ISSN 2358-2685
publicaテァテ」o da Escola de Direito do Centro Universitテ。rio Newton Paiva N.3 | 2O SEMESTRE DE 2014
JURテ好ICA
LETRAS
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publicaテァテ」o da Escola de Direito do Centro Universitテ。rio Newton Paiva N.3 | 2O SEMESTRE DE 2014 ORGANIZADOR Bernardo Gomes Barbosa Nogueira
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© 2015 Centro Universitário Newton Paiva N.3 | 2O semestre de 2014
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Centro Universitário Newton PAIVA ESCOLA DE DIREITO Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
apresentação Errare Humanum Est O violeiro do Pantanal Almir Sater canta em uma de suas canções que ele “pensa que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”. Parece que esse espírito, nascido da canção que fala de sabores, de massas e de manhãs, escrita junto de Renato Teixeira, paira sobre quem sonha. É bom que o sonhador ande pela estrada e que se confunda com ela mesma. Sonhar é estrada. Sentida mais que sabida. Conhecer também seria sentir. Tocamos na direção da publicação de mais um volume de nossa Letras Jurídicas. Local de habitação discente na Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Momento no qual xs alunxs tornam-se protagonistas de sua própria tragédia. Compositores de sertão. Tocadores de sua própria andança. Pois que percorrer os anos nos bancos da faculdade é como andar pela estrada do tempo. Este que nos corta, deixa lágrimas e marcas. Mas que também nos informa que “cada um de nós carrega o dom de ser capaz, e de ser feliz”. O tempo dentro do curso nem sempre corre o curso que queremos dele. Mais uma vez a canção de Sater e Teixeira nos ensina: “só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei”. Desse jeito desconfiado que somos nós mineiros, caminhamos pelos corredores, pelos bancos, pelas visitas técnicas, pelas palestras, semanas jurídicas, noites adentro dos códigos, das doutrinas, de nós mesmos.“Tocamos o dia pela longa estrada”. Não é sabido onde ela vai dar. Há sabores bons. Amargores e saudades. O curso entra em nós enquanto passamos por ele, senão não se chamaria curso. O rio tem seu curso. Ele é tragédia. Não nos irá obedecer. Talvez um bom olhar, sensível e admirador, seja uma boa saída para essa dúvida que percorrer nossa estrada. Nos faz hesitar e por vezes andar com pressa. “A pressa é inimiga da perfeição”. Mas a perfeição não é dos deuses? Talvez seja interessante pensar nisso. Errar é humano. Mas não nos assustemos. Há possibilidade de “compreender a marcha”. “Tocar em frente”. Somos estradas. Iremos errar. Mas esse errar não é apenas um desvio da retidão, ademais requerida pelo direito. Errar é também errância. Nessa senda, de errância em errância, de curva de rio em diante o curso vai tomando forma. Contornando nossas falas, nossos valores, distinguindo as encruzilhadas, mostrando um horizonte, criando esse horizonte. O curso serpenteia nossos sonhos desde o primeiro dia de aula. Nós, vivendo nele, nos construímos. Erramos. Aliás, na educação, a errância talvez seja o lema. Em um percurso que é rio, devemos nos dar às próximas paragens. Para conhecermos é “preciso amor”, senão, “não pulsa”. Assim como sem chuva, não flore. E que graça tem estrada sem flor. As letras que estão aqui são talvez a desembocadura do rio. De alguma maneira essa Revista discente é um mar. É rio enquanto corredeira. É mar enquanto hospitalidade a receber todos esses sonhos que vem. Ao som do direito penal, civil, processual, trabalhista ou constitucional construímos nossas ideias sempre a acreditar que essa contribuição possa de alguma maneira criar mundo novo. Cada humano é um rio. Cada alunx aqui representa uma curva de rio. Almir Sater disse que essa canção é uma canção sobre a esperança - que nossxs alunxs tenham a dimensão da esperança a guiar a composição do seu tempo. Pois errar por aí só é possível pelo outro, esse infinito que nos enche de esperança e de possibilidades no encontro. Errar é olhar o outro. O outro que é esperança. Bernardo G.B. Nogueira editor
LETRAS JURÍDICAS | N.2 | 1/2014 | ISSN 2358-2685
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expediente ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO Presidente do Grupo Splice: Antônio Roberto Beldi Reitor: João Paulo Beldi Vice-Reitora: Juliana Salvador Ferreira Diretor Administrativo e Financeiro: Antônio Roberto Beldi Secretária Geral: Jacqueline Guimarães Ribeiro Coordenador do Curso de Direito: Emerson Luiz de Castro COORDENAÇÃO ADJUNTA: Douglerson Santos e Valéria Edith Carvalho de Oliveira
ORGANIZADOR Bernardo Gomes Barbosa Nogueira
apoio técnico Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton pAIVA http://npa.newtonpaiva.br/npa Editora de Arte e Projeto Gráfico: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG diagramação: Kênia Cristina e Márcio Júnio (estagiários do curso de Jornalismo)
sumário A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL ATUAL: análise do marco civil da internet com os princípios internacionais Aline Gabriela Aparecida Teixeira.......................................................................................................................................................................9
O AUMENTO DA PENA PARA OS CRIMES DE MAUS-TRATOS CONTRA OS ANIMAIS Ana Paula Cotta França....................................................................................................................................................................................17
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AÇÃO DE ACERTAMENTO DE DELIBERAÇÃO ASSEMBLEAR NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS Brenda Lima Costa...........................................................................................................................................................................................23
O TRATAMENTO ISÔNOMICO ENTRE HOMENS E MULHERES FACE À CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS Caroline Silva Lopes.........................................................................................................................................................................................29
AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS OCORRIDAS EM BELO HORIZONTE EM 2013: o direito de manifestação e a segurança pública Carla Franca Gusmão de Freitas......................................................................................................................................................................36
AS DIFERENÇAS ENTRE SEGURADORAS E AS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO VEÍCULAR: um enfoque jurídico Cassiano Gabriel de Oliveira Silva....................................................................................................................................................................44
O Acesso à função jurisdicional pelos Juizados Especiais Cíveis Estaduais em face à Constituição da República Carolina Kerley Oliveira Melo............................................................................................................................................................................51
O DEVER DE DILIGÊNCIA NAS EMPRESAS ESTATAIS Fabrício Pereira Contin......................................................................................................................................................................................57
A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO PENAL MÍNIMO EM RELAÇÃO AOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Eros de Almeida Ruas Cunha...........................................................................................................................................................................64
A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO DOENÇA AOS DEPENDENTES QUÍMICOS SOB CONDIÇÕES QUE IMPLEMENTEM SUA REAL FINALIDADE Gláucia dos Santos Fonseca............................................................................................................................................................................70
CONSTITUINTE PELA REFORMA POLÍTICA Fábio Fernandes do Nascimento.....................................................................................................................................................................75
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DIALETOS E FALARES BRASILEIROS: Como um patrimônio cultural imaterial do Brasil Jade Ribeiro Cordeiro.......................................................................................................................................................................................85
ALIENAÇÃO PARENTAL: Uma abordagem à luz da Lei 12.318/2010 Gleison Ricardo Ribeiro....................................................................................................................................................................................89
TERCEIRIZAÇÃO DO CALL CENTER PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÃO: Licitude e contrassenso das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho João Gabriel Pereira Mota................................................................................................................................................................................95
DO CARATER HEDIONDO DO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO: Uma análise comparativa com o homicídio privilegiado-qualificado à luz da lei 8072/90 Ilydia Fonseca de Moraes...............................................................................................................................................................................101
ANÁLISE DA PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DOS MENORES NA DISPUTA PELA GUARDA ENTRE PAIS BIOLÓGICOS E PAIS ADOTIVOS À LUZ DE UM CASO CONCRETO Marcela Almeida Monteiro Lacerda...............................................................................................................................................................109
DIREITO COMPARADO: SISTEMA DE APOSENTADORIAS PREVIDENCIÁRIAS DO BRASIL E DO CHILE Juliana Vilela Dias...........................................................................................................................................................................................115
GUARDA COMPARTILHADA: as vantagens e desvantagens trazidas por este instituto Mariana Morais Nascimento...........................................................................................................................................................................121
O MOMENTO DE FORMAÇÃO DO CONTRATO PELA VIA ELETRÔNICA Lorena Muniz e Castro Lage..........................................................................................................................................................................126
AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA CONCESSÃO DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS Nayara Nayana Lima Patrício..........................................................................................................................................................................131
UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA PENAL: JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL Marianna Débora Marques Soares................................................................................................................................................................140
UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA PENAL: JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL Priscila Araújo Freitas......................................................................................................................................................................................147
CERTIDÃO DE QUITAÇÃO ELEITORAL COM PRAZO INDETERMINADO: uma análise prática e constitucionalmente adequada da temática Meire Ellem Diniz Costa Galvão.....................................................................................................................................................................155
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A filiação socioafetiva no ATUAL contexto do Direito de Família Brasileiro Rafaelly Cristiny Ramos Guimarães...............................................................................................................................................................163
O SISTEMA RECURSAL NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – PROJETO DE LEI 8.046/2010 Pedro Henrique dos Santos Simões..............................................................................................................................................................168
O ENQUADRAMENTO JURÍDICO PENAL DO PHISHING E SUAS REPERCUSSÕES NO FURTO INFORMÁTICO Rebeca Bravo de Oliveira Gomes...................................................................................................................................................................177
A TUTELA PENAL NOS CRIMES DE MAUS TRATOS CONTRA ANIMAIS DOMÉSTICOS NO MUNICIPIO DE BELO HORIZONTE Thais Machado Silvério..................................................................................................................................................................................182
REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO E DIREITOS TRABALHISTAS DAS (OS) PROSTITUTAS (OS) Sabrina Dias de Almeida Faustino.................................................................................................................................................................189
AÇÃO POPULAR AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO DE CIDADANIA Thiago Oliver Pereira.......................................................................................................................................................................................194
A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE ACESSO A JURISDIÇÃO Auack Natan Moreira de Oliveira Reis............................................................................................................................................................201
INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DO DEPENDENTE QUÍMICO NO ESTADO DE MINAS GERAIS Bárbara Santos Trindade................................................................................................................................................................................209
ARBITRAGEM COMO FORMA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS TRABALHISTAS Breno Cesar Silva...........................................................................................................................................................................................217
DIREITO E SUICÍDIO: o direito da liberdade de escolha de viver ou morrer no ordenamento brasileiro Camila Cavalcanti Valadares Meireles...........................................................................................................................................................222 TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHA DE JEOVÁ Cirlene Costa Marçal......................................................................................................................................................................................227
A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA NA INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO Claudiovane Vianini César..............................................................................................................................................................................232
O COLEGIADO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO NA LEI 12.694/12 E A OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL Rodrigo Vaz Mendes Sampaio.......................................................................................................................................................................240
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DISCRIMINAÇÃO NO PAGAMENTO DE DIÁRIAS NA POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS Thales Milanez de Carvalho...........................................................................................................................................................................245
UMA ABORDAGEM LEGAL A RESPEITO DA EVOLUÇÃO DO AMPARO AO MENOR Thiago Ludgero Sena Fernandes...................................................................................................................................................................252
OS EFEITOS DA PRESCRIÇÃO QUINQUENAL NA RESCISÃO DE UM CONTRATO DE TRABALHO COM MAIS DE CINCO ANOS DE DURAÇÃO Ramon Felipe Antunes Matias........................................................................................................................................ ...............................257
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E TRIBUTAÇÃO: Limites da Delegação ao Poder Executivo, no que Tange à Edição de Medidas Provisórias na Seara Tributária Gustavo Henrique Duarte...............................................................................................................................................................................262
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A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL ATUAL: análise do marco civil da internet com os princípios internacionais Aline Gabriela Aparecida Teixeira1 William Ken Aoki2 Banca examinadora ** RESUMO: O direito à Liberdade de Expressão é inerente ao ser humano que sempre necessitou expressar seus pensamentos e sentimentos, sendo este um direito natural. Desde as primeiras inscrições nas cavernas, o surgimento da escrita e dos pergaminhos, passando pela invenção da imprensa até os dias atuais com a internet e toda a invenção tecnológica o homem luta para que este direito humano seja efetivamente garantido. No entanto, a história mostra que esta liberdade não é respeitada e os governantes continuamente tentam limitar, ou até mesmo cessar, este direito. Como forma de assegurá-lo a sociedade internacional tem se debruçado cada vez mais sobre a liberdade de expressão, em especial a Organização dos Estados Americanos, devido aos regimes totalitários que existiram nessa região, tendo inclusive a Comissão Interamericana de Direitos Humanos criado a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão. Este trabalho objetiva analisar se há a garantia da liberdade de expressão no Brasil atual e se os princípios internacionais são aplicados, com destaque para a lei que institui o Marco Civil da Internet. PALAVRAS-CHAVE: Liberdade de Expressão; Democracia; Internet; Limites; Marco Civil da Internet. SUMÁRIO: I. Introdução; II. Conceito de Liberdade de Expressão; III. A Internet como meio de comunicação; IV. Liberdade de Expressão na internet e Democracia; V. Limitações à Liberdade de Expressão; VI. Marco Civil da Internet; VI.I. Considerações iniciais; VI.II. Análise do Marco
I - INTRODUÇÃO Nos últimos anos temos vivido uma transformação na sociedade mundial causada, principalmente, pelas novas tecnologias e mídias, as quais proporcionam uma maior interação de toda a sociedade de forma global. Não é preciso ser um especialista em Tecnologia da Informação para perceber que a internet interligou os países do globo, aumentou o fluxo de informações enviadas e recebidas, e, consequentemente, provocou um tipo de revolução social. Essa interação entre as pessoas e os Estados é imprescindível para a construção de uma sociedade mais democrática e consciente de seus direitos e deveres, o que auxilia nos movimentos sociais e, até mesmo, nas decisões políticas de um país. Em um passado recente a população mundial percebeu a força da internet ao presenciar jovens de diversos países criando e divulgando protestos pelas mídias sociais, a fim de mostrar ao restante do mundo o que acontecia no interior de seus países. Movimentos como a “Primavera Árabe”, nos países árabes, o “Occupy Wall Street”, em Nova York, e a “Primavera Brasileira”, que ocorreu em 2013, mostrou para o mundo a insatisfação de jovens com as políticas públicas realizadas em seus países e o que a internet pode fazer. Concomitante a isto, o caso do norte-americano Eduardo Snowden, ex-funcionário do Serviço de Inteligência dos Estados Unidos, que apresentou documentos comprovando a espionagem realizada pela agência, a qual vigiava desde correspondências virtuais de Chefes de Estado e CEOs de grandes corporações, à publicações dos particulares nas redes sociais, sob o fundamento de combate ao terrorismo, reacendeu o debate sobre a proteção da internet e à liberdade de expressão. Além do exposto acima, a morte de jornalistas, a censura prévia, as decisões judiciais determinando a retirada de conteúdos da rede com alto valor de indenizações coadunam com a preocupação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (adiante CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (adiante Corte) acerca da proteção à liberdade de expressão.
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Em resposta a estas preocupações mundiais, a Presidente Dilma Rousseff promulgou a Lei nº 12.965/2014, denominada de Marco Civil da Internet, que estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, sendo esta um instrumento para a proteção da liberdade de expressão no país. O objetivo deste trabalho é justamente analisar se a Lei nº 12.965/2014 está de acordo com os princípios internacionais sobre a liberdade de expressão, considerando principalmente a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão e o Relatório sobre a Liberdade de Expressão e a Internet da CIDH, e com isso, se há a proteção deste direito. Inicia-se com uma análise sobre a liberdade de expressão e como ela é vista pela Corte e pela CIDH, passando às considerações do uso da internet para a exteriorização deste direito. Logo após há um contraponto sobre a imprescindibilidade da manifestação do pensamento para a construção da democracia, assim como a sua limitação. Por fim, há a comparação entre a Lei nº 12.965/2014 e os princípios internacionais. II – CONCEITO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO A palavra liberdade vem da expressão em latim libertas, que significa a condição de ser livre. No sentido jurídico, a liberdade seria o poder do indivíduo de agir com autonomia, ou seja, de acordo com sua vontade e determinação3. A liberdade é um direito imprescindível ao ser humano, assim como a vida, sendo necessária para a coexistência dos demais direitos humanos. Norberto Bobbio (1992, p. 52), em sua obra “A Era dos Direitos”, afirma que a liberdade é considerada o único direito natural do ser humano e não um direito imposto pela sociedade, devendo as normas garantir a sua eficácia: [...] uma vez entendido o direito como a faculdade moral de obrigar outros, o homem tem direitos inatos e adquiridos; e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade,
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isto é, a independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou, mais uma vez, a liberdade como autonomia. Esta condição de ser livre existe desde o início da humanidade, a qual provocou diversas guerras, revoltas e revoluções com o objetivo de buscar e garantir do direito à liberdade, que é considerado inato à raça humana. Segundo Samantha Meyer-Pflug (2009, p.27) “a liberdade de expressão é uma das dimensões do direito à liberdade”, e por este motivo, é tão essencial quanto às demais. Em razão dessa essencialidade, o direito à liberdade de expressão está garantido nos principais documentos sobre Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a qual foi o primeiro documento internacional que visou proteger de forma universal os direitos humanos, este direito está disposto no art. XIX: Artigo XIX Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Da mesma forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos consagrou este direito em seu art. 13: ARTIGO 13 - Liberdade de Pensamento e de Expressão 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. No entanto, apesar de ser um direito amplamente garantido pelos Tratados Internacionais e internacionalizado pelas constituições dos países, ainda é necessário lutar para conquistá-lo. Após mais de 20 anos vivendo sobre um regime ditatorial, período no qual o Brasil conviveu com uma forte censura e repressão do pensamento, a Constituição Federal de 1988 procurou proteger de forma abrangente a liberdade de expressão, permitindo a livre mani-
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festação de pensamento e proibindo qualquer tipo de censura, como preleciona os arts. 5º, IV e 220: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. § 3º - Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. § 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio. § 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. De acordo com o art. 60, § 4º, da Constituição Federal, o direito à liberdade de expressão é cláusula pétrea,não sendo possível excluí -lo do ordenamento jurídico ou restringi-lo: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. Contudo, a definição do que seria realmente a liberdade de expressão está presente no Princípio 1 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão:
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1. A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas. É, ademais, um requisito indispensável para a própria existência de uma sociedade democrática. Segundo a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão, este não é um direito exclusivo dos meios de comunicação e da imprensa, ao contrário, ele abrange todas as expressões de qualquer tipo, como as artísticas, culturais, religiosas, sociais, políticas, dentre outras. Cabe salientar que a liberdade de expressão é na realidade um gênero, que inclui a liberdade de informação, a liberdade de manifestação e a liberdade de imprensa. Portanto, todos os seres devem ter garantido o seu direito à liberdade de expressão, em todas as suas formas e meios, e é dever dos Estados adotarem medidas políticas eficazes para isso, bem como evitar as restrições desse direito. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA dispõe que: O respeito e a proteção à liberdade de expressão adquirem uma função primordial, uma vez que sem ela é impossível que se desenvolvam todos os elementos para o fortalecimento democrático e o respeito aos direitos humanos. O direito e o respeito à liberdade de expressão se sustentam como um instrumento que permite o intercâmbio livre de ideias e funcionam como um ente fortalecedor dos processos democráticos, enquanto que a outorga à cidadania é uma ferramenta basca de participação. O respeito à liberdade de expressão é, além de tudo, uma forma de proteger e aplicar de forma eficaz os demais direitos humanos. E a internet tem se tornado o principal instrumento para a concretização da proteção destes direitos, já que pela rede mundial de computadores é possível obter informações, informar e manifestar sobre os serviços essenciais e obrigações dos Estados. III – A INTERNET COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO A internet tem sido nos últimos anos o meio mais utilizado para a manifestação do pensamento, a busca, compartilhamento, acesso e difusão de ideias e informações. A Relatoria Especial das Nações Unidas para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão afirma que esta ferramenta tem permitido que comunicação instantânea e de baixo custo como nenhum outro meio de comunicação anterior, além de ter provocado um importante impacto no jornalismo e na forma como compartilhamos e acessamos as informações e ideias. Em razão do seu formato, a internet tem propiciado um diálogo cada vez maior entre os atores sociais e os Estados. O crescente uso da internet tem transformado o cotidiano das pessoas e alterado a relação com a busca e recebimento de informação nos países. Com o advento das redes on line é possível acessar informações em praticamente todos os lugares do mundo, relacionarse com pessoas de outros países, aprender outras culturas, aprimorar o conhecimento, dentre outras inúmeras vantagens. Entretanto, há também alguns pontos negativos do uso da internet, como a invasão da privacidade, circulação de pornografia infantil, pedofilia, discursos de ódios, entre outros, o que leva a discussão sobre a limitação do uso da internet. Motivados por estes pontos negativos alguns Estados sustentam a necessidade da limitação e controle dos meios de comunicação, principalmente a internet, a fim de proteger a moral e os bons
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costumes, conceitos que a Corte não conseguiu definir. Em contraponto a este discurso, a CIDH sustenta que as Tecnologias de Informação e Comunicação são cruciais para o desenvolvimento político, econômico, social e cultural de um Estado, a redução da pobreza, a criação de novos empregos, o aumento da proteção ambiental e para a prevenção e mitigação de catástrofes naturais. Portanto, por ser um instrumento cujo uso é benéfico para o desenvolvimento das nações, inclusive por incentivar e melhorar a participação popular nas decisões públicas, fato que fortalece o Estado Democrático de Direito e o exercício dos demais direitos humanos, é que a internet deve ser regulamentada para a evitar abusos por parte de particulares e governos, bem como garantir o direito à liberdade de expressão de forma eficaz. E a internet tem se mostrado como a ferramenta mais útil, econômica e célere para a expansão e fortalecimento da liberdade de expressão. IV – LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET E DEMOCRACIA A liberdade de expressão é o maior instrumento para a consolidação e fortalecimento da democracia nos Estados, uma vez que permite a participação da população nas decisões públicas. O maior exemplo desta tese está nos governos ditatoriais, uma vez que o primeiro ato dos ditadores é justamente aplicar controle à manifestação do pensamento da população. Segundo Anita Novinsky (2002, p.31) “aos governantes totalitários interessa utilizar os homens medíocres, que não criam e não contestam. A ‘intelligentisia’ é sempre uma ameaça”. A Corte Interamericana salientou em sua Opinião Consultiva OC 05/85 que a liberdade de expressão é a pedra angular na existência de uma sociedade democrática, sendo indispensável para a formação da opinião pública. Afirma esta Corte que “uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre.” (OC-05/85, §70). Desta feita, os Estados Democráticos devem assegurar que aja uma pluralidade de informações e que os indivíduos possam manifestar seus pensamentos e desejos da forma que julgarem melhores, observando o direito de terceiros. A Corte Interamericana sustenta ainda que uma sociedade democrática deve garantir maiores possibilidades de circulação de notícias, ideias, opiniões e acesso à informação. A liberdade de expressão é intrínseca na organização da democracia, que não é possível sem o debate livre e a manifestação de ideias divergentes. Não se concebe um regime realmente democrático quando no interior dos países a imprensa não seja totalmente livre, houver retaliações às pessoas que possuem ideias opostas ao governo dominante, limitação das manifestações populares e restrição desproporcional da liberdade dos indivíduos de exteriorizarem seus pensamentos. Ademais, o fortalecimento da liberdade de expressão auxilia no controle e combate da corrupção, que é o maior mal da política mundial e, especialmente, na brasileira. A internet tem possibilitado este debate de ideias e proporcionado a maior participação dos cidadãos nas decisões políticas do país. E, contrariando o senso comum, a camada mais jovem da população é a que mais utiliza esta plataforma com este objetivo. Estes jovens promovem assinaturas de petições virtuais, discutem sobre os problemas políticos, enviam e-mails para o legislativo acerca de propostas legislativas e organizam passeatas para protestarem contra a situação política. Podemos exemplificar o uso da internet como instrumento para a construção da democracia através dos seguintes casos reais e recentes: a) Em alguns países africanos e do Oriente Médio centenas de pessoas iniciaram protestos pacíficos requerendo melhores condições de vida e conseguiram derrubar governos autoritários, movi-
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mento conhecido como Primavera Árabe. Apesar de forte resistência armada por parte do Poder Público, os protestantes viram na internet o meio de se fortalecerem e buscarem apoio mundial para a causa; b) O movimento norte-americano denominado de “Occupy Wall Streat” foi organizado e amplamente divulgado pelas redes sociais e nasceu com o descontentamento dos jovens com a economia do país, dentre outros fatores. Por esta razão o local escolhido pelos manifestante foi o centro econômico dos Estados Unidos, em Nova York; c) As manifestações brasileiras que ocorreram em 2013, iniciadas nas redes sociais com discussões e reclamações sobre o aumento da tarifa dos ônibus municipais e com a atual estrutura econômica, social e política do país. Os jovens que usavam a internet como forma de protesto resolveram sair às ruas para mostrar aos governantes o descontentamento atual com os rumos da política, bem como os escândalos de corrupção Todos os movimentos expostos acima têm em comum o uso da internet como pontapé inicial para algo real, a exposição de opiniões e pontos de vista diferentes dos meios de comunicação de massa, assim como a divulgação instantânea do que ocorria. O aumento da inclusão digital tem demonstrado como esta ferramenta é útil para a manutenção e fortalecimento da democracia, uma vez que o mundo virtual proporciona um maior acesso às informações públicas, facilitando o controle dos cidadãos aos atos públicos. Por este motivo é imprescindível que os Estados expandem a quantidade de pessoas que tem acesso ao ambiente virtual, de acordo com os princípios delimitados pela Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão e o Relatório Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH. A própria Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão afirma que: A inclusão de todos os setores da sociedade nos processos de comunicação, decisão e desenvolvimento é fundamental para que suas necessidades, opiniões e interesses sejam contemplados no desenho de políticas e na adoção de decisões.
