a restauração, dentro dos limites possíveis, da relação interpessoal das partes. O acordo obtido da Mediação, nela reduzido a termo, constitui-se título executivo extrajudicial, podendo, a critério das partes, ser homologado judicialmente, hipótese em que se converterá em título executivo judicial. A Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, em seu artigo 1° parágrafo único, conceitua a mediação como atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder de decisão, que é escolhido ou aceito pelas partes e as auxilia a identificar soluções consensuais para a controvérsia. Eis o texto legal “considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”. Ainda segundo a lei, a mediação será sempre orientada pelos princípios da imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, da busca do consenso, confidencialidade e boa-fé (art. 2°, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII). Na mediação o poder de decisão é de responsabilidade exclusiva dos participantes, cabendo ao mediador a facilitação do diálogo. A mediação pode ser conceituada como meio para a resolução pacífica de conflitos, no qual as partes, voluntariamente e de boa fé, com a ajuda de um terceiro imparcial, o mediador, procuram juntas a melhor solução para o problema enfrentado. O procedimento da me-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

diação se caracteriza pela atuação do mediador que, através de técnicas específicas, estimula as próprias pessoas envolvidas no conflito a dialogarem, a fim de que possam construir outras saídas que vão além do tradicional ganha-perde contencioso; caminhos baseados no consenso, equilíbrio e respeito ao outro. Enquanto técnica consensual, a mediação baseia-se no entendimento de que as pessoas envolvidas no conflito são capazes de solucionar seus próprios conflitos, de maneira autônoma e responsável, com o auxílio do mediador. Em vez de oponentes, parceiros na construção de soluções para o conflito, presente a vontade e boa-fé para o cumprimento do que foi acordado. Uma das grandes vantagens da mediação é a celeridade, apesar de não haver prazo estipulado para a sua conclusão, esta se dá normalmente em uma ou duas sessões, podendo ainda ter esse prazo definido pelas partes em comum acordo. Mas, apesar de todas as vantagens, a mediação não é o “melhor” método de solução de conflitos da mesma maneira que os demais métodos alternativos de solução de conflitos não o são. A mediação se mostra eficaz quando utilizada de forma correta, isto é, nas situações nas quais se aplica. Em situações em que ódios e paixões privam as pessoas do mais elementar raciocínio lógico, ela se torna impossível (FIORELLI; OSMIR, 2014, p.404). A Resolução 125 do CNJ institui a Política Pública de Tratamento Adequado de Conflitos de interesse, segundo seu próprio texto, seu objetivo é “assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade”. Além disso, afirma logo no parágrafo único do artigo 1° que incumbe aos órgãos judiciários oferecer, além da solução adjudicada mediante sentença, outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os meios consensuais como a mediação e a conciliação. Eis o texto legal “Aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão”. Essa resolução também determina que osTribunais de cada estado criem uma estrutura voltada para o atendimento de pessoas envolvidas em conflitos possíveis de serem resolvidos de forma extrajudicial. 6. CULTURA DO LITÍGIO versus o ACESSO À JUSTIÇA O direito precisa acompanhar a evolução da sociedade, e esta, quanto mais evoluída, mais consciente dos seus direitos, consequentemente maiores serão as controvérsias. Destarte, o judiciário não tem como evoluir na mesma proporção, tornando-se assim inapto a resolver tantos conflitos. Impera ainda nos dias de hoje a cultura do litígio que se sobrepõe à cultura da pacificação dos conflitos, trata-se de uma tradição que a sociedade brasileira ainda sustenta mesmo diante da crise do judiciário. Mendes (2014), em artigo versando sobre a necessidade de mudança na sociedade da cultura do litígio e aceitação da conciliação, ressalta que, o que se verifica é a manutenção de uma cultura voltada para o litígio, para embates em juízo na medida em que surgem as controvérsias, sendo estas das mais diversas modalidades e sobre diferentes matérias, enquanto que a conciliação entre as partes fica em segundo plano, sendo realizada somente em decorrência de disposições legais que a estabelecem como formalidades que devem ser observadas no curso do processo judicial. A sociedade brasileira tem o hábito de primeiramente buscar a via jurídico-processual para resolver suas controvérsias antes de buscar o consenso. Merlo (2012) em trabalho versando sobre mediação, conciliação e celeridade processual corrobora essa opinião e ainda ressalta que

96

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


“A exigência burocrática da justiça imprime às pessoas a sensação que o seu direito estará resguardado e protegido se for proveniente de uma sentença prolatada por juiz, após os trâmites de um processo judicial”. Destarte, obrasileiro tem a falsa concepção de que em qualquer método alternativo de solução de conflito, não encontrará segurança jurídica ou resultados práticos satisfatórios para a resolução dos seus conflitos. Trata-se aqui de uma cultura enraizada na sociedade, na formação que essa sociedade teve ao longo dos tempos. Em debate sobre o acesso à Justiça na XXII Conferência Nacional dos Advogados, evento promovido pela OAB, o advogado Hélio Chaves de Oliveira defendeu que as metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça deveriam estar entre os critérios de promoção por merecimento dos juízes aos tribunais do país. De acordo com ele, “O acesso à Justiça é uma matéria que está indubitavelmente ligada à eficiência. Por isso, o CNJ estabeleceu as metas para o Judiciário. No entanto, hoje elas são pouco menos que uma obrigação”. Chaves ainda afirma que essas metas hoje não passam de cartas de intenções na medida em que quando não cumpridas, não acarreta sanções. O advogado propôs que o cumprimento das metas influenciasse nas promoções dos Juízes e que no segundo e terceiro graus também houvesse regras específicas. Disse também que é muito comum hoje um Juiz ou desembargador deixar sua vara ou seu gabinete com considerável estoque para seus sucessores e finalizou dizendo que “isso não é acesso à justiça”. Chaves também chamou a atenção para o papel da advocacia frente à avalanche de processos — mais de 90 milhões, segundo dados do relatório Justiça em Números, do CNJ. Segundo Chaves (2014), “Há algumas propostas que a OAB pode protagonizar. Dentre elas, campanhas massivas para a promoção de uma cultura de paz, ou seja, para a promoção da judicialização zero”. Para Chaves, isso tem que começar já nas faculdades, propõe-se a inclusão da mediação e da conciliação na grade curricular dos cursos de Direito. As escolas de Direito podem e muito contribuir para a mudança dessa mentalidade e, consequentemente amenizar a crise no sistema judiciário, se seus programas de ensino forem pautados em propostas pedagógicas direcionadas à formação de profissionais para operar sob duas concepções, a adversidade que permeia os processos judiciais e a não adversidade que particulariza a mediação e outros meios alternativos de conciliação e pacificação social, essas duas concepções apesar de aparentemente antagônicas, hoje coexistem e se complementam. Importante que as escolas alterem seus programas acadêmicos, incluindo disciplinas que versem sobre métodos alternativos não processuais e que promovam a participação do estudante em experiências práticas aplicando esses métodos. Importante também seria o convênio com o poder executivo e com a Defensoria Pública estipulando remuneração para o profissional do direito sem a necessidade de ajuizarem ação, pagando pela solução consensual mesmo que seja apenas para desempenhar o papel de orientador das partes. Abrir oportunidade para esses profissionais do direito atuarem como mediadores e conciliadores, assim acabaria essa sensação de perda de trabalho pelos operadores do direito e abriria novas oportunidades. Outro ponto a ser analisado é a falta de informação para a população sobre as diversas formas de solução de conflitos extrajudiciais que vão efetivar seus direitos. Para isso é necessário que haja mais informações sobre os métodos e suas vantagens, o acesso à informação pode se dar com a criação de centros de resolução de conflitos preconizado pelo CNJ na resolução 125/2010, incentivar a solução obtida e esclarecer que ambos os litigantes sairão ganhando sem o ressentimento de sentir-se perdedor por cumprir decisão ditada por terceiro. Santos (2008), em artigo onde faz ponderações sobre os obstáculos à efetivação das vias alternativas de solução de conflitos, ressalta que importante também é discutir a resistência das instituições

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tradicionais ligadas ao Processo judicial que temem perder espaço e poder, como possível solução, é necessário incentivar os juízes de forma efetiva a participar de projetos de soluções consensuais, prestigiando as iniciativas e conscientizando que mediação e conciliação são atividades adequadas e complementares, nunca antagônicas ao trabalho judicial. O CNJ também prevê a capacitação daqueles que atuem como facilitadores, mas não regulamenta a sua remuneração. Se não houver uma mudança de mentalidade e uma comunhão de esforços dos operadores do direito e dos jurisdicionados, a resolução 125 do CNJ tende a se tornar inócua. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, podem-se formular sugestões de possíveis soluções para que os meios alternativos de solução de conflitos sejam realmente efetivos, eficazes e que contribuam para a aplicação do melhor direito, dizendo-se, no entanto, que não se limitam aos apresentados neste artigo e nem significa que sejam os mais adequados, mas que, contudo, são citados nos trabalhos dos mais diversos estudiosos do tema, é notório que numa sociedade onde o litígio está arraigado, necessário se faz o esforço de todos, inclusive do Estado para mudar essa mentalidade, pois se utilizando dos meios alternativos todos irão ganhar, visto que muitas controvérsias poderão ser resolvidas de forma muito mais célere e o cidadão de forma consensual terá a certeza que seus direitos foram resguardados, mudando a concepção de que para um ganhar o outro tem que perder, e percebendo que todos podem ganhar numa resolução consensual, o desgaste emocional será muito menor, o excesso de processos que tramitam hoje diminuirá, e aqueles que necessitam do judiciário para solucioná-los também serão julgados num tempo realmente razoável, diminuindo assim o desgaste de todos e a melhor aplicação do direito. Para isso, é necessário identificar quais são os principais entraves para a efetividade desses meios alternativos na nossa sociedade. Não resta dúvida de que um dos principais entraves à efetividade da mediação como meio alternativo para solucionar conflitos é a cultura do litígio que está arraigada na sociedade brasileira, é muito comum por qualquer controvérsia ouvir-se a expressão “vou entrar na justiça”, afinal o cidadão está tão acomodado ao litígio que acredita que através de uma sentença proferida por um juiz, seu direito será resguardado e ele, em certa medida vai “ganhar” a causa, há um descrédito do cidadão quanto à proteção do seu direito e a justa solução da lide através da mediação, isso se dá às vezes por falta de informação. É importante que a população entenda que para um ganhar o outro não precisa perder, e assim sair desse jogo de “ganhador x perdedor” para “ganhador x ganhador”, e isso só será possível através de campanhas massivas em todos os tipos de mídia sobre como funciona e quais os benefícios que a mediação pode trazer. Outra sugestão não menos importante é a inclusão dos meios alternativos de solução de conflitos como matéria obrigatória na grade curricular das escolas de Direito, como consequência, os futuros operadores de direito terão uma mentalidade voltada mais para o consenso do que para o litígio, cumprindo assim o que preceitua o Código de Ética e Disciplina da OAB, que estabelece como deveres do advogado: “estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios” (art. 2º, parágrafo único, VI). Santos, (2008) em trabalho versando sobre ponderações sobre os obstáculos à efetivação de uma via alternativa de solução de conflitos conclui que há ainda nos dias de hoje uma carência por parte da sociedade de informações sobre a existência e os propósitos dos meios alternativos de solução de conflitos e a sociedade somente vai abandonar essa condição de descrédito em relação à legalidade, efetividade e

97

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


utilidade da mediação na medida em que essa carência de informação for suprimida, vez que é de grande importância toda e qualquer forma de elucidação e divulgação do instituto da mediação, e isso deve ser buscado na abordagem intensificada do tema em palestras, seminários, congressos, publicações, cursos de formação, de capacitação e aperfeiçoamento. Além disso, devem se incluídas nesse conjunto de ações de cunho pedagógico, a inserção crítico-reflexiva da matéria na grade curricular das instituições de ensino superior em Direito. Outro ponto importante é a normalização da mediação como prática judicial e extrajudicial para lhe conferir padrões mínimos de formalidades, vez que trata-se de prática essencialmente informal. E por fim, a partir da superação dos obstáculos da carência de informação e da normalização da prática judicial e extrajudicial da mediação, há a possibilidade de rompimento mesmo que parcial da cultura do litígio que hoje ainda está enraizada na sociedade que considera o percurso de vias heterocompositivas, judiciais e adversariais como pressuposto indispensável à pacificação de conflitos, à garantia e ao reconhecimento de direitos e consequentemente à concretização da justiça. Os meios alternativos de solução de conflitos não irão atingir seu escopo principal que é a efetiva pacificação social em virtude apenas da existência de disposições legais e infralegais a respeito da matéria, mas sim na medida em que houver uma mudança de mentalidade, adoção de uma nova postura, de uma nova forma de pensar da sociedade, quebrando os paradigmas da litigiosidade, enfim, mudando da cultura do litígio para a cultura do consenso. REFERÊNCIAS BRASIL. Emenda Constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc45. htm> Acesso em 05 de setembro de 2015. BRASIL. Lei n° 13.140, de 26 de junho de 2015. Disponível em:<www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm> Acesso em: 05 de setembro 2015.

IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – (SIPS) – Sistema de Indicadores de Percepção Social – Avaliação Geral da Justiça pelos Cidadãos. Disponível em:<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/ livro_sistemaindicador es_sips_01.pdf> Acesso em: 18 de outubro de 2015. GISELLE SOUZA. Conferencia da Advocacia: Cumprir metas do CNJ deve contar para promoção de juiz, diz ex-conselheiro. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014- out-22/cumprir-metas-cnj-contar-promocao-juiz-advogado>Acesso em: 20 de novembro de 2014. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil: teoria geral do processo. 8 ed. rev. e atual.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. (Curso de processo civil; v.I). MENDES, Gustavo Catunda. Artigo: Sociedade deve mudar cultura do litígio e aceitar conciliação. Disponível em: <http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NDQzM A==&filtro=1&Data=> Acesso em: 18 de outubro de 2015. MERLO, Ana Karina França. Mediação, conciliação e celeridade processual. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 105, out 2012. Disponível em: http://www. ambito-Juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_ id=12349&revista _caderno=21>. Acesso em: 18 outubro 2015. Revista de Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE). Breves Reflexões acerca da Mediação segundo a Regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) -I S SN 2 3 1 8 - 5 7 3 2 – vol. 2, N°.1, 2014. Disponível em:<http:// www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/ view/22/pdf_12>Acesso em: 05 de agosto de 2015. SANTOS, Ricardo Goretti. Acesso à Justiça e Mediação: Ponderações sobre os obstáculos à efetivação de uma via alternativa de solução de conflito. Disponível em:<http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp075887.pdf> Acesso em: 25 outubro 2015. Tribunal Regional Federal 4 região (SISTCON). Semana Nacional da Conciliação, 2014. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&acao_origem=pa gina_alterar&id_pagina=1215>Acesso em: 09 de agosto de 2015.

Câmara Mineira de Mediação e Arbitragem. Disponível em <http://www.caminas.com.br/caminas/mediacao.aspx.>Acesso em: 05 de setembro de 2015.

Tribunal Regional Federal 4 região (SISTCON). Semana Nacional da Conciliação,2006.Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=sistco n_dia_nac_concilia_2006> Acesso em: 09de agosto de 2015.

CINTRA,Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER,Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 25 ed. ver. Atual. São Paulo: Malheiros, 2009.

Notas de Fim

Conselho Nacional de Justiça. Emenda n°1 de 31 de janeiro de 2013. Disponível em: <http://www.trtsp.jus.br/geral/tribunal2/Trib_Sup/STF/CNJ/Emenda_01_ res125.html> Acesso em: 09 de agosto de 2015.

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Número 2014. Disponível em <ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf> Acesso em: 05 de setembro de 2015. Conselho Nacional de Justiça.Mediação e Conciliação, qual a diferença? Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-mediacao> Acesso em: 05 de setembro de 2015. Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa de Satisfação do Usuário. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/images/gestao-planejamento-poder- judiciario/pesquisasatisfacao/usuarios_total_geral.pdf.> Acesso em: 26 de julho de 2015. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n° 125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/arquivo_integral_republicaca o_resolucao_n_125.pdf> Acesso em: 05 de setembro de 2015. FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana CathyaRagazzoni.Psicologia Jurídica. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2015. FIUZA, César. Teoria geral da arbitragem. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

98

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


COLABORAÇÃO PREMIADA NOS CRIMES ORGANIZADOS Evelyn Inaê Alves Gato1 Ronaldo Passos Braga2

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar como funciona a aplicação e concessão do beneficio da colaboração premiada nos crimes organizados. Buscando demonstrar que o mesmo beneficio tem o intuito de auxiliar o Estado em combater estes crimes, crimes esses que são de difícil conhecimento aos órgãos fiscalizadores, por serem conhecido por sua grande organização e estrutura criminosa. O trabalho busca também apresentar os posicionamentos doutrinários com relação ao beneficio concedido pela Lei 12.850/13, exibindo assim seus pontos negativos e positivos. ABSTRACT: This study aims to present how the application and concession of the benefit of the awarded delation in organized crimes. Seeking to demonstrate that the same benefit intends to assist the State in fighting these crimes, crimes that are of difficult cognition of the regulatory agencies, as they are known for their great organization and criminal structure. The work also seeks to present the doctrinal positions regarding the benefits granted by the Law 12.850/13, thereby displaying its negative and positive points. PALAVRAS-CHAVE: Colaboração Premiada; Direito Penal; Crime Organizado; Delação Premiada; Direito Processual Penal. KEY-WORDS: Awarded Collaboration; Criminal law; Organized crime; Awarded Delation; Criminal Procedural Law. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Principais aspectos da colaboração premiada; 2.1 Conceito; 2.2 O Direito Comparado; 2.3 A colaboração premiada no Brasil; 2.4 Diferença de Delação Premiada para Colaboração Premiada; 2.5 Requisitos para a colaboração nos crimes organizados e suas consequências; 3 Problematização acerca da colaboração nos crimes organizados; 4 Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem o intuito de apresentar a colaboração premiada prevista na Lei da Organização Criminosa nº 12.850/2013, no qual busca suprir o déficit que o Estado tem em combater este crime pelas vias comuns de fiscalização, assim o tornando mais eficaz com a colaboração do acusado em combate ao crime organizado. Tendo em vista a amplitude do tema em questão, não se pretende discuti-lo em um todo, mas sim buscar apresentar os pontos primordiais da colaboração premiada na legislação do crime organizado. Desta forma, o primeiro capítulo, trará os principais aspectos da colaboração premiada; o conceituando; apresentado de forma comparada com legislações estrangeiras; como é a colaboração premiada no Brasil; apresentar divergência que este beneficia tem em questão da nomenclatura e os requisitos necessários para ocorrer à concessão do beneficio. No segundo capitulo, discorrerá sobre os pontos negativos que ainda se debate sobre o tema, expondo assim as divergências doutrinárias sobre a colaboração premiada e por fim, demonstrando que a colaboração premiada se encontra como um mal necessário para combater a organização criminosa. Por fim, concluísse o trabalho demonstrando as vantagens que a colaboração premiada oferece ao Estado no combate ao crime organizado, consequentemente trazendo segurança a sociedade. 2. PRINCIPAIS ASPECTOS DA COLABORAÇÃO PREMIADA 2.1 Conceito Colaboração é expressão utilizada por lei processual penal para definir ato de cooperação, contribuição, juntamente com o termo Premiada, que representa vantagem ou recompensa. Segundo Mario Sérgio Sobrinho a definição é: A colaboração premiada é o meio de prova pelo qual o investigado ou acusado, ao prestar suas declarações, coopera com

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

a atividade investigativa, confessando crimes e indicando a atuação de terceiros envolvidos com a prática delitiva, de sorte a alterar o resultado das investigações em troca de benefícios processuais. Portanto, a colaboração premiada é um benefício com o intuito de o Estado tomar conhecimento de várias infrações penais que não teria ciência apenas através dos meios de fiscalização comum, com isso, estimulando o investigado/acusado ou condenado a colaborar e assim identificando os outros autores e participes e muito mais. 2.2 Direito Comparado Tema aparentemente recente, porém, já utilizado em outros países como Itália, criado para desarticular a máfia e seus benefícios variando entre a redução da pena condenatória ou substituição da pena de prisão perpétua por uma pena mais branda, em contrapartida à uma maior efetividade no combate ao crime organizado. Nos Estados Unidos da America (EUA), a colaboração processual é meio de negociação do quantum e da espécie da pena entre a acusação (o Ministério Público) e o acusado colaborador. A colaboração processual poderá ser aplicada em várias hipóteses, sendo uma delas em crimes em que o acusado cometeu sozinho, sem a presença de coautores. O beneficio da colaboração poderá ser uma pena mais branda, a possibilidade de que não seja proposto outro processo contra ele ou a exclusão de eventuais processos existentes. Na Espanha, a colaboração processual é utilizada para combater as associações ou organizações dedicadas aos crimes de terrorismo, de tráfico ilícito de entorpecentes e contra a saúde pública. Os requisitos para concessão do beneficio, será o arrependimento e abandono voluntário do autor nas atividades ilícitas. Assim, confessando as infrações penais e delatando os demais membros da organização criminosa; ou evitar que a infração penal se consuma. O

99

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


benefício a ser aplicado poderá chegar até a exclusão da pena. Na Alemanha a colaboração ocorrerá quando um autor voluntariamente impedir que associação criminosa continue, deste modo, delatando a organização à autoridade para que não ocorram novos crimes. Sendo o benefício, a redução ou não aplicação da pena, com intuito de inibir novas praticas do crime. Na Colômbia, a colaboração foi criada especialmente para combater o narcotráfico, sendo que o autor deve voluntariamente delatar os coautores da infração penal e apresentar provas concretas de suas imputações. Podendo o delator ter redução da pena em um terço caso confesse sua participação no crime; liberdade provisória; substituição da pena privativa de liberdade e inclusão no programa de proteção a vitimas e testemunhas. 2.3 Colaboração Premiada no Brasil No Brasil, a colaboração premiada não esta presente em uma única lei específica, na qual vem apresentando seus requisitos, procedimentos e benefícios a conceder com a colaboração. Deste modo, poderá encontrar o beneficio da delação em leis especiais diversas ou mesmo dentro do Código Penal. A delação processual pode ser vista nas seguintes leis: Lei 9.807/99 (Lei de Proteção a Vitima e às Testemunhas); Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro); Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos); Lei 8.137/90 (Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e Relações de Consumo); Lei 9.613/98 (Crimes de Lavagem de Capitais); Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas); Lei 12.850/2013 (Organização criminosa) objeto de estudo do nosso artigo que será aprofundado mais tardar. No Código Penal, encontramos a delação no artigo 159 § 4º, que diz “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. Portanto, o requisito fundamental para aplicação do beneficio é que ocorra a libertação da pessoa sequestrada, porém, caso a libertação for conseguida por outros meios, sem o uso da informação prestada pelo denunciante, não se aplica a redução da pena (NUCCI, Guilherme de Souza). Decisão do STJ ilustra caso que em que não foi concedido o beneficio: DELAÇÃO PREMIADA. FORNECIMENTO. NÚMERO. TELEFONE. No caso de extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP), não se considera delação premiada (§ 4º do referido artigo) o fato de o paciente, depois de preso, apenas fornecer o número de telefone de seu comparsa, visto que, em nenhum momento, facilitou a resolução do crime ou influenciou a soltura da vítima. Precedente citado: HC 92.922-SP, DJe 10/3/2008. HC 107.916-RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 7/10/2008. (GRIFOS NOSSO) O artigo 44, inciso I, do Código Penal pode ser confundido por um dos beneficio da colaboração premiada, porém, o mesmo é mera causa de substituição da pena privativa de liberdade. O artigo diz: Art. 44 - As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo (GRIFOS NOSSO) O artigo é claro ao apresentar que a pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos e não cometido com violência ou grave

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ameaça, poderá ocorrer a substituição por pena restritiva de direito, sendo assim, delitos que não se enquadram nestes requisitos não poderão usufruir deste beneficio. Deste modo, fazendo um paralelo do artigo citado acima com a Lei 12.850/2013, verificamos que a lei apresenta uma forma mais benéfica ao colaborador pelo fato que a lei não se limita a quantidade da pena e se o crime é doloso ou culposo, para concessão de pena alternativa para o delator, conforme dispõe o artigo 4º da lei: “Artigo 4º - O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”. 2.4 Diferença de Delação Premiada para Colaboração Premiada Este tema mesmo sendo muito discutido, ainda se encontra com divergentes teorias a respeito de sua nomenclatura. Percorrem duas teorias, uma teoria entende que a nomenclatura certa a ser utilizada é Delação Premiada e não havendo distinção entre as duas, a não ser no nome expresso em lei. A outra teoria acredita que há distinção entre Colaboração e Delação. O doutrinador NUCCI, “apresenta a teoria de que mesmo que a lei venha com a expressão colaboração premiada, este beneficio na verdade é delação premiada. Pelo fato que a lei não se destina a qualquer espécie de cooperação de investigado ou acusado, mas aquela na qual se descobre dados desconhecidos quanto à autoria ou materialidade da infração penal, (...) vulgarmente o dedurísmo”. Assim, configurasse a delação quando alguém, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também participou da empreitada criminosa, ou seja, o investigado estará delatando/acusando alguém sobre a infração penal e não colaborando. Já o jurista Luiz Flávio Gomes acredita que há diferença entre os termos delação e colaboração premiada, entendendo que: “delação é fruto de um acordo entre os órgãos repressivos do Estado e o suspeito e seu advogado. Tem como objeto um ou mais de um fato criminoso. Seus objetivos são múltiplos, como: obter a confissão do agente; saber quem mais participou do crime; a sua forma de execução; colher provas ou fontes de provas a respeito desse crime; recuperar dinheiro e bens em favor de quem sofreu prejuízo com o delito etc”. A colaboração premiada pode ser dividida em cinco espécies para a aplicação do artigo 4º da Lei 12.850/13, sendo elas: 1ª) delação premiada ou chamamento de corréu: é a desti-

100

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


nada à identificação dos demais coautores e/ou partícipes da organização criminosa bem como das infrações penais por ela praticadas (artigo 4º, inciso I, da Lei 12.850/13);

ocorrer desde a fase investigatória ou posteriormente, porém, nada adiantará que ocorra a confissão e delação durante o inquérito e depois retratar-se em juízo, assim não se aplicará o prêmio (NUCCI)”;

2ª) colaboração reveladora da estrutura e do funcionamento da organização (da burocracia): é a colaboração focada na revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa. Em homenagem ao economista alemão Max Weber, que criou a Teoria da Burocracia para explicar a forma como as empresas se organizam, adotamos a nomenclatura “colaboração reveladora da burocracia”; afinal, a estrutura e a forma como as organizações criminosas se organizam é empresarial ou quase empresarial (artigo 4º, inciso II, da Lei 12.850/13);

b)Personalidade do colaborador, natureza, circunstâncias, gravidade, repercussão do fato criminoso e eficácia da colaboração: “A personalidade se enquadrará como elemento subjetivo do colaborador, devendo o juiz verificar se a personalidade do agente, sendo ela positiva ou negativa, relaciona-se ao fato praticado, para que se busque a culpabilidade de fato. Já a natureza, circunstância, gravidade e repercussão ligam-se ao fato criminoso. Por mais séria a infração penal, será essencial analisar o que ela provocou na realidade. Esses fatores devem girar em torno, na verdade, do tipo de beneficio que o delator poderá auferir (NUCCI)”;

3ª) colaboração preventiva: tem por escopo prevenir infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa (artigo 4º, inciso III, da Lei 12.850/13);

c)Identificação dos demais coautores e participes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas: O colaborador deverá delatar todos os coautores e participes da ação criminosa, juntamente com todas as infrações que a organização criminosa cometeu. Pois, o simples fato de apresentar os cúmplices não concederá aplicação do beneficio;

4ª) colaboração para localização e recuperação de ativos: visa à recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa (artigo 4º, inciso IV, da Lei 12.850/13); 5ª) colaboração para libertação de pessoas: tem por finalidade a localização da vítima (de um sequestro, por exemplo) com a sua integridade física preservada (artigo 4º, inciso V, da Lei 12.850/13).

d)Revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa: Este requisito conforme entendimento do doutrinador NUCCI, não será de fácil e frequente aplicação, pois, torna-se difícil descobrir a estrutura, tarefas de cada integrante de uma organização criminosa sem que revele a identificação dos coautores e participes ou as infrações penais;

Cabe ressaltar que a legislação não apresenta uniformização sobre o tema, ocorrendo assim divergências doutrinarias sobre a nomenclatura. Portanto, ficando em aberto o entendimento e fundamentação sobre qual modo está correto a utilizar. 2.5 Requisitos para a Colaboração nos Crimes Organizados e suas consequências Antes mesmo de nos apegar aos requisitos para a aplicação do prêmio, deve ser identificado primordialmente o conceito da organização criminosa prevista no artigo 1º da Lei 12.850/2013, que diz: Art. 1o Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado. § 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. Estando concretizada a organização criminosa, podemos perceber que o legislador apresentou a possibilidade de ocorrer a colaboração processual em qualquer momento, seja na fase investigatória, seja fase judicial ou até mesmo na fase da execução da pena. O artigo 4º da Lei 12.850/2013 apresenta os seguintes requisitos para o prêmio referente à colaboração. Sendo eles: a)Colaboração efetiva e voluntária com a investigação e com o processo criminal: “A colaboração processual deve ocorrer de modo livre, não podendo decorrer de ameaças físicas ou psicológicas. Como já dito anteriormente a colaboração poderá

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

e)Prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa: Aqui o colaborador informará futuras infrações do crime organizado, porém, como o requisito anterior será de difícil aplicação; f)Recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa: Obter de volta totalmente ou parcialmente às vantagens auferidas pela organização criminosa e assim retornando para as vitimas o que lhes foi retirado. Quando através da delação conseguir recuperar total do proveito da infração, juntamente com a identificação dos coautores e participes, poderá aplicar o perdão judicial; Nos casos de recuperação parcial, ocorrerá a redução mínima de pena, tal como um sexto (NUCCI); g)Localização de eventual vítima com a sua integralidade física preservada: Requisito mais aplicado em crime de extorsão mediante sequestro ou ao sequestro. Deverão ser cumulativos os requisitos a e b, associados de um dos demais requisitos expostos. Confirmando a colaboração processual, o juiz poderá tomar 3 (três) decisões: (1ª) conceder o perdão judicial, medida mais benéfica que se pode conceder ao colaborador, será analisada a amplitude e a eficiência de sua colaboração , (2ª) condenar o réu colaborador e reduzir a pena em até 2/3, o legislador não especificou um mínimo, assim ficando a disposição do juiz, (3ª) substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, no artigo da lei não estabelece o montante para ocorrer a substituição.

101

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


3.PROBLEMATIZAÇÃO ACERCA DA COLABORAÇÃO NOS CRIMES ORGANIZADOS Está pratica da legislação de incentivar a delação e assim conceder prêmios de redução ou até mesmo a exclusão da pena através desta “traição” (no caso a delação), não é totalmente aceita pelos juristas, muito desses consideram que o ato fere os preceitos do Direito, á ética e a dignidade da pessoa humana. Pontos negativos que podem ser perceptíveis e discutidos segundo NUCCI são: a) Oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social; b) Pode ferir a proporcionalidade na aplicação da pena, pois o delator recebe pena menor que os delatados, autores de condutas tão graves quanto à dele – ou até mais brandas; c) A traição, como regra, serve para agravar ou qualificar a pratica de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena; d) Não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos; e) A existente delação premiada não serviu ate o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do delito; f) O Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade; g) Há um estimulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais. Porém, ao analisar os pontos negativos da pratica da delação, pode-se perceber pontos positivos com o emprego deste beneficio. Nucci mesmo fala que: [...] no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevado, dada a própria natureza da pratica de condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado. [...] a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada. Para ilustrar que a concessão do beneficio da colaboração premiada não é simples e assim concedida a todos e que se deve cumprir os requisitos para a aplicação do beneficio, segue decisões sobre o tema: Processo: Apelação Criminal 1.0105.13.014948-4/001 0149484-77.2013.8.13.0105 (1) Relator(a): Des.(a) Rubens Gabriel Soares Data de Julgamento: 25/02/2014 Data da publicação da súmula: 06/03/2014 Ementa: EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO DE DROGAS - DELAÇÃO PREMIADA - NÃO OCORRÊNCIA - PENAS CORRETAMENTE FIXADAS - MANUTENÇÃO. RECURSO NÃO PROVIDO. 01. Não cabe o reconhecimento da delação premiada se a cooperação da acusada não foi plena, isto é, não houve colaboração durante o inquérito policial e durante a ação penal de modo a possibilitar a identificação dos demais membros da organização criminosa, bem como a recuperar total ou parcialmente o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

produto do crime. 02. Impossível a redução das penas se corretamente fixadas pelo Juiz a quo, nos termos do que dispõem os artigos 59, 68 e 33 do Código Penal. (GRIFOS NOSSO) Processo: Apelação Criminal 1.0089.08.005925-9/001 0059259-35.2008.8.13.0089 (1) Relator(a): Des.(a) Judimar Biber Data de Julgamento: 10/09/2013 Data da publicação da súmula: 20/09/2013 Ementa: EMENTA: TRÁFICO, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO - ABSOLVIÇÃO - GRANDE QUANTIDADE DE DROGAS (MACONHA, CRACK E COCAÍNA) - ASSOCIAÇÃO ORGANIZADA - PROVA INCONTESTÁVEL - ESTABILIDADE PARA A PRÁTICA DO TRÁFICO - ATIVA PARTICIPAÇÃO DOS APELANTES - DEPOIMENTOS POLICIAIS, ALIADOS A INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E OUTROS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO - VALIDADE - CONJUNTO PROBATÓRIO QUE AUTORIZA A CONDENAÇÃO. Se a inverossímil negativa apresentada pelos apelantes vai de encontro a todos os demais indícios dos autos, especialmente no que tange às investigações minuciosas e às interceptações telefônicas que levou os policiais a apreenderem drogas e desbaratarem a grande organização criminosa, impossível se falar em absolvição por insuficiência de provas pelo crime de tráfico. PENA-BASE - DOSIMETRIA - REDUÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - CORRETA ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS - ATENDIMENTO AO ART. 59 DO CÓDIGO PENAL - PREPONDERÂNCIA DO ART. 42 DA LEI 11.343/06 A reprimenda arbitrada, além de técnica, não deve ser excessiva, nem demasiadamente branda, mas justa, adequada e idônea como resposta social e na medida da reprovabilidade da conduta. TRÁFICO - CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA - ART. 33, § 4º, DA LEI FEDERAL 11.343/2006 - DESCABIMENTO DO BENEFÍCIO - ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA DE GRANDE VULTO. A causa especial de redução de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei Federal 11.343/2006 é vedada aos agentes que integrem organização criminosa de grande vulto. DELAÇÃO PREMIADA - PRETENSO RECONHECIMENTO - IMPOSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE RELEVÂNCIA. Para o reconhecimento da delação premiada não basta que o réu tenha contribuído voluntariamente, mas que tal colaboração resulte na identificação e prisão dos demais co- autores ou partícipes onde haja revelação de esquema ou organização que atenda ao interesse público na disseminação de drogas, de modo que a confissão parcial dos fatos, sem indicação de nenhum comparsa, não sustenta a aplicação da causa. Provido em parte o recurso do apelante José Denilson da Silva e não providos os demais. (GRIFOS NOSSO) Deste modo, é perceptível que a colaboração premiada se encontra como um mal necessário, pois, mesmo ferindo alguns preceitos fundamentais e éticos, as organizações criminosas podem trazer consequências graves ao Estado Democrático de Direito, podendo até mesmo desestabilizar qualquer democracia. Continuando nesta linha de pensamento, um dos grandes prejudicados em operações dessas organizações é o Estado, sofrendo desfalques nos cofres públicos, com desvios de verbas públicas que deveriam ir para escolas, elaborações de obras sem superfaturamento, saúde e vários outros projetos. Logo, concluísse que a colaboração premiada pode ser a solução para os órgãos fiscalizadores tomarem conhecimento da existência desses grupos criminosos e até mesmo inibindo novas praticas destes delitos.

102

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


4 – CONCLUSÃO Em pleno século XXI a de se esperar que o Estado como órgão soberano, responsável pela organização e controle social, tivesse plena capacidade de combater/apurar os crimes organizados, e não precisariam da ajuda de criminosos para combater estes crimes. Porém, está não é a realidade do Estado brasileiro atual. Deste modo, o legislador com o intuito de combater o crime organizado, prevê na Lei 12.850/2013 possibilidade de um investigado/ acusado colaborar com o Estado, assim identificando os autores e participes da organização criminosa; as infrações praticadas por eles ou até mesmo delitos que ainda serão executados pelas organizações; sua hierarquia e muito mais. Através dessa colaboração, as provas apresentadas pelo colaborador serão analisadas pelo Ministério Público ou pelo delegado responsável (caso esteja na fase investigatória), para confirmação da veracidade dos fatos. Vale ressaltar, que independentemente do sucesso ou não na obtenção das provas, a nova lei possibilita a retratação de qualquer uma das partes, conforme artigo 4º, § 10, com intuito de não se prejudicarem. Diante disso, nada mais “justo” que o colaborador receba o beneficio acordado com as autoridades (Ministério Publico ou delegado responsável, segundo artigo 6º da Lei 12.850/13) e homologado pelo juiz (artigo 4º, § 7º da Lei 12.850/13). Podendo o beneficio ser o perdão judicial; a redução da pena em até 2/3; ou substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Portanto, não a que se falar que a colaboração premiada é um método impróprio a ser utilizado pelo judiciário, pelo simples fato de um acusado auxiliar o Estado em busca do combate ao crime organizado, e o mesmo receber vantagens por esta colaboração. O Estado proporcionando estes benefícios ao acusado, consequentemente terá ciência de mais delitos desta espécie, assim recuperando mais produtos ou proveitos das infrações penais praticadas pela organização criminosa, até mesmo inibindo a continuidade da pratica do crime organizado.

http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj033704.pdf Acessado em 15/09/2015 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm - Acessado em 15/09/2015 http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/ha-diferenca-entre-colaboracao--e- delacao-premiada/14756 - Acessado em 29/09/2015

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 136. Apud BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou Ocultação de Bens : Lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio (Coord.); CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, v. 6, p. 562. GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 101-105. GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 109-110. NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa. 1.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2013. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Volume 2. 7.ed.rev.atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2013. SOBRINHO, Mário Sérgio. O crime organizado no Brasil. In: FERNANDES, Antonio Scarance; ALMEIDA, José Raul Gavião; MORAES, Maurício Zanoide de (coord.). Crime organizado: aspectos processuais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 47. VILLAREJO, Julio Diaz-Maroto. Algunos aspectos jurídicos-penales y procesales de la figura del “arrepentido”. Revista Ibero-Americana de Ciências Criminais, ano 1, n. 0, maio/ago. 2000. Apud GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no combate ao crime organizado. São Paulo: Lemos & Cruz: 2006, p. 107.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

103

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


(IN) CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS ADMINISTRATIVAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS Flávia Mata da Silva1 Hugo Rios Breta2 RESUMO: As cotas raciais é alvo de diversas discussões em relação a sua implementação e principalmente em relação a sua constitucionalidade. Apesar de existir decisão do Supremo Tribunal Federal que as classificam como constitucionais, a política de cotas para negros é um grande alvo de críticas no Brasil. O presente estudo tem o objetivo de elucidar a necessidade da implementação de ações afirmativas mediante cotas sociais, porém também tem o objetivo de questionar a eficácias e constitucionalidade das cotas raciais. ABSTRACT: Racial quotas is the subject of several discussions regarding its implementation and especially in relation to its constitutionality. Although there decision of the Supreme Court that qualify as constitutional, the quotas for blacks policy is a major target of criticism in Brazil. This study aims to elucidate the need to implement affirmative action through social quotas, but also aims to question the efficacy and constitutionality of racial quotas. PALAVRAS-CHAVE: Ações

afirmativas;

Cotas

raciais;

Princípios Constitucionais; Cotas sociais; Igualdade de oportunidade.

KEYWORDS: Affirmative action; Racial quotas; Constitutional principles; Social quotas; SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Princípios Constitucionais; 2.1 Princípio da Igualdade; 2.1.1 Igualdade formal e igualdade material; 3 Ações Afirmativas; 3.2 Conceito; 3.3 Aspecto histórico das ações afirmativas; 4 Ações Afirmativas no brasil; 4.1 Sistema de cotas para ingresso nas instituições de ensino superior; 4.1.1 Lei de Cotas nº 12.711 de 2012; 4.2 Cotas raciais; 5 Controvérsias das Cotas Raciais no Brasil; 6 Vulnerabilidade; 7 Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO A ação afirmativa ao longo dos anos vem ganhando espaço no Brasil. Esse tipo de política publica visa igualar as oportunidades de concorrência e permitir que determinados grupos, desfrutem da igualdade material. Diante disso, o presente trabalho busca um entendimento maior sobre as ações afirmativas, principalmente sobre a política de cotas. No decorrer da pesquisa serão abordados vários conceitos assim como diversos entendimentos doutrinários a fim de elucidar o entendimento da política de cotas. No primeiro momento será feita uma abordagem sobre os princípios constitucionais, demonstrando a real necessidade de utilizá-los para se interpretar as normas jurídicas, elencando-se o principio da igualdade, principio este de extrema importante para o Direito, demonstrando tanto o seu aspecto formal elencando no artigo 5º da Constituição da Republica, quanto o seu aspecto material. Em um segundo momento, a ação afirmativa será alvo do presente trabalho. O conceito desse tipo de política será abordado, bem como a sua evolução história no mundo, demonstrando a necessidade de implementação de medidas para igualar oportunidades que o indivíduo excluído socialmente não consegue por si só. Após a conceituação das ações afirmativas, dando ênfase à política de cotas para ingresso nas universidades públicas, a Lei de cotas 12.711 de 2012 será o alvo do estudo, demonstrando como a lei se posiciona sobre a divisão de cotas, fazendo uma abordagem mais específica sobre a política de cotas para negros, identificando as suas principiais características e atuais beneficiários; Por fim, será questionada a eficácia das cotas para negros, abordando as suas controvérsias ao serem utilizadas para

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ingresso nas universidades publicas, dando ênfase na implementação das cotas sociais a fim de se obter uma maior eficácia. 2 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS Os princípios são de extrema importância para o Direito, pois orientam a interpretação de suas normas jurídicas e conforme dispõe Geraldo Ataliba (2001, p. 6-7) “[...] princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos)”. André Ramos Tavares, (2007, p.100) leciona que: Os princípios constitucionais são normas presentes na Constituição que se aplicam às demais normas constitucionais. Isso porque são dotados de grande abstratividade, e têm por objetivo justamente imprimir determinado significado às demais normas. Daí resulta o que se denomina sistema constitucional, que impõe a consideração da Constituição como um todo coeso de normas que se relacionam entre si (unidade da Constituição). Os princípios constitucionais, portanto, servem de vetores para a interpretação da Constituição. Podemos concluir que os princípios constitucionais auxiliam no entendimento das normas, ou seja, são considerados alicerces do ordenamento jurídico, auxiliando na interpretação do aplicador do direito, extraindo das normas o seu verdadeiro alcance, sendo de extrema importância ao estabelecerem as bases e fundamentos para a compreensão constitucional. Nesse sentido Luiz Alberto D. Araújo e Vidal Serrano N. Júnior (2005, p. 67) lecionam que:

104

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Os princípios, portanto, determinam a regra que deverá ser aplicada pelo intérprete, demonstrando um caminho a seguir. Podemos falar na existência de uma hierarquia interna valorativa dentro das normas constitucionais, ficando os princípios em um plano superior, exatamente pelo caráter de regra estrutural que apresentam. Durante o decorrer da história, para estruturar e nortear o Estado de Direito, vários princípios foram criados. Dentre os princípios constitucionais, vale ressaltar a importância dos princípios da igualdade que será relatado a seguir. 2.1 Princípio da Igualdade O conceito de igualdade nos remete a ausência de diferenças e ao analisar apenas esse conceito dentro de uma sociedade, presumisse a existência de direitos e deveres entre todos os seus participes sem que haja a existência da referida diferença, porém vale ressaltar que por mais semelhante que os seres humanos possam ser, os mesmos sempre serão possuidores de diversas diferenças, diferenças estas capazes de influenciar no relacionamento direito do indivíduo com a sociedade. O referido princípio está previsto no artigo 5° da Constituição da República de 1988 que determina que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. Celso Ribeiro de Bastos (1999, p. 183) consagra o princípio da igualdade como o mais vasto dos princípios constitucionais, não vendo recanto onde o mesmo não seja impositivo, o que nos leva a analisá-lo com bastante cautela para que o mesmo não seja conceituado erroneamente, desvinculando-se do seu propósito principal, que é garantir um tratamento igualitário entre os destinatários da lei. Este princípio, também conhecido como princípio da isonomia, indica um tratamento justo a cidadão, ou seja, permitido que o mesmo tenha um tratamento idêntico perante a lei, simbolizando certa democracia entre os seus destinatários. O mencionado artigo 5º, ao consagrar todos como sendo iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, nos remete a um tipo de igualdade definida como formal, mas vale salientar que o mesmo princípio não busca apenas a esta igualdade, permitindo-se a análise da igualdade material também presente no referido princípio. Conforme dispõe Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2007, p. 31), o princípio da isonomia “é considerado o conjunto de bens e direitos aos quais todas as pessoas têm que ter acesso em condições mínimas de igualdade”, ou seja, o presente posicionamento nos demonstra a necessidade da existência de uma declaração de igualdade mais profunda, além da formal, a fim de verdadeiramente alcançar um patamar mínimo isonômico. 2.1.1 Igualdade formal e igualdade material

Quando falamos de igualdade formal, estamos nos referindo à igualdade prevista na Constituição Federal, no já mencionado artigo 5º, quando o mesmo determina, que ”todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, possuindo, portanto, uma força normativa. O legislador ao instituir que “todos são iguais perante a lei”, dirigiu o presente princípio não somente ao aplicador do direito e aos cidadãos, mas também o dirigiu a si próprio, pois a igualdade formal limita o legislador, impedindo a criação de outras leis que violem o princípio da isonomia. Ao mesmo tempo em que se veda a criação de dispositivos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

que estabeleçam desigualdades entre os destinatários por parte do legislador, o operador do Direito não pode utilizar de métodos discriminatórios ao aplicar a lei. Nesse sentido José Afonso da Silva (2014, p. 216), leciona que: Nossas Constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciando que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compeensão do sispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreira. Vale ressaltar que a igualdade formalizada na lei não alcança uma igualdade dita real, uma vez que a mesma não permite privilégios e nem regalias a nenhum dos seus destinatários, independentemente da situação em que eles se encontram, fazendo-se necessária a aplicação da igualdade material, a fim de se alcançar a verdadeira isonomia para aqueles que são desfavorecidos socialmente. A igualdade formal proíbe o Estado de tratar desigualmente os seus indivíduos, porém essa proibição não garante a igualdade efetiva, por isso, existe a necessidade da existência da igualdade material que permite o tratamento desigual a determinados indivíduos, a fim que eles alcancem a pretendida igualdade. Nesse sentido, Joaquim B. Barbosa (2001, p. 131) afirma que: Da transição da ultrapassada noção de igualdade “estática” ou “formal” ao nosso conceito de igualdade “substancial” surge a idéia de “igualdade de oportunidades” noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, consequentemente, de promover a justiça social. A igualdade material permite que as minorias sejam tratadas isoladamente, através da criação de políticas públicas, especificamente de ações afirmativas, para que seja alcançada a igualdade de oportunidade. Aristóteles (2001, p.139) já afirmava que “se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais”, nesse sentido mesmo sentido disse Rui Barbosa (2003, p.19) que: A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Essa regra especial que nos permite efetivar o tratamento desiguala a fim de se obter a igualdade, atentem as necessidades das minorias, classificados como desiguais, adotando-se a igualdade material por meio de ações afirmativas, para reconhecer esses grupos específicos. Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (2007, p. 5-6), discorre que: A Constituição Federal no artigo 5º, caput, garante não somente o direito da igualdade perante a lei ao declarar o direito fundamental básico “Todos são iguais perante a lei”, mas avança em direção ao direito a um patamar mínimo de igualdade. O conteúdo desse direito à própria igualdade significa não somente o direito de ver a lei ser aplicada de forma igual em situações semelhantes (isonomia jurídica), mas também o direito a ver a lei ser produzida de forma a não haver discriminações,

105

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ou seja, vincula o legislador à criação de leis que tratem de forma igual, a todos que estiverem em uma mesma situação. E mais, implica obrigação do cumprimento das normas por todos, administradores e administrados, no sentido que fique garantida a inviolabilidade do direito à igualdade. Podemos concluir que ao analisar a igualdade, não podemos nos prender apenas em seu aspecto formal, ou seja, para combater a discriminação não basta apenas a imposição atribuída pela Constituição Federal, sendo necessária a aplicação de medidas que garantam a igualdade material a aquelas minorias que se encontram na mesmo situação de desigualdade. 3 AÇÕES AFIRMATIVAS 3.2 Conceito A Ação afirmativa é o meio utilizado para proporcionar igualdade de oportunidades para aqueles que são considerados minoria dentro da sociedade. Esse tipo de política pública busca recursos para beneficiar pessoas que fazem partes de grupos descriminados que foram vítimas de exclusão socioeconômica no passado e que refletem atualmente. Essas medidas buscam combater diversos tipos de discriminação, como raciais, religiosas, de gênero entre outras, permitindo as pessoas pertencentes desses grupos discriminados a terem melhor acesso à saúde, empregos, educação entre outros benefícios. Por meio das ações afirmativas, é possível efetivar uma maior igualdade material relacionada aos direitos básicos de cidadania, valorizando todas as formas étnicas e culturais, estando a favor dos indivíduos discriminados, prevenindo as exclusões e reparando os efeitos produzidos por ela. Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p.40) define as ações afirmativas como: [...]um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Podemos então concluir que a principal função das ações afirmativas é combater a desigualdade, seja ela cultural, econômica, social ou histórica, assegurando aos membros dos grupos excluídos vantagens para que os mesmos tenham acesso a elevadas posições sociais, seja por meio da implementação de programas governamentais ou particulares, aumentando os porcentuais de oportunidades. 3.3 Aspectos históricos das ações afirmativas As ações afirmativas têm bastem relevância nos Estados Unidos, que contem em sua sociedade vários tipos de preconceitos e discriminações a aqueles que não fizeram ou não fazem parte da classe dominante. Esse tipo de política pública teve surgimento nos Estados Unidos no Século XIX, país pioneiro no desenvolvimento de ações afirmativas, que as implementaram a fim de enfrentar a descriminação racial, fruto de uma vasta escravidão. Foi exatamente nos anos 60, nas reivindicações democráticas, ou seja, através dos movimentos negros em busca de um tratamento igualitário a todos, que as políticas de ações afirmativas foram efetivadas. Pretendiam-se por meio das reivindicações, que fossem assumidas posturas ativas para efetivar a melhoria das condições da

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

população negra. Vale ressaltar que esses movimentos tiveram a presença e apoio de indivíduos de extrema importância na efetivação dos direitos civis dos negros, assim como o líder Martin Luther King. As medidas adotadas pelos Estados Unidos são de extrema importância e a adoção das ações afirmativas repercutiu no mundo inteiro sendo adotados por diversos países. Nesse sentido Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 9-10) dispõem que: Nele [Direito Constitucional dos EUA] se colhem as mais bem elaboradas indicações sobre o modo mais eficaz de se superar os obstáculos jurídicos à instituição dos programas de preferência em favor de minorias, especialmente no que diz respeito ao rompimento da ortodoxia constitucional que prega a não aceitação de classificações e distinção fundadas em critérios tais como raça, cor e sexo. [...] Esta nação, outrora segregacionista, consegue, graças à determinação de atores políticos exponenciais dos mais variados horizontes, à efetividade de seu sistema de prestação jurisdicional, mudar, ainda que parcialmente o seu curso existencial e passar a outorgar a uma parcela significativa de seu povo o que antes se recusava a conceder – o reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano. As ações afirmativas, no século XX, também foram de extrema importância na Índia, onde foram implementadas precisamente na época que estavam sobre o domínio britânico. Como podemos observa as ações afirmativas foram tidas como meio de reconhecimento da igualdade material, proporcionado àqueles indivíduos pertencentes de grupos minoritários, igualdade de oportunidades. Esse tipo de política pública também foi adotada na Europa em 1976 utilizando as expressões “ação ou discriminação positiva”. Vale ressaltar que as ações afirmativas têm um caráter temporário, visto que esse tipo de política pública almeja a igualdade social e uma vez que a mesma for obtida, não existe mais a necessidade da sua perduração. 4 AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL Atualmente as políticas de ações afirmativas estão presentes no Brasil, baseando-se na igualdade material almejada. Existem relatos de que em 1968 esse tipo de política pública esteve presente no Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho, quando os mesmos se manifestaram a favor para que mantivessem porcentagem para empregados negros, a fim de combater a descriminação existente na época no mercado de trabalho, porém a lei não foi elaborada. Em 1980 o Deputado Federal Abdias Nascimento formulou um projeto de lei que propunha uma compensação pelos anos de descriminação aos negros brasileiros, porem o projeto não foi aprovado pelo Congresso Nacional. Ao longo dos anos, foram surgindo iniciativas reconhecendo a existência de diversos problemas incluindo a discriminação de gênero, racial entre outras, exemplo disso é que em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal que inovou ao proteger o trabalho da mulher, garantido que a mulher tenha a mesma oportunidade de trabalho que os homens, afastando as formas de discriminação. A Constituição da Republico também trousse em seu texto a reserva de um determinado porcentual em empregos públicos para deficientes. Em 1995 foi implementada a política de cotas que estabelecia que no mínimo 30% das vagas dos partidos políticos deveriam ser preenchidas por mulheres. Essa determinação foi a primeira política de cotas adotada nacionalmente. Em 1995 foi instituído o grupo de Trabalho Internacional que tinha como objetivo desenvolver políticas para valorização dos negros

106

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


existentes no país. Esse grupo formulou 46 propostas de ações afirmativas envolvendo áreas relacionadas a saúde, educação e trabalho, mas foi em 2001 que algumas políticas públicas envolvendo a população negra foram aprovadas, exemplo disso, foi a portaria que determinava a contratação de negros, mulheres e deficientes para os cargos do no Ministério da Justiça. Outro exemplo de ação afirmativa implantada no Brasil foi à instituição do PROUNI – Programa Universal para Todos, previsto pela lei 11.096 de 2005. O PROUNI é um programa federal que concede bolsas de estudo integrais ou parciais para indivíduos de cursos de graduação na instituição privadas, porém para ter direito a bolsa do PROUNI, o estudante deve se enquadra no artigo 2ª da referida lei, que determina: Art. 2o A bolsa será destinada: I - a estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; II - a estudante portador de deficiência, nos termos da lei; III - a professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica, independentemente da renda a que se referem os §§ 1o e 2o do art. 1o desta Lei. Parágrafo único. A manutenção da bolsa pelo beneficiário, observado o prazo máximo para a conclusão do curso de graduação ou sequencial de formação específica, dependerá do cumprimento de requisitos de desempenho acadêmico, estabelecidos em normas expedidas pelo Ministério da Educação. O PROUNI foi e ainda é utilizado como forma de inserção social, direito previsto no artigo 205 da Constituição da Republica que dispõe que a educação é um direito de todos e um dever do Estado. Em agosto de 2012 foi sancionada uma lei que visa outro tipo de ação afirmativa, trata-se da Lei 12.711 de 2012 que dispõe sobre cotas para ingresso nas universalidades vinculadas ao Ministério da Educação e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. A referida lei garante que todas as instituições federais garantam no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integramente o ensino médio em escolas públicas e desses 50%, as vagas deverão ser preenchidas por negros, pardos e indígenas em proporções de no mínimo igual à de negros, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde as instituições estiveram instaladas, conforme dispõe o artigo 3º da Lei 12.711/12. Vale ressaltar que as vagas destinadas para os cursos de ensino técnico preenchem os mesmos requisitos informados anteriormente. 4.1 Sistema de cotas para ingresso nas instituições de ensino superior O sistema de cotas é um tipo de ação afirmativa que tem o intuito de reservar vagas para determinados grupos como negros, índios, estudantes de escola pública e deficientes, para que os mesmos tenham acesso a instituições de ensino, ao mercado de trabalho ou para ingresso em concursos públicos. Um dos melhores exemplos do sistema de cotas e que é bastante utilizada atualmente, é a cota para acesso nas instituições de ensino. Esse tipo de cota tem o intuito de garantir a igualdade de oportunidades entre os beneficiários e as classes sociais mais elevadas, para que aqueles que estiverem em nível de desigualdade tenham a oportunidade de frequentar um ensino de qualidade a fim de obter uma formação profissional adequada. 4.1.1 Lei de cotas nº 12.711 de 2012

Hoje não Brasil existe a Lei 12.711 de 2012, já mencionada an-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

teriormente, que dispõe sobre cotas para ingresso nas universidades públicas. A Lei de cotas estabelece a porcentagem devida para negros, indígenas e para estudantes de ensino médio. O artigo 1º da referida lei17, estabelece sobre a porcentagem devida ao estudante da rede pública, conforme disposto a seguir: Art. 1o As instituições federais de educação superior, vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Como podemos observar, a Lei 12.711 de 2012 estabelece em seu artigo 1º, que 50% total das vagas disponíveis para ingresso nas instituições de ensino serão destinadas a estudantes oriundos de escolas públicas, porém o parágrafo único do presente artigo determina que metade dessa porcentagem, ou seja, 25% das vagas sejam destinados a estudantes oriundos de escolas públicas que possuem a renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita. A Lei de cotas também determina que dos 50% das vagas destinadas a estudantes de ensino público, deverá levar em conta o percentual mínimo referente à soma de negros, pardos e indígenas existentes na Federação onde estiver instalada a instituição de ensino, baseando-se no último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia, conforme dispõem o artigo 3º da Lei de cotas, que diz: Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Vale ressaltar que para ingressar nas instituições Federais utilizando os critérios étnicos raciais, não é necessária comprovação, uma vez que estes critérios são alto declaratórios, enquanto que os alunos de escolas públicas que possuem renda inferior ou igual a um salário mínimo e meio deverão comprovar por documentação a renda familiar per capita. 4.1.1 Cotas Raciais

A política de cotas raciais foi implantas no Brasil para reverter à desigualdade racial adquirida ao longo dos anos. Uma das mais utilizadas atualmente é a cota para negros, que garante para os mesmos a reserva de vagas nas instituições de ensino públicas ou privadas. As cotas para negros foram implementadas com a justificativa de reparar o maior dano causado aos negros que foi a escravidão, ou seja, esse tipo de conta tem o objetivo de efetuar a correção da desigualdade referente a essa raça, alvo de uma injustiça histórica, baseando-se que o racismo surgiu pela efetivação do trabalho escravo dos negros. Aqueles que defendem a constitucionalidade das cotas raciais, dizem que o Estado tem uma dívida histórica com os negros, pois

107

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


após a abolição da escravidão essa raça foi abandona sem que houvesse políticas públicas que efetivassem a sua inclusão social. De outro modo pode-se dizer que a criação das cotas raciais é uma forma de promover a igualdade material, trazendo os negros para uma posição de igualdade real de oportunidade ao tentar ingressar nas universidades públicas ou privadas. A primeira universidade no Brasil a aderir esse sistema, foi a Universidade de Brasília no ano de 2004. Em 2012 as cotas raciais foram votadas pelo Supremo Tribunal Federal, onde ficou decidido por unanimidade que esse tipo de ação afirmativa é constitucional, permitindo o ingresso dos estudantes afrodescendentes nas instituições públicas. Apesar de muitos considerarem as cotas para negros uma forma de inclusão dos mesmos na sociedade, existem controvérsias em relação à suas consequências e constitucionalidade, o que veremos a seguir. 5 CONTROVÉRSIAS DAS COTAS PARA NEGROS NO BRASIL Apesar do STF optar pela constitucionalidade das cotas para negros no Brasil, esse tipo de ação afirmativa ainda é alvo de críticas que põem em dúvida a sua constitucionalidade. Essas controvérsias surgem diante das diferentes interpretações da Constituição Federal, principalmente no que diz respeito à igualdade elencada no seu artigo 5º. Existem algumas pessoas que não caracterizam as cotas como medidas que procuram corrigir fatos históricos a fim de erradicar a desigualdade social, e sim as determinam como um privilégio, pois favorecem um determinado grupo em detrimento de outro, além caracterizar a política de cotas como uma forma de descriminação, inferiorizando o grupo beneficiado. Como é de conhecimento de todos, o Brasil é um país misto, ou seja, existe-se uma grande mistura de raças, o que nos impossibilita conferir qual a real ancestralidade de uma pessoa. Neste sentido o geneticista Sérgio Pena (2005) dispõe: No Brasil, a cor, avaliada fenotipicamente, tem uma correlação muito fraca com o grau de ancestralidade africana. No nível individual qualquer tentativa de previsão trona-se impossível, ou seja, pela inspeção da aparência física de um brasileiro não podemos chegar a nenhuma conclusão confiável sobre o seu grau de ancestralidade africana. Podemos concluir que observando o alto nível de miscigenação do povo Brasileiro, o indivíduo negro não pode ter privilégios em detrimento do indivíduo que possui a pele mais clara, pois não é possível definir quem é o real descendente da escravidão, ou seja, aquele indivíduo de pele mais clara também pode ser descendente de negros e também pode sofrer atualmente os ônus históricos da escravidão. Como já vimos anteriormente, a justificativa para implementação das cotas para negros na instituição de ensino, baseiam-se na inclusão social dos afrodescendentes, a fim de se acabar com a desigualdade que foi criada ao longo dos anos pela escravidão dos negros no Brasil. Como não é possível verificar quais são os verdadeiros descendentes dessa vasta escravidão, aqueles indivíduos de pele mais clara e que hoje sofrem com a desigualdade econômica e social, devem possuir os mesmos direitos e ter a mesma igualdade de oportunidade para concorrerem a uma vaga disponibilizada pelas instituições de ensino. O acesso à universidade pública não é fácil, o estudante deve estar devidamente preparado para prestar o exame nomeado de vestibular, do qual poderá ou não ser aprovado de acordo com a pontuação obtida. Infelizmente, o Brasil atualmente possui uma rede pública de ensino básico de baixa qualidade, sendo que, a estrutura de base da educação deveria ser sólida o suficiente para preparar os estudantes oriundos de escolas públicas, para que haja igualdade de oportuni-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dades na concorrência com os estudantes oriundos do ensino básico privado ou que se prepararam para o vestibular por meios de cursinhos específicos para adentrar o ensino superior. Os alunos oriundos de escolas particulares possuem maiores privilégios em relação aos alunos de rede públicas, pois enquanto aqueles frequentam durante todo o ensino básico escolas de boa qualidade, estes frequentam escolas públicas que não dão o suporte necessário para o preparo em relação ao vestibular. Podemos concluir que estamos diante de uma desigualdade social, uma vez que estudantes da rede pública e estudantes da rede privada não possuem a mesma igualdade de oportunidade ao concorrerem por uma vaga nas instituições de ensino. O artigo 206, inciso I, da Constituição da Republica de 1988, determina que “o ensino será ministrado com base na igualdade de condições para acesso e permanência na escola”. Com base neste artigo, e analisando a real situação do Brasil, onde é nítida a desigualdade social, vê-se a necessidade do Estado, uma vez titular do dever de garantir a educação a todos, conforme dispõe o artigo 205 da Constituição, de implementar medidas que possibilitem a igualdade de condições elencada no artigo 206, inciso I. Diante dessa nítida desigualdade social existente no Brasil, a melhor opção para garantir a igualdade de oportunidades para acesso nas instituições de ensino seria a cota social, visto que a mesma abrangeria um elevado número de estudantes analisando apenas a situação econômica do indivíduo, ou seja, tanto o “pobre de cor mais clara” quanto o “pobre negro” seriam beneficiários das políticas de cotas. Na realidade, o ideal seria que fosse implementada medidas para atacar o problema desde a sua raiz, construindo um ensino público de melhor qualidade ao indivíduo a partir do ensino fundamental, porém diante da presente desigualdade socioeconômica, a implementação das cotas sociais nas universidades públicas é totalmente pertinente, pois essa política de cotas pode contribuir de modo significativo no combate à desigualdade. Vale ressaltar que ao se reservar um determinado porcentual para negros nas universidades, outra parcela de indivíduos que se encontram no mesmo patamar de desigualdade estarão privados desse porcentual, enquanto que, ao se reservar determinado porcentual de vagas observando o fato socioeconômico do indivíduo, todos aqueles que necessitarem das cotas serão beneficiados, inclusive os negros pertencentes a população pobre do país. 6 VULNERABILIDADe Podemos definir a vulnerabilidade como sendo uma condição de risco em que determinada pessoa se encontra, ou seja, situação em que o indivíduo figura em pólo mais frágil em relação ao outro. De acordo com Claudia Lima Marques (2014, p. 104), “vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção”. A referida autora, elenca a vulnerabilidade em quatros espécies diferentes, que são a vulnerabilidade técnica, a informacional, a jurídica e a socioeconômica. O indivíduo quando não possui conhecimentos técnicos e específicos, vê- se diante da vulnerabilidade técnica, enquanto que a vulnerabilidade jurídica acontece quando o indivíduo for leigo em relação à área jurídica. A vulnerabilidade informacional é aquela que coloca o indivíduo em situação mais fragilizada por possuir um déficit informacional, já a socioeconômica, quarta e última vulnerabilidade elencada por Claudia Lima Marques, diz respeito à desvantagem do indivíduo por não possuir grande poder econômico em relação ao outro. Quando o indivíduo se encontra em situação de fragilidade em detrimento do outro, não há que se falar em igualdade, ou seja, se

108

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


uma das partes for considerada vulnerável em determinada relação, as partes serão desiguais, fazendo-se necessário neste caso, o uso da igualdade material a fim de se extinguir a desigualdade existente entre as partes envolvidas, uma vez que se deve proteger aquele que for dito como vulnerável. Segundo Hugo Rios Bretas (2014, p. 27-28), a vulnerabilidade pode ser desdobrada em diversas espécies. Em relação ao idoso, o referido autor diante das vulnerabilidades existentes, o enquadrou na vulnerabilidade física, pois quando o indivíduo atinge determinada idade, há uma alteração no seu sistema nervoso, o colocando em situação de fragilidade em detrimento do outro. Diante das vulnerabilidades elencadas por Claudia Lima Marques, não há em que se falar que os negros se encontram em estado de fragilidade, visto que o fato de o indivíduo ser negro não é requisito suficiente para classificá-lo como vulnerável. Qualquer indivíduo, independentemente da cor, pode estar diante de uma situação de vulnerabilidade, sendo o indivíduo vulnerável ou o detentor de vantagens. Vale ressaltar, que não é porque se é negro que o mesmo não possa ter conhecimentos técnicos ou jurídicos. Deve-se ter uma observância maior em relação à vulnerabilidade socioeconômica, pois como já dito anteriormente, a maior população pobre no Brasil é negra, porém o que caracteriza a vulnerabilidade socioeconômica é o fato de o indivíduo estar em desvantagens em relação ao outro no que diz respeito ao poder econômico, ou seja, o fator “ser negro” nada interfere na vulnerabilidade em questão. Diante do exposto, podemos concluir que a cor não defini o nível de fragilidade do indivíduo, sendo necessário a análise do caso concreto, principalmente diante da vulnerabilidade socioeconômica pois a pobreza no Brasil não possui cor especifica. É claro que não podemos nos esquecer das atrocidades vividas pelos negros na escravidão, pois a intenção não é apagar fatos históricos, porém a história nos levou a acreditar, que ainda há uma enorme dívida histórica pelos longos anos de escravidão no Brasil e pelo abandono ao negro após a abolição da escravatura, onde surge o questionamento de até quando a sociedade irá pagar por todas essas dívidas histórias, utilizadas para justificar a implementação das cotas raciais. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo procurou demonstrar que ao se analisar o princípio da igualdade, também se deve observar o seu aspecto material a fim de se neutralizar a desigualdade existe no país. Diante disto, vê-se a necessidade da implementação de ações afirmativas para igualar as oportunidades de concorrência e para que os grupos minoritários tenham uma inclusão mais rápida na sociedade. Por mais que a implementação de ações afirmativas seja necessária para combater a desigualdade, esse tipo de política pública deve ser analisado e aplicado com muita cautela para que não sejam cometidas injustiças. Para que isso não acontece a igualdade material deve ser aplicada mediante razoabilidade e proporcionalidade. As políticas de cotas que tem como objetivo proporcionar a igualdade de oportunidades, devem ser sim apreciadas, porém, as cotas para negros necessitam de maior observância, pois este tipo de cota pode criar um outro nível de desigualdade entre negros e indivíduos de pele mais clara que também integram a mesma classe social. O presente estudo tem o intuito de demonstrar que não é somente o negro que precisa de cotas para ingressar nas universidades públicas, pois tanto os “negros” quanto os “não negros” que se encontram no mesmo patamar socioeconômico, possuem as mesmas dificuldades e obstáculos para se adentrar em uma instituição de ensino superior

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Diante disto, fica-se demonstrado que o meio mais eficaz de se combater a desigualdade é a implementação das cotas sociais, pois através dessa política de cota, é possível atingir um elevado número de indivíduos “negros” e “não negros” frutos da desigualdade socioeconômica. A dita discriminação racial é sim um fator de extrema relevância, que deve ser sim reparado, porém essa política de cotas não seria o meio mais eficaz para erradicar esse tipo de discriminação. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Hélio Santos de; TEIXEIRA, Maria Cristina. Ações afirmativas como medida de proteção das minorias. 2011. Disponível em: https://www.metodista. br/revistas/revistasims/index.php/RFD/article/viewFile/25 95/2540. Acesso em: 12 de out. 2015. ALMEIDA, Luciana Dayoub Ranieri de. Ações afirmativas e a concretização do princípios da igualdade no Direito Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. ALVES, João Roberto Moreira. Considerações acerca do Sistema de cotas no Brasil. 2010. Disponível em: http://www.ipae.com.br/et/32.pdf. Acesso em: 12 de outubro de 2012. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2001. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Martin Claret: São Paulo, 2003. discurso 1920. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva. 1999. BRETAS, Hugo Rios. O idoso no ordenamento jurídico. Editora Novas Edições Acadêmicas, 2014. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum Acadêmico de Direito. 20. ed. São Paulo: Rideel, 2015; BRASIL, Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm >. Acesso em: 12 de out. 2015; TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Cuso de Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ações afirmativas e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado, a. 38 n. 151, jul/set 2001b. GRISA, Gregório Grisa. Pensando o significado das cotas sócias e raciais nas universidades públicas brasileiras. 2008. MEIRA, André Vinícius Carvalho. O princípio da igualdade e as cotas raciais no Brasil. Disponível em: http://periodicoalethes.com.br/media/pdf/3/oprincipio-da-igualdade-e-as-cotas-raciais-no-brasil.pdf . Acesso em: 10 de outubro de 2015.

109

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: História e debates no Brasil. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf Acesso em: 19 de out. 2015. MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 31. ed. São Paulo: Atlas, 2015. PENA, Sérgio. Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010459702005000200006&script=sci_arttext .Acesso em: 20 nov. 2015 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

110

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO Fernanda Cristina Aparecida Soares1 Gustavo Vidigal Costa2 RESUMO: O presente estudo visa analisar a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário na apreciação do ato administrativo discricionário, analisando- a sobre os primados do Princípio da Legalidade, abordando os limites que deverão ser observados pela Administração Pública no uso da discricionariedade que lhe é conferida por lei e a modalidade de apreciação judicial. ABSTRACT: This study aims to examine the possibility of the Judiciary interference in the appreciation of discretionary administrative act, analyzing it on the primacies of the Legality Principle, approaching the limits to be observed by public authorities on the use of the discretion conferred on it by law and the type of judicial appreciation. PALAVRAS-CHAVE: ato administrativo discricionário; mérito administrativo; principio da proporcionalidade e da razoabilidade; controle judicial. KEYWORDS: discretionary administrative act; administrative merit; principle of proportionality and reasonableness; judicial control. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Direito Administrativo e os Atos Administrativos; 2.1. Conceito de Ato Administrativo; 2.2. Elementos e atributos do ato administrativo; 2.3. Ato administrativo vinculado e discricionário; 2.4. Discricionariedade x Arbitrariedade; 2.5. Mérito administrativo; 3. Mérito administrativo e o controle judicial; 3.1. Monopólio da Jurisdição e os limites do Poder Judiciário; 3.2. A ingerência do Poder Judiciário na análise do ato discricionário; 3.3. Princípio da proporcionalidade e da razoabilidade como limites à discricionariedade administrativa; 4. Análise da Constitucionalidade da ingerência judicial no ato administrativo discricionário; 4.1. Revogação e anulação do ato administrativo discricionário; 4.2. Controle judicial do ato administrativo discricionário e a tripartição de poderes - Divergências doutrinárias; 4.3. Jurisprudência; 5. Considerações Finais; Referências

1 – INTRODUÇÃO O presente trabalho trata da ingerência do Poder Judiciário na apreciação do ato administrativo discricionário. O artigo 37 da Constituição Federal elenca os princípios que deverão ser observados pela Administração Pública no âmbito de sua atuação, sendo eles: a Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. Em síntese, os princípios no Direito Administrativo estabelecem que o administrador público somente deverá fazer o que a lei permitir (Princípio da Legalidade), mediante um comportamento ético, jurídico, e adequado (Princípio da Moralidade), visando o bem da coletividade e não o interesse próprio (Princípio da Impessoalidade), dando publicidade aos seus atos no exercício da função pública (Principio da Publicidade), devendo, por fim, a atividade administrativa ser exercida com rendimento funcional, de forma que os lucros obtidos sejam revertidos em benefício da coletividade e não do administrador (Principio da Eficiência). Ressalta-se, todavia, que há outros princípios a serem observados como, por exemplo, a Supremacia do Interesse Público, Indisponibilidade do Interesse Público, Teoria da Ponderação dos Interesses, e que, os princípios são vetores que orientam a aplicação das normas, possuindo, consequentemente, força de lei, limitando assim, a atuação do administrador público. No âmbito de atuação da Administração Pública há atividades que devem ser executadas de forma vinculativa, ou seja, de acordo com o texto normativo, e há atividades em que o legislador conferiu uma margem de discricionariedade ao agente público para que este, em determinadas situações, dentro de algumas hipóteses descritas na lei, opte por aquela que melhor se adequará a situação. Essa discricionariedade será exercida observando-se os critérios de conveniência e oportunidade, sobre o qual não poderá, via de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

regra, haver controle por parte dos outros poderes. Ocorre que, pode o agente público, no exercício dessa liberdade de atuação, agir em desconformidade com o preceito legal, por motivos diversos, praticando abuso de poder, contrariando assim o princípio da legalidade. Neste ponto, tem-se a possibilidade de o Poder Judiciário apreciar as medidas adotadas, de forma a analisar sua legalidade e, constatando-se o desvio de conduta, anular o ato praticado, exercendo assim sua função jurisdicional. Será esta a questão sobre a qual iremos debruçar, analisando assim a validade dessa tutela jurisdicional e, para melhor elucidação do tema serão abordadas questões relevantes como os requisitos de validade e os elementos do ato administrativo, bem como a possibilidade de análise do mérito administrativo. O objetivo, porém, não será de exaurir o assunto, mas tão somente tecer argumentos que se fazem coerentes a partir do presente estudo. 2 – DIREITO ADMINISTRATIVO E OS ATOS ADMINISTRATIVOS 2.1 – Conceito de Ato Administrativo Inicialmente faz-se necessário tecer o conceito de Direito Administrativo, que nos dizeres de Maria Sylvia Di Pietro (2013: 48): É o ramo do direito público que tem como objeto órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública. Para melhor conceituação de ato administrativo, deve-se fazer a distinção entre fato jurídico e fato administrativo. Fato jurídico é aquele que produz efeitos na ordem jurídica, de forma que dele se originam

111

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


e se extinguem direitos. Já o fato administrativo decorre de acontecimentos naturais relacionando-se com a atividade material no exercício da função administrativa, podendo surgir como consequência de um ato administrativo ou de uma conduta administrativa não formalizada. Marçal Justen Filho (2015: 366) conceitua ato administrativo como sendo uma manifestação de vontade funcional apta a gerar efeitos jurídicos, produzido no exercício de função administrativa. Para José dos Santos Carvalho Filho (2013: 100-105) ato administrativo é a exteriorização da vontade dos agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público. Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2013: 203-204) assevera ainda sobre a possibilidade de controle judicial no ato administrativo, bem como de sua sujeição a lei, de forma que essas “duas últimas características colocam o ato administrativo como uma das modalidades de ato praticado pelo Estado, pois o diferenciam do ato normativo e do ato judicial”. Desta feita, a autora conceitua ato administrativo como sendo a declaração de Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob o regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário. Conforme se observa, a conceituação de ato administrativo não é uniforme entre os autores. Entretanto, todos adotam uma mesma linha de raciocínio, no sentido de que os atos administrativos são executados no âmbito da administração pública, mediante a manifestação de vontade de seus agentes, com o fito de produzir efeitos jurídicos visando, por fim, atender ao interesse da coletividade. 2.2 – Elementos e atributos do ato administrativo Os elementos ou requisitos de validade do ato administrativo constituem os pressupostos necessários para sua validade, de forma que, praticado o ato sem a observância de qualquer desses pressupostos, estará ele contaminado de vício de legalidade, sendo, portanto, passível de invalidação. De acordo com Carvalho Filho (2014: 106), a expressão elemento significa algo que integra uma determinada estrutura, se apresentando como pressuposto de existência. Por sua vez, requisito de validade anuncia a existência de pressuposto de validade, só ocorrendo depois de verificada a existência. Assim, o autor considera que as expressões não devem ser utilizadas de forma isolada, tendo em vista que possuem relação entre si. Alguns doutrinadores adotam como elementos aqueles mencionados no artigo 2º da Lei nº 4.717/1965, que regulamenta a ação popular. Segundo este artigo serão nulos os atos nos casos de: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade. A doutrina entende que a lei é a fonte normal da competência, onde se encontra os limites e a dimensão das atribuições que são cometidas às pessoas administrativas, órgãos e agentes públicos. Entretanto, haveria outras fontes relativas à competência como a própria Constituição Federal em relação a órgãos e agentes de elevada hierarquia ou de finalidades especificas e os atos administrativos de organização quando tratar-se de órgãos de menor hierarquia (José dos Santos Carvalho Filho, Manual, p. 107). A competência é o limite definido por lei que confere ao agente público o exercício legitimo de sua atividade, sendo inderrogável, improrrogável e irrenunciável. Tem-se então que a competência não pode ser transferida de um órgão para outro mediante acordo de vontade entre as partes, bem como não pode ser prorrogada, ou seja, determinado órgão so-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

mente poderá executar uma atividade dentro dos limites legais estabelecidos, não havendo possibilidade de aumentar sua competência ao menos que a lei instituidora seja alterada. A competência será também irrenunciável, não havendo possibilidade de o agente público se esquivar de sua função, tendo em vista que a competência é inerente ao cargo, devendo ser executada por aquele que o ocupa. O objeto, também denominado de conteúdo, é a alteração no mundo jurídico provocado pelo ato administrativo. Segundo Carvalho Filho (2014: 110), pode o objeto consistir na aquisição, no resguardo, na transferência, na modificação, na extinção ou na declaração de direitos, dependendo do fim a que se destina. No que tange a forma do ato administrativo esta será o meio pelo qual se exteriorizará a vontade do agente. Assim, a forma deve ser compatível com o que dispõe a legislação ou outro ato equivalente que possua força jurídica. Sobre a forma assim dispõe Maria Sylvia Zanella Di Pietro: No direito administrativo, o aspecto formal do ato é de muito maior relevância do que no direito privado, já que a obediência à forma (no sentido estrito) e ao procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração; é pelo respeito a forma que se possibilita o controle do ato administrativo, quer pelos seus destinatários, quer pela própria Administração, quer pelos demais Poderes do Estado. (2013: 216) A finalidade do ato é o resultado que se pretende alcançar, que, segundo Carvalho Filho (2014: 120), é o elemento pelo qual todo ato deve estar dirigido ao interesse público. Por fim, como elemento do ato administrativo, tem-se o motivo que é conceituado como sendo o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo. O pressuposto de direito é a disposição legal em que se baseia o ato, já o pressuposto de fato são os acontecimentos, as situações que levam a prática do ato. A ausência de motivo ou a indicação de motivo falso invalidam o ato administrativo. Além dos elementos elencados, que são imprescindíveis para a validação do ato, têm-se ainda os atributos do ato administrativo, que são as características que os distingue dos atos privados, afirmando sua submissão ao regime jurídico administrativo. Não há, também, entre os doutrinadores uma classificação padrão desses atributos. A maioria dos autores consideram a existência de três atributos tidos como aqueles que traduzem a singularidade do ato administrativo, sendo eles a presunção de legitimidade, a imperatividade, e a autoexecutoriedade, que nos dizeres de Maria Sylvia (2013: 205) são verdadeiras prerrogativas conferidas ao poder público. Pela presunção de legitimidade tem-se que o ato foi criado observando as devidas normas legais, presumindo-se que estão em conformidade com a lei. Dessa forma, o ato administrativo produzirá seus efeitos, sendo, portanto, considerado válido até que haja prova em contrário. A presunção de legitimidade confere ao Estado uma espécie de celeridade na execução de seus atos, isto porque, caso não houvesse essa prerrogativa o Estado teria de recorrer à esfera judicial para obter provimento deste comprovando a legitimidade de suas ações para assim vincular os terceiros, tornando-se inviável o cumprimento das funções administrativas. Para Marçal Justen Filho (2015:396) a presunção de legitimidade compreende a instauração de relações jurídicas (previstas em normas legais) por meio de ato administrativo, sem a necessidade de manifestação de vontade do particular atingido. Ainda segundo o autor, a presunção de legitimidade depende do cumprimento dos requisitos formais necessários, ou seja, o ato administrativo deve apresentar um grau mínimo de perfeição, indicando o

112

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


cumprimento das exigências e requisitos necessários a sua existência. Por sua vez a imperatividade refere-se ao poder que tem a Administração Pública de exigir o cumprimento do ato exarado por todos aqueles que se encontram em sua esfera de atuação, independentemente de concordância. Assim, tendo o ato sido criado em conformidade com a legislação não há como o administrado se esquivar da obrigação de cumprir com determinada ordem. Mesmo nos atos onde há conferência de direitos solicitados pelo administrado há o dever deste de agir dentro dos limites que lhe foram traçados. Por fim, tem-se a autoexecutoriedade, através da qual o ato administrativo, assim que praticado, pode ser imediatamente executado pela Administração Pública. Marçal Justen Filho (2015: 399) expõe que a autoexecutoriedade indica a possibilidade de a Administração Pública obter a satisfação de um direito ou dirimir um conflito de que participa sem a intervenção imediata do Poder Judiciário, produzindo os atos materiais necessários a obter o bem da vida buscado. Nesse sentido Maria Sylvia (2013: 208) aduz que somente é possível a autoexecutoriedade dos atos administrativos quando expressamente previsto em lei ou quando se tratar de medida urgente que se não adotada de imediato poderá causar prejuízos maiores para o interesse público. Ressalta-se que a prerrogativa de execução dos atos administrativos de forma imediata, não exime a Administração Pública de passar pelo controle judicial posterior que pode ser provocado por quem se sentir lesado. 2.3 – Ato administrativo vinculado e discricionário A administração Pública dispõe de poderes que lhe confere uma supremacia sobre o particular de forma a garantir os fins a que se destina. Entretanto, esses poderes são limitados pela lei com o objetivo de impedir abusos e arbitrariedades, não podendo a autoridade administrativa ultrapassar os limites legais estabelecidos em relação as suas atividades, sob pena de ilegalidade. O ato administrativo será vinculado quando o agente administrativo estiver limitado legalmente, ou seja, seus atos estão expressamente vinculados a norma legal, não podendo ele agir de forma contrária ou além do que a lei prevê. Assim pondera Edimur Ferreira de Faria (2011: 157): Ato vinculado ou regrado, ou ato praticado no exercício do poder vinculado ou poder regrado, tem lugar quando a lei regula de tal forma o comportamento do agente que o impede de adotar outra solução a não ser a de editar o ato que a hipótese legal prevê para o fato ocorrido.

para localização da discricionariedade. Portanto, a seguir e de acordo com o entendimento doutrinário, será analisada a existência ou não de discricionariedade nos elementos constitutivos do ato administrativo. Quanto à competência para a prática do ato, não há discricionariedade, tendo em vista que é a lei que determina qual o sujeito da administração que irá realizá-lo. No que se refere ao objeto ou conteúdo que é definido como o efeito jurídico imediato que o ato produz, tem-se que pode haver certa margem de discricionariedade para a Administração Pública, sendo que a lei pode determinar mais de um efeito jurídico possível, dando à Administração liberdade de decidir, segundo os critérios de conveniência e oportunidade. Já com relação à forma há divergência entre a doutrina, sendo que alguns doutrinadores consideram que a forma do ato é sempre vinculada, enquanto para outros a forma pode ou não ser discricionária, dependendo da disposição legislativa. Di Pietro (2001: 82-83) expõe que quando se fala em formalismo do ato, fala-se em forma expressa e escrita, e não em forma determinada pela lei. Assim sendo, a não ser que a lei imponha à Administração a obrigatoriedade de obediência a determinada forma, o ato pode ser praticado pela forma que lhe parecer mais adequada. Quanto ao motivo, a doutrina entende que há possibilidade de existência de discricionariedade, dependendo de como o legislador se posiciona. Dessa forma haverá discricionariedade quando a lei não definir o motivo, deixando-o a critério da Administração Pública ou quando a lei define o motivo de forma vaga, conferindo à Administração a possibilidade de apreciação dos fatos concretos segundo seus próprios critérios de valores. Por fim quanto à finalidade também há entre a doutrina divergência, pois, para alguns a finalidade é vinculada ao interesse público ao qual o ato administrativo se propõe, já para outros, porém, como não há estabelecido em lei os critérios objetivos de identificação do interesse público no caso concreto, resultaria assim certa discricionariedade para o administrador público. Segundo Maria Sylvia (2001:86) a finalidade do ato é sempre vinculada pela lei, não havendo margem de discricionariedade para a Administração Pública, de forma que o legislador é quem define a finalidade que o ato deve alcançar. Observa-se então que, mesmo havendo margem de liberdade de decisão para o agente público, não pode este agir por sua livre convicção, de forma que os atos devem ser executados em conformidade com a vontade legislativa, sendo que a discricionariedade referir-se-á, unicamente, em escolher dentre algumas hipóteses, aquela que naquele momento é mais propícia ao interesse público.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro o regramento imposto aos poderes da Administração Pública não atinge todos os aspectos da atuação desta, de forma que a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto, no sentido de que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis que são válidas perante o direito. Assim sendo, tem-se que o poder da Administração é discricionário, pois, adota uma solução baseada em critérios de mérito – oportunidade e conveniência – que não são definidos pelo legislador. Dessa forma, Maria Sylvia (2001: 66-67) define a discricionariedade administrativa como sendo a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito. Merece destaque o fato de que a lei não confere discricionariedade total à Administração Pública. Assim sendo, é necessário identificar onde ela se localiza, utilizando os autores de diversos critérios

2.4 – Discricionariedade x Arbitrariedade Conforme já explicitado a discricionariedade administrativa é a faculdade que a lei confere ao administrador público de decidir, dentre algumas hipóteses, aquela que melhor se aplica ao caso em comento, observando-se os critérios de conveniência e oportunidade. Desta forma, agindo o administrador público em desconformidade com o que a lei define, ou seja, agindo fora dos limites do poder discricionário, estará exercendo o poder de forma arbitrária, praticando um ato que fora editado contrariamente ao Direito. Edimur Ferreira de Faria (2011: 183) aduz que a arbitrariedade verifica-se no transbordamento dos limites da discricionariedade. Assim, o termo significaria comportamento sem lei ou fora da lei, de forma que a atuação do agente público fora dos limites da discricionariedade traduz-se em arbitrariedade, produzindo assim um ato que contém vício de legalidade. Não obstante, podem ser adotadas condutas decorrentes de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

113

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


desvio de finalidade ou desvio de poder que são vícios relativos à finalidade do ato administrativo, compreendendo a atuação do agente público sem que haja uma previsão legal ou fora dos limites legais, ou ainda contrário aos fins previstos na lei. A Lei de Ação Popular (nº 4.717/65) traz a conceituação do desvio de poder, assim expressado: Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar- se-ão as seguintes normas: e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Tendo em vista que a finalidade do ato administrativo visa sempre o interesse público, havendo desvio de finalidade será o ato nulo. Há de se destacar que poderá ser declarado nulo pela própria Administração Pública, em virtude do poder da autotutela, bem como pelo Poder Judiciário. 2.5 – Mérito administrativo O mérito administrativo, também chamado de motivação referese à conveniência e oportunidade que o agente administrativo deve observar na prática do ato administrativo, devendo este ser analisado ainda sob o aspecto da legalidade. Na conveniência é analisado se há interesse público que justifique a produção do ato administrativo, enquanto que na oportunidade o agente público deve analisar o momento a partir do qual o interesse público deverá ser satisfeito. Destaca-se, todavia, que a motivação não se confunde com o motivo. Conforme já demonstrado, o motivo é a situação de fato e de direito que serve de fundamento do ato administrativo, sendo elemento constitutivo obrigatório, de forma que sua inexistência ou indicação falsa enseja a nulidade do ato. Já a motivação, de acordo com Edimur Ferreira (2011: 120), é acessória ao motivo, e significa explicar, esclarecer o motivo no qual o ato administrativo foi elaborado. Não há entre os juristas doutrinadores uma unanimidade quanto à obrigatoriedade de se motivar o ato administrativo, de forma que alguns entendem que será a motivação obrigatória quando a lei determinar, ou facultativa, quando não houver previsão legal. No que se refere ao ato discricionário há entendimentos de que estes não estão sujeitos a motivação, posto que esta se contrapõe à ideia de liberdade da discricionariedade. Em contrapartida, outros doutrinadores entendem que é justamente em decorrência do poder discricionário que a motivação torna-se obrigatória, tendo em vista que sua dispensa poderia resultar em atos que extrapolam os limites do poder discricionário. Há, ainda, uma terceira linha doutrinária que entende que em algumas situações deverá ser o ato motivado, enquanto em outras não, de forma que a atitude do administrador irá depender da lei ou da própria natureza do ato (Edimur Ferreira de Faria. 2011: 124). Tratando-se de mérito administrativo, tem-se que, inicialmente, não há por parte do Poder Judiciário, legitimidade para intervenção. Ocorre que, ao Judiciário é conferida a apreciação da legalidade, podendo este, então, verificar se houve excessos, invalidando assim os atos administrativos praticados de forma ilegal. Em decorrência desse controle, começou-se a elaborar algumas teorias com o objetivo de fixar limites ao poder discricionário e ampliar as possibilidades de apreciação deste pelo Poder Judiciário. Assim, tem-se a teoria referente ao desvio de poder e a teoria dos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

motivos determinantes. Segundo esta última, o motivo do ato administrativo deverá sempre ser compatível com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade. Dessa forma, o ato somente será tido como válido se os motivos que ensejaram sua elaboração forem verdadeiros. Para validar o ato administrativo, o Judiciário terá de analisar os motivos, ou seja, terá de analisar os pressupostos de fato e de direito e as provas de sua ocorrência. José dos Santos Carvalho Filho (2014: 118-120) entende que havendo motivação no ato administrativo, essa passa a vincular o agente aos termos mencionados. Desta feita, comprovando o interessado que inexiste realidade fática entre o motivo de elaboração do ato e o fato ocorrido estará o ato eivado de vício de legalidade e passível de controle judicial. O autor ainda acrescenta que não somente a ausência de motivo contamina o ato, como também a ausência de congruência entre o motivo e o resultado alcançado. Assim, na prática de um ato discricionário o administrador público deve ater-se ao que preceitua a lei, sendo imprescindível a observância da motivação, sob pena de se praticar um ato com vício de legalidade e, consequentemente, ilegal. 3 – MÉRITO ADMINISTRATIVO E O CONTROLE JUDICIAL 3.1 – Monopólio da Jurisdição e os limites do Poder Judiciário O Brasil adota a forma de Estado unitário onde a ordem jurídica, a ordem administrativa e a ordem política encontram-se conjugadas em perfeita unidade orgânica, referidas a um só povo, um só território, um só titular do poder público do império, conforme salienta Paulo Bonavides (2015: 160). A forma unitária, por sua vez, conjuga-se com a tripartição de poderes, onde as funções estatais são distribuídas aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Ao poder Legislativo incumbe a elaboração das leis, ao Executivo a função administrativa e ao Judiciário a função jurisdicional. Entretanto, além das funções especificas, incumbe aos três poderes, ainda, a execução das outras atividades de forma atípica, com exceção do Poder Executivo que não possui capacidade para exercer a função jurisdicional. O Estado possui o monopólio sobre determinados serviços, que são instituídos constitucionalmente, e, em decorrência da sua abrangência não seria possível serem realizados por particulares. Dentre eles, encontra-se a jurisdição estatal, como forma de dirimir os conflitos, que nas palavras de Cássio Scarpinella Bueno (2014: 245) assim é conceituada: A “jurisdição” pode ser entendida como a função do Estado destinada à solução imperativa, substitutiva e com ânimo de definitividade de conflitos intersubjetivos e exercida mediante a atuação do direito em casos concretos. Tal exercício de atuação do Estado, contudo, não se limita à declaração de direitos, mas também à sua realização concreta, prática, com vistas à pacificação social. Desta forma, tem-se que a função jurisdicional é aquela desenvolvida pelo Estado-Juiz como forma de resolução dos conflitos que são levados até ele, sendo esta de exclusividade do Poder Judiciário, que detêm o monopólio de aplicar a legislação ao caso concreto. Pelo monopólio da jurisdição tem-se que somente as decisões do Poder Judiciário possuem o caráter da definitividade, ou seja, as decisões proferidas pelo Poder Judiciário são imutáveis tendo em vista a existência da coisa julgada, nos termos do art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal. Dessa forma como pondera Cássio Scarpinella

114

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Bueno (2014: 253): (...) as soluções apresentadas pelo Estado-juiz, em determinadas circunstâncias que são estudadas com a profundidade necessária adquirem uma situação de estabilidade no sentido de que ninguém mais (os próprios envolvidos, eventuais interessados indiretamente envolvidos e o próprio Estado no exercício de suas diversas funções) possa desconsiderar o resultado do exercício daquela atividade jurisdicional: o direito material reconhecido como tal na decisão está imunizado de nova discussão, observadas determinadas condições que, a seu tempo, serão examinadas. É como se determinadas decisões judiciais assumissem “força de lei nos limites da lide e das questões decididas” entre as partes. Ainda segundo o autor, a jurisdição desempenhada pelo Estado-juiz brasileiro é una no sentido de que somente a este compete impor soluções de litígios interindividuais com ânimo de definitividade, ou seja, com o selo da “coisa julgada”. O exercício da função legislativa e da função administrativa, mesmo que de forma atípica não possui essa possibilidade. A função precípua do Poder judiciário é exercer a justiça mediante a observância e a aplicação da lei. Sendo ele o responsável pela guarda da Constituição, através do Supremo Tribunal Federal, devendo atuar de forma a manter a segurança jurídica mediante os preceitos constitucionais. Sua atuação nas outras esferas do poder limita-se ao estabelecido na Constituição Federal. Assim sendo, no âmbito do poder Legislativo atuará em consonância com o que determina o artigo 96, I, “a” CF/88, elaborando as normas atinentes ao regimento interno dos Tribunais. E na esfera do poder Executivo exercendo a função de organizar seus serviços. A tutela jurisdicional encontra limites ainda na sua prestação, posto que não poderá ser realizada de oficio pelo Estado-juiz. Ao contrário dos outros poderes, a tutela judicial é inerte, ou seja, somente será prestada mediante provocação do interessado, quando a partir daí dar-se-á por impulso oficial. 3.2 – A ingerência do Poder Judiciário na análise do ato discricionário

Inicialmente, insta salientar que a Administração Pública se sujeita ao seu próprio controle, realizado de oficio, através do qual poderá revogar um ato praticado, sem a necessidade de uma decisão jurisdicional. Todavia, há ainda, além do autocontrole, o controle jurisdicional, que, tratando-se de ato administrativo, será realizado nos casos onde houver ofensa ao princípio da legalidade. Nessa seara, merece ser destacado que é pacificado tanto na doutrina quanto na jurisprudência que os atos administrativos vinculados são sujeitos ao controle jurisdicional sem nenhuma restrição, de forma que não é concedida ao agente público outra forma de agir senão aquela prevista no texto normativo. No que tange a interferência do Judiciário na esfera do ato administrativo discricionário tem-se que, até meados do século XX, o Poder Judiciário não possuía competência para controlar esses atos em virtude da liberdade de atuação conferida por lei ao agente público. Uma ingerência judicial significaria uma invasão da competência privativa do Poder Executivo. Com a evolução do Direito, entretanto, constatou-se que a discricionariedade refere-se ao poder e não ao ato dela decorrente, verificando- se assim, que, independentemente da modalidade do ato administrativo, este é vinculado aos seus elementos. Dessa forma, sendo o ato editado com a inobservância de algum dos elementos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

(forma, finalidade, competência, objeto e motivo) nascerá viciado. Nesse sentido, a jurisprudência evoluiu passando a admitir que seja realizado o controle jurisdicional do ato administrativo discricionário, desde que não fosse adentrado o mérito que é a essência da discricionariedade. Ademais, a motivação é passível de alteração, tendo em vista as possíveis mudanças de conveniência e oportunidade aplicáveis aos atos administrativos. Assim, cabe à Administração exercer o controle sobre seus atos, sendo, nesse sentindo, vedado ao Judiciário exercer controle judicial sobre o mérito administrativo. Há, entretanto, na doutrina, divergência sobre a análise do mérito administrativo. Isto porque, alguns doutrinadores entendem não ser possível avaliar a legalidade do ato praticado sem adentrar no mérito. Segundo Edimur Ferreira de Faria (2011: 252-253) este é o entendimento correto sobre o tema, para o qual a verificação dos requisitos de validade do ato depende do completo e total exame do ato questionado. Segundo o autor, a rigor, a discricionariedade está vinculada à melhor opção, sendo por esse motivo concebível ao Judiciário a possibilidade de examinar o mérito do ato administrativo para verificar quanto ao acerto da escolha. Nesse sentido, ao examinar o ato, poderia o juiz ao constatar que a escolha não foi à melhor declarar sua nulidade, de forma que teria o agente público de editar novo ato adotando a opção correta, caso fosse necessária a medida. Corroborando esse entendimento, cita-se o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no Agravo de Instrumento nº 1.381.102 - BA, que assim expõe: Registre-se que a melhor doutrina e jurisprudência firmaram entendimento de que o Poder Judiciário pode e deve adentrar no mérito do ato administrativo, seja ele de natureza vinculada ou discricionária, a fim de analisar a sua legalidade e consonância com os princípios e normas vigentes. Não se aceita mais a tese da intangibilidade do mérito do ato administrativo, ao fundamento de que a discricionariedade é competência tipicamente administrativa, intocável pelo Poder Judiciário em respeito à tripartição dos poderes. O controle dos atos administrativos é um dever, cujo cumprimento não pode se abster o Judiciário, sob pena de denegação da prestação jurisdicional devida ao jurisdicionado. As funções estatais típicas de cada Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) não podem ser concebidas de forma estanque, pois além de independentes são também harmônicas entre si, constituindo num sistema de freios e contrapesos, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em permanente fiscalização e equilíbrio. A tutela jurisdicional visa garantir que as decisões sejam tomadas pautando-se no princípio da legalidade, de forma que, sendo o administrador público um representante do povo, não deve sobrepor seus interesses pessoais em face do interesse da coletividade. Assim sendo, agindo o administrador público em discordância com o texto normativo, seja mediante condutas que não encontram respaldo em lei, seja por adotar medidas que extrapolam seu limite de atuação, ter-se-á condutas eivadas de abuso de autoridade devendo de certo serem revistas e invalidadas pelo órgão jurisdicional, caso não sejam pela própria Administração. 3.3 – Princípio da proporcionalidade e da razoabilidade como limites à discricionariedade administrativa

A discricionariedade administrativa não se coaduna com uma liberdade irrestrita, não permitindo assim, que o agente público aja segundo sua livre escolha, suas vontades. Dessa forma, a vontade da lei impõe-se a sua vontade pessoal, devendo agir, o administrador

115

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


público, dentro dos limites que a lei lhe impõe. Dentre os métodos de controle aplicáveis, a doutrina e jurisprudência têm- se valido dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade como forma de limitação e verificação dos excessos cometidos em decorrência das condutas discricionárias. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não se referem propriamente à ingerência judicial e sim à conduta do administrador público, de forma a verificar se este agiu em conformidade com a norma legal, aplicando ao caso concreto a medida que lhe é mais favorável, ou se extrapolou os limites legais, agindo de forma desproporcional ao ato que deveria ser praticado. Ressalta-se, entretanto, que, em razão da dificuldade de se estabelecer parâmetros de verificação das decisões discricionárias tomadas no âmbito da Administração Pública, cada caso deve ser analisado de forma isolada, observando-se as peculiaridades atinentes à cada um. Desta forma os princípios não devem ser aplicados de acordo com o texto frio da lei, devendo o julgador levar em consideração o caso concreto, ou seja, deve-se adequar a medida adotada a situação fática ocorrida no intuito de o controle judicial não configurar uma violação ao Princípio da Separação dos Poderes. A doutrina, em sua grande maioria, entende que há uma espécie de imprecisão no princípio da razoabilidade. Isto porque, conforme pontua Carvalho Filho (2014: 41), a razoabilidade é a qualidade do que é razoável, de forma que se situa dentro de limites aceitáveis, porém, pode haver divergências acerca do que seja razoável. Nesse sentido, pondera o autor que mesmo quando não há entre os juristas uma unanimidade sobre o que seja razoável, reconhece-se que seja uma valoração que se situa dentro de um limite de aceitabilidade. Celso Antônio Bandeira de Melo (2000: 96) assevera que: “A razoabilidade – que aliás, postula a proporcionalidade – a lealdade e boa-fé, tanto como o respeito ao princípio da isonomia, são princípios gerais do Direito que também concorrem para conter a discricionariedade dentro de seus reais limites, assujeitando os atos administrativos a parâmetros de obediência inadversável.” Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2001: 207) aduz que para se avaliar a razoabilidade em um ato administrativo torna-se imprescindível que se conheça os motivos que levaram a Administração a adotar determinada conduta, sendo, portanto, imperioso a motivação do ato, posto que esta seja a única maneira de se verificar a observância do referido princípio. Ainda segundo o entendimento da autora a irrazoabilidade, basicamente, corresponde à falta de proporcionalidade, de correlação ou de adequação entre os meios e os fins, diante dos fatos ensejadores da decisão administrativa (2001: 201). Quanto ao princípio da proporcionalidade a doutrina o coloca como uma espécie de complementação ao princípio da razoabilidade. José dos Santos Carvalho Filho (2014: 43) expõe que o grande fundamento deste princípio é o excesso de poder, sendo que o fim a que se destina é o de conter atos, decisões e condutas de agentes públicos que ultrapassam os limites adequados. Neste sentido tem-se que não pode o julgador se valer deste instrumento de controle para interferir no critério de discricionariedade de escolha do administrador público, de forma que sua aplicação exige um cuidado e comedimento sob pena do próprio julgador violar o princípio que se pretende aplicar. Pelo princípio da proporcionalidade tem-se que os atos oriundos da discricionariedade praticados pela Administração Pública devem conter uma estrita relação de equilíbrio com a finalidade que se pretende alcançar. Diz-se assim que os meios utilizados devem ser proporcionais aos resultados desejados.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Portanto, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade aplicados como forma de controle dos atos estatais deverão observar a situação concreta ocorrida, não devendo ser adotados como forma de limitação à discricionariedade legal atribuída ao agente público. Os princípios deverão ser aplicados quando se verificar a ocorrência de condutas que culminam com o excesso de poder, quando estarão sob a égide de contrariedade por parte do Judiciário. 4 – ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA INGERÊNCIA JUDICIAL NO ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO 4.1 – Revogação e anulação do ato administrativo discricionário A competência para rever e, consequentemente, invalidar um ato administrativo que contenha vício de legalidade é tanto da Administração Pública quanto do Poder Judiciário, tendo em vista que ambos possuem métodos específicos para extinguir o ato praticado. Insta salientar que existem cinco modalidades de extinção dos atos administrativos sendo elas: extinção natural, que decorre do cumprimento normal do ato; extinção subjetiva, na qual há o desaparecimento do sujeito que se beneficiou do ato; extinção objetiva, onde há o desaparecimento do objeto com a prática do ato administrativo; caducidade, onde há a perda dos efeitos jurídicos em virtude de uma norma superveniente contrária àquela na qual o ato se baseava; desfazimento volitivo, quando há a manifestação de vontade do administrador. São três as formas de desfazimento volitivo: a invalidação ou anulação, revogação e cassação. Das formas acima elencadas serão abordadas duas que para o presente estudo possuem relevância, sendo elas a anulação ou invalidação e a revogação. A anulação e a revogação do ato administrativo possuem amparo em duas súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal, sendo elas as súmulas de nº 346 e 473 que assim expressam, respectivamente: Súmula 346. A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. Súmula 473. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial. Através da revogação a Administração Pública extingue um ato administrativo válido por razões de oportunidade e conveniência. Tendo em que a revogação atinge um ato que foi editado em conformidade com a lei, ela não retroagirá. A revogação é um ato privativo da Administração Pública, haja vista a vedação do Poder Judiciário de apreciar os critérios de conveniência e oportunidade. Nesta seara, tem-se que o pressuposto da revogação seja o interesse público, cabendo a Administração Pública traçar o sentido do interesse público, haja vista sua função de gerir os bens e interesses da coletividade. Todavia, a revogação não é ilimitada. Nesse sentido a doutrina enumera que não podem ser revogados: os atos que exauriram seus efeitos, os atos vinculados, os atos que geram direitos adquiridos nos termos do art. 5º, XXXVI, CF/88, os atos que integram um procedimento administrativo e os atos denominados meros atos administrativos, que possuem efeitos estabelecidos em lei. Por sua vez, a invalidação ou anulação é o desfazimento do ato administrativo por razões de ilegalidade. Assim, o ato administrativo será passível de invalidação quando se verificar vício de legalidade em algum de seus elementos constitutivos. A invalidação, por sua vez, opera efeitos retroativos, alcançando seus efeitos desde a criação,

116

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


por tratar-se de ato eivado de nulidade. A anulação ou invalidação pode ser realizada pela própria Administração Pública em decorrência do poder de autotutela sobre seus atos, bem como pelo Poder Judiciário, mediante provocação dos interessados, que poderão utilizar para esse fim, as ações ordinárias e especiais previstas na legislação processual, ou os remédios constitucionais de controle judicial da Administração, conforme expõe Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2013: 244). Sendo função do Poder Judiciário dirimir conflitos mediante a aplicação da lei ao caso concreto, tem-se que é de sua competência também a resolução dos conflitos entre o ato administrativo e a lei. Dessa forma, discutida em uma relação judicial a validade de um ato administrativo e verificando o juiz a ausência de um dos requisitos de validade, proferirá decisão invalidando o ato, procedendo assim, a sua retirada do mundo jurídico, conforme entendimento de Carvalho Filho (2014: 158). A anulação realizada pela Administração Pública independe de provocação de terceiros, uma vez que estando ela vinculada ao princípio da legalidade possui o dever-poder de zelar por sua observância. No entanto, a doutrina entende que quando a anulação do ato atingir direitos ou interesses de terceiros, deverá ser precedida do contraditório, nos termos do o art. 5º, inciso LV da CF/88. A doutrina majoritária, dentre os quais se posiciona Maria Sylvia Di Pietro e José dos Santos Carvalho Filho, entende que a Administração Pública tem o dever de anular o ato que possui vício de legalidade. Entretanto em duas situações o ato não será invalidado: quando houver o decurso do tempo, onde se têm as hipóteses de prescrição e decadência que conferem estabilidades as relações jurídicas e quando o ato praticado atender mais ao interesse público do que sua invalidação. Conforme exposto, havendo alteração da oportunidade e conveniência a Administração possui a liberdade de revogar o ato que no momento não se afigura em benefício da coletividade. Por sua vez, havendo vício de legalidade, o ato deverá, ressalvadas as exceções, ser invalidado tanto pela Administração Pública, no uso do poder da autotutela como pelo Poder Judiciário mediante a provocação do interessado através dos institutos legais próprios.

situação harmônica entre eles. Tem-se, portanto, que a autonomia conferida pela separação de poderes é relativa, de forma que não são os poderes titulares exclusivos de uma única função, haja vista que desempenham de maneira acessória as outras funções estatais. José dos Santos Carvalho Filho (2014: 3) expõe que a independência e a harmonia entre os poderes deve ser entendida com base nas definições das funções estatais que figuram na Constituição, posto que se de um lado possuem sua própria estrutura, não se subordinando uns aos outros, devem, porém, objetivar os fins almejados pela Magna Carta. De acordo com Paulo Bonavides (2015: 158) o princípio vale unicamente por técnica distributiva de funções distintas entre órgãos relativamente separados, nunca, porém, valerá em termos de incomunicabilidade, antes sim de íntima cooperação, harmonia e equilíbrio, sem nenhuma linha que marque separação absoluta ou intransponível. Não tendo, portanto, a tripartição de poderes um caráter absoluto, não há que se falar que a ingerência do Poder Judiciário na apreciação do ato administrativo discricionário seja uma violação ao referido princípio, haja vista a inter-relação e complementação existente entre eles. O posicionamento recorrente dos tribunais, conforme precedentes do STJ e STF (Ag. Reg. no AI 777502/RS e do MS: 9944 DF 2004/0122461-0, por exemplo), é no sentido de não reconhecer que haja uma violação à tripartição de poderes. Ressalta-se que a análise judicial dar-se-á como forma de verificação da violação ao princípio da legalidade, que é uma garantia constitucional, estando, dessa forma, sob a competência e guarida do Poder Judiciário. Desta forma, sendo a ingerência judicial realizada dentro da competência que lhe é conferida por lei, não há que se falar em inconstitucionalidade. Conforme visto, a tripartição de poderes tem como finalidade uma melhor administração estatal, dividindo as funções, dentro de suas peculiaridades, aos poderes específicos, sendo que ao Poder Judiciário cabe a aplicação da norma ao caso concreto, pautando suas decisões sempre conforme os princípios constitucionais, observando-se ainda, na discussão em análise, o estrito cumprimento ao Princípio da Legalidade.

4.2 – Controle judicial do ato administrativo discricionário e a tripartição de poderes – Divergências doutrinárias Muito se discute se a ingerência judicial na apreciação do ato administrativo discricionário não seria uma violação ao princípio da Separação de Poderes. De forma sucinta, pode se dizer que a separação dos poderes consiste em dividir as funções do Estado, que é uno, visando impedir que estas funções sejam concentradas em uma única estrutura organizacional, produzindo o chamado sistema de freios e contrapesos. Assim sendo, a tripartição dos poderes consiste em três funções estatais, quais sejam; a administrativa, a legislativa e a jurisdicional. Entretanto, esta tripartição não deve ser entendida com uma separação absoluta. Nesse sentido, bem expõe Marçal Justen Filho (2015: 105) que o sistema de separação de poderes cumpre melhor sua função na medida em que não haja um Poder absolutamente preponderante sobre os demais. A essência desse princípio está na separação harmônica e na conjugação de poderes, conforme preceitua o artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Caso existisse uma independência absoluta de poderes não seria possível o exercício das funções estatais pautadas na imparcialidade e na supremacia do interesse público, e, consequentemente, visando o bem da coletividade, posto que seria difícil promover uma

4.3 – Jurisprudência Muitos são os casos levados ao ente jurisdicional para que este promova uma análise da conduta administrativa e dê o posicionamento de legalidade ou ilegalidade do ato administrativo praticado em decorrência da discricionariedade. Dessa forma e, a título de exemplificação, serão apresentados alguns julgados que consubstanciam a matéria tratada no presente artigo. (STJ - REsp: 1350363 SC 2012/0221938-4, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 02/05/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/05/2013) AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROFESSOR UNIVERSITÁRIO. LICENÇA PARA TRATAR DE INTERESSE PARTICULAR. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. REVISÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. MANIFESTA ILEGALIDADE. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA. 1. Embora, em regra, não seja cabível ao Poder Judiciário examinar o mérito do ato administrativo discricionário - classificação na qual se enquadra o ato que aprecia pedido de licença de servidor para tratar de interesse particular -, não se pode excluir do magistrado a faculdade de análise dos motivos e da finalidade do ato, sempre que verificado abuso por parte do administrador.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

117

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


2. Diante de manifesta ilegalidade, não há falar em invasão do Poder Judiciário na esfera Administrativa, pois é de sua alçada o controle de qualquer ato abusivo, não se podendo admitir a permanência de comportamentos administrativos ilegais sob o pretexto de estarem acobertados pela discricionariedade administrativa.

do Estado, e retiraria da sanção qualquer potencial de ressocialização. A temática envolveria a violação de normas constitucionais, infraconstitucionais e internacionais. Dessa forma, caberia ao Judiciário intervir para que o conteúdo do sistema constitucional fosse assegurado a qualquer jurisdicionado, de acordo com o postulado da inafastabilidade da jurisdição. Os juízes seriam assegurados do poder geral de cautela mediante o qual lhes seria permitido conceder medidas atípicas, sempre que se mostrassem necessárias para assegurar a efetividade do direito buscado. No caso, os direitos fundamentais em discussão não seriam normas meramente programáticas, sequer se trataria de hipótese em que o Judiciário estaria ingressando indevidamente em campo reservado à Administração. Não haveria falar em indevida implementação de políticas públicas na seara carcerária, à luz da separação dos poderes. Ressalvou que não seria dado ao Judiciário intervir, de ofício, em todas as situações em que direitos fundamentais fossem ameaçados. Outrossim, não caberia ao magistrado agir sem que fosse provocado, transmudando-se em administrador público. O juiz só poderia intervir nas situações em que se evidenciasse um “não fazer” comissivo ou omissivo por parte das autoridades estatais que colocasse em risco, de maneira grave e iminente, os direitos dos jurisdicionados. RE 592581/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 13.8.2015. (RE-592581)

(STJ, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 04/06/2013, T5 - QUINTA TURMA) ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAMENTO DE CURSO SUPERIOR. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. NULIDADE. 1. A margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade, conferida à Administração Pública, na prática de atos discricionários, não a dispensa do dever de motivação. O ato administrativo que nega, limita ou afeta direitos ou interesses do administrado deve indicar, de forma explícita, clara e congruente, os motivos de fato e de direito em que está fundado (art. 50, I, e § 1º da Lei 9.784/99). Não atende a tal requisito a simples invocação da cláusula do interesse público ou a indicação genérica da causa do ato. (...) 3. Segurança parcialmente concedida, para declarar a nulidade do ato administrativo. (STJ - MS: 9944 DF 2004/0122461-0, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 25/05/2005, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO. Data de Publicação: DJ 13/06/2005 p. 157) AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. PORTADORES DO VÍRUS HIV. ISENÇÃO DE TARIFAS NOS TRANSPORTES URBANOS. VIOLAÇÃO AO ART. 2º DA MAGNA CARTA DE 1988. NÃO-OCORRÊNCIA. 1. É firme no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que o regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes (MS 23.452, da relatoria do ministro Celso de Mello) Merece destaque, ainda, recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 592581 no qual o Poder Judiciário determina que a Administração Pública promova reformas no sistema prisional visando à garantia do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o respeito à integridade física e moral dos detentos, nos termos do artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal. Neste sentido se manifestou a Colenda Corte: Obras emergenciais em presídios: reserva do possível e separação de poderes É lícito ao Poder Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da CF, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes. (...) O quadro revelaria desrespeito total ao postulado da dignidade da pessoa humana, em que haveria um processo de “coisificação” de presos, a indicar retrocesso relativamente à lógica jurídica atual. A sujeição de presos a penas a ultrapassar mera privação de liberdade prevista na lei e na sentença seria um ato ilegal

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Conforme entendimento jurisprudencial, o Poder Judiciário possui legitimidade de ingerir na apreciação dos atos administrativos discricionários que violam o preceito legal, sendo o responsável pela manutenção e garantia da ordem jurídica, garantindo assim a supremacia da ordem constitucional, e impondo à Administração Pública o dever de agir dentro dos limites legais estabelecidos, principalmente em detrimento do Princípio da Legalidade, ao qual está estritamente vinculada. 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto, concluímos que a interferência judicial na análise do ato discricionário que tenha sido praticado em desconformidade com os preceitos legais, não configura uma afronta à Constituição Federal, bem como à Tripartição de Poderes. Nesse sentido, deve o poder jurisdicional avaliar a legalidade da conduta e, para tanto, deverá analisar os motivos que levaram o agente administrativo a adotar a conduta praticada, tendo em vista a vinculação desta ao efeito alcançado. Nesta seara, urge salientar que, em determinados casos, tornase necessário que haja uma análise do mérito administrativo, como forma de se validar ou não o ato, haja vista que a análise da legalidade somente será possível através da verificação dos critérios de oportunidade e conveniência. Ainda assim, tecemos entendimento de que a ingerência judicial não será uma violação à tripartição de poderes, tendo em vista que esta interferência visa unicamente garantir a supremacia do texto constitucional, exigindo-se dos demais entes estatais o estrito cumprimento das normas legais ali elencadas. Destaca-se que no caso em debate exige-se da Administração Pública, em decorrência dos bens que tutela, total imparcialidade em suas funções, devendo, pois, exercê-las em benefício da coletividade, agindo em conformidade com os princípios legais aos quais se subordina, em especial ao Princípio da Legalidade, ao qual se impõe o zelo de suas atividades, agindo o Poder Judiciário, com a função constitucional que lhe é assegurada de garantir a ordem e a segurança jurídica.

118

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em outubro de 2015. BRASIL. Lei nº 4.717: promulgada em 29 de junho de 1965. Regula a Ação Popular. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4717.htm. Acesso em outubro de 2015 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. vol. 1. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo discricionário; prefácio de José Tarcízio de Almeida Melo. Belo Horizonte: Fórum, 2011. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27. ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2013. São Paulo: Atlas, 2014. FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. Informativo nº 794 – Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf. jus.br. Acesso em novembro de 2015. Jurisprudências disponíveis em: http://www.jusbrasil.com.br/. Acesso em outubro de 2015. MELO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. 4. tiragem. São Paulo; Malheiros Editores, 2000.

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

119

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A EFETIVIDADE DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAUDE E O PROGRAMA MAIS MÉDICOS Fabricio de Freitas Mourão Helt1 Ludmila Stigert2 RESUMO: Durante varias décadas verificamos um Estado inerte com a decadência da Saúde Publica brasileira. Assim, o presente artigo vem apresentar a efetividade do direito Fundamental à saúde para a criação do Programa Mais Médicos. Pretende-se mostrar que após o advento do Estado Democrático de Direito tal direito foi garantido pela inclusão na Constituição Federal do direito a vida e da dignidade da pessoa humana. Ainda, como esculpido na carta magna o dever de garantir a saúde é do Estado através de politicas positivas. Assim podemos verificar que o Programa Mais Médicos é uma ação positiva do Estado para efetivar o direito fundamental à saúde. ABSTRACT: For several decades we see an inert state with the decline of the Brazilian Public Health. Thus, this paper is presenting the effectiveness of Fundamental right to health for the creation of the Program More Doctors. It is intended to show that after the advent of democratic rule of law that right was guaranteed by the inclusion in the Constitution of the right to life and human dignity. Yet, as carved into the Magna Carta a duty to ensure the health of the state is through positive policies. So we can see that the More Doctors program is a positive action by the State to effect the fundamental right to health. PALAVRAS CHAVES: Direito à saúde; Programa Mais Médicos; direito fundamental; Estado Democrático de Direito. KEYWORDS: Right to Health; Program More Doctors; fundamental right; Democratic state. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2.O Direito fundamental á saúde na Constituição de 1988; 3. Sistema único de saúde (SUS); 4. Princípio da reserva do possível; 5. Princípio da proibição do retrocesso social; 6. Conclusão; 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO Ao longo de varias décadas a população vem acompanhando a decadência da saúde publica no Brasil. Está estampado em jornais e revistas que em todo o Brasil a população se encontra abandonada pelo Estado, espalhadas pelos corredores dos hospitais, sem atendimento médico, mortes ocorrem por falta de medicamentos, ausência de profissionais e equipamentos sucateados. Ao longo do século VIII, foi instituído um Estado liberal ou Estado mínimo, no qual se torna apenas um guardião da segurança nacional, arrecadação e diplomacia. As constituições desse Estado tinha a limitação delimitada pelo poder politico e a liberdade individual da cada cidadão em face ao Estado. Esse Estado não intervinha na questão social, vigorando ate o final da Segunda Guerra Mundial. Após a decadência do Estado Liberal, foi constituído o Estado Social, assim passa- se a intervenção ocorrer mais na sociedade, começa a intervenção na produção econômica, controlando o sistema de trabalho e das relações de emprego, a promoção e garantia de direitos fundamentais sociais, ou seja, aproximando-se da sociedade civil. Era um estado paternalista, retirando do cidadão a participação, e criando uma cultura de aceitação. (SARTURI, 2013) Logo após foi instituído o Estado Democrático de Direito em resposta a inércia em relação ao cidadão do Estado Liberal e o déficit demográfico do Estado Social. Por meio do respeito à esfera de liberdade individual propõe habilitar os cidadãos a exercitarem seus direitos de participação na comunidade jurídica, como coautores que interferem no processo de produção do direito. (SARTURI, 2013) Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, já instituída no Estado Democrático de Direito, ficou claro que seus elaboradores preocuparam com a dignidade da pessoa humana elencada à categoria de princípio fundamental da República esculpido no art. 1º, inc. III, da CF/88. Neste contexto, vários outros dispositivos constitucionais buscam efetivar tal fundamento, principalmente no que tange

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ao direito fundamental à saúde fica demonstrado à vida como sendo, já que no art. 196 aduz “saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Ainda prevê no artigo 198, III que o Sistema Único de Saúde (SUS) devera ter a participação dos cidadãos. Porém, apesar da Constituição garantir e viabilizar a efetivação do direito a saúde pode constatar que atualmente o SUS passa por uma decadência em todas as regiões do Brasil e sendo acompanhado por muitos anos pela inércia dos nossos políticos. A decadência da saúde publica no Brasil pode ser identificada por alguns fatores, os quais seriam a falta de estrutura nos postos de saúde e hospitais, a falta de material, equipamentos e medicamentos e a carência de profissionais. Para a melhoria da saúde publica no Brasil bem como para se construir uma política pública social e efetiva, o Programa mais médicos se abre a tal perspectiva. Nesse condão, o trabalho busca elucidar as contribuições desta ação afirmativa ressaltando os seus principais aspectos e consequências oriundas. 2 O DIREITO FUNDAMENTAL Á SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 O direito à saúde é um direito fundamental social e encontra-se atrelado aos demais existentes. Percebe-se a importância da sua viabilidade logo no art. 3ºque expressa os objetivos da República “buscar uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e por fim promoção do bem de todos” (BRASIL, 1988). A saúde está conceituada na Constituição Federal como direito de todos como dispõe seu artigo 6º c/c o art.196:

120

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988) Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988) Assim, percebe-se que o direito a saúde é um dever do Estado, sendo essencial para a vida com dignidade. Desta forma, Lenza (2008) alude que o ser humano é o destinatário destes direitos tutelados na atual Constituição Federal da República de 1988. Na atual Constituição foi inaugurada uma nova Seção que foi dada o nome de “DA SAUDE”, sendo englobado no ramo dos direitos sociais, mas como vários doutrinadores e citando a lição de José Afonso da Silva (2010): [...] os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. Diante do exposto, verifica-se que o direito social à saúde confunde-se com o direito a vida, direito fundamental, assim como nas lições de Dirley da Cunha Junior (2008) “O direito a saúde é tão fundamental, por estar mais diretamente ligado ao direito a vida, que nem precisava de reconhecimento explicito.” Logo, o direito à saúde e consequentemente à vida com dignidade vem positivado no ordenamento jurídico, e deve orientar o interprete e operador do direito como aduz Schwartz “A saúde é, senão o primeiro, um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável para a sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade. Assim a saúde se conecta ao direito à vida”. (SCHWARTZ,2001) Leciona Barroso que o art. 196 da Constituição da República, garantidor do direito à saúde, é norma definidora de direito subjetivo, ensejando a exigibilidade de prestações positivas do Estado ”Aqui, ao contrário da hipótese anterior, o dever jurídico a ser cumprido consiste em uma atuação efetiva, na entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. Na Constituição de 1988, são exemplos dessa espécie os direitos à proteção da saúde” (BARROSO, 2000). Assim sendo, a Carta Maior impõe o acesso à Saúde como prestação positiva do Estado, sendo tal direito emoldurado como de segunda dimensão, consoante a tradicional classificação das gerações de direitos do renomado jurista italiano Bobbio (2000)i. Ressalta-se que a Constituição protege a saúde preventiva e curativa, sendo então a saúde em sentido amplo, não restringindo ao tratamento ou a prevenção, sendo dever do Estado a sua concretização conforme aduz Carvalho (2008): O direito à saúde, de que trata o texto constitucional brasileiro, implica não apenas no oferecimento da medicina curativa, mas também na medicina preventiva, dependente, por sua vez, de uma política social e econômica adequadas. Assim, o direito à saúde compreende a saúde física e mental, iniciando pela medicina preventiva, esclarecendo e educando a população,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

higiene, saneamento básico, condições dignas de moradia, trabalho, lazer, alimentação saudável na qualidade necessária, campanha de vacinação dentre outras. 3 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) A melhoria da saúde publica brasileira tem inicio com a criação da lei 8080 de 1990, que cria o Sistema Único de Saúde (SUS). Seus princípios e sua amplitude ajudam que o SUS seja um dos maiores sistemas de serviços públicos de saúde publica mundial, assim como é desejo da constituição de 1988 faz valer os direitos sociais da população. Antigamente os atendimentos aos pacientes eram realizados por um sistema publico de saúde para quem tinha direita aos institutos de Assistência que eram centralizados no INAMPS, alguns pacientes não possuíam acesso a tal órgão, desta forma tinha um sistema paralelo vinculado aos estados e municípios para ser atendido. Em 1986 aconteceu a VIII Conferencia Nacional de Saude, acontecimento marcante na Saúde Publica nacional, resultando na criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) sistema esse que realizou um convenio entre o INAMPS e os governos estaduais e ainda foi formulado os alicerces para a seção DA SAUDE da Constituição de 1988. O art. 198 paragrafo único da Constituição Federal diz que: “O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes” Esse artigo tem grande importância, pois podemos verificar que com a implantação do SUS, o financiamento da saúde publica não fica somente a cargo da União como era na época do INAMPS e sim cabendo a todos os entes da administração direta. Analisando esse processo, temos que destacar que o SUS foi implantado para ter um caráter universal na cobertura da saúde, que anteriormente era realizado pelo INAMPS para seus beneficiados. Nos anos 80 o setor público de saúde era constituído pelo Ministério da Saúde (MS), pelas Secretarias estaduais e Municipais de saúde, mantendo uma relação difícil com o INAMPS. Com advento da lei que criou o SUS em 1990 o INAMPS passou a integrar o sistema do Ministério da Saúde. Ao acontecer essa relação o Ministério da Previdência começou também a fazer parte do financiamento do INAMPS, que inicialmente foi preservado e sendo alterado apenas o seu caráter de atendimento que se tornou universal. Sua extinção ocorreu somente em 1993 pelo art. 15 paragrafo único da lei 8689: “As funções, competências, atividades e atribuições do INAMPS serão absorvidos pelas instâncias federal, estadual e municipal gestoras do Sistema Único de Saúde, de acordo com as respectivas competências, critérios e demais disposições das Leis n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8. 142, de 28 de dezembro de 1990”. Verificamos que assim o INAMPS ainda ficou operando por 3 anos após a criação do SUS, permanecendo a logica de financiamento, mesmo assim não evitou que pouco antes de sua extinção, o Ministério da Previdência Social (MPAS) deixasse de repassar para o MS os recursos provenientes da previdência social, encerrando uma redução progressiva dos percentuais destinados pelo MPAS para o INAMPS, criou-se uma enorme defasagem na nova destinação constitucional e a disponibilidade orçamentária. Assim o SUS já tinha uma grave crise com falta de recursos para cumprir seus compromissos definidos na constituição e da lei 8080, tal fato só foi resolvido com a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) em 1996. Na lição de Junior (2008, p.700) Visando a execução das politicas publicas de saúde, a Consti-

121

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tuição instituiu um sistema único de saúde (SUS), que passou a compreender todas as ações e serviços públicos de saúde numa rede regionalizada e hierarquizada, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em casa esfera do governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e participação da comunidade. Podemos retirar da citação supracitada que o direito a saúde é composto por alguns princípios entre eles a universalidade e a igualdade de acesso aos serviços que a promovem, protegem e recuperam. - Universalidade – aduzimos desse principio que a prestação do serviço de saúde pelo SUS deve atingir qualquer cidadão. Assim todos os indivíduos tem o acesso aos serviços públicos de saúde. Desta forma, podemos dizer através desse principio que a SAUDE é direito de cidadania e dever dos Governos municipal, estadual e federal. - Equidade: são as ações e serviços de qualquer nível de complexidade que são assegurados a todos os cidadãos não importando sua moradia, sem privilégios e sem barreiras. Pelo SUS todo cidadão é igual e devera ser atendido conforme sua necessidade ate o limite que o SUS possa oferecer. - Integralidade: leque de ações possíveis para a promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos e assistência a doentes, implicando a sistematização do conjunto de práticas que vem sendo desenvolvidas para o enfrentamento dos problemas e o atendimento das necessidades de saúde. Ainda, além dos princípios supracitados o Sistema Único de Saúde é regido pelos princípios abaixo elencados: - Regionalização e Hierarquização – nesse principio se destaca a organização pela complexidade do atendimento e sua delimitação será feita pela região em que mora. Assim, o atendimento terá realizado pela unidade correspondente a sua região e de acordo com sua complexidade. Desta forma, ficam caracterizados os problemas de cada região, melhorando as ações de combates, e ainda garantindo atendimento ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade. - Resolubilidade – todo individuo que buscar o atendimento ou surgindo um problema de impacto coletivo sobre a saúde, esteja sempre disponível e capacitado para resolver em todos os níveis de competência. . - Descentralização – é a distribuição de responsabilidades em relação às ações e serviços entre os vários níveis de governo, a ideia é que quanto mais perto do fato a decisão for tomada, mais chance haverá de acerto. Assim, o que é abrangência de um município deve ser de responsabilidade do governo municipal; o que abrange um estado ou uma região estadual deve estar sob-responsabilidade do governo estadual, e, o que for de abrangência nacional será de responsabilidade federal. Deverá haver uma profunda redefinição das atribuições dos vários níveis de governo com um nítido reforço do poder municipal sobre a saúde – é o que se chama municipalização da saúde. Aos municípios cabe, portanto, a maior responsabilidade na promoção das ações de saúde diretamente voltadas aos seus cidadãos. - Participação dos cidadãos – garantida na constituição a participação da população, por suas entidades representativas, participando de todo o processo de formulação das politicas de saúde em todos os níveis. Utilizando um dos princípios que orienta o SUS a descentralização, a oferta de saúde passou a ser primária, secundária e terciária. No nível Primário estão as Unidades Básicas de Saúde ou Postos de Saúde, configurando como a porta de entrada do SUS. São marcados exames e consultas além da realização de procedimentos básicos como troca de curativos. Já no Secundário estão as Clinicas e Unidades de Pronto Aten-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dimento conhecidas como UPA, bem como os Hospitais Escolas. São realizados procedimentos de intervenção, tratamentos a casos crônicos e agudos de patologias. Por fim o terciário que são os hospitais de Grande Porte seja publico ou privado. São realizadas manobras mais invasivas e de maior risco à vida, bem como são realizadas condutas de manutenção dos sinais vitais, como suporte básico à vida. A porta de entrada do SUS deve ser preferencialmente as instituições pertencentes a atenção primaria (postos de saúde, unidades de Saúde da Família, etc.). Assim, a partir de primeiro atendimento será encaminhado para outros serviços de maior complexidade. 4 PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL A base teórica do principio da reserva do possível vem da Alemanha na década de 70, tal principio incide na garantia dos direitos já positivados no ordenamento jurídico, desde que existentes os recurso públicos correlatos. (GOMES, 2011) […] o princípio da reserva do possível regula a possibilidade e a extensão da atuação estatal no que se refere à efetivação de alguns direitos sociais e fundamentais, tais como o direito à saúde, condicionando a prestação do Estado à existência de recursos públicos disponíveis. (SILVA, 2011) A efetivação dos direitos sociais muitas vezes sofre restrições sendo o principio em analise o principal autor para que isso aconteça. Atualmente o Estado vem fundamentando a sua omissão em garantir a efetivação dos direito sociais e fundamentais por meio de comprovação de ausência de recurso orçamentários. Desta forma, ao longo de décadas foi construído uma jurisprudência no ordenamento jurídico pátrio para que o Estado não apenas declare a impossibilidade de garantir a efetivação do direito por falta de recursos, devendo o mesmo comprovar nos autos as provas. Ainda, o principio em destaque não se trata apenas sobre questões pertinentes aos recursos financeiros para a efetivação do direito a saúde, mas sim a razoabilidade da pretensão para que se consiga sua efetivação, Sustenta-se, por exemplo, inclusive entre nós, que a efetivação destes direitos fundamentais encontra-se na dependência da efetiva disponibilidade de recursos por parte do Estado, que, além disso, deve dispor do poder jurídico, isto é, da capacidade jurídica de dispor. Ressalta-se, outrossim, que constitui tarefa cometida precipuamente ao legislador ordinário a de decidir sobre a aplicação e destinação de recursos públicos, inclusive no que tange às prioridades na esfera das políticas públicas, com reflexos diretos na questão orçamentária, razão pela qual também se alega tratar-se de um problema eminentemente competencial. Para os que defendem esse ponto de vista, a outorga ao Poder Judiciário da função de concretizar os direitos sociais mesmo à revelia do legislador, implicaria afronta ao princípio da separação dos poderes e, por conseguinte, ao postulado do Estado de Direito. (SARLET, 2001) Na lição de Barroso (2009) sobre o principio da Reserva do Possível afirma que os recursos públicos não são suficientes para atender as demandas sociais, ficando a cargo do Estado orientar o orçamento levando em consideração suas prioridades. A verdade é que os recursos públicos são insuficientes para atender todas as necessidades sociais, impondo ao Estado a necessidade permanente de tomar decisões difíceis: investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. (BARROSO, 2009)

122

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Desta forma, conforme todo o exposto, a reserva do possível deve estar em sintonia com a dignidade da pessoa humana que não pode ser denegrida, com a alegação de ausência de previsão orçamentaria, podendo então violar os princípios fundamentais positivados na Constituição Federal.

e tendo como diretriz o art. 1 da lei federal 12.871/13: Art. 1o É instituído o Programa Mais Médicos, com a finalidade de formar recursos humanos na área médica para o Sistema Único de Saúde (SUS) e com os seguintes objetivos:

5 PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL O principio do retrocesso social tem seu nascimento na obra de Konrad Hesse de 1978, que criou a teoria da irreversibilidade. Tal teoria aduz que o Estado ficaria vinculado a cláusula do Estado Social esculpido na Constituição Alemã. Por meio dessa teoria, seria possível a declaração de inconstitucionalidade das leis que não cumprirem o principio em analise, mas parte da doutrina alemã não aceitou já que ficaria atrelada aos recursos econômicos. A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por Konrad Hesse, partiria da afirmação de que não se pode induzir o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas uma vez produzidas as regulações, uma vez realizada a conformação legal ou regulamentar deste princípio, as medidas regressivas afetadoras destas regulações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das conquistas sociais alcançadas. (NETTO, 2010) A jurisprudência europeia desenvolveu o principio do Retrocesso Social e assim virou cláusula geral de proteção dos direitos fundamentais. Nesse sentindo Mozzo 2010 aduz “na medida em que há uma obrigação de concretizar um direito, por exemplo, através da criação de normas infraconstitucionais, exsurge um dever anexo de não tomar medidas retrocessivas que atentem contra as conquistas já atingidas”. No mesmo sentido Sarlet (1998) entende que o princípio de proibição do retrocesso social possui íntima ligação com a noção de segurança jurídica, própria do Estado de Direito. Segundo seu ensinamento, não é possível falar em proteção à dignidade da pessoa humana em meio à instabilidade jurídica. De acordo com Professor Ingo Sarlet que é possível encontrarmos implícito na Constituição Federal Brasileira em decorrência do Estado Democrático de Direito, bem como em razão do Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, também pode ser extraído dos princípios da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º CF), bem como da segurança jurídica, da proteção da confiança, entre outros. Logo, se temos um mandamento dirigido ao Estado, como ocorre no art. 6 da CF, impondo um dever para que ocorra um progresso, seria razoável retirarmos do nosso entendimento que também não deva ocorrer um retrocesso. Desta forma, como já sabemos o direito de não retrocesso esta ligado apenas aos direitos fundamentais efetivamente concretizados, sendo assim apenas os direitos aos quais os cidadãos já tenham conquistados são objetos de não retrocesso, por outro lado, como dever impositivo ao Estado à elaboração de politicas públicas capazes de garantir todos os direitos previstos mesmo que ainda não concretizados. 6 CRIAÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA 621/2013 ( PROGRAMA MAIS MÉDICOS) O Programa Mais Médicos criado pela medida provisória 621/2013 e regulamentada em outubro de 2013 pela lei 12.871 causou uma euforia enorme pela forma que foi criada. Foi instituído com a finalidade de formar mais médicos para o Sistema Único de Saúde

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

I - diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde; II - fortalecer a prestação de serviços de atenção básica em saúde no País; III - aprimorar a formação médica no País e proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação; IV - ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira; V - fortalecer a política de educação permanente com a integração ensino- serviço, por meio da atuação das instituições de educação superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas pelos médicos; VI - promover a troca de conhecimentos e experiências entre profissionais da saúde brasileiros e médicos formados em instituições estrangeiras; VII - aperfeiçoar médicos para atuação nas políticas públicas de saúde do País e na organização e no funcionamento do SUS; e VIII - estimular a realização de pesquisas aplicadas ao SUS. A partir do artigo supracitado, podemos verificar que o Programa visa à melhoria do atendimento dos pacientes que utilizam o Sistema Único de Saude (SUS). Isso ocorre com a contratação de mais médicos para as regiões mais escassas ou onde sofrem com a falta desses profissionais. Para que ocorra a melhoria do atendimento dos pacientes o Programa vem sendo trabalhado em três eixos de combate. O primeiro eixo conta com o aprimoramento emergencial no qual ocorre o provimento de profissionais para atuarem na atuação básica de saúde. Essa contração inicialmente começou com a contração de médicos estrangeiros para áreas necessitada desses profissionais. Atualmente a forma de provimento desses profissionais foi alterada dando inicialmente chances para os médicos brasileiros, só abrindo vagas para os médicos estrangeiros caso não ocorra o preenchimento das vagas. O segundo eixo seria a Educação, aonde o programa vem fazendo uma reestruturação na formação do medico brasileiro. Esse eixo é de grande importância já que devera solucionar em longo prazo a falta de profissionais médicos no SUS. Assim, ira ocorrer um plano de expansão da graduação e da residência medica e também importantes alterações na formação dos médicos. O terceiro e ultimo eixo seria a infraestrutura, aonde o programa vem melhorando a atenção básica de saúde através de construções de novos Postos de Saúde e reforma dos já existentes.

