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direito PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA N.24 | 2O SEMESTRE DE 2014
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Centro Universitário Newton PAIVA ESCOLA DE DIREITO Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
expediente ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO Presidente do Grupo Splice: Antônio Roberto Beldi Reitor: João Paulo Beldi Vice-Reitora: Juliana Salvador Ferreira Diretor Administrativo e Financeiro: Marcelo Vinicius Santos Chaves Secretária Geral: Jacqueline Guimarães Ribeiro Coordenador do Curso de Direito: Emerson Luiz de Castro COORDENAÇÃO ADJUNTA: Douglerson Santos e Valéria Edith Carvalho de Oliveira
ORGANIZADOR Gustavo Costa Nassif
CONSELHO EDITORIAL Professor Mestre Bernardo Gomes Barbosa Nogueira (Newton Paiva) Professor Mestre Emerson Luiz de Castro (Newton Paiva) Professor Doutor Gustavo Costa Nassif (Newton Paiva) Professor Doutor Jorge Claudio de Bacelar Gouveia (Universidade Nova de Lisboa) Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães (UFMG) Professor Doutor Ricardo Rabinovich-Berckman (Universidade de Buenos Aires) Professor Doutor Rubén Martínez Dalmau (Universidade de Valência – Espanha) Professora Doutora Tatiana Ribeiro de Souza (UFOP)
apoio técnico Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton pAIVA http://npa.newtonpaiva.br/npa Editora de Arte e Projeto Gráfico: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG diagramação: Kênia Cristina e Márcio Júnio (estagiários do curso de Jornalismo)
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editorial
Quem fala demais não fala direito “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” Guimarães Rosa
Extraordinária é uma palavra na maioria das vezes empregada como elogio a algo que salta aos olhos. Salta ao comum dos olhares. Um olhar sempre salta quando alcança o objeto que se dá a ele em pura doação de si. Como seres hermenêuticos, nosso olhar sempre está a procura de algo. Seria desatenção não enxergar o ordinário? E o óbvio, estaria ali e de tão perto não visto? Precisamos falar o óbvio? É possível não vê-lo? Mas se óbvio, como não enxergarmos? Um salto aos olhos é aquilo que faz chorar? Que como um cisco nos olhos incomoda? Estaríamos perdendo a candura dos momentos ordinários m busca de um momento espetacular? Enxergar, de per si não é espetacular?Vê-se apenas com os olhos? E o momento clichê, aquela decisão de um magistrado mais ocupado com a carne do que com a meta do CNJ? A simplicidade de Guimarães Rosa não saltaria aos olhos contemporâneos? Essas questões enredam qualquer palavra que esteja a nortear o momento nosso. Ora, nesse tempo, em que apresentamos duas a segunda edição do semestre da Revista da Escola de Direito do Centro Universitário, nos questionamos: é extraordinário um segundo volume no mesmo semestre? Seria excesso? Reflexão demais em um tempo quase sem tempo? Zelo excessivo com nossos leitores? Não bastaria desejar bom fim de ano? Férias forenses. Acadêmicas. Descanso? Nosso pensamento cessa de trabalhar? E o tempo, pára? Essa edição talvez seja uma boa explicação do que foi o próprio ano de 2014. Entre a extraordinária Copa do Mundo. Em todos os sentidos: desde gastos exorbitantes, até sabermos aqui mesmo em nossas Minas Gerais, que não somos mais o ”país do futebol”. Eleições. Estas também extraordinárias. A mostrar uma excessiva participação. Em um local ainda desconhecido de muitos da política. Temos um mundo extra: as redes sociais. Mas nossos avós, não possuíam redes sociais? Sim, mas nem tanto, diriam. E mais uma vez o problema do excesso. Participação e fala demais não seria o palavrório já anunciado por Heidegger, o filósofo extraordinário da Alemanha. Eventos demais não esvaziam cofres públicos? E legislação em excesso? É bom ou mal? Leis extraordinárias. Julgamentos extraordinários. É tempo de relembrar os gregos antigos e reinventá-los agora: Ensinaram-nos que o espanto é o início do saber. Mas então seria o saber extraordinário apenas? E as outras edições da Revista não nos ensinam nada? Não daria para aprender em silêncio? Sem neon? Holofote ou aplausos estéreis? É o fim do pensador e de agora em diante estamos entregues à melhor técnica de apresentação? A leitura cuidadosa agora cede lugar ao prezi. Heidegger e Habermas nos alertaram para o saber técnico e estratégico. Cada um à sua maneira. Mas então logo agora, nesse tempo de feitos tão extraordinários: estaríamos entregues à nossa própria gana científica? A ciência não tem ética! E o direito? E a fragilidade levada ao tribunal: salta aos olhos? E o fracasso do nosso país em nossa própria casa, nos comove? Aliás, as sentenças sem reflexão, as petições na mesma toada, ainda vale a leitura de um artigo ou apenas ctrl c – ctrl v? O melhor jurista é o mais hábil com as palavras, no melhor sentido Sofista, ou aquele que ainda enxerga rosto mesmo quando não há um holofote com um sobrenome ou conta bancária por detrás? Essa edição da Revista da Escola de Direito, longe do extraordinarianismo, que excede, sufoca e transborda, talvez esteja próxima a Riobaldo, incansável professor da vida, quando nos diz: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.” Assim, oferecemos ao leitor, nesse ano extraordinário, nossos últimos momentos de reflexão. No exato tom da imensidão de nossas montanhas. Extraordinárias por certo, mas com a exata noção do silêncio que carece um amor bem vivido. Pela vida ou pelo direito. Bernardo G.B. Nogueira Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2/2014 - N. 24 - ISSN 1678 8729
sumรกrio
A IDENTIFICAÇÃO DO CONCEITO DE POVO NO REGIME DEMOCRÁTICO BRASILEIRO Ludmila Castro Veado Stigert Marlene Mendonça Martins..............................................................................................................................8
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS MUNICIPAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES Vivian do Carmo Bellezzia.....................................................................................................................................................................................13
UMA BREVE ANÁLISE A ALGUMAS TEORIAS DA RACIONALIDADE DA DECISÃO JUDICIAL Daniel Guimarães Medrado de Castro..........................................................................................................................................................19
A QUEM SERVE A GLOBALIZAÇÃO? Gustavo Costa Nassif............................................................................................................................................................................................25
ENTRE O FACTUAL E O NORMATIVO: anotações sobre o problema da ordem Carlos Magalhães.................................................................................................................................................................................................30
O que vale a pena: diálogo com “O Rappa” e os direitos humanos Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.............................................................................................................................................................35
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A IDENTIFICAÇÃO DO CONCEITO DE POVO NO REGIME DEMOCRÁTICO BRASILEIRO Ludmila Castro Veado Stigert1 Marlene Mendonça Martins2 RESUMO: O presente artigo buscou elucidar de uma forma sintética o conceito de povo nos moldes de um Estado que se diz Democrático e de Direito. A análise buscou centrar as suas referências dentro do contexto brasileiro, principalmente nas perspectivas atuais de total diversidade política, social, econômica e cultural e buscou como referencial os ensinamentos de Frederich Muller em sua obra Quem é o Povo (2013). Ao final, destacou a necessidade de se buscar a efetividade dos direitos fundamentais para a construção de um regime político democrático. PALAVRAS-CHAVE: Povo. Democracia. Direitos fundamentais. ABSTRACT: This paper aims to elucidate a synthetic form of the concept of people along the lines of a State which says Democratic and Law . The analysis sought to focus its references in the Brazilian context , especially in the current prospects of full diversity policy , social , economic and cultural and sought as a reference the teachings of Friedrich Muller in his work Who is the People (2013 ). Finally, stressed the need to seek the effectiveness of fundamental rights for the construction of a democratic political regime . KEYWORD: People. Democracy. Fundamental rights. Área de interesse: Direito Constitucional 1. INTRODUÇÃO Esse artigo visa analisar o conceito de povo adquirido e construído na era moderna, relacionando-o a ideia de povo à existência de um regime constitucional democrático, sobretudo no sistema brasileiro, bem como a sua importância com o surgimento da ideia de Estado Democrático de Direito e de efetividade dos direitos fundamentais. O povo, no Estado Democrático deve ser concebido como instância de legitimidade dos atos estatais, pois possui legitimidade e soberania para escolher seus representantes que, de forma direta passará a agir em nome deles, bem como para atuar diretamente e participativamente na construção das decisões políticas da sociedade. A obra do autor Friedrich Müller (2013) Quem é o Povo nos oferece uma reflexão acerca do conceito de povo no regime democrático levando o leitor a uma análise crítica, pois a atuação do povo diante da atuação do Estado merece algumas considerações. Para tanto, o autor articula quatro conceitos de povo, encaixando-os na realidade do regime democrático que na realidade precisa de atenção. Nas ultimas décadas é de se perceber no Brasil uma crise de legitimidade das instituições e um profundo mal-estar com a democracia no país. O problema central, portanto, mostra-se na falta de legitimidade das instituições de representação bem como na falta de efetividade dos direitos fundamentais dos cidadãos. Há um esgotamento e uma descrença nas democracias representativas de uma maneira geral e especialmente em relação aos partidos políticos. Existe assim uma crise da própria democracia representativa. Essencialmente, os cidadãos não se sentem representados nem pelos partidos e muito menos pelos governantes que são eleitos por eles. È necessário que o povo como titular do poder constituinte seja levado á sério por seus representantes, pois, diante de tantas situações catastróficas vivenciadas pela sociedade em toda esfera administrativa do Estado, há de se pensar que esse “povo” expresso no texto constitucional encontra-se desvalorizado e sem as devidas oportunidades de participação. E, por
isso, defendemos a ideia de que a democracia só existe na perspectiva de um Estado que se preocupe em adotar políticas que busquem efetivar os direitos fundamentais dos seus cidadãos. 2. O POVO E O CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO Em sua obra Quem é o Povo, do filósofo e jurista Friedrich Müller (2013), foi feito um discurso de lançamento no dia de sua publicação com a existência de vários questionamentos quanto à questão fundamental da democracia, e, ficou bem esclarecido o que é o povo, mas quem é esse povo? Segundo o jurista, esta pergunta nunca é formulada para ser examinada criticamente, com suas próprias intenções e valores, dando a entender que todos sabem quem é esse povo. Mas, refletindo sobre a temática, algumas indagações são levantadas: Quem é o povo? As pessoas que vivem legalmente no país? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares dos direito civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas os adultos? Apenas os membros de determinados grupos étnicos, religiosos ou sociais? A obra de Müller (2013) publicada no Brasil faz algumas referencias sobre o direito constitucional brasileiro e nos leva a tirar a venda dos olhos quanto ao conceito de povo. Há quem designe povo como população que significa mera expressão numérica, demográfica, ou econômica, que abrange o conjunto das pessoas que vivem ou está temporariamente no território de um Estado. Outra expressão colocada como sentido de povo é nação, que, segundo historiadores, ganhou no século XVIII efeito de se tornar a expressão povo, unidade homogenia, ganhando ênfase durante a Revolução Francesa, levando a introduzir a terminologia jurídica o termo nacionalidade. Portanto, nenhuma dessas expressões é adequada para qualificar uma situação jurídica, não sendo correto o uso das expressões com o sentido de povo. A noção de povo vem sendo questionada desde a antiguidade clássica por vários estudiosos em matéria de teoria política e de direito público. Os gregos com o ideal de liberdade para todos forneceram as raízes para contribuição do que entendemos hoje como democracia. Estimulados nos ideais de que tudo deveria ser
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debatido e decidido de forma consensual, os iluministas pensaram a substituição das relações feudais de poder pelo (demo (gr.) povo + cracia (gr.) poder), formando a expressão democracia, que significa o governo do povo para o povo. Porta voz dos novos tempos, o iluminismo projetou, com as luzes da razão, os princípios em que se basearia a sociedade prestes a se consolidar: igualdade de direitos, liberdade de pensamento, Estado constitucional, democracia representativa, livre escolha dos governantes. A história relata as revoluções que ocorreram objetivando a formação de um Estado de Direito. . Silva (2014) discorre que a democracia não precisa de pressupostos especiais. Basta a existência de uma sociedade, pois se o seu governo emana do povo, é democracia; se não, não o é. Não podemos deixar de falar de povo, estando diante de um Estado Democrático, pois o povo deve ser assunto de grande relevância no direito constitucional. Assevera Müller (2013, p. 87) que “O Estado Constitucional foi conquistado no combate contra uma história marcada pela ausência do Estado de Direito e pela falta de democracia e esse combate continua”. É necessária a continuação desse combate, pois, o povo é invocado nas Constituições na posição como se fosse um assunto que se vai desenvolver, com um caráter representando mais símbolo do que realidade. Aparece na teoria jurídica da democracia como um conjunto de homens livres que agem racionalmente, mas na verdade tudo não passa de historinhas. O discurso de Gettysburg é o mais famoso discurso do presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln. Foi proferido na cerimónia de dedicação do Cemitério Nacional de Gettysburg na tarde do dia 19 de Novembro de 1863, onde Lincoln invocou os princípios de igualitarismo da Declaração de Independência e definiu o final da Guerra Civil como um novo nascimento da Liberdade que iria trazer a igualdade entre todos os cidadãos, criando uma nação unificada em que os poderes dos estados não se sobrepusessem ao “Governo do Povo, Pelo Povo, para o Povo”. Mas que povo é esse? Müller (2013) busca analisar o conceito de “povo” partindo da seguinte divisão: povo como povo ativo, povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo como ícone, povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado. Segundo Müller (2013), entende-se como povo ativo aquele titular de nacionalidade de acordo com as prescrições normativas do texto constitucional. “Por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade” (p. 56). Tal nacionalidade estabelecida pelo direito positivo concretiza-se na totalidade dos eleitores de um Estado. Vejamos cada um desses conceitos articulados pelo autor. Müller (2013), com objetivo de fortificar o conceito de povo ativo, faz menção à situação dos estrangeiros na União Europeia: Tradicionalmente esse dimensionamento para os titulares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas não se compreende por evidência. Estrangeiros, que vivem permanentemente aqui trabalham e pagam seus impostos e contribuições pertencem à população. Eles são efetivamente cidadãos. (faktisch Inlander), são atingidos como cidadãos de direito (rechtliche Inlander) pelas mesmas prescrições ‘democraticamente’ legitimadas. A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática. Especialmente deficitário em termos de fundamentação é o princípio da ascendência (ius sanguinis), que representa uma construção de fantasia, não uma conclusão fundamentável pela empiria (sangue). Já que não se pode ter o autogoverno, na prática
quase inexequível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político (p.57). O autor ao afirmar que o conceito de povo das constituições atuais não deveria ser qualificado por meio das regulamentações do direito eleitoral, ele expressa com ênfase e conclui que “o Povo ativo não pode sustentar sozinho um sistema tão repleto de pressupostos” (p.58). Segundo sua reflexão, o povo ativo atua sozinho frente ao Estado, que possui um sistema duvidoso e incerto, o Estado se possisona como se esse povo ativo fosse todo o povo que pertence à nação. Seguindo, Müller (2013) analisa o conceito de Povo como instância global de atribuição de legitimidade, que aceita todas as imposições do estado sem questiona-lo, fica de plateia, somente se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, apesar de, num sistema autoritário, o povo seja fartamente invocado como instância de atribuição. Assevera o autor “depois só tem (des) valor ideológico, não mais função jurídica” (p. 61). O referido conceito torna-se mais acessível a partir da compreensão da ideia de estrutura de legitimação. Segundo o autor (2013), o povo ativo decide diretamente ou elege os seus representantes, para ser a voz do povo, nas assembleias, nas deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, tais normas, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo, enquanto população. As normas são publicadas e aplicam-se às relações entre o indivíduo e o Estado e entre os particulares de forma geral, ou seja, o povo ativo elege representantes que elaboram normas que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo. Salienta Muller (2013) com relação à estrutura de legitimação, Tudo isso forma uma espécie de ciclo (Kreislauf) de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação. [...] Parece plausível ver nesse caso o papel do povo de outra maneira, como instancia global de atribuição de legitimidade democrática. É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais em ‘nome do povo (p. 60). Segundo o autor, o direito de legitimar do povo não funciona no caso das atividades dos Poderes Executivo e Judiciário, que devem ser democraticamente justificadas e fundamentalmente estão interligados com a noção de Estado de Direito e democracia. Para ele, em termos do Estado de Direito, há uma contradição no discurso da democracia quando diz que o povo ativo ainda estaria atuando por intermédio de seus representantes. Diante disso, o ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido tirando do povo ativo o autentico e completo direito de legitimação na esfera administrativa e judicial. Müller (2000) conceitua o povo como ícone dando a essa representação uma ideia de povo intocável, sua figura não se compara ao povo ativo nem ao povo de atribuição, uma imagem que só existe no domínio das ideias e discursivamente construída como una e indivisível. Não diz respeito a nenhum cidadão ou grupo de pessoas. Pelo contrário. É um povo abstrato na vida real. E é exatamente este povo, o povo ícone a figura invocada pela minoria detentora do poder; historicamente as políticas repugnantes, discriminatórias e violentas são respaldadas por discursos como em nome do povo. Com suas palavras, Muller (2013) discorre:
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O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ (entrealisieren) a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral em instituí-la assim, como padroeira tutelar abastrata, tornada inofensiva para o poder-violência – ‘notre bom peuple” (p. 67). Conforme argumenta o autor, quando se diz o governo do povo para o povo, dando a ele uma posição de poder, já espelha ilusoriamente o uno. Sendo a população composta de um povo de diferente atuação na luta social, a iconização consiste em torna em povo a população diferenciada, ou seja, os grupos dominantes têm em suas mãos parcela do povo que ainda estão presos na caverna deixando que a escuridão os impeça de sair enxergar a potência que juntos possuem. Os dominantes os têm como constituintes mantenedores da Constituição em seus discursos domingueiros, pois: O povo e o seu poder, sem os quais a sociedade nem seria capaz de receber uma constituição não pode permanecer uma metáfora citada em discursos domingueiros inofensivos. Muito pelo contrário, o poder constituinte do povo deve tornar-se práxis efetiva. Faz-se mister delimitar inequivocamente essas diferenças na utilização do conceito de povo (Muller, 2013, p.35). Finalmente, na analise da divisão do conceito de povo, Müller (2013) ao elaborar um conceito perfeito de povo, no sentido de mais democrático, denominou povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado afirmando que: A função do “povo” que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigentes, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de “demos”, de categorias distintas. [...] Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima [...]. Ideia do “povo” como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal – totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no território do respectivo Estado (p.76). Quando um indivíduo reside, trabalha, estabelece laços pessoais e materiais dentro do território de um Estado constitui um fenômeno capaz de originar obrigações (tributárias, civis, administrativas), mas, além disso, ele também é capaz de gerar direitos subjetivos, ou seja, eleva-se o posicionamento deste indivíduo ao posto de cidadão competindo-lhe juridicamente direito de atuação em toda esfera do Estado. Argumenta o autor que “o mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo, menos irrelevante” (Muller, 2013, p.75). E adverte ainda que, “podemos denominar essa camada funcional do problema “o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado (zivilizatorische Staatsleistungen)”, como “povo-destinatário” (p.77). Democracia é direito positivo, escrito, gravado nas Leis, Códigos e na Constituição e deve ser respeitada pela sociedade como um todo, no âmbito da sua cracia. Nesse contexto, aqueles que não consideram o problema da exclusão social, usam a expressão povo de forma puramente icônica; eles não são partidários da democracia, não pertencem à classe popular, não participam do discurso democrático. Percebe-se ao longo do estudo que o autor não se preocupou em dar o significado da palavra povo, mas como ela é utiliza-