Desta feita a Convenção veda, de forma incisiva, o controle prévio da manifestação do pensamento, tendo a Corte afirmado que toda medida preventiva significa um menosprezo à liberdade de expressão. Assim, como qualquer outro direito fundamental, aquele que incorrer em abuso e violar direito alheio será penalizado pelo ato excessivo. Contudo, para que haja a sanção posterior o Estado deverá observar os seguintes requisitos presentes no art. 13.2 da Convenção: a) A existência de causas de responsabilidade previamente estabelecidas; b) A definição em lei e de forma taxativa das causas de responsabilidade; c) A legitimidade dos fins perseguidos ao estabelecê-los; d) Que as causas sejam necessárias para assegurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas ou a proteção da segurança nacional, da ordem pública, da saúde ou da moral pública. A Corte assinala que a “necessidade” indicada na Convenção deverá satisfazer o interesse público imperativo, e os Estados devem escolher a menor escala de restrição à liberdade de expressão. Dessa forma, o ideal é que as penalidades a serem empregadas para restringirem a liberdade de expressão devem possuir uma escala de graus, devendo ser aplicada primeiramente a sanção de menor grau e, caso o problema não seja resolvido, a de grau mais elevado, sendo a ação penal a última ratio. Em obediência ao princípio da segurança jurídica toda medida tomada contra a liberdade de expressão devem estar previsto em lei própria, o que nos últimos anos tornou-se um problema para o Brasil, uma vez que até o ano de 2014 não havia nenhuma legislação que regulamentasse os meios de comunicação. Com o maior uso das mídias digitais houve um crescente abuso da liberdade de expressão pelos usuários, tais como envio de fotos e vídeos íntimos de terceiros, o que levou ao debate da edição de uma lei que regulamentasse o uso da internet. Neste sentido foi criada a Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet que será analisada a seguir.
Este mesmo órgão alega também que o exercício da liberdade de expressão ocorre plenamente quando há a participação ativa e pacífica de toda a sociedade junto às instituições democráticas de direito, o que permite melhorar a condição de vida dos setores sociais marginalizados. Portanto, é fundamental a proteção da liberdade de expressão em todas as suas formas para que haja uma real democracia nos Estados, a qual nada mais é do que a soberania popular com a participação dos cidadãos nas decisões públicas.
VI – MARCO CIVIL DA INTERNET
V – LIMITAÇÕES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO Por ter os países latinos americanos sofrido em sua história recente com governos autoritários, a Corte Interamericana possui grande preocupação em proteger este direito. No entanto, ela entende que ele não é absoluto, e que nem toda restrição à liberdade de expressão afronta a Convenção, havendo limites para isto no próprio tratado. As formas de restrição à liberdade de expressão estão estipuladas no art. 13.2, o qual veda a censura prévia, responsabilizando os autores do ato posteriormente em caso de abuso. De acordo com a Opinião Consultiva nº 05/85: O abuso à liberdade de expressão não pode ser objeto de medidas de controle preventivo, mas fundamento de responsabilidade para quem o cometer.
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VI.I – Considerações Iniciais De acordo com a pesquisa do IBGE realizada em 2013, metade da população brasileira com idade igual ou superior a 10 anos utilizaram a rede mundial de computadores, representando aproximadamente 86,7 milhões de pessoas conectadas4. Esse número tem crescido nos últimos anos, e segundo a empresa de consultoria eMarketer o Brasil deve ser o 4º país com o mais acesso à internet, chegando a 3 bilhões de pessoas conectadas em 20155. Em razão destes dados tornou-se imprescindível a regulamentação para o uso da internet no Brasil, a fim de que este uso seja cada vez mais democrático e universal. O nascimento do Marco Civil da Internet deu-se de maneira diferente da maioria das leis brasileiras, e já apontou um futuro para a tramitação legislativa no país. A Lei nº 12.965/2014 foi a primeira norma brasileira construída com a colaboração efetiva da sociedade civil pela internet. O Projeto de Lei nº 2126/2011 foi criado com a colaboração da sociedade através de discussões incentivadas pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. O PL nº 2126/2011 tramitou na Câmara dos Deputados por dois anos e meio, período em que houve grande participação da população por meio de audiências públicas e fóruns de discussões no portal
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I - estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica; II - promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da internet no Brasil; III - promoção da racionalização e da interoperabilidade tecnológica dos serviços de governo eletrônico, entre os diferentes Poderes e âmbitos da Federação, para permitir o intercâmbio de informações e a celeridade de procedimentos; IV - promoção da interoperabilidade entre sistemas e terminais diversos, inclusive entre os diferentes âmbitos federativos e diversos setores da sociedade; V - adoção preferencial de tecnologias, padrões e formatos abertos e livres; VI - publicidade e disseminação de dados e informações públicos, de forma aberta e estruturada; VII - otimização da infraestrutura das redes e estímulo à implantação de centros de armazenamento, gerenciamento e disseminação de dados no País, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a difusão das aplicações de internet, sem prejuízo à abertura, à neutralidade e à natureza participativa; VIII - desenvolvimento de ações e programas de capacitação para uso da internet; IX - promoção da cultura e da cidadania; e X - prestação de serviços públicos de atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por múltiplos canais de acesso, inclusive remotos.
e-Democracia6. Este portal, ligado ao Poder Legislativo, foi criado com o objetivo de promover um debate virtual acerca do uso da internet no Brasil a fim de auxiliar os trabalhos dos Deputados Federais envolvidos com a aprovação da lei. No dia 23 de abril de 2014 a Presidente da República sancionou a Lei nº 12.965/2014, cuja vigência iniciou-se após 60 dias de sua publicação, ou seja, em meados de junho deste ano. Ressalte-se que alguns artigos da referida lei estão pendente de regulamentação via Decreto Presidencial, cuja elaboração ainda não ocorreu. Dentre as maiores características do Marco Civil da Internet está a especificação de princípios gerais, a indicação de direitos e garantias dos usuários, a proteção aos direitos da liberdade de expressão e privacidade, bem como a neutralidade da rede, questões essas essenciais para o uso seguro da internet. Por tratar de direito humano protegido pelos tratados de direitos humanos deve-se verificar se esta lei regulatória atende aos princípios internacionais sobe liberdade de expressão. VI.II – Análise do Marco Civil da Internet com os Princípios Internacionais sobre Liberdade de Expressão O mundo virtual possui desenhos próprios e específicos que a tornam diferentes dos demais meios de comunicação. Deve-se atentar para as características originais e diferenciadas da internet ao regulá-la para que sua arquitetura e incorporação social não sejam afetadas. Pensando nestas questões, a CIDH publicou em 2013 o Informe sobre Liberdade de Expressão e Internet, elaborado pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Este documento objetiva estabelecer princípios gerais para a proteção do direito à liberdade de pensamento e expressão no mundo digital, a fim de que estes guiem os Poderes Legislativos, Executivos e Judiciários, assim como a sociedade civil dos Estados da região americana. A Relatoria Especial definiu que o sistema on line não facilitou somente a expressão livre e aberta dos cidadãos, mas também ofereceu condições para a inovação e o exercício de outros direitos humanos, como a educação. Ademais, estabeleceu princípios norteadores para a regulamentação da internet, os quais foram incorporados pela Lei nº 12.965/2014, quais sejam, o pluralismo, a privacidade, a não discriminação e o acesso em igualdade de condições. Vejamos cada um destes princípios. O pluralismo procura maximizar o número e a diversidade de atores sociais que podem participar da deliberação pública, ou seja, trata do o uso da internet como ferramenta política e cidadã. Portanto, as autoridades públicas devem proteger essa natureza multidirecional da internet e promover a busca e a difusão de informações de todas as formas. O pluralismo é um dos fundamentos da Lei nº 12.965/2014: Art. 2o A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: (...) III - a pluralidade e a diversidade; Ademais, a norma determina que o poder público atue para assegurar o pluralismo político na internet, conforme disposto nos arts. 24 e 25 da lei: Art. 24. Constituem diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no desenvolvimento da internet no Brasil:
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Art. 25. As aplicações de internet de entes do poder público devem buscar: I - compatibilidade dos serviços de governo eletrônico com diversos terminais, sistemas operacionais e aplicativos para seu acesso; II - acessibilidade a todos os interessados, independentemente de suas capacidades físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais, mentais, culturais e sociais, resguardados os aspectos de sigilo e restrições administrativas e legais; III - compatibilidade tanto com a leitura humana quanto com o tratamento automatizado das informações; IV - facilidade de uso dos serviços de governo eletrônico; e V - fortalecimento da participação social nas políticas públicas. (grifo nosso) Como exposto alhures, a própria criação do Marco Civil da Internet proporcionou a expansão do pluralismo na rede, e seria ilógico se a norma não a contemplasse de forma tão abrangente como o fez. Acerca dão princípio da privacidade, este direito está contemplado no art. 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos: Art. 11 - Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. Desta feita, visto que o direito à liberdade de expressão não é absoluto ele não pode violar a privacidade, tendo os Estados a obrigação de proteger tal direito.
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As autoridades públicas devem abster-se de intrometer arbitrariamente na vida privada dos indivíduos e assegurar que terceiros não pratiquem condutas abusivas. A Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que as práticas de vigilância, interceptação e recopilação ilícita ou arbitraria dos dados pessoais dos indivíduos não afeta somente os direitos à liberdade de expressão e privacidade, mas são contrários aos preceitos de uma sociedade democrática (Resolução 68/167, apud, Informe CIDH, 2014). O Marco Civil procura proteger a privacidade, colocando-o como princípio básico e direito dos usuários: Art. 3o A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: (...) II - proteção da privacidade; Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização; V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet; VI - informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet; IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei; XI - publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos provedores de conexão à internet e de aplicações de internet; XII - acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet. A norma brasileira não veda a violação à privacidade pelo poder público e a divulgação de outros usuários, mas principalmente pelas
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operadoras e provedores de internet, que possuem em seus bancos de dados informações pessoais dos indivíduos. Acerca da proteção destes dados, a Lei nº 12.965/2014 regulamenta a guarda e divulgação em dispositivos próprios, a fim de delimitar o que pode ser utilizado, nos arts. 10 a 17. Essa regulação de forma extensa e expressa vai ao encontro aos requisitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos para a limitação da liberdade de expressão, já mencionados neste trabalho, o que garante a responsabilização posterior daqueles que divulgarem dados privados dos usuários. Ao contrário do que se pode indagar a proteção ao direito à privacidade não prejudica a liberdade de expressão, mas a auxilia, uma vez que os usuários ao saberem que seus dados são sigilosos se sentirão mais confiantes e seguros para navegar na internet e expor a suas opiniões. A fim de aumentar o fluxo de informações o princípio da não discriminação, junto com a neutralidade da rede, pretende que os Estados não obstem os cidadãos, ou setores particulares, de difundirem suas opiniões e pensamentos. Segundo o Informe da CIDH, o princípio da neutralidade da rede caracteriza-se como o tratamento aplicado aos dados e tráfegos de internet, os quais não devem ser objeto de nenhuma discriminação em função de fatores como dispositivos, conteúdo, autor, origem e/ou destino do material, serviço ou aplicação. Em respeito a este princípio os usuários podem utilizar a internet de forma irrestrita sem nenhum tipo de bloqueio, filtro ou interferência por parte do Poder Público ou de terceiros. O art. 9º da Lei nº 12.965/2014 trata da neutralidade da rede no Brasil, dispondo que os responsáveis pela transmissão deve tratar de forma isonômica os dados, sem qualquer distinção: Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. § 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de: I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II - priorização de serviços de emergência. § 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve: I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. § 3o Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. Ressalte-se que a discriminação ou degradação do trafego de dados só poderá ocorrer após a regulamentação da lei via Decreto Presidencial, o que não foi feito até o presente momento.
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Ocorre que a violação à neutralidade da rede vai de encontro com o princípio 5 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão: 5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de idéias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão. (grifo nosso) Os atos que descriminem o uso da internet, como por exemplo, valores de tarifas diferenciadas por uso ou por região, são vedados, salvo se forem utilizados como ações afirmativas para aumentar o acesso à internet. Portanto, as ações das empresas de tecnologia e provedores que pretendem restringir o uso da internet de forma discriminatória infringem o direito à igualdade dos usuários, garantido pela Constituição Federal, além do princípio do acesso em igualdade de condições à rede. O acesso à rede está assegurado no princípio 2 da Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão: 2. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opiniões livremente, nos termos estipulados no Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Todas as pessoas devem contar com igualdade de oportunidades para receber, buscar e divulgar informação por qualquer meio de comunicação, sem discriminação por nenhum motivo, inclusive os de raça, cor, religião, sexo, idioma, opiniões políticas ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. É dever dos Estados definir quais os meios mais adequados para a implementação deste princípio, adotando medidas que garantem, progressivamente, o acesso de todas as pessoas à internet. De acordo com o Informe da CIDH há, ao menos, três medidas que podem ser adotadas pelos Estados para assegurar o princípio do acesso: a) ações positivas de inclusão ou fechamento da laguna digital; b) desenvolvimento de planos para a criação de infraestrutura e serviços garantidores o acesso universal; c) proibição de bloqueios ou limitações ao acesso à internet. O Marco Civil determina que o Estado garanta o acesso universal de toda a população à internet e adote medidas para a inclusão digital. A lei dispõe que o poder público deve adotar tecnologias, padrões e formatos abertos e livres; a promoção da educação tecnológica para capacitar o uso da internet de forma consciente, seguro e responsável; bem como reduzir as desigualdades nas regiões do país do uso da internet. Por fim, os entes federativos devem promover a inclusão digital dos portadores de deficiência, incentivando a pesquisa e criação de tecnologia acessível, assim como estabelecer locais com equipamentos próprios para a alfabetização digital destas pessoas. Pode-se considerar que o Marco Civil da Internet atingiu seus objetivos, quais sejam, a regulamentação do uso da internet ampliando a proteção à liberdade de expressão, coadunando com os princípios internacionais. VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei nº 12.965/2014 é uma surpresa positiva na legislação brasileira, desde o início de seu projeto. Apesar do receio existente na sociedade civil acerca da regulamentação da internet e das opiniões
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divergentes, o Marco Civil da Internet conseguiu normatizar de forma positiva o uso da internet. Ademais, observa-se que todos os princípios estabelecidos no Informe da CIDH foram contemplados. Entretanto, não podemos esquecer que este é o primeiro passo para o uso democrático e universal do meio digital, e somente com o passar do tempo poderemos assegurar que o Marco Civil da Internet realmente promoveu a liberdade de expressão no país. A ausência do Decreto Presidencial exigido na referida lei para a eficácia de alguns dispositivos aumenta o estado de vigilância dos cidadãos, visto que fatores políticos externos podem prejudicar os ditames da norma. No momento podemos apenas demonstrar otimismo com a edição da Lei nº 12.965/2014 que foi um salto para a proteção do direito à liberdade de expressão no Brasil atualmente, a qual respeitou os princípios internacionais. REFERENCIAS ALMEIDA, Maria Cecília Pedreira de. Ocuupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, n.19, p. 267270, 2º semestre.2011. Disponível em < http://www.revistas.usp.br/cefp/article/ view/55748/59163 >. Acesso em: 24.nov.2014 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 20.nov.2014. _______. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Brasília: Câmara dos Deputados, 2014. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/ lei/l12965.htm>. Acesso em: 09.out.2014. ________. Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Brasília, 1992. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em: 09. out. 2014. BRASIL DEVE FECHAR 2014 COMO 4º PAÍS COM MAIS ACESSO À INTERNET, DIZ CONSULTORIA. BBC Brasil. Nov,2014. Disponível em < http://www.bbc. co.uk/portuguese/noticias/2014/11/141124_brasil_internet_pai>. Acesso em: 26.nov.2014. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. Washigton, DC, EUA, 2000. Disponível em http://www.oas.org/pt/ cidh/expressao/showarticle.asp?artID=26&lID=4. Acesso em: 04.nov.2014. _________. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Antecedentes e Interpretação da Declaração de Princípios. Washigton, DC, EUA, 2000. Disponível em http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=132&lID=4. Acesso em: 04.nov.2014. __________. Informe da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Liberdade de Expressão e Internet. Washigton, DC, EUA, 2013. Disponível em < http://www. oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicaciones/Informe%20Liberdade%20de%20 Express%C3%A3o%20e%20Internet%20capitulo.pdf>. Acesso em: 04. Nov. 2014. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC – 05/85, de 13 de novembro de 1985. Associação Obrigatória de Jornalistas. San José, Costa Rica, 1985. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/ opiniones/seriea_05_esp.pdf>. Acesso em: 04.nov.2014. E-DEMOCRACIA. Câmara dos Deputados. Debate sobre o Marco Civil da Internet. Brasília, 2013. Disponível em <http://edemocracia.camara.gov.br/web/ marco-civil-da-internet/inicio>. Acesso em: 26.nov.2014. EDUCAÇÃO GLOBO. Rio de Janeiro. Disponível em <http://educacao.globo. com/artigo/primavera-arabe-entenda-o-acontecimento-que-pode-cair-no-enem. html>. Acesso em: 24.nov.2014. GARCIA, Marcelo. Das redes para as ruas. Ciência Hoje On-Line. jun.2013.Dis-
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, cursando o 10º período o turno da manhã. 2 Professor - Orientador. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001), especialização em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas (2004) e mestrado em Direito Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Atualmente é advogado, professor adjunto, Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Internacional do Centro Universitário Newton Paiva e Academic Advisor da International Law Students Association. 3 A conceituação de liberdade foi dada por Célia Zisman, na obra A Liberdade de Expressão na Constituição Federal e suas limitações – os limites dos limites. 4 Dados disponíveis no Portal Brasil. < http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/09/ibge-metade-dos-brasileiros-teve-acesso-a-internet-em-2013>. Acesso em: 27/11/2014. 5 Informação divulgada no site da BBC Brasil. <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/11/141124_brasil_internet_ pai>. Acesso em: 27/11/2014. 6 O portal e-Democracia está no sitio eletrônico da Câmara dos Deputados e foi criado especialmente para os debates acerca do Marco Civil da Internet e está disponível no seguinte endereço eletrônico < http://edemocracia.camara.gov. br/web/marco-civil-da-internet/inicio>. Acesso em: 26/11/2014. ** Daniel Medrado; William Ken Aoki.
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O AUMENTO DA PENA PARA OS CRIMES DE MAUS-TRATOS CONTRA OS ANIMAIS Ana Paula Cotta França 1 Maraluce Maria Custódio2 Banca examinadora ** RESUMO: O presente artigo trata do aumento da pena para o crime de maus-tratos contra os animais discorrendo sobre os direitos desses seres e a relação entre os seres humanos e os animais. Será analisada a história da legislação protetiva dos animais e sua situação atual no que tange a tipificação dos crimes contra os animais, as penas para quem os comete e sua aplicação na prática. Diante dessa análise, demostrar que as penas previstas na legislação atual não são suficientes para punir efetivamente os agentes e impedir novas práticas e, portanto, tais penas devem ser aumentadas. PALAVRAS-CHAVE: Direitos dos animais, dignidade animal, princípios, legislação protetiva, punição, penas, aumento. SUMÁRIO: I. Introdução; II. A relação de ser Humanos x Animais; III. Porque proteger os animais; IV. A historia da Legislação Protetiva; V. Direito Brasileiro; V. I. Lei de crimes ambientais – Lei n° 9.605/1998; VI. Projeto de lei para o aumento da pena para os crimes de maus-tratos; VII. Conclusão; Referências
1 INTRODUÇÃO Desde os tempos mais remotos a proteção da natureza vem sendo uma preocupação dos povos. A grande preocupação global contemporânea gira em torno de questões ambientais. Com o passar das décadas e constante degradação do Planeta Terra e seus recursos, a humanidade vem percebendo a necessidade de preservar o meio ambiente, e instituir um desenvolvimento sustentável. Nos últimos anos tivemos um grande avanço tecnológico principalmente no que diz respeito à possibilidade de efetuar fotos e vídeos, prontamente, através de aparelho celular, e enorme circulação de informações e notícias nos meios de comunicação, em especial na internet. Esse acesso tecnológico tem proporcionado registros de uma série de flagrantes de crimes, demonstrando que algumas pessoas são muito violentas, ao ponto de cometerem agressões graves contra outros seres humanos e contra animais. E é exatamente neste contexto que se insere a grande preocupação desta pesquisa, pois a cada dia temos mais e mais notícias de maus-tratos contra animais, dos mais leves aos mais graves. É fato que a maioria das pessoas gostam de animais. Como explicita Coetzee (2002), as pessoas têm bichos de estimação e as crianças adoram animais em todo o mundo. Como afirma Elizabeth Costello em uma de suas palestras, citada por Coetzee (2002), “O que há de tão especial na forma de consciência que reconhecemos e que diz ser crime matar um portador dela, enquanto matar um animal não merece castigo? ”. Não apenas matar, mas submeter a maus-tratos e sofrimento. Nós seres humanos, enquanto seres racionais e pensantes, temos o dever de cuidar dos animais e do meio ambiente como um todo, até mesmo para garantir a nossa própria existência. A Constituição da República de 1988 é expressa quanto à proteção à fauna. Segundo Édis Milaré: “Entende-se por fauna o conjunto de animais que vivem numa determinada região, num ambiente ou período geológico. Aqui se incluem os animais, sejam domesticados ou não, da fauna terrestre (p. ex., os silvestres e os alados ou avifauna) e da fauna aquática (p. ex., os peixes, que constituem a ictiofauna)” (MILARÉ, 2005, p.135):
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Portanto, todos os animais devem ter a devida proteção, principalmente os domésticos que são os que geralmente mais sofrem com as agressões daqueles doa quais dependem e que deveriam cuidar e dar carinho a eles. Em dezembro de 2011, foi divulgado na internet através das redes sociais e noticiado em vários jornais, um vídeo onde uma enfermeira mata seu cachorro York Shire depois de diversas agressões, cometidas na presença de seu filho de aproximadamente 3 anos de idade, na cidade de Formosa-GO. As cenas são muito fortes, causando comoção social. Outra agressão de grande repercussão na mídia brasileira foi registrada recentemente, no condomínio Rossi Viva em Porto Alegre - RS no dia 10/05/2013 pelo vizinho da agressora que já vinha percebendo os maus-tratos constantemente e para provar para a polícia a agressão, registrou o vídeo com uma câmera amadora. Nas imagens a mulher agride um filhote de cachorro e ensina seu filho de aproximadamente 2 anos a cometer o ato, ajudando nas agressões. Tal prática, além de ser crime tipificado pela Lei de Crimes Ambientais, pode trazer sérias consequências à formação psicológica dessas crianças, que certamente reproduzirão tais agressões contra animais e inclusive contra outros seres humanos. Os casos supracitados são apenas dois exemplos de crimes graves cometidos contra animais, indefesos, que não podem se quer pedir ajuda. É dever dos seres humanos, na condição de animais racionais, proteger todos os seres vivos do planeta, criando mecanismos que garantam uma tutela efetiva dos seus direitos, dentre eles as legislações com sanções severas para o seu descumprimento. Neste sentido pergunta-se: No Brasil hoje em dia, as legislações de proteção são suficientes para efetivamente punir os agentes que cometem crimes de maus-tratos contra os animais e coibir novas práticas? Hoje em nosso país, a lei de Crimes Ambientais, Lei 9.605/1998, prevê, em seu artigo 32, pena de três meses a um ano de detenção, e multa, para quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Tal pena, por ser menor que 4 (quatro) anos pode ser convertida em pena restritiva de direitos (pagamento de cestas básicas, prestação de serviços à comunidade, etc) conforme art. 7º da própria lei, não sendo suficiente para punir
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e reprimir tal prática. E ao estipular essa pena menor que dois anos a lei definiu tais crimes como sendo de menor potencial ofensivo. Tal tratamento não se justifica, uma vez que os animais são seres indefesos e que tem sentimentos e sofrem. Temos que preservar a Dignidade Animal, que é princípio universal e marco teórico deste artigo. Os animais domésticos e domesticados, que dependem exclusivamente dos seres humanos para sobreviverem, são os que mais sofrem com esse tipo de conduta. Não podem reivindicar seus direitos, tampouco pedia ajuda quando sofrem maus-tratos. O objetivo do presente artigo, através do método indutivo, é constatar a situação atual de maus-tratos contra os animais, demonstrar a evolução da legislação protetiva e as penas para tais crimes, chegando à atual Lei de Crimes Ambientais que define penas para maus-tratos contra os animais em até 2 anos, constatando que tais penas são baixas demais para cumprir sua finalidade e seu caráter inibidor de novas condutas, para então chegar à hipótese defendida que é a necessidade do aumento da pena para esse tipo de crime. Serão explanadas a evolução da tutela dos direitos dos animais, apontando as legislações atuais de proteção no âmbito internacional e principalmente no Brasil com a Lei de Crimes Ambientais, as penas para os crimes de maus-tratos, projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional para aumentar tais penas, demonstrando a efetiva necessidade de tal mudança na legislação. 2 A RELAÇÃO SER HUMANO X ANIMAIS Desde o início dos tempos a relação entre o ser humano e o meio ambiente foi de dominação e tal relação sempre foi mais complicada no que diz respeito aos animais. Na Pré-história o domínio do ser humano sobre a fauna era apenas para conseguir alimento e pele para vestimentas, mas ao longo do tempo essa relação foi ficando cada vez mais complicada. Keith Thomas (2010) nos relata em seu livro O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais que, até o século XVII, o ser humano tinha uma visão de que tudo no planeta existia em função para nos servir, principalmente os animais. O cão existia para nos dar “lealdade afetuosa” o cavalo e o boi para “trabalhar a nosso serviço”, ossos de animais para utensílios, entre outros. Segundo Thomas, no início da “Era Moderna” os animais eram considerados de acordo com a sua utilidade para o homem, tais como o valor alimentício, medicinal, de vestuário, de trabalho, entre outros. O ser humano se via separado dos animais, superior, e tal comportamento justificava o “uso” dos animais para o vestuário, o transporte, a caça, dissecação de animais vivos, para a morte de predadores, entre outros. Esta divisão entre homens e animais teve consequências gravíssimas, uma vez que eram usadas como justificativa para os maus-tratos aos seres humanos que eram equiparados aos animais, como os mulheres e escravos por exemplo. (THOMAS, 2010) Keith Thomas (2010) relata a forma extremamente cruel e chocante com que os ingleses tratavam os animais nessa época, sendo que no final do século XVII a igreja começou a sugerir reflexões nos fieis de que todos os seres da criação divina deveriam ser tratados com respeito. Desenvolveu-se uma visão diferenciada dessa relação entre seres humanos e animais e no século XVIII era evidente na classe média inglesa a preocupação com o tratamento dos animais. Tal relação foi evoluindo e a preocupação com a proteção dos animais foi aumentando. Surgiram convenções internacionais e legislações específicas em vários países tratando do assunto e considerando crime atitudes que causassem lesão à integridade física animal. Entretanto, não obstante as legislações protetivas existentes na atualidade, ainda temos muito que avançar para conseguir na prática a efetivação dos direitos dos animais.