123

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


5 CONCLUSÃO O contexto atual da saúde publica brasileira passa por uma imensa transformação no que se diz respeito às unidades básicas de saúde, principalmente no que foi abordado no presente artigo. Assim os princípios norteadores do SUS como a universalidade e a equidade, se encaixariam também na justificativa na criação do Programa em destaque, já que com a universalidade todo o cidadão teria acesso à saúde publica e conjugando com a equidade se enquadraria a prestação de igual forma para todos os cidadãos. Desta forma, com o englobamento de todos os princípios citados no artigo vislumbramos uma efetividade na criação do Programa Mais Médicos devido a em extrema relevância e urgência. Sendo que tal Programa não fica apenas na contração de médicos estrangeiros para trabalhar em postos de extrema relevância, e sim preocupa com todos os pilares da Saúde Publica, sendo eles os profissionais da saúde, a infraestrutura dos nossos centros de saúde e ainda modificando a grade curricular dos nossos cursos de medicina. Apesar, do Programa Mais Médicos ser um programa social do nosso Estado e ser um grande avanço na efetividade do direito à saúde temos que ressaltar que ainda será necessário um investimento maior em nossos hospitais de referências para casos mais complexos e não apenas nas unidades básicas. Com todo exposto concluímos que o programa em questão é uma forma de demonstrar a efetividade do direito à saúde, através da ação positiva do Estado demonstrando assim uma das características do Estado Democrático de Direito.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. SARTURI, Claudia Adriele. As mudanças dos paradigmas constitucionais modernos: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,as-mudancas-dos -paradigmas- constitucionais-modernos-estado-liberal-estado-social-e-estadodemocratico-de- direi,44121.html> Acessado em : 23 de Novembro de 2015 SILVA, Rodrigo Zouain da. O direito constitucional à saúde pública e a integralidade de assistência: colisão-ponderação entre o princípio da proibição do retrocesso social e o princípio da reserva do possível. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez 2011. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_ leitura&arti go_id=10912>. Acesso em nov 2015. SOUZA, Renilson Rehem. Construindo o SUS: a lógica do financiamento e o processo de divisão de responsabilidades entre as esferas de governo / Renilson Rehem de Souza. –2002.Disponível em:<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/construindo_sus.doc> Acesso em 22 de novembro de 2015. SARTURI, Claudia Adriele. As mudanças dos paradigmas constitucionais modernos: Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,as-mudancas-dos -paradigmas- constitucionais-modernos-estado-liberal-estado-social-e-estadodemocratico-de- direi,44121.html> Acessado em : 23 de Novembro de 2015

Notas de fim Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

6 REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado. 1998. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 novembro 2015. BRASIL. LEI Nº 12.871, DE 22 DE OUTUBRO DE 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Lei/ L12871.htm>. Acesso 05 Novembro 2015 BRASIL. Programa Mais Médicos. Disponível em: <http://www.maismedicos. gov.br/> Acessado em: 20 de Novembro de 2015. DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Bahia: Editora Podivm, 2008. DA SILVA AFONSO, Virgílio. Direitos Fundamentais – conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. FINKELMAN, J., org. Caminhos da saúde no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 328 p. ISBN 85-7541-017-2. Available from SciELO Books Disponível em: <http://static.scielo.org/scielobooks/sd/pdf/finkelman-9788575412848.pdf> Acesso em: 24 de Novembro de 2015 MELO, Sebastiao Luiz de. Brasil: um pais enfermo. 2014 Disponível em: <http://www.cfa.org.br/acoes-cfa/artigos/usuarios/brasil-um-pais-enfermo> Acesso em: 24 de Novembro de 2015 NETTO, Luísa Cristina Pinto e. O princípio de proibição de retrocesso social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. RIBEIRO, Patrícia Gomes. O direito à saúde e o principio da reserva do possível. Revista Eletrônica Jurídico-Institucional do Ministério Publico do Rio Grande do Norte. 2011. Disponível em: <http://www.mp.rn.gov.br/revistaeletronicamprn/ gerenciador/revistafiles/Patricia_Gom es.pdf> Acessado em: 24 de Novembro de 2015.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

124

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A (IN)IMPUTABILIDADE DOS PSICOPATAS Grazielle Gonçalves de Araújo1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 RESUMO: Com tantos casos em nossa sociedade de crimes bárbaros cometidos por seres considerados cruéis, considerados psicopatas, é necessário um estudo a respeito dos crimes cometidos por eles e o tratamento dado a eles pelo nosso ordenamento jurídico. ABSTRACT: With so many cases in our society of barbaric crimes committed by beings considered cruel, considered psychopaths, a study is needed about the crimes committed by them and the treatment given to them by our legal system. PALAVRAS-CHAVE: psicopatas, código penal, lei, psicopatia, pesquisas, crimes, ordenamento jurídico. Keywords: psychopaths, criminal law, law, psychopathy, research, crimes law. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O conceito de crime no direito penal; 2.1 conceito material; 2.2 conceito formal; 2.3 conceito analítico; 3 A culpabilidade no direito brasileiro; 3.1 elementos que integram a culpabilidade; 3.1.1 imputabilidade; 3.1.2 potencial consciência da ilicitude; 3.1.3 exigibilidade de conduta diversa; 3.2 semi-imputabilidade; 4 Sanções penais; 4.1 pena; 4.2 medida de segurança; 5 O conceito e os aspectos da psicopatia; 5.1 dos perigos da caracterização da psicopatia; 6 Psicopatas no direito penal brasileiro; 7 A deficiência da punição dos psicopatas no sistema penal brasileiro; 8 Considerações finais; Referências

1 INTRODUÇÃO Quando nos deparamos com o termo psicopata, logo nosso pensamento nos remete a pessoas frias, cruéis. Porém, muito se engana quem assim pensa, como também se engana aquele que acha que um psicopata pode ser facilmente identificado. Ao contrário, pode se dizer que um psicopata é difícil de detectar, tendo em vista a capacidade deles se adaptarem a qualquer meio social para poder atrair suas vítimas. Essa capacidade de adaptação e atração de vítimas mostra que um psicopata não tem empatia para com suas vítimas, por essa razão são capazes de matar, ameaçar, roubar, enganar, dentre outras condutas. Para se responsabilizar um psicopata temos que levar em conta se durante a prática das condutas criminosas ele perde noção da realidade, não levando em conta somente o fato de não sentirem remorso, pois essa é uma característica própria deles. A partir do momento que se leva em conta que a pessoa é psicopata e que ele é responsável pelos atos faz-se necessário entender qual o tratamento que o Estado dá ao psicopata analisando nosso ordenamento jurídico. Muitos dos pesquisadores nesse sentido tendem a entender que os psicopatas compreendem suas condutas criminosas, por isso devem ser submetidos a privação de liberdade. Por outro lado, há quem defenda que os psicopatas possuem transtornos mentais que os impossibilitam de entender as condutas criminosas as quais praticam, defendo que seja aplicada medida de segurança e dado o devido tratamento a eles. O presente trabalho vislumbra apresentar o psicopata como sen-

pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. Para entender melhor a concepção de crime, embora seu conceito seja artificial, se faz necessária a explanação de três conceitos ou concepções de crime definidos pela doutrina. 2.1 Conceito Material O conceito material do crime, pode ser classificado como todo comportamento humano que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal. Trata-se de conceito que busca traduzir a essência de crime. Pode se conceituar também como sendo a concepção da sociedade sobre o que pode e deve ser proibido, mediante a aplicação de sanção penal. 2.2 Conceito Formal Nesse conceito, o crime corresponde a violação da lei penal. Em outras palavras, corresponde a relação entre o fato e a norma penal incriminadora. É a concepção do direito acerca do delito, constituindo a conduta proibida por lei, sob ameaça de aplicação de pena, numa visão legislativa do fenômeno. 2.3 Conceito Analítico É a concepção da ciência do direito, que não difere, na essência,

do agente de conduta delituosa que compreende o que faz, que não demonstra arrependimento, mas que privá-lo de liberdade e colocá-lo com demais presos podem incentivá-los a prática de conduta criminosa bem como aplicar somente a medida de segurança não se torna eficaz, devendo os psicopatas serem submetidos a tratamento diferenciado e favorável para punição e ao mesmo tempo para recuperá-los.

do conceito formal. Na realidade, é o conceito formal fragmentado em elementos que melhor propiciam o entendimento da sua abrangência. Se for adotada a concepção bipartida defendida por Damásio de Jesus, Julio Mirabete e Fernando Capez, crime é fato típico e antijurídico. Já se for adotada a concepção tripartida, defendida pela doutrina majoritária, crime é fato típico, antijurídico e culpável.

2 O CONCEITO DE CRIME NO DIREITO PENAL A Lei de Introdução ao Código Penal, em seu artigo 1°, define crime como: Art 1º - Considera-se crime a infração penal que a lei comina

3 A CULPABILIDADE NO DIREITO BRASILEIRO A culpabilidade trata-se de pressuposto de aplicação da pena. Sendo assim, o agente não sendo culpável é absolutamente inviável a aplicação de pena.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

125

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Rogério Greco (2010, p.85) em sua obra “Curso de Direito Penal”3, entende que a culpabilidade diz respeito ao juízo de censura, ao juízo de reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente, que nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo. 3.1 Elementos Que Integram a Culpabilidade Podemos citar como elementos da culpabilidade a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Os elementos são cumulativos, se um deles não estiver presente não se poderá impor pena ao agente.

tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Sendo assim, somente a embriaguez involuntária e completa retira a capacidade do agente de querer e entender, tornando-o inimputável. Se a embriaguez for incompleta, o agente será penalmente responsabilizado, porém, como possibilidade de pena reduzida. Se o agente voluntariamente ingerir álcool, ainda que no momento da infração não tenha capacidade de entendimento e determinação, será responsabilizado, pois, conforme dispõe o artigo 28 do CP, apenas se a embriaguez for involuntária e completa, o agente ficará isento de pena.

3.1.1 Imputabilidade

Entende-se por imputabilidade penal a capacidade que o agente possui de ser responsabilizado penalmente pelos seus atos. No campo do Direito, há de saber se, no momento que ocorreu o crime o sujeito possuía condições de entender o caráter ilícito do fato para ser apontado como autor do crime e ser submetido a punição penal prevista em lei. Em sua obra, Manual de Direito Penal, Guilherme de Souza Nucci (2014, p.241) define a imputabilidade penal como sendo “conjunto das condições pessoais, envolvendo inteligência e vontade, que permite ao agente ter entendimento do caráter ilícito do fato, comportando-se de acordo com esse conhecimento”4. São causas de excludentes da imputabilidade: a inimputabilidade; a menoridade e a embriaguez completa, decorrente de caso fortuito ou força maior. A inimputabilidade encontra-se prevista no artigo 26 do Código Penal que dispõe: Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Vale ressaltar que não basta apenas que o agente possua doença mental, é indispensável que, em razão dela, o agente no momento da ação ou omissão seja inteiramente incapaz de entender e querer o resultado do fato ilícito. A segunda causa excludente da imputabilidade é a menoridade, que tem previsão no artigo 27 do Código Penal, que assim se lê: Art. 27 – Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos as normas estabelecidas na legislação especial. Sendo assim, o menor de 18 anos não pode ser penalmente punido. Ao redigir a lei, o legislador adotou o critério biológico, pois não há de se levar em consideração se o adolescente entendia ou não entendia o caráter ilícito do fato. Conforme destacado no artigo 27, os menores de 18 anos ficarão sujeitos a normas estabelecidas na legislação especial. Neste sentido, de acordo com o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o adolescente que praticar crime ou contravenção penal terá cometido ato infracional a ser apurado pela Vara da Infância e da Juventude. A terceira causa de excludente da imputabilidade é a embriaguez completa, decorrente de caso fortuito ou força maior, mencionada no artigo 28, parágrafo 1° do Código Penal, que traz em seu texto: Art. 28 – Não excluem a imputabilidade penal: (...) §1° - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, no

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

3.1.2 Potencial Consciência da Ilicitude

No Direito Penal Brasileiro, a única causa excludente da potencial consciência da ilicitude é o erro de proibição, que possui previsão legal no artigo 21 do Código Penal que aponta: Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. A depender das condições socioculturais do agente, poderá ele, de fato, desconhecer que sua conduta é errada, profana, contraria as regras usuais da sociedade. Nesse caso, se faltar potencial consciência da ilicitude, o agente ficará isento de pena. 3.1.3 Exigibilidade de Conduta Diversa

Podemos apontar duas situações em que é inexigível conduta diversa da praticada pelo agente, a saber: a coação moral irresistível e a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal. Ocorre a coação moral irresistível quando o agente (podendo ser um familiar ou alguém muito próximo) for vítima de coação moral irresistível não lhe sendo exigida conduta diversa da praticada. Já a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal, para ocorrer, é imprescindível a existência de uma relação de subordinação entre o superior hierárquico e o subordinado. Sendo assim, como espera deste certa obediência ao seu superior, se receber ordem hierárquica e cumpri-la ficará isento de pena caso sua execução resulte na prática de um crime. 3.2 Semi-Imputabilidade A semi-imputabilidade ou responsabilidade diminuída é definida por Fernando Capez5 (2011, p.346) como: É a perda de parte da capacidade de entendimento e autodeterminação, em razão de doença mental ou de desenvolvimento incompleto ou retardado. Alcança os indivíduos em que as perturbações psíquicas tornam menor o poder de autodeterminação e mais fraca a resistência interior em relação à prática do crime. Na verdade, o agente é imputável e responsável por ter alguma noção do que faz, mas sua responsabilidade é reduzida em virtude de ter agido com culpabilidade diminuída em consequência das suas condições pessoais. Em relação a consequência da semi-imputabilidade Capez ainda dispõe: Não exclui a imputabilidade, de modo que o agente será condenado pelo fato típico e ilícito que cometeu. Constatada a redução na capacidade de compreensão ou vontade, o juiz terá duas opções: reduzir a pena de 1/3 a 2/3 ou impor medida de segurança (mesmo aí a sentença continuará sendo condenatória).

126

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


camente para indivíduos que estão sem socializar, e cujos padrões de conduta lhes levam a contínuos conflitos com a sociedade. São incapazes de uma lealdade relevante com indivíduos, grupos e valores sociais. São extremamente egoístas, insensíveis, irresponsáveis, impulsivos e incapazes de se sentirem culpados e de aprender algo com a experiência do castigo. Seu nível de tolerância de frustrações é baixo. Inclinam-se a culpar os outros ou a justificar de modo plausível sua própria conduta.

Portanto, a semi-imputabilidade não exclui a capacidade de entendimento, porém se for constatada redução na capacidade de compreender a gravidade da conduta praticada ou na vontade do agente o juiz poderá reduzir a pena ou aplicar a medida de segurança. 4 SANÇÕES PENAIS Sanção é a consequência jurídica de uma conduta que viola o ordenamento jurídico, ou seja, é imposta quando há violação de uma norma penal incriminadora. O ordenamento jurídico brasileiro prevê somente duas formas de sanção penal: as penas e as medidas de segurança. 4.1 Pena Para Fernando Capez (2011, p.384) pena é conceituada como: sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinquente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida a coletividade. De acordo com o artigo 32 do Código Penal, as penas são divididas em penas privativas de liberdade, restritivas de direito e multa. Sendo assim, as penas só serão aplicadas quando observados o juízo de reprovação, estando relacionada a culpabilidade. Quando não configurada a culpabilidade do agente, não haverá a aplicação da pena. 4.2 Medida de Segurança As medidas de segurança têm uma finalidade diversa da pena, pois se destinam ao tratamento ou cura do agente que praticou conduta delituosa. O artigo 96 do Código penal assim dispõe sobre as medidas de segurança: Art. 96 As medidas de segurança são: I- internação em hospital de custodia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II- sujeição a tratamento ambulatorial. Conforme disposto no artigo supracitado as normas de segurança podem iniciar-se em internação ou tratamento ambulatorial, por isso podem ser divididas em medidas de segurança detentivas (internação) e restritivas (tratamento ambulatorial). Ainda neste sentido o artigo 97 do referido diploma legal aponta: Art. 97 Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (artigo 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. Portanto, a medida de segurança a ser aplicada dependera do caso concreto, tendo finalidade exclusivamente preventiva, no sentido de evitar que o autor de uma infração penal que tenha demonstrado periculosidade volte a delinquir. 5 O CONCEITO E OS ASPECTOS DA PSICOPATIA A Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association) atribuiu psicopatia como distúrbio da personalidade sociopata ou reação antissocial, elencada e definida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical of Mental Disorders – DSM), onde se lê: A expressão [personalidade antissocial] é reservada basi-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Ainda neste sentido, segundo a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, um diagnóstico clinico da psicopatia pode ser definido como sendo: Personalidade dissocial: transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais, falta de empatia para com os outros. Há um desvio considerável entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas. O comportamento não é facilmente modificado pelas experiências adversas, inclusive pelas punições. Existe uma baixa tolerância à frustração e um baixo limiar de descarga da agressividade, inclusive da violência. Existe uma tendência a culpar os outros a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade6 Há de se ressaltar que a psicopatia não se restringe apenas à esfera dos crimes contra integridade física de alguém, mas também se desenvolve no campo da criminalidade financeira, ou de ludibrio da fé pública para fins de um enriquecimento ilícito. Como dito anteriormente, muitas pessoas relacionam o indivíduo psicopata como um criminoso de alta periculosidade, o qual você consegue identificar só pela aparência. Entretanto são indivíduos de difícil identificação, pois podem ser qualquer um que esteja em convívio social. Não se tratando apenas daquele autor de homicídios perversos e cruéis aos olhos da sociedade. Podem ser classificados em níveis variados de gravidade: leve, moderado e grave. Os que se encaixam em leves, são aqueles que praticam pequenos golpes, enganando as pessoas, visando lucros financeiros. Já os moderados e graves, têm-se unida todas as características do leve acrescentando-se ainda métodos mais cruéis, estes, se necessário vão matar uma pessoa de forma brutal e perversa, buscando alcançar seus interesses. 5.1 Dos Perigos da Caracterização da Psicopatia Atualmente, há diversas discussões em torno do diagnóstico de um psicopata. Para caracterizar um psicopata, não se faz necessário apenas notar a presença de critérios expostos em escalas do tipo PCL-R (Hare Psychopathy Checklist Revisited) – como por exemplo, se o agente é esperto, sedutor, insensível, impulsivo ou se apresenta falta de empatia – uma vez que promoveria um julgamento morais que acabariam substituindo valorações de fatos por juízos de valores indemonstráveis, conforme narra Salo de Carvalho em sua obra “Mentes Perigosas na Academia: sobre plágios, responsabilidades, diagnósticos e estigmas”. Argumentos utilizados com base apenas em características listadas como sendo próprias de um psicopata podem influenciar todo o processo, pois usar como prova da psicopatia apenas uma análise superficial do agente é querer tornar válida uma prova ilícita com propósito de manipular todo o trâmite judicial, ofendendo os princípios da legalidade e da secularização do direito que constitui na separação entre direito e moral. Esse tipo de prova remete aos tempos do sistema penal inquisi-

127

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tivo, onde para se comprovar um fato, utiliza-se de meios ardilosos e fraudulentos, nos fazendo regredir aos tempos dos primórdios, onde não existia contraditório e ampla defesa e sequer o princípio do devido processo legal. Nesse tipo de prova, esquece de levar em conta a história de vida do agente, substituindo a identidade deste pelo rótulo de “criminoso, perigoso”, assim o agente é anulado em sua essência e passa a ser encarado como sujeito do rótulo por ele recebido, não contribuindo em nada para a sua devida recuperação. Não levar em conta as peculiaridades de cada um dos agentes infratores é uma negligencia que não deve ser aceitada, sendo ainda uma ofensa ao princípio norteador do Direito Brasileiro que é a dignidade da pessoa humana. Além disso, estudar as condições especiais do agente suspeito de ser psicopata é o mais importante ainda mais quando o objetivo de se aplicar a pena é a recuperação do infrator. 6 PSICOPATAS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO No tocante a responsabilização do psicopata na esfera do Direito Penal, há de mencionar que a capacidade de culpabilidade dos psicopatas ainda não é um tema pacificado. O Código Penal, não disciplina a matéria em específico, porém, deixa margens para sua interpretação e resolução. Atualmente, as Cortes estaduais têm condenado os agentes classificados como psicopatas, aplicando a estes o tratamento de semi-imputáveis, reduzindo a pena de acordo com o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal, o que pode ser observado no seguinte julgado, onde o relator alega que sendo o agente semi-imputável devido a sua personalidade, não se aplica a medida de segurança. PENAL. PROCESSO PENAL. FURTO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. SEMI-IMPUTABILIDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA. CONCURSO ENTRE AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA E ATENUANTE DA CONFISSÃO. PREPONDERÂNCIA DA REINCIDÊNCIA. MEDIDA DE SEGURANÇA SUBSTITUTIVA COM PRAZO INDETERMINADO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. A SEMI-IMPUTABILIDADE É CAUSA DE DIMINUIÇÃO E NÃO DE ISENÇÃO DE PENA, PELO QUE DESCABE A SENTENÇA ABSOLUTÓRIA IMPRÓPRIA, RESTRITA TÃO SOMENTE AOS CASOS DE INIMPUTABILIDADE. 2. HAVENDO TRÊS CONDENAÇÕES PENAIS DEFINITIVAS ANTERIORES AO FATO EM JULGAMENTO, É VIÁVEL A EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE EM RAZÃO DOS MAUS ANTECEDENTES E PERSONALIDADE DO AGENTE, E AINDA O AGRAVAMENTO NA SEGUNDA FASE PELA REINCIDÊNCIA. 3. A AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA PREPONDERA SOBRE A ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. 4. A MEDIDA DE SEGURANÇA SUBSTITUTIVA DE QUE CUIDA O ART. 98 DO CP TEM POR PRINCIPAL ESCOPO PROMOVER A SAÚDE DO CONDENADO POR MEIO DA ADOÇÃO DO TRATAMENTO DE SAÚDE ADEQUADO À CONDIÇÃO MENTAL DO RÉU, RAZÃO PELA QUAL A SUBSTITUIÇÃO NÃO SE LASTREIA EM JUÍZO DE PERICULOSIDADE DO AGENTE, NÃO PODENDO VIGORAR POR TEMPO INDETERMINADO. 5. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-DF, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 20/03/2014, 3ª Turma Criminal) No voto do relator ele expõe: “Sendo o agente inimputável (caput do art. 26 do CP), o juiz o absolve por intermédio de ato judicial denominado sentença absolutória imprópria, e determina sua internação ou submissão a

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tratamento ambulatorial. Contudo, o laudo de exame psiquiátrico (fls. 252-254) concluiu ser o apelante semi-imputável, porque ele “tinha preservada sua capacidade de entendimento em relação ao caráter criminoso de sua conduta, mas reduzida capacidade de se autodeterminar em relação a esse entendimento” Portanto, os tribunais tendem a tratar os psicopatas como sendo semi- imputáveis, devido a capacidade de entendimento que possuem perante as práticas das condutas criminosas por eles praticadas. 7 A DEFICIÊNCIA DA PUNIÇÃO DOS PSICOPATAS NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO Conforme já abordado, o artigo 26 em seu caput dispõe: Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Sendo assim, somente pode ser considerado inimputável quem, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não possuir, no momento da ação ou omissão, plena capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta ou determina-se de acordo com esse entendimento. Para que fosse reconhecido a inimputabilidade, a psicopatia deveria ser tratada como doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado. E mesmo que verificado algum desses transtornos, ainda seria necessário analisar se no momento da ação ou omissão, esse transtorno que o agente possui seria suficiente para retirar deste a capacidade de entender e querer realizar a conduta. A partir então, desta concepção legal de inimputabilidade, pode-se construir um entendimento de que os psicopatas não se enquadram neste quesito, uma vez que a psicopatia não é considerada uma doença mental e sim como um distúrbio da personalidade sociopata ou reação antissocial ou ainda como detentores de déficits interpessoais e afetivos que os impedem de interagir por longo prazo com outras pessoas conforme já explanado. Além do mais, pelo fato dos psicopatas serem incapazes de controlar os seus estímulos a pratica criminosa, não tendo a sua culpabilidade excluída, os doutrinadores acabam incluindo os psicopatas como sendo semi-imputáveis. Porém, colocar os psicopatas com outros presos, pode ser uma péssima ideia ao pensar na hipótese de que estes podem ser influenciados a praticar cada vez mais condutas delituosas, não se recuperando mais. Portanto, tratar o psicopata como imputável colocando junto com os demais sujeitos criminosos pode comprometer a paz e a ordem pública, já que estão sempre na iminência de influências e práticas delituosas. Neste sentido, os psicopatas deveriam ser tratados pelo estado de forma atenta e adequado, uma vez que é obrigação deste assistir e proteger a pessoa do psicopata, conforme julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de número APC 20100110722117, que assim elucida: DIREITO CONSTITUCIONAL. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE PORTADOR DETRANSTORNO MENTAL DEVER DO ESTADO. I. O Decreto nº 24.559/1934, que dispõe sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas, toxicômanos etc,admite a internação desses enfermos por solicitação de seu cônjuge, genitor, filho ou parente até 4º, ou qualquer outro interessado. II. Os laudos médicos atestam que o réu é portador de doença mental e síndrome de dependência a

128

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


múltiplas drogas, sendo necessária a sua internação em clínica adequada ao seu quadro de saúde. III.Cabe ao Distrito Federal, por meio da rede pública de saúde, auxiliar todos aqueles que necessitam de tratamento, disponibilizando profissionais, equipamentos, hospitais, materiais e remédios prescritos, sendo dever do Estado colocar à disposição os meios necessários, mormente se para prolongar e qualificar a vida do paciente. IV. Deu-se provimento ao recurso. (TJ-DF - APC: 20100110722117 , Relator: JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 22/07/2015, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 04/08/2015 . Pág.: 296) Mesmo diante da obrigatoriedade de auxílio que o Estado deve prestar ao portador de psicopatia, ainda não se tem um tratamento adequado para eles, pois os métodos punitivos que temos atualmente vem se mostrando inócuos, pois deveriam levar em conta a situação particular de cada agente classificado como portador de psicopatia. Para solucionar o problema deveria haver a criação de prisões especificamente destinadas a psicopatas. Além do mais, essa prisão deveria receber uma atenção especial do governo, com auxílio médico e psicológico para um acompanhamento para que assim, possa realmente haver uma tentativa de ressocialização do agente. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por base do exposto no presente artigo, cumpre salientar que atualmente não temos uma medida eficaz no tratamento aos psicopatas. Embora, sabemos que eles possuem plena capacidade de entendimento das condutas por eles praticadas, não pode alegar que por isso são passíveis de serem acolhidos em estabelecimento prisionais comuns. Os psicopatas precisam de atenção especial do governo, pois uma vez investidos em celas com demais presos pode ser considerado um risco, uma vez com o poder de liderança que possuem, poderiam certamente incitar a desordem e incentivar a pratica de condutas delituosas no estabelecimento prisional.

psicológica no âmbito judicial. Psico-USF, Ano 2006. v. 11, n. 2, mês jul/dez, p. 265-266. Disponível em: <http://pepsic.bvs- psi.org.br/pdf/psicousf/v11n2/ v11n2a15.pdf>. Acesso em:10/11/2015. CID - F60-F69 Transtornos da personalidade e do comportamento do adulto: disponível em: <http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/f60_f69. htm>.Acesso em 05/11/2015 CASTRO, Sérgio Murilo Fonseca Marques. A Psicopatia e a (In)imputabilidade penal. Web Artigos. 12 de junho de 2012. Disponível em: < http://www.dpu.gov. br/index.php?option=com_content&view=article&id=8564:artigo-a-psicopatia -e-a-in-imputabilidade-penal&catid=34&Itemid=223> Acesso em 10/11/2015 GURGEL, Rafael Gomes Silva. Medicina legal: a precariedade da psiquiatria forense no âmbito penal. Disponível em <http://www.unipac.br/bb/tcc/tcc-fe3be754dc83ec95db35385b33511a1a.pdf> Acesso em 05/11/2015 MOURA, Juliana Atanai Gonçalves Moura. A Imputabilidade Penal Dos Psicopatas A Luz Do Código Penal Brasileiro. Disponível em: < http://www.uel. br/revistas/uel/index.php/seminasoc/article/view/9526/12656> Acesso em: 01/11/2015 WAGNER, Dalila. Psicopatas Homicidas e sua Punibilidade no Atual Sistema Penal Brasileiro. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 30 de out. de 2008. Disponível em:<http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/5918/Psicopatas_ Homicidas_e_su a_Punibilidade_no_Atual_Sistema_Penal_Brasileiro> Acesso em: 10/11/2015

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

Sabemos que entre suas características está a total ausência de aprendizado com a punição, razão pela qual a simples prisão não iria cumprir a sua finalidade de reeducação, ou seja, a prisão não vai recuperá-los e inseri-los novamente na sociedade de modo que estes não venham a cometer novos crimes, razão pela qual se faz necessário um tratamento diferenciado, com uma política criminal voltada aos psicopatas.

REFERÊNCIAS CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1, parte geral. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Direito Penal: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 2. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. NUCCI, Gustavo Souza. Manual de Direito Penal. 10ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. Lei nº 2.848, de 07/12/1940. Código Penal brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/Del2848compilado.htm> Acesso em 05/11/2015 Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal Brasileiro. Brasília, DF, Senado, 1941. Disponível em:<http://www.planalto.gov. br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 05/11/2015 AMBIEL, Rodolfo Augusto Matteo. Diagnóstico de psicopatia: a avaliação

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

129

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Direito e Política: O Sistema De Financiamento De Campanhas Brasileiro Guilherme Antônio Marinho1 Tatiana Maria Oliveira Prates Motta2 RESUMO: O Direito Eleitoral constitui ramo independente do Direito. Dentre os seus muitos institutos este trabalho se concentrará no sistema de financiamento de campanhas eleitorais no intuito de melhor compreensão e difusão deste importante conhecimento e contribuir com a contextualização de muitas ações dos governantes e legisladores aparentemente em desacordo com a vontade da população que os elegeu. Assim, o conhecimento dos mecanismos que norteiam o financiamento dos gastos feitos durante o período eleitoral é de suma importância para uma maior conscientização política. ABSTRACT: The electoral law constitutes an independent branch of Law. Among its many institutes this article will focus on election financing system in order to a great understanding of development and to disseminate this important knowledge and to contribute with the contextualization of many governors and legislators actions apparently in disagreement with the will of the people who elected them. The knowledge of the mechanisms that rules the financing of expenditures made during the election period has a great importance awareness policy. Palavras-chave: Direito eleitoral, financiamento de campanhas eleitorais, política. Keywords:Electoral law; election financing system; policy SUMÁRIO: Introdução; 2. Breve Histórico Normativo; 3. Evolução dos Gastos Eleitorais; 4.Atual Regulamentação Sobre o Financiamento de Campanha Eleitoral; 4.1 Fundo Partidário Nacional; 4.2 Compensações Fiscais; 4.3 Renúncias Fiscais; 5. Do Financiamento Privado; 5.1 Das Fontes Vedadas; 5.2 Do Objeto da Doação; 6. Dos Limites dos Gastos Eleitorais; 7. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4650-DF; 7.1 Principais Argumentos da Exordial.; 7.1.2 Da violação ao princípio da igualdade.; 7.1.3 Da violação ao princípio democrático; 7.1.4 Da violação ao princípio Republicano; 7.2 Os Votos Vencidos; 7.2.1 Voto Ministro Celso de Melo; 7.2.2 Voto do Ministro Gilmar Mendes; 7.2.3 Voto do Ministro Teori Zavascki.; 8.Conclusão; Referências.

1. Introdução A política é estudada e reconhecida desde tempos longínquos. Grandes nomes como Sócrates, Platão, Aristóteles, Maquiavel e Rousseau trouxeram inúmeras contribuições para este ramo de estudos. Com o desenvolvimento das sociedades ao longo do tempo a política se adaptou e se adapta aos diversos modos de organização social. Desde de as tribos onde tem-se a figura do Pajé e do Cacique por exemplo, passando pela época Monarca, com os reis, duques, até sua atual conjectura global onde temos para além dos governos soberanos a Organização das Nações Unidas na busca da construção de uma Global. Ao analisarmos essa ciência sob a ótica brasileira e conjugando -a com os estudos e estruturas do Direito temos uma perspectiva pouco explorada. Embora tenhamos o ramo independente do Direito Eleitoral e talvez graças a uma cultura pouco politizada como a brasileira poucos estudiosos do direito e principalmente poucos cidadãos estão cientes do funcionamento jurídico ou prático do processo eleitoral. Como o processo eleitoral engloba uma complexa gama de fases de consecução e tendo em vista os constantes escândalos políticos envolvendo parlamentares e chefes do executivo em crimes como corrupção, formação de quadrilha e improbidade administrativa, por exemplo, faz-se necessário uma maior elucidação quanto a este complexo sistema chamado eleições. Dada essa complexidade este trabalho se restringe à análise de um dos componentes do processo eleitoral o financiamento de campanhas eleitorais. Partindo de uma análise histórica das disposições normativas que disciplinaram o sistema de financiamento de campanhas eleitorais elucidar-se-á os leitores quanto ao significado de determinados jargões utilizados e principalmente de como se dá nos dias atuais o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

financiamento de campanha. Por fim e após uma abordagem mais didática e conceitual traremos uma breve análise de uma das mais recentes mudanças no Direito Eleitoral que foi o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4650-DF que por 8 votos a 3 declarou inconstitucional a doação feita por pessoas jurídicas a partidos políticos e a candidatos, reverberando em um novo paradigma que será posto à prova já nas eleições de 2016. Pela natureza acadêmica deste trabalho e na busca do aperfeiçoamento contínuo não foram mencionados quaisquer casos, mesmo os já julgados, que envolvem o desvio do “dever ser” imposto pelas normas que conforme se verá regulamentam o tema. 2. Breve Histórico Normativo As experiências normativas acerca do financiamento de campanhas eleitorais nos faz deslocar no tempo e no espaço, todavia vale notar no cerne de todas as mudanças realizadas um fator comum a proteção do sistema político nacional contra as possibilidades de domínio pelo poder econômico, este que de época em época se apresentou sobre diferentes fisionomias. Por essa mutabilidade do poder econômico que ora esta privilegiado em uma forma que em outra a sequência de alterações normativas estão diretamente ligadas aos ápices de influência. Em 1945, por exemplo, foi proibido o financiamento oriundo de empresas estrangeiras, proibição que se mantêm até hoje, isso porque como a economia mundial, à época, passava pelos primórdios do que hoje conhecemos como mercado globalizado a influência das multinacionais no cenário político poderia causar efeitos nefastos. Adiantando os relógios vamos passar agora pelos tenebrosos

130

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tempos da Ditadura Militar que durou de 1964 à 1985. No concernente ao tema do trabalho no período abordado não houve quaisquer eleições e embora o Código Eleitoral Lei 4737 tenha sido publicado em 1965 hoje permanece com poucas reminiscências de seu texto original. De outra forma não poderia ser haja vista que durante este período de ditadura nosso sistema político era diametralmente oposto ao atual sistema democrático que prazerosamente vivemos. Ainda nessa “época de chumbo” foi aprovada a primeira Lei Orgânica dos Partidos Políticos (totalmente revogada pela lei 9096/95) que previa em seu artigo 56 as fontes vedadas ao aferimento de recursos. Eram elas: a procedente de pessoa ou entidade estrangeira, autoridades ou órgãos públicos, sociedade de economia mista ou empresas concessionárias de serviço público e de empresa privada de finalidade lucrativa. Como o fim deste regime em 1985 e o gradual retorno à democracia a volta do pluripartidarismo, que havia sido engessado pelo golpe militar, trouxe nova realidade política, posto que a competitividade pelo voto ficou largamente mais acirrada. Um meio de comunicação foi preponderante para o sucesso eleitoral nesse novo paradigma pluripartidário, a televisão. Embora hoje conserve alguma influência certamente não se compara à que tinha no final da década de 80, quando o aparelho televisor se tornou popular e manteve durante toda a década de 90, só sofrendo uma perceptível alteração em seu domínio de massas a partir do final da década de 90 e início do séc. XXI com a popularização da informática e da internet. Prova deste poder de influência da mídia televisiva foram as eleições presidenciais de 1989 em que sagrou-se vencedor Fernando Collor de Mello, mesmo Fernando que sofreria anos depois um processo de Impeachment provocado também pela devassidão ética quanto as fontes dos recursos captados para sua campanha eleitoral. Neste episódio segundo a própria comissão responsável pela apuração dos fatos que resultaram no impeachment a legislação acerca do financiamento partidário e de campanhas era “hipócrita”. Houve então uma profunda mudança nas fontes financeiras dos partidos e na organização partidária, restando superada a proibição do financiamento por pessoas jurídicas e passando-se a adotar um sistema misto de financiamento. A legislação que passou a vigorar deste de então bem como maiores explicações a cerca deste sistema misto de financiamento serão dadas nos tópicos seguintes. 3. Evolução dos Gastos Eleitorais Os gastos eleitorais englobam todos os tipos de gastos feitos pelo candidato ou ainda pelo partido, de acordo com Pinto (2010, p. 303), “Gastos, para fins eleitorais, são todas as despesas relacionadas com a campanha, inclusive, as multas aplicadas até a data das eleições aos partidos e candidatos por infração à legislação eleitoral.” Dada esta conceituação passemos a acompanhar factualmente a evolução destes gastos. Os melhores dados acerca dos gastos foram coletados a partir de 2002, e por eles notamos um crescimento absurdo nos gastos se compararmos os valores gastos nas eleições de 2002 com os dados dos anos seguintes. Conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral os gastos totais, ou seja, de todos os candidatos e partidos de 2002 totalizou R$ 827.758.454 (oitocentos e vinte e sete milhões setecentos e cinquenta e oito mil quatrocentos e cinquenta e quatro reais.) em 2006 este valor foi de R$ 2.070.377.494 (dois bilhões setenta milhões trezentos e setenta e sete mil quatrocentos e noventa e quatro reais.) um crescimento aproximado de 150% em 4 anos.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Em 2010 o valor apurado de gastos totais foram de 4.862.952.768 (quatro bilhões oitocentos e sessenta e dois milhões novecentos e cinquenta e dois mil setecentos e sessenta e oito reais) um crescimento aproximado de 235% na comparação de 2006 com 2010. Em 2014 não foi diferente, os gastos totalizaram aproximadamente R$ 5,1 bilhões. Outro fato interessante pode ser notado no decorrer destes anos. Enquanto em 2002 a percentagem das doações de pessoas físicas correspondiam à 39% do total dispendido já em 2014 este percentual foi de aproximadamente 5%, ou seja, dos valores gastos em 2014 95% foram doados por pessoas jurídicas. Após esta breve elucidação analisaremos o atual quadro normativo acerca do custeio dos gastos eleitorais. 4.Atual Regulamentação Sobre o Financiamento de Campanha Eleitoral Os gastos eleitorais como já conceituado compreendem os diversos dispêndios de uma campanha ou de um candidato durante o pleito, sejam bem sucedidos ou não. Logo, é crível a necessidade de recursos tanto para o partido quanto para o candidato, tais recursos podem ser legalmente hauridos de 2 formas; através do financiamento público ou do financiamento privado, observadas em ambos os casos determinadas regras. “No Brasil adotou-se um sistema misto. Tanto contribui o Poder Público quanto o setor privado.” (GOMES,2015) As contribuições oriundas do financiamento público são hauridas através de fundo próprio e compensações fiscais, estas suportadas pela União. O Art. 79, da Lei Orgânica dos Partidos Políticos(LOPP), determina que lei específica deve disciplinar os financiamentos de campanhas eleitorais bancados com recursos públicos. Embora a referida lei ainda não tenha sido criada podemos exemplificar algumas contribuições suportadas pelos cofres públicos. O primeiro que se apresenta é o Fundo Especial de Assistência Partidária, o famigerado Fundo Partidário. Em segundo e terceiro as compensações fiscais a que as emissoras de rádio e TV tem direito pelo tempo secionado à propaganda partidária gratuita, e à propaganda eleitoral gratuita. E por fim as renúncias fiscais a que os partidos têm direito. Comentaremos brevemente acerca de cada uma destas fontes. 4.1 Fundo Partidário Nacional Estabelecido já na própria LOPP, Art.38, segundo o TSE: O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, denominado Fundo Partidário, é constituído por dotações orçamentárias da União, multas, penalidades, doações e outros recursos financeiros que lhes forem atribuídos por lei. De todas suas fontes de receita a listadas no Art.38 a prevista no inciso IV é responsável pela maior parcela dos recursos do fundo, traz o inciso IV do Art.38: “IV - dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de agosto de 1995. O valor de 35 centavos por eleitor inscrito deve ser pago anualmente aos partidos, sendo que a forma com que se distribui os recursos auferidos está estabelecida no Artigo 37, da Lei 9096/95 Lei Eleitoral, vale ressaltar que aplicando-se a correção do valor ele passa a ser de R$1,25, Acrescido de suas outras fontes de receita estima-se que o fundo tenha pago de 2002 à 2013, “quase R$ 2,1 bilhões para as legendas.” (contasabertas, acesso em 03/10/2015). Em 2014 o valor foi de R$ 313.494.822,00 0 que demonstra uma contribuição de R$ 2,60 por

131

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


eleitor. Em 2015 com sansão da presidente Dilma Rousseff o valor a ser pago é de incríveis R$ 867.500.000,” (...)No Orçamento de 2015, esse repasse é quase cinco vezes maior: R$ 6,05 por eleitor. Embora o Fundo Partidário não se destine exclusivamente ao financiamento de campanhas eleitorais, sendo priorizado ao custeio das atividades ordinárias dos partidos, “é induvidoso que são largamente empregados para esse fim.” (GOMES,2015.) 4.2 Compensações Fiscais O chamado direito de antena possui fundamentação no art.17 da CF/88” …. Os partidos políticos têm direito … acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. Consideradas também uma forma de financiamento púbico as compensações fiscais a que as emissoras de rádio e televisão fazem jus pelas propagandas políticas gratuitas estão estabelecidas no Parágrafo Único do Art. 52 da LOPP, e no Art.99 da Lei das Eleições, sendo a primeira relacionada a propaganda partidária gratuita e segunda com a propaganda eleitoral gratuita. O Tribunal Superior Eleitoral define: A propaganda partidária é aquela que pode ser veiculada nos 3 semestres que antecedem as eleições, e tem como objetivo: a) difundir os programas partidários; b) transmitir mensagens aos filiados sobre a execução do programa partidário, dos eventos com estes relacionados e das atividades congressuais do partido; c) divulgar a posição do partido em relação a temas políticos comunitários; e d) promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10%. Acrescenta: A propaganda eleitoral é a propaganda veiculada após o dia 5 de julho do ano da eleição. Essa modalidade visa a captação de votos por partidários, coligações e candidatos. Por meio dela, busca-se influenciar o eleitorado no processo decisório. Para José Jairo Gomes: A propaganda partidária consiste na divulgação das ideias e do programa do partido. Tem por objetivo facultar-lhe a exposição e o debate público de sua ideologia, de sua história, de sua cosmovisão, de suas metas(...). Com isso, a agremiação aproxima-se do povo, ficando sua imagem conhecida e, pois, fortalecida.” e acrescenta o distinto autor “(...) a propaganda presta auxílio fundamental para a conquista e manutenção do poder político, já que atrai para a agremiação as pessoas que se identificam com seu ideário. (GOMES, Direito Eleitoral, p.386.) Denomina-se propaganda eleitoral a elaborada por partidos políticos e candidatos com a finalidade de captar votos do eleitorado para investidura em cargo público efetivo. (…) Nessa linha, constitui propaganda eleitoral aquela adrede preparada para influir na vontade do eleitor, em que a mensagem é orientada à conquista de votos. (GOMES, Direito Eleitoral, p.393.) Conforme as definições fica inconteste as finalidades de cada propaganda; sendo a partidária voltada para a promoção do partido enquanto pessoa jurídica representativa de uma ideologia que se exterioriza através de metas, opiniões, diretrizes etc.; e a eleitoral voltada a promoção dos candidatos, pessoas físicas que, ao menos em tese, representarão os interesses partidários e da sociedade que representará.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

As compensações aqui tratadas incidem sob o Imposto e Renda da Pessoa Jurídica -IRPJ- (Art.99, §1º, III, Lei das Eleições) imposto este de arrecadado pela União. Embora a união não arque com 100% do valor que as emissoras deveriam arrecadar caso vendessem os horários destinados as propagandas políticas, os 80% que custeia (Art.99, §1º, II, Lei das Eleições) corresponderam em 2014 à R$ 839,5 milhões. Em uma análise mais extensa “Desde 2002, R$ 5,2 bilhões deixaram de ser arrecadados pela União por conta das deduções fiscais, em valores correntes. Importa relembrar que até então não tratamos do financiamento privado continuamos apenas no desdobramento do financiamento público. 4.3 Renúncias Fiscais

Garantidas no artigo 150, VI, CF/88, in verbi: “Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI-Instituir impostos sobre: (...) c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações … “(Constituição Federal de 1988) 5. Do Financiamento Privado Mencionadas as fontes advindas do financiamento público resta agora, para se concretizar o sistema misto de financiamento, analisarmos as fontes do financiamento privado. Antes de iniciarmos propriamente dito a análise legislativa deste tipo de arrecadação cabe-nos fazer um apontamento. A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4650-DF proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil(CFOAB) julgada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal alterou de maneira substancial a regulamentação sobre o tema ora abordado. Assim sendo, faremos uma breve análise de como se apresenta o sistema vigente de doações privadas e a posteriori em tópico específico abordaremos as mudanças trazidas pela recente decisão de nossa Corte Maior na ADI nº 4650-DF. Partindo da conceituação feita anteriormente entre propaganda eleitoral e propaganda partidária, podemos estabelecer que as pessoas físicas e jurídicas podem doar recursos tanto para os partidos quanto para os candidatos. O marco regulatório para a doação privada aos partidos se encontra no Art.31 e seguintes da LOPP (lei 9096/95). Já o marco da doação aos candidatos se encontra no Art.17 e seguintes da LE (lei 9504/97). Comum a ambas, e com entendimento já pacificado do Tribunal Superior Eleitoral há o limite estabelecido na Lei Eleitoral Art. 21, §1º, 10% do rendimento bruto auferido pelo doador pessoa física no ano anterior ao ano eleitoral. O desrespeito a este limite sujeita o doador a multa de 5 a 10 vezes o valor excedente (Art.21, §3°). Até 29 de setembro do permanecia vigente no ordenamento jurídico o limite às doações feitas por pessoas jurídicas no percentual de 2% do rendimento bruto, apurado igualmente no ano anterior ao ano eleitoral. O artigo 81 da Lei Eleitoral que impunha estes parâmetros foi revogado pela lei 13.165/2015. Vale dizer que estes limites são o mínimo a que se devem sujeitar o financiamento privado para ser lícito. Há uma extensa e complexa regulamentação que a título de exemplo (e longe de se esgotar todas) impõe aos partidos políticos a criação de órgãos específicos para a administração dos recursos que serão dispendidos durante o plei-

132

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


to, os chamados comitês financeiros (Art.34,LOPP); abertura de contas vinculadas ao partido e ao candidato para serem exclusivamente utilizadas durante o pleito sendo estas contas fechadas de ofício no dia 31 de dezembro do ano eleitoral(Art.22,LE); obrigatoriedade de registro pelos partidos em livros contábeis, emissão de recibos eleitorais(Art.23,§2º) entre muitas outras especificações. Elucida José Jairo Gomes: No que concerne ao financiamento privado, impera o princípio da transparência. É preciso que os eleitores saibam, ou possam saber, da origem dos recursos usados nas campanhas políticas, sob pena de se formar representação política mendaz, dissociada da verdadeira vontade coletiva. (GOMES, Direito Eleitoral, p.339) 5.1 Das Fontes Vedadas Previstas no Art. 31 da LOPP e no Art. 24 da LE as fontes vedadas como próprio nome expressa, são fontes das quais os partidos políticos e os candidatos, não podem auferir recursos para campanhas ou ainda para os gastos ordinários de manutenção, dessa forma “proíbe o legislador que as campanhas sejam irrigadas com recursos oriundos de determinadas fontes.” (GOMES,2015) Assevera o art.31 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos: Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I - entidade ou governo estrangeiros; II - autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas no art. 38; III - autarquias, empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos, sociedades de economia mista e fundações instituídas em virtude de lei e para cujos recursos concorram órgãos ou entidades governamentais; IV - entidade de classe ou sindical Artigo 24 da Lei Eleitoral, in verbi: Art. 24. É vedado, a partido e candidato, receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I - entidade ou governo estrangeiro; II - órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenientes do Poder Público; III - concessionário ou permissionário de serviço público; IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude de disposição lega V - entidade de utilidade pública; VI - entidade de classe ou sindical; VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior. VIII - entidades beneficentes e religiosas; IX - entidades esportivas; X - organizações não-governamentais que recebam recursos públicos; XI - organizações da sociedade civil de interesse público. Conforme o §1° deste artigo os valores que forem captados destas fontes seja pelo partido ou pelo candidato deverão ser devolvidas ao doador e caso não seja possível identificá-lo os valores serão transferidos ao Tesouro Nacional.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

5.2 Do Objeto da Doação As doações privadas não se restringem somente a dinheiro em espécie. Podem ser doados também, serviços, bens, elucida José Jairo (GOMES,2015 p.347.), “(...) quanto ao objeto, a doação pode abranger dinheiro (em espécie ou por título de crédito) ou bens estimáveis em dinheiro.” Dessa forma as doações podem ser de tintas, folhas, imóveis, móveis, combustíveis, impressões gráficas, carros de som, enfim tudo que contribua para a campanha do candidato ou a promoção do partido político. É importante relembrar que caso essas doações feitas por pessoas físicas não podem ultrapassar o limite de 10% já mencionado, sob pena de responsabilização do doador, com o pagamento de 5 a 10 vezes o valor excedente e do beneficiado com a impugnação à candidatura por abuso do poder econômico e ainda suspensão dos direitos políticos (Art. 23, §3º, LE c/c LC 64/90 Art. 1º, I, p). 6. Dos Limites dos Gastos Eleitorais Como já explicado anteriormente compreende-se por gastos eleitorais todas as despesas de um partido ou candidato durante todo o pleito eleitoral. Uma outra forma de evitar o abuso do poder econômico além das já abordadas é a imposição de limites aos gastos eleitorais. A Lei Eleitoral estabelecia que a cada eleição uma lei deveria fixar o limite dos gastos de campanha para os cargos que serão disputados durante o pleito e caso tal lei não fosse promulgada- o que sempre ocorreu- os partidos é que decidiriam este limite de gastos. O limite que aqui se refere não é ainda o limite de gasto para este ou aquele cargo, mas para todos os cargos aos quais o partido pretenda lançar candidatos próprios. Trata-se de um limite geral de gastos. A lei 13.165/2015 revogou, entre outros, os artigos 17, 17-A que traziam a previsão supramencionada e acrescentou no Art.18 da Lei Eleitoral que caberá ao Tribunal Superior Eleitoral estabelecer os limites aos gastos de campanha observando os parâmetros definidos em lei. Lei ainda pendente. Estabelecido este limite geral passam a ser definidos os gastos para cada cargo em específico, sendo que a soma destes gastos não pode ultrapassar o limite geral anteriormente estabelecido, como determina o artigo 18-B da Lei Eleitoral, in verbi: Art. 18-B. O descumprimento dos limites de gastos fixados para cada campanha acarretará o pagamento de multa em valor equivalente a 100% (cem por cento) da quantia que ultrapassar o limite estabelecido, sem prejuízo da apuração da ocorrência de abuso do poder econômico. Como a revogação dos artigos 17, 17-A e a nova redação dos artigos 18 e 18-B são recentes não há um comentário doutrinário quanto às mudanças realizadas. Feitas estas considerações acerca das fontes para o financiamento público e privado das campanhas eleitorais, e de seus limites passaremos a abordar a ADI 4650-DF. 7. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4650-DF Proposta pelo Conselho Federal da Ordem Dos Advogados do Brasil(CFOAB) em 05/09/2011 a ADI 4650-DF tinha por objetivo declarar a inconstitucionalidade das doações feitas por pessoas jurídicas a partidos políticos ou a candidatos, e a readequação dos critérios limitadores das doações de pessoas físicas. Pleiteando-se, para tanto, serem declarados inconstitucionais os artigos 24 caput e seu parágrafo único; Art.23, §1º, incisos I e II; Art. 81 caput e §1º estes da lei 9504/97(Lei Eleitoral) e parcialmente inconstitucionais os artigos 31; 38, III; 39 caput e § 5º estes da lei 9096/95(Lei Orgânica dos Par-

133

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tidos Políticos.) Pugnou-se pela aplicação de efeitos ex nunc à decisão, e que se mantivesse a eficácia dos referidos artigos por mais 24 meses para, nos dizeres da petição inicial, “evitar lacuna jurídica ameaçadora” o que não foi acatado pelos ministros. A peça exordial possui 36 páginas que sem sombra de dúvidas constituem um excelente documento de leitura para interessados pela relevância do tema “financiamento de campanhas”. A demanda que começou a ser apreciada em 2013 só teve seu efetivo julgamento em 17/09/2015. A ação foi declarada procedente por maioria de votos, sendo que 8 ministros votaram pela procedência e 3 pela improcedência. Em uma breve análise traremos os principais argumentos trazidos pela exordial e em contra ponto traremos os argumentos dos três ministros que foram vencidos na votação. A análise que se procederá possui caráter elucidativo e não pretende esgotar os argumentos jurídicos colacionados por ambas as partes. Àqueles que pretenderem uma visão mais detida informamos que tanto os votos quanto a exordial encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do STF. 7.1 Principais Argumentos da Exordial. O Conselho Federal Da Ordem Dos Advogados do Brasil(CFOAB) fundamentou seu pedido na violação aos princípios constitucionais da igualdade, da democracia e da república. Segundo o CFOAB nas sociedades de massa, como a brasileira, o sucesso nas eleições depende, em boa parte, da realização de campanhas que tendem a envolver um custo econômico elevado. As chances de êxito dos candidatos nos pleitos eleitorais estão geralmente condicionadas à divulgação do seu nome e imagem entre o eleitorado, o que envolve gastos expressivos com a produção de material de propaganda, aquisição de espaço na mídia, contratação de cabos eleitorais, realização de eventos públicos e aluguel de imóveis e veículos, dentre inúmeras despesas. Diante disso o Conselho Federal da OAB estabeleceu uma análise da permeabilidade no contexto político do poder econômico de forma que na maioria das vezes é este poder que para além da influência que exerce no resultado das eleições, encontram seus reflexos nas ações do Estado pós o pleito. Tal influência no Estado se dá na proporção do peso que o poder econômico teve no sucesso da candidatura individual ou na representatividade partidária nas casas, ou seja, quanto mais dependente do capital privado tiver sido a campanha, mais “preso” aos interesses dos doadores estará o eleito, ocorrendo assim a conversão dos governos em instrumento de realização dos interesses dos financiadores. Nos dizeres do Ministro Dias Toffoli “... e também será criado, o que poderemos dizer, com o perdão da palavra, o chamado ‘‘rabo preso’’ entre o doador e o político vencedor das eleições, a dívida de favores entre o doador e o receptor da doação.” Nesse sentido segundo recente estudo da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados realizado por Ana Luíza Backes e Luiz Cláudio Pires Dos Santos constatou-se que os deputados eleitos foram os que mais gastaram em suas campanhas: Comparando a média de gastos dos eleitos com a dos não eleitos, observa-se que aquele foi em média 12 vezes maior. Considerando que o número de candidatos é muito grande, e que existem candidatos que praticamente não fazem campanha, o que rebaixa os gastos da média dos não eleitos, calculamos a média de gastos dos candidatos “competitivos”, ou seja, dos não eleitos mais próximos da eleição. Ainda assim, a relação continua forte: os eleitos gastaram na média nacional o dobro dos não eleitos “competitivos”. Em

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

vários estados, os eleitos gastaram o quádruplo ou mais que seus adversários competitivos. 7.1.2 Da violação ao princípio da igualdade.

Postulou o CFOAB que a legislação atacada em vez de combater a influência perniciosa do poder econômico no âmbito político concedia-o ainda mais força à medida que permitia aos mais ricos doarem mais, seja pessoa física ou através das empresas que por ventura controlem. Isto porque que ao se estabelecer um limite único para ricos e pobres não se equiparava uns aos outros. A desigualdade aceitável no âmbito econômico se refletia no cerne político, onde é constitucionalmente repudiada. Sustentou também que as Pessoas Físicas e as Pessoas Jurídicas “não são iguais perante a política. Estas não são cidadãos que podem ter pretensão legítima de exercer influência no processo político eleitoral. Trouxe, por fim, demonstrações das lesões a esse princípio tanto sob a ótica individual quanto coletiva. 7.1.3 Da violação ao princípio democrático

O princípio democrático conforme as sabias palavras trazidas na inicial pelo CFOAB “constitui o marco constitucional que afastou do cenário político o autoritarismo”. Sendo este princípio referenciado em vários artigos da Constituição Federal; ao mérito sustentou que a necessidade cada vez maior de recursos para o sucesso em uma campanha eleitoral vem adulterando este princípio, saindo da democracia para a aristocracia, ou o governo das elites. Com a influência cada vez maior do poder econômico nas eleições as desigualdades existentes e para alguns justificáveis na esfera econômica vem se alastrando na política o que então nos levaria a um governo somente dos ricos ou plutocracia. Para fundamentar empiricamente o alegado trouxe as conclusões de David Samuels após detido estudo do sistema de financiamento eleitoral brasileiro. Tem-se hoje um sistema em que o dinheiro é excessivamente importante nas eleições, segundo (SAMUELS, 2011): O que faz com que a balança pese a favor do candidato que tiver a seu lado contribuintes endinheirados. O dinheiro acentua a viabilidade das candidaturas e sua falta limita enormemente a competitividade dos candidatos. Para exemplificar como seria um sistema factualmente democrático apresentou- se o ensinamento de Jhon Rawls: “os legisladores e partidos políticos independentes das grandes concentrações de poder privado econômico e social, nas democracias capitalistas”. Após mais algumas fundamentações trazendo inclusive decisões da lavra de respeitáveis Ministros do STF restou demonstrado que a forma com que se dá o atual sistema de financiamento em vez de proteger o sistema eleitoral e por conseguinte o político das desigualdades nefastas que ocorrem na esfera econômica. O então sistema de financiamento c faz com que a cada eleição o “one man - one vote” ou o valor igualitário que cada voto constitucionalmente deveria possuir seja graduado pela força econômica. 7.1.4 Da violação ao princípio Republicano

O princípio republicano é a manifestação ideológica do conceito República, em que o administrador, gerencia o patrimônio que é de todos ou a “rés pública”. Como já demonstramos as campanhas hoje são milionárias e poucas pessoas jurídicas e um número ainda menor de pessoas físicas possuem o importe financeiro necessário para “contribuir”, assim segundo David Samuels: “O mercado de financiamento de campanha está dominado

134

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


por relativamente poucos atores, quer pessoas físicas ou jurídicas. Em média, poucos contribuem, mas quando o fazem, tendem a dar muito dinheiro. (...) Doações maiores de poucos indivíduos são claramente mais importantes para os candidatos do que as doações menores de um grande número de pessoas. (...) A natureza fechada do financiamento de campanha no Brasil implica que os candidatos provavelmente estão mais próximos de seus financiadores, ao contrário dos Estados Unidos, onde os candidatos estão familiarizados com alguns mas não com todos os contribuintes. Isso sugere que o financiamento de campanhas no Brasil é, em grande medida, voltado para serviços, mais do que voltado para a política. (...) os contribuintes esperam um serviço específico, que apenas um cargo público pode oferecer em retorno pelo seu investimento. Dessa forma aqueles que mais financiam são as empresas que estão sempre em contato com o Estado, seja pela natureza de seus serviços ou pela natureza de sua atividade quando regulamentada pelo ser Estatal, a exemplo as empreiteiras que constantemente celebra contratos volumosos com a Administração Pública e os Planos de Saúde que possuem sua atividade diretamente regulamentada pelo Estado. Com o tempo essa seletividade patrimonial acaba se tornando muito influente na administração da rés pública. Em síntese: o candidato patrocinado e eleito na hora de decidir e administrar aquilo que é de todos (rés pública) a dispõe no interesse destes poucos que foram capazes de contribuir para sua campanha. Pondera o CFOAB na exordial: Evidentemente, não se afirmar aqui que todos os políticos são corruptos e favorecem indevidamente os seus financiadores de campanha, nem que todos aqueles que contribuem para campanhas o fazem na expectativa de receberem alguma futura “contraprestação” não republicana. Esta seria uma generalização injusta e absolutamente descabida. O que se afirmar é que o tratamento dado pela legislação brasileira ao financiamento das campanhas favorece o florescimento destas relações pouco republicanas entre os políticos e os detentores do poder econômico, que tanto penalizam a Nação. 7.2 Os Votos Vencidos Como mencionado anteriormente a ADI foi proposta em 2011 e só teve seu desfecho em 2015, além, obviamente, da complexidade do tema, que qualquer que fosse o resultado certamente traria importantes reflexos no cenário político era necessário de fato uma análise mais detida por parte de todos os ministros de nossa magna corte. O resultado final foi de 8 votos a favor da procedência da inconstitucionalidade alegada pelo CFOB e 3 votos contrários, ou seja, pela constitucionalidade dos artigos atacados. Da mesma forma que se procedeu com os argumentos na inicial expor-se-á resumidamente os fundamentos dos votos vencidos Os ministros vencidos foram: Gilmar Mendes; Teori Zavascki e Celso de Melo. 7.2.1 Voto Ministro Celso de Melo

O voto vencido do Ministro caminhou no entendimento no sentido de que a carta magna não proíbe a influência do poder econômico no certame político, o que ela proíbe, na visão do decano ministro, é o exercício abusivo deste poder. Sustentou que as pessoas jurídicas não só possuem interesses políticos como também a legalidade na busca destes interesses. Por fim e acompanhando o Ministro Teori Zavaski não vislumbrou que haja impedimento constitucional à possibilidade de pessoas jurídicas fazerem doações à partidos ou candidatos e que a melhor forma de prevenir os abusos não é proibindo a doa-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ção, mas dar mais visibilidade destas doações ao Ministério Público e outros órgãos para que através desse sistema mais transparente e eficiente possam ser combatidos os abusos do poder econômico. Nas palavras do Decano: O que a constituição combate é a influência abusiva. Entendo que não contraria a Constituição o reconhecimento da possibilidade de pessoas jurídicas de direito privado contribuírem mediante doações a partidos políticos e candidatos, desde que sob sistema de efetivo controle que impeça o abuso do poder econômico. 7.2.2 Voto do Ministro Gilmar Mendes

O seu posicionamento a favor da permanência das doações não surpreendeu. Vale ressaltar que o ministro ficou com os autos em vista por 532 dias. Para Gilmar Mendes haveria uma implicação maquiavélica na provocação da Corte sobre o tema. Tal implicação seria a tentativa do partido da situação -o partido que está à frente do poder político- de se manter no poder, assim se os ministros ao suprimirem os dispositivos legais atacados restaria diminuída a competitividade eleitoral. Nas palavras do Ministro: Nenhuma dúvida de que ao chancelar a proibição das doações privadas estaríamos chancelando um projeto de poder. Em outras palavras, restringir o acesso ao financiamento é uma tentativa de suprimir a concorrência eleitoral e eternizar o governo da situação. 7.2.3 Voto do Ministro Teori Zavascki.

Embora tivesse votado já em 2013 o ministro complementou seu voto em 2015. Entendeu o ministro que o acréscimo de novas vedações às já presentes nas leis cujos artigos foram atacados seriam suficientes. Uma delas seria a proibição de que as pessoas jurídicas doadoras, ou suas controladoras, estariam proibidas de celebrar contratos com a Administração Pública até o término da gestão subsequente. Isso porque a Constituição Federal traz parâmetros normativos capazes de impedir a prática da política em benefício de clientes privilegiados da Administração Pública. Nos termos do Ministro “É possível afirmar que certas vedações constituem em decorrência natural do sistema constitucional.” 8.Conclusão Após esta breve abordagem quanto ao sistema de financiamento de campanhas eleitorais adotado no Brasil, fica evidente a busca histórica e constitucional pela proteção do sistema político ao abuso do poder econômico, e à valorização do pluripartidarismo como meio de desenvolvimento político-social. Demonstrou-se também que os recursos financeiros são indispensáveis para a efetivação da democracia e para o transcorrer da política e para além do dinheiro existem muitas outras formas de se contribuir para as campanhas eleitorais. Ao final observamos que as alterações trazidas pelo julgamento procedente da ADI 4650 apresenta um novo mas não recente paradigma, haja vista que as doações por pessoas jurídicas já foram proibidas em nosso ordenamento jurídico o que não impediu as fraudes e os escândalos que levaram ao impeachment de Fernando Collor, logo o retorno desta proibição visa melhorar ao menos sob ótica do “dever ser” jurídico a situação de fraudes e solapamento constitucional que vivenciávamos eleição após eleição e ano após ano. Por fim diante de todo o exposto nesse trabalho e diante o desmoronamento ético que vemos ocorrer atualmente em nosso congresso nacional e em muitos estados de nossa federação é utópico e muito simplista pensar que somente a ação do judiciário e a modifi-

135

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


cação da lei serão suficientes para erradicar a corrupção e o favorecimento políticos que maculam a política brasileira. Assim as mudanças que se produziram até o momento nas regras de financiamento de campanhas eleitorais demarcam o ponto de partida pela busca de um sistema político menos corrupto e mais democrático, que antes de priorizar os interesses dos detentores do capital e dos grandes financiadores busquem a efetivação dos direitos constitucionais e o respeito aos cidadãos. Nesse sentido não se pode excluir a responsabilidade de cada cidadão para a efetiva melhora de nosso sistema político, pois somente após mudança dos indivíduos é que ocorre a mudança da coletividade. Quando a conscientização do valor e da importância do direito ao voto substituir o pensamento da obrigação de votar esteremos mais perto de um país melhor e de políticos mais responsáveis. REFERÊNCIAS Gastos em campanhas eleitorais no Brasil. Ana Luiza Backes e Luiz Claudio Pires dos Santos. In: Cadernos ASLEGIS, nº 46 (Mai/Ago 2012). Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/14166/gastos_campanh a_backes_santos.pdf Gomes, José Jairo - Direito Eleitoral- 11ª ed. - São Paulo: Atlas, 2015. Pinto, Luiz Djalma – Direito Eleitoral- 9ª ed.- São Paulo: Atlas, 2010. Sitio eletrônico Blog Estadão- http://blog.estadaodados.com/em-ano-de-cortede-gastos-recursos-para-fundo-partidario-tem-maior-alta-da-historia/- acesso em 03/10/2015. Sitio eletrônico Câmara Legislativa de Santa Catarina- www.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-daconle/tema3/2014_3.pdf.- acesso em 03/10/2015. Sitio eletrônico Contas Abertasvo/8075;- acesso em 07/10/2015.

www.contasabertas.com.br/website/arqui-

Sitio eletrônico Dizer o Direito -www.dizerodireito.com.br Sitio eletrônico Eco Debate-www.ecodebate.com.br/2014/09/24/renuncia-fiscaldestinada-a-custear-o-horario-eleitoral-custara-r-839-milhoes-aos-contribuintes/ -acesso em 07/10/2015. Sítio eletrônico Supremo Tribunal Federal – http://www.stf.jus.br Sítio eletrônico Tribunal Superior Eleitoral- http://www.tse.jus.br/partidos/fundopartidario, acesso em 03/10/2015; Sítio eletrônico Tribunal Superior Eleitoral– http://www.tse.jus.br/partidos/propaganda-partidaria/perguntasfrequentes- propaganda-partidária#1- acesso em 07/10/2015 Sitio eletrônico Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina- www.tre- sc.jus. br/site/resenha-eleitoral/edicoes/n-3/janjun-2013/integra/2013/06/a- evolucao-da -regulacao-do-financiamento-de-campanha-no-brasil-1945- 2006/indexb7dc.html

Notas de fim 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

136

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


DISPENSAS COLETIVAS Gabriel Costa Prado1 Daniela Lage Mejia Zapata2 RESUMO: Em razão da evidente crise financeira que atinge o mercado brasileiro, empresas tendem a reduzir significativamente a quantidade de postos de trabalho através das dispensas coletivas. Todavia, em face da ausência de dispositivo legal, tais inúmeras demissões são unicamente formalizadas como uma típica rescisão contratual ordinária individual. Neste sentido, o Tribunal Superior do Trabalho, entendendo a gravidade do tema, entendeu em uma decisão inovadora pela necessidade de prévia negociação coletiva com o sindicato obreiro antes da concretização das dispensas em massa. O presente trabalho tem por objetivo analisar de forma pormenorizada o conceito de dispensa coletiva, bem como sua abrangência, abarcando ainda os fundamentos expostos pelo TST ao estabelecer tal premissa. ABSTRACT: It is happening a significantly reduction of jobs in Brazil in reason of the financial crises that reaches the economy at the moment. This is occurring through collective dismissal. However due to the default of legal devices these resignations are only formalized by a simple individual ordinary contractual rescission. In this sense the ‘Tribunal Superior do Trabalho’ (TST) realized that this is a serious situation and had an innovative decision. Now it is necessary a preview negotiation with the labor union before the massive layoff. This essay has as an aim analyze in detail the concept of massive layoff, the consequences of this act and explore the new ideas exposed by the TST. PALAVRAS-CHAVE: direito coletivo do trabalho; rescisão do contrato de trabalho; negociação coletiva; crise econômica. KEYWORDS: collective labor law; termination of employment; collective bargaining; economic crisis. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Crise econômica e a proteção ao emprego; 3 Dispensa coletiva no Brasil; 3.1 Dispensa individual e dispensa coletiva; 3.2 Análise da Convenção n. 158 da OIT e a sua inaplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro; 3.3 Caso Embraer: o inicio efetivo das discussões de validade de dispensas coletivas no Brasil; 3.3.1 Análise dos argumentos utilizados pelo TST; 4 Alternativas práticas para o problema das dispensas coletivas; 5 Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO A crise econômica tem sido um dos grandes temas debatidos na sociedade nos últimos tempos. Aliás, pode-se dizer que desde os anos de 2008/2009, a economia mundial vem sofrendo com diversos problemas, conforme noticiado pelos mais diversos tipos de imprensa. Custos passam a ser considerados absurdamente altos, traduzindo-se em um índice inflacionário também bastante elevado; além disso, temos o Estado, que também não facilita: desesperadamente necessitando de mais receitas, aumenta a carga tributária, a fim de que possa arrecadar mais. Neste cenário bastante desesperador, a iniciativa privada precisa se mobilizar, caso contrário, não conseguirá sobreviver. Inevitavelmente, o mercado de trabalho é influenciado, precisando arcar com as consequências. Neste sentido, as relações de trabalho são constantemente atingidas pelos inexoráveis problemas mercadológicos do Estado. Estabelecimentos são fechados, desempregando compulsoriamente inúmeros trabalhadores; o número de admissões do proletário diminui consideravelmente, haja vista que as empresas não tem condições de suportar o encargo trabalhista brasileiro; ou ainda, ocorre-se a dispensa em massa de inúmeros empregados, sob a justificativa de inviabilidade econômica e financeira do empreendimento. Esta última “solução” encontrada pelas empresas trouxe ao Poder Judiciário a discussão a respeito do tema. Em face omissão legislativa acerca da matéria, alguns entendem pela constitucionalidade com fulcro no princípio da livre iniciativa, enquanto outros repudiam tal conduta com base no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho. Para estes, a permissão das dispensas coletivas com justificativas somente relacionadas a crises econômicas mercadológicas desvirtuam preceitos constitucionais fundamentais, a exemplo dos artigos 1º, incisos III e IV, 7º, inciso I, e 170, inciso VIII, todos da Constituição Federal de 1988. De fato, o artigo 170 da Lei Maior estabelece que a ordem

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. E não poderia ser diferente, afinal, a valorativa de ambos os institutos anunciam a irrecusável importância destes em qualquer sociedade atual. Conforme importante lição de Antônio Álvares da Silva: O trabalho, no emprego ou fora dele, e a sustentação da atividade econômica, produtora de bens e serviços, constituem a base operante do Estado, sem a qual não há o equilíbrio das forças sociais que nele atuam. Do mesmo modo que cabe ao Estado, como instrumento regulador desta atividade, proteger as unidades produtoras em momentos de crise como este que agora vivemos, compete-lhe também, por iguais razões, proteger a força-trabalho, tão essencial como o capital, na criação de bens e riquezas, principalmente quando se sabe que não foi ela a responsável pela crise hoje instalada em todas as nações do mundo (SILVA 2009). Assim, o ponto central da discussão trazida no presente trabalho é a validade das dispensas coletivas realizadas pelas grandes sociedades empresárias brasileiras, bem como as recentes decisões expedidas pelos tribunais trabalhistas brasileiros a respeito do tema, com a conseguinte análise de um dos casos de maior repercussão na mídia, o caso EMBRAER. Como sabido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral num Agravo em Recurso Extraordinário (ARE 647651), recurso este feito pela empregadora EMBRAER onde se questiona o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho que determinou a exigência de negociação coletiva para que uma empresa possa promover a demissão em massa de empregados. Apesar de a Suprema Corte ainda não haver se pronunciado no mérito a respeito de tal caso, busca-se refletir com o presente texto a importância de se debater o tema das dispensas coletivas, pois as mesmas se demonstram cada vez mais habituais nos presentes tem-

137

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pos de instabilidades econômicas e financeiras. Em face da omissão legislativa no Brasil a respeito da matéria, inúmeras dúvidas surgem a respeito, o que causa insegurança jurídica tanto para os trabalhadores como para o setor empresarial. Afinal, qual seria o conceito correto de dispensa coletiva? É necessário uma quantidade especifica de empregados dispensados para se caracterizar a dispensa coletiva? Como tais dispensas influenciam no Direito Coletivo do Trabalho? Em razão da lacuna no ordenamento jurídico nacional a respeito do instituto, estes e outros inúmeros questionamentos surgem para os juristas. Eduardo Soto Pires, citando o jurista Mário Gonçalves Júnior, faz as seguintes elucidações: A lacuna da lei trabalhista brasileira sobre o tema das dispensas coletivas tem sido objeto de crítica pela doutrina mais respeitada há muito tempo. Nesse sentido, Gonçalves Júnior, ao fazer um breve recorrido histórico sobre o tema, adverte que o famoso jurista Orlando Gomes, já em 1974, apontava a relevância do tema da dispensa coletiva no Brasil: “O Brasil está devendo alguma regulamentação satisfatória e específica de tal fenômeno [dispensa coletiva] desde pelo menos a vigência da atual Constituição, tanto assim que na própria Carta de 1988, quando revogado completamente o regime da estabilidade decenal, o legislador constituinte convidou explicitamente o Congresso Nacional a regulamentar outras medidas contra a dispensa arbitrária. A multa sobre os depósitos do FGTS era para ser um contraponto às demissões individuais ou coletivas (art. 7º,I, CF), aplicáveis às dispensas como um todo (inclusive as coletivas) somente enquanto a proteção contra a dispensa arbitrária não viesse. Passadas quase duas décadas de vigência constitucional, infelizmente não há como negar que tornamos definitiva uma garantia que literalmente deveria ter sido passageira (a multa do FGTS). Acomodamo-nos preguiçosamente sob um remendo constitucional [...] (PIRES 2012) Portanto, neste contexto, necessário fazer-se um estudo a respeito do tema, analisando-se, em princípio, a proteção ao emprego assegurada constitucionalmente (artigo 7º, inciso I, da CRFB) e a influência dos organismos internacionais na tentativa de regulamentação da matéria (destaque para a Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho). Após isso, tenta-se estabelecer um conceito de dispensa coletiva e as suas diferenças para com a dispensa individual, a fim de que se possa analisar os reflexos de tais definições no âmbito do Poder Judiciário Trabalhista, que ultimamente tem decidido de forma majoritária pela necessidade de negociação coletiva como requisito para validação das dispensas em massa. Pretende-se, assim, compilar as manifestações contrárias e favoráveis sobre essas decisões, para que possamos compreender o cenário econômico e político-social sobre o qual se apresentam as discussões acerca da legitimidade das dispensas coletivas, até que o Poder Legislativo resolva regulamentar a questão. Ainda, também há de se demonstrar algumas alternativas práticas as dispensas coletivas – positivas e negativas – e como tais soluções se enquadram neste contexto. 2 CRISE ECONÔMICA E A PROTEÇÃO AO EMPREGO Atualmente, a situação econômica do Brasil não se encontra em um grau positivo. Muito se fala na existência de uma crise econômica no ano de 2015, o que absolutamente já se torna um fato consumado para muitos brasileiros. Ainda, fatores políticos influenciam e prejudicam diretamente o cenário econômico atual, haja vista que a instabilidade do governo acelera cada vez mais o ritmo da deterioração da conjuntura econômica.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

A crescente falta de credibilidade do Brasil no âmbito internacional perturba os investimentos no país. Os gastos excessivos pela máquina pública aumentam o cenário inflacionário, o que causa uma redução do comércio, produção e indústria. Em decorrência disso, as taxas de desemprego se espalham pelo mercado de trabalho nacional, alastrando-se assim uma enorme crise social. Logo, as relações de trabalho sofrem diretamente reflexos impactantes em razão da retração do mercado, causando a dispensa em massa de trabalhadores por todos os tipos de empresas, dos mais variados setores. Todavia, a Constituição da República de 1988 assegura a aplicação do conceito de justiça social, haja vista que constitui fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, inciso IV, da CRFB, “os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa”. Para José dos Santos Carvalho Filho: A valorização do trabalho humano tem intrínseca relação com os valores sociais do trabalho. Não há dúvida de que, para condicionar o trabalho aos valores sociais, é necessária a intervenção do Estado no capítulo da ordem econômica. Aliás, a Constituição intervém notoriamente nas relações entre empregadores e empregados, estabelecendo nos arts. 7º a 11 um detalhado elenco de direitos sociais dos empregados. Todos esses mandamentos retratam a preocupação estatal em adequar o trabalho aos ditames da justiça social. [...] A valorização do trabalho humano corresponde à necessidade de situar o homem trabalhador em patamar mais elevado do que o relativo a outros interesses privados, de forma a ajustar seu trabalho aos postulados da justiça social (FILHO, 2014) Neste sentido, o artigo 7º do Texto Constitucional elenca os direitos dos trabalhadores, expondo no inciso I pela “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. Como sabido, tal artigo ainda não foi regulamentado por lei complementar, conforme ordenado. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no artigo 10, é a norma legal que vigora até o presente momento a respeito do tema, expondo que até a promulgação de tal lei complementar, a indenização compensatória deve observar um aumento na porcentagem de até quatro vezes, nos termos da lei 5.107/96 (que foi revogada pela lei 8.036/90 – lei do FGTS), bem como vedando a dispensa arbitrária ou sem justa causa do empregado membro da CIPA e da empregada gestante. Importante destacar, a princípio, que o conceito de dispensa arbitrária não se confunde com o conceito de dispensa sem justa causa. Apesar de possuírem natureza jurídica semelhante (modalidade de término do contrato de trabalho), o artigo 165 da CLT especifica que dispensa arbitrária é aquela que não se funda em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. Logicamente, a dispensa não arbitrária é a que se firma em alguma forma de vinculação, ou seja, observa-se padrões e limitações já previamente estabelecidos, não dependendo de critérios ou vontades subjetivas. Sérgio Pinto Martins dispõe que: [...] Motivo técnico é o que diz respeito à organização da atividade da empresa, como o fechamento de uma filial ou de uma seção, com a despedida dos empregados. Motivo financeiro decorre das receitas e despesas da empresa, de acordo com o seu balanço. O motivo econômico é o proveniente do custo da produção das atividades da empresa, da conjuntura, da inflação, da recessão. Motivo disciplinar é o pertinente à dispensa por justa causa (art. 482 da CLT). (MARTINS 2009)

138

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


De qualquer forma, hoje no Brasil, o empregador pode extinguir o contrato de trabalho a qualquer momento, sem a necessidade de se justificar para qualquer fim, observada logicamente o instituto da estabilidade, ressalvando-se também as hipóteses de dispensa discriminatória, vedadas pela lei 9.029/95. Logo, até que não seja editada a lei complementar indicada pelo art. 7º da CRFB, é permitida a dispensa do empregado sem necessidade de qualquer causa para sua realização, pois o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) representa a indenização compensatória prevista no art. 10, inciso I, do ADCT. Sobre a história do FGTS, Maurício Godinho Delgado leciona: Criado pela lei n. 5.107/66 (hoje regido pela lei n.8.036, de 1990), o FGTS organizava sistema alternativo ao modelo celetista, sujeito a uma opção expressa (por escrito) no instante da celebração do contrato. No modelo do Fundo, o empregado teria direito a depósitos mensais em sua conta vinculada no importe de 8% sobre o seu complexo salarial mensal, incluídas as médias de gorjetas (verbas dos artigos 457 e 458, caput, da CLT). Inserindo-se, por meio da opção escrita, no FGTS, o empregado estaria excluído, automaticamente, do sistema de indenizações crescentes por tempo de serviço previsto na CLT, não podendo também mais alcançar, em consequência, a clássica estabilidade no emprego, após nove ou dez anos de serviço na empresa. Contudo, teria direito ao saque do Fundo de Garantia, no caso de sua dispensa desmotivada (denúncia vazia do contrato); a este saque, agregar-se-ia um acréscimo percentual rescisório no importe de 10% sobre o montante total do FGTS depositado e monetariamente corrigido (acréscimo que passou a 40%, desde a Constituição de 1988). [...] A Constituição de 1988 universalizou o sistema do FGTS: a um só tempo, eliminou a exigência de opção escrita pelo fundo (excetuada a opção retroativa, evidentemente) e fez do FGTS um direito inerente a todo contrato empregatício. (DELGADO 2014) Isso porque, no passado, desde o inicio de vigência da CLT em 1943, todo trabalhador tinha direito de permanecer estável no emprego após 10 anos contínuos de prestação de serviço. Caso ocorresse a dispensa imotivada do empregado depois de conquistada a estabilidade decenal (ou seja, após de mais 10 anos), o mesmo faria jus a uma indenização, que correspondia a um mês de remuneração por ano trabalhado, acrescida de uma multa de 10%. Assim, é manifestamente pacífico (tanto na doutrina como na jurisprudência) o entendimento de que as antigas regras pertinentes à proteção do contrato de emprego, quais sejam, estabilidade decenal e indenização rescisória (conforme previsão no artigo 477 e artigo 492 e seguintes todos da CLT) foram tacitamente revogadas com a promulgação do Texto Constitucional de 1988 – ressalvados os direitos adquiridos dos trabalhadores que não optaram pelo sistema do FGTS, hoje estáveis. Portanto, percebe-se que a intenção do Constituinte de 1988, ao estabelecer a regra contida no artigo 7º, inciso I, da CRFB, foi nitidamente de forma protetiva e assecuratória. Todavia, já se passaram 27 anos desde a promulgação do Texto Constitucional. Uma norma que deveria ser provisória, hoje é encarada por muitos como definitiva. Interessante seria uma imediata materialização de tal regra, a fim de que as relações individuais (e também coletivas) de trabalho fossem efetivamente protegidas, conforme almejado pelo legislador constituinte. Conclui Maurício Godinho Delgado, com primazia: O preceito contido no inciso I do art. 7º em análise pode ser tido como regra de eficácia contida, produzindo, pelo menos,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

certo efeito jurídico básico, que seria o de invalidar dispensas baseadas no simples exercício potestaivo da vontade empresarial, sem um mínimo de justificativa socioeconômica ou técnica ou até mesmo pessoal em face do trabalhador envolvido. De todo modo, independentemente da eficácia que se atribua à Constituição de 1988 neste tema, está claro que o novo Texto Máximo abriu uma fase de transição jurídica no que concerne ao tratamento deferido à ruptura contratual no Direito brasileiro. E, nesta transição, a ótica estritamente individualista e antiossocial, que prega a viabilidade jurídica da dispensa sem um mínimo de motivação socialmente aceitável, defendendo a dispensa como direito potestativo empresarial, portanto, é a que se coloca em franco questionamento e desgaste jurídico. (DELGADO, 2014) Assim, é manifesta a necessidade do Congresso Nacional exercer as suas atribuições legislativas, a fim de que seja editada uma lei complementar que preverá realmente uma indenização compensatória justa. Isso porque a proteção prevista no artigo 10 do ADCT (adicional de 40% sobre os depósitos do FGTS) hoje se demonstra inviável, haja vista as crescentes taxas de desemprego no Brasil. 3 DISPENSA COLETIVA NO BRASIL O ordenamento jurídico pátrio não dispõe expressamente em momento algum sobre a permissão ou vedação das dispensas em massa. Pelo contrário, a lei brasileira é totalmente omissa, não estabelecendo nenhum conceito sequer sobre tal modalidade de dispensa. Neste panorama atual, portanto, o legislador considera existente somente como tipo de dispensa àquela que envolve um único trabalhador, a chamada dispensa individual. Razão pela qual não estabelece soluções práticas efetivas capazes de contornar – ou até mesmo reduzir – os inúmeros problemas oriundos da dispensa coletiva, pois fica claro que esta última deflagra efeitos muito mais abrangentes em uma coletividade do que a simples rescisão contratual de apenas um trabalhador. No âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) teve o cuidado de tratar sobre este complexo tema, expondo sobre a existência de um critério de motivação no ato da dispensa através da Convenção n. 158. Todavia, o Brasil denunciou referida Convenção em 1996, conforme será oportunamente discorrido no presente trabalho. Consolidando a importância da matéria no âmbito social, a jurisprudência trabalhista entendeu que não podia ficar inerte como o legislador ficou. Através de inúmeras interpretações extensivas da Carta Maior de 1988, os Tribunais do Trabalho do país começaram a estabelecer um tratamento jurídico particularizado entre as dispensas coletivas e as dispensas individuais. A ideia de ser imprescindível pela negociação coletiva em hipóteses de dispensa massa prevalece hoje no Tribunal Superior do Trabalho (TST), apesar de recaírem inúmeras criticas sobre tais julgados. Mas o que efetivamente vem a ser considerado como dispensa coletiva e qual a sua principal diferença com a dispensa individual, haja vista a omissão legislativa sobre o tema? Ainda, como o judiciário brasileiro chegou a tal entendimento? 3.1 Dispensa Individual e Dispensa Coletiva Nos dizeres de Delgado (2014, p. 1222), “despedida individual é a que envolve um único trabalhador, ou que, mesmo atingindo diferentes empregados, não configura ato demissional grupal, ou uma prática maciça de rupturas contratuais (o chamado lay-off)”. As relações individuais de emprego podem se findar por situa-

139

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ções das mais diversas, podendo ser provocadas tanto pelo empregado como pelo empregador. A livre iniciativa estampada no artigo 1º, inciso IV, da CRFB, em conjunto com o rol de direitos sociais dos trabalhadores previstos também no Texto Maior resultam na seguinte conclusão: não existe hoje a garantia de vigência do contrato de trabalho por prazo indeterminado, salvo as hipóteses de estabilidade resguardadas em lei. Logo, hoje no Brasil, em regra geral, o contrato individual de emprego pode ser extinto por iniciativa do empregado (o chamado “pedido de demissão”), por ocasião de morte do trabalhador, por término de vigência do pacto laboral (hipóteses de celebração de contratos por prazo determinado), por justa causa (tanto do empregado como do empregador), por culpa recíproca, sem justo motivo, por morte do empresário individual, pela extinção da empresa ou por força maior. Sobre a dispensa individual imotivada, Maria Cecília Máximo Teodoro e Aarão Miranda da Silva dispõem que: A denúncia vazia de um contrato de emprego é aceita tendo em vista ausência de regulamentação do art. 7, I, da CF e pela duvidosa validade da denúncia da Convenção 158 da OIT pelo Brasil. Mas, além disso, a dispensa individual rege-se também pelo Direito Individual do Trabalho, não obrigando o empregador, até então, a motivar a dispensa. (TEODORO, SILVA, 2009) Assim, em principio, necessário pontuar a relevância de se propor um tratamento jurídico diferenciado entre estas duas modalidades de dispensa, quais sejam, a dispensa individual e a dispensa coletiva. Ainda que o legislador seja considerado omisso no tocante a tratar sobre esta última, é manifestamente clara a diferença entre os dois conceitos, sejam pelas peculiaridades de cada uma, sejam pelos impactos sociais trazidos, em especial na segunda. Obviamente, as duas modalidades devem ser regidas por regras distintas, sob pena de se ferir a estabilidade das relações jurídicas e a crença da comunidade nas instituições públicas e privadas. Antônio Álvares da Silva ensina: A dispensa individual – DI – é a que se verifica nos contratos individuais de trabalho, sendo emitida pelo empregador para rescindi-lo. Mesmo que a DI importe a dissolução do contrato de vários empregados, nem por isto se descaracteriza, desde que sua origem esteja centrada num fato pertinente ao contrato individual de trabalho, envolvendo a relação empregado-empregador. Neste caso, terá um efeito coletivo, mas não é uma dispensa coletiva [...]. (SILVA, 2010) Percebe-se que há uma diferença nítida entre dispensa coletiva e dispensa individual plúrima. Isto porque, nesta última, para cada trabalhador dispensado, podem haver inúmeras causas ou motivos diferentes, ao contrário da dispensa coletiva, que tem como causa, um único motivo. Sobre o conceito de dispensa coletiva, inúmeros estudiosos se encarregaram de contextualizar a questão, haja vista a ausência de normatização pelo legislador. Para Delgado (2014, p. 1222), “despedida coletiva atinge um grupo significativo de trabalhadores vinculados ao respectivo estabelecimento ou empresa, configurando uma prática maciça de rupturas contratuais (lay-off)”. Para Nascimento (2014, p. 1279), “é possível conceituá-la como aquela que envolve diversos empregados dispensados ao mesmo tempo e pela mesma causa de despedir”. José Antônio Pancotti (2009, p. 51), citando o grande jurista Orlando Gomes, ensina que dispensa coletiva “é a rescisão simultânea, por motivo único, de uma pluralidade de contratos de trabalho numa

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

empresa, sem substituição dos empregados dispensados”. Por fim, Maria Cecília Máximo Teodoro e Aarão Miranda da Silva discorrem com primazia sobre a matéria: A dispensa coletiva não está adstrita a esfera individual da relação de emprego, mas diz respeito a um direito essencialmente coletivo, afeto não só aos trabalhadores individualmente considerados, mas a toda comunidade ao qual está inserido, às diversas famílias que perdem sua fonte de sustento, ao verdadeiro problema social que o desemprego causa. [...] As dispensas em massa são regidas pelo Direito Coletivo do Trabalho, que possui normas de ordem pública, na medida em que diz respeito a direitos que extravasam a esfera meramente individual, ou seja, interesses coletivos e difusos, pois atingem simultaneamente grupos de trabalhadores e toda a sociedade indiretamente. (TEODORO, SILVA, 2009) Portanto, percebe-se que a dispensa coletiva difere completamente da dispensa individual, uma vez que possui efeitos, dimensões, profundidade e impactos maiores, não se limitando apenas ao âmbito individual do empregado, mas repercute, também, na comunidade do local atingido, podendo gerar reflexos sociais e econômicos, causando alterações no mercado interno e no mercado de trabalho da localidade. Ainda que não haja um consenso sobre a especificação da quantidade de trabalhadores dispensados, como dez, cem ou mil, a fim de se caracterizar uma despedida em massa, uma coisa é certa: trata-se de causa objetiva da empresa, que pode ser relacionada a questões econômicas ou técnicas. Logo, a melhor forma de se classificar uma dispensa coletiva é através de uma prévia análise do impacto social que a mesma poderia causar (MARTINS, 2009). Em razão da ausência de regulamentação, a dispensa em massa possui o mesmo tratamento jurídico da dispensa individual sem justa causa, ou seja, caso uma empresa decida dispensar inúmeros trabalhadores por questões objetivas internas, tal ato será plenamente válido, pois a dispensa individual imotivada é legal no ordenamento jurídico pátrio. Todavia, necessário pontuar que a dispensa em massa deve observar rigorosamente determinados princípios, para que, somente dessa forma, possa ser considerada legal. Tudo isso justamente para que o Direito Coletivo do Trabalho cumpra suas funções peculiares, pacificando os conflitos de natureza sociocoletiva. Isso porque, para haver uma compatibilização de direitos constitucionais assegurados (a título de exemplo, artigo 1º, inciso IV da CRFB), a questão da demissão em massa requer uma reflexão acurada e sistematizada, de modo a ser possível conciliar o direito potestativo do empregador com o seu dever de promover a função social da propriedade e o bem-estar social. Por esta razão, e considerando a ausência de qualquer mecanismo legal que possibilite o controle dos efeitos deste imponente evento, o Poder Judiciário Trabalhista estabeleceu a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores. Tal linha de entendimento, de certa forma, se coaduna com o Direito Comparado e com as orientações trazidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Bem por verdade, diga-se de passagem, que a Convenção n. 158 da OIT tratou de efetivar o disposto no art. 7º, inciso I, da CRFB, qual seja, a mesma previu proteção contra a dispensa arbitrária. Por inviabilidade do acaso, no entanto, a mesma foi denunciada pelo Brasil, deixando de assumir vigência no ordenamento jurídico pátrio. Não deixa de ser interessante expor sobre ela, que trata sobre causas justificadoras de dispensa imotivada.

140

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


3.2 Análise da Convenção n. 158 da OIT e a sua inaplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro É manifestamente clara a importância que as normas de Direito Internacional têm no ordenamento jurídico interno de cada Estado. Em decorrência do fenômeno da globalização, o valor dos direitos sociais é consideravelmente ampliado, com a conseguinte positivação dos mesmos através de mecanismos supranacionais, expedidas por organismos internacionais legítimos e especializados, que tem o condão de fazer integrar ao sistema jurídico interno de cada país tais normatizações. Neste sentido, foi criada em 1919, após a assinatura do Tratado de Versalhes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Tal importante organismo internacional foi instituído como uma agência especializada das Nações Unidas, sendo responsável pelo controle e emissão de normas relacionadas ao trabalho em âmbito internacional, objetivando sempre regulamentar as relações de trabalho no mundo por meio de convenções e recomendações, com intuito de proteção sobre as relações entre empregados e empregadores (VIEGAS, 2010). O grande jurista Amauri Mascaro Nascimento leciona: A função normativa da OIT se expressa por meio de dois tipos de instrumentos jurídicos, as convenções e as recomendações. Convenções internacionais são normas jurídicas emanadas da Conferência Internacional da OIT, destinadas a constituir regras gerais e obrigatórias para os Estados deliberantes, que as incluem no seu ordenamento jurídico interno, observadas as respectivas prescrições constitucionais. [...] As disposições aprovadas pela Conferência da OIT, quando não contam com número suficiente de adesões para que se transformem em convenções, são promulgadas como simples Recomendações. Valem, apenas, como sugestão destinada a orientar o direito interno de cada Estado. Portanto, assinalam diretrizes em matérias nas quais é difícil lograr uma generalidade de aprovação.[...] (NASCIMENTO, 2014)

Portanto, as normas de direito internacional público oriundas desta agência tem eficácia positiva no direito interno de um Estado que resolve recepcioná-la e aplicá-la. No caso do Brasil, é necessária uma aprovação do Congresso Nacional para que as mesmas possam produzir efeitos com força de lei interna. No dia 22 de junho de 1982, foi assinada em Genebra a Convenção n. 158. Considerando a importância da continuidade das relações de trabalho, a OIT adotou uma política social protetiva ao trabalhador no tocante as dispensas imotivadas. Logo, referida convenção teve como principal objetivo disciplinar o término da relação de emprego por iniciativa do empregador, de modo a vincula- la a fatores justificáveis. Segundo José Soares Filho (2009), “a obrigação de o empregador fundamentar o término da relação de trabalho constitui o ponto de maior relevo da proteção consubstanciada na Convenção n. 158 da OIT”. De fato, o artigo 4º da referida convenção estabelece que “não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”. A primeira hipótese, qual seja, a incapacidade ou inaptidão do trabalhador para desempenhar corretamente suas funções compreende a má execução na prestação de serviços, ou seja, trata-se de um comportamento inadequado, que justifique talvez um procedimento disciplinar. Ressalta-se que o art. 7º da referida Convenção garante o direito do empregado de apresentar defesa caso o mesmo seja dis-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

pensado por motivos de comportamento/desempenho. No entanto, o que interessa aos fins do presente trabalho acadêmico é a segunda hipótese contemplada no art. 4º da Convenção n. 158 da OIT: término das relações de trabalho por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos. Tais causas estão intrinsecamente relacionadas ao fenômeno das dispensas coletivas. Sobre tais motivos, José Soares Filho disserta: As causas relacionadas com as necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço podem ser de natureza econômica, tecnológica, estrutural ou análoga. Concorrem para o encerramento de relações de trabalho individuais ou coletivas, levando à redução de pessoal ou ao fechamento da empresa. Por vezes têm relação com o excedente de mão de obra ou a redução do número de postos por motivos econômicos ou técnicos, ou nos casos de força maior e caso fortuito. Revestem as formas de racionalização oumodernização das empresas, estabelecimentos ou serviços, em face de queda de produtividade, alterações nas condições do mercado ou da economia e a falta de adaptação técnica do trabalhador a elas. (FILHO, 2011) Os artigos 13 e 14 tratam, em especifico, destas causas. Através deles, fica instituído métodos práticos a evitar-se ou até mesmo limitar o término das relações de trabalho. São garantidos, assim, direitos a informação e consulta aos trabalhadores previamente, antes de executada a dispensa. Ainda, deve-se notificar a autoridade pública responsável, informando-se a quantidade de trabalhadores a serem dispensados, motivos da dispensa e períodos em que é previsto a realização destes “cortes” de postos de trabalho. Vejamos: Art. 13 - §1º. Quando o empregador prever términos da relação de trabalho por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos: a) proporcionará aos representantes dos trabalhadores interessados, em tempo oportuno, a informação pertinente, incluindo os motivos dos términos previstos, o número e categorias dos trabalhadores que poderiam ser afetados pelos mesmos e o período durante o qual seriam efetuados esses términos; b) em conformidade com a legislação e a prática nacionais, oferecerá aos representantes dos trabalhadores interessados, o mais breve que for possível, uma oportunidade para realizarem consultas sobre as medidas que deverão ser adotadas para evitar ou limitar os términos e as medidas para atenuar as consequências adversas de todos os términos para os trabalhadores afetados, por exemplo, achando novos empregos para os mesmos. Art. 14 - §1º. Em conformidade com a legislação e a prática nacionais, o empregador que prever términos por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos, deverá notificá-los o mais breve possível à autoridade competente, comunicando-lhe a informação pertinente, incluindo uma exposição, por escrito, dos motivos dos términos previstos, o número e as categorias dos trabalhadores que poderiam ser afetados e o período durante o qual serão efetuados esses términos. [...] §3º. O empregador notificará às autoridades competentes os términos referidos no parágrafo 1º do presente artigo com um prazo mínimo de antecedência da data em que seriam efetuados os términos, prazo que será especificado pela legislação nacional. Portanto, percebe-se que a OIT entende que havendo dispensa coletiva por motivos econômicos, técnicos, estruturais ou análogos,

141

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


deve-se, em principio, haver uma primazia no tocante a negociação. E não poderia ser diferente, pois, a questão da demissão em massa requer reflexão acurada e sistematizada. Isso porque a responsabilidade social da empresa somado ao valor social do trabalho - garantias constitucionais – exigem um mínimo de cuidado dos empregadores, a fim de se evitar ou mesmo contornar as dispensas coletivas. Sobre a Convenção n. 158 da OIT, Maurício Godinho Delgado explica: Como se percebe, o advento das regras rescisórias da Convenção 158 da OIT enfrentaria, eficazmente, dramático problema na ordem jurídica, social e econômica das últimas décadas, consistente na presença de elevados índices de rotatividade de mão de obra e da parca durabilidade temporal dos contratos de trabalho. Expungindo a dispensa meramente arbitrária, ao exigir o manejo de causa relevante e séria para a ruptura contratual por ato do empregador, as regras convencionais internacionais aperfeiçoariam significativamente o estuário normativo do Direito do Trabalho brasileiro. Ao mesmo tempo, não traduziam o retorno a período de extremada tutela do emprego, tal como realizado pelos anteriores dispositivos estabilitários e indenizatórios da Consolidação (art. 477, caput, e arts. 492 a 500 da CLT) – sistema que se mostrara incapaz de permitir ajustes empregatícios diante de mudanças efetivas, importantes e irreprimíveis na vida econômica e social. (DELGADO, 2014) Portanto, prima a OIT na garantia máxima dos direitos fundamentais de segunda geração, conquistados de forma árdua e intensa pela comunidade “que vive do trabalho”. A Convenção n. 158 poderia ser, para muitos, a solução prática cabível perante a ausência de regulamentação do art. 7º, inciso I, da CRFB. Afinal, efetivamente, este dispositivo internacional assegura uma relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa. No entanto, a mesma teve vida curta no ordenamento jurídico brasileiro. Sobre a aplicação da convenção no Brasil, polêmicas não deixam de ser levantadas. É sabido que em 17 de setembro de 1992, através do Decreto Legislativo n. 68/92, foi aprovado no Congresso Nacional brasileiro referida convenção. A carta de ratificação foi depositada em 5 de janeiro de 1995, através do Decreto n. 1.885/96. (PIRES, 2012) José Soares Filho, dispondo sobre a vigência de tal diploma internacional, conta: Ao ser ratificada pelo Brasil, [a Convenção n. 158 da OIT] provocou acerbas reações em nosso País, notadamente da parte da classe empresarial, provavelmente em face do ônus econômico-financeiro que sua aplicação acarretaria aos empregadores, com a restrição ao seu poder de comando no que tange, especialmente, à despedida arbitrária ou sem justa causa, ex vi do disposto em seu art. 4. Por outro lado, no seio da classe jurídica questionou-se amplamente a constitucionalidade desse instrumento normativo. (FILHO, 2011) Isso porque duas correntes se formaram na doutrina trabalhista a respeito da constitucionalidade de tal diploma internacional. A primeira, defendida por autores como Amauri Mascaro Nascimento e Arnaldo Süssekind, entendeu que não há qualquer incompatibilidade entre a convenção e a Constituição Federal brasileira. (PIRES, 2012). No entanto, não foi o que prevaleceu. A inconstitucionalidade do texto foi arguida em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn n. 1.480-3-DF) pela Confederação Nacional do Transporte e Confederação Nacional da Indústria. Pautou-se a fundamentação destas duas grandes entidades pa-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tronais no sentido de que a Convenção n. 158 da OIT é incompatível com o artigo 7º, I, da CRFB, pois, como visto, o mandamento constitucional pátrio determina que matéria relacionada à proteção a dispensa arbitrária ou imotivada na relação de emprega seja tratada através de lei complementar. Para os defensores da ideia, a Convenção n. 158, norma de direito internacional público, adentrou no ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária, o que não respeitou a vontade do Constituinte. O setor empresarial brasileiro, obviamente, não estava satisfeito com a vigência da Convenção n. 158. Causa disso foram as decisões expedidas pela Justiça do Trabalho durante a época de validade do diploma, que começaram a ordenar pela reintegração dos trabalhadores que haviam sido dispensados de forma imotivada, entendendo-se que tais rescisões contratuais eram nulas de pleno direito, pois não seguiam a diretriz máxima recém adotada: dispensa sem justa causa, mas motivada. (PIRES, 2012). Em decisão liminar proferida pelos ministros do STF em novembro de 1997, o pedido foi acolhido, determinando-se a suspensão de qualquer entendimento que dispunha sobre a autoaplicação das normas da Convenção n. 158 da OIT. Pela enorme polêmica causada, e sofrendo pressões por parte do setor empresarial, o governo brasileiro não viu outra alternativa: denunciou o diploma junto a OIT, depositando a carta de renúncia em 20 de novembro de 1996. Não obstante, a discussão sobre a validade da Convenção n. 158 da OIT no Brasil não encontrou seu esperado fim. Um novo debate surgiu: seria legal o ato de denúncia da Convenção n. 158 promovido pelo Poder Executivo sem prévia autorização legislativa? Em razão disso, uma nova Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn n. 1.625-3 DF) foi proposta. Neste processo, que ainda se encontra em trâmite perante a Suprema Corte aguardando julgamento, conta Eduardo Souto Pires que “argumentou-se pela ineficácia da denúncia da Convenção mediante ato unilateral da Presidência da República do Brasil, defendendo-se a tese de que a denúncia não poderia ser levada adiante sem que a decisão governamental tivesse sido precedida de uma aprovação legislativa”. Assim, enquanto o Supremo Tribunal Federal não decide sobre a validade da denúncia da Convenção n. 158 da OIT, não existe obrigação legal para que o empregador motive a dispensa de seus empregados. Logo, para os exegéticos, inaplicáveis também qualquer tipo de proibição ou limitação relativa ao exercício das dispensas coletivas pelo setor empresarial. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei, conforme preleciona o art. 5º, inciso II, da CRFB. Neste sentido, não havendo diploma jurídico aplicável a matéria, impossível sancionar o empregador que realiza a demissão em massa (MARTINS, 2009). Todavia, o Poder Judiciário demonstra reiteradas vezes um entendimento diverso. Ainda que o Brasil tenha denunciado a vigência da Convenção n. 158 da OIT, bem como hoje se entender pela validade das rescisões contratuais obreiras sem motivo justo (dispensa sem justa causa), o Tribunal Superior do Trabalho parece ter pacificado a questão no tocante as dispensas coletivas. Conforme disserta Maurício Godinho Delgado: [...] a ordem constitucional e infraconstitucional democrática brasileira, considerada a Constituição de 1988 e diversos diplomas internacionais ratificados (ilustrativamente, Convenções OIT n. 11, 98, 135 e 141) todo esse conjunto normativo não autorizaria o ‘manejo meramente unilateral e potestativista das dispensas trabalhistas coletivas, por se tratar de ato/fato coletivo, inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, e não Direito Individual[...] (DELGADO, 2014)

142

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Portanto, o TST entendeu que a simples integração de um país a Organização Internacional do Trabalho, ainda que o mesmo não tenha ratificado uma ou outra convenção, não o dispensa de respeitar e promover os princípios relacionados aos direitos fundamentais que são objetos dessas convenções (PANCOTTI, 2009). Mas toda ideia tem um ponto de partida. E em matéria de dispensas coletivas, não poderia ser diferente. O polêmico caso EMBRAER, um de maiores repercussões no meio jurídico, firmou no TST, em 2009, a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores. Foi um marco para situações futuras. A partir daí, a discussão da validade das dispensas coletivas teve seu inicio máximo. Vejamos então como tudo começou. 3.3 Caso Embraer: o inicio efetivo das discussões de validade das dispensas coletivas no Brasil O ano de 2009 marcou o tema das dispensas coletivas. A EMBRAER – Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A – realizou a dispensa imotivada de mais de 4.200 empregados. Em termos estatísticos, tal montante representava, à época, 20% de seu número total de empregados. Justificou-se a EMBRAER no sentido da existência de elevada crise econômica, especialmente no setor de aviões, estimando prejuízos financeiros que somavam em torno de 05 bilhões. O Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região, o Sindicato dos Metalúrgicos de Botucatu e a Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, não concordando com a conduta da companhia, ajuizaram dissídio coletivo perante o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, requerendo a suspensão de tais demissões de forma liminar. Foi alegado pelos entes coletivos obreiros, em síntese, a importância prévia da negociação coletiva no Direito Comparado, quando eminente uma demissão em massa de empregados. Ressaltou-se ainda a violação a princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. O pedido de liminar foi acatado pelo Tribunal, decretando-se, portanto, a suspensão das demissões até a realização da audiência de conciliação. Chegado tal momento, as partes tentaram se conciliar, mas um acordo não foi estabelecido. Estando o processo pronto para julgamento definitivo, o Tribunal decidiu pela confirmação da medida cautelar, entendendo pela existência dispensa abusiva por parte da EMBRAER, que não ouviu ou até mesmo informou os respectivos sindicatos sobre tal relevante acontecimento. Indeferindo o pedido de reintegração dos trabalhadores dispensados, o Tribunal condenou a EMBRAER a realizar uma compensação financeira dos salários dos trabalhadores demitidos. Ainda, a empresa deveria manter por 12 meses, os planos privados de assistência médica concedidos aos trabalhadores. Por fim, determinou-se também o direito de preferência de contratação dos trabalhadores dispensados em hipótese de abertura de futuro processo seletivo na empresa, durante o prazo de dois anos (PIRES, 2012). Apesar de o dissídio coletivo ter natureza declaratória ou constitutiva, e não condenatória, o TRT da 15ª Região inovou neste sentido, como se pode perceber (MARTINS, 2009). Sobre a reparação arbitrada pelos desembargadores em prol dos trabalhadores dispensados pela EMBRAER, Eduardo Souto Pires conta: O argumento utilizado pelo TRT-15 para conceder o direito à compensação financeira adicional, a extensão da assistência medica e a prioridade na contratação futura aos trabalhadores afetados, segundo o relator da decisão, foi produzido pelas propostas de negociação apresentadas pelas partes ao longo das tentativas de negociação realizadas durante o processo. Entretanto, ao rigor da lei brasileira, não é prerrogativa do juiz

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

obrigar a empresa a conceder direitos que não sejam previstos por lei ou por acordos coletivos negociados pelo Sindicato e pela empresa. Logo, a decisão do TRT-15 inovou juridicamente, ao obrigar a empresa por temas que apenas foram objeto de propostas de negociação. Isso, em nossa opinião, implica violação do principio constitucional da legalidade previsto no art. 5º, II, da Constituição, que estabelece: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” [...] (PIRES, 2012) Assim, a EMBRAER interpôs Recurso Ordinário para o Tribunal Superior do Trabalho (processo nº TST-RODC-309/2009-000-15-00.4) com pedido de efeito suspensivo da decisão recorrida. Entendeu a empresa que o acórdão do TRT da 15ª Região violou o principio da legalidade, haja vista que em momento algum a lei dispõe sobre a necessidade de negociação coletiva prévia quando da realização de demissões em massa. Ressaltou-se também a denúncia da Convenção n. 158 da OIT, inviabilizando sua aplicação em qualquer sentido hermenêutico proposto pelos julgadores. Em sede de liminar, o TST acatou o pedido, determinando a suspensão da decisão recorrida até o julgamento do mérito. Ao julgar o mérito do recurso, o TST definitivamente reformou o acórdão prolatado pelo TRT da 15ª Região. Por se tratar de um caso totalmente atípico e originário na jurisprudência trabalhista, entendeu que realmente a legislação pátria é omissa no tocante às dispensas coletivas. Assim, em respeito ao principio da legalidade (art. 5º, II, da CRFB), a dispensa coletiva exercida pela empresa não poderia ser declarada abusiva. Logo, reconheceu que as demissões promovidas pela EMBRAER são legais e efetivas. No entanto, reconheceu a peculiaridade e seriedade do tema. Efetivamente distinguiu a abrangência do conceito de dispensa individual e dispensa coletiva, considerando esta última como socialmente, economicamente, familiarmente e comunitariamente impactante. Em razão disso, estabeleceu a seguinte premissa: que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores. Ou seja, a partir do julgamento do caso da EMBRAER, toda dispensa em massa de empregados deve ser negociada perante o sindicato obreiro competente, sob pena de nulidade. Contra essa parte do acórdão, foi interposto recurso para o Supremo Tribunal Federal (ARE 647651). Foi alegado, de maneira geral, a violação ao principio da tripartição dos poderes, já que o TST efetivamente criou direito novo, tarefa cabível ao Poder Legislativo; e também a violação ao principio da livre iniciativa, ressaltando-se que uma interferência no poder de gestão das empresas prejudica a continuidade dos serviços, ameaçando a própria existência das mesmas. A Suprema Corte Constitucional, no entanto, reconheceu a repercussão geral sobre o tema. Conforme consta do acórdão, o ministro relator Marco Aurélio anunciou que se tratava de uma situação jurídica capaz de repetir-se em inúmeros casos, sendo evidente o envolvimento do tema em índole maior, constitucional. O mérito do recurso ainda está pendente de julgamento, o qual será analisado em futuro breve, pelo Plenário da Corte. Não obstante a ausência de julgamento definitivo pelo STF sobre a matéria, a decisão expedida pelo TST continua em pleno vigor, ou seja, a dispensa coletiva deve ser realizada com a observância da negociação coletiva, sob pena de ser nula. A justificativa utilizada pelo TST é abrangente e universal, devendo as suas principais peculiaridades serem observadas.

143

3.3.1 Análise dos argumentos utilizados pelo TST

Conforme exposto acima, o caso EMBRAER foi emblemático

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


porque fixou entendimento no sentido de que a negociação coletiva é imprescindível para as despedidas em massa de trabalhadores, sendo consideradas abusivas quando observado este procedimento. Efetivamente, trata-se de medida preventiva em virtude do forte impacto social causado por demissões em massa súbitas. Analisando a importância dos julgamentos expedidos pelo TRT da 15ª Região e pelo TST no caso EMBRAER, José Luiz de Oliveira Soares discorre: [...] o TRT procurou promover a negociação entre as partes e estabeleceu compensações para as dispensas, fundamentando-se na Constituição e em Convenções da OIT – diferentemente das organizações trabalhistas, que insistiram até o fim na readmissão dos demitidos. Note-se que, ao proferir sua decisão, o TRT de Campinas nãoo deixou de atribuir importância à liberdade de iniciativa para os entes econômicos – o que se pode perceber em diversos trechos do acórdão. Antes, o que esteve em questão foram os limites dessa liberdade frente a princípios de justiça social inscritos em códigos legais. Com efeito, o que de fato se condenou “foi à forma como a demissão coletiva foi conduzida e efetivada, sem que se tenha buscado formas efetivas de suavização dos seus efeitos”. Enquanto isso, o TST, em um primeiro momento – ao deferir o pedido formulado pela empresa em efeito suspensivo e anular a decisão do TRT -, não apenas se deteve nos parâmetros jurídicos tipificados em lei (regras), como priorizou as dificuldades econômicas da empresa e as “razões do mercado”. Em um segundo momento, ao julgar o recurso ordinário que pôs fim ao dissídio coletivo contra a EMBRAER, assumiu uma postura mais ambígua, próxima àquela prevalecente entre os desembargadores do TRT e de Campinas. Embora mantida a necessidade de previsão legal para a suspensão das demissões, estabeleceu a obrigatoriedade da negociação coletiva para a dispensa massiva de trabalhadores como parâmetro jurisprudencial para o futuro. Baseando-se em princípios normativos, o TST criou judicialmente um direito novo. (SOARES, 2011) De fato, o TST realmente inovou ao decidir pela premissa de necessidade de negociação coletiva, já que anteriormente nunca havia se manifestado sobre a matéria. O ilustre relator do caso, ministro Maurício Godinho Delgado, expediu decisão que primou pela interpretação de princípios constitucionais e pela distinção clara entre dispensas individuais e dispensas coletivas. Neste sentido, vale a pena transcrever um trecho do mencionado acórdão: [...] observa-se que a dispensa individual é regulada minuciosamente na ordem jurídica, produzindo os efeitos tradicionais previstos na CLT e na legislação trabalhista em geral, tais como o pagamento de: aviso prévio, 13º salário proporcional, férias proporcionais (com 1/3), liberação do FGTS, entre outros reflexos, de acordo com a modalidade da dispensa. A dispensa coletiva, por sua vez, é fato distinto da dispensa individual em sua estrutura, dimensão, profundidade, efeitos, impactos e repercussões. Nota-se, num exercício analógico, que a diferença entre fatos individuais ou específicos e fatos coletivos pode ser observada em outras searas do trabalho. Uma conduta omissiva do trabalhador, que deixa de comparecer ao posto de trabalho, por exemplo, possui punição prevista pelo direito, podendo ser considerada até mesmo como justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador, nos termos do art. 482 da CLT. Já uma conduta omissiva de uma coletividade, sejam

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

empregados de um setor ou de toda uma empresa, não é infração trabalhista, mas um direito constitucionalmente previsto, ou seja, direito de greve (art. 9 CF/88). A diferença entre o individual e o coletivo também pode ser observada no campo das ciências. Uma doença individual é um fato com estrutura, dimensão e repercussão localizadas, pontuais, individuais e tópicas, ao passo que uma epidemia do mesmo mal tem dimensão, profundidade, impacto e, dessa forma, estruturas diferentes. Portanto, tanto na vida social como nas ciências, e como também no direito, os fatos estritamente individuais são manifestamente distintos dos fatos coletivos, massivos. Os eventos da dispensa coletiva e da dispensa individual de trabalhadores de certa empresa não poderiam obedecer a outra lógica. A dispensa coletiva, embora não esteja tipificada explicita e minuciosamente em lei, corresponde a fato econômico, social e juridico diverso da despedida individual, pela acentuação da lesão provocada e pelo alargamento de seus efeitos, que deixam de ser restritos a alguns trabalhadores e suas famílias, atingindo, além das pessoas envolvidas, toda a comunidade empresarial, trabalhista, citadina e até mesmo regional, abalando, ainda, o mercado econômico interno. É um fato manifestamente diferente da dispensa individual. Fica claro, portanto, que quando se trata de dispensas coletivas, a observância dos princípios e regras do Direito Coletivo do Trabalho é absolutamente necessária. Toda atitude que atinja uma coletividade não tem o mesmo caráter de atos que atinjam apenas um individuo ou alguns poucos. Embora sejam reprováveis atos que prejudiquem o direito de qualquer cidadão, quando estes atos alcançam uma comunidade, sua dimensão tem natureza social e seu tratamento tem peculiaridades próprias. Nas dispensas em massa, os impactos na vida dos grupos de trabalhadores atingidos somente podem ser aferidos e considerados numa negociação coletiva – instrumento que coloca em maior pé de igualdade o empregado frente ao empregador -, quando então é possível se traçar critérios objetivos para a realização das dispensas, suavizando os prejuízos aos trabalhadores e suas famílias. Ainda, no tocante a (in)aplicabilidade e (in)eficácia da Convenção n. 158 da OIT no Brasil, ressaltou-se a declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho para sustentar que todos os membros, ainda que não tenham ratificado as convenções tenham compromisso derivado do simples fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade de boa-fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objetos dessas convenções (PANCOTTI, 2009). Portanto, a partir dos princípios constitucionais que reprimem excessos na gestão do trabalho humano, somam-se outros princípios e normas previstos em outros diplomas normativos da OIT, como as Convenções n. 98 e 154, bem como a Recomendação n. 163, todas ratificadas pelo Brasil. Princípios estes que, diga-se de passagem, não podem ser afastados com fulcro em somente no principio da legalidade (artigo 5º, II, da CRFB). Afinal, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, juntamente com outros direitos fundamentais, que o trabalho constitui instrumento importantíssimo para a concretização do Estado Democrático e Social do Direito. O constituinte, rompendo com um passado mais liberal do que social, adotou o Estado Social, criando muitas garantias, que também revelam o destaque dado ao valor do trabalho. A inserção dos direitos trabalhistas na ordem constitucional demonstra sua im-

144

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


portância para implantação do Estado Social, objetivando equilibrar a relação com os princípios e regras liberais. Estabelecendo-se uma interpretação teleológica do artigo 170, caput, da CRFB, a ordem econômica, ainda que pautada pela livre iniciativa, não pode se afastar do principio da valorização do trabalho humano e do objetivo maior tratado pelo constituinte, que é assegurar a todos a existência digna. Aliás, dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho são fundamentos da República Federativa do Brasil, consoante artigo 1º, III e IV, do Texto Maior. Carlos Alberto Reis de Paula, também concordando com o entendimento do TST, dispõe que [...] a dispensa coletiva não é repudiada em nosso ordenamento jurídico, mas, observando-se os princípios assentados na Carta Magna, a mesma está condicionada a negociação, podendo ser exercida previamente ou até mesmo a posteriori, inclusive pelo Poder Judiciário, mais precisamente a Justiça do Trabalho a que está afeta a competência, quer por força do inciso III, quer do inciso II, ambos do art. 114 da Constituição Federal, o último em condições muito especificas (PAULA, 2011). Inúmeras criticas ao polêmico precedente expedido pelo TST foram feitas. Rebatendo tais opiniões, Maria Cecília Máximo Teodoro e Aarão Miranda da Silva dissertam: Após as decisões sobre o tema “demissão coletiva”, juridicamente muitos sustentaram que pelo fato de não existir norma expressa que limite a dispensa coletiva, esta poderia ocorrer “livremente”, pois o juiz estaria restrito a decidir dentro da lei (e lei não existiria). Novamente o debate jurídico foi tomado pelo debate econômico e com este se confundiu, isto porque o sistema jurídico brasileiro não é fechado e tão pouco depende de leis para existir, a dogmática jurídica não se reduz ao exercício “cru” de subsumir o fato à norma e ponto. Num sistema legalmente “aberto”, a todo momento”, se depara com artigos na própria lei como: a) art. 4º da LINDB: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e também com os princípios gerais do direito”. b) art. 5º da LINDB: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” c) art. 8º da CLT: “As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público [...]. De fato, o artigo 8º da CLT contêm várias possibilidades para resolução de conflitos quando presente a lacuna no texto normativo. Assim, a inércia do legislador em regulamentar o tema das dispensas coletivas não impede a aplicação de outras fontes do direito. No entanto, entendimentos contrários à tese máxima do TST ganham destaque, apesar de forma pormenorizada. Criticas reconhecem a ausência de determinação legal capaz de obrigar a empresa a realizar negociação coletiva com o sindicato obreiro, seja em qualquer modalidade de dispensa (individual ou coletiva). Neste sentido, não existe qualquer previsão constitucional ou legal sobre as dispensas coletivas, inexistindo assim, obrigação de se

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

fazer negociação coletiva para validação das dispensas em massa (MARTINS, 2009). Portanto, em uma tese eminentemente legalista, pensadores abordam que não há qualquer lacuna no ordenamento jurídico pátrio que justifique a utilização do direito comparado, pois o art. 7º, I, da CRFB, não fez qualquer distinção entre dispensa individual e coletiva. Júlio Bernardo do Carmo também possui entendimento contrário ao do TST. Para ele: [...] o emprego não é um bem coletivo pertencente ao Estado [...] Enquanto nosso país consagrar a livre iniciativa e o direito potestativo do empregador de proceder a livre resilição do contrato de trabalho, excepcionados apenas os casos de estabilidade especiais, não há como o Estado unilateralmente intervir na decisão do empreendedor econômico, que não vê saída para a crise de mercado interno e mundial senão valendo-se da dispensa coletiva. Por fim, Eduardo Souto Pires, fazendo uma análise pormenorizada e exegética do caso, não concorda com a premissa expedida pelo TST, que declarou a necessidade de negociação coletiva para casos futuros. De acordo com o seu entendimento: [...] o TST não poderia ter determinado (ainda que para situações futuras) a obrigação de sujeitar o procedimento de dispensa à existência de um processo prévio de negociação coletiva. Isso não quer dizer que sejamos contrários à negociação prévia, mas simplesmente que, considerando o ordenamento brasileiro atual, não se pode “exigir” que empresários negociem coletivamente antes de uma dispensa. [...] as decisões do TST, proferidas nos autos das demandas que lhe são apresentadas (não confundir com as Súmulas de Jurisprudência), não produzem efeito erga omnes, ou seja, as decisões têm alcance limitado às partes da demanda. Assim, ainda que a decisão estabeleça a necessidade de negociação prévia para “casos futuros”, não se pode extrair que isso seja vinculante para outras empresas. Em nossa opinião, o alcance que se pode dar a este “dever para ocasiões futuras” é o de uma mera “recomendação”, que se apresenta como um elemento “político”, que se verificou quando o Tribunal quis iniciar o debate sobre a necessidade de referida negociação prévia. Pode considerá-la, ainda, como uma expressão sobre o critério que o TST seguirá em futuros litígios, embora com as ressalvas sobre a falta de previsão legal quanto a essa questão. (PIRES, 2012) Apesar da importância de tais criticas, discordamos da interpretação dada por estes autores. Pela decisão expedida pela Suprema Corte Trabalhista e a agressão aos fundamentos desta, no sentido de violação do poder de gestão das empresas e uma indevida (e não prevista) intervenção estatal no setor privado, entendemos que tais considerações não ensejam uma aplicação adequada ao Direito Brasileiro, haja vista a utilização, em um sentido universal, do principio da supremacia do interesse público (este transportado do âmbito do Direito Administrativo a presente análise). Ainda, como já exposto, o próprio artigo 8º da CLT soluciona a problemática da lacuna normativa no Direito do Trabalho, devendo o aplicador do direito buscar auxílio na jurisprudência, analogia, equidade, princípios e normas gerais do direito (inclusive de direito do trabalho), usos e costumes e no direito comparado. E tal foi realizado de forma lapidar pelo TST.

145

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


4 ALTERNATIVAS PRÁTICAS PARA O PROBLEMA DAS DISPENSAS COLETIVAS Ainda que inexista regulamentação efetiva para o problema das dispensas em massa, o ordenamento jurídico pátrio possui mecanismos que inviabilizam a execução das mesmas. Trata-se de verdadeiras alternativas concedidas ao empregador a fim de se moderar os graves efeitos causados no âmbito social decorrentes das dispensas coletivas. Um exemplo disso é a lei 4.923/65, que contêm hipótese de redução da jornada de trabalho e do salário. De acordo com o artigo 2º, a empresa que comprova problemas econômicos poderá reduzir a jornada de trabalho de seus empregados, mediante prévio acordo com a entidade sindical obreira, com a conseguinte homologação pela Delegacia Regional do Trabalho. Tais termos devem não ser excedentes de três meses, possibilitando-se prorrogação nas mesmas condições. Ainda, a redução do salário não poderá ser superior a 25% do salário contratado, respeitando-se, por óbvio, o salário mínimo da região. Tal redução não é considerada alteração unilateral do contrato individual de trabalho, vedada pelo art. 468 da CLT. Empresas que aderem a essa regra não poderão, até 06 meses após a cessação deste regime, admitir novos empregados antes de haver a readmissão daqueles que tinham sido dispensados pelos motivos justificadores da redução de jornada/salário. Por fim, insta salientar que a prestação de horas extras também é vedada, nos termos do art. 4º da lei 4.923/65, salvo nas hipóteses previstas no art. 61 e parágrafos da CLT. Os Programas de Demissão Voluntárias (PDV’s) também constituem uma alternativa para as dispensas comuns. De acordo com Amauri Mascaro Nascimento: [...] programa de dispensa voluntária é uma forma de extinção do contrato que nasceu como decorrência da prática de empresas que, tendo como finalidade reduzir o quadro de pessoal, quer por motivos de ordem econômica, quer tendo em vista razões de reorganização, oferecem uma oportunidade para aqueles que quiserem ser dispensados do emprego, possibilitando-lhes direitos mais amplos do que os previstos em lei, mediante o pagamento, além dos valores devidos por lei, de uma indenização. Na praxe, o empregado tem direito a indenizações muito mais elevadas caso aceite em deixar o emprego de forma pacífica. Assim, além dos benefícios oriundos da legislação quando efetivada uma dispensa sem justa causa (a título de exemplo, multa de 40% sobre os depósitos fundiários), o trabalhador fará jus a inúmeros outros benefícios, como por exemplo, um plano de seguro de vida, prorrogação do período de pagamento de salários, continuidade de assistência à saúde nos planos da empresa, cestas básicas, etc. No entanto, em um cenário atual, as citadas medidas não conseguem limitar o crescente e desolador cenário de desemprego nacional. Em virtude disso, recentemente o Poder Executivo Federal, através da Medida Provisória 680/2015, criou o Programa de Proteção ao Emprego (PPE). Dentre os objetivos deste programa, impõe destacar a preservação dos empregos em momentos de retratação da atividade econômica e a fomentação da negociação coletiva e o aperfeiçoamento das relações de emprego (art. 1º, I e IV, da MP 680/2015). A medida visa aumentar a duração do vínculo empregatício em empresas que se encontram em dificuldade financeiras através da redução temporária, em até 30%, da jornada de trabalho dos empregados com a consequente redução salarial (respeitado o valor do salário mínimo). Tal redução condiciona-se a celebração de acordo coletivo especifico com o respectivo sindicato obreiro

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

competente, podendo ter duração de até seis meses, possibilitando-se a prorrogação, observado o prazo máximo de 12 meses (art. 3º e parágrafos). A adesão ao PPE deve ser feita por empresas que se encontram em situações de dificuldade econômico-financeiras (art. 2º). Nos termos do Decreto n. 8.479/15, que regulamenta o programa, a empresa deve comprovar registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) pelo prazo mínimo de 02 anos, regularidade fiscal, previdenciária e relativa ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, bem como situação de dificuldade econômico- financeira e existência de acordo coletivo específico, registrado no Ministério do Trabalho e Emprego (art. 6º do Decreto n. 8.479/15). A redução salarial proporcionará ao empregado o direito de haver uma compensação pecuniária equivalente a 50% do valor da redução salarial e limitada a 65% do valor máximo da parcela do seguro desemprego, enquanto perdurar o período de adesão ao plano (art. 4º da MP 680/2015). Tais despesas serão custeadas pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Pelas novas regras, também fica instituído que as empresas que aderirem ao PPE deverão recolher contribuição previdenciária e FGTS também sobre a tal compensação pecuniária. Neste sentido, as leis 8.212/91 e leio 8.036/90 já foram alteradas, com a inclusão dos tais novos recolhimentos nas hipóteses legais previstas. Por fim, fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa dos empregados que tiverem a jornada de trabalho reduzida enquanto vigorar a adesão da empresa ao PPE e, após o seu término, durante o prazo equivalente a um terço do período de adesão (art. 5º). Portanto, percebe-se que o PPE é uma medida bem intencionada do governo para preservar os postos de trabalho nas empresas em momentos de retratações econômicas sérias. Todavia, tal programa, se não fiscalizado pela Administração Pública de forma correta, tornar-se-á banalizado, precarizando- se assim as proteções ao trabalho. As justificativas de aderência ao programa pelas empresas com base em dificuldades econômico-financeiras deve ser integralmente vistoriada e analisada de forma efetiva, privilegiando-se realmente aquele empregador que sofre com a crise econômica. Enquanto a dispensa coletiva não é regulamentada, sem dúvida, é uma boa alternativa a influência da PPE na proteção das relações de emprego. No entanto, a criação de tal programa não deve afastar a importância (ou mesmo prioridade) do legislador em tratar sobre a matéria. Para Sérgio Pinto Martins: O ideal seria que o empregado, antes de ser dispensado, pudesse ser colocado em outra empresa do grupo ou em outra função. Haveria também a possibilidade de o trabalhador passar por um curso de reciclagem ou recapacitação profissional antes de ser dispensado, para que pudesse ser aproveitado na empresa. Para haver a dispensa do trabalhador, o empregador deveria pautar- se por determinados critérios, como: a) capacidade; b) experiência; c) antiguidade; d) idade; e) encargos familiares, etc. Esses critérios poderiam ser estabelecidos em futura lei que viesse a regular a dispensa do empregado ou então nas normas coletivas. (MARTINS, 2009) Assim, o direcionamento das dispensas coletivas pelo Estado ou até mesmo nas negociações coletivas, inicialmente, deve se focar na camada mais jovem de trabalhadores, com menos tempo de serviços prestados ao empregador, a fim se preservar os postos de trabalho dos empregados mais antigos, que, sem sombra de dúvidas,

146

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


são mais qualificados tecnicamente (CARMO, 2009). De qualquer forma, é visível a necessidade urgente de regulamentação pelo legislador brasileiro das dispensas coletivas, estabelecendo de forma ampla os conceitos legais que abrangem a sua aplicação, as causas e o procedimento a ser adotado pela empresa, bem como a previsão expressa de necessidade de negociação coletiva entre as partes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho pretendeu evidenciar a importância do tema das dispensas coletivas. Em um cenário político-econômico não muito promissor, destacou-se que empresas utilizam-se cada vez mais das dispensas coletivas para assegurar a saúde financeira do negócio. No entanto, em face da omissão legislativa brasileira do tema, encaram a dispensa em massa como um conjunto de dispensas individuais injustificadas. Neste sentido, frisou-se pela distinção dos conceitos de dispensa individual e dispensa coletiva, devendo esta última ser considerada como aquela que atinge um grande número de trabalhadores da mesma empresa, dispensados ao mesmo tempo e por motivos idênticos. Analisou-se também a influência da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no tema, haja vista que a mesma previu medidas eficazes capazes de contornar as dispensas em massa através da Convenção n. 158, que estabelecia, como por exemplo, a necessidade de consulta prévia aos trabalhadores antes da dispensa. Todavia, este diploma internacional possuiu aplicabilidade curta no Brasil, sendo denunciado em 1996. Inexistindo, portanto, qualquer previsão legal no ordenamento jurídico pátrio, destacou-se que o judiciário trabalhista brasileiro inaugurou o debate sobre as dispensas coletivas, dispondo pela necessidade de negociação coletiva prévia frente à dispensa em massa de trabalhadores. O Tribunal Superior do Trabalho entendeu pela relevância jurídica, econômica e social da dispensa coletiva, haja vista a enorme lesão provocada pela mesma em uma comunidade. Ainda, acentuou-se a importância dos princípios e regras pertencentes ao Direito Coletivo do Trabalho, previstas também em outros diplomas da OIT, estes devidamente validados pelo Brasil. Ressaltou-se também a existência de algumas alternativas válidas que inviabilizam a prática das dispensas coletivas, como a lei 4.923/65 que permite a redução da jornada de trabalho e do salário. A abertura de programas de demissão voluntária pelas empresas (PDV’s) também constitui outra interessante medida, pois incentiva a dispensa individual injustificada de empregados com a promessa de ampliação de direitos rescisórios que não estão determinados na lei. Por fim, recentemente, através da Medida Provisória 680/2015, criou-se também o Programa de Proteção ao Emprego (PPE). Tal programa visa prolongar o vínculo empregatício dos empregados contratados por empresas em dificuldades financeiras, através da redução temporária do salário. Assim, concluímos que as dispensas coletivas devem ser encaradas com muita cautela, com a observância de negociação coletiva. Somente através desta última intervenção sindical é possível definir os impactos causados pela dispensa em massa na coletividade dos trabalhadores ou na comunidade. A mera ausência de previsão legal não deve afastar o entendimento inovador do TST, pois este se baseou em princípios constitucionais e universais. REFERÊNCIAS Convenção 158 da OIT. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/dl/convencao-oit-158.pdf>. Acesso em 11 out. 2015 BRASIL. Lei 4.923 de 23 de dezembro de 1965. Institui o Cadastro Permanen-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

te das Admissões e Dispensas de Empregados, estabelece medidas contra o desemprego e de assistência aos desempregados, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4923.htm>. Acesso em: 12 out. 2015 BRASIL. Medida Provisória nº 680, de 6 de julho de 2015. Institui o Programa de Proteção ao Emprego e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Mpv/mpv680.htm>. Acesso em: 13 out. 2015 BRASIL. Decreto nº 8.479, de 6 de julho de 2015. Regulamenta o disposto na Medida Provisória nº 680, de 6 de julho de 2015, que institui o Programa de Proteção ao Emprego. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2015- 2018/2015/Decreto/D8479.htm>. Acesso em: 13 out. 2015 BRASIL. Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm>. Acesso em: 10 set. 2015 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado. htm>. Acesso em: 10 set. 2015 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Acórdão do processo n. TST-RODC309/2009-000-15-00.4. Relator: Ministro Mauricio Godinho Delgado. Data de Julgamento: 04/09/2009. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/processos-dotst>. Acesso em: 15 out. 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão do processo n. ARE 647651 RG. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/03/2013. Disponível em: <http:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3716113 >. Acesso em: 15 out. 2015. CARMO, Júlio Bernardo do. O Estado pode obstar a dispensa coletiva? Disponível em: <https://www.trt3.jus.br/download/artigos/pdf/96_estado_dispensa_coletiva.pdf> . Acesso em: 15 out. 2015. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13 ed. São Paulo:

Editora LTr, 2014. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2014. FILHO, José Soares. A Convenção n. 158 da OIT e a questão relativa a constitucionalidade em face do direito interno brasileiro. Revista LTr Legislação do Trabalho. São Paulo, vol. 75, n. 11. Editora LTr, 2011. MARTINS, Sérgio Pinto. Despedida Coletiva. Revista IOB Trabalhista e Previdenciária. São Paulo, v. 21, n. 242. Editora IOB: 2009. NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 29. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014. SILVA, Antônio Álvares da. Direito do Trabalho no Pós-Moderno. 1. ed. Belo Horizonte: Editora RTM, 2010. PANCOTTI, José Antônio. Aspectos jurídicos das dispensas coletivas no Brasil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas, n. 35, pp. 39/67, 2009. PAULA, Carlos Alberto Reis de. Dispensa coletiva e negociação. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, v. 77, nº 2, abr/jun 2011, pp. 209/217. PIRES, Eduardo Soto. Demissões Coletivas: lições para a sua regulamentação futura pelo sistema jurídico brasileiro. 1. ed. São Paulo: Editora LTr, 2012. SOARES, José Luiz de Oliveira. Pelos princípios ou pelas regras: o caso Embraer e as disputas jurídicas na Justiça do Trabalho. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/viewFile/21757984.2011v10n18p245/17543>. Acesso em: 15 out. 2015. TEODORO, Maria Cecília Máximo; SILVA, Aarão Miranda. A Imprescindibilidade

147

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


da Negociação Coletiva nas Demissões em Massa e a Limitação de Conteúdo Constitucionalmente Imposta. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com. br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura &artigo_id=6082>. Acesso em: 11 out. 2015. VIEGAS, Carlos Alberto Carmo. Convenção 158 da OIT - Breves considerações sobre sua aplicabilidade e consequências. Disponível em: <http://www. ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_ id=7936>. Acesso em: 10 out. 2015.

Notas de fim 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

148

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A RELEVÂNCIA DA CONDENAÇÃO EFETIVAMENTE COERCITIVA NA JUSTIÇA DO TRABALHO: como o Punitive Damages pode resgatar a Justiça Trabalhista do seu atual processo de autossabotagem Filipe Cordeiro Kinsky 1 Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO: Busca-se, neste trabalho, demonstrar que a Justiça do Trabalho não possui, hoje, efetivo valor coercitivo hábil a tornar a aplicabilidade das leis trabalhistas a regra, e não a exceção. Procura-se entender o porquê de o braço especialíssimo do Poder Judiciário, destacado especificamente para manter hígidas as relações de trabalho, através não só da solução individual de conflitos, mas também através de um desestímulo à prática de novos ilícitos, não conseguir realizar com primazia estes papéis. E, indo além, este estudo tem a pretensão, ainda, de demonstrar como a Justiça do Trabalho acaba sendo uma barreira aos seus próprios objetivos institucionais, dificultando a disseminação da cultura do cumprimento fiel da legislação pelos empregados e empregadores. ABSTRACT: The aim of this work is show that the Labor Justice do not have effective coercive power to make the applicability of labor laws the rule, not the exception. Looking forward to understand why the Labor Court, created specifically to keep the labor relations healthy, not only in an individual perspective, but also through the disincentive policy to commit new offenses, cannot accomplish with primacy these roles. And beyond that, this study has the intention to also demonstrate how the Labor Court ends up being a barrier to their own institutional purposes, hindering the spread of the culture of faithful fulfillment of the law by employees and employers. PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho, Danos Punitivos, Dumping Social, descumprimento da legislação trabalhista. KEYWORDS: Labor Justice, Punitive Damages, Social Dumping, noncompliance with labor laws. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Flexibilização, o Dumping Social e a Ineficácia do Judiciário Trabalhista; 2.1 A Flexibilização; 2.2 O Dumping Social; 2.3 A ineficácia do Judiciário Trabalhista; 3 O dever do Judiciário de ser protagonista no combate a ilicitude; 4 O Punitive Damages; 4.1 As Funções dos Punitive Damages; 4.1.1 A Função de Public Justice; 4.1.2 A Função Deterrence; 4.1.3 A Função Punitiva; 4.1.4 A Função Educativa; 4.1.5 A Função Vingativa; 4.2 A aparente incompatibilidade entre o Punitive Damages e o Princípio do Não Enriquecimento sem Causa; 4.3 A adequação do Punitive Damages ao Princípio da Proporcionalidade; 4.4 O que se espera da aplicação do Punitive Damages no Direito do Trabalho; 5 Soluções extrajudiciais de conflitos como uma saída para a desnecessidade da aplicação do Punitive Damages; 6 Conclusão.

1. Introdução Este trabalho, apesar de ser uma exigência para a conclusão do curso de graduação em Direito, trata de um tema que incomoda qualquer jurista desde os primeiros passos como graduando: a ineficácia da função judiciária. A ênfase, aqui, é no judiciário trabalhista, um dos mais constitucionalizados braços da função judicante. O que se pretende mostrar é que, a despeito de ter sido criado com a função especialíssima de resolver conflitos que envolvam às relações de trabalho, gerando, num segundo momento, a paz social, ele não vem alcançando um desempenho satisfatório. Pelo contrário, a atual postura do Poder Judiciário frente as demandas que lhe são trazidas acabam por sabotar a própria função fim do judiciário, que é, num momento final, como dito, alcançar a pacificação social. O que acontece é que o Judiciário Trabalhista, hoje, permite que todo o aparato judicial seja utilizado contra si próprio, contra seus próprios fins. A fim de ilustrar esta premissa, propõe-se a seguinte situação: Determinada empresa de grande porte gasta, com um empregado, o mínimo que a lei permite que gaste, cerca de R$ 50.000,00 anualmente, descontados os encargos tributários. Todos os direitos trabalhistas são honrados, pagos sem qualquer ofensa legal; outra empresa de grande porte do mesmo setor, contudo, gasta cerca de R$ 30.000,00 anualmente com um empregado que desempenha as mesmas funções num mesmo nível. Esta segunda empresa não honra

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

diversos compromissos legais com aquele empregado que, se recebesse o mínimo previsto em lei para o seu cargo, pelas funções que desempenha, receberia o mesmo que o empregado da primeira empresa (R$ 50.000,00). Além de ter uma vantagem indevida sobre a concorrente, já que tem um menor custo de produção, a segunda empresa lucra diretamente com o desrespeito à legislação trabalhista, isto porque a falta de eficácia da Justiça do Trabalho torna economicamente válido a manutenção desta política do ilícito. Explica-se: Se a segunda empresa conta com cerca de 1.000 empregados desempenhando a função mencionada, apenas uma minoria destes irá buscar o judiciário para receber o mínimo que a lei lhe garante. Estes poucos litigantes receberam, no máximo, o valor que lhes era realmente devido. Toda a diferença salarial devida aos não litigantes permanecerá nos cofres da segunda empresa. Em outras palavras, não há qualquer tipo de estímulo ao cumprimento da lei. Hoje, a cultura do desrespeito às normas trabalhistas é economicamente viável. E o pior, numa análise macroscópica, pode-se concluir que o aparato judicial- trabalhista fomenta esta cultura. Ademais, ainda a título introdutório, informa-se que no presente trabalho se lançará mão da pesquisa qualitativa, que segundo Mezzaroba e Monteiroi, é aquela que busca entender um fenômeno específico de forma verticalizada, com o máximo de profundidade; Neste

149

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sentido, pretende-se entender os impactos da política de mera retribuição, sem qualquer tipo de influência ao desestímulo, no campo fático. Quanto ao método a ser utilizado para o desenvolvimento do trabalho monográfico, pretende-se lançar mão do método indutivo, eis que se parte de constatações fáticas específicas para se chegar a uma conclusão geral, ou seja, se parte da observação da aplicação fática da mencionada política na seara trabalhista para se concluir que de forma geral sua manutenção é prejudicial ao próprio direito do trabalho enquanto limitador da super-exploração de mão de obra. 2. A Flexibilização, o Dumping Social e a Ineficácia do Judiciário Trabalhista. 2.1 A Flexibilização É fundamental para este trabalho que se entenda de forma clara, mesmo que superficialmente, o fenômeno da flexibilização trabalhista e sua relação com o Dumping Social. A Flexibilização do Direito do Trabalho conceitua-se como sendo uma redução da proteção heterônoma do Estado conferida às relações de trabalho. Em outras palavras, há uma diminuição da intervenção estatal nas relações laborais – não se confundindo, portanto, com a desregulamentação, que se conceitua, de acordo com a doutrina, na ausência de normas heterônomas na regência destas relações –. O ideal flexibilizatório, muito festejado no meio empresarial em geral, acarretaria em um enxugamento da folha de pagamento dos empregados, modificando o valor final das mercadorias, aumentando a competitividade daquele produto ou serviço no mercado e, teoricamente, fazendo com que a sociedade como um todo se beneficie. Contudo, esta linha de raciocínio parece estar em total descompasso com a forma como o capitalismo é posto em prática hoje, e que, contrariando seu próprio fundamento existencial, acaba tornando seus agentes gananciosos, agressivos e pouco sensíveis ao papel social que deveriam, em tese, desempenhar. Segundo Vólia Bomfim Cassar: A flexibilização não pode servir ao empregador como desculpa para ter lucro superior, para aumentar seus rendimentos. A flexibilização é um direito do patrão, mas deve ser utilizada com cautela e apenas em caso de real e comprovada necessidade de recuperação da empresa. Daí por que os princípios da razoabilidade, da lealdade, da transparência, da necessidade, devem permear todo o processo, sob a tutela sindical (art. 50, III, da Lei nº 11.101/2000). 2.2 O Dumping Social A Flexibilização, a despeito de ser instituto altamente questionável, pode ser realizada, desde que trilhado o caminho legal, seja pela exceção à intangibilidade salarial, nos termos do art. 7º, VI da Constituição Federali, seja por meio de normas heterônomas. Contudo, prática comum e ilegal é a flexibilização ilícita, ou seja, a diminuição da concretização dos direitos trabalhistas previstos em lei sem qualquer respaldo legal. Em outras palavras, o simples descumprimento normativo; a inobservância da legislação. Segundo Carolina Masotti Monteiroi, citando Jorge Luiz Souto Maior, o Dumping Social é: A prática contumaz e reiterada de desrespeito dos direitos trabalhistas, alerta entretanto, que a contumácia e reiteração não são elementos essenciais e sim acidentais aptos a gerarem qualificadoras à prática, bastando, portanto, apenas o desrespeito aos direitos laborais.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Numa outra concepção, o Dumping Social também é encarado como “uma prática de certas empresas que procuram um aumento dos lucros deslocando-se de um local para outro onde os salários são mais baixos e/ou os direitos dos trabalhadores mais precários. Desta forma, as empresas conseguem colocar os seus produtos no mercado internacional com preços altamente competitivos.”i O Dumping Social, na faceta que interessa para o presente artigo, é o nome dado pela doutrina ao efeito causado pela ofensa reiterada de direitos trabalhistas, fruto de atos que tem por objetivo a diminuição de ilegal de custas e, consequentemente, o aumento da competitividade da empresa no mercado. Inclusive, a própria definição do termo inglês “Dump”, parece ilustrar perfeitamente bem o significado jurídico do termo. O Dicionário Cambridgei traz as seguintes definições: “to put down or drop something in a careless way; to get rid of something unwanted, especially by leaving it in a place where it is not allowed to be;”i. Ou seja, os direitos do trabalhador são colocados de lado, jogados no limbo. A prática do dumping social é catastrófica, notadamente em razão do efeito dominó que gera. Isto porque, a empresa, ao burlar o complexo normativo trabalhista, não ofende tão somente o trabalhador que tem, individualmente, negados seus direitos, repassando-lhe os ônus do empreendimento, mas causa dano, ainda, as empresas concorrentes que respeitam a legislação, isto porque, os custos do agente econômico que ignora as leis trabalhistas são sensivelmente reduzidos e seus produtos e serviços barateados, o que faz com que o infrator tenha larga vantagem sobre o empresário cumpridor de seus deveres legais. 2.3 A ineficácia do Judiciário Trabalhista O efeito da inobservância ilegal dos direitos mínimos do trabalhador é notório quando se atenta para uma perspectiva macro. Basta analisar proporcionalmente o número de relações de empregos existentes e o número de ações trabalhistas ajuizadas. Para se ter ideia, de acordo com a revista Valor Econômico, uma pesquisa realizada pelo Síntese de Indicadores Sociais (SIS), indicou que, em 2013, havia no Brasil 47,4 milhões de Relações Formais de Empregoi. Enquanto isso, a Justiça do Trabalho recebeu, no mesmo período, 3.859.821 novas ações. Ainda, é importante frisar que o número de empregados que, a despeito de terem tido seus direitos lesados, não buscam a Justiça do Trabalho, é gigantesco. Como se não fosse o suficiente, ainda é preciso lembrar que grande parte dos processos ajuizados na Justiça do Trabalho são resolvidos mediante acordos, sendo que, em vários casos, o valor acordado não representa o real dano econômico sofrido pelo empregado – afinal, para que um haja acordo, o empregado tem que ceder, apesar de não ser possível a renúncia da maioria de seus direitos sociais –. Neste cenário, fica bastante claro que a prática quase que institucionalizada do não cumprimento da legislação trabalhista é francamente lucrativa para o empregador, já que, quando é chamado para cumprir suas obrigações – o que não é a regra –, o judiciário trabalhista lhe permite fazê-lo apenas parcialmente. Sintetizando bem todo o exposto, Rodrigo Trindade de Souza: Em algumas situações, força-nos verificar que há mais esforço tendente a buscar argumentos para a diminuição de indenizações a notórios violadores do ordenamento jurídico, que estabelecer efetivas soluções para impedir a delinquência. Parecese acreditar que a “segurança jurídica” ou “segurança social” é preferencialmente alcançada impedindo que os já reconhecidos transgressores do direito sejam punidos em demasia. Para

150

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


se evitar o excesso, opta-se por fórmulas sabidamente insuficientes e barram-se iniciativas de estabelecimento de medidas judiciais que ofereçam respostas voltadas à efetividade. 3. O dever do Judiciário de ser protagonista no combate a ilicitude Dentro da Teoria da Divisão dos Poderes, modernamente aperfeiçoada e entendida como uma divisão de funções de um poder único, a Função Judiciária, de maneira simplória, fica com o encargo fundamental de reprimir os ilícitos definidos pela Função Legislativa e identificados pela Função Administrativa. Contudo, o grau cada vez mais elevado de complexidade das relações sociais, da convivência em sociedade, impõe um desenvolvimento proporcional da função judicante. Em outras palavras, hoje, o Judiciário não pode esperar que, exercendo uma função meramente repressiva, punindo o infrator da lei, seja alcançada a paz social, que sejam respeitadas as leis. É preciso ir além. Este desenvolvimento da função judiciária é paulatino e vem acontecendo, de fato. Exemplos são as tutelas de urgência, as medidas preventivas as cautelares. Há, portanto, formas de não só reprimir eventual dano, mas evitá-lo. Contudo, isto não é suficiente. E é aqui que se situa a pedra de toque deste trabalho – a utilização de medidas eficazes para não só reprimir ou prevenir individualmente um dano, mas, num cenário mais amplo, desestimular o ilícito em todas as relações jurídicas.