da e sua intimidade com o Estado de Direito que se define como democrático. Para ele, a legitimidade do sistema democrático não está somente na busca de uma conceituação jurídico política de povo, mas principalmente em levar o povo a sério; povo este considerado como uma realidade viva em um mundo concreto. Sendo assim os quatro tipos de povos apresentados pelo autor ou conceito de povo é apenas uma forma de representar a postura do povo que vive num regime democrático. (Müller, 2013). 3. QUEM É O POVO BRASILEIRO? Müller (2013) sustenta que a referência ao povo é indispensável, sendo o sistema estruturado com base na soberania popular, na autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de acordo com a vontade da maioria. Diante de tal circunstância, podemos concluir que o conceito de povo está intimamente ligado ao conceito de democracia, especialmente porque é o povo quem legitima o poder político estatal. Nesta direção, assinala Müller (2013) que a ideia fundamental de democracia reside na “determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo” (p. 57). Frisa ainda o autor que a democracia avançada vai muito além da estrutura de meros textos; e diz, significa: Um nível de exigências, aquém do qual não se pode ficar – e isso tendo em consideração a maneira pela a qual as pessoas devem ser genericamente tratadas nesse sistema de poder – violência [Gewalt] organizados (denominado “Estado”): não como subpessoas [Unter – Menschen] não como súditos [Untertanen], também não como caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do Soberano, do “povo” que legitima no sentido mais profundo a totalidade desse Estado (p. 115). Todo o povo, indistintamente, é detentor do poder constituinte, possuindo o direito de participar diretamente do governo, como preconiza o art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, mais especificamente no parágrafo único do artigo 1º, o constituinte fez constar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição” (REPÚBLICA, 1988). Portanto, diante as argumentações de Muller (2013), podemos dizer que em qualquer sistema democrático, assim como no sistema democrático brasileiro, podemos utilizar os quatro conceitos de povo delineados pelo autor. Nota-se que não existe complexidade em sua aplicação, no entanto, os atributos particulares do sistema democrático brasileiro faz tornar-se difícil a aplicação de tais conceitos. No tempo presente, se restringíssemos à classificação de povo como povo ativo, estaria excluindo milhões de brasileiros, pois, o artigo 14 da Constituição Federal estabelece que a obrigação atinja os brasileiros alfabetizados que têm entre 18 (dezoito) e 70 (setenta) anos de idade; para os analfabetos, os maiores de 70 (setenta) e os que têm entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos, o voto é facultativo. E mais, os estrangeiros, os condenados e os militares constritos são proibidos de votar. Com isso, o povo ativo se limitaria a 2/3 da população brasileira, ou seja, o povo está atuante no eleitorado por frações e não por totalidade. Vemos também que parcela do povo não tem interesse pelas questões públicas, a política não é uma dimensão que atrai, citam crítica aos políticos, ou motivo ideológico, para a escolha. A maioria fala em não ter interesse, não fazer diferença se votam ou não. Comparando o povo como instância global de atribuição de legitimidade, que é aquele que se sujeita ao ordenamento
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jurídico, parte-se da ideia de um povo que só se justifica quando presente ao mesmo tempo a figura do povo ativo, os quais elegem seus representantes, e são responsáveis pela formação do ordenamento jurídico. Sendo assim, onde se encaixa aqueles que residem no Brasil, se sujeitam às nossas normas, mas são estrangeiros? Sendo que num sistema democrático povo entende-se como um todo. Para onde vai o direito de legitimidade deles que faz parte desse todo? Pois possuem obrigações e estão sujeitos as normas do Estado, como qualquer outro brasileiro nato, além do mais, eles beneficia dos benefícios existentes no Estado. Partindo da comparação de um povo como destinatário das prestações civilizatórias do Estado deveriam ser todos aqueles, ativos ou não, legitimados ou não, mas, que se encontram no nosso território. Contudo, nesse conceito não se inclui os excluídos e as minorias. No ponto de vista de Müller (2013), numa sociedade avançada existe uma anomalia no padrão normal de uma função setorial provocada por uma divergência nos segmentos da ordem social e jurídica. Assevera o autor: Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencialmente e difusamente dos sistemas prestacionais [...] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa “marginalização” como subintegração (P. 91). Levando para uma reflexão que trata da exclusão social brasileira é deparar com a realidade de milhões de pessoas, cujo acesso aos serviços básicos de saúde, educação, informação e desenvolvimento social são seriamente limitados, por vezes inexistentes. A desigualdade social é uma expressão que dentro de um Estado, possui uma extensão tão grande e abrange a miséria que envolve grandes grupos populacionais que para Muller, são os desprivilegiados, os excluídos e diante de tal situação se vê a pobreza da política. Se igualar como povo ícone, pode-se dizer que esse povo participa do processo democrático, porém essa participação é manipulada, forçada e comprada por governantes que através de programas sociais insuficientes, passam a imagem de representantes preocupados com a desigualdade e exclusão social, tais programas não passam de pretextos que domina consideráveis parcelas da população dando a entender em seus discursos eleitorais que são prioridade em suas agendas. Muller (2013) afirma que, “o poder - violência encara o povo como seu aliado; o povo encontra-se sob o poder violência de um Estado, que mantém o povo para si – seu povo do “poder constituinte”, de um santinho de forte luminosidade” (p. 70). Segundo Comparato (2012), ainda há muita diferença entre o que está estabelecido na lei e o que está posto na prática. Assim aduziu em uma reportagem reproduzida pelo Jornal Brasil de Fato: E o que caracteriza a vida política brasileira é a duplicidade, com a existência de dois ordenamentos jurídicos: a organização oficial e a organização real. E também no sentido figurado há duplicidade, ou seja, o verdadeiro poder é dissimulado, é oculto. Nós encontramos na Constituição a declaração fundamental no artigo 1º, parágrafo único de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. Mas na verdade, o povo não tem poder algum. Ele faz parte de um conjunto teatral, não faz
parte propriamente do elenco, mas está em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores e para vencer isso não basta mudar as instituições políticas, é preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais. E a nossa mentalidade coletiva não é democrática. O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Não sabe que é um regime político em que ele tem o poder em última instância e que ele deve decidir as questões fundamentais para o futuro do país. Não sabe que ele deve não somente eleger os seus representantes, mas também poder de destituí-los. O povo não sabe que ele deve ter meios de fiscalização contínua dos órgãos do poder, não apenas do Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário, que se verificou estar corrompido até a medula, com raras e honrosas exceções. Assim nós chegamos ao século 21 numa situação de duplicidade completa. Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que até hoje permanece intocável, dizendo que nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular. Não existe a possibilidade de democracia sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. E o chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem de séculos essa mentalidade de submissão, de passividade. Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Nós vemos isso cotidianamente, nunca nos insurgimos contra uma lei que consideramos injusta, mas simplesmente nós desviamos da proibição legal (COMPARATO, 2012). Através das histórias vivenciadas na busca de um estado democrático, podemos dizer que a democracia é um mero conceito que encontra-se em um processo de constante construção e aperfeiçoamento, pois não existe um conceito universal aplicável a toda forma de democracia. O povo com um espírito totalmente democrático não existe, ou, quando muito, encontra-se em processo de construção. Nos dias atuais percebemos a um total desinteresse de uma boa parcela do povo brasileiro, que não acredita mais nos representantes que eles escolhem e nas instituições, além do mais nota-se que é raro ver a juventude o futuro de um país, se interessar por questões públicas e políticas. Há também descrença, no poder Judiciário, nas instituições que cuida da segurança da sociedade o que, traz uma sensação de insegurança de certa afasta, ainda que discretamente, a essência da democracia, que é o governo do povo para o povo. 4. CONCLUSÃO Com o intuito de analisar as ideias introduzidas na obra do autor Friedrich Muller (2000), e aplicá-las ao conceito que entendemos de povo, percebemos que o autor não se preocupou em trazer a reflexão um significado ao conceito de povo, mas mostrar a importância e a necessidade de um regime democrático em levar o povo a sério como um povo titular de legitimidade e possuidor de direitos fundamentais, principalmente os ligados à participação e comunicação. No Brasil, todo o povo, indistintamente, é titular do poder constituinte, possuindo o direito de participar por meio de representantes eleitos ou mesmo diretamente do governo, porém o povo destacado no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, não é dotado de uniformidade, e, mesmo se houvesse possibilidade de classificá-lo como povo ativo, instância
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global, como ícone ou como destinatário das prestações civilizatórias, seríamos criticados, pois, o nosso sistema democrático é atípico devido às inúmeras divergências nos segmentos da ordem social e jurídica. Na perspectiva da Constituição Brasileira de 1988, a expressão povo como canal de legitimação precisa ser repensada por seus representantes, pois afinal são eles que lhes dão o poder para representá-los, no entanto consta muitos governante não honra sua representação. Corroborando ainda tal heterogeneidade, destaca-se os resultados obtidos nas últimas eleições presidenciais ocorridas em nosso país, onde percebemos uma linha divisória em nosso território entre centro-sul e norte e nordeste. Ou seja, dentro do nosso próprio país existe uma grande diversidade ideológica política no que concerne às perspectivas futuras da nossa Nação. Falar então em um consenso acerca do povo brasileiro é uma questão utópica, pois somos marcados por uma grande diversidade não apenas social, mas ideológica, política e cultural. Nesta direção, conclui-se que no regime democrático, é percebida a impossibilidade de chegar a um conceito fechado e analítico de povo, sabendo que cada pessoa tem suas próprias especificidades, limitações e potencialidades, e mais, que cada uma delas constitui uma parte do todo povo brasileiro. Nesse contexto, diante das adversidades ocorridas em nosso governo, o povo tem se distanciado cada vez mais das questões públicas e políticas do país. Porém, ainda que excluído e marginalizado e ou alocado em minorias, vislumbra no Judiciário uma forma de alcançar o equilíbrio provocado pela ausência de representatividade no Parlamento e no Executivo, independente da individualidade de cada um o povo merece respeito e deve ser ouvido e seus argumentos levados a sério.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988, 168p. CHRISTENSE. Ralph/Müller, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia - tradução Peter Naumann; revisão da tradução Paulo Bonavides. 3ª ed. ver. e atual. – São Paulo: Editora Max Limonad, 2000. COMPARATO, Fábio Konder. Disponível em:www.brasildefato.com.br/ node/10784 03/10/2012 - imprensa alternativa pode ... O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Acesso 23/02/2014. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 6ª edição: revista, atualizada e ampliada. Salvador: Juspodivm, 2014. GOMES Jairo José. Direito Eleitoral. 4ª edição. Belo Horizontete/MG: Del Rei, 2010. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional: Tomo II. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo - A Questão Fundamental da Democracia. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: 2º ed. Forense, 2009. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2014.
NOTAS DE FIM REFERÊNCIAS BORGES, Luiz Cláudio. É preciso identificar o conceito de “povo”. Disponível em: < http://www.forumdacidadania.org.br/material%20cd%20eca/ artigos/E%20PRECISO%20IDENTIFICAR%20O%20CONCEITO%20DE%20 POVO. Pdf >. Acesso em: 22 nov. 2013.
1 Professora de Direito Constitucional do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Mestra em Direito Público. Advogada. 2 Bacharel em Direito. Pós graduada em Direito Público pela PUC-Minas (IEC- Instituto de Educação Continuada).
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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS MUNICIPAIS: BREVES CONSIDERAÇÕES Vivian do Carmo Bellezzia1 RESUMO: O presente trabalho busca apresentar os contornos atuais da jurisdição constitucional brasileira, sobretudo aquela realizada sobre os atos normativos municipais, apontando os seus principais desafios e perspectivas. Trata-se de pesquisa jurídico-bibliográfica de caráter exploratório, fundamentada na revisão bibliográfica e na análise de decisões judiciais. PALAVRAS-CHAVE: Controle de Constitucionalidade; Leis Municipais, Constituição Federal; Lei Orgânica Municipal. ABSTRACT: This study aims to present the current format of the Brazilian constitutional jurisdiction, especially the one held on municipal normative acts, pointing its main challenges and prospects. It is legal and literature exploratory, based on literature review and analysis of judicial decisions. KEYWORDS: Judicial Review; Municipal Laws. ÁREA DE INTERESSE: Direito Constitucional.
1. INTRODUÇÃO O Estado brasileiro assume a forma federativa, e é composto pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, todos dotados de autonomia, conforme se depreende da leitura dos caputs dos artigos 1º e 18 da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88)2. A Constituição Federal, ao estabelecer a divisão dos poderes, conferiu autonomia para cada ente federado criar suas leis, seja nos âmbitos federal, estadual e municipal. No tocante aos Municípios, estes receberam do texto constitucional autonomia e capacidade de auto-organização por meio da elaboração de Lei Orgânica própria (autonomia legislativa), capacidade de autogoverno (autonomia administrativo-funcional) e autonomia financeiro -orçamentária (autonomia legislativa e administrativa). O principal fundamento tanto da autonomia quanto da competência municipal é o artigo 30, da CRFB/883, localizado no Título III, denominado “Da Organização do Estado”, que trata das competências legislativas e político-administrativas. Ocorre que o texto do artigo 30 é abrangente e exemplificativo ao prever as competências e delimitar as áreas de atuação da entidade local – o Município, deixando margens para discussão sobre tais questões. Assim, persistem questionamentos sobre em que áreas os Municípios devem agir e sobre qual seria a abrangência de seu poder decisório. Portanto a chamada “autonomia municipal” está longe de ser tema pacífico na literatura jurídico-científica. José Nilo de Castro4 (1993) assevera que o Município, diferentemente de um ente federado, é entidade condômina de exercício de atribuições constitucionais. Para ele, o ente municipal possui dignidade constitucional; e, no que diz respeito à autonomia, é autônomo na Carta Magna de hoje tanto quanto nas anteriores, desde 1934 (antes, faltava-lhes apenas a auto-organização). Contudo, conforme o autor, o Município não detém autonomia federativa e sua autonomia é a medida constitucional da soberania, que é poder insubmetido. Nesse sentido, a questão da “autonomia municipal”, que necessariamente perpassa pela discussão de grandes temas como federalismo, descentralização e democracia, se apoia no texto
constitucional e este assume verdadeira função de delimitador do horizonte de possibilidades para elaboração de todo o arcabouço legislativo do Estado Constitucional Brasileiro. Outrossim, é objetivo demasiadamente complexo diferenciar quais matérias devem ser entregues à União, aos Estados e aos Municípios. Nesse sentido, a tarefa de conformar os atos normativos municipais com a Constituição, por meio do chamado controle de constitucionalidade, mostra-se imprescindível ao bom funcionamento do sistema jurídico brasileiro. Diante dessa complexidade, o estudo do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos municipais, que constitui-se no exame de compatibilidade entre a lei ou ato normativo editado pelos Poderes Legislativo ou Executivo Municipais e a Constituição Federal, adquire importância ímpar vez que o controle tem se apresentando como ferramenta para a garantia da supremacia da Constituição. O presente trabalho busca apresentar os contornos atuais da jurisdição constitucional brasileira, sobretudo aquela realizada sobre os atos normativos municipais, apontando os seus principais desafios e perspectivas. Trata-se de pesquisa jurídico-bibliográfica de caráter exploratório, fundamentada na revisão bibliográfica e na análise de decisões judiciais. 2. O MUNICÍPIO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988 Os Municípios, antes da promulgação da CRFB/88, vivenciaram, ao longo da história do federalismo brasileiro, momentos de reduzida e até mesmo extinta autonomia e autogovernabilidade. Entretanto, após a promulgação da nova ordem constitucional e resguardadas opiniões divergentes, foram reconhecidos como entes federativos dotados de auto-organização, normatização própria e, ainda, autogoverno e autoadministração, tudo conforme os artigos 1º, 18, 29, 30 e 34, VII, “c” da CRFB/885. A promoção dos Municípios a entes federativos integrou uma política cuja diretriz estava assentada na descentralização, que pressupõe que a gestão local, onde se revelam as carências e necessidades sociais e, efetivamente, são prestados os serviços públicos, será sempre mais adequada e eficiente que o planejamento e execução centralizados na União.
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Segundo Santin e Flores (2006), a (1) autonomia administrativa diz respeito à capacidade do Município de administrar a si próprio e organizar todo o rol de serviços locais. A (2) autonomia financeira é, em suma, a “capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas” (2006, p.56-57). Já a (3) autonomia normativa refere-se à capacidade de elaboração de leis a respeito de matérias sob sua competência exclusiva e suplementar, ou seja, capacidade de autolegislação. Por último, a (4) autonomia política diz respeito à capacidade de auto-organização mediante elaboração de uma Lei Orgânica própria e autogoverno, mediante eletividade de prefeitos e vereadores. Para Fernanda Dias Menezes (2000), o texto constitucional estruturou-se em um sistema complexo em que cada ente federativo possui sua própria competência. Nesse sentido, há as competências privativas, repartidas horizontalmente, como as da União, com previsão de matérias relativas à atuação política e administrativa, e discriminação de matérias de disciplina legislativa; as dos Estados, com competências residuais, além da criação de Municípios, da exploração dos serviços locais de gás canalizado e da instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. As competências dos entes municipais estão catalogadas no art. 30 da CRFB/88, como as de ordem administrativa (incisos III, IV, V e VIII) e para legislar sobre o interesse local, conferida pelo inciso I. 6 O entendimento sobre a competência legislativa do Município pode ser facilitado utilizando-se quatro regras, a saber: 1ª) poderes municipais expressos e exclusivos, 2ª) poderes federais expressos e implícitos e poderes estaduais expressos, 3ª) poderes municipais implícitos e 4ª) poderes concorrentes. A primeira regra afasta qualquer outra competência sobre o assunto, seja ela federal ou estadual, visto que é matéria de competência expressa e exclusiva do Município. A segunda regra significa que, quando a competência municipal for implícita, permanecem as competências expressa e implícita estadual e federal, respectivamente. A terceira regra estabelece, em conexidade com a anterior, que, com relação aos poderes remanescentes do Estado, prevalecem sempre as competências implícitas e explícitas do Município. Isso porque a CRFB/88 declara, em seu art. 25, § 1º, que aos Estados se reservam todas as competências que não lhes sejam vedadas. Ora, os poderes que a Constituição confere aos Municípios, de modo implícito ou explícito, estão vedados ao Estado. Logo a competência remanescente do Estado cede diante da do Município. A quarta e última regra dirige-se aos poderes concorrentes, em que as três esferas - federal, estadual e municipal - disputam a mesma competência. Nesse caso, e somente nesse, prevalece o princípio da primazia da União sobre os Estados e do Estado sobre o Município, com decorrência lógica de que os interesses nacionais devem prevalecer sobre os locais.7 2.1 A questão do poder local A CRFB/88, ao atribuir competências aos entes federativos, definiu as competências da União e dos Estados-Membros, estabelecendo, em seu artigo 30, I, que caberá ao Município legislar sobre matéria de interesse local. Nesse sentido, é a predominância do interesse o parâmetro delimitador na atribuição de competências dos entes federativos. Foram atribuídas à União as matérias e questões de interesse predominantemente geral e nacional. Aos Estados-membros, os assuntos de interesse regional e, por fim, aos Municípios foram atribuídas às questões de interesse local. Não restam dúvidas de que hoje, resguardadas as opiniões divergentes, o Município está constitucionalmente consagrado como um partícipe do sistema federativo brasileiro, despontandose este como um sistema federal único e genuíno.