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3 PORQUE PROTEGER OS ANIMAIS? O Direito Ambiental tem como base, assim como todo o nosso ordenamento jurídico, uma série de princípios que tem funções de interpretação, integração e harmonização das leis e sua aplicação ao caso concreto, tendo papel fundamental no reconhecimento desse Direito. Nesse sentido, podemos citar uma série de princípios que fundamentam a necessidade de proteção efetiva dos animais, indicando diretrizes. O mais importante dos princípios é o Princípio da Prevenção que se baseia na necessidade de buscar meios para evitar que os danos ambientais ocorram, prevenindo danos através de políticas públicas de conscientização e da criação de normas de proteção. Tal princípio tem enorme relevância tendo em vista que reparar um dano ambiental muitas vezes é um processo lento, ou até mesmo impossível, no caso, por exemplo, da extinção de espécies da fauna. O Princípio da Precaução estabelece a vedação de intervenções no meio ambiente, salvo se houver a certeza que as alterações não causaram reações adversas, já que nem sempre a ciência pode oferecer de fato segurança diante de determinados procedimentos. Muito parecido com da prevenção citado acima, onde a preocupação é evitar danos ambientais tendo em vista a dificuldade ou impossibilidade de repará-los. O princípio da precaução se difere do anterior pelo fato de sua preocupação maior está voltada para incerteza cientifica. O princípio da responsabilidade dispõe que os responsáveis pela degradação ao meio ambiente sejam compelidos a arcar com a responsabilidade e com os custos da reparação ou da compensação pelo dano causado. O princípio da representação adequada, se refere à representação dos animais na efetivação da tutela jurídica que lhes é oferecida, sendo necessário garantir a procedibilidade indispensável. Temos ainda como fundamental a participação comunitária. É o que podemos extrair do pensamento de Édis Milaré: “De fato, é fundamental o envolvimento do cidadão no equacionamento e implementação da política ambiental, dado que o sucesso desta supõe que todas as categorias da população e todas as forças sociais, conscientes, de suas responsabilidades, contribuam à proteção e melhoria do ambiente, que, afinal é bem e direito de todos” (MILARÉ, 2005) O princípio da obrigatoriedade de intervenção do Poder Público, explicitando que a gestão do meio ambiente não diz respeito apenas à sociedade, tendo a função de gestão ou de gerência, devendo prestar contas a respeito da utilização dos bens de uso comum do povo, que são compreendidos pelas águas, ar, solo, fauna, florestas e patrimônio histórico. Podemos mencionar, ainda, o princípio da proporcionalidade em relação atividade estatal para que uma tutela ambiental seja atingida. Tal princípio é uma forma de avaliação à adequação, necessidade e proporcionalidade das medidas requeridas para que seja evitado o risco ambiental, aplicando a proporcionalidade no caso de outros princípios, como o da proteção a práticas culturais, provoquem maus-tratos contra animais. Importante ressaltar que os princípios citados estão interligados entre si, um complementando o outro e servindo como base fundamental para elaboração de legislações protetivas do meio ambiente. Todos os princípios citados acima estão diretamente ligados à proteção da fauna e como são fontes basilares das legislações de proteção ambiental têm fundamental relevância no desenvolvimento do tema apresentado, servindo como base para a teoria de que as penas para os crimes de maus-tratos contra os animais são muito baixas para atender à sua finalidade e portanto, devem ser aumentadas
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4 HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO PROTETIVA No âmbito do direito internacional, temos A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, Bruxelas, em 1978. Dispondo que todos os animais têm direitos e que o desconhecimento ou o desprezo desses tem levado e continua a levar o homem a violentá-los. Em seu artigo 1º dispõe: “Todos os animais nascem iguais diante da vida e tem o direito a existência”. Já o artigo 2º explicita: “Art. 2º: a) Cada animal tem o direito ao respeito. b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais ou explorá-los, violando este direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais. c) Cada animal tem o direito à consideração, à cura e à proteção do homem.” (UNESCO, 1978) Neste sentido, o artigo 3º: “Nenhum animal deverá ser submetido a maltrato e a atos cruéis. Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor nem angústia. ” (UNESCO, 1978) Anteriormente, a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagem em Perigo de Extinção em Washington, em 1973, aprovada pelo Brasil, pelo Decreto Legislativo 54, de 1975, já tinha obtido a aderência de 173 países. Seu objetivo foi o controle e fiscalização do comércio internacional de espécies da fauna e flora silvestres que se encontram ameaçadas de extinção, sendo cerca de 34.000 espécies. Em 05 de junho de 1992, a Convenção da Biodiversidade assinada no Rio de Janeiro, promulgada pelo Decreto 2.519, de 1998, foi aprovada por 156 países, tendo por objetivo o disposto em seu artigo 1.º: “A conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado.” (ONU, 1992) Esta convenção ficou conhecida internacionalmente como Rio 92, e foi a maior reunião de chefes de Estado da história da humanidade, com a presença de cerca de 117 governantes de países em busca de soluções para o desenvolvimento sustentável das populações mais carentes do planeta. Em 26 de agosto de 2002 teve início a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 10, na cidade de Johannesburg, África do Sul, com participação de cerca de 190 países, para discutir a implantação e os resultados da Rio 92. Na conferência foi lançado o Plano de Implementação com 10 capítulos e cerca de 70 páginas, estabelecendo os objetivos a serem alcançados pelos países signatários para a construção do desenvolvimento sustentável, dentre eles: “Biodiversidade: - Reduzir a perda de espécies até 2.004, mas sem meta específica. - Restaurar estoques pesqueiros a níveis sustentáveis até 2.015, onde for possível; - Reconhecimento do princípio da repartição de benefícios obtidos com espécies de países pobres. “ (ONU, 2002) As convenções citadas acima são apenas alguns dos importantes encontros internacionais que tiveram como tema a proteção dos animais, o que explicita uma evolução global de conscientização do
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ser humano da necessidade efetiva de proteção do meio ambiente e os seres que nele vivem. 5 DIREITO BRASILEIRO A primeira legislação de proteção aos animais no Brasil foi o Decreto 16.590 de 1924, que regulamentou as Casas de Diversões Públicas, proibindo dentre outros atos de crueldade, as corridas de touros, garraios e novilhos, brigas de galos e canários. (BRASIL, 1924) Despois tivemos o Decreto nº 24.645 de 1934, que estabeleceu medidas de proteção aos animais. Estipulando multas e definindo o que seria considerado maus-tratos contra os animais: “Art. 3º Consideram-se maus tratos: I - praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; III - obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência; V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VI - não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo exterminio seja necessário, parar consumo ou não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação; VIII - atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho etc conjunto a animais da mesma espécie; IX - atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com arreios incompletos incomodas ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes perturbem o’fucionamento do organismo; X - utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso somente se aplica a localidade com ruas calçadas;” (BRASIL, 1934) Estes são apenas 10 (dez) dos 31 (trinta e um) incisos que estabelecem condutas consideradas como maus-tratos conta os animais no referido decreto, explicitando que já em 1934, no Brasil, havia uma grande preocupação com a dignidade dos animais e a regulamentação de deus direitos. Entretanto, a pena para tais práticas era multa, muito irrisória para a gravidade de tais crimes. Ao longo dos anos outras legislações foram surgindo, destacando a importância da tutela dos direitos dos animais. O Decreto- Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941, Lei de contravenções penais, em seu artigo 3º definia que para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária. Deve-se, todavia, ter em conta o dolo ou a culpa, se a lei faz depender, de um ou de outra, qualquer efeito jurídico. (BRASIL, 1941)
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Em seu artigo 31, Capítulo III, Das contravenções referentes à incolumidade pública, o Decreto-lei nº 3.688/1941 dispõe: “Art. 31. Deixar em liberdade, confiar à guarda de pessoa inexperiente, ou não guardar com a devida cautela animal perigoso: Pena – prisão simples, de dez dias a dois meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem: a) na via pública, abandona animal de tiro, carga ou corrida, ou o confia à pessoa inexperiente; b) excita ou irrita animal, expondo a perigo a segurança alheia; c) conduz animal, na via pública, pondo em perigo a segurança alheia.” (BRASIL,1941) Como podemos ver a Lei de Contravenções penais também tipificava como algumas agressões contra os animais, reafirmando a preocupação na defesa destes seres, entretanto, tal lei foi quase toda revogada pela Lei de Crimes Ambientais. A Constituição da República Federativa do Brasil foi criada pelo ser humano para ser a norma superior de um Estado, definindo princípios e garantias fundamentais a serem seguidas, disciplinando assim, todas as demais normas de um ordenamento jurídico. A nossa Constituição tem uma visão antropocêntrica dos direitos, ou seja, os direitos e garantias fundamentais previstas no artigo 5º da mesma são apenas para os seres humanos, brasileiros ou estrangeiros residentes no país. Desta feita, os animais estariam excluídos de tal proteção. Todavia, é garantida a proteção de outras formas de vida conforme dispõe o artigo 3º da Lei nº. 6.938/81, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente e a própria Constituição da República de 1988. A Carta Magna prevê a proteção ao ambiente e tal questão já se tornou uma questão de sobrevivência e proteção da fauna é garantida pelo art. 225, § 1º, VII: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” (BRASIL, 1988) Neste diapasão, a Constituição garante a proteção da função ecológica dos animais; a proteção em relação a sua existência e a proteção à sua integridade física, estando vedadas as ações que de modo a práticas que provoquem a extinção das espécies; ou submetam os animais à crueldade. Como norma superior a Constituição da República define claramente as diretrizes a serem seguida88s na elaboração das normas infraconstitucionais no que tange a proteção do meio ambiente e os seres que vivem nele. Segundo a CR/88, em seu artigo 24, é de competência da União, Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a caça, a pesca e a fauna, devendo cada um elaborar leis conforme a necessidade de seus territórios. (BRASIL,1988) 5.1 Lei de Crimes Ambientais – Lei nº 9.605/1998 A Lei nº. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, Lei dos Crimes
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Ambientais, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Em seu Capitulo V, Seção I, traz os Crimes Contra a Fauna. O artigo 32 da referida lei dispõe sobre o crime de maus-tratos contra os animais: “Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.” (BRASIL, 1998) O artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais também dispõe neste sentido: Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. § 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. § 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. § 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado: I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração; II - em período proibido à caça; III - durante a noite; IV - com abuso de licença; V - em unidade de conservação; VI - com emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa. § 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça profissional. § 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca. (BRASIL, 1998) A lei de crimes ambientais dispõe sobre os crimes contra a fauna do seu artigo 29 ao artigo 37, definindo nos dispositivos subsequentes sobre a proteção à flora, poluição, cooperação internacional para preservação do meio ambiente e demais crimes ambientais. Nos artigos seguintes a lei define casos específicos em que a pena é aumentada ao dobro ou ao triplo. Mas mesmo majoradas as
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sempre provocavam clamor público. Hoje, em função da amplificação dos meios de comunicação e do advento das redes sociais, se tem acesso a cada vez mais casos de agressões contra seres vivos. E os atos de crueldade contra cães e gatos, cujo convívio com o homem se estreitou ao longo dos tempos, também se noticiam mais frequentes.” (TRIPOLI, 2011)
penas aplicáveis aos crimes contra os animais são muito baixas, não sendo suficientes para atingir a sua real finalidade, que é a punição efetiva do agente e exemplo para reprimir novas condutas. Diante desta realidade e da divulgação cada vez mais frequente na mídia desse tipo de crime, está em tramitação no Congresso Nacional, em caráter de urgência, um projeto de lei para o aumento da pena para os crimes de maus-tratos contra os animais 6 PROJETO DE LEI PARA O AUMENTO DA PENA PARA OS CRIMES DE MAUS-TRATOS Em 28/04/2010, houve apresentação do Projeto de Lei n. 7199/2010, pelo Deputado Roberto Santiago (PV-SP), que: “Dá nova redação a pena descrita no artigo 32 da Lei Nº 9.605, de fevereiro de 1998, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”. Esse PL visa dar nova redação ao art. 32, da Lei de Crimes Ambientais, passando este a vigorar com a seguinte redação: Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de dois anos e um mês a quatro anos, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. (SANTIAGO, 2010) A motivação apresentada no projeto inicial para a propositura deste projeto de lei foi a seguinte: “Visando aumentar o rigor na repressão penal das condutas e atividades lesivas aos animais, apresentamos este projeto de lei. Para diminuir a angústia e frustração da sociedade por conta de pessoas que cometem crimes bárbaros contra animais indefesos e também por se tratar em muitos casos de uma comoção e desalento da população com a impunidade. É preciso um maior comprometimento público com as questões ligadas a proteção animal e meio ambiente, por conta disso, acreditamos que esta Casa, sempre sensível aos interesses da comunidade, respaldará essa iniciativa.” (SANTIAGO, 2010, p.1) Mais uma vez verificamos que aumentou a preocupação do ser humano em proteger os animais e tipificar tais crimes. A apresentação do projeto de lei citado acima é grande prova disto, vez que esta preocupação está frequente em nossos legisladores que pretendem o aumento das penas para os crimes de maus-tratos dos animais para garantir a tutela da dignidade desses seres na prática. Em 01/12/2011 foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 2833/2011, pelo Deputado Ricardo Tripoli (PSDB -SP), apensado ao PL nº 7199/2010, que: “Criminaliza condutas praticadas contra cães e gatos, e dá outras providências”. Conta o projeto inicial com 12 artigos que definem crimes contra cães e gatos. O Deputado Ricardo Tripoli apresentou a seguinte justificativa para a propositura do projeto: “Os princípios de não violência e a busca pelo embasamento ético na condução de ações individuais e coletivas norteiam o clamor social pela mudança de paradigmas, de preceitos culturais e impõe o respeito à vida de todos os seres vivos como condição de civilidade e sobrevivência dos ecossistemas e, por conseguinte, da própria espécie humana. É cediço que crimes cometidos contra os animais afetam a sensibilidade comum. Há pouco, notícias de barbáries eram desqualificadas e nem
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O texto da proposta foi aprovado no dia 2 de julho de 2013 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) com emenda do relator da matéria na comissão, Deputado Márcio Macêdo (PT-SE). O parlamentar defendeu a aprovação da medida, mas reduziu algumas penas do texto original. O Deputado estabeleceu que a punição para quem provocar a morte de animais será de três a cinco anos de reclusão. O projeto do deputado Tripoli previa reclusão de cinco a oito anos. No caso de crime culposo, quando não há a intenção de matar, a pena ficou de detenção de três meses a um ano, além da multa. O projeto original previa, nesses casos, detenção de três a cinco anos. A proposição encontra-se sujeita à apreciação do Plenário em regime de tramitação de urgência, conforme art. 155 RICD. É de extrema importância que tal projeto seja analisado com urgência e aprovado para que as penas para os crimes de maus-tratos sejam alta o suficiente para punir de fato o agente e servir de exemplo para os demais cidadãos, impedindo novas práticas e gerando maior conscientização social. A atual situação de maus-tratos contra os animais no Brasil é preocupante, todos os dias temos notícias de novos casos, cada vez mais violentos, sendo bem provável que tais agressões se estendam a outros seres humanos. Alguns casos são cometidos diante de menores que podem vir a desenvolver transtornos psicológicos, se tornando adultos extremamente agressivos. Neste sentido foi de extrema relevância a iniciativa dos Deputados na propositura dos projetos de lei que visam aumentar as penas para tais crimes. 7 CONCLUSÃO Diante do acima exposto, observa-se grande avanço na conscientização do ser humano ao longo dos anos, no sentido de proteger os animais e o meio ambiente. Podemos observar que o Poder Legislativo vem se posicionando na defesa dos direitos dos animais e apresentando projetos de lei no sentido de tornar mais severas as penas para os crimes de maustratos contra animais. A Lei de Crimes Ambientais, ao estipular penas inferiores a dois anos para crimes de maus-tratos contra animais, definiu tais crimes como sendo de menor potencial ofensivo, desta forma as penas aplicadas podem ser convertidas em penas restritivas de direito conforme art. 7º da própria lei. Tais penas de detenção podem ser convertidas em penas restritivas de direitos. Dessa forma não ocorrerá uma efetiva punição pois ao admitir a transação penal para tais crimes (que consiste no pagamento de cestas básicas, prestação de serviços à comunidade, etc.) a lei considera tais crimes como sendo de menor potencial ofensivo, o que não se justifica pois são crimes violentos que causam sofrimento e ferem a dignidade animal. Sendo assim, a pena para o crime de maus-tratos contra animais deve ser aumentada para uma efetiva punição dos agentes que os praticam, como para servir de exemplo para os outros cidadãos, reprimindo novas condutas. Os animais são seres indefesos, principalmente os domésticos e domesticados que dependem exclusivamente dos humanos para sobreviverem. Não podem reivindicar seus direitos, tampouco pedir ajuda quando sofrem maus-tratos e é nosso dever enquanto seres “racionais” garantir sua proteção e a tutela efetiva de seus direitos.
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Professora adjunta do Centro Universitário Newton Paiva. Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável. ** Maraluce Maria Custódio; Leonardo Martins Wykrota.
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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AÇÃO DE ACERTAMENTO DE DELIBERAÇÃO ASSEMBLEAR NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS Brenda Lima Costa1 Guilherme Carvalho Monteiro de Andrade2 Banca examinadora ** RESUMO: O presente ensaio busca analisar as assembleias gerais nas sociedades anônimas e os vícios que podem vir a invalidá-las. Será feita uma análise crítica de qual o correto provimento que se espera (meramente declaratório e/ou constitutivo) da propositura da ação de acertamento dessas decisões inválidas, sejam elas eivadas por atos nulos ou anuláveis. Palavras-Chave: Direito Empresarial; Sociedade Anônima; Assembleia Geral; Vícios; Ação Acertamento de Deliberação Assemblear. Sumário: 1. Introdução; 2. Do papel da assembleia geral na estrutura orgânica das sociedades anônimas; 3. Deliberações nulas e anuláveis nas assembleias gerais nas sociedades anônimas; 4. Tipos de vícios nas decisões das deliberações assembleares e ação de acertamento; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO As sociedades anônimas são constituídas por quatro órgãos sociais: a Assembleia Geral, a Diretoria e/ou Conselho de Administração e o Conselho Fiscal. No presente artigo, dar-se-á atenção às assembleias gerais nas sociedades anônimas, com foco precípuo nos vícios que possam vir maculá-las. Há a necessidade dessa delimitação, uma vez que a inclusão dos demais órgãos sociais no corpo deste trabalho alargaria o tema, de modo a tornar inviável o estudo aprofundado da questão envolvendo os vícios assembleares. Primeiramente, serão abordadas as definições sedimentadas em relação às assembleias e suas modalidades. Depois, será estudada cada invalidade que possa perseguir uma deliberação e qual medida cabível para saná-la, para, então, examinar-se o provimento mais adequado de acertamento de deliberação assemblear. 2 DO PAPEL DA ASSEMBLEIA GERAL NA ESTRUTURA ORGÂNICA DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS A sociedade anônima, com regulamentação na Lei nº. 6.404/76, conhecida também como “LSA” é composta pela assembleia geral, diretoria e/ou conselho de administração e conselho fiscal 3. Cada órgão manifesta-se nos limites de sua competência, sendo que a Lei nº. 6.404/76 atribui um poder-função indelegável a cada um4. As assembleias são órgãos diretos de manifestação da vontade societária. Os acionistas controladores ditam os rumos dos negócios sociais, fazendo-o através das deliberações em assembleias. O conselho de administração é órgão deliberativo, facultativo nas sociedades anônimas fechadas e obrigatório nas fechadas, com capital autorizado, e nas abertas e/ou de economia. A seu turno, a diretoria é órgão obrigatório, com funções executivas e representativas, eleito pelo conselho de administração e, na sua ausência, pela assembleia geral. Por fim, o conselho fiscal tem a função de fiscalizar os interesses da sociedade e controlar a regularidade dos atos de gestão. O presente artigo tratará das questões pertinentes às assembleias e/ou as deliberações nela proferidas, trazendo classificações já sedimentadas pela doutrina em relação a esses temas.
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As assembleias podem ser classificadas sociais (ordinárias e/ou extraordinária), parassociais (especiais) ou de constituição. Na assembleia de constituição, todos os subscritores participam com direito de voto, independentemente do tipo de ação, sendo objetivo desse conclave a constituição da companhia. As assembleias especiais são reuniões de titulares de mesmos direitos e deveres, como, por exemplo, uma assembleia de debenturistas e preferencialistas. As assembleias ordinárias ocorrem uma vez por ano, obrigatoriamente, nos 4 (quatro) primeiros meses seguintes ao término do exercício social. O artigo 123 da LSA5 dispõe sobre as matérias que devem ser tratadas nesses conclaves. Por sua vez, a assembleia extraordinária não possui momento exato para acontecer, devendo ser convocada para tratar de qualquer assunto de interesse dos acionistas, que não forem afetados à assembleia ordinária, sendo sua competência residual, conforme disposto no artigo 132 da LSA6. A propósito da diferença das duas assembleias sociais, ensina FAZZIO JUNIOR (2013, p.224) que: Ordinárias são as que se realizam anualmente, nos quatro primeiros meses seguintes ao término do exercício social para apreciar matéria determinada na LSA (art. 123 e incisos). Extraordinárias são todas as outras assembleias regularmente convocadas para a apreciação de qualquer matéria não reservada, por lei, às Assembleias Gerais Ordinárias. 7 A forma de convocação das assembleias gerais tem forma prescrita na LSA, devendo ser feita com antecedência8, mediante anúncio publicado por três vezes, no mínimo, com indicação do local, data e hora da assembleia, bem como exposta a ordem do dia, de modo expresso. As regras procedimentais e as peculiaridades que carregam cada assembleia são conhecidas como “método assemblear” 9, condicionaando a validade das decisões à observância deste procedimento legal. Observadas as formalidades exigidas para convocação, instauração e deliberação das assembleias, as decisões terão efeito vinculante à sociedade e a todos os acionistas.