4.1 As Funções dos Punitive Damages Para enxergar o quão convergentes são o instituto do Punitive Damages e a intenção de revigorar a Justiça do Trabalho, é necessário entender quais são suas funções. A doutrina pontua cinco principais funções dos danos punitivos, quais sejam: a (i) função de “Public Justice” – ou “Justiça Pública” –, que tem por escopo influenciar o cidadão a buscar o fiel cumprimento da lei; a (ii) função “Deterrence” - ou “de desestímulo” que, vale notar, transcende o sujeito que está sendo punido individualmente, alcançando toda sociedade; a (iii) “função punitiva”, que efetivamente busca punir o transgressor, pautando-se na própria essência típica das sanções; a (iv) “função educativa”, que tem também como objetivo exercer uma influência generalizada sobre toda a sociedade, demonstrando que aquela conduta não é um modelo a ser seguido; e a (v) “função vingativa”, que emana toda uma carga ameaçadora. 4.1.1 A Função de Public Justice

A função de Justiça Pública demonstra qual o fundamento existencial do Punitive Damages – fazer com que a lei seja cumprida. Fazer com que a sociedade observe e respeite as normas jurídicas, a fim de possibilitar o convívio social equilibrado. Como informa o nome, a função de “Justiça Pública” tem por fundamento, portanto, a busca da justiça – justiça esta que não se alcança sem a observância das normas jurídicas que existem justamente para alcançá-la. 4.1.2 A Função Deterrence

4. O Punitive Damages Antes da análise do que considero ser um dos mais efetivos meios de desestimulo da reiterada prática de inobservância não acidental dos Direitos Trabalhistas, sinto-me na obrigação de esclarecer que não me furto de uma análise de enfoque econômico, sob a ótica do mercado e dos próprios empregadores. Feita esta observação, a forma de coerção proposta para a solução do problema supracitado é a importação do Direito Norte-Americano – que já ocorre, é bem verdade, mesmo que a passos curtos –, do instituto do Punitive Damages. Trata-se de uma um instituto de caráter tanto sancionatório como reparador, que pretende desestimular a prática de determinado ilícito. Em síntese, trata-se de uma punição de caráter econômico que vai além do dano individual, não se limitando ao mero ressarcimento, mas sem ultrapassar o valor efetivamente necessário para coibir a repetição daquela conduta indesejada. De acordo com Rodrigo Trindade de Souza: As condenações punitivas são ordinariamente impostas quando as condenações compensatórias não se mostram como remédio adequado ou suficiente. Os órgãos de jurisdição costumam aplicá-las em situações de necessidade de aumento da compensação dos querelantes, quando haja objetivo de desestímulo na repetição da prática, para compensar delitos civis não perceptíveis ou reforçar punições criminais. Seu uso é bastante moderado nos Estados Unidos, sendo que a Suprema Corte Norte Americana já estipulou diversos requisitos para a aplicação do instituto, bem como quais os cenários que permitem sua aplicação. Dentre estas situações, destaca-se “in cases of economic harm, intentional acts of affirmative misconduct or harm to a financially vulnerable victim”, – em tradução livre: “em casos de dano econômico, atos intencionais de má conduta afirmativa ou danos à vítima financeiramente vulneráveis” –, hipótese esta que parece se encaixar perfeitamente na conduta que se pretende evitar – o desrespeito intencional as normas trabalhistas.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Os danos punitivos exercem uma fundamental função preventiva, voltada para o futuro. A ideia é que eles (os danos punitivos) se consubstanciem numa sanção econômica suficientemente alta para fazer com que a sociedade como um todo, ao observar seu montante numa eventual aplicação, temam que esta recaia sobre si, passando a adequar o seu posicionamento frente as normas legais. Citando E. D’Alessandro, Pedro Ricardo e Serpa aponta que: Os punitive damages exercem também uma função preventiva pro futuro, na medida em que, por meio de sua imposição, busca-se evitar que no futuro sejam repetidos comportamentos danosos semelhantes ao cometido, quer por parte do sancionado (a assim chamada função preventiva especial), quer por parte da sociedade em geral (a assim chamada função preventiva geral). Frisa-se a importância desta função no Direito do Trabalho a fim de mudar o atual panorama social. A Justiça do Trabalho, hoje, não tem nenhum caráter preventivo. Dificilmente um empregador se sente coagido a respeitar os direitos trabalhistas. Inclusive, os que o fazem, se pautam em princípios éticos, morais. Respeitam a legislação trabalhista porque acreditam que é necessário se estabelecer um patamar mínimo civilizatório que permita ao seu empregado uma vida digna – mesmo que a motivação para esta vida digna seja o próprio rendimento do empregado no dia a dia na empresa –. A verdade é que limitada como é no que toca ao seu poder preventivo, a justiça trabalhista permite que o desrespeito às normas trabalhistas seja lucrativo, seja atrativo. 4.1.3 A Função Punitiva

Chamada nos Estados Unidos de “retribution” (retribuição), esta função é uma das mais importantes. É esta a função que pretende punir o infrator das normas legais. É ela que busca retribuir ao desregulador da paz social o efeito dos seus atos. Em outras palavras, ela pretenderá fazer a justiça, sancionando o empregador que lucrou indevidamente com o desrespeito às normas trabalhistas.

151

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A doutrina aponta que o punitive damages, dado seu caráter, entre outros, punitivo, deve ter sua aplicação ressalvada somente aos casos mais graves de infrações legais. Ou seja, só deve ser punido de forma tão severa aquele que não sofrer uma sanção grave o suficiente através de outros institutos jurídicos – o que nos força a encarar o dano punitivo como a ultima ratio das sanções trabalhistas –. Ocorre que a própria busca do Punitive Damages no direito comparado já é, por si só, uma medida tomada em ultima ratio. É justamente porque não há, hoje, nenhuma ferramenta hábil a mudar a realidade trabalhista, que se propõe, neste trabalho, a aplicação de instituto importado. De toda sorte, fica registrado que se, no caso concreto, o magistrado achar que pode lançar mão de ferramentas outras que não os danos punitivos e lograr êxito no que diz respeito a pacificação social, ele deve evitar o uso do instituto, dada a sua brutalidade, sua força. Esta ideia converge, inclusive, para o mesmo ponto que o Princípio da Continuidade da Empresai, que o Princípio da Proporcionalidadei, dentre outros. Portanto, deve ser observado, para a aplicação do instituto em estudo, toda a realidade que emolda aquela específica relação de emprego – a reiteração do ilícito, a contribuição social da empresa, a função social desta, etc. -. Por fim, sobre esta função, vale destacar que é ela que deverá, no caso concreto, guiar o magistrado na aplicação do quantum da multa. Quanto maior o dano causado pelo empregador, maior deverá ser a retribuição do direito, maior deverá ser a resposta do judiciário, a fim de equilibrar a situação e desestimular uma nova prática daquele ilícito. 4.1.4 A Função Educativa

A função educativa dos danos punitivos busca fazer saber que a sociedade prioriza aquele direito protegido – diferenciando-se dos demais direitos justamente por ser possível a aplicação do punitive damages para sua proteção, sob a ótica supracitada da ultima ratio –. Em outras palavras, esta função prioriza a conscientização do indivíduo sancionado e da sociedade em geral, fazendo-os entender que o direito tutelado existe para ser observado, tendo fundamental importância para o direito, a ponto de merecer ser emantado por esta forte proteção. Pedro Ricardo e Serpa cita o trecho bastante elucidativo de obra de D.G. Oweni: Tal função educativa se mostra presente em dois distintos aspectos: em primeiro lugar, a incidência dos “punitive damages certifica, de um lado, a existência de um determinado diereito ou interesse legalmente protegido do demandado, bem como, de outro, o correlativo dever legal, por parte do demandado, de respeitar tal interesse” e, em segundo lugar, “os punitive damages proclamam a importância que o Direito atribui àquele interesse violado, bem como a correspondente condenação da Sociedade à flagrante violação do direito decorrente do tipo de conduta levada a cabo pelo demandado”.” Observando a forma como são enxergadas as relações de trabalho fora das academias de direito – e até dentro, em alguns casos, é bem verdade –, nota-se o quão importante é a função educativa neste meio, o quão beneficente seria sua aplicação. A cultura de desrespeito aos direitos trabalhistas é respaldada numa visão antiquada de que é o empreendedorismo, por si só, que impulsiona o desenvolvimento do capital. Não é incomum ouvir que o empregado brasileiro tem direitos demais, que o ônus de se ter um empregado é demasiado – o que é utilizado como justificativa para a manutenção da ilegalidade –. Esta visão, para a revitalização do Direito do Trabalho, precisa ser revista e, acredito, a função educativa dos danos punitivos ajuda-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ria a alcançar este novo panorama, já que retiraria os empregadores de sua zona de conforto. Ou seja, a necessidade econômica de se observar as normas trabalhistas geraria todo um novo mundo de ideias e debates acerca da efetiva necessidade, do efetivo peso dos direitos dos empregados. Hoje, estes debates são ofuscados, já que não há um impulso forte o suficiente para gerá-los em grande escala. A insatisfação com o Direito do Trabalho não gera, atualmente, debates, gera apenas o descumprimento das normas, acarretando nos diversos prejuízos sociais já mencionados. Esta maior comoção e interesse da sociedade como um todo naqueles direitos tutelados certamente seria benéfica para o desenvolvimento do Direito do Trabalho. 4.1.5 A Função Vingativa

Segundo a doutrina, a função vingativa é aquela que, através da punição, leva ao ofendido uma sensação de paz interior. Indo além, ouso dizer que esta sensação de ter sido vingado extrapola o ofendido, sendo distribuída e sentida por toda a sociedade. Para se chegar a esta conclusão, basta uma reflexão interior, buscar na memória o quão reconfortante é ler uma notícia que indique uma punição a um determinado agente econômico que tenha desrespeitado direitos fundamentais de seus empregados – ou não, afinal, as sanções costumam ser irrisórias, o que gera sentimento diametralmente oposto ao que pretende gerar a função vingativa –. 4.2 A aparente incompatibilidade entre o Punitive Damages e o Princípio do Não Enriquecimento sem Causa A corrente doutrinária que defende a inaplicabilidade do Punitive Damages no Direito pátrio tem como um dos principais fundamentos a incompatibilidade entre o instituto e o princípio do não enriquecimento sem causa. Contudo, esta análise é totalmente desvirtuada, eis que perquire o Enriquecimento sem Causa sob o enfoque de uma única relação de trabalho, não levando em conta que, num contexto mais abrangente, há a subversão deste princípio que redunda num verdadeiro enriquecimento ilícito do empregador delinquente, com todas as repercussões negativas que desencadeiam desta prática, resultando em perigosíssimo e extremamente contagioso Dumping Social. Em síntese, o Princípio do Não Enriquecimento sem Causa remete ao antigo jargão “dar a cada um o que é seu”, nem a mais, nem a menos. Cunhado no ideário liberal que aponta o próprio esforço como elemento suficiente para se alcançar o sucesso, o Princípio do Não Enriquecimento sem Causa não permite que alguém enriqueça de forma desmotivada, sem mérito próprio. A primeira vista, a aplicabilidade do princípio a quaisquer relações jurídicas, vedando que haja o enriquecimento de um sujeito às custas de um outro, sem que haja fundamento jurídico para tanto, parece bastante acertada. O Princípio em comento foi pensando sob uma ótica bilateral, ou seja, foi pensado como sendo um ponderador, uma vertente da razoabilidade, a ser aplicada às relações jurídicas contratuais. Numa relação de trabalho, não poderia o trabalhador auferir mais do que o previsto no complexo normativo trabalhista – incluído ai seu contrato de trabalho –, tampouco poderia o empregador deixar de remunerar o trabalhador da forma como manda este mesmo conjunto normativo, sob pena de um ou outro se enriquecerem de forma indevida, sem causa, sem fundamentação jurídica. Os efeitos nocivos deste Princípio, da forma como é aplicado, de forma literal, só são notados quando se observa todo o complexo de relações jurídicas de determinado sujeito de forma macroscópica. Quando uma demanda trabalhista é levada ao judiciário por um em-

152

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pregado, o juiz, ao limitar o quantum devido ao que é dele por direito, ou seja, ao estabelecer como teto indenizatório o dano causado àquele empregado específico, está coibindo, na literalidade, certamente, o enriquecimento sem causa do empregado. Contudo, ao mesmo tempo, está não só autorizando, como fomentando, o enriquecimento ilícito do empregador. Isto porque, numa perspectiva macro, mais ampla, nota-se que aquele empregador causou danos a todo um conjunto de trabalhadores, enriquecendo ilicitamente em cada uma destas relações contratuais, e, na realidade fática trabalhista, como visto, a grande maioria dos empregados não vai até o judiciário requerer a reparação pelo enriquecimento ilícito do empregador às suas custas, seja por medo, seja por não confiar na efetividade do Judiciário, seja pelo motivo que for e, quando vai, não tem uma reparação integral. Em conclusão, a aplicação judicial do Princípio do Não Enriquecimento sem Causa para ponderar o valor devido ao empregado se mostra como sendo um verdadeiro escárnio, eis que esta aplicação se distancia completamente do fundamento existencial da própria norma principiológica – dar a cada um o que é seu –. O que ocorre, na prática, é dar ao empregado reclamante menos do que é dele, o que redunda num enriquecimento Ilícito institucionalizado por parte do empregador. 4.3 A adequação do Punitive Damages ao Princípio da Proporcionalidade Curioso notar, ainda, que apesar de considerado desproporcional por parte da doutrina, o poder coercitivo do Punitive Damages é totalmente compatível com o Princípio da proporcionalidade, passando por todos os seus filtros. Para esclarecer esta compatibilidade é necessário, antes de mais nada, definir tanto o Princípio da Proporcionalidade quanto o da Razoabilidade. Segundo Robert Alexyi, a razoabilidade está presente em todo o mundo jurídico. A própria lei, ao ser escrita, observa a razoabilidade. É um conceito absurdamente amplo, subjetivo. E este subjetivismo constitui uma irrazoabilidade por si só dentro de um mundo como o do Direito. A razoabilidade não passa de um instituto fundado sobre a máxima do bom-senso – máxima esta de difícil aplicação prática –. Descartes dizia que “O bom-senso é o bem mais bem distribuído do mundo, já que todos acham que o tem”. Com a vagueza do Princípio da Razoabilidade em mente, a Doutrina Alemã, tentando delinear de forma mais concreta o que seria e o que não seria razoável, faz nascer o Princípio da Proporcionalidade. A Proporcionalidade é, na verdade, um complexo que envolve outros subprincípios que atuam como uma espécie de filtro. Se a medida for capaz de atravessar todos os filtros, será, por tanto, proporcional. São eles: a) Subprincípio da Adequação (da idoneidade): A medida será proporcional quando for uma medida adequada para a consecução de uma finalidade licita. b) Subprincípios da Necessidade (da exigibilidade): A exigibilidade remete à indagação (não há saída melhor?). Quando a medida a ser tomada implicar em um conflito entre princípios, cabe a Proporcionalidade, fazendo as vezes de mediadora, adequar a medida de forma que ambos os princípios sejam o menos sacrificados o possível. c) Subprincípio da Proporcionalidade em Sentido Estrito: Consiste em identificar se, entre o choque entre valores, aquela medida adequada e necessária escolhida fez com que se ganhasse mais do que se perdeu. É preciso que se chegue à conclusão de que, se tomada outra medida, se a Cedência Recíproca tivesse pendido mais para o lado oposto do que se optou, haveria, como resultado, uma perda maior do que se teve com a medida adotada. Tendo em mente o conceito objetivo de Proporcionalidade e os

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

requisitos para se terem como observadas suas diretrizes, fica fácil perceber que, de fato, o Punitive Damages é uma medida proporcional, eis que, é adequado, ao passo que busca estimular a sociedade ao cumprimento da legislação – finalidade lícita –; é também necessário, como se pretende demonstrar ao longo deste trabalho, já que as medidas adotadas pelo judiciário até agora não surtiram o efeito desejado, no que diz respeito ao desestimulo ao ilícito; e, por fim, a meu ver, passa também pelo terceiro filtro, já que num exercício de comparação entre os resultados de eventual aplicação do Punitive Damages e da sua não aplicação, é difícil imaginar que a aplicação do instituto causaria um resultado ainda pior do que a sua repulsa. Em outras palavras, é difícil imaginar um cenário pior do que o atual, em que as normas estatais são cada vez mais desacreditadas, ao passo que da efetivação de direitos trabalhistas é feito escárnio por parte da iniciativa privada, que utiliza o próprio judiciário contra si mesmo, como demonstrado. 4.4 O que se espera da aplicação do Punitive Damages no Direito do Trabalho Acredito que uma série de benefícios surgiriam da aplicação do instituto no Direito do Trabalho. Se difundida esta sanção mais severa, realmente impactante, apta a tornar prejudicial – e não lucrativa – a prática de ilícitos, o primeiro efeito seria, justamente, a redução do número de ilícitos. Ora, se economicamente não é mais viável manter o modelo de gestão pautado na ilegalidade, o agente econômico não mais o manterá. Um segundo efeito, também muito apreciado e consequência direta do primeiro, seria o da redução do número de demandas no judiciário trabalhista. Inclusive, vale reforçar o já citado dado estatístico: o número de ações propostas hoje é absurdamente alto – embora ínfimo perto do número de relações de emprego que não observam efetivamente todas as regras atinentes ao direito do trabalho –. A onda de ilícitos gerados pela falta de atuação preventiva do governo resulta em gastos altíssimos. A manutenção do Poder Judiciário, hoje, para tornar possível processar o amontoado de ações, é de elevadíssimo custo, custo este que o Brasil, na situação de vulnerabilidade econômica que se encontra, poderia tirar proveito de ver-se livre. Ainda, a criação de uma cultura de respeito as normas legais, substituindo-se a atual cultura da ilicitude, reforçaria a segurança jurídica, tornando a convivência social mais saudável, mais hígida. Os resultados disso, inclusive, não se limitam as relações de trabalho, transcendendo a todo o mercado, todo o setor econômico. Segundo a linha de raciocínio adotada quando da menção ao Dumping Social, chega-se à conclusão de a adoção do Punitive Damages tornaria o mercado bem mais fértil à recepção do ideal capitalista, pautado na livre concorrência e na boa fé. A competitividade entre as empresas aumentaria, já que não haveria benefício econômico sustentável para eventuais jogadores que não seguissem as regras do jogo. Por consequência, em tese, a qualidade dos produtos aumentaria e os preços seriam diminuídos, na busca por atrair os consumidores. Em suma, nota-se que a adoção da política do desestímulo ao ilícito geraria benefícios sociais de grande monta, tornando o cenário do judiciário trabalhista bem melhor do que é hoje. 5. Soluções extrajudiciais de conflitos como uma saída para a desnecessidade da aplicação do punitive damages Como mencionado alhures, o punitive damages tem poder suficiente para ter marcante eficácia na solução do problema do desres-

153

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


peito à legislação trabalhista. Justamente pelo seu extremismo, pela sua força, é que é necessário apontar meios outros de solução do problema, a fim de evitar um dano muito grande ao setor econômico brasileiro – afinal, multas muito vultosas tem por intenção, exatamente, lesar o multado, a fim de que ele não mais volte a praticar o ato gerador da multa, bem como que outros agentes não o pratiquem, pelo medo de serem também sancionados –. Há que se reconhecer que, a despeito de ser uma necessidade imediata a severa coerção dos empregadores que praticam o dumping social, seria interessante, pelo próprio momento histórico de primazia da democracia em que vivemos, possibilitar que as próprias entidades de classe e o Ministério Público do Trabalho se tornassem protagonistas deste processo de revitalização da Justiça do Trabalho. Em outras palavras, sugere-se que sejam fomentadas as soluções extrajudiciais de conflito, a fim de que estes entes possam realizar acordos com os empregadores no que diz respeito ao passado, às verbas já negligenciadas – é claro que não se poderia pensar num acordo para postergar a garantia dos direitos trabalhistas previstos em lei, inclusive pelo caráter usualmente indisponível destes.

ses, Harvard Law Review – Volume 111, number 4, February 1998. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007 SERPA, Pedro Ricardo e. INDENIZAÇÃO PUNITIVA, Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Direito Civil. Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, São Paulo, 2011. Disponível em “http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/2/2131/tde-15052012-102822/pt- br.php”. SOUZA, Rodrigo Trindade de. Punitive damages e o direito do trabalho brasileiro: adequação das condenações punitivas para a necessária repressão da delinquên-cia patronal. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Fortaleza, Ano XXXIII, nº 33 - jan./dez. 2010.

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

6. Conclusão A Justiça do Trabalho, da forma como exerce sua jurisdição, sabota a si própria. A inaplicabilidade de institutos desestimuladores da pratica de ilícito reflete negativamente no número de demandas, no grau de eficácia e no poder de coerção do judiciário. É preciso, para vencer este processo de neutralização de si mesma, que a Justiça Trabalhista busque novas ferramentas. Dentre as possíveis, sugere-se a importação do Punitive Damages, aplicável comumente nos países que adotam a comum law – embora em nada se incompatibilizem com o nosso sistema mais voltado ao civil law –. Adotando-se o referido instituto, o magistrado deve, quando da fixação do quantum devido pelo praticante de um ilícito, deixar de se limitar ao aspecto compensatório individual, passando a se preocupar também com o caráter desestimulador da sanção. Com o Punitive Damages, o Judiciário deixa de atuar de forma passiva tão somente, e passa a ter uma atuação ativa, tomando as rédeas da função coercitiva, influenciando positivamente o mercado de trabalho, que passará a se adequar as normas trabalhistas, sob real risco de sofrer uma sanção adequada – mudando o cenário atual em que quase não se vislumbra este risco, dada a ineficiência fiscalizatória do Poder Executivo. REFERÊNCIAS ALEXY, Roberty. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. Editora Malheiros, 2014. CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 11ª ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em:<http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm> Constituição Federal da República do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 13ª Edição. São Paulo. LTr, 2014. MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Claudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. 5. ed. Saraiva, 2009. MONTEIRO, Carolina Masotti. A prescrição na perspectiva do dumping social. Revista Ltr, ano 79, maio de 2015. POLINSKY, Mitchell e SHAVELL, Steven. Punitive Damages: An Economic Analy-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

154

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


OS FUNDAMENTOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 COMO INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA Frederick Haendel Cunha Andrade1 Célio Stigert2 RESUMO: O Presente estudo tem como escopo, através de pesquisa bibliográfica, trazer à baila os principais fundamentos que edificam o novo Código de Processo Civil - aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidente no ano de 2015 - sob o prisma da busca pela efetivação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como da justiça distributiva. Pretende-se demonstrar, especificamente a observância do novel código à ordem principiológica da Constituição da República Federativa do Brasil no que consiste a garantia de um devido processo legal mais justo e equânime. ABSTRACT: El presente estudio tiene como objetivo, a través de la literatura, presentar los principales fundamentos que construyen el nuevo Código de Procedimiento Civil - aprobado por el Congreso y sancionada por el Presidente neste año de 2015 - en la búsqueda de prisma para la realización del principio constitucional de la dignidad de persona humana y de la justicia distributiva. Tenemos la intención de mostrar, en concreto el cumplimiento de nuevo código a la orden de principios de la Constitución de la República Federativa del Brasil en lo que es la garantía de un debido proceso más justo y equitativo de la ley. PALAVRAS CHAVE: fundamentos; justiça; contraditório; processo. Keywords: fundaciones; la justicia; contradictoria; procedimiento. SUMÁRIO:1. Introdução; 1.1 O princípio da dignidade da pessoa humana e o acesso à justiça; 1.2 A justiça distributiva e a questão da equidade; 2. Os fundamentos do Código de Processo Civil de 2015 como instrumentos democráticos de garantia de acesso à justiça para a efetivação do princípio da dignidade humana; 2.1 O novo sistema principiológico do CPC 2015; 2.2 O sistema comparticipativo e cooperativo de processo; 2.3 O contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa; 2.4 O contraditório como garantia de aproveitamento da atividade processual e acerca dos precedentes; 2.5 O Acesso à justiça e o modelo multiporta do CPC 2015; 3. Conclusão; Referências.

1 Introdução A constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe o princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, III, como um dos seus princípios fundamentais, carregado de valoração histórica e cultural, norteador de toda ordem democrática brasileira, de toda ação estatal - seja por meio do executivo, legislativo ou do judiciário - bem como dos particulares à observância da noção teórica insculpida pelo imperativo categórico de Immanuel Kant, segundo o qual o ser humano possui um fim em si mesmo, obstando-se de ser pensado ou utilizado como coisa, ou seja, postulando-se pela sua não coisificação, conforme DALSSOTO, 2013 p. 1. Ocorre que para efetiva aplicação do aludido princípio, faz-se necessária a eficácia material dos direitos e garantias fundamentais positivadas no artigo 5º da Constituição brasileira. Dentre eles, ressalta-se neste estudo sobre o novo Código de Processo Civil, o direito ao acesso à justiça, gravado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição; o direito de petição face aos poderes públicos em defesa de direitos, contra ilegalidade ou abuso de poder, conforme inciso XXXIV, “a” do mesmo dispositivo constitucional; o devido processo legal, inciso LIV, contraditório e ampla defesa, LV, todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Como corolário do devido processo legal: a publicidade do processo, conforme o art. 5º, LX, CRFB/88; a proibição da produção de provas ilícitas, art. 5º, LVI; a imparcialidade do julgador, bem como a garantia do juiz natural, art. 5º, XXXVII e LIII; a motivação das

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

decisões art. 93, IX; a duração razoável do processo art. 5º, LXXVIII, dentre outros, além do tratamento paritário dos sujeitos envolvidos no processo, à luz do art. 5º, I, do CPC/73, os quais, a partir da sanção do Código de Processo Civil de 2015, ganham nova conotação, instrumentalização e aplicação para a égide de um processo mais justo e equânime. Processo este, onde as partes, incluindo-se o julgador deverão estar mais abstraídas de suas diferenças individuais, do apego de cada um, mesmo justificado, a seus interesses egoístas ou contingentes, tendo em vista os novos fundamentos paradigmáticos do Código de Processo Civil de 2015, que preconiza a primazia pela real resolução dos conflitos. Menciona-se o seu novo sistema principiológico; a mudança paradigmática na aplicação do direito por meio do sistema comparticipativo/cooperativo de processo; o contraditório dinâmico como garantia de influencia e não surpresa; o princípio da prevenção, da boa fé objetiva; o modelo multiportas do novo código para o acesso à justiça; a fundamentação racional e legitima e o novo sistema de precedentes. Estes são exemplos de possíveis instrumentos capazes de tornar o processo mais equânime e fazer jus ao símbolo da balança que representa a justiça? O presente trabalho também pretende apresentar, em apertada síntese, o ideário de justiça distributiva sob o enfoque da constitucionalização do Direito, expondo um diálogo de grandes filósofos, tais como Aristóteles, Sócrates, Platão, Alain, Immanuel Kant, Spinosa,

155

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


André Conte Sponvile, Hans Kelsen, John Rawls e Michael J. Sandel, acerca da noção de justiça insculpida ao longo da história da humanidade, engravidados pela Constituição brasileira de 1988, a fim de demonstrar a observância de tais ditames nos fundamentos do CPC 2015 para a construção de um processo mais equilibrado onde o “contraditório, em sentido forte, possui uma função compensadora das desigualdades que, pela natureza das coisas, existem entre as partes (por ex.:governantes e governados ou ricos e pobres), segundo THEODORO, 2015, p. 90. Onde o contraditório é fortalecido, a democracia é respeitada. Enfim, estar-se-ia a responder a seguinte questão: os fundamentos do Código de Processo Civil de 2015, sendo estabelecidos por um processo democrático alinham-se à constitucionalização do Direito, aos ditames da justiça distributiva? É capaz, então, de ser instrumento de efetivação dos direitos fundamentais e principalmente do princípio da dignidade da pessoa humana? 1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o acesso à justiça A Constituição, ao estatuir os objetivos da República Federativa no Brasil, no art. 3º, I, estabelece, entre outros fins, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O inciso III, do referido dispositivo constitucional prevê outro fim a ser atingido, complementando e definindo o anterior, qual seja: a erradicação da pobreza, da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e regionais. Moraes, (2007, p. 110-113), admite que, a partir destes comandos legais como os incisos do artigo 3º da CRFB/1988, é que são avocados os poderes a uma atuação proativa, calcada na concepção de justiça distributiva, direcionada à promoção da igualdade substancial, sendo proibidos os preconceitos de qualquer espécie. Ademais, conforme a referida autora inexiste na Constituição de 1988 um comando autorizativo à exclusão e também não há espaço para a resignação submissa, à aceitação passiva da enorme massa destituída de direitos. Conforme o texto da Lei Maior, a configuração do nosso Estado Democrático de Direito tem por fundação: o princípio da dignidade humana, a igualdade substancial e solidariedade social, e determina, como sua meta prioritária, a correção das desigualdades sociais e regionais, como propósito de reduzir os desequilíbrios entre regiões do país para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Esta expressa referência à solidariedade, fonte de preocupação do legislador constituinte, estabeleceu em nosso ordenamento jurídico um princípio inovador que deve sempre ser observado: o princípio da d ignidade da pessoa humana, estatuído no artigo 1º, III da CRFB/1988, conforme, Moraes (2007, p. 110-113). Segundo Moraes, (2007, p. 95), o substrato material deste princípio divide-se em quatro postulados: o sujeito moral, ético, que reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; merecedores da mesma integridade psicofísica de que é titular; é dotado de vontade livre, de autodeterminação; é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não ser marginalizado. Como corolários desta elaboração, os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade. Lira (2013, p.1), aduz que, os efeitos da instituição da dignidade da pessoa humana na CRFB/1988 não se esgotam apenas na previsão constitucional, pois esta concepção assume a condição de unidade valorativa de todo o sistema constitucional, ou seja, o princípio fomentador de todas as ações do Estado, principalmente na proteção dos direitos fundamentais. Assim, tendo-se em vista a unidade valorativa imposta pela dignidade da pessoa humana, imperioso se faz a interpretação do direto fundamental do acesso à justiça, também como corolário daquele princípio, sobretudo num país de heranças

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

coloniais com tamanha desigualdade social. Com apoio em Canotilho (2003, p. 499), pode se dizer que o acesso à justiça é visto em duas dimensões jurídico-constitucionais distintas, que devem sempre ser mensuradas na busca pela concretização desse direito fundamental. Explica o autor que a primeira dimensão se identifica por quatro pressupostos: “direito à decisão fundada em norma jurídica; direito a pressupostos constitucionaismaterialmente adequados; proteção jurídica eficaz e temporalmente adequada; direito à execução dos julgados”. A respeito do direito à proteção jurídica eficaz e temporalmente adequada, Canotilho (2003, p. 499) assevera que o fator tempo além de mostrar que “a justiça tardia corresponde à denegação da justiça” a mera aceleração da atividade jurídica que resulte na diminuição das garantias processuais e materiais não é a solução. Frise-se que esta a compreensão é interessante, ao passo que as reformas legislativas e mudanças comportamentais nos órgãos jurisdicionais não podem, sob o pretexto de buscar a celeridade processual, mitigar direitos ou garantias processuais, donde se fazem necessárias análises como a do presente estudo. Sobre este ponto, fica claro que o direito fundamental de acesso à justiça é, pelo menos no Brasil, o braço direito do princípio da dignidade da pessoa humana, no que atine a sua concretização. Desta forma, o processo civil cumpre importante papel para propiciar a universalização do acesso aos direitos fundamentais. 1.2 A Justiça Distributiva e a questão da equidade Assevera Sponville (1999, p. 47), que, “a justiça é a única das quatro virtudes cardeais que tem valor absoluto, que não pode se reduzir a utilidade.” A prudência a temperança e a coragem, segundo o autor só são virtudes, se a serviço do bem, ao passo que a justiça as superam ou as justificam. Sem a justiça, a prudência, a coragem, e a temperança seriam meros talentos ou qualidades do espírito ou do temperamento, afirma Sponville (1999, p. 47) apud Immanuel Kant. Mesmo o amor - passional que é - não é absoluto, eis que pode ser utilizado para o mal. O assassino ou o tirano pode ser corajoso, ou mesmo prudente, acrescenta-se, mas não virtuoso, segundo Sponville (1999, p. 48) Contudo, ainda conforme Sponville (1999, p. 48) apud Immanuel Kant, se o assassino ou o tirano forem justos, “seu ato imediatamente mudará de sentido ou de valor.” Questionando-se o que seria um justo assassino ou tirano, o referido filósofo responde apontando sua visão da singularidade da justiça: “um assassino prudente ou um tirano sóbrio nunca surpreenderão ninguém;” segundo Sponville, (1999, p.48). A unidade encontrada nos argumentos até aqui, refere-se ao valor absoluto contido na noção de justiça, valor este que comporta fim em si mesmo. Prosseguindo com o debate, Sponville (1999, p. 51) expõe o pensamento de Aristóteles, que asseverava: “não é a justiça que faz os justos, são os justos que fazem a justiça”; diferente de Kant que já demonstrou pretensão de deduzir da sua ideia de justiça a necessidade absoluta da pena de morte para todo assassino, fazendo inferir que a justiça é que levariam as pessoas a se tornarem justas. Ainda conforme Sponville (1999, p. 47), traz-se no presente trabalho a noção de justiça de Alain, que parece corroborar com Aristóteles sobre a ideia de que são os justos que fazem a justiça, e não o contrário. A justiça não existe, a justiça pertence a ordem das coisas que se devem fazer justamente porque não existem. A Justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano. SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. p. 47. Martins Fontes.1999).

156

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Aristóteles dizia que “a justiça não é uma virtude como as outras. Ela é o horizonte de todas e a lei de sua coexistência. Virtude Completa;” conforme Sponville,1999, p.48). Segundo ele, todo valor a supõe; toda humanidade a requer. Não que ela fizesse as vezes da felicidade, porém a felicidade, dela, depende. O que se vê, em que pese às diferenças, é que o diálogo aponta para uma certa coesão, não se pode relegar a justiça à utilidade. Parafraseando Sponville (1999, p.48), em sendo a justiça apenas um contrato de utilidade, como pensava Epícuro - filósofo grego do período helenístico - para somente realizar a melhoria do bem-estar coletivo, além de Jeremy Bentham e John Stuart Mill poderia se sacrificar alguns neste acordo? A titulo de exemplo: algumas minorias sociais e étnicas como pobres e negros, bem como os índios sem sua anuência, ainda que inocentes? Neste sentido, segundo, Sponville (1999, p. 48) apud John Rawls: “a justiça é mais e melhor do que o bem estar e a eficácia, e não poderia ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria. A que, aliás, se poderia sacrificar legitimamente a justiça, uma vez que sem ela não haveria legitimidade nem ilegitimidade? SPONVILLE, André Comte. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. p. 49. Martins Fontes.1999). Extrai-se da citação acima, uma aparente preocupação quanto ao risco de a justiça tornar-se instrumento de paixões, preconceitos, individualidades em favor de determinada ideologia, seja draconiana, liberal, social, etc., pelo que perderia seu próprio valor, além de esvaziar os outros valores, que deixariam de ser valores, pois poderiam servir à parcialidade e ao favoritismo. Noutro prisma a justiça enquanto instituição dever - se-ia inspirar-se no valor absoluto de justiça como sendo seu horizonte, sendo, portando, sua condição de legitimidade e de existência, obstando-se do apego a determinados valores isolados. O diálogo em tela parece expor a necessidade de se criar mecanismos de aplicação da justiça que passe pela abstração dos interesses e subjetividades dos sujeitos envolvidos num processo, (sujeitos que tendem a apropriar-se do seu fim para a satisfação de interesses individualistas correspondentes a sua visão dos fatos). Busca-se, desta maneira fazer com que o centro de gravitação da lide, deixe de ser concentrado em uma das partes ou no julgador, para, então, gravitar realmente sobre a resolução meritória do conflito, de forma democrática e comparticipativa, de maneira que a justiça, como valor e como instrumento de jurisdição não seja manipulada pelo subjetivismo de seus atores, mas equilibrada pela força gravitacional resultante da dialética existente entre todos os envolvidos. Isto teria o condão de fazer com que seus interesses, valores e estratagemas processuais fossem sopesados pela justiça como valor e como instrumento de jurisdição, isonômico e equânime, historicamente construídos pelas sociedades. Não por menos existiriam os princípios do devido processo legal, da imparcialidade do julgador que impõe sua equidistância em relação às partes, agora com nova leitura a partir dos princípios da comparticipação; do contraditório com garantia de influencia e não surpresa; do princípio da prevenção, além de outros como a boa-fé objetiva e o da fundamentação racional e legítima. No mesmo sentido Sponville (1999, p. 49), aduz: “o eu é injusto, sempre, e não se pode pensar a justiça, por essa razão, a não ser colocando o eu fora do jogo ou, em todo caso, fora de condições de governar o julgamento”. É exatamente neste contexto a afirmação de Humberto Theodoro Junior acerca dos fundamentos do Código de Processo Civil de 2015, ao afirmar que “o novo CPC é um código de todos os sujeitos processuais, é, portanto, policêntrico.” Isto porque, através da sua

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

nova redação é perceptível a busca pelo desfazimento da centralidade do Juiz ou das partes, tornando-se possível a abstração de suas subjetividades em prol da real busca pela resolução efetiva do mérito do conflito, fazendo do processo civil mais justo. Ainda conforme Sponvile (1999, p.49), a justiça se revelaria como conformidade ao direito e como igualdade ou proporção, este entendimento é exposto no exemplo usado pelo autor, pelo qual ele mostra que os adultos, neste contexto, julgarão injustas, tanto as gritantes diferenças de riquezas – especialmente no que diz respeito a justiça social, quanto as ocorrências de infringência da lei, que a justiça, enquanto instituição, terá de conhecer e julgar. Sponville já começa a propor uma condição equânime para a aplicação da justiça e para seu funcionamento enquanto instituição e processo. Em seus apontamentos sobre Aristóteles, explica Sponville, (1999, p.49), que o justo é aquele que só fica com a sua metade dos bens, e com toda sua parte dos males. Para ele, a justiça corresponde a não infringência da lei, nem ao legítimo interesse de outro, do direito em geral, bem como dos particulares. Já Sócrates contrapõe-se a moralidade da obediência à autoridade e da concordância cega com o costume, segundo Conford (2008, p. 48). Para além disso, propõe Sócrates a substituição da moralidade infantil, da conformidade irrepreensível por um ideal de idade adulta espiritual que se elevasse acima dos limites comumente reconhecidos da capacidade humana através do autoconhecimento e pelo conhecimento como virtude. Contudo, respeitoso com a lei positivada, submeteu-se a um “injusto e infame” julgamento, segundo Platão, seu discípulo, devido acusação de desvirtuar os jovens de Atenas, pelo que veio a falecer tomando cicuta em sua prisão, Conford, ( 2008, p.48). Sponville, (1999, p.50) trabalha a ideia de justiça de Platão: “é o que lhe reserva a cada um a sua parte, seu lugar, sua função, preservando assim a harmonia hierarquizada do conjunto.” Platão indaga se seria justo dar a todos as mesmas coisas, quando, esses, não tem as mesmas necessidades e nem os mesmos méritos? O físico, matemático, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal, em sintonia com Aristóteles define que “a justiça é o que é estabelecido; assim, todas as nossas leis estabelecidas serão necessariamente consideradas justas sem serem examinadas, pois são estabelecidas;” ainda segundo Sponville (1999, p.50). Em contraposição, Hobbes assevera que “o soberano decide, e é o que se chama lei propriamente. Mas o soberano – mesmo que seja povo – nem sempre é justo.” Sponville, (1999, p.50). Pode-se inferir do debate que nenhuma das proposições é proprietária exclusiva da noção de justiça, mas cada uma delas contribui determinantemente para formação de um ideário complexo. É justamente pela tensão criada entre os parâmetros estabelecidos por diversos celebres pensadores que se pode chegar ao equilíbrio representativo da balança, que reclama ajustes conforme o avanço da humanidade e conforme o caso concreto. O centro gravitacional de equilíbrio ou o núcleo de uma força justa seria, arrisca-se a dizer, o resultado da dialética destas ideias. Pelo prisma desta dialética de ideias, entende-se que os fundamentos do Código de Processo Civil de 2015 foram democraticamente escritos, buscando afastá-lo de certas dicotomias, que polarizaram a noção de justiça como valor e como instituição, esta última, sendo instrumentalizada por meio de um processo judicial mais equilibrado, por se desviar do embate dos que defendem o liberalismo processual que preconiza o protagonismo das partes, em face daqueles que advogam pelo protagonismo dos juízes, sob uma perspectiva de socialização do processo com noções estatizantes. Desse modo, constituindo-se um processo plural em que todos os sujeitos são responsáveis

157

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pelo seu efetivo andamento e pelo provimento jurisdicional final, Theodoro (2015, p. 20). Ou seja, os fundamentos do Código de Processo Civil estabeleceram um caminho próprio e democrático, nem uma e nem outra ideologia teria sido privilegiada alçando a primazia pela resolução fática da lide com intensa participação de todos os sujeitos. Contudo, é importante e necessário um critério, mesmo que seja aproximado, e um princípio, ainda que seja incerto para guiar-nos na administração da jurisdição. Sponville afirma que o princípio deve estar ao lado de uma certa igualdade, ou reciprocidade, ou equivalência, entre indivíduos, sem se reduzir a ela. Seria a origem da palavra equidade ( de aequus, igual), revelando-se como sinônimo de justiça. Conforme Sponville (1999, p. 52), “a justiça é a virtude da ordem, mas equitativa, e da troca, mas honesta. Mutuamente vantajosa.” Sabese que uma troca justa reclama uma condição de proporcionalidade e igualde. Para Rawls, conforme os estudos de Sandel (2012, p.178), a equidade pressupõe uma situação em que “ninguém estaria numa posição superior de barganha”, instante este, possível a partir de uma postura em que seja motivada apenas pelo interesse próprio na vida real, desapegando-se de convicções morais e religiosas. Seria o Código de Processo Civil de 2015 fruto da observância destes valores? 2 Os fundamentos do Código de Processo Civil de 2015 como instrumentos democráticos de garantia de acesso à justiça para a efetivação do princípio da dignidade Humana. A lei 13.105, de 16/03/2015 que institui o novo Código de Processo Civil, segundo Theodoro, (2015, p.20) foi estruturada com um novo sistema que “procura fugir do costumeiro embate entre os defensores do protagonismo das partes ([...] liberalismo processual) e aqueles defensores do protagonismo dos juízes ([...] adeptos da socialização processual e de concepções estatizantes).” Isto se realizaria por meio do novo sistema principiológico do Código de Processo Civil de 2015; do sistema comparticipativo e cooperativo de processo; do contraditório como garantia de influencia, da comparticipação de todos os sujeitos do processo e da não surpresa; do contraditório acerca da divisão dos papéis, das propensões cognitivas e a motivação de um sistema normativo comparticipativo em ambiente não cooperativo. Reporta-se, ainda, ao contraditório como bilateralidade em audiência e simétrica paridade de armas, inclusive com a negociação de atos processuais pelas partes, dificultando decisões centralizadas em uma das partes ou somente na posição do julgador; o contraditório como aproveitamento da atividade processual, as decisões surpresas em matérias de conhecimento de ofício; o contraditório em relação aos precedentes, e por fim o acesso a justiça e o modelo multiportas do novo Código de Processo Civil. Estes são os fundamentos a serem sucintamente tratados na presente investigação bibliográfica. Por meio destes fundamentos e com o escopo de afastar a atividade jurisdicional desta dicotomia (liberal/social) idealizou-se um sistema processual realmente democrático, haja vista que o CPC 2015 foi delineado por “um sistema comparticipativo/cooperativo pautado nos direitos fundamentais dos cidadãos e no qual todos os sujeitos processuais assumem responsabilidades e possibilidade de interlocução ativa;” conforme Theodoro (2015 p. 74). Como exemplo disto, o autor cita que o artigo 190 do novo CPC (Cláusula de Negociação Processual) permite, num prisma, uma otimização da gestão dos juízes quanto a sua atividade jurisdicional, mediante técnicas de administração processual do conflito, noutro, permite o exercício da autonomia privada mediante o uso de conversões de procedimento. Ressalte-se que no novo CPC ampliou-se o debate contraditório, à luz da redação do artigo 10, fortaleceu-se a obrigação de adequada fundamentação,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

conforme o artigo 489, fazendo com que as decisões judiciais sejam constituídas de melhor “substrato para um sistema que se vale dos precedentes como técnica decisória (arts. 926-927)”, de acordo com Theodoro, (2015, p 76). Neste sentido, defende o autor que, a partir de decisões melhor fundamentadas, e posteriormente a uma cognição bem preparada, também com possibilidade de acordo processual típico com fixação de li mitação cognitiva e efeitos preclusivos por meio do saneador negociado e comparticipado entre as partes, haverá uma diminuição das numerosas taxas de reformas nas instancias “ad quem”, resultado da atual superficialidade do debate, consoante a previsão do artigo 357, §§ 2º e 3º, que estabelece: Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I - resolver as questões processuais pendentes, se houver; II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento. § 1o Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável. § 2o As partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz. § 3o Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações. (Grifos nosso). BARROSO, Darlan. JUNIOR, Marco Antônio Araújo. Mini Vade Mecum Civil e Empresarial 2015/2016, 5º ed.: Código de Processo Civil. Revista dos Tribunais. p. 2.147). É flagrante a preocupação do legislador, bem como dos juristas incumbidos de elaborar o Código de Processo Civil de 2015 com a necessidade de chamar as partes para cooperarem em prol da resolução fática do mérito, privilegiando, inclusive, a autonomia privada delas no que diz respeito a direitos processuais disponíveis. Desta forma o processo aparenta se tornar um instrumento mais fidedigno de busca da verdade e consequentemente de resolução núcleo do problema, melhor satisfazendo as premissas da Constituição da República de 1988 no que diz respeito à universalização do acesso aos direitos fundamentais. Passa-se a expor, em síntese, cada um dos pressupostos apontados acima. 2.1 O novo sistema principiológico do Código de Processo Civil de 2015 Theodoro (2015, p. 45,) propõe que a rotineira utilização dos princípios como fundamento da aplicação do direito “foi um dos pilares da elaboração do Novo CPC”. Segundo o referido autor, é importante um entendimento preciso da teoria dos princípios e da adequada leitura que o novo Código de Processo Civil procura proporcionar para o aperfeiçoamento do acesso à justiça, esta, democrática. Esta observação

158

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


se faz necessária para concretizar o desenho de um sistema dogmático íntegro e adequado que respeite os princípios do modelo constitucional de processo e que aplique normas de composição aberta, com supedâneo em Theodoro (2015, p. 45). O manejo dos princípios na aplicação do Direito no Brasil tornou- se prática comum desde o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Destarte, Theodoro, (2015, p. 45,46), aduz categoricamente que: “todos os ramos do Direito, lidos a partir do texto maior, passaram a ser compreendidos de uma perspectiva que vai além das regras jurídicas, mas que abarca também princípios, tidos igualmente como normas.” O respeitado processualista a que nos reportamos, informa também que ficou claro no Código de Processo Civil de 2015, a prevalência desta tendência, em razão de ter conferido “grande” importância aos princípios fundamentais do processo, sendo flagrante o acatamento dos princípios constitucionais em todo o texto, “especialmente quando se perceber que o conteúdo destes princípios servirá de premissa interpretativa de todas as técnicas trazidas na nova legislação”; segundo Theodoro (2015, p. 46). Assim, a lei 13.105, de 16/03/2015 cria um sistema de princípios que se agrega às regras instituídas, determinando uma leitura específica, qual seja, uma interpretação com base na constituição brasileira, utilizando-a como farol do modelo constitucional do processo e seus corolários, a saber, o devido processo legal (formal e substantivo), o contraditório – em uma versão dinâmica, conforme o artigo 10, do CPC 2015; a ampla defesa e uma renomada fundamentação estruturada e legítima das decisões judiciais (art. 489,. Novo CPC), segundo Theodoro (2015, p. 47). Como já dito, fica evidente a intenção de mitigar as possibilidades de interpretação das normas processuais conforme o subjetivismo de seus destinatários, determinando uma forma constitucional de aplicação das regras processuais que passa pela dialética existente entre o fato, a norma e os princípios constitucionais atinentes, e não ao bel prazer e conveniência de determinado sujeito processual que intenta centralizar a lide em seus interesses contingentes, mesmo que este seja o juiz. Ademais, explicita Theodoro (2015, p. 49) que por muito tempo a norma jurídica não se distinguia do texto da lei, considerado presumidamente claro e objetivo; o juiz tinha apenas a função de pronunciar as palavras da norma, utilizando-se de um método lógico que anunciava que o raciocínio decisório se daria por simples aplicação de um silogismo jurídico. Este era o entendimento da Escola da Exegese, em que a vontade do legislador que positivou a norma é expressa de modo seguro e completo e aos operadores do direito basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana, de acordo com Bobbio (1999, p. 77,78). A esse respeito, Theodoro (2015, p. 49) explica “[...] que não é mais possível nos dias de hoje que um juiz trate de um caso tomando o direito apenas como um apanhado de regras.” A partir de Hans Kelsen é que se postulou que a norma é mais que o texto escrito da lei, mais que isso, seria o sentido que se apreende do texto da lei, conforme Kelsen (1987, p. 4). Tendo em vista que as normas prescrevem hipóteses de incidência, ou seja, de forma abstrata, o texto legal não tem o condão de subsumir- se perfeitamente com a diversidade fática que se apresenta pelas relações sociais. Complementa Theodoro, (2015, p. 49) defendendo que, ao se perceber que a norma não possui apenas um sentido previamente estabelecido, “[...] que a norma jurídica é capaz de nos abrir um leque de interpretações possíveis, então o sistema se expande para além dos estritos limites da literalidade.” Com supedâneo em Theodoro (2015, p. 50) a aquisição de força normativa pelos princípios jurídicos se deu em mea dos do século XX, marco da ideia de que princípios determinam os fundamentos para o provimento jurisdicional final. De acordo com Dworkin (2002, p. 39,40,43), Aplicam-se as regras pelo método do tudo ou nada. Estabelecidos os fatos que uma

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

regra impõe, ou a regra é válida, e aí a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, pelo que nada contribui para a decisão judicial. Já os princípios, afirma Dworkin, carecem de consequências jurídicas em razão de sua aplicação ou de seu descumprimento; na verdade, eles não intentam estabelecer as condições da aplicação necessária, pois emanam uma razão que conduz a um argumento e a determinada direção. A este respeito, expõem-se as palavras de Dworkin (2002, p. 43, 119-120), que assegura: Quando os princípios estão em conflito, o juiz deve, levando em conta a força relativa de cada um deles, aplicar aquele que for mais adequado ao caso concreto, como se fosse uma razão que se inclinasse para um posicionamento e não para outro. [...] O meu ponto não é que o ‘direito’ possua um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e, outros princípios. Na verdade, quero opor-me à ideia de que o ‘direito’ é um conjunto fixo de padrões de algum tipo. Ao contrário, o que enfatizei foi que uma síntese acurada dos elementos que os juristas devem levar em consideração, ao decidirem determinado problema sobre deveres e direitos jurídicos, incluirá proposições com a forma e a força de princípios e que, quando justificam suas conclusões, os próprios juristas e juízes, com frequência, usam proposições que devem ser entendidas dessa maneira. (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002. p. 43, 119-120). Dessa forma, o que se percebe é que os princípios, sobretudo os princípios constitucionais devem servir de prisma à interpretação e balizar a aplicação das regras jurídicas; já estas, não esgotam mais todo o sentido da norma, ou o espírito da lei. Acerca, especificamente, do Código de Processo Cívil de 2015, seus fundamentos foram indubitavelmente alicerçados na ordem principiológica da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que foi engravidada de princípios que fundam a ordem democrática de Direito no Brasil, calcada na promoção da dignidade da pessoa humana, à luz do artigo 1º, III, da Lei Maior. Isto faz com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, de acordo com o inciso I, do art. 3º da CRFB/88, além de concretizar materialmente a erradicação da pobreza, da marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, conforme o inciso III, do mesmo dispositivo constitucional. Para tal, o novo diploma processual civil impôs em seu artigo 8º a obrigação de, ao se aplicar o ordenamento jurídico, o juiz ter o dever de atender “aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade a legalidade, a publicidade e a eficiência.”, segundo Barroso (2015, p. 2.077). Reforçando este entendimento, o artigo 1º do Código de Processo Civil de 2015 estabelece que “o processo civil será ordenado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil [...].” Neste ponto, ressalta-se que o princípio da dignidade humana tem status de fundamento constitucional, além dos já mencionados objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil insculpidos no artigo 3º da Constituição. Bonavides (2005, p. 256-257), fazendo menção ao artigo 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, atesta a força normativa dos princípios constitucionais e afirma que: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” Um princípio, leciona Theodoro (2015, p. 52), “[...] prescreve um direito e, por isso, contém uma exigência de justiça, equanimidade ou devido processo legal [...].” Em síntese, o novo código processual civil manteve a iniciativa

159

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


das partes como mola propulsora da atividade judicial, de acordo com o art. 2º; consagrou o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, mas buscou também estimular a arbitragem, a conciliação e a mediação como métodos alternativos para a solução de litígios, com supedâneo no art. 3º, sobretudo porque as partes terão o direito de obter a solução integral e satisfatória de seus litígios em tempo razoável, conforme o art. 4º do CPC 2015. Ademais, tem- se o dever de agir com boa fé processual, consoante o artigo 5º; o dever de cooperação de todos os sujeitos do processo, com supedâneo no artigo 6º; a igualdade de tratamento das partes em juízo, conforme o art. 7º e o respeito aos fins sociais e exigências de bem comum quando de seus julgamentos, art.8. Numa composição democrática do processo, tem-se o contraditório efetivo - arts. 9º e 10, que estabelece a garantia de que nenhuma decisão será tomada sem a manifestação da parte contrária, salvo nos casos de tutela provisória de urgência e de tutela de evidencia. Finalmente, como elementos indispensáveis à atuação da Justiça, sob pena de nulidade do ato praticado, alude-se aos princípios da motivação e da publicidade das decisões judiciais, de acordo com o art. 11 do CPC 2015, mas este com correspondência no CPC/73, bem como o artigo 12 que impõe aos juízes a observância da ordem cronológica de conclusão para prolação de sentenças e acórdãos para evitar distinções descabidas entre jurisdicionados. Já se pode afirmar, com base no já explorado pelo presente estudo e, conforme Theodoro (2015, p. contra capa), que o Código de Processo Civil de 2015 - por ter sido cunhado com o apoio de célebres juristas como Humberto Theodoro Junior que participou da elaboração do anteprojeto, bem como o renomado processualista Dierle Nunes que foi responsável pela revisão do texto, ambos contribuindo decisivamente para sua confecção – veio para democratizar e garantir que o processo civil brasileiro adira aos ditames da constitucionalização dos ramos do Direito. Ao positivar a imposição de interpretação dos seus dispositivos à luz dos princípios constitucionais e mais especificamente com fulcro no princípio da dignidade humana e nos objetivos fundamentais da república federativa brasileira, o CPC 2015 despontaria como um forte instrumento de garantia de acesso aos direitos fundamentais elencados no artigo 5º da CRFB/88. Ainda sob os efeitos da curiosidade científica, intenta-se, a partir de agora, demonstrar rapidamente alguns dos fundamentos do Código de Processo Civil de 2015, que certamente contribuirão para a satisfação dos direitos e garantias constitucionais. 2.2 O Sistema comparticipativo e cooperativo de processo A respeito do sistema comparticipativo e cooperativo de processo, novo fundamento do Código de Processo Civil 2015, na ótica de Theodoro (2015, p. 69), instituiu-se uma normativa que induz um comportamento de diálogo no qual as partes sejam abstraídas de comportamentos não cooperativos. Isto porque, segundo o referido processualista, “o sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais”, de acordo com Theodoro, (2015, p. 69). Explica o mencionado autor, que no Brasil, o juiz concentra-se no alcance de melhores resultados numéricos de seus julgados, bem como as partes e seus advogados, no contexto de uma litigância estratégica com o objetivo de sucesso quanto a decisão judicial, concentram-se, diversas vezes, somente nesse agir estratégico. Esta normativa parece recapitular a ideia de Sponville (1999, p. 49) acerca da noção de justiça, que preconiza que “o eu é injusto, sempre, e não se pode pensar a justiça, por essa razão, a não ser colocando o eu fora do jogo ou, em todo caso, fora de condições de governar o julgamento”. Já se pode preconizar, pelo já exposto pelos fundamentos já trabalhados até aqui, que o Código de Processo Civil de 2015, quer dar a

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

cada um, o que lhe é devido, nivelando a relação entre os sujeitos do processo e entre eles e o próprio rito processual, direcionando todos os esforços à efetiva resolução do mérito, e consequentemente, se aproximar da solução do núcleo do conflito social. Desta forma, o sonho de concretização dos direitos fundamentais e da universalização do princípio da dignidade humana, não somente quando provocado o judiciário, parece tornar-se mais próximo. A abstração dos sujeitos do processo, quando aos seus interesses egoísticos que extrapolam ao suposto direito pleiteado cumpre papel fundamental para a democratização do processo civil brasileiro sob o manto principiológico e axiológico da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Solução importante, eis que os estratagemas das partes postergam quase que indefinidamente os feitos judiciais ou influenciam injustamente na decisão, viciando–as e ensejando irresignação quanto ao desfecho da lide. A este respeito, assegura Theodoro (2015, p. 77) “que o estabelecimento de focos e de centralidade, seja das partes, nos advogados ou nos juízes, não se adapta ao perfil democrático do Estado de Direito de alta modernidade.” Complementa, ainda, o renomado processualista no qual fundamos este trabalho que o processo se afasta tanto do modelo liberal, de esvaziamento do poder do juiz, quanto do modelo social que autoriza a atuação solitária de aplicação do Direito pelo juiz, reduzindo-se as possibilidades de discussão dentro do processo e fomentando uma posição de sujeição das partes, na inteligência do magistério de Theodoro (2015, p. 69). A título de ilustração, conforme os relatórios do CNJ (justiça em números 2013, ano base: 2012) e também de acordo com os mesmos dados referendados por Theodoro (2015, p. 23-24), em Minas Gerais, o percentual de reforma de decisão no primeiro grau de jurisdição é de 54,5% e o número de recursos das decisões de 1º grau providos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em recurso de apelação, ainda que parcialmente, corresponde a 55.518; decorrentes de agravo de instrumento, 41.986, no mesmo Estado. Destaca-se o índice de reforma do Tribunal do Piauí que alcança o percentual de 89,5%; Amazonas, 81% e Goiás, ostenta 56,9% de reforma de decisões de primeiro grau, respectivamente. Theodoro (2015, p. 80) aduz que uma das estruturas de visão democrática do Código de Processo Civil de 2015 reside exatamente na tensão entre perspectivas liberais e sociais, impondo que se forme uma comunidade de trabalho policêntrica e comparticipativa de modo a evitar qualquer protagonismo, estruturando-se no arquétipo constitucional do processo. Segundo o referido doutrinador, estes instrumentos poderão ser capazes de reduzir o número de reformas, tendo em vista a satisfação do jurisdicionado com sua participação e influencia até a decisão final, pelo que diminuiria o percentual de irresignações. Não resta dúvidas que a interpretação do sistema processual brasileiro deve ser feita, por força de seu s próprios dispositivos, especialmente do artigo 1º ao 10 do CPC 2015, conforme a Constituição e os paradigmas do Estado Democrático de Direito. O Sistema comparticipativo e cooperativo de processo deve contribuir para a melhoria da atividade jurisdicional, democratizando-a e humanizando-a. 2.3 O contraditório dinâmico como garantia de influencia e não surpresa Novamente em conformidade com Theodoro (2015, p. 92), o fundamento essencial da comparticipação é o contraditório como garantia de influência e não surpresa. Segundo ele, no prisma do Código de Processo Civil de 2015, especificamente, de acordo com os artigos 5º, 9º e 10, o princípio do contraditório passa a comportar uma ressignificação, sendo entendido como: “direito de participação

160

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


na construção do provimento, sob forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação de decisões.”, segundo as lições de Theodoro (2015, p. 93). Afirma também o citado nobre processualista, que a doutrina de Direito Processual brasileiro, embora reduzir a partição em contraditório a mero direito à bilateralidade de audiência, ou seja, de dizer e contradizer, se supera em razão de sua ínfima efetividade prática, pelo que vem sendo confrontada pelo contraditório como direito de participação em igualdade na preparação do provimento jurisdicional final, ou seja, a simétrica paridade de armas, de acordo com Theodoro, (2015, p. 93). Neste sentido, à luz do CPC 2015 às partes foi conferido o direito de participar ativamente do processo, de forma a promover a cooperação entre si e com o juiz para fornecer-lhe suporte para que profira suas decisões, realize atos executivos ou determine eventuais pratica de medidas de urgência. Corroborando, pode-se extrair este entendimento do artigo 6º que estabelece o dever de todos os sujeitos do processo de cooperem entre si, para que tenham e tempo razoável, decisão de mérito justa e razoável, segundo Barroso (2015, p. 2.077). Reforçando, o artigo 9 º do novo CPC determina ao magistrado que não profira sentença ou decisão contra uma das partes sem que ela seja ouvida preliminarmente, salvo em se tratando de medida de urgência ou concedida para evitar o perecimento do direito, de acordo com Theodoro (2015, p. 93); ademais, complementa a redação do artigo 10 - também do Código de Processo Civil de 2015 - ao impor que:“o juiz não pode decidir em grau nenhum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria que se deva decidir de ofício;” conforme Barroso (2015, p. 2.077). Em correspondência com a inteligência processual de Theodoro (2015, p. 92), a partir destes dispositivos, instaurou-se no conceito de contraditório a garantia de não surpresa que impõe ao tribunal o dever de esclarecimento às partes acerca de suas alegações, pedidos ou posições em juízo com o objetivo de otimizar a atuação jurisdicional; servindo também como instrumento para a efetivação dos princípios constitucionais, tem-se o dever de prevenção, que incumbe ao magistrado o dever de apontar as deficiências das postulações das partes, para que sejam supridas; mencionando-se, ainda, a obrigação de assistência e auxílio, pelo qual o juízo deverá auxiliar as partes na superação das eventuais dificuldades que obstem o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ônus ou deveres processuais, cabendo ao meritíssimo, sempre que possível, a superação do obstáculo. Como exemplo, reporta-se a redação do artigo 321 do CPC 2015 que determina ao juiz que, ao perceber que a petição inicial não comporta os requisitos dos artigos 319 e 320, do mesmo diploma, ou que apresenta irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, ordenará, no prazo de 15 dias, que a emende ou a complete, devendo, inclusive, mostrar com precisão o que deve ser corrigido ou completado, segundo Theodoro (2015, p. 89). Ainda exemplificando como o Código de Processo Civil 2015 pretende garantir um processo justo sob bases democráticas, alude-se ao artigo 489, que estabelece os elementos essenciais da sentença e ainda considera não fundamentada as decisões que não corresponderem aos requisitos, nele, elencados. E ainda o parágrafo único do artigo 932 do CPC 2015, que estabelece ao relator a obrigação de antes de considerar inadmissível o recurso, conceder o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível, conforme Barroso (2015, p. 2.259-2260). O novo CPC afirma seu compromisso com a primazia do mérito e com a verdadeira resolução dos conflitos. Estes são alguns dos dispositivos que contribuirão para um processo mais justo e equânime à atuação jurisdicional na aplicação da justiça nos moldes da dialética filosófica apresentada no item 1.2 do presente artigo, fundamentada naqueles pensadores, pelos quais se

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

extraiu a noção de que, a justiça, como propõe Sponville (1999, p. 52), “[...] é a virtude da ordem, mas equitativa, e da troca, mas honesta. Mutuamente vantajosa.” Tendo-se em mente que uma troca justa reclama uma condição de proporcionalidade e igualdade. Sob a inspiração de Theodoro (2015, p. 97-101), é possível afirmar que o novo sistema comparticipativo e cooperativo de processo fundado essencialmente no contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa foi instaurado para mitigar os comportamentos não cooperativos na atividade jurisdicional, de maneira a equacionar o tempo do processo e buscar o tempo ideal de razoável duração do feito, além de otimizar a efetividade das decisões judiciais e fortalecer a segurança e previsibilidade das decisões como ideal de pacificação de conflitos, como resultado do paradigma da primazia do mérito. Cumpre salientar que, em relação às partes, o contraditório no CPC 2015 engloba um acervo de direitos, dentre os quais: o direito a informações regulares durante todo o procedimento - a respeito de citação adequada, por ex., intimação de cada ato processual que lhe permita direito de defesa; o direito à prova, garantindo-se as condições de seu exercício, toda vez que este for relevante; o direito de presenciar a análise da prova e de se contrapor às alegações de fato ou às atividades probatórias da parte contrária ou, até mesmo, as de ofício do juiz; além do direito de ser ouvido e julgado por um magistrado imparcial, equidistante, mas voltado para a resolução fática, que decida a causa unicamente com base em provas e elementos adquiridos no debate estabelecido em contraditório com garantia de influência; ressaltando-se o direito a uma decisão fundamentada, em que seja apreciado e solucionado racionalmente todas as questões e defesas tempestivamente apresentadas pelas partes, conforme a fundamentação racional das decisões, com supedâneo Theodoro (2015, p. 112-113). São estas algumas finalidades dos fundamentos de um processo democrático estruturado para sedimentar as possibilidades de fiscalização dos poderes exercidos ao longo da atividade judicial e proporcionar a aplicação casuística do ideário constitucional de justiça distributiva quando o judiciário for provocado, bem como quando não houver provocação, devido a ressonância de seu exemplo para outras instituições e para a sociedade como instituição em busca da justiça em seu valor absoluto, constituído democraticamente. Assim, apropriando-se das colocações de Sandel (2012, p. 178) apud Rawls, o Código de Processo Civil de 2015 desponta como diploma normativo onde a equidade pressupõe uma situação em que “ninguém estaria numa posição superior de barganha”, instante este, possível a partir de uma postura em que seja motivada apenas pelo interesse próprio no fato, na norma e na ordem principiólogica da Constituição da República, desapegando-se de convicções estritamente subjetivas, egoísticas e contingentes não amparados pelo Direito, para a satisfação da justiça. Dessa forma, estar-se-ia a responder se seria o Código de Processo Civil de 2015 é também fruto da observância dos valores filosóficos explorados no item 1.2? Parece que sim, até porque são valores gravados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e o referido código, foi realmente irradiado pela sua ordem valorativa. 2.4 O contraditório como garantia de aproveitamento da atividade processual e acerca dos precedentes Prosseguindo-se com a lupa de Theodoro (2015, p. 114), em relação aos fundamentos do Código de Processo Civil de 2015, o contraditório como garantia de aproveitamento da atividade processual foi instituído com o objetivo de impedir adulterações ilegítimas de aplicação dos princípios constitucionais mediante o próprio limite que

161

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


a Constituição estabelece com a correlação dos princípios do contraditório e da fundamentação racional das decisões. Explica o referido processualista que, devido a este fundamento, positivado no artigo 489, o CPC 2015 apresenta um sistema de controle que impede o uso de conceitos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso. Isto ocorre corriqueiramente com os princípios da proporcionalidade e supremacia do interesse público, dentre outros, conforme Theodoro (2015, p.114). O novo código processual civil induziria a “uma objetivação desses conceitos pelo debate e pelas peculiaridades do caso em discussão”, nas palavras de Theodoro (2015, p. 115). Além disto, Theodoro (2015, p. 114) propõe que a aplicação dinâmica do contraditório não atrapalha em nada a procura pela eficiência, na verdade, tenderia a fortalecê-la. Isto porque o contraditório pleno promoveria debates sobre todas as mudanças significativas do caso no rito processual e dos fundamentos das decisões proferidas, de acordo com Theodoro (2015, p. 114-115). Esta imposição de garantir-se o direito de informação acerca do objeto do processo, que engloba, também, o direito das partes verem contemplados seus argumentos na decisão do juízo competente, inclusive evitando-se surpresas no âmbito das decisões de conhecimento de ofício do juiz, se deve ao contraditório na ótica constitucional do Estado Democrático de Direito, permitindo que o jurisdicionado assuma a função de destinatário, bem como autor dos provimentos jurisdicionais, dos quais sofrerá os efeitos, conforme Theodoro (2015, p. 116-123). Evidencia-se, desta maneira a preocupação dos jurisconsultos e dos legisladores de, além de positivar no artigo 8º do CPC 2015 a determinação de observância do princípio da dignidade humana do inciso, III do artigo 1º da CRFB/88 e dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil no artigo 3º, construir mecanismos práticos inspirados no mais alto padrão de democracia, fiscalização e participação popular para a efetividade do processo e da aplicação da justiça. A incidência desta normativa do contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa também enseja uma significativa influência na formação e aplicação do Direito Jurisprudencial, de acordo como artigo 927, § 1º do novo CPC, de acordo com Theodoro (2015, p. 127). Ainda em correspondência com Theodoro (2015, p. 127-128), existe um recorrente fenômeno que se apresenta com “uso de ementas e enunciados de súmula completamente dissociados do caso concreto que lhes deu fundamento, como se fossem normas gerais e abstratas.” Daí a importância destes julgados serem utilizados em harmonia com os limites argumentativos do caso analisado, explica o renomado autor. E ainda denuncia Theodoro, (2015, p. 127-128), que este comportamento carece de atenção e cuidado ao se percebe que o referido uso dos precedentes ainda encontra várias dificuldades à superar, como a da denominada “pseudocolegialidade”, a qual explicita o autor: Tal fenômeno vem sendo justificado pela quantidade de processos nos tribunais, ocorre quando as decisões, que deveriam ser efetivamente colegiadas, são proferidas monocraticamente pelo relator, sem que haja real pacificação de entendimentos sobre o caso julgado, ou mesmo, de modo mais perverso, quando a decisão fruto de uma turma é, de fato, a decisão monocrática do relator na qual os demais julgadores do colegiado simplesmente chancelam com um superficial “de acordo”, que pode muitas vezes significar “não olhei, mas acho que concordo com o relator”. Esse “de acordo” cai por terra quando se vislumbra, numa breve pesquisa das decisões anteriores daqueles “julgadores concordantes”, que, em ca-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

sos anteriores, como relatores, julgaram em sentido diametralmente contrário. (THEODORO Júnior, Humberto. Novo CPC: fundamentos e sistematização – Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2015, 2ª Ed. 423 p.). Sobre esta “pseudocolegialidade”, que se revela pelo “de acordo” com o relator, realizado pelos demais membros do colegiado nos tribunais acerca do caso em análise, se evidência a legítima necessidade de se procurar estabilidade das decisões dos tribunais, forte orientação do CPC 2015, que se preocupa com formação e aplicação dos precedentes, conforme o art. 10 e 489, do novo diploma processual. Com este objetivo é que foram instituídos não somente os dispositivos já mencionados, mas também 932, III e IV, além do artigos 927 e 1.036 no Código de Processo Civil de 2015. Este sistema chamado de “overruling” viabilizaria a participação das partes no intento de que o tribunal se afaste legitimamente e democraticamente de determinada regras jurisprudenciais suscitadas pelas partes, de forma objetiva, com embasamento e fundamentação racional. Não que o juiz não possa afastar-se de seu próprio precedente, mas ao fazê-lo, deve levá-lo em consideração para propiciar a tematização e contextualização junto ao caso concreto, no magistério de Theodoro (2015, p. 128-129). Assim, conforme Theodoro, (2015, p. 133), os juízes devem se vincular somente por fundamentos confiáveis sobre questões jurídicas que constituem as decisões, obstando-se do sistema judiciário se contentar apenas com o dispositivo ou a ementa colacionada nas decisões. Inovando nesta temática o Código de Processo Civil de 2015 prevê o cabimento da reclamação quando houver a aplicação indevida da tese jurídica e sua não incidência sobre os casos não correspondentes. O objetivo é instrumentalizar a arguição de distinção entre o caso sob análise e o precedente invocado (distinguishing) ou a superação da tese, neste último caso, chamado de overruling, de acordo Theodoro (2015, p. 133-134). Neste sentido Motta, (2012, p. 183) explica que os casos semelhantes devem ter tratamento semelhante como decorrência da equidade, princípio já trabalhado no presente artigo. A partir destes novos fundamentos o Código de processo Civil de 2015, com supedâneo no entendimento de Theodoro, (2015, p. 135) os acórdãos devem guardar linearidade argumentativa para que realmente possam ser vistos como verdadeiros modelos, padrões decisórios capazes de ensejar estabilidade decisória, segurança jurídica, bem como a proteção da confiabilidade e previsibilidade da atividade judicante. Nota-se como o CPC 2015 força a constitucionalização e a humanização do processo, democratizando atividade jurisdicional em benefício do acesso aos direitos e garantias previstas na Constituição da República de 1988, ao oportunizar mais equilíbrio nos papéis exercidos pelos sujeitos e direcionar o esforço a um só objetivo, o de se chegar compartilhadamente na decisão justa em relação ao caso. 2.5 O acesso à justiça e modelo multiportas do CPC 2015 O modelo multiportas do Código de Processo Civil de 2015 anuncia o fortalecimento e integração dos meios de solução de conflitos, além de buscar o aprimoramento da conciliação, da mediação e dos negócios processuais sem a pretensão de trazer maior celeridade e contenção de custos, sobretudo tendo em vista a obrigação de se formarem novos conciliadores e mediadores por meio de capacitação obrigatória, de acordo com o artigo 167 do CPC 2015 e, conforme Theodoro (2015, p. 251-252). Neste diapasão o CPC 2015 impõe a necessidade de criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos, com fulcro no artigo 165, constituídos de profissionais formados para o exercício da

162

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


conciliação e mediação, junto ao tribunal, mas sem impedir o uso de câmaras privadas para tal fim, como a arbitragem, quando possível, de acordo com Theodoro (2015, p. 249). Segundo Theodoro, (2015, p. 241-242), o artigo 3º do CPC 2015 estrutura um modelo multiportas que incorpora a tradicional resolução jurisdicional integrada à absorção dos referidos meios alternativos, perseguindo a solução integrada das contendas sociais como mais um instrumento de contribuição para efetivação do livre aceso ao judiciário, insculpido no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, determinante para a perseguição da meta de universalização do princípio da dignidade humana e da distribuição justa do acesso aos direitos fundamentais. Tratando-se dos caminhos desta estrutura de modelo multiportas de solução integrada dos conflitos, os artigos 319 e 334 do CPC 2015 instituem a necessidade de que o autor, ainda na exordial, mencione seu desinteresse na realização de uma autocomposição, pelo que o Réu, deverá, no mesmo sentido, manifestar seu desinteresse em conciliar-se em 10 dias antes da realização da audiência. Somente, assim se afastaria a necessidade de tentativa de conciliação ou mediação pelo juízo, segundo Theodoro (2015, p. 242). Resumidamente, a audiência de conciliação ou mediação só não será realizada se as par tes manifestarem expressamente o seu desinteresse na composição ou, então, quando não for admitido a autocomposição, por força do § 4º do artigo 334 do CPC 2015. Nesta toada, também em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, positivado no artigo 5º do novo CPC, se uma das partes injustificadamente não comparecer à audiência de conciliação poderá ser considerado ato atentatório à dignidade da justiça, podendo ser penalizada com multa de até 2% do resultado econômico pleiteado ou do valor da causa, que será destinada aos cofres da União ou do Estado, conforme o artigo 334, § 8º, de acordo com o magistério de Theodoro (2015, p. 242-243). Outrossim, a audiência inaugural do CPC 2015 não se limita na busca da solução por meio da autotutela no que diz respeito aos direitos materiais, mas os já mencionados artigos 190 e 191 permite a negociação consensual dos atos processuais correspondentes às suas faculdades e ônus, submetendo-se a análise e homologação do juiz propiciando o melhor gerenciamento do processo por parte do juízo e dos demais sujeitos do processo, como numa verdadeira comunidade de trabalho, conforme Theodoro (2015, p. 243-244). Com o Código de Processo Civil de 2015, pelo entendimento dos ensinamentos de Theodoro (2015, p. 254-255), a mediação e a composição de técnicas alternativas compõem um leque de soluções integradas, de modo que, a partir da propositura da demanda, tem se possibilidade da escolha da técnica mais adequada para a solução de cada conflito, conforme suas especificidades. Isso se daria por um sistema próprio de triagem que inclui: a possibilidade inaugural de julgamento imediato de causas, ou seja, quando da improcedência liminar do artigo 332 do CPC de 2015 na hipótese de existência de jurisprudência estabilizada, numa versão constitucionalizada do artigo 285-A do CPC de 1973; audiência inaugural de conciliação ou mediação, conforme o artigo 334 do novo CPC, incontinente a análise da exordial, pela qual atuará um conciliador ou mediador; ou a remessa imediata aos centros judiciários de solução consensual dos conflitos, mediante a ingerência de profissionais treinados. Por fim, ressalta-se o reconhecimento de Theodoro (2015, p. 397-398) que os fundamentos do Código de Processo Civil de 2015 foram elaborados e instituídos por um projeto coletivo e democrático intencionado em direcionar “o direito processual à sua melhor luz”, e a partir de suas normas e do seu novo sistema principiológico buscar ininterruptamente, num infindável esforço o estabelecimento de uma sociedade realmente alicerçada no princípio da dignidade humana,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

buscando-se instituir um sistema coerente de princípios e direitos que consagrem cada vez mais as liberdades subjetivas. Entende-se, a partir do exposto através da obra capitaneada pelo renomado processualista a que sempre se reporta e confia ao longo do presente estudo, que os fundamentos do CPC 2015, tornamno um profícuo instrumento para a efetivação do principio da dignidade humana e da justiça distributiva, como se conclui a seguir. 3. CONCLUSÃO Por todo o exposto, com base no debate apresentado sobre a construção do ideário de justiça distributiva travado ficticiamente, ao longo do presente estudo, pelos filósofos abordados, afastando -se daqueles que defendem sua inexatidão, chega-se a conclusão que o discurso aponta para uma proposição da ideia de justiça como noção de equidade, por onde se estabelece uma ordem mais equitativa com possibilidades de trocas honestas e mutualmente vantajosas, reclamando-se uma condição de proporcionalidade onde ninguém estaria numa posição de barganha ou favoritismo, isto a partir da abstração de interesses egoísticos e contingentes. Noção esta, de justiça como equidade, que contempla valor em si mesmo, vedando-se que seja reduzida à utilidade, que seja posta a serviço de paixões, qualquer que seja. Mais e melhor do que o bem estar da maioria, revelando-se a única das virtudes cardeais que não pode ser sacrificada por nenhuma das demais, capaz de dar a cada um, o que lhe é devido em benefício da harmonia da ordem social, mas não custo dela mesma, a justiça. Por este prisma, da noção absoluta de justiça, já assumida pela CRFB/1988, que se materializa por meio da equidade, chega-se ao entendimento de que, no Brasil, diante de tamanhas desproporções sociais, o acesso à Justiça enquanto instituição é fundamental para satisfazer os ditames constitucionais de promoção de uma sociedade justa, livre e solidária; de erradicar a pobreza e a marginalização, além de reduzir as desigualdades sociais e regionais como corolário do princípio da dignidade humana, através da universalização dos direitos fundamentais. Para isso, diante da premissa de que, no Brasil, a eficácia do principio da dignidade humana e dos objetivos fundamentais da república depende, muitas vezes, do acesso ao judiciário e da instauração de um processo judicial, o processo deve ter como farol a busca incessante da justiça como valor, nos moldes propostos acima: da equidade, justiça distributiva e da abstração dos interesses subjetivos dos sujeitos envolvidos, onde o eu, injusto seja impedido de governá-lo. Assim, com o CPC 2015 calcado nos princípios constitucionais, o centro de gravitação da lide pode deixar de ser concentrado em uma das partes ou no julgador passando a gravitar sobre a solução fática do conflito de forma democrática, equilibrando as forças que tendem a incidir durante o processo em consequência da projeção dos interesses individualistas e das estratégias das partes e do julgador. É neste ponto, que o Código de Processo Civil de 2015, certamente desponta como um instrumento de materialização do conteúdo valorativo do principio da dignidade humana e da justiça distributiva como equidade, a partir de seus novos fundamentos e dispositivos legais que o estruturam. Prova disto são os novos fundamentos do CPC 2015, que buscam afasta-lo da dicotomia liberal/social do processo, pela qual os liberalistas defendem o protagonismo das partes e os socialistas o protagonismo dos juízes; nem um nem outro. Neste intento o novo sistema principiológico do CPC 2015, privilegia e positiva a obrigação de interpretação de seus dispositivos conforme os princípios constitucionais, e mais especificamente, à luz do já ostensivamente mencionado, princípio da dignidade humana, além do dever de o juiz atender aos fins sociais emanados pelo Texto Maior. Ao manter, também a iniciativa das partes como mola propulsora da atividade judicial, de acordo com o art. 2º; consagrar o prin-

163

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


cípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, buscando estimular a arbitragem, a conciliação e a mediação como métodos alternativos para a solução de litígios, art. 3º e; instituir a necessidade de criação de centros judiciários de solução consensual, art. 165 e, ainda, ao privilegiar a autocomposição, conforme os artigos 319 e 334, sem o escopo de acelerar o processo, o CPC 2015 flagrantemente alarga as portas da justiça, propiciando aos jurisdicionados menos favorecidos e relegados aos extratos mais rasos da sociedade, a resolverem seus desafetos na presença de profissionais habilitados e preparados para mediar o conflito com base nos fatos, nas regras legais atinentes e na Constituição de 1988. Fica percipiente a otimização do acesso à justiça, sobretudo quando o judiciário tradicional se apresenta estagnado. Ademais, em razão dos seus novos fundamentos, tem-se a presunção de que o Código de Processo Civil de 2015, estruturado sob as bases democráticas e republicanas da Constituição de 1988, irá garantir a égide de um processo realmente policêntrico, altamente fiscalizável com o potencial de criar um equilíbrio jurídico capaz de levar a uma solução mais justa e equânime do caso concreto. Isto porque, como já demonstrado, o novo código processual civil estabelece que as partes terão o direito de obter a solução integral e satisfatória de seus litígios em tempo razoável, conforme a redação de seu artigo 4º; com decisões judiciais construídas numa composição democrática do processo onde o contraditório efetivo - arts. 9º e 10, estabelece a garantia de que nenhuma decisão será tomada sem a manifestação da parte contrária, salvo nos casos de tutela provisória de urgência e de tutela de evidencia, art. 10; bem como do novo sistema de precedentes com a incidência do contraditório como garantia de influencia que contribuirá para a visão de regularidade e segurança jurídica do Direito jurisprudencial. Uma democracia justa exige previsibilidade e segurança. Além disso, o dever de agir com boa fé processual, consoante o artigo 5º; o dever de cooperação de todos os sujeitos do processo, com supedâneo no artigo 6º; a igualdade de tratamento das partes em juízo (paridade de armas) revelam-se, também, instrumentos democráticos importantes para a satisfação equânime da lide por meio de um procedimento mais harmonioso no que diz respeito a linearidade dos sujeitos processuais com o objetivo principal da primazia pela resolução do mérito, por onde a Justiça, realmente faz justiça, sem que seja tardia, pelo que justiça não seria. Enfim, por tudo que já foi abordado até aqui, não resta dúvidas que, os fundamentos do novo Código de Processo Civil poderão tornar a atividade judicial que se realiza por meio do processo, mais equânime e fazer jus ao símbolo da balança que representa a justiça, tendo em vista ter sido elaborado por um projeto coletivo e democrático intencionado em direcioná-lo, a partir de seu novo sistema principiológico, à perseguição do estabelecimento de uma sociedade alicerçada realmente no princípio da dignidade humana e da justiça distributiva nos moldes da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Com isso percebe-se a influência do valor de justiça distributiva neste novo diploma processual que está prestes a entrar em vigência.

CONFORD, Francis Macdonald. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007. 99 p. DWORKIN, Ronald. Levando o Direito a sério. São Paulo: Martins Fontes. 2002. 568 p. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 198. 378 p. MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 356 p. MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma critica hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2012, 232 p. SANDEL, MICHAEL J. Justiça: o que é faze a coisa certa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2012. 349 p. SPONVILLE, André-Comte. Pequeno Tradado das Grandes Virtudes. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999. 225 p. THEODORO Júnior, Humberto. Novo CPC: fundamentos e sistematização – Lei 13.105, de 16.03.2015. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2015, 2ª Ed. 423 p. DALSOTTO, Lucas Mateus. Dignidade Humana em Kant. Artigo apresentado a Faculdade de Pós- Graduação em Filosofia (PPGFIL) na Universidade de Caxias do Sul e publicado na Revista Eletrônica de Filosofia da Faculdade Católica de Pouso Alegre em 15/10/2013. Disponível em:.>http://www.theoria. com.br/edicao14/dignidade_humana_em_kant.pdf.> acesso em: 20/11/2015 às 15:00. LIRA, Luzia Andressa Feliciano de. O acesso à justiça sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana. Publicado em 01/2013. Disponível em:.>file:///C:/Users/User/Desktop/TCC%20-%20NOVO%20CPC/Acesso%20 %C3%A0%20justi%C3%A7a%20e%20dignidade%20humana%20%20Jus%20Navigandi.html.> acesso em: 21/11/2015 às 23:00h. OLIVEIRA, Wilson de. A Condição Humana em Pascal a partir da noção de justiça. Dissertação de Mestrado apresentado à Universidade Federal do Paraná – Setor de Ciências Humanas Letras e Artes – Programa de Pós Graduação em Filosofia – Mestrado. Curitiba, 2011.> Disponível em:> http://www.filosofia.ufpr. br/var/1335459142disserta%C3%A7ao_completa_e_definitiva.pdf.> acesso em: 18/11/2015 às 22:30 h.

Notas de fim Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Darlan. Mini Vade Mecum Civil e Empresarial. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015. 5º ed. 2.301 p. BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: ícone, 1995. 239 p. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed. Malheiros, 2005. 807 p. CANOTILHO, J. J, Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: 2003, 7. Ed. 1522 p.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

164

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ANÁLISE HISTÓRICO EVOLUTIVO DO AUXÍLIO-RECLUSÃO E A POLÊMICA PEC 304/2013 Giovanni Bruno de Araújo Savini1 Mirella Karen de Carvalho Bifano Muniz2 RESUMO: O presente artigo visa, em suma, desmistificar todos os pontos controversos do benefício previdenciário auxílio-reclusão previsto no art. 201, inciso IV da Constituição da República de 1988 que posteriormente foi instituído na Lei de Benefícios 8.213/91. Após uma análise histórica do benefício, será mostrado as recentes alterações advindas da nova Lei 13.135/2015 que teve como origem a polêmica Medida Provisória 664/2014. Dada a abordagem minuciosa de peculiaridades e modificações do instituto, este trabalho conta com debate à Proposta de Emenda à Constituição nº 304/2013, de autoria da deputada federal Antônia Lúcia, e uma análise crítica contra a posição da mídia nesse contexto. ABSTRACT: This article aims, in short, to demystify all the controversial points of the social security allowance confinement benefit provided for in art. 201, item IV of the Constitution of the Republic of 1988 which was later set up in the Benefits Law 8,213 / 91. After a historical analysis of the benefit, it will show the recent changes introduced by the new Law 13,135 / 2015 originated from the controversial Provisional Measure 664/2014. Given the thorough approach of peculiarities and modifications of the institute, this work has to debate Proposed Amendment to the Constitution No. 304/2013, authored by federal Antonia Lucia congresswoman, and a critical examination against the media’s position in this context. PALAVRAS-CHAVE: Auxílio-Reclusão; Lei 13.135/2015; PEC 304/2013; Previdência Social Keywords: Allowance Solitude; Law 13,135 / 2015; PEC 304/2013; social Security SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Auxílio-Reclusão; 2.1 Resquícios do Benefício Anteriores a Constituição de 1988; 2.2 A Previsão Constitucional do Benefício; 2.3 Conceito, Natureza Jurídica e Finalidade; 2.4 Características, Requisitos e a Alteração por meio da EC/1998; 2.5 Alterações Advindas da recente Lei nº 13.135 de 2015; 3 A Proposta de Emenda à Constituição nº 304 de 2013; 4 Considerações Finais; Referências Bibliográficas

1 INTRODUÇÃO Uma das maiores causas do repúdio em desfavor ao auxílio reclusão está na carência de informação quanto a ratio legis, o que gera muitos equívocos em relação a natureza jurídica deste benefício, não sabendo diferenciar se este é assistencial, isto é, concedido de maneira geral àqueles de baixa renda, ou, se trata de um benefício da previdência social, que é restrito, sendo concedido apenas aos beneficiários do INSS. A Constituição da República de 1988 previu, em seu artigo 193, ações de iniciativa dos Poderes Públicos para a promoção do bem-estar e a justiça social, que reunidas das diversas áreas, compõem a, então, Ordem Social. No meio desses variados campos, está a seguridade social, prevista no artigo 194 daquela, que compreende em assegurar os direitos relativos à saúde, à assistência social e à previdência. Ao interpretar os artigos 196, 201 e 203 da Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar que dentre as subdivisões da seguridade social, a única, cujo acesso depende de contribuição direta por parte de quem recebe os benefícios é a previdência social, ou seja, possui o caráter contributivo, e, sendo o auxílio-reclusão um beneficiamento desta, conforme inciso IV do art. 201, pode-se dizer, de imediato, que não serão todas as famílias dos reclusos que receberão este provento. No Brasil, há três tipos de regimes previdenciários: o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) e o Regime de Previdência Complementar. O primeiro, cujo benefício previdenciário será analisado neste estudo, é operado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e de filiação obrigatória tanto para os trabalhadores regidos pela CLT quanto para qualquer pessoa que exerça atividade remunerada, mesmo sem vínculo empregatício. O segundo, é de filiação obrigatória para os servidores públicos titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo, portanto, administrados por Institu-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tos de Previdência ou Fundos Previdenciários de entidades públicas. Já o terceiro, que diferentemente dos outros dois, não possui o caráter de filiação obrigatória, é operado por grupos privados com a finalidade de complementar a renda do contribuinte pertencente aos regimes básicos de previdência. O INSS opera o Regime Geral de Previdência Social com o propósito de promover o reconhecimento, de direito ao recebimento de benefícios por ele administrados, assegurando agilidade, comodidade aos seus beneficiários. Estes, amparados pela previdência, são divididos, conforme a Lei nº 8.213/91, entre segurados e dependentes, sendo os primeiros, aqueles que efetivamente contribuem para o regime, enquanto que os dependentes poderão ser beneficiados por conta das contribuições feitas pelo seu segurado, como é o caso do auxílio-reclusão. 2 O AUXÍLIO-RECLUSÃO 2.1 Resquícios do benefício anteriores à Constituição de 1988 Indo ao contrário do que muitos pensam, o auxílio-reclusão não é um benefício que surgiu há pouco tempo em nosso ordenamento jurídico. Temos evidências desse provento há aproximadamente 82 anos. Vale lembrar que embora tal benefício tenha sido recepcionado constitucionalmente apenas em nossa Constituição de 1988, há resquícios desde 1933, através do Decreto 22.872, que regulava o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, mais precisamente em seu artigo 63: O associado que, não tendo família, houver sido demitido do serviço da empresa, por falta grave, ou condenado por sentença definitiva, de que resulte perda do emprego, e preencher todas as condições exigidas neste decreto para aposentadoria, poderá requerê-la, mas esta só lhe será concedida com

165

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


metade das vantagens pecuniárias a que teria direito si não houvesse incorrido em penalidade. Parágrafo único. Caso e associado esteja cumprindo pena de prisão e tiver família sob sua exclusiva dependência econômica, a importância da aposentadoria a que se refere este artigo será paga ao representante legal da sua família, enquanto perdurar a situação de encarcerado. Em 1934, por meio do Decreto 54, que regulava o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, houve pela segunda vez a previsão deste benefício ao associado que se encontrasse preso: Art. 67. Caso o associado esteja preso, por motivo de processo ou em cumprimento de pena, e tenha beneficiários sob sua exclusiva dependência econômica, achando-se seus vencimentos suspensos, será concedida aos seus beneficiários, enquanto perdurar essa situação, pensão correspondente á metade da aposentadoria por invalidez a que teria direito, na ocasião da prisão. Apenas em 1960 que, através da Lei Orgânica de Previdência Social (Lei 3.807/60), houve, então, o surgimento do termo “Auxílio-Reclusão”, do qual, até aquele momento era utilizado como uma “pensão” ao preso. Não obstante, passou-se a abranger todos os que exercem emprego ou atividade remunerada no território nacional, salvo algumas exceções. 2.2 A previsão constitucional do benefício Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, houve a primeira previsão constitucional do fato gerador ao benefício, no título VIII (da Ordem Social), capítulo II (da Seguridade Social), seção III (da Previdência Social), em seu art. 201, para os segurados do Regime Geral de Previdência Social, que posteriormente foi instituído pela Lei 8.213/91, tal qual foi regulamentado e sofreu diversas modificações ao longo do tempo, que serão discutidas neste trabalho posteriormente. 2.3 Conceito, natureza jurídica e finalidade O auxílio reclusão é o benefício previdenciário destinado aos dependentes do segurado amparado pelo Regime Geral de Previdência Social, do qual é concedido através dos cofres do Instituto Nacional da Segurança Social em função da prisão daquele que dependiam economicamente. Vale lembrar que a privação de liberdade sofrida pelo segurado, prevista no art. 1º da Lei 8.213/91, é interpretada majoritariamente pela doutrina e jurisprudência como o tempo que aquele permaneceu recolhido à prisão sob regime prisional semiaberto ou fechado sem receber salário de empresa nem outro benefício do INSS. Desde já, fica evidente que a intenção do legislador ao criar este benefício foi de proteger a família que, segundo o art. 226 da CR/88, é a base da sociedade, devendo ter uma atenção especial por parte do Estado, e não o próprio preso, como diversas pessoas cismam em espalhar pelo universo virtual. Pode-se dizer, também, que há a presença de uma função social do benefício, dado ao fato de amparar a família daquele que é visto como contrário à moralidade e aos bons costumes, já que a imagem de criminoso que a população, de modo em geral tem, acarreta num preconceito não somente ao apenado, mas que se estende, também, aos seus familiares. 2.4 Características, requisitos e a alteração por meio da EC 20/1998 Por se tratar de um benefício previdenciário, o primeiro e mais óbvio requisito e, talvez, o principal responsável por “filtrar” a população carcerária, no que diz respeito ao direito de recebimento daquele,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

está para a necessidade do recluso, à época de seu recolhimento à prisão, estar na qualidade de segurado do INSS, o que vai ao inverso de grande maioria das pessoas que acreditam que qualquer família de presidiário tem direito ao provento. Cabe lembrar que, para se manter na qualidade se segurado da Previdência Social, nem sempre será necessário que a pessoa esteja trabalhando no momento de sua prisão, pois, há no direito previdenciário o que chamamos de “período de graça” para manutenção da qualidade, conforme art. 15 da Lei de Benefícios (8.213/91): Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício; II - até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração; III - até 12 (doze) meses após cessar a segregação, o segurado acometido de doença de segregação compulsória; IV - até 12 (doze) meses após o livramento, o segurado retido ou recluso; V - até 3 (três) meses após o licenciamento, o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar; VI - até 6 (seis) meses após a cessação das contribuições, o segurado facultativo. § 1º O prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado. § 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão acrescidos de 12 (doze) meses para o segurado desempregado, desde que comprovada essa situação pelo registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e da Previdência Social. § 3º Durante os prazos deste artigo, o segurado conserva todos os seus direitos perante a Previdência Social. § 4º A perda da qualidade de segurado ocorrerá no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos. Consoante o artigo supracitado, convém fazer um alerta quanto ao inciso IV, que a palavra “livramento” pode ser entendida como o momento da progressão para o regime aberto ou da notificação de fuga do recluso. Isto posto, conclui-se que, caso o apenado que evadiu da prisão for recapturado em um período superior aos doze meses, ele perderá sua qualidade de assegurado, que por consequência, seus dependentes perderão o direito de qualquer benefício previdenciário advindo daquele. À vista disso, uma das formas do INSS controlar a concessão deste benefício às famílias do preso está em outro requisito, que é a apresentação, a cada três meses, de nova declaração de cárcere emitida pela referente unidade prisional, dado que a não apresentação deste documento provoca a suspensão do recebimento do auxílio- reclusão. O fato gerador desse benefício, como seu próprio nome sugere, é o recolhimento do segurado à prisão, não esquecendo das exceções já mencionadas quanto a impossibilidade do recebimento por parte da família quando houver a permanência de pagamento do salário por parte de empresa ou no recebimento de outro benefício do INSS por parte do cidadão recluso. Assim, quando o provento é

166

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


requerido pela família em até trinta dias do fato gerador, aquele será devido desde a época do efetivo recolhimento à prisão, porém, se o pedido for feito após esse período, o auxílio- reclusão será devido à data do requerimento. Através da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, houve uma reformulação do art. 201, que dispunha sobre os planos da previdência social, que, por conseguinte, implicou na polêmica limitação quanto a concessão do auxílio reclusão para apenas as famílias dos segurados de baixa renda. O critério utilizado para a aferição de baixa renda é restritivo ao art. 5º da Portaria Interministerial MPS/MF nº 13, de 09 de janeiro de 2015, que consiste em verificar o último saláriode-contribuição do segurado, sendo devido apenas se este for igual ou inferior a R$ 1.089,72 (um mil e oitenta e nove reais e setenta e dois centavos), ou seja, acaba excluindo inúmeras famílias de contribuintes recolhidos à prisão quando o último salário-de-contribuição ultrapassar, mesmo em pequenos valores, trazendo uma diferenciação sem sentido. Cumpre destacar, que o requisito de baixa renda é de observação apenas quanto ao salário-de-contribuição do segurado e não o da situação econômica de seus dependentes, conforme matéria discutida por meio de dois agravos extraordinários julgados pelo STF (REs 587365 e 486413), o que reforça ainda mais o argumento de irrazoabilidade do dispositivo legal. Nesse sentido, Fábio Zambitte Ibrahim comenta que “o segurado, mesmo com remuneração vultosa, poderá deixar a família em situação de necessidade mais gravosa do que outra família, mais humilde, mas que tenha outras fontes de renda”. (REIS apud IBRAHIM, 2010, p. 701) Embora o fato do auxílio-reclusão ser concedido apenas para os segurados de baixa renda à época do recolhimento à prisão ser bastante controvertido entre os operadores do direito, o Supremo Tribunal Federal entende que a tal requisito não padece do vício de constitucionalidade, conforme afirmação do Exmo Min. Ricardo Lewandowski, na decisão infra: PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 201, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LIMITAÇÃO DO UNIVERSO DOS CONTEMPLADOS PELO AUXÍLIO- RECLUSÃO. BENEFÍCIO RESTRITO AOS SEGURADOS PRESOS DE BAIXA RENDA. RESTRIÇÃO INTRODUZIDA PELA EC 20/1998. SELETIVIDADE FUNDADA NA RENDA DO SEGURADO PRESO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I - Segundo decorre do art. 201, IV, da Constituição, a renda do segurado preso é que a deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes. II - Tal compreensão se extrai da redação dada ao referido dispositivo pela EC 20/1998, que restringiu o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, a qual adotou o critério da seletividade para apurar a efetiva necessidade dos beneficiários. III - Diante disso, o art. 116 do Decreto 3.048/1999 não padece do vício da inconstitucionalidade. IV - Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF RE: 587365 SC , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 25/03/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO) O cálculo do auxílio-reclusão, que por sua vez, é feito da mesma forma da pensão por morte, conforme art. 80 da Lei 8.213/91, onde

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

será feito primeiro uma média aritmética simples dos maiores saláriosde-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo (art. 29 da mesma) para identificar o valor do salário de benefício. Identificado este, que é a base para cálculo de qualquer outro benefício da Previdência Social, tem-se o artigo 75 da referida lei, que indica que o valor a ser pago à pensão por morte será de 100% da aposentadoria por invalidez, que é, segundo o art. 44 da Lei de Benefícios, cem por cento do salário-benefício, lembrando que, de acordo com o parágrafo segundo do art. 29 da mesma lei, o salário de benefício não será inferior ao de um salário mínimo. Dessa forma, fica claro que o valor desse provento não é igual a todas as famílias dependentes de segurados reclusos, tampouco que sua quantia é baseada no número de filhos, como tem circulado pelas redes sociais. Como regra geral, a concessão de benefícios da Previdência Social para seus segurados tem como requisito a carência, que é entendida como o número mínimo de contribuições necessárias para que o beneficiário pudesse fazer jus a seus benefícios. Porém, o legislador, no art. 30 do Decreto 3048/99 estabeleceu que a pensão por morte, o auxílio-reclusão, o salário-maternidade e o auxílio-acidente de qualquer natureza independem de carência para suas respectivas concessões. A recente Medida Provisória 664/2014, que foi aprovada pelo Congresso Nacional, tentou modificar esse cenário impondo um número mínimo de vinte e quatro contribuições, entretanto, sofreu modificações, sendo uma delas a exclusão dessa limitação aos beneficiários. 2.5 Alterações advindas da recente Lei nº 13.135 de 2015

Originada da MP 664/2014, a Lei nº 13.135, publicada em 17 de junho de 2015, implicou em importantes alterações nos benefícios do RGPS (Lei nº 8.213/90), sendo algumas dessas mudanças concernentes ao auxílio-reclusão, no tocante ao rol de dependentes e na duração do benefício que até, então, era permanente. Quanto a alteração no rol de dependentes do segurado da Previdência Social, tem-se a inclusão do filho (1ª Classe de dependentes) e do irmão (3ª Classe de dependentes), que o dependa financeiramente, que tenham deficiência intelectual ou mental que os tornem absolutos ou relativamente incapazes, assim declarado judicialmente, ou, que tenham deficiência grave. Em relação a esta, a nova regra valerá 180 dias após a publicação, enquanto que a vacatio legis daquelas será de dois anos. Já a modificação consoante a duração do benefício foi a mais impactante nas características do auxílio-reclusão, pois, sua concessão era devida ao cônjuge enquanto perdurasse a estadia do preso no regime prisional fechado ou semiaberto, independente de quanto tempo era casado ou com qual idade que o segurado foi recolhido à prisão. Com a nova lei, houve então uma notória limitação nesse quesito, trazendo um tempo mínimo e um tempo máximo da concessão aos cônjuges não inválidos nem portadores de deficiência. O tempo mínimo de concessão do provento ao consorte do segurado recluso, que será de quatro meses, ocorrerá em duas hipóteses. A primeira delas se dará no caso em que o recluso não tiver contribuído com o mínimo de dezoito salários-de- contribuição à Previdência Social. Já a segunda hipótese, será quando, à data do recolhimento do seguro à prisão, o casal não tiver completado dois anos de casamento ou união estável. Não incidindo nas duas hipóteses supracitadas, a duração do benefício obedecerá a seguinte tabela:

167

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Dado as alterações, torna-se claro a preocupação do legislador em relação aos portadores de necessidades especiais, como também, da necessidade de pressionar o cônjuge a se tornar independente do benefício, uma vez que dificilmente ocorrerá a hipótese da concessão do benefício vitalício. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes e Mariana Cury Bunduky: (...) os indivíduos com faixa etária entre 18 e 24 anos representaram 30% do total de detentos. Logo depois vêm aqueles com idade entre 25 e 29 anos, que representaram 26% do total. O grupo com idade entre 30 e 34 anos ficou em terceiro lugar, com 19%. Por fim, vieram aqueles com idade entre 46 e 60 anos, que totalizaram 6%. Aqueles com mais de 60 anos de idade somaram apenas 1% dos presidiários. Houve ainda 1% cuja faixa etária não foi informada. 3 A PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÂO Nº 304 DE 2013 A Proposta de Emenda à Constituição, por autoria da deputada federal Antônia Lúcia, tem como objetivo alterar o inciso IV do art. 201 e acrescentar o inciso VI ao art. 203 da Constituição Federal, para extinguir o auxílio reclusão e criar benefício para a vítima de crime. O inciso que visa a ser incorporado no art. 203 da Constituição Federal conta com o seguinte texto: (...) VI – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa vítima de crime, pelo período que for afastada da atividade que garanta seu sustento e, em caso de morte da vítima, conversão do benefício em pensão ao cônjuge ou companheiro e dependentes da vítima, na forma da lei. Parágrafo Único. O benefício de que trata o inciso VI deste artigo não pode ser acumulado com benefícios dos regimes de previdência previstos no art.40, art. 137, inciso X e art. 201. Ora, se a pessoa, que foi vítima de um crime, exerce atividade remunerada, ela deve ser filiada obrigatória do Regime Geral de Previdência Social, do qual, faz jus aos status de segurado, e quando um segurado desse regime é afastado temporariamente da atividade que garanta seu sustento, o mesmo terá direito ao benefício previdenciário auxílio-doença. Caso reste alguma sequela que dificulte o exercício da atividade, há, também, a possibilidade de conversão do benefício em auxílio-acidente ou aposentadoria por invalidez. Na situação de morte do segurado, existe o benefício pensão por morte. Sendo nenhum desses LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

proventos garantidos ao segurado inferiores ao salário mínimo vigente, e não havendo a possibilidade de soma destes benefícios à “assistência” da vítima de crime, inexiste o porquê da criação deste instituto. Na justificação da PEC 304/2013, a questão da extinção do auxílio-reclusão se dá pelo fato deste influenciar a prática de crimes, o que acaba por se encaixar na previsão da jurista Daniela Benez, em sua dissertação de mestrado “O auxílio-reclusão no Regime Geral de Previdência Social”, há dez anos atrás, que atentava para a desinformação sobre a razão da lei. Importante, também, destacar as sábias palavras de Maria Rosa França Roque, quanto à equivocada justificativa da deputada Antônia Lúcia em sua proposta. Segundo Roque (2015, p. 34): A extinção do auxílio-reclusão não seria hábil como forma de efetivação de política pública em prol da redução da criminalidade. O fato da pessoa saber que sua família não ficará ao total desamparo em caso de recolhimento à prisão não interfere na decisão de cometer um crime. Ninguém escolhe trocar a vida em liberdade pelas condições desumanas do cárcere, só por saber que a família poderá ser sustentada por um benefício. A deputada indicou, também, em sua justificativa, os milhares de reais destinados ao auxílio-reclusão no ano de 2012 para induzir o povo a pensar que tal quantia é absurda, assim como faz os meios de comunicação. Todavia, a autora se omitiu em dizer que os gastos do INSS com este benefício previdenciário representam menos de 1% do total despendido, do qual inclui todos proventos previdenciários e assistenciais. No Boletim Estatístico da Previdência Social do mês de agosto de 2015, por exemplo, o montante destinado ao auxílio-reclusão foi de apenas 0,25% da totalidade gasta. Sendo o benefício alvo de diversas críticas, e tendo em vista o princípio da transparência, o Portal da Câmara disponibilizou uma enquete em seu endereço virtual quanto a admissibilidade da PEC 304/2013 pelo público brasileiro, que surpreendentemente foi uma das mais votadas até hoje, no qual, contou com 987.910 votos, sendo 942.003 a favor (95,35%), 41.003 contra (4,15%) e 4.904 sem opinião formada (0,5%). Dada a divulgação da enquete, houve um efeito viral nas redes sociais e blogs, gerando muita divulgação quanto ao tema. A publicidade, por si só, não é um problema. Muito pelo contrário, é a ampla publicidade uma das formas mais eficientes de se alcançar uma real democracia, partindo do pressuposto que nossos representantes legislariam de acordo com o interesse público primário. Porém,

168

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


a maneira de que tal divulgação é feita, carente de informações, ou até omissiva, pode acabar por influenciar na percepção dos sujeitos, de modo que possa manipulá-los e trazer um sensacionalismo para determinado assunto. Segundo Shecaria e Correa Jr (2002, p.383-384): Os meios de comunicação são elementos indispensáveis para o exercício do poder de todo o sistema penal, pois permitem criar a ilusão, difundir os discursos justificadores, induzir os medos no sentido em que deseja, e, o que é pior, reproduzir os fatos conflituosos que servem para cada conjuntura. A mídia se outorga a si mesma o papel de mera reprodutora de informação. Seu papel seria o de exercer a função de simples espelho da realidade, transmitindo os fatos em face das ocorrências existentes no curso dos acontecimentos. No entanto, na realidade, entre o jornalista e a audiência se estabelece um acordo comunicativo e uma confiança socialmente negociada. Assim, a notícia nunca é um espelho da realidade, mas sim um objeto construído, não obstante tentar parecer espelho dessa realidade. À liberdade de imprensa, tão característica das sociedades democráticas, se impõe a “totalitária lei do espetáculo”. Ainda nesse sentido, em conversa com Gilvan Ferreira de Araújo³: O debate sobre auxilio-reclusão poderia ter outro caminho se a mídia participasse de forma decisiva usando o poder de influência que tem sobre a opinião pública para esclarecer a sociedade sobre as reais condições dessa lei, mas, o que se observa na prática é um desinteresse por parte dos grandes meios de comunicação de massa ao tentar explicar as vantagens e desvantagens deste benefício previdenciário para a sociedade. Essa postura indiferente da mídia a respeito desta questão transforma os “mass media” em atores que reforçam a visão ou leitura equivocada da lei. O desinteresse da mídia em mostrar ao público a verdadeira realidade do auxílio- reclusão acaba por deixar um espaço para jornalistas oportunistas utilizarem do momento e repercussão para disseminar aquilo que o público quer ouvir e embaralhar a mente do popular, utilizando-se da sua opinião pessoal para influenciar, como foi o caso da jornalista Rachel Sheherazade, que na época era radialista do tradicional Jornal da Manhã da rádio Jovem Pan. No vídeo “Rachel Sheherazade: Auxílio Reclusão, se você ainda não adotou seu bandido, sustente um”, postado pela rádio Jovem Pan, fica evidente a transmutação do que era para ser um jornalismo sério e verdadeiro para uma difusão de opinião pessoal através da mídia. De início, a jornalista já se equivoca ao dizer que o benefício é concedido aos criminosos, o que já vimos que não é verdade. Ao longo de sua opinião, a radialista utiliza de expressões como “bolsa -bandidagem” como forma pejorativa de se referir ao auxílio-reclusão e, ainda ousou a dizer que o benefício é superior ao salário mínimo, sustentando, ainda, que o Estado premia as pessoas que vivem fora da lei, o que, também não é verdade, pois, o valor mencionado se referia ao limite imposto ao último salário-de-contribuição do recluso, que é levado em consideração para a concessão ou não do benefício. Já no final de seu discurso preconceituoso e carente de informações, a jornalista fez a propaganda da PEC 304/2013. Outro exemplo de divulgação de matéria sem ao menos conhecer sobre o assunto foi o caso do colunista da Revista Veja Reinaldo de Azevedo, em sua matéria “O país que paga um “auxílio-bandido” maior do que o salário mínimo só poderia tratar o viciado como ma-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

jestade. Ou: A praça é dos drogados e traficantes como o céu é do urubu”, como mostra o trecho: Afinal, em Banânia, o auxílio-reclusão, pago pelo INSS aos dependentes dos presos, passou a ser de R$ 915,05 a partir do dia 1º de janeiro deste ano. Mau negócio por aqui, minhas caras e meus caros, é ser pobre, ter bom caráter e ganhar o salário mínimo, que é de R$ 622,00. O “auxílio-reclusão” — ou “auxílio-bandido”, como queiram — está previsto no Artigo 201 da Constituição. Há aquela parolagem cretina sobre a índole pacífica do nosso povo. Um país que tem mais de 50 mil homicídios por ano não é, evidentemente, pacífico. O povo brasileiro, coitado!, é desinformado, isso sim! Quantos pobres do salário mínimo têm consciência de que o estado prefere paparicar marginais? Ainda que esta reportagem tenha sido divulgada um ano antes da propositura da PEC 304/2013, há aqui uma influência preconceituosa no público leitor, que grande parte, provavelmente, não possui o conhecimento crítico para enxergar tal reportagem como desleal. Conforme já foi explicado no capítulo do auxílio-reclusão, o valor pago pelo INSS aos dependentes dos presos, é calculado com base na média dos salários-de- contribuição do recluso, semelhante ao cálculo feito da pensão por morte, ou seja, mais uma vez esse engano comum em entre o valor considerado como baixa renda e o valor que os dependentes do preso irão receber. A dicotomia entre “criminoso” e “vítima” presentes na justificação da PEC 304/2013 auxiliada ao usados na mídia por “cidadãos de bem” e “bandidos”, favoreceram à uma formação preconceituosa no julgamento das pessoas de forma tão impactante que estas ficaram “cegas” e ignoraram ou não queiram “enxergar” as verdades por de trás da situação. Isso, porque o estereótipo criado para bandidos e criminosos, pela mídia, se dá no sentido daqueles sujeitos delinquentes e egoístas que praticaram o crime por motivos superficiais, do qual, suas atitudes se divergem do bom pai de família, sendo esse “rótulo” constantemente reforçado para atrair audiência. Indo em direção oposta ao estereótipo criado pela mídia, dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) e INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) indicam que apenas 8% dos cidadãos reclusos recebem o benefício previdenciário auxílio reclusão. Desses 8%, 64% vão para as famílias de mulheres que se encontram em regime fechado ou semiaberto, o que impressiona muito, já que apenas 7% da população carcerária brasileira é do sexo feminino, quebrando, portanto, o tabu do preso “beneficiário” como aquele homem mau com sede de dinheiro ou vingança. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O desconhecimento da razão da lei, tende a abrir espaço para o surgimento de ideias preconceituosas. O auxílio-reclusão, tão repudiado entre os brasileiros, é um benefício previdenciário de características peculiares que demorou décadas para que finalmente pudesse ser de acesso a população em geral. Previsto nos riscos sociais cobertos pela Previdência Social, a prisão do indivíduo segurado, infortúnio que pode acontecer com qualquer pessoa, em tese, serviria para reabilitá-lo, mas acaba por torná-lo alvo de rejeição e preconceito pela sociedade, que em alguns casos se estendem até sua família. Dada a indiferença midiática quanto a necessidade de esclarecer o assunto para população, emerge no Brasil uma disseminação viral contra o benefício, do qual, surgem discursos eleitoreiros que se aproveitam da carência informacional das pessoas para se promoverem. Dentre os discursos é possível a identificação de vários equívocos, tais como, a forma com que é feita o cálculo do benefício

169

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


e para quem este é destinado, que acaba gerando frases ignorantes e preconceituosas como “o estado prefere paparicar marginais” e “bolsa-bandido está sendo melhor negócio do que trabalhar”, mas poucos sabem que o este provento é destinado apenas aos dependentes dos segurados de baixa renda, que não representam 8% da população carcerária, que o gasto do INSS com esse benefício não chega a 1% e que a maioria a maioria dos reclusos que recebem esse benefício são, na verdade, mulheres e não assassinos e estupradores como pregam os sensacionalistas. Dessa forma, a destinação do provento à família do recluso não só garante a subsistência de seus dependentes, como também, cumpre a função social do Estado em proteger a família que é base da sociedade e amparada constitucionalmente. Assim, uma futura e vingativa exclusão do auxílio-reclusão, nada atingirá ao preso diretamente, e sim a sua família, o que nada contribuirá para a diminuição da criminalidade, muito pelo contrário, tenderá a aumentar, já que a ausência da figura paterna ou materna no lar em conjunto com o baixo nível de renda deixará o filho dependente mais vulnerável e excluso da sociedade.

NOTAS DE FIM Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS ALVES, Hélio Gustavo. Auxílio-Reclusão: direitos dos presos e seus familiares, São Paulo: Ltr, 2007. ANDRADE, Flávia Cristina Moura; LEITÃO, André Studart. Direito Previdenciário I: Teoria Geral, custeio, benefícios, previdência privada e competência. São Paulo, Saraiva, 2012. AVIAN, Eduardo. Auxílio-reclusão - características, peculiaridades e aspectos controversos. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.51658&seo=1>. Acesso em: 11 nov. 2015. AZEVEDO, Reinaldo. O país que paga um “auxílio-bandido” maior do que o salário mínimo só poderia tratar o viciado como majestade. Ou: A praça é dos drogados e traficantes como o céu é do urubu, de 11 de janeiro de 2012. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-pais-que-paga -um-auxilio-bandido-maior-do-que-o-salario-minimo-so-poderia-tratar-o-viciado-como-majestade-ou-a- praca-e-dos-drogados-e-traficantes-como-o-ceu-edo-urubu/>. Acesso em: 19 de novembro, 2015. BACHUR, Tiago Faggioni; VIEIRA, Fabrício Barcelos. Como converter Benefício Assistencial em Aposentadoria ou Pensão por Morte. Disponível em http://www. lfg.com.br>. Acesso em: 15 nov. 2015. BENEZ, Daniela. Auxílio-reclusão no regime geral de previdência social. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2005, p. 142. BUNDUKY, Mariana Cury; GOMES, Luiz Flávio. Jovens representam o maior número de presos no país. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/21142/jovens- representam-o-maior-numero-de-presos-no-pais>. Acesso em: 19 de novembro, 2015. REVISTA FORUM. Auxílio-reclusão: não acredite em tudo que você lê nas redes sociais, de 23 de fervereiro de 2015. http://www.revistaforum.com.br/ blog/2015/02/auxilio-reclusao-um-direito-que-vai-muito-alem-da-moralidade-de -um-bolsa-bandido/>. Acesso em: 19 de novembro, 2015. ROQUE, Maria Rosa Franca. Auxílio-reclusão e a PEC 304/2013: querem tirar o benefício de quem sequer o tem. Revista Liberdades, São Paulo, edição nº 19, p. 26-34, maio/agosto. 2015. SHECAIRA, Sérgio Salomão e CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos da ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Pp. 383-384. SHEHERAZADE, Rachel. Vídeo: Auxílio Reclusão, se você não adotou seu bandido, sustente um. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n7CqwPu21OE>. Acesso em: 19 de novembro, 2015.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

170

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: A INEFICÁCIA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Isadora Corradi Machado1 Carlos Augusto Teixeira Magalães2 RESUMO: O presente artigo objetiva avaliar, sob o viés do sistema prisional, a proteção ao preso à luz da Constituição Federal vigente, além das leis infraconstitucionais, abordando os pontos mais relevantes que envolvem esta questão na tentativa de demonstrar como o Brasil ainda apresenta sinais de escassez no tratamento digno à pessoa em privação de liberdade. Inicialmente, a fim de compreender o fenômeno social do tratamento com os apenados e seus reflexos negativos nas relações sociais, o presente estudo discorrerá sobre o contexto histórico no qual este fenômeno está inserido, bem como apontará os temas mais polêmicos quanto ao tratamento nas instituições carcerárias no país. Por fim, a partir do entendimento doutrinário, bem como mediante informações fornecidas por instituições oficiais do Estado, buscará demonstrar como a dignidade da pessoa humana é crucial para que o preso seja reinserido no contexto social sem maiores máculas causadas pelo sistema. ABSTRACT: This article aims to evaluate, under the bias of the prison system to protect the prisoner, in the light of the current Federal Constitution, in addition to infra laws by addressing the most relevant issues surrounding this matter in an attempt to demonstrate how Brazil still has shortage of signs the fair treatment to the person deprived of liberty. Initially, in order to understand the social phenomenon of treatment with convicts and their negative effects on social relationships, this study will discourse about the historical context in which this phenomenon is in and appoint the most controversial points regarding the treatment in prison institutions in the country. Finally, from the doctrinal understanding as well as by information provided by official state institutions, it seeks to demonstrate how human dignity is crucial in order to reinsert the prisoner in the social context without major blemishes caused by system. PALAVRAS-CHAVE: Dignidade da pessoa humana. Penas. Sistema Prisional. Privação de liberdade. Direitos Humanos. Direito Constitucional. Direito Penal. Sociologia do Direito. KEYWORDS: Dignity of human person. Prison sentences. Prison system. Deprivation of liberty. Human rights. Constitutional law. Criminal law. Sociology of Law. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Dignidade da Pessoa Humana aplicada a privação de liberdade: evolução histórica e conceito; 3 Realidade do Sistema Prisional Brasileiro; 4 Crítica e Possíveis Consequências; 5 Considerações Finais; Referências.

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende desenvolver o debate quanto a eficácia do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana em face do sistema prisional vigente. Para tanto, iremos trazer à tona os direitos do apenado; como é o sistema prisional atual e como este deveria ser; discorreremos sobre os objetivos da pena privativa de liberdade e a eficácia ao fim deste tratamento institucional prisional. Sobretudo, observamos que a custódia do preso pelo Estado é amplamente falha, constatados diariamente cenários de violência dentro dos presídios, atingindo os presos provisórios e também os já condenados definitivamente pelo Judiciário. Outro ponto preocupante e explorado é o tribunal do júri dos próprios detentos, ambiente em que novas sentenças e penalidades são aplicadas sem observância do mínimo de dignidade moral e física. A dignidade da pessoa humana é por muitas vezes direito rechaçado e mal visto pela, acreditando-se ser direito exclusivo dos detentos e ainda, repleto de regalias e benefícios sem motivação. De fato, a visão social dos presídios e a forma como as penas são efetivamente cumpridas, por diversas vezes realizadas de forma mais gravosas do que a lei permite, é um constante conflito e a realidade necessita ser modificada. O presente artigo, portanto, tem por escopo analisar criticamente, sob o viés da proteção digna ao ser humano elencada na Constituição de 1988, na Lei de Execuções Penais e na Declaração Universal de Direitos Humanos, a fim de destacar que todos somos iguais

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

perante a lei e tratamento humanizado deve ser abarcado para todos e qualquer um. Primeiramente, o presente estudo discorrerá sobre o contexto histórico no qual este fenômeno está inserido, abordando sobre a evolução histórica das penas, bem como seus reflexos e como a lei pode ser efetivada. Posteriormente, analisaremos em números as consequências do tratamento penitenciário brasileiro, demonstrando como a eficácia da legislação vigente é atitude benéfica para toda a sociedade. 2. AS PENAS: evolução histórica e conceito 2.1. Histórico mundial Para dar início ao estudo sobre a ineficácia da lei de execuções penais e seus efeitos precarizantes nas condições de ressocialização do apenado, importante compreender o seu significado, bem como o contexto histórico em que este fenômeno social está inserido. As civilizações mais antigas como Grécia, Babilônia, Egito e Pérsia guardam relatos da prisão utilizada apenas como método de contenção e sua finalidade se baseava na custódia e tortura dos considerados culpados. Em Roma se estabeleceu o primeiro ambiente prisional na antiguidade, o Hospício de San Michel, também denominado Casa de Correção, utilizado para encarcerar e corrigir crianças indisciplinadas. Até meados de 337 a.c., na Antiguidade, a prisão era reconhe-

171

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


cida somente como instituto para aguardar o julgamento do acusado, ou seja, o cárcere era utilizado unicamente para proteger as pessoas. Sendo assim, as condenações não tinham como penalidade a prisão, mas sim castigos cruéis ou condenação à morte. O aprisionamento da Idade Média até a Idade Moderna passou por diversas mudanças, sempre buscando a humanização das penas. A Idade Média revolucionou ao trazer a prisão como uma modalidade de apenar. Apesar de esporádicos, os aprisionamentos tornaram-se sanções para os casos em que a mutilação era demasiada para aplicar em determinados casos. O período de Inquisição da Igreja Católica Apostólica Romana, no período medieval, utilizava as penas de morte e o cárcere privado para punir os hereges a fim de alcançar uma correção aos valores espirituais, os monteiros iniciaram tal penalidade a fim de punir primeiramente os monges e clérigos, com o objetivo de aproximar-lhes mais de Deus. A Idade Moderna, período compreendido basicamente entre os séculos XV ao XVIII, por sua vez, apresentou uma real diminuição das penas de morte e um significativo aumento das penas de privação de liberdade em decorrência da ineficiência para conter os índices criminais. A House of Correction, construída na Inglaterra em meados de 1550, foi a primeira instituição carcerária com o intuito de punir os criminosos a partir de seu recolhimento, encarceramento. A busca pelas penas mais brandas para o corpo reflete o crescente ideal de punir-se e não vingar-se do apenado, como explica Michael Foucault: A prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão, a interdição de domicílios, a deportação- são penas “físicas”, mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que era nos suplícios. O corpo encontrava-se ai como instrumento. Segundo essa penalidade o corpo é colocado em um sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais elementos constitutivos da pena. (FOUCAULT, Michel- Vigiar e Punir, Editora Vozes, página 14). Apesar do avanço das penas de privação de liberdade, ainda havia muita barbárie nas cadeias, considerando que não havia distinção entre os detentos. Homens, mulheres, idosos, crianças, deficientes mentais e físicos dividiam celas e não havia nenhum critério de separação destes, além da permanência de algumas punições físicas- flagelo e açoite de membros. A confluência de pensadores e de movimentos, sobretudo as obras de Beccaria e Howard, além do Iluminismo, foram cruciais para colocar um basta neste tratamento indigno aos humanos e fez surgir em vários lugares da Europa a supressão das penas capitais e injuriosas, dado lugar as penas privativas de liberdade e aos institutos prisionais com intuito de ressocialização e reintegração dos presidiários. Mister salientar que a humanização penal foi variável segundo cada ambiente, considerando a cultura de cada localidade, sobretudo porque todo processo é progressivo e único. Com os castigos físicos desumanos e degradantes restou evidente que não era a gravidade destes que diminuiriam os índices de criminalidade. Sendo assim, cresceu no século XIX o questionamento sobre qual era a real pretensão das penas e, ainda hoje, a resposta permanece a mesma, conforme a Escola Positivista: prevenir a incidência de novos delitos. Grandes estudiosos como Enrico Ferri, César Lombroso e Rafael Garófalo analisaram o criminoso de forma positivista, interligando áreas como psicologia, antropologia, sociologia e até mesmo medicina a fim de construir um diagnóstico do criminoso.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

As teorias por muitas vezes falhas dos positivistas cederam totalmente após o início da Segunda Guerra Mundial. 2.2. Histórico brasileiro No século XIX iniciou o surgimento das penas privativas de liberdade no Brasil. As prisões apresentavam celas individuais e oficinas de trabalhos, além da arquitetura característica próxima ao que temos hoje. O Código Penal de 1890 abarcou novas penas de prisão, além de abolir as penas perpétuas, estipulando como tempo máximo de encarceramento 30 anos, tempo este estabelecido até hoje. Ainda, extinguiu-se as penas coletivas, acatando as penas restritivas de liberdade individual. As opções de encarceramento eram prisão celular, prisão disciplinar, reclusão e trabalho obrigatório. O Brasil se aproxima do Sistema Penitenciário Progressivo, também denominado de inglês ou irlandês. Criado na Inglaterra em meados do século XIX, este sistema tem como escopo o comportamento e aproveitamento do encarcerado, analisando individualmente suas condutas e esforço despendido com trabalho, dividindo sua estadia na prisão em estágios, com a finalidade de propiciar liberdade condicional se passar por todas as fases com um rendimento satisfatório. Sendo assim, tal sistema induz o aprisionamento para uma recuperação do indivíduo, propiciando o bem maior individual e posteriormente, coletivo. A legitimação social propiciou ao país um melhoramento da divisão prisional, adotando parâmetros conforme a qualificação individual de cada preso. Desse modo, estes eram separados dentre os asilos de contraventores, estabelecimento que abrigava ébrios, mendigos, pessoas a margem da sociedade; os asilos de menores, por sua vez, acompanhava crianças marginalizadas que careciam de apoio coercitivo contra a delinquência; as prisão ou ala de processados, presos que eram considerados inocentes ou com menor potencial ofensivo, distintos dos outros presos para preserva-lhe a integridade física e moral; manicômios criminais recebiam doentes mentais que haviam transgredido a lei e careciam de tratamento clínico constante; por fim, as mulheres eram separadas em ala carcerária específica. A distribuição dos apenados é um aspecto que deve ser levado em consideração não só como poder de controle, mas, talvez principalmente, para preservação e recuperação do apenado. A racionalização do ambiente inovou na separação dos apenados em relação aos crimes, considerando o grau da infração e o a periculosidade do acusado. A separação dos encarcerados por sexo, idade e tipo de delito colabora para um maior entendimento e controle dessa categoria de indivíduo, aprimorando a forma de recuperação. Atualmente, adotamos três tipos de pena vigentes, elencadas no Código Penal, sendo a pena privativa de liberdade, restritiva de direitos e multa. 3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA EM PRIVAÇAO DE LIBERDADE Expressamente elencado no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, o princípio da dignidade da pessoa humana é um marco à Carta Magna elaborada em busca da defesa e realização de direitos fundamentais da coletividade e do indivíduo. Instituindo o Estado Democrático de Direito e destinando-se ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça social, adotando uma linha de constitucionalismo contemporâneo. A Constituição pretende assegurar, sobretudo, a integridade física e moral dos indivíduos, tornando-se o âmago dos direitos fundamentais, a fonte jurídico-positiva dos demais ramos do direito, essencial ético, conferindo valores e idealismo para a prática do sistema

172

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


dos direitos humanos embasados pela dignidade no sentindo mais amplo do ser, vejamos nas palavras de Wolfgang: [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais - 2012, p. 62) Mister ressaltar que o Brasil também incorporou demais tratados internacionais que visam os direitos humanos como proteção precípua. Sendo assim, o país é signatário dos mais solenes tratados, tanto na Organização das Nações Unidas (ONU), quanto na Organização dos Estados Americanos (OEA). Alguns tratados internacionais como a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; a Convenção Americana de Direitos Humanos; a Convenção sobre os Direitos das Crianças; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à Abolição da Pena de Morte e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, além de serem as medidas adotadas pela legislação infraconstitucional, são os principais norteadores da Carta Magna. A Constituição vigente é o texto mais completo e humanitário para abarcar direitos a todos os cidadãos, sobretudo os apenados. Demais artigos do texto constitucional, principalmente o artigo 5 º, referem-se ao tratamento digno e humano de forma generalizada, mas há incisos que são claramente abarcados pelo devido processo legal penal. Quando o artigo 5º da CRFB/1988 afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, afirma que qualquer pessoa julgada e condenada deverá receber a pena equivalente a seu crime, sem auferir prejuízo ou regalias a ninguém. Mas a realidade dos presídios é muito distante disso, como veremos logo a frente. O inciso III do referido artigo 5º afirma que ninguém será submetido a tortura ou tratamento desumano ou degradante. Entretanto, mais um inciso é desrespeitado nos presídios e delegacias do país, sendo centenas os casos de abusos cometidos contra os presos provisórios e definitivos, além da violência ser física, sexual e psicológica. O inciso X expõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, também abarcando os presos. Porém, tal inciso se faz inexistente em várias instituições prisionais. No presídio de Pedrinhas, localizado no Estado do Maranhão, a visita íntima dos detentos ocorre em ambiente aberto, no meio dos outros detentos, sem observar conceitos mínimos de higiene, intimidade e preservação do indivíduo. Quando o inciso XXXVII afirma que não haverá tribunal de exceção, não podemos fechar os olhos para a situação dos presos que são estuprados e aniquilados dentro das instituições prisionais em decorrência, comumente, de terem cometido crimes sexuais e/ ou considerados inaceitáveis pela comunidade carcerária. Ainda, tem os crimes de tortura e homicídio praticados entre grupos rivais que ocupam o mesmo presídio. Apesar da tentativa de preservação dos presos, o Estado é sim ineficiente quando analisamos em números. Assim como o inciso LIII é ineficaz, uma vez que há presente dentro dos presídios um Tribunal paralelo, impondo penas e executando-as,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

de forma livre e arbitrária. O princípio da anterioridade aplicado a lei penal, abarcado pelo inciso XXXIX é um dos poucos que são seguidos, aparentemente, pelo judiciário brasileiro e não ocasionando reflexos negativos no sistema carcerário. Porém, quanto as penas sem prévia cominação legal não são seguidas pelos presos e pelo próprio Estado, aplicando-se penas físicas- como estupro, homicídio, tortura- além do próprio tratamento desumano das celas superlotadas, do abuso aos familiares dos presos quando das visitas ao parente preso, dentre tantos outros. Assim, remetemos a outro inciso do artigo 5º, o XLV preleciona que a pena será personalíssima, não podendo passar da pessoa do condenado. Mas, quando analisamos os casos desses familiares que visitam os presos e são obrigados a passar por situações vexatórias e, ainda mais gravoso, os filhos de mulheres encarceradas que nascem nas prisões, que podem acompanhar essas mães por até sete anos de idade e sofrem com possíveis sequelas e carregam um estigma forte por terem sido colocados, mesmo que por meio de um direito do convívio materno, no ambiente prisional. O inciso XLVII expõe que não haverá pena de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis. Infelizmente, o texto constitucional é composto por um dever ser que não é aplicado no ambiente prisional vigente, muito pelo contrário, as penas de mortes e cruéis são realidade nos presídios do Brasil. O inciso XLVIII traz outra preocupação, os presos devem cumprir a pena em estabelecimento diferenciados, separando-os por natureza do crime, idade e sexo. Claro que não ocorre como na idade média, onde não havia nenhum tipo de distinção. Mas a separação dos apenados por tipo de crime é realidade pouco palpável, dada a dificuldade de separá-los em decorrência do escasso espaço livre nas penitenciárias, sempre superlotadas, assim como o critério de idade. O sexo é realmente o grande divisor, apesar de ainda apresentarmos casos como o ocorrido em Belém, onde uma jovem de 15 anos foi presa em uma cela com outros 30 homens por mais de 26 dias, colocada a toda sorte- situação comprovadamente desumana e degradante, inadmissível. Ainda, o inciso XLIX que afirma que os presos terão assegurado respeito à integridade física e moral é mais um corriqueiramente desrespeitado dada a atualidade do sistema prisional e todos os seus problemas de superlotação e desdobramentos. 4. A INEFICÁCIA DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO O estudo mais recente sobre a realidade do sistema prisional é o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014, demonstra numericamente todo o contexto que as instituições prisionais refletem e reúne dados de várias fontes oficiais. No Brasil há 574.207 pessoas encarceradas, dentre essas 215.639 são presos provisórios, ou seja, ainda aguardando julgamento e já enfrentando as mazelas das prisões. Há atualmente uma média de 220.057 vagas faltantes no sistema, tornando a vida dos encarcerados cada dia mais desumana. Os dados mais recentes de despesas realizadas com a Função de Direitos da Cidadania e Subfunção de Custódia e Reintegração Social foi de R$4.887.636.603,53 em 2013, em detrimento de R$2.385.972.802,73 em 2012. Estimasse que 0,1 do PIB é gasto com prisões e unidades de medidas socioeducativas, enquanto 1,26 é investido em segurança pública e 3,97 é o custo social da violência. Outro dado relevante é que a maioria dos presos tem faixa etária entre 15 e 29 anos, a etapa mais crucial de desenvolvimento educacional e produtivo, representando 54,8% da totalidade dos presos. Espantoso também é que 93,9% dos encarcerados são homens, ausentes nos ambientes de educacionais, escolares e familiares.