Sobre isso, Marco (2002, p. 78) pontua que essa elevação do Município à parte integrante do pacto federativo brasileiro, “fez florescer em âmbito local a importância do poder local e da participação popular nas decisões do ente municipal”, estabelecendo uma via de mão dupla, na qual a população vai até o governante para discutir os seus direitos e as necessidades a serem sanadas e, da mesma forma, o poder público abre suas portas para ouvir e suprir tais necessidades. O Estado Federal Brasileiro, ao delimitar a atuação de cada membro mediante atribuições expressamente prescritas, possibilitou, ainda maiores e melhores alternativas de participação política, primando pela descentralização e fortalecimento do poder local. Nesse sentido, é a posição de José Luiz Quadros de Magalhães (1999). Segundo o autor, deve-se aplicar o princípio da subsidiariedade do federalismo brasileiro, remetendo-se o maior número de atribuições estatais possíveis aos entes federados menores. Para o doutrinador, a lógica de tal princípio potencializa o controle social da administração pública proporcionando maior agilidade e otimização na aplicação do dinheiro público. Assim, há uma ampliação da descentralização, restando aos Estados-membros e à União apenas as matérias mais complexas, de abrangência mais extensa e geral. (MAGALHÃES, 1999, p. 212). Saliente-se que ponderações sobre as formas de participação popular local estão em debate em destacados núcleos de investigação política e acadêmica. O alargamento dos mecanismos de participação na gestão municipal visa não apenas ampliar as garantias dos direitos de cidadania como também tornar mais eficientes o combate à corrupção e à má aplicação das verbas públicas. Consequentemente, o tema vem ganhando cada dia mais importância, pois, após a Constituição de 1988, mercê da legitimação ativa de várias pessoas e entidades para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade e em função da conscientização popular, passou-se a questionar fortemente a legislação municipal. Embora reconhecida a importância, em face da teoria democrática e do federalismo, do Município na ordem política brasileira, a existência de um ordenamento jurídico múltiplo, composto por normas editadas pelos diferentes entes federativos, apresenta diversos desafios. Não é tarefa simples delimitar quais sejam os interesses gerais, regionais ou locais, e os conflitos de competência frequentemente ocupam as agendas políticas e as pautas dos tribunais. 2.2 A reprodução de normas constitucionais e as Leis Orgânicas municipais Os Estados-membros e Municípios, quando da elaboração de suas Constituições e Leis Orgânicas, estão obrigados, por imposição constitucional, aos princípios de delimitação previstos nos artigos 34, VII e 60, §4º da CRFB/888. Manoel Gonçalves Ferreira Filho9(2000) ensina que os limites à auto-organização e autogoverno dos Estados são apenas princípios propriamente ditos já que a Constituição exige dos Estados a observância de normas precisas que preordenam a sua organização. Certo é que, entre os doutrinadores, não se discute que os Estados-membros e Municípios não tenham autonomia para legislar sobre todos os temas explicitamente tratados nos citados artigos. Entretanto a controvérsia se dá quanto ao que se considera como sendo “interesse local”, pois o critério deixa de ser objetivo e explícito e passa a depender de aspectos
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subjetivos. A título de exemplo, são considerados assuntos de interesse local: transporte coletivo municipal, coleta seletiva de lixo, ordenação do solo, fiscalização sanitária de bares e restaurantes. A norma constitucional prevê um rol taxativo de hipóteses que autorizam a União a intervir, excepcionalmente, no Estado-membro e no Município, sendo expressamente vedado que a legislação local disponha sobre a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Também não se discute que os Estados e Municípios são proibidos de legislar sobre tais temas, vez que essa vedação é expressa e taxativa. Não obstante, inúmeras discussões e posições antagônicas surgem quando a divergência se dá em torno da necessidade ou não da reprodução, nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, de princípios constitucionais implícitos. Em verdade, cada jurista elege sua própria relação de princípios, o que, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho10 (2000, p. 198) “acaba por enfraquecer sua respeitabilidade científica. Assim, não existe um consenso entre os juristas e doutrinadores sobre quais normas devem obrigatoriamente constar nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais. Ademais, além dos chamados princípios implícitos, existem outras normas constitucionais que limitam a liberdade legiferante dos órgãos estaduais e municipais, regras essas denominadas por Ferreira Filho de “regras de preordenação institucional” (2000, p.163). As Leis Orgânicas municipais são compostas por dois tipos legislativos distintos: as chamadas normas de reprodução e as normas de imitação. As de reprodução são inseridas na Lei Orgânica Municipal como consequência da subordinação à Constituição Estadual e desta para com a Constituição Federal. Ou seja, o legislador apenas “transporta” as normas de um ordenamento para ou outro, sendo, portanto, regras de caráter compulsório. Já as de imitação, embora sejam reproduções de técnicas ou institutos da Constituição Estadual, o são por mera opção do legislador. Ou seja, trata-se de “cópias” do modelo superior não por determinação legal, mas por escolha de quem legisla. Ocorre que as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas muitas vezes se atêm à reprodução de regras constitucionais, apenas transferindo normas centrais, principalmente aquelas relacionados à organização e estrutura dos órgãos do governo. Contudo, como pontua Gabriel Ivo11 (1997), observar e obedecer a um
3. HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS MUNICIPAIS Existem, no Brasil, duas espécies de controle de constitucionalidade: o chamado controle preventivo, que tem como objetivo barrar, mediante atuação do Poder Legislativo, o ingresso de lei ou ato normativo considerado inconstitucional, e o controle repressivo, que tem como objetivo retirar do escopo de leis normas inconstitucionais já incorporadas pelo ordenamento jurídico. O controle preventivo, também conhecido como controle político, se faz pela atuação das chamadas Comissões de Constituição e Justiça ou mediante atuação do Poder Executivo, pelo do veto presidencial. Alguns doutrinadores, como Bonavides (2009) e Canotilho (2003), consideram que cabe ainda ao Poder Legislativo exercer uma espécie de “controle repressivo” de constitucionalidade mediante a sustação, pelo Congresso Nacional, por meio da edição de um decreto legislativo, de atos normativos do Poder Executivo que exorbitarem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, conforme previsto no inciso V, do artigo 4912, da Constituição Federal. E também, deixando de converter em lei a Medida Provisória prevista no art. 62 da CRFB/8813 que seja considerada inconstitucional. O controle repressivo, também denominado controle judicial, pode ser exercido de maneira difusa, pela exceção ou defesa, ou de forma concentrada, por via de ação. No Brasil, o controle de constitucionalidade repressivo, exercido pelo Poder Judiciário, é misto. Ou seja, pode ser exercido tanto de maneira difusa quanto concentrada. O controle difuso, exercido por via de exceção ou defesa, é aquele que autoriza qualquer juiz ou tribunal a se manifestar, no caso concreto, sobre a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Assevere-se que esse tipo de declaração de inconstitucionalidade, que nunca fora objetivo principal da lide, isenta tão somente os jurisdicionados diretamente envolvidos no litígio de cumprirem a lei ou ato normativo tido como inconstitucional. Portanto a norma permanece válida no ordenamento jurídico. Esse tipo de controle permite que qualquer lei ou ato normativo seja declarado inconstitucional não importando se tal norma é federal, estadual, municipal ou distrital. O controle concentrado, ao contrário do difuso, objetiva especificamente declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo independentemente da existência de um caso concreto, assumindo eficácia erga omnes e gerando efeitos ex tunc. Esse controle abstrato de constitucionalidade pode ocorrer de duas formas: por ação ou omissão.
princípio constitucional significa abster-se de criar regras que com ele sejam incompatíveis ou, de um modo positivo, produzir regras que venham a imprimir-lhe eficácia. Ou Seja, “não se cumpre um princípio repetindo no texto da Constituição Estadual o seu enunciado” (IVO, 1997, p. 141). Assim, não é preciso que as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais sejam literalmente idênticas ao texto da norma constitucional federal. Para haver a repetição de normas, não é necessário existir a identidade dos textos legais pelos quais elas se exprimem, pois as regras jurídicas não podem ser confundidas com o texto legal por meio do qual se expressam. Nesse sentido, a doutrina conclui pela falta de obrigatoriedade de o ente federado reproduzir a norma constitucional de observância da União quando a matéria sobre a qual se esteja legislando trate de questão relativa à auto-organização do Estado-membro ou do Município.
3.1 Controle de constitucionalidade da Lei Orgânica Municipal e de leis e atos normativos municipais em face da CRFB/88 De acordo com a alínea “a”, do inciso I, do artigo 102, da CRFB/8814, compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. De igual forma, de acordo com o artigo 125, § 2°15, cabe aos Tribunais dos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual. Como se observa, o texto constitucional estabeleceu a competência do STF para processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e dos Tribunais de Justiça estaduais para a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou
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municipais em face da Constituição Estadual. Contudo foi silente sobre a definição de competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal. Assim, poder-se-ia concluir que, se uma lei ou ato normativo municipal contrariar a Constituição Federal, o Tribunal de Justiça não teria competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade. Então, em se tratando de lei ou ato normativo municipal que contrarie dispositivo constitucional, o controle de constitucionalidade deveria ser realizado pela via difusa. De acordo com a alínea “c”, do inciso III, do artigo 10216, da Constituição Federal, o STF somente se pronunciará se a questão for objeto de consulta por meio de Recurso Extraordinário e desde que presente o requisito de admissibilidade da repercussão geral (art. 103, § 3º da CRFB/88)17. Nesse sentido destaque-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Recurso extraordinário. Arguição de inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica do Município de Boa Vista, Estado de Roraima, julgada improcedente. 2. Assentado o entendimento de que a fixação do número de vereadores da Câmara Municipal de Boa Vista, pelo art. 13 da Lei Orgânica em foco, então impugnado está dentro dos limites da regra constitucional Federal. 3. Juízo de validade de norma municipal, pelo Tribunal de Justiça do Estado, em face de regra da Constituição Federal. O art. 125, § 2º, da Lei Magna, prevê a hipótese de controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal, tão-só, diante da Constituição estadual. 4. A norma da Carta de Roraima apontada como ofendida - o art. 15 - não constitui regra de repetição do art. 29, IV, a, da Lei Magna Federal, à vista do qual se proferiu a decisão. 5. Não dispunha a Corte local de competência para processar e julgar a constitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica do Município de Boa Vista, perante a Constituição Federal (art. 29, IV, a). 6. Extinção do processo sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido, eis que a Constituição não prevê a hipótese de ação direta em que se argüia a inconstitucionalidade de lei municipal em face da Constituição Federal. 7. Recurso extraordinário conhecido e provido para anular o acórdão, por incompetência do Tribunal local. (STF Recurso Extraordinário - RE n. 171819/RR - Relator(a): Min. Néri da Silveira – Julgamento em 08/04/2002 – Órgã Julgador: Segunda Turma - DJ 24-05-2002 PP-00069) CONSTITUCIONAL. PENAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEIS OU ATOS NORMATIVOS MUNICIPAIS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO. VALIDADE DA NORMA EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. HIPÓTESE DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. I - Os Tribunais de Justiça dos Estados, ao realizarem o controle abstrato de constitucionalidade, somente podem utilizar, como parâmetro, a Constituição do Estado. II - Em ação direta de inconstitucionalidade, aos Tribunais de Justiça, e até mesmo ao Supremo Tribunal Federal, é defeso analisar leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal. III - Os arts. 74, I, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo não constituem regra de repetição do art. 22 da Constituição Federal. Não há, portanto, que se admitir o controle de constitucionalidade por parte do Tribunal de Justiça local, com base nas referidas normas, sob a alegação de se constituírem normas de reprodução obrigatória da Constituição Federal. IV Recurso extraordinário conhecido e provido, para anular o acórdão, devendo outro ser proferido, se for o caso, limitando-se a aferir a
constitucionalidade das leis e atos normativos municipais em face da Constituição Estadual. (STF – Recurso Extraordinário - RE n. 421256/SP - Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma - DJ 24-11-2006 PP-00076). Não obstante a ausência, na CRFB/88, de previsão expressa do controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal, o §1°, do artigo 102 da CRFB/8818, regulamentado pela lei n° 9.882, de 3 dezembro de 1999, trouxe uma alternativa para o exercício de tal controle. Trata-se da chamada ação de Arguição do Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, que deverá ser proposta perante o STF, quando se pretenda evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, ou, ainda, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, aí incluídos os anteriores à Constituição. Portanto, por meio de ADPF, efetiva-se o controle concentrado de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Federal. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes: A Arguição do Descumprimento de Preceito Fundamental é uma solução que vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam resolvidas pelo Supremo Tribunal Federal, com eficácia geral e efeito vinculante. (MENDES, 2001, p.134) Como se observa, a ADPF19 só pode ser proposta quando se pretenda evitar ou reparar lesão a preceito fundamental. O conceito de preceito fundamental foi esculpido pelo STF e, nas palavras do professor Cássio Juvenal Faria, citado por Lanza (2003), diz respeito a Normas qualificadas, que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais, como por exemplo, os princípios fundamentais do Título I (arts. 1° ao 4°); os integrantes das cláusulas pétreas (art. 60, §4o.); os chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII); os que integram a enunciação dos direitos e garantias fundamentais (Título II); os princípios gerais da atividade econômica (art. 170); etc. (FARIA apud LENZA, 2003, p. 118) No mesmo sentido, o professor Uadi Lammêgo Bulos (2007) prescreve que “classificam-se de fundamentais os grandes preceitos que informam o sistema constitucional, que estabelecem comandos basilares e imprescindíveis à defesa dos pilares da manifestação constituinte originária.” (BULOS, 2007, p. 57) Depreende-se, portanto, que preceito fundamental é aquele dos quais se extraem valores de soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valorização social do trabalho e todos mais relacionados aos princípios da igualdade, democracia, federalismo e qualquer outro relacionado às garantias fundamentais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como consequência do pacto federativo adotado no país e da supremacia da Constituição Federal, tem-se que a criação de qualquer jurisdição constitucional afeta aos demais entes da federação deve ser expressamente autorizada pelo texto constitucional. O bom funcionamento do sistema jurídico brasileiro na forma como hoje se apresenta depende da conformação dos atos normativos municipais com a Constituição por meio do controle
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de constitucionalidade. Sendo assim, as posições minoritárias contrárias à fiscalização das leis municipais ante a Constituição Federal não merecem guarida tendo-se em vista a importância, abrangência e, principalmente, a especificidade das leis municipais. Nesse sentido, pode-se concluir ser plenamente possível o controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais, e aí se inclui a Lei Orgânica Municipal, em face da Constituição Federal.
REFERÊNCIAS ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000 BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009. BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo. Malheiros, 2009. BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em 23/04/2014. BRASIL. Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, 06 dez. 1999. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l9882.htm. Acesso em 24/04/2014. BRASIL. STF Recurso Extraordinário - RE n. 171819/RR - Relator(a): Min. Néri da Silveira – Julgamento em 08/04/2002 – Órgã Julgador: Segunda Turma – Diário de Justiça de 24-05-2002 PP-00069.Disponível em http://stf. jusbrasil.com.br/jurisprudencia/774872/recurso-extraordinario-re-171819-rr. Acesso em 23/04/2014 BRASIL. RE n. 421256/SP - Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma – Diário de Justiça de 24-11-2006 PP-00076. Disponível em RE n. 421256/SP - Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski – Julgamento em 26/09/2006 – Órgão Julgador: Primeira Turma - DJ 24-11-2006 PP-00076. Acesso em 23/04/2014. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001. SANTIN, Janaína Rigo; FLORES, Deborah Hartmann. A evolução histórica do município no federalismo brasileiro, o poder local e o estatuto da cidade. Justiça do Direito. Passo Fundo, v. 20, n. 1, 2006, p. 56-57.
NOTAS DE FIM 1 E Advogada, Especialista em Filosofia pela UFOP, Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - IEC- PUC MINAS, Professora Assistente da FUPAC – Nova Lima, Assessora de Gestão das Áreas Técnicas da Associação Mineira de Municípios. 2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1988) 3 Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. 4 CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.60/61
CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
5 Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...) Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:(...) VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:(...) c) autonomia municipal; (BRASIL, 1988)
FERREIRAFILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
6 Cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 74-75.
IVO, Gabriel. Constituição Estadual competência para elaboração da Constituição do Estado-membro, São Paulo, Max Limonad, 1997.
7 LEAL, 1954 apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 14. ed. atual. por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 133.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 6 ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Método, 2003. MARCO, Chisthian Magnus de. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista Jurídica, Joaçaba, v.3, n.3, p. 69-102, jan. dez. 2002.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Poder municipal: paradigmas para o estado constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 14. ed. atual. por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. p 133.
8 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Art. 60 […] § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
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tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988) 9 FERREIRAFILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p.197 10 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. 1, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p.198 11 IVO, Gabriel, Constituição Estadual competência para elaboração da Constituição do Estado-membro, São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 141. 12 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:(...) V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; 13 Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (BRASIL, 1988) 14 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (BRASIL, 1988) 15 Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.(...)
§ 2º - Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão. (BRASIL, 1988) 16 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:(...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:(...) c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. 17 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:(...) § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o AdvogadoGeral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. 18 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: § 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (BRASIL, 1988) 19 Os legitimados para propor Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental se encontram definidos, em numerus clausus, no art. 103 da Constituição da República, nos termos do disposto no art. 2º, I, da Lei nº 9.882/99, sendo que esse rol não poderá ser ampliado, conforme já decidiu o STF.
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UMA BREVE ANÁLISE A ALGUMAS TEORIAS DA RACIONALIDADE DA DECISÃO JUDICIAL Daniel Guimarães Medrado de Castro RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo perpassar por algumas das teorias da racionalidade da decisão judicial. Inicialmente, analisaremos as principais escolas do Juspositivismo clássico, perpassando pela Escola da Exegese, pela Escola Histórica do Direito e pela Jurisprudência dos Conceitos. Em seguida, serão apreciados os principais aspectos do normativismo kelseniano, reconhecido como o principal expositor do positivismo jurídico no início do século XX. Ainda, teceremos algumas considerações sobre a escola do Pragmatismo americano, mormente acerca de algumas colocações de Richard A. Posner. PALAVRAS CHAVES: Racionalidade; Positivismo; Pragmatismo; Decisões Judiciais. ABSTRACT: This study aims to analyze some theories of rationality in judicial decisions. Initially, we will analyze the main schools of classical juspositivism, passing through the School of Exegesis, the Historical School of Law and the Jurisprudence of Concepts. Then it will be appreciated aspects of Kelsen’s normativism, recognized as the leading exhibitor of legal positivism in the early twentieth century. Then, we will weave some considerations about the school of American Pragmatism, especially about some placements of Richard A. Posner. KEYWORDS: Rationality, Positivism, Pragmatism, Judicial Decisions. Área de Interesse: Direito Constitucional 1. INTRODUÇÃO
perguntas hábeis, seria factível encontrar a verdade, que já se lo-
A decisão judicial não é mero produto matemático da equação de um fato no qual se aplica uma norma, mas sim um processo de cognição do direito por meio do qual a racionalidade se apresenta como elemento fundante, capaz de desvelar o sentido adequado da norma. Para realizar esse desvelamento emergiram diversas teorias que objetivaram desenvolver métodos capazes de explicar como se dá (ou deve se dar) o processo hermenêutico. Foram, assim, criados métodos que prometem encontrar a norma perfeita aplicável ao caso concreto. Assim, o escopo do presente trabalho é realizar uma reconstrução acerca dos métodos de racionalidade da decisão judicial, abordando a sua evolução a partir da Revolução Científica, momento no qual há a cisão entre a filosofia/teologia e o conhecimento/ciência. Antes, contudo, passaremos rapidamente pelas teorias do conhecimento desenvolvidas na Grécia Antiga, uma vez que estas subsidiam e alicerçam grande parte das teorias da decisão judicial aplicadas na sociedade contemporânea.