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Sem o respeito às exigências legais e/ou estatuárias, as decisões tomadas em assembleias poderão ser invalidadas. Necessária a análise das nulidades e anulabilidades que podem vir a macular uma assembleia ou as suas deliberações, o que será feito no tópico seguinte. 3 DELIBERAÇÕES NULAS E ANULÁVEIS NAS ASSEMBLEIAS GERAIS NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS Conforme será abordado doravante, o regime das nulidades no direito societário é especial, possuindo diferenças em relação ao regime de nulidades do direito civil, tal qual ensinam FRANÇA e BULGARELLI (1978, p. 98/99)10. Dentre as distinções existentes entre os dois regimes, FRANÇA (1999, p.23) especifica, por exemplo, a existência, no regime societário, de prazos mais curtos de prescrição e/ou decadência, a irretroatividade dos efeitos da invalidade, e a possibilidade de sanação de vícios11. O Código Civil de 2002, por sua vez, veda a ratificação do ato nulo (art. 146), prevê a retroação dos efeitos dos atos invalidades (artigo 182), além de estabelecer prazos mais longos de prescrição e decadência para discussão de nulidades. Aplicar as regras civilistas das invalidades dos atos jurídicos ao direito societário mostra-se inadequado, tendo em vista que a dinâmica das relações jurídicas no âmbito societário é bem diferente. Uma deliberação assemblear societária produz inúmeros e rápidos efeitos, que se desdobram em novos atos jurídicos. Permitir que uma deliberação possa ser discutida com longo lapso de prazo decadencial e/ou prescricional gera incerteza e instabilidade jurídica. Para ilustrar tal problema, tome-se, por exemplo, uma sociedade que se constituiu por meio de uma deliberação assemblear com alguma nulidade, não identificada pelos acionistas, nem pelo Registro Público de Empresas Mercantis, que defere o registro deste ato constitutivo e permite que a sociedade funcione durante dez anos. Seria razoável admitir que a decretação de nulidade desse vício possa ser promovida anos depois e que os efeitos dessa decisão retroajam à data da assembleia? Como ficariam os inúmeros atos e contratos praticados por essa sociedade com terceiros de boa fé? Essas preocupações evidenciam que não é juridicamente possível fazer uso do regime das nulidades previstos no direito civil no âmbito do direito societário. Embora a Lei nº. 6.404/76, em seu artigo 286, que trata de prescrição para ação de acertamento, preveja apenas a invalidação de atos assembleares em decorrência de vícios passíveis de anulação, não dispondo de forma expressa acerca dos atos nulos, não se pode negar que tais vícios também podem ser discutidos no âmbito do direito societário. Como ensina PEREIRA (2002, p.163), é preciso aplicar o regime das nulidades do direito civil ao direito societário, na medida em que algumas deliberações carregam vícios tão sérios que não se pode cogitar da convalidação do ato com o decurso de tempo12. Advirta-se, porém, que a decretação de invalidade do ato maculado de nulidade não deve ter seus efeitos retroagidos da mesma forma que se utiliza no direito civil, pelos argumentos que foram expostos anteriormente. Também é importante registrar que, seja o ato viciado por nulidade ou alguma causa de anulabilidada Lei Societária do Anonimato permitiu a retificação do ato a qualquer tempo, ao estabelecer o princípio da sanação13. 4 TIPOS DE VÍCIOS DAS DECISÕES DAS DELIBERAÇÕES ASSEMBLEARES E AÇÕES DE ACERTAMENTO As deliberações assembleares podem carregar vícios de três modalidades: (i) de forma; (ii) no conteúdo da deliberação; e (iii) nas declarações de vontade.
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Os vícios de forma ou de procedimento decorrem em razão da inobservância das regras para convocação e instalação das assembleias gerais, dispostas nos artigos 123 a 128 da LSA14, sendo causa de anulabilidade. PONTES DE MIRANDA (1965, p. 293)15 cita como exemplos a ausência de convocação dos acionistas por meio de publicação divulgada três vezes em jornais, ou de referido anúncio ter sido publicado tão-somente no órgão oficial da União e não no órgão oficial do Estado-membro como a lei exige. FRANÇA (1999, p. 91/96) cita outros casos de vícios de forma Dentre tais casos acham-se também, exemplificativamente, os seguintes: (a) inobservância da ordem do dia (art. 124, caput); (b) recusa de participação ao acionista (ou seu representante, cf. §§ 1º e 4º, do art. 126) na assembléia (seja de ingresso na própria reunião, seja de participação na discussão dos assuntos tratados, seja na votação desses assuntos quando o acionista também tiver direito de voto – excetuadas as hipóteses expressas de proibição de voto arroladas nos §§1º dos art. 115 e 134, e do §2º do art. 228, e de suspensão desse direito, prevista no art. 120); (c) inexistência do quórum legal ou estatutário das deliberações (arts. 129 e 136); (d) falta de lavratura da ata (art. 130); (e) ausência de publicação prévia dos documentos da administração (art. 133, ressalvada a hipótese do art. 294, II); (f) inobservância do procedimento e demais formalidades estabelecidas no art. 134, caput, e seus §§1º e 2º. 16 Ainda em relação aos vícios de forma, necessário acrescentar que as deliberações infringentes da ordem pública, do interesse de terceiros ou público e/ou dos bons costumes, são consideradas decisões nulas. Por sua vez, os vícios de conteúdo também poderão ser passíveis de nulidade ou anulabilidade, a depender de cada caso. Regra geral, nulas são as decisões que violam a lei e anuláveis são as que infringem os estatutos (ressalvadas as que reproduzirem norma legal17). FRANÇA (2000, p. 262) adverte, entretanto, que as deliberações violadoras da lei podem ser passíveis de anulação apenas. Confira-se: É nula a cláusula estatutária ou deliberação que crie uma disciplina contraste com a lei; mas a deliberação que, no caso concreto, desrespeitar o direito irrenunciável ou inderrogável do acionista é apenas anulável. É que tal direito, embora irrenunciável a priori, pode não ser exercido na hipótese concreta pelo acionista. 18 No que toca os vícios na declaração de vontade, sua ocorrência dar-se-á em virtude de manifestação de votos eivados por erro19, dolo20, fraude21, estado de perigo22, coação23 ou simulação24, além das hipóteses de votos abusivos ou declarados com conflito de interesse25. Insta destacar que prevalecerá o regime comum da lei civil em detrimento do regime especial societário quando se falar em vícios de declaração de vontade. COMPARATO (1977, p. 58) informa que os vícios na declaração de vontade “atingem diretamente os votos dos acionistas e apenas indiretamente a deliberação, quando, por exemplo, o número de votos viciados impede que se obtenha o quórum deliberativo exigido em lei ou nos estatutos”26. Dessa forma, somente quando a manifestação viciada for suficiente para configurar a maioria necessária à aprovação de uma matéria é que se pode declarar o voto viciado. Nessa linha, ensina TEPEDINO (2009, p. 986) que: Como já dito, o vício do voto pode privar de validade a deliberação para cuja aprovação ele concorreu, mas apenas se os votos maculados forem decisivos para a formação da maioria
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necessária. Em outras palavras, a invalidade do voto, qual seja a sua natureza, só contaminará a deliberação se a sua subtração gerar insuficiência de quórum deliberativo.27 FRANÇA (1999, p. 116) acrescenta que “ainda que nulo o voto, porém – e decisivo para a formação da maioria – a deliberação será apenas anulável, sujeita a propositura da ação respectiva no prazo do art. 286 da lei n.º6.404”28. Para combater os atos societários eivados de vícios, as partes lesadas poderão valer-se da ação de declaração de nulidade (tratando-se de atos nulos) ou da ação de anulação da deliberação assemblear (atos anuláveis). CARVALHOSA (20003, p. 469) ressalta que no caso da deliberação carregar algum vício anulável, não é necessário a comprovação do prejuízo efetivo para demandar judicialmente sua anulação: Trata-se de insurgência contra matéria de natureza procedimental, cuja inobservância legal (irregularidade) em si mesma enseja a anulação. Importante notar que a desconformidade desses procedimentos formais com a lei ou com o estatuto social prescindem, como causa de pedir, de qualquer arguição de prejuízo presente ou futuro por parte do autor. Trata-se de irregularidade (legal ou estatutária) formal, que, por isso, independe dos efeitos patrimoniais ou políticos (voto) que daí podem decorrer. A irregularidade, portanto, configura a publicação ou a falta de publicação do ato formal, independentemente dos efeitos patrimoniais que daí possa, advir para o autor. 29 Na ação de acertamento do ato societário eivado por algum vício, a parte autora busca provimento jurisdicional de conteúdo diferente, conforme o tipo de mácula, conforme classificação clássica. Se se tratar de ação para desconstituir atos nulos, a tutela jurisdicional almejada será meramente declaratória, ao passo que a demanda contra atos anuláveis terá provimento constitutivo negativo. Essa classificação fundamenta-se no fato de que o ato nulo é inexistente desde seu nascimento, não produzindo efeitos produzidos, quando o ato anulável é ineficaz, produzindo efeitos até que seja declarada a aludida mácula. É importante registrar, entretanto, que essa classificação clássica não é absoluta para o regime de invalidade dos atos jurídicos societários. Isso porque, o ato assemblear nulo produz efeitos, sim, ainda que materiais e não jurídicos, sendo necessário o provimento jurisdicional para que esses efeitos sejam excluídos do mundo jurídico. A esse respeito, veja-se o ensinamento de PEREIRA (2013, p. 157/158): Ainda que se trate de efeitos menores e diversos dos efeitos do ato válido, é inegável que eles são produzidos pelo ato nulo e que a sua existência só pode ser contrabalanceada por uma decisão judicial. Daí porque mesmo a sentença que se pronuncia sobre uma causa de nulidade deve ser considerada constitutiva. Parte da doutrina processual contemporânea, a propósito, põe em dúvida a teoria clássica de que, por serem os atos nulos desprovidos de efeito, a tutela meramente declaratória seria a adequada para esses tipos de vícios. Isso porque certos atos nulos produzem alguns efeitos secundários que, ainda que minoritários, estão sempre presentes. Por isso, a demanda de nulidade não deve ser qualificada como meramente declaratória, mas sim como constitutiva. 30 E acrescenta o referido autor que, por mais “que possa parecer um absurdo falar-se em anular o nulo, é justamente o que nos parece ocorrer” 31, ressaltando ainda PEREIRA (2013, p. 163/164) o seguinte:
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Quando se ala em demanda declaratória de nulidade e anulatória, o que se pretende em ambas é o mesmo resultado prático: a remoção da deliberação impugnada – e de seus efeitos – do mundo jurídico. O vício que está à base do pedido de tutela formulado ao julgador pode até variar, mas atividade judicante será sempre a mesma e redundará sempre em um provimento constitutivo. Sob uma perspectiva funcional, as demandas são análogas, pois são o único meio de eliminar a deliberação. As duas possuem idêntica função cassatória ou demolitória, e em ambas o objeto litigioso do processo é rigorosamente o mesmo: a eliminação dos efeitos do ato impugnado. 32
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo foi estudado no presente artigo, as sociedades anônimas são constituídas organicamente para funcionar e atingir seus objetos sociais, possuindo vários órgãos diferentes, dentre os quais se apresenta a assembleia geral. A assembleia geral é órgão obrigatório e permanente das companhias, possuindo função deliberativa. Para que a vontade dos acionistas seja alcançada de forma válida e, assim, vincule a sociedade, é preciso que esse órgão seja convocado e instalado conforme previsto no estatuto social e na lei do Anominato, bem assim que as declarações de voto sejam colhidas de forma válida e democrática. Se houver algum tipo de inobservância das regras estatutárias ou legais, o ato assemblear conterá vícios (nulos ou anuláveis) que macularão o resultado do processo de obtenção da vontade dos acionistas ocorrido no conclave. Existindo algum vício, a parte lesada poderá buscar tutela jurisdicional por meio da ação de acertamento. Tenha a ação de acertamento sido baseada na invalidade de algum ato nulo ou anulável, o provimento jurisdicional buscado pelo autor é desconstituivo negativo e não meramente declaratório, uma vez que o ato societário maculado produz efeitos, ainda que secundários. Não se pode cogitar a possibilidade de retroação dos efeitos de modo amplo e sem limitação temporal, dada a necessidade de consolidação dos efeitos jurídicos das deliberações assembleares, de modo a garantir certeza e segurança às decisões tomadas em virtude do vasto número de interessados que podem ser atingidos. 6 REFERÊNCIAS ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 1 ed. Campinas: Bookseller, 2001. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico : existência, validade e eficácia. 3 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2000. Brasil. Código civil, 2002. Código civil. 53.ed. São Paulo: Saraiva; 2002. Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário . 8 ed. rev., aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BULGARELLI, Waldírio. Anulação de assembléia geral de sociedade anônima. Revista dos Tribunais , vol. 514: 57, agosto de 1978. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, v. 3. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas : 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 2. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
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NOTAS DE FIM
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1 Aluna do 10º Período do Curso de Direito do Centro Universitário Newton. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Empresarial (GEPEM) DO Centro Universitário Newton.
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2 Mestre em Direito Empresarial. Professor de Direito Empresarial na graduação em Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2001.
3 É livre, ainda, a cada companhia criar outras estruturas organizacionais, como superintendências, chefias, departamentos, coordenadorias, a fim de privilegiar a boa administração dos negócios.
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4 “o poder-função deliberante à assembléia geral, poder-função administrativo à diretoria, o poder-função sindicante ao conselho fiscal.” (COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 30). 5 Art. 213. O liquidante convocará a assembléia-geral cada 6 (seis) meses, para prestar-lhe contas dos atos e operações praticados no semestre e apresentar-lhe o relatório e o balanço do estado da liquidação; a assembléia-geral pode fixar, para essas prestações de contas, períodos menores ou maiores que, em qualquer caso, não serão inferiores a 3 (três) nem superiores a 12 (doze) meses.§ 1º Nas assembléias-gerais da companhia em liquidação todas as ações gozam de igual direito de voto, tornando-se ineficazes as restrições ou limitações porventura existentes em relação às ações ordinárias ou preferenciais; cessando o estado de liquidação, restaura-se a eficácia das restrições ou limitações relativas ao direito de voto. § 2º No curso da liquidação judicial, as assembléias-gerais necessárias para deliberar sobre os interesses da liquidação serão convocadas por ordem do juiz, a quem compete presidi-las e resolver, sumariamente, as dúvidas e litígios que forem suscitados. As atas das assembléias-gerais serão, por cópias autênticas, apensadas ao processo judicial. 6 Art. 132. Anualmente, nos 4 (quatro) primeiros meses seguintes ao término do exercício social, deverá haver 1 (uma) assembléia-geral para: I - tomar as contas dos administradores, examinar, discutir e votar as demonstrações financeiras; II - deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício e a distribuição de dividendos; III - eleger os administradores e os membros do conselho fiscal, quando for o caso; IV - aprovar a correção da expressão monetária do capital social (artigo 167).
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7 FAZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial. 14ª ed. Editora Atlas. 2013. p. 224. 8 Art. 124. A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. § 1o A primeira convocação da assembléia-geral deverá ser feita:I - na companhia fechada, com 8 (oito) dias de antecedência, no mínimo, contado o prazo da publicação do primeiro anúncio; não se realizando a assembléia, será publicado novo anúncio, de segunda convocação, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias; II - na companhia aberta, o prazo de antecedência da primeira convocação será de 15 (quinze) dias e o da segunda convocação de 8 (oito) dias.§ 2° Salvo motivo de força maior, a assembléia-geral realizar-se-á no edifício onde a companhia tiver a sede; quando houver de efetuar-se em outro, os anúncios indicarão, com clareza, o lugar da reunião, que em nenhum caso poderá realizarse fora da localidade da sede. § 3º Nas companhias fechadas, o acionista que representar 5% (cinco por cento), ou mais, do capital social, será convocado por telegrama ou carta registrada, expedidos com a antecedência prevista no § 1º, desde que o tenha solicitado, por escrito, à companhia, com a indicação do endereço completo e do prazo de vigência do pedido, não superior a 2 (dois) exercícios sociais, e renovável; essa convocação não dispensa a publicação do aviso previsto no § 1º, e sua inobservância dará ao acionista direito de haver, dos administradores da companhia, indenização pelos prejuízos sofridos. § 4º Independentemente das formalidades previstas neste artigo, será considerada regular a assembléia-geral a que comparecerem todos os acionistas. § 5o A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, mediante decisão fundamentada de seu Colegiado, a pedido de qualquer acionista, e ouvida a companhia: I - aumentar, para até 30 (trinta) dias, a contar da data em que os documentos relativos às matérias a serem deliberadas forem colocados à disposição dos acionistas, o prazo de antecedência de publicação do primeiro anúncio de convocação da assembléia-geral de companhia aberta, quando esta tiver por objeto operações que, por sua complexidade, exijam maior prazo para que possam ser conhecidas e analisadas pelos acionistas; II - interromper, por até 15 (quinze) dias, o curso do prazo de antecedência da convocação de assembléia-geral extraordinária de companhia aberta, a fim de conhecer e analisar as propostas a serem submetidas à assembléia e, se for o caso, informar à companhia, até o término da interrupção, as razões pelas quais entende que a deliberação proposta à assembléia viola dispositivos legais ou regulamentares.§ 6o As companhias abertas com ações admitidas à negociação em bolsa de valores deverão remeter, na data da publicação do anúncio de convocação da assembléia, à bolsa de valores em que suas ações forem mais negociadas, os documentos postos à disposição dos acionistas para deliberação na assembléia-geral. 9 “O método assemblear, que se apoia sobre o cumprimento de determinadas formalidades (inclusive com a clara delimitação do que se deliberará na ocasião, ante as demandas que concretamente se apresentam), outorga determinadas garantias ao processo decisório – daí porque certas matérias são de competência exclusiva da assembléia geral e daí porque a adoção dos procedimentos assembleares torna-se verdadeira condição de validade para as deliberações tomadas.” Disponível em http://www.cvm.gov.br/port/descol/respdecis. asp?File=6385-0.HTM. Acesso em 24 de nov. de 2014 às 23h49min.. 10 “O Direito Societário afastou-se do Direito Obrigacional comum no campo das nulidades, para abrandá-lo, de vez que a prática societária não comporta o mesmo rigor observado no campo obrigacional in genere; a verdade é que a tendência dominante é a de minorar o radicalismo da nulidade absoluta, no campo societário, inclinando-se para reconhecer os efeitos dos atos ditos nulos ou inexistentes, impedindo a sua retroatividade e permitindo a sua retificação, a que os espanhóis chamam de ‘subsanación’ do vício.” (BULGARELLI, Waldírio. Anulação de assembléia geral de sociedade anônima. Revista dos Tribunais, v. 514:57, agosto de 1978, p.98-99). 11 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Invalidade das deliberações de assembléia da S.A. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 23. Percebe-se que os artigos do Código Civil citados referem-se ao Código Civil de 1916. No diploma em vigor (Código Civil de 2002), tais artigos correspondem aos artigos 182 e 168, respectivamente. 12 PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande. Medidas urgentes no direito societário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v. 5, p.163.
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13 Art. 285. A ação para anular a constituição da companhia, por vício ou defeito, prescreve em 1 (um) ano, contado da publicação dos atos constitutivos. Parágrafo único. Ainda depois de proposta a ação, é lícito à companhia, por deliberação da assembléia-geral, providenciar para que seja sanado o vício ou defeito. 14 Art. 123. Compete ao conselho de administração, se houver, ou aos diretores, observado o disposto no estatuto, convocar a assembléia-geral. Parágrafo único. A assembléia-geral pode também ser convocada: a) pelo conselho fiscal, nos casos previstos no número V, do artigo 163; b) por qualquer acionista, quando os administradores retardarem, por mais de 60 (sessenta) dias, a convocação nos casos previstos em lei ou no estatuto; c) por acionistas que representem cinco por cento, no mínimo, do capital social, quando os administradores não atenderem, no prazo de oito dias, a pedido de convocação que apresentarem, devidamente fundamentado, com indicação das matérias a serem tratadas; (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) d) por acionistas que representem cinco por cento, no mínimo, do capital votante, ou cinco por cento, no mínimo, dos acionistas sem direito a voto, quando os administradores não atenderem, no prazo de oito dias, a pedido de convocação de assembléia para instalação do conselho fiscal. (Incluída pela Lei nº 9.457, de 1997) Art. 124. A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. § 1º A primeira convocação da assembléia-geral deverá ser feita com 8 (oito) dias de antecedência, no mínimo, contado o prazo da publicação do primeiro anúncio; não se realizando a assembléia, será publicado novo anúncio, de segunda convocação, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias. § 1o A primeira convocação da assembléia-geral deverá ser feita: (Redação da pela Lei nº10.303, de 2001) I - na companhia fechada, com 8 (oito) dias de antecedência, no mínimo, contado o prazo da publicação do primeiro anúncio; não se realizando a assembléia, será publicado novo anúncio, de segunda convocação, com antecedência mínima de 5 (cinco) dias; (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) II - na companhia aberta, o prazo de antecedência da primeira convocação será de 15 (quinze) dias e o da segunda convocação de 8 (oito) dias. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) § 2° Salvo motivo de força maior, a assembléia-geral realizar-se-á no edifício onde a companhia tiver a sede; quando houver de efetuar-se em outro, os anúncios indicarão, com clareza, o lugar da reunião, que em nenhum caso poderá realizar-se fora da localidade da sede. § 3º Nas companhias fechadas, o acionista que representar 5% (cinco por cento), ou mais, do capital social, será convocado por telegrama ou carta registrada, expedidos com a antecedência prevista no § 1º, desde que o tenha solicitado, por escrito, à companhia, com a indicação do endereço completo e do prazo de vigência do pedido, não superior a 2 (dois) exercícios sociais, e renovável; essa convocação não dispensa a publicação do aviso previsto no § 1º, e sua inobservância dará ao acionista direito de haver, dos administradores da companhia, indenização pel§ 4º Independentemente das formalidades previstas neste artigo, será considerada regular a assembléia-geral a que comparecerem todos os acionistas. § 5o A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, mediante decisão fundamentada de seu Colegiado, a pedido de qualquer acionista, e ouvida a companhia: (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) I - aumentar, para até 30 (trinta) dias, a contar da data em que os documentos relativos às matérias a serem deliberadas forem colocados à disposição dos acionistas, o prazo de antecedência de publicação do primeiro anúncio de convocação da assembléia-geral de companhia aberta, quando esta tiver por objeto operações que, por sua complexidade, exijam maior prazo para que possam ser conhecidas e analisadas pelos acionistas;(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) II - interromper, por até 15 (quinze) dias, o curso do prazo de antecedência da convocação de assembléia-geral extraordinária de companhia aberta, a fim de conhecer e analisar as propostas a serem submetidas à assembléia e, se for o caso, informar à companhia, até o término da interrupção, as razões pelas quais entende que a deliberação proposta à assembléia viola dispositivos legais ou regulamentares.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) § 6o As companhias abertas com ações admitidas à negociação em bolsa de valores deverão remeter, na data da publicação do anúncio de convocação da assembléia, à bolsa de valores em que suas ações forem mais negociadas, os documentos postos à disposição dos acionistas para deliberação na assembléia-geral.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
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Art. 125. Ressalvadas as exceções previstas em lei, a assembléia-geral instalarse-á, em primeira convocação, com a presença de acionistas que representem, no mínimo, 1/4 (um quarto) do capital social com direito de voto; em segunda convocação instalar-se-á com qualquer número. Parágrafo único. Os acionistas sem direito de voto podem comparecer à assembléia-geral e discutir a matéria submetida à deliberação. Art. 126. As pessoas presentes à assembléia deverão provar a sua qualidade de acionista, observadas as seguintes normas: I - os titulares de ações nominativas exibirão, se exigido, documento hábil de sua identidade; II - os titulares de ações escriturais ou em custódia nos termos do art. 41, além do documento de identidade, exibirão, ou depositarão na companhia, se o estatuto o exigir, comprovante expedido pela instituição financeira depositária.(Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) III - os titulares de ações ao portador exibirão os respectivos certificados, ou documento de depósito nos termos do número II; IV - os titulares de ações escriturais ou em custódia nos termos do artigo 41, além do documento de identidade, exibirão, ou depositarão na companhia, se o estatuto o exigir, comprovante expedido pela instituição financeira depositária. § 1º O acionista pode ser representado na assembléia-geral por procurador constituído há menos de 1 (um) ano, que seja acionista, administrador da companhia ou advogado; na companhia aberta, o procurador pode, ainda, ser instituição financeira, cabendo ao administrador de fundos de investimento representar os condôminos. § 2º O pedido de procuração, mediante correspondência, ou anúncio publicado, sem prejuízo da regulamentação que, sobre o assunto vier a baixar a Comissão de Valores Mobiliários, deverá satisfazer aos seguintes requisitos: a) conter todos os elementos informativos necessários ao exercício do voto pedido; b) facultar ao acionista o exercício de voto contrário à decisão com indicação de outro procurador para o exercício desse voto; c) ser dirigido a todos os titulares de ações cujos endereços constem da companhia. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997); § 3º É facultado a qualquer acionista, detentor de ações, com ou sem voto, que represente meio por cento, no mínimo, do capital social, solicitar relação de endereços dos acionistas, para os fins previstos no § 1º, obedecidos sempre os requisitos do parágrafo anterior. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) § 4º Têm a qualidade para comparecer à assembléia os representantes legais dos acionistas. Art. 127. Antes de abrir-se a assembléia, os acionistas assinarão o “Livro de Presença”, indicando o seu nome, nacionalidade e residência, bem como a quantidade, espécie e classe das ações de que forem titulares. Parágrafo único. Considera-se presente em assembleia geral, para todos os efeitos desta Lei, o acionista que registrar a distância sua presença, na forma prevista em regulamento da Comissão de Valores Mobiliários. (Incluído pela Lei nº 12.431, de 2011). Art. 128. Os trabalhos da assembléia serão dirigidos por mesa composta, salvo disposição diversa do estatuto, de presidente e secretário, escolhidos pelos acionistas presentes.