173

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Em 2013 o Brasil gastou R$258 bilhões em segurança pública e somente R$4,9 bilhões foram investidos em prisões e instituições socioeducativas. O maior gasto foi designado aos custos sociais da violência, decorrentes de perdas humanas, segurança privada, sistema de saúde e seguros. Ao menos houve uma diminuição do número de policiais civis e militares mortos em serviço entre 2012 e 2013, enquanto no primeiro tivemos 160 perdas, em 2013 foram 121 mortos. Em contraste com o número de policiais mortos foram do de serviço, que em 2012 foram 287 e em 2013 foram 369 policiais vitimados. Números que, certamente, merecem ser repensados. Mister salientar que o número de mortes de policiais se torna inexpressivo quando analisamos a quantidade de pessoas mortas pela instituição policial. Em 2012 2.332 pessoas foram mortas por policiais e em 2013 o número foi praticamente similar, com 2.212 perdas. Comparando a letalidade policial do Brasil com os Estados Unidos da América, observa-se que no nosso país, em apenas cinco anos (2009-2013) foram 11.197 mortes ocasionadas por policias, enquanto nos EUA, no interregno de 29 anos (1983-2012), o número de mortes chega a um total de 11.090. Resta evidente o despreparo do policiamento e segurança brasileiros. Vivenciamos uma crescente crise na segurança pública no Brasil. Em 2014 presenciamos rebeliões, mortes em prisões, linchamentos, greves do efetivo policial, manifestações contra a Copa do Mundo com fortes confrontos entre black-blocs, policiais e exército, marcadas por mortes e ferimentos de manifestantes. De fato, a pesquisa mostra limpidamente como é caótico a segurança pública no país, apresentando taxas em níveis surreais e absurdos que deixam a população cética e encarando os acontecimentos com normalidade. 4.1 O retorno à penalidade física e degradante O Conselho Nacional do Ministério Público computou, no interregno de 2012 a 2013,769 óbitos de encarcerados. Dentre estas mortes, foram classificados 110 homicídios e 83 suicídios, não havendo classificação para as demais 576 perdas humanas. Outros números que chamam a atenção da degradante penalidade física dos encarcerados é o registro de 3.443 detentos feridos e outros 2.772 com lesões corporais. O artigo 40 da Lei 7.210/1984, Lei de Execuções Penais (LEP), estabelece em seu caput que todas as autoridades estão sujeitas ao respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. Ainda, o artigo 45 do mesmo título, em seu § 1º, afirma que não poderão haver sanções que coloquem em risco a integridade física e moral do condenado. Por fim, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos referentes à Abolição da Pena de Morte e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura também repudia todo e qualquer tipo de tratamento degradante a qualquer pessoa em privação de liberdade, sobretudo atos que levem a seu óbito. É de responsabilidade do Estado a manutenção da integridade física do preso, devendo protege-lo de si mesmo e obviamente, dos demais encarcerados que possam fazer-lhe algum mal. O artigo 84, § 4º, da LEP, afirma que o preso que tiver sua integridade física, moral e psicológica ameaçada pela convivência com os demais detentos ficará segregado em local distinto, para permanência de sua segurança. Sendo assim, flagrante é o descaso das instituições carcerárias com os presos condenados e os provisórios, permitindo que um grande número de mortes ocorram, sem ao menos investigar e dar continuidade aos inquéritos, forçando uma “higienização” nas cadeias. O descaso com a integridade física dos presos é flagrante e sabido por toda a sociedade. A penalidade física dos apenados se faz presente além das lesões corporais e das mortes ocorridas dentro

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do sistema penitenciário. Os presídios apresentam uma superlotação que se apresenta sub-humana, não existindo condições mínimas de saúde e higiene, tornando o tempo no presídio um martírio para o corpo e a mente. Em 2007 o Pará presenciou um caso de degradação física, psicológica e moral que chega a ser irracional de tão absurdo. Uma adolescente de 15 anos foi presa provisoriamente por 26 dias em uma cela com cerca de 30 homens. A jovem sofreu todos os tipos de violência imagináveis, tornando-se um marco da violação dos direitos humanos. Vislumbramos a concreta violação de toda a legislação penal vigente em nosso ordenamento. O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, localizado no Maranhão, é uma das instituições prisionais mais degradantes e com inerente desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana em privação de liberdade. O Conselho Nacional do Ministério Público esteve na instituição em 23 de outubro de 2013 e constatou situações flagrantes de descaso com o ser humano, localizando uma cela pequena onde havia 13 detentos amontoados, sem nenhuma condição de higiene. Nesta mesma cela encontrava-se um preso com uma bolsa de colostomia, sem receber qualquer tipo de tratamento médico. Outro exemplo flagrante de penalidade física é o inesquecível massacre do Carandiru, acontecido em 1992, onde foram executados 111 presos por policiais militares. É nítido perceber que os abusos e agressões realizados por agentes penitenciários são mais comuns em casos de rebeliões e fugas, o uso da força é uma espécie de “correição”, utilizado para conter os detentos como um castigo. Mas nada impede que os presos sofram fisicamente por uma atitude muito menor, sofrendo excesso e abuso de poder dos agentes públicos, demonstrando apenas a desqualificação e despreparo desses. Mister ressaltar que o artigo 88, da LEP, estabelece como será o alojamento dos condenados, método que claramente é vigente e não eficaz: Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados). Diante de todo o exposto, resta cristalino que as penas físicas apesar de não estarem positivadas no ordenamento brasileiro, estão presentes diariamente nos presídios. 4.2 Da custódia do preso provisoriamente Outra comum realidade observada no sistema prisional é a insegurança dos presos provisórios. Aproximadamente 35% da população carcerária brasileira está em situação de prisão provisória, um número considerado elevado. A Constituição Federal de 1988 elenca o Princípio da presunção de inocência, garantindo que o acusado de um delito aguarda em liberdade o desfecho de seu processo criminal, até a comprovação definitiva da culpa. Entretanto, o acusado poderá ser privado de sua liberdade temporariamente, em situações excepcionais, desde que a liberdade deste comprometa a conveniência da instrução criminal, a garantia da ordem pública, a garantia da aplicação da lei penal e a garantia da ordem econômica. Elencada nos artigos 311 a 316 do Código de Processo Penal, a prisão provisória deverá ser aplicada pelo Juiz e a decisão deverá ser motivada. E a revogação da prisão se dará quando a motivação deixar de existir ou for provado que a mesma nunca ocorreu, podendo ser

174

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


decretada a revogação de ofício ou solicitada pela parte. A exceção no Brasil torna-se a regra, vislumbramos diversas prisões cautelares com a finalidade distorcida, inclusive para crimes em que a pena ao fim do processo não seria, provavelmente, a de prisão, considerando a natureza do delito. O que mais chama a atenção no numeroso quadro de presos provisórios é que a assistência jurídica é severamente precária e pouco acessível aos presos de baixa renda, assolando a maioria dos presos. Em 2011, no Rio de Janeiro, a Associação para Reforma Prisional (ARP) realizou um experimento controlado de prestação de assistência jurídica aos presos provisórios mantidos em delegacias. O trabalho conseguiu assistir 130 presos provisórios e concluiu que 2/3 dos presos provisórios estavam encarcerados ilegalmente, uma vez que os tipos de condutas criminosas praticadas no caso em tela facultavam a liberdade durante o processo. Há poucos dados sobre as prisões irregulares e ilegais, mas é flagrante a insegurança que o preso provisório sofre no encarceramento, sobretudo porque pode dividir cela com presos condenados e com periculosidade muito acima dos delitos supostamente cometidos, podendo também sofrer agressões e torturas por parte dos policiais e carcereiros, a fim de confessar o crime e ainda, poderá ser vítima do tribunal de justiça paralelo que existe dentro das instituições penitenciárias. O potencial de violação de direitos desse tipo de prisão pode causar danos irreparáveis. Um exemplo de prisão preventiva que se desdobrou no caso criminal mais célere do país é a condenação dos irmãos Naves. Em 1937, na cidade de Araguari/MG, José Naves e Joaquim Rosa Naves foram acusados de latrocínio de seu primo e sócio, Benedito Pereira Caetano. Após o interrogatório repleto de agressões e torturas, os irmãos foram presos cautelarmente e sofreram por meses até confessarem o crime. A mãe dos acusados e suas esposas também foram presas, humilhadas, espancadas e estupradas pelos soldados, mesmo não sendo acusadas de participação no crime. Foram mais de oito anos de prisão até que os irmãos conseguissem liberdade condicional, devido a seu exemplar comportamento. Entretanto, somente em 1952 a história real veio à tona, o primo dos acusados retornou à cidade, não estava morto, apenas fugido. Neste caso é flagrante o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência. Sem uma proteção e espaço adequado, o preso provisório sofre o risco de ser esquecido com os demais, simplesmente é encarcerado e não se observa o limite de prazo jurisprudencialmente estabelecido de 81 dias de prisão provisória. Com a superlotação e a falta de acesso ao judiciário para ter seus direitos observados, os presos mais pobres e com pouca instrução são colocados à disposição e a mercê da justiça, um quadro de completa insegurança jurídica, física, moral e psicológica. Constata-se que o dever de custódia do preso pelo Estado é falho e fere o princípio da dignidade da pessoa humana. 4.3 O Tribunal do Júri do Sistema Prisional O sistema prisional brasileiro também traz um fato de conhecimento público e notório, mas que parece não incomodar as autoridades competentes para tanto. O denominado “Tribunal do Júri do Sistema Prisional” também engloba os dados elencados no item mencionado acima, alertando sobre o grande índice de mortes e lesões corporais sofridos pelos tutelados do Estado. Há crimes que os presos consideram como hediondos assim como nos termos jurídicos, mas estes auferem penas distintas. O crime de estupro, por exemplo, é totalmente rechaçado no ambiente prisional. Os presos têm ojeriza e um ódio exacerbado pelos detentos que incidem como estupradores. Sobretudo, os crimes sexuais cometidos contra crianças são ainda mais rechaçados, sendo praticamente

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

inadmissíveis pelos demais detentos. De fato, há poucos ou inexistentes relatos sobre mortes de estupradores no sistema prisional. Como já ressaltado, as mortes não são muito investigadas e as demais agressões físicas não mencionam crimes sexuais ocorridos dentro dos presídios. Entretanto, há um trabalho realizado em 2007 pelo acadêmico Gessé Marques Junior que aborda avaliações e representações de Juízes e Promotores diante da violência no cárcere que ilustra claramente como funciona o tribunal do júri prisional, sobretudo a lei de “quem entra com estupro é estuprado”. Há um relato que chama a atenção, é o “Juiz B” que, ao ser entrevistado, menciona um processo criminal que envolve abuso entre detentos, sendo que a vítima era um preso acusado de crime de estupro que sofreu violências físicas, vejamos: [...] o acusado de estupro sofreu tortura e agressões graves por companheiros de cela, tais como sufocamento, lesão na cabeça e quase teve o pênis decepado. No Boletim de Ocorrência, há uma informação fundamental que envolve a discrição dos fatos e conhecimento compartilhado pelos operadores de justiça[...]. Os mesmos policiais informaram os presos que o declarante estava sendo recolhido pelo crime de estupro, isto já com o intuito de prejudicá-lo, uma vez que é fato sabido que qualquer pessoa que dê entrada na Cadeia por esse motivo é vítima de agressão dos companheiros de cela, como veio de fato a ocorrer. (JUNIOR, Gesse Marques. “Quem entra com estupro é estuprado”: avaliações e representações de juízes e promotores frente à violência no cárcere.2007, p.102.) O cárcere cria regras, coerções e punições distintas das juridicamente estabelecidas, impondo limites morais e norteadores para a comunidade presidiária, conforme preleciona Boaventura de Sousa Santos: Sendo embora o direito estatal o modo de juridicidade dominante, ele coexiste na sociedade com outros modos de juridicidade, outros direitos que com ele se articulam de modos diversos. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça. Revista crítica de ciências sociais, n. 21, 1986. p. 27.) Outro relato que comprova que há um “Tribunal do Júri” em que muitas vezes o Juiz é também o algoz é o fato ocorrido na cidade de Teresina, Piauí. No dia 27 de maio de 2015, quatro adolescentes e um adulto foram acusados de cometer o estupro de outras quatro adolescentes. Um dos acusados confessou o crime à polícia e foi internado com mais dois coautores do estupro no Centro Educacional Masculino(CEM). Dividindo a mesma cela, o réu confesso foi espancado até a morte pelos outros dois acusados do crime. Obviamente que aqui a pena aplicada pelo tribunal paralelo não foi em decorrência da ojeriza do crime de estupro, mas sim pela confissão do ato criminoso e por ter delatado os demais autores. Um crime também ocorrido no Complexo Penitenciário de Pedrinhas foi denunciado recentemente pelo Promotor Gilberto Câmara Júnior, da 12ª Promotoria de Substituição Plena. Foi aberto um inquérito para investigar a prática de crime de canibalismo ocorrido em 2013, dentro do Presídio São Luiz II. Segundo a promotoria o crime foi cometido com requintes de crueldade, a vítima teve seu corpo decepado em 59 pedaços. A motivação do crime seria desentendimento entre membros de uma facção criminosa, sendo que o líder do grupo ordenou que a vítima deveria morrer. Além de passar por horas de tortura antes de morrer, o corpo da vítima foi esquartejado e ocultado dos agentes penitenciários por dias, para disfarçar a morte. Antes de se livrar dos restos mortais, três suspeitos do crime teriam ingerido o

175

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


fígado da vítima, assado na própria cela. É surreal perceber que durante anos um crime tão bárbaro ficou desconhecido das autoridades. Mas o Promotor do caso alerta que impera nas penitenciárias a “Lei do Silêncio”. Os presos e até mesmo os agentes penitenciários ficam receosos de denunciar e serem testemunhas dos acontecimentos prisionais, uma vez que a represália das facções é, muitas vezes, mortal. Desse modo, é nítido que há um tribunal paralelo dentro dos presídios, em que outros detentos estipulam penalidades aos demais, como se a justiça do Juiz togado não fosse suficiente, não se bastasse. Segundo Dimitri Dimoulis: [...]não devemos confundir a validade do direito com a sua avaliação nem a validade com seu grau de eficácia social. (DIMOULIS, Dimitri. Op. Cit. 2006, p. 194.) 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado neste trabalho, verificasse que as garantias legalmente estabelecidas para a execução das penas, bem como os direitos humanos das pessoas em privação de liberdade, têm previsão legal em diversos regimentos legais, em âmbito nacional e internacional. Inclusive o ordenamento executivo-penal do Brasil é considerado como um dos mais modernos e democráticos atualmente. Baseando-se no princípio da dignidade humana, as penas privativas de liberdade devem ser apartadas de punições desnecessárias, desumanas, degradantes e cruéis. Entretanto, a realidade é completamente distorcida do princípio da legalidade, ocorrendo a maçante violação dos direitos dos apenados e recorrente inobservância das garantias legalmente previstas a fim de assegurar a execução das penas demonstrando a inércia e despreparo do Estado face à custódia do preso. Dessa forma, observasse que o preso é subjugado à tutela do Estado, perdendo não apenas seu direito de liberdade, mas tantos outros direitos fundamentais que não deveriam ser atacados pela sentença, sofrendo vários tipos de punições, propiciando a degradação da personalidade, individualismo e dignidade, desfavorecendo o retorno ideal do indivíduo à sociedade. Demonstramos que no ambiente prisional o preso sofre com torturas, agressões físicas e verbais, abalando a saúde física e mental. Inclusive, destaca-se que os presos provisórios são recolhidos junto aos presos condenados, sem nenhuma distinção prévia em decorrência do pouco espaço disponibilizado, situação que tem diversos desdobramentos, sobretudo a insegurança deste preso que pode ser inocente e é tratado como condenado. Ademais, nota-se que há um sistema penal paralelo que rege suas próprias legislações não positivadas dentro das instituições carcerárias. Os atos violentos e a impunidade ocorrem de forma exacerbada e natural nos presídios, onde há a presença de facções, grupos e até mesmo lideranças isoladas que exercem um domínio sobre os demais, criando um ambiente hostil e com grande insegurança jurídica, tornasse a lei da hierarquia criminal eficaz. Conforme analisamos, a maioria dos detentores desse poder não são denunciados pela prática de crimes cometidos dentro das prisões em decorrência da “lei do silêncio”. Com base nos casos mencionados, percebesse que a legislação penal é vigente, mas eficaz é a lei criada pelos próprios detentos. Deste modo, nota-se que o Brasil necessita buscar meios de humanizar as penas e fazer eficaz a legislação. Para tanto, deve-se melhorar as instalações em que as instituições prisionais funcionam. No Brasil, 36% das unidades prisionais não foram concebidas para serem estabelecimentos penais, somente adaptadas para esta finalidade, elas demonstram aparatos muito menores dos que os ambientes planejados para receber apenados. Em 49% das prisões planejadas, quase metade, há módulos de saúde, o que deli-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

mita muito o atendimento médico e emergencial, podendo ser um dos motivos do grande número de mortes, dado ao precário ou inexistente tratamento médico, diferente das não planejadas que em apenas 22% tem atendimento à saúde. Quanto à educação, 58% das instituições carcerárias planejadas tem módulo de educação, enquanto as não planejadas têm 40%, mas nem todos os presos demonstram interesse em realizar designada tarefa, mesmo com a possibilidade de acrescentar conhecimento e diminuir a pena gradativamente. E 30% dos ambientes planejados para alojar presidiários tem módulos de trabalhos, em face de 17% de incidência de ambientes propícios para o trabalho nas instituições adaptadas para o cárcere. Outro problema que merece destaque é o grande e crescente número da população carcerária. O Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. A população carcerária tão alta de homens jovens negros também demonstra que o país necessita de adoção de políticas públicas para que esta realidade seja modificada. A oportunidade de trabalho e estudo dessa parcela da população deve ser observada com cuidado, buscando apoio para que os indivíduos não abandonem os estudos e que tenham boas vagas de emprego, para não abrir espaço para a criminalidade. A falta de oportunidade pode ser o grande vilão da grande taxa de criminalidade, é papel do Estado em conjunto com a sociedade diminuir as diferenças de classes e gerar meios de produzir um país melhor para todos. Além desse cenário, unido a pouca ou inexistente oportunidade, é a reincidência criminal no país, alçamos um patamar de aproximadamente 47,4% entre os homens em 2013, um número que alcança praticamente a metade da população carcerária. Sendo assim, deve-se observar por quê a pena não cumpri sua função? Por quê os presos continuam retornando ao ambiente hostil e degradante? As instituições prisionais de fato promovem o trabalho e o ensino durante o processo de execução da pena? De fato, a resposta está no sistema prisional vigente, a escola da criminalidade torna o preso que cometeu um crime de furto, um pequeno roubo, em um grande traficante. Uma vez que não há a distinção legal dos apenados em decorrência do tipo de delito, reincidência, idade e até mesmo uma análise criteriosa psicológica, é difícil controlar como será a formação desse indivíduo, que na maioria esmagadora veio de família pobre, humilde, sem instrução e que sairá ainda mais revoltado por tudo que vivenciou no cárcere. Portanto, entende-se ineficaz a Lei de Execuções Penais, sobretudo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, após análise criteriosa do cárcere brasileiro, sistema hostil, degradante e desumano que não demonstra o mínimo de preparo para abarcar a quantidade grande da população carcerária da maneira legalmente positivada. Esperasse que haja uma recuperação do sistema prisional e que esse possa alcançar seu objetivo precípuo, recuperar e ensinar humanamente a postura socialmente adequada, nas palavras brilhantes do grande Jurista Francesco Carnelutti: Basta tratar o delinquente como um ser humano, e não como uma besta, para se descobrir nele a chama incerta do pavio fumegante que a pena, em vez de extinguir, deve reavivar. REFERÊNCIAS VIEIRA, Lycia Maria Matos. A efetividade da função ressocializadora da pena privativa de liberdade. Disponível em: < http://www.viajus.com.br/viajus. php?pagina=artigos&id=1663&idAreaSel=4&seeArt=y es>. Acesso em: 25 de jun. de 2015. MARQUES, Archimedes Jose Melo. A Lei de Talião sobrevive para o autor do crime de estupro. Disponível em: <http://www.infoescola.com/direito/a-lei-

176

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


de-taliao- ainda-sobrevive-para-o-autor-de-crime-de-estupro/>. Acesso em: 29 de jul. de 2015. PÚBLICA, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de segurança pública 2014. Disponível em: <http://www.mpma.mp.br/arquivos/CAOPCEAP/8o_anuario_brasileiro_de_seguranc a_publica.pdf >. Acesso em: 20 de jul. de 2015 SANTOS, Nelson Rosa dos. A promoção do trabalho humano no Brasil e a ressocialização do presidiário: responsabilidade da empresa e do Estado. Disponível em:< https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.unimar.br/pos/t rabalhos/arquivos/68FF597CB76ADD9E83541B65BDC8C8B9.pdf&gws_rd=cr&ei=1 b9LVrHuNoj6wgTb_LDIBA>. Acesso em: 17 de nov. de 2015. ASSIS, Rafael Damasceno de. A realidade atual do sistema penitenciário brasileiro. Disponível em: < http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/ view/949/1122>. Acesso: em 06 de nov. de 2015. Ministério Público. A visão do Ministério Público sobre o sistema prisional brasileiro. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/noticia/3486-dados- ineditos-do-cnmp-sobre-sistema-prisional>. Acesso em 20 de mar. De 2015. GOMES, Luiz Flávio. Brasil reincidência de até 70%. <http://institutoavantebrasil.com.br/brasil-reincidencia-de-ate-70/>. Acesso em: 13 de nov. de 2015. BRASIL. Cartilha da pessoa presa. Dispoível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/comecar-de- novo/publicacoes/cartilha_da_pessoa_presa_1_ portugues_3.pdf>. Acesso em: 20 maio de 2015. GOMES, Gustavo Henrique Comparim. Condenação criminal: privação da liberdade e a dignidade humana à luz da Constituição Federal. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22688/condenacao-criminal-privacao-da-liberdade-e -a- dignidade-humana-do-a-luz-da-constituicao-federal#ixzz3rnWMEZTv>. Acesso em: 19 de fev. de 2015.

COSTA, Newvone Ferreira da. O que existe atrás das Grades? Estudo de relatos sobre o crime segundo o criminoso. Disponível em: <http://www.encontro2014. andhep.org.br/resources/anais/1/1397570781_ARQUIVO _Trabalhocompleto. pdf>. Acesso em: 29 de jul. de 2015. BRETAS, Valéria. Para metade dos brasileiros, “bandido bom é bandido morto”. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/50-dos-brasileiros-acham- que-bandido-bom-e-bandido-morto >. Acesso em: 05 de out. de 2015. CARRAMILLO, Clarissa. Promotor denuncia caso de canibalismo no presídio de Pedrinhas. Disponível e m : < h t t p : / / g 1 . g l o b o . c o m / m a / m a r a n h a o / n o t i cia/2015/10/promotor-denuncia-caso-de-canibalismo-no-presidio-de-pedrinhas.html>. Acesso em: 20 de out. de 2015. JUNIOR, Gesse Marques. “Quem entra com estupro é estuprado”: avaliações e representações de juízes e promotores frente à violência no cárcere. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/cp037977.pdf>. Acesso em: 20 de fev. de 2015. PNUD. Relatório de desenvolvimento humano 2013. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/arquivos/rdh-2013.pdf >. Acesso em: 20 de maio de 2015. Conselho Nacional de Justiça. Relatório de Inspeção nos estabelecimentos prisionais do MaranhãoOFÍCIO 363/GP/2013. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/temas-de-atuacao/ sistemaprisional/atuacao-de-outros-orgaos/relatorio_cnj_complexo_pedrinhas_dez2014>. Acesso em 20 fev. de 2015. Conselho Nacional do Ministério Público. Relatório de visitas ao sistema prisional do Estado do Maranhão pelo Conselho Nacional do Ministério PúblicoCNMP. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2013/Arquivos/Relat%C3%B3 rio_Maranh%C3%A3o.pdf>. Acesso em 20 de fev. de 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2012, p. 62.

MACHADO, Ana Elise Bernal. SOUZA, Ana Paula dos Reis. SOUZA, Mariani Cristina de.Sistema Penitenciário Brasileiro - Origem, atualidade e exemplos funcionais. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas ims/index.php/ RFD/article/viewFile/4789/4073>. Acesso: em 06 de nov. de 2015.

CÂMARA, Luciene. Emprego é aguardado por 480 presos.Disponível em: <http://www.otempo.com.br/cidades/emprego-%C3%A9-aguardado-por480-presos- 1.1052571>. Acesso em : 10 de jun. de 2015.

LEMGRUBERU, Julieta; FERNANDES, Márcia; CANO, Ignacio; MUSUMECI, Leonardo. Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro- Avaliação do impacto da Lei 12.403/2011. 2013.

AMARAL, Claudio Prado. Evolução histórica e perspectivas sobre o encarcerado no Brasil como sujeito de direitos. Disponível em: <http://www.gecap.direitorp.usp.br/index.php/2013-02-04-13-50-03/2013-0204-13-48-55/artigos-publicados/13-artigo-evolucao-historica-e-perspectivas-sobre-o- encarcerado-no-brasil-como-sujeito-de-direitos>. Acesso em: 20 de fev. de 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Editora Vozes, página 14.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 21, 1986. p. 27. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de1984.Institui a Lei de Execuções Penais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso em:13 de ago. de 2015. Brasil. Mutirão Carcerário, Raio-x do sistema penitenciário brasileiro.<http:// www.cnj.jus.br/images/pesquisas- judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario. pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2015. PEREIRA, Ângela Miranda. O direito do preso à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/ site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=136 82>. Acesso em: 19 de fev. de 2015. Migalhas. Os irmãos Naves e um dos maiores erros judiciários do país. <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI152842,51045- Os+irmaos+Naves+e+um+dos+maiores+erros+judiciarios+do+pais>.Acesso em: 13 de agosto de 2015. DIMOULIS, Dimitri. Op. Cit. 2006, p. 194.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

177

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ACUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE PELO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: UMA QUESTÃO DE ESCOLHA? Juliana Canuta Affonso de Morais Cedro1 Amanda Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a possibilidade de percepção cumulada dos adicionais de insalubridade e periculosidade através do controle difuso de convencionalidade realizado com as convenções 148 e 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Inicialmente, a fim de compreender a importância da proteção à saúde do trabalhador, o presente estudo discorrerá sobre o contexto histórico da relação saúde/trabalho, bem como analisará o que é um ambiente de trabalho insalubre e/ou periculoso, como se configura o direito em receber os adicionais provenientes dos trabalhos nestas condições, bem como analisará os principais princípios protetivos inseridos na relação de emprego e como as convenções e tratados internacionais devem ser recebidos no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, a partir do entendimento doutrinário e jurisprudencial buscará demonstrar que os adicionais de insalubridade e de periculosidade devem ser recebidos de forma acumulada pelo empregado, uma vez que o Brasil ratificou tratados internacionais que possibilitam este fenômeno, concluindo, portanto, que o Estado brasileiro ao se comprometer internacionalmente tem o dever de cumprir o que ajustou para não sofrer responsabilidade internacional pelo descumprimento. ABSTRACT: This article aims to examine the possibility of cumulative perception of additional health and risk premiums through the diffuse control of conventionality performed with the conventions 148 and 155 of the International Labour Organization (ILO). Initially, in order to understand the importance of worker health protection, this study will talk about the historical context of the relationship health / work and analyze what is an unhealthy work environment and / or dangerous, the configuration of the right to receive from the additional work in these conditions and discuss important principles protective inserted in the employment relationship and as international conventions and treaties must be received in the Brazilian legal system. Finally, from the doctrinal and jurisprudential understanding will seek to demonstrate that further the unhealthy and dangerous must be received cumulatively by the employee, since Brazil ratified international treaties that enable this phenomenon, concluding therefore that the Brazilian State to commit internationally has a duty to fulfill that set not to have international responsibility for noncompliance. PALAVRAS-CHAVE:

Cumulação;

Insalubridade;

Periculosidade;

Controle

de Convencionalidade.

KEYWORDS: Cumulation; Unhealthy; Dangerousness; Conventionality Control. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Breve Registro Histórico da Necessidade, Origem e Evolução da Proteção à Saúde do Trabalhador; 3 Adicional de Periculosidade; 4 Adicional de Insalubridade; 5 Dos Princípios; 6 Das Questões Internas; 7 Da Aplicação do Direito Internacional do Trabalho; 8 Dos Tratados Internacionais Pertinentes ao Tema – Do Controle de Convencionalidade – Possibilidade de Cumulação dos Adicionais de Insalubridade e Periculosidade; 9 Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO A possibilidade de cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade é uma discussão que a muito tempo tem se instalado entre os doutrinadores e entre os operadores do judiciário. Atualmente predomina-se o entendimento da não cumulatividade embasado pela estrita leitura dos artigos 7º, XXIII da CR/88 e art. 193, §2º da CLT. Sabe-se que o trabalho exercido em condições insalubres e periculosas podem degradar a saúde do obreiro, podendo, inclusive, ocasionar a morte deste. A aplicação do adicional remuneratório para os empregados submetidos a trabalho insalubre e periculoso pode ser visto de forma compensatória e ao mesmo tempo desestimuladora, este último sob a ótica do empregador. Atualmente o tema da cumulatividade dos adicionais ganhou destaque no meio científico, pois, em recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho, o ministro Cáludio Brandão discorreu sobre a possibilidade de percepção acumulada dos adicionais de insalubridade e de periculosidade fundamentando sua decisão com a introdução no sistema jurídico brasileiro das Convenções Internacionais 148 e 155 da Organização Internacional do Trabalho. Tais tratados versam, nesta ordem, sobre a constante necesLETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

sidade de atualização da legislação sobre as condições nocivas de trabalho e sobre a segurança, higiene e meio ambiente de trabalho determinando esta que sejam considerados os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes, ou seja, determinações contrárias ao que atualmente tem entendido a jurisprudência majoritária. Neste sentido, perante a incompatibilidade legislativa quanto ao tema, a solução encontrada pelo STF e pela doutrina foi aplicar o Controle de Convencionalidade, instrumento capaz de resolver conflitos entre tratados internacionais sobre Direitos Humanos (quando ratificado) e legislação interna. Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo final demonstrar a possibilidade da percepção cumulada dos adicionais de insalubridade e periculosidade pelo empregado que exerça labor sob ambas condições. Para tanto, primeiramente, será demonstrada a necessidade de normas protetivas à saúde do trabalhador, discorrendo sobre a evolução histórica destas. Posteriormente demonstrará o que são consideradas atividades periculosas e insalubres, quais são seus fundamentos legais e como estas se configuram.

178

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Em continuidade serão abordados os princípios protetivos do Direito do Trabalho demonstrando seus conceitos, importância e aplicabilidade. Será demonstrado como o Direito Internacional é aplicado no Brasil, como as convenções e tratados internacionais são recebidos pelo Direito Pátrio, sobretudo, os que versam sobre Direitos Humanos, para, então, a partir do entendimento doutrinário e jurisprudencial, demonstrar a possibilidade da cumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade através do instituto do Controle de Convencionalidade. 2 Breve Registro Histórico da Necessidade, Origem e Evolução da Proteção à Saúde do Trabalhador Desde o momento em que o primeiro ser humano esteve laborando, sob o comando de outro, fez-se presente a possibilidade de ocorrer alguma lesão, adoecimento ou até mesmo morte. Ana Maria de Resende Chagas, Celso Amorim Salim e Luciana Mendes Santos Servo (2012) descrevem que desde a antiguidade o trabalho pode ser fonte de acidentes e enfermidades, tendo, inclusive, registro na Bíblia, no Novo Testamento de Lucas, quando registra o desabamento da Torre de Siloé, no qual faleceram dezoito prováveis trabalhadores. Descreve Regina Célia Buck (2001) que Georg Agrícola, foi o primeiro autor a abordar a relação saúde/trabalho, no ano de 1556, quando, ao descrever um tratado sobre mineração, estudou e relatou diversos problemas relacionados a extração de ouro e prata, onde ocorriam acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, chegando, inclusive, à morte destes mineradores. Georg, já naquela época, iniciou a discussão acerca da prevenção e indicando tratamento para as doenças destes, explana Buck (2001). Leciona Buck (2001) que em 1700 ocorreu o marco da luta pela saúde do trabalhador quando o médico Bernardino Ramazzini, na cidade de Módena, na Itália, publicou seu livro De Morbis Artificum Diatriba, no qual descreve, minuciosamente, doenças relacionadas ao trabalho encontradas nas profissionais existentes naquela época. Ramazzini é considerado o pai da medicina do trabalho e seus ensinamentos, para a Dra. Regina Célia Buck (2001), foram fundamentais para a medicina preventiva até o séc. XIX, momento em que ocorria a Revolução Industrial. Constatam Chagas, Salim e Servo (2012) que em meados do século XVIII, durante a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, houve um aumento notável do número de agravos relacionados ao trabalho devido ao uso crescente de máquinas, acúmulo de operários em locais confinados, longas jornadas laborais, utilização de crianças nas atividades industriais, péssimas condições de salubridade nos ambientes fabris, dentre outras razões. Complementa Buck (2001) que majora a situação o fato de que, naquele momento, o próprio obreiro era responsável por zelar pela sua própria defesa diante do ambiente de trabalho agressivo e perigoso, ao passo que não se praticava dentro das fábricas qualquer segurança do trabalho tendo em vista que somente se evidenciada a produção e o lucro do empregador. Num aspecto Mundial, Para Rosen (1994), as primeiras normas trabalhistas surgiram na Inglaterra devido a crescente mobilização social para que o Estado interviesse nas relações entre patrões e empregados. Os assalariados ingleses perceberam naquele momento que o trabalho desenvolvido era fonte de exploração econômica e social, acarretando danos à saúde e provocando adoecimento e morte dos trabalhadores. Buck (2001) ensina que a situação dos trabalhadores era tão dramática que provocou indignação da opinião pública e ensejou uma intervenção estatal para interrompê-la. Desta forma, leciona Rosen (1994) que, surge na Inglaterra a Lei

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

de Saúde e Moral dos Aprendizes, de 1802, que posteriormente foram seguidas por outras legislações semelhantes nas demais nações em processo de industrialização. O Tribunal Superior do Trabalho, em sua página virtual dedica um espaço para exposição do tema e destaca: Foi justamente o processo de mecanização dos sistemas de produção implantado na Inglaterra no século XVIII que desencadeou os movimentos em defesa dos direitos dos trabalhadores. Na medida em que a máquina substituía o homem, um exército de desempregados se formava. As fábricas funcionavam em condições precárias, os trabalhadores eram confinados em ambientes com péssima iluminação, abafados e sujos. Os salários eram muito baixos e a exploração de mão de obra não dispensava crianças e mulheres, que eram submetidos a jornadas de até 18 horas por dia, mas recebiam menos da metade do salário reservado aos homens adultos. Foi em meio a este difícil cenário que eclodiram as greves e revoltas sociais. Começavam, então, as lutas por direitos trabalhistas. Os empregados das fábricas formaram as trade unions (espécie de sindicatos), que desencadearam movimentos por melhores condições de trabalho. Tais manifestações serviram de inspiração para a formação de movimentos organizados de operários brasileiros.1 No Brasil, a Constituição da Republica de 1988 foi o marco principal quanto a introdução no ordenamento jurídico nacional do tema da saúde do trabalhador. É o que se lê na obra da Dra. Regina Buck (2001), sendo que esta evidencia, ainda, a importância do Capítulo II do texto constitucional que trata “Dos Direitos Sociais” e do art. 7º, inc. XXII que trata sobre a saúde, higiene e segurança dos trabalhadores. Buck (2001) destaca que ao longo dos tempos a legislação vem atuando para garantir o ambiente de trabalho saudável, prezando pela garantia do direito humano fundamental, ao passo que a manutenção do ambiente de trabalho saudável deve ser direito do trabalhador e dever do empregador. 3 Adicional de Periculosidade São consideradas atividades ou operações perigosas aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado. (BUCK, 2001, p. 85) Os agentes perigosos ou periculosos podem gerar efeitos danosos imediatos, podendo acarretar, de forma repentina, a incapacidade ou a morte. O trabalho em ambientes perigosos é mais desgastante devido à exigência de vigilância permanente e, para compensar o desgaste acentuado dessas atividades, o legislador instituiu uma remuneração adicional, conhecida como adicional de periculosidade. (OLIVEIRA, 2011, p. 202) Ensina Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2014) que o adicional de periculosidade, previsto no art. 7°, inciso XXIII, da CF/1988, é regulamentado pelos arts. 193 e seguintes da CLT. Para melhor vislumbrar a base constitucional de tais adicionais, necessário se faz a leitura, na íntegra, do que dispõe o art. 7.°, inciso XXIII, da CF/1988: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;

179

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O inciso XXIII do artigo constitucional supramencionado traz que, na forma da lei, os trabalhadores que exercerem atividades penosas, insalubres ou perigosas, receberão adicional de remuneração. O Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, aprovou, então, a Consolidação das Leis do Trabalho, assim regulamentando em seu art. 193 a questão: Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a: (Redação dada pela Lei nº 12.740, de 2012) I - inflamáveis, explosivos ou energia elétrica; (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012) II - roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial.(Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012) § 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa. (Incluído pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977) § 2º - O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido. (Incluído pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977) § 3º Serão descontados ou compensados do adicional outros da mesma natureza eventualmente já concedidos ao vigilante por meio de acordo coletivo. (Incluído pela Lei nº 12.740, de 2012) § 4o São também consideradas perigosas as atividades de trabalhador em motocicleta. (Incluído pela Lei nº 12.997, de 2014) Além das situações descritas acima, ensina Garcia (2014) que também foi considerada periculosa a atividade descrita na Orientação Jurisprudencial 345 da SBDI-I do TST que afirma: 345. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. RADIAÇÃO IONIZANTE OU SUBSTÂNCIA RADIOATIVA. DEVIDO (DJ 22.06.2005) A exposição do empregado à radiação ionizante ou à substância radioativa enseja a percepção do adicional de periculosidade, pois a regulamentação ministerial (Portarias do Ministério do Trabalho nºs 3.393, de 17.12.1987, e 518, de 07.04.2003), ao reputar perigosa a atividade, reveste-se de plena eficácia, porquanto expedida por força de delegação legislativa contida no art. 200, “caput”, e inciso VI, da CLT. No período de 12.12.2002 a 06.04.2003, enquanto vigeu a Portaria nº 496 do Ministério do Trabalho, o empregado faz jus ao adicional de insalubridade. Ou seja, entende-se que além das atividades previstas no art. 193 da CLT, também insere-se no rol das atividades periculosas aquelas exercidas sob a exposição de radiação ionizante ou substância radioativa. Quando da leitura do Art. 193 da Consolidação percebe-se que não basta que determinada atividade ou operação esteja elencada como tal, compreende-se que faz- se necessária uma regulamentação à parte aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego que, no caso, é feita pela Norma Regulamentadora 16 e seus anexos. Aquele que estiver laborando sob condição perigosa, dentro dos parâmetros estabelecidos pela NR 162, fará jus ao recebimento de um adicional de remuneração, como previsto no art. 7°, inciso XXIII, da CF/1988. O adicional de periculosidade deve ser pago no valor de 30% calculado sobre o salário base, incidindo “sobre o salário sem

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”, conforme art. 193, § 1°, da CLT. Garcia (2014) expõe que tal base de cálculo deve se aplicar inclusive para os eletricitários, categoria esta que recebia o adicional sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial, conforme era previsto na Súmula 191 do TST. Contudo, após a alteração no art. 193 da CLT, decorrente da Lei 12.740/20123, Portaria MTE n. 1.565, de 13 de outubro de 20144, conforme pode ser visto na portaria do MTE n. 5 de 07 de janeiro de 2015) que revogou a Lei 7.369/1985, os eletricitários receberão tal acréscimo assim como as demais categorias. Já quanto a integração deste, traz a súmula 132 do TST: Súmula nº 132 do TST ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. INTEGRAÇÃO (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 174 e 267 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 I - O adicional de periculosidade, pago em caráter permanente, integra o cálculo de indenização e de horas extras (ex-Prejulgado nº 3). (ex-Súmula nº 132 - RA 102/1982, DJ 11.10.1982/ DJ 15.10.1982 - e ex-OJ nº 267 da SBDI- 1 - inserida em 27.09.2002) II - Durante as horas de sobreaviso, o empregado não se encontra em condições de risco, razão pela qual é incabível a integração do adicional de periculosidade sobre as mencionadas horas. (ex-OJ nº 174 da SBDI-1 - inserida em 08.11.2000) Quanto ao direito de auferir o referido adicional de periculosidade, traz o Art. 193 da CLT que as atividades perigosas são aquelas que implicam em risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a inflamáveis, explosivos ou energia elétrica; roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial e a atividades de trabalhador em motocicleta. Para ter, então, o direito de receber tal adicional, dois pressupostos são necessários, conforme entende Saliba e Corrêa (2002), quais sejam: “O Contato permanente, bem como que se esteja em condições de risco acentuado”. Contudo, observa Saliba e Corrêa (2002) que do ponto de vista legal, nem a CLT nem a regulamentação dada pelo MTE definiram o que vem a ser contato permanente. Para melhor compreensão do que seja o contato permanente pode-se fazer uma análise inversa do significado de “eventual” definido pelo dicionário do Aurélio “online”5 que a define como algo que “dependente de acontecimento incerto; casual; fortuito; possível mas incerto”. É o que fez Saliba e Corrêa (2002) exemplificando com a situação hipotética de um empregado que toda sexta-feira abastece veículos, durante 1 hora por dia. Para estes autores, considerando a interpretação literal do termo “eventual”, este empregado mantém contato permanente com o inflamável. Sobre o tema se faz de extrema importância destacar as jurisprudências sumuladas do TST (Tribunal Superior do Trabalho) 361 e 364 que esclarecem: Súmula nº 361 do TST ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. ELETRICITÁRIOS. EXPOSIÇÃO INTERMITENTE (mantida) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 O trabalho exercido em condições perigosas, embora de forma intermitente, dá direito ao empregado a receber o adicional de periculosidade de forma integral, porque a Lei nº 7.369, de 20.09.1985, não estabeleceu nenhuma proporcionalidade em relação ao seu pagamento. Súmula nº 364 do TST

180

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. EXPOSIÇÃO EVENTUAL,

Art. . 189 - Serão consideradas atividades ou operações insa-

PERMANENTE E INTERMITENTE (cancelado o item II e dada

lubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos

nova redação ao item I) - Res. 174/2011, DEJT divulgado

de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à

em 27, 30 e 31.05.2011

saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposi-

Tem direito ao adicional de periculosidade o empregado expos-

ção aos seus efeitos. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de

to permanentemente ou que, de forma intermitente, sujeita-se a con-

22.12.1977) Art. . 190 - O Ministério do Trabalho aprovará o

dições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma

quadro das atividades e operações insalubres e adotará nor-

eventual, assim considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-

mas sobre os critérios de caracterização da insalubridade, os

se por tempo extremamente reduzido. (ex-Ojs da SBDI-1 nºs 05 - inse-

limites de tolerância aos agentes agressivos, meios de prote-

rida em 14.03.1994 - e 280 - DJ 11.08.2003)

ção e o tempo máximo de exposição do empregado a es-

Quanto ao risco acentuado, este é conceituado por Regina Célia

ses agentes. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977)

Buck (2001) como um risco em potencial de causar incapacitação,

Parágrafo único - As normas referidas neste artigo incluirão

invalidez permanente ou morte caso eventualmente ocorra algum si-

medidas de proteção do organismo do trabalhador nas ope-

nistro. Completa Süssekind (1999) que a exposição do trabalhador

rações que produzem aerodispersóides tóxicos, irritantes,

a um risco que, eventualmente, poderá ocasionar um grave sinistro

alérgicos ou incômodos. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de

configura a periculosidade.

22.12.1977)

Para Buck (2001) é importante frisar a diferença entre risco e perigo, onde este é a propriedade de um agente físico, químico, mecânico,

Conforme previsto no art. 190 da CLT, criou-se a NR 156,

biológico ou ergonômico causar dano. Enquanto o risco é a probabili-

da Portaria 3.214/1978, do Ministério do Trabalho, a qual descreve

dade de um dado perigo se materializar, causando um dano específico.

os agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde do em-

Saliba e Corrêa (2001) esclarecem que a CLT deixou a cargo

pregado, bem como os respectivos limites de tolerância, destaca o

do MTE a definição do que venha a ser considerado risco acentua-

professor Garcia (2014).

do. As áreas de risco estão delimitadas e descritas nos anexos da

Estabelece Buck (2001) que os agentes físicos se dão de acor-

NR16, devendo, todas elas serem delimitadas, sob responsabilidade

do com as características do local de trabalho, podendo ocasionar

do empregador, conforme determina o item 16.8 da Norma Regula-

danos à saúde do obreiro. São eles: Pressão anormal, temperatura

mentadora em tela.

extrema, iluminação, vibração, radiação, ionização, ruído, calor, frio,

Tal área define Buck (2001), como área de periculosidade, ao

umidade e radiações não ionizantes. Enquanto os agentes químicos

passo que neste local o agente agressivo pode atuar com capacidade

podem ser encontrados nas formas gasosa, líquida e sólida, como,

agressiva suficiente para causar danos agudos. Afirma que a limita-

por exemplo, poeiras, fumo, neblinas, gases, névoas, vapores, etc. A

ção pode ser vista como uma fronteira a partir da qual o agente não

Dra. Regina (2001) ressalta que quando são absorvidos pelo nosso

terá capacidade agressiva o suficiente para causar danos.

organismo, na grande maioria dos casos, produzem reações vene-

Sendo assim, salienta Saliba e Corrêa (2002) que ao contrário

nosas ou tóxicas. Já os agentes biológicos são invisíveis a olho nu,

da insalubridade que pode ser eliminada com a adoção de medidas

sendo visíveis apenas por microscópio, como, por exemplo, bactérias,

coletivas ou neutralizada através do uso do EPI, aquele que trabalha

fungos, vírus, protozoários, bacilos, parasitas, etc.

em área de risco acentuado, nos termos da NR

Ao contrário do ocorrido com o adicional de periculosidade,

16 e seus anexos, fará jus ao recebimento do adicional de peri-

cujo qual é pago em porcentual fixo de 30% sobre o salário base, o

culosidade, mesmo que sejam adotadas todas as medidas de segu-

adicional de insalubridade, evidencia Garcia (2014), é pago gradativa-

rança, uma vez que o perigo é inerente à atividade.

mente conforme a exposição do obreiro à condição insalubre acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo MTE. É o que diz o art.

4 Adicional de Insalubridade

192 da CLT:

Ensina Saliba e Corrêa (2002) que o vocábulo “insalubre” vem

Art. 192 - O exercício de trabalho em condições insalubres,

do latim e significa tudo aquilo que origina doença, enquanto a insalu-

acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério

bridade é a qualidade de insalubre.

do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectiva-

A insalubridade, como visto, é uma característica. Já o trabalho

mente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e

insalubre é considerado como “aquele que afeta ou causa danos à

10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se

saúde, provoca moléstias, ou seja, é o trabalho não saudável, não

classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo. (Redação

favorável.” (Oliveira, 1998, p. 154)

dada pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977)

Sobre o adicional recebido em função do trabalho insalubre, Leciona Regina Célia Buck (2001, p. 63):

Garcia (2014) esclarece que quanto ao cálculo do adicional de

Adicional de insalubridade é o percentual pecuniário, esta-

insalubridade com base no salário mínimo, atualmente, a posição ju-

belecido por lei, que se acrescenta ao salário do trabalhador

risprudencial majoritária se dá no sentido em que não foi recepciona-

como forma de compensá-lo pelo exercício da profissão em

da pela Constituição de 1988 por violar o art. 7°, inciso IV, parte final,

condições que acarretem danos à sua saúde, causados por

da CF/1988, ao passo que este veda a vinculação do salário mínimo

agentes nocivos, presentes no ambiente de trabalho. (Buck,

para qualquer fim. No mesmo sentido é a Súmula de nº 228 do TST

2001, p.63)

que está suspensa devido a decisão liminar do STF: Súmula nº 228 do TST

Da mesma forma que o adicional de periculosidade, o adicio-

ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO

(re-

nal de insalubridade está previsto no art. 7°, inciso XXIII, da CF/1988.

dação alterada na sessão do Tribunal Pleno em 26.06.2008)

Contudo, por sua vez, este é regulamentado pelos arts. 189 e se-

- Res. 148/2008, DJ 04 e 07.07.2008 - Republicada DJ 08, 09 e

guintes da CLT.

10.07.2008. SÚMULA CUJA EFICÁCIA ESTÁ SUSPENSA POR

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

181

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


DECISÃO LIMINAR DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo.

NORMA REGULAMENTADORA Nº 15 DA PORTARIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO Nº 3.214/78. INSTALAÇÕES SANITÁRIAS. (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 4 da SBDI-1 com nova redação do item II ) – Res. 194/2014, DEJT divulgado em 21, 22 e 23.05.2014. I - Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a classificação da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho. II – A higienização de instalações sanitárias de uso público ou coletivo de grande circulação, e a respectiva coleta de lixo, por não se equiparar à limpeza em residências e escritórios, enseja o pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo, incidindo o disposto no Anexo 14 da NR-15 da Portaria do MTE nº 3.214/78 quanto à coleta e industrialização de lixo urbano.

Tal súmula está pautada no que foi determinado pela Súmula Vinculante nº 4 do TST que determina: SÚMULA VINCULANTE 4 Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial. Frisa Buck (2001) que a NR-15 do Ministério do Trabalho estabeleceu critérios para a caracterização da insalubridade, quais sejam: Avaliação quantitativa, qualitativa e qualitativa dos riscos inerentes à atividade. Complementam Saliba e Corrêa (2002) que o grau de insalubridade que indicará o percentual a ser recebido pelo obreiro dependerá do tipo de agente insalubre a que o empregado está exposto, sendo esta definida pela regulamentação do MTE. Há a possibilidade de existir agente insalubre no ambiente de trabalho e o trabalhador não ter direito ao recebimento do adicional. O item 15.1.5 da Norma Regulamentadora n. 15 traz o termo “Limite de Tolerância” que pode ser entendido como a situação em que a exposição ao agente insalubre não causará dano à saúde do trabalhador. Vejamos: 15.1.5 Entende-se por “Limite de Tolerância”, para os fins desta Norma, a concentração ou intensidade máxima ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição ao agente, que não causará dano à saúde do trabalhador, durante a sua vida laboral. Ainda, mesmo que o trabalhador esteja submetido a condições insalubres, prevê a NR-15 a possibilidade de eliminação ou neutralização da insalubridade através da adoção de medidas de ordem geral que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância ou com a utilização de equipamento de proteção individual. Fatos que ensejarão a cessação do pagamento do respectivo adicional. É o que trazem os itens 15.4 e 15.4.1 da referida NR. No mesmo sentido é a súmula nº 80 do TST. Acrescenta o tema o determinado pela súmula nº 289 do TST, pois informa que o empregador além de fornecer o EPI ou EPC deve “tomar as medidas que conduzam à diminuição ou eliminação da nocividade, entre as quais as relativas ao uso efetivo do equipamento pelo empregado”. Caso contrário este não se eximirá do pagamento do referido adicional. Bem como, lembra Buck (2001), que a simples constatação da insalubridade no recinto de trabalho pelo perito não basta para dar ensejo ao pagamento do adicional. É preciso que aquela atividade esteja incluída no quadro elaborado pelo MTE como insalubre. Ou seja, ainda que o laudo pericial conste agentes nocivos à saúde do trabalhador, o adicional de insalubridade somente será devido quando a operação estiver dentro dos critérios estabelecidos pelo Ministério do Trabalho para sua caracterização, especialmente com relação aos limites de tolerância dos agentes agressivos, os meios de proteção e o tempo máximo de exposição do trabalhador a estes agentes, nos termos do art. 189 da CLT. É neste sentido a Súmula 448 do TST, senão vejamos: Súmula nº 448 do TST ATIVIDADE INSALUBRE. CARACTERIZAÇÃO. PREVISÃO NA

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Entende Buck (2001) que a exposição eventual não gera o direito ao recebimento do adicional de insalubridade, enquanto a atividade permanente em condições insalubres gera. Sobre o contato intermitente esclarece a súmula 47 do TST que “o trabalho executado em condições insalubres, em caráter intermitente, não afasta, só por essa circunstância, o direito à percepção do respectivo adicional.” Aquele que recebe o referido adicional terá direito a sua integração à remuneração para todos os efeitos legais, conforme defende a Súmula 139 do TST. De modo geral a importância da constituição de 1988 quanto a previsão do adicional de insalubridade, deve ser ressaltada, pois, conforme demonstra Buck (2001), a CRFB/88 foi a primeira a tratar da remuneração das atividades insalubres. As constituições passadas apenas proibiam o trabalho da mulher e dos menores em indústrias insalubres7. 5 Dos Princípios A palavra princípio carrega consigo a força do significado de proposição fundamental, sendo, nesta acepção, incorporada por distintas formas de produção cultural dos seres humanos, inclusive no Direito. Sendo assim, princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais a partir de certa realidade. (Godinho, 2015, p. 189) Para a ciência do Direito os princípios conceituam-se como proposições fundamentais que informam a compreensão do fenômeno jurídico, como diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após entendidas, a ele se reportam, informando-o. (Godinho, 2015, p. 190/191) Sobre o tema, destaca Oliveira (2011, p. 47/48) que leciona Bandeira de Mello: Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua esfera mestra. (Mello, 2007, p. 923) A disparidade de posições existentes entre o empregador e o trabalhador, individualmente, na realidade concreta, fez emergir um Direito Individual do Trabalho largamente protetivo através de métodos, princípios e regras que buscam reequilibrar, juridicamente, a re-

182

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


lação desigual existente na prática cotidiana da relação de emprego (Godinho, 2015, p. 199) No direito do Trabalho existem vários princípios, como exemplifica Godinho (2015), princípio da proteção, princípio da norma mais favorável, princípio da imperatividade das normas trabalhistas, princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, princípio da condição mais benéfica, princípio da inalterabilidade contratual, princípio da intangibilidade salarial, princípio da primazia da realidade da realidade sobre a forma e princípio da continuidade da relação de emprego. No presente estudo será necessário focar na análise do princípio da proteção e da norma mais favorável, pois se encaixam adequadamente ao tema e têm o condão de fundamentá-lo. O princípio da proteção é também conhecido como princípio tutelar, tuitivo, protetivo ou tutelar-protetivo. (Godinho, 2015, p. 200) Godinho (2015) leciona que o princípio da proteção é uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia, sendo este o empregado, visando atenuar, pelo menos no âmbito jurídico, o desequilíbrio existente no exercício do contrato de trabalho. Defende Filho (2015) que boa parte da doutrina, inclusive Américo Plá Rodriguez e Alfredo J. Ruprecht, aponta que o princípio protetor está consubstanciado em três regras básicas, sendo elas: in dubio pro operário, norma mais favorável e condição mais benéfica. Na regra in dubio pro operário aplica-se sempre a regra mais benéfica ao trabalhador. A regra da norma mais favorável diz que havendo conflito hierárquico de normas, prevalecerá a que for mais favorável ao trabalhador. Já a regra da condição mais benéfica cuida da aplicação temporal da norma de forma que a norma mais nova não prejudica a anterior, se esta for a mais benéfica. Destaca Martins (2015) que a Súmula 51 do TST8 garante que uma norma menos favorável aos trabalhadores só tem validade em relação aos novos obreiros, aqueles admitidos após a norma menos favorável estar em vigor, já quanto aos antigos não se deve aplicar tal cláusula. Parte importante da doutrina aponta o princípio da proteção como sendo cardeal do Direito do Trabalho por influir em toda a estrutura e características próprias deste ramo. Godinho (2015), por sua vez, acredita que todos os princípios especiais também criam, cada um no âmbito de sua abrangência, uma proteção especial aos interesses contratuais obreiros, tentando retificar de forma jurídica a diferença existente no dia -a-dia entre os sujeitos da relação empregatícia. Ressalta que o princípio tutelar não se desdobraria em apenas três outros mas sim atuaria como inspirador de todo o complexo de regras, princípios e institutos que compõem esse ramo jurídico especializado. Maurício Godinho (2015) elenca o princípio da norma mais favorável em capítulo apartado ao do princípio da proteção. Destaca que este princípio dispõe que o operador do direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao obreiro em três situações diferentes, sendo: no instante da elaboração da regra, no contexto de confronto entre regras concorrentes ou no contexto da interpretação das regras jurídicas. De forma ampla, este princípio atua em tríplice dimensão no Direito do Trabalho: informadora, interpretativa/normativa e hierarquizante. (Godinho, 2015, p. 202) Na fase informadora, pré-jurídica, essencialmente política, influi como processo de construção do ramo do Direito do Trabalho. Tratando-se de função informativa do princípio, sem caráter normativo, sendo verdadeira fonte material do ramo justrabalhista. (Godinho, 2015, p. 203) Na fase interpretativa/normativa, jurídica, momento em que a regra está construída, o mesmo princípio atua como critério de hierarquia de regras jurídicas e como princípio de interpretação das regras. O critério de hierarquia elegerá a regra prevalecente no momento de conflito de regras, elegendo a mais favorável ao trabalhador. Como

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

princípio de interpretação do Direito, o operador jurídico, no processo de aplicação e interpretação do Direito, perante o conflito de regras ou interpretações deverá escolher aquela mais favorável ao trabalhador, ou seja, aquela que de melhor forma realize o sentido teleológico essencial do direito do Trabalho. (Godinho, 2015, p. 203) Quanto a hierarquização das normas, não poderá o operador jurídico permitir que o uso do princípio da norma mais favorável comprometa o caráter sistemático da ordem jurídica, afastando o caráter de cientificidade que deve ser submetido todo o processo de interpretação e aplicação do Direito. A aplicação da regra mais favorável não deve ocorrer mediante separação tópica e casuística de regras, unindo preceitos favoráveis ao empregado e, praticamente, criando novas ordens jurídicas próprias e provisórias diante de cada caso concreto. (Godinho, 2015, p. 203) Oliveira (2011) traz que principalmente no campo da segurança, higiene e saúde do trabalhador não há espaço para reduzir a proteção legal por serem garantias complementares do direito à vida e quanto a este direito, definitivamente, não cabe negociação. 7 Da Aplicação do Direito Internacional do Trabalho Ab initio, cumpre destacar que há um ramo do Direito Internacional Público chamado de Direito Internacional do Trabalho. Defende Georgenor de Sousa Franco Filho (2015) que a principal finalidade do Direito Internacional do Trabalho é a proteção do trabalhador no intuito de universalizar os princípios de justiça social e promover a cooperação internacional a fim de melhorar as condições de vida deste. O órgão internacional responsável por criar as normas de Direito Internacional do Trabalho é a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A OIT, define Franco Filho (2015), é uma pessoa jurídica de Direito Internacional Público, com personalidade jurídica própria, formada por Estados e integra o sistema das Nações Unidas como agência especializada. Reforça o Desembargador Georgenor (2015) que é da OIT que emanam as principais e mais influentes normas de Direito Internacional do Trabalho. Esclarece o Desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira (2011) que as convenções adotadas pela OIT devem ser apresentadas a cada Estado-Membro, através de seus órgãos competentes, para fins de apreciação. Demonstra que no Brasil a competência para tanto é do Congresso Nacional. Franco Filho (2015) traz que o processo interno para vigência de convenções internacionais do trabalho encontra-se regulado na CR/88, cabendo ao Presidente da República celebrá-las, pessoalmente ou através de representante plenipotenciário, nos termos do art. 84, VIII, CR/88. Em seguida, nos termos do art. 49, I da CR/88 o Congresso Nacional referenda o ato do Executivo. Este, por sua vez, irá promulgar e mandar publicar no órgão oficial, bem como deverá efetuar o depósito dos instrumentos correspondentes perante o Diretor Geral da Repartição. Sobre o tema destaca Oliveira (2011) que a Emenda Constitucional n. 45/2004 deu um passo significativo na valorização dos tratados e convenções internacionais ao introduzir o §3º no art. 5º da CR/88 que diz: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo) Constata Franco Filho (2015) que até julho de 2014 apenas uma convenção internacional foi aprovada com quórum especial pelo Con-

183

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


gresso Nacional, qual seja, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Destaca, ainda, que é, então, a partir do julgamento do HC n. 94.013-SP, de 10.02.2009, Relator Min. Carlos Britto, que o STF mudou radicalmente sua posição, consagrando de vez o princípio da supralegalidade. (Julgamento aplicou o Pacto da Costa Rica, na parte referente à prisão de depositário infiel). Explana Franco Filho (2015) que no referido julgamento o relator assentou a validade interna da referida norma internacional com fundamento no §2º do art. 5º da CR/88 que garante: § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Oliveira (2011) sugere a leitura do julgamento do HC n. 95.967, de 28.11.2008, Relatora Min. Ellen Gracie para que se perceba que o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos resume-se na definição de que a estes tratados é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição e acima da legislação interna, tornando inaplicável legislação infraconstitucional que conflite com tal tratado. Fato é que as Convenções da OIT sobre segurança, saúde e meio ambiente do trabalho devem ser consideradas como convenções sobre direitos humanos. É o que defende Oliveira (2011) tendo como base argumentativa o preâmbulo da Declaração de Seul sobre segurança e saúde no trabalho, adotada em julho de 2008, que diz: Recordando que o direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável deve ser reconhecido como um direito humano fundamental e que a globalização deve ser acompanhada de medidas preventivas que garantam a segurança e saúde de todos no trabalho... Fundamenta, ainda, utilizando a publicação feita pela OIT, no dia 28/04/2009, por ocasião do dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho, com o seguinte título: “Saúde e vida no trabalho: um direito humano fundamental”. Portanto, define Oliveira (2011) que as Convenções da OIT ratificadas antes da E.C. 45/04 ostentam no Brasil natureza supralegal, sendo que, ocupam na hierarquia normativa um espaço intermediário entre a Constituição e a lei ordinária, tendo status infraconstitucional, mas, ao mesmo tempo, supralegal. É de extrema pertinência destacar que independentemente da discussão acima interposta, o Brasil deve cumprir os tratados que ratifica. Defende Valério de Oliveira Mazzuoli (2015) que, pelo fundamento do Direito Internacional na norma pacta sunt servanda, corrente moderna e mais coerente, traz que um Estado ratifica um tratado internacional pela sua própria vontade, portanto, este deve, de boa-fé, cumprir o tratado ratificado, respeitando sua palavra, cumprindo o que se obrigou no livre e pleno exercício de sua soberania. Esta teoria, nas palavras de Mazzuoli (2015) abandona o esquema piramidal Kelseniano do ordenamento jurídico e justifica a existência e a validade do Direito Internacional, atribuindo-lhe caráter de regra objetiva e demonstrada. Afirma que a razão é a conservação da própria sociedade internacional, uma vez que, para a existência desta, é necessária a existência anterior de um Direito, diz, ainda, que sua finalidade é salvaguardar o bem comum da sociedade internacional por meio da manutenção da harmonia e das boas relações entre todos os povos. Neste sentido deve ser enfatizada a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, ratificada pelo Brasil, especificamente seus artigos 26 e 27, que dizem:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Artigo 26 Pacta sunt servanda Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé. Artigo 27 Direito Interno e Observância de Tratados Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46. Leciona Mazzuoli (2015) que se o Estado externou a sua vontade, seu consentimento, este reconhece tal obrigatoriedade, seja no plano interno ou no plano internacional, isso porque consagra que o Direito é uno e o faz pelo princípio geral anterior que lhe concedeu este poder de gerar normas jurídicas de cunho obrigatório. Deve, portanto, cumpri-lo. 4.2 Dos Tratados Internacionais Pertinentes ao Tema - Do Controle de Convencionalidade - Possibilidade de Cumulação dos Adicionais de Insalubridade e Periculosidade No âmbito internacional deve-se dar destaque a duas convenções, quais sejam: as Convenções de n. 148 e 155 da OIT. Leciona Oliveira (2011) que a convenção 148 foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 56/1981, ratificada em 14/01/1982 e entrou em vigor um ano após, ou seja, em 14/01/1983, sendo promulgada pelo Decreto n. 93.413/1986, sendo que esta tem o propósito de prevenir e limitar os riscos profissionais no local de trabalho, provenientes da contaminação do ar, do ruído e vibrações, devendo a legislação adotar medidas técnicas adequadas para proteção dos trabalhadores contra tais riscos. Esclarece que a convenção estipula que representantes dos empregados e empregadores devem atuar colaborando da forma mais estreita possível tanto na formulação, quanto na aplicação das medidas técnicas pela autoridade competente. Ainda, ressalta que apesar da atuação conjunta, a responsabilidade pela aplicação das medidas é do empregador. O desembargador Oliveira (2011) apresenta, ainda, a Convenção 155 da OIT trazendo a informação que esta foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 2/1992, ratificada em 18/05/1992, entrando em vigor um ano após, em 18/05/1993, sendo, finalmente promulgada pelo decreto n. 1.254/1994. Oliveira (2011) traz que a convenção 155 é muito importante, pois estabelece as normas e princípios a respeito da segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho. Tais convenções objetivam ampliar os direitos relativos à segurança e saúde do trabalhador, inclusive no que tange ao trabalho insalubre e periculoso, conforme será demonstrado. Não é demais lembrar que os adicionais pagos não trazem de volta a saúde e a vida daquele empregado que tem seus direitos fundamentais colocados em risco. Por isso leciona Franco Filho (2015) que os acréscimos são uma forma de tentar desestimular, pela via de aumento da despesa na folha de pagamento, os empregadores a adotarem atividades dessa natureza e a controlarem com rigor o uso, concedendo os equipamentos de proteção de forma adequada, realizando a reposição periódica e com fiscalizando permanente. É de suma importância colacionar os artigos 8.3 da Convenção 148 e 11, “b”, da Convenção 155, ambos da OIT:

184

PARTE III MEDIDAS DE PREVENÇÃO E DE PROTEÇÃO Art. 8 — 3. Os critérios e limites de exposição deverão ser fixados, completados e revisados a intervalos regulares, de con-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


formidade com os novos conhecimentos e dados nacionais e internacionais, e tendo em conta, na medida do possível, qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho.” (Convenção nº 148 da OIT - destaquei) “Art. 11 — Com a finalidade de tornar efetiva a política referida no artigo 4 da presente Convenção, a autoridade ou as autoridades competentes deverá garantir a realização progressiva das seguintes tarefas: (...) b) a determinação das operações e processos que serão proibidos, limitados ou sujeitos à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes, assim como a determinação das substâncias e agentes aos quais estará proibida a exposição no trabalho, ou bem limitada ou sujeita à autorização ou ao controle da autoridade ou autoridades competentes; deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes; (Convenção nº 155 da OIT - destaquei) A importância de tais artigos podem ser evidenciados quando, em recente julgado, o ministro Cláudio Brandão decidiu em Recurso de Revista, processo de n° 1072-72.2011.5.02.0384, pela possibilidade de cumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade tendo em vista o que entende que os artigos 8.3 e 11 “b” das convenções acima evidenciadas permitem a cumulatividade de tais adicionais. Na leitura do julgado supra, o ministro cita que deve ser aplicada uma nova forma de verificação de compatibilidade das normas integrantes do ordenamento jurídico, ou seja, Cláudio Brandão ao proferir o acórdão evidencia a necessidade da aplicação de tais dispositivos através do Controle de Convencionalidade, conforme ementa: RECURSO DE REVISTA. CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. POSSIBILIDADE. PREVALÊNCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E SUPRALEGAIS SOBRE A CLT. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO STF QUANTO AO EFEITO PARALISANTE DAS NORMAS INTERNAS EM DESCOMPASSO COM OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INCOMPATIBILIDADE MATERIAL. CONVENÇÕES NOS 148 E 155 DA OIT. NORMAS DE DIREITO SOCIAL. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. NOVA FORMA DE VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE DAS NORMAS INTEGRANTES DO ORDENAMENTO JURÍDICO. A previsão contida no artigo 193, § 2º, da CLT não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 7º, XXIII, garantiu de forma plena o direito ao recebimento dos adicionais de penosidade, insalubridade e periculosidade, sem qualquer ressalva no que tange à cumulação, ainda que tenha remetido sua regulação à lei ordinária. A possibilidade da aludida cumulação se justifica em virtude de os fatos geradores dos direitos serem diversos. Não se há de falar em bis in idem. No caso da insalubridade, o bem tutelado é a saúde do obreiro, haja vista as condições nocivas presentes no meio ambiente de trabalho; já a periculosidade traduz situação de perigo iminente que, uma vez ocorrida, pode ceifar a vida do trabalhador, sendo este o bem a que se visa proteger. A regulamentação complementar prevista no citado preceito da Lei Maior deve se pautar pelos princípios e valores insculpidos no texto constitucional, como forma de alcançar, efetivamente, a finalidade da norma. Outro fator que sustenta a inaplicabi-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

lidade do preceito celetista é a introdução no sistema jurídico interno das Convenções Internacionais nos 148 e 155, com status de norma materialmente constitucional ou, pelo menos, supralegal, como decidido pelo STF. A primeira consagra a necessidade de atualização constante da legislação sobre as condições nocivas de trabalho e a segunda determina que sejam levados em conta os “riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes”. Nesse contexto, não há mais espaço para a aplicação do artigo 193, § 2º, da CLT. Recurso de revista de que se conhece e a que se nega provimento. (Ementa da decisão do Recurso de Revista no processo de n° 107272.2011.5.02.0384 – Grifos não originais) De toda sorte mesmo os doutrinadores e juristas que discordam das argumentações acima expostas, e defendem que o inc. XXIII do Art. 7º da CR/88 autoriza a vedação insculpida nos artigos 192, 193, §1º da CLT e no item 16.2.1 da NR-16 da Portaria nº 3.214/78 do Ministério do Trabalho e Emprego como é o caso, por exemplo, de Alice Monteiro de Barros9 e Valentin Carrion10, devem levar em consideração a validade e aplicabilidade das Convenções 148 e 155 da OIT, pois ratificadas e em vigor. Para, então, melhor solucionar o presente empasse far-se-á necessário lançar mão do Controle de Convencionalidade, instrumento adequado para ser utilizado em casos de incompatibilidade legislativa interna do Estado com os tratados de direitos humanos em vigor por ele ratificados, é o que leciona Mazzuoli (2015). Explica Mazuolli (2015) que o controle de convencionalidade perante o sistema interamericano de direitos humanos, maneira pela qual este deve ser realizado no Brasil, tem duas modalidades, quais sejam: concentrada e difusa. O controle concentrado de convencionalidade, na definição de Mazzuoli (2015, p. 426): Ora, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantirlhes os meios que prevê a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional. Nesse sentido, o que defendemos é ser plenamente possível utilizar-se das ações do controle concentrado, como a AD ln (que invalidaria a norma infraconstitucional por inconvencionalidade) , a ADECON (que garantiria à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com um tratado de direitos humanos formalmente constitucional), ou até mesmo aADPF (que possibilitaria exigir o cumprimento de um “preceito fundamental” encontrado em tratado de direitos humanos formalmente constitucional) , não mais fundamentadas apenas no texto constitucional, senão também nos tratados de direitos humanos aprovados pela sistemática do art. 5°, § 3°, da Constituição e em vigor no país. Assim, os legitimados para o controle concentrado (constantes do art. 1 03 da Constituição) passam a ter a seu favor um arsenal muito maior do que anteriormente tinham para invalidar lei interna incompatível com os tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado. Daí então poder-se dizer que os tratados de direitos humanos internalizados por essa maioria qualificada servem de meio de controle concentrado (de convencionalidade) das normas de Direito interno, para além de servirem como paradigma para o controle difuso.

185

Explica o autor supra que é necessário entender a expressão uti-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


lizada pelo art. 102, I, “a” sob o prisma colocado pela Emenda Constitucional 45/04. A função de guardião da constituição concedida ao STF deve ser estendida, devendo este guardar também as normas constitucionais por equiparação como é o caso dos tratados de direitos humanos constitucionalizados pelo rito do art. 5º, §3º. Passa a caber, então, ao STF o controle concentrado de constitucionalidade/ convencionalidade para compatibilizar a norma infraconstitucional com os preceitos do tratado constitucionalizado. O controle difuso de constitucionalidade para Valério de Oliveira Mazzuoli (2015) se aplica aos tratados de direitos humanos não internalizados pela maioria qualificada pelo rito do art. 5º, §3º da CR/88, sendo, portanto, um controle de exceção, bastando que estes tratados estejam ratificados e em vigor no plano interno, pois, por força dos referidos artigos, estes tratados já têm status de norma constitucional. Define Mazzuoli (2015, p. 428/429) que: (...)o controle difuso de convencionalidade é aquele a ser exercido por todos os juízes e tribunais do país, a requerimento das partes ou ex ojficio. Uma vez que todos os tratados de direitos humanos em vigor no Brasil guardam nível materialmente constitucional, constitui obrigação dos juízes e tribunais locais (inclusive do STF, v.g. , quando decide um Recurso Extraordinário, um Habeas Corpus etc.) invalidar as leis internas - sempre quando menos benéficas que o tratado de direitos humanos em causa, em atenção ao princípio pro homine - que afrontam as normas internacionais de direitos humanos que o Brasil aceitou (por meio de ratificação formal) na órbita internacional. Nesse caso, também a exemplo do que ocorre no controle difuso de constitucionalidade, a decisão judicial que invalida urna lei interna em razão do comando de um tratado só produz efeitos inter partes, isto é, somente entre os atores participantes do caso concreto. Para Mazzuoli (2015) os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada são somente materialmente constitucionais, diferentemente dos tratados aprovados pela maioria, que têm status material e formal de normas constitucionais. Para o doutrinador o controle de convencionalidade difuso existe no Brasil desde a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, tomando-se como exemplo o que traz o art. 105, III, “a” desta Carta: Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (grifo não original) Completa que o controle de convencionalidade concentrado surgira apenas em 8 de dezembro de 2004, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45. Valério Mazzuoli (2015) destaca que o primeiro julgamento emblemático quanto ao tema da convencionalidade (Julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Almonacid Arellano e outros V. Chile) estabeleceu que o controle de convencionalidade deve ser tido pelos tribunais locais como verdadeira questão de ordem pública internacional. Neste Julgado a Corte Interamericana transportou para o Judiciário interno dos Estados-partes a obrigação de controlar, de forma prioritária, as normas internacionais ratificadas. Extremamente relevante se faz destacar trecho do julgado colacionado por Mazzuoli (2015, p. 422) que ocorreu dia 24 de novembro de 2006 no Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso Vs.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Peru. A Corte decidiu que: Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que o efeito útil da Convenção não se veja diminuído ou anulado pela aplicação de leis contrárias às suas disposições, objeto e fim. Em outras palavras, os órgãos do Poder Judiciário devem exercer não somente um controle d e con stit u cion alid ade , sen ão t amb ém ‘de con v encion alid ade’ ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e dos regulamentos processuais correspondentes. Esta função não deve se limitar exclusivamente às manifestações ou a atos dos postulantes em cada caso concreto... Leciona Mazzuoli (2015) que foi, porém, no Caso Cabrera García e Montiel Flores Vs. México, julgado em 26 de novembro de 2010, que, por unanimidade de votos a Corte lnteramericana definitivamente afirmou sua doutrina jurisprudencial sobre o controle de convencionalidade. A partir desse julgamento o controle da convencionalidade das normas de Direito interno passou a ser dever do Poder Judiciário dos Estados, ao passo que a negativa de assim proceder levará a responsabilidade internacional do Estado. A maior novidade, contudo, afirma Mazzuli (2015), está no julgamento do Caso Gelman Vs. Uruguai, quando, no dia 24 de fevereiro de 2011 a Corte entendeu que além dos Juízes, todos os órgãos do Estado estão submetidos à autoridade da Convenção Americana, cabendo a todos os níveis da administração da Justiça exercer ex officio o controle de convencionalidade das normas internas relativamente à Convenção Americana. Assim julgou a Corte, conforme colaciona Mazzuli (2015, p. 424): Quando um Estado é parte em um tratado internacional como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, incluídos seus juízes, estão a ele submetidos, o qual os obriga a velar a que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e fim, pelo que os juízes e órgãos vinculados à administração da Justiça em todos os níveis têm a obrigação de exercer ex officio um ‘controle de convencionalidade’ entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e das regras processuais correspondentes, e nesta tarefa devem levar em conta não somente o tratado, senão também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte lnteramericana, intérprete última da Convenção Americana. A Corte Interamericana amplia a obrigação de exercer ex officio um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana para todos os órgãos do Estado, cada um dentro de sua competência. Destaca Mazzuoli (2015) que “Seria o caso, no Brasil, v.g. , de se exigir cada vez mais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a obrigação de controlar a convencionalidade das leis que aplica nos casos concretos.” Conforme pode se entender da obra Curso de Direito Internacional de Valério Oliveira Mazzuoli (2015), o controle de convencionalidade exercido pelos juízes e tribunais nacionais deverá pautar-se pelos padrões estabelecidos pela “interprete última” da Convenção, o que, no caso, seria a OIT. Continua sua explanação afirmando que o fato de não limitar o juiz a um pedido expresso das partes em um caso concreto, determinando sua atuação ex officio, demonstra o controle difuso de convencionalidade.

186

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O doutrinador demonstra que a Justiça Internacional traz para si a competência de controle em último grau quando determina que o Estado, tem o DEVER de cumprir sob pena de responsabilidade internacional. Ou seja, as cortes internacionais somente exercerão o controle de convencionalidade de uma norma interna do Estado caso o respectivo Poder Judiciário não tenha exercido o controle ou o tenha feito de forma insuficiente. Ressalta Valério de Oliveira Mazzuoli (2015) que o controle de convencionalidade deve ser aplicado em todo e qualquer tratado de direitos humanos (como é o caso das convenções 148 e 155 da OIT), e não somente a Convenção Americana, pois destaca que é o determinado pela corte quando em sua sentença profere: “um tratado internacional como a Convenção Americana”. Ou seja, a corte utilizou a Convenção Americana apenas a título exemplificativo. Deste modo, deve ser ponderado que o art. 193 § 2º, da CLT é nitidamente contrário ao que determina o art. 11, “b”, da Convenção nº 155 da OIT, ao passo que aquele determina “O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido”, enquanto estes determinam, nesta ordem: “Os critérios e limites de exposição deverão ser fixados, completados e revisados a (...) qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho”; (grifos não originais) “deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes”. (grifos não originais) Percebe-se que a norma interna e as normas internacionais, possuem disposições contrárias no que diz respeito a possibilidade de cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade. Sendo assim, deve-se concluir que devido ao fato de que as Convenções 148 e 155 da OIT são consideradas como convenções sobre direitos humanos, não internalizados pela maioria qualificada pelo rito do art. 5º, §3º da CR/88, mas com status de norma supralegal, entende-se que os órgãos brasileiros, bem como os Juízes, tem o dever de fazer o controle difuso de constitucionalidade para aplicar em cumulatividade os adicionais de remuneração para aquele trabalhador que estiver submetido tanto ao trabalho insalubre quanto ao periculoso, fazendo assim valer o que se comprometeu internacionalmente (art. 26 e 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969; §2º do art. 5º da CR/88) evitando que ocorra a responsabilidade internacional do Estado brasileiro. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado neste trabalho, verifica-se que a cumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade deve ocorrer quando o empregado laborar em ambas condições. Conclui-se que o recebimento de um ou de outro adicional de forma não cumulada é descabido, pois acarreta situação menos benéfica ao trabalhador, tendo em vista que submete sua saúde e sua vida aos malefícios da atividade empresarial de seu empregador sem, contudo, receber a devida contrapartida, pois é nítida a sua desvantagem quando relativiza seus direitos fundamentais e em contrapartida recebe pelo sacrifício de apenas um deles. Fundamentam a percepção cumulada dos adicionais os princípios protetivos do Direito do Trabalho, bem como o reconhecimento pelo Brasil da relevância jurídica dos tratados internacionais ratificados que versam acerca de Direitos Humanos. Quanto ao tema em foco tem principal relevância as convenções 148 e 155 da OIT, pois visam melhorar o ambiente de trabalho e, consequentemente, a segurança e higiene do meio-ambiente laboral. Além disso aquela frisa os riscos à exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho e esta determina que sejam levados

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

em consideração os riscos para a saúde ocasionados pela exposição simultânea a diferentes substâncias e agentes. Apesar do Direito interno divergir de tais convenções, deve-se ressaltar que estas foram ratificadas pelo Brasil, devendo, portanto, surtirem efeitos conforme o compromisso internacional assumido. O Controle de Convencionalidade se faz necessário para evitar que eventuais responsabilidades internacionais recaiam sobre o Brasil. Sendo assim, entende-se que os adicionais por trabalho insalubre e perigoso devem ser recebidos em cumulatividade quando o exercício laboral ocorrer em tais condições. REFERÊNCIAS Barros, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo : LTr, 2009. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao. htm>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Coordenadoria de Gestão Normativa e Jurisprudencial. Portaria MTE n. 5, de 7 de janeiro de 2015. Suspende os efeitos da Portaria MTE nº 1.565 de 13 de outubro de 2014 em relação aos associados da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas- ABIR e aos confederados da Confederação Nacional das Revendas AMBEV e das Empresas de Logística da Distribuição - CONFENAR. Disponível em: <http://www.trtsp. jus.br/geral/tribunal2/ORGAOS/MTE/Portaria/P5_15.html>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del5452.htm>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Portaria GM n.º 3.214, de 08 de junho de 1978. Dispõe sobre as atividades e operações perigosas. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/images/ Documentos/SST/NR/NR16.pdf>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Portaria MTb n.º 3.214, de 08 de junho de 1978. Dispõe sobre as atividades e operações insalubres. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/images/ Documentos/SST/NR/NR15/NR15-ANEXO15.pdf>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Súmula n. 364. Súmulas. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_351_400.h tml#SUM-364>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho da 12ª Região. Recurso Ordinário Trabalhista RO 00001044320155120022 SC 0000104-43.2015.5.12.0022 (TRT-12). Jurisprudência. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/ busca?q=lei+12.740&p=2>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Orientação Jurisprudencial 345 da SBDI -I. ERR 599325/1999, Tribunal Pleno - Min. João Oreste Dalazen. Julgado em 05.05.2005 Decisão por maioria. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_341.htm#TEMA345>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista. CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. POSSIBILIDADE. Recurso de Revista n° TST-RR-1072-72.2011.5.02.0384. Recorrente AMSTED MAXION FUNDIÇÃO E EQUIPAMENTOS FERROVIÁRIOS S.A. Recorrido IVANILDO BANDEIRA. Relator: Cláudio Brandão. Acórdão de 24 de setembro de 2014. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/consulta-unificada>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula n. 361. Súmulas. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_351_400.h tml#SUM-361>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 132. Súmulas. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_101_150.h tml#SUM-132>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 51. Súmulas. Disponível em:

187

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


<http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_ Ind_51_100.ht ml#SUM-51>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. BUCK, Regina Célia. Cumulatividade dos adicionais de insalubridade e periculosidade. – São Paulo : LTr, 2001. CARRION, Valentin. Direito do Trabalho. 4. ed. Rio de Janeiro : Atlas, 2006. CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA. Normas de Publicação. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?page_id=17 >. Acesso em: 14 de jun. de 2015. CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA, Núcleo de Bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos : padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_ Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 14 de jun. de 2015. CHAGAS, Ana Maria de Resende; SALIM, Celso Amorim; SERVO, Luciana Mendes Santos. Saúde e segurança no trabalho no Brasil : aspectos institucionais, sistemas de informação e indicadores [texto] / Organizadores Ana Maria Resende Chagas, Celso Amorim Salim, Luciana Mendes Santos Servo. 2. Ed. – São Paulo : IPEA : Fundacentro, 2012. 391 p.:, gráfs., tabs. ; 23 cm. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. – 14.ed. – São Paulo: LTr, 2015. Dicionário do Aurélio. Significado de Eventual. Disponível em: <http://dicionariodoaurelio.com/eventual>. Acesso em: 02 de novembro de 2015. FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Curso de direito do trabalho. – 1. ed. São Paulo : LTr, 2015. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso do direito do Trabalho. – 8.ª ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. – 9. ed. rev., atual. e ampl. -- São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 2ª ed. São Paulo : LTr, 1998. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. – 6. ed. rev. e atual. – São Paulo : LTr, 2011. ROSEN, G. Uma história da saúde pública. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1994. 400p. SALIBA, Tuffi Messias. Insalubridade e periculosidade : aspectos técnicos e práticos / Tuffi Messias Saliba, Márcia Angelim Chaves Corrêa. – 6. ed. Atual. – São Paulo : LTr, 2002. SÜSSEKIND, Arnaldo. Convenções da OIT. São Paulo: LTr, 1994. Tribunal Superior do Trabalho. A criação da CLT. Disponível em: <http://www.tst. jus.br/web/70-anos-clt/historia>. Acesso em: 02 de novembro de 2015

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

188

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O FIM DO JUS POSTULANDI NA JUSTIÇA DO TRABALHO Jonathan G. Rigueira Carlos1 Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi2 RESUMO: O presente trabalho abordará o Fim do Jus Postulandi, apresentando questionamentos sobre direitos fundamentais constitucionais e sobre a necessidade do advogado na Justiça do Trabalho, propondo medidas para assegurar assistência judiciária, a fim de garantir efetivamente o acesso à justiça aos litigantes da Justiça do Trabalho. ABSTRACT: This paper addresses the End of Jus postulandi, with questions about fundamental constitutional rights and the need lawyer in labor courts, proposing measures to ensure legal aid in order to effectively guarantee access to justice for litigants of the labor courts. PALAVRAS-CHAVE: Justiça do Trabalho; Jus Postulandi; Acesso à Justiça; Necessidade de Advogado. KEYWORDS: Work justice; Jus postulandi; Access to justice; Lawyer of need. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Breve Histórico da Justiça do Trabalho; 3 Jus Postulandi e seus efeitos; 4 Jus Postulandi e os conflitos atuais; 4.1 Jus Postulandi versus Constituição Federal de 1988; 4.2 Jus Postulandi e a lei 8.096/94; 4.3 Jus Postulandi e a ADIN 1.127-8; 5 Acesso a Justiça na Justiça do Trabalho; 5.1 Assistência Judiciária e Defensoria Pública; 6 A necessidade do advogado e o fim do Jus Postulandi; 7 Conclusão; 8 Referências.

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho acadêmico visa expor de forma clara e objetiva sobre o Jus Postulandi na Justiça do Trabalho. Será feita uma análise criteriosa, utilizando-se de diversos livros e artigos, apontando vários doutrinadores, para chegarmos a alguma conclusão lógica sobre a necessidade do advogado nos processos trabalhistas, bem como a permanência ou não do Jus Postulandi. Para facilitar a compreensão dividimos em tópicos, separados por assuntos, que vão desde a evolução histórica do Direito do Trabalho no Brasil, passando pelas discussões sobre o instituto, até chegarmos à possibilidade de extinção do mesmo. O primeiro tópico exporá sobre um breve relato da história da Justiça do Trabalho. Será necessário voltar na década de 30, para entender o cenário brasileiro daquela época, que deu início as relações de trabalho. Seguindo no tempo, passaremos pela Consolidação das Leis Trabalhistas e apresentaremos as principais Leis e Constituições pertinentes ao contexto. A segunda parte da dissertação tratará do Jus Postulandi e seus efeitos na Justiça do Trabalho. Far-se-á necessário adentrar no conceito da capacidade postulatória, para facilitar o entendimento do instituto. Apontaremos sua previsão legal, debatendo quais os efeitos são causadas na prática e entraremos na análise sobre o respeito desse instituto ao contraditório e a ampla defesa. Logo após, falaremos dos “conflitos atuais” causados pelo jus postulandi. Tal instituto entrou em choque com a Constituição Federal, em seu artigo 133, e com o Estatuto da OAB (Lei 8.096/94). O embate foi finalizado com a ADIN 1.127-8, onde o STF decidiu um pedido de inconstitucionalidade, colocando ponto final a tais conflitos. Adentraremos no ponto primordial de nosso tema, que é o acesso à justiça. Aqui, colocaremos em choque um preceito constitucional que é o intento do Jus Postulandi e faremos debate crítico a fim de refletir sobre a garantia e efetividade de tal preceito constitucional. Apontaremos também hipóteses para a assistência jurídica, a fim de viabilizar o real acesso à justiça. E por fim, manifestaremos sobre a necessidade do advogado e o fim do jus postulandi. Mostraremos mais uma vez sobre o reconhecimento do advogado no ordenamento jurídico brasileiro, apresenta-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

remos a Súmula 425 do TST, reforçando ao final sobre os aspectos negativos do Jus Postulandi levantados em todo o decorrer do trabalho, vez que defenderemos pelo fim do mesmo. 2. BREVE HISTÓRICO DA JUSTIÇA DO TRABALHO Para entendermos o processo de evolução histórica que se deu na Justiça do Trabalho até os dias de hoje, se faz necessário voltarmos na década de 30, quando através do então Presidente Getúlio Vargas, muda completamente o cenário brasileiro. Época de intensas mudanças sócias, politicas e econômicas que assolaram toda a Europa no século XIX, o Brasil entra no século XX em uma profunda transformação industrial, onde se via o declínio do setor agrário, conhecidos como senhores do café, em contrapartida a ascensão da burguesia industrial e o crescimento do proletariado urbano. Com a chegada da classe operária, surgiram os trabalhos assalariados, entretanto tais operários eram submetidos a condições de trabalho aviltante e desumanas e prevalecia a figura do empregador, tido com o “mais forte”. Tal situação gerou inúmeros conflitos, colocando a sociedade Brasileira em necessidade de regulamentação de leis trabalhistas e criação de órgão julgador. Os primeiros órgãos criados no Brasil objetivando solucionar conflitos trabalhistas foram os Conselhos Permanentes de Conciliação e Arbitragem, mas não foram efetivamente implantados, ficando apenas como a primeira tentativa de criar órgãos especializados para julgar demandas trabalhistas. O início do século XX foi marcado por grandes greves, que se alastravam em todo país, e os trabalhadores clamavam por melhorias nas várias condições precárias, como jornada excessiva, pontualidade no pagamento, descanso semanal, etc. Em 1931, preambulavam pelas ruas milhares de desempregados e subempregados, fazendo com que os governantes tivessem um olhar mais atento para essa classe. Um dos primeiros atos de Vargas foi à criação do Ministério do Trabalho. Decorre dessa parte da história a promulgação de diversas leis ordinárias regulamentando o trabalho: organização de sindicatos rurais e urbanos, trabalho de menores, trabalho das mulheres, salario mínimo e convenção coletivas do trabalho. O decreto lei 22.132 de 1932 deu então origem ao primeiro ór-

189

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


gão de julgamento de demandas trabalhistas, as Juntas de Conciliação e Julgamento e as Comissões Mistas de Conciliação, que pelas ilustres palavras de Renato Saraiva, funcionava da seguinte forma: “As Juntas de Conciliação de Julgamento, também criadas em 1932, tinham a função de dirimir os dissídios individuais do trabalho, onde somente os empregados sindicalizados possuíam o direito de ação. Estas se constituíam em instância única de julgamento e suas decisões valiam como título de dívida líquida e certa para execução judicial. No entanto, o Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio podia avocar qualquer processo, no prazo de seis meses, a pedido do interessado, nos casos de flagrante parcialidade dos julgadores ou violação do direito. Na época, as Juntas eram compostas de um presidente, em geral membro da OAB, e de dois vogais, um representante dos empregados e outro dos empregadores”. (2014, p. 25). Depois disso surgiram outras organizações não pertencentes ao Poder Judiciário, dotadas também de poder de decisão, sem tanto destaque. A Constituição Federal de 1934 em seu artigo 122 previu a instituição da Justiça do Trabalho, contudo não chegou a ser criado por lei. Da mesma forma a Constituição de 1937 em seu artigo 139 repetiu o feito, porém apenas em 1941 a Justiça do Trabalho era criada em todo o país, através do decreto lei nº 5.452 de 1º de maio, vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, mas ainda não pertencia ao Poder Judiciário. Finalmente, a Constituição de 1946, concluindo a evolução da Justiça laboral, integrou, definitivamente, a Justiça do Trabalho como órgão do Poder Judiciário. Com relação à integração da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário, prepondera Amauri Mascaro Nascimento: “(...) é consequência natural da evolução histórica dos acontecimentos. Na sociedade empresarial, as controvérsias entre trabalhadores e empresários assume especial significado. O Estado, intervindo na ordem econômica e social, não pode limitar-se a dispor sobre matéria trabalhista. Necessita, também, de aparelhamento adequado para a solução de conflitos de interesses, tanto no plano individual como no coletivo. Assim, a existência de um órgão jurisdicional do Estado para questões trabalhistas é o resultado da própria transformação da ideia de autodefesa privada em processo judicial estatal, meio característico de decisão de litígios na civilização contemporânea”. (2009, p.50).

presença é dispensável, como na Justiça do Trabalho, onde através do princípio do Jus Postulandi, as próprias partes, sujeitas da relação de emprego, podem ingressar em juízo e acompanhar o processo, produzindo todos os atos do mesmo, sem a presença de um advogado habilitado. Para Sergio Pinto Martins, “No processo do trabalho, Jus Postulandi é o direito que a pessoa tem de estar em juízo, praticando pessoalmente todos os atos autorizados para o exercício do direito de ação, independentemente do patrocínio de advogado”. (2007, p.184). Tal direito está previsto no artigo 791 da CLT, caput:“Os empregados e os empregadores poderão reclamar pessoalmente perante a Justiça do Trabalho e acompanhar as suas reclamações até o final”. Fazemos aqui uma análise crítica em relação a tal instituto, que permite o trabalhador a se aventurar em um processo sem um mínimo de condições técnicas sobre o direito material e processual laboral. Ainda mais quando se trata do Direito do Trabalho, que tem como princípio a proteção do trabalhador em relação ao empregador. Sabemos que os empregados são, em regra, a parte hipossuficiente da relação, tanto financeiramente quanto tecnicamente.Para o empregador será muito mais fácil violar os direitos trabalhistas quando,em um processo, irá debater direitos com seu empregado desacompanhado de um advogado. Salientamos ainda, que o empregador, devido às condições financeiras, em regra estará, por óbvio, acompanhado de um profissional preparado tecnicamente, ao passo que o empregado estará só, iludido, como demonstraremos, com o direito que lhe cabe de responder sozinho ao processo. Ilustre o entendimento da doutrinadora Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi, que diz ser inaceitável a presença do Jus Postulandi em nosso ordenamento jurídico: “Diante de uma visão constitucionalizada do processo, proporcionada pelo Estado Democrático de Direito é inaceitável a presença do Jus postulandi em nosso ordenamento jurídico, vez que ele prejudica a parte que o exercita. É uma maneira de incluir, excluindo, isto porque a pessoa postula em juízo, supostamente dando-lhe tal chance de postulação, porém já inicia o processo prejudicada, porque apenas o advogado tem a capacidade técnica e domínio para a viabilização perfeita do processo”. (p.8).

Com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, protegendo ainda mais os trabalhadores, trata os direitos trabalhistas como sociais e fundamentais, ao passo que antes era tido como econômico social. Muitas mudanças continuaram acontecendo, como a EC Nº 24 de 1999, Leis 9.957 e 9.958, ambas de 2000, e aEC Nº 45 de 2004. E ainda continuarão, sempre no sentido de proteger o trabalhador, que é o hipossuficiente na relação de emprego e que detêm geralmente de poucos esclarecimentos sobre seus direitos, sofrendo diariamente violações.

Todos nós temos direito à ampla defesa e ao contraditório, que é um preceito constitucional previsto no art. 5º LV, mas o empregado desacompanhado de um advogado não terá condições de exercer seu contraditório. Nelson Nery Júnior define contraditório como sendo: “Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, de realizar as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos”. (2004, p.172).

3 . JUS POSTULANDI E SEUS EFEITOS Para entrarmos no conceito do Jus Postulandi, precisamos compreender a capacidade postulatória, que nada mais é que a capacidade de postular em juízo, ou seja, a capacidade de requerer em juízo e de acompanhar o desenvolvimento do processo. A capacidade postulatória é conferida aos advogados em pleno gozo de suas prerrogativas profissionais, mas em alguns casos sua

Se o contraditório é o direito de deduzir pretensões e defesas, realizar provas para demonstrar o direito, atuando de forma paritária no processo, eis a pergunta: Como que um trabalhador comum saberá quais direitos lhe pertencem,bem como quais as medidas processuais pode utilizar para exigi-los judicialmente? Por óbvio, e aqui está a indignação quanto ao instituto, que o empregado não vai conseguir se defender, com total formação técnica necessária, não estando em

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

190

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pé de igualdade com seu empregador, que do outro lado estará sim acompanhado de um douto com capacidade técnica e domínio para a viabilização perfeita do processo. Destacamos e demonstraremos em um próximo momento, que o TST exige a presença de advogado nos processos que tramitam em sua instância, justamente pela necessidade de conhecimento técnico. Percebe-se, então, que tal instituto acaba por prejudicar àquele no qual deveria ser beneficiado, uma vez que simplesmente estar em juízo não é garantia de satisfação de direitos, e, pior, de demonstração de direitos em meio ao devido processo legal. Para reconhecer, defender e demonstrar tais direitos é necessário profissional capaz tecnicamente. 4. JUS POSTULANDI E OS CONFLITOS ATUAIS O Jus Postulandi desde a sua origem sempre foi muito contestado pelos doutrinadores, vez que entendiam causar danos irreparáveis aos empregados. Muitas foram às tentativas para tentar declarar inconstitucional tal instituto, porém todas frustradas, haja vista que o STF já se pronunciou sobre a matéria, entendendo por constitucional o artigo 791 da CLT, conforme será relatado adiante nesse trabalho. 4.1. JUS POSTULANDI VERSUS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A discursão sobre o Jus Postulandi sempre foi veemente entre os juristas, haja vista que o Estatuto da OAB de 1963 e o CPC, em seu artigo 36, traziam o princípio da Indispensabilidade do advogado. Os defensores do Jus Postulandi afirmavam que a lei especial prevaleceria sobre as leis geras, entendendo por válido o instituto. Com a promulgação da Constituição da República do Brasil, em 1988, parecia que a discursão sobre a dispensabilidade do advogado nos processos teria fim e que o Jus Postulandi não mais prosperaria, principalmente na Justiça do Trabalho. O artigo 133 da CF/88 veio com a seguinte redação: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Muitos juristas acreditavam que o advogado seria então indispensável á realização da prestação jurisdicional. Alguns Tribunais passaram, até mesmo, a restringir o serviço encarregado de receber petições verbais, enquanto, alguns juízes chegaram a rejeitar as reclamações não subscrita por advogados, embasados, precipitadamente, no entendimento de que o artigo 791 da CLT não era recepcionado pela CF vigente. No entanto, quanto aos efeitos do art. 133, sobre o Jus postulandi concluíram não ser o dispositivo autoaplicável, mas norma de eficácia contida, necessitando de regulamentação infraconstitucional. Os juízes trabalhistas e tribunais afirmavam que o art. 791 da CLT continuava vigente, sob o argumento de que o advogado era indispensável à administração da justiça, mas dependia de regulamentação, já que o texto constitucional trazia uma vírgula seguida da expressão “nos limites da lei”. Nesse sentido é o entendimento desenvolvido pelo STF, julgando matéria penal, habeas corpus (STF, TP, HC 67.390-2, DJ 6.4.90), afirmou que a Constituição Federal, em seu at. 133, não teria revogado as normas legais especiais que autorizavam expressamente a realização de atos processuais diretamente pelas partes. 4.2 JUS POSTULANDI E A LEI 8.096/94 O Estatuto dos Advogados Brasileiros (OAB), criado em 04 de Julho de 1994, já em seu 1º, inciso I, disciplina que é atividade privativa do advogado “a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais”. Com essa redação, voltou à tona toda a discursão sobre a ex-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tinção do jus postulandi. Em uma primeira interpretação da norma alguns doutrinadores entendiam que o instituto estava sendo eliminado não apenas na justiça do trabalho, mas também nas ações de alimentos e nos juizados especiais, uma vez que tal artigo trouxe uma única exceção no parágrafo 1º do mesmo artigo, o habeas corpus. Muitos profissionais, diante de tal garantia, entendem o Jus postulandicomo uma afronta à sua atividade privativa. Mas não é essa a preocupação principal, e sim da desvantagem que traz o benefício à sociedade, principalmente aos trabalhadores que, despreparados tecnicamente não são capazes, sem nenhum demérito haja vista que essa capacidade vem com uma graduação, de fazer uma defesa de seus direitos em conformidade com o direito material e processual. E para agravar a situação, como já afirmado, os empregadores, devido à melhor condição financeira, estarão, em regra, acompanhados de advogados, aumentando ainda mais o desiquilíbrio da lide. Porém, mais uma vez e definitivamente até então, entenderam que o jus postulandi prevalece em nosso ordenamento jurídico, conforme será tratado no próximo tópico. O doutrinador Carlos Henrique Soares, confirma toda a dialética exposta acima de forma sucinta: “A partir da publicação da Lei nº. 8.906/94 reacendeu todas as discussões a respeito do Jus postulandi da parte. Parecia estar revogado o art. 791 da CLT e todas as disposições que permitiam à parte atuar diretamente em juízo, salvo a impetração de habeas corpus. Mas, infelizmente estávamos enganados”.(2003, p.87). 4.3 – JUS POSTULANDI E A ADIN 1.127-8 Em 1994, a Associação dos Magistrados Brasileiros, distribuiu no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade, com fundamentos nos art. 103, IX, 2ª parte, e 102, I, a, da CF/88, questionando a constitucionalidade de alguns dispositivos do Estatuto da OAB, entre eles o art. 1º, I, que trata da dispensabilidade ou não do advogado no processo jurisdicional brasileiro, em especial na Justiça do Trabalho. A Adin 1.127-8 suspendeu liminarmente o dispositivo citado acima, onde previa que “a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais são atividades privativas da advocacia”. O STF reconheceu a constitucionalidade do dispositivo, mas excluiu sua aplicação aos juizados de pequenas causas e à justiça do trabalho, permitindo a capacidade postulatória da parte, conforme se verifica a diante: “O tribunal, por MAIORIA DE VOTOS, DEFERIU, EM PATE, o pedido liminar, para suspender a eficácia do dispositivo (art. 1º, inciso I), no que não disser respeito aos Juizados Especiais, previstos no inciso I, do art. 98 da CF/1988, excluindo, portanto, a aplicação do dispositivo, até a decisão final da ação, em relação aos Juizados de Pequenas Causas, a Justiça do Trabalho e a Justiça de Paz (DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DA ADIN. 1.127-8)”. A partir dai, não há mais discursão em nossos tribunais s o b r e a INCONSTITUCIONALIDADE do Jus Postulandi. O debate passa a ser, assim como fizemos ao longo desse trabalho, sobre a efetividade desse instituto na prática, que tenta garantir um falso acesso à justiça aos empregados, e que na verdade, coloca estes em desigualdade técnica em relação a seus empregadores, fazendo com que seus direitos se pereçam na justiça. Alinhando da mesma forma o pensamento, comenta o ex-Ministro Russomano, citado por Carlos Henrique Soares: “(...) O resultado de tudo isso é que a parte que comparece

191

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sem procurador, nos feitos trabalhistas, recai em uma inferioridade processual assombrosa. Muitas vezes o juiz sente que a parte está com o direito a seu favor. A própria interpretação do interessado, entretanto, põe por termo a sua pretensão, porque mal fundada, mal articulada, mal explicada e, sobretudo, mal defendida na produção da prova, o problema se acentua e agrava. E todos nós sabemos de que a decisão depende do que os autos revelarem e os autos revelam o que está provado(...)”. (2003, p.83). Enfim, o que queremos destacar é a desigualdade processual obtida em uma ação, quando o empregado está no gozo do Jus Postulandi, e não discutir sua constitucionalidade da norma, mas sim sua efetividade. 5 – ACESSO A JUSTIÇA NA JUSTIÇA DO TRABALHO Tal discursão sobre o acesso a justiça se mostra necessária na medida em que se entende que a participação do advogado se constitui uma barreira ao acesso à justiça. Apresentaremos o conceito desse instituto fazendo uma relação com a indispensabilidade dos advogados para que tal direito seja resguardado a todos. O acesso à justiça está inserido entre os direitos fundamentais dos cidadãos expressos na cláusula pétrea da nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXV e LXXIV, sendo assim é responsabilidade do Estado permitir o exercício da cidadania. Art. 5º - XXXV – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Art. 5º - LXXIV - “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. O princípio constitucional do acesso à justiça é amplo e almeja resguardar vários princípios fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, da isonomia, contraditório e ampla defesa. Nesse sentido, esse princípio compreende assegurar ás minorias em combate a toda e qualquer discriminação. Humberto Teodoro Júnior faz uma perfeita análise sobre acesso à justiça no moderno Estado Democrático de Direito, citando ainda Leonardo Greco em seu trecho: “É de se ter em conta que, no moderno Estado Democrático de Direito, o acesso à justiça não se resume ao direito de ser ouvido em juízo e de obter uma resposta qualquer do órgão jurisdicional(grifo nosso). Por acesso à Justiça hoje se compreende o direito a uma tutela efetiva e justa para todos os interesses dos particulares agasalhados(grifo nosso) pelo ordenamento jurídico. Explica Leonardo Greco que o conteúdo de tal acesso ‘é implementado através das chamadas garantias fundamentais do processo ou do que vem sendo denominado de processo justo’, o qual, por sua vez, compreende ‘todo o conjunto de princípios e direitos básicos de que deve desfrutar aquele que se dirige ao Poder Judiciário em busca da tutela dos seus direitos’. Nele se englobam tanto as garantias de natureza individual, como as estruturais, ou seja, o acesso à justiça se da, individualmente, por meio do direito conferido a todas as pessoas naturais ou jurídicas de dirigir-se ao Poder Judiciário e dele obter resposta acerca de qualquer pretensão, contando com a figura do juiz natural e com sua imparcialidade; com a garantia do contraditório e da ampla defesa, com ampla possibilidade de influir eficazmente na formação das decisões que irão atingir os interesses individuais em jogo (grifo nosso); com o respeito à esfera dos direitos e interesses disponíveis do litigante; com prestação da assistência jurídica aos carentes, bem como com a preocupação de assegurar

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

a paridade de armas entre os litigantes na disputa judicial; e com a coisa julgada, como garantia da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva”. (2005, p.74). Com o Jus Postulandi o empregado tem garantido o direito de ser ouvido em juízo e de obter uma resposta QUALQUER do judiciário, mas, como bem ressaltou Humberto Teodoro Júnior, isso não basta para que se tenha garantido o acesso à justiça no atual e moderno Estado Democrático de Direito, que é uma garantia constitucional. Portanto, para que se cumpra tal mandamento constitucional, é necessária uma tutela efetiva e justa, com a garantia do contraditório e ampla defesa, com a ampla possibilidade de INFLUIR EFICAZMENTE na formação das decisões, entre outras garantias. Bem sabemos que só é possível garantir o acesso à justiça quando o trabalhador está acompanhado de um advogado, que terá capacidade para levantar preliminares, praticar os atos processuais corretos e fazer uma defesa meritória condizente com a verdade real. Só assim é que o empregado estará influenciando de fato na decisão dos juízes, terá sua ampla defesa protegida, tendo ao final uma decisão justa e efetiva, condizente com seus direitos. Contudo, ressalta mais uma vez que o trabalhador atuando sozinho no processo, abarcado pelo Jus Postulandi, está correndo sérios riscos de sucumbir na ação, pois lhe falta conhecimento técnico, não tendo seu direito de acesso à justiça respeitado. Na mesma linha de pensamento, Mauro Schiavi assevera que: “(...) Pensamos que o empregado assistido por advogado tem maiores possibilidades de êxito no processo, assegurando o cumprimento do principio constitucional do acesso real à Justiça do Trabalho, e também a uma ordem jurídica justa. Não se pode interpretar a lei pelas exceções. Hoje, a parte não estar assistida por advogado na Justiça do Trabalho é exceção. De outro lado, diante da complexidade das matérias que envolvem o advogado, ao invés de facilitar, acaba dificultando o acesso, tanto do trabalhador como do tomador de serviços, à Justiça”. (2014, p.319) É inegável que o Estado tem que garantir o amplo acesso à justiça e que o Jus Postulandi não é capaz de dar efetividade a esse princípio. Mas sabemos também que simplesmente acabar com tal instituto não resolveria o problema, portanto, é preciso atentar para medidas que juntas seriam capazes de garantir e viabilizar, aos pobres principalmente, o direito de pleitear em juízo, com a presença de um profissional capaz de defender seus direitos, como veremos no próximo tópico. 5.1 - Assistência Judiciária e Defensoria Pública As partes postulantes em um processo precisam estar acompanhadas de profissionais do Direito, capaz de defender seus direitos na lide. Mas em alguns casos, muitas não têm condições financeiras para arcar com os honorários desse profissional. Com isso, para se garantir completamente o Acesso à Justiça a todos os cidadãos se faz necessário a Assistência Judiciária. Precisamos nesse primeiro momento, diferenciar a assistência judiciária da justiça gratuita, haja vista que as duas são muito importantes na garantia do acesso à justiça, mas uma é mais ampla que a outra. Para tanto, utilizaremos as palavras de Ponte de Miranda, citado por Carlos Henrique Soares: “O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária é a organização

192

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicaçãode advogado. É instituto de direito administrativo” (Pontes de Miranda, 1987, p.642). Portanto, a justiça gratuita é a gratuidade de todas as custas e despesas, judiciais ou não, relativa a atos necessários ao desenvolvimento do processo e à defesa dos direitos do beneficiário em juízo. É um benefício concedido apenas as pessoas pobres na acepção jurídica do termo, ou seja, àquelas que possui insuficiência de recursos no momento que necessita propor demanda judicial, e é, portanto, importante medida de garantia do acesso à justiça, regulada no art. 3º, V, da Lei nº 1060/50. A assistência judiciária é um direito fundamental, assegurado constitucionalmente, previsto no art. 5º, LXXIV, e é, pois, um serviço público organizado, consistente na defesa em juízo do assistido, que deve ser oferecido pelo Estado, mas pode ser desempenhado por entidades não-estatais, conveniadas ou não com o Poder Público. Art. 5º - LXXIV - “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. No Brasil, adotamos o sistema da Defensoria Pública, que detêm de profissionais altamente capacitados, remunerados pelos cofres públicos, encarregados da orientação jurídica e defesa em todos os graus dos necessitados, garantindo mais uma vez o acesso à justiça aos hipossuficientes. Está prevista constitucionalmente, do artigo 133 ao 135, o qual destacamos o art. 134: “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”. (Constituição Federal de 1988).

rantidos, como o de ação, de defesa, contraditório, e principalmente, o acesso à justiça. Sabemos que, ainda assim, haverá em alguns casos escassez de profissionais para atender a demanda da população. Propomos, nesses casos de ausência a nomeação de um advogado particular, chamado de defensor dativo, que irá militar em favor da parte, que, posteriormente, será remunerado pelo Estado. Dessa mesma forma, propõe Sérgio Pinto Martins: “O Advogado deveria ser necessário em todo e qualquer processo, inclusive na Justiça do Trabalho, pois é pessoa técnica, especializada na postulação (...). Contudo, essa assistência deveria ser fornecida pelos sindicatos ou, em sua impossibilidade, pelo Estado. Este deveria fornecer gratuitamente advogados para quem deles necessitasse na Justiça do Trabalho, mediante o que é feito no Juízo Criminal, em que é indicado um advogado dativo, que acompanha o processo e é remunerado pelo Estado. Tal atribuição é considerada um mumus público (grifo nosso)e deveria ser prestada por advogados recém-formados, para que aos poucos adquirissem a prática e, enquanto isso, poderiam ajudar os necessitados”. (2007, p.184)

Cabe-nos ressaltar as palavras de Suzana Vereta Nahoum Pastore, citada por Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi, na qual bem destacou a importância desse instituto para dar garantia ao acesso à justiça: “Na luta pela defesa do homem algumas instituições são representativas no patamar de desenvolvimento alcançado Entre estas, a Defensoria Pública exsurge como um marco da possibilidade de se garantir ao menos favorecido o acesso à justiça e a busca por uma prestação jurisdicional isonômica. O princípio da igualdade entre as partes é densificado pela atuação institucional, fazendo com que uma pessoa não dependa de sua fortuna para ter seus direitos reconhecidos e que se deixe de fazer justiça em virtude da pobreza do titular do direito”. (2004, p.185).

Portanto, está muito fácil para o Estado permitir a postulação na justiça do trabalho sem procurador, através do Jus Postulandi, ao invés de cumprir seu dever de garantir um advogado aos mais necessitados, efetivando o acesso à justiça. O Estado está com isso fugindo do seu dever constitucional de acesso real e efetivo à justiça. Não podemos esquecer também do papel dos sindicatos, que auxilia na garantia do efetivo acesso à justiça, a quem deve prestar assistência judiciária aos trabalhadores da sua respectiva categoria, conforme determinaartigo 14 da Lei 5.584/70. A grande maioria já aproveita dessa assistência, mas em alguns casos os sindicatos se negam a prestar tal defesa, e existem categorias que não possuem sindicatos, fazendo-se necessário os institutos, citados nos parágrafos anteriormente, para que de toda forma os hipossuficientes possam ter seus direitos fundamentais garantidos. Enfim, como demonstrado, a prática do Jus Postulandi, diferentemente do que é defendido pelos adeptos, não efetiva um pleno acesso à justiça, vez que causa uma discrepância as normas e técnicas necessárias para orientar o processo, acabando por excluir o empregado de uma decisão justa e efetiva ao final, vez que não se vislumbra o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa. A solução seria, não o aniquilamento da participação do advogado no processo jurisdicional trabalhista, pelo contrário, estes deveriam ser necessários e obrigatórios para que seja garantido os direitos fundamentais da parte, com a devida facilitação e implementação da Defensoria Pública Trabalhista e Advogados Dativos na Justiça do Trabalho, para que aos desprovidos de recursos, seja também garantido a ampla assistência jurídica, logo, amplo acesso à justiça.

Entretanto, na Justiça do Trabalho, apesar de sua inegável necessidade, é ainda um órgão inexistente. Isto não por falta de previsão legal, dado que é legalmente imposta pela Lei Complementar nº 80 de 1994, a qual dispõe em seu artigo 14 que, “a Defensoria Pública atuará nos Estados, no Distrito Federal e nos territórios, junto às Justiças Federal, do Trabalho(grifo nosso), Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores e instâncias administrativas da união”, mas sim por descuido e inobservância estatal. Salientamos que é de extrema urgência a implementação da Defensoria Pública Trabalhista, para que preste aos hipossuficientes a assistência judiciária devida, respeitando assim um mandamento constitucional. Dessa forma, os necessitados terão seus direitos ga-

6. A necessidade do advogado e o Fim do Jus Postulandi A Justiça do trabalho, hoje é seguramente um ramo do direito altamente especializado e de difícil entendimento, exigindo dos profissionais conhecimentos técnicos e profundos sobre o conhecimento do direito material e processual. O Advogado como destacamos ao longo do trabalho científico, tem seu papel reconhecido em vários dispositivos legais, como art. 133 da CF/88, art. 2º do Estatuto da OAB e art. 2º do Código de Ética, de forma que não há hierarquia entre as partes profissionais, Juízes de Direito e Ministério Público, sendo indispensável à administração da Justiça.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

193

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Qualquer pessoa que atue na área jurídica sabe que um leigo desacompanhado de advogado torna-se um personagem sem voz no processo, visto que a construção da verdade processualexige muito mais do que a posse da verdade real, exige habilidade para prová-la e construí-la aos olhos do juiz, usando como únicas armas um discurso jurídico bem articulado, uma retórica bem elaborada e a competente compreensão das leis. Nessa perspectiva, Amauri Mascaro Nascimento, expõe seus argumentos sobre a importância do advogado na Justiça do Trabalho: “O processo é uma unidade complexa de caráter técnico e de difícil domínio, daí porque o seu trato é reservado, via de regra, a profissionais que tenham conhecimentos especializados e estejam em condições de praticar os atos múltiplos que ocorram durante o seu desenvolvimento. A redação de petições, a inquirição de testemunhas, a elaboração de defesas, o despacho com o juiz, o modo de colocação dos problemas exige pessoa habilitada, sem o que muitas seriam as dificuldades de advir, perturbando o normal andamento do processo. Em consequência, as manifestações das partes no processo, desde tempos remotos, são confiadas a profissionais denominados procuradores, ou defensores, advogados, além de seus auxiliares, que são os estagiários, antigamente denominados solicitadores”. (2009, p.50). O advogado se torna consequentemente uma figura indispensável na relação processual, para dar o manejo adequado ao processo, levantando preliminares e exceções no momento oportuno, interpondo recursos pertinentes, além de fazer uma defesa meritória satisfatória para o direito das partes, garantindo com isso princípios constitucionais como isonomia, contraditório e ampla defesa, acesso à justiça. Ressalta-se ainda que a justiça especializada é muito dinâmica, como podemos notas em Súmulas e Orientações Jurisprudenciais, nas quais são constantemente formuladas, alteradas e até mesmo excluídas. Como bem assevera Sérgio Pinto Martins: “O empregado que exerce o Jus Postulandi pessoalmente acaba não tendo a mesma capacidade técnica de que o empregador que comparece na audiência com advogado, levando preliminares e questões processuais. No caso, acaba ocorrendo desigualdade processual, daí a necessidade do advogado”. (2012, p.188). Cabe acrescentar que a Súmula 425 do TST, em 2010, ensaiou mais uma vez para o Fim do Jus Postulandi. Em sentido contrario ao que determina o artigo 791 da CLT, que autoriza a parte a acompanhar a ação até o final, tal súmula restringiu o alcance do Jus Postulandi, ao adotar o seguinte entendimento, “o jus postulandi das partes, estabelecido no art. 791 da CLT, limita-se às Varas do Trabalho e aos Tribunais do Trabalho, não alcançando a ação rescisória, a ação cautelar, o mandato de segurança e os recursos de competência do Tribunal Superior do Trabalho”. Através desta súmula o TST assinalou para a importância do advogado nos recursos que tramitam em sua instância, haja vista a dificuldade técnica para interpor tais recursos. E é em cima desse mesmo entendimento que debatamos ao longo desse trabalho, para que o advogado seja indispensável em todas as instâncias, haja vista que o grau de dificuldade técnica e processual também é bastante elevado. O direito em si é muito amplo e complexo para que pessoas leigas possam “manuseia- los”. Na presença do Jus Postulandi, as partes estão sendo agredidas em seus direitos constitucionais.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Haja vista os diversos debates travados entre doutrinadores, tribunais, já decidido pelo STF, sobre a constitucionalidade do Jus Postulandi no aspecto do confronto de normas (CLT, CF, Estatuto da OAB e de Ética), defendemos ao longo do trabalho o fim do Jus Postulandi, apresentando a inconstitucionalidade desse instituto no que tange às garantias constitucionais, de direitos fundamentais previstos no art. 5º, como o acesso real à Justiça, o contraditório e a ampla defesa. Tal instituto não é efetivo e não alcança o seu mister, pelo contrário coloca as partes em desigualdade técnica, desiquilibrando a relação processual, fazendo com que os empregados principalmente fiquem vulneráveis a decisões desfavoráveis. Diante de tais fundamentos, é notória a necessidade de alteração na legislação trabalhista no que tange a capacidade postulatória das partes. O Jus Postulandi deve ser extinto do ordenamento jurídico brasileiro e o advogado indispensável nas relações processuais trabalhistas. Em contrapartida deve ser aprimorada a assistência judiciária, que aos hipossuficientes seria prestada pela Defensoria Pública Trabalhista, e na falta desta, pelos advogados dativos. Tal assistência também deve ser prestada pelos sindicatos classistas. Dessa forma, ao adotar tais medidas, podemos falar em um real e efetivo acesso à justiça das partes, com garantia e respeito aos direitos constitucionais fundamentais. Com isonomia processual, contraditório e ampla defesa, decisão justa e assistência judiciária, as partes estarão tranquilas quanto à satisfação de seus direitos, e terão um processo justo, digno e legal. 7. Conclusão Após pesquisa desenvolvida neste trabalho, pode-se perceber que os direitos trabalhistas foram sendo adquiridos ao longo da história, através de inúmeros conflitos e reinvindicações. Tais direitos foram sendo gradativamente consagrados, sempre no sentido de proteger os empregados, parte hipossuficiente na relação de emprego e a quem merece sempre um olhar mais atento. O Jus Postulandi é o direito que a pessoa tem de estar em juízo, praticando pessoalmente todos os atos autorizados para o exercício do direito de ação, independente do patrocínio de advogado. Tal direito, garantido na CLT, visa garantir o acesso à justiça aos empregados, entretanto não cumpre seu intento, como pudemos perceber ao longo da dissertação. Pelo contrário, tal instituto acaba excluindo o empregado de tal acesso, uma vez que está em desvantagem técnica no processo do trabalho, pois é a parte hipossuficiente na relação de emprego. Agindo sozinho o trabalhador não conseguirá deduzir preliminares e exceções, fazer uma defesa meritória condizente com seus direitos, nem muito menos interpor recursos contra as eventuais mazelas produzidas pelo judiciário. Ajuizando uma ação pessoalmente, não serão garantidos à parte direitos constitucionais fundamentais, como a isonomia, contraditório e ampla defesa, nem o acesso à justiça. O acesso à justiça não se resume ao direito de ser ouvido e de pleitear em juízo obtendo uma resposta qualquer do Estado, mas compreende o direito a uma tutela efetiva e justa, com ampla possibilidade de influenciar eficazmente na formação das decisões que irão os interesses das partes. Ressalta-se, como bem concluímos neste trabalho, que tal garantia só será possível quando acompanhado de um profissional preparado tecnicamente, que será capaz de garantir o contraditório e a ampla defesa, fazendo uma defesa justa e digna. Portanto, o advogado é figura essencial em nosso ordenamento jurídico, bem como na Justiça do Trabalho, para garantir as partes o acesso à justiça. O advogado se preparou por muito tempo e ainda foi atestado em uma prova de conhecimentos para só ai praticar a

194

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


profissão. Sendo assim, é pessoa capaz de defender os direitos dos litigantes no processo. Diante de todo o exposto, é que defendemos pelo Fim do Jus Postulandi, de forma a tornar obrigatória a presença de profissional preparado e habilitado tecnicamente para defender os interesses dos litigantes, seja por advogado patrocinado, ou por meio da assistência judiciária, que deverá ser criada e prestada desde logo, como proposto, pela Defensoria Pública Trabalhista e advogados dativos pagos pelo Estado.

Notas de fim Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Referências: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Lei Complementar Nº 80, de 12 de Janeiro de 1994. Lei Nº 8906, de 04 de Julho de 1994. Súmula 425 do Tribunal Superior do Trabalho. Código de ética e Estatuto da OAB, 13 de fevereiro de 1995. Decreto Lei Nº 5.452, de 1º de Maio de 1943 (CLT). Lei Nº 5.584, de 26 de Junho de 1970. Lei Nº 1.060, de 5 de Fevereiro de 1950. ADIN 1.127-8 do STF. Habeas Corpus 67.390-2 - http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=70272. Decreto Nº 22.132, de 25 de Novembro de 1932. NASCIMENTO, Amauri mascaro. Curso de processual do trabalho, 15 ed. São Paul: Saraiva, 2009, p.50. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 25º ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 343-344. http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=912 JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios de processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo:RT, 2004. p.172. e 186 PINTO MARTINS, Sérgio. Direito Processual do Trabalho. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 184 e 187 e 188. MARTINS, Sergio Pinto, Direito do Trabalho, 28 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.188. JÚNIOR, Humberto Teodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I, 56ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. P.74. SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 7 ª ed. São Paulo: LTR, 2014. P. 319. ALMEIDA, Cleber Lúcio de Almeida, Direito Processual do Trabalho. 4ª ed. Belo Horizonte: DelRey, 2012. SARAIVA, Renato. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4ª ed. São Paulo: Método, 2007. MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. SOARES, Carlos Henrique. A participação do advogado como garantia do efetivo contraditório entre as partes no processo jurisdicional Brasileiro. Belo Horizonte, 2003. Dissertação (Mestrado) – Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação. BONACCORSI, Amanda Helena Azeredo. A Inconstitucionalidade do Ius Postulandi na Justiça do Trabalho em face do princípio constitucional do contraditório. Dissertação (Graduação) - Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais. RODRIGUES, Taciane Agner de Faria. O Jus Postulandi na Justiça do Trabalho. Curitiba, 2012. Dissertação (graduação). Universidade Tuiuti do Paraná. SOUZA, Luciana Ribeiro de Almeida. Jus Postulandi na Justiça do Trabalho. São Paulo, 2009. Dissertação (graduação). Universidade São Francisco.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

195

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Luiz Carlos Pereira de Lemar Neto1 Ludmila Castro Veado Stigert2 RESUMO: O trabalho tem por objetivo analisar o direito à liberdade de consciência e crença no contexto do Estado Democrático de Direito implantado pela Constituição Federal de 1988. Fazendo-o através da pontuação de algumas hipóteses em que estes direitos não estariam sendo assegurados de maneira satisfatória por parte do Estado e abordando o preceito constitucional através do qual tal insuficiência poderia ser atingida. ABSTRACT: The work aims to examine the right to freedom of conscience and belief in the context of the democratic rule of law implemented by the Federal Constitution of 1988. Doing it by scoring some cases where these rights were not being provided satisfactorily by the State and addressing the constitutional provision by which such failure could be reached. PALAVRAS-CHAVE: liberdade de crença; liberdade de consciência; constituição; estado de direito; direito fundamental; democracia. Keywords: freedom of belief; freedom of conscience; Constitution; rule of law; fundamental right; democracy. SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO, 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO; 2.1 Reflexões sobre o Direito Fundamental à Liberdade de Consciência e de Crença; 2.2 Reflexões sobre a Liberdade de Consciência e de Crença no Brasil; 3 TEÍSMO, ATEÍSMO, AGNOSTICISMO E O ANTITEÍSMO; 4 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA; 5 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A TEORIA DA PONDERAÇÃO; 6 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO A linguagem é, a um só tempo, a ferramenta com a qual o Direito elabora os preceitos em torno dos quais a vida de uma sociedade será orientada, e a matéria com a qual tais preceitos são construídos e comunicados aos indivíduos que compõem esta sociedade. Palavras, pequenas unidades da linguagem humana, são os blocos com os quais os preceitos jurídicos são construídos. As palavras - e a linguagem constituída por elas - servem tanto para produzir e compreender enunciados para si, quanto para comunicar estes enunciados a outros indivíduos. Para que esta compreensão e comunicação se dê da maneira mais clara possível, é necessário que o significado dessas palavras seja previamente acordado. Um dos mais importantes dicionaristas brasileiros, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1988), atribuiu diferentes significações à palavra liberdade como sendo, dentre outros: 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação; 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas; 3. Faculdade de praticar tudo o que não é proibido por lei; 4. Supressão ou ausência de toda a opressão considerada anormal, ilegítima, imoral (Ferreira,1988). Talvez devido à sua formação em Direito, o dicionarista tenha incluído ‘norma’, ‘lei’ e ‘legitimidade’ como critérios definidores do conceito de liberdade. Apenas estas definições já são suficientes para ilustrar que, mesmo enquanto ideia, e mais ainda enquanto direito, a liberdade não é absoluta. Constitucionalmente positivadas, encontramos exemplos como a liberdade de locomoção, de pensamento (e suas liberdades derivadas, como opinião, religião, informação, criação artística e comunicação do conhecimento), de reunião e associação, bem como a liberdade para escolha e exercício de profissão, ofício ou trabalho (Silva, 2008). Por mais que possa ser absoluta a liberdade que todos tem, no âmago subjetivo de cada ser, para crer no que melhor lhe aprouver, a mesma liberdade não se aplica quando esses pensamentos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

deixam a esfera mental e subjetiva e se concretizam em atos exteriores aos indivíduos. As manifestações físicas de pensamentos podem ofender, alijar e ferir os que não compartilham das mesmas convicções. Por estes motivos é que esta liberdade não pode ser exercida de um modo absoluto. O fato de se apontar episódios em que a liberdade de consciência e crença ultrapassaram os limites confrontados por outros direitos fundamentais (como a própria liberdade de pensamento de terceiros) não deve, absolutamente, ser tomado como uma afronta à crenças e valores pessoais ou coletivos, nem mesmo ao que tais crenças representaram ou representam à constituição da sociedade brasileira. O marco teórico a partir do qual o direito à, e a prática da liberdade de consciência é cotejado aqui, não é nada menos que o conjunto de regras que a nossa sociedade elegeu para governar sua própria existência, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Não seria nenhuma novidade afirmar que muitos dos direitos dispostos na regra máxima desta nação ainda não foram plenamente implementados. De igual maneira, não surpreenderia ninguém a afirmação de que a materialização de muitos destes direitos passa pela desconstrução de argumentos e conceitos vetustos. O Estado Democrático de Direito brasileiro, inaugurado naquele 5 de outubro de 1988, visava a liberdade de consciência e de crença, bem como o direito à manifestação destas liberdades. E, consequentemente, a proteção aos direitos fundamentais das minorias, para que estes não possam ser suprimidos em nome da opinião majoritária. Quase três décadas após a promulgação deste texto constitucional, estará o Estado brasileiro assegurando, à todos os cidadãos, de maneira igualitária, o direito à liberdade de consciência e crença garantidos pela Constituição? A hipótese considerada é de que não, o Estado não garante o gozo do direito à liberdade de consciência e crença de maneira igualitária. Com o objetivo de comprovar esta hipótese, utilizando-se da técnica bibliográfica, analisaremos a função dos direitos

196

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


fundamentais em um Estado Democrático e refletiremos a respeito da liberdade de consciência e crença. Para então demonstrar que a aplicação do princípio da Proporcionalidade seria a solução mais democrática para garantir a aplicação isonômica dos direitos analisados. O tema encontra justificativa nos conflitos que a diversidade de crenças e pensamentos têm gerado mundo afora e, em grande medida, no Brasil. A polarização entre setores que por vezes chegam as vias de fato não pode passar desapercebida por um Estado Democrático. Para endereçar esta questão, utilizamos o método hipotéticodedutivo, definido por Lakatos/Marconi (1991) como sendo: [...] construção de conjecturas, que devem ser submetidas a testes, os mais diversos possíveis, à crítica intersubjetiva, ao controle mútuo pela discussão crítica, à publicidade crítica e ao confronto com os fatos, para ver quais as hipóteses que sobrevivem como mais aptas na luta pela vida, resistindo, portanto, às tentativas de refutação e falseamento. 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Existe uma relação triangular entre os Direitos Fundamentais, a Democracia e o Estado de Direito. Como em um tripé, toda a estrutura irá à debacle ao se retirar qualquer um destes três pilares (Carrera, 2013). A Democracia é, em um Estado Democrático, uma ordem política criada pelas pessoas e por suas livres vontades, que permite aos seus cidadãos serem, ao mesmo tempo, os autores e os destinatários das leis (Habermas, 2001). Um exemplo de tais leis é o que se conhece por Direitos Fundamentais. Positivados com a finalidade de proteger os cidadãos contra abusos de seu próprio Estado e em suas relações com outros cidadãos, os Direitos Fundamentais garantem que a participação democrática se dê de forma legítima e justa, além de assegurarem as liberdades individuais e coletivas na vida civil (Morais, 2009). A exemplo de sua função em uma eleição democrática, tomemos um pleito em que os direitos fundamentais à liberdades de expressão e associação foram suprimidos. Como escolher aquele candidato com quem se tem maior afinidade ideológica, se todos os candidatos só podem professar uma ideologia previamente estabelecida? Como organizar um partido político de oposição se somente é permitido associar-se a algumas determinadas organizações? Como se informar a respeito das verdadeiras opiniões dos candidatos se a mídia apenas puder divulgar uns poucos pontos de vista? Os Direitos Fundamentais constituem, portanto, a espinha dorsal do constitucionalismo moderno e devem ser efetivados em um Estado que se digne democrático, sendo os direitos à liberdade de expressão e associação apenas alguns deles. O Estado de Direito, onde o Direito – a Lei – ordena a atividade política e governamental pode ser entendido em oposição ao estado arbitrário, onde regras são criadas por governantes sem qualquer coerência com regras anteriores e sem qualquer garantia quanto a superveniência de regras aleatórias. A Democracia só funciona quando todos tem a concreção dos Direitos Fundamentais. Um governante eleito de maneira democrática e legítima, em um ambiente assegurador dos direitos fundamentais dos eleitores, não pode continuar sendo considerado verdadeiramente democrático se começar a criar regras que o coloquem acima do poder judiciário, ou que o perpetuem no poder, ou que beneficiem esta ou aquela igreja ou agremiação de sua preferência. É preciso haver respeito por certas regras previamente estabelecidas e que não podem ser alteradas. A Democracia não poderá ser o nome do jogo onde a regra é assegurar a liberdade de uma pessoa

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

para governar, em detrimento das liberdades de todos os governados. Tendo a República brasileira (1988) sido constituída como um Estado Democrático de Direito, o Estado e sua legitimidade se assentam na asseguração da dignidade das pessoas que constituem sua sociedade. O princípio da dignidade da pessoa humana aparece de forma expressa logo no primeiro artigo da Carta Magna vigente, fazendo parte do sentimento constitucional reinante. Deste princípio, que fundamenta a República, decorrem os direitos fundamentais que devem ser assegurados por ela. Em suma, a dignidade da pessoa humana é o vetor pelo qual a interpretação do texto constitucional deve se orientar. A democracia é um desdobramento esperado deste princípio. O direito do indivíduo escolher quem o governa pressupõe um valor inerente à este cidadão. Este valor, a dignidade, pode ser entendido como o direito da pessoa de não ter sua vida instrumentalizada pelo desejo alheio. Digno é o tratamento que respeita a individualidade, a liberdade e a independência da pessoa, e é o que torna a democracia possível e necessária. 2.1 Reflexões sobre o Direito Fundamental à Liberdade de Consciência e de Crença Além dos direitos fundamentais essenciais a um Estado Democrático de Direito citados anteriormente, como liberdade de expressão, de imprensa e de associação, muitos outros existem para propiciar uma existência digna aos seres humanos, ao menos no que tange à relação destes seres com o seu soberano, o Estado. Historiadores gerais e alguns doutrinadores situam a quebra do monopólio que a Igreja Católica detinha sobre a unidade da cristandade, simultaneamente ao momento em que se questionava o absolutismo monárquico sobre o Estado, como sendo a origem da pressão social pela tolerância religiosa. Alguns povos passaram a demandar respeito por crenças diferentes, ao mesmo tempo em que lutavam para que o Estado não os obrigasse a seguir um credo específico. Canotilho (2002) ressalta que, a este tempo, se percebia mais a ideia da tolerância à diversidade religiosa do que a liberdade de religião e crença como direito inalienável do homem na forma em que aparece nas constituições contemporâneas. Para alguns, a liberdade religiosa foi o primeiro direito humano universal e fundamental, e como tal reconhecido na Declaração de Direitos de Virgínia (Jellinek, 2003). Elaborada um mês antes da Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Declaração de Direitos tinha clara influência iluminista e visava positivar direitos naturais do homem, principalmente na relação deste com o Estado, para proteger o cidadão e suas liberdades de um ‘governo inadequado’. O que usualmente é referido como direito à liberdade religiosa se divide em direito à liberdade de consciência e direito à liberdade de crença, que têm dimensões autônomas. No entendimento de Konrad Hesse (1993, apud Sarlet, 2013), o ideal seria considerar a liberdade de crença e confissão religiosa e ideológica como sendo uma manifestação do direito fundamental da liberdade de consciência. Tal direito não se limitaria a garantir a crença, algo pessoal e de ‘foro interno’, mas também a exteriorização de tais convicções, através de atos fundados em convicções ideológicas, religiosas ou não. Na classificação de Jose Afonso (2008), os direitos à liberdade de consciência e crença são agrupados com o direito à liberdade de expressão. É a possibilidade de se expressar pensamentos que pavimenta a via através da qual a liberdade de escolha dentre crenças e convicções será exercida. Sem livre circulação de pensamentos e informações e sem opções, não há escolha possível e portanto não haveria liberdade. Não há liberdade para escolher se morreremos ou não, na maioria das vezes não há liberdade para escolher nem como morreremos.

197

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A morte é condição inerente à vida. Entretanto, quando se trata de perspectivas por meio das quais se encara e se interpreta a realidade, o sujeito tem, internamente, uma liberdade quase absoluta, inclusive para acreditar que a vida não acabará no momento de sua morte. Mundo afora, a liberdade de consciência e de crença foi positivada de diversas maneiras. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, pode-se ler em seu Art. XVIII que “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; (...)”, garantido o direito de manifestar suas convicções, podendo inclusive mudar de ideia (ONU, 1948). Alguns detalhes interessantes foram acrescidos pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966. Em seu Art. 18 foi introduzida a proteção à liberdade de consciência contra medidas coercitivas. Em contrapartida, trouxe a expressa previsão de limitação à esta liberdade nos casos em que, além de previsão legal, são necessárias restrições “para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas, ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.” Outra novidade é a garantia de que os pais (e não os ‘países’, como divulgado no website do Palácio do Planalto – Decreto 592, 06/06/1992) terão liberdade para educar seus filhos de acordo com suas convicções morais e religiosas (ONU 1966; Brasil, 1992). As previsões do Pacto Internacional de 1966 acerca da liberdade de consciência e religião foram integralmente ratificadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São Jose da Costa Rica), em seu Art. 12, cujas mudanças em relação ao diploma anterior são meramente redacionais (OEA,1969). Uma proteção curiosa aparece nas Constituições dos países ibéricos, que garantem ao cidadãos o direito de não serem obrigados a declararem suas crenças, religiosas ou não, vide Constituição da República Portuguesa de 1976, Art. 41.º § 3º e Constituição espanhola de 1978, Art. 16, § 2º. (Portugal 1976; Espanha, 1978). 2.2 Reflexões sobre a Liberdade de Consciência e de Crença no Brasil No Brasil, a liberdade religiosa passou a ser garantida na Constituição Imperial de 1824. A Carta não faz referência à liberdade de consciência, mas traz, já em seu Art. 5º, a previsão de que “Todas as outras Religiões [que não a católica] serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo.” e garante a inviolabilidade de direitos aos “Cidadãos Brazileiros”, “por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica”. No entanto, quem não fosse católico não poderia ser eleito Deputado (Art. 95, III), e teria que jurar em falso para assumir os cargos de Conselheiro do Estado (Art. 141) ou se desejasse suceder o Imperador (Art. 103 e 106) (Brasil, 1824). A Constituição de 1891 inaugura a era republicana vedando ao Estado “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (Art. 11, nº 2), bem como garante que os indivíduos de todas as confissões religiosas possam exercer seus cultos livre e publicamente (Art. 72, § 3º). Em matéria de liberdade de consciência, especificamente no que tange a questão da escusa de consciência, a primeira Constituição republicana estabelece a perda de todos os direitos políticos aos que alegarem motivo de crença religiosa para “se isentarem de qualquer ônus que as leis da República imponham aos cidadãos” (Art. 72, § 29) (Brasil, 1891). O début da liberdade de consciência no constitucionalismo nacional de maneira expressa aconteceu na Constituição de 1934, em seu Art. 113, nº 5. O qual assegurava a inviolabilidade desta liberdade, desde que não contraviesse “à ordem pública e aos bons costumes” (Brasil 1934). Inalteradas as liberdades religiosas desde 1891, a

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Constituição de 1937 não menciona a liberdade de consciência, que reaparece nas Constituições de 1946 e 1967 nas mesmas linhas da previsão constitucional de 1934 (Brasil, 1937, 1946 e 1967). Para a Constituição atual, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”. O exercício de cultos religiosos é livre e a proteção aos locais de culto e suas liturgias dar-se-á na forma da lei (CF/88, Art. 5º, VI). Outra inovação é a garantia, nos termos da lei, à prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (Art. 5º, VII). Quanto à escusa de consciência, a Carta Magna de 1988 abandonou sua aceitação jurídica para casos que não ofendessem a ordem pública ou os bons costumes, passando agora a estabelecer a violação da liberdade de consciência quando esta for invocada para “eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (Art. 5º, VIII; Art. 143, § 1º). A exemplo dos ordenamentos pretéritos, a partir de 1891, o Art. 19, I da CF/88 também veda ao Estado estabelecer, subvencionar ou embaraçar o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas. A novidade aqui é que se passou a prever também a vedação de “relações de dependência ou aliança” por parte do Estado com cultos, religiões ou seus representantes, exceto para colaboração no interesse público, na forma da lei. 3 TEÍSMO, ATEÍSMO, AGNOSTICISMO E O ANTITEÍSMO Crer na existência ou na inexistência de divindades, ou ainda duvidar dessas crenças é, em síntese, a diferença entre os teístas, os ateístas e os agnósticos. Neste trabalho consideraremos que teístas são aqueles que acreditam na existência de deuses (Ferreira, 1988); ateístas são os que que acreditam que deuses não existem (MerriamWebster, 2015); e os agnósticos, a seu turno, quem considera a existência (ou não) de deuses algo incognoscível ao entendimento humano (Houaiss, 2009). Embora seja possível oscilar entre a crença e a dúvida ao longo de uma vida, não se pode manter convicções ambíguas simultaneamente, ao menos não sem um custo para a saúde mental do sujeito. Mas, independentemente do adjetivo com o qual o indivíduo se identifique, ele sempre poderá ser um antiteísta. O antiteísmo é a oposição ativa à crenças teístas (Dinah, 2009). É relativamente fácil reconhecer uma pessoa ateísta e ao mesmo tempo antiteísta. Em comunidades digitais, os assim chamados neo-ateus, ou ateus militantes, usam a Internet para compartilhar ‘memes’ antiteístas, na forma de ácidas sátiras às crenças e costumes religiosos. Os agnósticos, ou seja, aqueles que não acreditam que os seres humanos sejam capazes de responder honestamente a respeito da existência ou não de um ou mais deuses, dificilmente se quedam paralisados diante de procuradores auto- constituídos dos desígnios divinos na Terra. Especialmente quando estes procuradores tentam impor suas perspectivas como sendo a pura vontade dessa ou daquela divindade. Quando atacam a ‘legitimidade’ dos seus ‘instrumentos de mandato’, os agnósticos adotam assim uma postura antiteísta. Os teístas praticam seu antiteísmo alvejando crenças alheias. Os fiéis de uma crença que atacam locais de cultos, imagens e símbolos relacionados a fés diferentes das suas são antiteístas. Para fins estatísticos, muitas vezes alguns destes rótulos são fundidos em um só grupo demográfico. Os chamados não-religiosos são o conjunto de ateus, agnósticos e pessoas que crêem na existência de um poder universal superior mas não aceitam as respostas prontas de crenças institucionalizadas. Segundo o Pew Research Center (2012), uma em cada seis pessoas no mundo se identifica como não religiosa, formando a maioria da população em países tão diversos quanto a República Tcheca, China e Japão. No Brasil, as pesquisas de quantificação do grupo de não-re-

198

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ligiosos oferece dados tão distoantes que sua interpretação exige ponderamento. A depender da pesquisa, os resultados apontam que algo entre 7,9 e 18% da população brasileira se identifica como não seguidora de qualquer religião. Segundo dados do censo realizado pelo IBGE 2010 (apud Agence France-Presse, 2013), o grupo dos não -religiosos cresceu de 0.8% da população na década de 70 do último século, para 8% no ano daquele recenseamento. Os resultados de tais pesquisas não são mais esclarecedores quando se busca quantificar o número de ateístas e agnósticos em nossa sociedade. As figuras vão desde 0.39% da população se identificando como atéia/agnóstica, segundo o censo IBGE de 2010 até 2% de ateus convictos segundo a Gallup Poll (apud Noak, 2014). Os números destoam ainda mais quando se considera a faixa etária dos respondentes. Uma pesquisa realizada pela PUC-RS (2015) apontou que, entre jovens com idade entre 18 e 34 anos, 19,3% são ateístas. O grupo formado por ateístas, agnósticos e pessoas que creem em divindades mas não seguem religiões contam 32,14% dos jovens brasileiros, aproximadamente um terço das pessoas nesta faixa etária, sendo que os ateístas são o maior grupo nas regiões Sul e Sudeste, quando a amostra é dividida em adeptos do agnosticismo, ateísmo, catolicismo, espiritismo, evangelismo e daqueles que tem fé sem religião. 4 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA Enquanto alguns países cobram um imposto extra e compulsório sobre a renda da população que se declara fiel a alguma religião, destinando a receita obtida para as igrejas, o constituinte brasileiro optou por dar imunidade às igrejas do pagamento de impostos. Alemanha, Austria, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Itália, Suécia e algumas partes da Suíça são alguns exemplos de Estados que tributam aqueles que se declaram religiosos (Church, 2015). Na Alemanha existe, desde a Constituição de Weimar, em seu Art. 137 (Weimar, 2015), que posteriormente foi revigorado pela Lei Fundamental de 1949, em seu Art. 140 (Alemanha, 1949), a previsão que assegurava às associações religiosas legalmente constituídas o direito de impor uma taxação sobre seus congregados. A Constituição brasileira de 1988, a seu turno, proíbe que qualquer ente de direito público interno (Art. 150), institua impostos (inciso IV) sobre “templos de qualquer culto” (alínea b). Segundo defendeu o Ministro Gilmar Mendes ao redigir o Acórdão do RE 325.822-2 de 2002, esta proteção tem como vetor interpretativo o parágrafo 4º do mesmo Art. 150. A imunidade tributária de que gozam os templos compreendem o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais destas entidades. Os doutrinadores que abordam esta questão ensinam que a imunidade tributária de que gozam estes templos foi a forma encontrada pelo constituinte para impedir que o Estado crie embaraços ao seu funcionamento e, consequentemente, à liberdade de religião. Esta visão dos juristas encontra fundamento óbvio numa interpretação, talvez um tanto seletiva, do artigo 19, I da nossa constituição. Num mesmo predicado, o constituinte vedou que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios embaracem o funcionamento dos cultos ou igrejas, e portanto, lhes tributem (vide Art. 150, IV, b). Se, como oposto de ‘embaraçar’, couber a expressão ‘incentivar’, então a justificativa da imunidade tributária poderá não parecer tão evidente à luz de outras regras constitucionais. Quando a CF/88 comanda aqueles mesmos entes públicos a incentivarem uma atividade tributada, como o turismo (Art. 180), ou a incentivarem o desenvolvimento do mercado interno (Art. 219), às custas de uma ‘tributação’ de 35,7% de tudo o que este mercado produz, fica a impressão de que o Art. 19 é uma escusa pouco criativa e nada laboriosa para defesa da imunidade tributária que tanto ‘embaraçaria’

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

as atividades tidas como religiosas. Levando-se a cabo esta interpretação suscitada por nomes como Gilmar Mendes (2012) e Pedro Lenza (2014), a Constituição consideraria que criar embaraços ao tributar serviços de saúde, educação, et cetera, seja aceitável. Esta vida, que todos somos capazes de concordar a respeito de sua existência e importância, a vida nesta Terra, seria então menos importante do que a ‘vida’ pós morte, pois o culto à esta última é merecedor de proteções de que não usufruem o ‘culto’ à primeira. O direito dos cidadãos salvarem seus corpos, sua saúde e suas mentes é secundário ante o direito de salvarem o que crêem haver além da jurisdição da Constituição da República Federativa do Brasil. De tal feita, templos, mansões, automóveis de luxo, aeronaves, a renda e os serviços “essenciais de tais entidades [de cariz religioso]” são imunes à tributação (STF, Pleno, RE 578.562, julgado em 25/05/2008; Súmula 724 STF). O que viria a ser ‘essencial’ é possivelmente um dos critérios mais subjetivos quando se trata de uma religião. Seria essencial propiciar uma vida nababesca aos clérigos apóstolos da teologia da prosperidade, tanto quanto seria essencial que os pregadores da teologia da libertação gastassem todas suas receitas melhorando a vida terrena de seus fiéis (ou não fiéis). Mendes (2012) ainda distingue ‘culto religioso’, que gozam de proteção contra tributação, de seitas “que não tenham natureza religiosa” e portanto não tem imunidade tributária. O doutrinador cita critérios objetivos para distinguir uma religião de uma seita. Para conceituar uma religião seria necessário considerar a presença da crença em um ser divino que, quando adorado de maneira organizada através de rituais e de orações, garantiria uma ‘vida’ após a morte, tudo isso segundo o que se afirma num ‘texto sagrado’ (Garvey e Schauer, 1996, apud Mendes, 2012). Ausente qualquer destes critérios, o Estado deverá tributar a organização em tudo o que for cabível. É interessante ressaltar que, segundo os critérios citados pelo Ministro, não importa em absoluto o papel de uma religião na sociedade. As obras de caridade, de educação, de suporte psicológico, de entrosamento e fortalecimento da coesão do tecido social tem então a mesma garantia à proteção da liberdade e imunidade tributária que a discriminação, curandeirismo, disseminação de discursos de ódio, perseguição de minorias e estelionato. Importa ainda ressaltar que uma definição de religião, como a apresentada por Mendes (2012), é considerada ‘utópica’ por outros pesquisadores, que defendem não caber em um Estado democrático e pluralista a pretensão de definir um conceito de religião capaz de encompassar toda a diversidade de credos de uma sociedade (Soriano, 2013) De fato, a imunidade tributária ainda é garantida, apesar do que se possa argumentar a respeito do cabimento do uso do Art. 19 para sua justificativa. Uma última ‘pá de cal’ para esta escusa é, ironicamente, o próprio Art. 19, quando estabelece que os entes de direito público interno não subvencionarão cultos religiosos ou igrejas. Parece escapar aos doutrinadores que pendurar símbolos relacionados à uma fé específica nas salas de Tribunais, Assembléias Legislativas e até do Ministério Público, é subvencionar uma religião. Imprimir dinheiro com um mandamento de louvor a uma divindade é subvencionar um culto. Um mesmo artigo então pode servir de anteparo ao que convém e, concomitantemente, ser completamente ignorado no que não seja tão conveniente assim. 5 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A TEORIA DA PONDERAÇÃO Conflitos entre normas constitucionais não são novidade para a doutrina jurídica. Muitas discussões já foram travadas nas academias e algumas soluções para estes impasses já foram propostas, aplica-

199

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


das e aperfeiçoadas ao longo dos anos. Na situação que se levanta neste trabalho, pode-se vislumbrar algumas das normas constitucionais que conflitam entre si. Por exemplo, quando o Estado está proibido de se aliar a um culto religioso ou igreja (CF/88, Art. 19, I), ou quando prevê a liberdade inviolável de seus cidadãos para formarem suas convicções, religiosas ou não (CF/88, Art. 5º, VI), tais normas não conflitam no texto constitucional, mas em situações fáticas o cenário muda. Neste ponto, quando se refere ao Estado, deve-se ter em mente não só as normas que o constituem, mas também, as pessoas que as praticam (ou não) e forçam a sociedade a praticá-las. É fundamental separar este joio do trigo para se poder visualizar como um grupo de pessoas pode, no uso de atribuições públicas, se utilizar do Estado para reproduzir suas convicções próprias, a despeito das normas que regem a própria existência daquele Estado. Com o mero propósito ilustrativo, pede-se que imagine um grupo de pessoas que usam sua posição política para imprimir mensagens religiosas no dinheiro, para ornar prédios públicos com imagens de culto, para criar regras particularmente omissas quanto a regulação do ensino religioso nas escolas e até para estender a imunidade tributária dada às igrejas a um número duvidoso de bens e atividades. É provável que as condutas desse tal grupo gerassem um conflito sob um ordenamento jurídico com as previsões da CF/88 Art. 5º,IV e Art. 19. Se a todos os cidadãos é assegurada a liberdade de crença e ao Estado se veda este tipo de subvenção, tais atos estatais não poderiam ser tidos como conformes. A mais acertada doutrina entende não ser possível preterir um direito fundamental em detrimento de outro. Para solucionar os conflitos entre preceitos constitucionais, são utilizados o princípio da proporcionalidade e a teoria da ponderação. A aplicação de um dos direitos colidentes precisa ser flexibilizada em um dado caso concreto. Não fosse assim, alguns direitos fundamentais se tornariam absolutos em relação aos demais, enquanto outros se tornariam meramente circunstanciais. Tomemos o caso em que o Ministro da Fazenda decide que as cédulas do Real devem passar a conter a expressão ‘Deus seja louvado’. Seria este o exercício pleno da liberdade religiosa do Ministro? Seria uma diminuição da liberdade religiosa de todos aqueles que não acreditam no Deus das tradições abraâmicas? Ou seria o mau uso da máquina pública para propagandear uma crença compartilhada por apenas uma parte da sociedade? Em decorrência do princípio da Unicidade, segundo o qual a Constituição forma um todo único em que as normas abarcadas não mantém uma relação hierárquica umas com as outras, fez-se necessário desenvolver um mecanismo que solucionasse os conflitos decorrentes das aplicações destas normas. Ao contrário das regras, que podem ou não serem aplicadas ao caso concreto, os princípios são inafastáveis. Quando o conflito se origina da aplicação de um princípio constitucional, os tribunais tem aplicado o princípio da proporcionalidade, segundo o qual o Estado-juiz deverá ponderar a aplicação dos princípios conflitantes, de tal maneira que nenhum seja completamente afastado e todos os direitos possam ter sua máxima proteção assegurada (Mendes, 2012). A aplicação da proporcionalidade exige a observância da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação), nesta ordem (Fernandes, 2014). Por adequação, a doutrina é unânime no entendimento que o meio escolhido para se assegurar o fim é o mais adequado. No conflito entre a liberdade de alguém manifestar sua crença em um meio tal que exclui todas as outras crenças e não crenças, a adequação avaliará qual o meio está sendo utilizado nesta manifestação. Imprimir

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

mensagens de louvor religioso nas cédulas de dinheiro é o meio mais adequado para se assegurar a liberdade de crença e de não crença de uma sociedade? Para se julgar a necessidade, faz-se necessário avaliar a adequação de outros meios possíveis, sempre que o meio escolhido restringir outro direito fundamental. No caso exemplificado das notas de Real, o direito fundamental preterido é a própria liberdade de crença da parcela minoritária da população. O Estado que se prostra à um culto é, para dizer o mínimo, suspeito quando se trata de assegurar a liberdade dos demais cultos. A expressão de louvor a uma divindade não afastará a inflação daquela moeda, servirá então apenas para expor poderio político de um grupo. Se o Estado não tem mecanismos de auto-controle suficiente para ser neutro em seus próprios atos, em matéria de crença, a liberdade de crença do povo perde sua única defesa. A necessidade, dentro da proporcionalidade, demanda que o juiz avalie se, o meio escolhido é, entre os meios possíveis, o que menos fere o princípio contraposto. A ponderação virá então num terceiro momento, avaliando se o princípio protegido é suficientemente importante para justificar a lesão ao outro princípio preterido (Fernandes, 2014). Ao favorecer certas crenças, o Estado acaba por violar a própria liberdade de crença dos que não compartilham daquela perspectiva favorecida. Assegurar que somente alguns gozem do direito de expor suas simbologias e pretenções nos espaços do Estado é preterir o direito de outros que crêem em algo diverso do que que está sendo promovido. Agindo de tal maneira, o Estado descumpre seu compromisso de assegurar as liberdades constitucionais de todos, sem distinção de qualquer natureza. 6 CONCLUSÃO Como vimos até aqui, entre a liberdade que se pretende na Constituição e a liberdade que se permite na prática atual existe um vácuo de incongruências, um ranço de preconceitos, um receio de se apontar abusos e de se reconhecer privilégios. O tratamento diferenciado que é garantido às religiões organizadas através da proteção contra interferência estatal e imunidade tributária para suas atividades finais, junto à tolerância com a qual o Estado recebe interferências de crenças majoritárias da sociedade, tolhem o direito ao tratamento igualitário e à liberdade de crença dos demais integrantes da sociedade. A história que nos trouxe até aqui é, sem sombra de dúvida, importantíssima. Mas é preciso mirar o futuro onde queremos chegar com maior gana do que nosso apego ao passado. A sociedade brasileira tem mais merecimento de, e terá mais mérito em, vencer seus desafios históricos do que em perpetuar tradições caducas. Esta geração, herdeira que é da luta exitosa pela unicidade jurídica e política de um continente de variedades culturais, não pode se eximir de sua obrigação de manter coesa a comunidade que, bem ou mal, lhe emprestou uma identidade singular, reconhecida por diversos povos como sendo plural, amistosa e tolerante à diferença. Tais características são evidentes em nossa opção de tornar fundamentais direitos como a liberdade de consciência e crença. Mas tais direitos, e consequentemente nossa democracia, perecem na carência de efetividade. Quando o nosso próprio Estado se recusa a garantir um tratamento isonômico aos seus cidadãos, independentemente de quais crenças ou convicções seus governados venham a ter, o que talvez seja o maior legado de nossos antepassados é vergonhosamente ultrajado. Não que os regimes jurídicos que antecederam o atual Estado Democrático de Direito tenham feito muito para garantir e assegurar o respeito à diversidade. Na luta para a construção do Brasil muitos diver-

200

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


gentes foram impiedosamente massacrados. Mas é no hábito e na prática do povo que sobreviveu o que hoje nos torna únicos em um mundo cada dia mais polarizado, intolerante, beligerante e preconceituoso. O Direito, que antes podia não refletir a sinergia, mesmo que muitas vezes atritiva, entre portugueses, guaranis, congoleses, franceses, cassanjes, goitacazes, holandeses, et cetera ad nauseam, hoje deve tributo à nação construída por europeus, africanos, índios, asiáticos e árabes, com seus diferentes costumes, histórias, crenças e perspectivas. É a este Direito que se apela à defesa da liberdade pela coexistência da diferença de convicções de pensamento e de crenças, com um Estado neutro, que só tome partido na defesa da diversidade que nos é característica. Vale dizer que o Estado Democrático brasileiro ainda está em construção, uma vez que no momento, privilegia as crenças de uma parcela de sua população. Um pai-nosso rezado na Câmara dos Deputados não desperta grandes reações. E se uma voz contrária se levanta, é prontamente rechaçada e tachada de tolerante com as crenças e tradições do nosso país. Entretanto, uma manifestação de tradições religiosas afro-brasileiras, como um despacho de umbanda no Congresso Nacional, com direito a atabaques, farofa e galinha preta, seria suficiente para aterrorizar a quem está tão acostumado a ver seus privilégios assegurados que nunca parou para pensar que sua perspectiva da realidade não era a única, muito menos a exclusiva merecedora de ocupar os templos da nossa democracia. O comando para se louvar ao Deus das tradições abraâmicas, impresso em uma cédula monetária não é considerado abusivo. Ao menos não pelos mesmos cidadãos que se incomodariam de ler “Exu seja louvado”, ou “deuses não existem” em seu dinheiro. A diferença gráfica e semântica entre ‘democracia’ e ‘oclocracia’ é berrante demais para passar desapercebida pela sociedade e, principalmente, pelos seus membros remunerados para servirem aos nobres ideais democráticos que consideram um indivíduo humano um sujeito de alguns direitos e deveres, independentes do que pensam ou desejam seus concidadãos. A luta para sequestrar o Estado e torná-lo impositor e fiscal do cumprimento de preceitos de cunho religioso é compartilhada por muitos grupos, a exemplo do Estado Islâmico no Velho Mundo e da bancada evangélica no Congresso Nacional. E faz parte da democracia que os grupos sociais possam apresentar suas perspectivas, desde que não utilizem a violência (física ou verbal) como argumento. Mas antes de qualquer coisa, faz parte da democracia assegurar um núcleo duro de direitos fundamentais. Direitos estes que não podem ser desconsiderados, nem pela mais absoluta das maiorias. Quando os representantes do povo brasileiro, após duas décadas vivendo sob o regime militar, reuniram-se para elaborar uma Constituição que correspondesse às aspirações de um país que se abria para a democracia, instituiram um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade pluralista. E, talvez, por se definir (ou almejar ser) uma comunidade tão justa e fraterna, estará sob a proteção de Deus. O Estado não precisa ser omisso nas questões de crença. Ele deve atuar sempre que a relação entre as diversas perspectivas comecem a gerar tensões sociais. Mas sempre de maneira neutra, garantindo assim que os direitos constitucionais de todos estejam sendo assegurados. Assim, encerra-se esta breve análise da liberdade de consciência e crença à luz do ordenamento constitucional de 1988, com a impressão que existe um longo caminho a ser trilhado na separação entre a liberdade que os cidadãos têm para pensar, crer e cultuar e a ‘liberdade’ com a qual o Estado vem sendo tratado como veículo de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

algumas destas crenças. Ao se tornar mero propagador, ou palco para a divulgação de certas correntes de pensamento, o Estado acaba por desmerecer crenças e invalidar sentimentos religiosos distintos. Afastar a coisa pública da tomada de ‘partido’ nestas questões não resultará, absolutamente, na violação dos direitos de nenhum grupo social. Porém o contrário não é verdadeiro. Embora o princípio da proporcionalidade possa ser aplicado aos conflitos que desaguam no Poder Judiciário, é responsabilidade do Poder Executivo se submeter ao império da Lei, cuidando para que seus atos não sejam levados por paixões populistas que pouco contribuem na construção de uma sociedade justa e coerente. Concorrentemente, o Poder Legislativo tem obrigação de guardar respeito ao ordenamento que o instituiu como um de seus poderes essenciais. Um ordenamento que é, pode se dizer, muito bem balizado em princípios a muito consagrados como bons referenciais para uma sociedade capaz de agregar diferenças em torno do bem comum. REFERÊNCIAS ALEMANHA. Basic Law for the Federal Republic of Germany. Bonn am Rhein, 1949. Tradução para o inglês oferecida pelo Deutcher Bundestag, em: <https://www.bundestag.de/blob/284870/ce0d03414872b427e57fccb703634dcd/basic_law-data.pdf> Acesso em 24/11/2015 ANDRADA, Deputado Federal Bonifácio de. Relatório da Comissão Especial detinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição nº 99 de 2011. Sala da Comissão na Câmara dos Deputados, Brasília: 2015. Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1405951&fi lename=Tramitacao-PEC+99/2011> Acesso em 24/11/2015 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao34.htm> Acesso em:24/11/2915 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao91.htm> Acesso em: 24/11/2015 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasilia, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado. htm> acesso em 24/11/2015 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasilia, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67. htm> Acesso em 24/11/2015 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46. htm> Acesso em 24/11/2915 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37. htm> Acesso em: 24/11/2015 BRASIL. Constituição Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24. htm> Acesso em: 24/11/2015 BRASIL. Decreto nº 592 – Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Politicos. Brasilia, 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm> Acesso em 24/11/2015 CAMPOS, Deputado Federal João. Proposta de Emenda à Constituição nº 99, de 2011. Sala de Sessões da Câmara dos Deputados, Brasília: 2011. Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=931483&fil ename=Tramitacao-PEC+99/2011> Acesso em 24/11/2015

201

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Edição. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 2002.