calizava na mente humana. A maiêutica, portanto, nada mais é que um chamado para a autorreflexão (conhece-te a ti mesmo) do homem na busca por uma verdade ontológica, caminho único para a prática do bem e da virtude. Platão, discípulo de Sócrates, também desenvolveu a sua filosofia por uma busca pela verdade ontológica, expressando que o ser das coisas encontrava-se em um mundo metafísico, o mundo das ideias. A realidade, assim, seria dividida dicotomicamente em um mundo sensível (das coisas) e um mundo inteligível (das ideias). O acesso ao primeiro dar-se-ia pelos sentidos do homem (olfato, paladar, tato, audição e visão), ao passo que o mundo inteligível estava em uma esfera supraceleste, que exigiria ir além dos sentidos, que exigiria o suprassensível, isto é, alcançável apenas pelo intelecto. O mundo das ideias seria o espaço metafísico onde seria descoberto o verdadeiro conhecimento; onde seria possível apreender a essência de todas as coisas, aquela essência sem forma e impalpável. Nesse Hiperurânio estaria a existência do belo em si, do bom em si e das demais realidades em si. Enquanto verdade, esses conceitos eram essencialmente imutáveis e absolutos. Por sua vez, o mundo sensível seria uma construção a partir da existência do mundo das ideias, ou seja, uma sombra do inteligível, verdadeira cópia. Como tal seria uma realidade flexível e não perene, cujo produto das inferências seria puramente doxático e não conduziria ao conhecimento. Mas, se as coisas acessíveis pelos sentidos são sombras, como poderia o homem conhecer a verdade que o permitiria formular conceitos no mundo sensível? A Teoria das Ideias platônica compreendia que a alma era imortal e o fato do indivíduo encarnar como homem significava a sua passagem pelo mundo das ideias, o que lhe permitiu um contato, ainda que breve, com a verdade ontológica. “[...] a alma, em sua situação originária, pode ser comparada a um carro puxado por dois cavalos alados, um dócil e de boa raça, o outro indócil (os instintos sensuais e as paixões), dirigido por
2. TEORIA DO CONHECIMENTO EM SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES Sócrates, arquiteto da ontologia clássica, defendia a necessidade de se buscar o conhecimento verdadeiro, aquele incapaz de se curvar às necessidades momentâneas dos sofistas. Um saber cunhado na racionalidade reflexiva e com a aptidão de construir conceitos absolutos, infalíveis e imutáveis. Uma compreensão que transcendesse a visão ordinária que cada um tem do mundo, pautada na irracionalidade, no subjetivismo e no senso comum (doxa). O filósofo pretende encontrar a verdade da coisa em si, isto é, um conceito que espelhe o que cada objeto é na sua essência. Com isso ele acreditava combater o relativismo retórico sofista, que manuseava a “verdade” em busca de um convencimento puramente argumentativo. Nesse mister, Sócrates irá desenvolver o método dialógico maiêutico, acreditando ser possível encontrar a essência de um conhecimento a partir de habilidosos questionamentos. Em outras palavras, com afirmações e refutações alcançadas a partir de
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um cocheiro (a razão) que se esforça por conduzi-lo bem. Esse carro, num lugar supraceleste, circula pelo mundo das ideias, que a alma assim contempla, mas não sem custo. As dificuldades para guiar a parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os cavalos perdem as asas, e a alma fica encarnada num corpo. Se a alma viu as ideias, por pouco que seja, esse corpo será humano e não animal; conforme as tenham contemplado, mais ou menos, as almas estão numa hierarquia de nove graus, que vai do filósofo ao tirano. A origem do homem como tal é, portanto, a queda de uma alma de procedência celeste e que contemplou as ideias. Mas o homem encarnado não as recorda. De suas asas restam tão somente cotos doloridos, que se excitam quando o homem vê as coisas, porque estas lhe fazem recordar as ideias, vistas na existência anterior. É este o método do conhecimento: o homem parte das coisas, não para ficar nelas, para encontrar nelas um ser que não têm, mas para que lhes provoquem uma lembrança ou reminiscência (anámnesis) das ideias em outro tempo contempladas. Conhecer, portanto, não é ver o que está fora, mas, ao contrário, recordar o que está dentro de nós. As coisas são apenas um estímulo para nos afastarmos delas e nos elevarmos às ideias.” (MARÍAS, 2004. Pg 52/53) Em outras palavras, quando se diz que algo é branco, para Platão, essa percepção somente seria factível porque a alma já tivera contato com a concepção do que é a brancura quando passou pelo mundo das ideias. Esse processo cognitivo exigiu a visitação da essência da brancura, que só é encontrada no mundo inteligível. A neve, a nuvem, a pétala da margarida ou mesmo o ovo, por ser uma cópia do existente no mundo das ideias, jamais alcançaria a plenitude da brancura. O conhecimento para Platão, portanto, estava alocado na alma (psyché) do homem, que deveria rememorar o que fora visto no mundo das ideias. Por esse processo de reminiscência1 (anamnese2) o homem seria capaz de chegar ao ser do ente. Aristóteles, por sua vez, não obstante ser discípulo de Platão, insurgira contra a universalidade como um alcance dedutivo da metafísica, compreendendo que o papel do filósofo é observar a realidade e identificar os elementos que compõem um objeto e, diante disso, descrever o mundo como ele é por natureza, ou seja, como é por essência. O filósofo, portanto, permeará a sua busca pela quididade de cada coisa. “O cosmos era composto da individualidade, pois a substância primeira está presente em cada indivíduo, como Sócrates, Cálias, Alcebíades e, então, a observação de sua essência formaria os universais pela substância. Por conseguinte, somente da observação de um bom número de cavalos, o filósofo seria capaz de identificar suas características gerais, ou seja, extrairia sua quididade, sua essência, seu universal. Um atributo seria essencial pelo fato de que, caso não estivesse presente na sua “natureza”, a coisa não seria. Desse modo, uma vaca somente é mamífera porque seus filhotes de fato mamam. Ou, se a experiência define que ter seis patas é uma característica essencial para um inseto, uma aranha ou um escorpião não podem ser assim classificados. Em geral, os intérpretes clássicos veema essência como ousia, ou seja, “o que é por si mesmo”. (CRUZ, 2011)” Além das características observáveis e da consequente extração da ousia de cada ser, o que o identificaria como ser por essência, havia a possibilidade do ser não deter uma específica característica imprescindível para a identificação da sua quididade e, mesmo assim, não perder a sua condição de ser.
Em exemplificação, um homem que mancasse com uma perna (característica não identificável na categoria “homens”) não deixaria de ser homem, mantendo a sua qualidade de ser. Para tanto, Aristóteles esposou que, neste caso, o homem manco seria um ser por acidente, o que diferenciaria do ser por essência. Ao separar as coisas em categorias, Aristóteles defendeu que uma proposição, para ser verdadeira, deveria ser formada com elementos intracategoriais. Para tanto, dividiu a sentença em sujeito e predicado, criando o método analítico, que contrastava com a dialética.Assim, se o predicado atribuído ao sujeito estivesse na mesma categoria deste, poderia se dizer que a proposição estava correta. Na formação da sua lógica (lógica apofântica), Aristóteles construiu o método dedutivo de aferição da verdade, por meio do qual a verdade seria extraída de uma equação silogística em que uma premissa menor se adequaria a premissa maior, chegandose a uma conclusão. Em síntese esquemática: Premissa Maior: Todos os homens são mortais. Premissa Menor: Sócrates é homem. Conclusão: Sócrates é mortal. Essa organização silogística não seria hábil para se chegar a uma verdade a priori, uma vez que, mesmo tendo coerência na proposição, está poderia não indicar a realidade. Daí Aristóteles inferir que, além da coerência, a verdade somente seria atingida por meio da correspondência com a realidade, ou seja, não obstante a proposição “a porta está fechada” ser logicamente verdadeira, ela seria verdadeiramente verdadeira se (e somente se) a porta estiver fechada. Essa estrutura do conhecimento, em alguma medida, apesar de terem sido desenvolvidas na antiguidade, ainda fazem parte de subsídio epistemológico de algumas das teorias da decisão aplicadas na atualidade, sendo este o motivo da sua exposição. 3. JUSPOSITIVISMO 3.1 Escola da exegese A Revolução Científica3, iniciada pela teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, rompe com a perspectiva de que a razão e a fé possuem um imbricamento indissociável e que toda verdade somente é alcançável por uma adequação do intelecto humano com o divino, como sustentava a escolástica de Santo Tomás de Aquino. A busca agora é por um conhecimento que seja empiricamente demonstrável, almejando o alcance de uma teoria que seja universalmente válida e manuseável pelo homem, que passa a ser o centro do processo intelectivo. A ciência é vista de forma mecanicista e matematizada. Um dos principais expoentes da época é René Descartes, que na sua obra Discurso sobre o Método estabeleceu um processo metódico de decomposição dos elementos constitutivos de um objeto, criando um método dedutivo de cognição. Para ele, qualquer hipótese seria racionalmente demonstrável a partir de uma construção matemática. (...) em vez desse grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei que me bastariam os quatro seguintes: o primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que conhecesse evidentemente como tal; (...) O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las (operações matemáticas). O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer
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(método dedutivo). Em último, por fazer em tudo enumenrações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, apud CRUZ, 2007, PG 61) O conhecimento, como produto da razão e alcançado por método mecanicista que admite chegar à “verdade”, permite a construção de leis objetivas e universais, sendo que o Direito passa a ter o papel de definir essas regras e métodos. Sobre esse pilar se firmou no Século XIX a Escola da Exegese que, com fundamento no Código Napoleônico (1804), pretendia que a decisão judicial decorresse exclusivamente da extração de conceitos gramaticais contidos no texto da lei. Em outras palavras, o intérprete deveria realizar uma aplicação objetiva da norma, não lhe sendo permitido que se alocasse conceituações morais ou extralegais em sua decisão. A decisão judicial deveria ser fruto de um processo silogístico de aplicação da norma ao caso concreto, inexistindo qualquer interferência pessoal do julgador (ou de fatos externos) no ato de decidir. Um dos principais problemas enfrentados pela escola foi a existência de lacunas da legislação. Ora, diante da ausência de uma norma que permita a imediata subsunção com o fato material e da impossibilidade do magistrado “adequar” a norma subsuntiva, como deveria ser respondida a questão levada ao judiciário? A resposta foi dada com fulcro na teoria da plenitude lógica do direito, que sustenta ser o ordenamento jurídico um sistema fechado e que não admite lacunas. Estas seriam apenas aparentes, uma vez que é possível extrair da própria legislação normas analogicamente aplicáveis, compreendendo que o legislador, se tivesse diante daquele caso, legislaria com uma correspondência lógica com o que já havia legislado. Assim, as lacunas deveriam ser solucionadas com o uso da analogia. A grande maioria dos comentadores do Código de 1804 admite a utilização da analogia nas hipóteses de lacuna. Entre estes, alguns entendem que o emprego da analogia tem como fundamento a vontade fictícia do legislador, a partir da suposição de que se o seu pensamento se tivesse voltado para a hipótese não prevista na lei, teria sido a solução encontrada para o caso concreto a que ele logicamente iria querer. Outros acreditam que as lacunas da lei não são mais que aparentes, já que as normas aplicáveis ao caso concreto estão latentes no “fundo” da legislação, e a analogia só vai explicitá-las, captando-as e colocando-as a descoberto. Tais convicções têm como substrato a teoria da plenitude lógica do direito, no seu sentido restritivo e eminentemente legalista, segundo a qual é o sistema legislativo um conjunto fechado, que a si mesmo se basta, sendo alheio a todo e qualquer elemento estranho ao direito legislado. (LIMA, 2008) Entretanto, a analogia contrariava a perspectiva da própria Escola, que pretendia apontar o intérprete como mero leitor do texto legal e a aplicação de um método integrativo do sistema jurídico concedia uma abertura interpretativa ao magistrado. Problemas esses que foram objeto de tentativa de solução pela Escola da Investigação Científica que, ao permitir a investigação livre do jurista quando a norma tivesse sentido dúbio ou lacunoso, aceitava a utilização de instrumentos extrajurídicos (como os costumes, princípios gerais do direito e a analogia) para a fundamentação racional da decisão judicial. A Escola da Exegese também permitiu o afloramento de outras correntes de pensamento da teoria da decisão judicial, dentre
elas a “Jurisprudência dos Conceitos” de Puchta e a Escola Histórica do Direito, de Savigny. 3.2 Jurisprudência dos conceitos A Jurisprudência dos Conceitos vai tentar criar métodos capazes de extrair a “voluntas legis”, ou seja, qual o sentido que a lei pretende dar. Um dos expoentes é Georg Friedrich Puchta, fundador da “Jurisprudência dos Conceitos”. Essa corrente de pensamento – considerada uma variável do positivismo clássico e denominada de positivismo conceitualista – pretendia fixar um sentido universal para os conceitos dos conceitos, partindo da perspectiva de que seria possível uma isomorfia entre signo/significante/significado. Dessa forma, ao estabelecer o sentido unívoco de um conceito, o intérprete estaria apto a realizar uma leitura clara e exata do texto da lei, o que permitiria uma melhor subsunção. Como bem assevera CRUZ (2007), “o Direito passou a ser deduzido exclusivamente dos conceitos das regras de sua própria legilação”. 3.3 Escola histórica do Direito A Escola Histórica do Direito possui forte influência do historicismo, que figurava como movimento crítico à uma ideia de que tudo poderia ser reconstruído pelo homem por meio da razão4. O historicismo funda-se na visão do homem como um produto da história, acreditando que os valores de uma sociedade são uma amálgama das experiências pretéritas e presentes. Sob esse alicerce, a Escola Histórica do Direito alinha-se com cinco características basilares, que seria, como aponta Gomes (2008) ao citar Bobbio (1999) “a) individualidade e variedade do homem; b) irracionalidade das forças históricas; c) pessimismo antropológico; d) amor pelo passado; e e) sentido da tradição.”5 Segundo essa corrente de pensamento, capitaneada precipuamente por Savigny, o Direito deveria se firmar de acordo com a consciência coletiva do povo, manifestada por suas práticas culturais. Entretanto, como bem assevera Gomes (2008), o jurista alemão não retirava a cientificidade do Direito, compreendendo que somente seria um regramento válido aquele construído pelos cientistas do direito, ou, com maior precisão, dos professores de Direito. Compreendia-se que o texto da lei era o resultado da vontade de uma determinada sociedade, carregando, assim, inúmeras questões históricas que subsidiaram a criação do regramento daquele povo. Assim, no momento da aplicação da lei o intérprete deveria extrair os elementos históricos aclamados pelo povo, vislumbrando um sentido da norma consoante os métodos hermenêuticos gramatical, lógico, histórico e sistemático do Direito.6 Dessa maneira, observa-se que, não obstante a Escola Histórica apontasse como uma corrente crítica ao racionalismo iluminista, a fixação de métodos que pudesse extrair o sentido da norma, que constitui uma visão absolutamente cartesiana da ciência jurídica, aproxima as duas correntes de pensamento. 3.4 Normativismo Kelseniano Hans Kelsen, um dos maiores juristas do século XX, desenvolveu a sua teoria embebido pela concepção de uma racionalidade a priori transcendental de Kant, buscando trabalhar o objeto do Direito como um fenômeno independente, desvencilhado dos objetos estudados pela filosofia, sociologia, política, etc. Para o austríaco, o cientista do direito deveria focar o seu trabalho na norma hipotética de dever ser, uma vez que os estudos sobre os fenômenos que justificam a criação da norma não integrariam a ciência do Direito.
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Não obstante isso, vale destacar que ele não desacreditava que estes fatos influenciassem na construção normativa, apenas asseverava que não competia ao Direito analisá-los. O objeto do Direito era a norma positivada, ou seja, a lei e, portanto, valores morais, éticos ou políticos não poderiam compor a interpretação e aplicação do direito. Segundo Mata Machado (1995), a norma jurídica, na concepção kelseniana, se apresenta como uma proposição de natureza hipotético-condicional, através da qual se têm duas proposiçõesque se ligam entre si por uma partícula condicionante, típica da estrutura “Se A é, deve ser B), pouco importando conteúdo moral ou político que cada um possa encetar. (GOMES, 2008). Mas se a norma não possui um conteúdo de direito natural ou moral, como pretendiam os jusnaturalistas, qual seria a sua condição de validade? Para solucionar essa questão, Kelsen alicerçou a sua teoria uma concepção de ordenamento jurídico hierárquico. As normas jurídicas, assim, seriam estruturadas de forma que uma norma hierarquicamente superior justificaria validade da inferior, sendo que no topo do ordenamento encontra-se a constituição. Mas qual a norma que confere validade à constituição? A resposta foi a Grundnorm, que seria uma norma hipotética fundamental que daria validade a todo o ordenamento. Assim, o jusfilósofo afirma que sua norma fundamental trata-se de uma hipótese puramente racional, uma dedução lógica e necessária, capaz de fechar o sistema jurídico sem que o jurista necessite lançar mão de nenhum critério extrajurídico132. Sendo assim, a norma fundamental apresenta-se como um dado, um conceito hipotético a priori, evidenciando-se a forte influência recebida de Kant. (FREITAS, 2013). O jurista vienense compreende que o ordenamento jurídico é hermeticamente fechado, não havendo espaços para antinomias ou lacunas, uma vez que o sistema deveria conter respostas para todas as situações. Diante disso, o legislador deveria construir uma norma que contivesse elementos sintáticos e semânticos que permitissem ao intérprete visualizar o seu conteúdo e aplicar o sentido que melhor se enquadrasse aos rumos da sociedade. Note-se que Kelsen não visualizava a linguagem como espelhamento do mundo, reconhecendo que esta poderia ter múltiplos sentidos e que caberia ao intérprete alocar o sentido que melhor se adequasse ao caso concreto. Nessa perspectiva, a norma jurídica era concebida como uma moldura, com diversas interpretações possíveis, mas que, pelo método silogístico, o intérprete pudesse alcançar o sentido que realmente identificasse e colaborasse para os rumos que a sociedade deveria seguir. Em outras palavras, não obstante ele reconhecesse que a norma não possui um sentido único, ele acreditava que na moldura da norma havia todas as interpretações possíveis, e que o magistrado não poderia transbordar os limites interpretativos contidos no texto da lei7. A análise das teorias da decisão judicial acima nos permite constatar que elas estão imersas no paradigma da filosofia da consciência, em que a linguagem possui um caráter meramente representativo do mundo, o que tornaria possível a obtenção de um sentido unívoco e de forma monádica, sendo que o papel do intérprete, ao aplicar a norma, é extrair o significado dos signos que compõem o texto legal.
4. PRAGMATISMO O pragmatismo8 é uma escola de pensamento fundada nos Estados Unidos no final do século XIX e derivou dos pensamentos de um grupo de estudiosos que se encontravam para realizar críticas a metafísica clássica, denominando o grupo de Círculo da Metafísica (The Metaphysical Club). Esse grupo tinha como principais expoentes Charles Sanders Peirce, William James e Oliver Wendell Holmes. Mais tarde se juntou a ele John Dewey. O Círculo da Metafísica era um nome jocoso, que pretendia desconstruir os seus pressupostos, asseverando que a metafísica nada mais é que especulação intelectiva e que não possui relevância quando não é possível a experimentação. O enfoque dessa corrente de pensamento é o experimentalismo, observando que a criação de critério de validade e verificabilidade são inócuos quando a pragmática nos aponta para caminho diverso. Vejamos o que POSNER (2010) discorre sobre o assunto ao mencionar a teoria de Quine: “Quine tirou a lógica de seu pedestal! Suponha que um cisne seja definido como sendo um pássaro que tenha várias características, inclusive a de ser branco. Então, um dia alguém vê um pássaro que tem todas as características, exceto a cor. Ou mudamos a definição de “cisne” para incluir esse novo pássaro ou podemos nos ater à definição antiga e chamá-lo de outra coisa. (...) Isso significa que verdades lógicas (necessárias) não estão imunes à refutação empírica, como as tautologias genuínas estariam. (...) Para Quine, uma verdade necessária é apenas uma afirmação tal que ninguém nos deu qualquer alternativa interessante que nos levasse a questioná-la.” (POSNER, 2010, pg29) Em outras palavras, o pragmatismo se funda em uma perspectiva experimentalista, acreditando que através da experimentação é possível alcançar a verdade. No âmbito da teoria da decisão judicial, os pragmatistas alicerçam-se em uma perspectiva consequencialista, avaliando no caso concreto quais as consequências que aquela decisão judicial terá e, diante disso, expressam qual deve ser o posicionamento do intérprete. Os juízes pragmáticos, ao contrário dos formalistas, não realizam subsunções de normas aos fatos (ou não realizam simplesmente isso). Eles olham para frente, observando o resultado que será obtido com aquela decisão. “O pragmatista valoriza a continuidade com promulgações e decisões passadas, mas porque tal continuidade é de fato um valor social, mas não porque tenha um senso de dever para com o passado. Ele está emancipado desse dever não apenas pelo caráter da análise pragmática, com sua insistência de que as conceitualizações sejam provadas como um resultado prático no aqui e agora, mas também pelo ceticismo sobre os métodos pelos quais os advogados constroem pontes do passado ao presente.” (POSNER, 2010, pg 56) Dessa maneira, podemos dizer que a decisão judicial que é embasada no pragmatismo filosófico (ou ortodoxo) não realiza uma subsunção do texto da lei ao caso concreto por acreditar que esse método de verificabilidade da verdade jurídica não possui uma correção universal e que, diante disso, o intérprete deve valer-se de uma análise holística e consequencialista para tomar a melhor decisão. 5. CONCLUSÃO As decisões prolatadas, sejam no âmbito do Judiciário ou da Administração Pública, possuem necessariamente um pano de fundo hermenêutico, sendo a atuação do intérprete determinante para a consecução do direito.
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Nesse sentido, ainda que presente na Teoria Geral do Direito – ou até mesmo fora do Direito, como querem alguns – a hermenêutica é ponto inexorável até o caminho da aplicação da norma, sendo imprescindível o avanço dos seus estudos pelas escolas do direito. Destarte, ainda que de uma forma perfunctória e inicial, o presente artigo teve por escopo identificar algumas das principais escolas e desenvolver as teorias por elas defendidas. Um aprofundamento, inclusive com a imersão em outras correntes de pensamento, mostra-se como imprescindível para uma melhor compreensão do Direito, o que auxiliará sobremaneira na construção de decisões mais legítimas e aceitas pela sociedade.
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NOTAS DE FIM 1 Ora sabes qual a reação que experimenta um amante quando avista uma lira, um manto ou qualquer objeto com que o seu amado habitualmente anda: ao mesmo tempo que apreende a lira, o seu espírito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence; e aí temos, pois, uma reminis-
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cência. O mesmo diríamos de alguém que, ao avistar Símias, se lembrasse de Cebes e, como este, milhares de exemplos poderiam apontar-se. (Fédon 73d.) 2 “anamnese são as recordações de verdades desde sempre conhecidas pela alma e que reemergem de vez em quando na experiência concreta” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149). 3 Termo utilizado pelo historiador Alexande Koyré em 1939. 4 “A Escola Histórica do Direito recebeu uma influência muito grande de dois movimentos intelectuais da época, quais sejam: o historicismo e o romantismo. De acordo com o primeiro – que mais se apresenta como um movimento de reação às ideias universalistas iluministas, que acreditava ser possível aos homens estabelecerem verdades universais simplesmente através do uso da razão -, a concepção racionalista iluminista deveria ceder lugar às manifestações espontâneas decorrentes da prática dos homens ao longo da história.” (GOMES, 2008, pg 95).
a metodologia de trabalho dos cultores da Escola Histórica do Direito baseava-se na recepção, isto é, na tentativa de se reconstruir o Direito Romano e germânico, além do costumes, de forma sistemática, visando a estabelecer uma doutrina do Direito de cunho histórico. A esse trabalho realizado pelos juristas alemães de reconstrução do Direito Romano, germânico e consuetudinário deu-se o nome de pandectismo, o qual foi importante para o resgate, e mesmo a sistematização, de muitos institutos jurídicos antigos, mas de aplicação cotidiana. Assim, quando se fala em amor ao passado, tem-se em mente essa tentativa de resgatar, sistematizar e reviver o antigo Direito aplicado aos germanos. É claro que isso foi alvo de críticas, pois tal postura poderia ser vista como uma tentativa do ideal iluminista de se ter verdades absolutas e universalmente válidas. E, por fim, existe o sentido da tradição, que se caracteriza por valorizar os costumes produzidos pelos povos, pois, no sentir dos cultores da Escola Histórica do Direito, eles, os costumes, constituem-se de direitos que nascem diretamente do povo, exprimindo o seu sentimento eo próprio espírito desse povo (Volkeist).” (GOMES, 2008, p. 98.) 6 CRUZ, 2007, pg. 78.