20 “Também para que o dolo vicie o ato é indispensável não só que os artifícios empregados sejam graves, mas também que tenham sido a causa determinante da declaração de vontade”. (PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedade por ações. São Paulo: Saraiva, 1973, v. 5, p. 73).
15 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1965, tomo L, p. 293.
26 COMPARATO, Fábio Konder. Da imprescritibilidade da ação direta de nulidade de norma estatutária de sociedade anônima. Revista de Direito Mercantil n.º 29, 1977, p. 58.
16 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Invalidade das deliberações de assembléia das S.A. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 91-96, destaques do autor. 17 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Invalidade das deliberações de assembléia das S.A. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 105, nota 87, destaques do autor. Para TEPEDINO, a nulidade absoluta “ocorrerá justamente quando o objeto for ilícito ou impossível, ou violar normas legais que não possam ser derrogadas sequer pela unanimidade dos acionistas. (...) Verifica-se, portanto, que as deliberações nulas pelo seu conteúdo são eminentemente aquelas que alteram o estatuto para pô-lo em choque com a norma cogente da lei”. (Assembléia Geral. In: LAMY filho, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 983). 18 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Anulação de assembléia de transformação de sociedade anônima. Revista de Direito Mercantil nº 119, 2000, p. 262, destaques do autor. 19 “E, assim, o erro, para levar a anulação da assembléia, deve ser de tal gravidade que o juiz se compenetre de que a parte não teria praticado o ato se não estivesse em erro.” (PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedade por ações. São Paulo: Saraiva, 1973, v. 5, p. 73).
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21 “Naturalmente, não se empregou o vocábulo fraude no sentido de fraude a credores, que só pode ser consumada pela sociedade, através de sua administração, e não pela Assembléia, que não se relaciona com terceiros.” (TEPEDINO, Ricardo. Assembléia Geral. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 987). 22 Configura o estado de perigo quando alguém premido ela forte necessidade de livrar-se de grave dano à pessoa, realiza negócio jurídico com outrem, sabedor dessa necessidade, em condições excessivamente onerosas. O agente pratica o negócio fortemente influenciado pelas circunstâncias que lhe são adversas. Embora a figura em exame não se confunde com o vício de coação, o declarante expressa a sua vontade sob efeito de forte pressão psicológica. No entanto, no estado de perigo, diferentemente do que ocorre com a coação, o beneficiário não empregou violência psicológica ou ameaça para que o declarante assumisse a obrigação excessivamente onerosa. 23 A coação pode ser conceituada como sendo uma pressão de ordem moral, psicológica, que se faz mediante ameaça de mal serio e grave, para que a pessoa pratique determinado negócio jurídico. 24 “Quanto a simulação, ela poderá ocorrer para contornar as proibições e impedimentos de voto, mediante a transferência fictícia de ações a um testade-ferro.” (TEPEDINO, Ricardo. Assembléia Geral. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 987). 25 Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléiageral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
27 TEPEDINO, Ricardo. Assembléia Geral. In: LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 986. 28 FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Invalidade das deliberações de assembléia das S.A. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 116, nota 127. 29 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 2 ed. Ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4, tomo II, p. 469, destaques do autor. 30 PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Impugnação de Deliberações de Assembleia das S/A. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2013, v. 6, p.157 e 158. 31 PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Impugnação de Deliberações de Assembleia das S/A. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2013, v. 6, p. 161. 32 PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Impugnação de Deliberações de Assembleia das S/A. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2013, v. 6, p. 163 e 164. **Guilherme Monteiro; Michael César Silva
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O TRATAMENTO ISÔNOMICO ENTRE HOMENS E MULHERES FACE À CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS Caroline Silva Lopes¹ Daniela Lage Mejia Zapata² Banca examinadora ** RESUMO: O estudo se baseia na interpretação do artigo 384 da CLT, que assegura às mulheres um descaso intervalar de 15 (quinze) minutos, antes do início do sobrelabor. O estudo em questão se justifica pelo fato do TST ter recepcionado o dispositivo laboral em exame, ao entender que o direito ao intervalo de quinze minutos antes do início da jornada extraordinária de trabalho é aplicável somente às mulheres. Desse modo, faz-se necessário provar por meio de estudos e princípios constitucionais, que o direito disposto no art. 384 da CLT é uma medida discriminatória ao trabalho da mulher, pois o empregador pode preferir a contratação de homens, em vez de mulheres, para no caso de prorrogação do horário normal. PALAVRAS-CHAVE: intervalo do artigo 384, caput, da CLT; normas de saúde e higiene; isonomia entre homens e mulheres; não retrocesso social; normas constitucionais. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Trabalho da Mulher; 2.1 Distinções, proteções e isonomia; 3 Entendimentos doutrinários acerca do direito disposto no artigo 384 da CLT; 4 Extensão da proteção disposta no artigo 384 da CLT aos demais empregados; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O estudo consiste na interpretação do artigo 384 da CLT, disposto no Capítulo III do Diploma Laboral, que trata da proteção do trabalho da mulher. O referido artigo estabelece que em caso de jornada extraordinária de trabalho, a mulher terá direito ao intervalo de 15 (quinze) minutos antes de iniciar o sobrelabor. O art. 384 advindo da CLT de 1943, respondeu quando de sua edição, ao objetivo de contrabalancear as desigualdades quotidianas e as dificuldades a que as mulheres estavam submetidas. Entretanto, o intervalo de quinze minutos concedidos as empregadas do sexo feminino antes da prestação de jornada extraordinária, consiste em medida discriminatória que não mais se justifica nos tempos atuais. O objetivo geral do artigo em questão é analisar a possibilidade de aplicação do descanso de quinze minutos antes do labor extraordinário à empregados de ambos os sexos, sob fundamento de que o referido intervalo é norma de ordem pública de proteção à saúde e segurança do trabalho. Para que tal objetivo seja comprovado, serão feitas análises das opiniões que constam em artigos científicos já produzidos; livros a respeito do tema; jurisprudências; consultas à Constituição Federal e a Consolidação das Leis Trabalhistas, além de doutrinas sobre assuntos pertinentes à matéria. Desse modo, o Capítulo segundo retratará a história do trabalho da mulher, visando demonstrar que em tempos remotos, a responsabilidade familiar das mulheres era, na maioria das situações, notoriamente superior à dos homens. Nesse contexto histórico, as mulheres tinham a obrigação de cuidarem sozinhas da educação dos filhos, do cuidado com o lar e ainda trabalhar em tempo integral. Por essa razão, era plausível admitir algumas proteções femininas ligadas diretamente ao sexo, mas sem relação com a capacidade procriadora, em detrimento da preponderância da mulher no seio familiar. Nas últimas décadas, como poderá ser entendido melhor adiante, o mercado de trabalho brasileiro tem apresentado um aumento do número de mulheres. A intensificação do fluxo da mão-de-obra
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feminina se deve a influências da I Revolução Industrial, das duas guerras mundiais, dos avanços tecnológicos, do modelo de produção fordista-taylorista e ao controle da função reprodutora e o aumento da qualificação profissional. Ainda no segundo capítulo, é apontado as principais diferenças que existiram ao decorrer da história no âmbito jurídico, principalmente no que concerne a CLT, quanto ao trabalho de homens e mulheres. O referido capítulo mostra o quanto havia uma tutela maior às empregadas do sexo feminino, e que de acordo com a adequação social, os dispositivos que restringiam e limitavam o labor da mulher foram revogados, como os artigos 379 e 380, que proibiam o trabalho noturno às mulheres. Ocorre que, nem todos os dispositivos que traziam diferenciações e proteções injustificadas nos tempos atuais foram revogados, por exemplo, o art. 384 da CLT, objeto do presente estudo e discussão O terceiro capítulo interpreta o dispositivo 384 do Diploma Laboral, em face do princípio da isonomia disposto no art. 5º, I, da CF/88, e fundamenta a não receptividade da norma infralegal com o advento da Constituição federal de 1988. É apresentado três correntes que discutem a recepção ou não do artigo em estudo. Há quem entenda pela não receptividade, como Alice Monteiro de Barros, sob o fundamento de que a Carta Magna assegurou a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e, por esse motivo, não há se falar em tratamento diferenciado. A receptividade do artigo, foi pacificada pelo TST em 17 de dezembro de 2008 no julgado da SDI-1 do TST, incidente de inconstitucionalidade IIN-RR-1540/2005-046-12-00.5. Em que pese a Suprema Corte Trabalhista ter se pronunciado pela receptividade do artigo, esse ainda é de muita discussão no ordenamento jurídico. Dessa forma, a terceira corrente a qual se filia a Martha Halfed Furtado de Mendonça Schmidt e também esse estudo, defende que o artigo 384 da CLT deve ter interpretação evolutiva e ampliativa aos homens diante dos princípios constitucionais da igualdade de tratamento, da vedação do retrocesso social e da proteção à saúde do trabalhador.
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Alfim, o quarto capítulo visa demonstrar que o descanso intervalar ao final da jornada normal e anterior a suplementar, é essencial para a saúde e higidez física do trabalhador, independentemente seja ele homem ou mulher. Assim sendo, a proteção elencada à mulher no art. 384, não estaria respeitando normas constitucionais, já que a saúde e bem estar são direitos fundamentais a qualquer indivíduo. Portanto, o estudo contribuirá para o desenvolvimento de uma nova maneira de interpretar o art. 384 da CLT, que não aquela entendida pelo TST, tendo como alicerce os princípios da isonomia, do não retrocesso social e da proteção à saúde do trabalhador.
2 O TRABALHO DA MULHER “Foi pelo trabalho que a mulher transpôs, em grande parte, a distância que a separava do macho; é só o trabalho que pode garantir-lhe uma liberdade concreta”. (BEAUVOIR, Simone) O trabalho exercido pelas mulheres, não se trata de algo recente na história da humanidade, está presente desde os primórdios até os dias contemporâneos. Ocorre que, em cada fase, o trabalho feminino se desenvolveu de uma forma distinta, enfrentando discriminações e dificuldades em meio a uma sociedade patriarcal. Durante a pré história, “as primeiras divisões de trabalho se baseavam na idade e sobretudo no sexo “. (CANTELLI, 2007, p.44) O homem era visto como um ser mais forte, com capacidade para suportar trabalhos mais pesados. Ao contrário, a mulher, rotulada como sexo frágil, exercia trabalhos mais delicados, de menor esforço físico. O trabalho da mulher era delimitado aos cuidados com o lar, com os filhos e com a família. Essas funções eram intransferíveis, e não se estendiam aos homens, que por sua vez, laborava fora do âmbito doméstico. Eram responsáveis pela caça, pesca e obtenção de alimentos que exigissem mais força física. Muraro, (2000, apud CANTELLI, 2007, p. 44) explica que o motivo que justifica tal fato: “no início, o homem não conhecia seu papel na procriação, o que o levava a pensar que a mulher era fecundada pelos deuses. Isso o deixava numa condição de inferioridade em relação ao sexo feminino.” Por essa razão, o homem tinha anseio em definir suas funções na sociedade. Esse fato foi preponderante para que o sexo masculino demarcasse seu lugar no meio social, como sendo fora da área doméstica. De acordo com Cantelli (2007), O surgimento das primeiras civilizações trouxe à tona um nível considerável de progresso quanto as artes, as ciências, e as instituições políticas, sociais e econômicas. Não obstante a esses avanços, a mulher continuava sendo submissa ao homem, e desvalorizada pela sociedade. A passagem do regime da propriedade comum para a propriedade privada, foi fundamental para conferir ao homem domínio sobre a terra, sobre outros homens e ainda sobre a própria mulher. Tudo isso contribuiu ainda mais para que o trabalho doméstico fosse considerado de menor valor. Diferentemente desse cenário de desigualdades de sexos que vem sendo abordado nesse estudo, “na civilização egípcia havia aparentemente igualdade entre homens e mulheres”. (MURARO, 2000, p. 85.) Tal alegação se confirma, por existir registros de grandes sacerdotistas, negociantes e guerreiras. Além disso, não havia diferença entre os túmulos de ambos os sexos. A nova forma de trabalho e ocupação feminina, ocorreu com a evolução dos sistemas econômicos. A partir desse momento, a mulher passou a contribuir para a manutenção do lar com a fabricação de tecidos e de pequenos objetos que serviam de instrumento de troca por outras utilidades, tornando assim seu trabalho um pouco mais reconhe-
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cido. Foi dessa forma que se formou as primeiras oficinas artesãs, de caráter doméstico e familiar, sendo a base da indústria moderna. Ocorre que, com o advento da Revolução Inglesa no século XIII, e o surgimento do maquinário, a situação mudou. Milhares de mulheres e inclusive crianças, começaram a trabalhar nas fábricas, submetidos a longas jornadas de trabalho, condições sub-humanas e baixíssimos salários. Assim, mais uma vez na história, ocorre a desvalorização e a exploração do labor feminino. Toda essa situação de condições precárias de trabalho e desigualdade de gênero, tendo em vista que o salário do homem era notavelmente superior ao da mulher, fez nascer um sentimento de revolta no sexo feminino e anseio de luta por direitos e igualdade. A tendência é recente e historicamente compreensível: a mulher ingressou no mercado de trabalho há duzentos anos, submetida, naquele instante, a uma lógica empresarial crua de custo/benefício. Sua contratação, em síntese, tornava-se vantajosa pelo fato de a mulher se subordinar mais facilmente, em vista da secular segregação cultural e jurídica que a caracterizava ao longo dos séculos, a uma combinação perversa de baixos salários (em nível inferior ao homem), elevada jornada ( em nível superior ao do homem) e condições ambientais agressivas ao organismo. (SENA, 1996, p.12) No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. A fábrica foi ocupada pelas manifestantes, que ambicionavam condições dignas de trabalho, redução na jornada diária de trabalho para dez horas, equiparação de salários com os homens e tratamento digno e humano dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi violentamente reprimida e as trabalhadoras foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada, causando assim a morte de 130 tecelãs. E foi por essa razão que atualmente, nessa data é comemorado o Dia Internacional da Mulher. (Disponível em: <http://www.brasilprofissoes. com.br/noticias/negocios/a-historia-do-trabalho-feminino#.VGi51BCXCPk> Acesso em: 01 de novembro de 2014) Outro fator preponderante para a ascensão da mulher no mercado de trabalho foram as duas grandes Guerras. Durante esse período, os homens iam para as frentes de batalha, e as mulheres assumiam os negócios da família, e, assim, a posição dos seus maridos no mercado de trabalho. Com o fim da Guerra, surgiram muitas dificuldades. Muitos homens que haviam lutado pelo país, morreram ou ficaram impossibilitados de trabalhar. Dessa forma, surgiu a necessidade das mulheres figurarem na sociedade não apenas como esposas, donas de casa ou mães, mas também como parte do mundo do trabalho, afim de conquistarem espaço na economia nacional. Assim, conquistaram cargos que anteriormente eram confiados somente aos homens, como os de chefia, engenheiras, motoristas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e justamente para tentar sanar as sequelas deixadas, diversos estados passaram a conceder direitos e garantias aos trabalhadores. Além disso, muitos direitos trabalhistas foram constitucionalizados – a exemplo do que já havia acontecido na Alemanha e no México – o que acabou fortalecendo o Direito do Trabalho. (CANTELLI, 2007, p. 106) A Segunda Guerra mundial, deixou sequelas políticas, sociais e econômicas em diversos Estados. Como forma de sanar os prejuízos causados, foram criados direitos e garantias aos trabalhadores. Nesse contexto, surgiu nos países centrais do capitalismo o Estado do Bem-Estar Social – Welfare State. Esse foi um período em que houve o desenvolvimento de políticas sociais e a consolidação das
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relações de emprego. Ainda nesse tempo, o modelo fordista atingiu seu apogeu nos países capitalistas, construindo um novo empregado, e uma sociedade baseada no consumo exacerbado e na proteção dos trabalhadores. No final dos anos 60, o sistema capitalista foi aos poucos diminuindo o ritmo de produção, comprometendo o equilíbrio da economia. A partir de então, foi criado uma nova divisão internacional do trabalho, visto que as empresas migravam para países que forneciam mão-de-obra mais barata. Outrossim, os avanços tecnológicos desvalorizaram o trabalho humano e fomentou o desemprego e a precarização das condições de trabalho. (CANTELLI, 2007) Nesse período, as empresas introduziram o modelo de produção neoliberal – o toyotismo -, que visava a redução de custos e o aumento da produtividade, era a chamada “ empresa mínima “. Todavia, esse modo de produção, afetou a vida das trabalhadoras e contribuiu para a descriminação a que elas foram novamente submetidas. (CANTELLI, 2007) As mulheres em sua maioria, faziam parte de um setor que contava com mão de obra menos qualificada e o trabalho de pessoas sem experiência. Fato é que, desde as primeiras civilizações até os dias atuais, a mulher vem buscando igualdade de tratamento frente ao sexo masculino. Todavia, em que pese as conquistas efetivadas na Constituição Federal de 1988, por exemplo, nos artigos 5º, item I e artigo 7º, inciso XXX, e as mulheres ocuparem posições de destaque no mercado de trabalho, a isonomia nunca se manteve estável apresentando oscilações em cada época da humanidade. 2.1 Distinções, proteções e isonomia: No que concerne ao trabalho da mulher no Brasil, o Decreto n. 21.417-A, de 1932, influenciou o texto do Capítulo III da CLT que trata da “proteção do trabalho da mulher.” “No Brasil, o Decreto n. 21.417A, de 1932, regulamentou o trabalho da mulher nos estabelecimentos industriais e comerciais [...]” (BARROS, 1995, p. 51) O referido capítulo, que apresenta traços de normas internacionais, possui um caráter tutelar em relação às mulheres, de forma a estabelecer restrições que não mais prosperam na sociedade contemporânea. “O principal escopo do organismo legislativo protetor foi uniformizar os custos operacionais, visando a evitar uma concorrência injusta no mercado internacional”. (BARROS, 1995, p. 487) O trabalho noturno era vedado nos estabelecimentos industriais e comerciais, públicos ou particulares, das 22h às 5h, A exceção a essa vedação se fazia às empregadas em estabelecimentos em que só trabalhassem pessoas de sua família; às mulheres cujo trabalho fosse indispensável para evitar a interrupção do funcionamento normal do estabelecimento; ao trabalho decorrente de força maior, ou em situações em que o trabalho noturno fosse imprescindível para evitar perdas de matérias-primas ou substâncias perecíveis. O artigo 379 e 380 da CLT que preceituava tais restrições, foi revogado expressamente, em 24 de outubro de 1989, pela Lei n. 7.855, não mais existindo a proibição ao trabalho noturno da mulher. Esse fato representou consideravelmente um avanço na legislação, uma vez que diminuiu a divisão sexista de atividades. Os principais fundamentos que norteavam a restrição ao trabalho noturno da mulher eram de ordem fisiológica, familiar e moral. Todavia, do ponto de vista fisiológico, o trabalho noturno é prejudicial tanto à mulher quanto ao homem, pois há uma coincidência entre a ativação biológica e o horário de trabalho e entre a desativação cerebral e o sono. Assim sendo, o trabalho noturno deveria ser proibido tanto para os homens, quanto para as mulheres, já que não há razão científica capaz de justificar uma proteção especial. (BARROS,1995, p.499)
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O trabalho da mulher era também proibido em condições insalubres, perigosas e penosas. Tal proibição era elencada na Constituição de 1934 até o texto constitucional de 1967. O artigo 387 da CLT, estabelecia a proibição do trabalho da mulher nos subterrâneos, nas minerações em subsolo, nas pedreiras e obras de construção pública ou particular, e nos serviços perigosos e insalubres. Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi consagrado a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, no inciso I do art.5º, e vedado a diferença de salário, de exercício de funções e critério de admissão por motivo de sexo (art. 7º, XXX). Portanto, como a Constituição de 1988 não estabeleceu restrição ao trabalho insalubre das mulheres, a legislação ordinária que restringia o trabalho das mulheres nessa condição foi revogada expressamente, por meio da Lei 7.855, de outubro de 1989. As proibições legislativas discriminatórios entre os sexos não foram todas revogadas pela Lei n. 7.855, de outubro de 1989, persistindo a proibição do trabalho extraordinário, sendo admitido apenas no caso de força maior (artigo 376 da CLT), e a proibição do labor feminino em serviços que demandam emprego de força muscular superior a vinte quilos para trabalho contínuo ou 25 quilos para o trabalho ocasional. Ocorre que, com o passar dos anos, se formou uma realidade social que não mais se justificava a limitação da jornada de trabalho da mulher, com fulcro no princípio da isonomia, elencado nos artigos. 5º, I e 7º, XXX da Constituição Federal de 1988. Assim sendo, o art. 376 da CLT, acabou sendo revogado expressamente, pela Lei n. 10.244, de 27 de junho de 2001. O fundamento utilizado para impedir que a mulher realizasse o trabalho extraordinário era de ordem familiar e doméstica, visto que era atribuído à mulher o “papel” secular de mãe e dona de casa, como afirma Alice Monteiro de (1995). O art. 390 da CLT, que assevera a proibição de trabalho feminino em serviços que demandam emprego de força muscular, foi mantido, mesmo após a Lei n.7855, de 1989, que revogou várias normas proibitivas do labor das mulheres, e a Lei n. 10.244, de 2001, que revogou o art. 376 da CLT. Segundo BARROS, (1995, p. 56), os fatores que foram mais preponderantes para manter o art. 390, são os seguintes: [...] estudos realizados no campo da fisiologia revelam que o sistema muscular da mulher é menos desenvolvido do que o do homem. Aos vinte e cinco anos, a sua força muscular corresponde, em média, a 65% da força masculina e, aos 55 anos, decresce para 54%. Ademais, abortamentos espontâneos e partos prematuros têm sido associados ao trabalho contínuo com levantamento de cargas pesadas. O que se deve fazer é abolir a restrição imposta no art. 390 da CLT e analisar cada caso nas suas peculiaridades e condições de cada empregado, independentemente seja homem ou mulher. No que concerne a proteção à maternidade, conforme o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição da República de 1988, a duração da licença-maternidade é de 120 (cento e vinte) dias, sendo destinatárias da tutela legal, às empregadas, inclusive domésticas e rurais. Acerca da licença-paternidade, essa é de 05 (cinco) dias, como disposto no art. 7º, XIX da Constituição Federal de 1988, e art. 10, parágrafo 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. É notável que a licença concedida às mulheres é bem superior que a dos homens. Tal medida legislativa protetiva é plausível e não deve ser entendida como discriminatória, visto que seu fundamento se baseia na proteção à saúde da mulher e da criança.
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Em determinada circunstância o tratamento diferenciado à mulher é justificado e decorrente de uma situação peculiar à condição feminina – a maternidade. Assim sendo, tal não nos afigura como tratamento discriminatório ou ilegal, mas tão somente constatação da desigual situação masculina. Ademais, a proteção especial dada à mulher gestante vem de encontro à salvaguarda de um bem jurídico maior: a vida. E este é um bem de toda a sociedade – homens e mulheres – indistintamente. (SENA, 1996, p. 13/14) Acontece que, no entendimento de BARROS (1995 p. 491), o fator maternidade e o cuidado com os filhos são os principais responsáveis pela discriminação da mulher no mercado de trabalho. Isso se deve em decorrência dos custos que o empregador tem com o pagamento da licença-maternidade; a redução da produtividade da mulher grávida; a substituição da trabalhadora nessas condições; a interrupção do trabalho durante a licença-maternidade. Todavia, a discriminação da mulher no mercado de trabalho não se deve apenas em decorrência de legislação proibitiva, mas, também, de tradições culturais que reforçam a divisão sexista de tarefas. Sobre a não discriminação, escreveu Comparato apud NOVAIS, 2005, p.28: A diferença é uma realidade imposta pela natureza. Cada ser humano possui suas próprias características físicas e psicológicas, suas habilidades e aptidões. Mas diferença não significa desigualdade: “as diferenças são biológicas ou culturais, e não implicam a superioridade de alguns em relação a outros. As desigualdades, ao contrário, são criações arbitrárias, que estabelecem uma relação de inferioridade de pessoas ou grupos em relação a outros”. O que se deve compreender é que as normas de proteção à maternidade existem em virtude de uma diferença biológica entre homens e mulheres. Portanto, é imprescindível a proteção da mulher enquanto gestante e, depois, durante a amamentação, com o intuito de garantir o futuro da espécie. Diante do exposto, pode-se concluir que ambos os sexos necessitam de condições mínimas de trabalho, devendo sempre ser observado o direito à saúde e à higiene, como forma de assegurar a dignidade de todo e qualquer empregado. 3 ENTENDIMENTOS DOUTRINÁRIOS ACERCA DA EXTENSÃO DO DIREITO DISPOSTO NO ARTIGO 384 DA CLT A Constituição da República de 1988, no art. 5º, I, assegurou que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição.” E ainda, no art. 7º, XXX, proíbe diferenças de salário, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. (SARAIVA, 2013, p. 13) De acordo com o entendimento de Aristóteles, (BASTOS, 1978, p.225.) “a verdadeira igualdade consiste em tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais a medida em que se desigualem “. O que se proíbe com o princípio da igualdade é a discriminação arbitrária e injustificada. E, ao legislador, é permitido que se faça diferenciações objetivas de situações, o que aduz que o princípio da igualdade, que o princípio da isonomia, não é absoluto. Pois bem. Em face da igualdade exaltada nos artigos. 5º, I e 7º, XX, da CF, surgiram indagações sobre possível conflito das normas constitucionais com o art. 384 da CLT que preconiza o direito somente à mulher ao intervalo de no mínimo 15 (quinze) minutos antes de iniciar o sobrelabor, no caso de uma jornada extraordinária de trabalho.