Costa Rica, 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf> Acesso em: 24/11/2015

CARRERA, Sergio et al. The Triangular Relationship Between Fundamental Rights, Democracy and Rule of Law in the EU – Towards an EU Copenhagen Mechanism. Bruxelas: Parlamento Europeu, outubro de 2013. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2013/493031/ IPOL- LIBE_ET(2013)493031_EN.pdf> Acesso em: 24/11/2014.

ONU, Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH. Resoluçao 217 A da Assembléia Geral. Paris, 1948. Disponível em:<http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/> Acesso em 24/11/2015

DINAH, Birch. The Oxford Companion to English Literature, Oxford Reference - Antitheism. Oxford University Press, 2009. Disponível em: <http://www. oxfordreference.com/view/10.1093/acref/9780199264797.001.0001/acref9780199264797-e-112> Acesso em 24/11/2009 ESPANHA. La Constitución española. Madri, 1978. Disponível em:<http://www. congreso.es/consti/constitucion/indice/index.htm> Acesso em 24/11/2015 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 6ª Edição, rev. amp. e atual. Editora JusPodivm, 2014 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1988. GALVÃO, André. Evangélicos tentam invadir terreiro em Olinda. In: Jornal do Commércio de Pernambuco, Recife: 18/07/2012. Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/noticia/2012/07/18/evangelicos-tentam- invadir-terreiro-em-olinda-49482.php> Acesso em 24/11/2015 HABERMAS, Jürgen. A Constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001. HOUAISS, Instituto Antônio. Houaiss Eletrônico. Editora Objetiva Ltda., 2009 JELLINEK, Georg. La Declaración de Derechos del Hombre y del Ciudadano. 2ª edição. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. Disponível em: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=976> Acesso em: 24/11/2015 LAKATOS, Eva Marina; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do Trabalho Científico. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 1991 LAMEIRA, Gustavo. Evangélico invade igreja católica e destrói imagens de santos e anjos. In: O Tempo, Contagem: 16/07/2014. Disponível em: <http://www.otempo.com.br/cidades/evang%C3%A9lico-invade-igreja-cat%C3%B3lica- e-destr%C3%B3i-imagens-de-santos-e-anjos-1.884366> Acesso em 24/11/2015 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7ª edição, rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. MERRIAM-WEBSTER. On-line Dictionary – atheist. Springfield, Massachusetts, Estados Unidos da América, 2015. Disponível em: <http://www.merriam- webster. com/dictionary/atheist> Acesso em 24/11/2015 MONKEN, Mario Hugo. Tráfico é acusado de vetar umbanda no Rio. In: Folha de São Paulo, São Paulo: 04 de fevereiro de 2006. Disponível em:<http://www1.folha. uol.com.br/fsp/cotidian/ff0402200614.htm> Acesso em: 24/11/2015

ONU, Organização das Nações Unidas. Pacto Internacional dos Direiros Civis e Politicos. Nova York, 1966. Disponível em: <https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-4&chapter=4&lang=en> Acesso em 24/11/2015 PEW Research Center. Religious Unaffiliated, The Global Religious Landscape, 2012. Disponível em: <http://www.pewforum.org/2012/12/18/global-religiouslandscape-unaffiliated/> Acesso em: 24/11/2015 PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Lisboa, 1976. Disponível em:<http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx> Acesso em: 24/11/2015 PRESSE, Agence France. Os ateus no Brasil e seu medo de sair do armário. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/06/ os- ateus-no-brasil-e-seu-medo-de-sair-do-armario.html> Acesso em: 24/11/2015 PUC-RS, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande so Sul. Projeto 18/24: Ideias e Aspirações do Jovem Brasileiro sobre Conceitos de Família. Porto Alegre, 2015. Disponível em: <http://portal.eusoufamecos.net//wp-content/uploads/2015/11/18-34_Familia_Sintetico_20151908.pdf> Acesso em: 24/11/2015 QUINTÃO, Deputado Federal Leonardo. Projeto de Lei 1219, de 2015. Brasília: 2015. Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E597C7761856F33CED716391AB4E9D9C.proposicoesWeb2?codteor=1323395&filename=Tra mitacao-PL+1219/2015> Acesso em 24/11/2015 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2008. SORIANO, Aldir Guedes. Democracia liberal e o direito à liberdade religiosa. 2013. Disponível em <http://www.iclrs.org/content/events/26/548.pdf> Acesso em 24/11/2015 WEIMAR constitution. In: Constitution of the German Reich no Wikisource em ingles, 2015. Disponível em: <https://en.wikisource.org/wiki/Weimar_constitution> Acesso em 24/11/201

Notas de fim 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª edição, São Paulo: Editora Atlas S.A, 2009. NASCIMENTO, Gilberto. A volta de Von Helde: O bispo que chutou a santa. In: Último Segundo, São Paulo: 20/08/2014. Diponível em:<http://ultimosegundo. ig.com.br/politica/2014-08-20/a-volta-de-von-helde-o-bispo-que- chutou-a-santa. html> Acesso em 24/11/2015 NOAK, Rick. Map: These are the world’s least religious countries. The Whashington Post, 2014. Disponível em:<https://www.washingtonpost.com/blogs/worldviews/files/2015/04/WIN.GALLUP- INTERNATIONAL-RELIGIOUSITY-INDEX.pdf> Acesso em 24/11/2015 OEA, Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica. São José da Costa Rica,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

202

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


USUCAPIÃO ESPECIAL DE BENS PÚBLICOS DOMINICAIS: uma possibilidade à luz do Estado Democrático de Direito Laura Lorena Stephanie Gomides Fernandes1 Núbia Elizabette de Jesus Paula2 RESUMO: O estudo aborda a possibilidade da usucapião especial de bem público dominical, levando-se em consideração o paradigma do Estado Democrático de Direito, sobretudo à justiça social. Nesse viés, realiza-se breve progressão histórico- constitucional, conforme a linha teórico-evolutiva da Constituição, bem como dos precedentes da súmula 340 do STF. Assim, no auge de um sistema social-democrático, analisa-se o direito à propriedade, condicionado à função social da posse; uma vez que a posse atribui utilidade à propriedade. Com isso, os imóveis públicos desafetados podem desempenhar função social pela posse de outrem. Consequentemente, deve ser viabilizada a aquisição deste imóvel pela usucapião, haja vista a supremacia do instituto possessório em detrimento do direito de propriedade. Ademais, diante dos rotineiros problemas sociais no país, defende-se a usucapião especial dos bens públicos dominicais como forma de efetivar a justiça social consagrada no texto constitucional, materializando o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana. Para tanto, faz-se prudente a instituição de emenda ao inciso XXIII do art. 5º da Constituição da República. PALAVRAS-CHAVE: Função social da posse; usucapião especial; bem público dominical; Estado Social Democrático; direito à moradia. ABSTRACT: The study discusses the possibility of adverse possession of unaffected property public, taking into account the paradigm of democratic rule of law, and social justice. So it holds brief constitutional progression as well as the previous 340 docket of the Supreme Court. So in a social-democratic system, analyzes the right to property, conditioning the social function of ownership; since the utility assigns ownership to property. As a result, unaffected public real estate can play social function of another man’s possession. It must therefore be made possible the acquisition of property by adverse possession, given the supremacy of possessory institute at the expense of property rights. Furthermore, once the routine social problems in the country, called for the special adverse possession of unaffected public goods as a way to effect social justice enshrined in the Constitution, materializing the right to housing and the dignity of the human person. Therefore, it is prudent to amendment institution to item XXIII of article 5th of the Constitution. KEYWORDS: Social function of ownership; adverse possession; public property unaffected; Social Democratic State; right to housing. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Evolução Constitucional da usucapião de bem público; 3 Usucapião como instituto; 3.1 Conceito; 3.2 Requisitos e modalidades; 3.3 Função social da propriedade vs. Função social da posse; 4 Bens públicos como objeto de usucapião; 4.1 Bens públicos; 4.2 Descabimento; 4.3 Cabimento; 5 Emenda à Constituição; 6 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO Cotidianamente vislumbramos no Brasil a violação ao direito à moradia e, consequentemente, à dignidade da pessoa humana. Assim, em face de violações deste jaez, insurgem-se movimentos sociais que rogam por uma justiça distributiva, consubstanciada na distribuição dos imóveis de natureza privada e sem função social. Neste diapasão, observamos a possibilidade da desapropriação do particular, em detrimento da função social da posse exercida por outrem. Todavia, ao passo em que o Estado exige do particular a destinação social de sua propriedade, salta aos olhos a desídia em relação a inúmeros bens públicos sem imediata função social. Não se desconhece a expressa vedação à usucapião de bens públicos, mas, diante do panorama social atual e, principalmente, da Carta Magna, instrumento edificante do Estado Brasileiro como Democrático de Direito, vem a tona indagamentos acerca da origem de tal restrição e sua consonância com o ordenamento jurídico no qual está inserida. Assim, observa-se o Estado Democrático atual como fruto da incorporação dos direitos de primeira e segunda geração; motivo pelo qual o direito individual de propriedade deve atender a função social da posse, não da propriedade. Isto porque, conforme corroborado ao longo da obra, verifica-se que costumeiramente não se têm procedido a correta análise da função social da propriedade; uma vez que observa-se frequentemente

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

somente o final do processo, portanto, a “propriedade sem função social” e “com função social”; desconsiderando-se a essencialidade da posse, que nesse caso é o liame entre a função social e a propriedade. Vale destacar, que a função social da propriedade, principalmente no tocante ao instituto ad usucapionem, necessita de uma análise conjuntural, não interpretada friamente ao texto da lei, consoante é feito erroneamente, desencadeando imensuráveis prejuízos à sociedade. 2 EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL DA USUCAPIÃO DE BEM PÚBLICO Antes de adentrar no mérito da pesquisa, urge expor brevemente a evolução constitucional da usucapião de bem público na política estatal do Brasil, com vistas a sedimentar a vertente ideológica que será oportunamente defendida. Como é cediço, a primeira Constituição do Brasil instituiu o liberalismo no país e, assim como a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, garantia a proteção à propriedade e não fazia qualquer menção à usucapião de bem público. Em 1930 foi instituída no país política social por Getúlio Vargas. Entretanto, destaque-se que embora os direitos sociais sejam referenciados, o Estado brasileiro ainda pairava sob o regime liberal. Segundo José Afonso da Silva (2014, p. 84), “fora, enfim, um documento de

203

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo”. Nesse diapasão, promulga-se a Constituição da República de 1934, na qual fora instituída a usucapião pro labore e para moradia (art. 125), que foi mantida pela Carta Magna de 1937 (art. 148) e pela Constituição de 1946 (art. 156). Após a Emenda Constitucional nº. 10/1964 foi garantido aos posseiros e aos não proprietários de terras, o direito à aquisição da propriedade de solo público, desde que aqueles possuíssem a terra com moradia habitual e a tornassem produtiva para o labor. As Constituições da República Federativa do Brasil de 1967 e, após a Emenda Constitucional 01 de 1969, mantiveram-se silentes no tocante à usucapião. Destarte, em 1963 foi editada pelo Supremo Tribunal Federal a súmula 340, que prevê: “Desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Assim, com a omissão da Constituição Federal de 1967, e posterior emenda em 1969, foi banida do sistema jurídico pátrio a usucapião de bem público. Em que pese o Estado Social ter caminhado paulatinamente no Brasil, pode-se afirmar fidedignamente que após a promulgação da Constituição de 1988 o país não só rumou à democracia, como também ao Estado Social, fato este que foi corroborado pela EC nº. 26/2000, que instituiu o direito a moradia. Ademais, pela primeira vez foi condicionado no texto constitucional, o direito de propriedade à função social. Assim, “o patrimônio e a propriedade deixam de ser o centro gravitacional do Direito das Obrigações e do Direito das Coisas. Seu lugar ocupa o ser humano, enquanto pessoa, com direito à dignidade, à promoção espiritual, social e econômica.” (FIUZA, 2003, p. 28). A propósito, vale salientar que: “Quando o Estado (...), confere, no Estado Constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado Social.” (BONAVIDES, 2007, p. 186). Ademais, para Bonavides, “o Estado social da democracia distingue-se, em suma, do Estado social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua feição jurídicoconstitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade”. (2007, p. 204). Com isso despiciendo referir-se ao Estado Democrático como Estado Social Democrático, sob pena de recair em redundância, uma vez que este modelo estatal abarca os direitos do Estado Liberal e do Estado Social, além do sufrágio universal. Não obstante o exposto, no que pertine ao cerne do estudo, a CRFB vigente veda expressamente a usucapião de bem público, nos termos de seus artigos 191, parágrafo único e 183, §3º. Constituindo um retrocesso no direito pátrio, diante dos já explanados preceitos sociais positivados na CRFB.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

3 A USUCAPIÃO COMO INSTITUTO 3.1 Conceito Terminologia de origem latina, usucapião provém de usucapio, que possui como ramificações, segundo César Fiuza (2014), usu, que significa em seu sentido literal “pelo uso” e, capio, que significa captura. Assim, pode-se compreender a usucapião como “aquisição pelo uso”. Não obstante o exposto, esse instituto constitui-se como uma das formas de aquisição originária da propriedade, in casu, de bens imóveis. Nesse diapasão, há consolidação da propriedade em decorrência do exercício contínuo da posse em face do antigo proprietário, além de outros pressupostos legalmente estabelecidos, que podem variar consoante a modalidade de usucapião a ser aplicada no caso. Evidente que a posse é fato singular para a constituição do direito de usucapir, motivo pelo qual é imprescindível a priori conceituar esse instituto jurídico. Assim, necessário rememorar as duas teorias clássicas definidoras de posse. A Teoria Subjetiva é atribuída a Friedrich Karl Von Savigny, que em 1803 elaborou o Tratado da Posse, segundo o qual a posse seria o poder que a pessoa tem de dispor materialmente de uma coisa, o que caracteriza o corpus, com intenção de tê-la para si e defende-la contra a intervenção de outrem, animus. Destaque-se que a imprescindibilidade dessa teoria ressai da autonomia atribuída à posse, que até então era tida como dependente da propriedade; passando a figurar como instituto jurídico digno de tutela, “que decorre da necessidade de proteção a pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações jurídicas”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 53). Ainda, segundo Chaves de Farias e Rosenvald (2014, p. 53): “a posse seria um fato na origem e um direito nas consequências, pois confere ao possuidor a faculdade de invocar os interditos possessórios quando o estado de fato for objeto de violação, sem que isso implique qualquer ligação com o direito de propriedade e a pretensão dela emanada”. Contrapondo o entendimento veiculado por Savigny, Rudolf Von Ihering instituiu a Teoria Objetiva, segundo a qual a posse é considerada como mera exteriorização da propriedade, não se caracterizando um instituto autônomo. Nestes termos, para Ihering a posse era definida somente pelo corpus, uma vez que essa seria “reconhecível externamente por sua destinação econômica, independente de qualquer manifestação volitiva do possuidor, sendo suficiente que ele proceda em relação a coisa como se comportaria o proprietário em relação ao que é seu”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 54). Assim, para a Teoria Objetiva protegia-se a posse com o escopo de proteger a propriedade, mormente porque “é o interesse da realização da destinação econômica da propriedade que justifica a proteção à posse, pois em si mesma ela não teria qualquer valia. A posse só se converte em direito, em homenagem ao direito superior de propriedade”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 55). Resalve-se, o Código Civil adotou a Teoria Objetiva para definir a posse, consoante o art. 1.196, entretanto, no que toca à usucapião, aplica-se a Teoria Subjetiva de Savigny, haja vista o animus domini demandado por este instituto. Não obstante os conceitos exarados, a posse “em razão de fatos acidentais, toma tal ou qual aspecto, de que resultam as variedades de tratamento” (PEREIRA, p. 22, 2013), tornando imprescindível expor algumas de suas classificações. Com isso, a posse pode ser classificada como justa

204

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ou injusta. Caracteriza-se como injusta a posse clandestina, violenta ou precária (art. 1.200, Código Civil de 2002). Pode, ainda, a posse ser maculada pela má-fé, ou ser de boa-fé; no dizer de Caio Mário da Silva “considera-se de má-fé aquele que possui na consciência da ilegitimidade de seu direito. De boa-fé está aquele que tem a convicção de que procede na conformidade das normas”. (p. 24, 2013). Por último, a posse pode ser ad interdicta ou ad usucapionem; estas classificações visam à proteção da posse, sendo aquela realizada através dos interditos possessórios; enquanto esta protege a posse pela usucapião, podendo alterar o título de proprietário em virtude da tutela possessória. 3.2 Requisitos e modalidades No que permeia aos requisitos para a usucapião, pode-se dividí-los em pessoais, reais e formais, sendo que estes serão oportunamente abarcados nas modalidades de usucapião. Os requisitos pessoais são parcialmente despiciendos na usucapião de bem público, haja vista que pertinem à pessoa do possuidor e ao proprietário, remetendo-se a relação de parentesco e a capacidade civil dos envolvidos. Motivo pelo qual, sob a ótica da usucapião de bem público, basta a análise da capacidade civil do possuidor, que deve ser plena. Conforme exigido pelos requisitos reais, “somente os direitos reais que recaiam em coisas usucapíveis poderão ser obtidos por este modo de aquisição” (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 349); motivo pelo qual atualmente é improvável a perda da propriedade do Poder Público pela usucapião. Os requisitos formais são aqueles que se fazem presentes em todas as espécies de usucapião: o tempo, a posse mansa e pacífica e o animus domini. Dentre as modalidades de usucapião, vale mencionar a extraordinária, a ordinária e a especial. A usucapião extraordinária está positivada no art. 1.238 do CC/2002, do qual extrai-se: Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se -á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Assim, pode ser requerida por aquele que comprovadamente exerça posse sobre determinado imóvel, com o animus dominini, ou seja, com o objetivo de possuir a coisa como se esta lhe pertencesse, de modo manso, pacífico e contínuo, pelo prazo de 15 (quinze) anos; podendo este prazo ser reduzido a 10 (dez) anos, se o imóvel está sendo utilizado para moradia habitual do possuidor, ou para obras e serviços de caráter produtivo. Já a usucapião ordinária, demanda prazo menor para o exercício da posse, mas inova no pressuposto do justo título e da boa-fé. Destaque-se, o justo título é “um título que, em tese, apresenta-se como instrumento formalmente idôneo a transferir a propriedade, malgrado apresente algum defeito que impeça a sua aquisição” (DE FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 365); ao passo em que a boa-fé vai além do animus domini, uma vez que o possuidor tem a convicção de que o imóvel lhe pertence. Segundo Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2014, p. 371), “a boa-fé é o estado subjetivo de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ignorância do possuidor quanto ao vício ou obstáculo que impede a aquisição da coisa”. Essa modalidade de usucapião é regulamentada pelo art. 1.242 do Código Civil, que prevê: Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. A usucapião especial se subdivide em urbana e rural e é considerada como nítida demonstração da privilegiação da função social da posse, uma vez que diante da posse exercida pelo ocupante ocorre uma diminuição do prazo para seu requerimento. A usucapião especial urbana pode ser individual ou coletiva; é disciplinada pelo art. 1.240 do Código Civil, bem como pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), podendo ser requerida pelos legitimados do art. 12 do Estatuto da Cidade. Assim, a usucapião individual será concedida desde que não seja o usucapiante proprietário de outro imóvel no período aquisitivo e que a área urbana a ser usucapida se limite a duzentos e cinquenta metros quadrados, com posse exercida por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando o imóvel para sua moradia ou de sua família, consoante o art. 9º do Estatuto da Cidade. Destaque-se que não é possível o reconhecimento deste direito mais de uma vez; além de que deve restar suficientemente comprovado o caráter de consolidação da moradia, uma vez que conforme aduz a norma não basta o estabelecimento de moradia temporária. Noutro giro, a usucapião urbana coletiva é regulamentada pelo art. 10 do Estatuto da Cidade, do qual extrai-se: As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Todavia, no que pertine a usucapião rural, o art. 1.239 do Código Civil, prevê: Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Nestes termos, parte-se do mesmo pressuposto da usucapião urbana, ressalvada a área e a função social, que além de moradia é cabível o labor. 3.3 Função Social da Propriedade versus Função Social da Posse A priori importante expor, que função significa no seu sentido mais apropriado “cumprir algo ou desempenhar um dever, uma atividade” (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 264), que in casu está direcionado ao bem estar da coletividade.

205

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Noutro giro, ressalte-se que o conceito acima exposto guarda intrínseca relação com o Direito nos primórdios de um Estado Democrático de Direito, que é nada mais senão o Estado Social, que inova com a interpretação de um Direito humanizado, prezando a coletividade, com o escopo capital de garantir equidade, justiça, o bem -estar social e a fraternidade, como bem ilustra o preâmbulo da CRFB. Segundo Cicco e Gonzaga (2011, p. 130): “(...) o preâmbulo é o supremo paradigma para entender o espírito da Constituição, destinado a sanar qualquer dúvida sobre a intenção dos constituintes, contribuindo até para resolver antinomias entre artigos diferentes da mesma Constituição sendo este até mesmo superior a uma norma constitucional, pois como assevera Miguel Reale: “O jurista não pode prescindir de certas bases comuns para a compreensão do direito, sem que todo o destino do direito como realidade humana ficaria comprometido.”” A função social exerce sumária importância na Ciência Jurídica, mormente porque representa a verdadeira essência do Direito, atribuindo ao Estado (incluindo-se aí o Poder Legislativo) e ao particular o dever de pautar seus atos e exigir seus direitos à luz desse primado. Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias destacam que “ a função social é um princípio que opera um corte vertical em todo o sistema de direito privado. Ela se insere na própria estrutura de qualquer direito subjetivo para justificar a razão pela qual ele serve e qual papel desempenha”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 266). Nesta senda, consoante será elucidado tanto a função social da propriedade quanto a função social da posse são frutos do Estado Social e ambas possuem respaldo constitucional, muito embora apenas aquela esteja positivada. Nestes termos, a função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII) é condicionante ao direito individual de propriedade, visando os supracitados postulados do Estado Social, como a fraternidade e a equidade. Adentrando-se na função social da posse, vislumbra-se que sua previsão dá-se implicitamente, constituindo verdadeiro princípio constitucional; que é corroborado por leis ordinárias, notadamente o Estatuto da Cidade, da Terra e o Código Civil, com a regulamentação da usucapião, funcionando como “instrumento de desigualdades sociais e justiça distributiva” (CHAVES; ROSENVALD, 2014, p. 67). Isto porque o ordenamento jurídico não é conivente com a desídia dos proprietários, uma vez que possuem um dever para com a sociedade, haja vista que a propriedade está inserida em um universo coletivo. Entrementes, em que pese o Código Civil adotar como regra a Teoria Objetiva de Ihering; no que toca à usucapião, aplica-se a Teoria Subjetiva, mas vale destacar que a compreensão da posse vai muito além dos ideais defendidos por Savigny em 1803. Sob essa ótica, Savigny defendia a independência do instituto da posse, objetivando proteger a integridade do possuidor frente ao proprietário, não havendo qualquer menção explícita em relação à função social da posse, ou qualquer cunho social. A corroborar, eis o entendimento de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2014, p. 63): Savigny justificava a tutela possessória, em respeito à paz social e à negação à violência, pela interdição ao exercício arbitrário das próprias razões e tutela da pessoa do possuidor. Para o notável mestre, proteger-se-ia o possuidor por não se permitir a abrupta alteração de uma situação de fato social e economicamente consolidada, pela prática de ato ilícito em afronta a garantias fundamentais (art. 5º, XXXV e LIV, da CF).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Todavia, não se deve limitar a análise da posse na usucapião sob o enfoque retrógrado da Teoria Subjetiva, uma vez que diante da Norma Suprema, tal exame poderia suscitar inconstitucionalidades. Nesse diapasão, partindo da premissa de um Estado Democrático de Direito, revela-se cristalina a concepção sociológica da posse, que é capaz de concretizar os direitos sociais assegurados, na medida em que viabiliza a aquisição da propriedade pelo exercício da posse. A propósito: “(...) as teorias sociológicas da posse procuram demonstrar que a posse não é um apêndice da propriedade, ou a sua mera aparência e sombra. Muito pelo contrário, elas reinterpretam a posse de acordo com os valores sociais nela impregnados, como um poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida, mediante a utilização concreta da coisa. A posse deve ser considerada como fenômeno de relevante densidade social, com autonomia em relação à propriedade e aos direitos reais. Devemos descobrir na própria posse as razões para o seu reconhecimento”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 64). “(...) conceito de pessoa a que aludia Savigny em nada se parece com o que visualizamos na atualidade. Antes a pessoa era apenas o ser abstrato e neutralizado que ocupava um dos polos de uma relação jurídica patrimonial, centralizada na ideia da autonomia da vontade. Agora, a pessoa é o ser humano em seu contexto e suas circunstâncias, valorizando-se os atributos de sua personalidade e sua especial dignidade”. (DE FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 65). Assim, no que tange à usucapião a posse deve ter interpretada sociologicamente, consonante com o Estado Democrático de Direito. Noutro giro, merece destaque o fato de que a função social da posse possui tamanha amplitude que pode englobar a função social atribuída à propriedade. Isto porque, só é possível atribuir função social à propriedade pelo exercício da posse, ainda que esta seja desdobrada. Assim, a mera ausência de destinação social da propriedade apenas não enseja a tutela do direito de propriedade, não ocasionando a usucapião, que se dá antes de tudo, com o exercício da posse; que neste caso, possui função social e é capaz de atribuir esta característica à propriedade. Neste caso, a propriedade estará desempenhando função coletiva, mas levar-se-á em consideração a origem dessa função, que não provém do proprietário, mas do terceiro possuidor. Motivo pelo qual conclui-se que a função social da posse fomenta a justiça distributiva no Estado Social Democrático, através da usucapião, e é o alicerce da função social da propriedade. 4 BENS PÚBLICOS COMO OBJETO DA USUCAPIÃO 4.1 Bens Públicos 4.1.1 Definição e classificação

Conforme dicção do art. 98 do Código Civil de 2002, “são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. Não obstante a normatização conceitual desses bens, José dos Santos Carvalho Filho (2013, p. 1.157) define os bens públicos como: “(...) todos aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam às pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da Administração descentralizada, como

206

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


as autarquias, nestas incluindo-se as fundações de direito público e as associações públicas”. Nesse diapasão, bem público compreende inúmeros bens, sejam eles materiais ou imateriais, móveis ou imóveis; mas, abordar-se -á somente os bens públicos imóveis materiais, objetivando o propósito do tema estudado. Assim, os bens públicos são classificados quanto à destinação ou afetação, podendo ser de uso comum do povo; de uso especial; e, bens dominicais. A propósito, insta consignar que tal classificação encontra-se exemplificada no art. 99, do Código Civil de 2002, do qual se extrai: Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único - não dispondo a lei em contrário, consideramse dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado”. Sob esse enfoque, Maria Sylvia Zanella di Pietro ensina que no que tange ao aspecto jurídico, há duas modalidades de bens públicos; pois, muito embora todos esses bens estejam sob o controle do Estado, aqueles referenciados nos incisos I e II do art. 99, estariam sob o domínio público; enquanto os dominicais se sujeitariam ao domínio privado. Com isso, os bens públicos de domínio público são classificados quanto à modalidade em bens de uso especial e bens de uso comum do povo. Sendo certo que estes são os que “por determinação legal ou por sua própria natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento individualizado por parte da Administração”. Ao passo em que os “bens de uso especial são todas as coisas, móveis ou imóveis, corpóreas ou incorpóreas, utilizadas pela Administração Pública para realização de suas atividades e consecução de seus fins”. (DI PIETRO, p. 248, 2014) Os bens dominiciais (do latim: dominicus; no sentido de “pertencente ao senhor”), possuem caráter residual, mormente porque a esta categoria pertencem os bens não caracterizados dentre as modalidades dos bens públicos de domínio público. Exemplificadamente, são bens dominicais imóveis os prédios públicos desativados e as terras sem destinação pública específica, como as terras devolutas. Os bens públicos dominicais já foram considerados como bens de função eminentemente patrimonial, porque obtinham renda para o Estado e não eram considerados bens afetados pelo interesse público geral. Assim, a gestão destes bens era tida como atividade privada da Administração, não serviço público. Não obstante o exposto, para Zanella di Pietro (2014, p. 752): “hoje já se entende que a natureza desses bens não é exclusivamente patrimonial; a sua administração pode visar, paralelamente, a objetivos de interesse geral. Com efeito, os bens do domínio privado são frequentemente utilizados como sede de obras públicas e também cedidos a particulares para fins de utilidade pública.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Por exemplo, no direito brasileiro, é prevista a concessão de direito real de uso para fins de urbanização, industrialização, cultivo e também a sua cessão, gratuita ou onerosa, para fins culturais, recreativos, esportivos . E mesmo quando esses bens não são utilizados por terceiros ou diretamente pela Administração, podem ser administrados no benefício de todos, como as terras públicas onde se situem florestas, mananciais ou recursos naturais de preservação permanente. Além disso, a própria administração financeira constitui objetivo apenas imediato, pois, em uma perspectiva mais ampla, atende a fins de interesse geral. Nestes termos, a gestão dos bens dominicais visará ao interesse público, ainda que indiretamente, decorrente da atividade privada da Administração. 4.1.2 Afetação e desafetação

Tanto a afetação como a desafetação constituem fatos administrativos, relacionados diretamente com a utilidade do bem público ao interesse da sociedade. Assim, o bem afetado pelo interesse público é aquele que é utilizado pela Administração de modo a ser útil ao interesse público primário ou secundário; ao passo em que o bem desafetado é aquele que não é utilizado para qualquer finalidade pública. Ademais, como bem assinalado por José dos Santos Carvalho Filho (2014, p. 1.167): “Afetação e desafetação são os fatos administrativos dinâmicos que indicam a alteração das finalidades do bem público. Se o bem está afetado e passa a desafetado do fim público, ocorre a desafetação; se, ao revés, um bem desativado passar a ter alguma utillização pública, poderá dizer que ocorreu a afetação”. Com isso, vislumbra-se que essa característica não é perpétua e decorre exclusivamente dos aspectos de posse e uso exercidos sobre a propriedade pública. Ademais, torna-se evidente que a titularidade da propriedade não configura condição para a afetação do bem público, podendo o particular, por exemplo, exercer posse sobre uma propriedade pública, tornando-a útil, que é um dos requisitos para a constituição da usucapião. 4.2 Descabimento É cediço que em decorrência de expressa previsão nos arts. 183, §3º e 191, parágrafo único, ambos da CRFB/88, bem como da súmula 340 do STF, o Poder Público não tem seus bens usucapidos. Deste modo, maioria absoluta da jurisprudência pátria sequer examina o mérito dos litígios levados à tutela do Poder Judiciário, extinguindo o feito por impossibilidade jurídica do pedido, consoante o julgado abaixo colacionado: EMENTA: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO - BEM PÚBLICO - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO 1 - Conforme exegese da súmula 340 do STF, os bens públicos não são suscetíveis de usucapião, consoante estabelecem os artigos 183 § 3º e 191 parágrafo único da Constituição da República. (TJMG - Apelação Cível 1.0407.11.013767-3/001, Relator(a): Des.(a) Rogério Coutinho , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 27/02/2014, publicação da súmula em 13/03/2014) Tal entendimento não discrepa da doutrina majoritária, a qual é integrada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2010), José dos

207

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Santos Carvalho Filho (p. 1171, 2014) e Arnoldo Wald (2009, p. 194), que são contrários a usucapião de bem público por expressa vedação legal. Nesse diapasão entende Maria Helena Diniz (2008, p. 158), fazendo ainda uma pequena projeção histórica: “Até alguns anos atrás não era pequena a controvérsia sobre se podiam ou não ser usucapidos os bens públicos, prevalecendo, mesmo a opinião em sentido afirmativo (...). Essa dúvida se dissipou com o Decreto nº 22.785, de 31 de maio de 1933, que no seu artigo 2º afirmava que “os bens públicos, seja qual for sua natureza, não estão sujeitos à prescrição”, orientação essa reiterada em normas posteriores.” Todavia, tal entendimento não é uníssono na seara acadêmica do Direito, Maria Sylvia Zanella de Pietro (2014), entende que não é permitida a usucapião de bem público, mas demonstra insatisfação em relação a tal fato: A Constituição de 1988, lamentavelmente, proibiu qualquer tipo de usucapião de imóvel público, quer na zona urbana (art. 1 83, § 3º) , quer na área rural (art. 191, parágrafo único) , com o que revogou a Lei nº 6.969/ 8 1 , na parte relativa aos bens públicos. Essa proibição constitui um retrocesso por retirar do particular que cultiva a terra um dos instrumentos de acesso à propriedade pública, precisamente no momento em que se prestigia a função social da propriedade. Não obstante o exposto é cediço que a súmula 340 do STF trouxe a consolidação do entendimento da Suprema Corte no sentido de impossibilitar a usucapião de bem público. Entretanto, faz-se mister destacar que tal decisão foi precedida pelos seguintes julgados nos recursos extraordinários (RE) nº 51265, 4369 e 7387. No RE nº 51265, o STF deu provimento unânime para a imissão da posse da Laminação de Ferro S/A, nas terras que foram objeto de escritura de contrato e de constituição de enfiteuse com o Estado de Minas Gerais. Foi reconhecido, que os recorridos e ocupantes das terras não exerciam posse sobre a área de propriedade pública, mas tão somente detenção, considerando-se a permissão ou tolerância do Estado Mineiro. A propósito, eis um trecho preferido pelo Relator do referido julgado: “Trata-se, quanto aos recorridos, de mero detentio de terras públicas do domínio patrimonial do Estado, sobre as quais não pode haver posse útil ad interdicta e ad usucapionem.” Noutro giro, depreende-se do RE nº 4369, a inadmissibilidade da usucapião de bem público sob a análise da propriedade, uma vez que “a usucapião pressupõe um bem capaz de ser livremente alienado” e, in casu, os bens públicos são, em regra, inalienáveis. Por último, depreende-se do RE nº 7387, que a vedação arguida decorre da inexistência da posse dos bens públicos se sujeitar a prescrição; nesse sentido: “na espécie, o recurso se atem à imprescritibilidade, sem entrar em detalhes sobre a situação dos interessados na discriminação. (...) Conhecendo do recurso, dou-lhe provimento quanto ao mérito, pois, repetidas vêses (sic), tenho votado contra a aquisição por usucapião dos bens públicos, inclusive os dominicais ou patrimoniais.” Com isso, por detrás da súmula em comento vislumbra-se que a vedação possui como prisma maior a análise da propriedade pública, seguida dos institutos a ela inerentes, nada arguindo-se a respeito da função social.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

4.3 Cabimento Minoritariamente há aqueles que valem de interpreção teleológica do texto constitucional, a fim de defender a usucapião de bem público. Deste modo, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, conhecem as vedações à usucapião de bem público, no entanto, entendem ser dissonantes com o ordenamento constitucional; pois, “detecta-se, ademais, em análise civil- constitucional que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse”. (2014, p. 350). Elucidam, que a função social supracitada é facilmente visualizada na posse exercida com a aparência de proprietário (Teoria Subjetiva mitigada); mansa e pacífica, uma vez que o proprietário não contesta a posse ilegítima; e, ininterrupta, pois a posse tem que ser contínua e durar até o prazo previsto na respectiva modalidade, como forma de privilegiar a verdadeira justiça social, ofertando meios para que o proprietário tutele seu título. Ainda não há precedentes jurisprudenciais favoráveis à usucapião com base na função social da posse, uma vez que é realizada costumeiramente análise fria do texto constitucional e da súmula 340 do STF, fato este que induz a erros grotescos; entretanto, existem decisões indicativas da função coletiva que deve ser atribuída aos imóveis públicos, prestigiando-se indiretamente a função social da posse. Nesse contexto, vislumbra-se do julgado da apelação nº 1.0194.10.011238-3/001/TJMG, a manutenção da sentença, concedendo a aquisição pela usucapião da propriedade de terreno anteriormente pertencente à autarquia DER/MG, que fora destinado ao assentamento de famílias, passando a integrar o patrimônio disponível do Estado Mineiro. Ressalte-se, que o acórdão retro não concedeu a usucapião de bem público, haja vista que o bem já não mais integrava o patrimônio do Estado, tendo sido colocado à disponibilidade do Município de Antônio Dias; entretanto, possui alguns fundamentos que constituem peças iniciais acerca da mudança de paradigma e da viabilidade desse instituto. A propósito, vale mencionar alguns trechos do acórdão: Na espécie, os réus demonstraram a aquisição da posse do imóvel há mais de trinta anos, sem qualquer oposição do DER. Destarte, demonstrado está que os réus, ora apelados, não detinham apenas a mera detenção do bem, mas verdadeiramente sua posse, como se donos fossem. A teor do que ensina Maria Helena Diniz, a respeito da usucapião previsto no Código Civil: “O usucapiente terá apenas de provar a sua posse.” (...) E,ainda, a lição de Tito Fulgêncio: “A prescrição, modo de adquirir domínio pela posse contínua (isto é, sem intermitências), ininterrupta (isto é, sem que tenha sido interrompida por atos de outrem), pacífica (isto é, não adquirida por violência), pública (isto é, exercida à vista de todos e por todos sabida), e ainda revestida com o animus domini, e com os requisitos legais, transfere e consolida no possuidor a propriedade da coisa, transferência que se opera, suprindo a prescrição a falta de prova de título preexistente, ou sanando o vício do modo de aquisição”. (Tito Fulgêncio. Da Posse e das Ações Possessórias, 7ª Edição, p. 450). “(...) Importa salientar que, no caso concreto dos autos, a viabilidade de se declarar a prescrição aquisitiva se encontra ainda mais evidente, porque já existe uma lei em vigor autorizando expressamente o DER a doar os imóveis em comento ao Município de Antônio Dias, justamente para que este lhes dê uma destinação social, promovendo o assentamento das famílias que estão no local (...).”

208

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Com isso, vislumbra-se não só a possibilidade de se exercer posse com animus domini sob os imóveis públicos, uma vez que as famílias possuíam a área ocupada há mais de 30 (trinta) anos; como também a privilegiação da função social da posse das famílias ali instaladas e consequente justiça social, mediante a concessão do imóvel para o assentamento dessas famílias. Enquanto isso, vale destacar que a restrição à usucapião em comento não acompanhou a evolução constitucional pátria, constituindo-se em verdadeira aberração jurídica no bojo de um sistema jurídico-garantista, fruto de um Estado Democrático de Direito. Isto porque, consoante o já exposto a vedação à usucapião de bem público dominical foi implementada pela súmula 340 do STF, editada antes da CR/1988; que, incoerentemente inovou na história das Constituições a vedação expressa desse instituto. Nesse sentido, os julgados antecessores à súmula 340 do STF não faziam qualquer menção à função social da posse, ou as outras garantias asseguradas no atual modelo estatal; mormente porque, à época o Estado ainda era Liberal e o sistema jurídico não observava as garantias oriundas do Estado Social- democrático. Motivo pelo qual a vedação delineada nessa súmula diz respeito somente aos argumentos ali tecidos, que nada remontam à função social da posse. Por fim, no que diz respeito à alienabilidade, destaque-se que é plenamente possível sua existência sobre os bens dominicais, conforme exposto no art. 101, do Código Civil, desde que haja observância às exigências legais. Ressalve-se que essa possibilidade é fruto da ausência de imediato interesse social sobre esses bens; assim, os bens dominicais poderiam ingressar na esfera dos bens disponíveis do Poder Público, uma vez que sua alienação não representaria prejuízos à coletividade, haja vista inexistir afetação. Segundo Carvalho Filho, “os bens de uso especial e alguns de uso comum do povo, ao serem objeto de desafetação, passam à categoria dos bens dominicais, como já observamos, o que também poderá ensejar a sua alienação.” (2014, p. 1169). No que pertine a imprescritibilidade, também deve ser relativizada. Isto porque o fundamento para a existência da vedação à usucapião é a propriedade pública; justificativa esta ilógica, mormente porque a consoante o já exposto, no instituto ad usucapionem não se discute a propriedade, mas tão somente a posse. Ademais, ainda que assim não fosse, os bens públicos dominicais estão desafetados pelo interesse público, motivo pelo qual não devem ser atribuídos com a imprescritibilidade, haja vista não exercerem função pública. 5 A EMENDA À CONSTITUIÇÃO Inicialmente, insta consignar que o direito é uma ciência mutável, varia conforme a sociedade que disciplina. Assim, os juristas não devem se conformar em aplicar meramente o direito posto, mas manifestarem-se quando notarem a inaplicabilidade de determinados institutos normativos, por não mais coadunarem-se com o sistema jurídico-social presente. Entretanto, não se soluciona tal percalço na seara jurídica apenas desconsiderando normas existentes, apelando para princípios esboçados na Constituição da República; é sabido que princípios possuem força normativa, entretanto, dado o grau de subjetividade inerente a estes, a solução para o problema não seria certa, mas provável. Assim, apesar de louvável, não basta impugnar, ir contra as normas delineadas nos arts. 183, §3º e 191, parágrafo único da CRFB/88, bem como a súmula 340 do STF. É preciso ir além. Em que pese o entendimento ora defendido ser recente e, consequentemente minoritário, restou evidente que a vedação imposta sobre os bens públicos dominicais não condiz com o paradigma do

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Estado Social Democrático, que preza a justiça social, a equidade, a fraternidade, a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e, para alcançar tais garantias e direitos, estabelece a função social como condicionante ao exercício dos direitos de cunho patrimonial. Por isso, urge destacar que em meio a este caloroso embate jurídico, de fato é inaceitável a inconstitucionalidade da usucapião de bem público dominical. Assim, apesar da função social, mais especificadamente, a função social da posse está implícita no texto e no preâmbulo constitucional, restou claro que há um viés dela positivado no art. 5º, inciso XXIII da CR, sob a signa de função social da propriedade. Ademais, consoante o já arguido a função social da posse encontra respaldo também na previsão da usucapião, uma vez que este instituto configura-se como condição para a aquisição da propriedade através da função social da posse, exercida somente por aquele que não possui o título de propriedade; uma vez que seria destinada função social à propriedade pela posse do não proprietário. Com isso, resta comprovado que a função social da propriedade, prevista no seio constitucional é insensata, uma vez que é uma garantia contemplada pela função social da posse, que não encontra igual previsão. Fato este que gera imensuráveis conflitos interpretativos, a começar pela privilegiação da propriedade dos bens públicos sem função social, em detrimento da função social da posse exercida por outrem. Então, necessária a readequação constitucional, através de uma emenda que altere a redação do art. 5º, inciso XXIII, para que ali conste que a propriedade atenderá a função social da posse; como forma de extirpar dúvidas e condicionar a propriedade à função social da posse, não mais da propriedade. Isto porque a propriedade não atribui função social a ela mesma, a posse é que se incube deste papel. É a posse o liame entre a destinação social e a propriedade. Com isso, cairia de vez por terra a vedação à usucapião de bem público, haja vista que não mais haveria espaços para subjetividades, estaria claro a supremacia da posse sobre a propriedade, tal como o é sob a ótica da usucapião. Nesse sentido, no tocante a usucapião discute-se somente a posse, não importando o título de propriedade. Por isso, basta a observância dos pressupostos (posse mansa, pacífica e ininterrupta), conforme a modalidade do instituto; e, dos requisitos pessoais e formais, cabendo ressaltar que os requisitos reais estariam preenchidos na medida em que o ordenamento jurídico permitisse a usucapião. Sob esse prisma, sendo os bens dominicais aqueles não afetados pelo interesse público, na hipótese de um terceiro exercer posse mansa, pacífica e ininterrupta, estar-se-ia viabilizada a possibilidade da aquisição do título de propriedade desse imóvel, uma vez que esse bem não detém qualquer relevância imediata à coletividade. Entretanto, a usucapião dos bens públicos dominicais não deve ser a revelia, mas devidamente regulamentada. Assim, tendo em vista a ponderação de interesses e o bem da coletividade, deve ser viabilizada somente a usucapião especial de bens públicos dominicais, como forma de lídima justiça. Haja vista que a usucapião especial é a modalidade de usucapião mais eficaz no que pertine a justiça distributiva, que visa simplesmente fornecer condições para que o indivíduo viva com dignidade, não funcionando como fonte de riqueza, consoante o ensinado por César Fiuza (2014, p. 1090). Assim, a usucapião especial pode ocorrer em área urbana ou rural, mas em ambos há limitação ao tamanho da área a ser usucapida, além de que o reconhecimento deste direito ocorre somente uma vez e, na área urbana, a função social deve servir a moradia do possuidor, ao passo em que na área rural, além da moradia é cabível o labor. Ademais, além de condizente com o ordenamento jurídico, a

209

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


usucapião especial de bem público dominical contribuiria para a solução da deficiência estatal de prover materialmente o direito à moradia, uma vez que milhares de pessoas possuem apenas formalmente este direito constituído. Não obstante o exposto, a sociedade também seria beneficiada, não só pela redução do número de pessoas sem moradia, mas pelo fato de que a população zelaria melhor pelos imóveis que a pertence, obrigando o Poder Público a melhor geri-los, fomentando a economia. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A usucapião de bem público é considerada tema polêmico, talvez por confrontar os dispositivos contidos na Constituição e na jurisprudência sumulada do STF; entretanto, não se pode olvidar que o maior fundamento para a viabilização deste instituto ressai igualmente da Lei Maior, seja implicitamente no texto ou expressamente no seu preâmbulo. Destaque-se que eventuais dúvidas em relação a ponderação valorativa dos dispositivos constitucionais ditos “conflitantes”, como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e a função social versus a vedação à usucapião de bem público, são solvidas pela linha teórica da constituição, observada pelo preâmbulo. Fato este que não deixa dúvidas acerca do modelo Estatal Social Democrático Brasileiro, restando claro que o direito à propriedade não é absoluto, uma vez que deve existir observância à coletividade e, consequente justiça social. Vislumbra-se que o direito individual à propriedade não deve existir por ele mesmo, mas sim cominado com os interesses sociais do universo coletivo onde a propriedade está inserida, ou seja, a função social. Vislumbra-se, ainda, que a posse é o instituto que atribui função social à propriedade, mesmo porque o título de propriedade não configura condição para a atribuição de função social a um imóvel; uma vez que para tal destinação é essencial o exercício da posse. Nestes termos, não há justificativa plausível no ordenamento jurídico para a vedação à usucapião de bem público dominical, pois não existe afetação; portanto, este bem não possui função social, ou consequente utilização pelo Poder Público. Ademais, tal vedação não deve se referir ao simples fato de ser propriedade pública, pois na usucapião não se discute o título de propriedade e, conforme exposto, a proteção ao direito de propriedade está condicionada à função social da posse. Além disso, observa-se que a súmula 340 do STF veda a usucapião de bens dominicais com base em institutos já superados pelo ordenamento jurídico pátrio, sendo plenamente possível um particular possuir imóvel público desafetado, bem como foi relativizada no Código Civil de 2002 a característica da alienabilidade, sobretudo no que pertine aos bens dominiciais. E, em relação à imprescritibilidade, a vedação à usucapião com base na natureza da propriedade é, no mínimo, insustentável, haja vista vedar um instituto com base em outro diverso; como é a posse frente à propriedade na usucapião (Teoria Subjetiva). Nessa senda, a defesa da usucapião de bem público objetiva justamente adequar alguns dispositivos constitucionais à luz do todo constitucional, fazendo com que essa constituição de garantias seja harmônica e consonante com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Assim, com a usucapião especial dos bens públicos dominicais os benefícios não se limitariam ao fomento do direito à moradia e demais postulados oriundos do Estado Social, mas também de uma melhor gestão pública dos bens públicos dominicais, irradiando efeitos benéficos em toda a sociedade. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

BRASIL. Constituição da República da Federativa do Brasil. Retificada em 30 de outubro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao67EMC69.htm> Acesso em 03 de novembro de 2015. BRASIL. Constituição da República da República dos Estados Unidos do Brasil. Promulgada em 16 de julho de 1934. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm> Acesso em: 03/11/2015 BRASIL. Constituição da República da República dos Estados Unidos do Brasil. Promulgada 24 de fevereiro de 1891. Disponível em:<http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm> Acesso em: 03/11/2015 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Promulgada em 18 de setembro de 1946. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm> Acesso em 03 de novembro de 2015. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição. htm> Acesso em: 03/11/2015 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil. Promulgada em 25 de março de 1824. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao24.htm> Acesso em 03/11/2015. BRASIL. Lei nº 10.257. Promulgada em 10 de julho de 2001. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htmhttp://www.planalt o.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm> Acesso em: 03/11/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 4.369. Município de São Paulo versus Margarida da Silva. Relator: Min. Bento de Faria. Brasília, 21 de setembro de 1943. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=116150> Acesso em 15/11/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 51.265. Laminação de Ferro S/A versus Gabriel José Pereira e outros. Relator: Min. Hermes Lima. Brasília, 30 de agosto de 1965. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=150194>. Acesso em 15/11/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 7.387. Fazenda do Estado de São Paulo versus Antônio Ribeiro Gato e outros. Relator: Min. Laudo de Camargo. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=526887 Acesso em 15/11/2015. DE CICCO, Cláudio; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Teoria geral do estado e ciência política. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2014. xlii, 966p DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 23.ed. rev. ataul. e ampl. de acordo coma a Ref São Paulo: Saraiva, 2008 xii, 636 p. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 5 : direitos reais. 10.ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: JusPodivm, 2014. 5v FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 17.ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. FIUZA, César; SA, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: Direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27.ed. rev.e atual. até a Emenda Constitucional São Paulo: Malheiros, 2010. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1.0194.10.0112383/001. DER MG Departamento de Estradas Rodagem Estado de Minas Gerais

210

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


versus Claudio Aparecido Gonçalves Tito e outros. Relator: Des. Barros Levenhagen. Minas Gerais, 08 de maio de 2014. Disponível em < http://www5. tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0194 .10.011238-3%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar >. Acesso em: 03/11/2015. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1.0407.11.0137673/001. Paulo Fernandes Pereira versus Município de Mateus Leme e Rotary Club de Mateus Leme. Relator: Des. Rogério Coutinho. Minas Gerais, 27 de fevereiro de 2014. Disponível em < http://tj- mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/119657343/apelacao-civel-ac10407110137673001-mg/inteiro-teor-119657391>. Acesso em: 03/11/2015.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 21.ed.rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 76, de 28.11.2013. São Paulo: Malheiros, 2014. WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das coisas. 12. ed. ref. São Paulo: Saraiva, 2009. Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

211

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A PREJUDICIALIDADE DA INTERPRETAÇÃO LITERAL NO CASO DA ISENÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 6 INCISO XIV DA LEI Nº 7.713 DE 1988 Luiza dos Santos1 Tatiana Maria Oliveira Prates Motta2 RESUMO: A lei nº 7.713 de 1988, trás em seu corpo uma isenção do imposto de renda para os portadores de moléstia grave, contudo esse rol de doenças é taxativo pela força do artigo 111 do Código Tributário Nacional, que determina a utilização da interpretação literal no casos de isenções. Mas com essa regra interpretativa muitas pessoas com doenças tão penosas quanto as elencadas no inciso, não fazem jus ao beneficio tributário, o que gera uma grande injustiça, além de uma afronta ao principio da isonomia. PALAVRAS CHAVES: Isenção Tributária; Regra da interpretação literal para isenção; Interpretação no Direito Tributário; Isonomia. ABSTRACT: The Law 7.713 from 1998 brings in its structure an income tax exemption to those carrying major diseases. However, this is a restrictive list according to what is predicted by the art. 111 on the Brazilian Tax Code, that demands a literal interpretation in thoses situations. Due to this interpretation rule, many people carrying rather ditressing diseases such as the ones indicated by the mentioned law, are not bestowed by the benefit, what means an enourmous injustice and a violation of isonomy principle. KEYWORDS: Icome tax exemption; Rule interpretation of exemption; Tax Law Interpretation; Isonomy. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Da interpretação do Código Nacional Tributário; 2.1 Métodos de interpretação; 2.2 Tipos de Interpretação; 3 Da isenção tributário prevista no inciso XIV do artigo 6 da lei nº 7.713 de 1988; 3.1 Princípios norteadores da interpretação tributária no Direito Tributário; 3.1.1 Isonomia; 3.2 Interpretação constitucional da norma; 3.3 Critica da regra da interpretação literal no caso da isenção; 4 Projeto de lei 315/2013; 5 Conclusão; Referencias

1 INTRODUÇÃO O presente artigo abordará o método de interpretação utilizado na isenção do imposto de renda outorgada para os contribuintes que sofrem moléstia grave, prevista no inciso XIV, do artigo 6 da lei nº 7.713 de 1988. Tal inciso, trás em seu corpo, o rol de doenças que contraídas pelo contribuinte, este fará jus a isenção do imposto de renda. Todavia, é necessário destacar que esse rol limita as doenças atingidas por essa isenção, não abarcando alguns casos que deveriam ser privilegiados pela isenção. Há um projeto de lei nº 315/2013, no senado federal que tem como objetivo complementar o rol de doenças do inciso, acrescentando as doenças reumáticas, neuromusculares ou osteoarticulares crônicas ou degenerativas. Nesse sentido, analisando os tipos e os métodos de interpretação no Direito Tributário é possível defender uma interpretação extensiva, utilizando os métodos teleológico, histórico e sistemático para o caso em comento, afim de suprir a deficiência do texto legislativo, proporcionando, assim, isenção para os casos não descritos no inciso XIV, casos esses que deveriam ser beneficiados pela isenção do imposto de renda. No entanto, a regra prevista no artigo 111, do Código Tributário Nacional, determina a interpretação literal nos casos de isenção, transformando, então, o rol do inciso XIV em um rol taxativo, isto é, somente nas hipóteses descritas o contribuinte poderá se valer da isenção. A interpretação literal torna a tentativa do legislador de beneficiar os contribuintes que estão passando por uma situação penosa, livrando-os de um ônus tributário, deficiente. Para o presente artigo foi utilizado o método dedutivo, através do raciocínio lógico se faz uma dedução obtendo assim a conclusão sobre as premissas do tema abordado. Trata-se de uma pesquisa teLETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

órica, através da analise de conteúdo de textos doutrinários e normas. 2 DA INTERPRETAÇÃO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL A hermenêutica jurídica, isto é, a ciência que estuda a interpretação das normas do ordenamento jurídico, determinando os possíveis métodos a serem utilizados pelo interprete, para que este consiga extrair o significado da norma, assim fazendo com que as leis atinjam seu propósito. Hugo de Brito Machado entende que a “interpretação das normas jurídicas pode ser considerada em sentido amplo, como busca de uma solução para um caso concreto, e em sentido restrito, como a busca do significado de uma norma.” O Código Nacional Tributário, de maneira um tanto quanto superficial, dita sobre as técnicas e critérios a serem utilizados para interpretar as leis tributárias. 2.1 Métodos de interpretação No âmbito do Direito Tributário, são utilizados os métodos de interpretação gramatical/literal, sistemático, histórico e teleológico. A interpretação literal, como o próprio nome determina, é a interpretação que apenas visa o texto da lei, se interpreta pelo sentido extraído das expressões lingüísticas, isto é, limita o interprete a analisar somente o texto legal vedando a ampliação de seus comandos, bem como utilizar-se de uma interpretação extensiva da norma. Por sua vez a interpretação sistemática é aquela “em que o interprete se volta para o sistema jurídico para observar, detidamente, a regra em cotejo com a multiplicidade dos comandos normativos que dão sentido de existência ao direito positivo”. (CARVALHO, 2014, p.109). O método histórico é aquele que segundo Paulo de Barros Carvalho (2014, p. 108) “requer investigações das tendências circuns-

212

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tanciais ou das condições subjetivas e objetivas que cercam a produção da norma, esmiuçando a evolução do substrato da vontade do legislador depositou no texto da lei”. Por fim, a interpretação teleológica que nas palavras de Hugo de Brito Machado (2012, p.108) “Com este método o interprete empresta maior relevância ao elemento finalístico. Busca o sentido da regra jurídica tendo em vista o fim para qual foi ela elaborada”. 2.2 Tipos de interpretação Tendo em vista o resultado, a interpretação pode ser classificada como extensiva, restritiva, ou estrita. A interpretação extensiva deverá determinar “o conteúdo e o alcance da lei que estejam insuficientemente expressos no texto normativo, ou seja, a lei teria dito menos do que queria (dixit minus quam voluit)” (AMARO, 2008, p.209), sendo, então, necessária a utilização da interpretação extensiva para ampliar, ir além das barreiras impostas pelo texto legal, para, assim, obter o resultado satisfatório da norma, fazendo com que ela cumpra seu propósito. Por sua vez, a interpretação restritiva é o reverso da extensiva, nesse caso a lei, o texto normativo, abrange certas situações que vão além do que se pretendida, devendo então o interprete utilizar dessa interpretação a fim de limitar seu alcance. Já a interpretação estrita, é aquela que “busca definir o conteúdo e o alcance da lei, sem amputações e sem acréscimos” (AMARO, 2008, p.209), porem esse tipo de interpretação é deficiente, tendo em vista que, na maioria das vezes, o legislador não é feliz na elaboração do texto normativo. 3 ISENÇÃO TRIBUTÁRIA PREVISTA NO INCISO XIV DO ARTIGO 6 DA LEI Nº 7.713 DE 1988 A lei nº 7.713 de 1988 é uma lei federal que dispõe sobre o Imposto de Renda e da outras providencias. Em seu artigo 6, inciso XIV, ela determina um caso de isenção do imposto de renda para os portadores de moléstia grave Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas: XIV – os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma;(BRASIL, 1988)

quando evidenciado um conflito normativo, quando uma norma não está cumprindo seu devido propósito, é necessário saná-la utilizando para isso os princípios norteadores do nosso sistema jurídico, os valores disciplinados pela Constituição 1988. 3.1.1 Isonomia

O principio da isonomia consagrado na Constituição de 1988 em seu artigo 5, dispõe sobre a igualdade entre os seres humanos. É dever do Poder Publico fazer valer tal idéia. Para Cármen Lúcia Antunes Rocha (apud SILVA, 2009, p.214): A igualdade constitucional é mais que uma expressão de Direito; é um modo justo de se viver em sociedade. Por isso é princípio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental. Essa noção de equidade, isto é, respeito à igualdade de direitos já foi proposta por Aristóteles (apud NADER, 2002, p.111) como “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade.” José Afonso da Silva (2009, p. 218) entende que esse princípio tem como uma de suas facetas, como um dos seus desdobramentos, a igualdade jurisdicional que se apresenta sobre dois prismas: (1) como interdição ao juiz de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a lei; (2) como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamente desigual a situações iguais ou tratamento igual a situações desisguais por parte da Justiça. Nesse sentido, a igualdade deve manifestar tanto na elaboração das leis, isto é, a norma jurídica não poderia promover discriminações, salvo as autorizadas pela Lei pátria, ainda deve se manifestar também na aplicação da lei, isto é, ao aplicar o direito no caso concreto fazendo valer o principio. Ademais, a Constituição de 1988 se preocupou em promover esse princípio tão importante e fundamental em matéria tributária. Em seu artigo 150, inciso II, prevê a proibição de instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. No caso das isenções é uma problemática decorrente descobrir se a regra da isenção fere ou não esse princípio. Nas palavras de Hugo de Brito Machado (2012, p. 38): A questão é difícil porque envolve a valoração dos fins pretendidos pela norma isentiva. Essa valoração é que vai preencher o vazio da postura puramente normativista, e tudo terminará sendo uma questão de justiça, ou de injustiça da isenção. Todavia, no caso abortado, é evidente que a obrigatoriedade da interpretação literal desencadeia uma injustiça, uma total violação deste princípio, tendo em vista que há o tratamento desigual a contribuintes que se encontram em situação equivalente. 3.2 Interpretação constitucional da norma tributária

Trata-se de uma isenção subjetiva, isto é, uma hipótese de exclusão do crédito tributário concedida em razão de condições pessoais do sujeito passivo tributário. O inciso descreve doenças graves, debilitantes, muitas delas incuráveis, sendo que na maioria das hipóteses são moléstias que necessitam de tratamento médico intenso e custoso ao contribuinte, razão pela qual o legislador decidiu outorgar um beneficio tributário as pessoas que já estão passando por situações delicadas em decorrência dessas enfermidades. 3.1 Princípios norteadores da interpretação tributária no Direito Tributário Em um Estado Democrático de Direito é essencial que

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

No caso dessa isenção subjetiva se torna claro a necessidade de uma interpretação extensiva, isto é, interpretar expandindo o conteúdo e o alcance da norma deficiente, por meio de outros métodos interpretativos aplicáveis no Direito Tributário. Um deles é a interpretação teleológica, isto é, a hermenêutica que se procura compreender a finalidade da norma. Ao analisar o conteúdo da lei estudada entende-se que o objetivo da norma é outorgar um beneficio aos contribuintes que sofrem de moléstia grave, promovendo a isenção do imposto de renda. A utilização desse método permitirá que a pessoas que possuam uma moléstia grave não tipificada nos casos de isenção e que sejam tão gravosas quanto as elencadas, possam ser beneficias, assim fazendo com que a norma atinja seu objetivo, de forma plena.

213

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O método histórico poderá também ser utilizado ao passo que se analisarmos todas as circunstancias históricas da criação da norma e a vontade do legislador da edição é evidente o propósito de beneficiar os contribuintes portadores de moléstias, mas também é notório que na época da criação da norma o conhecimento de tais moléstias era ainda um tanto quanto limitado, com o passar do tempo e com os avanços na área da medicina novas moléstias tornaram-se conhecidas. Portanto com esse tipo interpretativo é possível que os casos não mencionados no inciso XIV, talvez por omissão ou não conhecimento na época da elaboração da lei, sejam abarcados pela isenção. Destaca-se, ainda, que interpretação sistemática, aquela que busca harmonizar a norma com o nosso ordenamento jurídico teve também ser utilizada, para que não prevaleça essa conflito entre o principio da isonomia, uns dos pilares fundamentais de nosso sistema normativo, e a injustiça da interpretação literal do inciso XIV do artigo 6 da lei nº 7.713 de 1988. 3.3 Crítica a regra da interpretação literal no caso da isenção O artigo 111 do Código Tributário Nacional dispõe: Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: (...) II - outorga de isenção; (BRASIL, 2014) A obrigatoriedade da interpretação literal por esse artigo nos casos de isenções deve ser discutido, tendo em vista que a imposição desse método interpretativo “representa um retrocesso e um injustificado preconceito no tratamento legislativo das leis de isenção.” (BORGES, 2001, p.127). A interpretação literal prepondera a investigação sintática, que por conseqüência impede o interprete de se aprofundar nos planos semânticos e pragmáticos. Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho (2014, p. 115) o estudo desenvolvido no nível sintático, por mais importante que seja, é insuficiente para cobrir toda a dimensão dos enunciados prescritivos que, vertidos em linguagem, suscitam, obrigatoriamente, além do exame sintático, investigações nos planos semântico e pragmático . A origem desta interpretação, seu objetivo é sempre visar a garantia da segurança jurídica, não deixar espaço para que se possa burlar a lei, desviar a finalidade da norma. Com o passar do tempo é evidente a desatualização desse rol, tanto em razão de descobertas com a evolução cientifica no campo da medicina, onde novas doenças tornam-se conhecidas, sendo elas tão gravosas quanto as elencadas no inciso XIV da lei 7.713 de 1988, como também em relação as moléstias já conhecidas, mas que por algum motivo, não foram prestigiadas no inciso. Essa regra faz com que a isenção prevista no inciso XIV, do artigo 6, da lei nº 7.713 de 1988, tenha um rol taxativo, isto é, limita o interprete ha somente conceder o beneficio tributário aos portadores das doenças descritas no inciso, tornando, assim, a norma deficiente. O propósito desta isenção de beneficiar o contribuinte que passa por situações penosas, que arca com um ônus financeiro excessivo em decorrência dos tratamentos médicos, não está sendo cumprido, gerando assim uma grave injustiça. Tratando de uma isenção ligada ao sujeito passivo da relação, o contribuinte, deve-se analisar que o propósito da norma não esta sendo atendido, devendo, assim, para alcançar os efeitos desejados, possibilitar uma relativização da regra, uma exceção a interpretação

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

literal, para, assim, cessar a violação do principio basilar da Constituição, o principio da isonomia. 4 PROJETO DE LEI 315/2013. Há um projeto de lei no senado federal 315/2013, de iniciativa do Senador Paulo Paim, que tem como objetivo que seja alterado o inciso XIV, do artigo 6, lei nº 7.713 de 1988, para acrescentar as doenças reumáticas, neuromusculares ou osteoarticulares crônicas ou degenerativas, no rol de moléstias graves. São exemplos claros de doenças que se enquadram nessas classificações: lúpus eritematoso sistêmico, a osteoporose, a esclerose lateral amiotrófica (ELA) e a artrite reumatóide. Ainda, foram acrescentadas também, pela aprovação da Emenda nº 1- CAS (Substitutivo), a linfangioleiomiomatose pulmonar e a doença de Huntington. O projeto de lei em si é prova da limitação do inciso XVI e da prejudicialidade decorrente da interpretação literal desta norma. Todas as pessoas que possuem as doenças mencionadas acima, bem como as que possuem outras doenças que ainda não foram analisadas, seja por desconhecimento de moléstias ainda não estudadas por especialistas na área médica, ou pela simples omissão, estão sendo comprometidas pela interpretação literal. Destaca-se que o projeto foi proposto em 2013, até o presente momento não foi aprovado para começar a produzir efeitos. A iniciativa de alterar o texto da norma é valida e deve ser parabenizada, mas não é a maneira mais célere ou mais eficaz para que a norma cumpra o seu propósito, para a solução desse tema. 5 CONCLUSÃO Diante tudo que foi abordado anteriormente, é imperioso reconhecer que a regra exposta no artigo 111 do Código Tributário Nacional, exigindo a interpretação literal nos casos de isenção não pode prevalecer de forma absoluta, deve essa regra ser relativizada, tendo em vista a grave injustiça que esse tipo de hermenêutica está impondo ao contribuinte. Tratando-se de uma isenção subjetiva, relacionada ao sujeito passivo da obrigação tributária, é necessário a aplicação de outros métodos interpretativos, para que a norma tributária realmente atinja seu propósito. Deve- se utilizar uma interpretação extensiva, ampliando, assim, o alcance da isenção aos portadores de moléstias graves não tipificados no rol elencado do inciso XIV. O projeto de lei já é prova cabal de que o rol taxativo do inciso é deficiente, ele não aborta doenças tão graves quanto as elencadas, causadoras de debilidades físicas e/ou mentais ao portador, com tratamento medico extremamente custoso. Por mais valida que seja a complementação desta norma pela via legislativa é necessário destacar que é um processo vagaroso, haja vista que o projeto não foi aprovado ainda e foi proposto em 2013, e nesse meio tempo o contribuinte que é portador de umas das doenças que estão sendo incluídas por esse projeto estão sofrendo um tratamento desigual, estão sendo prejudicados pela interpretação literal. Ainda é valido destacar, que infelizmente a norma nunca será perfeita, abordando todos os casos que realmente merecer ser abarcados, por isso deve- se utilizar os princípios fundamentais de nosso ordenamento e a hermenêutica jurídica, para que no caso concreto, evidenciando a necessidade da isenção, essa possa ser concedida. Portanto deve-se relativizar a regra, possibilitar a interpretação extensiva, utilizando os métodos teleológico, histórico, sistemático, para que a norma possa alcançar seu objetivo, para que não continue havendo desigualdade entre os contribuintes. Por derradeiro, não permitir uma interpretação extensiva princi-

214

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


palmente no caso de uma isenção decorrente do sujeito passivo, não deve prevalecer no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que este tem como pilar, consagrado pela Constituição Federal de 1988, o princípio da isonomia. REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 14. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2008. xxi BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001 BRASIL. Leis, Decretos. Vade mecum Saraiva. 17.ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2014 BRASIL. Lei n. 7.713 de 22 de dezembro de 1988. Altera a legislação do imposto de renda e dá outras providências. Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF, 23 dez. 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L7713.htm.> Acesso em outubro de 2015 BRASIL, SENADO FEDERAL. Projeto de lei do Senado nº 315, 2013. Altera a Lei nº 7.713, de 22 de dezembro de 1988, para incluir as doenças reumáticas, neuromusculares ou osteoarticulares crônicas ou degenerativas entre as doenças e condições cujos portadores são beneficiados com a isenção do imposto de renda. Disponível em:<http://www.senado.leg.br/atividade/materia/getPDF. asp?t=133803&tp=1>Acesso em outubro 2015 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 LIRA, Daniel Ferreira de. Isenção tributária: a interpretação literal das isenções subjetivas e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 99, abr 2012. Disponível em:<http://www.ambito- juridico. com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11524& revista_caderno=26>. Acesso em setembro 2015. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 33. ed. rev. atual. e ampliada São Paulo: Malheiros, 2012 NADER, Paulo. Filosofia do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002 NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton.2011. Disponívelem:<http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normaliza cao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 07 de abr. de 2015. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional São Paulo: Malheiros, 2009 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. xlvii

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

215

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


LIMITES DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO REGISTRO DE MARCAS: A REGISTRABILIDADE DE SIGNOS DE USO COMUM Márcio Roberto Lopes1 Maraluce Maria Custódio2 RESUMO: Um fenômeno atual que está se tornando cada vez mais comum, na história dos registros de marcas, é a tentativa, por parte de empresas de requererem o direito de uso exclusivo de nomes comuns junto aos tribunais, desconsiderando assim a legislação vigente. Com o presente artigo, buscar-se-á analisar o processo de registrabilidade de marcas junto ao INPI- Instituto Nacional de Propriedade Industrial, em especial, os critérios de aquisição do direito de propriedade sobre os registros de nomes comuns, assim com o refletir sobre as consequências advindas da concessão e da apropriação desses nomes. PALAVRAS-CHAVE: marcas; registrabilidade; nomes comuns; legislação. ABSTRACT:n the history of trademarks, it’s been more and more common the attempts by many companies to require the exclusive use of common names in the courtroom disregarding the current legislation. The present article tries to consider the process of registration of trademarks in the INPI, aka INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL, especially the criterion for fhe right of the register of common names as to think over the consequences of fhe concession and appropriation of these names. KEYWORDS: trademarks; registration; common names; legislation. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Histórico da proteção da marca; 2.1. O registro de marcas no Brasil; 3. Definição da marca para o INPI; 3.1. Requisitos e processo de concessão de registro de marca; 4.0. A registrabilidade de signos de uso comum; 4.1. Quanto à condição de distintividade do sinal; 4.2. Dificuldades na definição de signos de uso comum; 4.3. Signos comuns usados como propriedade privada; 4.4. Estudo de caso; 4.4.1. Solicitação de exclusividade da palavra de uso comum “Nativa”; 5. Considerações finais; Referências.

1 Introdução Para que uma Empresa possa obter a exclusividade de uma marca, produto ou é necessário que faça o registro de sua pretensão junto ao INPI. O presente trabalho tem por objeto de estudo a registrabilidade de signos comuns, analisando os procedimentos exigidos segundo a legislação vigente no país para a aquisição destes como registro de marca. Para tanto, o artigo seguirá uma linha teórica que discorrerá sofre a eficácia dos parâmetros legais para se obter o registro e posse de palavras de uso comum. Conforme o Manual de Marcas do INPI (2015), sinal de caráter comum é o termo ou expressão nominativa ou elemento figurativo que, embora não corresponda ao nome ou à representação pelo qual o produto ou o serviço foram originariamente identificados, tenha sido consagrado, pelo uso corrente, para essa finalidade, integrando assim, a linguagem comercial. Como bem acentua a Lei n° 9.279/96 (LPI), Art. 124, VI, “não são registráveis como marca: sinal de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço, quanto à natureza, nacionalidade, peso, valor, qualidade e época de produção ou de prestação do serviço, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva.” (BRASIL, ANGHER. Vade Mecum, 2015. p.1188) Apesar dessa lei que cuida do tema trazer de forma positivada, no corpo do seu texto, os limites para a registrabilidade

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

de marcas, parece não haver clareza desses limites, em certos casos, como os sinais de uso comum, pois se tem observado, junto ao INPI, constantes pedidos de registro de exclusividade desses nomes. Essas ocorrências têm feito com que inúmeras demandas sobre essa matéria cheguem ao Superior tribunal de Justiça, conforme publicação do site http://www.defesajudicial.com.br/noticias, em 01/12/2013. Este estudo justifica-se pelo aumento casos de empresas que questionam, junto aos Tribunais de Justiça, a legalidade dos registros exclusivos de nomes comuns. Assim, é importante verificar se a Lei 9.279/96, em seu artigo 124, inciso VI, tem oferecido subsídios e clareza suficientes para fundamentar tais julgamentos. Assim, verificaremos como a justiça tem se posicionado, frente às disputas ou questionamentos de registros desses nomes como propriedade privada, pois se percebem relativizações, nesses julgamentos, quanto ao critério para se definir quais vocábulos são considerados de uso comum. Como objetivo específico, analisar-se-á, sobre a registrabilidade das marcas, o que são símbolos comuns. Para analisar tal questão, utilizou-se o método dedutivo, a partir de pesquisa, nos arquivos do INPI, de empresas que tiveram seus registros de nomes comuns questionados por concorrentes e em estudos de diversos juristas que dissertaram sobre o tema. Será discutido mais adiante como os tribunais tem tratado o assunto e qual o parecer tem emitido quanto a essas solicitações. Contudo, necessária é a apresentação de um contexto histórico da proteção da marca, bem como a sua definição e seu processo de aquisição, para que se possa ter uma linha de raciocínio lógica e didática.

216

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


2 Histórico da proteção da marca Neste capítulo, será abordado, em um breve histórico, o surgimento da marca, bem como a sua vinculação ao Direito empresarial. Segundo Zebulum (2007, p. 221), a estrutura das corporações de artes e ofícios erguida no período medieval começa, no século XVIII, a sofrer sérios abalos em razão da Revolução Industrial, cujas características mostravam -se inconciliáveis com o regime corporativo de outrora. As elaboradas produções personalizadas dos artesões passaram a ser substituídas pela produção mecânica de grandes e potentes máquinas, que confeccionavam produtos em série, rigorosamente iguais e cada vez mais perfeitos. Os mestres foram substituídos por empresários que assumiam os riscos do negócio e mantinham a produção em marcha, pagando baixos salários à classe operária que então se formava.

contrava no Brasil, evitando Napoleão. Em 1809, o Príncipe regente baixou alvará que, entre outras medidas, reconheceu o direito do inventor ao privilégio da exclusividade, por 14 anos, sobre as invenções levadas a registro na Real Junta do Comércio. A doutrina brasileira reivindica, a partir desse fato, um “lugar proeminente” ao nosso país na história do direito industrial, sob a alegação de que teria sido ele o quarto, no mundo, a disciplinar a matéria (ULHOA, 2010 apud CERQUEIRA, 1946:6/7). De qualquer forma, em 1830, tendo já conquistado sua independência política, o Brasil editou lei sobre invenções, atendendo à previsão constante da Constituição do Império, conforme Art. 179, § 26, Os inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas produções. A lei lhes assegurará um privilégio exclusivo temporário, ou lhes remunerará em ressarcimento da perda que hajam de sofrer pela vulgarização.” (BRASIL, 1824)

A existência de produtos uniformes praticamente iguais, no mercado, deu nova dimensão às marcas comerciais e provocou o aparecimento das primeiras formas de propaganda e logo se juntaram novas técnicas de venda através de agentes, viajantes e até mesmo as vendas por correspondência, tudo de acordo com a nova sistemática de produção e de mercado então vigente. Neste panorama, começaram a aparecer as primeiras experiências legislativas no âmbito do Direito de marcas. A primeira lei cunhada na França datada de 12 de abril de 1803 e, embora tenha sido elaborada de acordo com os parâmetros de produção medievais (corporações de artes e ofícios), já apresentava algumas características condizentes com a feição moderna das marcas, a saber: proteção legal conferida ao titular da marca mediante o depósito de exemplar no Tribunal de Comércio e punição de contrafação de marcas particulares através do pagamento de indenização ao titular.(ZEBULUM, 2007) Posteriormente, foram editadas as seguintes leis, todas tratando de matéria atinente às marcas comerciais: a lei orgânica francesa de 23 de junho de 1857, a lei italiana de 30 de agosto de 1868, as leis inglesas de 25 de agosto de 1883 e de 23 de agosto de 1887, esta última regulando tema voltado a marcas fraudulentas. A primeira lei Norte Americana a respeito do assunto foi editada em 3 de março de 1881.(ALMEIDA JUNIOR, 2009) Em 1878 ocorreu a primeira reunião em Paris para que os países começassem a reunir esforços no sentido de formular um Tratado acerca da Propriedade Industrial. Os trabalhos resultaram na publicação da Convenção da União de Paris em 1883. Composta inicialmente de 14 Estados-membros, a Convenção instituiu um escritório internacional para organizar as atividades administrativas, tais como a organização reuniões entre partes. A CUP já foi revista sete vezes: em 1890 - Madri; em 1900 - Bruxelas; em 1911 - Washington; em 1925 – Haia; em 1934 - Londres; em 1958 - Lisboa; em 1967 – Estocolmo. Esta última encontra-se em vigor no Brasil desde 1992. Além disso, teve um novo processo de revisão iniciado em 1980, em Genebra. Cada revisão pretendeu aperfeiçoar os mecanismos de internacionalização da propriedade da tecnologia e dos mercados de produtos, na medida em que evoluíam as relações de comércio entre países. O objetivo da Convenção não é o de uniformizar leis nacionais (como ocorre atualmente com o TRIPs, que também trata da matéria) nem condicionar o tratamento nacional à reciprocidade, mas permitir a livre legislação no âmbito do direito interno. (BULZICO, 2006)

Posteriormente, em 1875, surgiu a primeira lei brasileira sobre marcas, uma resposta à representação ao governo, apresentada por Ruy Barbosa, que não havia logrado êxito na defesa dos interesses de um cliente seu – o titular da marca de rapé Areia Preta - por falta de uma legislação protetora.(ULHOA, 2010, apud FERREIRA, 1962,6:259/263) Segundo Fábio Ulhoa (2010. P. 137/138), O direito brasileiro, originariamente, disciplinava em separado as invenções e as marcas. Em 1882, editou-se nova lei sobre patentes, e em 1887 e 1904, outras sobre marcas. O critério de tratamento da matéria industrial em leis separadas somente foi abandonado em 1923, a partir da criação da diretoria Geral da Propriedade Industrial, órgão que passou a centralizar administrativamente as questões afetas aos seus dois âmbitos. A partir de então, o direto industrial brasileiro passou a disciplinar, no mesmo diploma legislativo, as patentes de invenções e os registros de marca. Mas o conceito amplo de propriedade industrial, estabelecido pela União de Paris, nunca foi integralmente incorporado nas muitas reformas legislativas que se seguiram (1945,1967,1969 e 1971). A vigente lei da Propriedade Industrial, por exemplo, aplica-se às invenções, desenhos industriais, marcas, indicações geográficas e à concorrência desleal.

2.1 O registro de marcas no Brasil A história do direito industrial brasileiro, a exemplo do direito comercial, se inicia no processo de desentrave da nossa economia colonial, no início do século XlX, quando a Corte portuguesa se en-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Apesar de os princípios de Propriedade Industrial brasileiro terem os seus fundamentos na União de Paris, o Brasil não absorveu esse conceito de propriedade em plenitude. Um exemplo disso é o fato dos registros de nomes de empresas não serem tratados na mesma lei de Propriedade Industrial. 3 Definição de marca para o INPI No Brasil, a marca e seu registro são protegidos através do INPI. Marca é um sinal aplicado a produtos ou serviços ou serviços, cujas funções principais são identificar a origem e distinguir produtos ou serviços de outros idênticos, semelhantes ou afins de origem diversa. (Manual de Marcas do INPI, 2015). Atualmente, as marcas compõem o ativo das empresas, pois, além de garantirem a origem e a qualidade dos produtos e serviços, também valorizam aqueles que possuem os direitos sobre ela. O titular de uma marca que queira evitar que outros a utilizem deverá requerer o registro através do seu depósito perante o INPI, órgão este, responsável pelo controle de concessão de marcas e patentes no Brasil. Toda marca precisa se distinguir das demais para que, ao se individualizar, possibilite a criação de uma identidade própria

217

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


para os produtos ou serviços que serão associados a essa marca. A lei de propriedade industrial – lei nº9279/96, em seu artigo 122, positiva o caráter de distintividade que deve ter o produto ou serviço. Para que se possa aprofundar mais sobre o tema, se faz necessária uma verificação sobre os procedimentos legais para aquisição de uma marca. 3.1 Requisitos e processo de concessão de registro de marcas Segundo a lei 9279/96, em seu artigo 122, para concessão de um registro de marca, deverá ser preenchido como requisito inicial o critério da distintividade visualmente perceptível, não compreendidos nas proibições legais. Essas proibições se encontram alocadas em 23 incisos do artigo 124. Para o pedido de registro de marca, o pretendente deverá seguir uma série de formalidades. Apresentado pedido de registro de marca, o INPI realiza um exame formal preliminar, pertinente à instrução. Se convenientemente instruído, na forma que a lei determina (LPI, art. 155), o pedido é depositado. Se a instrução estiver incompleta, mas individualizar suficientemente o requerente, o sinal e a classe da marca, então o INPI expede um recibo e fixa as exigências a serem atendidas pelo requerente. Caso se dê o atendimento, no prazo de 5 dias, o depósito considerase realizado na data do recibo. Finalmente, se a instrução estiver muito incompleta, não possibilitando sequer a expedição do recibo, o pedido simplesmente não será protocolado. O apresentante não tem direito ao protocolo, se não instruir minimamente o pedido. Em seguida ao depósito, é feita a publicação da marca, podendo qualquer interessado, nos 60 dias seguintes, apresentar oposição. Muitos têm, na marca registrada, o mais valioso elemento do estabelecimento empresarial, de forma a justificar gastos na proteção do respectivo direito. Se um concorrente apresenta pedido de registro de marca, cujo signo é igual ou semelhante ao da registrada em nome daquele empresário, terá ele interesse em manifestar oposição. O depositante será intimado das oposições ofertadas para, nos 60 dias seguintes, defender sua pretensão ao registro. Na sequência, o INPI realiza o exame das condições da registrabilidade (novidade relativa, não colidência com marca notória e desimpedimento), podendo, se for o caso, impor exigências ao depositante. Concluída a fase do exame, decide o pedido, concedendo ou negando o registro da marca. (ULHOA, 2010) 4 Registrabilidade de signos de uso comum Como foi abordado anteriormente, cabe ao INPI o registro de marcas e patentes. Assim, quem pretende resguardar o direito sobre uma marca, produto ou serviço encontra amparo legal nesse órgão. Após análise dos bancos de dados do INPI, notou-se que há um grande interesse, por partes das empresas, em registrar nomes ou expressões usadas no cotidiano das pessoas. Essas Empresas têm objetivado tomar para si o direito de uso exclusivo de certos vocábulos de uso comum. Conforme Saussure (2004, p.80), o signo linguístico une não uma coisa a uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica. O conceito reflete o que o objeto é em si, em termos gerais e universais; suas propriedades e características o diferem de outros objetos. Os signos são instrumentos de comunicação e representação dos objetos e da realidade. Assim, a comunicação humana passa por esse processo de associação de ideias. Esse processo é intrínseco à característica da língua, e a língua é uma regra livremente consentida e adotada por uma coletividade.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Essas palavras ou expressões usadas de forma constante, em diversas situações comunicativas, destinam-se a uso coletivo, por isso, existem restrições, no que se refere à concessão dos seus registros. Conforme Art. 124, da Lei 9279/96, inciso VI, não são registráveis como marca: sinal de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço, quanto à natureza, nacionalidade, peso, valor, qualidade e época de produção ou de prestação do serviço, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva. (BRASIL, ANGHER. Vade Mecum, 2015. p.1188) Levando em consideração a definição de Sussuare (2004, p.80), para análise do texto da Lei, questiona-se se o fato de a língua ser uma regra livremente consentida pelos indivíduos, seria fácil delimitar o que é de uso comum ou não na sociedade. A Lei oferece base para todos os julgamentos que envolvem essa matéria? Observa-se que muitas dessas palavras sofrem alterações diárias em seus sentidos e vão sendo consagradas, ao longo dos tempos, pela coletividade devido ao uso contínuo. Uma expressão ou palavra que não era de uso comum pode se tornar popular e ser absorvida no vocabulário cotidiano. Ou, em sentido inverso, uma expressão que era de uso coletivo pode passar a ser vinculada a determinado produto ou empresa, sofrendo alterações no seu sentido e podendo ter o seu uso restringido. 4.1 Quanto à condição de distintividade do sinal Quando do registro de uma marca, uma das primeiras condições que deve ser levada em consideração é a distintividade, para que esta seja tida como válida junto ao INPI, como bem acentua o artigo 122 ao determinar que tal exigência esta ligada diretamente à função da marca e, por isso, deve ser preenchida. Um objeto só ganha individualização, em relação a outros de mesmo gênero, caso, quando da sua aferição, se conclua que ele é capaz de distinguir o objeto por ela assinalado de outro. A lei 9279/96, Art. 122, não determina o quanto um sinal deve se diferenciar de outro para que seja aceito seu registro. No entanto, elenca no Art. 124, como já foi assinalado, algumas proibições e limites, no que se refere ao uso do sinal, que tem por objetivo possibilitar aos avaliadores conferir a legalidade desse registro de uso comum ou não. A distintividade é, ao mesmo tempo, condição de existência e função principal da marca. Se um sinal não é distintivo, não é e nem pode constituir uma marca, bem como não será passível de registro como marca se não tiver capacidade para distinguir produtos e serviços, de outros idênticos, semelhantes ou afins. (MORO, 2012) O que se questiona é o quanto um produto tem que ser diferente do outro para que essa distinção seja considerada suficiente para a concessão do registro. Essa distintividade seria apenas no plano material, ou seja, na grafia da palavra ou expressão, ou deve-se observar também as circunstâncias do uso que podem interferir no significado desses vocábulos? Trata-se de questões que extrapolam a escrita e entram em um campo semântico, ficando, muitas vezes, a cargo de interpretações subjetivas por parte do judiciário. 4.2 Dificuldades na definição de signos de uso comum Este trabalho discute a eficácia da Lei de Propriedade Industrial para a registrabilidade de palavras de uso de comum. Para isso, torna-

218

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


se necessário apontar as dificuldades encontradas para estabelecer a relação entre o que é de domínio público e o que é de domínio privado. Essa diferenciação, na medida em que as sociedades se desenvolvem, têm se tornado mais complexa. Cavalcanti (1955, p.355) afirma que essa separação é bastante arbitrária, mais didática do que real. Há, em verdade, uma interpenetração do direito público no direito privado e deste naquele. O dinamismo presente na linguagem possibilita o surgimento de diversas situações que devem ser acompanhadas pela legislação. No entanto, isso não é tão simples, o que pode ser observado nas afirmativas de Robson Pereira (2014, Apud Schmidt 2013. p.59) assim como uma marca pode se tornar mais forte com o passar do tempo, outras, originariamente marcas distintivas, se degeneram a ponto de se transformarem em nomes comuns e perderem a capacidade de distinguir um produto ou serviço de outro. Observa -se que são marcas que se tornaram palavras de uso comum na linguagem, com significado genérico e presença perpetuada nos dicionários. O mercado ainda as reconhece como marcas de propriedade privada, mas coexistem com o significado genérico que adquiriram na linguagem atual, ainda que com grafia diversa. São exemplos marcas como Cotonete, Xerox, Gillette e Jet Sky, entre tantas outras conhecidas no mercado. Essa relação do Público com o Privado também é claramente percebida no caso da utilização de signos comuns que estão sendo registrados pelo Privado. O que se percebe, nos registros do INPI, é a aceitação de registros de nomes comuns sem um critério mais apurado para analisar “a suficiente forma distintiva” que deveria revestir esses nomes comuns. A análise desse critério parece acontecer por meio de uma verificação superficial e objetiva, o que tem acarretado inúmeras discussões nos tribunais, tendo em vista que várias empresas, após registro no INPI, julgam-se proprietárias de tais marcas. 4.3 Signos comuns usados como propriedade privada Estamos inseridos em um universo de signos que transmitem algum significado ou identificam determinados objetos. Encontrar uma palavra que carregue valores, ou tendências modais e que possam ser associadas ao nome da empresa ou instituição pode definir o sucesso do produto ou empreendimento, possibilitando a identificação com o consumidor em um mercado de acirrada disputa comercial. Carmem Guerreiro (2013, p. 39), em um artigo publicado na Revista Portuguesa, afirma que palavras estão à venda e que, muitas empresas, mesmo conhecendo a legislação, tentam sistematicamente apropriarem-se da exclusividade de uso de palavras de uso habitual, coletivo por estas garantirem vantagens comerciais. Casos como os dos comitês olímpicos que requereram a exclusividade sobre a palavra “olimpíada” e congêneres, como os de algumas entidades ligadas ao futebol que brigam por um repertório de muitas palavras como “copa” e “seleção brasileira”. Houve também aspirantes à primazia de vocábulos como “açaí”, “martelinho de ouro” e “tíquete”. É nesse âmbito que se encontra uma nova tendência no mercado: a ambição empresarial por palavras sem vínculos comerciais, as que, muitas vezes, não denominam marcas e produtos, mas são apenas associadas a eles, e cujo direito é da própria população. 4.4 Estudo de caso Conforme já mencionado, as marcas e as patentes são protegidas pela Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/96, e também por tratados internacionais, como a CUP - Convenção da União de Paris e

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

o TRIPs. No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é o responsável pelo registro e concessão de marcas e patentes. Mesmo sob o controle do INPI e com uma legislação específica, têm ocorrido diversas situações de mercado e conflitos de interesses por parte das empresas que tem chegado ao judiciário. Neste artigo, ateremos ao processo e caso que se refere à análise de registro de nome comum, conforme proposto. 4.4.1 Solicitação de exclusividade da palavra de uso comum “Nativa” pela Empresa Nativa Biocosméticos Indústria

A empresa, “Nativa Biocosméticos Indústria e Comércio Ltda”, entrou com um pedido, na Justiça do Paraná, contra “O Boticário”, cuja razão social é “Botica Comercial Farmacêutica Ltda”. O objetivo da reclamante era evitar que O Boticário, usasse o termo “nativa” em alguns dos seus produtos, pelo fato de esse nome já ter sido registrado pela empresa “Nativa Biocosméticos” há 15 anos. Apesar de ter tido a sua pretensão rejeitada, apelou com as seguintes alegações: Sustenta que a utilização do nome “NATIVA” pela recorrida encerraria qualquer possibilidade de autuação no mesmo mercado pela apelante; que se mantida a sentença, o uso da marca “NATIVA” pela apelante será visto por consumidores como uma falsificação ou imitação dos produtos da apelada, pois irão entender que a empresa menor está copiando a maior; que através da presente ação busca evitar que toda a sua linha de produtos seja completamente absolvida pelo nome da apelada no mercado de cosméticos; que a apelada se utiliza da marca da apelante para identificar seus produtos desassociados do uso da marca “O BOTICÁRIO” conforme alega em sua contestação. (http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudência/ tribunaldejustiçadoparana/797237-6-11/04/2012) Ao apresentar as contrarrazões, a empresa “O Boticário” alegou que em momento algum usa a expressão “NATIVA” de forma isolada. Esta palavra sempre é usada pela apelada com a marca SPA. Que ocupa lugar de preponderância e destaque. Além disso, sempre grafa em seus produtos a marca O BOTICARIO, o que também contribui para afastar qualquer confusão com a marca da apelante. Ressalva, por fim, que o próprio INPI (que concedeu o registro no qual a presente ação se funda) já declarou que NATIVA é marca fraca, intrinsecamente ligada a atividades de cosméticos, cujo uso como elemento integrante de outras marcas (como NATIVA O BOTICARIO ou em NATIVA SPA O BOTICARIO) não pode ser obstado pela apelante, dada a grande disseminação de seu emprego na composição de outras marcas, conforme disposto no inciso VI do artigo 124 da Lei 9276/96. http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudência/tribunaldejustiçadoparana/797237-6-11/04/2012) Roberto Massaro, relator do processo, assinalou que a marca registrada junto ao INPI, é de cunho genérico, estreitamente ligada ao produto, o que torna possível o uso por empresas do mesmo ramo de atividades, desde que no sentido comum e em conjunto com outros elementos identificadores, não havendo que se falar em exclusividade e anulação de registro. “Em função de sua debilidade e escasso cunho distintivo, a marca ‘NATIVA’ encontra-se totalmente diluída no ramo de produtos de higiene e cosméticos. Motivo, também, pelo qual os consumidores não irão confundir (conclusão mercadológica) os produtos da apelante com os da apelada,

219

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pois é de conhecimento geral dos seus consumidores, em sua maioria mulheres, que há várias empresas do ramo de cosméticos que utilizam o nome ‘nativa’ como sua marca, por exemplo, a marca NATIVA SPA do Boticário”. Assim afastada a possibilidade de confusão, sobeja a possibilidade de convivência das marcas, concluiu o juiz Roberto Massaro. (http:// www.jusbrasil.com.br/jurisprudência/tribunaldejustiçadoparana/797237-6-11/04/2012) No entanto, a que se questionar esse afastamento da possibilidade de confusão, pois sendo “O Boticário” uma empresa mais conhecida e com mais poder mediático, a constante divulgação do nome “Nativa” associado aos seus produtos faz com que o público consumidor crie referências consolidadas do nome “nativa” com os produtos da marca “Boticário”, o que é o objetivo da empresa ao escolher uma palavra de uso comum. Nota-se que tal palavra traz em sua essência uma carga de valores que reforça o vínculo com a aquilo que é natural e que já é propriedade coletiva. Ao que parece, houve uma falta de clareza por parte da empresa “Nativa” quando do registro do nome. Percebe-se que, quando esta registrou, junto ao INPI a sua marca, acreditou que o nome da empresa não era um nome comum, e, portanto, suscetível a perda do seu uso exclusivo. O que veio a ocorrer nesse processo com a “Boticário”. A empresa “Nativa Biocosméticos”, em 1983, quando escolheu a palavra “nativa” que esta ligada ao sentido daquilo que é “natural”, próprio da terra, para compor a sua marca, talvez não imaginasse a popularização desse nome, tendo em vista que, nas últimas décadas, mais e mais pessoas têm buscado usar produtos naturais. Um exemplo dessa tendência é a popularidade da empresa “Natura” que tem a exclusividade da sua marca, por ser de renome, e que traduz esses valores não só no nome da empresa, mas na maio-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

ria dos seus produtos. Aliás, há o que se questionar, quanto ao critério de julgamento, no uso exclusivo para a “Natura” e a não-exclusividade para a “Nativa”, uma vez que ambas estão associadas a campos semânticos muito próximos. O fato de uma empresa, de maior poder econômico, ter conseguido se firmar no mercado e se tornar conhecida devido ao intenso investimento em markerting possibilita que essa registre, com exclusividade, um nome comum? Não é a proposta deste estudo a discussão em torno de marcas de auto- renome, mas a discussão em torno da apropriação de uma palavra ou expressão que é de uso coletivo. Vale lembrar que, antes de se tornarem motivos de disputas comerciais, esses vocábulos pertencem a população, pois a consagração de uso contínuo e genérico veio dela. Quando as palavras revelam valores, traduzem não só o perfil da Empresa, mas encontram uma consonância com os valores do consumidor. São exatamente esses vocábulos que são disputados por grandes empresas. A pressuposição de que a “Nativa Biocosméticos” era a única detentora exclusiva da marca fez com que a empresa entrasse com vários recursos, alegando os prejuízos causados com a perda dessa exclusividade. No entanto, não conseguiu reverter o processo. Nota-se que o juiz, nesse caso, pautou o seu julgado na análise do diferenciador “SPA” que acompanha o nome “nativa”. A empresa “Nativa” não concorda que apenas essas três letras sejam suficientes para distinguir as duas marcas. Nesse ponto, retomamos o questionamento já explicito, quanto ao grau de distintividade. Uma marca forte como a “Boticário”, com lojas espalhadas em todo o Brasil e com divulgação diária na mídia, tem a tendência de fortalecer o vínculo do nome “Nativa” à sua marca perante os consumidores, deixando em desvantagem a empresa “Nativa Biocosméticos”. Frente a esse fato, pergunta-se, a legislação consegue acompanhar esse processo de popularização de certos vocábulos?

220

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


5 Considerações finais O estudo de caso apresentado exemplifica diversos processos em que há uma certa dificuldade em se definir o que é uma palavra de uso comum ou não. Percebe-se que houve a dificuldade da Empresa “Nativa Biocosméticos” em não reconhecer a popularização do nome comum que sua marca carrega. Há casos em que o judiciário concede exclusividade ao vocábulo que é comum, como o caso da empresa “Natura” citado anteriormente. O que se conclui desse estudo de caso é a necessidade urgente de uma adequação da legislação, para que seja mais específica quanto à utilização dos nomes comuns, principalmente, quanto à possibilidade de se perder essa exclusividade no decorrer dos tempos, tendo em vista que a linguagem é dinâmica e vai adquirindo novas relações de sentidos e novos valores em uma sociedade que está em constante transformação. Outra mudança sugerida seria no inciso VI do artigo 124 da lei 9279/96. Pois, ao afirmar que “o sinal de uso comum deve ser revestido de suficiente forma distintiva” não traz o quanto de distintividade deve haver de uma marca para outra. Afinal, apenas uma palavra, letra, sinal ou expressões que acompanham o nome comum seriam suficientes? Quando se tratam de palavras de uso comum, que são constantemente, reivindicadas como propriedade particular, a revisão desses critérios apresentados evitaria o abarrotamento do judiciário e possibilitaria que certas questões fossem resolvidas quando do pedido do registro junto ao INPI. REFERÊNCIAS BRASIL. Código civil. In: ANGHER, Anne Joyce (Org.). Vade mecum acadêmico de direito. 21.ed. São Paulo: Rideel, 2015. p. 1188. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. 3.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 355. CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de Propriedade Intelectual. São Paulo: Ed. Revista Forense, 1956. TXVII. GUERREIRO Carmem. Marcas Registradas. Revista Língua Portuguesa. Editora Segmento. Ed. 89. São Paulo, março, 2013. p. 39

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça – STJ: Propriedade Industrial: uma questão de marca- Disponível em http://www.defesajudicial.com.br/noticias/ 01/12/2013. Acesso em 11/10/2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação cível nº 707237-6 (PR). Relator: Roberto Massaro. Apelante:Nativa Biocosméticos Indústria e Comércio Ltda. Apelada Botica Comercial Farmacêutica Ltda. Curitiba, 11 de setembro de 2012. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudência/tribunaldejustiçadoparana/797237-6- inteiro teor 21548781> . Acesso em 20/10/2015. BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da regulamentação internacional da propriedade intelectual e os novos rumos para harmonizar a legislação. Disponível em <http://dx.doi.org/10.5380/rbdi.v4i4.9603>. Acessado em 10/10/2015 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO. Procedimentos de análises de marcas.Disponível em www.inovacao.uema.br/Diretrizes_de_analise_de_marcas Acessado em 10/10/2015 INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL. Consulta à base de dados do INPI. Disponível em: https://gru.inpi.gov.br/pePI/servlet/MarcasServletController Acessado em: 10/10/2015. _________.Manual de Marcas do INPI. Disponível em: http://manualdemarcas.inpi.gov.br . Acessado em: 10/10/2015. ALMEIDA JUNIOR, José Roberto de. Marcas não convencionais: a proteção de marcas não convencionais no Brasil. Disponível em: http://www.academia. edu/5954284/UFRJ-marcas. Acessado em 10/10/2015. MORO, Maitê Cecilia Fabbri. O fenômeno da degeneração de marcas e o Direito brasileiro. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/2012. Acessado em 12/10/2015. PEREIRA, Robson (apud SHIMIDT, 2013.p.59) A marca registrada na visão do direito e da semiótica. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jan13/direito-semiotica-explicam-nascimento-morte-marcas-famosas>- Acessado em: 10/10/2015. ZEBULUM, José Carlos. Introdução às Marcas. Disponível em: http:www.TRF2. gov.br/emarf/documents/revista propind.pdf. 2007 p. 207-221. Acesso em 20/09/2015.

Notas de fim SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Trad de A. Chelini, José P. Paes e I. Blikstein. São Paulo: Cultrix; USP, 2004.p.80.

1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

SCHMIDT, Lélio D. A Distintividade das Marcas. 1ª ed. São Paulo. Saraiva, 2013. P.59 .A Invalidação das marcas constituídas por expressões de uso genérico, vulgar, comum ou necessário, in Revista da ABPI, nº.38, pp.11-19. 2013. ULHOA Fábio (apud CERQUEIRA, 1946: 6/7). Curso de Direito Comercial, vol. 1: direito de empresa – 14 ed. Editora Saraiva. São Paulo, 2010. _________.(apud FERREIRA, 1962, 6: 259/263). Curso de Direito Comercial, vol. 1: direito de empresa – 14 ed. Editora Saraiva. São Paulo, 2010. _________. Curso de Direito Comercial, vol. 1: direito de empresa – 14 ed. Editora Saraiva. São Paulo, 2010. p.137/138/170 Sites consultados: BARBOSA, Denis. A Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial. Disponível em: http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/ apostilas/inpi_doutorado/cup1.pdf. Acessado em 10/10/2015 BRASIL, Constituição política do Império do Brasil. Carta da Lei de 25 de Março de 1824. Disponível em http://www.monarquia.org.br/pdfs. Acesso em 22/11/2015. BRASIL. Presidência da República – Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9279.htm. Acesso em 20/04/2015

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

221

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


CONCURSO DE PESSOAS EM CRIMES CULPOSOS Marcella de Mont’ Serrat e Souza1 Renato Martins Machado2 RESUMO: O Concurso de Pessoas ocorre quando duas ou mais pessoas reúnem -se para a prática de determinado delito, tendo como requisitos a pluralidade de pessoas, a relevância causal das condutas, o liame subjetivo e a identidade de infração penal. Sendo certo que nos crimes dolosos pode existir tal instituto, questiona-se a possibilidade de aplicação do Concurso de Pessoas nos crimes culposos, tendo em vista que esse tema é bastante controvertido na doutrina e na jurisprudência. PALAVRAS-CHAVE: Concurso de Pessoas; Co-autoria; Participação; Crimes Culposos; Dever de Cuidado. ABSTRACT: The People Competition occurs when two or more people gather to practice certain offense , with the requirements a plurality of persons , the causal relevance of pipelines , the subjective bond and the identity of a criminal offense . It being understood that the felonies can be such an institute , questions the possibility of applying the People Contest guilty in crimes, given that this topic is quite controversial in doctrine and jurisprudence. KEYWORDS: People Contest ; Co-authors ; Participation; Guilty crimes; Duty of Care. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Principais teorias de distinção entre autoria e participação; 3 Autoria Culposa; 4 Concurso de Pessoas em Crimes Culposos; 5 Conclusão; Referências.

1 Introdução O Concurso de Pessoas é definido por Júlio Fabrinni Mirabete (2014, p. 212) como “a ciente e voluntária participação de duas ou mais pessoas na mesma infração penal”. Pode ocorrer nos crimes que podem ser praticados por uma ou mais pessoas, denominados crimes monossubjetivos, situação esta que caracteriza o concurso eventual. Nos crimes plurissubjetivos, por sua vez, ocorre o concurso necessário, em que os crimes somente podem ser praticados por mais de uma pessoa, não sendo, portanto, objeto do presente estudo. O Concurso de Agentes está previsto no artigo 29, “caput”, do Código Penal, com a seguinte redação: Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 12ª ed. Ver. Atual – São Paulo: Saraiva: 2002, p. 135). A partir disso, é notório que o Código Penal Brasileiro adotou a teoria Monista Mitigada em relação à responsabilização dos agentes, uma vez que, embora todos respondam pelo mesmo crime, é necessário que se verifique o grau de participação de cada um dos agentes no momento da fixação da pena, sendo possível, inclusive, o reconhecimento da participação de menor importância, prevista no parágrafo primeiro do referido artigo. Contudo, existem, também, exceções pluralísticas à teoria Monista, como ocorre nos crimes previstos nos artigos 124 e 126; 235 e 235 § 1º; 342 e 343; 317 e 333, todos do Código Penal. Nos crimes dolosos, que são aqueles em que há vontade e consciência de realizar os elementos do tipo incriminador (BITENCOURT, 2012 p. 398), é unânime o entendimento de que é possível o concurso de pessoas. A divergência doutrinária e jurisprudencial está na sua possibilidade nos crimes em que há a inobservância do dever objetivo de cuidado, decorrente de uma conduta produtora de um resultado não desejado pelo agente, mas objetivamente previsível, os chamados crimes culposos. Assim, questiona-se a possibilidade de co-autoria e participação nos delitos culposos, verificando, para tanto, as principais teorias de diferenciação entre autoria e participação e os pressupostos da autoria culposa. LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

2 Principais teorias de distinção entre autoria e participação Para que seja analisada a hipótese Concurso de Pessoas nos crimes culposos, necessária se faz a demonstração das teorias que diferenciam a autoria da participação. Em aplicação ao Princípio da Legalidade, adotado expressamente no artigo 1º do Código Penal Brasileiro, é preciso que seja feita uma distinção entre autor e partícipe, sendo necessário que se verifique a conduta típica de cada um dos colaboradores para determinada infração penal. Para tanto, foram criadas teorias unitárias, extensivas e restritivas. Na teoria unitária, não existe distinção entre autoria e participação, sendo que a participação teria a mesma importância da autoria. Por conseguinte, segundo Renato Martins Machado, na teoria unitária: “Eventual análise de relevância da colaboração individual para a realização global do fato criminoso interessa apenas para fins de determinação da pena sem que, com isso, se acolha qualquer forma de distinção entre as várias formas possíveis de contribuição”. (MACHADO, Renato Martins. 2015. P. 83). Segundo o conceito extensivo de autor, autor é aquele que concorre para o resultado, não existindo diferença entre co-autoria e participação. Conforme ensinamento de Luiz Régis Prado: “Trata-se de um conceito residual de autoria, posto que só será considerado autor aquele que colabora causalmente com a prática do delito através da realização de alguma condição não prevista expressamente como forma de participação. Assim, as espécies de participação seriam, em realidade, causas de restrição da pena, pois excluiriam do conceito de autor a indução, a instigação e a cumplicidade. Formulado por Mezger, não permite ele a compreensão dos delitos especiais próprios, nos quais se exige a presença de uma determinada qualidade de seu autor. Nestes últimos, a mera exclusão da contribuição causal de determinado sujeito da noção de participação ao éo bastate para a sua automática caracterização como autor”. (PRADO, Luiz Régis.. 2014. P. 568).

222

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Por outro lado, existem as teorias restritivas, que diferenciam a autoria de participação, sendo as principais, a teoria formal-objetiva, teorias objetivo-materiais e teorias subjetivas. De acordo com o critério formal-objetivo, autor é quem executa a conduta constante no verbo núcleo do tipo penal, de maneira que o partícipe é aquele que não executa o crime, mas concorre para a realização desse, de maneira menos relevante. Essa teoria tem enfrentado diversas críticas, pois não explica diversas situações, tais como a autoria mediata, que se dá quando o autor se aproveita de um terceiro que atua como instrumento para a realização do tipo penal. Além disso, essa teoria não seria justa quando houver autor intelectual de determinado delito, pois sua participação, não raras as vezes, é mais decisiva para a realização do delito do que do próprio executor do crime. Não apresenta solução satisfatória, também, em casos de co-autoria, situação tão comum na vida prática. Por isso, explica Nilo Batista: “O critério formal-objetivo se contenta, na verdade, não com a integral realização da conduta executiva, e sim com a realização de um ‘trecho’ dessa conduta; com a mera interferência em parte na execução; seu compromisso com a tipicidade, pois, não é tão profundo quanto apregoado por seus seguidores”. (BATISTA, Nilo. 1979. P; 48/49). As teorias material-objetivas, por sua vez, diferenciam autor e partícipe levando em consideração a maior contribuição do primeiro na produção do resultado. Segundo Luiz Régis Prado (2013, p. 571), o autor é a causa, e o partícipe, a condição do evento típico. Assim, a distinção entre autoria e participação deve ocorrer a partir da relevância causal das respectivas condutas, estando, portanto, em total desacordo com o artigo 13 do Código Penal Brasileiro, que não diferencia causa e condição, adotando, assim, a teoria da equivalência dos antecedentes causais em relação ao nexo de causalidade. Em contrapartida, as teorias subjetivas diferenciam o autor do partícipe através de critérios subjetivos, relacionados a aspectos psíquicos do agente, pois sugerem que os critérios objetivos não são suficientes para diferenciar autoria de participação. Nesse diapasão, explica Renato Martins Machado: “A partir da teoria da equivalência dos antecedentes causais – ponto de partida das teorias subjetivas -, todo participante é, do ponto de vista objetivo, autor. Aqui, não há como distinguir em importância as várias formas de participação, repita-se. Contudo, se se requer que em um crime a autoria seja algo mais do que causalidade mais dolo, esse algo a mais deve se fundamentar apenas em um elemento subjetivo”. (MACHADO, Renato Martins. 2015. P. 119). Dentro das teorias subjetivas, existem a Teoria do Dolo e a Teoria do Interesse. A Teoria do Dolo distingue o autor do partícipe a partir da dependência da vontade do autor em relação à independência da vontade do partícipe, sendo que este almeja o resultado a critério do autor. A Teoria do Interesse, por sua vez, defende que autor é aquele que pratica o crime satisfazendo interesse próprio, enquanto o partícipe quer a realização da conduta criminosa objetivando atender a interesse alheio. Conforme ensinamento de Claus Roxin: “Si alguien carece de todo interés propio en la ejecución de un hecho cabe suponer que deja su realización a criterio del otro en cuanto auténtico interesado. A esta estrecha relación obedece que la teoría del interés haya aparecido en ocasiones a lo largo de su evolución imbricada casi indisolublemente con la teoría del dolo”. (ROXIN, Claus. 2000. P. 76).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

As teorias subjetivas são criticadas, uma vez que ofendem ao Princípio da Legalidade, propondo critérios exclusivamente subjetivos para a distinção entre autoria e participação, quando, na verdade, os tipos penais exigem um limite objetivo no conceito do autor, e que, embora defendam que a ação se esgota na mera causação de um resultado, desconsideram, para tanto, a vontade do autor, considerando, posteriormente, a finalidade do agente para conceituar a autoria (MACHADO, Renato Martins. 2015, P. 126). Partindo disso, critica Renato Martins Machado: “Na prática, afirma-se que o critério da intenção como elemento que deve balizar a distinção entre autoria e participação não apresenta um elemento racional que pode ser empiricamente verificado, senão que essa delimitação fica a cargo da subjetividade do juiz”. (MACHADO, Renato Martins. 2015. P. 127). Por outro lado, a Teoria do Domínio do fato define que o autor é aquele que detém o controle final do fato, sendo assim, o autor não é só aquele que executa a ação típica, mas também o que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal, através da autoria mediata. Claus Roxin traz o conceito desta teoria: “Por fin, en 1939 aparece el concepto de dominio del hecho en WELZEL que enlaza por vez primera la idea de dominio del hecho con la doctrina de la acción, derivando de ésta una “autoría final” basada en el critério del dominio del hecho. «La autoría final es la forma más amplia de domínio del hecho final», dice WELZEL. A partir de ahora,el concepto del dominio del hecho se cuenta entre los activos sólidos de la dogmática penal, y ello esencialmente con el contenido y configuración que recibieron de WELZEL. De ahora en adelante su destino ya no forma parte de la historia, sino del estado evolutivo actual.”. (ROXIN, Claus. 2000. P. 126/127). Baseando-se nesta ideia, verifica-se que autor pode ser aquele que executa o verbo núcleo do tipo penal, mas também pode ser o autor intelectual, eis que o que deve ser analisado é o domínio que o agente tem sobre o fato. Por isso, dispõe Nilo Batista: “Só pode interessar como co-autor quem detenha o domínio (funcional) do fato; desprovida deste atributo, a figura cooperativa poderá situar-se na esfera da participação (instigação ou cumplicidade). O domínio funcional do fato não se subordina à execução pessoal da conduta típica ou de fragmento desta, nem deve ser pesquisado na linha de uma divisão aritmética de um domínio ‘integral’ do fato, do qual tocaria a cada co-autor certa fração. Considerando-se o fato concreto, tal como se desenrola, o co-autor tem reais interferências sobre o Se e o Como; apenas, face à operacional fixação de papéis, não é o único a tê-las, a finalisticamente conduzir o sucesso. Pode-se, entretanto afirmar como Roxin que cada co-autor tem a sorte do fato total em suas mãos (jeder das Schicksal der Gesamttat in der Hand hat), ‘através de sua função específica na execução do sucesso total, porque se recusasse sua própria colaboração faria fracassar o fato’” (BATISTA, Nilo. 1979. P. 77). A doutrina e a jurisprudência têm adotado a Teoria do Domínio do Fato para que seja feita a distinção entre autor e partícipe (CUNHA, Rogério Sanches, P. 362/363).

223

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


3 Autoria Culposa De acordo com o artigo 18, inciso II do Código Penal Brasileiro: “Art. 18 – Diz-se o crime: II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”; (JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 12ª ed. Ver. Atual – São Paulo: Saraiva: 2002, p. 134). Sendo assim, comete crime culposo aquele que com uma conduta voluntária (ação ou omissão), produz um resultado típico não querido, mas previsível, e expressamente previsto no ordenamento jurídico como crime. (MIRABETE, Júlio Fabrinni. 2014, P. 132). José Frederico Marques assim preleciona os elementos integrantes do conceito de culpa: “a) conduta inicial voluntária; b) resultado lesivo de que a lei faz depender a existência do crime; c) nexo causal entre a conduta e o resultado; d) previsibilidade do evento lesivo (excepcionalmente a previsão) e involuntariamente na produção do resultado” (MARQUES, José Frederico. 1997. P. 264). Ainda, segundo o parágrafo único do artigo 18 do Código Penal Brasileiro, para que o agente seja punido por crime culposo, a conduta por ele praticada deverá estar taxativamente prevista em lei. Cézar Roberto Bittencourt preceitua que: “A tipicidade no crime culposo decorre da realização de uma conduta não diligente, isto é, descuidada, causadora de uma lesão ou de perigo concreto a um bem jurídico-penalmente protegido. Contudo, a falta do cuidado objetivo devido, configurador da imprudência, negligência ou imperícia, é de natureza objetiva. Em outros termos, no plano da tipicidade, trata-se apenas de analisar se o agente agiu com o cuidado necessário e normalmente exigível. No entanto, o emprego adequado da diligência necessária deve ser aferido nas condições concretas, existentes no momento do fato, além da necessidade objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurídico. Dito de outra forma, no momento de determinar se a conduta do autor se ajusta ao tipo do injusto culposo, é necessário indagar, sob a perspectiva ex ante, se no momento da ação ou da omissão era possível, para qualquer pessoa no lugar do autor, identificar o risco proibido e ajustar a conduta ao cuidado devido (cognoscibilidade ou conhecimento do risco proibido e previsibilidade da produção do resultado típico). A indagação, contudo, sobre se o agente tinha as condições necessárias ou adequadas, isto é, se podia, no caso concreto, ter adotado as cautelas devidas, somente deverá ser analisada no plano da culpabilidade (exigibilidade da conduta conforme o direito)”. (BITTENCOURT, Cézar Roberto. 2012. P. 416/417). Isto posto, importante analisar não só o resultado típico (sempre exigível) que o eventual autor culposo produziu, mas a forma com que a sua conduta foi realizada, de forma a analisar se o agente observou seu dever objetivo de cuidado no momento de praticar sua conduta. Sobre esse dever objetivo de cuidado, é lição de Júlio Fabrinni Mirabete: “A cada homem, na comunidade social, incumbe o dever de praticar os atos da vida com as cautelas necessárias para que de seu atuar n ão resulte dano a bens jurídicos alheios. Quem vive em sociedade não deve, com uma ação irrefletida, causar dano a terceiro, sendo-lhe exigido o dever de cuidado indispensável a evitar tais lesões. Assim, se o agente não obser-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

va esses cuidados indispensáveis, causado com isso dano a bem jurídico alheio, responderá por ele. É a inobservância do cuidado objetivo exigível do agente que torna a conduta antijurídica”. (MIRABETTE, Júlio Fabrinni. 2014, P. 133). De forma brilhante, expõe Claus Roxin: “En realidad, el tema es tan ampho que en la ‘primera toma de contacto’ de la presente obra he descuidado un poco el análisis de los concretos deberes especiales fundamentadores de autoría de la mano de los tipos individuales, sobreestimando así el número y alcance de los delitos de infracción de deber. Lo cual es especialmente cierto para los delitos imprudentes, a los que en la actualidad ya no considero delitos de infracción de deber en tanto que la vulneración del deber general de cuidado, constitutiva del injusto, simplemente se refiere al deber de evitar que incumbe a todo ciudadano y que también subyace a los tipos dolosos. Más bien, en los delitosimprudentes, como en general, sólo cabe hablar de delitos de infracción de deber allí donde deberes especiales extrapenales entrañan requisitos de la autoría especiales, no accesibles a cualquiera.”. (ROXIN, Claus. 2000. P. 743). No mesmo sentido, Juarez Tavares destaca que: “Tratando-se de delitos com estruturação complexa, no qual estão mesclados dever extrapenal, proibição penal e resultado imputável, cada autor detém características objetivas próprias que não podem ser estendidas simplesmente a qualquer um que tenha contribuído causalmente para o resultado proibido. Portanto, os delitos culposos não são simplesmente delitos de domínio, nos quais o importante é o controle que o agente exerça sobre a sua realização, mas delitos cuja substância se encontra – repita-se – na forma e no modo como o agente é alcançado pela proibição, a partir do não atendimento a um dever de cuidado, o qual, inclusive, deverá impregnar todo o processo de imputação ”. (TAVARES, 2009. P. 460). Por conseguinte, verifica-se o caráter personalíssimo da culpa, vez que o dever de cuidado incumbe a cada agente de forma particular que, caso viole com a observância do cuidado que lhe é exigido, terá responsabilidade em eventual resultado antijurídico causado, não sendo possível, portanto, que esse dever seja compartilhado entre os agentes. 4 Concurso de Pessoas em Crimes Culposos Na lição de Cézar Roberto Bitencourt (2012, P. 629), é possível a co-autoria em crimes culposos, desde que dois ou mais indivíduos, agindo vinculados subjetivamente, atuem de forma negligente, imprudente ou imperita. O liame subjetivo, um dos requisitos mencionados para a configuração do Concurso de Pessoas, envolve a conduta praticada, não havendo que se falar em liame subjetivo envolvendo o resultado, pois, como visto, os agentes não desejam que ele ocorra. Por conseguinte, a inobservância do dever de cuidado é o fundamento da co-autoria. Por outro lado, a possibilidade de participação em crimes culposos é rejeitada, pois qualquer ato imprudente, negligente ou imperito que tenha nexo de causalidade com a lesão ao bem jurídico tutelado faz com que se tenha um co-autor, não sendo possível se falar em participação, pois não há a divisão de tarefas a fim de produzir um resultado, como ocorre nos crimes dolosos. Seguem esse entendimento Júlio Fabrinni Mirabete (2014. P. 220/221), José Frederico Marques (1997, P.422/423), Alexandre Araripe Marinho e André Guilherme Tavares de Freitas (2011, P. 424/425), Fernando Galvão (2011. P. 531/533) e Rogério Greco (2015. P. 528/531).

224

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


“(...) Coautor nada mais é do que autor e autor é quem tem o domínio final do fato e não se pode ter o domínio final do fato em um crime culposo: ou o indivíduo tem o dolo e dirige sua conduta a um determinado fim ou ele age com inobservância do dever objetivo de cuidado e acarreta um resultado lesivo por negligência, imprudência ou imperícia, mas isso, no caso em tela, somente pode ser imputado a quem dirigia o automóvel. Crime omissivo próprio ou impróprio que acarreta a impossibilidade de coautoria diante do dever geral de atuação de cada indivíduo. Nos crimes omissivos cada qual responde pela omissão individualmente, com base no dever que lhe é imposto, diante da situação típica de perigo ou diante de sua posição de garantidor. Concurso de agentes que exige requisitos objetivos: 1. Pluralidades de condutas mesmo que idênticas; 2. Relevância causal de cada uma das ações para com o resultado e a identidade de resultado; e requisito subjetivo: união de vontades entre os agentes. Logo, se cada conduta foi isoladamente perpetrada não se está falando de concurso de agentes. Coautores que não tinham qualquer interferência sobre o “se” e o “como” do fato concreto. Denúncia que ao imputar um crime culposo aos três acusados sem determinar quem é o motorista, estabelece, em verdade, a responsabilidade penal objetiva, inadmissível no Direito Penal moderno. Crime culposo que não admite, nem poderia, o acordo prévio de vontades típico do concurso de agentes. Se autor (e consequentemente coautor) é quem detém o domínio final do fato como dizer que os acusados, todos, tinham o domínio da resolução comum do fato em suas mãos se não dirigiam o automóvel (ao menos dois não dirigiam)? (...)”.(TJ-RJ - HC: 00566290420148190000 RJ 0056629-04.2014.8.19.0000, Relator: DES. PAULO SERGIO RANGEL DO NASCIMENTO, Data de Julgamento: 24/03/2015, TERCEIRA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 31/03/2015)

No entanto, consoante ensinamento de Cézar Roberto Bitencourt: “A doutrina alemã não admite a possibilidade de coautoria nos delitos culposos, entendendo que qualquer contribuição na causa produtora do resultado querido não caracteriza, em si, a autoria. Para Welzel, toda a contribuição em uma ação que não observa o dever de cuidado fundamenta a autoria. No mesmo sentido, Jescheck, para quem é inadmissível a coautoria nos delitos culposos diante da inexistência de acordo comum. Quando houver a cooperação imprudente de vários autores – continua Jescheck – a contribuição de cada um deve ser avaliada separadamente, pois cada um será autor acessório. Essa concepção germânica decorre da adoção da “Teoria do Domínio do Fato”, , visto que nos crimes culposos este domínio não existe. Já em relação à participação em sentido estrito (instigação e cumplicidade), o Código Penal Alemão determina expressamente que ela só é possível na forma dolosa (§§ 26 e 27).” (BITTENCOURT, Cézar Roberto. 2012,P. 628/629). Nesse sentido, concordamos com o posicionamento dos doutrinadores alemães, uma vez que o dever objetivo de cuidado de cada agente faz com que a culpa seja pessoal, fazendo com que cada um responda pela sua parcela de contribuição para o risco criado de forma separada. De acordo com o ensinamento de Nilo Batista: “Nos tipos abertos dos crimes culposos, determina-se a subsunção de conduta mediante um juízo de comparação entre o procedimento do sujeito e o procedimento que, nas mesmas circunstâncias, teria uma pessoa prudente e conscienciosa. É pela inadequação a menor entre o procedimento do sujeito e esse procedimento standard que se revela a tipicidade da conduta, cuja essência ilícita reside, assim, na violação de um dever de cuidado objetivamente aferível. Por essa linha, que foi rasgada, como vimos, pela teoria finalista, é possível aproximar os crimes culposos dos delitos de dever, e aproximar em conseqüência as soluções pertinentes à autoria. Não há diferença entre autor direto e partícipe nos crimes culposos, porquanto a concausação culposa (isto é, com violação ao dever objetivo de cuidado) importa sempre em autoria” (BATISTA, Nilo. 1979. P. 60/61).

Reforçando esse entendimento, preleciona Nilo Batista: “A participação é conduta essencialmente dolosa, e deve dirigir-se à interferência num delito também doloso. O dolo do partícipe (dolo de instigador e dolo de cúmplice) compreende conhecer e querer a colaboração prestada a um ilícito doloso determinado em suas linhas gerais; será suficiente, contudo, um dolo eventual. Não é pensável uma participação culposa, tal via nos conduziria inevitavelmente a hipóteses de autoria colateral” (BATISTA, Nilo. 1979. P. 121/122).

Importante ressaltar que, como bem ensina Luiz Flávio Gomes, a culpa é personalíssima. Dessa forma, o dever objetivo de cuidado deve ser levado em conta para cada autor do delito de maneira separada, pois cada um tem sua responsabilidade na inobservância desse dever, possuindo características próprias que não devem ser estendidas aos demais supostos autores do delito, senão vejamos: “A culpa (como infração do dever de cuidado ou como criação de um risco proibido relevante) é pessoal. Doutrinariamente, portanto, também não é sustentável a possibilidade de co-autoria em crime culposo. Cada um responde pela sua culpa, pela sua parcela de contribuição para o risco criado”. GOMES, Luiz Flávio. Participação de várias pessoas no crime culposo. Disponível em: <http://jus2.uol.com. br/doutrina/texto. asp?id=7623>. Acesso em: 06/10/2015. Ainda, o liame subjetivo deve estar presente tanto na conduta, quanto no resultado, para que esteja caracterizada a situação de concurso de pessoas. Portanto, em que pese o liame subjetivo esteja presente na conduta dos possíveis infratores, o mesmo não existe em relação ao resultado, que apesar de previsível, não é querido pelo agente nos crimes culposos. Vejamos o seguinte entendimento jurisprudencial:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Nesse diapasão, Jacobo López Barja de Quiroga entende que: “Los delitos imprudentes por esencia rechazan la posibilidad de coautoría, pues no existe una decisión común al hecho. En este sentido, Bacigalupo considera que como el delito imprudente se caracteriza por la infracción de un deber, esto no es susceptible de partición ni de división. Igualmente, Jescheck niega la posibilidad de coautoría y, por ello, explica que cuando cooperan de forma imprudente, cada uno de ellos es autor accesorio y las distintas aportaciones deben valorarse separadamente en cuanto a su contenido de imprudencia.” (QUIROGA, Jacobo López Barja de. 1996. P 70/71). Assim, é necessário que sejam analisadas todas as circunstâncias em que se deram o delito, para que se observe se a conduta praticada por cada suposto autor do crime culposo foi relevante na produção do resultado.

225

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


5 – Considerações finais A cada sujeito cabe um dever de cuidado objetivo, elemento essencial ao crime culposo e, como visto, este dever é personalíssimo, de maneira que a análise da conduta de cada agente deve ser individualizada a fim de se observar eventual inobservância do dever de vigilância de cada agente, sendo rechaçada, assim, a hipótese de que seja estendido o dever de cuidado a outro agente. Outrossim, ainda que determinado agente tenha violado seu dever de cuidado e essa violação não tenha nexo de causalidade com o delito, não pode o sujeito ser responsabilizado criminalmente, uma vez que, conforme visto, a conduta culposa deve gerar um resultado lesivo previsto expressamente, para que seja considerada crime. Ainda, sendo a Teoria do Domínio do Fato cada vez mais aceita pela doutrina e jurisprudência e que, a nosso ver, é a que melhor atende ao conceito de autor e o distingue da participação, nela exige-se do autor que este tenha o domínio final do fato, fundamentando-se na divisão de tarefas. Assim, apesar de alguns doutrinadores entenderem que o liame subjetivo se refere exclusivamente à conduta dos autores na co-autoria culposa, discordamos deste posicionamento, eis que o liame subjetivo deve estar presente tanto na conduta, quanto no resultado, para que esteja caracterizada a situação de concurso de pessoas. Quanto à participação, não há divisão de tarefas com o intuito de produzir determinado resultado, razão por que só é possível nos crimes dolosos. Diante disso, entendemos que não seria possível o reconhecimento dos institutos da co-autoria e da participação nos delitos culposos, eis que, ao vislumbrarmos um crime em que cada um tenha sua responsabilidade na criação da situação de risco, cada violador do dever de cuidado é um autor do delito, que deve ser responsabilizado penalmente de acordo com sua conduta individual.

cido, 2015. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2011. Disponível em: <http://newton.newtonpaiva.br//NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao _Newton_2011.pdf>. Acesso em: 20/11/2015. MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Volume II. 1ª ed. Atualizada. Campinas: Ed. Bookseller, 1997. MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABRINNI, Renato N. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Arts. 1º ao 120 do CP. Volume I. 30ª Ed. Revista e atualizada. São Paulo: Ed. Atlas S.A, 2014. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. Arts. 1º ao 120 do CP. Volume I. 12ª ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. QUIROGA, Jacobo López Barja de. Autoría y Participación. Madrid: Ed. Akal, S. A., 1996. ROXIN, Claus. Autoría e Domínio del Hecho em Derecho Penal. Trad. Joaquim Cuello Contreras, José Luís Serrano Gonzáles de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. <http://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178776972/habeas-corpus -hc-566290420148190000-rj-0056629-0420148190000> Último acesso em: 29/10/2015.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Concurso de agentes: Uma Investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1979. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - Parte Geral 1. 17ª ed. Revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição. htm> Acesso em: 30/04/2015 CUNHA. Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 3. ed. Rev. amp. e atualizada. Ed.: Jus Podivm, 2013. Volume Único. GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. 4 ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Ed.: Lúmen Júris, 2011. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume I. 17ª ed. Rev. amp. e atualizada. Niterói: Impetus LTDA, 2015. GOMES, Luiz Flávio. Participação de várias pessoas no crime culposo. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 878, 28 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=7623>. Acesso em: 06/10/2015. JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 12ª ed. Ver. Atual – São Paulo: Saraiva, 2002. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2011. MACHADO, Renato Martins. Do Concurso de Pessoas: Delimitação entre coautoria e participação a partir da Teoria do Domínio do Fato. Belo Horizonte: D’Plá-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

226

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


NOVO INSTRUMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À SOCIEDADE: PARCERIA PÚBLICO PRIVADA Mauro Dutra de Menezes Filho1 Gustavo Vidigal2 RESUMO: O Estado ocidental de cunho racional, legalista e democrático, princípios dos quais está introduzido o Brasil, deve ser um Estado planejador de suas ações prestativas, assim não há como se conceber que o direito administrativo como o direito da Administração Pública ignore o planejamento e seus resultados. O Estado Brasileiro passou nos últimos 20 anos uma fase de crescimento econômico com base em uma infraestrutura arcaica, e que não acompanha as reais necessidades de desenvolvimento. Outra dificuldade é a falta de recursos necessários para modernizar e adequar esta infraestrutura à demanda existente. A sociedade brasileira, por sua vez, vem exigindo cada vez mais do poder público que os impostos pagos retornem com serviços prestados que satisfaçam seus anseios. Considerando este paradigma, a edição da Lei Federal nº 11.079 instituiu um novo elemento as normas gerais para licitação e contratação, as Parcerias Público-Privadas - PPPs, no âmbito da administração pública. Neste contexto, é evidente que para a adequação desta nova ferramenta, se impõe restrições à discricionariedade na atividade, que observem todas as regras e valores do ordenamento jurídico, além da segurança jurídica, assim, é imprescindível a presença do advogado na constituição, acompanhamento, implementação e prestação de contas das Parcerias Público Privadas. PALAVRAS-CHAVE: Administração pública, novo instrumento, parceria público privada acompanhamento dos profissionais do direito. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Concepção Histórica; 3 Introdução das PPP’s no Brasil; 3.1 Diretrizes das Parcerias Público Privadas; 3.1.1 Diretriz: Eficiência; 3.1.2 Diretriz Respeito ao interesse dos parceiros; 3.1.3 Diretriz: Indelegabilidade de funções próprias do poder público; 3.1.4 Diretriz: Responsabilidade fiscal; 3.1.5 Diretriz: Transparência de Atos; 3.1.6 Diretriz: Compartilhamento de riscos e sustentabilidade dos projetos de parceria; 3.2 Contratos; 3.3 Garantias; 3.4 Sociedade de Propósito Específico; 3.5 Licitação; 3.6 Órgão Gestor de PPP’s, ministérios e agências reguladoras; 4 O Panorama Brasileiro das Parcerias; 5 Operadores do Direito nas Parcerias Público Privadas; 6 Considerações finais.