5 “Na primeira característica anteriormente apontada, tem-se por fundamentoa aidéia de que cada povo é um povo, que produzirá o seu Direito de acordo com suas particularidades e individualidades. Nega, portanto, a ideia jusracionalista de ser posssível a construção de um Direito único e universalmente válido através do simples uso da razão. Privilegia-se, portanto, a história e a tradição de cada um desses povos. A segunda, por seu turno, representa, também, uma crítica àquela postura racionalista/universalista dos jusnaturalistas. Na verdade, proclama que o Direito de cada um dos povos não resulta de uma atividade racional friamente calculada pela mente humana, mas que depende, justamente, de cada momento histórico e seu guia pelo sentimento de justiça que permeia toda comunidade. Por pessimismo antropológico, Bobbio (1999) estabelece que se deva ter cuidado com as inovações e com os ditos progressos legislativos, os quais, no mais das vezes, desrespeitamas tradições dos povos, não deixando que o seu Direito nasça e flua naturalmente, segundo as suas características históricas, não lhe permitindo alcançar a sua maturidade. Esse modo de pensar, certamente, influenciou sobremaneira a posição de parte dos representantes da Escola Histórica do Direito, em especial de Savigny, contra proposta codificadora. Com relação ao amor ao passado, é importante observar que
7 Para alguns juristas, Kelsen teria modificado esse entendimento quando da publicação da última edição de “Teoria Pura do Direito”, na qual ele teria reconhecido a possibilidade do intérprete, em situações específicas, aplicar o direito fora dos limites expostos na moldura. Para uma leitura mais aprofundada, ler GOMES, 2007 e OLIVEIRA 2001. 8 Foi em uma das reuniões do Clube Metafísico, por volta de 1872, que um de seus integrantes mais ativos, Chales Peirce, expôs aos demais um rascunho com algumas anotações resultantes de suas discussões coletivas, as quais pretendia possivelmente agregar a um livro sobre lógica, que planejava um dia escrever. Às ideias e opiniões contidas neste rascunho que apresentou a seus colegas, Peirce chamou de pragmatismo. Tratavase inicialmente de um “método de determinar os significados de palavras difíceis e conceitos abstratos”, dizia seu criador. Seus colegas lhe sugeriram denominar esta sua teoria de paticismo (practicism) ou praticalismo (praticalism), mas Peirce, que conhecia bem a distinção entre os termos kantianos praktisch e pragmatisch, sabia o que estava fazendo e não mudou de ideia. (POGREBINSCHI, 1977, p. 12)
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A QUEM SERVE A GLOBALIZAÇÃO? Gustavo Costa Nassif1 RESUMO: Dentre as diversidades contemporâneas, enumera-se: o processo de globalização da economia, a internacionalização de mercados, o fluxo comunicacional e o trânsito de pessoas - e a mais complexa - é prever como será o futuro e a nova composição do mapa internacional. PALAVRA-CHAVE: Globalização; Estado-nacional; Direito Internacional ABSTRACT: Among the contemporary diversities, up lists: the process of economic globalization, the internationalization of markets, the communication flow and the movement of people - and more complex - is to predict what the future and the new composition of international map. KEYWORD: Globalization; National State; International Law ÁREA DE INTERESSE: Direito Internacional 1. Introdução O debate acerca das mudanças ocorridas no mundo a partir de 1945 tem se tornado o ponto central quando o tema refere-se às relações internacionais. Não se trata de uma mera percepção, mas se pode afirmar, com certa segurança, a transição para um ciclo histórico. As primeiras mudanças vieram com o período da descolonização dos continentes africano e asiático. Em pouco mais de duas décadas, os países europeus perderam seus domínios. Por outro lado, os EUA tornaram-se a grande potência mundial, graças a sua política de crescimento capitalizada pela sequência de inúmeras guerras, muitas delas em curso ainda hoje. Após o período cinzento da Guerra Fria e da efervescência dos movimentos culturais mundo afora, as nações assistiram ao que parecia inimaginável: a queda do Muro de Berlim e a abertura política promovida pelos países da Cortina de Ferro. Praticamente todas as economias globais passaram a adotar o Sistema Capitalista baseado na economia de mercado. O estado de bem-estar social, no final do século XX, não suportou a voracidade do sistema neoliberal e desabou quase por completo. O século XXI foi inaugurado de forma turbulenta e trouxe consigo a força das potências emergentes que nunca ocuparam um papel tão importante no cenário mundial, como agora. Destaca-se o denominado BRICs capitaneado pela China que, nas últimas três décadas, se tornou a segunda maior economia mundial. Seguem, no mesmo trilho, as economias de Brasil, Rússia, Índia e África do Sul que se apresentam no cenário mundial como forças não mais alijadas dos debates internacionais. Dentre as diversidades contemporâneas, enumeramos: o processo de globalização da economia, a internacionalização de mercados, o fluxo comunicacional e o trânsito de pessoas - e a mais complexa - é prever como será o futuro e a nova composição do mapa internacional. As economias dos EUA e do Japão ainda passam por uma zona de turbulência. Não menos preocupante é a situação dos países da União Europeia e da Zona do Euro. Grave é a situação econômica da Grécia, de Portugal, da Irlanda, da Espanha e da Itália desde 2008. A economia brasileira da sinais que não suportará tanta desconfiança dos mercados, especialmente depois dos escândalos generalizados de corrupção envolvendo governo, funcionários públicos e empresas. Tanto os EUA como a Europa enfrentam problemas como o desemprego, a estagnação e a recessão econômica, além de outras tensões raciais e étnicas cujas causas são ainda muito mais
complexas. É sobremodo importante assinalar que esta situação de gravidade advém de múltiplos fatores, dentre eles destacamos a irresponsabilidade política e a ineficiência dos governos, agravada pelo quadro de corrupção e pelo déficit democrático que deslegitima qualquer ação governamental em momentos de crise e aumenta a descrença popular. Mais do que isso, a crise política centra-se na subalternidade do discurso político frente a um discurso econômico que se tornou hegemônico, naturalizado e matematizado. No oriente, as tensões nos países árabes revelam que as sociedades contemporâneas, independentemente de raça, ideologia ou religião, não mais suportam viver sob regimes autoritários e lutam contra o desemprego, a desigualdade, a violência e a corrupção que são garantidas pela tirania e pelos governos autoritários. A chamada Primavera Árabe se traduz na onda revolucionária, por intermédio de manifestações em todo Oriente Médio e norte da África, de resistência civil, que combina greves, passeatas, comícios e faz uso das mídias sociais para promover a interlocução e chamar atenção da comunidade internacional. Mesmo que para o mundo árabe liberdade e democracia possam ter conotações diferenciadas em relação ao ideal ocidental, verifica-se que estes povos buscam sua autodeterminação, por vez, distanciadas da repressão e da tirania, bem como condições de vida digna, em suas medidas. Esta é a prova de que velho mundo possivelmente não resistirá. Pode não ser mansa e pacífica a questão, mas conciso o século XX foi a síntese de toda produção humana e, ao mesmo tempo, o passaporte para um novo mundo, ainda pouco conhecido. O novo parece emergir das reiteradas crises e tensões ocorridas nas décadas que cerraram as portas do último milênio. 2. Globalização sem limites e fronteiras Pode-se dizer que não constitui uma empreitada sem custo ou esforço uma boa explicação sobre a temática da globalização. Mesmo porque são incomensuráveis seu limtes ou fronteiras. A abertura promovida por este fenômeno, sem precedentes na história, está infectado por uma complexidade a qual não se pretende descortinar. Primeiro porque suas ramificações não são passíveis de uma delimitação precisa, segundo, porque deve se ater apenas ao seu conteúdo identificável. Convém lembrar, que a origem moderna da globalização nasce com a afirmação do capitalismo a partir do movimento renascentista que promoveu a expansão marítima e o processo de colonização fora do continente europeu. Seu desenvolvimento ca-
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minhou pelas revoluções burguesas dos séculos seguintes para assumir sua robustez na primeira década do segundo milênio. Obviamente que, na medida em que este processo foi se aperfeiçoando , ele se mostrou mais evidenciado na interncionalização dos mercados de capitais, com a promoção de acordo inter-empresariais, mas também extendendo-se ao fluxo comunicacional e tecnológico, ao trânsito de mercadorias e pessoas com a consequente supressão das fronteiras, em um caminhar para além dos Estados-nacionais, e, que, progressivamente, vai afetando todas as relações, sejam elas econômicas, políticas, sociais, culturais, jurídica ou religiosas. Boaventura de Souza Santos quando fala em globalização nos ensina que estamos diante de “um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de um modo complexo.”2 Muitos outros conceitos podem ser edificados para explicar a globalização e os problemas experimentados pela comunidade atual, que por sua vez é constituída quase que sem fronteiras.3 Assim a globalização é um fenômeno que possui um caráter multidisciplinar e que precisa ser bem compreendido. Ela possui vários aspectos, dentre eles os econômicos, os políticos e os sócio-culturais que merecem ser apontados. Habermas é enfático na utilização do conceito de globalização. Utilizo o conceito de ‘globalização’ para a descrição de um processo, não de um estado final. Ele caracteriza a quantidade cada vez maior e a intensificação das relações de troca, de comunicação e de trânsito para além das fronteiras nacionais. [...] hoje em dia a tecnologia dos satélites, a navegação aérea e a comunicação digital criaram redes mais amplas e densas.” (HABERMAS, 2001, p. 84) Por meio da tecnologia a novidade da globalização consiste, portanto, em desafiar o tempo e o espaço na medida em que supera as restrições por eles impostas.4 É possível fazer cada vez mais e em menos tempo e assim progressivamente. Na seara econômica a novidade trazida pela globalização em face da estagnação da economia foi a desregulametação dos mercados financeiros e a abertura do comércio mundial somado a uma nova organização do trabalho que introduziu modelos produtivos que economizam mão de obra ao mesmo tempo em que se almeja uma maior produtividade do trabalho.5 O mercado de trabalho também passou a apostar em uma forma de trabalho baseado na ampliação do conhecimento.6 Essa liberação representou a prática da estratégia de atração de investimentos estrangeiros diretos ao mercado interno por agentes bancários ou não-bancários, de facilitação dos empréstimos estrangeiros a empresas domésticas, inclusive ao mercado de seguros, de desregulamentação para investimentos em portifólios no exterior e a consequente remessa dos lucros. O monetarismo e o liberalismo se tornaram os principais instrumentos de política económica.[...] A desregulamentação dos mercados pode consequentemente ser encarada também como nova oportunidade de investimentos, muito bem-vinda aliás, diante do declínio da lucratividade do capital industrial. Haja vista que a desregulamentação propiciou a criação de novos mercados, uma nova fronteira de investimentos se abriu, que, posteriormente, se concentrará fortemente nos mercados financeiros. A lucratividade conseguida através desse novo mercado só pôde ser alcançada exatamente pela desorganização do sistema financeiro internacional que levou à discrepância de taxas de juros nas diversas economias nacionais, de modo que o capital rentista pudesse buscar investir onde o mercado lhe garantisse maior retorno e liquidez nas aplicações. (ROCHA, 2008, p. 90)
A desregumentação dos mercados passou também a seguir a lógica garantista, de viés tipicamente neoliberal, consubstanciada na condecendência com os operadores do mercado diante das incertezas da economia. Isso quer dizer que além de se submeter ao capital especulativo o sistema financeiro estatal passou a dar garantias contra eventuais oscilações. Enfim, esse novo impulso da chamada globalização financeira pode ser resumido (1) na liberalização monetária e financeira; (2) na desinter-mediação; (3) e na abertura dos mercados financeiros nacionais. A abertura do mercado internacional representou dois processos conjugados de mudanças, aquele relativo às barreiras internas e aquele outro que separava os mercados nacionais e externos. (ROCHA, 2008, p. 92). A movimentação ilimitada de capitais especulativos, em face da abertura dos mercados financeiros nacionais passou a ser operada por meio de redes eletrônicas que simultaneamente promoveram uma fábula econômica virtual sem conexão com a economia real.7 Cumpre examinar, ainda, que neste substrato tecnológico residem várias inovações industriais, militares e biomedicinais, assim como se renovam as formas de comunicação (ampliação das redes sociais), bem como os meios de transporte. Grandes oscilações são produzidas nos seios das sociedades contemporâneas quando recebem estas novas formas de vida. As influências globais sobre a vida individual compõem o principal tema da nova agenda, assim como as decisões individuais atingem de forma difusa a vida global.8 Surgem vínculos para além das fronteiras que reivindicam novas formas regulamentares de coexistência. Ao mesmo tempo em que as relações entre o local e o global parecem contraditórias, também são indissociáveis. Isso de dá pela interconexão entre a presença e ausência com o passar de um feixe de luz. Até mesmo a noção de distância encontra-se mitigada nesta relação. A globalização nas últimas décadas não seguiu o sentido de homogeneização e uniformização, mas sim a eliminação das fronteiras nacionais. Oportuno se torna dizer que, o Estado-nação vem perdendo paulatinamente sua capacidade de controlar ou mesmo coordenar sua economia em face da frenética especulação financeira. Neste ponto os governos tornaram-se impotentes para sozinhos solucionarem a questão. Vale ratificar então, que são múltiplos os efeitos provocados pela globalização em relação ao Estado-nação. Registre-se, assim que a primeira delas revela sua incapacidade de lidar com os riscos que estão fora dos seus domínios. Não é mansa e pacífica a questão, mas o homem seria o grande desestabilizador da natureza e sua forma de vida estaria impactando profundamente o ciclo terreno.9 De uma forma ou de outra, é cediço que os Estado-nação não está preparado para sozinho lidar com tal desequilíbrio. Recentemente o mundo acompanhou dois tsunamis de proporções devastadores e outros terremotos como as mesmas dimensões. No passado, como no presente a lida com a energia atômica entabula outro problema, especialmente em virtudes de acidentes como o de “Chernobyl”, “Césio 147” e a “Usina Nuclear de Fukushima”. Ao se deslocar o olhar e focalizar em outra direção deparar-se-á com outros problemas não menos graves, como por exemplo, o terrorismo internacional, o crime organizado, o tráfico de armas e drogas. Revela-se, portanto, uma incapacidade do Estado-administrador lidar como o imponderável de um lado, e a falta recursos econômicos provocado pela mobilidade do capital e pela pressão fiscal promovida pela globalização de outro.
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O processo que ameaça sair de controle não é mais apenas o processo social de desenvolvimento político e econômico, mas as próprias formas novas de processos naturais, desde catástrofes nucleares imprevisíveis até o aquecimento global e as conseqüências inimagináveis da manipulação biogenética. É possível ao menos imaginar qual seria o resultado inédito das experiências nanotecnológicas: novas formas de vida que se reproduziriam de forma descontrolada, como um câncer por exemplo?” (ZIZEK, 2011, p. 431).
autônomos com estrutura, regras e procedimentos próprios de decisão. Os protagonistas deste novo policentrismo são as empresas globais, as minorias étnicas, os sindicatos e partidos políticos, as associações profissionais, as comunidades locais e regionais, além das organizações transfronteiriças, que reúnem membros espalhados em muitos países. O mundo estatal e o mundo policêntrico das organizações interagem continuamente, estabelecendo relações de cooperação e conflito.” (AMARAL JÚNIOR, 2011, p. 39)
Verifica-se, assim a debilidade do Estado nacional10 conforme concebido desde Westfália para o enfrentamento da globalização. Há uma redução da centralidade do Estado tradicional, que com o aumento de interações entre fronteiras11, ampliaram-se as dificuldades de controle de pessoas, bens, idéias, informações e etc. A densidade da economia, da cultura, da ecologia, bem como seu entrelaçamento não mais se permite uma introspecção estatonacional em face de uma afetação incontrolável. Como se poder notar a globalização exige um repensar para além do Estado nacional. Em virtude dessa inevitável influência os regimes governamentais vêm se adaptando a essa nova realidade. Desde a criação da ONU e seus organismos12 que, em certa medida, os Estados nacionais vêm procurando compensar a sua limitada capacidade de ação em algumas áreas de atuação com outros organismos regionais, internacionais ou globais que sejam capazes de suprir essa demanda. Cumpre examinarmos, neste passo que no final do século XX a intensa propensão das fronteiras do território nacional acaba por corroer a soberania. Essa corrosão impulsiona ainda mais a transferência de competências nacionais para outra esfera que se constitui para além do nacional. Ao se declarar a falência dos limites fronteiriços entre os Estados, de certa forma estaria implícita a desterritorialização em relação a uma economia internacional, às questões de natureza ecológica, comunicacionais, tecnológicas, dentre tantas outras influências. Esta contingência global vem progressivamente adotando fórmulas para superar essa avalanche de complexidades em que os Estados nacionais se encontram. Assim, dentre as alternativas a união interestatal em comunidades econômicas e ou políticas, tal como a União Européia13 e o Mercosul, revela-se como um antídoto para solução de problemas comuns, a fim garantir a paz entre e concretizar a promessa de bem-estar social a todos. Registre-se, ainda, que a distribuição de poder na arena internacional espalha-se nos domínios das organizações internacionais, ONG’s, e diversos outro atores que interatuam mutuamente. Os Estados nacionais passam a manter relações com várias corporações transnacionais, com uma diversidade de grupos étnicos e em alguns casos com os indivíduos.14 “A crise que então se esboça engloba as organizações coletivas em geral, mas se manifesta de maneira particular na incapacidade demonstrada pelo Estado para resolver problemas substantivos, harmonizar políticas públicas e despertar consenso. A preocupação com o desempenho e a efetividade promove a realocação da autoridade em duas direções opostas, que encontram expressões ora nos grupos subnacionais, minorias étnicas, governos locais, grupos religiosos e lingüísticos, agremiação política e sindicatos, ora em coletividades mais abrangentes que transcendem as fronteiras nacionais: organização supranacionais, organização intergovernamentais e não governamentais, corporações transnacionais e associações dos mais diferentes tipos, que atuam em muitas partes do mundo. [...] Surge, como diz Rosenau, paralelamente ao Estado um mundo Policêntrico de atores múltiplos e relativamente
Esses atores relativamente autônomos estão inscritos em uma rede informal de regulação, mas que dependem de um maior grau de legitimação. No âmbito do Estado nacional está legitimação se dá pela institucionalização dos procedimentos que viabilizam a formação da opinião e da vontade deliberativa dos cidadãos. Em meio a esta complexidade da ordem internacional a questão do déficit democrático é colocada em pauta. Não se pode olvidar a existência de múltiplas identidades nacionais de um lado e a grandes diferenciações trazidas pela globalização de outro. Este movimento altera os comportamentos locais em direção a uma ordem global multicultural, ampliando as dificuldades da integração e inclusão social.15 Esta relação do Estado nacional com estes novos atores múltiplos nem sempre são conciliáveis em virtude dos interesses que os movem. A título de exemplo, da mobilização estatal segue uma lógica cívico-política, enquanto os agentes transnacionais seguem uma lógica funcional-utilitária e os grupos com características próprias seguem a lógica etnocultural. Por isso a idéia de cidadania pode ser uma antítese à lógica etnocultural. Essa assertiva parece colocar em choque a cidadania com o substrato cultural em uma arena transnacionalizada. Estes choques promovidos pelos impulsos da globalização vão desnaturando a noção Westfaliana de soberania. Neste caso, a globalização promove a des-nacionalização do Estado, que decorre da reorganização de suas capacidades, tanto territorial como administrativas; a des-estatização dos regimes políticos, alterando as funções originárias do Estado para funções de coordenar parcerias entre órgãos governamentais, para-governamentais e não governamentais; internacionalização do Estado nacional16, que tem raiz na maior atuação internacional do Estado, possibilitando que ele, sempre que necessário, adapte as condições internas às exigências transnacionais e extra-territoriais.17 “Isso pode ser mostrado hoje em dia nos desafios do multiculturalismo e da individualização. Ambos nos obrigam a abrir mão da simbiose do Estado constitucional com a nação como uma comunidade de origem, para que a solidariedade entre os cidadãos possa se renovar em um nível mais abstrato no sentido de um universalismo mais sensível às diferenças. A globalização pressiona do mesmo modo o Estado nacional a se abrir internamente para a pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo tempo ele limita de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de administrações internacionais.” (HABERMAS, 2001, p.107) A globalização desafia a capacidade humana de criar fórmulas para solucionar seus impactos. Uma crítica mais ácida deve também alimentar este debate. A força manipuladora empreendida na comunicação de massa aliena uma boa parte da população promovendo uma paralisia democrática, ou mesmo uma nova forma utilitária de participação, voltada apenas, para o consumo dos mais desejosos objetos. Paradoxalmente a era do capitalismo desenfreado com todo seu aparato comunicacional promove um entorpecimento do diálogo.18
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Não se pode perder de vista o regozijo daqueles que celebram os benefícios da globalização, mas, convenha-se, nunca se presenciou tantas desigualdades sociais e econômicas entre os homens. “Embora o discurso em favor da globalização insista na transparência, tornada possível pelas tecnologias, pela abertura de fronteiras e de mercados, pelo nivelamento do campo de jogo e a igualdade de oportunidades, nunca houve na história humana, em números absolutos, tantas desigualdades, tantos casos de desnutrição, de desastre ecológico ou de epidemias galopantes (pense, por exemplo na Aidis na África e nos milhões de pessoas que deixamos morrer e portanto, matamos!)” (DERRIDA, J, BARRADORI, 2004, p. 131) Repousa-se nesta descrição o próprio questionamento do termo “globalização”. Ela se manifesta de forma tão diversas, desigual e excludente que uma grande parte da população mundial a desconhece. Não é de difícil detecção que com predomínio da economia de mercado, o desmantelamento do Estado de Bem Estar Social, a abreviação da área de atuação do governos e o endividamento dos Estados nacionais ela não chega a uma camada considerável da sociedade. Se os abismos erigidos, os contrastes sociais, a pobreza, o isolamento dos indivíduos não podem ser solucionados pela globalização, a quem ela serve? A quem ela deve servir? “A Globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TVs comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim, toda uma gama de informação democrática alternativa que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro, aqui, às falsas redes meramente produtoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas a uma rede democrática sem centro, multiparadigmática, uma rede de comunicação entre diversas culturas que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns), o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.” (MAGALHÂES, Direito Constitucional – Tomo III, p. 22) 3. Conclusão A globalização não é uma opção é um fato. Se ela não serve à humanidade, para quem serve? Assim, a questão que deve ser trazida à reflexão é qual a melhor maneira de globalizar a globalização no sentido de estendê-la a todos indistintamente. Talvez seja a hora e a grande oportunidade de re(e)levar este conceito para além do seu alcance tradicional, aproveitar seus benefícios em nome da liberdade e dos direitos humanos.