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Sobre o referido artigo, Martins (2001, p. 307-308), aduz o seguinte: O preceito em comentário conflita com o inciso I do artigo 5º da Constituição, em que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Não há tal descanso para o homem. Quanto à mulher, tal preceito mostra-se discriminatório, pois o empregador pode preferir a contratação de homens, em vez de mulheres, para o caso de prorrogação do horário normal, pois não precisará conceder o intervalo de 15 minutos para prorrogar a jornada de trabalho da mulher. O art. 384, é mais um exemplo do tratamento desigual e discriminação arbitrária que há na CLT entre os empregados de ambos os sexos. A prerrogativa e a tutela que em tese possui as empregadas do sexo feminino por meio de um intervalo que antecede o sobrelabor, nos dias atuais, é interpretado como um obstáculo para se ter acesso ao mercado de trabalho. É evidente que o empregador preterirá empregados do sexo masculino, visto que o descanso intervalar não lhes é positivado. O que se observa é que o art. 384 da CLT criada pelo Decreto Lei n. 5.452 de 1º de maio de 1943, não acompanhou o desenvolvimento de uma normativa que esteja em harmonia com a realidade social. Ademais, a não alteração do referido artigo, de forma a ser interpretado evolutivamente a todos os empregados, põe em risco a segurança jurídica das normas, uma vez, conforme KILDARE (2010, p.382), todo o ordenamento jurídico deve ser conformado com os preceitos constitucionais, quer sob o ponto de vista formal (competência para a edição de ato normativo e observância do processo legislativo estabelecido para a elaboração da norma jurídica), quer sob o ponto de vista material (adequação do conteúdo da norma aos princípios e regras constitucionais). Nesse contexto, formaram-se três correntes doutrinárias com apoio jurisprudencial afim de discutir a recepção ou não do artigo 384 da CLT pela Constituição Federal. A primeira corrente defende a não recepção do referido artigo sob o fundamento de que a Carta Magna assegurou a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e, por esse motivo, não há se falar em tratamento diferenciado, salvo quanto a questão biológica, como na maternidade. Considerando que é um dever do estudioso do direito contribuir para o desenvolvimento de uma normativa que esteja em harmonia com a realidade social, propomos a revogação expressa do artigo 376 da CLT, por traduzir um obstáculo legal que impede o acesso igualitário da mulher no mercado de trabalho. Em consequência, deverá também ser revogado o artigo 384 da CLT, que prevê descanso especial para a mulher, na hipótese de prorrogação de jornada. Ambos os dispositivos conflitam com os artigos 5º, I, e artigo 7º, XXX, da Constituição Federal. (BARROS,1995. p. 478) A segunda corrente alega não haver discriminação às mulheres quanto concessão do intervalo de quinze minutos, em caso de prorrogação de jornada normal. Entende, pois, pela recepção do artigo no ordenamento jurídico pelos seguintes fundamentos: INTERVALO PRECEITUADO NO ARTIGO 384 DA CLT – CONSTITUCIONALIDADE E VIGÊNCIA – NÃO CONCESSÃO – O princípio da isonomia visa a impedir que diferenças arbitrárias encontrem amparo em nosso sistema jurídico, e não cumpre seu objetivo quando é interpretado em termos absolutos, servindo de fundamento para tratamento igual àqueles que são desiguais. Desta forma, considerando a inquestionável diferença física existente entre homem e mulher, o artigo 384 da
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CLT foi recepcionado pela atual ordem constitucional, não se havendo falar que sua aplicação viola o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal. Assim, vigente o referido dispositivo, sua inobservância, deixando o empregador de conceder à mulher o intervalo de 15 (quinze) minutos entre a jornada normal e a extraordinária, impõe-se penalizá-lo com o pagamento do tempo correspondente, com acréscimo de 50%. Recurso conhecido a que se dá parcial provimento. (TRT 23ª R. – RO 00643.2002.021.23.00-9 – Cuiabá – Relª Juíza Maria Berenice – DJMT 25.02.2003 – p. 24) Ainda nesse sentido, se posicionou o Tribunal Superior do Trabalho, mediante o julgamento do Recurso de Revista interposto nos autos do processo de nº 12600/2003-008-09-00.3, oriundo do TRT da 9º Região (FONTE: BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho, www.tst.gov.br) De acordo com o Ministro Levenhagem, muito embora seja assegurado na Constituição a igualdade entre homens e mulheres, “é forçoso reconhecer que elas se distinguem dos homens, sobretudo em relação às condições de trabalho, pela sua peculiar identidade biossocial”. Por fim, a terceira corrente, a qual se filia esse estudo, defende a interpretação ampliativa do art. 384 da CLT, de forma a ser aplicado a ambos os sexos. Se o preceito é discriminatório e parece não mais de justificar, a primeira conclusão a que se poderia chegar seria a constatação de sua revogação ou de sua não-receptividade pela atual Constituição. Essa conclusão é, porém, preliminar. Ora, partindo-se de premissa vinculada aos princípios da igualdade de tratamento homem-mulher, da vedação do retrocesso social, da proteção á saúde do trabalhador e da dignidade da pessoa humana e inspirando-se de princípios oriundos das Convenções 100 e 111 da OIT, ambas ratificadas pelo Brasil, a melhor alternativa é a readequação da regra inscrita no art. 384 da CLT à realidade. (TRT 3ª R. – RO 0000741-34.2012.5.03.0059– Belo Horizonte – Relª Juíza Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt– DJMG 26.04.2013 – p. 24) Embora o c. TST já tenha se posicionado quanto a constitucionalidade da norma em exame, ao rejeitar o incidente de inconstitucionalidade em recurso de revista nos autos do processo IIN -R-1540/2005-046-12-00.5, sob o fundamento de que a mulher tem papel preponderante no âmbito familiar e profissional, além de outros aspectos de ordem biológica que implicaria um desgaste físico maior ao longo da jornada laborada, essa respeitável decisão não merece prosperar nos tempos atuais, pois, os homens tem tomado considerável espaço no seio familiar, tanto em relação ao cuidado com as crianças, quanto no que consiste nos afazeres domésticos. Outrossim, o art. 384 consiste em norma de ordem pública, que tem como fulcro à proteção à saúde, segurança e higidez física da mulher. Ainda, o artigo 71, caput e § 1º do Diploma Laboral preceitua o seguinte: Art. 71 - Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas. § 1º - Não excedendo de 6 (seis) horas o trabalho, será, entretanto, obrigatório um intervalo de 15 (quinze) minutos quando a duração ultrapassar 4 (quatro) horas.” (SARAIVA, 2013, p. 827) O dispositivo supracitado é aplicável a todo empregando, independentemente seja homem ou mulher. Trata-se de medida com a
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finalidade de recompor as condições físicas do trabalhador, depois de um determinado período continuado de atividades. Dessa forma, é totalmente compreensível com base no princípio da proporcionalidade, que o descanso preceituado no art. 71, caput e parágrafo primeiro da CLT, tem a mesma finalidade que o direito intervalar do art. 384 da mesma Lei, quer seja, repor as energias gastas durante toda a jornada laboral, afim de executar as posteriores tarefas com mais segurança e bem-estar. De acordo com a decisão do Desembargador relator Alexandre Teixeira de Bastos Cunha, no incidente processual de nº 014530077.2007.5.01.0039, 2011, o art. 384 da CLT não assegura proteção à mulher, devendo, pois, ser reinterpretado, na medida em que acarreta uma indesejada desigualdade entre os trabalhadores de ambos os sexos, contribuindo negativamente para o aumento da inserção da força laboral feminina no mercado de trabalho. Destarte, não há razão plausível que exclua o trabalhador do sexo masculino do mesmo direito que possui a empregada mulher. Por isso, com base no artigo 5º, I, da Constituição Federal, deve-se buscar a igualdade para ampliar o alcance da norma a todos os trabalhadores. 4 EXTENSÃO DA PROTEÇÃO DISPOSTA NO ARTIGO 384 DA CLT AOS DEMAIS EMPREGADOS Entende-se como jornada extraordinária, o lapso temporal de trabalho ou a disponibilidade a que fica submetido o empregado diante do empregador que ultrapasse a jornada padrão, estabelecida em norma jurídica ou por cláusula contratual. O caput do artigo 61 do Diploma Laboral dispõe sobre as hipóteses autorizadoras do sobrelabor: Art. 61 Ocorrendo necessidade imperiosa, poderá a duração do trabalho exceder do limite legal ou convencionado, seja para fazer face a motivo de força maior, seja para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto. (SARAIVA, 2013, p.826) Outra hipótese no ordenamento jurídico em que é permitida a jornada além da padrão, é na hipótese da jornada suplementar que houver acordo escrito entre as partes, acordo ou convenção coletiva, desde que o número de horas não exceda de duas horas diárias e que sejam pagas com acréscimo de 50% sobre a hora normal. O intervalo concedido no art. 384 da CLT, é devido antes do início da extrapolação da jornada. Trata-se de um descanso especial para a mulher. O fundamento para concessão, é resguardar à saúde e a higidez física da trabalhadora, de forma a não causar acidentes laborais. Nesse sentido, afirmam Gunther, Zornig, (2010, acervo eletrônico doado ao Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região): O artigo 384 da CLT tem por escopo conscientizar o empregador na concessão de intervalo ao trabalhador, antes de adentrar em jornadas extraordinárias, de molde a recuperar suas forças laborais, mormente naquelas que exigem maior desempenho físico, prevenindo desgastes maiores. Acerca da importância do intervalo intrajornada, asseverou DELGADO, Maurício Godinho, 2003, p. 119-120: As normas jurídicas concernentes a intervalos intrajornadas têm caráter de normas de saúde pública, não podendo, a princípio, ser suplantadas pela ação privada dos indivíduos e grupos sociais. É que afora os princípios gerais trabalhistas da imperatividade das normas desse ramo jurídico especializado e da vedação a transações lesivas, tais regras de saúde públi-
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ca estão imantadas de especial cogência por determinação expressa oriunda da Carta da República. O art. 7º XXII, da CF/88, preceitua “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. (RIDEEL, 2014) O repouso intrajornada é relevante em detrimento de higiene e saúde no trabalho, e, principalmente por tratar de norma de ordem pública. Por essa razão é que a CF ao arrolar os direitos trabalhistas, estabeleceu no art. 7º, XXII, medida substancial para a redução do número de acidentes do trabalho e de doenças dele decorrentes, de modo a preservar a saúde e a integridade física do trabalhador e, a economia das empresas e da nação, protegidas contra as despesas decorrentes de eventual infortúnio ocorrido em face do cansaço, do desgaste ou do esgotamento Dessa forma, o intervalo disposto na norma infraconstitucional, de no mínimo 15 (quinze) minutos antes de se iniciar o sobrelabor, visa a proteção do trabalhador de modo que não se sinta tão desgastado no momento da execução das tarefas extraordinárias. Consequentemente, tal fato acarretará a redução dos riscos inerentes ao trabalho, uma vez que as normas referentes a intervalos intrajornadas têm caráter de saúde pública, como citado acima nas palavras de Maurício Godinho Delgado. Ademais, o art. 384 do Diploma laboral suprimiu o direito social dos empregados do sexo masculino de usufruírem do repouso intervalor que antecede a jornada suplementar. Tal fato, viola o caput do art. 7º da Constituição Federal, que apresenta como princípio o não retrocesso social: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outras que visem a melhoria da sua condição social:” (RIDEEL, 2014) Admitir que a proteção elencada no art. 384 da CLT seja apenas da mulher, é ir contra o princípio da isonomia elencado nos artigos 5º, I e art. 7º, XXX, ambos da Constituição Federal de 1988, já que restou demonstrado que o excesso de horas trabalhadas compromete o bem estar físico e psíquico do empregado, seja ele homem ou mulher. Por essa razão, a regra do art. 384 deve ser aplicada indistintamente, tanto para a proteção do trabalho da mulher como do homem, uma vez que atualmente há uma intensificação de trabalho e de concentração de tarefas. A concessão de intervalo após o término da jornada normal, antes do trabalho suplementar, é necessária para a reposição das energias gastas pelos empregados durante toda a jornada, afim de executarem as tarefas durante o trabalho extraordinário com segurança e bem-estar. O princípio da isonomia, disposto no art. 5º, I, da CF, consiste no tratamento desigual para desiguais, na medida de suas desigualdades. Assim sendo, fica permitido ao legislador dispor de hipóteses de tratamento desigual, quando for necessário compensar as desigualdades impostas pelas circunstâncias de cada situação. No âmbito do direito do trabalho, as discriminações criadas em favor da mulher somente se justificam naquilo em que elas são diferentes dos homens, como na maternidade, pois neste caso não estará discriminando e sim protegendo-a. É totalmente plausível que a licença-maternidade seja maior que a licença-paternidade de acordo com o ponto de vista biológico da capacidade procriadora da mulher. No que não concerne ao âmbito fisiológico, o tratamento diferenciado entre os sexos não se justifica. O benefício ao intervalo de quinze minutos antes da jornada extraordinária, que é aqui estudado, faz com que o empregador prefira a contratação de indivíduos do sexo masculino a indivíduos do sexo feminino, o que dificulta o acesso da mulher ao mercado de trabalho. Não há nada que impeça as mulheres de trabalharem submetidas a mesma jornada laboral que os homens e de usufruírem de idênticos períodos de repouso. Assim, interpretar o art. 384 como be-
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néfico somente as pessoas do sexo feminino, é deixar de atender as exigências de isonomia consagradas na Constituição Federal. De acordo com o entendimento de SILVA, citado por FRANCO FILHO,( 2009, p. 163): Quanto a vigente norma do art. 384 da CLT, entende-se que seu conteúdo é inconstitucional, haja vista que aos homens não é garantido o repouso de 15 (quinze) precedente à jornada extraordinária. Entender-se de modo contrário, implicaria em evidente discriminação quanto à mulher, pois seria preferível ao empregador contratar apenas homens e não conceder o referido descanso. Pelo exposto, a concessão ao intervalo obrigatório de quinze minutos antes do trabalho em sobrejornada para empregados de ambos os sexos, é a melhor maneira de atender aos valores positivados na Constituição Federal, além de concretizar os direitos fundamentais relacionados à igualdade de tratamento, à vedação do retrocesso social, e à proteção à saúde do trabalhador. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo demonstrou que de acordo com as famílias contemporâneas, a mulher não tem mais a função marcadamente preponderante no lar, quer seja nos afazeres domésticos, quer seja no cuidado com os filhos, ao contrário do que existia durante a pré-história, idade média, e até mesmo na metade do século XXI. Como foi visto, diversos fatores contribuíram para permitir o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, tais como as duas Grandes Guerras, o dia 08 de março de 1857, a 1ª Revolução Industrial, os avanços tecnológicos, o modelo de produção fordista-taylorista, entre outros. Todavia, mesmo tendo existido avanços e busca por igualdade, ainda é distante a condição de equilíbrio. Ocorre que, em que pese a busca por direitos iguais entre os sexos, as legislações infraconstitucionais, em especial a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), usa de uma proteção excessiva às empregadas do sexo feminino e não observa princípios constitucionais basilares. O dispositivo 384 da CLT, como foi demonstrado ao longo do estudo, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que não observou o princípio da isonomia, do não retrocesso social, da dignidade da pessoa humana, e da proteção à saúde do trabalhador. Ademais, está contrário às garantias celetistas que foram conquistadas ao longo dos tempos. O estudo em questão se justifica pelo fato do TST ter reconhecido a receptividade do dispositivo laboral em exame, ao entender que o direito ao intervalo de quinze minutos antes do início da jornada extraordinária de trabalho deve de fato ser aplicado somente às mulheres. Desse modo, provou-se por meio desse estudo, que o direito disposto no art. 384 da CLT é uma medida discriminatória ao trabalho da mulher, pois o empregador pode preferir a contratação de homens, em vez de mulheres, para no caso de prorrogação do horário normal Conclui-se, portanto, que o direito a um intervalo de no mínimo 15 (quinze) minutos, antes do início do sobrelabor, constitui norma de ordem pública e que deve ser reinterpretada progressivamente de forma que alcance indistintamente homens e mulheres, tendo em vista a segurança no trabalho, já que o início de uma nova jornada pressupõe o desgaste físico e metal do trabalhador, independentemente do gênero. Assim sendo, cumpre ressaltar que o principal objetivo do presente estudo é a extensão do descanso intervalar antes de se iniciar a jornada extraordinária, aos empregados do sexo masculino, visando a proteção ao direito à vida, e não apenas o anseio em construir relação de equilíbrio e igualdade entre os sexos.
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NOTAS DE FIM 1
Acadêmica do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton.
² Pós-graduada em direito tributário pelo IEC – PUC Minas e em direito do trabalho e previdenciário pelo CAD – Centro de Atualização em Direito, mestre em direito do trabalho na PUC Minas. Advogada Trabalhista. Professora do Centro Universitário Newton Paiva. ** Daniela Lage Mejia Zapata; Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo.
MARTINS, Sergio Pinto. Práticas Discriminatórias contra a mulher e outros estudos. São Paulo: LTR, 1996.
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AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS OCORRIDAS EM BELO HORIZONTE EM 2013: o direito de manifestação e a segurança pública Carla Franca Gusmão de Freitas1 Ludmila Stigert2 Banca examinadora** RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal, discutir sobre as manifestações ocorridas em Belo Horizonte bloqueando ruas, estradas, causando transtorno no trânsito e cerceando o direito de ir e vir da população que querem e têm de se locomover para produzir, trabalhar, ir a hospitais e realizar demais atividades, ao mesmo tempo em que se deve garantir o direito de reunir. PALAVRAS-CHAVE: Manifestação, direito de locomoção, direito de reunir, direitos fundamentais, princípio da proporcionalidade. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Evolução Histórica dos Direitos Fundamentais: As dimensões de direitos; 3 Movimentos Sociais; 3.1 Conceito; 3.2 Origens; 3.3 Contexto dos movimentos sociais no Estado Democrático de Direito; 4 Manifestações ocorridas no município de Belo Horizonte em 2013; 5 Os Conflitos Principiológicos: A concorrência dos direitos fundamentais; 5.1 Os direitos fundamentais; 5.2 Direito de liberdade; 5.2.1 Liberdade de locomoção; 5.2.2 Liberdade de reunião; 5.3 A colisão Principiológica e aTécnica da Ponderação de bens e/ou valores em conflito; 6 Considerações finais; Referências.
1. INTRODUÇÃO O Estado Democrático de Direito tem os direitos fundamentais como a espinha dorsal do constitucionalismo moderno, sendo que os princípios fundamentais estabelecem a essência para a aplicação adequada dos direitos fundamentais, e a busca pela sua efetividade é um processo contínuo e permanente. No entanto, a proteção e o respeito aos direitos e garantias fundamentais, pauta-se, dentre outros, no artigo 5º da CR/88, onde se tem a busca pela efetividade, o direito a vida, liberdade ideológica, liberdade de manifestação, segurança pública, igualdade e demais direitos amparados. A colisão dos direitos fundamentais é um tema corriqueiro nos dias atuais face à complexidade das relações sociais e se ancora no conflito entre dois ou mais direitos fundamentais em uma mesma situação, como o direito de manifestar e a segurança jurídica. As manifestações sociais ocorreram durante a realização da Copa das Confederações em 2103 e durante a realização da Copa do Mundo entre junho e julho de 2014, trazendo implicações quanto à fruição dos direitos fundamentais entre os cidadãos mineiros. A temática ganha relevo e mero destaque, uma vez que, houve uma grande discussão do tema, pois as manifestações aconteceram em todo o país e em Belo Horizonte, com alguns manifestantes reivindicando pedidos genéricos, como o fim da corrupção, pedidos de paz, saúde, e demais outros pedidos, ocasionando transtorno para os demais munícipes mineiros. Consequentemente as manifestações são realizadas em locais públicos, bloqueando ruas, avenidas, estradas, causando transtorno no trânsito e cerceando o direito de ir e vir da população que querem e têm de se locomover para produzir, trabalhar, ir a hospitais e realizar demais atividades, ao mesmo tempo em que se deve garantir o direito de reunir. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: AS DIMENSÕES DE DIREITOS Os direitos fundamentais constituem a espinha dorsal do constitucionalismo moderno e tem como espécies os direitos individuais, os direitos sociais, os direitos políticos, os econômicos, os difusos e os
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coletivos. Estes direitos encontram-se positivados na Constituição de um determinado Estado. Por oportuno, faz-se necessário, inicialmente, trazer uma breve contextualização histórica acerca dos direitos fundamentais, para após se aprofundar no tema proposto no presente trabalho. E como se poderá observar, a idéia de direitos fundamentais retoma o período clássico, desde a democracia ateniense ou a república romana já se percebe resquícios de direitos em prol da pessoa humana. Vasak (1979) propôs a divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, as quais têm por fundamento não a ótica sucessória (de substituição da anterior pela posterior), mas sim a interacional, de complementação. Cada dimensão representa a conquista pela humanidade de novos direitos. Os pensamentos religiosos e filosóficos contribuíram e muito para o que mais tarde seria o dito determinados direitos naturais e inalienáveis pelo simples fato do ser humano existir. Foi na filosofia clássica greco – romana e no pensamento cristão que sobrevieram os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens. Segundo Sarlet (2004 p.44-45): De particular relevância, foi o pensamento de Santo Tomás de Aquino, que, além da já referida concepção cristã da igualdade dos homens perante Deus, professava a existência de duas ordens distintas, formadas, respectivamente, pelo direito natural, como expressão da natureza racional do homem, e pelo direito positivo, sustentando que a desobediência ao direito natural por parte dos governantes poderia, em casos extremos, justificar até mesmo o exercício do direito de resistência da população. Porém foi na Inglaterra, na Idade Média, por volta do século XIII, que surgiram as primeiras limitações dos poderes do Estado com a assinatura da Magna Carta, pelo rei João Sem Terra, a qual imposta pelos bispos e barões ingleses. A Magna Carta possuía ideias de limitações do poder de Estado e garantia dos direitos fundamentais. Entretanto, tal documento servia apenas para garantir direitos a uma determinada parcela da população que eram os barões, proprietários de terras, não estendendo os direitos feudais para todo o povo.