1 INTRODUÇÃO Em primeira análise, cumpre ressaltar que, com a concepção e consolidação do Estado Democrático de Direito, a função administrativa do Estado, que se submete a uma concepção democrática, deixou de ser um meio de apropriação do poder político para a realização dos interesses dos governantes ou de classes dominantes, o que representa, atualmente, um grande problema da sociedade brasileira contemporânea, haja vista essa concepção estatal, apesar de já se encontrar assimilada no Brasil, ainda não ter se efetivado de fato como realidade, face às classes política e oligárquicas que ainda não concretizaram a transição entre o arcaico modo de administração pública e o modo almejado pela população. A eficiência estatal apareceu no ordenamento jurídico com o Decreto-lei 200/67, o qual submeteu toda atividade pública ao controle de resultado (arts. 13 e 25, V), fortaleceu o sistema de mérito (art. 25, VII), e sujeitou a Administração Indireta à supervisão ministerial quanto à eficiência administrativa (art. 26, III). Como se vê, a busca pela eficiência estatal remonta há quase 50 anos, na forma de preocupação econômica e objeto de constantes estudos dos doutrinadores. A sociedade civil tem assumido uma parcela significativa de encargos necessários à satisfação dos seus direitos fundamentais, com a consciência de que o Estado não dispõe de condições de satisfazer todas as necessidades de cunho geral e essencial refletindo na criação do chamado terceiro setor. A Constituição Brasileira estabeleceu, em seu art. 37, que a Administração Pública deve ser regida, dentre outros, pelo princípio da eficiência, como transcrito no texto constitucional: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]. (BRASIL, 1988). A partir deste contexto nasce o presente trabalho, questionamse os diversos instrumentos para que a citada eficiência buscada pelo legislador no texto constitucional chegue de fato ao dia-a-dia da população brasileira. Para tanto, far-se-á um aprofundamento sobre a questão da Parceria Público-Privada (PPP), no intuito de se observar o quanto, na questão abordada, a sociedade civil organizada, representada por empresas, podem contribuir para a eficiência da gestão do serviço público, uma vez que, na atualidade, os governos têm buscado esse instrumento para melhoria do atendimento e da prestação do serviço público. O intuito – tanto do legislador,quanto dos governantes – é estabelecer parceiros na gestão dos serviços públicos, uma vez que a sociedade brasileira se mostra cada vez mais saturada com a falta de equilíbrio entre a relação dos impostos recolhidos e a contraprestação dos serviços prestados em decorrência daqueles. A função administrativa prestacional, conforme preceitua Marçal Justen Filho, é composta de poderes para promover a satisfação concreta de necessidades coletivas relacionadas a direitos fundamentais. Traduz-se, em especial, no instituto dos serviços públicos (JUSTEN FILHO, 2015). Mesmo assumindo papel ativo em diversos campos de atuação cujo dever é originariamente de responsabilidade da Administração Estatal, a sociedade civil organizada – através do terceiro setor –, não tem se mostrado suficiente para garantir os anseios sociais.

227

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Por conseguinte, esse desencontro entre impostos recolhidos e serviços prestados, indiretamente proporcionando o surgimento de novos instrumentos para inserção da sociedade civil organizada em atividades originariamente estatais, na busca de uma melhoria da gestão pública, apresenta-se como tema de extrema relavância para os operadores do direito, uma vez que, como é possível se observar atualmente pelos inúmeros incidentes policiais e investigativos que a mídia diariamente tem noticiado – por exemplo, no caso da ingerência privado-pública na PETROBRÁS – qualquer novo instrumento de inserção de terceiros na Adminsitração Pública pode se converter em um agente de estabelecimento de corrupção. O conhecimento dos novos instrumentos de participação de agentes privados na Administração Pública, principalmente no caso das PPPs, caminha o Poder Público na direção do contemporâneo clamor social, uma vez que representam instrumentos que buscam a melhorias das funções estatais, sendo imprescindível a participação do Direito – por meio de seus operadores – para um melhor desenvolvimento e verificação do uso correto destes instrumentos.

pação da iniciativa privada, que aceitaria neles investir sob a garantia concedida pelo Poder Público. Assim, com as PPP’s tem-se uma nova sistemática de contratação de entidades privadas ou consórcios formados por elas, com o objetivo de executar atividades ou empreendimentos de interesse público em acordos de longo prazo.

2 CONCEPÇÃO HISTÓRICA A administração pública procura acompanhar o dinamismo e a complexidade da vida em sociedade, devendo ser capaz de se alterar e acompanhar as necessidades do momento, neste sentido dada sua necessidade de mutação, HADLICH MIGUEL (2011) destaca que em uma modificação constante, existe a necessidade de uma legislação que ordene uma adaptação ao contexto que se modifica velozmente, surgindo assim, um Novo Estado a cada dia. Com a escassez de recursos e diante de um cenário mutante, viu-se uma importante transição entre o Estado empresário para o Estado regulador, saiu-se do estado monopolista para o Estado parceiro. A concepção de um Estado regulador, vem, através das chamadas Agências Reguladoras, assumido um papel importante no sentido de que regula e fiscaliza as atividades concedidas a execução e exploração do setor privado, entretanto, importante frisar que existe um ponto controverso que é até onde estas agências podem regular, sem invadir a esfera de competência legislativa Este contexto de transformações no Brasil, se faz em meio a uma transformação, em função do crescimento vivido nos últimos anos, este crescimento se fez baseado em uma estrutura arcaica que infelizmente não acompanharam as reais necessidades de desenvolvimento, desta forma, a construção de novos equipamentos públicos é urgente para que a continuidade da retração da capacidade estrutural em função do desenvolvimento econômico não seja empecilho para o desenvolvimento econômico social. As Parcerias Público Privadas – PPPs surgiram na Inglaterra nos anos 90 sob a administração do conservador John Major que lançou o embrião do programa de parceria inglês, com base em projetos desenvolvidos sob um instrumento denominado Iniciativa para o Desenvolvimento Privado (em inglês, PFI, de Private Finance Initiative), os objetivos do PFI foram corrigidos e adaptados ao longo do tempo, de forma que, em 1996, no governo de Tony Blair, o Private Finance Initiative, foi rebatizado de Public Private Partnership, ou em português Parceria Público Privada (PPP). Segundo GUIDO MANTEGA (2004) as parcerias público privadas seriam um casamento produtivo entre o Estado, que determina quais são os projetos de infraestrutura necessários para o desenvolvimento do País, e a iniciativa privada, que terá a oportunidade de canalizar os seus recursos para investimento rentáveis e produtivos. O alicerce então para a adoção das PPP’s reside na idéia de que os projetos importantes par ao País, que por falta de recursos não pode implementá-los, poderão vir a ser desenvolvidos com a partici-

§ 1o Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

3 A INTRODUÇÃO DAS PPP’S NO BRASIL O modelo de parcerias público privadas se espalhou pelo mundo, sendo que no Brasil, antes mesmo da regulamentação pela Lei 11.079, houve o pioneirismo do Estado de Minas Gerais mediante a Lei nº. 14.686 de 16 de dezembro de 2003. A partir da edição da Lei 11.079 de 30 de Dezembro de 2004 é legitimada a Parceria Público Privada no âmbito federal, surgindo um novo o modelo de concessão, sendo que o referido dispositivo logo em seu Atigo 2º, assim estabelece: “Art. 2o Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.

§ 2o Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.” A concessão patrocinada estabelecida no citado artigo, é a que mais se aproxima dos contratos de concessão comuns, sem com elas no entanto se confundir, conforme especificado no §2º. Na concessão patrocinada a remuneração do concessionário se faz pela conjugação da tarifa cobrada dos usuários e da contraprestação do poder concedente, nas formas estabelecidas no edital e contrato. A concessão administrativa apresenta dois cenários, a concessão administrativa de serviços públicos em que o concessionário presta serviço público, mas o usuário não paga tarifa pelo serviço, a remuneração do concessionário é feita integralmente da contraprestação pecuniária do poder concedente. Na concessão administrativa de serviços ao Estado, como descrito no próprio nome, trata-se de serviços prestados ao Estado, o que nos faz remeter aos contratos comuns regidos pela Lei de Licitações, entretanto, trata-se de uma modalidade em que o aporte de recursos deve ultrapassar a R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), que serão amortizados no curso do contrato. Com a instituição das parcerias a administração pública passa a ter mais elementos para a celebração de contratos, neste momento, a administração passa a fomentar, fiscalizar e cada vez menos administrar e executar, o Estado passa a mercantilizar seus contratos, não no sentido pejorativo que em alguns casos o termo é utilizado, mas agora o estado começa a reconhecer seu papel dentro da administração de serviços, reconhece sua falência na administração e execução de determinados serviços, abre-se um espaço de cooperação para que a iniciativa privada dê sua contribuição não só financeira mas também gerencial, o que antes da Lei 11.079/2004 não existia. Neste sentido, interessante o posicionamento de Lucas Rocha Furtado quando diz que: “O objetivo do Estado é o bem estar social de sua população. O objetivo do setor empresarial, em qualquer local do plane-

228

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ta, é a perspectiva de lucro. Não obstante sejam distintos, não são os interesses do Estado e das empresas inconciliáveis. Há situações em que os propósitos do setor público e do setor privado podem convergir. A PPP busca identificar esses pontos de interesse e harmonizá-los de modo a que os investimentos, os riscos e as responsabilidades dos empreendimentos possam ser distribuídos de modo a satisfazer tanto os interesses privados, relacionados a obtenção de lucro, quanto os interesses públicos, consistentes na execução de obras de infraestrutura ou de saneamento básico, bem como na fruição desses empreendimentos por parte da população.” (Curso de Direito Administrativo – p. 513, 3ªEd. Editora Fórum, 2012) 3.1 Diretrizes das Parcerias Público Privadas O artigo 4º da Lei nº 11.079/2004 fixa os mecanismos para o alcance dos objetivos das PPP’s, prescrevendo as diretrizes para os contratos da seguinte forma: “Art. 4o Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; V – transparência dos procedimentos e das decisões; VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.”

co, com o total acatamento das cláusulas avençadas, considerando o ajustado como um documento a ser plenamente honrado enquanto vigente, independentemente de governos e governantes, afastando assim o que de mais arcaico do existente na administração pública brasileira que são as desconsiderações de acordos formalizados, bem descrito por Luís Paulo Rosemberg: “(....) percebeu-se que no Brasil firmar um contrato de longo prazo com o governo é uma atividade primária. Mandatários que assumirem seus mandatos anos após o início de regência da concessão podem mudar unilateralmente regras básicas do contrato (como cláusulas de reajuste de tarifas), ameaçando a integridade financeira montada pelos concessionários que aceitaram o desafio”. Assim, este inciso II veio a dar mais segurança aos empreendedores para que tenham segurança no cumprimento dos contratos. 3.1.3 – Diretriz: Indelegabilidade de funções próprias do Poder Público (art. 4º, Inciso III)

Independente das áreas de atuação e das diversas parcerias a serem firmadas, o Poder Público reservou para si o direito de manter sob sua tutela as funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de todas as atividades exclusivas do Estado, de onde se extrai que tais atividades não comportam delegação aos entes privados, sendo exercido pelo Poder Público seu poder de império. 3.1.4 – Diretriz: Reponsabilidade Fiscal (art. 4º, inciso IV)

Este Inciso reafirma como diretriz aquilo que foi convencionado na Lei Complementar nº 101 de 2000, que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, assim, as PPP’s estão condicionadas ao atendimento das disposições sobre responsabilidade fiscal. 3.1.5 – Diretriz: Transparência dos Atos (art. 4º inciso V)

Ligado ao princípio da moralidade, também convencionado na Carta Magna, a transparência nos procedimentos e decisões é exigido de todo agente público, assim, as parcerias também estão sujeitas a total transparência de seus atos, que no ordenamento jurídico é chamado de segurança jurídica. 3.1.6

3.1.1 – Diretriz: Eficiência (art.4º, inciso I):

Esta diretriz parte do seu pressuposto de princípio constitucional, trata- se da mola mestra a ser perseguida por toda atividade da administração pública, conforme estatuído no Artigo 37 da Constituição Federal, por intermédio da Emenda Constitucional nº 19/1998. Desta forma, nas contratações de PPP’s o agente público deve consignar tal procedimento no cumprimento das missões a que se destina, bem como no emprego dos recursos envolvidos. Para o administrador de um projeto de PPP deve ser considerado o custo do planejamento, construção e manutenção pelo setor privado com o custo da utilização dos métodos tradicionais do setor público, trata-se da demonstração de fato de que a parceria deve demonstrar sua habilidade para a combinação otimizada de custos da vida útil do projeto e a qualidade dos bens ou serviços. 3.1.2 – Diretriz: Respeito aos Interesses dos Parceiros (art.4º, inciso II)

Mesmo sendo o povo o destinatário do serviço público, respeitar seus direitos é fundamental para um Estado Democrático de Direito, entretanto, pela primeira vez no direito pátrio, resolveu o legislador positivar os interesses e os direitos do parceiro privado. O que se pretendeu, foi demonstrar a seriedade do Poder Públi-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Diretriz:

Compartilhamento

de

riscos

e

sustentabilidade dos projetos de parceria (Art. 4º, incisos VI e VII)

O que se verifica nos Incisos VI e VII é a intenção do legislador em reduzir os riscos do parceiro privado na implantação de um projeto de Parceria Público Privada, isto se faz necessário em função do receio existente por parte dos agentes privados em celebrar contratos de longo prazo com o Estado, quando estes, a partir do surgimento de problemas, não participam de maneira efetiva para que tais problemas sejam resolvidos. Luiz Paulo Rosemberg conceituou essa postura da seguinte forma: “A inserção dos princípios de repartição objetiva de riscos e de sustentabilidade financeira é uma prova cabal de que o poder público Brasileiro está buscando superar antigos maus costumes.” É neste sentido, que no planejamento de parceria público privada deve constar quais sejam efetivamente os planos de responsabilidade e de riscos de cada qual dos parceiros, uma vez que a segurança do contrato se dará a partir de estudos e projeções de impacto orçamentário e financeiro destas responsabilidades. 3.2 – Os contratos As disposições dos contratos de parceria estão dispostos no

229

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Artigo 5º da citada lei que assim dispõe: “Art. 5o As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever: I – o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação; II – as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas; III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária; IV – as formas de remuneração e de atualização dos valores contratuais; V – os mecanismos para a preservação da atualidade da prestação dos serviços; VI – os fatos que caracterizem a inadimplência pecuniária do parceiro público, os modos e o prazo de regularização e, quando houver, a forma de acionamento da garantia; VII – os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado. VIII – a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§ 3o e 5o do art. 56 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; IX – o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado; X – a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas.” Em uma singela síntese, pode se dizer que o contrato administrativo é um acordo de vontades entre o Poder Público e um particular que produz direitos e obrigações para as partes. Em todo o contrato, e nas PPP’s não é diferente, existem as cláusulas que fixam o seu objeto e prescrevem as condições imprescindíveis para sua plena execução, são as chamadas cláusulas obrigatórias, também chamadas de necessárias ou essenciais. Importante salientar que o conteúdo dos contratos de PPP já é definido no instrumento convocatório de licitação, sempre tomando como princípio o disposto na Lei 8.666/1993, ou seja, não facultado aos contratos de parceria inovar ou sobrepor as condições previstas na licitação.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

O artigo ora em comento menciona o Artigo 23º da Lei das Concessões (Lei 8.987/1995) que enumera as cláusulas obrigatórias dos contratos de concessão de serviço público, além daquelas que também podem, na medida de sua aplicação, serem utilizadas, nos pactos de PPP, quais sejam, o objeto, a área e prazo de concessão. O modo, forma e condições da prestação do serviço, critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade. A formulação do preço, os critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão de tarifas. Os direitos, garantias e obrigações do poder concedente e da concessionária, inclusive relacionados às necessidades de adequação em função da expansão e modernização, direitos e deveres dos usuários, formas de fiscalização do processo, as penalidades, os bens reversíveis, os casos de extinção da concessão ou de sua prorrogação, os critérios para cálculo de indenização da concessionária, quando for o caso, a exigência de publicação de demonstrações financeiras periódicas das concessionárias, a determinação do foro e ao modo de solução de divergências contratuais, além da obrigatoriedade de conter a forma e a periodicidade da prestação de contas da concessionária ao poder concedente. Importante frisar que nos casos das Parcerias Público Privadas, além destas cláusulas, deve também conter obrigatoriamente, o prazo de vigência do contrato que deve ser compatível coma amortização dos investimentos, não sendo inferior a 05 (cinco) anos e não superior a 35(trinta e cinco) anos. As penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, que deve ser de forma proporcional a fato concreto com as obrigações assumidas. A repartição dos riscos, as formas de remuneração e atualização de valores, os mecanismos que garantam a preservação da atualidade da prestação dos serviços, a descrição de fatos que caracterizam a inadimplência do setor público, os modos e o prazo de regularização destas e em caso de necessidade qual a forma de acionamento das garantias a partir deste inadimplemento. Nos contratos também deve constar os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado, a prestação por este parceiro de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e os riscos do empreendimento, observando os limites impostos pelos artigos 3º e 5ª do Artigo 56 da Lei 8.666/93 e no que concerne as parcerias de modalidade patrocinada o disposto no inciso XV do Artigo 18 da Lei nº 8.987/95. Deve haver ainda a divisão com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos por ele utilizados, constando ainda a realização de vistorias para os bens reversíveis, podendo, em caso de necessidade, o parceiro público reter pagamentos ao parceiro privado, no valor necessário a sanar as irregularidades necessárias. Dadas às especificidades, algumas cláusulas merecem destaque, dentre elas o prazo de vigência constante no Inciso I que foram estipulados tendo como marco a amortização dos investimentos, computando-se neste prazo eventuais prorrogações, diferindo dos contratos regidos pela Lei de Licitações (8.666/1993) que possuem sua vigência vinculada aos respectivos créditos orçamentários. A elasticidade do prazo se mostra uma preocupação uma vez que existe a possibilidade do Poder Público assumir os riscos destes contratos e neste interim é passível de proporcionar um fluxo de pagamentos futuros, o que acarreta em endividamento público, contrariando a sistemática da Lei de Responsabilidade fiscal. Entretanto, é o prazo mínimo que causa discrepância, uma vez que não leva em consideração os pequenos municípios que não podem esperar 05 anos uma vez que suas necessidades tem que ser atendidas em períodos mais curtos, o que praticamente exclui estes entes federados da modalidade concessória aqui estudada.

230

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Outro ponto inovador nos contratos de parceria esta estabelecido no inciso II, que trata das penalidades, diferentemente de outros contratos administrativos em que as penalidades são aplicadas pelo Poder Público de forma unilateral, com a Lei 11.079 criasse uma diferença marcante que se constitui na possibilidade de sanção também à Administração Pública, conforme disposto citado inciso, quando diz que “as penalidades são aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações assumidas.” É uma disposição inovadora que na prática não se vislumbra, considerando que diante do ordenamento jurídico administrativo atual, não é possível a viabilidade da ação por parte do parceiro privado, uma vez que a norma não dispõe quais são as penalidades cabíveis, assim, observado o princípio da Legalidade, só a passível a aplicação de penalidades previstas em Lei, para Zanella de Pietro (2005) não há possibilidade de penalidades contra a administração pública não detém personalidade jurídica, o que resultaria em a sanção aplicada ao Estado sendo que somente este possui a exclusividade do poder sancionatório. Nesta seara reporta-se as possíveis penalidades previstas no Artigo 87 da Lei nº 8.666/1993, que demandam imposições a todos os contratos administrativos, entretanto, esta sanções são voltadas exclusivamente para a aplicação por parte do Poder Público ao contratado e não ao contrário. Adentrando em outro dispositivo, verificamos no Inciso III o compartilhamento dos riscos entre as partes e o que vale novamente retratar o Artigo é a colocação do chamado fato príncipe, a saber: “a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária”, trata-se de um novo elemento, esse fato é uma determinação do Poder Público que pode ser negativo, positivo ou imprevisto, é um fato extraordinário e extracontratual que obriga o parceiro público a atuar de modo a compensar os prejuízos da outra parte, podendo inclusive a ensejar na rescisão contratual e indenizações. Temos também como novo elemento a álea econômica extraordinária, trata-se de um acontecimento que pode prejudicar o lucro ou desenvolvimento do contrato, um risco, este risco pode provocar o desequilíbrio econômico do acordo, demandando a revisão de suas cláusulas financeiras, cabe observar que somente a álea econômica extraordinária autoriza o reequilíbrio do contrato, uma vez que a álea ordinária é decorrente dos riscos assumidos pelo empreendedor quando assumiu à atividade inerente a que se propôs realizar. Consta no dispositivo também os casos de caso fortuito ou força maior que que verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, assim, como é um fenômeno inevitável e imprevisível devem as partes buscar a solução em conjunto. No inciso IV temos as formas de remuneração e atualização contratuais, por óbvio temos que, como em qualquer contrato de prestação de serviços públicos, estabelecer os parâmetros de remuneração do parceiro privado bem como a atualização de valores que por acaso podem ser quitados com atraso. Esta remuneração pode ser mediante pecúnia, ordem de pagamento bancário, cessão de créditos não tributários, outorga de direitos em face da Administração, outorga de bens dominicais e outros admitidos em lei, conforme o previsto no Artigo 6º da Lei em comento, neste item específico vale salientar a premissa que norteia as parcerias público privadas que quanto menor for a exigência de utilização de dinheiro público maiores serão as chances de concretização das parcerias, tanto que para essa busca o dispositivo abre um leque de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

opções de remuneração, abrindo ao setor privado o máximo de aproveitamento das contraprestações públicas para eficiência na execução do projeto. Outro ponto inovador do citado Artigo esta em seu Inciso IX que retrata a possibilidade de partilha de ganhos econômicos em função da redução do risco de crédito do parceiro privado, mas o que cabe destaque é a clareza do dispositivo quando retrata sobre os ganhos advindos dos créditos dos financiamentos, o que significa que são ganhos a partir de financiamentos feitos no mercado financeiro voltados exclusivamente para o objeto do acordo de PPP, que se traduz quando os juros cobrados pelos agentes financeiros forem inferiores aos riscos de créditos atribuídos à administração, entretanto, na prática é um dispositivo de raríssima aplicação visto que não é mensurada a forma de partilha dos ganhos, e a avaliação destes ganhos seria duvidosa. Por fim temos o Inciso X, que dispõe sobre a realização de vistoria dos bens reversíveis, sendo que estes são os bens empregados pela parceira e indispensáveis à continuidade da prestação do serviço no regime público, os quais poderão ser revertidos à União ao término dos contratos de concessão, entretanto cabe observar que na Lei de Concessões em seu Artigo 36 prevê que forma de indenização destes bens, com intuito de preservar os investimentos do concessionário, observando que estes bens devem ser determinados previamente no edital licitatório, sendo assim, somente estes poderão ser revertidos. 3.3 Das Garantias As garantias nas parcerias público privadas são de suma importância para o sucesso de sua implementação, afinal trata-se de investimentos que partem dos 20 milhões de reais. Os contratos com o poder público têm sensíveis diferenças quando se comparados aos contratos de direito privado, para melhor elucidar esta questão, podemos citar as chamadas cláusulas exorbitantes, que dão ao poder público condições de, unilateralmente, modificar o contrato para melhor adequá-lo às finalidades de interesse público, bem como rescindi-lo, fiscalizar seu objeto, aplicar sanções, dentre outros. Pois bem, como neste cenário convencer os investidores de que os investimentos em empreendimentos cuja à duração pode chegar a 35 anos, são seguros? A Lei nº 11.079/2004 observa a relevância destas garantias como forma de incentivo do empresariado, observando que as PPP’s mais que um instrumento jurídico é um instrumento econômico, na busca de atrair capital privado para a melhor eficiência na prestação de serviços públicos e as garantias estão dispostas no Artigo 8º do citado diploma, que assim estabelece: “Art. 8o As obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser garantidas mediante: I – vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal;

231

II – instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; III – contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; IV – garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público;

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


V – garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade;

§ 1o A transferência do controle da sociedade de propósito específico estará condicionada à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital e do contrato, observado o disposto no parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.

VI – outros mecanismos admitidos em lei.” Se não fossem as garantias às parcerias estariam fadadas ao insucesso, sendo sobre o tema relevante a contribuição de Binenbojm (2005, p. 169), que assim coloca: “Uma das características peculiares dos contratos de PPP é o reforço das suas garantias em relação à generalidade dos contratos celebrados pela Administração Pública. A razão de ser de tal característica é de fácil compreensão: ao contrário dos demais contratos administrativos, as PPP’s exigem investimentos iniciais vultuosos dos particulares, propõem uma amortização a longo prazo e no caso das concessões patrocinadas e das concessões administrativas de serviços públicos, não oferecem objeto suficientemente atrativo para justificar per se os riscos assumidos pelos investidores privados.” A relevância das garantias passa pelo histórico de mal pagador do Estado Brasileiro, não respeitando o compactuado nos contratos, além de quando acionado, não paga o que deve, como exemplo temos a postergação do pagamento dos precatórios levando a cresça da falta de seriedade no trato dos pagamentos por parte do Estado aos particulares, o melhor do cenário seria a transmissão de credibilidade por parte do parceiro estatal, entretanto, faticamente não é o que ocorre e como consequência gera a desconfiança de investidores. Neste diapasão, cabe sustentar também que quando existe o descumprimento do contrato por parte do particular as decisões judiciais geralmente são bem claras ao impor pagamento de multas pouco se importando com o seu valor, entretanto, quando as cláusulas contratuais são descumpridas pelo Poder Público existem as chamadas interpretações sociais que acabam por preservá-lo de arcar com a penalidade. Observando este contexto e a morosidade judicial na resolução de conflitos, possibilitou-se ao particular como forma alternativa de garantia a possibilidade da arbitragem na solução de conflitos oriundos das parcerias. A instituição da arbitragem é um dos elementos mais polêmicos trazidos pela Lei das PPP’s, litígios envolvendo a arbitragem e a Fazenda Pública são antigos. Uma das maiores discussões sobre o uso ou não do meio arbitral envolvendo a Administração Pública seria a determinação do que seriam os denominados direitos indisponíveis, uma vez que tudo que consta na relação contratual que envolva a Administração Pública é indisponível. Cabe observar que a via arbitral é a via mais célere, o que implica em redução de custos, entretanto, com a questão dos direitos indisponíveis, certo seria que a lei dispusesse sobre quais as hipóteses em que a arbitragem pode ser utilizada, restringindo a discricionariedade do poder concedente na elaboração do edital. 3.4 Sociedade de Propósito Específico Para a celebração do contrato de Parceria Público Privada, a lei requer a constituição da Sociedade de Propósito Específico que é incumbida de implantar e gerir o objeto de parceria, como disposto no Artigo 9º, que assim dispõe: “Art. 9o Antes da celebração do contrato, deverá ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

§ 2o A sociedade de propósito específico poderá assumir a forma de companhia aberta, com valores mobiliários admitidos a negociação no mercado. § 3o A sociedade de propósito específico deverá obedecer a padrões de governança corporativa e adotar contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas, conforme regulamento. § 4o Fica vedado à Administração Pública ser titular da maioria do capital votante das sociedades de que trata este Capítulo. § 5o A vedação prevista no § 4o deste artigo não se aplica à eventual aquisição da maioria do capital votante da sociedade de propósito específico por instituição financeira controlada pelo Poder Público em caso de inadimplemento de contratos de financiamento. ROCHA FURTADO (2012, p. 529) assim tratou do tema: “Objetiva o legislador com a introdução dessa inovação facilitar a fiscalização a ser empreendida pelo parceiro público sobre o parceiro privado, além de buscar viabilizar os interesses de todos os agentes privados envolvidos na parceria, sejam eles sócios, investidores ou financiadores do empreendimento.” Para se transferir o controle dessas sociedades a Administração Pública deve autorizar expressamente nos termos do edital e do contrato. Estas sociedades podem assumir o papel de capital aberto, ou seja, podem admitir valores mobiliários negociados em mercado, com adoção de governança coorporativa, que são os padrões de ética e de comportamento aprovados pela própria empresa, que também conta com contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas. Como disposto no próprio artigo o legislador não se preocupou apenas com a questão da criação de uma sociedade, mas de uma sociedade cuja administração tenha conceitos modernos de gestão, vedando inclusive a Administração Pública a ter a maioria do capital votante. 3.5 Licitação A contratação de parcerias público privadas será precedida de licitação na modalidade concorrência, como disposto no Artigo 10 que diz: “Art. 10. A contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade de concorrência, estando a abertura do processo licitatório condicionada a:” A Lei dispõe que antes do julgamento na licitação, poderá haver a etapa de qualificação de propostas técnicas, desqualificando licitantes que não tenham atingidos a pontuação mínima. Na análise das propostas poderão ser considerados os critérios da menor tarifa do serviço a ser prestado, a combinação da melhor tarifa com o critério da melhor técnica do serviço a ser prestado, o menor valor da contraprestação a ser paga pelo Poder Público,

232

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tudo de acordo com os pesos estabelecidos no edital. Uma inovação ocorreu nesta fase, pela primeira vez um dispositivo enfrentou a questão do formalismo exagerado na condução de procedimentos licitatórios e admite-se que o próprio edital preveja a possibilidade de saneamento de falhas, de complementação de faltas ou correções de caráter formal no curso do procedimento, desde que o licitante respeite os prazos estabelecidos no instrumento convocatório. 3.6 Órgão gestor de PPP, ministérios e agências reguladoras A Lei 11.079/2004 determina que será instituído através por Decreto, no caso o Decreto nº 5.385/2005, o órgão gestor de parcerias público-privadas federais com competência para definir os serviços prioritários para execução no regime de parcerias público-privada, disciplinar os procedimentos para celebração destes contratos, autorizar a abertura da licitação e aprovar seu edital, apreciar os relatórios de execução dos contratos. Dentre os encargos, incumbe ao órgão gestor a remessa para o Congresso Nacional e para o Tribunal de Contas da União, com periodicidade anual, relatórios de desempenho dos contratos celebrados, a Lei também define qual a competência dos Ministérios e das Agências Reguladoras nas suas respectivas áreas de atuação, para submeter o edital de licitação ao órgão gestor, proceder à licitação, além de acompanhar e fiscalizar os contratos de parceria público privada. A Lei também define as regras que autorizam a União a conceder incentivos, nos termos do Programa de Incentivo à Implementação de Projetos de Interesse Social (PIPS), às aplicações em fundos de investimentos, criados por instituições financeiras, em direitos creditórios provenientes dos contratos de parceria público privada (Artigo 23). Determina que a Secretaria do Tesouro Nacional editará, na forma da legislação pertinente, normas gerais relativas a consolidação das contas públicas aplicáveis aos contratos de parceria público- privada (Artigo 25), fixam limites para operações de crédito realizadas pro empresas públicas e sociedades de economia mista em projetos de PPP (Artigo 27) e definem condições para a concessão de garantias e para a realização de repasses voluntários concedidos pela União em favor dos Estados, Municípios e Distrito Federal em razão do comprometimento da receita líquida dessas unidades com projetos de PPP (Artigo 28). 4 O PANORAMA BRASILEIRO DAS PARCERIAS PÚBLICO PRIVADAS No Brasil, em que pese o atual cenário de crise, existem dezenas de projetos de parceria em execução e existem exemplos de sucesso, cite-se, a Parceria Público-Privada que redundou no Hospital do Subúrbio do Estado da Bahia, a qual foi selecionada para concorrer ao prêmio United Nations Public Service Awards do ano de 2015 (UNPSA 2015), a maior premiação da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada para o serviço público. Também a unidade de parcerias público-privadas (PPPs) de Minas Gerais foi eleita pela revista britânica World Finance, como a melhor do mundo por meio da premiação “World Finance Awards 2015”. A Unidade de PPP foi destaque na categoria “Project Finance Deal of the Year”, ao ser premiada como “PPP Team of the Year”. Essa Unidade trabalha para oferecer as Municipalidades do Estado sua experiência para o desenvolvimento de projetos de parceria com a iniciativa privada. Trata-se de uma unidade técnica vinculada ao governo estadual que fornece os estudos de viabilidade e acompanhamento na implementação de parecerias público privadas nas áreas de interesse dos municípios em todas as regiões. No ano de 2015, houve a assinatura de quatro Termos de Cooperação Técnica entre a Secretaria de Estado de Desenvolvimen-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

to Econômico e municípios ou consórcios intermunicipais, a fim de concretizar parcerias entre a Unidade de PPP e municípios mineiros. Foram contemplados os municípios de Uberaba, Betim, o consórcio Cigedas – formado por 19 municípios da região das Vertentes – e o Codanorte – formado por 35 municípios da região Norte. Em que pese o sucesso da Unidade criada no Estado de Minas Gerais, cabe salientar que o ente federado foi pioneiro na adoção das PPP’s, criando sua lei Estadual relativo ao tema em 2003, anterior a promulgação da Lei 11.079 que é de 30 de Dezembro de 2004. O Estado de Minas Gerais conta com dez contratos de PPPs em execução e outros dois projetos já passaram pela fase de licitação, de modo que aguardam a adjudicação dos respectivos contratos: (i) Rota Lund (exploração, mediante concessão administrativa, da gestão de áreas das unidades de conservação Parque Estadual do Sumidouro, Monumento Natural Estadual Gruta Rei do Mato e Monumento Natural Estadual Peter Lund) e (ii) Contorno Metropolitano Norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (exploração, mediante concessão patrocinada, do trecho norte do contorno rodoviário, seu entorno e vias adjacentes, precedida de obras de implantação). Atualmente o cenário político, econômico, fiscal e empresarial no Brasil sinaliza desafios para que as parcerias público privadas possam ser realizadas, a sociedade observa que as consequências deste cenário em diversas áreas de convívio, seja no trabalho, nas compras para casa ou mesmo no simples abastecimento do automóvel no posto de gasolina, a inflação tomou parte da renda e com isso a crise com os serviços prestados em função dos impostos pagos se tornou ainda maior. Observa-se que o Governo tem atrasados os seus repasses em obras de parceria, neste contexto, cabe um dos pressupostos admitidos na própria Lei que instituiu as parcerias que são as renegociações dos contratos de PPP, isso contexto deveria ser visto e enfrentado com naturalidade. Como dito, a própria norma estabelece termos em que o próprio contrato, seja de maior ou menor complexidade, pode estabelecer cláusulas sobre renegociações e como ela deve ser conduzida. Em meio a este cenário, o que se vê, é que nos processos de renegociação afloram o meio desordenado em que a administração pública se dá, nestes processos veem a tona um clima litigioso e de desconfiança entre as partes, na prática o que se observa é que ignora-se o fato de tratar-se de um contrato de longo prazo, para se ater a temas imediatistas, leva-se em conta o momento e não se vislumbra o que os contratos trazem no decorrer do tempo. Estas renegociações de contratos de PPP e o cenário de crise fiscal, há um questionamento a ser respondido, considerando o grande temor do poder público em vincular gastos de longo prazo através das parcerias, como viabilizar as parcerias futuras? Discorre-se assim um argumento que merece ser discutido, uma vez que nunca foram iniciados tantos projetos de PPP em Estados e Municípios como nos últimos tempos, segundo dados do site www.pppbrasil.com.br existem mais de 80 celebrados no Brasil. O primeiro ponto a ser esclarecido é que nos contratos de PPP não significa comprometimento mais e novos recursos orçamentários. Como já descrito no presente estudo, em um projeto de Parceria Público Privada, como diz o próprio nome, pode ser estruturado de modo a substituir o gasto público por aquele que será realizado via contraprestações periódicas nas concessões administrativas e patrocinadas. Pela lógica, as PPP’s seriam justamente o contrário do temor governamental, uma vez que melhoraria a qualidade do gasto público, uma vez que pode aglutinar em um único contrato de longo prazo, pequenos contratos de pequeno porte, cabe observar que as administrações de contrato de curto prazo é que se mostram ineficientes e inócuos na resolução da demandas sociais, ressalta-se que nos

233

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


contratos de parceria público privada, essencialmente pressupõe governança estruturada e incentivos ao desempenho da concessionária. Portanto, ao contrário do que se imagina, as parcerias podem ser uma ótima ferramenta para, em um cenário de escassez de recursos orçamentários, restituir para a sociedade com uma mesma quantidade recursos públicos serviços de melhor qualidade. Entretanto, o que se vê na prática é que mesmo sendo uma ferramenta muito elogiada por todos, permanece apenas como grande promessa de alavancagem de vários projetos de infraestrutura que o país necessita. A verdadeira pergunta a ser feita e que de maior relevância é: o empresariado brasileiro e os investidores nacionais e internacionais tem interesse por esse tipo de contrato e quer assumir os riscos inerentes ao modelo? Nessa questão o que ocorre de fato, e um imobilismo decisório, associado a uma desconfiança na capacidade do poder público de honrar os compromissos firmados e de tomar decisões plausíveis em contratos de tamanha complexidade e investimento. A Administração Pública tem realizado estudos de viabilidade das parcerias como nunca se observou antes. O que cabe observar é que, esse esforço será em vão se o poder público não se atentar para o fato de que a estruturação e a promoção dos projetos precisam ser especialmente desenhadas para que, quando a licitação emergir, haja empresas com apetite para apresentar propostas e é neste contexto que os operadores do direito devem agir. 5 OS OPERADORES DO DIREITO NAS PARCERIAS PÚBLICO PRIVADAS A partir dos planos econômicos testados no Brasil nos anos 80, vinculou- se o planejamento e direito econômico, foi ofuscado o direito administrativo e o planejamento estatal. O planejamento econômico não é, porém a única forma de planejamento estatal, ao agir nos campos da educação, saúde, segurança pública passando por infraestrutura e até as políticas macro econômicas, o Estado é obrigado a planejar. A complexidade, a flexibilidade e outras características do planejamento, guardam estreita relação funcional com os elementos constituintes dessa atividade, assim, no processo do planejamento público poderá se estender ao âmbito de instituições privadas que atuem como parceiras do Estado no exercício da função administrativa, como estando destacando no presente trabalho. O planejamento no sentido estrito e jusadministrativo é processo, uma sequência de atos estatais e privados buscando, ao final, trazer uma estratégia pública para a consecução de finalidades maiores previstas na Constituição ou em Leis que regulam atividades maiores do Estado. Em um Estado Democrático de Direito, existem formas de democratização do planejamento que vão variar de acordo com o ordenamento jurídico e conforme normas que regem os processos legislativos e administrativos que nele são empregados. No entanto, é importante que neste contexto democrático o planejamento e seus resultados gozem de um mínimo de legitimidade, é desta forma que a democracia restringe o planejamento, compatibilizando os interesses públicos com o ordenamento jurídico. A construção de um projeto de parceria público privada, o planejador deve levar em consideração as regras e valores do ordenamento jurídico e adequá-los a necessidade social, a segurança dos investidores e a transparência dos recursos empregados. É neste contexto que os profissionais do direito, dada à complexidade dos contratos de parceria, se vê obrigado a entrar em áreas que extravasam a dogmática pura do direito, para os profissionais que

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

iram lhe dar com esta forma de concessão cabe adentrar para outros ramos do conhecimento como economia, finanças, mesmo no direito administrativo moderno, que é fomentado por demais áreas de conhecimento, cabe a estes profissionais o acompanhamento por exemplo de novas formas de gestão administrativa, não cabe ao profissional do direito apenas a dogmática pura contida em Leis, Jurisprudências e Orientações, para acompanhar as novas formas de administração pública o profissional deve sim saber das Leis que regem a matéria licitante, entretanto, não deve se ater apenas a ela, trata-se de um conjunto de áreas de conhecimento que se fundem no bem do interesse comum que no caso é a prestação de serviços públicos e neste condão de fusão de várias ciências, cabe aos profissionais do direito a inserção em outras área de conhecimento, não necessariamente na forma de expertise, mas deve acompanhar as demais áreas para ajudar a elaborar, acompanhar, prestar contas e enfim empreender na formulação de contratos de parcerias público privadas. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente Artigo foi explicitada a forma de concessão através de parcerias público-privadas, o modelo de PPP não pode ser visto como a solução para os diversos problemas de infraestrutura e de prestação de serviços que assolam o Estado brasileiro em todas as suas esferas, quer Federal, Estadual ou Municipal, mas pode ser uma grande contribuição para um novo modelo de administração para áreas que depreendem muitos recursos e uma complexidade de execução. O papel interventivo colaborador da sociedade civil, seja através do empresariado e empreendedores, seja através de organizações governamentais, dentro do Estado de Bem Estar Social que é marcado pela participação do Direito Público. Além da criação de novos institutos, as transformações fundamentais operadas na concepção e nas finalidades de uma administração pública em constante evolução, exigem a adaptação dos institutos jurídicos tradicionais, que são revisitados e ganham novos usos. As formas diferenciadas de interação entre o setor público e o setor privado estão cada vez mais valorizados e o uso das parcerias público privadas ilustram bem está interação, vistos que são interações que buscam se perpetuar por mais de 30 anos, a utilização deste sistema almeja a superação de conceitos e abordagens jurídicas tradicionais, exige a adequação de institutos conhecidos para dar conta de uma nova realidade. A evolução desta abordagem jurídica instrumentaliza o Poder Público de técnicas que possibilitam a melhor adequação do processo econômico e socialem constante evolução, assim, é extremamente relevante para a busca de racionalização de recursos, melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados, gerando a tão almejada melhoria da relação de impostos pagos e serviços prestados. REFERÊNCIAS JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Adminsitrativo. 11ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26.ed.São Paulo: Atlas, 2013. DE MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo 31ed.São Paulo: Malheiros 2014. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. ROSEMBERG, Luiz Paulo. O Governo e o impasse das PPP. Gazeta Mercantil, p. 76. de 25/10/2004.

234

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


BITTENCOURT, Sidney. Parceria Público Privada, Passo a Passo. 2ªed. Belo Horizonte. Fórum, 2011. MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich. As Garantias nas Parcerias Público-Privadas. BINENBOJM, Gustavo. As Parcerias Público Privadas (PPP’s) e a Constituição. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Julho/Setembro 2005, p. 169. PPPBRASIL. O Observatório das Parcerias Público Privadas. Disponível em http://www.pppbrasil.com.br, último acesso em 24/11/2015 NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton. 2011. Disponível em:<http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/ Manual_Norm alizacao_Newton_Paiva_2015.pdf>. Acesso em: 23Jun. 2015.

Notas de fim 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

235

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DE SERVIÇOS DE INTERNET COM O ADVENTO DA LEI 12.965/14 Nathanny Alves Sena1 Thiago Augusto de Freitas2 Hudson Gilbert de Oliveira3

RESUMO: O presente estudo debate a responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet por conteúdo publicado por um terceiro e que seja passível da causar dano a outrem. O Marco Civil da Internet, Lei 12.965/14,ao tratar deste tema prevê a responsabilização dos provedores de aplicações somente quando for descumprida ordem judicial que determine a indisponibilização de material de cunho ofensivo, entretanto, tal disposição tem levantado discussões por divergir do entendimento anteriormente defendido nos tribunais brasileiros. Diante disso, este artigo irá tratar dos elementos que possam influenciar na caracterização da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet, debatendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações advindas do uso da internet; as espécies de provedores de serviço de internet e a sua influência na definição da responsabilidade destes, bem como o motivo porque alguns doutrinadores defendem a inconstitucionalidade do art. 19 da Lei nº 12.965/14 que trata da responsabilidade. ABSTRACT: This study discusses the civil liability of internet service providers for content published by a third party, which can cause harm to others. The “Marco Civil da Internet”, Law No.12.965/14, provides for the accountability of applications providers only when a court order requiring the unavailability of offensive material is violated, however, that provision has raised discussions to deviate from the understanding previously argued in Brazilian courts. Therefore, this article will deal with issues that can influence the characterization of the civil liability of Internet service providers, discussing the application of the Consumer Protection Code in relations related to the use of the internet, the kinds of internet service providers and its influence in torts, and the reason why some legal scholars argue the unconstitutionality of the article 19 of Law No.12.965/14 which deals with civil liability. PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil; Provedores de serviços de internet;Marco Civil; Lei 12.965/14. KEYWORDS: Civil Liability; Internet Service Providers; Marco Civil; Law No.12.965/14 SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Da aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações entre usuários e provedores de serviços de internet; 3. Espécies de provedores de serviço de internet; 4. Responsabilidade Civil dos provedores de serviço de internet com o advento da Lei 12.965/14; 4.1Breves considerações a respeito da responsabilidade civil;4.2 Da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet com base na Lei nº 12.965/14 5. Considerações Finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO Com a facilidade de acesso e a instantaneidade de informações, a internet tornou-se uma popular ferramenta utilizada pela sociedade para o compartilhamento de todo o tipo de conteúdo devida a capacidade de ampla propagação que a mesma propicia, já que o material publicado nela pode atingir um número incalculável de pessoas de forma mais rápida e prática. Diante de todos os benefícios trazidos pelo uso da internet e considerando a sua facilidade de acesso, começaram a surgir também alguns conflitos relacionados ao conteúdo que nela é disponibilizado. Durante alguns anos, ante a inexistência de legislação específica sobre a matéria, o Poder Judiciário era o principal responsável pela resolução das lides relacionadas ao uso da internet, utilizando como fundamentos os preceitos do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil. Com isso, demandas envolvendo a responsabilidade civil na internet se tornaram frequentes no Poder Judiciário, sendo que as lides mais comuns eram as que tratavam de casos em que uma pessoa utilizava de um provedor de serviço de internet para publicar conteúdo de caráter ofensivo a outrem. Assim, a discussão residia principalmente na existência ou não de responsabilidade do provedor de interLETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

net por conteúdo publicado por um terceiro e, em caso afirmativo, se esta responsabilidade seria objetiva ou subjetiva. Atualmente, algumas dessas discussões foram dirimidas em razão da edição da Lei 12.965/14, popularmente conhecida como o Marco Civil da Internet, que entrou em vigência 23 de junho de 2014. Considerada como a “Constituição da internet”, a Lei 12.965/14, é pioneira no mundo ao estabelecer regras, garantias, direitos e deveres relacionados ao uso da internet. Objetivando promover e assegurar o direito de acesso a todos, desde que era apenas um o projeto, tal Lei já fomentava discussões por todo o Brasil, sendo que um dos pontos que ensejou grandes debates foi a questão da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet em relação aos atos ilícitos praticados por seus usuários. Ocorre que, antes da promulgação da Lei 12.965/14 o Superior Tribunal de Justiça, ao tratar do tema, firmou o entendimento de que o provedor de internet seria responsabilizado por conteúdo de caráter ofensivo publicado por terceiro quando se recusasse a tornar indisponível esse conteúdo após ser comunicado, ainda que extrajudicialmente, da existência de tal material. Contudo, o Marco Civil da Internet em seu art. 19, com base as garantias da liberdade de expressão e vedação a censura, estabele-

236

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ceu que o provedor de serviço de internet somente seria responsabilizado por conteúdo publicado por um de seus usuários caso descumprisse ordem judicial especifica. Percebe-se que, neste ponto, a Lei 12.965/14 entrou em conflito com entendimento adotado pelos Tribunais Superiores Brasileiros e com os preceitos protetivos do Código de Defesa do Consumidor, motivo pelo qual alguns doutrinadores alegam, inclusive, a inconstitucionalidade do art. 19 da referida Lei ante a supressão de direitos já consolidados. Com base nessas considerações, o presente artigo pretende debater a respeito da responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet quanto as publicações passiveis de causar danos a outrem dando ênfase nas alterações trazidas pela Lei 12.965/14 abordando temas que tratem dos principais elementos capazes de influenciar de certa forma a caracterização dessa responsabilidade. Desse modo, inicialmente, será discutida a aplicação do Código de Defesa do Consumidor a essas lides.Em seguida, será realizada a diferenciação de cada tipo de provedor de serviço de internet destacando a importância dessa classificação para a apuração da responsabilidade destes. Por fim, será efetivamente abordada a questão responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet apresentando inicialmente noções e conceitos relativos a responsabilidade civil no direito brasileiro, bem como a natureza da responsabilidade civil que incidirá sobre esse provedores, além de destacar a discussão a respeito da necessidade do provedor realizar um controle prévio do conteúdo que é disponibilizado. Ademais, serão apresentadas também as razões pelas quais certos doutrinadores defendem a inconstitucionalidade de algumas das disposições da Lei 12.965/14 sobre responsabilidade civil dos provedores. Nota-se que é de extrema relevância a discussão aqui apresentada já que debate a questão da garantia da liberdade de expressão aos usuários da internet, bem como a necessidade de responsabilizar aqueles que utilizem desse veiculo para ofender a honra e imagem de outrem. Assim sendo, é essencial tentar buscar solucionar esses conflitos conciliando os interesses das partes envolvidas. 2. DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NAS RELAÇÕES ENTRE USUÁRIOS E PROVEDORES DE SERVIÇOS DE INTERNET O Código de Defesa do Consumidoré uma norma que estabelece direitos e obrigações para consumidores e fornecedores a fim de viabilizar uma relação harmônica entre eles, considerando o consumidor comoparte vulnerável da relação e concedendo a ele certos benefícios, motivo pelo qual tal Lei é vista como uma legislação precipuamente protetiva. Antes da edição do Marco Civil da Internet, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento que Código de Defesa do Consumidor era a legislação aplicável às relações comerciais na internet. Com a promulgação da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, a discussão a respeito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações concernentesa internet restou superada, vez que o Art. 7º, inciso XII prevê expressamente a aplicação dos preceitos protetivos do referido Código. Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet. Para entender os motivos da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relaçõesjurídicas firmadas na internet é preciso

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

esclarecer alguns pontos. Primeiramente, no que se refere aos contratos estabelecidos pela internet, Ricardo Lorenzetti explica: A pratica negocial de ofertar produtos e serviços pela internet, em seus diversos modos, interativos (online) e estáticos (por email), é oferta de consumo, e o contrato daí resultante, concluído por meio eletrônico e a distancia, é um contrato de consumo e será regulado pelo direito do consumidor. (LORENZETTI,2004, p.187) Ademais, importa lembrar queCódigo de Defesa do Consumidor é a legislação aplicável quando as partes da lide possam ser enquadradas no conceito de consumidor e fornecedor, nos termos do art. 2º e 3º, respectivamente, da referida Lei. Portanto,o usuário de um serviço prestado por um provedor de internet é considerado consumidor, vez que adquire ou utiliza produto ou serviço fornecido por este como destinatário final. Quanto ao provedor de serviço de internet, o art. 15 do Marco Civil da Internet considera o mesmo como aquele que for “constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos”, definição que se assemelha com o conceito de fornecedor do Código de Defesa do Consumidor e de empresário do art. 966 do Código Civil. É importante destacar que tanto na definição de provedor de serviço de internet do art. 15 da Lei 12.965/14, quanto na de fornecedor de acordo com o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, o serviço prestado se caracteriza por ter fins econômicos. Ocorre que muito dos serviços oferecidos via internet são gratuitos, isto é, o usuário não remunera diretamente o provedor de internet pelo serviço utilizado. Contudo, é imperioso lembrar que a gratuidade de um serviço não significa a ausência de objetivo de lucro por partedo prestador. Nesta esteira, Leonardo de Medeiros Garcia explica: O artigo delimita para fins de definição tanto de consumidor, como de fornecedor, o que seja produto e serviço. Produto é definido de modo bem amplo pela lei, sendo qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial (§ 1º). Já o serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração (§ 2º). Segundo o artigo, estariam excluídas da tutela consumerista aquelas atividades d esempenhadas a título gratuito, como as feitas de favores ou por parentesco (serviço puramente gratuito). Mas é preciso ter cuidado para verificar se o fornecedor não está tendo uma remuneração indireta na relação (serviço aparentemente gratuito). Assim, alguns serviços, embora sejam gratuitos, estão abrangidos pelo CDC, uma vez que o fornecedor está de alguma forma sendo remunerado pelo serviço.(GARCIA, 2008, p.26) Portanto, por mais que o usuário não remunere diretamente o provedor de serviços de internet, este de alguma forma obterá lucro em razão da utilização do seu serviço pelo usuário, o que caracterizaria a remuneração indireta, e, por isso, ensejaria a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Ressalta-se que a legislação consumerista é protetiva, concedendo benefícios a parte vulnerável da relação jurídica, o que no caso dos negócios firmados pela internet, seria o usuário. Assim, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aestas relações garante aos usuários a proteção contra práticas e cláusulas abusivas, o direito à obtenção de serviços de qualidade, bem como o direito a inversão do ônus probatório. Nota-se que, em linhas gerais, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos negócios relacionados à internet traz inúmeros

237

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


benefícios, principalmente, aos usuários dos provedores de serviço de internet, razão pela qual a previsão no art. 7º, inciso XII da Lei 12.965/14 da aplicação de tais preceitos à estas relações é vista como uma determinação acertada. 3. ESPÉCIES DE PROVEDORES DE SERVIÇO DE INTERNET Antes de tratar da responsabilidade civil dos provedores de internet, é imperioso diferenciar as espécies destes, já que, em alguns casos, as características e finalidades de cada um deles pode influenciar na apuraçãoda extensão da responsabilidade dos mesmos. Os provedores de serviços de internet podem ser divididos em: provedores de backbone, provedores de acesso, provedores de correio eletrônico, provedores de hospedagem, provedores de conteúdo, provedores de informação e provedores de aplicações. Contudo, é normal que se utilize do termo “provedores de serviços de internet” para se referir a qualquer um destes deixando a diferenciação para casos específicos. O especialista Marcel Leonardi, explica de maneira clara os motivos que tornam comum a confusão entre esses conceitos: Provedor de serviços de Internet é o gênero do qual as demais categorias (provedor de backbone, provedor de acesso, provedor de correio eletrônico, provedor de hospedagem e provedor de conteúdo) são espécies. O provedor de serviços de Internet é a pessoa natural ou jurídica que fornece serviços relacionados ao funcionamento da Internet, ou por meio delas. A confusão é comum em razão de boa parte dos principais provedores de serviços de Internet funcionarem como provedores de informação, conteúdo, hospedagem, acesso e correio eletrônico. Exemplificando: um usuário de um grande provedor de acesso comercial que acesse o web site da empresa, normalmente conhecido como “portal”, terá à sua disposição informações criadas pelos funcionários do provedor e por ele disponibilizadas e armazenadas, utilizando, para tanto, os serviços de conexão oferecidos por este provedor. Em tal hipótese, a mesma empresa provê acesso ao usuário, armazena e disponibiliza informações criadas por seus próprios funcionários.(LEONARDI, 2005, p.21) Nesse sentido, a fim de compreender a responsabilidade de cada provedor de serviço de internet é indispensável diferenciá -los. A classificação utilizada nesse artigo é a proposta pelo especialista Marcel Leonardi(2005) que é a adotada, inclusive, pelos Ministros do Superior Tribunal de Justiça para fundamentar as decisões a respeito do tema. A primeira espécie é o Provedor de Backboneou “espinha dorsal” que é aquele que proporciona conectividade através de um sistema de redes, sendo que empresas privadas adquirem esse serviço e o utilizam para vender aos usuários conexão com a internet (LEONARDI, 2005, p.22). Nesse sentido, é importante deixar claro que os provedores de blackbone não tem contato direto com os usuários, não se caracterizando, portanto, uma relação de consumo, motivo também pelo qual a Lei. 12.965/14 não faz referência a essa espécie de provedor. Já o Provedor de Acesso ou Provedor de Conexãooferece um serviço que serve de intermediário entre o usuário e a rede, conectando aquele à internet. A Rede Nacional de Pesquisaapresenta a seguinte definição para esse tipo de provedor: Aquele que se conecta a um provedor de backbone através de uma linha de boa qualidade e revende conectividade na sua área de atuação a outros provedores (usualmente menores), instituições e especialmente a usuários individuais, através de linhas dedicadas ou mesmo através de linhas telefônicas discadas. (GUIA DO USUARIO DE INTERNET, 1996, p.7)

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

No que tange a natureza jurídica da relação entre provedor de acesso e usuário da internet, Marcel Leonardi explica que a mesma é de consumo, já que as partes podem ser enquadradas no conceito de consumidor e fornecedor, nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Ele destaca ainda que geralmente os contratos celebrados entre os provedores de acesso e usuários são de adesão, cabendo a estes apenas optar pelas modalidades de serviço preestabelecidas(LEONARDI, 2005, p. 24). Destaca-se que a Lei 12.965/12 trata do provedor de acesso quando dispõe a respeito da neutralidade de rede dispondo que o serviço oferecido por eles não pode fazer qualquer distinção por conteúdo, origem destino, serviço, terminal ou aplicação, nos termos do art. 9º da referida norma. Ademais, no que se refere a guarda dos registros de conexão, o Marco Civil da Internet, no art. 13 afirma que ao provedor de conexão cabe “o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento”. Já o Provedor de Correio Eletrônico presta um serviço que viabiliza o envio de mensagens entre usuários da internet, possibilitando que o contratante do serviço acesse ao sistema e as mensagens, utilizando de um nome de usuário e senha exclusivos(LEONARDI, 2005, p. 24). No que tange ao Provedor de Hospedagem é importante destacar que ele fornece ao usuário um serviço de armazenamento de dados, como paginas ou sites, para disponibilização de informações, bem como possibilita que estes dados sejam acessados por terceiros (BARBAGALO, 2003, p.346). Outra espécie que é importante mencionar é o Provedor de Conteúdo que é definido como aquele que disponibiliza informações diversas na internet, sejam elas de autoriaprópria ou de terceiros, sendo que o provedor possui controle prévio sobre as informações que são disponibilizadas. Nesse sentido, Marcel Leonardi faz algumas outras importantes considerações: O provedor de conteúdo, na maior parte dos casos, exerce controle editorial prévio sobre as informações que divulga, escolhendo o teor do que será apresentado aos usuários antes de permitir o acesso ou disponibilizar estas informações.O provedor de conteúdo pode disponibilizar informações a título gratuito, permitindo o acesso incondicional de qualquer pessoa, ou apenas a pessoas previamente cadastradas em um determinado serviço, ou a título oneroso, condicionando o acesso ao pagamento de uma quantia única ou periódica ou à assinatura mensal, utilizando senhas para impedir o acesso de terceiros.(LEONARDI, 2005, p. 27) Alguns doutrinadores consideram o Provedor de conteúdo e o Provedor de Informação sinônimos, entretanto o conceito deste, na visão de Marcel Leonardi(2005, p. 27) difere daquele, esclarecendo que o provedor de informação pode ser definido como “toda pessoa natural ou jurídica responsável pela criação das informações divulgadas através da Internet. É o efetivo autor da informação disponibilizada por um provedor de conteúdo”. Considerando todas essas espécies de provedores de internet e as suas definições, a Ilustre Ministra e Relatora Nancy Andrighi em decisão proferida no Recurso Especial nº 1316921 – RJ, diferencia de maneira objetiva os provedores de serviço de internet, como demonstra o trecho da decisão colacionado abaixo: Os provedores de serviços de internet são aqueles que fornecem serviços ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou pormeio dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, tais como: (i) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade da internet , oferecendo

238

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários finais acesso à rede; (ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a esses conexão com a internet ; (iii) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; (iv) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na internet; e (v) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação. (Superior Tribunal de Justiça, Resp. 1316921/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 26/06/2012) A Lei 12.965/14 trouxe, ainda,uma outra espécie: o provedor de aplicações. O artigo 5º, inciso VII da referida Lei define tal provedor como: “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”.A inclusãodesse tipo de provedor por parte dolegislador foi acertada e leva em consideração o crescente surgimento de aplicativos ligados a internet. Destaca-se que a maioria da doutrina não menciona o provedor de aplicações, pressupõe-se que isso se deva ao fato de que tal provedor tenha surgido e se popularizado recentemente. Sobre o provedor de aplicações Bruna Manhago Serro(2014, p.6) esclarece que “também chamados de middleware, esses provedores, diferentemente dos provedores de conexão, disponibilizam um instrumento para a execução de aplicações” Ressalta-se que o inciso VIII do art. 5 do Marco Civil da Internet, ainda tratando sobre provedores de aplicações, considera como registros de acesso a aplicações de internet “o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP”. Diante do exposto, não se pode negar que a diferenciação entre as espécies de provedores de internet é essencial apurar a responsabilidade de cada provedor, tanto que o art. 3º, da Lei. 12.695/14, ao disciplinar o uso da internet no Brasil, coloca como principio, no seu inciso VI, a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, o que demonstra o cuidado do legislador em considerar as particularidades de cada tipo de provedor de serviço de internet para fixar o tipo de responsabilidade que incidirá. 4. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DOS SERVIÇOS DE INTERNET COM O ADVENTO DA LEI 12.965/14 4.1 Breves consideraçõesa respeitoda responsabilidade civil Antes de adentrar na questão da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet, é importante fazer alguns apontamentos sobre o instituto da responsabilidade civil. Inicialmente, importa trazer à baila os ensinamentos de Sergio Cavalieri Filho sobre esse instituto: A essência da responsabilidade está ligada à noção de desvio de conduta, ou seja, foi ela engendrada para alcançar as condutas praticadas de forma contraria ao direito e danosas a outrem. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.(CAVALIERI, 2012, p.2) Percebe-se que a responsabilidade civil está relacionada com o dever de reparação do dano causado a outrem. Assim, para que seja configurada a responsabilidade civil é necessária a presença de três requisitos: ação, dano e nexo de causalidade entre o dano e a ação do agente.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Destaca-se que a doutrina apresenta algumas divisões no que se refere a caracterização da responsabilidade civil fazendo a classificação desta em subjetiva ou objetiva, bem como de natureza contratual ou extracontratual. Para a configuração da responsabilidade subjetiva é indispensável que o agente causador do dano tenha agido com culpa, seja a culpa no lato sensu, incluindo o dolo, visto como a intenção de prejudicar, ou a culpa em sentido estrito, relacionada a uma condutaimprudente, negligente ouimperita (TARTUCE, 2009, p.447). Em relação aresponsabilidade civil objetiva é importante destacar que ela é caracterizada tão somente com a comprovação do dano e do nexo de causalidade entre este e a conduta do agente, independente de culpa. Adota-se ainda a teoria do risco que leva em consideração o exercício de uma atividade que, por trazer risco de dano a terceiros, gera o dever de indenizar, ainda que inexista culpa por parte do agente (GONÇALVES, 2012, p.47). No que tange a diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual importa mencionar que a contratual deriva do descumprimento de uma convenção prévia entre as partes, enquanto na extracontratual, como o próprio nome já indica, inexiste contrato entre as partes ocorrendo quando um agente pratica um ato ilícito ecausa um dano a outrem (GONÇALVES, 2012, p.43). O Código Civil de 2002 trata da responsabilidade civil no art. 927, estabelecendo que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Nesse sentido, o referido Código apresenta ainda o conceito de ato ilícito no art. 186 determinando que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ressalta-se que o Código de Defesa do Consumidor também trata deste instituto adotando a responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco, e estabelecendo que o fornecedor tem o dever de indenizar pelo dano causado pelo defeito no produto ou no serviço prestado, independente de culpa, como dispõe os arts. 12 e 13 do referido diploma legal. Contudo, é imperioso destacar que nem o Código Civil nem o Código de Defesa do Consumidor mencionam especificamente a responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet, ficando esse assunto a cargo daLei 12.965/14. 4.2 Da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internet com base na Leinº 12.965/14 A Lei nº 12.965/14, conhecida popularmente como Marco Civil da internet, estabelece regras, garantias, direitos e deveres relacionados ao uso da internet. A referida lei entrou em vigência em 23 de junho de 2014 e tem como princípios básicos a liberdade de expressão, a neutralidade da rede e a proteção à privacidade dos usuários. Em relação a responsabilidade civil, a Lei 12.965/14 apresentou inovações já que algumas de suas disposições divergem do entendimento que havia se consolidado nos Tribunais Brasileiros a respeito do tema. É importante frisar que a discussão a respeito da responsabilidade civil na internet é de extrema relevância haja vista que este é um veículo com uma enorme capacidade de propagação de conteúdo e de fácil acesso. Considerando tais características, não é incomum que algumas pessoas utilizem da internet para publicar conteúdo que seja passível de causar dano a outrem. Assim, quando um indivíduo sofre um dano em virtude de conteúdo publicado na internet é imperioso buscar identificar corretamente o responsável pelo material que gerou o dano. A problemática reside no fato de que geralmenteo causador do dano utiliza o provedor de serviço de internet como meio para propa-

239

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


gar o material de caráter ofensivo, isto é, o conteúdo disponibilizado muitas vezes não é de autoria do veículo no qual ele foi publicado, mas sim de um dos usuários do mesmo. Portanto, é necessário auferir o grau de responsabilidade do usuário e do provedor de serviço de internet para possibilitar que o verdadeiro agente causador do dano repare a vitima. Para resolver essa discussão, a Lei 12.965/14 trata na seção III do capitulo III da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, dispondo do artigo 18 ao 21 sobre a caracterização dessa responsabilidade e das medidas judiciais cabíveis para pleitear o ressarcimento do dano causado. Quanto às espécies de provedores de serviço de internet é essencial destacar que a Lei 12.965/14 trata somente da responsabilidade civil dos provedores de conexão e dos provedores de aplicações de internet. Ressalta-se que a doutrina entende que o termo “provedor de aplicações de internet” abrangeria os “provedores de serviços” e “de conteúdo” (CAVALCANTI, 2014). Nesse sentido, vale destacar que o art. 5º, inciso VII, da Lei 12.965/14 apresenta a definição de aplicações de internet como um “conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”, sendo que, no art. 15º do referido diploma legal, o provedor de aplicações é definido como aquele que for “constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos”. O doutrinador e promotor de justiça Frederico Meinberg Ceroy (2014), com base nosdispositivos supracitados do Marco Civil elaborou um conceito abrangente de provedores de aplicações: Provedor de Aplicação de Internet (PAI) é um termo que descreve qualquer empresa, organização ou pessoa natural que, de forma profissional ou amadora, forneça um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet, não importando se os objetivos são econômicos. (CEROY, 2014) Feitas tais considerações é imperioso partir paraa análise dos dispositivos legais que tratam da responsabilidade civil dos provedores de serviço de internetpelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Inicialmente é importante destacar que o art. 18 da Lei 12.965/14 isenta de responsabilidade civil os provedores de conexão no que tange a conteúdo gerado por terceiros que seja passível de causar dano. Tal isenção se justifica considerando que o provedor de acesso é aquele que viabiliza a conexão dos usuários á internet, devendo responder somente pelos danos decorrentes da má prestação dos serviços, como, por exemplo, falhas na conexão ou velocidade da Internet (LEONARDI, 2005, p.67). Desse modo, tendo em vista a finalidade do provedor de conexão, responsabilizá-lo por ato de um terceiro não seria lógico, já que ele é apenas um meio que a pessoas utilizam para se a conectar a internet. Contudo, tais provedores são obrigados a manter os registros de conexão, sob sigilo, pelo prazo de um ano, conforme mandamento do art. 13 da Lei nº12.965/14. Destaca-se que é o artigo 19 do referido diploma legal que tem levantado maiores discussões. Por este motivo, importa trazer a baila o caput deste dispositivo: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Ademais, o paragrafo primeiro do artigo supramencionado estabelece ainda que a ordem judicial que determinar a indisponibilidade do conteúdo deve conter, sob pena de nulidade, a identificação clara e específica do material que se pressupõe ofensivo a fim de permitir a localização inequívoca do mesmo. Nota-se que a Lei 12.965/14 estabeleceu que os provedores de aplicações na Internet somente serão responsabilizados civilmente por conteúdo gerado por terceiros na hipótese de descumprimento de ordem judicialque determine a indisponibilização desse conteúdo. Por outro lado, o caput do art. 21 da Lei 12.965/14 ao tratar de material que contenha cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado determina: Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Nota-se que nesta hipótese o provedor de aplicações de internet será responsabilizado subsidiariamente sendo que o dispositivo acima não exige, ainda, que a notificação que solicite a indisponibilização de tal conteúdo seja judicial. Portanto, infere-se que é a exigência de ordem judicial especifica prevista no art. 19 do Marco Civil que tem gerado grande debate entre os juristas tanto que alguns destes defendem a inconstitucionalidade de tal dispositivo. Ocorre que, antes da edição do Marco Civil da Internet, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o provedor de internet seria responsabilizado por conteúdo de caráter ofensivo publicado por terceiro quando se recusasse a tornar indisponível esse conteúdo após ser comunicado, ainda que extrajudicialmente, da existência de tal material.O entendimento sustentado a época era que quando notificado, mesmo que extrajudicialmente, o provedor deveria retirar o material do ar em 24(vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente pelo dano. Nesse sentido, essencial trazer à baila trecho do voto da ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº1.323.754 – RJ que demonstra o entendimento do Superior Tribunal de Justiça antes da promulgação do Marco Civil da Internet: Considero razoável que, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor retire o material do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. [...] Notese, por oportuno, que não se está a obrigar o provedor a analisar em tempo real o teor de cada denúncia recebida, mas que, ciente da reclamação, promova em 24 horas a suspensão preventiva das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações e, confirmando-as, exclua definitivamente o perfil ou, tendo -as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso. (Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.323.754/RJ, julgado em 19/06/2012)

240

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Foi com base no entendimento adotado antes a vigência da Lei 12.965/14, que muitos doutrinadores questionam a constitucionalidade do art. 19 do referido diploma legal e argumentam que ele vai contra preceitos do Código de Defesa do Consumidor. A Legislação consumerista confere responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco, aos fornecedores. Assim, partindo do pressuposto de que aplica-se às relações que tratem sobre uso de internet o Código de Defesa do Consumidor, por analogia, alguns doutrinadores defendem que a responsabilidade dos provedores de serviço de internet deveria ser objetiva. Roberto Flávio Cavalcanti argumenta que, às relações entre provedores de aplicações de internet e seus usuários deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor, por ser a legislação mais favorável, assim, com base no art. 6, inciso VIII e no artigo 14, ambos do referido diploma legal, deve ser reconhecida a responsabilidade objetiva dos provedores de aplicação de internet e, consequentemente, o dever de indenizar com fulcro nos artigos 186 do Código Civil e no artigo 6º, inciso VII do Código de Defesa do Consumidor (CAVALCANTI, 2014). Contudo, a Lei 12.965/14, legislação mais especifica, levando em consideração a garantia da liberdade de expressão e a vedação da censura, decidiu pela responsabilização dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por terceiros somente quando houver violação de ordem judicial especifica. Infere-se que a responsabilidade civil do provedor de aplicação será solidária, com base no art. 7º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor e no art. 942, parágrafo único, do Código Civil, tendo em vista que, caso ele não cumpra a ordem judicial, o mesmo pode ser considerado como coautor do ato ofensivo (OLIVEIRA, 2014, p.20). Ocorre que ao exigir ordem judicial para retirada do conteúdo ofensivo, a Lei n. 12.965/2014 impõe mais um ônus à vítima, o de recorrer ao judiciário, o quepoderia acarretar o aumento da dimensão do dano, vez que o conteúdo continuaria disponível na rede (MARTINS, 2014, p. 330). Apresentado semelhante entendimento, Roberto Flávio Cavalcanti (2014) argumenta: Assim, não há a menor razão de excluir os provedores de aplicações de internet do campo de aplicação do CDC e despojar os consumidores de direitos já consolidados, como é o caso de se ver indenizado pela responsabilização objetiva do fornecedor. O Marco Civil, ao reverso, impõe a judicialização compulsória do conflito de interesses, o que além de onerar substancialmente o consumidor, só apura responsabilidade do provedor em caso de desobediência à ordem judicial. Sem embargo, o artigo 19 do Marco Civil traz um maior ônus econômico ao consumidor, que terá que levar obrigatoriamente seu caso à justiça para ver solucionado seu problema, amargando inevitável retardo na solução de lesões irreparáveis ou de difícil reparação.(CAVALCANTI, 2014) É importante lembrar que a Lei 12.965/14 prevê expressamente, no art. 7º, inciso XII, a aplicação dos preceitos protetivos do Código de Defesa do Consumidor às relações advindas do uso da internet. Contudo, quanto a responsabilidade dos provedores de serviço de internet apresentou um entendimento divergente àquele previsto na legislação consumerista. Nota-se que a responsabilidade objetiva adotada pelo Código de Defesa do Consumidor baseia-se na teoria do risco que, como explica Carlos Roberto Gonçalves(2012, p.47), parte do pressuposto que “toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros”.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Ocorre que, desde antes da edição da Lei 12.965/14, restou pacificado na jurisprudência brasileira que esta teoria não se aplica às relações entre provedores de serviço de internet e usuários. Nesse sentido, destaca-se trecho da ementa do Recurso Especial nº 1.186.616/MG no qual a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi foi a relatora e que ao tratar do assunto esclarece: O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02. (Superior Tribunal de Justiça, Resp,1.186.616/MG Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 23/08/2011, DJe de 31/08/2011,) Ademais, Rui Stocco (2004, p.901) brilhantemente elucida que os provedores de internet agem como intermediários “repassando mensagens e imagens transmitidas por outras pessoas e, portanto, não as produziu nem sobre elas exerceu fiscalização ou juízo de valor, não pode ser responsabilizado por eventuais excessos e ofensas à moral, à intimidade e à honra de outros”. Outrossim, é essencial salientar que não se exige que o provedor de aplicações realize controle prévio do que é publicado, já que isto poderia ser caracterizado como censura, o que é vedado nos termos do art. 5º, inciso XII, da CF/88, além de ser fisicamente inviável considerando a quantidade de conteúdo que é disponibilizado na internet a todo momento. Não obstante a tais considerações, a exigência de descumprimento de ordem judicial para responsabilizar o provedor de aplicações pelo conteúdo ofensivo publicado por terceiro é vista por alguns doutrinadores como um meio de dificultar que a vítima tenha o dano reparado. Por este motivo, Leonardo de Castro Gomes (2014, p. 15) defende que, no que refere ao artigo 19, a Lei 12.965/2014 “apresenta vício de inconstitucionalidade por delimitar o princípio da restitutio in integrum, previsto no artigo 5º, V, da Constituição Federal de 1988, ao condicionar a responsabilidade à ordem judicial prévia”. Roberto Flávio Cavalcanti defende também a inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet sob o argumento de que: Ousamos, porém, defender a inaplicabilidade deste artigo 19 em virtude de sua inconstitucionalidade, já que impossível o diálogo de fontes em matéria de responsabilidade civil com as disposições do Código de Defesa do Consumidor. A colisão é frontal entre os modelos de responsabilização, e devese resolver em favor da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, dado que a defesa do consumidor é norma de índole constitucional: direito fundamental e princípio reitor da atividade econômica, estando acima do Marco Civil da Internet, que é mera lei ordinária.(CAVALCANTI, 2014) Por outro lado, importa destacar que o art. 19 da Lei 12.965/14 não obriga o provedor a retirar o conteúdo que a vítima alega ser ofensivo somente após ordem judicial, isto é, quando notificado, ainda que extrajudicialmente, da existência de tal material o provedor de serviço pode torná-lo indisponível, se julgar adequado. Nesse sentido, Marcel Leonardi, em seu artigo sobre a “Responsabilidade dos Provedores de Serviço de Internet Por Atos de Terceiros” na obra “Responsabilidade Civil na Internet e nos demais meios de comunicação, coordenado por Regina Beatriz Tavares da Silva e Manoel J. Pereira dos Santos, ao opinar sobre o projeto de lei que instituiu o Marco Civil da Internet, no que se refere ao art. 19 da referida norma, brilhantemente elucida:

241

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O artigo esclarece que o provedor pode ser responsabilizado em caso de descumprimento de ordem judicial de remoção forçada de conteúdo, mas não diz – e nem poderia dizer – que qualquer remoção de conteúdo somente pode ocorrer por ordem judicial.Isso significa que cada provedor continua livre para implementar as políticas que entender pertinentes para remoção voluntária de conteúdo. Não se deve pensar, portanto, que o provedor está de mãos atadas, aguardando por uma ordem judicial: ele pode perfeitamente remover o conteúdo de acordo com seus termos de uso, suas políticas e outras práticas. (LEONARDI, 2012, p.181) Ademais, é imperioso frisar que o paragrafo terceirodo art. 19 da Lei 12.965/14 determina que as demandas judiciais que tratem a respeito do ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet e da indisponibilização de tal material, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais, que de certa forma facilitam o acesso da população ao Poder Judiciário e são dotados de maior celeridade. Outrossim, o paragrafo quarto do art. 19 do Marco Civil da Internet assegura que, proposta a demanda judicial, o autor pode requerer a antecipação da tutela jurisdicional a fim de que o provedor de serviços torne indisponível o conteúdo supostamente ofensivo até o julgamento final da ação. Neste caso, exige-se que seja demonstrada a existência ou não de interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, a existência de prova inequívoca, bem como a presença dos requisitos de verossimilhança da alegação e fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Além disso, o artigo 20 da Lei 12965/14 determina que caso o provedor tenha contato direto com o usuário que publicou o conteúdo ofensivo, ele deverá informar a este os motivos da indisponibilização do material, bem como substituí- lo pela motivação ou ordem judicial que determinou essa indisponibilização dele, como se percebe da leitura do referido artigo: Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização. Nesta seara, é importante salientar que as ações judiciais continuarão sendo propostas em face dos provedores de serviço de internet. Isto porque, ao propor a demanda, a vitima terá que identificar o suposto causador do dano no polo passivo da ação, o que será possível somente após o acesso a informações como dados cadastrais, registros de conexões, os números de IP utilizados para a prática do ilícito, dados que somente os provedores de serviço de internet possuem. (LEONARDI, 2012, p.98) Ressalta-se que o art.10 da Lei 12.965/14 determina que os provedores responsáveis por guardar registros de conexão e dados pessoais dos usuários somente serão obrigados a disponibilizar tais registros ou outras informações que possam contribuir para a identificação do

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

usuário ou do terminal, mediante ordem judicial. Tal mandamento visa assegurar a todos os usuários dos provedores de serviço de internet a privacidade e o sigilo das informações e comunicações privadas. Ante o exposto, entende-se que não há qualquer vício de constitucionalidade no art. 19 da Lei 12.965/14, haja vista que, ao condicionar a responsabilização dos provedores de serviço de internet ao descumprimento de ordem judicial, o legislador preocupou em garantir a liberdade de expressão, evitar a censura e deixar a cargo do Judiciário a apreciação do conteúdo disponibilizado. Tal decisão é acertada já que é o Judiciário quem apresenta maior competência para julgar com imparcialidade a natureza desse conteúdo, não devendo ser de responsabilidade do provedor a realização do juízo de valor de todo o material que é publicado através da sua rede o que evita também a remoção arbitrária de conteúdo. Ademais, defende-se que os provedores são uma ferramenta que facilita a publicação de conteúdo na internet, sendo meros intermediários, razão pela qual eles não devem ser responsabilizados pelo conteúdo publicado por um terceiro. Assim, defender que o provedor de serviço responda por um conteúdo que não é de sua autoria é como, por exemplo, dizer que o fabricante de um revólver deve ser responsabilizado pelos crimes cometidos por quem utilizam daarma que ele fabrica. Portanto, percebe-se que, por mais que o provedor de serviço de internet contribua para a propagação do conteúdo, ele não é o responsável pelo mesmo não sendo lógico que ele tenha o dever de reparar o dano causado por uma outra pessoa. Outrossim, é essencial lembrar que a Constituição Federal Brasileira garante a todos a direito de liberdade de expressão e manifestação do pensamento, vedando o anonimato, nos termos do art. 5º, IV. Ademais, é assegurado também o direito de resposta, sem prejuízo a indenização por dano material, moral e a imagem, como dispõe o inciso V do Art. 5º também da Carta Magna. Neste diapasão, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento, no julgamento do Recurso Especial nº 1.308.830/RS,de que cabe aos provedores de serviços de internet fornecer meios que possibilitem a identificação dos usuários a fim de evitar o anonimato e viabilizar a atribuição de autoria ao conteúdo disponibilizado. Todavia, não se pode deixar de mencionar que muitos usuários não prestam informações verdadeiras nos cadastros realizados nos provedores de serviços de internet, valendo-se muitas vezes do anonimato para realizar publicações de cunho ofensivo. É isto que prejudica ainda mais a identificação do responsável pelo dano o que dificultaria a indisponibilização do conteúdo ofensivo e, consequentemente, possibilitaria o aumento na extensão deste dano. Bruna Manhago Serro discute essa problemática de forma clara: Quando se torna necessário identificar o usuário pelo cometimento de algum ato ilícito na internet, inúmeros são os casos em que nos deparamos com identificações de pessoas que sequer criaram contas ou contrataram serviços, o que acaba por ser confirmado através de identificação de IP que não corresponde com os dados cadastrais do usuário apontado como responsável. Para coibir problemas de identificação dos usuários, seria necessário exigir maior cuidado na identificação dos requisitantes por parte dos provedores de conexão no momento da contratação dos serviços. (SERRO, 2014, p.16) Diante dessa situação, caso não seja possível identificar o usuário que publicou o conteúdo que gerou o dano, quem seria responsável pelo ressarcimento desse dano? A Lei 12.965/14 não apresenta uma solução este caso. Mesmo que o conteúdo de caráter ofensivo tenha sido retirado da rede, é preciso considerar que enquanto ele esteve disponível o mesmo causou

242

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


danos a alguém haja vista que a internet é um veiculo de propagação de conteúdo de forma instantânea e capaz de atingir uma grande quantidade de pessoas. É importante entender que a Lei 12965/14 ao eximir de responsabilidade o provedor de serviços de internet por conteúdo gerado por terceiro, salvo descumprimento de ordem judicial especifica que determine a indisponibilização de tal material, reconheceu que, como não é possível exigir controle prévio das publicações, não seria justo que recaísse sobre eles a responsabilidade sobre esse conteúdo. Contudo, não se pode ignorar que diante da dificuldade ou impossibilidade de identificar o terceiro responsável pela publicação de caráter ofensivo, a vítima não terá o dano reparado. É evidente que responsabilizar o provedor de serviços nesses casos não é solução, de modo que é essencial debater essa questão a fim tentar encontrar maneira de garantir que o dano sofrido pela vitima seja minimizado e de alguma forma reparado. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A internet é um meio que propicia a disseminação de conteúdo de forma ampla e instantânea, por esse motivo, e considerando o seu fácil acesso, são comuns os casos onde alguém utiliza da internet como ferramenta para propagar conteúdo de caráter ofensivo. Considerando tais particularidades, o presente artigo trouxe a debate a discussão sobre a responsabilidade dos provedores de serviço de internet pelo conteúdo publicado por terceiro que seja passível de causar dano a outrem, através da análise dos dispositivos da Lei 12.965/14 que tratam especificamente deste assunto. Nesse sentido, destaca-se que o artigo 19 do supracitado diploma legal estabelece que o provedor de serviço de internet somente será responsabilizado por conteúdo publicado por um de seus usuários caso descumpra ordem judicial especifica. Ressalta-se que tal disposição levantou uma série de discussões, haja vista que, antes da promulgação da Lei 12.965/14, o Superior Tribunal de Justiça havia firmado o entendimento de que o provedor de internet poderia ser responsabilizado por conteúdo de caráter ofensivo publicado por terceiro quando se recusasse a torna -lo indisponível após ser comunicado, ainda que extrajudicialmente, da existência do mesmo. Nesse diapasão, foram apresentados os posicionamentos dos juristas que defendem a inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/14 e que utilizam como principal argumento o fato de que o referido diploma legal entrou em conflito com o entendimento adotado pelos Tribunais Superiores Brasileiros e com os preceitos protetivos do Código de Defesa do Consumidor, o que caracterizaria a supressão de direitos consolidados. Frisa-se que, antes de discutir sobre a responsabilidade dos provedores de serviço de internet, debateu-se a respeito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor as lides que envolvam relações de uso de internet, bem como foi apresentado os conceitos de cada tipo de provedor de serviço de internet destacando a importância da diferenciação destes para a apuração da responsabilidade. No que tange a natureza da responsabilidade civil que incide sobre os provedores de serviço de internet restou esclarecido que o art 19 da Lei 12.965/14 estabeleceu a responsabilidade subjetiva, haja vista que estes só serão responsabilizados caso descumpram ordem judicial que determine a indisponibilização de conteúdo de caráter ofensivo. Nessa seara, importa salientar que o Marco Civil da Internet preocupa em garantir a liberdade de expressão e manifestação do pensamento, nos termos da Carta Magna, de modo que a exigência de descumprimento de ordem judicial para caracterizar a responsa-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

bilidade dos provedores de internet é um meio de evitar a censura. No mais, é essencial lembrar que o provedor não é obrigado a retirar o conteúdo que a vítima alega ser ofensivo somente após ordem judicial, ou seja, quando notificado, ainda que extrajudicialmente, o provedor de serviço pode tornar esse conteúdo indisponível, caso reconheça que o mesmo possa ser considerado ofensivo. Por fim, foi levantada a questão de que alguns usuários utilizam do anonimato para publicar conteúdo de cunho ofensivo, dificultado assim a identificação do autor do dano. Diante de tais considerações, entende-se que, como intermediários, os provedores de serviço de internet não devem ser responsabilizados pelo conteúdo publicado por um terceiro. Portanto, condicionar a responsabilização destes ao descumprimento de ordem judicial, é a melhor maneira de garantir a liberdade de expressão, evitar a censura e a remoção arbitrária de conteúdo. Assim, defende-se que,por mais que o provedor de serviço de internet contribua para a propagação de material que seja passível de causar dano, ele não é o responsável pelo mesmo, motivo pelo qual não deve ser conferido a ele o dever de reparar o dano causado. Conclui-se que o tema abordado é de peculiar relevância, vez que é essencial debater a respeito dos direitos dos usuários da internet, a fim de conciliar a garantia da liberdade de expressão com responsabilização daqueles que utilizam dessa prerrogativa para propagar conteúdo que possa ofender a honra e imagem de outrem. REFERÊNCIAS BARBAGALO, Erica Brandini. Aspectos da responsabilidade civil dos provedores de serviços na Internet, in Conflitos sobre nomes de domínio e outras questões jurídicas da Internet, coordenado por Ronaldo Lemos e Ivo Waisberg. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BRASIL. Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em: 30 set. 2015. _________ . Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 30 set. 2015. BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.186.616/MG. Rel. Ministra Nancy Andrighi, Órgão Julgador: Terceira Turma, data de julgamento:23/08/2011.Disponível em:<http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21078237/recurso-especial-resp1186616-mg-2010-0051226-3-stj/inteiro-teor-21078238> Acesso em: 31 out. 2015 _________ . Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.308.830/RS. Rel. Ministra Nancy Andrighi, Órgão Julgador: Terceira Turma, data de julgamento: 08/05/2012, DJe 19/06/2012. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=11429 16&sReg=201102574345&sData=20120619&formato=PDF> Acesso em: 31 out. 2015 _________ . Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.323.754/RJ.Rel. Ministra Nancy Andrighi, Órgão Julgador: Terceira Turma, julgado em 19/06/2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=dano+moral&b=ACOR>.Acesso em: 31 out. 2015. _________ . Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1316921/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Órgão Julgador: Terceira Turma, julgado em 26/06/2012. Disponível em:<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&li vre=dano+moral&b=ACOR>. Acesso em: 31 out. 2015. CAVALCANTI, Roberto Flávio. Artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitu-

243

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


cional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4047, 31 jul. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/30560>. Acesso em: 14 out. 2015.

NOTAS DE FIM

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012

3

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

1 2

Coorientação; advogado militante.

CEROY, Frederico Meinberg. Os conceitos de provedores no Marco Civil da Internet.Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI211753,51045- Os+conceitos+de+provedores+no+Marco+Civil+da+Internet> Acesso em: 29 de out. de 2015 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor: código comentado e jurisprudência. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. GOMES, Leonardo de Castro. Marco Civil da Internet: Impressões preliminares da Lei nº 12.965, de 23.04.2014. Revista do GEDICON, vol. 2, p. 55-86 . Rio de Janeiro: 2014.Disponivel em:<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revista_gedicon_online/paginas/volume/2/revist a-do-gedicon-volume2_55.pdf> Acesso em 31 de outubro de 2015 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 4: Responsabilidade Civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. LEONARDI, Marcel. Responsabilidade Civil dos Provedores de Serviços de Internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. _________ . Determinação da Responsabilidade Civil Pelos Ilícitos na Rede: Os Deveres dos Provedores de Serviço de Internetin Responsabilidade Civil na Internet e nos demais meios de comunicação, coordenado por Regina Beatriz Tavares da Silva e Manoel J. Pereira dos Santos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012 _________ . Responsabilidade dos Provedores De Serviços de Internet Por Atos de Terceiros in Responsabilidade Civil na Internet e nos demais meios de comunicação, coordenado por Regina Beatriz Tavares da Silva e Manoel J. Pereira dos Santos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. LORENZETTI, Ricardo Luis .Comércio Eletronico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MACEDO, Gisele Amanda Maia Pereira Beltrami de. Responsabilidade Civil Dos Provedores de Internet. Revista Eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET. Curitiba PR – Brasil. Ano IV, nº 10, jun/dez 2013.Disponível em <http:// www.anima-opet.com.br/pdf/anima10/10-gisele-macedo-guilherme- tomizawa -responsabilidade-Anima10.pdf>. Acesso em 17 de outubro de 2015 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. São Paulo: RT, 2014. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Aspectos Principais da Lei nº 12.965, de 2014, o Marco Civil da Internet: subsídios à comunidade jurídica. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, abr./2014 (Texto para Discussão nº 148). Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. Acesso em 30 de out. de 2015 REDE NACIONAL DE PESQUISA. Guia do usuário Internet/Brasil, versão 2.0, abril de 1996, documento n. RNP/RPU/0013D, p. 7/8. Disponível em <http://www.rnp.br/_arquivo/documentos/rpu0013d.pdf >. Acesso em 17 de out. de 2015 SERRO, Bruna Manhago.Da Responsabilidade Civil dos Provedores de Aplicações Frente á lei12.965/2014: Análise Doutrinária e Jurisprudencial. Revista Magister Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor , v. 57, p. 65-79, 2014. STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6ª ed. São Paulo: RT, 2004. TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.2: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. 4ed. São Paulo: Método, 2009.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

244

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO Nathália Barbosa da Silva1 Valéria Edith Carvalho2 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo traçar um panorama elucidativo acerca da adoção por pares homoafetivos no atual sistema jurídico brasileiro, elucidando as afirmativas existentes sobre o tema na nossa realidade, sob a ótica dos princípios constitucionais existentes, com evidências em seus aspectos legais, doutrinários e recentes decisões jurisprudenciais. ABSTRACT: The present article’s aim is to give an elucidative overview of adoption by homo- affective couples in the current Brazilian legal system, elucidating the existing affirmatives on the subject in our reality, from the standpoint of the existent constitutional principles, with evidences in their legal and doctrinaire aspects and recent jurisprudential decisions. PALAVRAS-CHAVE: Adoção Homoafetiva; Criança e Adolescente; Direito; Princípios Constitucionais; União Homoafetiva. KEYWORDS: Homo-affective Adoption; Child and Teenager; Right; Constitutional Principles; Homo-affective Union. SUMÁRIO: 1-Introdução; 2-Evolução Histórica da Adoção no Brasil; 3-Adoção Por Pares Homoafetivos-; 4- Princípios Norteadores da Adoção Por Pares Homoafetivos; 4.1-Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, 4.2- Princípio da Igualdade e respeito à diferença; 4.3- Princípio da Proteção Integral e o Melhor interesse da criança; 5-Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO Com a globalização e evolução da sociedade, seja em seus hábitos, costumes ou através de suas leis, o Direito muitas vezes, não consegue acompanhar a rapidez destas transformações sociais, criando situações inovadoras perante a real necessidade da sociedade. A família base de qualquer sociedade passa por mudanças, por evoluções, porém é preciso salientar que vivemos em um Estado Democrático de Direito, e a nossa Constituição Federal em seu artigo 3º, incisos II e IV, o legislador tratou dos objetivos fundamentais dentre eles o de “Construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Vivemos em uma sociedade onde existe o abandono de crianças e/ou adolescentes que passam a estar sob a tutela do Estado, alojados em abrigos e orfanatos, tolhidas de exercerem o seu direito de serem criados e educados no seio de sua família natural, e excepcionalmente, em família substituta, conforme dispõe o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta demanda crescente de crianças em situação de perigo e abandono é complementar a questão da adoção por pares homoafetivos, uma vez que estes, possuindo os requisitos necessários para adoção, possam surgir como opção de acolhimento e amor a estas crianças e/ou adolescentes, buscando sempre o superior interesse da criança. Depois do reconhecimento do Supremo Tribunal Federal da união estável entre pessoas do mesmo sexo, e recentemente, o reconhecimento da adoção por pares homoafetivos, os casais buscam cada vez mais esse instituto. Assim, no presente trabalho busca-se comprovar a possível adoção homoafetiva no Brasil, e apresentar os fundamentos alegados pelos tribunais para reconhecimento atual desse tipo de adoção, bem como as mudanças que esse tema vem trazendo na nossa realidade social na mudança do conceito de família. 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ADOÇÃO NO BRASIL O instituto da adoção é um dos mais antigos recepcionado pelo

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Direito Brasileiro, pois, em nosso contexto sempre ocorreu a existência de filhos que muitas vezes não são desejados, que os pais por inúmeros motivos não podem ou não querem assumir. Algumas crianças são maltratadas, excluídas do convívio social, abandonadas e esse infelizmente ainda é um grande problema a se enfrentar. A adoção no Brasil é um instituto que existe desde a antiguidade como forma de gerar continuidade à família e compõe umas das formas de colocação da criança em família substituta. No Brasil, a adoção teve surgimento através do direito pré- codificado, mas com a promulgação do Código Civil de 1916, a adoção foi contemplada com base no Direito Romano. Dentro dessa sistemática legal, existia em nosso ordenamento a adoção simples, regida pelo Código Civil e pela Lei nº 3.133/57 e a adoção plena, regulada pela Lei nº 8.069/90, nos seus arts. 39 a 52. Na adoção simples, segundo o Código de 1916, se estabelecia um vínculo de filiação entre o adotante e o adotado, que poderia ser pessoa menor entre 18 e 21 anos ou maior. Os requisitos básicos eram a idade mínima do adotante, diferença mínima de idade entre o adotante e adotado de pelo menos 16 anos, o consentimento do adotado ou de seu representante legal e o registro de escritura pública, gerando efeitos tanto de ordem pessoal quanto patrimoniais. Já na adoção plena, o menor adotado, passava a ser filho dos adotantes, para todos os efeitos legais, desvinculando-se dos vínculos com sua família natural, alterando e inovando alguns requisitos já ultrapassados. Segundo Maria Helena Diniz, “[...]” era a espécie de adoção pela qual o menor adotado passava a ser, irrevogavelmente, para todos os efeitos legais, filho dos adotantes, desligando-se de qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. (DINIZ, 2010) Percebe-se que ambos os institutos apresentavam características diferentes, onde o primeiro mantinha o vínculo afetivo e o segundo extinguia os vínculos de filiação.

245

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que dispõe em seu art. 227, § 6º: “[...]” Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (BRASIL, 1988), essa referida distinção foi cessada, equiparando assim, para quaisquer efeitos os filhos de qualquer natureza, inclusive os adotivos. A Lei passa a tratar de forma igualitária todos os filhos, sendo eles por adoção ou biológicos. É esse o apoio que a Lei 8.069, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), uma legislação voltada aos direitos de crianças e adolescentes, necessitava para extinguir a adoção Simples, passando a ser se chamada de adoção plena, garantindo a todos os adolescentes maiores de 18 anos adotados, os mesmos direitos dos filhos biológicos, rompendo os vínculos de parentesco com sua família de origem. O referido estatuto em seu artigo 41 dispõe que: “[...]” a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direito e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Esta Lei representou uma evolução do instituto da adoção, trazendo diversas inovações, embora as leis anteriores já tivessem incluído alterações gradativas em nossa legislação brasileira. Assim, após a edição do Estatuto, a adoção ficou sendo regida pelo Código Civil de 2002, onde deu início a uma participação ativa do Poder Público nesse processo, sendo a principal mudança a redução da maioridade civil para 18 anos, passando a ser a idade mínima para ser adotado. Dessa forma, o ECA regulava exclusivamente a adoção de crianças e adolescentes, mas a lei Civil fazia referência à adoção dos menores de idade. Somente com o advento da Lei 12.010 de 2009, intitulada Lei Nacional da Adoção, todas as adoções passaram a ser regidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, corrigindo assim, alguns requisitos não mais cabíveis, atribuindo ao Estatuto algumas ressalvas próprias das adoções de adultos. A Lei Nacional de Adoção tem como escopo principal a convivência familiar, priorizando a manutenção da criança e do adolescente em sua nova família, devendo ser obedecido um cadastro único de crianças e adolescentes em condições legais de serem adotadas, e também para aquelas dispostos adotantes. Fica claro, que adoção tem contorno sociais de grande relevância e seu objetivo principal será sempre a convivência familiar. Além de ser uma esperança e solucionar um grande problema que é a impossibilidade de muitas pessoas não poderem ter filhos, a adoção soluciona um problema em torno de um contexto social, que é o número crescente de abandono de crianças que são levadas à proteção do Estado. Observa-se que durante muito tempo, o objetivo da adoção do Brasil era somente atender aos interesses dos casais que não poderiam ter filhos biológicos, deixando assim em segundo plano os interesses das crianças adotadas, mas atualmente esta prioridade inverteu-se, e a adoção busca em primeiro lugar atender aos interesses dos menores envolvidos neste processo, assegurando-lhes da melhor forma possível a colocação em uma família, que efetivamente lhe assegure as bases materiais, afetivas, emocionais e sociais necessárias ao seu pleno desenvolvimento. 3 A ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS Com o advento da Constituição Federal de 1988, através de seus princípios fundamentais, o legislador tratou dos objetivos fundamentais dentre eles o de “Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

discriminação”. (Brasil, 1988). A lei Federal nº 12.010/2009 de 03 de agosto de 2009 trouxe importantes alterações no Instituto da adoção como a possibilidade de adoção por duas pessoas, caso em que sejam elas cônjuges ou concubinos, em seu artigo 42 § 2º, desde que comprovada à estabilidade da família.. A recente alteração feita a este parágrafo pela Lei substituiu a redação “adoção por ambos os cônjuges ou concubinos” por adotantes “casados civilmente” ou que “mantenham união estável”. Ou seja, um dos requisitos primordiais à adoção de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente para adoção conjunta, é que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. Sendo assim, foi inevitável, ao longo do tempo, a inovação de direitos e obrigações no âmbito do Judiciário, para proteção desses casais. Foi necessária em primeiro lugar, a luta pelo reconhecimento da União dos casais homoafetivos, para assim realizarem o desejo de poderem constituir uma família. Somente em 2011, esse tão sonhado reconhecimento da condição da união estável para estes casais ocorreu. Fato é, estas uniões sempre existiram em nossa história, e trata-se simplesmente de uma escolha relativa à orientação sexual. Em decisão do Plenário, por meio do STF (Supremo Tribunal Federal), através de Ação Declaratória de Constitucionalidade, e Jurisprudências nesse sentindo, que se criou uma quarta espécie de família, a Família Homoafetiva, tendo como competência para discussão definida aos Juizados especiais de família. De acordo com Maria Berenice Dias: De fato, hoje, não existe mais a base na relação sexual. “Busca-se uma família além da consangüinidade e da conjugalidade”, afirma a advogada. É por isso que uma família pode ser composta apenas por dois irmãos, ter vários pais ou várias mães, não ter pai nem mãe, ser formada por uma única pessoa, ter enteado que pode ser adotado por padrasto e assim por diante. (DIAS, 2015) Com o reconhecimento da União caracterizada como Entidade Familiar, os casais homoafetivos passaram a ter melhores condições de sagrarem-se aptos a exercer o direito à adoção conjunta, uma vez que a justificativa para que o pedido fosse indeferido era de que a criança deveria ser adotada por casal heterossexual, ou por indivíduo solteiro, independente de sua opção sexual uma vez que a Constituição Federal proíbe toda forma de discriminação, inclusive a decorrente da opção sexual. Com base na comprovação de casais que cumprem com os requisitos impostos não que se coibir á a estes. Em 17 de Março de 2015 a adoção homoafetiva ganhou decisão histórica e inédita pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em processo da relatora Ministra Carmen Lúcia.O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal após o Ministério Público do Paraná questionar o pedido de adoção feito por um casal no ano de 2006. A decisão teve por base o reconhecimento da União homoafetiva já reconhecida como entidade familiar, com fundamento em um vínculo afetivo, merecendo a esperada tutela legal.Hodiernamente, à luz de Cármem Lúcia: “[...]”O conceito de família, com regras de visibilidade, continuidade e durabilidade, também pode ser aplicado a pessoas do mesmo sexo. O conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.(STF, RE 846.102, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 05/03/2015).

246

Em decisão:i RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECO-

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


NHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. Relatório 1. Recurso extraordinário interposto com base na al. a do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL.AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. O princípio do melhor interesse da criança indicado no art. 3º da Convenção Internacional sobre o direito das crianças (ONU 1989) assegura o bem estar da criança em primeiro lugar, em detrimento de qualquer interesse dos pais. Valoriza-se que a criança e ou adolescente sejam criado em uma família com bases morais, éticas e socioeconômicas de acordo com suas necessidades. A adoção deve ser deferida quando propiciar reais vantagens a criação para a formação da criança, o que não determina restrições a casais homossexuais interessados em adotar, desde que verificado requisitos como um ambiente propício para desenvolvimento da criança ou do adolescente. Uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos seus arts. 39 a 52, revela de maneira clara a adoção como benefício sendo pouco importante qual a sexualidade de quem adota. Essa concepção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) alinha-se com o norte constitucional de proteção integral da criança e adolescente. Os interessados passarão pelo mesmo processo, de qualquer casal, em geral, devendo cumprir os requisitos exigidos, e conseqüentemente serem avaliados pelos serviços de psicologia, pelos Serviços Sociais da Vara da Infância competente e pelo Ministério Publico, para somente depois disso saberem se estão aptos a habilitação ou não da adoção. Sendo assim, se a família é informal, matrimonial ou homoparental, pouco importa, aos interesses da criança e adolescentes adotados. Não obstante, existe ainda um Plano Nacional de Proteção à Criança que prevê, “[...]”um ambiente familiar afetivo e continente às necessidades da criança e, mais tarde do adolescente, constitui a base para o desenvolvimento saudável ao longo de todo o ciclo vital. Tanto a imposição do limite, da autoridade e da realidade, quanto o cuidado e a afetividade são fundamentais para a constituição da subjetividade e desenvolvimento das habilidades necessárias à vida em comunidade. Assim, as experiências vividas na família tornarão gradativamente a criança e o adolescente capazes de se sentirem amados, de cuidar, se preocupar e amar o outro, de se responsabilizar por suas próprias ações e sentimentos. (2006, Brasília, Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), editado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome). A relação de afetividade entre homossexuais atualmente é atribuída um novo sinônimo: homoafetividade. A razão da concreta

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

possibilidade de adoção esta no afeto. O principio da afetividade, enquanto principio jurídico inserido no contexto das entidades familiares, decorre da conversão do afeto no principal alicerce das relações de família. A família hoje só pode ser deve ser compreendida à luz da dignidade da pessoa humana, advindo da Constituição Federal, base de todo o nosso ordenamento jurídico, então se torna inegável a existência de uma tendência conservadora. Ora, possibilitar a adoção em casos como esse, é além de um ato de amor, quase incondicional, a possibilidade de garantir um lar a número maior de crianças e adolescentes, direitos em educação, saúde, até mesmo sucessórios, isso também, se torna interesse do Estado, visto que ocorre uma redução do tempo de permanência de muitas crianças em abrigos e orfanatos, onde muitas vezes não tem o menor amparo. Em decisão do STJ em Minas Gerais:ii “[...]” Apelação cível. Destituição de poder familiar. Abandono da criança pela mãe biológica. Adoção por casal do mesmo sexo que vive em união estável. Melhor interesse da criança. Registro de nascimento. Recurso conhecido e provido. Vale mencionar, que a atuação da Justiça é sempre importante em casos polêmicos, pois, quando o magistrado determina que tal situação é aceitável, nos dá maior clareza a respeito do tema. Contudo, é lamentável sabermos que mesmo diante um avanço tão importante como esse, em que a adoção por homoafetivos já se tornou aceita, isso ainda se torne seja alvo de debate dentro do ordenamento. No dia 24 de Setembro do corrente ano, foi aprovado o projeto de Lei sobre um novo Estatuto da Família, na Câmara dos Deputados, Comissão Especial sobre Estatuto da Família (PL 6.583/13) com parecer do relator deputado Diego Garcia (PHS-PR). De acordo com ele, o estatuto serve para garantir o que está assegurado na Constituição. O projeto conservador e discriminatório exclui qualquer possibilidade diferente de núcleo familiar que não seja formada pela união de um homem e uma mulher. Diversas entidades, como a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (ABRAFH) também declararam por meio de notas, o repúdio a aprovação desse projeto, alegando que a proposta não tem fundamento legal, além de ser uma afronta ao princípio primordial constitucional da igualdade de todas as pessoas. A Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil também se manifestou demonstrando total indignação ao Estatuto da Família, que define entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou união estável. Em nota afirma: “[...]” Referida definição, ao excluir do conceito de família as uniões homoafetivas, é discriminatória, excludente e homofóbica e, via de consequência, escancaradamente inconstitucional”, afirma a comissão da OAB: Trata-se de uma manobra política na vã tentativa de afrontar as decisões judiciais que incluíram no âmbito da tutela jurídica as famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. ( 2015, OAB-RJ). Essa alteração caracteriza retrocesso. Não cabe mais esse tipo de exclusão já que a adoção vem sendo realizada com muitos avanços, até nos direitos dos casados, como é o caso da licença maternidade já deferida. As uniões homossexuais são tão merecedoras de direitos quanto às uniões heterossexuais. O conceito de Família, já tem sido objeto de transformação, de mudança de valores, e ainda, o que está assegurado na Constituição, é exatamente o contrário do

247

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


que foi posto, portanto esse Projeto é inconstitucional. A Lei, caso aprovada, causaria uma situação de fato insustentável: parte dos casais homoafetivos teria sua união estável reconhecida, ao passo que os demais, cuja relação se deu início em momento posterior à vigência da lei, não estariam dentro do conceito de entidade familiar. O Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM) estima, [...] se aprovado, o estatuto tenha como conseqüência a anulação de milhares de adoções e casamentos, ambos direitos já reconhecidos pela Justiça, mas não previstos em lei. O projeto também teria influência nas famílias compostas por heterossexuais com filhos adotivos, por tios que cuidam de sobrinhos ou até mesmo irmãos mais velhos que criam os mais novos (casos em que não existe relação de descendência). (IBDFAM, 2015) Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, se chegar a ser aprovada em outras instâncias, a lei já vai nascer morta e com selo de inconstitucionalidade. O Estatuto aprovado pela Comissão já segue a Plenário, e os recursos, a tramitação fica suspensa até que eles sejam apreciados no plenário com se deputados recorrem para suspendê-lo. Caso os recursos sejam rejeitados, o texto vai para análise do Senado. 4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADOÇÃO POR PARES HOMOAFETIVOS A Constituição Federal de 1988 buscou nos institutos do Direito Romano bases jurídicas sólidas para que o processo de adoção fosse formulado com segurança respeitandoalguns princípios para guiar o Estado e a vida em sociedade promovendo assim o bem estar individual e coletivo de todos. Segundo Bonavides, compreende-se por princípio, “[...] a vigamestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição”. (2006, p. 294) Portanto, cabe aos princípios constitucionais a função de guiar e orientar todo o sistema jurídico, tornando-se uma espécie de suporte, inclusive sobre as normas relacionadas ao Direito de Família, com reflexos integrantes ao instituto da adoção. Considerando todas as transformações ocorridas no âmbito familiar, subjugadas a uma confluência de vários princípios constitucionais, implícitos e explícitos em nosso ordenamento jurídico, é importante o destaque de alguns por serem considerados importantes para o estudo do tema. 4.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana No primeiro artigo da Constituição, como fundamento do Estado Democrático de Direito destaca-seum dos princípios jurídico essencial aplicável à adoção, o da dignidade da Pessoa Humana. (Brasil, 1988). Maria Berenice Dias leciona: [...]. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que dificilmente se podem elencar de antemão. Talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções. É impossível uma compreensão exclusivamente intelectual e, como todos os outros princípios, também é sentido e experimentado no plano dos afetos. (DIAS, 2010) Registra-se que o princípio da dignidade da pessoa humana também se encontra entre os direitos fundamentais não podendo ser infringido por quem quer que seja, especialmente pelo Poder Público, que detém a responsabilidade de proteger e fazer cumprir os preceitos da Constituição Federal vigente.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Esse também está previsto em outros capítulos do texto constitucional, como, por exemplo, no Art. 226, § 6º, que instituiu o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável; e o Art. 227, caput, que assegura à criança e ao adolescente o direito à dignidade. É o princípio maior com total força dos direitos fundamentais e a proteção do indivíduo, desde o direito à vida, assegurando a todos o não tratamento ofensivo e desumano, que possam comprometer as condições básicas para uma vida plena e saudável. Sendo a dignidade da pessoa humana uma qualidade essencial de um indivíduo, pode se concluir que ela é irrenunciável, pois contém elemento que caracteriza o ser humano como tal, no que diz respeito também ao seu desenvolvimento quanto sua liberdade, seja de pensar e de se expressar. A constituição atribui à entidade familiar, especial proteção independente de como se constitui, uma vez que tem por objetivo assegurar as qualidades mais importantes entre seus membros, como o carinho, respeito, solidariedade, confiança e o afeto que são a base para o desenvolvimento pessoal e social humano. Desse modo, este pode ser considerado o princípio mais universal de todos, pois é através dele que se baseiam todos os demais, possibilitando a cada pessoa o direito de constituir um núcleo familiar igualitário a todas as entidades familiares. 4.2 Princípio da Igualdade e respeito à diferença O princípio da igualdade foi um dos primeiros princípios reconhecido pelos Direitos Humanos fundamentais, ele dispõe que, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se [...] a inviolabilidade do direito [...] à igualdade [...]”. (Brasil, 1988). Todos os homens nascem livres tendo por si dignidade e igualdade de direitos. Sendo assim, é necessária a igualdade, não bastante, portanto, que a lei seja aplicada de forma igualitária a todos. Ainda no art.. 3º, IV, (Brasil, 1988), que dispõe dos objetivos fundamentais da República Federativa: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A desigualdade de gêneros foi extinta, não se apagando algumas diferenças existentes, mas retirando a possibilidade dessas serem vistas como discriminatória, sendo natural também as diferenças entre os sexos. Alexandre de Moraes ensina: “[...].“o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito. (MORAES, 2007). Sendo assim, o princípio da Igualdade abrange também o Direito de Família, no âmbito da adoção, no que tange aos vínculos de filiação, proibindo qualquer discriminação com relação aos filhos adotados ou biológicos. (CF, 1988 Art. 227 6º). Portanto, não que se falar na negação a adoção com base na orientação sexual dos indivíduos, pois isso se manifestaria em uma forma discriminatória e totalmente incompatível com os direitos garantidos constitucionalmente, bem como uma violação a esse princípio fundamental.

248

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


4.3 Princípio da Proteção Integral e do Melhor Interesse da Criança Os filhos menores, sendo crianças e adolescentes, desfrutam, dentro da entidade familiar, por determinação constitucional, art. 27, de plena proteção e prioridade absoluta em seu tratamento. (BRASIL, 1988). A proteção integral da criança e adolescente encontra-se protegida pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seu Art. 43, “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”. A Declaração dos Direitos da Criança em seu princípio 6º, afirma: [...] A criança tem direito ao amor e à compreensão, e deve crescer, sempre que possível, sob a proteção dos pais, num ambiente de afeto e de segurança moral e material para desenvolver a sua personalidade. A sociedade e as autoridades públicas devem propiciar cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas. (BRASIL, 1990) Destarte, que é preciso compreender o instituto da adoção como instrumento garantidor dos melhores interesses da criança e adolescente, sua funcionalidade se torna relevante, pois a criança necessita de uma família possível, já que a família tida como tradicional não necessariamente atenderá os seus melhores interesses. A aplicação desse princípio do melhor interesse da criança e do adolescente efetivamente se dará, baseado em um caso concreto, onde o aplicador do direito atenderá determinação dos diplomas constitucionais e infraconstitucionais que protegem o menor em sua totalidade. O Superior Tribunal, ao analisar o caso concreto, sempre de acordo com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente principalmente em casos de adoção, incluindo o afeto em seus juízos de valores, abre-se a possibilidade desses constituir uma pluralidade de entidades familiares. Portanto, abre-se um enorme espaço para a adoção de casais homoafetivos, pois esses muitas vezes podem oferecer melhores vantagens, aos adotados, tais como educação, saúde, atenção e uma afetividade dentro de seu ambiente familiar seguro. 5 CONCLUSÃO A adoção por pares homo-afetivos é um tema relevante em nossa sociedade moderna, sendo de suma importância seu debate de forma extensiva acerca dos preconceitos ainda existentes pela possibilidade de adoção desses casais. Percebe-se assim, que quando se trata da adoção o legislador tem que se valer de fornecer proteção a esses menores, assegurando assim direitos e chances para que essas crianças abandonadas possam ter uma vida confortável e segura. O Estatuto da Criança e do Adolescente, talvez não tenha acompanhado de forma eficaz as novas mudanças ocorridas no ambiente familiar, com o surgimento de formas de famílias menos tradicionais, porém esses novos modelos não podem deixar de serem reconhecidos, necessitando ser constantemente revisados devido ao grande confronto de posicionamentos divergentes em relação à adoção por pares homoafetivos. Assim, conforme argumentação supracitada torna-se imprescindível avaliar com visão jurídico-social clara e abrangente, a probabilidade de pares homoafetivos adotarem em conjunto, criança e/ ou adolescente, tendo em vista que são abraçados pelo princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia. Além disto, o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

direito natural da criança de estar inserida em seio familiar é de extrema importância para o nosso atual quadro social. Pesquisas demonstram que cada vez mais é grande o número de pessoas em busca de adotar uma criança. A adoção além de solucionar a questão do desejo de uma pessoa ter filho, proporciona uma melhora significativa na questão social que é o abandono de crianças. Por mais que os abrigos atuais tentem se encaixar aos moldes do Estatuto, ficar num abrigo nunca foi e nunca será melhor do que fazer parte de uma família, seja a de origem, seja a substituta. Desta forma é possível afirmar que a adoção por pares homoafetivos é correta, desde que se busque sempre o melhor interesse da criança. Os requisitos para a adoção não devem ser excludente de minorias, mas sim, condição de certeza e segurança para o adotando. Com grandes vitórias dentro do atual contexto jurídico brasileiro, com a decisão, que quebrou um paradigma que se norteava como um dogma no direito pátrio deixa de existir qualquer diferença entre os casais heteroafetivos e pares homoafetivos, possibilitando a igualdade de condições para pleitear adoção de crianças. Sendo a família a base para a formação do caráter do indivíduo e um dos alicerces para a formação da personalidade, o instituto da adoção não vem de certa forma para satisfazer o desejo dos pais e sim para garantir o bem estar do menor, digna. Nesse caso, limitar a adoção seria criar obstáculos onde a lei não prevê. Igualmente, deve ser observado o caso concreto, com a realização de avaliação social, através de fundamentação legal, não esquecendo também o aspecto social e familiar que envolve a questão. Posições pessoais e preconceitos gerados pela sociedade, que insiste em discriminar as relações homoafetivas, não podem levar o juiz a sentenciar neste sentido, fechando os olhos para o direito ali existente, bem como não pode invocar o silêncio da lei como forma de negar direitos àqueles que decidiram viver fora do padrão imposto pela moral conservadora, mas que em nada interferem na ordem social. Destaca-se que todas as mudanças na sociedade precisam de uma proteção maior do Estado, pois só assim, os conflitos serão resolvidos da melhor maneira possível. Destarte, é de suma importância que a legislação acompanhe as mudanças sociais. A tomada de novas posições, a luta pela conquista de novos direitos e o embate social e político é que fazem avançar a história da humanidade. NOTAS DE FIM Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

249

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A NOVA LEI DE GUARDA COMPARTILHADA E A ALIENAÇÃO PARENTAL Natália Goulart Andrade1 Paula Maria Tecles2 RESUMO: A entidade familiar vem sofrendo diversas modificações, gradativamente, a fim de que o âmbito jurídico acompanhe a realidade social. O desfazimento da relação de um casal, por qualquer que seja a modalidade, implica na necessidade de regulamentação da guarda da prole eventualmente advinda desse relacionamento extinto. A Lei n. 13.058, referente à obrigatoriedade da instituição da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, nos casos em que inexistirem impedimentos para sua aplicação, foi aprovada com o objetivo de instituir a aplicação de um instituto, reconhecidamente, gerador de inúmeros benefícios aos menores, sobretudo no que tange à prevenção da prática da alienação parental e a recuperação do menor vítima. O presente artigo visa caracterizar a alienação parental como prática corrente e prejudicial ao menor, relacionando-a diretamente ao instituto da guarda compartilhada como alternativa de combate, por meio da promoção do melhor interesse do menor, da isonomia entre os genitores e da manutenção dos lações paterno-materno-filiais. ABSTRACT: The family unit has undergone several changes gradually so that the legal framework accompanying social reality. The undoing of the relationship of a couple, in whatever form, implies the need for regulation of the guard of the offspring arising possibly extinct this relationship. Law n. 13,058, referring to the requirement of shared custody institution in the Brazilian legal system, where the inexistence of impediments to their application was approved in order to establish the application of an institute admittedly numerous benefits to smaller generator, especially in regarding the prevention of circulation of parental disposal and recovery of the child victim. This article aims to characterize the parental alienation as current and harmful practice to minor, relating it directly to the institution of joint custody as a fighting alternative, by promoting the best interests of the minor, of equality between the parents and the maintenance of relations paternal-maternal and branches. PALAVRAS-CHAVE: Entidade familiar. Guarda compartilhada. Prevenção e recuperação. Alienação parental. Keywords: family entity. shared custody. Prevention and recovery. Parental Alienation. SUMÁRIO: 1 Nocões Introdutórias. 2 Entidade Familiar e sua Evolução Jurídica. 3 A Nova Lei da Guarda Compartilhada. 3.1 A guarda compartilhada. 3.2 Função social do instituto. 4 Alienação Parental e a Guarda Compartilhada. 5 Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO O propósito deste artigo é analisar o instituto da guarda compartilhada, bem como expor seus aspectos positivos e negativos, destacando a necessidade real de sua instituição na sociedade atual, considerando que visa ao melhor interesse da criança, sendo instrumento imprescindível na prevenção de fato da ocorrência da alienação parental ou, ainda, capaz de recuperar as vítimas da referida prática. Para tanto, será realizado um retrospecto da evolução social da entidade familiar, desde o momento em que a discussão da guarda da prole entre os genitores configurava-se como algo impensável, em razão do patriarcalismo que imperava, até a chegada à publicação da nova Lei da guarda compartilhada, que primordialmente visa ao alcance da igualdade dos genitores e o estreitamento do convívio entre pais separados ou divorciados e seus filhos. Será realizado um estudo pormenorizado da síndrome da alienação parental, prática que pode ser solucionada, tanto em termos de prevenção, quanto de recuperação das vítimas, por meio do instituto da guarda compartilhada. Por fim, por ser referido tema ainda controverso e gerador de polêmicas, seja no âmbito da jurisprudência ou da esfera social, a fim de corroborar o entendimento apontado, serão apresentadas posições favoráveis adotadas por juristas. 2 ENTIDADE FAMILIAR E SUA EVOLUÇÃO JURÍDICA A evolução social é um processo que vem se desenvolvendo de maneira gradual, em razão da impossibilidade de total afastamento do passado, devido a raízes culturais que, muitas vezes, dificultaram

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

as necessárias transformações sociais. Somente um isolamento entre as diferentes gerações possibilitaria uma mudança rápida e efetiva. As alterações na formação da entidade familiar são exemplo claro do aduzido processo evolutivo, que se fez indispensável para desconstruir a ideia de que família é composta necessariamente por um homem (marido), uma mulher (esposa) e possivelmente filhos. Entretanto, a família não sofreu alterações apenas na formação. No século passado, quando vigia o Código Civil (CC) de 1916, havia intensa valorização do matrimônio como único meio legitimador da família. Indivíduos que constituíam uniões à margem do casamento civil e religioso eram discriminados, pois, sobretudo em razão da forte ligação entre Estado e Igreja, não tinham seus direitos reconhecidos. Assim, também a prole advinda de relação não matrimonializada jamais integraria a entidade familiar. Ou seja, o modelo familiar era erigido sobre o matrimônio, o patrimônio e o poder patriarcal (FACHIN, 2007). Era costumeira a utilização da nomenclatura cônjuge varão, à época, considerado como figura superior à sua esposa e filhos, àquele individuo que necessariamente devia ser respeitado enquanto representante do poder patriarcal, e sua manifestação de vontade era o desejo de todo o seio familiar, sendo que a esposa somente exercia o pátrio poder subsidiariamente (PEREIRA, 2010). O casamento era entidade indissolúvel, que não deveria ser “abalado” em qualquer hipótese. Para casos singulares de necessidade de dissolução de casamento, foi publicada, em 15 de janeiro de 1919, a Lei n. 3725, que instituiu o desquite no Brasil, concedendo às desquitadas a guarda de seus filhos, com base no instinto maternal, e obrigando o desquitado, em caso de real necessidade, ao pagamento

250

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


de pensão alimentícia destinada à desquitada e à prole ou apenas aos filhos, de acordo com as peculiaridades de cada caso. Nessa vertente, a Lei n. 3725 caracterizou-se como marco inicial do afastamento da premissa de que seria o casamento, bem como a respectiva entidade familiar, algo indissolúvel, pois promovia a separação dos cônjuges, ainda que mantido o vínculo conjugal. Todavia, durante seus primeiros trinta anos de vigência, foi ajuizado número inferior a dez ações de desquite, dos quais a maioria foi interposta pelos maridos, sob alegação de adultério da esposa, discutindo-se a culpa pelo término do casamento e fim da entidade familiar, o que acarretava diversos prejuízos às mulheres. A instituição do desquite classificava-se como negativa para as mulheres, em razão do fator social, pela causação de vergonha à própria pessoa e sua família a rotulação como desquitada, e do fator jurídico, pela inexistência de direito que a protegesse amplamente, considerando apenas o fim da convivência conjugal. Entretanto, o desquite na verdade representou grande avanço social, embora, no referido período, ainda estivesse distante de alcançar igualdade entre os cônjuges, tanto no aspecto fático quanto jurídico. Essa só veio a se aproximar com os movimentos sociais desencadeados ao longo dos anos, como as ondas feministas, fundados na discrepante divergência entre a realidade social e o sistema jurídico vigente. As mutações sociais decorrentes dos diversos movimentos e grupos formados afetaram diretamente a entidade familiar na sua estrutura tradicional, acarretando na absorção de novas definições e conceitos de entidade familiar. A evolução social, abrangendo as modificações da entidade familiar, culminou, necessariamente, em alterações legislativas significativas e revolucionárias à sua época. Após a Lei do Desquite, em 1962, foi publicada a Lei n. 4121, denominada Estatuto da Mulher Casada, contemporânea das primeiras lutas sociais e ondas feministas na sociedade brasileira. Com o objetivo de amenizar a discriminação contra mulheres, se destacou por alterar o artigo 6° do CC de 1916, suprimindo a determinação de que a mulher era relativamente incapaz para os atos da vida civil e conferindo-lhe capacidade plena para gerir sua própria vida, em patamar de igualdade com os homens. Nesse sentido, a classe feminina conquistou seu espaço gradualmente, impondo o reconhecimento de sua capacidade e independência da figura masculina à sociedade. Em 1977, foi publicada a Lei n. 6.515, que instituía a possibilidade do divórcio a partir da extinção do vínculo conjugal, o que derrubou terminantemente a concepção de indissolubilidade do casamento, determinando, Maria Berenice Dias (2005), que “o divórcio é o meio voluntário de dissolução do casamento”. O desenvolvimento social também ampliou as formas de demonstração afetiva, à época timidamente externalizadas, dotadas do desejo de constituir uma instituição familiar. Os indivíduos componentes dessas novas relações passaram a se sentir confortáveis, parte legitima da sociedade, reivindicando naturalmente seus direitos e o reconhecimento de seus ideais e modo de vida, por meio da necessária proteção jurídica do Estado. A Constituição Federal de 1988 surgiu como materialização do abandono social do ideal único de entidade familiar, ou seja, aquele marcado pelas figuras indispensáveis de homem, mulher e filhos, poder patriarcal e matrimonialização, passando a tutelar a entidade familiar propriamente dita e as relações advindas, preocupando-se com a dignidade dos indivíduos formadores da família. A família constitucionalizada caracteriza-se como avanço normativo em busca de horizontalidade, de igualdade, pontuando Ana Carolina Brochado Teixeira (2005) tratar-se de uma família–instrumen-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

to, com a função de promover a personalidade de seus membros. Nessa vertente, o artigo 226 da Constituição foi pensado para estender o rol de possibilidades de configuração das entidades familiares, classificando-as como aquelas formadas pelo casamento, pela união estável apenas entre homem e mulher, bem como por qualquer dos genitores e seus filhos. Cabe ressaltar, ser o reconhecimento da união estável, ainda que somente heterossexual, grande marco de alteração da instituição família, afastando a necessidade do matrimônio e garantindo aos parceiros não casados e unidos de fato praticamente todos os direitos daqueles que constituíram matrimônio formal, como guarda, alimentos e partilha, no caso de dissolução da respectiva união, ou, ainda, após a morte de um cônjuges, o direito à herança. No que se refere à entidade familiar formada por qualquer dos genitores e seus filhos, o dispositivo consagrou, nesse ponto, o abandono jurídico imediato da necessidade do poder patriarcal, considerando que, a partir de 1988, seria constitucionalmente possível a formação desta instituição por apenas uma mulher e seus filhos, sendo a figura feminina a imagem de ordem à sua prole. Do fim de 1970 ao final de 1980, ocorreram no Brasil as primeiras iniciativas de movimentos homossexuais, decorrentes da fundação do “Jornal Lampião da Esquina” e do grupo SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, e do surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA)iii na década de 1980, tornando a homossexualidade, ainda que receosamente, tema de discussão social, debatido em escolas e universidades, introduzindo a ideia no seio familiar. A luta dos homossexuais por reconhecimento, respeito e aceitação social, avançou, tornando-os cada vez mais uma classe possuidora de identidade, desejos, ideais e direitos, culminando no reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 05 de maio de 2011, por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132 (BRASIL, 2011). Favoravelmente à causa, argumentou o ministro Ayres Britto que “o sexo das pessoas, salvo disposição em contrária, não se presta para desigualação jurídica” (BRASIL, 2001). A partir desse momento, então, passou-se a ser juridicamente possível, a constituição da família através de hipótese não disposta na Constituição Federal de 1988, trazendo à tona discussões relacionadas, dentre outros temas, à adoção de menores por casal homossexual e a indivíduos provenientes de doadores anônimos de sêmen. Tais questionamentos surgiram necessariamente da preocupação em tutelar todas as relações que se apresentassem com as novas características de família: a afetividade e a estabilidade. Tratar-se de momento histórico brasileiro marcado pelo reconhecimento de direitos e causador de polêmicas reflexões, porém, apesar do avanço, a possibilidade do casamento às relações homoafetivas manteve-se ainda intransponível, por questão de cunho predominantemente religioso. Qualquer que seja a entidade familiar configurada, todas assumem patamar de igualdade, sendo constitucionalmente vedado o favorecimento de uma em detrimento da outra. Ainda em termos de legislação protetiva, em 2006, foi publicada a Lei n. 11.340, popularmente conhecida como Maria da Penha, lei procedimental com o objetivo de proteger mulheres vítimas daquela figura masculina que impõe por meio da violência o poder patriarcal. Toda a evolução fática e jurídica da entidade familiar demonstra, claramente, a necessidade da equiparação entre os cônjuges, seja no que se refere ao sustento do lar conjugal, à administração da residência, à educação dos filhos e, em caso de extinção desta instituição, à possibilidade do fim da união, à

251

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


necessidade de auxilio financeiro e, principalmente à concessão da guarda dos filhos. No mesmo sentido, foi publicada a Lei n. 13.058, em 22 de dezembro de 2014, cujo conteúdo estabelece, como regra geral, a concessão da guarda compartilhada aos pais separados judicialmente ou divorciados, que se encontram, então, em patamar de igualdade nos papéis familiares. A legítima concessão da guarda compartilhada possui como objetivo a promoção do melhor interesse da criança, sendo seus genitores hierarquicamente semelhantes e, quando não possuidores de impedimentos legais, merecedores de gozar da companhia, participação e influência de maneira equivalente na vida de sua prole. 3 A NOVA LEI DA GUARDA COMPARTILHADA 3.1 A guarda compartilhada A guarda compartilhada se encontra justificada na própria realidade vigente, seja social e jurídica, considerando-se o crescimento exponencial e acentuado do número de filhos menores, provenientes de relações afetivas já desfeitas. Como anteriormente apontado, durante o século XIX, vigia uma sociedade fundada no poder patriarcal nas entidades familiares e na submissão dos filhos à figura paterna, sendo o homem da família o possuidor inquestionável de sua guarda. Nesse período, a figura feminina se encontrava intensamente desvalorizada, e em razão da condição de relativamente incapaz. Porém, já no século XX, com os movimentos revolucionários mundialmente protagonizados, as relações afetivas aparentemente harmônicas passaram a se modificar, exigindo-se a revisão de questões como partilha de bens do findo casal, eventual necessidade de alimentos e, principalmente, fixação da guarda dos filhos. De forma pioneira, o Direito Inglês, no ano de 1960, na vigência do common law, instituiu a guarda conjunta (joint custody), atualmente reconhecida como guarda compartilhada, sistema no qual ambos os genitores compartilhariam as decisões que envolvessem seus filhos. Posteriormente, a França reconheceu os benefícios do sistema de guarda supracitado, promovendo sua assimilação social a partir do ano de 1976. A respectiva agremiação passou a ser juridicamente admitida através da aprovação e publicação da Lei Malhuret (87.570), em 22 de julho de 1987, fazendo o nome da respectiva lei referência ao Secretário de Direitos Humanos francês. O Secretário à época defendia a necessária de diminuição dos efeitos negativos causados aos menores pela guarda unilateral, caracterizando o instituto da guarda compartilhada como melhor opção àquelas crianças advindas de relação afetiva desfeita, tendo referido posicionamento sido significativamente apoiado pela jurisprudência do país, a qual pode ser oficialmente harmonizada com a publicação da referida lei. A partir deste momento histórico, o instituto da guarda compartilhada se tornou um principio, sendo inserido no Código Civil vigente em seu artigo 373-2 (GRISARD FILHO, 2000). Enquanto isso, no Canadá, mais precisamente, na década de 1980, surgiu o ideal de que a separação ou divórcio dos genitores não deveria acarretar perdas a qualquer membro daquela entidade familiar, estando referido conceito intimamente unido ao instituto da guarda compartilhada. Neste diapasão, passou-se a ser a aplicada naquele país o instituto da guarda conjunta ou compartilhada, fundamentado no melhor interesse do menor, no alcance de benefícios psicológicos, bem como na necessidade de toda criança em possuir o contato fre-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

quente com cada um dos pais, sendo devidamente estabelecidas as figuras paterna e materna em suas vidas, ainda em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, o instituto denomina-se joint physical custody, bem como pioneiramente associa a necessidade de fixação dessa modalidade de guarda com a indispensável precaução à ocorrência da alienação parental. Para os norte-americanos, a fixação da modalidade de guarda a ser aplicado em cada caso deve ser delicadamente realizada, considerando ocorrer necessariamente em período traumático para os filhos, seja de separação ou divórcio de seus pais. No Direito Americano, aplica-se a guarda compartilhada sobre duas óticas distintas, sendo denominadas joint legal custody, detenção de ambos genitores da autoridade para tomar decisões importantes sobre a vida da criança, e joint physical custody, cuja definição abrangente não se refere apenas à autoridade nas decisões, mas na regulamentação fática da vida da criança, submetendo o menor ao desenvolvimento de vida por longo período na companhia de cada um dos pais (MACCOBY, 1993). No Brasil, o instituto da guarda compartilhada surgiu no ordenamento jurídico vigente, através da publicação da Lei n. 11.698 em 2008, a qual instituiu referida modalidade de guarda como explicitamente preferencial a ser aplicada, reportando-se inclusive ao Direito Americano, quando apresentou esse instituto como principal forma de se evitar a alienação parental e a síndrome dela advinda (BRASIL, 2014). Porém, durante os anos seguintes, apesar do exponencial crescimento do número de filhos de pais separados ou divorciados, bem como do aumento da necessidade de regulamentação da guarda destas crianças, o instituto da guarda compartilhada foi pouco utilizado, sendo corriqueiramente aplicado pelos juízes, apenas nos casos de consenso entre o casal, permanecendo, nas demais ocasiões, a guarda unilateral, supostamente causadora de menores transtornos aos menores. Em favor do instituto da guarda unilateral, afirmam Eliane Michelini Marraccini e Maria Antonieta Pisano Motta (1996) que é importante ao filho permanecer na companhia permanente e contínua de um só genitor, de acordo com suas necessidades. Em 2010, foi publicada a Lei n. 12.318, a qual finalmente veio rotular como indevida e indenizável a prática de alienação parental, realizada por diversos genitores desde a antiguidade e conhecida no país desde 2002, que se caracteriza como significativa consequência da regulamentação corriqueira da guarda unilateral. O ajuizamento de diversas ações judiciais, constando em seus pedidos iniciais denuncia da prática de alienação parental, a partir da publicação da referida Lei, caracterizou-se como gatilho de reflexão da necessidade de maior aplicação da guarda compartilhada. Nesta vertente, foi publicada, em 22 de dezembro de 2014, a Lei n. 13.058, que regulamenta a aplicação da guarda compartilhada como regra geral no pais, definindo seu conceito e alterando o CC de 2002, sendo essa, sob a ótica dos legisladores, a mais benéfica alternativa legal a ser aplicada, através da qual é possível uma melhor convivência dos entes familiares e promoção do equilíbrio no exercício do poder familiar. Na esfera prática, as relações existentes entre casais divorciados, na maioria das vezes, se encontram marcadas por conflitos e ressentimentos, sendo necessária, para o verdadeiro êxito da guarda compartilhada, a aplicação da premissa constitucional da isonomia entre pai e mãe, bem como da preservação do vinculo afetivo paterno ou materno filial, independentemente de eventuais desavenças advindas de fatores externos aos menores. A nova Lei, portanto, reafirma a necessidade de serem os genitores corresponsáveis por sua prole, exercendo a guarda de seus filhos em condições de paridade nos casos de inexistência de im-

252

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


pedimentos legais. A guarda compartilhada pretende notoriamente afastar a ocorrência da privação das crianças de receber cuidados e desenvolver a convivência necessária com ambos os genitores, sendo o único meio de assegurar sua igualdade na vida dos filhos (GRISARD FILHO, 2000). Entretanto, embora pareça ser uma solução menos traumática, o instituto é tema que envolve intensa discussão, mormente considerando referir-se a bem de grande valor social, ainda em formação e desenvolvimento, que é a criança ou o adolescente. O poder familiar define-se na autoridade dos pais em relação aos filhos, a qual, juridicamente, se traduz em obrigação de ambos genitores em educar, guardar, orientar, assistir e, ainda, administrar bens pertencentes aos menores. A nova Lei de guarda compartilhada apresenta-se como instrumento capaz de assegurar a função social desse instituto, que existe como opção para as famílias desde 2008, sendo desde então pouco utilizada, considerando a realidade vigente e o fato de ser o Brasil um país com forte tendência legisladora, sendo os moldes impositivos da nova lei necessários à sua aplicação em sociedade. Quanto à sua função social, apura-se que a guarda compartilhada jamais deverá ser dividida entre jurídica e material, considerando que referida separação poderia implicar na inviabilização do acesso aos benefícios trazidos. Isso se justifica pelo simples fato de ser o instituto da guarda, unilateral ou compartilhada, uma determinação jurídica registrada e homologada oficialmente, mas que de nada adianta, se aquela respectiva determinação não se materializar na realidade, sendo necessário, principalmente quando da fixação da guarda compartilhada, a cooperação e compreensão de ambos os genitores, visando sempre o melhor interesse do menor. 3.2 Função social do instituto A guarda compartilhada foi originalmente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro como instituto capaz de amenizar os traumas e prejuízos emocionais causados a todos os entes da família devido ao desenlace dos cônjuges. Nesse sentido, o Desembargador Sérgio Gischkow afirma ser a guarda compartilhada uma situação em que os detentores da guarda jurídica habitam locais separados (PEREIRA, 2010). Sua função social precípua apresenta-se como a conservação do direito da guarda jurídica e física do menor por parte dos genitores, devendo o antigo casal se manter próximo, possivelmente debater e ao final acordar no que diz respeito aos valores e diretrizes a serem seguidos pela prole, gerando a conciliação cotidiana dos pais acerca da alternância de lares, destacando-se que, apesar das decisões judiciais fixarem previamente o regime de lares a ser seguido, diversos fatores da vida podem ocasionalmente trazer a necessária modificação desse regime, sendo necessária a celebração de acordos informais entre os genitores, visando em todos os aspectos a manutenção dos laços materno e paterno filiais e o melhor interesse do menor. O melhor interesse do menor surgiu a partir da atribuição de valor à pessoa humana, o que ocorreu inclusive no âmbito familiar, gerando a real necessidade de proteção da criança ou adolescente. A Constituição Federal de 1988 reconheceu o melhor interesse do menor, consagrado pela dignidade da pessoa humana, mais precisamente, no artigo 1°, inciso III, sendo tal proteção estendida à criança e ao adolescente, destacando-se o disposto no artigo 227, caput, que determina ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente todos os direitos inerentes, colocando-os a salvo de qualquer forma de abuso, discriminação e trauma (BRASIL, 1988).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é um marco nas relações paterno-materno-filiais que, alterando a situação de inferioridade do passado, coloca o filho (menor) na condição de sujeito de direito, com prioridade em relação aos demais membros da família que integra (GAMA, 2008). Esse princípio deve nortear todas as relações envolvendo crianças e adolescentes, sejam de fato familiares, ou externas ao lar, pouco importando se protagonizadas entre menores de idade e terceiros, irmãos, parentes, guardiões, tutores, protetores e principalmente genitores, estando esses ainda unidos ou não. O conceito e a aplicação do melhor interesse do menor encontram-se intimamente relacionados à fixação de sua guarda, considerando que sua nova rotina de vida, após o fim da união de seus genitores, deve obrigatoriamente atender ao que lhe for mais benéfico. Dessa forma, “a criança não cresce sadiamente sem a constituição de um vínculo afetivo estreito e verdadeiro com um adulto” (MACHADO, 2003, p. 154). Em sentido semelhante, de forma pioneira, em 1989, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança afirmou como direito da criança conhecer e conviver com seus pais, a não ser quando incompatível com seu melhor interesse, e manter contato com ambos, caso seja separada de um ou de ambos; as obrigações do Estado, nos casos em que as separações resultarem de ação do Poder Judiciário, assim como a obrigação de promover proteção especial às crianças, assegurando ambiente familiar alternativo apropriado ou colocação em instituição, considerando sempre o ambiente cultural da criança (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989). As afirmações realizadas pela Convenção se identificam intimamente com as determinações realizadas pela nova Lei de guarda compartilhada, pois a convivência com os genitores e a manutenção do vínculo paterno e materno filial, após a dissolução de um casal, caracteriza-se como alternativa que mais satisfatoriamente atende ao melhor interesse da criança ou adolescente, podendo o menor sob o regime da guarda compartilhada, continuar de fato compartilhando sua vida com seus pais, sendo ambos figuras ativas e influentes em sua vida. Desse modo, a Lei n. 13.058 caracteriza-se como uma conquista para os filhos menores de pais separados ou divorciados, evitando eventual ruptura afetiva entre pais/mães e filhos. No momento da aplicação da modalidade de guarda em um caso concreto, cabe ao magistrado a análise de um complexo rol de fatores, cuja decisão deve se fundamentar na percepção jurídica, nos conhecimentos técnicos de assistentes sociais, psicólogos e até mesmo psiquiatras, e inclusive a vontade do menor, por meio de oitiva, em ambiente neutro e livre de traumas, a fim de captar suas reações afetivas e seu raciocínio opinativo (STRENGER, 1991). Porém, a necessidade ou não da oitiva do menor no caso de guarda, apresenta- se como fator subjetivo, devendo ser analisado na peculiaridade de cada caso, sendo devido que o magistrado esteja sempre atento à idade da criança e à capacidade de demonstração de sua real vontade, destacando-se sua vulnerabilidade e predisposição a ser facilmente manipulado, fazendo com que a oitiva beneficie a prática da alienação parental. Em todo caso, sempre que possível e inexistentes motivos impeditivos, deve a guarda compartilhada ser regulamentada, levando em conta a manutenção dos vínculos afetivos e a parcialidade entre os componentes do grupo familiar. Nesse ponto, o instituto da guarda unilateral não promove a garantia do desenvolvimento da criança, não havendo falar em igualdade dos genitores, seja no âmbito pessoal, social ou familiar, recebendo o não possuidor da guarda de seu filho o papel de apenas coadjuvante no crescimento de sua prole.