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NOTAS DE FIM 1 Doutor e Mestre em Direito Público (PUC/MG) - Professor Titular do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Boaventura de Sousa Santos, Globalização e as Ciências Sociais, p. 26. 3 “discursos, conhecimento e modelos são transmitidos mais rapidamente. A democratização tem novas oportunidades. Os movimentos recentes pela democratização na Europa oriental devem grande parte, quase tudo, à televisão, à comunicação de modelos, normas imagens, produtos de informática e assim por diante. As instituições não-governamentais são mais numerosas e mais bem conhecidas.” (DERRIDA, J, BARRADORI, 2004, p. 133) 4 “A consciência do espaço e do tempo é afetada de um outro modo pelas técnicas de transmissão, armazenamento e elaboração de informações” (HABERMAS, p. 57) 5 “na ‘flexibilização’ das biografias dos empregos, esconde-se uma desregulamentação do mercado de trabalho que aumenta o risco de desemprego; na ‘individualização’ das histórias de vida revela uma mobilidade imposta que entra em conflito com ligações a longo prazo; e na ‘pluralização’ nas formas de vida reflete-se também o perigo da fragmentação de uma sociedade que perde sua coesão” ” (HABERMAS, p. 111) 6 Talvez o principal fator trabalhista nessa nova configuração seja mesmo a característica das novas tecnologias de utilizarem mão-de-obra obrigatoriamente qualificada para controlar a fase produtiva não-programável, o que efetivamente requer um nível educacional adequado dessa força de trabalho que normalmente é renegado às classes mais pobres. Isso faz emergir impiedosa lógica circular, na qual a impossibilidade de conseguir trabalho os mantém mais isolados do contato com novas tecnologias, fazendo-os não encontrarem emprego porque não conhecem as novas tecnologias que de certa forma nunca conhecerão. (ROCHA, 2008, p. 101) 7 “Fala-se de algo como o movimento de investimentos decorrentes de capitais fictícios, ou seja, ativos financeiros negociáveis que têm seu valor relacionado muito mais diretamente com a situação do mercado do que com as vicissitudes do risco industrial. Essas atividades proliferam à margem da esfera produtiva e se apoiam muitas das vezes em produtos imagens. [...] Parece enfim que o mercado financeiro é algo estéril, pois sua atividade é basicamente o resultado da competição, no plano mundial, entre os agentes financeiros que tentam tirar a melhor vantagem comparativa.[...] Isso se dá dentro do jogo financeiro que não cria nada, é ex nihil, pois é um adiantamento de rendimento futuro que enfim não se ancora senão em projeções especulativas. E o dinheiro que se valoriza em si mesmo, sem a mediação de processos produtivos e de comercialização de mercadorias.” (ROCHA, 2008, p. 96). 8 “A experiência global da modernidade está interligada, e influencia, sendo por ela influenciada – à penetração das instituições modernas nos acontecimentos da vida cotidiana. Não apenas a comunidade local, mas as características íntimas da vida pessoal e do eu tornaram-se interligadas a relações de indefinida extensão no tempo e no espaço.” (GIDDENS, p. 77) 9 “Ao explorar os recursos naturais, nós tomamos emprestado do futuro, de modo que deveríamos começar a tratar a Terra com respeito, como algo que, em última análise, é sagrado, algo que não deveria ser totalmente desvelado, que deveria permanecer e deverá para sempre um mistério, um poder que devemos confiar e não dominar. Apesar de não termos domínio total sobre nossa biosfera, infelizmente está sob nosso poder desarranjá-la perturbar seu equilíbrio, enloquecendo-a, e acabando com nós mesmos processo.” (ZIZEK, 2011, p. 434)
10 “O mundo estatal é constituído, segundo este modelo, de Estados nacionais que atuam como atores independentes que tomam decisões mais ou menos racionais – segundo as preferências no sentido da manutenção do poder da sua expansão – em meio a uma vizinhança anárquica. [...] Apesar de a soberania e o monopólio da violência da autoridade pública terem permanecido formalmente intactos, a crescente interdependência da sociedade mundial coloca em questão a premissa segundo a qual a política nacional – de um modo geral ainda territorial, nos limites dos domínios do Estado – pode ser conciliada com o destino efetivo da sociedade nacional.” (HABERMAS, 2001, p. 89) 11 “Na realidade, nessa refundação do Estado, a soberania estatal viu-se enfraquecida e subvertida, pois a própria fragmentação da Ação política estatal (politics) em múltiplas políticas públicas (policies) implicou fragilidade da representação política e valorização da razão instrumental. [...] Assim, a diluição da soberania, em favor da global governance, decorreu tanto da delegação de competências para as instituições supranacionais visando a construção do Estado-comunidade, quanto para as corporações multinacionais economicamente poderosas, que se envolvem no exercício do poder, sem legitimidade, e não se submetendo as responsabilidades usuais dos órgãos do Estado.” (SOARES, 2011 p.319) 12 “Evidentemente, a política de poder [Machtpolitik] clássica é não apenas conectada de modo normativo às regulamentações da ONU, mas também é dissimulada de modo mais efetivo com o uso do soft Power” (HABERMAS, 2001, p. 91) 13 “Nesse contexto de discussão sobre os limites soberanos dos Estados diante da negociação de sua participação em projeto tão arrojado, como Maastricht se mostrava ser, vários países, principalmente Alemanha, Espanha. França e Portugal, questionaram suas Cortes Constitucionais acerca da receptividade do TUE perante as constituições nacionais. Em outras palavras, indagava-se a possibilidade de compatibilização do direito constitucional nacional com o comunitário.” (ROCHA, 2008, p. 131) 14 A emancipação do indivíduo talvez seja inversamente proporcional à sua capacidade processual na jurisdição internacional. O Direito Internacional ainda é fortemente interestatal, e sobra muito pouco espaço ao indivíduo como sujeito de direitos. 15 “Inclusão quer dizer que a coletividade política permanece aberta para abarcar os cidadãos de qualquer origem sem fechar [einschiessen] esse outro na uniformidade de uma nação [Volksgemeinschaft] homogênea” (HABERMAS, 2001, p. 94). 16 “Mesmo com o atual enfraquecimento do Estado Nacional, este ainda é importante no sistema globalizado para reagir a qualquer tentativa de mudança fora dos limites estabelecidos, agora, pelo grande capital globalizado, conservando o modelo existente e seus interesses e sistema de privilégios” (MAGALHÃES, 2008, p. 50) 17 “A conclusão foi em uníssono. Os Estados nacionais, apesar de transacionarem parcela de sua soberania para permitir maior cooperação comunitária, ainda se relacionavam com a própria UE por relações de direito internacional. Por consequência, ainda eram senhores de suas decisões quanto ao aprofundamento da integração e mesmo ao desejo de modificar suas constituições para dar validade ao TUE. Os Estados continuavam, por fim, sendo os referenciais básicos nas decisões sobre os domínios fundamentais da vida em sociedade, o que habitualmente conhecemos por independência.” (ROCHA, 2008, p. 133) 18 “Com todas as vítimas da suposta globalização, o diálogo (ao mesmo tempo verbal e pacífico) não está ocorrendo. O recurso à pior violência é assim freqüentemente apresentado como a ‘única’ resposta a ‘ouvidos surdos’ [...] Deste ponto de vista a globalização não está acontecendo. É um simulacro, um artifício retórico ou arma que dissimula um desequilíbrio crescente, uma nova opacidade, uma não comunicação prolixa e hipermidiatizada, um tremendo acumulo de riquezas, meios de produção, teletecnologias e armas militares sofisticadas – e a apropriação de todos esses poderes por um pequeno número de estados ou corporações internacionais.” (DERRIDA, J, BARRADORI, 2004, p. 132)
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ENTRE O FACTUAL E O NORMATIVO: anotações sobre o problema da ordem Carlos Magalhães1 RESUMO: O presente artigo desenvolve algumas reflexões sobre o problema da ordem, tal como exposto por Talcott Parsons, levando em consideração a abordagem da etnometodologia. Analisa-se a relação problemática entre a ordem factual e a ordem normativa. Ao construir sua versão do funcionalismo, um dos primeiros movimentos de Parsons foi rejeitar como erro a equivalência entre sociedade e moralidade proposta por Durkheim. O paradigma funcionalista separa a sociedade da moralidade, pois de outra forma não seria possível afirmar a ordem factual (sociedade) como um resultado da adesão dos indivíduos à ordem normativa (moralidade), que seria por eles internalizada via socialização. Durkheim não faz essa distinção. Para Durkheim, moralidade e fatos sociais seriam coisas idênticas sujeitas em si mesmas à investigação científica. A etnometodologia abandona o modelo de “sociedade governada por regras” em favor de um novo tópico chamado de etnométodos. Ou seja, as práticas sociais empíricas por meio das quais os membros da sociedade produzem um sentido de ordem. Dessa forma, a atividade considerada desviante ou criminosa torna-se um campo muito propício para a análise etnometodológica, pois os atores envolvidos nessas atividades são desafiados o tempo todo a produzir relatos sobre o seu envolvimento e suas consequências em condições cognitivamente críticas, nas quais a moralidade e a confiança são elementos cruciais. PALAVRAS-CHAVE: Teoria social, sociedade, ordem, moralidade, desvio, etnometodologia. ABSTRACT: This article develops some reflections on the problem of order, as set out by Talcott Parsons, taking into account the approach of ethnomethodology. The article analyzes the problematic relationship between the factual and the normative order. When building his version of functionalism, one of the first movements of Parsons was rejected as error the equivalence between society and morality proposed by Durkheim. The functionalist paradigm separates society of morality, because otherwise it would not be possible to state the factual order (society) as a result of the active assumption of individuals to a normative order (morality), which would be internalized via socialization. Durkheim does not make this distinction. For Durkheim, morality and social facts would be identical things subject themselves to scientific research. Ethnomethodology abandon the model of “society governed by rules” in favor of a new topic called ethnomethods, namely, the empirical social practices through which members of society produce a sense of order. Thus, the activity considered deviant or criminal becomes a very interesting field for ethnomethodological analysis, because the actors involved in these activities are challenged all the time to produce reports about their criminal involvement (and their consequences) in a cognitively critical condition in which the morality and trust are crucial. KEYWORDS: Social theory, society, order, morality, deviation, ethnomethodology. Área de Interesse: Criminologia; Sociologia Jurídica, Teoria Social.
1. Introdução De acordo com Richard Hilbert (1992), Talcott Parsons formaliza o problema da ordem como a relação problemática entre a ordem factual e a ordem normativa. A ordem factual é a ordem empírica observável na realidade e que exige explicação. É ela que dá origem ao “quebra-cabeça” intelectual conhecido como “problema da ordem”. É o fenômeno objetivo da regularidade dos assuntos humanos, é uma ordem comportamental. A ordem factual é também estrutural na medida em que é observável independentemente de suas manifestações individuais e das ideias dos agentes sobre o seu próprio comportamento. A ordem factual é a própria sociedade. Seu oposto é o caos e o comportamento aleatório. Já que a ordem factual não pode ser negada, pois tem existência objetiva, é preciso explicá-la. Estabelece-se assim o problema da ordem. A ordem normativa, por sua vez, se refere ao ponto de vista do ator e contém elementos de subjetividade e de agência ativa. Em Parsons, de acordo com Hilbert (1992), a ordem normativa é um sistema composto por normas, valores, papéis e status ao qual o ator adere. A ordem normativa é moral dado que os atores se submetem a ela de forma subjetivamente profunda. A ordem normativa é, também, prescritiva. Os atores, na medida em que se submetem, seguem as prescrições, o que, no final das contas, resulta em comportamento objetivo. Em larga escala o resultado é a ordem factual, ou seja, a sociedade. A ordem normativa contém, portanto, regras – normas e va-
lores – que estabilizam o comportamento. A ordem normativa é relativa à sociedade e sua impressão nos indivíduos se dá por meio dos processos de socialização e internalização. A ordem normativa é institucionalizada, ou seja, é imposta aos indivíduos de fora para dentro. Mas também é interna aos indivíduos de modo que se transforma em sua consciência. Na medida em que o conteúdo objetivo da ordem se torna subjetivamente presente, os atores compartilham uma base subjetiva. A ordem normativa é a base do entendimento compartilhado, isto é, da intersubjetividade. Como é também transmitida via socialização, passa de uma geração a outra. Conclui-se que a ordem factual observável é causada por outra ordem mais difícil de conhecer: a ordem normativa. Parsons preserva a agência ativa do ator entendendo que os meios que apontam para a realização de um fim fazem parte da ordem normativa e são, até certo ponto, escolhidos pelos agentes. No entanto, a escolha dos meios é governada por normas. A escolha dos fins realizada pelos atores é governada por valores. Normas e valores não têm de ser racionais, na verdade os valores que governam os fins últimos da ação não podem ser racionais. Normas e valores são dados e internalizados pelos atores por meio do processo de socialização. De fato, normas e valores governam “de dentro para fora” as escolhas dos agentes. De acordo Heritage (1984), o esquema parsoniano, embora mantenha a subjetividade do ator como um elemento analítico para o teórico, estabelece sua completa desconexão em relação
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à subjetividade concreta de atores concretos. Os fatos da personalidade do ator são equivalentes aos fatos da ordem normativa por obra dos mecanismos de socialização e internalização. Para Parsons, os padrões de valores culturais operam por trás dos indivíduos motivando-os. Os atores, no final das contas, são transformados em “judgemental dopes”, isto é, meros seguidores de regras incapazes de negociá-las e interpretá-las situacionalmente (GARFINKEL, 1967: 70). 2. A crítica etnometodológica a Parsons Garfinkel procura avançar no estudo da ação institucionalizada chamando a atenção para os fenômenos residuais problemáticos da obra de Parsons. Dessa forma, dirige a sua análise para os seguintes aspectos: 1) Os atores fazem relatos sobre suas próprias ações, ou seja, eles têm suas próprias versões sobre o que estão fazendo e por que. 2) Os atores coordenam ações com base em pressuposições de entendimento compartilhado. 3) Atores frequentemente invocam teorias sobre comportamentos governados por normas para propósitos estratégicos e que nada têm a ver com uma descrição acurada ou com conformidade em relação a normas (cf. HILBERT, 1992: p. 22). A principal tese de Hilbert é a de que Garfinkel recupera com seu programa de pesquisas temas chave da sociologia clássica que haviam sido anulados pela síntese funcionalista parsoniana. O trabalho de Hilbert nos permite tratar as questões relacionadas ao crime e ao desvio ligando-as a problemáticas clássicas, em especial as ideias de Durkheim sobre o status do crime como “definição social”. A etnometodologia ataca o modelo de sociedade baseado na noção de comportamento governado por regras de duas formas: 1) o modelo não teria êxito nem mesmo em termos abstratos e, além disso, 2) não corresponde ao que se pode observar por meio de estudos empíricos sobre a vida social organizada. O ataque etnometodológico é devastador para o funcionalismo e seria também para Durkheim, escreve Hilbert, se a consciência coletiva durkheimiana, como queria Parsons, consistisse de normas e valores. Mas a ideia de uma sociedade governada por regras não faria parte da abordagem durkheimiana. Ao construir sua versão do funcionalismo, um dos primeiros movimentos de Parsons foi rejeitar como erro a equivalência entre sociedade e moralidade proposta por Durkheim. Nos termos de Parsons, a sociedade apresenta uma ordem factual que é causada pela moralidade. Ou seja, por um tipo analiticamente distinto de ordem – a ordem normativa – que consiste de normas e valores respeitados pelas pessoas. Para Parsons, uma sociedade perfeitamente integrada supõe outro sistema perfeitamente integrado que poderia ser chamado de “corpo de regras” ou “corpo de regras normativas”. De acordo com Hilbert, Durkheim não faz essa distinção. Para Durkheim, moralidade e fatos sociais são coisas idênticas sujeitas em si mesmas à investigação científica. Poderíamos dizer que fatos sociais são também fatos morais e que não podem ser separados, nem mesmo analiticamente, como pertencentes a duas ordens distintas de fenômenos. De acordo com Wilson (1970 apud HILBERT, 1992: p. 32), o modelo funcionalista pode ser caracterizado como um paradigma normativo. O tema unificador e não explícito do paradigma é a correspondência literal entre situações e comportamentos ligados por regras estabilizadoras que designam ações específicas como apropriadas para situações específicas. Isto requer um significado prescritivo sem ambiguidade para a regra em cada caso em que for aplicada, entendida ou seguida. O paradigma parte dessa