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Com a Reforma Protestante houve uma grande e significativa mudança, pois todo o contexto social da época passa a ser indagado pela população, tendo como aliado o Iluminismo. O iluminismo, baseado na razão, deixou de lado a explicação da vontade divina, passando a população e estudiosos a entender e compreender que a explicação de tudo assenta-se na razão humana. Os pensadores de grandes destaques do século XVII e XVIII, na época do iluminismo foram: Locke3, Montesquieu4 e Rosseau5. Após a Magna Carta (1215), destaca-se a Petition of Rights (1628), imposta ao rei Carlos Iº, o Habeas Corpus Act (1679) assinada por Carlos II, e o Bill of Rights (1689). Tais declarações garantiam à população alguns direitos fundamentais, limitando o poder absoluto daquela época e fazem parte do início do processo de afirmação histórica dos direitos fundamentais na Inglaterra. Além desses fatos históricos marcantes, podemos destacar também a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) sendo esta última fundamental para o reconhecimento dos direitos fundamentais, como preceitua Sarlet (2004, p 52): Ainda neste contexto, é de lembrar que, enquanto na França o sentido revolucionário da Declaração de 1789 radica na fundamentação e uma nova Constituição, no processo constitucional norte – americano este sentido revolucionário das declarações de direitos radica na independência, em consequência da qual se faz necessária uma nova Constituição. A contribuição francesa, no entanto, foi decisiva para o processo de constitucionalização e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas Constituições do século XIX. A Declaração Francesa teve por base os conceitos de liberdade, igualdade, fraternidade, propriedade, legalidade e garantias fundamentais (síntese do pensamento iluminista liberal e burguês), mas seu ponto central era a eliminação dos privilégios especiais, antes garantidos para os estamentos do clero e da nobreza. Com a deflagração da Revolução Francesa no século XVIII, surgiram os direitos civis, os quais imputados como de primeira dimensão, sobretudo para garantir maior liberdade do indivíduo perante o Estado opressor, como bem destaca Sarlet (2004, p. 54): São, por este motivo, apresentados como direitos de cunho “negativo” uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. No entanto, o jurista ora citado lembra que no decorrer do século XIX surgiram amplos movimentos reivindicatórios em luta pelo reconhecimento progressivo de direitos, dado o impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos decorrentes do individualismo exacerbado. Os movimentos, insuflados pelas doutrinas socialistas, buscavam resgatar a intervenção do Estado na realização da justiça social. Foi nessa oportunidade que surgiram os direitos ditos como de segunda dimensão, ou seja, direitos econômicos, sociais e culturais, os quais consubstanciados em âmbito constitucional, especialmente, nas Constituições Mexicana de 1917 e Alemã de 1919 (Constituição de Weimar). Ou seja, a sociedade clamava pela materialização dos direitos formais, isto é, era necessário materializar o direito formal burguês do início do século XVIII. Sarlet salienta ainda que (2004, p. 55-56): Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado. Caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a
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prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc., revelando numa transição das liberdades formais abstratas paras liberdades materiais concretas, utilizando-se a formulação preferida na doutrina francesa. Após a 2ª Guerra Mundial e suas consequências desastrosas para os Estados e seus cidadãos, surge à necessidade de se resgatar o valor da dignidade da pessoa humana, surgindo assim os direitos de terceira dimensão, os quais, segundo Sarlet (2004, p. 56-57): Trazem como nota distintiva o fato de ser desprenderem, em princípio, da figura do homem- indivíduo como seu titular, destinando-se a proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Tais direitos, ressalta Paulo Bonavides, têm por destinatário precípuo o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Bonavides (2010) acrescenta ainda uma quarta e quinta geração de direitos fundamentais. O renomado autor aponta os seguintes direitos de quarta geração: direito à “globalização, à democracia, à informação e ao pluralismo”. Como de quinta geração o autor aponta, principalmente, o “direito à paz”. Como se verifica, o reconhecimento dos direitos fundamentais é um processo histórico evolutivo que transcorre vários séculos. Mais do que isso, a amplitude conferida pelos direitos fundamentais é marcada por sua contínua majoração e reinterpretação. Trata-se de um processo não findo, em constante evolução. Até os dias atuais ainda se percebe o clamor social buscando o reconhecimento de novos direitos. Destaca-se também, ao final, que a compreensão dos direitos fundamentais deve ser feita de maneira a compreendê-los como um sistema uno, indivisível que tem por escopo proteger e edificar a dignidade da pessoa humana. 3. MOVIMENTOS SOCIAIS 3.1 Conceito A modernidade e sua instabilidade reinante abriram caminhos para a disseminação dos chamados movimentos sociais. Existem diversas variedades de movimentos sociais, podendo existir movimentos que duram dias, semanas, meses ou somente algumas horas. Os movimentos sociais ocorrem e surgem em situações de inquietude social, de insatisfação com o sistema atual, mudanças em questões públicas, desejos e até mesmo ampliação de determinados direitos civis. Em contrapartida aos movimentos sociais, surgem grupos de oposições para a permanência do status a quo. O conceito de movimentos sociais incide em uma multiplicidade de interpretações, desde o meio acadêmico, popular até o político. No meio acadêmico da sociologia, a terminologia “movimento social’’ surgiu com Lorens Von Stein, por volta de 1840, quando o mesmo defendia a importância de uma ciência da sociedade, na qual dedicaria aos estudos dos movimentos sociais. Segundo Gohn (2011, p 330): Até os anos 50, o conceito de movimento social sempre esteve associado ao de luta de classes e subordinado ao próprio conceito de classe, que tinha centralidade em toda análise. Cumpre destacar também que o conceito era utilizado em acepções amplas, envolvendo períodos históricos grandes. Denominavam-se movimentos sociais as guerras, os movimentos nacionalistas, as ideologias radicais: nazismo, fascismo, etc,; assim como as ideologias libertárias e religiosas.
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Historicamente, o conceito de movimentos sociais tem sofrido diversas alterações, com diferentes interpretações, uma vez que a variação se dá pelos paradigmas teóricos que cada autor se embasa. Gohn (2011, p 251-252) continua aduzindo que: Movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil. A ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e políticocultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, em espaços coletivos não - institucionalizados. Os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública (estatal e não – estatal) e privada; participam direta ou indiretamente da luta política de um país, e contribuem para o desenvolvimento e a transformação da sociedade civil e política. Estas contribuições são observadas quando se realizam análises de períodos de média ou longa duração histórica, nos quais se observam os ciclos de protestos delineados. Os movimentos participam portanto da mudança social histórica de um país e o caráter das transformações geradas poderá ser tanto progressista como conservador ou reacionário, dependendo das forças sociopolíticas a que estão articulados, em suas densas redes; e dos projetos políticos que constroem com suas ações. Eles têm como base de suporte entidades e organizações da sociedade civil e política, com agendas de atuação construídas ao redor de demandas socioeconômicas ou político- culturais que abrangem as problemáticas conflituosas da sociedade onde atuam. A matéria dos movimentos sociais se insere na trandisciplinariedade da sociologia e da política, ocupando lugar de evidência na área das ciências sociais, sendo a forma mais influente de ação coletiva. Em síntese, como exposto e salientado, os movimentos sociais referem-se à ação dos homens ao longo da história, envolvendo um pensar e um fazer que sejam externados através das ideias que os motivam ou fundamentam a ação. 3.2 Origens A origem dos movimentos sociais se verifica, sobretudo, com a deflagração do movimento iluminista, por volta do século XVIII, momento a partir do qual o homem se tornou o centro do mundo, rompendo-se com a concepção medieval que destacava Deus e a Igreja no centro do universo. Os iluministas davam importância para a razão e questionavam a justiça, a intolerância religiosa e os privilégios dados a uma determinada parcela da população. Segundo Heerdt (2000, p 211): Encontrar a justificativa para esses pressupostos e impô-los a uma sociedade ainda influenciada pelos valores medievais era o grande objetivo do pensamento iluminista. Para tanto, os iluministas propuseram a reorganização da sociedade e a adoção de uma política centrada no homem, que lhe garantisse sua total liberdade, diferentemente do Absolutismo. O iluminismo trouxe um radicalismo nos setores da política, da economia, do meio social e religioso, permeando todos os níveis da
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sociedade. A nova era iluminista influenciou a Revolução Francesa de 17896, trazendo os ideais do iluminismo à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, defendendo à liberdade, à igualdade, à inviolabilidade da propriedade e o direito de resistir à opressão. A Revolução Francesa não pode ser vista como um fato isolado, pois, a partir desse movimento, aconteceram profundas transformações e reviravoltas na política, na economia e nos pensamentos de todo o ocidente, sendo o divisor de águas da história da Idade Moderna e Contemporânea, conforme salienta Heerdt (2000, p 215): A partir deste processo assiste-se a uma profunda transformação na sociedade europeia; uma reviravolta no campo sócio político e no modo de pensar. É evidente que, na verdade, apenas uma parte da população se beneficiou das novas conquistas mas, de qualquer forma, o movimento teve ressonância e mudaria os destinos do Ocidente. A Revolução Francesa (1789) é o evento mais importante da História Ocidental, tendo em conta a ruptura com a estrutura tradicional, tais como Igreja, religião, nobreza, família real e praticamente todos os costumes da época, trazendo mudanças individuais e psicológicas, sendo o primeiro modelo durável de um povo decidindo o seu próprio destino. Este movimento histórico mudou para sempre o rumo da civilização ocidental, exportando a experiência da democracia e inspirando revoluções pelo resto do mundo. 3.3 Contexto dos movimentos sociais no Estado Democrático de Direito No final da década de 1960, deflagraram-se movimentos sociais em diversos países, os quais tiveram como ensejo os movimentos estudantis, movimentos pelos direitos humanos, feministas (1960 e 1970), os antinucleares e ecológicos (década de 1980), as campanhas pelos direitos dos homossexuais (década de 1990), e demais outros movimentos. Os movimentos sociais do final dos anos sessenta são observados como distintos daqueles das décadas anteriores. Isso se dá devido a mudança do contexto histórico, bem como pela mudança de valores das gerações seguintes. Nesse diapasão alude Giddens (2012, p 719): A geração pós -1945 não teve a experiência da depressão e dificuldade da geração de seus pais, bem como a experiência pessoal da guerra. Ao contrário, eles se acostumaram com a paz e riqueza do pós guerra, crescendo no contexto de uma “’ socialização pós – escassez’’, na qual o obstáculo histórico da escassez de alimentos parecia ter sido resolvido para sempre. Os novos movimentos sociais estão intimamente ligados à qualidade de vida, ao bem estar, aos direitos dos animais, ao meio ambiente, pelos direitos dos deficientes e dos homossexuais. Os manifestantes utilizam de uma variedade de protestos, manifestações e até mesmo festivais alternativos7. Em outras linhas, esses novos movimentos sociais não mais se restringem ao ensejo apenas da classe operária, como aqueles anteriores a 1945, passando a vislumbrar novos direitos, como de pessoas aposentadas, estudantes, donas de casa, feministas, conservadores tradicionais, socialistas e manifestantes de primeira ocasião. Não se pode ainda deixar de ressaltar que esses novos movimentos sociais passaram a contar com o uso dos meios de comunicação para adesão de adeptos, importante instrumento de difusão das ideias defendidas, sobretudo a partir do final do século XX e início do século XXI. A exploração de imagens de vídeo, rede mundial de internet, re-
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des sociais, mensagens de texto via telefones celulares e correios eletrônicos, foram conquistas tecnológicas desses movimentos, meios a partir dos quais organizadores passaram a promover encontros, campanhas e manifestações. Enfim, percebe-se que a difusão de ideias tem sido a tendência dos novos movimentos sociais, com o uso de todos os recursos tecnológicos8 à disposição, tudo com vistas a uma maior eficácia nas reivindicações e maior pressão sobre o poder público. 4. MANIFESTAÇÕES OCORRIDAS NO MUNICIPIO DE BELO HORIZONTE EM 2013 Em 2013 diversas cidades do Brasil foram palcos de diferentes manifestações sociais, e Belo Horizonte foi umas das cidades cenário para a ocorrência desses movimentos. As manifestações aconteceram durante a realização da Copa das Confederações em 2013 e durante a realização da Copa do Mundo entre junho e julho de 2014 e ficaram conhecidas como “Manifestações de Junho” ou “Jornadas de Junho” e também como “Manifestações dos 20 centavos”. O início das manifestações ocorreu com o aumento dos preços das passagens de ônibus em São Paulo, sendo este o estopim para o início dos protestos em diversas cidades, sobretudo nas principais capitais do país. O “Movimento Passe Livre” que existe desde 2006 marcou para o dia 06 de junho de 2013 a primeira manifestação, sem evidências nas mídias. No dia 17 de junho de 2013 as manifestações se espalharam pelas cidades do país, reunindo aproximadamente 230 mil manifestantes em 12 cidades. Alguns manifestantes reivindicavam por pedidos genéricos, como o fim da corrupção, os gastos públicos ocorridos para a realização dos eventos esportivos, pedidos de paz, saúde, educação e também solicitavam a não vinculação de bandeiras de partidos políticos as manifestações. Em 19 de junho de 2013 o aumento das passagens de ônibus de São Paulo e Rio de Janeiro foram revogados, e o “Movimento Passe Livre” marca manifestação para o dia seguinte com o intuito festivo de comemorar a revogação dos aumentos das passagens. Aconteceram manifestações diariamente em diversas cidades do Brasil entre os dias 17 a 21 de junho, incluindo Belo Horizonte. Porém, durante tais eventos, pessoas mascaradas começaram a participar dos protestos, utilizando-se de atos de vandalismo ao patrimônio alheio público e privado. Nesse ínterim, ocorreram grandes deteriorizações, muita violência e muito contra-ataque por meio da Polícia Militar. No entanto, em 21 de junho de 2013 o “Movimento Passe Livre” anuncia a sua retirada das ruas em atos de manifestações. Em Belo Horizonte, especificamente estima-se que a manifestação do dia 17 de junho reuniu aproximadamente 35 mil manifestantes, com horário de início do protesto pacífico ao meio dia na Praça Sete. Depois, os manifestantes foram caminhando pela Avenida Antônio Carlos, sentido Pampulha, região onde fica o Estádio do Mineirão. A polícia de Minas Gerais fez um cerco próximo ao Mineirão para impedir a aproximação dos manifestantes ao Estádio, pois no momento estava acontecendo uma partida de futebol, onde as seleções Nigéria e Taiti jogavam pela Copa das Confederações. Houve confronto direto entre os policias militares e manifestantes a partir do momento em que os protestantes tentaram furar o cerco policial, também houve confronto entre polícia e manifestantes nas proximidades da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, e alguns ônibus de transporte coletivo da capital mineira foram pichados, além de bancos, concessionárias e outros estabelecimentos comerciais terem a sua propriedade atacada e deteriorada. Para conter os ânimos dos manifestantes a polícia utilizou balas de borrachas e gás lacrimogênio, e, com isso, 10 manifestantes ficaram levemente feridos com estilhaços e armas usadas pela Polícia
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Militar para conter os protestantes. Na semana anterior do dia 17 de junho o Tribunal de Justiça de Minas Gerais em decisão judicial proibiu que, as manifestações fossem realizadas nos dias em que ocorressem jogos no Estádio do Mineirão, contudo, a ordem judicial foi ignorada pelos manifestantes. Esses manifestantes pertencem a diferentes grupos da sociedade abrangendo, idosos, estudantes, crianças, donas de casas, famílias, ambientalistas, professores, sindicatos, movimento Hare Krishna, artistas, movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) dentre outros. No dia 22 de junho de 2014, Belo Horizonte foi palco de um cenário de muita destruição, vandalismo e cerceamento de locomoção, uma vez que, milhares de pessoas foram às ruas concentrando-se às 10: 00 horas, para o encontro pacifico na Praça Sete. Com isso, a Polícia Militar montou um esquema de desvio do trânsito da Avenida Afonso Pena e Avenida Amazonas, uma vez que os manifestantes bloquearam a passagem nessas avenidas. Logo mais, os manifestantes e o Batalhão de Polícia de Eventos (BPE), fecharam um acordo de que caminhariam pela Avenida Antônio Carlos até a Igreja São Francisco na região da Pampulha onde fica o Estádio do Mineirão, local onde acontecia a realização do jogo entre Japão e México. A caminhada até o Mineirão bloqueou totalmente a via pública, impedindo a utilização e acesso da avenida, uma das mais importantes de Belo Horizonte. Entretanto, mais uma vez os manifestantes queriam ultrapassar o limite da demarcação de segurança do Mineirão, e não satisfeitos, fizeram barreiras em vias públicas nas quais atearam fogo, fazendo do local uma cena de guerra, com muitas fumaças e explosões tomando conta da via pública. Alguns manifestantes invadiram uma concessionária de veículos que ficava na região da Pampulha, destruindo, saqueando e depredando toda a empresa, causando enormes prejuízos para o dono da concessionária. A tropa de choque, cavalaria e outras unidades da Polícia Militar, juntamente com a Força Nacional de Segurança Pública, usaram disparos de bala de borracha, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e spray de pimenta, tudo com o intuito de conter os ânimos e dispersar os manifestantes, enquanto isso a Polícia Militar era atacada pelos protestantes com pedras, bombas de fabricação caseiras, rojões e coquetéis molotov. Durante o confronto, dois manifestantes caíram de um viaduto e se feriram, além do que, os demais cidadãos de Belo Horizonte foram afetados pelo fechamento de algumas das principais vias de acesso devido a manifestação, trazendo empecilhos à livre locomoção, causando transtorno no trânsito e cerceando o direito de ir e vir da população que querem e têm de se locomover para produzir, trabalhar, ir a hospitais e realizar demais atividades. Vale ressaltar que, algumas vias públicas foram fechadas pela própria Polícia Militar a fim de impedir que os manifestantes chegassem a determinados pontos da cidade, e com o intuito de assegurar a integridade e segurança dos demais habitantes. Durantes os dias das manifestações os munícipes de Belo Horizonte sofreram com a lentidão e em alguns trechos com a paralisação total do trânsito, trazendo caos e impedimento aos demais de se locomover. Ou seja, percebe-se que os movimentos ocorridos em Belo Horizonte trouxeram consequências quanto á fruição dos direitos fundamentais por parte dos cidadãos mineiros. Outrossim, a própria manifestação em si mesma também é uma materialização do direito fundamental de participação, liberdade de consciência, liberdade de
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XV: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.
associação, dentre outros direitos correlatos á liberdade individual e coletiva. O tema denota a relatividade inerente à concepção da fruição e da efetividade dos direitos fundamentais. 5. OS CONFLITOS PRINCIPIOLÓGICOS: A CONCORRÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 5.1 Os direitos fundamentais A Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, contempla um rol de direitos fundamentais que coexistem em harmonia, não existindo hierarquia entre os mesmos. Os direitos fundamentais são normas constitucionais que possuem superioridade material e formal. Na clássica formulação de Kelsen (1979), a Constituição ocupa o patamar mais alto da pirâmide, podendo dizer o mesmo dos direitos fundamentais, conforme Marmelstein (2011, p 271): O mesmo de pode dizer dos direitos fundamentais, já que também possuem a natureza de norma constitucional. Eles correspondem aos valores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder constituinte), que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada. Eles são (perdoem a tautologia) fundamentais porque são tão necessários para a garantia da dignidade dos seres humanos que são inegociáveis no jogo político. Os direitos fundamentais pertencem a mais alta posição, estando acima das leis e compondo o alicerce de todo o ordenamento jurídico. Marmelstein (2011, p 271) salienta que: Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais, em razão da rigidez constitucional, estão protegidos do legislador ordinário. Se não fosse assim, então não seriam direitos diferentes dos outros. O que destaca esses direitos dos demais é justamente a sua supremacia formal e material. Eles estão acima das leis, constituindo o fundamento ético de todo ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais foram criados, em sua origem, como meios de proteção dos indivíduos contra o abuso do Poder Público, sendo o mesmo o sujeito passivo e o particular o titular dos direitos. Tal relação pode se chamar de eficácia vertical, em uma relação desarmônica, na qual o Estado encontra-se em uma posição superior à do cidadão. Contudo, os direitos fundamentais também se estendem nas relações entre os particulares, possuindo capacidade de acarretar danos permanentes aos princípios constitucionais. Com isso, aplicam-se os direitos fundamentais nas relações entre os particulares, transformando-se em instrumentos de modelação e de conformação da sociedade, denominando-se de eficácia horizontal. 5.2 Direito de liberdade O caput do artigo 5º da CR/88 contempla alguns direitos fundamentais individuais, e o princípio da liberdade é um desses direitos. A Constituição contempla as diversas liberdades com o intuito de preservar a sua garantia através de diversas normas. Dentre as várias liberdades asseguradas pela CR/88, a liberdade de expressão é um dos mais importantes e indispensáveis direitos fundamentais. A liberdade de expressão está expressa no artigo 5º, inciso IV, da CR/88: Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
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A vedação do anonimato possui o intuito de resguardar a imagem do ofendido em uma eventual manifestação de pensamento exorbitante. Já o inciso IX, da CR/88, contempla a liberdade de expressão da atividade intelectual artística, cientifica e de comunicação, independente de censura: Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. . A liberdade de expressão possui diversas formas de serem executadas, através de diversos meios, como por exemplo, através de discursos, músicas, filmes, manifestações artísticas, discursos, cartazes, desenhos, comunicação de pensamento e ideias através de manifestações sociais. Ademais, o direito de locomoção e o direito de reunião também estão claramente abrangidos pelo direito de liberdade, possuindo ligação à liberdade de expressão e a democracia. O direito de reunião e o direito de manifestação possuem um papel fundamental para a democracia, na medida em que possibilita a participação de todos nas decisões políticas do país, visando uma melhor efetividade nas manifestações e uma maior imposição sobre o poder público. Outra garantia constitucional indispensável e contido no direito de liberdade é a liberdade de associação, uma vez que possui papel fundamental para o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos e o autoconhecimento. Os cidadãos podem associar-se para fins religiosos, econômicos, sociais ou até mesmo para serem ouvidos, possuindo forte relação com a participação democrática dos indivíduos e a preservação da liberdade de expressão. Em princípio o ser humano é livre para escolher quais lugares deseja frequentar, qual decisão tomar, qual religião deve acreditar, qual profissão seguir e assim por diante, resultando os diversos direitos fundamentais que emanam do direito de liberdade. Dessa forma, a liberdade de escolhas é valiosa, uma vez que inúmeros direitos fundamentais emanam desse princípio, devendo o Estado tratar os cidadãos como agentes capazes e responsáveis de tomar as decisões que lhe cabem por conta própria. 5.2.1 Liberdade de locomoção
A liberdade de locomoção está prevista no artigo 5º, inciso XV da Constituição Federal de 88: Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. No entanto, a liberdade de locomoção não é somente a questão do deslocamento, também esta intimamente ligada com o acesso, a permanência, a entrada, saída e o deslocamento dentro do território nacional. Entretanto, o direito de locomoção não é absoluto, assim como qualquer outro direito fundamental, podendo vir a sofrer limitações
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para a convivência harmoniosa dos demais direitos fundamentais. Conforme enfatiza Marmelstein (2011, p 112-113): A liberdade de locomoção, assim como qualquer direito fundamental, não é absoluto, sendo frequentemente limitado a fim de permitir a convivência harmoniosa das liberdades. Se o direito de locomoção fosse um direito absoluto, que não admitisse restrições, então todos os sinais de trânsito (semáforos) deveriam ser proibidos! Seria totalmente inviável uma situação assim. Portanto, é perfeitamente aceitável que se estabeleçam limites para o exercício do direito, como forma de permitir que todos possam usufruí-lo na sua máxima extensão possível. 5.2.2 Liberdade de reunião
A liberdade de reunião está prevista no artigo 5º, inciso XVI da Constituição Federal de 88: Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...] XVI: todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. O direito de reunião está seguramente ligado ao sistema democrático de direito, uma vez que a composição da democracia é a participação do povo nas decisões políticas. Pressupõe como direito de reunião um agrupamento pacífico de pessoas sem a utilização de armas em um determinado lugar, não sendo necessário pedir permissão ao Poder Público para a reunião, bastando apenas realizar um comunicado prévio à autoridade competente, com o intuito de evitar duas reuniões no mesmo lugar. 5.3 A Colisão Principiológica e a Técnica da Ponderação de bens e/ou valores em conflito As colisões de direitos fundamentais acontecem quando há conflito de dois direitos fundamentais em uma mesma situação, fazendo-se necessário utilizar o princípio da proporcionalidade e a técnica da ponderação em prol da solução. O direito de locomoção e o direito de reunião estão previstos no artigo 5º e são iguais perante a lei. Um não pode se sobrepor ao outro, como ensina o nobre professor Alexandre de Moraes (2010, p 32-33): Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizarse do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. A solução a ser tomada em situação de conflito ocasionará na restrição de um dos direitos do caso concreto, sendo que a restrição em alguns casos poderá ser total, devendo-se utilizar a ponderação
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de valores, como preceitua Marmelstein (2011, p 402): Todas as situações envolvendo o fenômeno da colisão de direitos fundamentais são de complexa solução. Tudo vai depender das informações fornecidas pelo caso concreto e das argumentações apresentadas pelas partes do processo judicial. Daí por que é preciso partir para a ponderação para solucionar esse conflito. Portanto, a consideração dos direitos fundamentais como princípios, denota aceitar que não existem direitos absolutos e que todos os direitos fundamentais são relativos, pois estão suscetíveis a restrições. Não obstante, não significa dizer que os direitos fundamentais, com o seu status constitucional, possam ser demasiadamente suprimidos, uma vez que, entra em cena o princípio de interpretação dos direitos fundamentais. O princípio da proporcionalidade é a ferramenta imprescindível para avaliar leis e atos que cerceiam direitos fundamentais, sendo conhecido como “limite dos limites’’, tendo por objetivo fazer com que as restrições de direitos fundamentais não alcancem dimensões desproporcionais. Para a aplicação do princípio da proporcionalidade é necessário utilizar as três dimensões que devem ser avaliadas sucessivamente, quais sejam: a adequação, a necessidade ou vedação de excesso e de insuficiência, e proporcionalidade em sentido estrito. O critério de adequação verifica se o meio escolhido é apropriado e propício para atingir sua finalidade. Se assim não for para alcançar o desfecho, resta desatendida o quesito da adequação. Segundo Marmelstein (2011, p 413): Vale ressaltar que a adequação também exige que uma medida restritiva de direitos fundamentais para ser válida, seja idônea para o atendimento de uma finalidade constitucionalmente legítima. Se o objetivo visado pela medida buscar uma finalidade que não seja compatível com a Constituição, ela não será válida. O quesito da necessidade possui a ideia de vedação de excesso, devendo a medida ser rigorosamente necessária e verificando se o meio escolhido é menos gravoso para o indivíduo e se conjuntamente protege a norma constitucional e é eficaz no objetivo pretendido. No mesmo quesito também está inserido a concepção de vedação de insuficiência, no intuito de que o Estado deve proceder com competência para preservar os direitos fundamentais. Como explica Marmelstein (2011, p 416): A vedação de insuficiência decorre diretamente do dever de proteção e de promoção já mencionados, de modo que o poder público deve adotar medidas suficientes para impedir ou para reprimir as violações aos direitos fundamentais. No que se refere ao quesito da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação) deve observar se a medida escolhida trará mais benefícios do que prejuízos, sempre observando se o benefício adquirido ocasionará danos aos direitos fundamentais mais importantes do que os direitos que a medida escolhida pretendeu proteger. Para tanto, é imprescindível utilizar os exercícios de balanceamento ou de ponderação a fim de buscar um resultado adequado com a Constituição. A técnica da ponderação é uma técnica indispensável com a finalidade de justificar as decisões em conflitos de direitos fundamentais, aos quais as técnicas de hermenêutica não são satisfatórias, exatamente por não poder adotar critérios hierárquicos e cronológicos. Segundo Marmelstein (2011, p 423):
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No fundo, a ponderação não passa de um dever de argumentar com transparência, forçando o julgador a expor, com ética e consistência, todos os motivos relevantes que o levaram a decidir em favor de um ou de outro princípio constitucional. No entanto, utilizando a técnica da ponderação corretamente e pautada na ética argumentativa, a técnica da ponderação demonstra ser o melhor método que se tem até o momento em assunto de interpretação dos direitos fundamentais. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A liberdade de reunião liga-se a liberdade de manifestação de pensamento, que abrange o direito de manifestação, tratando-se de uma garantia constitucional e um direito individual, aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, porém de uso coletivo, não sendo possível determinar todos os titulares do direito, sendo portando um direito difuso. Com vistas a solucionar o problema que se tornou as manifestações no centro da capital mineira, e preservar a garantia do direito de locomoção dos demais munícipes e o direito de reunião, necessário se faz analisar ocasiões em cada caso concreto, devendo buscar a conciliação entre os mesmos e uma aplicação de cada um em alcances variáveis, sem afastar e trazer danos aos direitos fundamentais. Ademais, deve-se observar que embora os direitos fundamentais contenham status constitucional e encontram-se na mais alta posição conforme a pirâmide de Kelsen, os mesmos podem sofrer restrições caso estejam colocando em risco a convivência de outros valores constitucionais. No entanto, tais questões podem ser resolvidas com a técnica de ponderação de valores e o princípio da proporcionalidade, não ocasionando danos aos munícipes com o intuito de limitar, suprimir o direito de reunião e o direito de locomoção, tentando conciliar e harmonizar os interesses cada caso concreto.