253

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Ainda assim, apura-se que, diversamente ao propósito da guarda compartilhada, o instituto da guarda unilateral pode, na realidade, gerar o abandono paterno, causado principalmente por problemas culturais, a exemplo do individualismo, circunstância essa que, posteriormente, faz com que alguns genitores não possuidores da guarda rejeitem suas próprias responsabilidades e compromissos. Isso pode levar à indignação dos filhos e ex-esposa ou ex- companheira, a qual, conscientemente ou de maneira impensada, passa a influenciar sua prole em sentido contrário ao genitor, configurando- se a prática de alienação parental. A ausência da figura paterna no lar familiar, além de romper as relações paterno filiais, pode eventualmente gerar a delinquência infanto-juvenil, o consumo de drogas e o fracasso escolar, e a guarda compartilhada traz o benefício de que, impedindo a ausência da figura de um dos pais, esses jamais se tornarão ex-pai ou ex-mãe dos filhos, participando de seu desenvolvimento. Lya Luft (2003), sobre o tema, alude que o amor primeiro, entre pais e filhos, é a base de expectativa para todos os futuros amores, assim como essa relação é a projeção de todas as futuras relações, de modo que criar os filhos é uma tarefa que se renova a cada dia, como se fosse um recomeçar. Sobre os benefícios do instituto, o professor Eduardo de Oliveira Leite (1997) afirma que a guarda conjunta faz com que os pais compartilhem sentimentos e expectativas entre si, pois devem tomar decisões em conjunto, de forma a reduzir as diferenças e os rancores da ruptura do laço do casal e conferindo iguais condições a ambos, tanto no aspecto sentimental quanto social. O compartilhamento da guarda de uma criança apresenta-se no meio social como anseio das famílias modernas, considerando a inserção de ambos os genitores no mercado de trabalho, bem como as disponibilidades diversas de horários para estar com seus filhos, sendo possível a programação do melhor sistema de convívio através desta modalidade de guarda. A figura daquele genitor não guardião de seus filhos não deve continuar se restringindo a apenas aquele individuo pagador de pensão alimentícia e realizador de visitas em finais de semana alternados, sendo necessário para o regular desenvolvimento da prole a continuidade do estreitamento das ligações paterno/materno filiais após a separação ou divórcio dos genitores. Entretanto, apesar dos diversos benefícios advindos do instituto, ainda não é possível reconhecê-la ou caracterizá-la como a solução para todos os problemas provenientes da dissolução de um casal possuidor de filhos, em razão dos empecilhos decorrentes de sua aplicação. Segundo pesquisas realizadas pelo IBGE, durante os anos compreendidos entre 2007 e 2013, foram realizados em média 900.000 (novecentos mil) casamentos no período de um ano, correspondendo o número de divórcios à aproximadamente 1/3 (um terço) deste valor, sendo tal quantia considerada elevada, bem como resultado da mudança de comportamento da sociedade brasileira (IBGE, 2014). O acentuado número de divórcios anuais no Brasil implica, necessariamente, no aumento da quantidade de menores sobre os quais devem ser discutida e regulamentada a guarda. Em consonância com o raciocínio aduzido, estudo realizado no ano corrente demonstrou que, dentre esse elevado número de menores advindos de relações desfeitas judicialmente, apenas 6% (seis por cento) deles se encontram em guarda compartilhada, estando o restante das crianças em 85% dos casos, sob a guarda unilateral da mãe, enquanto apenas 9% (nove por cento) daquelas são guardadas unilateralmente pelo genitor, sendo o consentimento do pai com o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

pedido de guarda unilateral comumente ajuizado pelas mães característica marcante nos processos de guarda brasileiros (IBGE, 2014). A associação dos dados supracitados reflete uma realidade vigente no país, bem como demonstra a existência, apesar do reconhecimento dos benefícios do instituto da guarda compartilhada, da grande rejeição e receio de sua aplicação, sendo sua instituição de fato na sociedade ainda uma realidade utópica. Essa rejeição e apreensão podem ser justificadas, inicialmente, pela subjetividade que envolve as relações tuteladas pelo Direito de Família, nas quais, em porcentagem significativa dos casos, são cumulados aos pedidos de separação, divórcio, partilha de bens, pensão alimentícia e, principalmente a concessão da guarda dos filhos, muitas magoas e ressentimentos advindos da frustração pelo fim do cenário familiar outrora idealizado. Referidos sentimentos, dotados de pontos negativos, podem eventualmente alienar os ex-cônjuges ou ex-companheiros quanto à determinação do que realmente importa no tocante aos seus filhos, permitindo que a repulsa pelo outro envolvido naquela separação torne-se gatilho do cometimento de atitudes que visem, na ótica do cônjuge, prejudicar seu anterior parceiro, mas que, na realidade, prejudicam intensamente o desenvolvimento particular dos próprios descendentes. Como exemplo dessa repulsa geradora de consequências negativas na guarda compartilhada, dentre outras diversas situações corriqueiras, tem-se o fato do genitor, que conta momentaneamente com a companhia de seus filhos, deixar de reportar ao genitor adverso sobre como anda sua prole, gerando tumulto e perturbação da relação familiar, bem como tornando os menores alvos de disputa entre os pais, sendo deturpada a real função social e objetivo da guarda compartilhada. Ressaltando eventual face negativa da instituição, manifesta-se Waldir Grisard Filho (2000) no sentido de que pais sem cooperação, que buscam sabotar-se mutuamente, contaminam a educação de seus filhos, desviando a finalidade da guarda compartilhada, que somente funcionará se os pais proporcionarem aos filhos continuidade da relação sem expô-los a disputas, além de que a determinação de tempo igual para ambos pais impede a uniformidade na vida do menor, e um grande número de mudanças também pode trazer prejuízos. Ainda sobre o aspecto desfavorável da guarda compartilhada, afirma a advogada Beatriz Kestener que o instituto só funciona se houver diálogo e consenso, e os casais que brigam não vão cessar os desentendimentos por sua casa (CENTOFANTI, ANO). No mesmo sentido, a advogada Gladys Maluf Chamma afirma que a guarda compartilhada concedida a um casal que briga pode trazer danos à criança, à medida em que haverá dois padrões de orientação a seguir, que não representando um consenso, causandolhe confusão e insegurança (CENTOFANTI, ANO). No que se refere ao instituto da guarda compartilhada propriamente dito, configura-se, na visão de alguns doutrinadores e juristas, como ponto negativo no Brasil, a intensa alternância de lares, o que, segundo os defensores dessa corrente, poderá acarretar prejuízos aos menores submetidos, como a ausência de referência de um lar, a inexistência da determinação ou organização de uma rotina ou cotidiano e confusão quanto à figura de autoridade que deva ser seguida, referências essas indispensáveis para o regular desenvolvimento de uma criança. Considerando o mínimo tempo decorrido entre a publicação da Lei n. 13.058, e as considerações realizadas nesse artigo, torna-se possível apenas pontuar que o receio na aplicação desse instituto ainda vige e possui como causa, na maioria dos casos, as frustrações

254

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


advindas do fim da união do casal. Porém, os benefícios provenientes, nos casos em que for corretamente aplicado o instituto, são inúmeros, revelando-se instrumento capaz de afastar definitivamente a prática da alienação parental. 4 ALIENAÇÃO PARENTAL E A GUARDA COMPARTILHADA A alienação parental possui como origem o aumento das estruturas de convivência familiar, sendo a família, na ótica atual, regida pelo afeto e não pela ideia de propriedade vigente na antiguidade, tornando pais e filhos cada vez mais próximos, havendo participação ativa de um na vida do outro. Durante a década de 1960, momento em que as mulheres iniciaram seu ingresso no mercado de trabalho, coube aos genitores naturalmente se responsabilizar por atividades distintas ao sustento do lar, sendo essas, a participação efetiva no cuidado das crianças e da própria residência conjugal. Nesse cenário, foi publicada, na década de 1970, a Lei do Divórcio, a qual foi ao encontro dos anseios de muitas mulheres ativas na luta pela busca de liberdade e independência e mantenedoras, em muitos casos, de uniões apenas de fachada. Essa Lei abarrotou o sistema judiciário com pedidos de divórcio, surgindo, inerentemente a esse fenômeno, a necessidade de se regulamentar a guarda dos filhos advindos da união finda. Pouco tempo após o número expressivo de divórcios ajuizados, passou-se a reconhecer e debater sobre os benefícios trazidos pelo instituto da guarda compartilhada, sendo esse ainda à época aplicado apenas com o consentimento de ambos os genitores, o que quase nunca ocorria, fazendo com que a guarda dos filhos, na maioria dos casos, fosse tema de enorme batalha judicial, que claramente objetivava a demonstração de quem seria o mau genitor e, portanto, não merecedor da guarda de seus filhos. Na maioria dos casos de divórcio, era concedida a guarda unilateral dos filhos à pessoa da genitora e impostos obrigatoriamente as visitas e o pagamento de pensão alimentícia por parte do genitor, fatores esses que notoriamente não proporcionam o estreitamento dos vínculos afetivos, levando eventualmente ao enfraquecimento da cumplicidade de pai e filho trazida pela convivência. Esse quadro sofreu piora considerável na década de 1980, quando passou a ser notado nos genitores possuidores da guarda de seus filhos, uma significativa tendência vingativa contra o ex-cônjuge, surgindo casos em que as crianças influenciadas pelo genitor guardião desviavam seu afeto para apenas um de seus pais, passando a rejeitar o outro. Esse fenômeno foi identificado e denominado como Síndrome da Alienação Parental por Richard Gardner, em 1985, o qual, após a realização de estudos, concluiu que, em muitos casos de regulamentação da guarda dos filhos menores, os genitores possuíam como único e supremo objetivo o afastamento do ex-cônjuge da vida de sua prole, semeando na mente das crianças ou adolescentes uma espécie de lavagem cerebral, que se caracterizava pela implantação de ideias absolutamente contrárias ao outro genitor, deturpando sua figura. Como desdobramento do conceito da alienação parental, temos algumas modalidades distintas de sua prática. A primeira é a Síndrome de Medea, descoberta na década de 1980 e caracterizada como a adoção pelos pais da definição da imagem de seu filho como necessariamente a sua extensão, inexistindo a compreensão de que, mesmo sendo crianças ou adolescentes, tratava-se de pessoas diferentes, as quais poderiam não compartilhar dos sentimentos cumulados pelo genitor (MAGALHÃES, 2010). Ainda durante o referido período, foi identificada a existência da Síndrome das Alegações Sexuais no Divórcio, ou seja, o fato de um dos

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

genitores alegar falsamente estar o ex-cônjuge abusando sexualmente da prole, visando apenas o afastamento definitivo de pais e filhos, bem como a construção da imagem desfavorecida do outro genitor. Em seguida, houve o reconhecimento da Síndrome da Mãe Maliciosa, realizado por Turkata, a qual se caracteriza pela genitora que tenta castigar seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, através do impedimento da realização das visitas do pai aos seus filhos, dificultando cada vez mais o acesso do genitor às crianças (MAGALHÃES, 2010). Independentemente da modalidade, observa-se que todas as ocorrências supracitadas constituem diferentes práticas que culminam no mesmo fim, a realização da alienação parental, conduta que visa prejudicar o outro genitor por meio da promoção de seu afastamento da prole. A Lei n. 12.318 de 2010 dispõe claramente em seu artigo 6° que, no caso de cometimento reconhecido da alienação parental pelo genitor possuidor da guarda de seus filhos, pode aquele pai/mãe perder a guarda de sua prole, sendo ela concedida unilateralmente ao outro genitor ou, ainda, instituída a guarda compartilhada (BRASIL, 2010). Segundo entendimento jurisprudencial, é possível que o genitor alienador perca a guarda de seu filho, considerando-se estar incorrendo em prática prejudicial ao bem estar do menor, por meio de abuso psicológico, tendo em vista que, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, “a guarda compartilhada foi criada com o objetivo de proteger o menor, salvaguardando seus interesses em relação aos pais que disputam o direito de acompanhar de forma mais efetiva e próxima seu desenvolvimento” (MINAS GERAIS, 2015). Conforme entendimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a prática de atos de alienação parental enseja a medida de reversão da guarda. A regulamentação do direito de visitas deve obedecer à igualdade dos genitores, em observância aos princípios do melhor interesse do menor e da isonomia (MINAS GERAIS, 2014). E as mudanças impostas pela sociedade atual, tais como inserção da mulher no mercado de trabalho e existência de uma geração de pais mais participativos e conscientes de seu papel na vida dos filhos vem dando a ambos os genitores a oportunidade de exercerem, em condições de igualdade, a guarda dos filhos comuns (MINAS GERAIS, 2015). Porém, a efetiva aplicação da inversão da guarda no caso de denuncia de alienação parental apresenta baixa efetividade na sociedade brasileira, levando-se em conta ser referida prática apenas psicológica e, por isso, invisível em alguns casos. Além disso, possui, o alienador, o fator favorável tempo, sendo possível afirmar que, quanto maior a demora na identificação de fato da prática da alienação parental, menores as chances de comprová-la, considerando-se que, apesar de instrumentos como estudos sociais e psicológicos disponíveis ao Judiciário, a alienação da criança pode atingir um ponto no qual ela mesma não consegue reconhecer que foi induzida ao erro pelo alienador, tornando parte de sua realidade as informações insistentemente trazidas pelo mesmo. Nesse ponto, pode-se identificar um fator eventualmente negativo da inversão da guarda no caso do reconhecimento da prática da alienação parental, considerando- se que, quando a alienação atinge elevado estágio, os filhos encontram-se perturbados e fanáticos pelo alienador, ficando extremamente receosos apenas com a ideia de visitar o outro genitor. Dessa forma, a concessão abrupta da guarda da prole ao genitor alienado pode causar, nesses casos, ainda maiores prejuízos ao menor, como medo e rejeição em relação à figura daquele pai/ mãe. Sentimentos que não desaparecerão de forma rápida, devendo o processo de readaptação e reaproximação do genitor alienado ocorrer de maneira gradual, incompatível com a inversão da guarda,

255

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


sendo essa, medida que obtêm êxito em poucos casos no Judiciário, podendo causar traumas e aumentar o nível de conturbação na mente do menor. O instituto da guarda compartilhada, quando analisado conjuntamente à prática da alienação parental, deve ser exposto sobre duas óticas distintas. A primeira caracteriza-se pela sua regulamentação em momento anterior à prática da alienação, possuindo a guarda compartilhada, nesse ponto, a capacidade de prevenir ou inibir sua ocorrência. Isso porque possui o objetivo de manter os laços filiais constituídos anteriormente ao fim da união dos genitores, viabilizando que qualquer deturpação da imagem de um, realizada pelo adverso, seja rapidamente corrigida e desacreditada pela criança, que passa a ver na prática o equívoco das informações trazidas pelo eventual aspirante a alienador. Em vertente diversa, pode-se analisar a relação entre guarda compartilhada e alienação parental em momento posterior à ocorrência da última, possuindo o instituto, nesse ponto, a característica de modalidade de guarda capaz de promover a recuperação do menor alienado. Nesse sentido, apura-se que o instituto da guarda compartilhada pode gerar ao menor alienado ainda mais benefícios do que aqueles já trazidos às crianças que não sofrem alienação, considerando encontrar-se a prole alienada em situação crítica, a qual pode verdadeiramente ser amenizada através da instituição desse compartilhamento. Os danos psicológicos decorrentes da alienação parental podem, na maioria dos casos, ser sanados, devendo a recuperação, se de fato desejado seu êxito, ser realizada de maneira gradual, sendo viável que a criança alienada de forma exponencial reestabeleça o contato com o genitor não possuidor de sua guarda, bem como possa identificar por si própria os pontos positivos e eventualmente negativos nele existentes, por meio da convivência não forçada entre pais e filhos. Na mesma vereda, a guarda compartilhada, exatamente por propiciar o contato de ambos os genitores com os filhos, apresenta-se como aquela mais indicada nos casos da prática da alienação parental, considerando não representar ou gerar na mente da prole o sentimento de perda ou afastamento de nenhum de seus pais. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, verifica-se que o instituto da guarda compartilhada, apesar da existência de lei que obrigue sua aplicação, ainda configura-se como tópico polêmico, não tendo sido de fato sedimentada social e juridicamente. Essas divergências apresentam-se justificadas pela subjetividade dos aspectos relacionados ao fim da relação de um casal, bem como por conceitos sociais externos à entidade familiar e, principalmente, pelo mínimo período transcorrido entre a publicação da nova Lei da Guarda Compartilhada e o presente estudo, sendo necessária a realização da análise de seus reflexos efetivos no âmbito social. Os fundamentos e benefícios da guarda compartilhada superam significativamente eventuais aspectos negativos decorrentes, considerando configurar- se como solução ao anseio das famílias modernas, em razão também da inserção de ambos genitores no mercado de trabalho, bem como as disponibilidades diversas de horários para estar com seus filhos, sendo possível a programação do melhor sistema de convívio através dessa modalidade de guarda. A respeito da associação entre a guarda compartilhada e a alienação parental, apurou-se ser essa última prática que, apesar de indevida e prejudicial aos menores, ocorre em quantidade significativa após a dissolução da entidade familiar originária, como forma de vingança de um genitor contra o outro, sendo necessária a determinação de medi-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

das que reduzam os índices de sua ocorrência, para atender ao melhor interesse do menor e assegurar-lhe um desenvolvimento saudável. Identificou-se a guarda compartilhada como instrumento intimamente ligado à alienação parental, por possuir a capacidade de prevenir sua ocorrência, quando instituída anteriormente, bem como de recuperar o jovem por ela afetado, quando instituída posteriormente. Pelo mesmo raciocínio, a guarda compartilhada configura-se como modalidade de guarda mais benéfica aos menores, em todos os casos em que inexistem impedimentos para que um dos genitores seja guardião de seu filho, promovendo fundamentalmente o bem estar do menor, através da manutenção dos laços paternos e maternos filiais existentes anteriormente ao desfazimento da relação dos genitores. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 abr. 2015. BRASIL. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. O que é Aids. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pagina/o-que-e-aids>. Acesso em: 07 Nov. 2015. BRASIL. Lei n. 4.121 de 27 de agosto de 1962 – DOU DE 3/9/62. Disponível em: <http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1962/4121.htm>. Acesso em: 25 mar. 2015. BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2010/Lei/L12318.htm>. Acesso em: 25 mar. 2015. BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/Lei/L13058.htm>. Acesso em: 20 mar. 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=400547&tipo=TP&descricao=ADI%2F4277>. Acesso em: 26 mar. 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Supremo reconhece união homoafetiva. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>. Acesso em: 26 mar. 2015. CARVALHO, Dimitre Braga Soares. Direito de família e direitos humanos – pluralidade familiar e dignidade humana como centro das relações humanas. São Paulo: EDIJUR, 2012. CENTOFANTI, Marcella. Guarda compartilhada: o que muda com a nova lei. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/guarda-compartilhada-oque-muda-com-a-nova-lei/> Acesso em: 28 mar. 2015. COMEL, Denise Damo. Do poder Familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ELROD, l. D. & RAMSAY, S. H. High-conflict custody cases: reforming the system for children— conference report and action plan. Family Law Quarterly, v. 34, 2001. FACHIN, Luiz Edson. Famílias: entre o Público e o Privado. Problematizando Espacialidades à Luz da Fenomenologia Paralática. In: Revista de Direito das Famílias e Sucessões. v. 23, Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2007. FIGUEREDO, M. A. A evolução do Feminismo no Brasil. Salvador: NEIM/UFBA, 1998.

256

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Notas de fim FONTES, Simone Roberta. Lei n. 11.698/08: a guarda compartilhada. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em: 24 mar. 2015.

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

GAMA, NOME. TÍTULO. CIDADE: EDITORA. 2008. GREEN, James N. Frescos Trópicos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. GRISARD FILHO, Waldir. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www. ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 28 mar. 2015. LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias Monoparentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. LOBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil comentado – Direito de Família, relações de parentes, direito patrimonial. São Paulo: Atlas, 2003. LUFT, Lya. Perdas e ganhos. Rio de Janeiro: Record, 2003. MACCOBY, E. E.; MNOOKIN, R. H. Dividing the child. Cambridge: Harvard University Press,1993. MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri: Manole, 2003. MAGALHÃES, Maria Valéria de Oliveira. Alienação parental e sua síndrome: aspectos psicológicos e jurídicos no exercício da guarda após a separação judicial. Recife: Bagaço, 2010. MELLO, Cleyton Moraes. Temas polêmicos de Direito de Família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível 1.0024.09.7251250/014. Relator: Barros Levenhagen – 5ª Câmara Cível. Diário de Justiça do Estado, Belo Horizonte, 28 mar. 2014. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao. do?num eroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0024.09.7251250%2F014&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em: 28 mar. 2015. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível 1.0210.11.0071441/003. Relator: Dárcio Lopardi Mendes – 4ª Câmara Cível. Diário de Justiça do Estado, Belo Horizonte, 05 ago. 2015. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao. do?numeroRegistro=1&to talLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0210.11.0071441%2F003&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em: 28 mar. 2015. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os direitos da criança: adotada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 22 de novembro de 1989. Ratificada pelo Brasil em 24 nov. 1990. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm>. Acesso em: 28 mar. 2015. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e Responsabilidade – Teoria e prática do Direito de Família. Porto Alegre: Magister, 2010. PEREIRA, Sérgio Gischkow. A guarda conjunta dos menores no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Ajuris, 2010. V. 36. SILVA, Denise Maria Perissini. Guarda Compartilhada e Síndrome de Alienação Parental: o que é isso? Campinas: Armazém do Ipê, 2010. SPAGNOL, R. P. Filhos da mãe: uma reflexão da guarda compartilhada. Júris Síntese Millenium, Porto Alegre, n. 39, 2003. STRENGER, Guilherme Gonçalves. Guarda dos Filhos. São Paulo: DPJ, 1991. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

257

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A REINSERÇÃO DO EX-PRESIDIÁRIO NO MERCADO DE TRABALHO: um olhar sob a perspectiva da perda de identidade Rafaela Cristina Gomes de Paula1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 RESUMO: O presente trabalho pretende demonstrar por meio de pesquisas bibliográficas e leituras sobre o tema, o quão é prejudicial para as características pessoais de um detento o regime aplicado pela instituição de exclusão, desde o momento de sua instalação na mesma, até a reconquista de sua liberdade. Foram abordados, de forma genérica, possíveis hábitos praticados pela penitenciaria que, podem comprometer a identidade formada a partir dos relacionamentos vivenciados pelo individuo quando em convívio com a sociedade civil. Por fi m, será reportado o preconceito da sociedade perante um ex-detento no momento de sua reinserção no mercado de trabalho e as possíveis medidas que poderão ser tomadas, para reverter o estigma social sob tais indivíduos, com o propósito de evitar a reincidên cia na criminalidade e promover a interação dos presos e ex-presidiários em sociedade. Não se pretende neste trabalho abordar a criminalidade em si, ou relatar o que motivou o sujeito a praticar o ato ilícito e se a pena aplicada condiz ou não com a gravidade da conduta praticada, o que se pretende é apresentar uma realidade presente de interesse social, porém desconhecida para alguns. ABSTRACT: This paper aims to demonstrate through literature searches and lectures on the subject, how is detrimental to the personal characteristics of a detainee the arrangements applied by the exclusion of institution, from the moment of its installation in it, to win back their freedom . Were discussed, in general terms, possible habits practiced by the penitentiary that could compromise the identity formed from the relationships experienced by the individual when in contact with civil society. Finally, society’s prejudice against a former detainee at the time of their reintegration into the labor market will be reported and the possible measures that could be taken to reverse the social stigma in such individuals, in order to prevent a recurrence in crime and promote interaction of prisoners and ex-prisoners in society. It is not intended in this paper address the crime itself, or report what motivated the individual to practice the wrongful act and the sentence imposed is consistent or not with the seriousness of the conduct practiced, the aim is to present a present reality of social interest but for some unknown . PALAVRAS-CHAVE: Instituição de exclusão, perda de identidade, ex-presidiário, reinserção, medidas sócioeducativas, mercado de trabalho. KEYWORDS: Exclusion of institutions, loss of identity, ex-convict, rehabilitation, social and educational measures, labor market. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O desenvolvimento das características de personalidade; 3 Instituição de exclusão e o seu funcionamento; 4 Possíveis transtornos causados pelo encarceramento; 5 A receptividade de um ex-detento pela sociedade civil e sua reinserção no mercado de trabalho; 6 Trabalho, direito fundamental de todos; 7 Possíveis medidas a serem adotadas para promover a inclusão social dos ex-detentos; 8 Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar sociologicamente as possíveis alterações que o encarceramento em uma prisão qualquer pode ocasionar na estrutura do eu de um sujeito aprisionado dias, meses, ou anos, sob um regime que limita e seleciona sua relação com a sociedade civil, exposto a um ambiente hostil. Será abordado o quanto a estadia do sujeito em um ambiente prisional pode lesar a personalidade construída antes do encarceramento, bem como as dificuldades que tal perda pode acarretar no momento em que o ex-detento tiver sua liberdade decretada e precisar refazer sua vida por meio de um trabalho digno que lhe garanta o próprio sustento e o de sua família. Inicialmente serão abordados alguns aspectos que influenciam o desenvolvimento de personalidade do indivíduo, em convívio familiar e social, bem como o quanto o progresso é fundamental para a formação de valores. De um modo geral, será apresentado o dia a dia dos detentos em uma penitenciaria qualquer, as limitações e obrigações que lhes serão impostas e como o regime aplicado abala o psicológico de quem a ele é submetido, além dos possíveis transtornos que

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

podem acometer o eu. A acolhida do ex-detento pela sociedade civil será comentada em um dos capítulos, que demonstrará um pouco do preconceito vivenciado pelo sujeito ao sair da prisão, e o quanto o prejulgamento ainda está arraigado na cultura brasileira. As dificuldades que o exdetento, agora em liberdade, enfrentará para se reinserir na sociedade civil, no que tange a sua reocupação no mercado de trabalho, poderão ser ainda mais dolorosas que sua estadia no ambiente prisional. As principais diretrizes e fundamentos do Direito do Trabalho serão apresentados sob a perspectiva de direito fundamental que é, relevante para que o indivíduo exerça dignamente a função social no meio em que vive. E por fim, algumas críticas e sugestões serão apresentadas no intuito de readequar as regras e normas, a fim de facilitar a reinserção do apenado à sociedade e ao mercado de trabalho. 2 O DESENVOLVIMENTO DAS CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE O indivíduo inicia seu desenvolvimento logo na infância quando tem a oportunidade de conviver e se relacionar com seus pais,

258

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


familiares, amigos, conhecidos e até mesmo com desconhecidos. É neste momento que o desenvolvimento biopsicossocial é estimulado pela qualidade de experiências vivenciadas. Conforme reforça o psiquiatra alemão Erik H. Erikson (1902 – 1994), o desenvolvimento psicossocial físico e psicológico de um individua é influenciado pelo meio em que vive e se desenvolve. As crenças, costumes, hábitos e comportamentos são provenientes dos relacionamentos mantidos desde o nascimento até a morte (FIORELLI; MANGINI, 2015). É no aconchego do relacionamento familiar que o individuo terá suas primeiras experiências, sejam elas de dor, separação, mudanças, felicidades, adaptações, segundo Fiorelli e Mangini (2015, p. 238): “No lar instalam-se as fases de crenças, valores e fundamentos dos comportamentos de cada indivíduo, que se refletirão, mais tarde, em condicionamentos positivos ou negativos em seus relacionamentos interpessoais”. Como bem ressalta o neurologista Oliver Sacks: “O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através de experiências classificações, memória e reconhecimento incessantes” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 74). As cresças e valores construídos no intelecto, sofrem grandes influências do meio externo, propiciando aqueles pensamentos rígidos ou as mudanças provenientes de novas visões de mundo, dos traumas e transformações importantes do ciclo vital. O comportamento passa a ser conduzido por idéias tidas como particulares do eu, aceitas ou não pelo mundo social, mas por motivos emocionais justificáveis pelo consciente de quem as pratica (FIORELLI; MANGINI, 2015). Outras referências, além do lar familiar são extremamente importantes para a formação de um indivíduo saudável, sua socialização e aceitação depende disso, segundo estudos realizados por Albert Bandura (Canadá, 1925), o homem desenvolve suas ações a partir de modelos tidos como referenciais de pessoas consideradas relevantes. Esses modelos têm um papel muito importante na construção do eu, por despertar expectativas de êxito e influenciar sua personalidade. Nessa linha de raciocínio, logo na infância a criança tende a ter como modelo os pais, e na medida com que estabelece relações, serão os professores, amigos, artistas, esportistas, políticos, novos referenciais (FIORELLI; MANGINI, 2015). Traços emocionais que caracterizam a pessoa na vida cotidiana, sob condições normais, são reflexos de todo um contexto social, político, econômico e familiar. As pessoas atuam inspiradas em valores, necessidades e expectativas de satisfação do ego (FIORELLI; MANGINI, 2015). As características pessoais do individuo desencadeiam uma séria de traços que o individualiza, como a consciência social, praticidade, dependência ou independência, carisma, ousadia, otimismo, temperamento, manias, pessimismos, dentro outras. Kaplan e Sadock conceituam a personalidade como: “Totalidade relativamente estável e previsível dos traços emocionais e comportamentais que caracterizam a pessoa na vida cotidiana, sob condições normais” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 99). Contudo, as características de personalidade são multáveis de acordo com os acontecimentos e emoções (FIORELLI; MANGINI, 2015). Ante o exposto é mister salientar o quanto é importante para o desenvolvimento de um individuo que, ao longo de sua vida, estabeleça enlaces, seja, com os familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, no ambiente de trabalho ou na vida acadêmica, pois são estes os momentos propícios para formação de novas visões, opiniões, crenças, valores e gostos pessoais.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

3 INSTITUIÇÕES DE EXCLUSÃO E O SEU FUNCIONAMENTO A penitenciaria pode ser compreendida como uma instituição de exclusão, conceituada por Fiorelli e Mangini (2015, p. 211) como: “Aquelas criadas, mantidas e desenvolvidas para separar, da sociedade, grupos de indivíduos cujos comportamentos manifestos não condizem com as normas predominantes. Estes indivíduos são a elas incorporados e nelas mantidos em geral, de maneira compulsórias”. A prisão tem um caráter eminentemente repressivo e recebe indivíduos tidos como delinquentes que ameaçam a ordem socioeconômica de um determinado local. Abriga pessoas que, por algum motivo, praticaram ações capazes de causar danos ou de ameaçar a integridade de um bem juridicamente resguardado pela legislação vigente. Ao chegar à penitenciária, o preso passa pelo constrangimento de ser rigorosamente revistado, e em alguns locais, exames físicos são realizados a cada período de tempo. Ao se instalar, o território do eu passa a ser constantemente vistoriado. O sujeito é instruído pelos agentes sobre os procedimentos e regras aplicadas no recinto, e caso escolha o preso por ignorá- las, sofrerá sansões até que mude o seu comportamento. Todos os pertences pessoais dos detentos são recolhidos, e substituídos por vestimentas padronizadas de propriedade da instituição prisional. Os poucos objetos, muitos já gastos, que os presos podem utilizar (colchões, cobertores, travesseiros, lápis), são emprestados durante o período em que estiver detido no local, e recolhidos caso ocorra a substituições ou sua saída. A identidade do sujeito, esta agregada no modo com que ele se veste, sua higienização, sua vaidade ou não, porém no momento em que se instala em uma instituição prisional, o sujeito sofre uma transformação pessoal forçada. Não goza mais do direito a escolha pessoal, privacidade, a intimidade, ao sigilo de informações, etc. A perda dos objetos pessoais é uma forma encontrada pela instituição de ocultar o verdadeiro eu do sujeito perante os seus novos companheiros de cela, e reprimir a possível fama de grandes ações de delinquência que lhe granjearão a admiração e o respeito, por antecipação, dos que ali se encontram (FIORELLI; MANGINI, 2015). Ademais, como bem diz Goffman (1992, p. 105) a perda dos objetos do eu seria “(presumivelmente) para simbolizar uma ruptura com o passado e uma aceitação da vida do estabelecimento”. Os sujeitos ficam impossibilitados de sair e manter relações sociais com o mundo externo. As atividades impostas a um determinado grupo são realizadas de forma lógica e racional, preordenada, programada e supervisionada, com o objetivo de atender as ordens de um determinado grupo que pertence à instituição prisional (GOFFMAN, 1992). “Aaron Beck, apud Rangé (1995ª, p. 90), considera que um dos esquemas de pensamento mais fundamentais de um individuo é o domínio pessoal, em que o trabalho, constitui um dos seus componentes principais. É evidente que esse esquema sofrerá um dano profundo, porque o individuo se encontrará desprovido do acesso ao ambiente e às atividades em que costumeiramente demonstrava o domínio pessoal”. (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 223). Com o passar dos dias, a solidão, a censura e a culpa vão inibindo a identidade que existia antes do encarceramento. Sob um rigoroso regime os presos se sentem cada vez mais inferiores e in-

259

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


capazes, frente ao forte controle repressivo que lhes são submetidos. A comunicação nesse ambiente muitas vezes é a mais insana possível, a base de grosserias, berros, ordens e humilhações os detentos são obrigados a manter uma linha de raciocínio imposta pelos superiores. As comunicações são restritas entre os próprios detentos (vocabulário limitado através de gírias e códigos), e entre eles e os superiores da instituição. Os interesses dos presos são substituídos pelos interesses daqueles, que passam a ser considerados por toda a sociedade de um modo geral, como a alma da instituição (GOFFMAN,1992). Nos dizeres de Camila de Lima Vedovello (2008, p. 51): “[...] as sanções punitivas da modernidade cumprem o papel de manipular corpos para que esses se adaptem à ordem estabelecida [...]” Apesar da forte continência, existem ainda aqueles detentos que aparentemente, simulam está de acordo com as normas estabelecidas pela instituição prisional, porém na verdade estão unindo uns aos outros para mancomunar estratégias, seja de fuga, de sobrevivência, solidariedade, ou de lealdade. Tudo isso com o propósito de aliviar a tensão provocada pela forte pressão existente no local (GOFFMAN, 1992). Os trabalhos realizados pelos presos são empregados em sua grande maioria sob dois propósitos, sendo, o de conceder a eles um determinado prêmio, ou como ameaça a punições ou castigos pela prática de um ato ilícito ou moralmente inaceitável (GOFFMAN, 1992). Na sociedade civil, o trabalhador exerce suas atividades para em um determinado momento receber a devida remuneração e gastá-la como bem entender. Já os detentos exercem suas atividades, recebem uma determinada quantia, porém a sua liberdade de dispor do beneficio é limitada pelo regime a que está submetido dentro do encarceramento, que em muitos casos só recebem o que lhe é devido depois de um período de trabalho, ou após ter a sua liberdade decretada. Pode ainda, o preso trabalhador ter seus direitos de trabalho alienados em favor dos superiores das instituições, que decidem sobre o destino dos seus proventos. O que, de certa forma, desmoraliza o esforço empregado pelos presos trabalhadores (GOFFMAN, 1992). A partir do momento em que o preso é instalado na penitenciaria, o convívio e o relacionamento com os familiares são limitados pela instituição que, estabelecem dias e horários para as visitas. Em determinados casos, devido às dificuldades financeiras dos familiares, e a distância do cárcere, o abandono é inevitável, e somente o convívio em grupos para camuflar e amenizar a solidão que se instala no ser (GOFFMAN, 1992). Além dessas formas de macular a personalidade construída antes da prisão, os detentos correm o risco de sofrer perda da sua integridade física. Por meio de castigos (com pancadas, torturas, etc.), e podem ter parte dos seus membros mutilados, perder sentidos e até mesmo sofrer dados psicológicos. É indiscutível que uma prisão que mantêm estes hábitos e que tratam os sentenciados sob um rigoroso regime, não está condizente com os Direitos Fundamentais albergados na vigente Constituição Federal de 1988, quando no seu artigo 5º, inciso III estabelece que: “III- ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante.” O dispositivo busca evitar que seres humanos tenham violada sua dignidade, integridade e honra. Mesmo que um sujeito tenha em algum momento desviado sua conduta, mesmo assim deve ser tratado com respeito. As atividades desenvolvidas em uma penitenciaria têm que privar pela integridade física e psíquica do apenado, mesmo porque sua estadia neste estabelecimento não pode servir apenas como um meio de punição, é necessário a criação de medidas sócioedu-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

cativas desenvolvidas com a finalidade pedagógico-educativa para inclusão social, tendo em vista que a estadia do preso em uma penitenciaria é temporária, e é de suma importância, não só para o preso, mas como para toda a sociedade que, ao sair da prisão, ele esteja apto a se relacionar com a sociedade civil, que aplique e respeite as novas regras para que novos crimes não sejam praticados. Ademais a Lei de Execução Penal estabelece que o preso tenha o direito de exercer o direito social ao trabalho, mesmo quando estiver encarcerado. O que deve ser fiscalizado é se a pratica condiz com o estabelecido em lei, no que tange a segurança, higiene, destinação dos recursos, tempo de labor, descansos, etc. o trabalho é um grande auxilio para a ressocialização do preso para a vida em sociedade, e por isso deve cada dia mais ser incentivado pelas instituições prisionais, governantes e sociedade. 4 POSSÍVEIS TRANSTORNOS CAUSADOS PELO ENCARCERAMENTO Salienta Fiorelli e Mangini (2015, p. 222) que: “Pode-se argumentar que as transformações nas crenças do indivíduo não seriam substanciais porque, se ali se encontra, deve-se ao fato de que sua estrutura de crenças já o tornava, do ponto de vista psíquico, excluído de alguma forma.” Eles ainda acrescentam que: “O impacto da exclusão servirá, possivelmente para confirmar essa diferença e um novo alinhamento, uma ressignificação será mais devida ao medo do que à aceitação das crenças socialmente corretas.” Nesse sentido, e ao contrário do que muitos pensam, é possível constatar que em alguns casos o egresso a uma instituição de exclusão, submetido à aplicação de rigorosas regras, com relacionamentos limitados e seletivos, sem qualquer dinamismo da personalidade do eu, pode agravar ainda mais os traumas psíquicos de um indivíduo. Escreve Laurindo Dias Minhoto em sua obra O Paradoxo Penitenciário (2005, p. 229) que: “Do ponto de vista da retribuição, o mal da privação da liberdade parece discrepar significativamente do mal a que deveria contrapor-se, ou seja, aquele produzido pela pratica do ato criminoso”. A metamorfose ocasionada no comportamento de um detento é inegavelmente compreensiva. O indivíduo isolado do mundo externo por paredes de grade, sabem que estão sob constantes olhares, seja por parte da instituição prisional, ou pelos demais presos. Fiorelli e Mangini (2015, p. 98) consideram em sua obra que: “As pessoas modificam seus comportamentos, involuntariamente, ao se perceberem observados ou sabendo que isso ocorre ou possa acontecer: delinquentes, vítimas, testemunhas, profissionais do direito não fazem exceção”. A hostilidade do sistema prisional contribui para que transformações ocorram no comportamento do individuo, para que os desconfortos traumáticos e estressantes encontrados no ambiente prisional sejam amenizados. Conforme a intensidade, um sujeito pode sofrer grandes perturbações no seu psiquismo, ou até mesmo o “desculturamento”, que o tornara incapaz de lidar com algumas particularidades da vida fora do estabelecimento prisional. Tudo isso pode gerar prejuízos a saúde mental afetando o futuro relacionamento do ex-detento com a sociedade externa e seus familiares a partir de um possível transtorno de personalidade. Como bem salienta Foucault (2013, p. 20) “[...] castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos

260

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra.” No passado, a punição consistia no suplício do corpo, que com o decorrer dos séculos se transformou, hoje, no tormento da alma, do coração, do intelecto, da vontade, das disposições. O que antes era corpóreo, passa a ter como objeto o incorpóreo (FAUCAUT, 2013). A submissão retira do detento o controle sobre suas vontades pessoais, que aos poucos vão sendo sobrepostos pelas obrigações fixadas pela instituição de exclusão. Segundo análises feitas por E. Goffman (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 212) sobre as instituições totais: “A conquista da própria identidade é uma das mais importantes conquistas do ser humano. Consiste na descoberta de si mesmo. No fenômeno da prisionização, cria-se um estigma, o qual se desenvolve desde que o individuo ingressa na instituição; ali, gradualmente, ocorre a perda do eu, com profundas modificações na carreira moral e nas crenças relativas a si mesmo. Goffman elenca as seguintes características que contribuem para que isso aconteça: a) Realização de todas as atividades dos condenados segundo um esquema obrigatório, com um conjunto de regras impostas; b) Processo de admissão na instituição pautado por uma codificação própria do sistema (números, impressões digitais); c) Despojamento dos bens pessoais; d) Participação em atividades cujas consequências simbólicas são incompatíveis com sua concepção de “eu”; e) Arquitetura própria do lugar, com banheiros sem portas, celas abertas, sem direito a privacidade; f)

Exposição a companhia forçada;

g) Submissão a exames e vistorias em seus pertences e no próprio corpo.” Esses possíveis hábitos do sistema prisional que podem gerar transtornos de personalidade e ameaçar a integridade física e psíquica do individuo que, antes estava habituado à rotina conservadora da sociedade civil e bruscamente se vê inserido em uma instituição que, aos poucos compromete todo ideal outrora solidificado. A intercomunicação refreada dentro e fora da prisão impede a modernização cultural do detento, e por isso, se a permanência do prisioneiro é longa, pode ser que ao retornar para o mundo exterior, tenha que passar por uma reinserção social, ou a um novo processo de “civilização”, para que se adapte aos progressos da vida social, política, econômica e cultural de onde vive. Por isso as atividades recreativas e de ensino devem ser aplicadas neste ambiente, para que diminua a incidência desses transtornos e a “desculturação” do individuo. Mesmo porque os custos que o Governo empregaria para a reparação dos danos causados em um ex-detento poderá ser ainda maior do que os mecanismos necessário para a prevenção. 5 A RECEPTIVIDADE DE UM EX-DETENTO PELA SOCIEDADE CIVIL E SUA REINSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO O tempo que o detento permanecer privado do seu contato com o mundo externo, pode lhe causar danos irrecuperáveis, e a sua reinserção no mundo social pode ser ainda mais dolorosa. O transtorno do estresse pós-traumático vivenciado em uma pe-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

nitenciaria pode apresentar seus malefícios em eventos tardios. Como bem ressalta Fiorelli e Mangini (2015) ao dizer que as alterações comportamentais são uma das consequências percebidas posteriormente, quando o detento volta a ter o contato com a sociedade civil. O sujeito tende a se isolar, deixa de comparecer em festa, rejeita convites para sair e preferir ambientes com menos movimento. O individuo retoma sua “liberdade”, porém passa a conviver com o rótulo de “delinquente”, “infrator”, “criminoso”, vindo não só da sociedade, mas também dos seus familiares. A permanência de sinais físicos, deixados pelos maus tratos suportados dentro da penitenciaria, também podem ter grandes consequências na recuperação do ex-detento, em muitos casos esses sinais têm tamanha proporção que a reabilitação do indivíduo se torna árdua, e constantes recordações aumentam ainda mais o sofrimento (FIORELLI; MANGINI, 2015). Dependendo do grau traumático, ele necessitará de ajudas psiquiátricas para conseguir lidar com as dificuldades e preconceitos. Ademais, o ex-detento também vai encontrar transtornos para se inserir no mercado de trabalho, tendo em vista que a maioria deles ou já eram desempregados quando ingressaram na penitenciaria, ou se empregados, ao retornar a sociedade civil encontrará sua vaga ocupada. Isso porque ao deixar a penitenciaria, nenhuma perspectiva de emprego lhes é dado, muito pelo contrario, a discriminação e rejeição são quase que inevitável. Bleger (1989, p. 68) acentua que a sociedade “Coloca fora de si e trata [esses indivíduos] como se não lhes pertencessem” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 213). Os ex-sentenciados agora correspondem ao que vem a ser considerado o oposto do eu socialmente aceito pelas normas e costumes de uma nação. A visão lançada sobre eles são as mesmas registradas a um estranho, ideologicamente é um excêntrico que não pertence ao mesmo estado, cidade, raça, etnia, classe social ou grupo (VEDOVELLO, 2008). A reinserção, sem duvida, será um grande desafio para aquele que desconhece a nova realidade que lhe espera. Fiorelli e Mangini (2015, p. 221) alertam que: “O que se encontra externo pode idealizar o interno e viceversa; o ideal, um dia, sofrerá o impacto do real. O resultado é uma síndrome de readaptação, para quem fica e para quem volta. As pessoas precisarão se (re)conhecer e não necessariamente isso acontecerá de maneira simples e automática.” Tudo isso porque os familiares e a sociedade de um modo geral continuam o ciclo natura da vida, as mudanças veem de acordo com as readaptações necessárias, como desenvolvimentos psicológicos, culturais, econômicos e políticos. Já para o ex-detento, que antes estava aprisionado, esse desenvolvimento pode não ocorrer, ou se advir, não será com a mesma velocidade com que para a sociedade civil. As ciências sociais aplicadas em uma dada sociedade têm por natureza a subjetividade, e por isso é conduzida pela mentalidade dos sujeitos que a compõem. Não se pode estabelecer uma ciência solida nessa seara. O desenvolvimento cultural, filosófico, científico e econômico quem ditam a fugacidade com que as mudanças ocorrem. Para aqueles retirados do sistema social restam-se lesionados o psique (SANTOS, 2008). A chance de esse sujeito sair do mundo do crime ficará cada vez mais comprometida. O sentimento de fracasso toma conta. Sem recursos financeiros ele não vai conseguir arcar com sua sobrevivência e de seus familiares. Sua auto estima, em muitos casos, fica totalmente comprometida quando, em constato com o mundo externo,

261

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


é amedrontado com as indiferenças. A instituição prisional que fora criada para ressocializar e disciplinar o recluso, se transforma em uma máquina de degradação social, aumentando ainda mais a criminalidade (MINHOTO, 2005). A cada novo dia para o ex-detendo em liberdade é uma angustia, conviver e lidar com os desafios se torna uma tortura. Sem contar que com o passar dos dias, aflora em seu intimo, sentimentos como o da injustiça, amargura e alienação, pelas vivencias tidas na penitenciaria, é como se parte de sua vida tivesse sido roubada. Aos poucos o individuo vai tomando consciência de que muito dificilmente sua vida social será como antes. Como bem ressalta Goffman em uma de suas obras (1992, p. 69) “quando o indivíduo adquiriu um baixo status proativo ao tornar-se um internado, tem uma recepção fria no mundo mais amplo – e tende a sentir isso no momento, difícil até para aqueles que não têm um estigma, em que precisa candidatar-se a um emprego ou a um lugar para viver”. O reencontro de um sentenciado com a liberdade traz esperanças de um novo recomeço, uma nova oportunidade de mudar de vida. Para alguns o trabalho digno é tido como peça fundamental para o novo rumo idealizado. Porém a realidade é totalmente contraria as perspectivas. Na sociedade o ex- detento tenta a todo custo esconder seu passado, o seu atestado de “mau caráter”. O mundo de um preso não precisa ser distinto do mundo da sociedade civil, é necessário que ocorra uma interação entre aqueles até então “excluídos”, e a tão idealizada libertação. Cumpre aos administradores das instituições prisionais, juntamente com o governo, o encontro de um ponto de equilíbrio entre o regimento interno e o social. A consciência de que, aquele sujeito que ora cometeu um ilícito penal, e que agora em liberdade tem que ter a oportunidade de trilhar caminhos diferentes, tem que ser tomada por todos, mesmo porque a própria lei assegura tal direito, como bem ressalta Nelson Joaquim (Direito Net, 24/05/2006): “A Constituição Federal declara que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...] (art. 5º caput)”. Então, por quê falar em discriminação? - Infelizmente a discriminação é histórica e sempre existiu, sendo praticada pelos indivíduos, pelos governos e pela própria sociedade. Todavia, hoje, observamos que as nações, inclusive o Brasil, têm o deve de diminui as desigualdades e contribuir para a inclusão social.” Os obstáculos que impedem a reinserção do ex-detento no mercado de trabalho, provêm de um atraso social que, deve ser superado ou negligenciado pelos governantes, pela sociedade, pela família, e acima de tudo pelo próprio individuo, destinatário das heresias (SANTOS, 2008). 6 TRABALHO, DIREITO FUNDAMENTAL DE TODOS O ramo trabalhista segundo o autor Mauricio Godinho Delgado (2014, p.82): “Regula a principal modalidade de inserção dos indivíduos no sistema socioeconômico capitalista, cumprindo o papel de lhes assegurar um patamar civilizado de direitos e garantias jurídicas [...]”. É por meio do trabalho que um indivíduo se sente parte integrante de uma determinada sociedade, detentor de direitos e deveres, e sujeito aos ônus e bônus advindos da lei. O direito a um trabalho integro, vai muito mais além do que a sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, pois envolve também

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

as conquistas e afirmações do individuo no meio econômico e social (DELGADO, 2014). Como salienta Alexandre de Moraes (2007, p. 47) “É através do trabalho que o homem garante sua subsistência e o crescimento do pais, prevendo a Constituição, em diversas passagens, a liberdade, o respeito e a dignidade ao trabalhador”. Neste sentido, o valor social do direito ao trabalho encontra, logo no artigo 1º, inciso IV, da vigente Constituição Federal de 1988, um dos fundamentos basilares do Estado Democrático de Direito, senão vejamos: ”art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. ” É evidente que o prejulgamento existente na cultura brasileira, causa uma segregação dentro da sociedade civil que marginalizam os apenados e promovem o seu isolamento no mercado de trabalho. A Constituição Federal em seu artigo 3º, inciso III, determina que para erradicar a pobreza e a marginalização temos que superar qualquer tipo de desigualdade social ou regional. E para isso: “Se faz necessário tratar os desiguais de forma desigual, através de políticas e ações afirmativas” (Nelson Joaquim; DIREITO NET, 24/05/2006). A concepção de igualdade descrita apenas na lei só servirá para aumentar ainda mais a desigualdade em nosso país. Nesse sentido que, assim como o Governo cria incentivos a ações e políticas publicas de afirmações no que tange a reserva de vagas em concursos públicos para portadores de deficiência física; quando o ProUni destina bolsas de estudos para alguns cursos em instituições privadas; e ainda estipula cotas para negros e indígenas; os presos também têm que contar com o apoio efetivo das políticas de afirmações dos governantes para garantira sua inclusão no mercado de trabalho. Com isso, o número de reincidentes no sistema prisional decorrentes da falta de oportunidade e ocupação fixa reduzirá consideravelmente. Nelson Joaquim menciona em sua publicação, o conceito de ações afirmativas segundo Joaquim Barros Gomes (Ação afirmativa, 2001, p. 40) como: “Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vista ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego” (DIREITO NET, 24/05/2006). As ações publicas devem ser vistas como uma forma de integrar os segmentos sociais que estão sujeitos a atual discriminação e exclusão histórica, como a vivenciada pelos indivíduos sentenciados pela legislação brasileira (JOAQUIM, Nelson, 2006). Qualquer tipo de preconceito ou discriminação para com os presos ou ex- detentos devem ser reprimidos pelos governantes e também pela sociedade. No artigo, 3º, incisos IV, da CF/88, um dos objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil é: “IV- promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” É possível visualizar uma grande preocupação na elaboração de medidas que inibam as desigualdades ou qualquer tipo de discrimina-

262

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ção, que viole o direito subjetivo individual de exercer uma atividade profissional. Neste sentido, que qualquer particular que pratique condutas discriminatórias ou preconceitos sob um sentenciado, devem responder civil e penalmente nos termos da legislação em vigor (MORAES, 2007). 7 POSSÍVEIS MEDIDAS A SEREM ADOTADAS PARA PROMOVER A INCLUSÃO SOCIAL DOS EX-DETENTOS De acordo com a reportagem “Vagas para ex-detentos não são preenchidas no Brasil”, publicada pela Gazeta do Povo em 21/03/2011, a falta de qualificação técnica necessária para a realização de uma determinada atividade, é um dos principais empecilhos para a falta de contratação. O Conselho Nacional de Justiça teve a iniciativa de criar o programa Começar de Novo com a finalidade de intermediar a contratação de presos e ex-detentos pelos empregadores, deixando a cargo de tribunais e juízes o fechamento de parcerias e encaminhamento dos indivíduos ao mercado de trabalho, porém desde 2009, quando foi criado, apenas 15% das vagas foram preenchidas. Em alguns estados, vagas foram disponibilizadas, porém não foram ocupadas. Para a efetividade de projetos como o Começar de Novo, não basta apenas criá-los e contar com a participação dos empregadores, é necessário antes de tudo qualificar e capacitar tais indivíduos, para que exerçam de forma satisfatória as tarefas exigidas pela profissão. As instituições prisionais por meio de parcerias governamentais devem está preparadas para desenvolverem projetos que prepare o apenado para as atuais e futuras exigências do mercado, seja, por meio de cursos técnicos, ensino fundamental ou superior, oficinas, etc. Como bem diz Foucault (2013, p. 110): “[...] a ideia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores. Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o publico. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios. Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e se corre o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães. Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania.” A oportunidade de o detento redescobrir suas habilidades por meio de projetos pedagógico-educativos é sem duvida um ganho social enorme, pois evitaria com que este sujeito reincidisse na criminalidade, além é claro de que por meio dessas atividades o preso estaria se convertendo, desenvolvendo seu aprendizado, e reformando os seus imperativos morais. Outro ponto que está sendo alvo de constantes discussões pelos juristas nos últimos tempos, é a exigência do atestado de bons antecedentes pelo empregador na hora da contratação. A legislação prevê a necessidade do atestado especificamente para duas funções, a de vigilante (Lei Federal nº 7.102/82) e para o trabalhador doméstico (Lei Federal nº 5.859/72). Porém o entendimento jurisprudencial ampliou essa abrangência incluindo outras atividades, desde que exista justificável motivação. Nesse sentido que os tribunais estão negando provimento a ações ajuizadas por operadores de telemarketing que alegam discriminação do empregador quando exige o atestado de bons antecedentes para a contratação, sendo que os empregadores justificam a exigência alegando que, para o operador realizar suas atividades, é necessário o contato com dados pessoais do cliente, e por isso o documento faz- se necessário. Alguns tribunais já se pronunciaram favoravelmente a tal exigência, sob

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

avaliações de casos concretos, entendendo não existir qualquer cunho discriminatório por parte do empregador. Gabriel Gomes Batista de Oliveira e Lima em seu artigo publicado pelo Jus Navigandi em julho de 2014, enfatiza que: “[...] é pacífico o entendimento quanto a necessidade da motivação da exigência dos antecedentes criminais, não podendo o empregador se valer de tal casuisticamente, ou, ainda, utilizá-lo de maneira não- irrestrita, ou seja, de modo a abranger apenas algumas pessoas em detrimento de outras. Assim, os antecedentes criminais, quando autorizados pela devida motivação fática, devem ser exigidos de todos indistintamente, sem qualquer tipo de diferenciação pejorativa em função de sexo, raça, cor, origem, idade, classe social etc.” Contudo, a legislação não pontuou todas as hipóteses que cabe tal exigência, sendo assim, conforme regra geral prevista constitucionalmente, o trabalhador tem o direito de ter sua intimidade e privacidade resguardadas, bem como, que qualquer atitude discriminatória e abusiva seja reprimida. No tocante a diferença no custo benefício de um trabalhador preso, para um ex-detento, temos que considerar que, aqueles quando cumprindo pena podem trabalhar, contudo de acordo com a Lei de Execução Penal em seu art. 28, §2º, o trabalho realizado pelo preso não está sujeito a aplicação do regime da CLT, o que torna a mão de obra neste estágio bem mais atrativa para os empregadores, além é claro do salário que não pode ser inferior a ¾ do salário mínimo (art. 29, caput, da LEP). Ao ter a liberdade decretada, o ex-detento passa a ser um cidadão normal como outro qualquer, passado agora o seu trabalho a ser regido pela CLT com todos os custos e benefícios legais, e por isso, muitos empregadores acabam por demiti-lo em um dos momentos mais críticos, qual seja, em sua reinserção social. Tal distinção não deveria ser aceitável, vez que todos, sem distinções, têm os mesmos direitos, e por isso tanto os presos quanto os ex-detentos, que exercem suas atividades como qualquer outro trabalhador, deveriam ser submetidos ao regime previsto pela CLT. Por fim, merece apreço a exclusão advinda da sociedade, pois o berço de toda a falha do sistema prisional tem inicio na educação disseminada pela sociedade. Sobre isso Baratta (2002, p. 186): “[...] antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão”. Acrescenta dizendo ser: “[...] impossível enfrentar o problema da marginalização criminal sem incidir na estrutura da sociedade capitalista, que tem necessidade de desempregados, que tem necessidade, por motivos ideológicos e econômicos, de uma marginalização criminal” (BARATTA, 2002, p. 190). É preciso atacar o apreço social pela exclusão, bem como pela manutenção de políticas ao desvio por meio da “indústria” do crime, para que a economia capitalista se mantenha. É necessário que o governo, por meio do sistema de ensino publico e privado, incentive a integração social daqueles excluídos pelo encarceramento e reprima a exclusão legitimante do estado social. A assistência dada aos ex- detentos devem existir durante a sua estadia na penitenciaria, e principalmente ulteriormente, quando vier sua liberdade. Mesmo porque, como bem saliente Júnior (2008, p. 13) “Nos últimos anos, o Sistema Penitenciário brasileiro passa

263

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


por uma grave crise devido à falta de condições de encarceramento. A superlotação dos presídios brasileiros atinge níveis desumanos. Vários estabelecimentos prisionais mantêm até cinco vezes mais presos do que suas capacidades comportam. Enquanto isso, o número de presos não condenados, que ainda esperam julgamento, corresponde a cerca de um terço da população carcerária, o que aumenta consideravelmente o número de pessoas confinadas no país.” Dessa forma o sistema penitenciário atualmente falido reclama mudanças. 8 CONCLUSÃO O presente trabalho teve por propósito demonstrar de forma bem substancial: o processo de formação do eu, o comprometimento da personalidade de um sujeito que se submete ao regime aplicado em uma penitenciaria, até as possíveis consequências para o psicológico e as relações vivenciadas pelo individuo dentro e fora da instituição. Isso porque nem todos os casos se procedem da mesma forma com que aqui foi abordado, pois existem inúmeras variáveis que podem aumentar ou diminuir o grau de desculturamento de um prisioneiro (como o tempo, o regimento interno da instituição, etc.). A partir da análise do processo de desconstrução do eu empregado pelas instituições prisionais, bem como suas consequências futuras para a sociedade, é possível estruturar a forma com que elas deveriam agir, a fim de garantir com que os sujeitos encarcerados mantivessem resguardada sua identidade. Os atuais sistemas desenvolvidos dentro das penitenciarias não conseguem atingir o seu propósito maior que é a reeducação e a reinserção do condenado, fato este que merece ser revisto e delineado. A intercomunicação dentro e fora da prisão é imprescindível, na medida em que visa legitimar e garantir os direitos dos presos. O preconceito sobre um detento ou ex-detendo sempre existiu e é algo que tem que ser trabalhado pelos governantes para que mudanças sejam tomadas e que a inclusão social seja o foco neste diapasão. Diante da parcimônia vivenciada pelo individuo no ambiente prisional, totalmente distinto da realidade social, é de extrema urgência a tomada de medidas no sentido de evitar os transtornos ocasionados dentro e fora da instituição prisional. Nos dizeres de Fiorelli e Mangini (2015, p. 222): “Estas dificuldades não constituem um vaticínio, mas devem fazer parte das preocupações dos gestores das entidades de exclusão e da sociedade em geral para conseguir a reintegração social do indivíduo”.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. 312 p. JOAQUIM, Nelson. Igualdade e Discriminação. DireitoNet: 2006. Disponível em:< http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2652/Igualdade-e-discriminacao>Acesso em 12 nov. 2015 Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L7210.htm> Acesso em 12 nov. 2015. LIMA, Gabriel Gomes Batista de Oliveira e. O Estigma do Preconceito Carcerário na Fase Pré-contratual Trabalhista. Jus Navigandi: 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/30232/o-estigma-do-preconceito-carcerario-na-fase -pre-contratual-trabalhista> Acesso em 12 nov. 2015 MINHOTO, Laurindo Dias. O Paradoxo Penitenciário. p. 229- 234. Integração: Ensino, Pesquisa, Extensão. São Paulo: Centro de Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu, v. 11, n. 42. Disponível em:<ftp://ftp.usjt.br/pub/ revint/229_42.pdf> Acesso em 12 nov. 2015. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 8. Ed. São Paulo: Atlas S.A, 2007. 335 p. SANTOS, Boaventura de Sousa; Um Discurso Sobre as Ciências. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2008. 92 p. VEDOVELLO, Camila de Lima. Novas formas de encarceramento? Os jovens e o centro de ressocialização.236 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós – Graduação de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Campus de Marília, Universidade Estadual Paulista – UNESP, 2008.

notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 6. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013. 256 p. Constituição da República de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em 12 nov. 2015. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 13. Ed. São Paulo: LTr, 2014. 1536 p. FIORELLI, José Osmar; MANGINI, Rosana CathyaRagazzoni. Psicologia Jurídica. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2015. 446 p. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 41. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. 291p. FREITAS, Ismael de. Vagas para Ex- detentos não são Preenchidas no Brasil. Gazete do Povo: 2011. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com. br/vida-e-cidadania/vagas-para-ex-detentos- nao-sao-preenchidas-no-brasil-epolcivvmnw70t6iiwq6buafi> Acesso em 12 nov. 2015.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

264

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ABORTO SENTIMENTAL: ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS Renata Veloso Tobias1 Cristian Kiefer da Silva2 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar, sob o ponto de vista jurídico, os aspectos inconstitucionais no que tange ao aborto sentimental, perante o direito à vida e ao princípio da intranscedência da pena. Tende, além disso, oferecer uma visão geral do crime de aborto, apresentando, inicialmente, um breve relato histórico, bem como a evolução do tema na legislação brasileira. Além de definir o aborto e sua classificação, o referido artigo, apresenta, também, as características do crime de estupro e suas respectivas alterações, colocando em discussão a possibilidade do pedido de aborto quando a vítima é o homem, e os efeitos civis decorrentes desse fato. Considerando a complexidade do tema, o crime de aborto sempre será objeto de constantes discussões acerca de sua criminalização ou descriminalização, fato em que é necessário um estudo aprofundado, por se tratar de um dos maiores bens jurídico, a vida. ABSTRACT: This article aims to analyze, from a legal point of view, the unconstitutional aspects regarding the sentimental abortion, to the right to life and the principle of intranscedencia penalty. Tends, in addition, provide an overview of the crime of abortion, with, initially, a brief historical account, as well as the evolution of the theme in the Brazilian legislation. In addition to defining abortion and their classification, the article presents also the crime of rape characteristics and their respective changes, discussing the possibility of abortion application when the victim is a man, and the civil effects of this fact. Considering the complexity of the issue, the crime of abortion will always be the subject of ongoing discussions about its criminalization or decriminalization, the fact that an in-depth study is needed, because it is one of the largest legal goods, life. PALAVRAS-CHAVE: aborto, aborto sentimental, estupro, violência sexual, inconstitucionalidade. KEYWORDS: abortion, sentimental abortion, rape, sexual violence, unconstitutional. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Breve relato histórico; 3 O aborto e a legislação penal brasileira; 4 Classificação dos tipos de aborto; 4.1 Aborto provocado pela gestante; 4.2 Aborto provocado por terceiro; 4.3 Aborto provocado com o consentimento da gestante; 4.4 Aborto necessário; 4.5 Aborto Eugênico; 4.6 Aborto por motivo de anencefalia; 4.7 Aborto social; 4.8 Aborto por motivo de honra; 4.9 Aborto sentimental; 5 Aborto sentimental em casos de violência sexual: propostas de novas regras; 6 Aspectos gerais do crime de estupro; 6.1 Aborto sentimental por gravidez da autora do estupro; 7 Aspectos inconstitucionais relativos ao aborto: direito à vida; 7.1 Princípio da intranscedência da pena; 7.2 Aspectos morais do aborto sentimental; 8 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO A palavra aborto tem origem do latim e decorre da junção do prefixo ab, que significa separar, afastar e com o radical ortus, que quer dizer nascimento. Portanto, é entendida como a privação do nascimento, em outras palavras, a interrupção da gestação, com a consequente morte do feto. Conforme o Código Civil de 2002, a lei resguarda os direitos do nascituro. Neste sentido, Silvio Rodrigues ensina que nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno, não lhe sendo concedida pela lei, a personalidade, o que só ocorre com o nascimento com vida. Porém, como provavelmente nascerá com vida, o ordenamento jurídico desde logo, põe a salvo seus interesses futuros, adotando medidas para tanto. Ademais, entende-se que o nascituro deve ter assegurado o direito à vida, uma vez que sem esse, nenhum outro lhe será possível. Os questionamentos entre a vida e a morte são polêmicos e controvertidos, uma vez que dois direitos fundamentais se confrontam: de um lado, o direito à vida do nascituro; do outro, o direito à autodeterminação da mulher. Na realidade, por não haver direitos e garantias fundamentais absolutos, um deles deverá ser relativizado em favor do outro quando estiverem em confronto, conforme cada caso concreto, sobrepondo aquele que, não contrariar a norma constitucional. O aborto teve origem na legislação penal brasileira pela primeira vez em 1830, com o Código Criminal do Império. Tratava-se dos “crimes contra a segurança da pessoa e da vida”, previstos nos artigos 199 e 200. Logo após, com o advento do Código Penal da República,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Decreto 874, de 1980, passou a ser permitido o aborto necessário. Atualmente, no Código Penal de 1940, o aborto está tipificado entre os artigos 124 a 128, no capítulo dos “crimes contra a vida” prevendo duas situações excepcionais, em que a prática do mesmo, será permitida. Percebe-se, que a intenção do legislador, desde os primórdios, é tutelar o bem jurídico mais importante, a vida. Dos tipos de aborto mais conhecidos, destacam-se aqueles previstos no Código Penal, quais sejam: aborto provocado pela gestante, aborto provocado por terceiro, aborto provocado com o consentimento da gestante, aborto necessário e aborto sentimental. Sabe-se que, este citado por último, é advindo do estupro, causando graves transtornos à vítima, que hoje, pode ser tanto a mulher, quanto o homem. Supondo que seja ele, o ofendido, e se da violência sexual resultar gravidez, terá, neste caso, o direito de pleitear o aborto? Este, por sua vez, será considerado ilícito? Quais serão as consequências da paternidade indesejada? O presente trabalho irá analisar cada questão sob a ótica do direito penal e do direito civil. Em prol do direito à vida, vale mencionar que o aborto sentimental, encontra alguns elementos a serem discutidos acerca da sua inconstitucionalidade, uma vez que a vida é o maior bem jurídico e ninguém poderá perdê-la, como forma de punição, já que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê essa modalidade. 2 BREVE RELATO HISTÓRICO Desde os primórdios, o aborto é uma prática comum e

265

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


vem sendo discutida de forma complexa e polêmica, visto que, envolve diversas áreas, tais como: direito, medicina, religião, filosofia, ética, moral, costumes, dentre outras. Havia diversos pensamentos acerca do assunto. O direito, não considerava o aborto uma prática ilícita, uma vez que a mulher tinha o domínio sobre o seu corpo, bem como o direito de decidir se prosseguia ou não com a gravidez. A partir do século XVIII, devido aos conhecimentos médicos e descobertas científicas, a mulher perdeu o entendimento sobre os acontecimentos do seu corpo, consequentemente, da sua reprodução. Logo, suas afirmações em relação à gravidez e ao aborto não eram mais as mesmas. Antigamente, o aborto era realizado pelas próprias gestantes ou por parteiras, utilizando-se métodos como exercícios físicos violentos e até mesmo cantigas mágicas e envenenamentos, resultando na maioria das vezes, a morte da mulher. Diante dessa situação, tais consequências trouxeram algumas reflexões para a igreja e o Estado, fazendo com que os direitos do nascituro fossem tutelados, reprimindo o aborto. Portanto, surgiram nesse período, pessoas capacitadas pra realizar esse procedimento, de forma segura do ponto de vista da saúde, mas que em contrapartida, continuava sendo ilegal. Quanto à religião, desde muito tempo, o catolicismo condena o aborto independente das circunstâncias, sob o fundamento de que a alma é infundida no novo ser na fase da fecundação. Assim, a punição para a mulher bem como para os que participavam com ela do ato, era a excomunhão, ou seja, todos os sacramentos e comunicação com a igreja eram recusados, sendo essa até hoje a posição da igreja. Nesta linha, as igrejas protestantes, enfrentavam a questão apresentando aspectos mais brandos em relação à igreja católica. A diferença consistia no direito à vida da gestante. Ainda que, desde a concepção até o nascimento, a mãe tinha o dever de cuidar e zelar pela vida do filho, ao mesmo tempo, esta tinha direito sobre sua vida. Sendo assim, entre manter sua vida ou a do feto, prevaleceria, a primeira. Em concordância com as demais religiões, a religião islâmica também sempre se mostrou desfavorável ao aborto, porém, de maneira menos conservadora, uma vez que aceitava as pílulas abortivas durante a fase da gravidez, no período de aproximadamente 120 dias. Já para a religião espírita, apesar de considerar criminosa a prática de aborto, não havia, no caso, a “morte” de um ser. O que ocorria era a frustação de um espírito, que tinha por objetivo reencarnar em outro corpo e este, era abortado. A punição, neste caso, dependia de cada caso concreto. Percebe-se, que as religiões supracitadas, representando as principais, consideram crime a prática do aborto. Entretanto, o que as diferenciam, é a forma de punição. Sob a perspectiva da filosofia, existem duas posições contrárias: a primeira, conservadora, em prol de garantir o direito à vida do feto. E a segunda, liberal, onde a mulher tem o direito de deliberar sobre o seu corpo, sendo permitido fazer o aborto. Para os filósofos Aristóteles e Platão, o aborto era justificado, o último, por sua vez, acreditava que deveria ser permitido em casos de mulheres acima de quarenta anos, a fim de evitar perigo para a vida da gestante. Atualmente, as legislações da maioria dos países, têm sido menos rigorosas em relação ao aborto. Contudo, seja ele permitido ou não, sempre será objeto de discussão em todas as civilizações, em razão da sua importância. 3 O ABORTO E A LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA Em face à complexidade do tema, o Código Penal Brasileiro não define, de forma clara, o conceito de aborto. Sendo assim, deixa livre

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

as interpretações por diversos doutrinadores. Capez, em sua obra, conceitua: Considera-se aborto a interrupção da gravidez com a consequente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina. Não faz parte do conceito de aborto, a posterior expulsão do feto, pois pode ocorrer que o embrião seja dissolvido e depois reabsorvido pelo organismo materno, em virtude de um processo de autólise; ou então pode suceder que ele sofra processo de mumificação ou maceração, de modo que continue no útero materno. A lei não faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses), ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer desde o inicio da concepção ate o inicio do parto. (2004, p.108) Mirabette, por sua vez, enfatiza: Aborto é a interrupção da gravidez, com a interrupção do produto da concepção, é a morte do ovo (ate 3 semanas de gestação), embrião (de 3 semanas a 3 meses) o feto (após 3 meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido, pelo organismo da mulher, ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão, o que não deixará de haver, no caso, o aborto. (2011, p. 57) Os ensinamentos ora mencionados, assim como de outros doutrinadores, são elaborados para definir os conceitos jurídico e médico -legal do referido tema. No âmbito jurídico, a interrupção da gravidez, a qualquer tempo, com consequente morte do feto, já abarca os elementos necessários para configurar o crime de aborto, não sendo necessário considerar o tempo de gestação. Já para a concepção médico-legal, o aborto é definido como a interrupção da gestação ocorrida dentro de um lapso temporal. Tal elemento se dá quando a interrupção é feita até a 20ª semana, com expulsão completa ou parcial do feto. Levando em consideração os diplomas jurídicos que tratam o tema, vale mencionar o Código de Hamurabi, um dos mais antigos, que previa punição apenas para o aborto provocado por terceiros; no entanto, o autoaborto não configurava crime. Permaneceu assim até o Código Criminal do Império de 1830; o que diferenciava, é que neste, o aborto consentido e o aborto sofrido, eram passíveis de punição, mas somente aos envolvidos, nunca à gestante. O Código Penal de 1890, por sua vez, passou a criminalizar o aborto praticado pela própria gestante. Entretanto, autorizava a prática para salvar a vida da mãe. Destarte, o Código Penal vigente, Decreto-Lei n. 2848 de 07 de dezembro de 1940, passou a tipificar a prática do aborto entre os artigos 124 a 128, na Parte Especial, no Capítulo de Crimes Contra a Vida. Segundo fundamentos constitucionais e civilistas, o referido capítulo aduz que a vida humana, ainda em desenvolvimento, possui direitos, próprios à sua condição de nascituro. O aludido código prevê os tipos de aborto e suas consequências, sendo punido nos casos em que o mesmo é praticado pela própria gestante ou por terceiros; com ou sem o consentimento desta; e sendo legalmente permitido quando se trata de necessidade, fato em que a prioridade é salvar a vida da gestante, ou quando a gravidez é resultante de violência sexual.

266

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


4 CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE ABORTO PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO A classificação jurídica dos tipos de aborto tem fundamento na legislação penal, porém, outras modalidades não estão tipificadas no Código, sendo encontradas em diversas doutrinas que abordam os crimes contra a vida. Inicialmente, existem dois tipos de aborto: o espontâneo e o induzido. O primeiro ocorre quando a morte do feto se dá por fatores naturais, tais como, a saúde ou a idade da mãe, por exemplo. O segundo, por sua vez, tem a finalidade de interromper voluntariamente a gravidez, através de cirurgia ou medicamentos, impedindo o desenvolvimento do feto com a sua consequente eliminação. O Código Penal bem como a doutrina, traz alguns conceitos acerca das modalidades do aborto, dentre as principais: aborto provocado pela gestante; aborto provocado por terceiro; aborto provocado com o consentimento da gestante; aborto necessário; aborto eugênico; aborto por motivo de anencefalia; aborto social; aborto por motivo de honra; e por fim, aborto sentimental, que será o principal objeto de estudo do aludido trabalho. 4.1 Aborto provocado pela gestante Conhecido como autoaborto, este tipo está previsto no artigo 124 do código penal, ato em que a gestante, provoca em si mesma a interrupção da gravidez ou consente, para que outro lho provoque. Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Pode ser praticado por qualquer pessoa por se tratar de crime comum. Os sujeitos passivos são o feto e o Estado. A consumação ocorre com a morte do nascituro e admite-se a tentativa. Importante destacar que, no parágrafo único desse tipo penal, o legislador aduz que menores de 14 anos não tem capacidade de consentir o aborto, assim como a gestante alienada ou débil mental, ou forçada a consentir. Sendo assim, aplica-se a pena prevista no artigo 125 caso ocorra tal hipótese. Nos casos em que a gestante consentiu e morreu, aplicam-se ao terceiro as penas cominadas no artigo 126, duplicada, conforme redação do artigo 127, do mesmo código. Forma qualificada Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. 4.4 Aborto Necessário O artigo 128 do Código Penal determina as hipóteses em que o aborto é permitido, ou seja, são consideradas excludentes de ilicitude. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Por se tratar de crime próprio, o sujeito ativo neste caso, é a gestante. Entretanto, admite-se a coautoria e participação ao que lhe presta auxílio. Considera-se como sujeito passivo, o feto e o Estado, tendo em vista que cabe a ele, a proteção do nascituro. Esse tipo penal não permite a forma culposa, uma vez que há dolo ao provocar ou consentir a prática do mesmo. Finalmente, a consumação acontece com a morte do nascituro, admitindo-se a tentativa, caso não ocorra o resultado.

É a interrupção proposital feita por um médico, quando a gestante corre risco de morte atual, não havendo outro meio de salvar sua vida. Não é imprescindível que o perigo de vida seja atual ou iminente, desde que haja certeza que o desenvolvimento da gravidez causará a morte da gestante. A excludente de ilicitude aplicável ao médico estende-se a toda equipe que auxiliar o procedimento. Nesse caso, o legislador deixou a cargo do médico a decisão do aborto, não sendo necessário o consentimento prévio da gestante ou de seu representante.

4.2 Aborto provocado por terceiro O artigo 125 do Código Penal tipifica o crime de aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, caso em que, tutela-se o direito ao nascimento com vida. Aborto provocado por terceiro Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

4.5 Aborto eugênico Conforme entendimento doutrinário, o aborto eugênico é aquele praticado em razão de suspeita de anomalias graves advindas do feto. Atualmente, a Medicina em face de sua evolução, permite diagnosticar, de maneira precisa, as anomalias das quais o feto é portador. Embora em alguns casos tenha sido aceita essa modalidade abortiva, mediante ações pleiteadas em juízo, esta não se encaixa nos tipos permissivos do artigo 128 do Código Penal.

Por se tratar de crime comum, qualquer pessoa pode praticar o delito. Os sujeitos passivos são o feto e o Estado. A consumação também se dá com a morte do nascituro e é admitida a tentativa. Vale ressaltar, que deve ser provado o estado fisiológico da gravidez, para demonstrar que houve o aborto. 4.3 Aborto provocado com o consentimento da gestante O artigo 126 do Código Penal tipifica o crime de aborto provocado por terceiros que agem diretamente ou auxiliam o aborto com o consentimento da gestante. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

4.6 Aborto por motivo de anencefalia O aborto por motivo de anencefalia pode ser considerado como uma espécie de aborto eugênico, entretanto, possui suas peculiaridades. A referida doença é caracterizada por uma má formação do cérebro, tornando a permanência da vida intrauterina inútil, visto que a criança morrerá de qualquer maneira. Diante disso, ao tomar conhecimento da doença, muitas mães ingressam em juízo requerendo o aborto, devido à possibilidade de complicações para a saúde da mesma. O caso foi objeto de discussão do Supremo Tribunal Federal, através da ADPF 54, e trouxe uma faculdade quanto à realização do aborto nesses casos. Inclusive, o procedimento pode ser feito em clínicas

267

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


especializadas, bem como no Sistema Único de Saúde, solucionando a problemática ora pleiteada. 4.7 Aborto Social O aborto social, nada mais é que aquele realizado por ausência de recursos financeiros, ou seja, a incapacidade econômica da gestante em sustentar o filho. Este, portanto, não é amparado pelas causas de excludentes de ilicitude previstas no artigo 128 do Código Penal. 4.8 Aborto por motivo de honra O ordenamento jurídico penal brasileiro desconhece o aborto por motivo de honra, que consiste em ocultar os motivos que infamem a imagem da mulher perante a sociedade, ou demonstram sua desonra. 4.9 Aborto sentimental Feita a classificação dos diversos tipos de aborto, adentra-se ao conceito do aborto sentimental, principal objeto de estudo desse trabalho. O aborto sentimental é a segunda modalidade permitida pela lei, previsto no inciso II do artigo 128 do Código Penal. Ocorre quando a gravidez for decorrente da violação da dignidade sexual, ou seja, do estupro. Ou até mesmo, do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida. Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – [...] Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Essa espécie abortiva surgiu na Primeira Guerra Mundial, quando alguns países da Europa tiveram suas mulheres violentadas por invasores e em decorrência da repulsa patriota, criou-se tal figura a fim de evitar que essas mulheres não fossem obrigadas a carregar em seu ventre o fruto da concepção indesejada. Quanto ao amparo legal, o médico que realiza o aborto estará acobertado pela excludente da ilicitude do estado de necessidade, assim como no aborto necessário. Para finalizar as considerações acerca da classificação dos tipos de estupro, cumpre salientar que, por se tratar de crimes contra a vida, a competência para julgar o crime de aborto, é do Tribunal do Júri. 5 O ABORTO SENTIMENTAL EM CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL: PROPOSTAS DE NOVAS REGRAS A Lei n° 12.845/13 dispõe sobre o atendimento emergencial a ser oferecido, obrigatoriamente, por todos os hospitais integrantes a rede do Sistema Único de Saúde, à mulher vítima de violência sexual. Destarte, a referida lei, ainda que com pouco tempo de vigência, poderá sofrer alterações nos artigos 1°, 2° e 3°, pelo Projeto de Lei n° 5069/13 elaborado pelo deputado federal Eduardo Cunha e outros, que visa introduzir o procedimento abortivo pelo Poder Público. É sabido que o Código Penal ao permitir o aborto em caso de violência sexual, não estabelece nenhuma exigência em relação ao procedimento. Entretanto, o aludido projeto obriga a mulher a comunicar formalmente a ocorrência do fato e de se submeter a exame de corpo de delito para comprovar a violência. Assim, as devidas exigências irão criar um desestímulo para a vítima, haja vista a obrigação de submeter-se ao constrangimento. Embora a legislação penal permita a prática do aborto no caso em análise, esta, é manifestamente contrária à maioria da sociedade brasileira, conforme pesquisas. Desta forma, pela regulamentação da

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Lei n° 12.845/13, a própria gestante poderá se posicionar em relação ao aborto quando for recebida pela comissão multidisciplinar, e, por consequência, estará desmotivada a prosseguir com o ato abortivo, atingindo o objetivo do projeto, ora mencionado. 6 ASPECTOS GERAIS DO CRIME DE ESTUPRO O crime de estupro sofreu algumas alterações pela Lei n°12.015 de 2009 em sua redação, veja-se, pois: Estupro Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de três a oito anos. Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos: Pena - reclusão, de seis a dez anos. Atentado violento ao pudor Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos: Pena - reclusão de dois a sete anos. Conforme a antiga redação do Código Penal, somente a mulher poderia ser vítima do estupro, em razão da disposição “constranger mulher”. Observa-se também, que o delito era caracterizado pela conjunção carnal forçada e que, se a vítima fosse obrigada a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal, o crime seria o de atentado violento ao pudor. Sendo assim, se a vítima, em um único ato fosse obrigada a praticar conjunção carnal e ato libidinoso, o agressor, responderia pelos dois crimes autônomos. Por outro lado, a nova redação do artigo supracitado, possui as seguintes alterações: Estupro Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. Como visto, com o advento da nova Lei, o crime de atentado violento ao pudor foi absorvido pelo crime de estupro, criando uma espécie de tipo misto alternativo. Dessa forma, se, em um único ato a vítima se submeter aos dois delitos, o agressor responderá somente pelo crime de estupro, não havendo concurso de crimes. Percebe-se ainda, uma alteração de fundamental importância, que diz respeito ao sujeito passivo do crime. Anteriormente, mencionava somente a mulher como vítima. Com a nova redação “constranger alguém”, o homem também passa a ser sujeito passivo do referido crime. Ante o exposto, o novo texto trazido pela Lei n°12.015 de 2009, buscou não somente reduzir os tipos penais a um único crime, como também, trazer igualdade entre o homem e a mulher que se encontre nesta situação.

268

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


6.1 Aborto sentimental por gravidez da autora do estupro Embora a vida seja protegida desde o momento da concepção, a violência sexual é uma exceção à proibição do aborto, em razão do transtorno psicológico causado à vítima. Partindo desse pressuposto, quando a vítima é o homem, e desta violência resulta a gravidez, pode ser que o mesmo não queira ter um filho com sua eventual agressora. Ainda que as consequências físicas recaiam sobre a mulher, a paternidade implica em diversas obrigações, razão pela qual, muitas mulheres com intenção de engravidar ou até mesmo manter vínculo financeiro com o homem, agem de tal maneira. Portanto, se a mulher pode optar pelo aborto, justificado pelo trauma da violência que sofreu, ou pode prosseguir com a gestação, por que o homem não estaria sujeito à mesma regra, uma vez que a Constituição da República, em seu artigo 5°, prevê que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, completando ainda, no inciso l, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações? A resposta a esse questionamento é baseado no princípio da legalidade, tendo em vista que a intervenção na decisão abortiva, neste caso, contrariando a autora do estupro, consistiria sanção penal contra esta, não prevista em lei. Sendo assim, ainda que o homem compare sua condição de vítima à da mulher, querendo pleitear o aborto sentimental, este, não terá êxito, visto que a situação não tem amparo legal. Em contrapartida, os efeitos civis decorrentes dessa situação, poderão ser minimizados, sendo certo que, no presente caso, a paternidade é indesejada. Ao mesmo tempo em que o bem jurídico tutelado é a proteção à vida e aos direitos inerentes ao nascituro, busca-se proteger também, o homem vítima de estupro, deixando de responsabilizá-lo civilmente perante o filho, salvo, se, por sua vontade, queira reconhecê-lo. 7 ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS RELATIVOS AO ABORTO: DIREITO À VIDA O assunto em discussão é analisado sob alguns aspectos: religioso, moral e principalmente, jurídico. Entretanto, o enfoque aqui, são as questões no tocante ao direito à vida. Inicialmente, segundo a concepção religiosa, em 1976, o Papa Paulo Vl tratou da questão, alegando que o feto tem “pleno direito à vida”, a partir do momento da concepção e em hipótese alguma, teria a mulher o direito de abortar. Tal premissa baseava-se em quatro princípios, quais sejam: Deus é o autor da vida; a vida tem início no momento da concepção; ninguém tem o direito de tirar a vida de um inocente; e por fim, o aborto, em qualquer estágio de desenvolvimento, configura uma injustiça. Sabe-se, que a religião abomina a prática do aborto em qualquer circunstância. Entretanto, os argumentos utilizados para evitar a prática, são inconsistentes. É necessário, conciliar os pensamentos religiosos, éticos e morais aos preceitos jurídicos. Sendo assim, a Constituição da República, em seu art. 5°, dispõe que: Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. A vida é a base de todos os direitos, assim, nenhum princípio diver-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

gente, pode se sobrepor à esse direito amparado constitucionalmente. Não somente a Constituição defende a inviolabilidade do direito à vida, mas também, os acordos internacionais assinados pelo Brasil, dentre eles, o Pacto de São José da Costa Rica, Decreto 678/1992, que afirma: Art. 4° Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Nessa perspectiva, em consonância com a Constituição da República, bem como o Pacto de São José da Costa Rica, o Código Civil Brasileiro de 2002, determina quando se dá o início da personalidade civil e os direitos inerentes ao nascituro: Art. 2° A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Nota-se, que todo ataque à vida intrauterina constitui uma violação ao direito à vida. É nesse sentido que o Código Penal prevê punição para aqueles que atentam contra esse direito. Todavia, sabese que há duas exceções previstas no texto penal, que se referem ao aborto necessário e ao aborto sentimental, já definidos. Este último, por sua vez, traz uma relevância maior em razão dos aspectos inconstitucionais que o envolvem. O inciso I, do artigo 128 que trata da primeira hipótese excepcional, se encontra amparado pelo estado de necessidade, uma vez que não há como exigir da gestante que disponha da sua vida, em favor do nascimento de seu filho, já que a vida da mãe é igualmente protegida pelo ordenamento jurídico. Quanto ao inciso ll, o legislador atentou para uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, eximindo a gestante de prosseguir com a gravidez, devido à violência sexual sofrida. Contudo, o fato será típico e ilícito, porém, não será culpável. 7.1 Princípio da intranscedência da pena Por este princípio, entende-se que a pena do condenado, seja intransferível. Ou seja, ninguém poderá ser punido por um crime que não cometeu. A Constituição da República, portanto, consagra esse princípio, nos seguintes termos: Art. 5° [...] XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...] Contudo, ao permitir o aborto em caso de gravidez resultante de violência sexual, estende-se a pena do agressor ao nascituro, que nesse caso, seria condenado à morte, ao passo que o agressor receberia condenação de, no máximo 20 anos de reclusão, conforme dispõe o art. 217-A §3°. Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. [...] § 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. O repúdio pelo agressor, bem como a pena imposta a ele, não podem se estender a um ser inocente, submetendo-o à morte. 7.2 Aspectos morais do aborto sentimental Não há de se negar, que a gravidez resultante de violência sexual, ocasiona uma série de transtornos psicológicos para a mulher,

269

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


mas, por outro lado, por mais indesejável que seja o prosseguimento da gestação, a importância da maternidade na vida da mulher, pode, talvez, superar o trauma da violência. Pensando assim, o aborto junto ao delito de estupro, poderá aumentar ainda mais os efeitos e frustações psicológicas sobre a mulher, causando-lhe arrependimento e angústia. Não se pode apagar a violência da memória da vítima utilizando-se outra, que é a destruição da vida de um ser inocente. Em que pese os aspectos envolvidos, religiosos, jurídicos, ou morais, o desígnio maior é proteger o feto, até o seu nascimento. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como visto, o aborto é um dos crimes mais polêmicos, sendo discutido por diversos tribunais, ao passo que, enquanto alguns lutam pela sua permissão, outros, afirmam sua inconstitucionalidade. Este assunto, portanto, não é somente objeto de discussão jurídica, mas também religiosa, social, moral por se tratar de direito à vida, interesse de todos. Pode-se afirmar que não há bem maior que este, devendo, portanto, desde a concepção, ser protegido acima de qualquer outro princípio, conforme orientação constitucional e civil. A problemática até aqui discutida, trata dos aspectos inconstitucionais do aborto sentimental no que tange o direito à vida. Ainda que a gestante sinta-se impossibilitada de gerar um filho pelo qual foi fruto de uma violência sexual, esta, por sua vez, não pode sobrepor sua liberdade de autodeterminação em detrimento de uma vida. Destarte, é como punir alguém por um ato que não cometeu. Ora, seria justo, suportar as consequências de um crime em que não deu causa? Certamente que não, nos termos do artigo 5° da Constituição da República que prevê o princípio da intranscedência da pena, proibindo, que esta, seja transferida a outrem que não para o condenado. Enfim, a permissão legal do aborto sentimental inverte os valores frente ao texto constitucional, ao isentar de punição a prática de um crime contra a vida, sob a justificativa de reparar as consequências advindas de um crime contra a liberdade sexual. É sob a égide de todo o exposto que o aludido inciso ll, do artigo 128 do Código Penal, traz consigo, elementos inconstitucionais.

GALEOTTI, Giulia - História do Aborto. Edições 70, 2007 GREGO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra as pessoas. Niterói: Impetus, 2005. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17º ed. São Paulo: Editora, Saraiva, 2013. LOCCOMAN, Luiz. A polêmica da internação compulsória. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_polemica_da_internacao_compul soria.html.> Acesso em: 18 de setembro. de 2014. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 1998. v. 2.p. 93 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2013. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 35. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: Editora: RT, 2012 NUNES JUNIOR Apud NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. 1, Parte Geral. São Paulo, 2007. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.197.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BEM, Paula de. Direito à vida e a descriminalização do aborto. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/direito-%C3%A0-vida-edescriminaliza%C3%A7%C3%A3o-do-aborto> Acesso em: 19 de novembro. de 2015 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Lex: Vade Mecum. 19ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. ADPF 54. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. V. 2. São Paulo: Saraiva, 2004. p.109. CAROLLO, João Carvalho. A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 128, II, DO CÓDIGO PENAL. Disponível em: <http://www.debatecomprofessores. com/2011/11/inconstitucionalidade-do-art- 128-ii-do.html> Acesso em: 15 de outubro, de 2015.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

270

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O DIREITO À MATERNIDADE DA DOADORA DE ÓVULO EM UMA RELAÇÃO HOMOAFETIVA Simone Rocha Pereira1 Valéria Edith Carvalho2 RESUMO: O presente trabalho aborda como tema a dupla maternidade, discutindo sobre a abertura do conceito de família para além do casamento com o reconhecimento da união estável homoafetiva, os desdobramentos oriundos dessa ampliação conceitual do núcleo familiar, o espaço de atuação do Estado na vida privada, bem como os avanços da medicina no tocante à reprodução assistida heteróloga que tornou possível o implemento do projeto familiar de casais homoafetivos do sexo feminino no que diz respeito a ter filhos (filiação). A metodologia utilizada se deu através de pesquisa bibliográfica e de jurisprudência com a finalidade de indicar alguns posicionamentos de doutrinadores e operadores do direito acerca do tema. A proposta resulta de reflexões em que se constata que o desenvolvimento científico pode aliar-se ao Estado para tutelar as pessoas que veem na união homoafetiva o modo para realizarem o seu projeto familiar. Ressaltou-se, ainda, sob uma perspectiva constitucional de inclusão, a dignidade hum ana, princípio fundamental e estruturante do Estado Democrático de Direito, primado na igualdade e na liberdade, além da busca pela felicidade e reconhecimento ao afeto, que levam a implementação de direitos ao cidadão sem qualquer discriminação ou preconceito. ABSTRACT: This paper discusses the theme double motherhood, discussing the opening of the family concept beyond marriage to the recognition of stable homosexual marriage, the ramifications resulting from this conceptual expansion of the nuclear family, the State of performance space in private life, and medical advances regarding the heterologous assisted reproduction that made it possible to implement family project of homosexual couples female with regard to having children (affiliation). The methodology used was through literature and case law in order to indicate some positions of scholars and jurists on the subject. The proposal is the result of reflections which states that scientific development can be allied to the state to protect people who see homosexual marriage in the way to realize their family project. Emphasis was also under a constitutional perspective of inclusion, human dignity, fundamental and structuring principle of the rule of democratic rule, the rule of equality and liberty, and the pursuit of happiness and gratitude to affection, leading the implementation of rights citizens without discrimination or prejudice. PALAVRAS-CHAVE: Autononia Privada, Família, União Estável, Casais Homoafetivos, Dupla Maternidade, filiação, Dignidade da Pessoa Humana. KEYWORDS: Private autonomy, Family, Domestic Partnership, homosexual couples, Twin Maternity, affiliation, Human Dignity. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Conceito de Família, 2.1 Evolução; 2.2 - Conceito ampliativo de família brasileira pós ADI e ADPF2011; 3–A Bioética e o Biodireito sob a ótica do Direito das Famílias; 4. O papel do Estado frente as transformações ocorridas no âmbito do Direito das Famílias; 4.1 A autonomia privada e o Estado minimamente interventor; 4.2 Dupla maternida de, 5 Considerações Finais, Referências.

1 INTRODUÇÃO A Constituição da República brasileira traz como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da CRFB/88). Nesse sentido, tem-se que a sociedade contemporânea possui como características o pluralismo político, social, econômico e religioso, no qual a identidade do indivíduo se comunica com a diversidade vivenciada na sociedade. E, portanto, institutos outrora bem definidos, como a família, por exemplo, deixam de expor conceitos previamente estabelecidos na sociedade, após a institucionalização do Estado de Direito e especialmente o Estado de Direito Democrático, em cuja valorização do indivíduo se dá a partir da diferença. (DIAS, 2009). Com o decorrer dos tempos, as relações familiares se distanciaram do modelo construído em séculos passados, uma vez que tais relações são regidas por costumes que se alteram cada vez em maior velocidade. Nessa linha, o Direito tem por função proteger à sociedade e às diversas expressões nela contida, não sendo função legítima do Estado modulá-la. Destarte, qual deve ser o posicionamento Estatal diante do caso concreto em que, em uma união estável homoafetiva entre mulheres, uma das parceiras doou material genético à outra para que juntas concluíssem um projeto familiar: ter filho?!

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Aquela que gerou a criança possui, de pronto, reconhecimento, pelo ordenamento jurídico brasileiro, do direito à maternidade, entretanto, ausente o posicionamento estatal para com a outra parceira que ‘apenas’ doou o material genético. Nesse sentido é que se faz o presente trabalho com a finalidade de trazer à discussão tema de enorme interesse social. 2. CONCEITO DE FAMÍLIA 2.1 Evolução Todo homem, ao nascer, torna-se membro integrante de uma entidade natural e social, o organismo familiar, de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal. Desde os primórdios da existência da sociedade há a necessidade de as pessoas viverem em comunhão, a família é sem dúvida, o fenômeno em que se funda a sociedade. A origem etimológica da palavra Família, segundo Plácido e Silva (1999, p. 347) é derivado do latim família, de famel (escravo, doméstico), é geralmente tido, em sentido restrito, como a sociedade conjugal. Pablo Stolze Gagliano (2014, P. 38) cita observação do psicanalista Jacques Lacan: “Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições

271

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de materna. Ela estabelece desse modo, entre as gerações, uma continuidade psíquica cuja causalidade é de ordem mental.” A família compreende uma determinada categoria de relações sociais reconhecidas. O casamento é o principal instituto relacionado ao Direito de Família. Nelson Rosenvald(2012) nos ensina que o casamento é uma entidade familiar estabelecida entre pessoas humanas, merecedora de especial proteção estatal, constituída, formal e solenemente, formando uma comunhão de afetos (comunhão de vida) e produzindo diferentes efeitos no âmbito pessoal, social e patrimonial. Trata-se de uma união formal, solene, entre pessoas de sexo distintos que se entrelaçam afetivamente, estabelecendo uma comunhão de vida. Nas lições de Flávio Tartuce(2015) o casamento é a união de pessoas de sexos distintos, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de uma família e baseado em um vínculo de afeto. Na concepção clássica de casamento tem-se a figura de homem e mulher relacionada à figura bíblica de Adão e Eva. Contudo, a partir do momento em que a família deixou de ser o núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do afeto e do amor, surgiram novos contornos e institutos. A proteção à família somente pode ocorrer por meio da proteção à dignidade de seus membros e, nesse avanço das instituições jurídicas, a dignidade da pessoa humana adquire especial relevo. Segundo Kildare (2007), os direitos fundamentais tem como marco inicial o cristianismo, manifestados nas parábolas de Jesus sobre o reino dos céus. No entanto, foi com a Revolução Francesa de 1789 que os direitos fundamentais ganharam universalidade. A partir desse momento, o princípio da dignidade da pessoa humana surge como norte do direito constitucional moderno. O homem é visto como centro de preocupação. Direitos de igualdade, respeito à liberdade e à intimidade de homens e mulheres, assegura a toda pessoa o direito de constituir vínculos familiares e de manter relações afetivas, sem qualquer discriminação. O casamento deixa de reinar absoluto no cenário do Direito de Família e abre espaço para outras formas de constituição de família. Flávio Tartuce (2015) traz à reflexão alguns institutos extraídos do texto constitucional, tais como, o próprio casamento, a união estável entre homem e mulher e a família monoparental. Contudo, Tartuce (2015) acrescenta que se trata de rol exemplificativo. Assim, mister o reconhecimento de outras formas de família, tais como a informal, anaparental, pluriparental, mosaico, eudemonista e, por fim a homoafetiva. Por certo, atualmente, o conceito de família ampliou significativamente, assumindo concepção múltipla, plural, podendo dizer respeito a um ou mais indivíduos, ligados por traços biológicos ou sócio-afetivos, com intenção de estabelecer, eticamente, o desenvolvimento da personalidade de cada um. Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea romperam definitivamente com o modelo de família patriarcal e hierarquizada. 2.2 - Conceito ampliativo de família brasileira pós ADI e ADPF2011 A premissa constitucional interfere em todo o ordenamento jurí-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

dico, não sendo diferente na seara do Direito das Família. As normas do direito de família se destacam de um direito estritamente publicístico, voltado a atender o escopo patrimonial do Estado para dar lugar a um direito privatístico, no qual a intervenção estatal se justifica quanto a certos aspectos patrimoniais e para proteger os membros mais vulneráveis (ROSENVALD, 2012). A família contemporânea que tem por base os preceitos contidos na Constituição Cidadã deve possuir a proteção do Estado, pois é no seio da família que a sociedade tem seu alicerce, entretanto não é admissível interpretação de cunho discriminatório em todos os aspectos do viver em sociedade. Apenas a Constituição pode propiciar discriminação positiva, objetivando promover a proteção, a garantir a igualdade entre desiguais na medida de suas desigualdades e a implementação de direitos. Sob a proteção dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV, da CRFB/88), da igualdade (art., 5º, caput, da CRFB/88), da liberdade do qual decorre o princípio da autonomia privada (art., 5º, II, da CRFB/88), o conceito de união estável disposto no do art. 1.723 do CCB/2002, alarga conteúdo com vistas à promoção do respeito ao indivíduo na privacidade/intimidade de seu projeto familiar. A união estável é uma das formas de entidade familiar previstas na Constituição Federal, e é formada pela convivência pública duradoura e contínua de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituir uma família. (DIAS, 2009). Conceito mais moderno trazido por Pablo Stolze (2014, P. 424), expõe a união estável como a “relação afetiva de convivência pública e duradoura entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com o objetivo imediato de constituição de família.” Ao abarcar as uniões homoafetivas como conteúdo do conceito de união estável, a Constituição Federal de 1988 reforça o escopo democrático e de respeito à vida humana pela qual tem se estruturado. Os direitos e garantias constitucionais de proteção à família apresenta o vínculo homoafetivo como um ‘modo’ possível a realização do desenvolvimento pleno do indivíduo e, portanto, a seus desdobramentos. Julgado do Supremo Tribunal Federal – STF, em consonância ao que dispõe a Constituição Federal posicionou-se no julgamento da ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 132 - RJ e da AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.277 –DF, ambas publicadas em 14/10/2011 no DJe n. 198: EMENTA: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE RECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. Assim, ficam excluídas quaisquer interpretações que restrinja a união estável à dicotomia de gênero homem e mulher; vedados quaisquer significados que discrimine a união pública, contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, porque as uniões homoafetivas contêm, em sua unidade, os requisitos inerentes aos núcleos familiares constitucionais: publicidade, ostensibilidade e, especialmente, a afetividade; não se legitimando discriminação inconstitucional oriunda da letra da lei. A proteção ao núcleo familiar deve ser atrelada à tutela da pessoa humana, através dos princípios gerais da Constituição Federal. Por isso, desnivelar a proteção da pessoa humana, sob o argumento de proteger a instituição familiar é violar frontalmente o comando constitucional. A família existe em função de seus componentes, e não estes em função daquela, valorizando de forma definitiva e incontestável a pessoa humana. Por tudo isso, a família é o lugar adequado em

272

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


que o ser humano nasce inserido e, merecendo uma especial proteção do Estado desenvolve sua personalidade em busca da felicidade e da realização pessoal. 3–A BIOÉTICA E BIODIREITO SOB A ÓTICA DO DIREITO DAS FAMÍLIAS As relações estabelecidas entre os seres humanos e entre esses com a natureza envolvem tensões quanto à forma em que elas se desenvolvem. O ramo do Direito de Família comunga dessa assertiva se consideradas as rupturas identificadas no âmbito do conceito tradicional de ‘família’. A própria racionalidade humana, aqui como inteligência, não exime a humanidade de conflitos e de tensões entre si e nas relações estabelecidas com a natureza. A ciência, por ser uma construção social e transformadora da realidade humana, atrai questionamentos e reflexões transdisciplinares, com reflexos na Medicina, Teologia, Sociologia, Psicologia e, como não poderia deixar de ser, também no Direito. Em especial, se se pensar no desenvolvimento da biomedicina e da bioengenharia genética, em questões referentes à clonagem humana, à pesquisa com células-tronco embrionárias e ao ‘status’ moral do embrião, ao transplante, ao exame de DNA, e à reprodução assistida - inseminação artificial heteróloga e homóloga -, esse desenvolvimento é acompanhado por interrogações de cunho moral e ético frente à sociedade. À título exemplificativo, Michael SANDEL, em seu livro Contra a perfeição. Ética na era da engenharia genética (SANDEL, Michael J., 2013, p.120) aponta que: Há dois argumentos principais contra a pesquisa com célulastronco embrionárias. Uma delas sustenta que (...) a pesquisa com células- tronco é errada porque implica a destruições de embriões humanos; a outra se preocupa com a possibilidade de que, mesmo não sendo errada, a pesquisa com embriões abra caminho para uma série de práticas desumanas, tais como cultivo de embriões, bebês clonados, utilização de fetos para extração de órgãos e transformação da vida humana em uma commodity.(2013, p.120) Portanto, questões morais e éticas afloram frente ao desenvolvimento tecnológico de pesquisa genética e biológica. A busca da ciência para prevenção e cura de doenças e o conhecimento genomênico podem também levar à alteração e à manipulação genética da própria natureza do homem, trazendo assim reflexões desconfortáveis nos aspectos sociais, políticos, científicos, religiosos e antropológicos (SANDEL, 2013). Diante de tais questionamentos, surge a Bioética que tem como tema fundamental a discussão ética da vida humana face às novas descobertas tecnológicas e científicas nas áreas das ciências médicas e biológicas e seus reflexos na cultura e no cotidiano das pessoas. Por outro lado, essas inovações científicas mexeram com as relações sociais e a vida em sociedade, impondo assim, a necessidade do direito de se manifestar acerca de temas tão intrigantes e novos, fazendo surgir, então um novo conceito chamado de ‘Biodireito’. O Biodireito seria uma tentativa de adaptar essas novas realidades criadas pelas descobertas na área da biomedicina ao pensamento jurídico, adequando a legislação e a cultura jurídica aos novos contornos e formatos apresentados pelas descobertas médicas, de acordo com preceitos éticos. Tanto a Bioética quanto o Biodireito se tornam instrumentos eficazes e indispensáveis para a sociedade no controle ético das inovações tecnológicas na área médica. (AUGUSTIN e ALMEIDA, 2009).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Para o Direito de Família moderno, as questões apresentadas pela Bioética e consequentemente pelo Biodireito, são as mais variáveis e imagináveis, pois a família é entendida hoje como o centro de realização do indivíduo e é onde a pessoa se desenvolve e se dignifica. Conforme dispõem AUGUSTIN e ALMEIDA (2009, p. 559), o Direito, nesse aspecto, como Biodireito, emerge de modo ‘a partir dos antigos e dos emergentes atentados ao princípio da dignidade da pessoa humana, cabe à função social renovar os compromissos éticos’. Prescinde o diálogo da bioética com o biodireito, pois, ambos, de forma ampliativa, estão sob o mesmo escopo: de preservação da natureza - ecologia - e o futuro da humanidade. Nessa sociedade pós-moderna, o homem atua em transformação da própria natureza por meio do trabalho, das relações sociais e das reflexões constantes, alterando a esfera materialista, que acabam por desequilibrar as esferas orgânicas e ontológicas – do ser - indispensáveis aos seres humanos. Cabe à bioética mediar esferas conflitantes, trazendo questionamentos necessários à atuação humana quanto a sua responsabilidade ativa nas transformações ocorridas na biomedicina, na biogenética, na bioengenharia, pois, aumenta-se a responsabilidade da ação humana frente ao contexto social na mesma medida que os acréscimos possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico interferem na natureza humana, sendo esta responsabilidade uma função de poder, isto é, biopoder. (AUGUSTIN e ALMEIDA, 2009). A Bioética apresenta os questionamentos e medeia as tensões no âmbito da sociedade e o Biodireito, no Brasil, quanto às questões de filiação em núcleo familiar homoafetivo, vem sendo construído por decisões judiciais, que levam em conta a concretude e os princípios constitucionais de proteção da família em sentido amplo, exaltados na Constituição Federal de 1988, ainda que de forma vacilante. Diante disso, observa-se a importância do Biodireito para tentar nortear as decisões e posições face a problemas e situações sequer imaginados a poucas décadas atrás, especialmente para o direito de família, que nos últimos anos vem sofrendo mudanças substanciais, tentando acompanhar a evolução social e cultural. 4. O PAPEL DO ESTADO FRENTE AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO ÂMBITO DO DIREITO DE FAMÍLIA: UNIÃO HOMOAFETIVA E FILIAÇÃO 4.1 A autonomia privada e o Estado minimamente interventor Tema atual e de grande notoriedade diz respeito a qual deve ser o papel do Estado nas relações familiares diante da valorização da autonomia privada. Os direitos e garantias fundamentais expressos pelo constitucionalismo impõem critérios e limites à interferência estatal na vida privada, bem como acresce proteção às instituições e a princípios que valorizam a pessoa humana em seu desenvolvimento. O escopo constitucional visa a salvaguardar o mínimo essencial para que se preserve a dignidade da pessoa humana considerada em toda a sua complexidade e dimensão. Nessa esteira acentua Rodrigo da Cunha Pereira: “O Estado abandonou a sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição à eventual lacuna deixada pela própria família como, por exemplo, no que concerne à educação e saúde dos filhos (cf. Art. 227 da Constituição Federal). A intervenção do Estado deve apenas e tão somente ter o condão de tutelar a família e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo.

273

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Essa tendência vem-se acentuando cada vez mais e tem como marco histórico a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, quando estabeleceu em seu art. 16.3: A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. (2006, p.157) Conforme ROSENVALD (2012), a compreensão da necessidade da existência de um Direito de Família Mínimo deve-se ter como ponto de partida tempos remotos, nos quais a atuação do Estado nas relações familiares era abundante, especialmente através de edição de normas jurídicas limitando a vontade do titular. O Estado adentrava no núcleo familiar com o proposito de padronização de comportamentos que deveriam ser cumpridos por todos os membros do grupo. Porém com a promulgação da CRFB/88 que aduz em seu art. 1º princípios-base do Estado Democrático de Direito, valorizando, como fundamentos do Estado de Direito, a democracia, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa e o pluralismo político, observou-se um movimento de limitação da presença do Estado nas relações familiares, respeitando a liberdade dos núcleos familiares, ocasionando, assim, a afirmação da autonomia privada no Direito das Famílias. Diante de tal fenômeno, há uma mudança de centralidade, na qual se identifica a valorização do indivíduo como unidade, como sujeito dos direitos e das proteções trazidas pelos princípios constitucionais como limitação da atuação do Estado. Não é legítimo ao Estado atuar frente aos cidadãos fundamentado unicamente na legalidade, pois os princípios devem ser considerados e sopesados para que se alcance o conjunto mínimo de proteção à dignidade humana. É cediço que o Estado somente deve interferir nas entidades familiares para efetivar a promoção dos direitos e garantias dos seus componentes, assegurando a dignidade. Nesta esteira, Leonardo Barreto Moreira Alves justifica a intervenção do Estado no âmbito privado da família: Por força do reconhecimento do princípio em tela, identifica -se atualmente um Direito de Família Mínimo, um Direito de Família no qual deve prevalecer, como regra geral, o exercício da autonomia privada dos componentes de uma família, pois somente dessa forma será possível efetivamente lhes garantir o implemento dos seus direitos fundamentais, o desenvolvimento de sua personalidade. (2000, p. 144) Com o constitucionalismo, identificou-se a valorização da personalidade do indivíduo, princípio outrora visto a menor que o princípio da supremacia do Estado. Essa interpretação impõe ao Estado o dever de considerar o indivíduo na sua privacidade e complexidade, na sua dimensão política, jurídica, filosófica, pois os direitos e garantias fundamentais expressos na CRFB/88 não se fecham à interpretação, sendo possível deles extrair outros desde que voltados a declarar direitos e estabelecer limitações estatais. Princípios constitucionais da liberdade e da igualdade direcionaram o ordenamento jurídico, especificamente no âmbito do Direito de Família, para considerações dos princípios implícitos da autonomia privada e intervenção mínima do Estado nesse ramo do direito civil. A roupagem da família constitucional impende ao Estado que se afaste da gerência interna da família e dê espaço aos membros que compõem essa célula da sociedade com vista a que haja o respeito aos direitos e garantias fundamentais. A ascensão da família contemporânea, sob os traços do fenômeno da privatização estatal e consequentemente desinstitucionalização desse instituto, é resultado da valorização dos interesses do

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

indivíduo na sua vida privada. Não é um interesse livre de responsabilidades ou mesmo aceitação de sobreposição e desrespeito à dignidade do outro, pois o Estado se faz presente na proteção dos membros que compõem o núcleo familiar, justificada pela mesma raiz que possibilita a liberdade do indivíduo, isto é, é a afirmação da dignidade da pessoa humana e dos princípios decorrentes, afetos ao núcleo familiar (ROSENVALD, 2012). Observa-se, portanto, a restrição da atuação estatal exteriorizada pelo princípio da intervenção mínima no âmbito privado da família para atender o avanço da autonomia privada. A proteção do Estado vem corroborar para que o indivíduo desenvolva a sua personalidade e se realize alcançando a felicidade pessoal. O foco do direito de família direciona-se ao indivíduo, respeitando seu espaço de livre atuação, no qual não é legítimo ao Estado interferir. Infere-se, assim, do exposto que a autonomia privada está presente no direito de família em decorrência do princípio da liberdade e da valorização da vida humana. Entretanto, é uma autonomia privada que preza a assunção de deveres do indivíduo concomitantemente aos direitos e garantias protegidos pelo Estado. O indivíduo, pela afetividade, arquiteta o seu projeto familiar, planeja todo o seu desenvolvimento, baseado também na solidariedade e na responsabilidade com os filhos, e assume as responsabilidades decorrentes da sua atuação na sociedade, pois também se sujeita aos princípios e às regras de proteção da base da sociedade: a família. 4.2

A dupla maternidade Na história da humanidade, a maternidade sempre foi considerada uma dádiva, o que proporciona a perpetuação da espécie. A vontade de ter filhos é um sentimento inato, primitivo, sendo considerada uma realização pessoal. Durante muito tempo a maternidade era tão somente reservada para famílias compostas por homens e mulheres que não possuíam problema no aparelho reprodutivo, entretanto a revolução tecnológica observada no campo das ciências médicas e biológicas influenciaram profundamente na superação de diversas deficiências bem como na limitação de concepção que poderia ocorrer tão somente entre homens e mulheres. As novas técnicas de reprodução humana bem como o reconhecimento das entidades familiares homossexuais trouxeram consigo profundas mudanças de paradigma, fazendo com que o que até então era considerado uma verdade absoluta fosse relativizado. Observa-se que a Constituição Federal de 1988 instituiu o direito ao planejamento familiar, conforme preceituado em seu artigo 226, § 7º, limitando- o com os princípios da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável e do melhor interesse da criança. Dentro desse projeto familiar, os filhos são consequência natural à ideia de família. Tal expressão do desenvolvimento do núcleo familiar pode ser também observada pela adoção (Lei Nacional de Adoção nº 12.010/2009) e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.069/1990 que reconheceu em seu bojo a família natural, ampliada e substituta; bem como pelo desenvolvimento da biomedicina que vem corroborar para que seja possível, por inseminação artificial homóloga (com o material genético do parceiro-doador), ou heteróloga (com material genético de doador diverso da relação homoafetiva e com autorização do parceiro), a concretização da filiação. Não há no ordenamento jurídico atual produção legal proibitiva da efetivação do projeto de filiação em famílias homoafetivas. Pelos recursos da biomedicina ou pelo instituto jurídico da adoção, casais homoafetivos se realizam quanto à filiação, sempre e em regra, recorrendo à autoridade judiciária.

274

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Jurisprudência do STF identifica a filiação como um dos desdobramentos natural do reconhecimento das uniões estáveis entre casais do mesmo sexo como núcleo familiar: DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. (STF - RE: 846102 PR - PARANÁ , Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 05/03/2015, Data de Publicação: DJe-052 18/03/2015) Julgados proferidos por Tribunais Inferiores demonstram que o entendimento sobre a questão ainda não se encontra consolidado, entretanto é de se ressaltar que no silêncio da lei prega-se inconstitucional interpretação que restrinja direitos (LICC), e faça discriminação negativa ao reconhecimento da parentalidade homoafetiva. Maria Benerice Dias e Thiele Lopes Reinheimer no texto “A reprodução assistida heteróloga nas uniões homoafetivas” expoem a respeito que: O exercício da parentalidade é revelado por um cuidar, prover, educar e amar seu filho. Impedir este ato de fraternidade a quem só quer dar amor, em função da sua identidade sexual, é suprimir o conceito d e humanidade, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, conceito consagrado no preâmbulo da Constituição Federal. Entretanto, questionamentos se formam frente à realidade vivida por casais homoafetivos, composto pela união entre mulheres, na qual uma gesta em seu ventre o feto, fruto de inseminação artificial de material genético da outra parceira. Quem de fato seria mãe? Quem gestou? E/ou quem, por exame de DNA, pode provar a maternidade? Qual enquadramento constitucional cabível ao caso, na ausência de legislação pertinente? Sabe-se que antes de toda evolução da medicina bem como da transformação do conceito de família era por certo considerar que “a maternidade era tida certa e determinada pelo notório fato de que a criança era filha da mãe de cujo ventre havia nascido”, sendo declinado o conceito de maternidade de acordo com o princípio “matersemprercertaest” (maternidade sempre certa está) (DIAS, 2009). Todavia com os avanços tecnológicos e a utilização de técnicas de Reprodução Humana Assistida, a certeza quanto à maternidade apresenta-se abalada, tendo em vista que “a mãe pode ser a que esteja gestando o filho, pode ser a que forneceu o óvulo para fecundação e até mesmo as duas: a que está gerando bem como a que doou o óvulo. Preconiza nosso Direito Pátrio que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. O Órgão Supremo do Poder Judiciário no Brasil - STF reconhece a união homoafetiva como entidade familiar, uma vez que a família atual tem agora novos e dinâmicos formatos, sendo dignas de tutela do Estado as famílias todas as formas de sua constituição. O reconhecimento do casamento entre homossexuais e os avanços da medicina propiciaram por certo a dupla maternidade em casos em que uma das parceiras doou o óvulo e a outra gerou o bebê sendo consequência lógica da principiologia orientadora do Direito de Família contemporâneo. Para corroborar tais argumentos, em 16 de Julho de 2015 novas regras de Reprodução Assistida foram previstas na Resolução nº2.121/15 do Conselho Federal de Medicina (CFM).

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Com a nova Resolução, ficou mais clara a situação de casais homoafetivos do sexo feminino. É expressamente permitida a gestação compartilhada, ou seja, uma mulher poderá transferir o embrião gerado a partir da fertilização de um óvulo de sua parceira. Nas disposições gerais previstas nesta Resolução, item I, estão os limites científicos pregados pela bioética e o biodireito; já no item II, e o que maior atração traz, dispõe sobre “paciente das técnicas de RA”, isto é: 1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos, conforme legislação vigente. 2 - É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico. 3 - É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade. (grifos nossos) Todavia, é cediço que a ausência legislativa acerca da matéria ainda resulta em vários problemas de difícil solução que atingem conceitos éticos e costumes sociais, sendo bastante controversos e, invariavelmente, esbarrando em preconceito. Diante de tal questão, as partes ainda devem recorrer ao judiciário para o reconhecimento da filiação. Em contrapartida, em uma interpretação sistemática de tal tema, poder-se-ia concluir pela presunção de filiação no casamento (CCB/2002, art. 1.597), o reconhecimento da filiação oriunda das uniões homoafetivas, se considerado que tanto o casamento quanto a união estável - um por vinculo jurídico e outro por vínculo afetivo após a CRFB/88 são orientados pelos princípios fundantes da família constitucional, na qual a solidariedade, a ostensividade, a responsabilidade e a afetividade emergem como reflexo espontâneo da liberdade, da igualdade, da autonomia privada, em suma da dignidade da pessoa humana. Destarte, se a união estável está equiparada à familia matrimonializada e abarca uniões estáveis homoafetivas conforme decisão jurisprudencial, seria o mencionado artigo suficiente para conferir o direito a presunção de filiação. Reconhecer de pronto a dupla maternidade no caso em questão exalta a dignidade das pessoas envolvidas, reforça o reconhecimento constitucional da união estável como núcleo familiar, bem como o alargamento da definição de união estável quanto às relações homoafetivas; os princípios de melhor interesse da criança (ECA) e, também, os princípios estruturantes da família contemporânea. Em sendo assim, nada impede que mulheres, que desejam constituir-se família, tenham acesso e façam uso das mesmas técnicas científicas, para gerar desejados descendentes. A união homoafetiva se constitui em família e a criança é fruto de uma maternidade desejada e planejada em conjunto, além de possuírem maturidade, discernimento e responsabilidade essenciais à criação e educação da criança, cercando-lhe dos cuidados, carinho, afeto e bens materiais de que necessitar, devendo, assim, constar como mães, tanto a mulher que a gerou quanto a mulher cônjuge da gestante. Desta forma, o registro de nascimento da criança em nome das mães retrata a sua realidade social. Reconhecer a dupla maternidade espelha a concretização dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, na medida em que devem ser assegurados às

275

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


proles vindas destas unidades familiares, todos os direitos já concedidos àquelas provenientes da família constituída por um homem e uma mulher. E não poderia ser diferente, porque o Direito é uma ciência social cujo objetivo é regular a vida do ser humano em sociedade e, via de consequência, deve refletir a realidade das novas relações familiares e não permitir a desigualdade. 5 – Considerações finais A dignidade nasce com o ser humano, nunca devendo ser dele separada, motivo pelo qual todas as formas de violação devem ser avaliadas para que se possa garantir, com eficácia e eficiência, sua defesa pelo ordenamento jurídico. Em seus diversos significados, a dignidade da pessoa humana traz consigo a ideia de liberdade que se exprime na autonomia privada dos indivíduos bem como a vedação expressa a qualquer tipo de discriminação. Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea alteraram substancialmente o cenário social moderno. O Direito, como normatizador da vida em sociedade, deve ser sensível a tais alterações, dando novos significados a conceitos outrora já ultrapassados. Nesse contexto, cabe ao Estado respeitar e proteger a pessoa humana, amoldando conduta a partir dos limites constitucionais e legais expostos no ordenamento jurídicos com fins de não violação da dignidade da pessoa humana. Ao se reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, abarcada pelas garantias constitucionais direcionadas à família, não há que se ter base constitucional oposição à plenitude dos projetos de desenvolvimento dos núcleos familiares homoafetivos, tendo em vista que criança concebida pela utilização do método de fertilização, representam o reflexo do anterior reconhecimento jurídico das relações homoafetivas e da pluralidade dos modelos de família, consagrados pelo Direito de Família em interpretação às normas e princípios da Constituição Federal. REFERÊNCIAS ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Direito de Família Minimo. A Possibilidade de Aplicação e o Campo de Incidência da Autonomia privada no Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. BRASIL. Constituição (1988). República Federativa do Brasil. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília: Senado, 05.10.1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado. htm> Acesso em 07/08/2015 BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2.002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 11.01.2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 15/09/2015 BRASIL. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Lei n. 3.071, de 01 de janeiro de 1916. Diário Oficial da União, Brasília, 05.01.1916. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm> Acesso em: 25.09.2015 BRASIL. Lei n. 8.069, de 29 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16.07.1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ L8069.htm> Acesso em: 02.10.2015 BRASIL. Lei n. 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção, altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002 – Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. Diário Oficial da União, publicado em 4.8.2009 e retificado em 02.09.2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2009/lei/l12010.htm> Acesso em: 02/10/2015. BRASIL. Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

normas do Direito Brasileiro (LINDB). Diário Oficial da União, publicada em 09.09.1942. Disponível em: < Diário Oficial da União, publicado em 4.8.2009 e retificado em 02.09.2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei/Del4657.htm> Acesso em: 15/09/2015. BRASIL. Resolução n. 2.121, de 16 de julho de 2015 do Conselho Federal de Medicina. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudarão a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos – tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.013/13, publicada no D.O.U. de 9 de maio de 2013, Seção I, p. 119. Brasília. <http://www.cremers.org.br/dowload/2121-2015.pdf> Acesso em: 29 de setembro de 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277-DF; Relator: Min. Ayres Britto. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, . Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=400547&tipo=TP&de scricao=ADI%2F4277> Acesso em 02.10.2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Preceito Fundamental 132-RJ... Relator: Min. Ayres Britto. Diário de Justiça Eletrônico. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633> Acesso em: 02.10.2015. CARDIN, Valéria Silva Galdino. Dano Moral no Direito de Família. Editora Saraiva, 2012, formato digital. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 13ª ed., ver. Atual. eampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CASSETTARI, Christiano. Elementos de Direito Civil. — São Paulo: Saraiva, 2011. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Família e Sucessões. 5ª edição. Editora Saraiva, formato digital. DIAS, Maria Berenice; Manual de direito das famílias – 5. Ed.rev, atual. E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade – o que diz a Justiça!: as pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. DIAS; Maria Berenice; REINHEIMER, Thiele Lopes. A reprodução assistida heteróloga nas uniões homoafetivas. Texto da internet. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/a_reprodu%E7%E3o_assistida_het er%F3loga_nas_uni%F5es homoafetivas_-_thiele.pdf> Acesso em; 06.10.2015. FARIAS, Cristiano Chaves de Farias; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. 4. ed. vol. 6. Editora Juspodivm, 2012. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família, as famílias em perspectiva constitucional. 2ª edição, revista, atualizada e ampliada. Editora Saraiva, formato digital. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_89/MonoDisTeses/TatianiBianc o_Rev89.pdf Acesso em: 03.10.2015 http://www.clarissabottega.com/Arquivos/ Artigos/artigo%20Clarissa%20Bottega%20biodireito.pdf Acesso em: 10.10.2015 http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/denise_dayane_ mat hias_rodrigues.pdf Acessado em: 21.09.2015 http://www.ibdfam.org.br/noticias/5782/CFM+publica+novas+regras+para+repro du%C3%A7%C3%A3o+assistida Acesso em: 11.10.2015 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil: Direito de Família e Sucessões. 7ª edição. Editora Saraiva, formato digital. LOBO, Paulo Direito civil : famílias / Paulo Lôbo. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, 2011. – (Direito civil).

276

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


MONTEIRO, Washington de Barros; SILVA, Regina Tavares da. Curso de Direito Civil – Direito de Família. 42ª edição. Editora Saraiva, formato digital. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 14ª ed., 2004, vol. V. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil – Alguns aspectos de sua evolução, Rio de Janeiro: Forense, 2001. PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família, Belo Horizonte: Del Rey, 2006. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5º ed. Ver., atual. eampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

277

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORANEO À LUZ DO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: O SETOR SUCROALCOOLEIRO Thábata Gomes Queiroz de Almeida1 Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo2 RESUMO: O trabalho escravo contemporâneo tem se mostrado muito presente nas relações de trabalho e nas relações de emprego, o que deve ser motivo de preocupação, afinal fere direitos constitucionais fundamentais e disposições legais, o que é inadmissível nos dias atuais, posto que a escravidão ficou pra trás quando a Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888. O trabalhador não deve ser coisificado ou humilhado diante da sociedade, e sim tratado com dignidade e respeito, cabendo ao Estado juntamente com os órgãos competentes como é o caso do Ministério Publico do Trabalho e Emprego, agir na fiscalização, buscando erradicar essa prática delitiva punindo os empregadores e as empresas que tenham agido em desconformidade, propiciando aos empregados o direito de ter uma vida social tranquila juntamente de seus familiares. ABSTRACT: The contemporary slave labor has been very present in labor relations and employment relations, which should be cause for concern at all violations of fundamental constitutional rights and legal provisions, which is unacceptable nowadays, since slavery was to back when the Golden Law was signed on May 13, 1888. the employee should not be reified or humiliated in front of society, but rather treated with dignity and respect, and the State along with the relevant bodies such as the Public Ministry labor, acting on supervision, seeking to eradicate such unlawful activities punishing employers and companies that have acted in disagreement, giving employees the right to have a peaceful social life along their families. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho escravo, princípio da dignidade humana, Setor sucroalcooleiro. KEYWORDS: Slave labor, principle of human dignity, sugar and alcohol sector. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O trabalho escravo contemporâneo; 3. O princípio da dignidade humana- Horizontalização dos direitos fundamentais; 4 Análise de exploração do trabalho escravo no setor sucroalcooleiro; 4 Considerações finais; Referências.

1 INTRODUÇÃO O artigo abordará o trabalho escravo contemporâneo nos setores sucroalcooleiros buscando maior proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana e efetiva participação dos órgãos competentes na tentativa incessante de evitar que essas práticas ocorram no Brasil. O tópico 2 irá tratar sobre o trabalho escravo contemporâneo e o que significa atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, afinal como preceituado no Código Penal vigente a redução do trabalhador a condição análoga à de escravo é crime, e o trabalho escravo é uma prática delituosa tipificado no artigo 149 da referida lei, a qual busca evitar que a pessoa humana seja submetida à servidão e ao poder de fato de outrem. No tópico 3 será feita uma análise do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos principais fundamentos da República Federativa do Brasil e a aplicação da teoria da horizontalização no âmbito das relações de trabalho, ou seja, será demonstrado até onde o princípio da liberdade entre empregador e empregado é admitido nas relações de emprego. No tópico 4 analisar-se-à a exploração de trabalhadores no setor sucroalcooleiro, a partir do estudo perfil das vítimas, da atuação dos órgãos fiscalizadores levando em consideração o crescimento econômico do setor sucroalcooleiro e de como isso afeta a vida dos obreiros que trabalham nos canaviais. 2 O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO É através do trabalho que o homem garante sua subsistência e o

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

crescimento do país, prevendo a Constituição (Brasil, 1988), em diversas passagens, a liberdade, o respeito e a dignidade do trabalhador. O Ministério do Trabalho e do Emprego considera o trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (MTE,2015) Para Livia Mendes Moreira Miraglia (2008) o Brasil convive com uma dura realidade: cerca de 25 a 40 mil indivíduos estão sujeitos ao trabalho em condição análoga a de escravo. Mesmo que tal situação não seja permitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, encontrando-se vedações em diversos artigos da Constituição Brasileira (arts. 1º, caput,e incisos III e IV; 3º; 4º; 5º, caput,e incisos III, X, XIII, XV, LXVII e parágrafo 2º; 170) e em inúmeros tratados e convenções internacionais (Ex: Convenções 29, ratificada em 1930, e 105, ratificada em 1957, ambas da OIT), sendo a atividade tipificada como crime pelo art. 149 do Código Penal, empregadores obstinados pelo lucro insistem em dar sobrevida à prática do trabalho escravo no país.

278

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Dessa forma, Livia Miraglia aduz: [...] A escravidão contemporânea faz suas vítimas principalmente no meio rural. Esses trabalhadores são contratados para laborar, principalmente, nas atividades de pecuária, desmatamento, extração de madeira e produção de carvão. Os estados do Pará, Mato Grosso, Bahia e Maranhão figuram como os maiores reincidentes da prática. Apura-se ainda que, em média, 76% dos trabalhadores escravizados se originam dos estados do Maranhão, Piauí e Tocantins; 8,5% do Pará; 4,2% de Goiás; 7,6% de outros estados nordestinos e 3% do restante do país. (MIRAGLIA, 2008, p.134) A autora ainda continua: [...] A concentração da incidência de trabalho escravo nas regiões amazônicas deve-se muito à herança do governo militar e das políticas de ocupação realizadas nas décadas de 1960 e 1970. Nesse período, o Estado brasileiro financiou inúmeros empreendimentos, a fim de povoar e desenvolver a região, sem, no entanto, exigir como contrapartida o cumprimento das normas trabalhistas e ambientais, e o respeito aos habitantes locais e ao próprio ser humano. A situação do Norte do Brasil é uma lembrança evidente – e que deveria servir de exemplo para os governantes pátrio – do que acontece quando o poder e a autoridade são entregues aos detentores do capital e o Estado se ausenta. (MIRAGLIA, 2008, p.134) Conforme Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé: [...] trabalho escravo é aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar sua atividade laboral, submetendo- o, em geral, a constrangimento físico e moral que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador. (SENTO-SÉ. 2001, p. 27) Conforme Luiz Regis Prado (2013), em Roma, a Lex Fabia de Plagiariis sancionava a escravização do homem livre, bem como a compra e venda de trabalhadores (plágio), e as penas cominadas pelo primitivo Direito Romano eram pecuniárias. Todavia existe uma distinção entre o plágio romano e a redução a condição análoga à de escravo consagrada atualmente pela legislação contemporânea. No Direito romano, a escravidão a que se conduzia a vitima era uma instituição de Direito, legalmente admitida e disciplinada. Ainda segundo Luiz Regis Prado (2013), o Código criminal do império (1830), elaborado sob égide do regime escravocrata brasileiro, tipificava tão somente a sujeição de pessoa livre à escravidão. O código penal de 1890 ignorou de forma completa essa figura delitiva, não tipificando o trabalho em condições análogas a de escravo como crime. Apenas com o Código Penal de 1940 é que a prática delitiva foi prevista e encontra-se no artigo 149 da lei, que estabelece da seguinte forma: [...] Redução a condição análoga à de escravo Art. 149 – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (BRASIL, 1940) Segundo Fernanda Soares Bastos, sob o prisma fiscalizatório, em 14 de junho de 1995 foi instituído, pela Portaria MTb n. 550, o Grupo Móvel de Fiscalização, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego; e em 27 de junho do mesmo ano foi editado o Decreto n. 1.538, criando o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF). Atualmente existem várias medidas mundiais e nacionais que visam o combate do trabalho escravo contemporâneo positivados na Carta Magna, Declaração dos Diretos dos Homens (art.IV), e pela Organização Internacional do Trabalho. (BASTOS, 2013, p. 9). Nesse sentido expõe: [...] Segundo informações constantes do endereço eletrônico da própria OIT, Diante de uma ação mais comprometida e integrada, foram apresentadas mais denúncias-crime contra acusados da prática de trabalho escravo em 2003 do que em todos os dez anos anteriores. Em 2003, foi registrado um recorde no resgate de trabalhadores escravizados. O envolvimento dos parceiros e a resposta da sociedade às notícias sobre trabalho escravo mostram que muito do que precisava ser feito tem sido tratado e realizado com a responsabilidade e a indignação que o assunto merece.(BASTOS, 2013.p.9) Continua a Bastos: [...] A evolução na adoção de práticas efetivas na consecução dos objetivos de citadas Convenções, projetos e planos é reconhecida no relatório “Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado”, apresentado pela OIT, o qual cita o Brasil como líder na busca de soluções para a questão. (2013, p.9) Portanto, não é difícil perceber que a jornada exaustiva prejudica o obreiro, incidindo negativamente em sua vida pessoal e particular, privando o de direitos fundamentais como, por exemplo, seu convívio familiar, social e seu lazer, coisificando o trabalhador que fica a mercê de seu empregador. Cabendo portanto aos órgão fiscalizatórios buscar a erradicação desse meio ilícito de trabalho, que restringe direitos do obreiro, garantindo a estes o mínimo existencial e condições dignas de trabalho. Dessa forma, feita uma análise acerca do trabalho escravo contemporâneo é de suma importância que se faça um estudo sobre o principio da dignidade humana e a sua teoria da horizontalização aplicada no âmbito do direito do trabalho. 3 O PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA– HORIZONTALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento

279

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


da Republica Federativa do Brasil, e é considerado como um dos princípios sensíveis, a ensejar até mesmo a intervenção federal nos Estados que os tiverem violando com o objetivo de assegurar a observância dos princípios fundamentais proclamados na Constituição Federal, em seu art. 34, VII (ALEXANDRINO.2009). Ingo Wolgang Sarlet, trás um conceito de dignidade da pessoa humana citada por Carlos Henrique Bezerra leite: [...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua antecipação ativa e co- responsável nos destinos da própria existência e da dupla em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET Apud LEITE.2012.p.87) No âmbito da Constituição Federativa do Brasil de 1988, a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e com base nele os demais princípios são interpretados. Para Kildare Gonçalves Carvalho, a dignidade designa o respeito que merece qualquer pessoa e dispõe do seguinte conceito: [...] a dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo, e não para a obtenção de algum resultado. A dignidade da pessoa humana decorre do fato de que, por ser racional, a pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e de guiar-se pelas leis que ela própria edita: todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, já que é marcado pela sua própria natureza, como fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio, o que limita, consequentemente, o seu livre arbítrio, conforme pensamento kantiano. (2011,p.93) Alice Monteiro de Barros (2013), sob a ótica laboral, entende que o direito à intimidade é uma das variáveis mais importantes da dignidade, situando aqui a título de exemplo, a proteção contra o assédio sexual e exames médicos que se destinam a investigar, sem o consentimento do empregado, aspecto capaz de discriminá-lo. Ao tratar do principio da dignidade da pessoa humana, importante também se faz tratar do principio do valor social. Carlos Henrique Bezerra Leite (2013) aduz que, desde o Tratado de Versalhes, o trabalho humano não poderia ser objeto de mercancia. O trabalho é importante e exerce perante a sociedade importante função social, propiciando a dignificação do homem através do trabalho. Todas as formas de trabalho em regime de escravidão, o trabalho infantil, o trabalho degradante e exaustivo, entre outros, violam o principio da dignidade da pessoa humana, desvirtuando assim a função social do trabalho. Em suma, o principio da dignidade da pessoa humana ocupa posição de destaque no curso dos direitos e deveres que se exteriorizam nas relações de trabalho e aplica-se em várias situações, principalmente para evitar o tratamento degradante do trabalhador. Entretanto não há dúvida quanto ao alcance desse principio no direito do trabalho, afinal todo trabalhador, antes de tudo é uma pessoa humana. Importante se faz, ao tratar do principio da dignidade da pessoa

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

humana, analisar sobre a horizontalização dos direitos fundamentais e sua aplicabilidade no direito do trabalho, a fim de penalizar o empregador que submete seus empregados à condições análogas a de escravo e para tanto faz-se imperioso uma breve análise do que se entende por diretos fundamentais. Pois bem, em breve síntese, os direitos fundamentais são os bens em si considerados, declarados como tais no texto constitucional, são gêneros do qual são espécies os direitos individuais, sociais e políticos. Esses direitos não podem ser retirados do ordenamento jurídico brasileiro, por serem considerados cláusulas pétrea. (GARCIA. 2015) O Supremo Tribunal Federal já afirmou reiteradas vezes que os direitos e garantias fundamentais não se esgotam no art. 5º da CRFB/88, portanto se espalham pela Constituição Federal (GARCIA. 2015). Gomes Canotilho e Vital Moreira conceituam direitos fundamentais da como “princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a coletividade politica e o Estado e enumerar as principais opções políticos constitucionais” (2012 p.87). Dessa forma, feita uma breve exposição do que seja direitos fundamentais, adentra-se a explicação da teoria da horizontalização dos direitos fundamentais. Para Pedro Lenza (2011), essa teoria surgiu como importante contraponto à ideia de eficácia vertical dos direitos fundamentais. Nesse sentido, cogitando-se a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, duas teorias se destacam, a teoria da eficácia indireta ou mediata e a teoria direta e mediata (LENZA. 2011). A teoria mediata salienta que os direitos fundamentais são aplicados de maneira reflexa, tanto em uma dimensão proibitiva e voltada para o legislador, que não poderá editar lei que viole direitos fundamentais, como ainda, positiva voltada para que o legislador implemente os direitos fundamentais, ponderando quais devam aplicar-se às relações privadas. Conforme André Luiz Tomasi de Queiróz (ano), sabe-se que a partir da década de 50, na Alemanha, iniciaram-se rumores sobre a Drittwirkung – Aplicação Horizontal dos Direitos Fundamentais – com modalidades e intensidade diferentes de aplicação. [...] a evolução da teoria tem como base a eficácia da lei em “função dos direitos fundamentais”, substituindo a eficácia formal clássica dos direitos civis pela real eficácia daqueles. Nipperdey, presidente do Tribunal Federal do Trabalho, foi o primeiro a formular essa doutrina em um julgamento no ano de 1954, reconhecendo que os direitos fundamentais são princípios ordenadores da vida social,com relação direta nas relações interprivadas. (QUEIROZ, André Luis. p.26) A teoria da eficácia dos direitos fundamentais tem como fundamento uma aplicação indireta destes nas relações privadas, não como direito subjetivo, e sim objetivo. O fato é que essa teoria permite a possibilidade do particular de um dos polos da relação renunciar algum direito fundamental no âmbito das relações privadas, o que seria impossível na relação desses com o Estado. Para Canotilho (2004), a ideia de aplicabilidade direta representa um esforço para a normatividade não pode justificar a uma proteção de um conteúdo jurídico-constitucional quando a indeterminação da norma é evidente: [...] O raciocínio é portanto este: as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis desde que possuam suficiente determinabilidade. Temos aqui duas questões dogmáticas: (1) aplicabilidade de normas; (2) determinabilidade de normas ( CANOTILHO. 2004. p 147).

280

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Para Canotilho (2004) , as normas devem possuir um grau máximo ou mínimo de juridicidade, dependendo do que se dispõe a abranger. Contudo, o grau de determinabilidade é imprescindível, no instante que rege normas de comportamento para os particulares sob pena de invalidade. Em contrapartida a teoria imediata defende que alguns direitos fundamentais podem ser aplicados ás relações privadas, sem que haja necessidade de intermediações legislativas para a sua concretização. Para André Luiz Tomasi de Queiróz (2014) a drittwirkung nasce na Alemanha na década de 50, explicado anteriormente, pela tese de Hans Carl Nipperdey. A partir de então, conforme preceitua André Luiz Tomasi de Queiróz verifica-se que a adoção do Estado Constitucional Social e Democrático de Direitos leva, inexoravelmente, ao reconhecimento da eficácia imediata frente a terceiros dos direitos fundamentais. E é a partir de sua respectiva potencialidade direta decorrente de seu caráter subjetivo constitucionalmente é que esses direitos estão garantidos. O autor continua: [...] Dentro da atual conjuntura político-jurídica, muito mais do que dar efetividade às normas constitucionais, adotar a teoria da aplicação imediata é transparecer a dissolúvel dicotomia público- privada. Não se pode conceber o direito privado como um sistema independente, desconjuntado das premissas majoritárias do Estado Social e da constitucionalização dos direitos sociais e da personalidade. Essa concepção teórica tem por objetivo a aplicação direita e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, ressalvando os métodos de incidência.(QUEIROZ, André Luis.2014. p.13)

diretivo e disciplinar), e do outro o empregado, hipossuficiente e vulnerável, parece-nos inegável a plena aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações empregatícias. (LEITE APUD INGO. 2011.p.7) Sendo assim é possível a observância de que a horizontalização dos direitos fundamentais demonstra a aplicação dos direitos de primeira geração inclusive nas relações de emprego. Passa-se a estudar a aplicabilidade desses no trabalho escravo contemporâneo sucroalcooleiro. 4. ANÁLISE DE EXPLORAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO SETOR SUCROALCOOLEIRO Nesse tópico, pretende-se analisar especificamente a exploração do trabalho escravo no setor sucroalcooleiro desde o Brasil colônia até os dias atuais. Recentemente em parceria com a organização “escravo nem pensar” que luta pelo combate do trabalho escravo contemporâneo foi lançado pela “Repórter Brasil” uma matéria que trata exclusivamente do trabalho escravo contemporâneo no setor sucroalcooleiro e o perfil das vitimas que sofrem com essa objetificação do ser humano. A análise é feita de forma clara e sucinta, fazendo uma passagem breve desde o Brasil colonizado até os dias atuais, veja: [...] A história da cana-de-açúcar confunde-se com a do próprio Brasil. Fundamental para a colonização do nosso território pelos portugueses, ela ainda hoje desempenha um importante papel em nossa economia (vide o raio x do setor). Apesar de tanta riqueza, é impossível divorciar a produção nacional de cana-de-açúcar da intensa exploração de trabalhadores. No tempo em que éramos colônia, escravos negros moviam as propriedades dos senhores de engenho. Na década de 1970, foi a vez dos chamados “boias-frias” enfrentarem condições precárias com o Proálcool – programa do governo militar criado para incentivar a produção de etanol e reduzir nossa dependência do petróleo importado.