premissa, pois de outra forma não seria possível aceitar a ordem factual como um resultado da adesão à ordem normativa. Se as normas estabilizam o comportamento, então as normas têm que ser estáveis. Para Hilbert, a ideia de que as regras estabilizam o comportamento ou que o comportamento estável requer regras é uma suposição de senso comum particularmente difícil de abandonar. A etnometodologia questiona os fundamentos do modelo prescritivo de forma similar à crítica de Durkheim ao entendimento de que regras racionais poderiam promover a regulação social: regras não são capazes de regular sem moralidade. Na realidade, o comportamento humano estável não depende de regras. O fato de que, algumas vezes, as regras sejam apresentadas como requisito para a ação estável não significa que elas sejam mesmo necessárias. Os atores nunca fazem a exigência analiticamente impossível de prescrição literal antes de agirem, pois seus interesses são, geralmente, práticos e não teóricos. Caso os atores ficassem esperando pelo esclarecimento teórico das prescrições, nunca agiriam. De acordo com Hilbert, as questões referentes à suposição, feita pelos próprios atores, de que regras são necessárias para o comportamento estável, ou seja, se os atores fazem essa suposição ou não, como fazem essa suposição, em que consiste tal suposição são, para a sociologia, problemas empíricos. A premissa de Durkheim é de que a moralidade é empírica e não uma hipótese explanatória que estabelece uma ordem normativa abstrata. A regulação moral é parte do mundo natural e, portanto, factual para a sociologia (HILBERT, 1992: p. 38). Essa ideia estaria presente no comentário de Durkheim sobre a insuficiência dos contratos como estabilizadores das condutas. Os contratos dependem de uma solidariedade pré-contratual, de uma base de confiança, que não pode ser abstrata, mas empírica. Esse tema é central para Garfinkel, que entende a confiança como resultante da “conformidade de uma pessoa com as expectativas da atitude da vida cotidiana como uma moralidade” (Cf. PAIXÃO, 1983). Os estudos concretos da etnometodologia mostram que moralidade não pode ser a mesma coisa que regras. Quando procuramos por regras em contextos de comportamentos estáveis e moralmente regulados, não as encontramos, escreve Hilbert (1992: p. 39). A etnometodologia abandona o modelo de “sociedade governada por regras” em favor de um novo tópico chamado de etnométodos. Ou seja, práticas sociais empíricas por meio das quais os membros da sociedade produzem um sentido de ordem. Atividades que retêm as características durkheimianas de exterioridade e constrangimento. Mas o fato de que as práticas são produtos da engenhosidade dos atores (“artful”) e não de prescrições seguidas irrefletidamente requer um novo entendimento de como é possível a ocorrência do desvio dentro da ordem social e como pode haver algo como a conformidade em relação a expectativas coletivamente estabelecidas. Para Parsons, as regras são capazes de prescrever o comportamento. Para que os membros da sociedade respeitem voluntariamente as regras é preciso que eles sejam socializados e internalizem as prescrições normativas. De acordo com esse modelo, o crime pode ser resultado da socialização imperfeita ou mesmo da diversidade de pessoas e suas idiossincrasias. O crime seria inevitável porque nem todas as pessoas respeitam as normas e valores suficientemente. Mas Durkheim fala de algo muito mais profundo quando apresenta a tese da inevitabilidade do crime. A concepção de Durkheim (1994) nada tem a ver com conformidade insuficiente com a mo-
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ralidade. De acordo com a concepção durkheimiana, nenhum indivíduo pode se conformar com a moralidade. A moralidade é um aspecto da consciência coletiva e, portanto, algo que transcende a todos os indivíduos; algo que nenhum indivíduo pode incorporar, manifestar ou ser de forma completa. Qualquer comportamento individual será, um pouco mais ou um pouco menos, uma violação da moralidade coletiva. De acordo com Hilbert (1992: p. 47), o desenvolvimento dessa linha de raciocínio nos levaria à conclusão de que a consciência coletiva se reduz nas mentes individuais a alguma coisa fenomenicamente não existente. O tecido social seria, de acordo com essa conclusão, quase inexistente. Estaríamos diante daquilo que Durkheim chama de anomia. No entanto, os membros da sociedade são chamados de volta para a moralidade coletiva, de modo que se previna a anomia, por meio da identificação ritual de alguém como o mais radical transgressor e do consequente julgamento do status do seu comportamento de acordo com os termos da consciência coletiva, que de outra forma seria um ideal inacessível ou mesmo intangível. É assim definida a cerimônia essencial para a constituição e manutenção da sociedade, ou da moralidade, como algo existente de fato. A prevenção ritual da anomia – que transforma a sociedade em algo tangível – é frequentemente colocada em prática em diferentes interações sociais. Consequentemente, os dois motivos pelos quais o crime é normal e não pode ser eliminado são: 1) Qualquer comportamento que seja eliminado pode dar lugar a outros que assumirão a posição de transgressão mais grave do ponto de vista da consciência coletiva. 2) O recrutamento dos “marginais” para o julgamento e punição é crucial para a manutenção da ordem social e para o afastamento da anomia (na medida em que torna tangível e acessível a consciência coletiva) e, assim, sempre deverá ocorrer (Cf. HILBERT, 1992: p. 48). 3. Indexicalidade, reflexividade e moralidade De acordo com a interpretação realizada por Hilbert, os etnometodólogos, desafiando o funcionalismo parsoniano com base em suas descobertas empíricas, recuperaram uma teoria da conformidade muito próxima daquela originalmente desenvolvida por Durkheim. A teoria da conformidade que aproxima a etnometodologia da sociologia durkheimiana emerge quando Garfinkel introduz o conceito de “indexicalidade”. Da forma mais simples, “indéxico” é o termo que Garfinkel (1967) usa para descrever uma propriedade de expressões semânticas que faz com que seu significado varie com o contexto e que seja, em um nível geral, dado a equívocos, imprecisões e questionamentos. O objetivo, perseguido por alguns sociólogos, por exemplo, de construir um vocabulário objetivo, capaz de produzir uma descrição literal de atos e eventos do mundo social de um modo cientificamente preciso e diferente da imprecisão do senso comum é fadado ao fracasso, pois todas as expressões são indéxicas, inclusive aquelas usadas para reduzir a indexicalidade de outras expressões. A ideia correspondente ao constrangimento moral durkheimiano aparece quando se observa o fato de que, ao discutirem sobre o significado de alguma palavra ou expressão, as pessoas – comprometidas com aquilo que Heritage (1984) chama de moralidade da cognição – constrangem-se umas às outras para que cada uma mantenha um entendimento considerado adequado em um contexto específico. É esse constrangimento mútuo que produz a impressão de que existem maneiras certas e erradas de compreender alguma coisa. No entanto, os atores não sentem esse constrangimento como um mero constrangimento imposto
por uma pessoa a outra. Os atores têm, na realidade, a sensação de que o seu comportamento ou uso de algum elemento linguístico se conforma ou falha em se conformar com algum “padrão subjacente” conhecido, ainda que não especificado. De um modo geral, escreve Hilbert, cada uso concreto de um recurso cultural (um argumento, uma descrição, uma norma ou um valor) é feito com base na presunção de que ele documenta um padrão subjacente de tal forma que esse padrão teria antecipado seu uso específico. Dessa forma, para os atores, cada situação documentada do padrão subjacente explicita algo mais sobre o padrão que os atores “conheciam desde o início”, mas nunca haviam explicado. Esse “método documental de interpretação” é, portanto, em um sentido prospectivo e retrospectivo, o método por meio do qual os membros da sociedade realizam na prática a conformidade ou a não conformidade a padrões (HILBERT, 1992: p. 51). Segundo Hilbert (1992: p. 51) para os etnometodólogos, preocupados com eventos empíricos, tais padrões subjacentes são mitos na medida em que não podem ser encontrados fora de situações de uso concreto. De fato, a indexicalidade impede que eles sejam encontrados fora de um contexto, apesar de eles serem elementos de conhecimento comum profundo entre os membros da sociedade. Os padrões subjacentes podem ser encarados como idealizações conceptuais, mas, para o etnometodólogo, eles são empíricos e tornam-se observáveis apenas em situações de uso concreto. Tais expressões não se referem a nenhuma entidade semântica ou padrões lógicos de uso que definam antecipadamente o uso apropriado. Os recursos culturais usados para documentar algum padrão subjacente não têm um núcleo estável de significado, mas, ao contrário, têm um conjunto de significados aplicados, ou aplicáveis concretamente, que são abertos e expansivos e que somente serão definidos em contextos específicos de negociação e interação social. A impressão de que os recursos culturais – seja um argumento, uma descrição, uma norma ou um valor – têm um núcleo de significado estável e literal é resultado do constrangimento relacionado a seu uso prático que as pessoas impõem reciprocamente umas às outras nas interações de que participam. Quando existe uma maneira considerada “certa” e outra “errada” de se usar uma expressão, necessariamente existe algo (uma moralidade da cognição) em relação a que o uso específico deve se conformar mais ou menos. Portanto, escreve Hilbert (1992: p. 52), vemos na administração criativa de expressões indéxicas um método coletivo de sustentação do mito dos padrões subjacentes – relativamente – fixos. Sem os constrangimentos morais-cognitivos, a impressão desapareceria. Se qualquer coisa pode passar por uso correto, ou se nada é reconhecido como uso incorreto, a própria ideia de “uso-em-conformidade” desapareceria e, assim também, noções de uso correto. A possibilidade de erro e correção propicia a impressão de que certos usos e não outros estão em conformidade com os padrões subjacentes. Vale destacar que as situações cotidianas em que as pessoas apontam os erros e apresentam as correções para certas afirmações ou descrições realizadas por alguém são fundamentalmente semelhantes aos rituais de prevenção da anomia de que tratava Durkheim. Nas duas situações, uma realidade a princípio intangível torna-se observável na medida em que se especifica o seu contrário. Recursos conceptuais parecem transcender as ocasiões específicas de uso prático, no entanto eles são incapazes de prescrever seu próprio uso fora de um contexto delimitado. O conceito de “ter”, exemplifica Hilbert, não pode ser pré-especificado em termos de uso apropriado, nem é possível identificar o seu núcleo de
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significado válido para uma variedade de situações. Mas o constrangimento mutuamente exercido pelas pessoas e que define um uso específico e contextualizado do conceito reproduz continuamente a impressão de que existe um núcleo estável de significado (HILBERT, 1992: p. 52). Da mesma forma, no caso de Durkheim, a consciência coletiva não pode ser exposta ou expressada em sua totalidade por nenhum comportamento concreto. Mas o seu status como moralidade transcendente é sustentado pelo recrutamento do comportamento designado como crime e pela comparação rigorosa entre o que seria certo e o que seria errado. Nos dois casos, escreve Hilbert (1992: p. 51), o constrangimento social é concreto e empírico e a redução ou ausência do constrangimento produziria uma “falta de significado”, no caso do conceito, e a anomia, no caso da consciência coletiva. Resta uma questão importante tanto para a etnometodologia como para Durkheim. Como podem recursos culturais inerentemente indéxicos, incapazes de prescrever o seu próprio uso, produzirem a ordem social factual que observamos diante de nós? Como pode o respeito subjetivo pela consciência coletiva produzir ordem se a consciência coletiva não é capaz de dizer a ninguém o que fazer? De acordo com Hilbert (1992: p. 56), Garfinkel não tem que responder a essa questão já que fala não apenas de expressões indéxicas, mas também de ações indéxicas. Da mesma forma que os recursos culturais, como expressões linguísticas, não significam nada fora de um uso particular específico, nenhum comportamento tem um significado intrínseco independente de sua colocação em categorias pelos usuários da cultura. Para Garfinkel os membros da sociedade usam expressões indéxicas para organizar ações indéxicas de forma a produzir, para si mesmos, uma impressão de ordem social estável. Esse é o fenômeno chamado de reflexividade. De acordo com Hilbert (1992: p. 56), a concepção de Garfinkel não remove o “comportamento” da jurisdição dos estudos empíricos e mantém seu status factual para ciência, mas o comportamento, tal como compreendido por Garfinkel, passa a incluir as apresentações verbais produzidas pelos atores. Especialmente as falas e teorizações dos atores sobre o seu próprio comportamento. Por meio do uso de categorias culturais os atores organizam seu comportamento como “comportamento-de-tal-tipo”, estruturado, reconhecível, repetitivo e padronizado. É também o comportamento tal como é organizado que propicia o contexto para as expressões indéxicas usadas para organizá-lo, dessa forma a ambiguidade dos recursos culturais é reduzida para os propósitos práticos dos atores. Portanto, para Garfinkel o problema da ordem social não pode ser solucionado sem o exame de como as pessoas realmente produzem a ordem sobre a qual elas falam e que é tomada como evidentemente factual. Esses métodos de produção de ordem, ou etnométodos, são observáveis naquilo que os membros de uma cena fazem e dizem. Esses métodos são, portanto, parte das próprias cenas que eles organizam como factual. De acordo com Garfinkel (1967: p. 8), a descrição da ordem social é ela própria parte da ordem social descrita. Na produção das descrições, o constrangimento opera e é encontrado na atividade humana concreta. Os membros não permitem uns aos outros a produção de qualquer relato descritivo sobre um cenário específico. Eles regulam as atividades uns dos outros, com o resultado de que cada um tem que ficar atento a essa prática reguladora externa. Portanto, essa regulação externa é factual. Unificam-se assim os aspectos factuais e normativos da
ordem sui generis durkheimiana (HILBERT, 1992: p. 58). Vale repetir, que as regras invocadas, criadas ou interpretadas pelos membros da sociedade não podem fazer o trabalho prescritivo requerido pelo funcionalismo parsoniano. Elas são recursos culturais usados pelos membros na construção da ordem, mas elas não são capazes de prescrever a ordem. A norma é, portanto, duplamente constitutiva das circunstâncias que ela organiza. Ela proporciona tanto a inteligibilidade como a “acountabilidade” (a possibilidade de explicação) de uma situação como normal. A norma oferece os meios pelos quais se torna possível a descrição da situação. Para Garfinkel, o que é importante em relação às descrições é que elas são usadas para tornar disponíveis, manter, transformar ou administrar atividades sociais organizadas de forma combinada. Nesse contexto, a questão sobre “se” ou “como” as descrições mundanas são avaliadas, interpretadas, aceitas ou contestadas (e sob quais critérios) é empírica. Questões teóricas estabelecidas a priori não são úteis nesse escrutínio. O objetivo não é validar ou invalidar as descrições apresentadas pelos membros, mas observar como elas organizam e são organizadas pelas circunstâncias empíricas em que ocorrem (HERITAGE, 1984: 141). Esse posicionamento corresponde à política da “indiferença etnometodológica”, que, de acordo com Garfinkel (1967: p. viii), consiste no princípio de que os “ethnomethodological studies are not directed to formulating or arguing correctives. They are useless when they are done as ironies. [...] They do not formulate a remedy for practical actions, as if it was being found about practical actions that they are better or worse than they are usually cracked up to be”. A essência da análise etnometodológica envolve o “método documental de interpretação” no qual a descrição e seu contexto elaboram-se um ao outro. A descrição invoca um contexto que será levado em consideração e os resultados dessa consideração, por seu turno, elaboram o sentido específico da descrição (HERITAGE, 1984: 147). Heritage nos apresenta um exemplo de análise etnometodológica quando aborda o tratamento dado aos relatos na etnografia de Wieder (1974) sobre uma casa de albergados (half-way house) para infratores. Quando os cientistas sociais são apresentados a algum tipo de relato ou explicação sobre a ação, a primeira decisão diz respeito à credibilidade que poderá ou não ser dada a ele. Essa decisão é tomada de acordo com o objetivo de controlar o uso que poderá ser feito do relato. Quando os relatos são tratados como merecedores de crédito, esforços são feitos para que sejam correlacionados de algum modo com ações ou então para construir os assuntos de que ele trata como uma análise da estrutura social. Nesse esquema, os relatos dos atores são sempre tratados como representativos dos motivos, ações e circunstâncias estruturais que pretendem descrever. 4. Considerações Finais O trabalho de Wieder mostra que há uma alternativa de análise. Esse método alternativo envolve o tratamento de ambos, as ações dos atores e seus relatos, como partes da história natural do campo sob estudo, isto é, ambos são tratados como institucionalmente organizados por referência a algum conjunto de “accounting frameworks” em termos dos quais as exigências e considerações do campo são manipuladas. Dentro dessa atitude analítica, a questão crítica de pesquisa diz respeito ao modo “como” os relatos funcionam e são usados no interior do campo. As questões de verdade e falsidade dos relatos tornam-se significantes apenas como um problema a ser resolvido pelos próprios
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atores no interior do campo e não como uma questão a ser examinada pelo analista com base em critérios externos. A análise de Wieder mostra também (Cf. HERITAGE, 1984: 208) que onde quer que os cientistas sociais encontrem campos institucionais nos quais recursos como valores, regras e máximas de comportamento são invocados abertamente, sua identificação não vai fornecer um “terminus” explicativo para a investigação. Essa identificação constitui o primeiro passo de um estudo dirigido à descoberta de como os recursos são perceptualmente exemplificados, usados, invocados e contestados. As regras e máximas tornam-se interessantes na medida em que são usadas de forma flexível e engenhosa na elaboração de explicações para a conduta. Como resume Paixão (1983: p. 36), “para os etnometodólogos, o problema da ordem social não é a explicação de regularidades empíricas e observáveis, mas como os membros da sociedade descrevem e explicam a ordem no mundo de sua experiência, ou seja, como desenvolvem um ‘sentido’ de ordem e de estrutura que explica a ação social como estável”. Dessa forma, a atividade considerada desviante ou criminosa torna-se um campo muito propício para a análise etnometodológica, pois os atores envolvidos nessas atividades são desafiados o tempo todo a produzir relatos sobre o seu envolvimento e suas consequências em condições cognitivamente críticas. Situações em que o sentido de existência de uma ordem estável está sempre ameaçado.
REFERÊNCIAS DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1990. DURKHEIM, E. Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ícone, 1994. GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1967. HERITAGE, John. Garfinkel and ethnomethodology. Cambrige: Polity Press, 1984. HILBERT, Richard A. Ethnomethodology. Chapel Hill: University of Carolina Press, 1992. PAIXÃO, A. L. “Crime, desvio e sociologia”. 1983. mimeo. WIEDER, D. L. Language and Social Reality, The Hague: Mouton, 1974. WILSON, T. “Conceptions of interaction an forms of sociological explanation.” American Sociological Review 35:, 1970.
NOTA DE FIM 1 Professor do Centro Universitário Newton. Doutor em Sociologia pelo IFCS/UFRJ.
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O que vale a pena: diálogo com “O Rappa” e os direitos humanos1 Bernardo Gomes Barbosa Nogueira2 RESUMO: O texto que se apresenta é um ensaio que procura dialogar noções de direitos humanos com canções da banda O Rappa. Não se trata desde já de trabalho científico nos moldes tradicionais, ora conversa com fontes não muito convencionais aos ouvidos da academia atual. Nele estamos a reproduzir fielmente um encontro com O DJ da banda, e nesse encontro, nos propusemos a encontrar as fendas necessárias à construção de um jurista humano. É uma busca, uma mais, pelo humano da literatura. Aquele aberto à narrativa plural. Distante talvez de um formalismo que por assim dizer choca com os interesses de uma minoria que fala de maneira diferente e que por isso mesmo precisa de textos também diferentes. PALAVRAS-CHAVE: O Rappa; Direitos Humanos; Negralha; Minorias; desconstrução ABSTRACT: The text presented is an essay that seeks dialogue notions of human rights with songs from the band O Rappa. It is not about a scientific work in traditional ways, sometimes engage to not so conventional sources to the ears of the current academy. In it we are faithfully reproducing a meeting with the DJ’s band and in this dialogue and this meeting, we intended to find the cracks needed to build a human jurist. It is a search, one more, by the human of literature. The human opened to the plural narrative. Distant perhaps, of a formality that collides with the interests of a minority that speaks differently and therefore, also needs different texts. KEYWORDS: O Rappa; Human Rights; Negralha; Minorities; deconstruction. 1. INTRODUÇÃO É sempre interessante perceber o nascimento de novas subjetividades. Hoje ao falar de canções, arte, política e direitos humanos de alguma forma criamos uma nova subjetividade. Ora, é um tanto inédito um evento em que dentro de uma Faculdade de Direito o personagem principal não está de terno e gravata. Hoje a Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva pinta com cores inéditas uma parte da história do conhecimento jurídico em Belo Horizonte, Minas Gerais e no Brasil como um todo. Como disse, estamos a construir e ver nascer uma nova subjetividade. Pelo menos é assim que enxergo esse nosso encontro. Hoje temos aqui um dos maiores DJ’s do Brasil, que integra talvez a maior banda de rock do país. Negralha, DJ, antes de tudo, e como quero lhe receber e tratar aqui hoje apenas como humano. Tocador de músicas, fazedor de arte, mas antes, humano, igual e diferente em sua diversidade e singularidade. Dou-lhe aqui boas vindas incondicionais cheio de amor pelo nosso encontro. Assim é o contorno que vejo nascer nesse encontro de canções com direitos humanos. Não pode ser outra a oferenda que lhe entrego, nossos olhares cheios de abertura à alteridade, seja bem vindo. Essa agora é e sempre foi e será, sua também. Mas a prosa aqui não é entre eu e Negralha, tampouco com a Newton Paiva. O nosso papo é sobre o olhar do outro que clama por ser recebido e na maioria das vezes é mandado de volta para um lugar de onde uma minoria não queria que ele saísse: “era o rodo cotidiano.” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) Quando fui inspirado a pensar a questão de direitos humanos a partir das canções d’ O Rappa, acabei por descobrir que antes de uma banda essas pessoas formam a aquilo que chamo de visionários de um tempo novo. Ora, em muitas das apresentações a banda fala de uma necessária mistura. De que a banda é multirracial, portanto, em um país em que a maioria ainda é relegada à periferia, não pude deixar de reconhecer ali o nascimento de um embrião dessa nova subjetividade. O Rappa é uma banda filha de um momento interessante em nosso país, no qual o cinema vai deixando de ser irrelevante e ganha um cariz político, a música desce do banquinho e dos morros
e ganha um timbre que muitas das vezes era calado, oprimido. Daí dizer: “sou quase um cara, não tenho cor nem padrinho, nasci no mundo eu sou sozinho (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Assim, começa um movimento que descortina um preconceito enraizado em nossa história e que o estado por intermédio do direito é a mais das vezes o cúmplice mais fiel. A diferença nunca foi uma pauta presente nas manobras estatais. Falava então de nascimentos. Assim, assiste-se um país em que algumas questão não entravam na pauta, e esses movimentos periféricos, de canções, de filmes, de cores e de gritos, começam a entoar pelo país afora. Podemos pensar no Recife com a Nação Zumbi, no Rio de Janeiro mesmo com o Planet Hemp. Nascia ali uma realidade que há muito estava oprimida. Ninguém mais seria o mesmo depois de Chico Science, Marcelo D2, e tampouco, depois do Rappa. O recado estava dado, o Rappa era mundi. E os vários cristos agora seria ouvidos. Assim, O Rappa se mostra como uma banda que reflete o que de fato seria o nosso país, ou seja, extremamente multirracial e ao mesmo tempo, paradoxal e incoerentemente, também um dos mais discriminatórios. Falaremos brevemente sobre algumas canções o que elas nos suscitam a pensar e quais os toques de Direitos Humanos que ouvimos nessas aulas de viver que são as letras. Podemos ver que a banda tem uma pegada plural e que não se restringe à questão racial. O cristo do Rappa é diferente, “a sombra dele é sem cruz, no meio daquela luz” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). A radicalidade da diversidade religiosa fica estampada aqui. Ainda uma ideia de que a culpa cristã talvez não seja a única e a melhor saída, talvez uma delas. Mas ainda nessa canção, “Meu mundo é o barro” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), chama a atenção a luta pelo reconhecimento independentemente da classe, da cor, do local de nascimento: “sou quase um cara não tenho cor nem padrinho, nasci no mundo eu sou sozinho” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Parece-nos um apelo ao valor singular do humano – uma aula de direitos humanos de primeira geração. Quando ouvimos “Lado B Lado A” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, YUKA. 2010), já no título vê-se a critica mordaz
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há um modelo que quer guardar as conceituações por vezes maniqueístas entre certo e errado, preto e branco, rico e pobre, mulher e homem, homo e hétero. Parece que há ali uma resposta de um local de há muito esquecido, então, “se eles são Exu eu sou Iemanjá, se eles matam bicho eu tomo banho de mar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Importa perceber a pluralidade religiosa explicitada na canção, pois fala-se desde Exu e Iemanjá, tudo isso junto da mitologia e da palavra deus. Essa fé, que é além de deus, mas também na batalha, denota um existencialismo misturado com uma fé que é afeita àqueles que estão a todo tempo tentando defender uma existência que corre do “rodo”, o qual passa nem sempre do mesmo jeito em todos os lugares, sobretudo para aqueles que não estão colocados na posição majoritária, diante da religião da maioria e ante a cor e a posição social dita normal. Quando em “Hóstia” (LOBATO; LOBATO. 2010) ouve-se os versos: “gatos humanos espreitam, choram mimados meu rango não dividira com qualquer animal meu prato de domingo a carne assada (...) Acuado em situação hiena não sou carne barata varejo imaginado pedaço do atacado” (LOBATO; LOBATO. 2010), é perceptível a miserabilidade estampada que a partir de uma ausência do estado em prestar as garantias constitucionais mais ínfimas, acaba por oferece à determinada parcela da população a sobra de uma vida ignóbil e que se assemelha à luta na selva. Assim, os humanos menos humanos de determinadas posições sociais sobrevivem de maneira a sempre estar a espreita do próximo prato de comida. Sempre correndo o risco de serem atacados pelo animal mais forte. A hiena espreita e come os restos de leão: teríamos leões e hienas em nossa cadeia alimentar social e humana? A canção “Homem Amarelo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) é emblemática do clamor por diversidade que há na musicalidade da banda. Ora, temos ali a “salsa cubana do negro oriental” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), e tem um louro que estava descendo uma ladeira, era ali estrangeiro. Essa fala nos conduz ao pensamento da diversidade, a cidade habitada por humanos diferentes e não determináveis em conceitos, por isso fala-se ali também em jeito de abertura para o mundo de dentro de sua própria realidade. Essa música é a própria expressão de uma local que não tinha voz, mas que agora surge como possibilidade daquilo que chamamos nova subjetividade. Assim, lemos: “eu e minha tribo, brincando nos terreiros, eu e minha tribo nos terreiros do mundo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), e isso é a clara percepção do que o final da música nos ensina, “só misturando pra ver o que vai dar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010). Esse verso mostra a que vem essa mistura de cores, ou seja, o terreiro pode ser de macumba, da casa da avó do playboy, ou o terreiro do mundo que desde Kant aprendemos a pensar como um terreiro comum de habitação de todos. Quando brinca-se no terreiro, sonha-se com o mundo. Esse sonho reflete-se no refrão final: “cor da pele? Foda-se!” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010) A mistura da necessidade de reconhecermos que não há cor que identifique um humano vem seguida de um palavrão que ao mesmo tempo em que assombra a linguagem escorreita e opressora mostra a voz, mais uma vez daqueles que um dia não podiam falar. Portanto, de foda-se me foda-se vamos misturando nossa existência. Com menos regras gramaticais e logo, menos violência, maior diversidade. Quando escuto “Mar de gente” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), logo me vem nossas discriminações simbólicas praticadas com a linguagem. Desde sempre temos uma linguagem masculinizada, opressora do feminino que é sempre minoria
e deve sempre se adequar ás regras dos machos. Assim, é importante perceber que essa luz dita na canção, “luz que nos cria e nos da juízo” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, 2010), talvez seja a luz que esta no próprio título da canção. Gente é palavra que não requer gênero. Gente é tudo que é humano. Sem rosto que o identifique. A palavra gente esta aliada á ideia do que fazemos de pessoa. Gente e pessoa no mesmo local. O mar é infinito, as “gentes” também são. Logo, aqui vimos a infinitude do humano sendo tratada como local onde deve-se atirar sem que antes avaliemos a cor, o gênero, a preferência sexual e a religiosidade. A verdade ali é de criança, portanto, inventada. Navegar é preciso, diria o Rappa em tom diferente de Fernando Pessoa. Aqui diz-se de preciso enquanto necessidade, ir ao mar e conhecer o infinito, deixar-se molhar por ele. Nascer e ser outro, sem fim, e sempre. Quando a alma está armada e apontada para a cara do sossego(FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO, YUKA. 2010). Bom, aqui quase todas as coisas ficam ditas. Em primeiro e metáfora quando a arma fica apontada. Assim como é apontado para a cara da maioria d população da periferia as armas de um estada que pune de maneira seletiva. Assim, é sutil, humano e triste perceber que a palavra paz ali comparece para dizer de uma paz imposta. Isso não é contraditória. Ora, é exatamente o que o nosso estado planeja em suas mesas de vidro que não enxergam além de táticas de guerra. Assim, quando a favela esta em paz o estado está bem. Quando há paz. Há opressão. A ausência de paz é ruim para o estado. Ela é revolução. Mas é apenas por meio desta que determinadas pessoas têm voz. Oferece-se então “drogas de aluguel”, há coação para que uma determinada parte da população esteja drogada, alienada em diversões pífias. Há aqui uma denúncia a respeito do que resta, ou seja, resta aceitar, calar acerca de mortes e invasões injustificadas e que que criam um clima de insegurança. Assim cumpre-se a realidade dita em outra canção “de geração em geração todos no bairro já conhecem essa lição” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO; YUKA. 2010). A paz ali é medo. O sossego é o aceite da opressão. Dessa maneira, enquanto convivemos nessas diferenças sociais, há cada vez mais grades, cada vez mais vontade de segurança, enquanto que o problema não esta nessa prisão inventada. A liberdade ali resta possível na medida em que haja condições para essa vida liberta. A prisão aqui é da ideologia estatal que impõe o centro e a periferia, e para esse último local resta apenas, calar, sossegar, para que o rodo não passe. Quem é o “Monstro Invisível”(FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010)? Essa pergunta sempre me ressoava quando ouvia essa letra. Parece a mim que esse monstro simboliza o preconceito, a estrutura social excludente, que naturaliza a diferença e que não se identifica apenas pelos braços do estado que agem mantendo essa diferença. Assim, quando diz-se ali “eles já sabiam, mas deixaram a sina guiar a sorte” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Isso é tornar natural a tragédia nossa de cada dia. Mortes e exclusões como questões inerentes à sociedade. Isso não pode ser tratado como natural, simplesmente porque não o é. O mostro invisível continua “arrasando tudo como é de praxe” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), mas praxe é costume, não é algo natural, podemos mudar os costumes e não levar a vida pra baixo? A versão do Rappa para “Hey Joe” (MEIRELLES; YUKA. 2010) traz uma visão bem peculiar dos guetos e da maneira como algumas pessoas têm suas escolhas restringidas pelas condições sócio-culturais do país. No Brasil a policia sobe o morro sozinha. Desacompanhada dos demais aparelhos constitucionais do esta-
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do. Assim, não há como dizermos do alto de nossos edifícios que há livre arbítrio. Ora, o aviso está dado: “esse não é o atalho pra sair dessa condição” (MEIRELLES; YUKA. 2010). Sim, concordamos todos nós, mas qual seria? Um adolescente para o qual não foi outra maneira de se portar perante o mundo. Aquele que escutou acordes não guitarra mas de metralhadoras, que vive em meio à uma guerra, “caçado e visto como um animal”. Realmente esse Joe não verá o “brilho intenso da manhã” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas como cobrar essa visão de quem vive um noite eterna. A moral ali é de uma ordem que os padrões burgueses convencionais. Não há perspectiva para a velhice, ela não é mesmo prevista. Sabe-se que, “também morre quem atira” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas e se a via de atirar for aquela oferecida de maneira mais fácil. Há na mesma canção um alerta àquilo que chama-se nomeação enquanto artifício ideológico, ora, “menos de 5% dos caras do local são dedicados a alguma atividade marginal” (MEIRELLES; YUKA. 2010), mas nem sempre é assim que olha-se para o negro e favelado. A palavra é por si só o local onde vive essa opressão ideológica, pois aprisionados nela, nomeados, parece que o seu ser singular nunca será acessado. Hey Joe, há um humano, por detrás do Joe. Isso não é dito. A “arte, honestidade e sacrifício” (MEIRELLES; YUKA. 2010) não seriam caracteres de pessoas que moram em favelas? Já que estamos em uma Escola de direito, devemos falar de tribunais. E é flagrante como nós juristas repudiamos os tribunais de exceção, contudo, eles aí estão à luz e à noite de cada dia. Há na canção “Tribunal de rua” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; NEGRALHA; XANDÃO; YUKA. 2010), uma denúncia da falta de preparo de alguns policiais e de maneira geral do militarismo que ainda ecoa na formação e que sustenta parte de nossa segurança pública. Há tempos falamos da ideia de desmilitarização da policia. Não se trata aqui de pensar na hipótese platônica de vivermos sem policia, mas as insígnias militares não cabem em uma democracia, parece-me um non sense democracia e militarismo. Assim, quando ouvimos, “de geração em geração todos do bairro já conhecem essa lição” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; NEGRALHA; XANDÃO; YUKA. 2010), algumas questões precisam ser postas: uma a do destino coletivo a que as singularidade que habitam as periferias de uma maneira geral sofrem, ou seja, um “biotipo” que determina a posição do humano esta alia condenado desde sempre. Neste sentido, além disso, há a ingerência do estado que lima a subjetividade de quem convive com esse medo diário simplesmente pela condição social e racial. A face perversa disso resta quando percebemos que a armadura que é empunhada para a opressão muitas das vezes é vestida por alguém do próprio local, isso acaba por legitimar, ou endossar essa questão excludente. O estado com essa música mostra sua face covarde quando pune aqueles que não têm como reagir, ou o que é pior, não têm nada para dar como troco. Apenas para mencionar a relação com o cinema iniciada, os filmes Tropa de Elite deixam essa realidade estampada. E por isso resta ainda a pergunta: há no Brasil tribunais de exceção? Como o judiciário trata deles? Ou essa existência que não é computada em números oficiais não importa e por isso não seria excepcional tratar essas pessoas assim? Há humanos mais humanos que os outros? Quem pratica algum ilícito não merece o manto da constituição? E quem é pobre? E quem é negro? E quando escutamos “todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (FALCÃO; MEIRELLES; MENEZES; YUKA. 2010) . Aqui reside um dos maiores males relatados pelo Rappa em suas canções. O preconceito que é chancelado pela ação do estado. Não é de se deixar de observar que a minoria dos presidiários seja
negra, nem tampouco que a minoria dos estudantes em universidades também seja negra. Esse dado deve ser observado uma vez que somos um país multicor e se a cor da pele indica um tratamento diferenciado, isso deve ser discutido. A subjetividade do negro é afetada a todo momento, não apenas pelos camburões que simbolizam os navios negreiros, mas pior, são os camburões subjetivos dentro do qual se escondem a maravilha da diferença. Desde sempre nossa país traz uma pecha de discriminação racial e isso deve ser pensado quando estamos contra as políticas de cotas raciais. Não se trata apenas de pagar dívidas, trata-se de reconhecer que o plural soma, que a diferença é positiva e que ademais, apenas misturando pra ver o que vai dar. Não há como dizer que não temos nada a ver com o que fizeram em nosso passado, temos sim, pelo simples fato de sermos seres históricos, pelo simples fato de sermos humanos. Esse reclame da canção começa com uma conversa na esquina. Na esquina do tempo restam ainda muitas questões a serem resolvidas. Na esquina do preconceito mora a intolerância que tem muitas das vezes a aplicação das leis como seu aval discriminatório. Diria um autor: “la serpiente solo pica los pies descalzos” (ROMERO. In.: GALEANO, 1998). Ele não estava errado. Alguns tribunais só existem em determinados locais e para determinadas pessoas. Denuncia-se debaixo do céu aquilo que sobra dele. Interessante que em “O que sobrou do céu” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), percebemos uma carga ideológica imposta, ou seja, há um local na periferia que é determinado, em que o chá que cura a azia é ciência de baixa tecnologia, menos tecnologia do que a ciência legítima, a ciência das prisões? Da cidade inacessível para a maioria? Seria essa canção reveladora de que uma parcela da sociedade tem uma parcela da cidade, que uma parte dela não estará nunca acessível? De novo a questão do destino coletivo. “pra gente ver o que sobrou do céu” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). A periferia constrói a cidade e ao mesmo tempo é excluída dela. Sobre apenas o que sobra do céu, e o que é pior, as cores, que seriam reveladoras da pluralidade, sevem apenas como rotina, escondidas nas nuvens, prestando os serviços que não requerem tecnologia, apenas rotina. “O espaço é curto, quase um curral, na mochila amassada, uma vidinha abafada” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Seria talvez essa uma boa revelação da desigualdade de uma exclusão social que não enxerga a singularidade, desde o transporte público pífio, até o problema de perceber que apenas uma parte da cidade esta à disposição de uma maioria. Dai por ali “não se anda por onde gosta, mas por aqui não tem jeito, todo mundo se encosta” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), seria isso a reprodução do que diria Brecht falando que das águas revoltas do rio todos dizem, mas das margens que o oprimem não se ouve falar. Assim, a vidinha abafada, a quentinha abafada, são o que resta de uma polis com exclusões sociais que justificam dizer das existências de exceção em nosso país. O que resta é pouco, o troco é pouco, a comida também, assim, as mudanças sociais não poderiam de fato serem muitas. Enquanto a subjetividade não for alargada, sobrará poucas nuvens, pouco céu e muita fumaça a ser engolida diariamente. Seriam 7 as nossas vidas? Teríamos novas chances? Bom, é fácil perceber que é sempre possível ir, vir, voltar e consertar possíveis erros. Mas e quando há uma pressão conceitual acerca do que é verdade, do que é certo, errado, qual o caminho certo e quais todos os que não podem ser percorridos. As portas nem sempre estarão abertas. Algumas vezes apenas algumas se abrem. Estariam todos em condições de enxergar essas por-
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tas? O certo é que algumas coisas não são discutidas: “castigo, será que é obrigatório?” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Um sistema penal que não enxerga a realidade, inverte os valores e trancafia quem precisa atenção. Estaria o estado chegando atrasado, depois das sete vezes? Dai aparece uma solução: estudar. Mas e os conhecimentos fora da escola. Fora do vocabulário. Fora dos nossos moldes militares de educar e punir. Estas voltas da canção “7 vezes” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010) estariam a dizer aquilo que Nietzsche diria acerca de uma existência como criança que se desprende das regras eternizadas e inventa a vida: “colorida de todo amor” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; LOBATO; XANDÃO. 2010) Sete vezes seriam as vidas que temos para perceber que “a estrada vai além do que se vê” (CAMELO. 2003) , ou seja, é invenção? Três musicas do Rappa me deixam sempre embevecido. “Vapor barato” (MACALÉ; SALOMÃO. 2010), “Me deixa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010) e “Pescador de ilusões” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO; YUKA. 2010), com elas caminho para o fim desses dizeres que me fizeram tão mais humano, mais uma vez obrigado ao Negralha por colorir nossos horizontes. Bom há aqui um momento, como aliás em vários nas músicas da banda, um toque de esperança, de acreditar na vida, de valor dela. Há uma fala sobre não carecer muito dinheiro, outra sobre deus, mas apesar de cansado, há a crença, seja em um amor, seja em uma flor, seja no navio, que é velho, mas que via pro mar, e que já foi dito, é infinito. Vapor barato, parece uma ode à esperança, ao caminho que não acaba e que por isso precisa ser a cada dia escrito. Cansado, mas com crença ainda, indo e vindo, “um dia eu volto quem sabe” (MACALÉ; SALOMÃO. 2010. Quando escutamos “Me deixa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), e que hoje estamos de bobeira, mais que a rima, há ali libertação. Há na canção uma nota de libertação das amarras, talvez todas estas que acima eu discorri. Parece que isso é um aviso, não procurem, “não verão mais pedaços por ai” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). Haverá um novo enredo, um novo dia de folia, e ali renascemos outro, libertos, e longe daquele aprisionado. Esse encontro consigo mesmo, parece uma fase mais madura da banda em que os próprios artistas se veem realizados, talvez sensíveis por pequenas
mudanças no país e percebem que mesmo pela internet podem mudar o mundo. “Desafiam o mundo sem sair de casa” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010), essa relação com agora um homem que tem casa, que sabe quem é, que é mais sincero consigo, talvez mostre uma face aparecida daquele homem do gueto que agora tem voz, fala e quer habitar a polis sem se vender ou querer se esconder. “Não se trata de coragem, mas meus olhos estão distantes, me camuflam na paisagem dando um tempo pra cantar” (FARIAS; FALCÃO; LOBATO; XANDÃO. 2010). É sim um nascimento, quiçá uma redenção! Não poderia encerrar com outra canção senão aquela que nos faz exatamente estar aqui hoje. Nos faz reunir tanta diversidade, desafiar o ensino jurídico, desfiar nossos preconceitos, inventar um novo espaço de construção do saber, nos reinventarmos. Assim, mesmo tendo meus joelhos doendo, há ainda um motivo para estarmos aqui. Há ainda uma manhã de outono, e outra e nela livros sem fim, palavras a serem inventadas, uma nova subjetividade a ser inventada. Que saibamos pescar, que saibamos ter ilusões, que essas palavras de realidade, amor, tristeza e anunciação sejam adubo desse novo tempo plural, cheio de ilusões, cheio de fés diversas, cheio de dúvidas e menos certezas, cheio de ilusões.
Referências GALEANO, Eduardo. Patas arriba. La escuela del mundo al revés. Buenos Aires: Siglo, 1998. RAPPA, O. Ao vivo – Vol. 1. Warner Music: 2010. RAPPA, O. Ao vivo – Vol. 2. Warner Music: 2010.
NOTAS DE FIM 1 Texto origialmente apresentado no evento “Dire(i)to no ponto”, que integra o Projeto Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Graduação em Direito pela Faculdade de Conselheiro Lafaiete. Especialização em Filosofia pela UFOP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutorando em Direto pela PUC/MG. Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
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