Dessa forma Pedro Lenza traz de forma sucinta em sua doutrina a seguinte conclusão acerca desse tema, veja: [...] Sem dúvida cresce a teoria da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas (‘eficácia horizontal”), especialmente diante das atividades privadas que tenham um certo “caráter publico”, por exemplo em escolas (matriculas), clubes associativos, relações de trabalho etc.” (2011, p.864) Carlos Henrique Bezerra Leite, cita Ingo Wolfgang Sarlet de forma brilhante acerca da aplicação da teoria da horizontalização dos direitos fundamentais no direito do trabalho [...] Lembra INGO WOLFGANG SARLET que há duas considerações a respeito da aplicação da teoria da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas. Primus, quando há relativa igualdade das partes figurantes da relação jurídica, caso em que deve prevalecer o princípio da liberdade para ambas, somente se admitindo eficácia direta dos direitos fundamentais na hipótese de lesão ou ameaça ao princípio da dignidade da pessoa humana ou aos direito aos direitos da personalidade. Secundum, quando a relação privada ocorre entre um indivíduo (ou grupo de indivíduos) e os detentores de poder econômico ou social, caso em que, de acordo com o referido autor, há um certo consenso para se admitir a aplicação da eficácia horizontal, pois tal relação privada assemelhase àquela que se estabelece entre os particulares e o poder público (eficácia vertical). Como as relações de trabalho subordinado são marcadas pela desigualdade entre os particulares, de um lado o empregador, que detém o poder empregatício (econômico, regulamentar,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Hoje, o setor sucroalcooleiro atravessa uma nova fase. No interior do estado de São Paulo, responsável por 56% de toda a produção brasileira de cana, a mecanização vêm substituindo o trabalho humano. De cada dez toneladas colhidas, sete são extraídas por máquinas. A diminuição do número de cortadores também foi acompanhada por uma melhora das condições de trabalho daqueles que ainda se dedicam à colheita manual. Mas isso não quer dizer que a exploração nos canaviais – incluindo casos de trabalho escravo – seja página virada na história do Brasil. Ainda existem milhares cortadores manuais de cana, muitos submetidos a sérias violações trabalhistas. Há registros de operadores de máquinas colhedoras que trabalharam em turnos de até 27 horas seguidas. Sinal de que muito precisa ser feito para limpar o gosto azedo do trabalho nas lavouras de cana. (http://www.escravonempensar.org.br/biblioteca/as- condicoes-de-trabalho-no-setor-sucroalcooleiro/, acesso em: 16/11/2015) Os cortadores e os operadores de máquinas que trabalham no setor sucroalcooleiro são os que mais sofrem com a exploração de sua mão de obra. No ano de 2011, fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgataram cerca de 39 pessoas que trabalhavam em condi-

281

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ções análogas a de escravo em lavouras mecanizadas de cana de açúcar. Muitos deles chegavam a cumprir jornada de 27 horas seguidas. O MTE registrou inclusive dois acidentes devido à exaustão dos motoristas que dormiram ao volante. O fato ocorreu na Fazenda Santa Laura, cidade de Goiatuba, no estado de Goiás. O caso é uma prova de que a mecanização, defendida por muitos como saída para a extinção da escravidão nos canaviais, não garante necessariamente trabalho decente no campo, se tornando ineficaz. Nas lavouras de cana de açúcar da região Nordeste, a utilização da mão de obra dos cortadores manuais é predominante, por conta da dificuldade em utilizar máquinas no relevo montanhoso da região. A Justiça Federal, no ano de 2013, condenou o responsável pelo Engenho em Pernambuco, por submeter seus empregados a trabalhar em condições análogas a de escravo, conforme a seguir: [...] Em 2013, a Justiça Federal condenou o responsável pelo Engenho do Poço, no município de Palmares (PE), a 13 anos e seis meses de reclusão por submeter 62 cortadores de cana a condição análoga à de escravo – dois deles eram adolescentes. Durante o trabalho, eles não contavam com equipamentos de proteção, não recebiam alimentação adequada e sequer tinham acesso a água potável. Também não foram orientados sobre como manipular os agrotóxicos. A maioria não tinha carteira de trabalho assinada e recebia menos do que um salário mínimo por mês. Além disso, as moradias disponibilizadas no engenho não tinham instalações sanitárias e corriam risco de desabamento. (<http://jus.com.br/artigos/14741>. Acesso em: 16 nov. 2015.) O trabalho de corte manual é o mais perigoso e é visto como um convite à morte, pois quanto mais cana o trabalhador corta, mais dinheiro ele ganha, ou seja, o obreiro ganha por produtividade, o que gera consequências gravíssimas como ocorreu na cidade de Guariba (SP), em que 23 trabalhadores do setor morreram de ataque cardíaco devido ao esforço excessivo de sua função, conforme se observa abaixo: [...] Outro problema grave e bastante comum do corte manual da cana-de-açúcar é a exposição a altas temperaturas. Isso acontece porque, antes de ser colhida, a palha da cana é queimada, o que facilita a extração e aumenta a produtividade dos trabalhadores. Em abril de 2014, a Raízen foi condenada em primeira instância pela Vara do Trabalho de São Carlos (SP) a pagar uma indenização de R$ 7,5 milhões por expor os cortadores de cana a calor excessivo em suas lavouras. A empresa é maior produtora de açúcar e álcool do mundo, formada pelo grupo brasileiro Cosan e pela multinacional Shell. Segundo a decisão, a Raízen não observou as regras contidas na Norma Regulamentadora 15 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que estabelece limites de tolerância para exposição ao calor. (<http://jus.com.br/artigos/14741>. Acesso em: 16 nov. 2015.) Conforme o BNDES é certo que a economia sucroalcooleira tem ótimas expectativas no que tange ao seu crescimento no Brasil, veja: [...] O agronegócio compreende as atividades de pesquisa, de fornecimento de máquinas, insumos e serviços para a propriedade rural, atividades de produção nas propriedades agrícolas e aquelas ligadas às indústrias de processamento de alimentos e matérias-primas rurais. O Brasil é o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás apenas dos EUA e da União Européia. Entre as tendências para o futuro, destaca-se o papel do setor sucroalcooleiro, em função da recente busca mundial por fontes alternativas de combustível”. (Relatório Anual 2006 do BNDES)

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

[...] A demanda mundial por biocombustíveis deverá crescer a taxas elevadas no futuro previsível, impulsionada pela conscientização da necessidade de deter o processo de aquecimento global, bem como pelos temores de uma possível escassez de petróleo”. (BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 27, p. 21-38, mar. 2008) Um dos fatores responsáveis por essa ascensão é a instabilidade do petróleo, que fez com que o Brasil procurasse uma forma alternativa e sustentável de produção de combustível. Todavia, existem usinas que vêm desvirtuando a função social dos trabalhadores e sendo submetidas a severas fiscalizações pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, conforme demonstrado abaixo: [...] O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) tem realizado resgate de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo em canaviais situadas em todo o Brasil. Além da atividade ordinariamente penosa do trabalhador rural no setor canavieiro, há empregadores que degradam o ser humano, demonstrando desrespeito aos comandos legais. Realizam verdadeira discriminação em relação aos rurícolas, sujeitando-os a condições de habitação e labor incompatíveis com a dignidade humana. Diante deste quadro, se configura ainda maior o dever da Fiscalização Laboral em combater o trabalho análogo ao de escravo nos canaviais. Este setor não detém nenhuma justificativa econômica para se omitir em relação ao meio ambiente do trabalho. Pelo contrário, sua sustentabilidade ambiental deve abranger o trabalhador. (CARVALHO, 2010) Segundo José Luciano Leonel de Carvalho, os trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo no setor sucroalcooleiro são uma espécie de “Maratonistas Franzinos” e a sobrecarga de trabalho leva os obreiros a sofrerem paradas cardiorrespiratórias e assim traça o perfil desses obreiros: [...] A maioria dos trabalhadores é migrante. São laboristas que vêm de regiões muito pobres para a safra, na esperança de ganhar dinheiro que dê para melhorar sua condição de vida e de sua família. Assim que termina a safra retornam para sua terra onde está sua casa. Neste itinerário encontram, por vezes, várias formas de exploração: seja o gato ou aliciador, que lhe cobra pelo transporte, hospedagem e alimentação; seja pelo turmeiro, que lhe toma a CTPS quando chega e lhe cobra pela hospedagem e alimentação. Há vários casos em que tanto o gato quanto o turmeiro figuram como parceiros das empresas sucroalcooleiras, fazendo a captação de trabalhadores e transportando os cortadores de cana para as frentes de trabalho. Em razão do tempo que passam fora de casa, há relatos de trabalhadores que não acompanham o nascimento dos filhos, que não retornam para suas terras por falta de dinheiro ou por vergonha de não ter nada para levar aos seus familiares, e etc. Além da atividade de corte, há, ainda, as atividades de plantio, de aplicação de agrotóxicos, de queima, de carregamento, de engate e de transporte da cana. (Carvalho, 2010) Carvalho continua ao dizer que a FUNDACENTRO informou que é comum durante as ações fiscais, o Auditor presenciar acidentes de trabalho no setor: [...] Acidentes de trabalho ocorrem freqüentemente no corte da cana. Os cortes são mais freqüentes nas pernas e nas mãos para onde está direcionada a lâmina cortante do facão

282

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


no ato do corte da base da cana e no aparamento das ponteiras. Também ocorrem acidentes nos olhos”. (Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004. FUNDACENTRO). A atuação do Ministério Público no combate do trabalho escravo é de extrema importância. Preceitua Ruth Beatriz Vasconcelos Vilela, Secretária de Inspeção do Trabalho, que desde o ano de 1995 , o Ministério do Trabalho e Emprego tem realizado inúmeras inspeções em diversas propriedades denunciadas por exploração escrava dos trabalhadores, o que tem sido reconhecido em âmbito internacional, inclusive pela OIT. O trabalho escravo no setor sucroalcooleiro segundo José Luciano Leonel de Carvalho, tem merecido uma inspeção laboral intensa pelo histórico de irregularidades encontradas, observa-se: [...] Há graves irregularidades relacionadas a transporte. Como exemplo, podemos citar: o transporte de equipamentos de trabalho, como facões, junto aos trabalhadores; motoristas inabilitados; veículos não autorizados pelas autoridades competentes, que elevam o risco, já existente, de acidentes no trânsito. Infelizmente, é comum ouvir notícias de acidentes envolvendo estes veículos. Transitam em rodovias estaduais e federais, onde o trânsito é ainda mais perigoso, sob a alcunha “RURAIS”, estampado no veículo. É comum a inspeção laboral encontrar ônibus sucateados, com o assoalho esburacado e com adaptações para caber mais trabalhadores, de forma que o espaço entre o joelho e o banco da frente é ínfimo. Tais veículos vêm sendo, sistematicamente, interditados pela inspetoria laboral por ocasião das ações fiscais. É recorrente a ausência de instalações sanitárias nas frentes de trabalho, condição básica e de baixo custo para o empregador. Os trabalhadores (homens e mulheres) realizam suas necessidades fisiológicas no meio do canavial, sem qualquer condição de higiene. Há, ainda, algumas empresas que tentam disfarçar este atentado à dignidade humana com “tendas”, que não são passíveis de utilização. São armações de lona com um buraco no chão, sujeitas ao calor e à ação do vento que, por vezes, lança as tendas no ar. (Carvalho, 2010) A violação aos trabalhadores ocorre também na ausência de local apropriado para que façam suas refeições, pois geralmente os obreiros almoçam embaixo de sol. Carvalho continua: [...] Além disto, com relação à aplicação de agrotóxicos, há situações em que se constata: a não capacitação para prevenção de acidentes; o não fornecimento de EPI; a ausência de vestimenta em condições de uso e higienizadas; a não descontaminação do EPI e vestimentas ao final da jornada, fazendo com que o trabalhador volte para sua casa e faça a limpeza do material, contaminando o meio ambiente doméstico; o não fornecimento água própria para consumo humano, condição indispensável à vida de trabalhadores. (Carvalho, 2010) Uma vez encontrados trabalhadores em condições análogas à de escravo, é dever dos auditores fiscais do trabalho de realizar o resgate desses obreiros, conforme disciplinado pela Instrução Normativa do MTE nº 65 : [...] Art. 20 As fiscalizações previamente planejadas deverão prever a participação de representantes do Ministério Público

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

do Trabalho e da Polícia Federal. §1º Havendo informações prévias de ilícitos relacionados à posse da terra ou ao meio ambiente, deverão ser previamente contatados representantes do IBAMA e/ou do INCRA. §2º Quando for detectada a existência de trabalho análogo ao de escravo, haverá a rescisão indireta dos contratos de trabalho. O coordenador da equipe determinará ao empregador que providencie a imediata paralisação das atividades, a regularização dos contratos e a anotação nas CTPS, as rescisões contratuais e o conseqüente pagamento dos créditos trabalhistas e do FGTS, bem como as providências para retorno dos trabalhadores aos locais de origem, além de proceder às necessárias autuações e notificações. Diante do exposto, Carvalho afirma que, uma vez reconhecido o trabalho escravo, cabe ao Grupo Especial de Fiscalização Móvel determinar aos empregadores que seja feita a rescisão indireta desses, havendo paralização das atividades e consequentemente o pagamento das verbas rescisórias, e sucessivamente concessão do seguro desemprego. Segundo Carvalho (2010), a inclusão da infratora só se dá após o julgamento definitivo, no âmbito administrativo, dos autos de infração que, em seu conjunto ou separadamente, pelo seu conteúdo resultam na caracterização da condição análoga à de escravo. Já a exclusão dá-se após dois anos, desde que não tenha havido reincidência; haja o pagamento das multas; e comprovação da quitação dos débitos trabalhistas e previdenciários. Dessa forma, percebe-se que o trabalho dos órgãos fiscalizadores no combate do trabalho escravo é de extrema importância para os trabalhadores e para a sociedade, afinal essa pratica delitiva não pode prosperar diante de inúmeras normas jurídicas que visam a proibição dessa exploração hostil e desumana do trabalhador. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante o exposto no presente artigo, conclui-se que o trabalho escravo não é uma novidade e assombra trabalhadores desde o Brasil Colônia, todavia não é algo que deve ser mantido na atualidade, o trabalhador jamais deve ser submetido à exaustão e a humilhação, como é comum observar no setor sucroalcooleiro. Não pode o empregador infringir as leis infraconstitucionais e constitucionais, mantendo os trabalhadores nos canaviais em condições de miséria, visando aumentar a produção e o lucro sem oferecer condições e ambientes adequados de labor, sem sequer oferecer aos obreiros os direitos trabalhistas básicos como carteira assinada, equipamentos de segurança, refeitório, descanso intrajornada e interjornada, banheiros, etc. A função fiscalizadora dos órgãos competentes é de extrema importância no combate dessa atividade delitiva, objetivando oferecer aos trabalhadores que laboram nesse meio de forma desumana a liberdade de serem retirados e os responsáveis pelas práticas punidos.

REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Ltr, 2013. BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. D i s p o nível em:<http://www.mte.gov.br>. Acesso em: 17 out. 2015.

283

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos Sobre Direitos Fundamentais – Coimbra Editora. 2004, p.147. CARVALHO, José Luciano Leonel de. A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2493, 29 abr. 2010. Disponível em:<http://jus.com.br/ artigos/14741>. Acesso em: 16 nov. 2015. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Teoria do Estado e da Constituição, Direito constitucional positivo. 15.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 2009. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-17/RBDC-17033- Ago_Carlos_Henrique_Bezerra_Leite_(Eficacia_Horizontal_dos_Direitos_ Fund amentais_na_relacao_de_Emprego).pdf Disponível em: http://www.escravonempensar.org.br/biblioteca/as-condicoesde-trabalho-no-setor-sucroalcooleiro/ Disponível em: http://www.trt19.jus.br/misc/pdfs/artigo_trabalho_escravo_fern.pdf QUEIRÓZ, André Luiz Tomasi de. Artigo. Teorias da Horizontalização dos Direitos Fundamentais. – Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em 15 nov. 2015. LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. – 7ª Edição – 5ª reimpressão. – São Paulo: Atlas, 2010. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 27ª. São Paulo: Atlas, 2011. NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/ Manual_aluno/Manual_Normaliza cao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 07 de abr. de 2015. PRADO, LUIZ REGIS. Curso de direito penal esquematizado, volume 2: parte especial, arts. 121 a 249. 11.ed. ver.atual.ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Notas de fim 1

Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

284

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO: violação às garantias constitucionais do contribuinte Thainá Fonseca Magalhães1 Bráulio Lisboa Lopes2 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar as sanções políticas impostas pela administração pública no âmbito do Direito Tributário para que o contribuinte efetue o pagamento do tributo. A Administração Pública, por sua vez, figurando de forma privilegiada com relação ao contribuinte, transgride direitos e garantias constitucionais pelo abuso de poder de polícia e coercibilidade em seus atos, e com respaldo na doutrina e jurisprudência verificar -se-á a inconstitucionalidade dessas sanções no Estado Democrático de Direito. PALAVRAS-CHAVE: Sanções Políticas. Direito Tributário. Restrição à atividade econômica. Inconstitucionalidade das sanções políticas. ABSTRACT: This study aims to analyze the political sanctions imposed by government to the taxpayer make payment of the tax. Public administration, in turn, appearing in a privileged way with respect to the taxpayer, violates constitutional rights and guarantees for the abuse of police power and coercivity in their actions, and supported by the doctrine and jurisprudence will check the unconstitutionality of such penalties in a democratic state right. KEYWORDS: Sanctions Policies, Tax Law, Restricting economic activity, unconstitutionality of political sanctions. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Sanções Políticas no Direito Tributário – Conceito; 3 (In)constitucionalidade da aplicação de sanções políticas no Direito Tributário; 4 Formas de aplicação das sanções políticas no direito Tributário; 4.1 O uso da Sanção política como instrumento de coação AO Adimplemento do crédito tributário; 5 O tratamento das sanções políticas em Direito Tributário na visão do Supremo Tribunal Federal; 6 Conclusão; Referências.

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade abordar a utilização de sanções políticas no âmbito do Direito Tributário, discorrendo acerca da coercitividade e abuso do poder de polícia e sobre, a violação dos princípios e garantias constitucionais dos contribuintes, tais como a livre atividade comercial, ampla defesa, contraditório, devido processo legal, que devem estar presentes na aplicação das referidas sanções pela Administração Pública. Na concepção do Estado Democrático de Direito, a Administração Fazendária detém privilégios e garantias processuais na relação jurídica tributária, fato que se coaduna com o interesse público que circunda o crédito tributário. Não obstante, não se pode admitir a extrapolação dos privilégios e garantias processuais para além daquelas previsões instituídas em lei, em especial quando o Poder Público utiliza-se de meios coercitivos para a cobrança de dívidas de natureza tributária. Destarte, sem pretensão exaustiva, realizar-se-á um estudo comparativo acerca das sanções políticas no Direito Tributário. Abordar-se-á, ainda, as exigências que o Estado impõe ao contribuinte, visando a celeridade na arrecadação de tributos, por vezes desrespeitando e ignorando o procedimento legal previsto. 2 SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO - CONCEITO Citando o professor Paulo Coimbra, Lopes (2008) explica que a sanção pode ser definida como “uma consequência jurídica abstratamente prevista pela norma jurídica (secundária ou perinormal), resultante do princípio da retributividade e erigida para viabilizar a preservação da eficácia do comando normativo”. Sob a ótica do entendimento de Bobbio, Lopes (2008) expõe que sanção “é consequência – resposta – da violação de uma norma prescritiva, implícita em todo ordenamento jurídico, servindo de savaguarda das leis contra as conditas opostas aos seus comandos”.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Lopes (2008, p. 145-146) ainda elucida a função repressiva e reparatória da sanção. Confira-se: A função repressiva em sua dimensão deôntica “é uma resposta ao ilícito”. Quando aplicada em concreto, caracteriza uma punição aplicada ao infrator decorrente de um comando normativ o válido. Nessa ótica, deve haver proporcionalidade entre a sanção e a agressão por ela punida. A falta de correspondência lógica entre a gravidade da infração e a proporção da pena pode comprometer sua eficiência. Nessa esteira, “a norma jurídica sancionatória sujeita-se à necessária relação de pertinência e coerência lógica entre seu antecedente e seu consequente, que jamais prescinde da proporcionalidade. A função reparatória, indenizatória ou compensatória pretende “restabelecer a paz e o equilíbrio perturbados pela prática de um ato lesivo, implicando para o protagonista do dano, única e tão somente, a privação do que fora por ele ilegitimamente obtido ou reparação do que fora por ele injustificadamente lesado” (…). Ademais, o Estado, no exercício de seu poder ius imperii, utiliza as sanções tributárias em sua função repressiva, como forma de inibir o desrespeito às normas tributárias. Ocorre que, por vezes, o Estado inobserva o princípio da proporcionalidade e razoabilidade na aplicação de sanções tributárias, o que enseja o surgimento das sanções políticas no Direito Tributário Sancionador. De acordo com Machado (1998), as sanções políticas no âmbito do Direito Tributário são “restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo”. Nesta toada, Rôla (2007), define sanções políticas como sendo “certas medidas cavilosas, não previstas na lei, mas empregadas, usual e abusivamente, como coação para forçar a arrecadação pretendida, quase sempre indevida”. Considera, ainda, que as referi-

285

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


das sanções são “uma forma ilegal da Administração Tributária coagir o contribuinte para forçá-lo a pagar tributos, muitas vezes indevidos, revelando-se por meio de restrições e/ou proibições de certos atos exigidos arbitrariamente”. A análise das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal, tem-se que as sanções políticas são restrições não razoáveis ou desproporcionais ao exercício da atividade econômica ou profissional lícita, utilizadas como forma de coagir o contribuinte ao pagamento de tributos. Em suma, sob a ótica do Direito Tributário Sancionador podemos definir as sanções políticas como uma coação que o Estado exerce sobre o contribuinte para forçá-lo a adimplir com sua obrigação tributária, mediante a utilização de meios, a priori, impróprios, ilegais e inconstitucionais para a cobrança do tributo. 3 (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DE SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO A principal justificativa para a vedação das sanções políticas é o fato de que as restrições impostas pelo Estado ao contribuinte de forma a constrangê-lo ao pagamento dos impostos devidos, se traduz em violação às suas garantias constitucionais, tais como o livre exercício da atividade econômica, bem como o livre comércio, previstos nos arts. 5º, XIII e 170, parágrafo único, ambos da Constituição da República. Confira-se: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (…) Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

O princípio da livre iniciativa traz a possibilidade de se iniciar uma atividade econômica, em prol do crescimento de toda coletividade, tendo o indivíduo o direito de gerir, organizar e conduzir sua atividade econômica. Em se tratando do princípio do livre exercício da atividade econômica, este objetiva instaurar uma competição entre os agentes econômicos, ampliando a economia do país, bem como garantindo a eficiência econômica brasileira, evitando monopólios, cartéis, dentre outras atividades ilegais. Esses princípios possuem um caráter negativo, ou seja, o Estado possui intervenção limitada na economia, a fim de permitir que o particular possa agir, contribuindo assim para o desenvolvimento econômico. Neste sentido Machado (1998, p. 48): Mesmo o contribuinte mais remitente na prática de infrações à lei tributária não pode ser proibido de comerciar. Mesmo aquele que tenha sido condenado, no juízo criminal competente, por prática do crime de sonegação de tributos, tem o direito de

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

continuar exercendo o comércio, porque a lei não comina aos que cometem esse crime a pena de proibição do exercício do comércio. Aliás, mesmo a lei penal, lei ordinária federal posto que à União compete legislar em matéria penal, não pode cominar a pena de cancelamento da inscrição do contribuinte, posto que estaria instituindo pena de caráter perpétuo, que a Constituição proíbe (CF/88, art.5º,inciso XLVII, alínea “b”). Entretanto, ainda que inconteste a inconstitucionalidade das sanções políticas, a Administração Pública insiste na sua aplicação, ignorando o fato de estar violando direitos fundamentais do contribuinte. Consoante entendimento de Harada (2009): Muitos contribuintes coagidos de forma ilegítima e inconstitucional, acabam abrindo mão do contraditório e, quando possível financeiramente, pagando o que, na verdade, não devem, como meio de manter sua subsistência. A morosa atuação do Judiciário não consegue impedir, a tempo, a aplicação desses instrumentos truculentos editados em nome da eficiência na arrecadação tributária a todo custo. Machado (1998, p. 46-47) corrobora com o entendimento acerca da flagrante infração às garantias constitucionais dos contribuintes causada pela aplicação de sanções políticas pelo Estado. Vejamos: Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência é ou não legal. A liberdade de atuação que é conferida ao executivo na incidência destas restrições, é outro embasamento para a vedação destas atividades. Primeiro, porque, mais uma vez nas palavras do Juiz Federal aposentado Hugo de Brito Machado, “a autoridade que a este impõe a restrição não é autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal”. Depois, porque o Fisco ignora visivelmente o procedimento formal instituído em lei para tal cobrança. A Administração Pública tenta justificar a utilização de meios indiretos e oblíquos de cobrança de tributos com fundamento na Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado, o que não se sustenta, tendo em vista que o mero interesse arrecadatório do Estado, não se confunde com o interesse público primário. Neste seguimento dispõe Fontenele (2009, p. 57): O Fisco ao praticar esse tipo de atividade, qual seja, a imposição de Sanções Políticas como condição ao exercício dos diversos direitos fundamentais já analisados, muitas vezes, defende a constitucionalidade desse comportamento, refugiando-se no principio administrativo da Supremacia do Interesse Público. Porém, não é legitimo concluir que o referido princípio se confunda com mero interesse arrecadatório da Administração Fazendária, haja vista que o Interesse Público- isto é, a finalidade geral de todos os atos da Administração Pública – é justamente caracterizado pelo atingimento dos objetivos do estado democrático de Direito, ou seja, pelo respeito dos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico pátrio.

286

Ademais, a noção de interesse público pode ser divida como

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


interesse público primário e interesse público secundário. Com efeito, em suas decisões, nem sempre a Administração Pública atende ao real interesse da comunidade, podendo ocorrer que a Administração Pública esteja imbuída da defesa de interesses unicamente seus, mas não necessariamente interesses públicos. Mello (2010, p. 65-66) traz a diferenciação entre interesse público primário e secundário. Outrossim, a noção de interesse público, tal como a expusemos, impede que se incida no equívoco muito grave de supor que o interesse público é exclusivamente um interesse do Estado, engano, este, que faz resvalar fácil e naturalmente para a concepção simplista e perigosa de identificá-lo com quaisquer interesses da entidade que representa o todo (isto é, o Estado e demais pessoas de Direito Público interno). Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade {entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público. É que, além de subjetivar estes interesses, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles. Tal situação ocorrerá sempre que a norma donde defluem os qualifique como instrumentais ao interesse público e na medida em que o sejam, caso em que sua defesa será, ipso facto, simultaneamente a defesa de interesses públicos, por concorrerem indissociavelmente para a satisfação deles. Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos — isto é, interesses primários do Estado — e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana, e a um ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhes menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento geral. Este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi, colacionando lições de Camelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos. Desta forma temos que o interesse público primário visa a im-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

plementação de políticas públicas voltadas para o bem-estar social, o que justifica o regime jurídico administrativo e pode ser compreendido como o próprio interesse social, ligado intrinsecamente à determinações que emanam do texto constitucional, notadamente do art. 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O interesse público secundário decorre do fato de que o Estado também é uma pessoa jurídica que pode ter interesses próprios. Em regra, o interesse secundário visa o interesse patrimonial do Estado, como exemplo, a demora no pagamento de precatórios, vez que o Estado está defendendo o seu próprio interesse. Desta forma, tem-se que resta frustrada a tentativa da Administração Pública de justificar a utilização de sanções políticas no interesse público, uma vez que deturpa a concepção do princípio de forma a se beneficiar com a restrição indevida de direitos constitucionais do contribuinte. 4 FORMAS DE APLICAÇÃO DE SANÇÕES POLÍTICAS Há uma infinidade de formas de aplicabilidade das sanções políticas, tendo a doutrina e jurisprudência decorrido exaustivamente acerca dos meios coercitivos desproporcionais utilizados para cobrança de tributos que se caracterizam como sanções políticas, a saber o posicionamento de Elias (2006, p. 10): Exemplos não faltam: proibição de emissão de notas fiscais, proibição de acesso a certidões negativas, vedação à distribuição de lucros a pessoas jurídicas com débito “não garantido” perante o fisco, negativização do nome dos contribuintes através do protesto de certidões de dívida ativa, inscrições em órgãos de restrição ao crédito, etc. Em um parecer elaborado acerca das sanções políticas, Machado (1998, p. 150) afirma: São exemplos mais comuns de sanções políticas a apreensão de mercadorias sem que a presença física destas seja necessária para a comprovação do que o fisco aponta como ilícito; o denominado regime especial de fiscalização; a recusa de autorização para imprimir notas fiscais; a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes; a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte; a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre muitos outros. (…) É uma prática reiterada, que a cada dia ganha novas formas e se faz mais intensa, não obstante seja flagra ntemente inconstitucional (…). Ademais, deve-se observar que as sanções previstas para o descumprimento das normas não guardam compatibilidade com o sistema constitucional tributário, notadamente com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Há preocupação em limitar a atuação estatal às diretrizes constitucionais, uma vez que estas restrições de direito são conflitantes com o sistema tributário constitucional. O princípio da proporcionalidade se fundamenta em três aspectos: adequação, necessidade e proporcionalidade (em sentido estrito). Segundo Guerra (2000) “pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado; exigível, por alcançar o menor prejuízo possível, e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superará as desvantagens”. Sobre este assunto escreve Machado (2008): No âmbito do Direito positivo não há dúvidas de que a obediência ao princípio da proporcionalidade é condição de validade dos atos do Estado. Tal entendimento já está consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim,

287

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


os atos de repressão aos ilícitos, mesmo quando praticados em atenção a outros princípios constitucionais, devem respeitar o princípio da proporcionalidade. Sobre este assunto um de nós já escreveu: isso significa que um ato – normativo ou não – praticado com o propósito de prestigiar um princípio constitucional, será válido na medida em que, além de atender a outras exigências, for adequado, necessário e proporcional em sentido estrito no atendimento dessa finalidade. Explicamos. Será adequado o ato que, de fato, conduzir à finalidade anunciada. Será necessário o ato que, além de adequado, for também a maneira menos gravosa de se chegar à finalidade buscada. Caso outros meios também adequados, e menos gravosos, o ato de cuja validade se cogita será desproporcional por desnecessidade. Finalmente, será proporcional em sentido estrito o ato que, além de adequado e necessário, realizar a mais equilibrada ponderação dos valores envolvidos, prestigiando, ou fazendo com que prepondere, aquele que, em prevalecendo, causar menores diminuições na efetividade dos demais. Assim, verifica-se que as sanções políticas vão de encontro ao princípio da proporcionalidade no tocante à exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, tendo em vista que segundo Moraes (2001) as sanções “impostas antes da cobrança de tributos e para o fim de compelir seu pagamento constituem, à evidência, medidas mais lesivas do que os meios administrativos e judiciais de cobrança dos débitos tributários”. Outrossim, acerca da desproporcionalidade e não-razoabilidade na utilização de sanções políticas, Baleeiro (2005, p. 987) discorre: as sanções políticas constituem apenas abuso e arbítrio, ofensa a impessoalidade e à moralidade administrativa. Verdadeiro excesso na exação, uma vez que muitas dessas medidas trazem prejuízos muito maiores aos contribuintes do que o próprio tributo exigido (devida ou indevidamente). Ainda que as sanções políticas proporcionem a arrecadação fazendária, é inconteste o fato de que existem outros meios de atingir essa finalidade que são muito menos ofensivos aos direitos e garantias fundamentais do contribuinte, sem violar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. 4.1 O USO DA SANÇÃO POLÍTICA COMO INSTRUMENTO DE COAÇÃO AO ADIMPLEMENTO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO De acordo com Filho (2014) poder de polícia é “a prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”. O poder de polícia se apresenta em dois aspectos, amplo e estrito, conforme explica Mello (2010, p. 822): A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos designa-se “poder de polícia”. A expressão, tomada neste sentido amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos. A expressão “poder de policia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e especificas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de pre-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

venir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde a noção de polícia administrativa. As sanções políticas são formas de exercício de poder de polícia que beneficiam a arrecadação tributária. Contudo, a Administração Fazendária, para arrecadar, deve seguir o procedimento vinculado em lei para tanto: o lançamento. Não cabe, portanto, ao Estado ignorar o procedimento legal e valer- se de medidas que afetam de modo negativo os direitos individuais dos contribuintes para atingirem a arrecadação. Outrossim, a utilização das sanções políticas como meio oblíquo de coagir o contribuinte ao pagamento dos débitos tributários, caracteriza um excesso na aplicação do poder de polícia pelo Estado, o que constitui flagrante violação aos princípios do contraditório e ampla defesa do contribuinte, conforme leciona Machado (2004, p. 93-95): (…) uma vez efetuado o lançamento, e documentada a prática de eventuais infrações, as mercadorias ou os livros não podem continuar apreendidos, com a sua liberação condicionada ao pagamento de tributos ou penalidades, de forma a coagir o sujeito passivo ao pagamento do crédito tributário. Não obstante, é bastante comum, especialmente no âmbito dos Estados-membros, que as mercadorias apreendidas permaneçam em poder da autoridade fiscal mesmo depois de efetuado o lançamento. E isso ocorre precisamente para forçar o contribuinte a pagar imediatamente os valores lançados, sem questionamentos, na medida em que os mesmos diplomas legais ou infralegais que determinam a apreensão condicionam a liberação correspondente ao pagamento imediato, ao depósito ou a pretensão de garantias referentes ao valor do crédito tributário que o fisco entende devido. Em alguns Estados, chega-se ao cúmulo de determinar a apreensão de mercadorias ou bens, inclusive do equipamento de emissão de cupom fiscal, de contribuintes “habitualmente inadimplentes”, o que é simplesmente absurdo. Trata-se de brutalidade irracional mesmo se considerada sobre um ótica extremada de que “os fins justificam os meios”, na medida em que, sem suas mercadorias, e sem os bens necessários ao exercício regular de sua atividade econômica (equipamento de emissão de cupom fiscal), o contribuinte sequer terá condições de pagar o que deve. Tais medidas são da mais flagrante inconstitucionalidade. Os bens do sujeito passivo não podem ser confiscados como forma de execução indireta, pois isso implica grave cerceamento de seu direito de defesa. O sujeito passivo é colocado em uma situação na qual paga o crédito tributário da maneira como este foi lançado pela autoridade, sem nada questionar, ou se vê privado dos bens de que necessita para dar continuidade às suas atividades profissionais. A apreensão, nesses moldes, desrespeita a propriedade, da qual o cidadão somente será privado mediante justa indenização. Estiola também as liberdades profissional e econômica, consagradas nos arts.5º, XIII, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, na medida em que o contribuinte tem a continuação de suas atividades previamente condicionada ao pagamento de tributos. Mais claro e patente, porém, é o desrespeito ao devido processo legal, do qual o contraditório e a ampla defesa são desdobramentos. A apreensão descabida põe o contribuinte na condição de escolher o exercício de seu direito de defesa em face de uma exigência fiscal que considera indevida ou a liberação de mercadorias ou bens indispensáveis às suas ativi-

288

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


dades econômicas mediante o pronto pagamento de tudo que lhe é exigido, sem questionamentos. Há malferimento grave, ainda, à proporcionalidade. O meio mais adequado e menos gravosos para a cobrança de tributos é aquele que, se por um lado assegura o fisco o recebimento do que lhe é de direito, por outro garante ao contribuinte o controle da legalidade da exigência que lhe é feita. Concilia-se com isso o direito do Estado ao recebimento de tributos com o direito do contribuinte a que o valor exigido não ultrapasse os limites fixados em lei. Com a cobrança feita através da apreensão de mercadorias, expediente oblíquo, verdadeira execução indireta administrativa, a Fazenda leva às últimas consequências o seu direito ao recebimento do tributo que entende devido, com o completo desprezo ao direito do contribuinte ao devido processo legal, à ampla defesa e aos demais princípios apontados nos parágrafos acima. Para que haja o uso correto e eficiente do poder de policia faz-se necessária a observância da proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal atingida, de forma a respeitar as garantias constitucionais do contribuinte. 5 O TRATAMENTO DAS SANÇÕES POLÍTICAS EM DIREITO TRIBUTÁRIO NA VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Após inúmeras provocações para decidir questões acerca da imposição de sanções políticas como forma ilegal de coerção ao contribuinte para pagamento de impostos, os tribunais superiores há muito se manifestaram a respeito, com posicionamentos favoráveis ao contribuinte consagrados nos seguintes enunciados de súmula da jurisprudência do STF. Súmula nº 70: “É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”. Esta súmula tem como precedente o RMS nº 9.698/GB, que levantou a discussão sobre a possibilidade de interdição de estabelecimento comercial como meio coercitivo para compelir o contribuinte recorrente a pagar débito que entende estar erroneamente quantificado, relativamente ao imposto de vendas e consignações incidentes sobre a atividade de construção civil. O ministro relator Henrique D’Ávila votou nos seguintes termos, sendo acompanhado pelos demais: Ora, a Prefeitura do antigo Distrito Federal – hoje do Estado da Guanabara – dispõe de meio regular e adequado para a cobrança de dívida, que é o executivo fiscal. O que não é lícito, por constituir procedimento contrário à lei e ao estado de direito em que vivemos, é a drástica: interdição das atividades do impetrante. Assim, dou provimento ao recurso, para livrar a impetrante da ameaça ilegal que pesa sobre o funcionamento normal de suas atividades técnico - comerciais. O julgamento contou ainda com a seguinte ementa que retrata exatamente o sentido da Súmula nº 70, do STF: Não é lícito ao fisco interditar estabelecimentos comerciais com o propósito de os compelir ao pagamento de impostos ou multas. os contribuintes têm o direito de impugnar a legitimidade dos débitos fiscais, quando convocados, pelos meios regulares, a satisfazê-los. recurso de mandado de segurança. seu provimento. Julgamento em 11/7/1962. E este foi apenas o primeiro enunciado de súmula da jurisprudência do STF, posteriormente, vieram outras súmulas que têm como

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

tema central as sanções políticas. Súmula nº 323: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. Esta súmula tem como precedente o RE nº 39.933, no qual se discute a constitucionalidade do art. 75 do Código Tributário Municipal de Major Isidoro (anterior à Constituição de 1988), que cria hipótese de incidência de taxa de melhoramentos, bem como a possibilidade, então cominada, de apreensão de mercadorias ou bens para arrecadar dívidas fiscais. Nos termos do voto do ministro relator. Ary Franco: “No que diz respeito à apreensão de mercadoria, como forma de cobrança de dívida fiscal, é manifesta a ilegalidade de ato da corrente. Não lhe cabe, na espécie, fazer justiça de mão própria se a lei estabelece a ação executiva fiscal, para a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública em geral”. Dessa forma, a referida súmula veio para pacificar o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca das medidas não razoáveis utilizadas pela Administração Fazendária para coagir o contribuinte ao pagamento de tributos. Súmula nº 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito, adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais. ”. Tal súmula tem como precedentes os julgados acerca da constitucionalidade dos decretos-lei nº 5/37, 42/37 e 3.336/41, pelos quais seria defeso ao contribuinte em débito com a Fazenda Nacional operar nas repartições fiscais federais na compra de estampilhas dos impostos de consumo e vendas mercantis e selos; despachar mercadorias nas mesas de rendas ou alfândegas e sequer transigir, por qualquer outra forma, com a Fazenda Pública. Assim, de acordo com o entendimento do então ministro do STF, Aliomar Baleeiro, no RE nº 64.054/SP, com fulcro em decisões anteriores no mesmo sentido proferidas pelo também então ministro do STF Gonçalves de Oliveira, ao relatar os acórdãos referentes aos REs nº 60.653 e 60.047, tal dispositivo compelia o contribuinte ao regime do solve et repete (pague e depois reclame), que não pode ser tido como obstáculo a outros sistemas que não guardam relação com o crédito tributário em discussão, vez que para isso a Fazenda Pública possui meio próprio de Execução Fiscal para cobrança de débitos tributários. O Recurso Extraordinário nº 60.664/RJ, o qual foi julgado pelo ministro relator Gonçalves de Oliveira, corrobora com os entendimentos anteriormente demonstrados e compõe os precedentes que geraram a necessidade de se aprovar a Súmula nº 547. Diante disso, resta indubitável que no âmbito do STF, a questão está assentada: “o Fisco não pode tomar medidas administrativas que impeçam a atividade econômica de seus contribuintes com o fito de exigir o cumprimento de obrigações tributárias”. O Superior Tribunal de Justiça segue a mesma linha de julgamento do Supremo Tribunal Federal, conforme a Súmula nº 127 que dispõe sobre a ilegalidade em condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado. Em que pese o entendimento sedimentado do STF acerca da aplicabilidade das sanções políticas, a Administração Fazendária insiste a utilização dessas vias inadequadas de cobrança de tributos. Em recente julgado se pronunciou o STF: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. SANÇÃO POLÍTICA COMO MEIO COERCITIVO PARA PAGAMENTO DE TRIBUTOS. INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES. 1. Nos termos da jurisprudência da Corte, é inconstitucional a sanção política visando ao recolhimento de tributo, tal como ocorre com o ato de condicionar a expedição de notas fiscais à prestação de fiança, garantia

289

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


real ou fidejussória por parte do contribuinte. Matéria decidida no RE 565.048, Rel. Min. Marco Aurélio. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 623739 AgR, Relator: Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 04/08/2015, acórdão eletrônico Dje – 167; divulgado 25-08- 2015 publicado 26-08-2015) Assim, verifica-se que a utilização de sanções políticas pela Administração Fazendária tem sido rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal que reconhece a inconstitucionalidade dessas medidas. 6 CONCLUSÃO A Administração Pública Fazendária lança mão das sanções políticas visando unicamente a arrecadação de tributos, em detrimento de garantias e princípios constitucionais do contribuinte, mostrandose, assim, irrazoáveis e desproporcionais. Como meio coercitivo para forçar o contribuinte a realizar o pagamento de tributos, que vez ou outra sequer são devidos, o fisco utiliza de meios oblíquos, não previstos legalmente, os quais impossibilitam o contribuinte de continuar com sua atividade econômica lícita e protegida constitucionalmente, tais como apreensão de mercadorias ou bens necessários ao devido funcionamento da atividade praticada pelo contribuinte. Ademais, cumpre ressaltar que os procedimentos administrativos de cobrança de tributos são levados a cabo unilateralmente pela Administração, sem a participação do contribuinte, o que corrobora o fato de que a utilização dessas medidas viola o devido processo legal e, consequentemente, o contraditório e ampla defesa, em flagrante cerceamento de defesa do contribuinte, tendo como subterfúgio a supremacia do interesse público. A relação de supremacia do Estado em relação aos contribuintes é necessária, ocorre que a Administração Pública não pode se beneficiar desta situação para restringir as liberdades públicas em situações que a própria Constituição Federal não autoriza. Assim, sempre que as restrições impostas ao contribuinte não obedecerem os princípios da proporcionalidade e razoabilidade previstos constitucionalmente, estaremos lidando com sanções políticas no âmbito do direito tributário, o que é inaceitável e descabido à luz do Estado Democrático de Direito, cabendo ao Judiciário, em última instância, realizar esse controle.

MACHADO, Hugo de Brito. Sanções políticas no Direito Tributário. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 30, p. 46, 1998. MACHADO, Hugo de Brito. Sanções políticas no Direito Tributário. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 30, p. 48, 1998. MACHADO, Hugo de Brito. Sanções Políticas como Meio Coercitivo na Cobrança de Tributo. Incompatibilidade com as Garantias Constitucionais do Contribuinte. In: Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 150, p.88, 2008. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo tributário. São Paulo: Atlas, p. 93-95, 2004. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. p. 65-66. São Paulo: Malheiros Editores. 2010. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª edição. p. 822. São Paulo: Malheiros Editores. 2010. MORAES, Germana de Oliveira. As sanções Políticas em Direito Tributário e o Princípio da Proporcionalidade. In: Revista de Direito Tributário, p. 236, São Paulo, Malheiros, n. 82, 2001. RÔLA, José Alberto. Direitos fundamentais e certidões Negativas, p.473. In: MACHADO, Hugo de Brito (org.). Certidões Negativas e Direitos Fundamentais do Contribuinte. São Paulo: Dialética, 2007.

Notas de fim Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

1

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

REFERÊNCIAS BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. p. 987. Rio de Janeiro: Forense, 2005. ELIAS, Eduardo Arrieiro. A liberdade como prerrogativa fundamental dos contribuintes e as limitações ao poder de polícia fiscal. In: Revista Bonijuris, ano XVIII, n. 513, p. 10, 2006. FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 27ª edição. p. 77. São Paulo: Atlas. 2014. FONTENELE, Alysson Maia. As Sanções políticas no direito tributário e os direitos fundamentais do contribuinte. In: Coleção Jornada de Estudos ESMAF, Distrito Federal, v. 1, P.50-1, 2009. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. p. 845. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2000. HARADA, Kyoshi. Sanções Políticas como Meio Coercitivo Indireto de Cobrança do Crédito Tributário. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/39530>. Acesso em: 02.10.2015. LOPES, Bráulio Lisboa. Aspectos Tributários da Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latim do Brasil, p. 145-146, 2008.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

290

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS REFERENTES À OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA Victor Gustavo Marques Torres* Núbia Elizabeth de Paula** RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a inconstitucionalidade do Regime Diferenciado de Contratações. Analisando suas consequências a sociedade tanto na esfera cultural, como no âmbito do direito, comparando o RDC com a Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), a qual, aquele veio substituir, mostrando que apesar de muitos avanços, há também pontos negativos que precisam ser sanados. ABSTRACT: This article aims to analyze the unconstitutionality of the Differentiated Contracting Regime. Analyzing its consequences to society both in the cultural sphere, as scope of the law, comparing the DRC with Law 8,666 / 93 (Public Procurement Law), which, he replaced, showing that despite many advances, there are also negative points need fixing. PALAVRAS-CHAVE: processo licitatório, RDC, contratações públicas, Administração Pública, obras e serviços de engenharia. KEYWORDS: bidding process, DRC, government procurement, public administration, construction and engineering services . SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Instituto das Licitações; 2.1 Princípios; 2.2 Formas de contratação de bens e serviços de engenharia; 2.3 Elementos indispensáveis nos editais de contratação de bens e serviços de engenharia; 2.4 Controle da Administração Pública nas obras e serviços de engenharia; 3 Regime Diferenciado de Contratações Públicas; 3.1 O Regime Diferenciado de Contratação e o seu âmbito de aplicação; 3.2 Comparação entre o RDC e a Lei de Licitações; 3.3 Da (In)constitucionalidade do RDC; 3.4 O Controle da Administração no RDC; 4 Conclusão; Referencias.

1 - INTRODUÇÃO No ano de 1993 foi promulgada a Lei 8.666/93, chamada de Lei de Licitações, criada para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme presente no caput do artigo 1º da referida Lei. Entretanto, com o passar do tempo, a Lei de Licitações ficou obsoleta, pois não conseguia mais cumprir com a sua finalidade, em razão do planejamento e da gestão deficientes, pela quantidade de recursos, dos prazos dilatados para licitações, dos grandes índices de corrupção que acompanham o processo licitatório, dentre outras características que o tornam o processo ultrapassado. Necessitando, o País, de atender às demandas, sendo elas as obras de grande infraestrutura decorrentes de eventos esportivos (Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016), foi promulgada a Lei 12.462/11, conhecida como Regime Diferenciado de Contratações Públicas. No entanto, apesar de possuir objetivos específicos, o RDC vem sendo estendido para contratações de outras atividades, tais como na contratação de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e no âmbito do Sistema Único de Saúde– SUS. Sendo assim, é fundamental que seja estudada a forma que o RDC vem sendo aplicado em obras e serviços de engenharia, haja visto que o tema gera automaticamente repercussão na sociedade, bem como no ordenamento jurídico. Utilizarei de pesquisas na legislação referente às Licitações (decisões, leis, decretos), além de doutrinas sobre o tema em questão. 2 – INSTITUTO DAS LICITAÇÕES Diferentemente de particulares, que possuem liberdade para alienar, adquirir, contratar execução de obras ou serviços, ou locar LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

bens, a Administração Pública, para fazê-lo, é necessário que seja adotado, preliminarmente, um rigoroso procedimento, preestabelecido em lei, denominado de licitação pública. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 534), licitação pode ser conceituada como: O procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras ou serviços, outorgar concessões, permissões de obras, serviços ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. Assim observa-se imposição feita pela Constituição, em seu art. 37, inciso XXI: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Hely Lopes Meirelles (1995, p.247) ao definir licitação, definiu como um procedimento composto por uma sucessão ordenada de atos vinculantes para a Administração e para os licitantes: Licitação é o procedimento administrativ o mediante o qual

291

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculante para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos. Assim como Hely Lopes Meirelles, o renomado doutrinador Marçal Justen Filho (2001, p.40) definiu licitação como um procedimento administrativo, sob a égide do direito público: “Licitação” significa um procedimento administrativo formal, realizado sob o regime do direito público, prévio a uma contratação, pelo qual a Administração seleciona com quem contratar e define as condições de direito de fato que regularão essa relação jurídica futura. O artigo supracitado junto com as doutrinas também citadas, mostra que a regra é de que antes de celebrar um contrato para alienação ou aquisição de um serviço ou bem, é necessário que o Poder Público realize um procedimento administrativo vinculado e formal para selecionar a melhor proposta dentre os interessados que cumprirem todos os requisitos e condições definidos em ato próprio (convite ou edital). Uma vez que a licitação pressupões concorrência entre ofertantes, serão licitáveis apenas os objetos ou serviços que possam ser fornecidos por mais de uma pessoa. Sendo assim haverá hipóteses de dispensa (dispensável e dispensada) e de inexigibilidade de licitação. Essas hipóteses são tratadas pela Lei 8.666/93, norma geral das licitações públicas. A licitação será considerada inexigível quando a concorrência (competição) for completamente inviável; estes casos estão previstos no art. 25 da Lei 8.666/93. Será dispensada, quando a lei vedar a realização do procedimento licitatório, não havendo margem de discricionariedade ao administrador, não devendo realizar a licitação, prevista no art. 17 da Lei 8.666/93. A licitação será dispensável, quando a concorrência é completamente viável, mas lei dá a possibilidade ao administrador, utilizando-se de seu critério de conveniência e oportunidade (discricionariedade), de dispensar a realização da licitação, os casos qualificados pela lei como de licitação dispensável estão previstos no art. 24 da Lei 8.666/93, sendo um exemplo, casos de emergência ou calamidade, quando urgente o atendimento de situação que possa causar prejuízo ou comprometimento à segurança de pessoas, obras, serviços ou bens (art. 24, inciso IV, Lei 8.666/93). 2.1 – PRINCÍPIOS A Constituição brasileira traz em seu artigo 37 alguns princípios norteadores da Administração Pública, também usados na licitação, sendo eles os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Conforme dispõe abaixo: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O princípio da legalidade traduz a limitação da Administração Pública em fazer somente o que estiver expresso em lei. O art. 4º da Lei 8.666/93 traz uma explicitação concreta desse princípio, assim dispõe: Art. 4. Todos quantos participem de licitação promovida pelos órgãos ou entidades a que se refere o art. 1º têm direito público subjetivo à fiel observância do pertinente procedimento estabelecido nesta lei, podendo qualquer cidadão acompa-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

nhar o seu desenvolvimento, desde que não interfira de modo a perturbar ou impedir a realização dos trabalhos. Parágrafo único. O procedimento licitatório previsto nesta leicaracteriza ato administrativo formal, seja ele praticado em qualquer esfera da Administração Pública. Segundo o princípio da impessoalidade, os privilégios para os licitantes são inadmissíveis, devendo todos receberem tratamento igualitário. Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p.542) diz que tal princípio é uma forma de designar o princípio da igualdade de todos perante a Administração. O princípio da moralidade determina que os atos praticados pela Administração Pública, devem ser honestos, em harmonia com a moral e os bons costumes. Em sua obra, Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p.548) conceitua este princípio da seguinte forma: “O princípio da moralidade significa que o procedimento licitatório terá de se desenrolar na conformidade de padrões éticos prezáveis, o que impõe, para Administração e licitantes, um comportamento escorreito, liso, honesto, de parte a parte”. O princípio da publicidade é o princípio, pelo qual a Administração torna pública a licitação, com o objetivo de que suas normas e critérios sejam conhecidos por todos envolvidos no processo. Ao conceituar este princípio, Hely Lopes Meirelles (1995, p.248) diz que: A publicidade dos atos da licitação é o princípio que abrange desde os avisos de sua abertura até o conhecimento do edital e seus anexos, o exame da documentação e das propostas pelos interessados e o fornecimento de certidões de quaisquer peças, pareceres ou decisões com ela relacionadas. É em razão desse princípio que se impõem a abertura dos envelopes da documentação e proposta em público e a publicação oficial das decisões dos órgãos julgadores e do respectivo contrato, ainda que resumidamente. O último princípio previsto no art. 37 da Constituição é o princípio da eficiência, este determina uma forma de atuação aos agentes públicos, sem exceção, devendo estes, atuarem com presteza e dedicação, com o objetivo de buscar bons resultados para atender a sociedade. Além dos já mencionados, a lei 8.666/93, em seu art. 3º1, traz princípios específicos à licitação que também devem ser seguidos pela Administração Pública. O primeiro deles é o princípio do desenvolvimento nacional e sustentável, que tem como principal objetivo o de promover o crescimento da economia brasileira, utilizando-se do incentivo à aquisição de serviços e produtos produzidos no país ou cuja tecnologia foi desenvolvida no Brasil. Vinculação ao instrumento convocatório é o princípio, que, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p.548), obriga a Administração a respeitar estritamente as regras que ela, previamente, estabeleceu para disciplinar o certame. Este princípio está consignado no art. 41 da Lei 8.666/93. O princípio do julgamento objetivo que tem como característica obstar a subjetividade, é delineado por Hely Lopes Meirelles (1995, p.250) com a função de: “Afastar o discricionarismo na escolha das propostas, obrigando os julgadores a atentarem-se ao critério préfixado pela Administração, com o quê se reduz e se delimita a margem de valoração subjetiva, sempre presente em qualquer julgamento”. O princípio da probidade administrativa traz consigo um dever de todo administrador público, é conceituado por Hely Lopes Meirelles (1995, p.250), como um mandamento constitucional, que pode conduzir a “suspenção dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo da ação

292

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


penal cabível” (art. 37, §4º da CF/88). Finalmente, o princípio da isonomia, sendo este, semelhante ao princípio da impessoalidade, promove um procedimento licitatório capaz de assegurar a todos os licitantes igualdade de condições, sem o estabelecimento de exigências infundadas ou que restrinjam a concorrência. 2.2 – FORMAS DE CONTRATAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA Para definir qual a modalidade de licitação que será utilizada, é necessário que se saiba qual o objeto da licitação, pois este influenciará a modalidade nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. licitatória a ser escolhida. O objeto da licitação pode ser definido como um serviço, uma compra, uma alienação, uma obra, uma concessão, uma permissão ou mesmo uma locação. Entretanto, para o presente trabalho, nos limitaremos às obras e serviços de engenharia. No artigo 6º da Lei 8.666/93, em seu inciso I, conceitua “obra” como toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta. Além de “obra”, também determina um conceito para “serviço”: “toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração”, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, dentre outros. Segundo Marçal Justen Filho, para diferenciar obras e serviços de engenharia é necessário enxergar a dimensão da atividade pretendida na licitação. Será considerado serviço quando a atividade não se traduzir em modificações significativas, autônomas e permanentes, caso for significativa, autônoma e permanente, será considerada obra. Para Hely Lopes Meirelles (1999, p.48), o que distingue obras de serviços de engenharia é a predominância da mão-de-obra utilizada, assim dispõe: O que caracteriza a construção como obra e a distingue do serviço é o emprego predominante do material sobre o trabalho (mão de‐obra). Em toda construção entram serviços, mas estes são absorvidos pela conjugação dos materiais que compõem a obra final (...) Na distinção entre obra e serviço, além da predominância do material (na obra) sobre a atividade operativa (serviço), deve ser salientado que a obra é limitada no tempo e o serviço tem caráter de continuidade. Após determinado o objeto da licitação é necessário escolher qual a modalidade licitatória que deverá ser usada. Atualmente há uma dúvida sobre qual a modalidade será escolhida para reger a Licitação pretendida, considerando que há as figuras previstas no art. 22 da Lei 8.666/93 e o pregão eletrônico, previsto na Lei 10.520/02 e regulado pelo Decreto 5.450/05. O art. 1º da Lei 10.5202 juntamente com o art. 4º do Decreto 5.450/053 determinam o uso da modalidade “pregão” para as contratações de bens e serviços comuns. Segundo jurisprudência do Tribunal de Contas da União, o que poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que definirá a modalidade licitatória dos bens ou serviços de engenharia será como o objeto pretendido na licitação será classificado, seja como “obra de engenharia” ou “serviço comum de engenharia”. Caso o objeto a ser contratado for um “serviço comum de engenharia”, será escolhida a modalidade

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

“pregão”, no entanto, se for uma “obra de engenharia”, será usado as modalidades previstas no art. 22 da Lei 8.666/93, presente nos incisos I a III (concorrência, tomada de preços e convite). Algumas decisões do Tribunal de Contas nesse sentido: 5. A utilização de pregão para a contratação de obras de engenharia afronta o disposto no art. 1º e em seu parágrafo único da Lei 10.520/2002 Auditoria no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE e no Município de Santo Antônio do Descoberto/GO apontou indícios de irregularidades no procedimento licitatório que tem por objeto a contratação das obras de construção de quadra esportiva coberta com palco na Escola Caminho da Luz, nessa localidade. Entre os supostos vícios, destaque-se a utilização da modalidade pregão, na sua forma eletrônica, para a realização da obra. Anotou a equipe de auditoria que, por se tratar de obra de engenharia, a modalidade pregão não poderia ter sido utilizada, tendo em vista o disposto no art. 1º e em seu parágrafo único da Lei 10.520/2002. Lembrou que o Tribunal já se manifestou sobre “a vedação de contratar obras e a permissão de contratar serviços comuns de engenharia mediante pregão”. Mencionou, ainda, voto condutor de deliberação do Tribunal que conceituou tais serviços: atividades em que o “emprego de mão - de-obra e equipamentos prepondera sobre a aplicação técnica” (Acórdão 2079/2007 – Plenário). Reproduziu, em seguida, o disposto na Súmula 257/2010 do TCU: “O uso do pregão nas contratações de serviços comuns de engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002”. Acrescentou que objeto sob exame merece ser classificado como obra de engenharia, e não como serviço de engenharia, “visto que se trata de ação de construir uma quadra esportiva com estrutura de concreto armado e cobertura em estrutura metálica...”. Ressaltou, porém, o fato de já haver sido celebrado o respectivo contrato. O relator, por sua vez, ante “a baixa materialidade do contrato (R$ 453,4 mil)”, a falta de complexidade desse objeto e “a ausência de indícios de prejuízo aos licitantes”, considerou, em linha de consonância com a unidade técnica, suficiente adotar medida visando evitar a reincidência de vício dessa natureza. O Tribunal, então, decidiu dar ciência à Prefeitura Municipal de Santo Antônio do Descoberto/GO e ao FNDE sobre a: “9.1.2. utilização da modalidade licitatória denominada pregão, seja presencial ou eletrônico, para a contratação de obras de engenharia, em dissonância com os ditames estabelecidos pela Lei 10.520/2002 (art. 1º e seu parágrafo único)”. Precedente mencionado: Acórdão 2079/2007 – Plenário. (Acórdão n.º 2312/2012-Plenário, TC-007.643/2012-8, rel. Min. José Jorge, 29.8.2012 – grifou-se) 5. É descabido o uso do pregão para trabalho eminentemente intelectivo e complexo Na mesma auditoria em que foi avaliado processo de licitação realizado pelo Estado do Mato Grosso para a construção do novo hospital da Universidade Federal do Mato Grosso – (UFMT), em Cuiabá/MT, o TCU anotou a ocorrência do uso do pregão, para contratação dos projetos executivos, o que seria, para o relator, clara irregularidade, a qual afrontaria disposição legal e jurisprudência pacífica do Tribunal, no sentido de que a Lei 10.520/2002 admitiria a realização de pregão para a contratação de serviços de engenharia desde que comuns, ou seja, somente se possuírem padrões de desempenho e

293

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


qualidade que possam ser objetivamente definidos no edital, por meio de especificações usuais no mercado. Na espécie, então, isso não seria possível, já que, a elaboração de projeto executivo para empreendimento da complexidade de um hospital com mais de 200 leitos não poderia ser classificada como serviço comum, ainda consoante o relator, o qual registrou que isto seria “trabalho eminentemente intelectivo e complexo, que não se coaduna com a modalidade licitatória utilizada”. Entretanto, apesar da afronta legal, o relator registrou que os contratos decorrentes do pregão estariam encerrados, não havendo sido indicadas falhas de maior gravidade nos projetos contratados. Diante de tais atenuantes, a relatora houve por bem apenas encaminhar alerta a respeito desta e de outras irregularidades observadas, de modo a evitar que venham a se repetir em futuras licitações a serem realizadas pelo Governo do Estado do Mato Grosso, sem prejuízo de que as obras do novo hospital fossem acompanhadas pelo Tribunal, em face da materialidade e da relevância do empreendimento, o que contou com a anuência do Plenário. (Acórdão n.º 2760/2012-Plenário, TC-014.017/2012-1, rel. Min. Ana Arraes, 10.10.2012 – grifou-se). No entanto existe casos, nos quais as licitações referentes as obras e serviços de engenharia serão dispensados, esses casos estão presentes no art. 24, I e § único do mesmo artigo, da Lei 8.666/93, assim dispõe: Art. 24. É dispensável a licitação: I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea “a”, do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente; (...) § 1º. Os percentuais referidos nos incisos I e II do caput deste artigo serão 20% (vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por consórcios públicos, sociedade de economia mista, empresa pública e por autarquia ou fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas. Segundo o Hely Lopes Meirelles (2007, p.113), as obras e serviços de engenharia de pequeno valor, em razão de seu valor reduzido, não comportariam exigências formais e morosas de um procedimento licitatório: A lei equipara obras e serviços de engenharia, para facultar a dispensa de licitação quando o valor do contrato não for superior a 10% do limite previsto para o convite (art. 24, I). Justificase a dispensa por abranger trabalhos singelos, de reduzido custo, que não comportariam as exigências formais e delongas de um procedimento licitatório. Passado a forma de contratação de bens e serviços de engenharia, começará o processo licitatório com suas fases e elementos indispensáveis, que serão tratados no tópico a seguir. 2.3 – ELEMENTOS INDISPENSÁVEIS NOS EDITAIS DE CONTRATAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS O procedimento licitatório, que deverá ser seguido estritamente, conforme dispõe no caput do art. 41 da Lei 8.666/934, divide-se, necessariamente em três fases: a fase interna, a fase externa e a gestão dos contratos administrativos.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

A primeira fase, chamada de interna, é a fase do planejamento da licitação, na qual, são praticados atos necessários e anteriores à licitação. Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p.586) define essa etapa como: “Aquela em que a promotora do certame, em seu recesso, pratica todos os atos condicionais à sua abertura; antes, pois, de implementar a convocação dos interessados”. A segunda fase, a externa, é considerada por muitos como a fase da habilitação e julgamento de propostas, Marçal Justen Filho (2001, p.383) determina essa fase como: Na fase externa, realizam-se os atos destinados diretamente a selecionar contratante e proposta mais vantajosa. (...) Durante a fase dita ‘externa’, poderão existir atos praticados internamente, no seio da Administração. Assim, por exemplo, o exame das propostas, a efetivação de diligências, o exame da conveniência e da legalidade dos atos praticados. E a última fase é a gestão dos contratos, fase a qual ocorrerá a celebração do contrato da Administração Pública com o particular, juntamente com o gerenciamento do contrato. Para dar início à licitação é necessário a exteriorização das especificações do bem, serviço ou insumos a ser contratado ou adquirido, além da exibição das exigências mínimas para a satisfação da necessidade pública, que se dá com o edital. José dos Santos Carvalho Filho (2012, p.278) conceitua o edital como “ato pelo qual a Administração divulga as regras a serem aplicadas em determinado procedimento de licitação ”. Em razão de sua importância e por considerar o edital como um documento fundamental da licitação, Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p.595), enumerou seis funções desempenhadas pelo edital, sendo elas: a de dar publicidade à licitação; de identificar o objeto licitado e delimitar o universo das propostas; circunscrever o universo de proponentes; estabelecer os critérios para análise e avaliação dos proponentes e propostas; regular atos e termos processuais do procedimento; e por último a função de fixar as cláusulas do futuro contrato. Apesar do edital determinar as condições em que se efetivará a licitação, para a criação do edital, são necessários alguns elementos, considerados indispensáveis nos editais de contratação de bens e serviços. Estes elementos estão presentes no art. 40 da Lei da 8.666/93, e Helly Lopes Meirelles (2007, p.133) enumerou esses elementos em dez itens, chamados por ele de “decálogo”, sendo eles: condições para participar da licitação; objeto da licitação; prazo e condições; garantias; condições de pagamento e reajustamento de preços recebimento do objeto da licitação; critério de julgamento; recursos admissíveis; informações sobre a licitação; e outras indicações. Além desses elementos, existem também os elementos do projeto básico e do projeto executivo que são imprescindíveis nas licitações referentes à execução de obras e prestação de serviços conforme dispõe o art. 7º da Lei 8.666/93. A Lei de Licitações também tratou de conceituar o que seria projeto básico e o que seria projeto executivo em seu 6º artigo como um conjunto de elementos necessários e suficientes. Nos incisos IX e X do mesmo artigo, a lei define estes projetos como: Art. 6. Para fins desta Lei, considera-se: IX – Projeto Básico – conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a defi-

294

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


nição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos: a) desenvolvimento da solução escolhida de forma a fornecer visão global da obra e identificar todos os seus elementos constitutivos com clareza; b) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de forma a minimizar a necessidade de reformulação ou de variantes durante as fases de elaboração do projeto executivo e de realização das obras e montagem; c) identificação dos tipos de serviços a executar e de materiais e equipamentos a incorporar à obra, bem como suas especificações que assegurem os melhores resultados para o empreendimento, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução; d) informações que possibilitem o estudo e a dedução de métodos construtivos, instalações provisórias e condições organizacionais para a obra, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução; e) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra, compreendendo a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas de fiscalização e outros dados necessários em cada caso; f) orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados; (...) X – Projeto Executivo – o conjunto dos elementos necessários e suficientes à execução completa da obra, de acordo com as normas pertinentes da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT; Esses dois projetos são de extrema importância para o planejamento das obras públicas, devendo o projeto básico ser elaborado anteriormente à licitação e com a devida aprovação por autoridade competente, conforme art. 7º, §2º, I da Lei 8.666/935. Segundo Marçal Justen Filho (2004, p.111): Nenhuma licitação para obras e serviços pode fazer-se sem projeto básico (ou equivalente, quando o objeto não envolver atividade de engenharia). Mas é insuficiente a mera elaboração do projeto básico. Faz-se necessária sua aprovação, por ato formal e motivado da autoridade competente, a qual deverá avaliá-lo e verificar sua adequação às exigências legais e ao interesse público. A autoridade, ao aprovar o projeto, responsabiliza-se pelo juízo de legalidade e de conveniência adotado. Será competente para aprovar o projeto básico a autoridade competente para determinar a contratação da obra ou do serviço a que tal projeto se refere. Nos termos da Lei 8.666/93, em seu art. 7º, o projeto executivo deverá ser feito após a elaboração do projeto básico e anteriormente à obra, mas excepcionalmente, é permitido que o projeto executivo seja elaborado concomitantemente à realização do empreendimento, devendo, nesse caso, haver autorização expressa da Administração. Insta destacar que o projeto básico tem como escopo a definição do objeto a ser licitado, enquanto que o projeto executivo determina a forma que as obras ou serviços serão executados. São instrumentos importantíssimos para o planejamento de obras públicas, pois não os observando, podem causar 5 Art. 7o As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte seqüência:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

§ 2o As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando: I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório; prejuízos aos cofres públicos, em razão de obras superfaturadas, não cumprimento de prazo prazos, com custos absurdos e muitas vezes mal executadas. Erros que podem ser sanados antes mesmo do início das obras, através do planejamento inicial. 2.4 – CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS OBRAS E SERVIÇOS DE ENGENHARIA A fase de execução dos contratos públicos pela Administração Pública, é uma fase de extrema importância durante o procedimento licitatório, devendo a Administração Pública acompanhar e fiscalizar os contratos públicos com os entes privados, verificando todas as disposições contratuais, administrativas e técnicas, conforme dispõe o art. 67 da Lei 8.666/93. É de se salientar que o acompanhamento e a fiscalização dos contratos públicos deverão ser feitos por um representante da Administração Pública. Segundo Instrução Normativa SLTI/MPOG nº 02/2008, em seu artigo 316, o acompanhamento e a fiscalização da execução do contrato consistem na verificação da conformidade da prestação dos serviços e da alocação dos recursos necessários, assegurando o perfeito cumprimento do contrato. O legislador, semelhantemente, permitiu ao contratado da licitação, que também tenha um representante, sendo esta a pessoa a quem a Administração irá se reportar, quando necessário, chamada de preposto. A possibilidade de haver o preposto para o contratado está prevista no art. 68 da Lei 8.666/937. Não se deve confundir gestão com fiscalização de contrato. Os dois atos serão feitos por diferentes agentes, sendo respectivamente, o gestor de contratos e o fiscal de contratos. O gestor de contratos será a autoridade competente para exercer as competências como o representante do Poder Público, algumas de suas funções são: autorizar a realização do procedimento licitatório, rescindir o contrato, aplicar penalidades, prorrogar prazos, dentre outras atribuições. O fiscal de contratos terá a função de acompanhar e fiscalizar a execução do contrato, e suas atribuições encontram-se elencadas no art. 67 e em seus parágrafos da Lei 8.666/938. Deverá agir de forma pró-ativa e preventiva, observando o cumprimento, pelo contratado, das regras previstas no edital da licitação. Por ser considerada como garantia da execução, o fiscal deve possuir elevado grau de conhecimento técnico, conhecimento de normas técnicas e também dos procedimentos de execução recomendados. Outra espécie de controle dos contratos públicos, é o controle feito pelo Tribunal de Contas, chamado de controle externo, presente no art. 113 da Lei 8.666/93, que dispõe: Art. 113. O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto. § 1o - Qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderá representar ao Tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de controle interno contra irregularidades na aplicação desta Lei, para os fins do disposto neste artigo. § 2o - Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema decontrole interno poderão solicitar para exame, até

295

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem determinadas. Diante do artigo anterior, mostra-se que o Tribunal de Contas terá três formas de exercer esse controle externo. A primeira forma é através da função fiscalizadora atribuída ao Tribunal de Contas pela Constituição Federal. A segunda forma é a citada no §1º do artigo supracitado, na qual mediante provocação, por qualquer pessoa física ou jurídica, as quais poderão representar ao Tribunal de Contas em face de irregularidades na aplicação da Lei de Licitações. A última forma é a presente no §2º do mesmo artigo, sendo o controle feito através da análise prévia dos atos convocatórios da licitação. 3 – REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS A Lei 8.666/93 surgiu em um ano marcado por denúncias de corrupção política, tráfico de influências e fraudes envolvendo licitações públicas, relacionados ao ex-presidente Fernando Collor de Mello e a Paulo César Farias, ex-tesoureiro de campanha política de Fernando Collor. Com o passar dos tempos, os ritos estabelecidos por esta lei se tornaram morosos, em virtude da evolução, tanto das pessoas como de ideias, a qual não foi incorporada na Lei de Licitações, necessitando assim de ajustes. O principal ajuste a ser tomado seria o de aperfeiçoar o planejamento das contratações públicas, sendo este o grande problema das licitações no país. Um exemplo da falta de planejamento são os requisitos para serem feitas as licitações referentes às obras de engenharia, segundo a Lei 8.666/93 são necessárias várias exigências preliminares para ocorrer a licitação pública, dentre elas: o projeto básico, planilha que expresse custos unitários, observância de inúmeros requisitos, tais como impacto ambiental, segurança, dentre outros. É também necessário o uso de profissionais com a habilitação necessária para a produção desses documentos, o que demonstra uma exigência demasiada de requisitos para a realização da licitação. Segundo o auditor de Controle Externo e assessor da Presidência do Tribunal de Contas da União, Cláudio Sarian Altounain: A Lei 8.666/93 precisava de ajustes, pois foi concebida em um momento político delicado, e houve uma evolução tecnológica fantástica no Brasil, devendo então o processo licitatório no Brasil incorporar essa evolução tecnológica de uma forma efetiva. Em razão da necessidade de ajustes à Lei 8.666/93 e de aprimorar o planejamento das contratações públicas, por parte da Administração Pública, e à necessidade de atender às novas demandas de obras de grande infraestrutura decorrentes da Copa das Confederações de 2013, da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, foi promulgada a Lei 12.462/11, chamada de Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). O RDC, apesar de ter sido objeto de previsão nas medidas provisórias n. 488 e 489, em razão de perda de prazo, não foram convertidas em lei. No ano de 2011, precisamente no dia 17 de março, a presidente, Dilma Roussef editou a Medida Provisória n. 527/11 com o objetivo principal de organizar a estrutura da presidência da República e dos Ministérios, alterando a Lei 10.683/03, além de dispor sobre a INFRAERO e a ANAC. No decorrer da tramitação perante o Congresso para conversão da medida provisória em lei, ocorreu a inclusão na medida de normas atinentes ao regime diferenciado de contratações públicas. Assim, a Medida Provisória n. 527/11 foi convertida na Lei

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

12.462/11, atual lei de regime diferenciado de contratações públicas. Ainda no ano de 2011, no dia 11 de outubro, será criado o Decreto 7.581/11, este que ficará responsável por regulamentar a Lei do RDC (Lei 12.462/11), e trará particularidades e regras de ordem operacional, para facilitar a execução do RDC. Tradicionalmente, com a Lei 8.666/93, era a Administração Pública o órgão responsável pela condução direta do objeto licitado. Entretanto, com o RDC e a contratação integrada, quem ficará responsável pelo objeto licitado será o ganhador da licitação, ficando este responsável pela elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto, conforme dispõe o § 1º do art. 9º da Lei 12.462/11. Obras mal planejadas ou inacabadas por conta de falta de planejamento ou de uma má gestão podem gerar prejuízos imensuráveis aos cofres públicos. Com a criação da Lei do RDC, nota-se a concretização da incompetência estatal e a exposição do desplanejamento estatal, por passar a sua responsabilidade para o particular. 3.1 – O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO E O SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO Apesar de trazer problemas quanto ao planejamento estatal nas contratações públicas, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas foi criado com o objetivo de tornar mais céleres as licitações, além de obter mais eficácia nos contratos públicos às situações, as quais, estão no âmbito da Lei 12.463/11. A instituição do RDC, primeiramente, foi feita para ser aplicado, exclusivamente, conforme caput do art. 1º da Lei 12.462/11, às licitações e contratos públicos, no Brasil, referentes aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, à Copa das Confederações de 2013, à Copa do Mundo de 2014 e às obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados, distante de até 350 quilômetros das cidades cedes dos mundiais citados. O RDC teve seu âmbito de aplicação estendido a outras situações. Com a promulgação da Lei 12.688/12, estendeu-se a aplicação do RDC às ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ainda em 2012, foi incluída as obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ao âmbito de aplicação do RDC, através da Lei 12.745/12. E por fim, no ano de 2015, através da Medida Provisória n. 678/15, foram, também, incluídas no rol de atividades reguladas pelo RDC, as obras de serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo e às ações no âmbito da Segurança Pública. Todos as licitações e contratos, nos quais será aplicável o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, estão listados no art. 1º da Lei 12.462/11, assim dispõe: Art. 1º. É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização: I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, definidos pelo Grupo Executivo - Gecopa 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo Fifa 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constan-

296

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios; III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II. IV - das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) V - das obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. VI - das obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo. VI - das obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo. VI - das obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo; e VII - ações no âmbito da Segurança Pública. A forma como se tem aplicado o RDC leva-se a deturpações. O RDC foi expandido para as obras de saúde, do PAC, atividades portuárias, dentre outras, através de emendas a medidas provisórias que possuíam outro objeto, sendo então feita estas inclusões à margem do processo legislativo, ou seja, não respeitou o devido processo legal. 3.2 – COMPARAÇÃO ENTRE O RDC E A LEI DE LICITAÇÕES O RDC despertou uma ampla gama de discussões com as alterações ao processo de licitações não previstos pela Lei 8.666/93, provocando controvérsias de diversas naturezas. Nesse cenário é indispensável atentar para a comparação entre a Lei 8.666/93 para com a Lei 12.462/11. Em relação aos princípios aplicados às leis em questão, não haverá diferenças, pois, nas duas serão aplicados os princípios presentes no art. 3º da Lei 8.666/93. Na lei 8.666/93, as obras e serviços somente serão licitados quando houver, anteriormente, um projeto básico de engenharia, com a implementação do RDC, na contratação integrada, a Administração Pública elaborará apenas o anteprojeto de engenharia, enquanto que o licitante vencedor irá elaborar o projeto básico e o projeto executivo, assumindo a responsabilidade quanto a eles. Em relação à convocação do vencedor da licitação, na lei 8.666 quando o primeiro convocado não assinar o termo de contrato com a Administração Pública, esta poderá convocar os licitantes remanescentes, para fazê-lo nas mesmas condições propostas pelo primeiro classificado. Entretanto, na lei do RDC, quando o primeiro convocado não assinar o termo, além de ter a possibilidade de convocar os licitantes remanescentes para assinar o termo nas mesmas condições ofertadas pelo licitante vencedor, pode, no caso de os licitantes não aceitarem a contratação nesses termos, convocar os licitantes remanescentes, na ordem de classificação, para a celebração do contrato com a Administração nas condições ofertadas por aqueles. Na Lei 8.666, quando necessário contratar outra empresa para terminar remanescente de obra ou serviço, devem ser mantidas as mesmas condições ofertadas pelo licitante antecedente, enquanto que na Lei 12.462/11 será observado a ordem de classificação dos licitantes remanescentes e as condições por estes ofertadas para ocorrer a substituição. Na lei de 1993, primeiro verifica- se a habilitação dos interessados na licitação e, após, realiza-se o julgamento das propostas, enquanto que na Lei de 2011 há uma inversão dessas

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

fases, julgando-se primeiro as propostas para depois ocorrer a habilitação do licitante. Em relação à execução das obras e serviços de engenharia, segundo a lei 8.666 serão admitidos: empreitada por preço global, por preço unitário, contratação por tarefa e integral. Em relação à lei 12.642/11, além das modalidades já existentes na lei anterior, há a inclusão da contratação integrada, sendo, nessa lei, adotados preferencialmente a empreitada por preço global, contratação integral e a integrada. As alterações nos valores dos contratos para atender exigências da Administração Pública não sofreram modificações entre as leis, permanecendo os mesmos limites previstos na lei 8.666/93, estatuindo que quando ocorrer acréscimos ou supressões nas obras, serviços ou compras, haverá um limite de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento, será de até 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos. Na lei 8.666 estatuí que deve existir um orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários, sendo esta, disponível aos interessados. Entretanto, na lei do RDC, os valores poderão ser estimados com base no mercado, na avaliação do custo global da obra e nos valores pagos pela Administração em serviços e obras similares, estimada mediante orçamento sintético, metodologia expedita ou paramétrica, podendo, a estimativa de custos, permanecer oculta na contratação integrada conforme art. 9º, § 2º, inciso II, da referida lei. Por fim, há a diferença entre a lei 8.666 e o RDC quanto a remuneração ser variável, enquanto que no RDC permite-se que a empresa escolhida para fazer licitação receba bônus de acordo com suas metas estabelecidas e desempenho, enquanto que na lei de 1993 não há essa flexibilização da remuneração. 3.3 – DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO RDC Sucede que a implementação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, apesar de surgir com intuito de trazer uma maior celeridade no procedimento licitatório, este excessivamente burocrático, trouxe dúvidas passíveis de arguição quanto a sua constitucionalidade para doutrinadores e juristas, alguns argumentam que há inobservância de aspectos legais, preceituados pela Constituição Federal, e outros, defendendo sua necessidade juntamente com os interesses políticos do governo. Doutrinadores da posição contrária ao RDC, tais como o professor Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP Maurício Zockun, determinam que o RDC não teria o condão de afastar a aplicação da lei geral de licitações, como se ocorre na Lei 12.462/11 em seu art. 1º, § 2º, que dispõe: “A opção pelo RDC deverá constar de forma expressa do instrumento convocatório e resultará no afastamento das normas contidas na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos nesta Lei”. Maurício Zockun diz: Ao editar-se a lei do RDC criou-se, ao arrepio da ordem constitucional, um regime de licitação e contratação que convive à margem do regime geral em invulgar desobediência à ordem jurídica, o que não é admitido, como já cuidou de pedagogicamente assinalar o STF ao julgar a ADI 1.668. Além da inconstitucionalidade acima, é alegado também haver vício formal, quanto ao processo legislativo responsável pela criação do RDC, pois a MP nº 527/11, responsável pela criação da Lei 12.462/11, foi criada com o intuito de alterar a Lei nº 10.683/03, modificando a estrutura organizacional e as atribuições dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Durante a tramitação da MP na Câmara dos Deputados, o relator, Deputado José Guimarães,

297

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


acrescentou à Medida Provisória dispositivos que regulam o denominado “Regime Diferenciado de Contratações Públicas”. Sendo, após cumpridos os requisitos do processo legislativo, sancionado pela Presidente da República. Esse vício formal foi utilizado como fundamento na ADI nº 4655 pelo Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos: A inclusão de matéria estranha à tratada na medida provisória afronta o devido processo legislativo (artigos 59 e 62 da CR) e o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, da CR). Isso por que tal espécie normativa é da iniciativa exclusiva do Presidente da República, a quem compete decidir, também com exclusividade, quais medidas, pelo seu caráter de relevância e urgência, devem ser veiculadas por esse meio. (...) Portanto, como a Lei nº 12. 462/11, quanto aos dispositivos impugnados, é fruto de emenda parlamentar que introduz elementos substancialmente novos e sem qualquer pertinência temática com aqueles tratados na medida provisória apresentada pela Presidente da República, sua inconstitucionalidade formal deve ser reconhecida. Para ilustrar o pensamento de Roberto Monteiro, segue o entendimento a favor, por parte do Supremo Tribunal Federal, que determina que nem mesmo a sanção do ente responsável por propor a lei irá convalidar o vício. “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MINEIRA N. 13.054/1998. EMENDA PARLAMENTAR. INOVAÇÃO DO PROJETO DE LEI PARA TRATAR DE MATÉRIA DE INICIATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. CRIAÇÃO DE QUADRO DE ASSISTENTE JURÍDICO DE ESTABELECIMENTO PENITENCIÁRIO E SUA INSERÇÃO NA ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DE SECRETARIA DE ESTADO. EQUIPARAÇÃO SALARIAL COM DEFENSOR PÚBLICO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. OFENSA AOS ARTS. 2º , 5º , 37 , INC. I , II , X E XIII , 41 , 61 , § 1º , INC. II , ALÍNEAS A E C, E 63 , INC. I , DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. Compete privativamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis que disponham sobre as matérias previstas no art. 61 , § 1º , inc. II , alíneas a e c , da Constituição da República, sendo vedado o aumento das despesas previstas mediante emendas parlamentares (art. 63 , inc. I , da Constituição da República). 2. A atribuição da remuneração do cargo de defensor público aos ocupantes das funções de assistente jurídico de estabelecimento penitenciário é inconstitucional, por resultar em aumento de despesa, sem a prévia dotação orçamentária, e por não prescindir da elaboração de lei específica. 3. A sanção do Governador do Estado à proposição legislativa não afasta o vício de inconstitucionalidade formal. 4. A investidura permanente na função pública de assistente penitenciário, por parte de servidores que já exercem cargos ou funções no Poder Executivo mineiro, afronta os arts. 5º , 37 , inc. I e II, da Constituição da República. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. ” (ADI 2.113/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 21/8/09) O segundo fundamento utilizado na ADI nº 4655, é o do vício material em face do art. 37, XXI, da CR. O inciso deste artigo estatuí que, ressalvados casos especificados na legislação, obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure a igualdade de condições a todos os licitantes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, sendo mantidas as condições efetivas da proposta, o qual somente

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

permitirá exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Os artigos 1º, incisos I e II, e 65, da Lei 12.462/119, estariam em contrariedade com o artigo 37 supracitado, por aqueles não fixarem parâmetros mínimos para a identificação de obras, compras e serviços que devem seguir o regime do RDC. Roberto Gurgel, na ADI mº 4655, diz que: A ofensa ao artigo 37, XXI, da CR, parece bastante evidente, pois o regime de licitação pública não está definido em lei, e sim por ato do Executivo. Não há, reitere-se, qualquer parâmetro legal sobre o que seja uma licitação ou contratação necessária aos eventos previstos na lei, outorgando-se desproporcional poder de decisão ao Poder Executivo (...) Verifica-se, portanto, que a transferência, ao Executivo, da definição do regime jurídico da licitação pública, sem quaisquer critérios preordenados na lei, além de ofensa ao artigo 37, XXI, da CR, conspira contra os princípios da impessoalidade, da moralidade, da probidade e da eficiência administrativa. Para os juristas e doutrinadores a favor do RDC, consideram esta lei como uma resposta ao conservadorismo, trazendo consigo grandes avanços para a incrementar as contratações públicas. Segundo Guilherme Jardim Jurksaitis, professor da FGV Direito SP e Assessor Técnico Procurador no TCE-SP: A oposição feita ao RDC parte do pressuposto de que a lei 8.666/93 funciona bem e gera ótimos negócios para a administração pública. Ao olhar para a experiência contemporânea das contratações, o que se vê é justamente o contrário. Sua rigidez impede que a administração faça adaptações na licitação a depender do que se pretende obter no final do certame. Essa circunstância se agrava quando estamos diante de uma lei que foi feita para atender a um tipo muito específico de contratação de obras e serviços de engenharia. Querer aplicá-la a todos os negócios que a administração pública venha a celebrar é um equívoco (não é a toa que existem tantas hipóteses de contratação direta). É preciso haver mais modelos de licitação e de contratação para a administração pública. Não se defende que essas opções sejam feitas ad hoc, ao arbítrio do administrador, mas nos termos e nos limites da lei. Nesse sentido, o RDC representa uma alternativa viável para melhorar as contratações e a gestão públicas. Os juristas que defendem o RDC, argumentam ainda, em relação a transferência da elaboração do projeto básico ao titular, que este ato aumenta o número de soluções diferentes para a execução de obras públicas, podendo ser eficientes e econômicas. Também possui os juristas que estão a favor do RDC, apesar de acreditarem que a sua criação foi feita de uma forma à margem da lei, tal como Carlos Alberto Rodrigues Vasconcelos, advogado pós-graduado em Direito Público pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – LFG: A criação do RDC veio como uma forma de dar alento às necessidades do Poder Público, que para cumprir as tarefas a ele delegadas pelo povo, necessariamente deve estar atrelado à regra constitucional da licitação pública, mas que passou a enxergar problemas gerados pela própria obsolescência da lei 8.666, como lacunas e procedimentos burocráticos e dificultosos, alheios aos princípios e regras tragos pela CF/88 em seu artigo 37. Todavia, obviamente não se pode justificar a criação e a manutenção da vigência de uma lei que não observe as regras da Cons-

298

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


tituição Federal pelo simples fato de que sua possível extirpação do mundo jurídico poderia inviabilizar a realização de três eventos esportivos mundiais. Apesar de haver inúmeros benefícios para a Administração Pública, com a implementa da Lei 12.462/11, também há inúmeras irregularidades quanto sua criação, não podendo justificar seus benefícios com suas irregularidades. 3.4 – O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO NO RDC Nos termos do art. 46 da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, é estatuído que: “Aplica-se ao RDC o disposto no art. 113 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”. O artigo 113 aduz que o Tribunal de Contas será o órgão competente para fazer o controle das despesas dos contratos com as licitações e de demais instrumentos regidos pela lei de licitações, ficando os órgãos interessados da Administração Pública responsáveis por demonstrar a legalidade e a regularidade de despesas e execução das licitações, sem prejuízo do controle interno. Outrossim é de direito de qualquer licitante representar ao Tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de controle interno contra irregularidades na aplicação da lei de licitações. Entretanto, com a aplicação do RDC, se atribui ao administrador e não ao legislador o condão de definir quais obras, compras e serviços seriam licitados utilizando-se do RDC, conforme já explicado sobre a ofensa, causada pela aplicação do RDC, no art. 37, inciso XXI, da CR. Apesar da Administração, em razão de sua ineficiência, querer passar a total responsabilidade ao empreiteiro da obra licitada (contratação integrada) ela ainda terá responsabilidade sobre a obra como já se manifestou o TCU, em acórdão (AC-1465-21/13-P) referente auditoria na licitação para restauração e duplicação da BR-163/364/MT: Ao se responsabilizar pelo desenvolvimento dos projetos, o particular, em tese, assumiria todos os riscos decorrentes de fatos novos, não abrangidos pelo edital ou anteprojeto. Porém, conforme as duas situações de alterações contratuais excepcionadas no RDC, a transmissão ao contratado dos riscos envolvidos no processo não é plena, estando a Administração responsável pela caracterização das situações de contorno da obra e por possíveis reequilíbrios econômico - financeiros contratuais. Atualmente vivemos em uma sociedade que não confia em seus representantes políticos, em razão da experiência sócio-política que possuímos com nossos representantes no Governo, e nada impede que o administrador, para benefício próprio, utilize-se do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, por este dificultar a fiscalização pelo poder público. 4 – CONCLUSÃO Como vimos, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas tentou trazer diversas inovações para melhorar o ambiente das contratações públicas, aumentando a celeridade destas e tornandose a disputa menos burocrática e mais efetiva. No entanto, não será a eficiência e a celeridade no processo licitatório que irá propiciar a eficiência nas contratações públicas e sim o planejamento e a gestão por parte da Administração Pública, a qual é precária nesse sentido. Estamos cansados de ver em jornais, obras públicas que ultrapassam o orçamento previsto, como por exemplo os estádios construídos para a Copa do Mundo de 2014, segundo Matriz de Responsabilidade, divulgada pelo Governo Federal, o valor total dos estádios somados, custou 42% a mais do que o valor previsto, causando um prejuízo de bilhões de reais ao erário público. Além do RDC não resolver o problema das licitações públicas,

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

e sim acobertá-lo com uma proposta de maior celeridade e eficiência, alguns dispositivos desse novo regime possuem falhas e lacunas que devem ser sanadas. Outrossim há diversas irregularidades processuais na criação da Lei 12.462/11, não podendo justificar seus benefícios com suas irregularidades ao devido processo legal. Através da utilização do RDC, o mecanismo de contratação de obras ou serviços públicos, em vez de representar uma relação de superioridade do interesse coletivo, o qual a Administração representa em relação ao particular, passa a querer estabelecer uma relação de maior igualdade com o particular, um exemplo é a contratação integrada, pois nesta o empreiteiro elabora um projeto básico e estabelece metodologias de execução. Ao fazer isto, a Administração perde o controle sobre o empreendimento, o que inclui o cronograma de execução da obra, a qualidade dos materiais empregados, dentre outros aspectos. Isso demonstra a delegação das funções do Estado ao particular, o que dificultará a fiscalização por meio dos órgãos de controle, tanto no monitoramento dos prazos, quanto a pedidos de reajustes nos contratos, ocasionando a elevação dos custos. Ainda há que se falar que estamos em uma época de pouca confiança no Governo, em virtude da Operação Lava-Jato, a maior investigação de corrupção na história do País, que colocou a descoberto várias fraudes praticadas por empreiteiras envolvidas em obras com recursos públicos. Outrossim, os aditivos às obras públicas, existentes no RDC, podem esconder a intenção de desviar dinheiro dos cofres públicos, fincando mais difícil o monitoramento dessas fraudes. Com base nisso sustento que a Lei do RDC é uma lei inconstitucional, em razão das diversas irregularidades e inconstitucionalidades trazidas à tona, que a transformam em uma lei ilegal e imoral. Outrossim, esta lei deixa de cumprir o que pretendia, que era de melhorar a situação das contratações públicas nos País, e dificulta o papel dos órgãos de controle em fiscalizar o gasto do erário público com as obras públicas. O Regime do RDC veio apenas encobrir a falta de planejamento e gestão por parte da Administração Pública, passando a responsabilidade estatal para o particular. REFERÊNCIAS MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 14. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo e V São Paulo: Malheiros, 2007. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: com comentários à MP 2.026, que disciplina o pregão. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2001 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 18.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC Contratações para as copas e jogos olímpicos: lei n. 12.462/2011, decreto n.7581/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012. JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão (Comentários à Legislação do Pregão Comum e Eletrônico). Dialética, 3ª ed., São Paulo, 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. Atual. por Eurico de Andrade Azevedo. São Paulo: Malheiros, 1995 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25.ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. JUSTEN FILHO. Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. Dialética, 10.ed. São Paulo, 2004. FERREIRA, Fernanda Mesquita. A contratação de obras e serviços de

299

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


engenharia à luz da jurisprudência do Tribunal de Contas da União e da lei de diretrizes orçamentárias de 2013 - Lei nº 12.708/2012. Conteudo Juridico,

a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei. Art. 4º Nas licitações para aquisição de bens e serviços comuns será obrigatória a modalidade pregão, sendo preferencial a utilização da sua forma eletrônica.

3

Brasilia-DF: 05 jun. 2013. Disponivel em:<http://www.conteudojuridico.com. br/?artigos&ver=2.43720&se o=1>. Acesso em: 05 ago. 2015.

Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.

4

FARINHAS, Giselle. A Constitucionalidade do Regime Diferenciado. Clube dos Autores, 2010.

Art. 7o As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte seqüência: § 2o As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando: I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório;

5

SILVA, W agner Azevedo da. Serviços de engenharia - definição frente a Lei de Licitações e Contratos na Administração Pública. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2304>. Acesso em: 05 ago. 2015. VERíSSIMO, Dijonilson Paulo Amaral. Princípios gerais e específicos da licitação. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 110, mar 2013. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=129 55>. Acesso em 06 ago 2015. SILVA, W agner Azevedo da. Serviços de engenharia - definição frente a Lei de Licitações e Contratos na Administração Pública. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2304>. Acesso em: 5 ago. 2015. ZOCKUN, Maurício. Regime diferenciado de contratações: posição contrária. Jornal Carta Forense, São Paulo, 01 nov. 2012. Disponível em: <http://www.carta forense.com.br/conteudo/artigos/regime-diferenciado-de-contratacoes-posicao- contraria/9491>. Acesso em 12 nov. 2015. JARDIM JURKSAITIS, Guilherme. Regime diferenciado de contratações: posição favorável. Jornal Carta Forense, São Paulo, 01 nov. 2012. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/regime-diferenciado-decontrataco es-posicao-favoravel/9492>. Acesso em: 12 nov. 2015. VASCONCELOS, Carlos Alberto Rodrigues. Regime diferenciado de contratações públicas é legal?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3839, 4 jan. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26334>. Acesso em: 13 out. 2015. BRITO, Rafael Alves Gomes de. Regime diferenciado de contratações públicas: diferenças entre anteprojeto e projetos básico e executivo. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3916, 22 mar. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27068>. Acesso em: 11 out. 2015.

Art. 31. O acompanhamento e a fiscalização da execução do contrato consistem na verificação da conformidade da prestação dos serviços e da alocação dos recursos necessários, de forma a assegurar o perfeito cumprimento do contrato, devendo ser exercidos po r um representante da Administração, especialmente designado na forma dos arts. 67 e 73 da Lei nº 8.666/93 e do art. 6º do Decreto nº 2.271/97.

6

Art. 68. O contratado deverá manter preposto, aceito pela Administração, no local da obra ou serviço, para representá-lo na execução do contrato.

7

Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti -lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição. § 1o O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados. § 2o As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes.

8

Art. 65. Até que a Autoridade Pública Olímpica defina a Carteira de Projetos Olímpicos, aplica-se, excepcionalmente, o disposto nesta Lei às contratações decorrentes do inciso I do art. 1o desta Lei, desde que sejam imprescindíveis para o cumprimento das obrigações assumidas perante o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Paraolímpico Internacional, e sua necessidade seja fundamentada pelo contratante da obra ou serviço.

9

PEREIRA, Jessé Leal. Regime Diferenciado de Contratações Públicas: inconstitucionalidade - ADI 4655. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3180, 16 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21298>. Acesso em: 11 out. 2015. COSTA, Fernando Nogueira da Costa. RDC (Regime Diferenciado de Contratação) X Lei das Licitações. Blog Cidadania & Cultura. 02 jan. 2013. Disponível em: https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2013/01/02/rdc- regime-diferenciado-de-contratacao-x-lei-das-licitacoes>. Acesso em: 12 out 2015. KRAW CZYK, Rodrigo. Contratação pública diferenciada RDC. Entendendo o novo regime - Lei nº 12.462/11. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun 2012. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura &artigo _ i d = 1 1678 >. Acesso em 12 ago. 2015.

NOTAS DE FIM Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

*

Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

**

1 Art. 3. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento n acional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

2

Art. 1º

Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

300

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: Uma análise sob a perspectiva do devido processo legal Victor Paulo Santos Rodrigues1 Bernardo Ribeiro Câmara2 RESUMO: A desconsideração da personalidade jurídica vem passando por diversas transformações em sua aplicação, o que traduz em um ambiente de insegurança jurídica e falta de previsibilidade processual, contrariando corolários da função social do processo. O Novo Código de Processo Civil trouxe a previsão da desconsideração da personalidade jurídica em seu aspecto processual, tentando proteger aqueles que estão submetidos ao crivo do judiciário, trazendo o regramento geral para a aplicação deste instituto, o que representa grande avanço para aqueles que utilizam da pessoa jurídica com a boa -fé e a probidade esperada. Porém, enquanto protege o jurisdicionado de possíveis arbitrariedades, o procedimento inci dental da desconsideração pode implicar em excessiva formalidade, capaz de tornar ineficaz o instrumento desejado, demonstrando um possível regresso à tão cara e desejável duração razoável do processo. Por esta dualidade de interesses se faz necessário melhor analise do instituto da desconsideração da personalidade jurídica prevista no CPC 2015, buscando compreender o real sentido de sua criação e se o novo código processual andou bem em inserir sua previsão procedimental. ABSTRACT: The piercing of the corporate veil has undergone for several transformations in his application, which translates into a legal environment of insecurity and lack of procedural predictability, contrary corollaries of the social function of the process. The new Civil Procedure Code brought the prediction of piercing the corporate veil in its procedural aspect, trying to protect those who are subjected to the scrutiny of the judiciary, bringing the overall rule for the application of this institute, which represents major breakthrough for those who use the legal person with good faith and expected probity. But while protect the claimants of possible arbitrariness , the disregard of interlocutory procedure may result in excessive formality, able to render ineffective the desired instrument, demonstrating a possible return to the reasonable duration of the process. For this duality of interests it is necessary a better analyze about the institute of the disregard of legal personality envisaged by CPC 2015, trying to understand the real meaning of its creation and if the new procedural code hitswhen input your procedural prediction. PALAVRAS-CHAVE: Novo código de processo civil;Teoria da Desconsideração da personalidade jurídica; Devido Processo Legal. KEYWORDS: New Civil Procedural Code; Piercing the corporate veil doctrine; Due process of law; SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A origem da Personalidade Jurídica 3 Uma nova realidade: aspectos atuais da personalidade jurídica e a função social da empresa 4 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua evolução no Direito Brasileiro 5 Função social do processo: o devido processo legal 6 Celeridade processual e contraditório substancial: o novo paradigma do código de processo civil 2015 7 Novos desafios ao processo constitucional: a justiça como reforma do processo ou o processo como reforma da justiça? 8 A aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC 9 Conclusão: o avanço legislativo através do decreto Lei 13.105 de 16.03.2015.

I INTRODUÇÃO O Código de Processo Civil (CPC) de 1973 passou por diversas mudanças ao longo de sua vigência, todas estruturadas e fundadas no impacto que a jurisdição exerce sobre a sociedade. Com o objetivo de obter um acesso à uma ordem jurídica justa, o atual Código de Processo Civil passou por grandes reformas no processo de sua formação científica, que influenciada pelo notável jurista italiano Mauro Cappelletti, através de sua teoria denominada “três ondas do acesso à justiça”, culminou na preocupação do legislador brasileiro em garantir uma maior satisfação ao jurisdicionado com a prestação da tutela jurisdicional, primando pela efetiva e adequada garantia à verdadeira proteção às posições jurídicas de vantagens lesadas ou ameaçadas. (CÂMARA, 2013) Assim, em nova transformação da estrutura processual brasileira, e em busca de uma ponderação entre os princípios da segurança jurídica e da celeridade processual, convergindo dois pontos de extrema relevância para os estudos e práticas processuais, o Novo Código de Processo Civil trouxe como inovação a previsão processual do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. A grande questão que envolve a aplicação do instituto da LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

desconsideração e que denota melhor interpretação é entender se a formalidade protagonizada pelo novel código pode implicar em um obstáculo a justiça, uma vez que a busca ao fraudador é o verdadeiro espírito que enseja a aplicação do instituto. Já de antemão, mas sem o intuito de inibir maiores debates, a posição aqui defendida é que se lançarmos mão de uma interpretação técnica- processual e adentrar no alicerce econômico para a aplicação do instituto da desconsideração, poderemos ocasionar consequências e violações de ordem incomensuráveis. Assim melhor síntese não caberia se não as palavras proferidas por grande jurista pátrio, Leonardo Parentoni, que aduz: Por essa perspectiva, o desrespeito à limitação de responsabilidade, fora das hipóteses excepcionais que o autorizam, é como lançar ao mar quem optou por permanecer em terra firme, justamente porque não pretendia pôr a vida em risco... (PARENTONI, 2014, p.20) Trata-se de um olhar crítico à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro sob o pálio do devido processo legal.

301

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


II A ORIGEM DA PERSONALIDADE JURÍDICA Na Idade Média, figurada pela história das Grandes Navegações com o surgimento das comendas, iniciadas pelas expansões ultramarinas com o objetivo de “conquistar o novo mundo”, e caminhando até as atuais constituições das Sociedades Anônimas, como fator indispensável ao surgimento do moderno capitalismo, promoveu-se uma tendente expansão da responsabilidade limitada daqueles que constituíam as sociedades empresárias, capaz de serem obtidas por instrumentos cada vez menos complexos, a fim de estimular o empreendedorismo. (PARENTONI, 2014) Assim há muito se percebeu a necessidade de se conjugar esforços para realizar determinados empreendimentos, conseguindo, por meio dessa união, uma polarização de atividades em torno do grupo reunido. Surgem, portanto, as pessoas jurídicas, ora como conjunto de pessoas, ora como destinação patrimonial, conferindo assim a sua aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações. (VENOSA, 2002) A personalidade jurídica trata de instituto criado para servir às pessoas humanas, não se prestando a ser um fim em si mesmo, se não um meio de propagação de resultados sociais comuns, seja para aqueles que a constituíram, bem como para aqueles que com ela se relacionam e contratam. (BARCELLOS, 2011) O reconhecimento e a introdução da personalidade jurídica em nosso ordenamento jurídico ocorreu por uma sanção positiva ou premial de incentivo aos particulares a desempenharem com maior pendor atividades econômicas, o que interessa não somente aos empreendedores como ao próprio Estado, sobretudo em função da adoção Constitucional do regime capitalista de mercado. (RAMOS, 2013) Trata-se de uma realidade técnica do mundo jurídico, que para tanto segue uma ordem cumulativa de determinados pressupostos existenciais, quais sejam a vontade humana criadora, objeto lícito e forma prescrita em lei. (MELO, 2015) Assim, se os motivos determinantes para a criação legal da personalidade jurídica são certos fins que o ordenamento jurídico chancela, é intuitivo que, nessa outorga, está implícita sua imprestabilidade para protagonizar função diversa que o mesmo ordenamento condena. (GONÇALVES NETO, 2012) III UMA NOVA REALIDADE: ASPECTOS ATUAIS DA PERSONALIDADE JURÍDICA E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA Um dos efeitos devastadores da globalização e do avanço tecnológico é a tendência, cada vez mais acentuada, do mau uso dos institutos jurídicos para fins de encobrir ilícitos praticados por sócios e administradores de atividades empresárias. Trata-se de uma mudança cultural e política que não cabe aqui investigarmos o porquê, mas o fato é que ela existe e que, embora a sua existência possa não ter um fundo jurídico, as consequências são a certeza de no mínimo uma avalanche de medidas legislativas, se não um colapso do que instituímos por segurança jurídica. Neste sentido preceitua Miguel Reale: (1984, apud FRONTINI, 2011, p. 535) Inevitáveis, pois, as disputas, os conflitos, as crises, as guerras, a paz inquieta e aparente, assim como os períodos curtos ou longos de maior convergência entre o “jurídico” e o “político”, enquanto fermentam novos estímulos para imprevistas exigências: nessa polaridade está todo o drama histórico do homem, que somente lograria fundir o poder numa solução estática e definitiva se o esvaziasse de sua essencialidade histórica, se deixasse de ser a síntese original constitutiva de ser e dever ser.

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

Incontáveis acontecimentos poderiam ser trazidos a memória e aqui recordados como exemplos de uso da Personalidade Jurídica para fins de encobrimento de atos ilícitos e fraudulentos. Como ocorreu nos E.U.A com o caso Enronvi , em que a prática inescrupulosa por seus Executivos para fins de enriquecimento ilícito causou um colapso econômico no mundo inteiro, que culminou com o endividamento de boa parte dos investidores naquele país. No Brasil vivenciamos o escândalo da corrupção da Petrobrásvii, que trouxe imenso mal estar ao mercado financeiro brasileiro e que hoje gera, visivelmente, impactos negativos à toda população brasileira. Embora a ilicitude seja a exceção, o fato é que há muito a Pessoa Jurídica não se destina somente ao intuito lícito ao qual foi criado, ou seja, mais do que delimitar responsabilidades e determinar um patrimônio de afetação para determinado empreendimento, a sua existência passou a ser instrumento de fraudes e ofício de corrupçõesviii. Assim aponta-se uma verdadeira crise no conceito de função social da empresa, que não mais atua como forma de fomento ao interesse nacional, ao interesse da economia e muito menos dos seus investidores. Isto porque, como nos ensina o Professor Fábio Konder Comparato, a palavra função requer verdadeira ação em prol do interesse comum, mas nunca como proveito único do próprio titular, pois “a consideração dos objetivos legais é, portanto, decisiva nessa matéria, como legitimação do poder. A ilicitude já não advém apenas das irregularidades formais, mas também do desvio de finalidade, caracterizando autêntica disfunção”. (COMPARATO, 1995, p. 09) Cabe assim ao Estado atuar de forma a fomentar e fiscalizar a licitude da atuação das pessoas jurídicas, não perquirindo delimitar qual é a conduta e a tomada de decisão correta a ser tomada por aquele que se utiliza da personalidade jurídica, pois a presunção de seus atos é a de boa-fé, e até porque necessária à sua própria existência. (BRUSCATO, 2011, p. 48) Mas como estamos falando da exceção, pois a regra é a personalidade jurídica que atua de forma lícita, criou o Estado ferramenta processual que, se não consegue evitar as fraudes ocasionadas, ao menos se armou de instrumento capaz de atingir o âmago do ilícito, penetrando no patrimônio daqueles que verdadeiramente causaram o prejuízo, os sócios. IV A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO Embora a verdadeira origem do instituto da desconsideração da personalidade jurídica esteja no direito comparado, nos limitaremos a um breve discurso da evolução do instituto da desconsideração no direito brasileiro, partindo de um conceito clássico e atingindo o que hoje denomina PARENTONIix como um conceito contemporâneo da desconsideração. Doutrina majoritária reconhece que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fora inserida em nosso ordenamento primeiramente através da doutrina de Rubens Requião, ainda na década de 1960, quando o renomado autor já defendia a aplicação do instituto por nossos tribunais. (RAMOS,2013) A legislação pátria inseriu ao longo do tempo, através de leis esparsas, a possibilidade material da aplicação da personalidade jurídica. Podemos citar como exemplo a possibilidade inserida pelo Código de Defesa do Consumidor através de seu artigo 28x, a possibilidade de aplicação pelo Código Tributário Nacional em seu artigo 135xi, bem como a lei de crimes ambientais, lei anticorrupção, entre outras. Porém somente em 2002 o ordenamento jurídico resolveu estabelecer um regramento geral para aplicação deste instituto, através do artigo 50xii do Código Civil de 2002.

302

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


Através da inserção normativa de uma teoria geral de sua aplicação, a desconsideração da personalidade jurídica passou a ser utilizada quando a pessoa jurídica é utilizada para fins outros que as já definidas pelo Direito, e por tal fato deverá ser determinada a sua ineficácia relativa aos atos que através desta foram praticada em desacordo com os fins que lhe fora reservado. (GONÇALVES NETO, 2012) Trata-se de norma a tornar mais do que mero responsável aquele que praticou o ilícito, mas sim verdadeiro obrigado direto, pois aquele que atua em desconformidade com os fins sociais da pessoa jurídica atrai para sua esfera de responsabilidade patrimonial as consequências desta conduta. (PARENTONI, 2014, p. 57) Assim o código civil estabelece o ponto central que determina a possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, que é o abuso da personalidade jurídica, que se estende aos conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial. Para tanto, a aplicação clássica deste instituto sugere a existência de alguns pressupostos, que devem ser observados para que o instituto cumpra a sua finalidadexiii. Portanto o artigo 50 do código civil de 2002 seria a matriz da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, cujos pressupostos deveriam ser obrigatoriamente observados para sua aplicação em todos os casos. (RAMOS, 2013) Entretanto, devido a falta de previsão legal quanto à norma procedimental para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, e impulsionado pelas necessidades econômico-sociais de nosso país, o poder judiciário exigiu elementos outros para a efetivação de sua aplicação, o que afastou os pressupostos clássicos da determinação e fez surgir novo panorama de aplicação do instituto, nomeado aqui como teoria contemporânea, ou, para alguns doutrinadores, como teoria menor da desconsideração.xiv Neste sentido aduz CARVALHO MONTEIRO DE ANDRADE (2015, p. 122) que “necessário destacar a possibilidade do sócio integrante de uma sociedade responder pelas dívidas sociais, pois a evolução da sociedade já não pressupõe a autonomia patrimonial como dogma absoluto.” Trata-se de verdadeiro raciocínio econômico utilizado pelo aplicador do direito, que numa ponderação de valores resolveu tutelar interesses outros que não a limitação patrimonial. Basta a mera insuficiência de bens para afastar a autonomia da pessoa jurídica. Assim partindo de uma aplicação técnico-jurídica de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, as necessidades sociais e culturais levaram nossos tribunais a uma aplicação econômica, célere e objetiva do instituto, que se por um lado trouxe a satisfação judicial a uma das partes, lado outro trouxe um ambiente de insegurança jurídica capaz de afastar qualquer investidor e empreendedor a aplicar as suas finanças em um ambiente de riscos incalculáveis, bem como passou em atropelo a diversos institutos jurídicos caros ao direito e conquistados pelo cidadão brasileiro, principalmente ao Devido Processo Legal. A isso tudo somasse ainda a inexistência de harmonização sobre a norma processual aplicável, acarretando verdadeiro enigma à sua utilizaçãoxv. V FUNÇÃO SOCIAL DO PROCESSO: O DEVIDO PROCESSO LEGAL Mais do que entender as variáveis em que a doutrina ramifica o conceito de Devido Processo Legal, o que aqui nos importa é como este princípio atua no caminho interprocessual e os seus reflexos, não só para o jurisdicionado, mas para o exercício da jurisdição, como manifestação do poder de Soberania Nacional. Conforme lições do il. jurisconsulto José Frederico Marques:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

A justiça, ao mesmo tempo em que constitui valor indispensável à vida em sociedade, aparece também como garantia essencial da liberdade da pessoa humana, seja em confronto com os atos das autoridades e órgãos do poder público, seja nas relações com as demais pessoas e cidadãos. Cumpre, pois, ao Direito Constitucional assegurar a tutela jurisdicional, garantindo ao indivíduo meios e modos de poder obt ê-la. (MARQUES , 2000, p.161) A Constituição da República de 1988, denominada Constituição Cidadã pelas inúmeras garantias inseridas no corpo de seu texto, introduziu o príncipio insculpido em seu artigo 5º, inciso LIV que prevê que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Trata-se de cláusula geral inscrita em nossa lei maior cujo significado passou por diversas alterações ao longo da história. O que se entendia e se aplicava por processo legal como devido em séculos anteriores, obviamente não será a interpretação aplicável nos tempos hodiernos, pois a construção do processo devido é obra eternamente em progresso, assim como deve ser o Direito. (DIDIER, 2014) O devido processo legal, como conceito jurídico abstrato, é a pedra de toque e norte interpretativo para a instrução de qualquer procedimento a ser realizado. É a conformidade do processo com o direito como um todo, e não apenas com a lei, como tenta nos induzir a expressão “legal”. Desse princípio Constitucional se extraem, então, outros princípios e direitos fundamentais inerentes ao devido Processo. (DIDIER, 2014) Portanto a inobservância ao devido processo legal implica em ofensa direta à norma insculpida em nosso texto constitucional, embora nossos tribunais superiores insistam em admitir apenas como ofensa reflexa a não observação de um princípio constitucionalxvi (o que não é nenhuma novidade se observado o histórico de absurdidades de tais órgãos jurisdicionais). Assim tal princípio constitucional processual não pode ser tratado como mero critério de preferência do órgão julgador (relação custo-benefício) ou como espécie de “atratividade”, mas sim de norma obrigatória, que, desde logo, não pode ser negociada a sua aplicação. (NUNES e CÂMARA, 2013) Assim nos esclarece Humberto Theodoro Junior: Impossível a vida em sociedade sem uma normatização do comportamento humano. Daí surgir o Direito como conjunto das normas gerais e impositivas, disciplinadoras da vida social. Mas não basta traçar a norma de conduta. O equilíbrio e o desenvolvimento sociais só ocorrem se a observância das regras jurídicas fizer-se obrigatória. (THEODORO JUNIOR, 2013, p. 01) Neste sentido podemos afirmar que o devido processo legal exsurge e se impõe concomitantemente ao erguimento de um Estado Democrático de Direito, pois a legitimidade do Estado no monopólio do exercício da jurisdição somente se justifica ao tempo em que é observado as garantias e direitos fundamentais inerentes ao cidadão, independentemente de estar este sob o crivo de uma tutela jurisdicional ou não, pois a posição de jurisdicionado é um estado de fato, e o que aqui nos importa é a proteção ao cidadão brasileiro, na posição jurídica de detentor de direitos e deveres. Assim nos contempla o Il. Professor ROSEMIRO PEREIRA LEAL Com efeito, a hermenêutica desenvolvida no procedimento processualizado, nas democracias plenas, não se ergue como técnica interpretativa do juízo de aplicação vertical (absolutista) do direito, mas como exercício democrático de

303

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


discussão horizontal de direitos pelas partes no espaço-tempo construtivo da estrutura procedimental fixadora dos argumentos encaminhadores (preparadores) do provimento (sentença) que há de ser “a conclusão” das alegações das partes e não um ato eloquente e solitário de realização de justiça. (LEAL, 2010, p. 57) Portanto a atividade jurisdicional se realiza no devido processo legal somente ao momento em que atua como verdadeira ferramenta da cidadania. Uma vez que “todo poder emana do povo”, a legitimação somente será concebida sob uma perspectiva de atuação Estatal vinculada à observância dos princípios e normas que lhe assegurem efetivar a tão almejada paz social. Ao Estado, no exercício do poder jurisdicional, ultrapassar ou deixar de observar as normas constitucionais, limitadores do seu atuar exorbitante, significa abuso de poder, o que é veemente condenado em um Estado democrático de Direito. Cabe assim ao Estado Jurisdição atuar nos moldes do que a própria norma maior lhe condena, pois se ela traz o adjetivo do que lhe é devido, é por que cabe ao Estado garantir. Assim quando falamos em devido processo legal, mais do que princípio, elevamos a uma garantia constitucional, pois como nas palavras de Olavo de Carvalho “a essência não é um mistério por trás da forma, é a própria forma que se manifesta” (CARVALHO, 2005, p. 37). VI CELERIDADE PROCESSUAL E CONTRADITÓRIO SUBSTANCIAL : O NOVO PARADIGMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015 Mais do que defender o interesse jurídico afirmado pelo autor, o processo se presta também a defender o interesse contraposto sustentado pelo réu, ou seja, se presta ao direito tanto para afirmá-lo como para negá-lo, indicando assim a natureza do processo como procedimento em contraditório. (CARVALHO DIAS, 2015) O grande problema desta atividade em contraditório instado pela divergência de posições das partes no processo é que, ao invés do comportamento dos sujeitos processuais ser em prol da resolução do conflito, o que se constata na práxis forense é um verdadeiro atropelo à sua composição, onde um lado se vê obstinado a perseguir o seu direito à toda custa, enquanto o outro lado utiliza de todo o ardil estratégico possível a embaraçar ainda mais o processo. (THEODORO JUNIOR, 2015) Muito disto é consequência da busca pela otimização de julgados por nossos tribunais e pela estratégia do litígio perpetrada pelos advogados, fruto de uma prática acadêmica ininteligivelmente ligada à pesquisa técnica-processual como um fim em si mesmo, deixando de observar a realidade, em todas as suas vertentes, das particularidades que nosso sistema processual exigexvii. Trata-se de evidente manifestação ensejada pelo atual sistema processual brasileiro de prevalência aos interesses não cooperativos, que se comporta hoje como um verdadeiro ambiente de guerra, ao invés de um ambiente de conflito de interesses propriamente dito. Como aduz balizada doutrina: Esta utópica solidariedade processual não existe (nem nunca existiu): as partes querem ganhar e o juiz quer dar vazão à sua pesada carga de trabalho. O problema são os custos desta atividade não cooperativa. (THEODORO JUNIOR, 2015, p. 70) A questão é que não há espaço no perfil democrático dos Estados de Direito que contemplem o processo com focos de centralidade, seja ela qual for. Para uma melhora expressiva do sistema jurídico atual é necessário uma formação plural do processo, que demanda

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

uma compartipação/cooperação e um reforço da importância de todos que compõe o processo. (THEODORO JUNIOR, 2015) Formação plural esta que o novo código de processo civil traz ao inserir o preceito do contraditório como garantia de influencia das partes na decisão prolatada pelo Juiz, conforme nos traz o texto do artigo 10 do novo código em que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não tenha dado as partes oportunidade de se manifestar, ainda que trate de matéria sobre a qual deva decidir de oficio”, complementada pelo seu artigo 489, § 1º, inciso IV que aduz “não considerar fundamentada a decisão judicial que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capaz de em tese infirmar a conclusão adotada pelo julgador.” Assim, nas palavras do mestre AROLDO PLÍNIO: O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidades no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. (GONÇALVES, 2001, p. 127) Mais do que a igual paridade de armas, o conceito de contraditório substancial inserida pelo CPC 2015 vai além do que o emanado pelo renomado professor, pois a garantia constitucional insculpida pelo contraditório vincula aquele que é o também destinatário da norma na função de dizer o direito no caso concreto, assim determinando verdadeira dinâmica procedimental de informação-reação-diálogo-influência. (CARVALHO DIAS, 2015) Assim, além de inovar em uma intenção de comparticipação dos sujeitos no processo, o novo CPC renova o espírito do contraditório, reforçando a legitimação do judiciário. Lado outro, o novo CPC traz em seu artigo 4ºxviii e 6ºxix a garantia constitucional insculpida no artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal de 1988, que nos traz a regra de duração razoável do processo. Trata-se de regra ligada intrinsecamente à satisfação do mérito no processo, que poderia ser eventualmente obstada no caso de um contraditório desarrazoado, principalmente quando este é utilizado em notório “abuso de direito”. Isto porque a demora excessiva a uma prestação jurisdicional, além de muitas vezes demonstrar verdadeira disposição do direito das partes, significa também enfraquecimento politico por parte do Estado. (THEODORO JUNIOR, 2015) Sob pena de induzirmos a conceito errôneo de razoável duração do processo, merece aqui sucinta, mas melhor reflexão, dos preceitos albergados e definidores deste importante instituto jurídico. A razoável duração do processo é conceito harmônico com a aspiração generalizada pela rapidez na solução dos conflitos, mas com esta certamente não se confunde. Isto porque a certeza de um processo célere não traduz em um processo justo, em sua maioria. A imposição da razoável duração se dá na abreviação em face da aplicação do seu rito procedimental, para assim melhor aplicá-lo, e não na supressão de outros direitos fundamentais albergados pelo processo justo. (DE ASSIS, 2009) A desarrazoada demora processual é consequência de complexos fatores intrínsecos ao processo judicial, havendo participação nesse panorama todos os sujeitos atores em seu trâmite. Imputar apenas a um determinado sujeito, seja ele a parte, advogado ou magistrado, todo o peso da morosidade processual, é fardo pesado que a nenhum destes seria suportável. (PAROSKI, 2009) O fato é que não há duvidas dos efeitos negativos que o tempo na tramitação processual pode causar àquele ao qual o direito ou-

304

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


torga a razão. A atual “crise do judiciário” se instala muito devido a sua morosidade processual e as suas denominadas etapas mortasxx, que devem ser sempre combatidas, pois há muito se tem que justiça tardia não se concretiza em justiça. Em apertada síntese, a morosidade traduz em atos e fatos processuais desnecessários e inúteis à solução da controvérsia, o que não se confunde com excesso de formalidade se esta cumpre uma finalidade ao qual o direito alberga. Neste mesmo sentido podemos conceituar a celeridade processual não como a rapidez em que o processo se propaga ao descuido de formalidades essenciais às garantias constitucionais do devido processo legal, mas sim em um trâmite procedimental que sumariza os atos inúteis e que realiza o direito a uma efetiva prestação jurisdicional. Com efeito, a razoável duração do processo é preceito constitucional e fundamental à condição do ser humano, cujo procedimento deve suplantar seu escopo maior, capaz de garantir a tutela jurisdicional e observar as garantias constitucionais através da devida efetividade para o jurisdicionado. (SANTANA, 2009) Portanto, será que realmente a “morosidade” do judiciário se deve exclusivamente a um processo baseado no contraditório? Assim assevera o Il. Professor Humberto Theodoro Junior: A duração exagerada dos processos, hoje, decorre não propriamente do procedimento legal, mas de sua inobservância, e da indiferença e tolerância dos juízes e tribunais diante dos desvios procrastinatórios impunemente praticados por aqueles a quem aproveita o retardamento da conclusão do processo.” (THEODORO JUNIOR, 2013, p. 45) Não se pode imputar ao devido processo legal um problema claramente de Administração Pública, pois a falta de dinheiro, estrutura e organização profissional, são problemas notoriamente exógenos e estranhos ao processo civil. (NEVES, 2014) Em que pese ser a celeridade processual um dos elementos inerentes a ordem jurídica justa, tal celeridade somente será eminente justiça se corresponder a uma duração razoável do processo, pois do inverso, acarretaria em verdadeira negativa de prestação jurisdicional. Neste sentido assevera Humberto Theodoro Junior: Em face da quantidade de trabalho de um sistema que já conta com mais de 95 milhões de processos segundo o ultimo relatório “justiça em números” do CNJ, a tendência de contaminação cognitiva em busca de maior rapidez do julgamento precisa ser levada em consideração. Estudos empíricos (psicológicos e jurídicos), realizados com magistrados americanos, demonstram que o juiz sofre propensões cognitivas que o induzem a usar atalhos para ajuda-lo a lidar com a pressão de incerteza e do tempo inerentes ao processo judicial. É evidenciado que mesmo sendo experiente e bem treinado, sua vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento solitário influencia sua atuação.” (THEODORO JUNIOR, 2015, p. 97) A visão do contraditório em contramão à celeridade não merece prosperar, pois havendo sentença plenamente fundamentada, e que venha a cumprir o objetivo da pacificação social almejada, não há porque as partes recorrerem daquela decisão emanada pelo juiz, o que corroboraria para verdadeira duração razoável do processo. Assim não há que se falar em conflito entre as duas garantias. A proporcionalidade entre a aplicação da celeridade ou do contraditório é medida imposta ao caso concreto, sendo que o novo CPC enfatizou o contraditório a um patamar superior à própria celeridade processual, utilizando-o em novo paradigma ao processo civil, conforme já esclarecia Aroldo Plínio:

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

As propostas de novas categorias e denovas vias que abreviem o momento da decisão são particularmente voltados para a economia e a celeridade como predicados essenciais da decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados. Contudo, a economia e a celeridade do processo não são incompatíveis com as garantias das partes, e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja ele violado em nome do rápido andamento do processo. A decisão não se qualifica como justa apenas pelo critério de rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença.(GONÇALVES, 2001, p. 125) Tal predominância por um contraditório substancial inerente ao devido processo legal se materializa ao determinar o código de processo civil de 2015 a instauração de um incidente para fins de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, contribuindo assim no sentido de que determinada decisão somente atinja os sujeitos que são partes em determinada relação processual, não ensejando adquirir autoridade de coisa julgada para o sujeito que não participou do debate jurídico. (GONÇALVES, 2001). VII NOVOS DESAFIOS AO PROCESSO CONSTITUCIONAL: A JUSTIÇA COMO REFORMA DO PROCESSO OU O PROCESSO COMO REFORMA DA JUSTIÇA? O novo código de processo civil trouxe importantes inovações normativas com o objetivo de resguardar direitos fundamentais do cidadão brasileiro, em verdadeira sintonia entre o texto processual e o texto constitucional. A grande questão é se a mudança normativo-teórica realmente ensejará uma consequente mudança na práxis forense, pois a variação comportamental é o principal alicerce que o código necessita para efetivar os objetivos em que pretende, assim redirecionando a uma nova mentalidade de processo, valorizando os princípios constitucionais envolvidos na garantia de um processo justo. (THEODORO JUNIOR, 2008) Mauro Cappelletti há muito prelecionou: O direito processual, resumindo, pode ser considerado, em certo sentido, se nos permite a metáfora, um espelho no qual, com extrema fidelidade, se refletem os movimentos do pensamento, da filosofia e da economia de um determinado período histórico.(CAPPELLETTI,2001, p.18) Portanto em um ambiente notoriamente de insegurança e intempéries sociais, políticas e econômicas, ao processo não poderia ser diferente. O histórico processual brasileiro nos leva a um ceticismo quanto à efetivação de um processo civil constitucional, pois as diversas batalhas travadas no ambiente jurídico buscando sua melhor efetivação somente nos levaram a um descrédito do sistema judiciárioxxi. O código de processo civil de 1973 possuia diversas lacunas que foram sendo gradativamente preenchidas pelo legislador brasileiro, que tentou através de diversas reformas trazer maior efetividade ao sistema jurisdicional. Mas não necessariamente as mudanças normativas efetivamente ensejaram o sucesso procedimental esperado. A verdadeira mudança assim está na postura em que os sujeitos do processo, seja ele parte, procurador ou juiz, irão conduzir o seu procedimento. Tanto assim que o novel código prestigiou fundamentalmente no sentido do contraditório e da não-surpresa, da cooperação e da boa-fé. Neste sentido destaca-se o estimulo à composição do conflito através dos métodos alternativos de resolução de conflitos, pois indubitavelmente em questão de efetivação da justiça, a solução

305

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


composta pelas partes é deveras melhor cumprida que a decisão adjudicada pelo processo. O processo, por si só, como norma procedimental, não é capaz de ensejar a pacificação almejada se as partes efetivamente não participarem em igualdade de influência no provimento final do juiz. A justiça em um processo somente se faz presente quando compreendida no devido processo legal, este entendido como acesso à uma ordem jurídica justa, pois somente a observância e a exigência pelas garantias e princípios constitucionais efetivarão uma verdadeira reforma em nosso Processo Civil. Grande exemplo da possibilidade ou não da observância de preceitos constitucionais será a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em tutela de urgência como verdadeira práxis procedimental, ensejando assim a infeliz prática do que hoje aqui denominamos de teoria contemporânea da desconsideração da personalidade jurídica. Só o tempo irá determinar a escolha a ser feita. O certo é que a eficiência e a organização de uma teoria jurídica, se não consubstanciada em verdadeira justiça, embora muitas vezes elegante e bela aos olhos do povo, deve ser abolida ou reformada do nosso ordenamento jurídico, pois mascara e perpetua real injustiça. (RAWLS, 1997, p. 3/4) Portanto o Novo Código de Processo, mais do que uma norma de procedimento, é um convite à conscientização do cidadão brasileiro, para que este seja verdadeiro ator na busca da justiça almejada. VIII A APLICABILIDADE DO INCIDENTE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO NOVO CPC As hipóteses de incidência da desconsideração da personalidade jurídica estão definidas em leis específicas, assim ao novo código de processo civil coube apenas prever a forma de aplicação deste instituto, afinal cumpre ao direito processual criar mecanismos para efetivar o direito material. (DIDIER, 2015) Com o fim de processualizar o instituto é que se criou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos artigos 133 à 137 do Novo CPC, inserido no capítulo sobre Intervenção de Terceirosxxii. Correta a posição do legislador ao inserir o instituto no capítulo sobre intervenção de terceiros, pois se provoca verdadeira inserção forçada de terceiro - portanto aquele que não é parte no litígio - que será citado e assim passará a ser parte no processo. (CÂMARA, 2015) A necessidade de ser instaurado um incidente cognitivo, independentemente da fase ou sede em que se encontre o processo (seja de conhecimento ou execução), é medida há muito desejada por diversos processualistas, pois estabelece-se um contraditório e ampla defesa prévio, atribuindo ao terceiro o prazo de 15 (quinze) dias para responder ao requerimento, para que somente assim o juiz decida sobre a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica. (BUENO, 2012) O procedimento incidental jamais poderá ser decretado de ofício, uma vez que a lei define de forma taxativa os legitimados a requerer a instauração do incidente, devendo ser a parte interessada ou o Ministério Público quando atue no processo (desde que tenha lastro probatório mínimo a ensejar a instauração do incidente, em ambos os casos). (CÂMARA, 2015) Instaurado o incidente, prevê o novo código de processo civil a suspensão do processo até a sua resolução. Conforme defende Alexandre Câmara, trata- se de verdadeira vedação temporária a pratica de determinados atos do processo (ressalvado a pratica de atos urgentes, conforme artigo 314 do CPC), e que perdurará até a decisão do incidente, tratando-se assim de suspensão imprópria. (CÂMARA, 2015) A decisão que põe fim ao incidente tem natureza de decisão in-

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

terlocutória, pois esta não é apta a por fim ao processo ou a qualquer de suas fases, sendo assim impugnável por Agravo de Instrumento. Em que pese tratar-se de decisão interlocutória, o pronunciamento de mérito, que acolhe ou rejeita a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica, é apta a alcançar a autoridade de coisa julgada material, tornando-se imutável e indiscutível. (CÂMARA, 2015) Portanto, inserido no polo passivo da demanda, o terceiro que passa a integrar a lide tem o momento oportuno para contestar a pretensão e para impugnar eventual decisão, sendo que o pronunciamento final determina de forma definitiva a posição que este passará a ter no litígio. Por fim, acolhido o pedido de desconsideração, qualquer ato de alienação ou oneração de bens será presumido como objeto de fraude à execução, que será apurado desde o momento da citação do terceiro agora integrado à lide. (CÂMARA, 2015). Pelo todo exposto, trata-se de norma procedimental a ensejar verdadeiro contraditório substancial prévio, em resposta às distorções que vêm acontecendo na práxis forense, que de combate à fraude passou a ser verdadeira extensão de riscos por critérios econômicos. (SILVA, 2012). IX CONCLUSÃO: O AVANÇO LEGISLATIVO ATRAVÉS DO DECRETO LEI 13.105, DE 16.03.2015 A toda evidência, o novo código de processo civil traz em seu próprio espírito criador o avanço que pretende empreender, pois não fosse verdadeira comunidade de trabalho criadaxxiii, empenhada em realizar tal inovação legislativa, o resultado talvez não fosse refletir a mudança democrática que visa obter. O novo código obviamente não ensejará a mudança política e social que tanto se almeja em nossa política de Estado, mas poderá ser o ponto inicial de mudanças culturais e de comportamento para o exercício da cidadania, consubstanciado através do devido processo legal. O nosso questionamento inicial pode ser respondido pelo fato que não se trata de uma modulação da justiça da decisão emanada pelo Juíz, mas sim pelo caminho democrático em que o processo se desenvolve para chegar até ela, pois não há óbice à justiça quando se trate de um devido processo legal. O devido processo não se presta à medida da justiça do direito material, mas sim o justo modo do direito a ser atuado. Pois como emanação do poder soberano, somente será justo o poder exercido dentro dos ditames legais, não havendo mais espaços para as leis naturais ou de qualquer divindade, mas sim o poder de efetivar o escopo da jurisdição. Se outrora o Juiz fora o homem mais próximo de Deus, hoje a sua legitimação advém única e exclusivamente através do “povo”, conforme emana nossa lei maior, através do cidadão brasileiro no exercício dos seus direitos. (GONÇALVES, 2001) Assim, buscando proporcionar maior segurança jurídica àqueles que estejam subordinados ao Poder-Jurisdição, o novo código de processo civil traz a previsão processual da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, inovando em importante ferramenta não só para os que dela se beneficiam, mas também, para aquele que se vê ameaçado de ter seu patrimônio devassado pela determinação judicial imperativa do Estado. Assim preceitua Aroldo Plínio: Hoje, a instrumentalidade técnica do processo requer mais do que a garantia de participação das partes. Requer que essa participação se dê em contraditório, com igualdade de oportunidades, e que dela resulte essa consequência cujo alcance necessita ser apreendido em toda sua extensão, que é a participação dos destinatários da sentença em sua própria formação. Entre uma decisão “justa”, tomada autoritariamente, e uma decisão “justa”, construída democraticamente, não pode deixar

306

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


de haver diferença, quando se crê que a dignidade humana se realiza através da liberdade.” (GONÇALVES, 2001, p. 174) Na busca pela ponderação de princípios é que o ordenamento jurídico inovou na aplicabilidade do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, atingindo o equilíbrio de interesses públicos e particulares, adequando o novo processo civil as atuais necessidades sociais. Isto porque o Direito, como fruto de uma sociedade e de um tempo, deve andar em compasso com os anseios sociais, não cabendo se isolar apenas em sua teoria, como se uma ciência alquimista fosse, mas sim deve ser inserida no contexto político, econômico e social que a permeia. Para tanto, o novo código processual elevou o devido processo legal a seu patamar superior. Trata-se de um avanço legislativo na aplicação do instrumento processual adequado para os fins ao qual foi criado. Assim não nos filiamos aos que entendem haver um sacrifício à celeridade do processo em contraponto há uma segurança jurídica exacerbada. Isto porque notoriamente o pronunciamento que advém de um processo democrático enseja maior crédito pelo sujeito a ela subordinada, com efeito a sua execução não ensejará maiores debates. Ao contrário do que nos têm demonstrado as atuais decisões Solipcistas. REFERÊNCIAS ANDRADE, Guilherme Carvalho Monteiro de ... (et al). Uma breve analise sobre a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica pela administração no âmbito da nova lei anticorrupção (lei nº 12.846/2013). Transformações do direito na contemporaneidade: Reflexões sobre direito, mercado e sustentabilidade. Michael César Silva (coord.).Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva, 2015. V.2; 301 p. ASSIS, Araken de.Duração Razoavel do Processo e Reformas da Lei Processual Civil. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência,legislação e crítica judiciária, Porto Alegre: Notadez, Ano 56, nº 372, pag. 11 28, outubro de 2008. BARCELLOS, Alvacirde Sá.A desconsideração da personalidade jurídica nas execuções fiscais. Revista da AGU – Advocacia Geral da União. Brasilia- DF,Ano X – Numero 28 – , p. 29 – 68, abr./jun 2011 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. 758 p. (pag. 47/48) BUENO, Cassio Scarpinella. Desconsideração da Personalidade Juridica no projeto de novo código de processo civil. Direito Processual Empresarial: estudos em homenagem ao professor Manoel de Queiroz Pereira Calças/ Gilberto Gomes Bruschi (coord.) – Rio de Janeiro: Elsevier, p. 117-128, 2012. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito processual Civil.: Volume 1 25 ed. São Paulo: Atlas, 2014. 605 p. CÂMARA, Alexandre Freitas. Capitulo IV: Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Breves Comentários ao Novo Código de processo Civil/ Thereza Arruda AlwimWambier...(et al), coordenadores. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, p. 425 – 445, 2015. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988. 168 p. CAPPELLETTI, Mauro, 1927. O processo civil no direito comparado; trad. De Hiltomar Martins de Oliveira – Belo Horizonte: Cultura Jurídica – Ed. Líder, 2001. 116 p. (Pág. 18.) CARVALHO, Olavo de. Historia Essencial da Filosofia. Aula: 14: Idéia versus realidade –São Paulo: É realizações, 2005. 54 p. COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2: direito de empresa

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

– 10 ed. ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2007. 516 p. COMPARATO, Fabio Konder, 1936. Direito Empresarial: estudos e pareceres – São Paulo: Saraiva, 1995. 553 p. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito – 3ª ed. rev. e ampl. – Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2015. 248 p. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional – Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 240 p. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: volume 1. 16. Ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2014. 650 p. DIDIER JR. ,Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte gerale processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. V.1.786 p. DONIZETTI, Elpídio. Novo código de processo civil comparado: CPC/73 para o NCPC e NCPC para o CPC/73. São Paulo: Atlas, 2015. 960 p. FRONTINI, Paulo Salvador. Função Social da Companhia: Limitações do poder de controle. Temas de direito societário e empresarial/ Marcelo Vieira Von Adamek (coord.). Editora Malheiros, p. 535 – 551, 2011. GONÇALVES, Aroldo Plínio, 1943. Técnica processual e teoria do processo – Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2001. 224 p. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis.Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do código civil. 4 ed. ver. Atual. E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. 780 p. LEAL, Rosemiro Pereira, 1940. Teoria Geral do processo: Primeiros estudos. 9 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2010. 350 p. 57. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Campinas: Millennium, 2000, 4v. 615 p. (volume 1) NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil.6 ed. ver. Atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. NUNES, Dierle. CÂMARA, Bernardo Ribeiro. Curso de direito processual civil: fundamentação e aplicação.2 ed. Belo Horizonte: Forum, 2013. 679 p. PARENTONI,Leonardo Neto. Desconsideração Contemporânea da Personalidade Jurídica – Dogmática e Analise Cientifica da Jurisprudencia Brasileira.São Paulo: QuartierLatin, 2014. 219 p. PAROSKI, Mauro Vasni. Reflexões sobre a morosidade e o assedio processual na justiça do trabalho.Revista do tribunal Superior do Trabalho, Rio de Janeiro: Magister, Vol 75, n.4, p. 82 – 110, Out/Dez 2009. RAMOS, André Luiz Santa Cruz.Direito Empresarial Esquematizado – 3 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2013. 826 p. RAWLS, John. Uma teoria da justiça.tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves – São Paulo: Martins Fontes, 1997. 708 p. SANTANA, Alexandre Ávalo. A reforma processual sob o prisma de um “Novo” preceito constitucional (Razoavel Duração) e a concepção sincrética do processo. Revista Magister de Direito Civil e processual Civil, Porto Alegre: Magister, v.29, p. 77 – 82, mar/abr 2009. SILVA, Bruno Freire e. MATOS, Rafael Alfredi de. A desconsideração da personalidade jurídica na justiça do trabalho e os princípios do devido processo legal e contraditório. Direito Processual Empresarial: estudos em homenagem ao professor Manoel de Queiroz Pereira Calças/ Gilberto Gomes Bruschi (coord.) – Rio de Janeiro: Elsevier, p. 106 - 116, 2012. THEODORO JUNIOR, Humberto et al. Novo CPC - Fundamentos e sistematização. 2 ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. 423 p. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito processual Civil – teoria geral

307

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


do direito processual civil e processo de conhecimento – vol. I – Rio de Janeiro: Forense, 2013. 844 p. THEODORO JUNIOR, Humberto. Direito Processual Constitucional. Revista Magister de Direito Civil e processual Civil. Porto Alegre: Magister, v.25, p. 26 – 38, jul/ago 2008. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Parte geral – 2 ed. – São Paulo: Atlas, 2002. V.1. 631 p.

NOTAS DE FIM 1

Acadêmico da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

2

Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

A Enron admitiu após investigações do governo americano que havia inflado os seus lucros, o que rebaixou o valor de suas ações. A queda afastou a alternativa de venda da companhia como forma de solucionar sua crise financeira, o que a levou para o processo de concordata em 2 de dezembro.A rápida transformação da Enron de uma das companhias mais admiradas do mundo em protagonista da maior concordata da história corporativa dos Estados Unidos levantou grandes suspeitas sobre as transações da empresa.Uma série de investigações realizadas pelo Congresso americano e por órgãos reguladores chegaram ao ponto máximo quando foi anunciado que, além das investigações financeiras, uma investigação criminal seria instalada. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/economia/020128_esp_eronqa.shtml> acesso em: 15 de out. de 2015.

vi

vii A Operação Lava Jato e seus desdobramentos são hoje o fato central da vida brasileira, pela desestabilidade que causam nos agentes políticos, e nas dificuldades que acrescentam ao dia - a-dia material de todos. A população sofre consequências diretas porque, ao acusar criminalmente os gestores das maiores empreiteiras do país, as investigações limitam o ritmo de atividade de negócios em geral, e da construção civil em particular, reforçando o ciclo de desemprego, já nitidamente instalado. A taxa nacional de desemprego evoluiu de 6,2% ao final de 2013 para 6,9% ao final de 2014, para 8,1% no segundo trimestre de 2015. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/petrobras-as-causasda-crise-alem-da- lava-jato-305.html> Acesso em: 15 de out. de 2015.

viii Os tribunais estão abarrotados de casos em que a empresa é utilizada como recurso para atividades fraudulentas. Por exemplo, buscando no site do TJMG as palavras “Pessoa Jurídica” e “fraude” obtêm-se 903 julgados. Pesquisa jurisprudencial realizada em 30/10/2015 às 17:20 horas.

Parentoni aduz que tal denominação deve-se a dois principais fatores; 1) porque afasta o preconceito de rotula-la como teoria menor, uma vez que a pratica revela ser ela medida em numero significativo; 2) por ser fruto da evolução histórica do nosso direito.(PARENTONI, 2014, p. 173)

ix

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

x

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior;II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

lícita; d) Inobservância, pelo membro de um centro autônomo de imputação de direitos e deveres, do distanciamento característico desse centro; E) Inexistência de dispositivo legal que atribua responsabilidade pessoal e direta. (PARENTONI, 2014, p.72) xiv Fabio Ulhoa Coelho aduz que a teoria menor da desconsideração reflete a crise do principio da autonomia patrimonial, pois o seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão de insolvabilidade ou falência desta . De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. (COELHO, 2007, p.47)

xv No REsp: 686112 RJ o STJ proferiu decisão que “(...)DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA DOS BENS DO SÓCIO. NECESSIDADE DE CITAÇÃO.(...) Impõe-se a citação do sócio nos casos em que seus bens sejam objeto de penhora por débito da sociedade executada que teve a sua personalidade jurídica desconsiderada. (...).”, lado outro o mesmo STJ proferiu decisão em sentido contrário, através do AgRg no REsp nº 1523930/RS aduzindo que “(...)DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE CITAÇÃO DOS SÓCIOS ATINGIDOS. PRECEDENTES. VERIFICAÇÃO DA PRESENÇA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. (...)Segundo a jurisprudência do STJ, a desconsideração da personalidade jurídica, como incidente processual, pode ser decretada sem a prévia citação dos sócios atingidos, aos quais se garante o exercício postergado ou diferido do contraditório e da ampla defesa. Precedentes de ambas as Turmas que integram a Segunda Seção do STJ. (...)”

No Agravo de Instrumento 785224 ES o STF decidiu que “(...)VIOLAÇÃO REFLEXA OU INDIRETA. 1. A simples referência a principio ou dispositivo constitucional não consubstancia, por si só, impugnação a fundamento do acórdão, fazendo -se necessária a demonstração do aspecto específico da pretendida ofensa à Constituição. Precedentes. 2. Não cabe recurso extraordinário por contrariedade a princípios constitucionais, quando sua verificação pressuponha rever interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida. Precedentes (...).”

xvi

xvii Aduz o professor Ronaldo Bretas que a partir da vigência do CPC de 1973, o Brasil foi acometidopor espécie de processomania, mal degenerativo da ciência do direito processual, que se tornou o gerador da produção de textos doutrinários depauperados e anêmicos de conteúdo cientifico, negligenciando a concepção do processo como garantia das pessoas, pois voltados unicamente para a malsinada e infecciosa pratica forense ou para concursos públicos destinados ao preenchimento de cargos ligados à carreira jurídica.(CARVALHO DIAS, 2015, p. 125)

Art. 4º - As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.(DONIZETTI, 2015, p.474)

xviii

xix Art. 6º - Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. (DONIZETTI, 2015, p. 474)

Neste sentido Ronaldo Brêtas aduz como “etapas mortas”, aquelas as quais traduzem longos espaços temporais de completa inatividade procedimental. (CARVALHO DIAS, 2015, p. 207)

xx

xi

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Dierle Nunes cita a pratica que se vê de posicionamento absolutamente restritivo que os tribunais vêm adotando em relação à recorribilidade das decisões proferidas em consonância com os paradigmas firmados, em uma tendência de engessamento do Direito e de supressão de discussões sobre teses jurídicas já decididas. (THEODORO JUNIOR, 2015, p. 346.)

xxi

xii

conforme nos ensina PARENTONI que são : A) Existência de um centro autônomo de imputação de direitos e deveres, dotados de patrimônio próprio, ao qual se limita a responsabilidade de seus membros; B) Existência de atividade praticada por meio desse centro de imputação; C) Atividade formalmente xiii

LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685

xxii Ressalta-se a situação especial em que o pedido já pode ser formulado na Petição Inicial (art.134, § 2º), ocasião em que não será necessária a instauraçãodo incidente.

xxiii Neste sentido comunidade de trabalho seriaa cooperação no processo legislativo daqueles que atuaram para a elaboração do Novo Código de Processo Civil, através do marco do Estado Democrático de Direito, com a contribuição de diversos juristas de todo o país, bem como a participação da população brasileira para aprimorar a lei editada.

308

CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.