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NOTAS DE FIM 1 Acadêmica do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Público, advogada e professora do curso de Direito do Centro Universitário Newton. 3 Locke (1632-1704) defendia a existência dos direitos naturais e do direito de resistência. Tinha um caráter utilitarista e desenvolveu a necessidade de proteção dos direitos naturais (vida, propriedade e liberdade) mediante a passagem do Estado de Natureza para a sociedade civil. 4 Montesquieu (1689 -1755) defendia a ideia da separação dos poderes como um meio de evitar que os poderes fossem concentrados justamente para evitar o abuso de poder. 5 Rousseau (1712-1778) defendia a ideia do Estado como resultante da vontade geral, a ideia do ‘’contrato social’’, ou seja, desenvolveu a perspectiva da soberania popular. 6 A Revolução Americana de 1776, por seu turno, também representa um grande marco na origem dos Movimentos Sociais, igualmente influenciada pela era iluminista, ajudando e muito a inflamar os ânimos dos franceses para a Revolução Francesa, buscando o direito a liberdade, a vida e a procura da felicidade, definidos como inalienáveis e com origens divinas.
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7 Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem – indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizandose, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Dentre os direitos fundamentais da terceira dimensão consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. (SARLET, 2004, p.56) 8 A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. A democracia positivada enquanto direito da quarta geração há de ser, de necessidade, uma democracia direta. Materialmente possível graças aos avanços tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema. Com efeito, em nosso tempo a alforria espiritual, moral e social dos povos, das civilizações e das culturas se abraça com a idéia de concórdia. Tal elemento de concórdia, aliás, vai deveras além da presente direção, propelido da necessidade de criar e promulgar aquele novo direito fundamental: o direito à paz enquanto direito de quinta geração. A ética social da contemporaneidade cultiva a pedagogia da paz. Impulsionada do mais alto sentimento de humanismo, ela manda abençoar os pacificadores. Elevou-se, assim, a paz ao grau de direito fundamental da quinta geração ou dimensão (as gerações antecedentes compreendem direitos individuais, direitos sociais, direito ao desenvolvimento, direito à democracia). (BONAVIDES, p. 571, 590,592)
**Ludmila Stigert; Isabela Dalle Varela.
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AS DIFERENÇAS ENTRE SEGURADORAS E AS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO VEÍCULAR: um enfoque jurídico Cassiano Gabriel de Oliveira Silva1 Tatiana dos Reis Silva Reche2 Banca examinadora** RESUMO: Estudo das principais diferenças entre seguradoras e de associações de proteção veicular. Este estudo contribui para um enfoque jurídico de discussões de legalidade no mercado atual por meio de lei e jurisprudências demonstrando a importância de inclusão social para os desamparados pelas seguradoras. PALAVRA CHAVE: Associação; Proteção veicular; Mutualismo; Susep; Seguradora; SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Principais Diferenças entre Seguradora e Associação de Proteção Veicular; 3 Do Enquadramento Legal das Associações de Proteção Veicular no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 4 Constitucionalidade das Associações de Proteção Veicular e a Consequente Institucionalização; 4.1 A Institucionalização das Associações de Proteção Veicular; 4.2 Associação de Proteção Veicular como Instrumento de Inclusão Social; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Devido ao grande aumento das associações de proteção veicular nos dias hodiernos, tendo em vista o crescimento de mercado ao qual as seguradoras de proteção veicular não prestam serviços, percebe-se um alvo massivo, perante as associações, da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, responsável pelo controle e fiscalização do mercado de seguros. Ocorre que as seguradoras possuem uma série de exigências não estabelecidas pelas associações, tais como, não aceitar veículos acima de 10 anos de uso, determinar fatores para cálculo de risco - a idade do condutor, se possui garagem em casa e no trabalho, se possui menor de 25 anos que possa dirigir o veículo, enfim, são muitos fatores e dependendo destes, as seguradoras recusam o veículo. Desta forma, como um meio de inclusão social, tem-se que as associações de proteção veicular, formada por um grupo de pessoas (associados), com o mesmo intuito, qual seja, proteger seus veículos de fatores externos, que estejam fora do controle das suas vontades, promovem esta assistência por meio de contribuições e rateios mensais feitos pelos associados, dividindo os prejuízos destes. Destarte, pelos motivos acima expostos busca-se desconstituir a figura de “seguro pirata”, denominação dada pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) às associações, por entenderem que estas prestam serviços idênticos às seguradoras. Nesta ótica, objetiva-se comprovar que a relação apresentada pela SUSEP, por meios de processos administrativos e judiciais, visando desconstituir as associações e alegando que são seguros piratas ilegais e não regulamentados, encontra-se equivocada, o que será apresentado neste trabalho. 2 principais diferenças entre seguradora e associação de proteção veicular A priori, devemos saber as principais diferenças e definições entre as associações e seguradoras. As Associações são criadas, pura e simplesmente, para facilitar a negociação entre os participantes do programa de proteção automotivo, participantes estes com interesse na negociação, proteção de seus veículos.
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Para elucidar a simplificação basta imaginar o impasse ocasionado caso a contratação de uma oficina, para reparar um veículo acidentado, exigisse a assinatura de todos os integrantes do programa; seria, sem dúvida, o caos, que inviabilizaria o Sistema. Neste caso, percebe-se a importância da constituição da Associação, atuando como intermediária entre os verdadeiros titulares da proteção automotiva (associados) e os eventuais fornecedores de produtos e serviços (oficinas, por exemplo). Nesse diapasão, a associação é caracterizada como uma associação civil, legalmente constituída, atuando, portanto, em ramo completamente diverso da competência de atuação das seguradoras, tendo em vista que opera com Proteção Automotiva e não com Seguros Privados. Todavia, insta ressaltar um único parâmetro passível de comparação, apontado no quesito das finalidades e presentes em ambos os institutos, qual seja, a proteção do bem (no caso, veículos). Contudo, vislumbra-se praticamente esta equivalência, pois temos uma incontável série de diversidades, a iniciar-se por mais uma finalidade do seguro que inexiste na Proteção Automotiva, o lucro. Por isto, impossível e forçosa se faz a tentativa de criar identidade entre ambos. Os institutos do seguro e da proteção automotiva são completamente distintos, tendo cada um natureza jurídica própria, completamente diversa da do outro. Embora a gestão da Proteção Automotiva não traga qualquer similitude com o Seguro, conforme veremos a seguir, a sua teoria de fato traz alguma semelhança, pelo simples fato de que ambos baseiam-se no mutualismo, definido pela própria Seguradora relativamente ao seguro como: MUTUALISMO - Princípio fundamental, que constitui a base de toda operação de seguro. É pela aplicação do princípio do mutualismo que as empresas de seguros conseguem repartir os riscos tomados, diminuindo, desse modo, os prejuízos que a realização de tais riscos poderia lhe trazer. Tal princípio, entretanto, aplica-se igualmente à Proteção Automotiva, com a seguinte ressalva: Nos seguros em que há repartição dos riscos conforme a de-
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finição supracitada, o objetivo é diminuir ou evitar os prejuízos das seguradoras. Só acontece a título de exceção. No caso da Proteção Automotiva, a repartição dos riscos ocorre como regra, e implica em que todos os participantes do programa suportem os prejuízos sofridos por alguns. No caso das seguradoras, a menor incidência de eventos danosos aumenta o lucro das mesmas, sendo que o segurado possui a informação de quanto dos valores pagos foi de fato destinado ao pagamento dos sinistros. Já a proteção automotiva, a menor incidência de eventos danosos beneficia direta e exclusivamente aos participantes que arcam com um valor reduzido das indenizações, através do rateio. Do mesmo modo, uma das atividades visa o lucro, e a outra, visa o benefício mútuo dos optantes. Percebe-se claramente que, embora ambas as atividades sejam baseadas no mutualismo, as diferenças saltam aos olhos. Ademais, essa similitude/distinção não se reduz somente ao seguro e à proteção automotiva, ocorrendo, também, com o desconto de títulos e a operação de factoring, ambos caracterizados pela transferência de títulos a terceiros, mediante o recebimento imediato de seu valor, com dedução de um valor (ou percentual) previamente ajustado entre as partes. Entretanto, tal semelhança, exatamente como na hipótese em discussão, não é suficiente para confundir os dois institutos, caracterizando o primeiro como «desconto», assumindo o cedente a responsabilidade pela solvência do devedor, enquanto nas operações de factoring, como transferência de ativo, o cedente responde apenas pela existência do débito ou pela evicção. Outro exemplo da distorção das alegações das Seguradoras são as famigeradas reservas, essenciais no seguro para a garantia dos segurados que pagam o prêmio antecipadamente para, depois, se ocorrido o sinistro, pagar a indenização. Cumpre notar que a medida que desaparece o risco — venceu o prazo do seguro — a reserva é liberada, podendo ser livremente utilizada no negócio. Na proteção automotiva, a apuração do prejuízo precede ao pagamento do rateio e, feito este, os valores são divididos e quando arrecadados, são imediatamente utilizados na liquidação dos prejuízos, de tal forma que, ao se falar em reservas, elas seriam constituídas, no momento exato de sua liberação, o que seria, sem dúvida, um contrassenso. Definitivamente, portanto, não existe na relação das associações aqui entabulada a figura do “fornecedor de produtos e serviços”, nem do “consumidor”, onde um atua no mercado em busca de lucro, e o outro, sem vínculo algum com o primeiro, consome seus produtos. No caso em tela, ambos (associação e associados) possuem os mesmos objetivos e atuam juntos, inclusive assumindo obrigações conjuntamente, sem nenhuma das partes obterem lucro ou vantagem alguma. Assim, qualquer prejuízo sofrido pela Associação é também um prejuízo sofrido pelos associados, visto que estes pagam tudo de forma distribuída. Importante salientar, diante das explanações apresentadas, que a aplicação do codex consumerista seria absolutamente indevida, tendo em vista a inexistência de qualquer relação de consumo. Variados fatores deixam claro que a relação em questão é associativa, com a finalidade beneficiar mutuamente os associados, e não uma relação comercial de seguros privados. Em momento algum o associado é levado a acreditar que esteja em uma relação consumerista. Desta forma, ao diferenciar as associações dos seguros automotivos, verifica-se que comparar associação com seguradora no que tange à relação de consumo é tão absurda que, caso esta o fosse, a figura do fornecedor e do consumidor se confundiriam em uma
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só, visto que a Associação é tão somente a personificação jurídica de seus associados, coletivamente. A Associação não presta serviços de qualquer natureza a seus associados ou a quem quer que seja, portanto, realça, não há o que se falar que relação de consumo. Ainda, concretizando a distinção, mister se faz indiscutível que a natureza jurídica da proteção automotiva é distinta da do seguro. O contrato de seguro está definido no art. 757 do código civil, que aduz: “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. É, sem dúvida, na lição de Antônio Chaves, tratado de Direito Civil, um contrato típico, pois, além de ter denominação própria, é previsto e regulado por lei que lhe traça a fisionomia. Nessa visão, nota-se que não há qualquer relação, mesmo que forçosa, do sistema associativo de mútua assistência com o seguro, que prevê pagamento de prêmio, ou seja, antecipação de pagamento para resultado incerto. Para que qualquer outro negócio jurídico possa confundir-se com o seguro, indispensável apresente todos os requisitos específicos do tipo definido pelo art. 757 Código Civil, a saber: a) que alguém, denominado segurador, garanta interesse legitimo de outrem, denominado, segurado; b) a prestação dessa garantia pressupõe o pagamento de uma importância, chamada prêmio; c) e, finalmente, a obrigação do segurador visa garantir os interesses do segurado contra os riscos previstos. Desta forma, o primeiro empecilho à identidade combatida é o fato da seguradora constituir, conforme se depreende do exposto acima, um contrato “sinalagmático”, através do qual o segurador se compromete a indenizar o segurado pelo prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato, e esse a pagar-lhe em contraprestação o prêmio ajustado. É tipo do contrato tradicional em que as partes se colocam, uma em oposição a outra, cada uma defendendo interesses próprios, até se chegar a um denominador comum, que permite a celebração do ajuste. Não importa tenha tal contrato se originado do mutualismo e que o sucesso do segurador esteja condicionado a reunião por ele de outros diversos segurados que Ihes permitam formar um fundo, através do qual consiga faze face aos sinistros. Fato é, que a seguradora está obrigada, contratualmente, a indenizar o segurado em caso de sinistro, sendo, portanto, imprescindível a existência de um “caixa” (fundos) para garantir a obrigação contratual. Na proteção automotiva, contudo, exercida através de uma associação de ajuda mútua, o valor dos ressarcimentos que, no seguro, são indenizações e de responsabilidade do segurador, é rateado entre os associados, inclusive, entre a vítima do fato. Não há, assim, uma oposição entre os participantes, como nos contratos tradicionais em que cada parte defende interesses próprios em oposição aos da outra; o objetivo de todos é comum, tornando os interesses individuais totalmente irrelevantes, diante daquele representado pelo grupo. É o contrato, chamado por Ascarelli como plurilateral exatamente, porque, ao contrário dos contratos tradicionais, não há relação jurídica dos participantes entre si, mas de cada um deles com o todo, vejamos: À pluralidade corresponde a circunstância de que os interesses contrastantes das várias partes devem ser unificados por meio de uma finalidade comum; os contratos plurilaterais aparecem como contratos com comunhão de fim. Cada uma das partes obriga-se, de fato, para com todas as outras, e para com todas as outras adquire direitos; é natural, portanto, coordená-los, todos, em torno de um fim, de um escopo comum. (ASCARELLI 1969, p.271)
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ção, e de que modo; V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso. Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá: I - a denominação, os fins e a sede da associação; II - os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; III - os direitos e deveres dos associados; IV - as fontes de recursos para sua manutenção; V - o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005) VI - as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; VII - a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas. (Incluído pela Lei nº 11.127, de 2005)
Tal entendimento, aliás, foi manifestado pelo ilustre jurista, Dr. Adalberto de Souza Pasquaiotto, professor adjunto da PUC/Rio Grande do Sul, no Seminário promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e aprovado por unanimidade: O contrato de ajuda mútua será plurilateral e auto-organizativo, repartindo custos e benefícios exclusivamente entre os participantes, mediante rateio. Sua diferenciação do seguro capitalista e da previdência privada é a autogestão, tal como permitido pele Lei n. 9656/1998, para os planos de saúde. O fato é que, no contrato plurilateral, exemplificado pela proteção automotiva, todos os participantes são igualmente e ao mesmo tempo, credores e devedores uns dos outros. Tal circunstância, por si só, já impede a confusão entre os dois institutos. Por outro lado, também não há que se falar em prêmio na proteção automotiva. De fato, prêmio é um valor recebido antecipadamente pela seguradora, e por ele é calculado diante de necessidade de satisfazer as seguintes contas: (a) despesas indispensáveis ao funcionamento da empresa; (b) formação de um fundo de recursos responsável pelo pagamento das eventuais indenizações a serem exigidas quando da materialização dos riscos previstos na apólice; (c) e finalmente, os seus lucros. Ocorre que na proteção automotiva não há recolhimento de valor antecipado ou captação. O pagamento pelo associado somente ocorre após apurado o valor das indenizações, sendo o mesmo distribuído entre os participantes. Não há margem de lucro, seja da associação que simplesmente se encarrega de arrecadar a cota parte de cada um dos associados nos rateios para, incontinente, transferi-la aos prestadores de serviços (oficinas, casas de peças, etc.) ou dos associados cujos veículos desapareceram ou não têm condições de, economicamente, ser recuperados; e, nem dos associados, os quais simplesmente recebem as indenizações necessárias a cobrir o seu prejuízo. Ademais, não há que se falar em qualquer compromisso de prestação de serviços da associação com relação a seus associados. Na verdade, ela existe para viabilizar o programa que tornar-se-ia inviável caso os participantes em todas oportunidades tivessem de firmar contratos com os fornecedores (avaliadores, vistoriares, oficinas, lojas de peças, etc.). Por isso mesmo, é irrelevante para a associação se o valor das indenizações aumenta ou diminui, já que tal oscilação repercutirá exclusivamente, no maior ou menor valor do rateio. Não há, assim, perigo de insucesso da associação que não enfrenta qualquer risco, já que todo valor passível de ressarcimento, maior ou menor, é simplesmente desmembrada entre os participantes do plano. 3 DO ENQUADRAMENTO LEGAL DAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO veicular NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO As associações são registradas nos cartórios de pessoas jurídicas de forma legal, por meio de estatuto nos termos dos artigos 46 e 54 do código civil, vejamos: Art. 46. O registro declarará: I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administra-
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Portanto, tem-se que a associação é legalmente constituída e chancelada pelo poder público. Nesse sentido, o sistema associativo aqui empregado foi contemplado na III jornada de Direito Civil, onde definiu o Enunciado 185, veja-se: A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizadas pela autogestão. (III Jornada de Direito Civil, enunciado 185, pag.60) Percebe-se que o enunciado 185, autoriza grupos de ajuda restritos a prestação de serviços sob a forma de autogestão, permitindo desta forma, a união de determinado segmento, como os caminhoneiros, a se unirem e ratearem todos os eventos acontecidos, estes que, não foram aceitos pelas seguradoras. Sob este enfoque, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou o projeto de Lei n° 356/2012, o que busca consagrar este enunciado 185 e introduzir no Código Civil, o seguinte artigo: Art. 777-A. Excetua-se das disposições relativas a este Capítulo, não se constituindo como contrato de seguro, a ajuda mútua organizada por associação civil para fins não econômicos, caracterizada pela autogestão. § 1º A adesão ao sistema de ajuda mútua é voluntária. § 2º Só há direitos e obrigações recíprocas entre os associados aderentes, restritos a quotas de participação em fundo próprio constituído para a finalidade descrita no § 1º, que terá cadastro de pessoa jurídica específico. § 3º O disposto neste artigo será objeto de regulamento e se aplica aos proprietários de veículos de passageiros e caminhões autorizados para a exploração do transporte de cargas e de passageiros. Neste particular, merecem destaques as razões que deram ensejo à propositura legislativa e aos fundamentos da decisão que a aprovou na CCJ do Senado: I- RELATÓRIO O eminente autor, na sua justificação explica que, de acordo com a Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores – FENACAT, o maior problema enfrenta-
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do pelos caminhoneiros é insegurança nas estradas. Furtos e roubos de carga e de caminhões afligiriam as empresas transportadoras os caminhoneiros autônomos e suas famílias Para complicar ainda mais a situação, seria cada vez mais difícil fazer um seguro para caminhões. As seguradoras se recusariam a segurar veículos com mais de 15 anos de uso e, quando o fizessem, cobrariam valores impossíveis de serem pagos pelos motoristas autônomos. Infelizmente, ainda segundo a FENACAT, a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) vem movendo, pelo menos, trinta ações contra associações de caminhoneiros criadas para cobrir os riscos acima mencionados, sob alegação de que elas estariam comercializando seguro travestidos de “proteção automotiva” e sem sua autorização, estando portanto, à margem da lei. A proposição foi distribuída à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania(CCJ), em caráter terminativo. (...) II- ANÁLISE (...) comprova-se, por ampla documentação que nos foi encaminhada pela entidade referida, a negativa de inúmeras seguradoras na contratação de seguro para determinados tipos de caminhão, em face do ano de fabricação ou de outras especificações técnicas. O prêmio a ser pago, quando do aceite do seguro, extrapola, na maioria dos casos, a capacidade econômica do caminhoneiro, inviabilizando sua contratação e, por via de conseqüência, a exploração autônoma da atividade de transporte de cargas. Nestes termos, e com base inclusive em longo parecer elaborado pelo saudoso professor Antônio Junqueira Filho, da Universidade de São Paulo – US, concluiu que não se pode confundir serviços de proteção de autogestão com seguros. Aqueles exigem mutualidade e estabelecem rateio entre participantes ou estipulam fundo de reserva a partir de contribuições periódicas sem estruturas societária, não abrangendo o mercado de consumo, mas sim um grupo de associados, como é o caso dos caminhoneiros. Já a atividade de seguros abrange o mercado de forma geral, e não pessoas determinadas, sendo a empresa organizada para esta finalidade. Desse modo, “grupos restritos de ajuda mútua” organizados em “autogestão” não devem ser tratados como seguros também do ponto de vista regulatório, por ausência de risco sistêmico. Portanto, os serviços de proteção oferecidos pelas associações da FENACAT podem ser prestados independentemente de autorização ou fiscalização das autoridades reguladoras. Em síntese as associações filiadas a FENACAT são estruturalmente diferentes das sociedades de seguro mútuo, não exercendo atividade securitária. Da mesma forma, os serviços de proteção por autogestão oferecidos a seus associados não correspondem a contratos de seguro, tendo natureza jurídica de contratos de comunhão de escopo para repartição de riscos. Por fim, importante registrar que apesar da omissão do Código Civil de 2002 quanto à figura a afastar-se do modelo regulador outrora previsto entre os artigos 1.466 e 1.470 do revogado Código Civil de 1916, é praticamente consenso na doutrina não haver quaisquer vedação legal à prática. Tanto é assim que o Enunciado nº 185 aprovado na Terceira Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, consagrou entendimento nesse exato sentido. (Processo nº 0004740-84.2013.4.02.5001 [2013.50.01.004740-4])
assim, oportunamente, citar parte da sentença proferida pela ilustre Juíza Gislaine de Brito Faleiros Vendramini, titular da Vara Única da Comarca de Urupês/SP: A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão. (...) O regime jurídico entre empresas de seguro e tais associações também se distingue. “As sociedades de seguros mútuos têm, como diz o nome, estrutura societária. Os sócios são cotistas da pessoa jurídica cuja função, descrita no objeto social, é segurá-los contra riscos predeterminados. Os status de segurado e de sócio surgem com a simples adesão ao contrato de sociedade, não sendo necessário celebrar qualquer outro negócio jurídico”. Nas associações, “a relação mutualística se perfaz no próprio instrumento de adesão, que une todos os associados participantes por meio de rateio direto ou pelo fundo de reserva”. Os grupos restritos de ajuda mútua, organizados em autogestão, não devem ser tratados como seguros também do ponto de vista regulatório, por ausência de risco sistêmico, podendo atuar independente de autorização ou fiscalização das autoridades reguladoras. (...) Os documentos encartados aos autos permitem concluir que os associados se unem visando obtenção de benefícios a todos, que pode incluir ou não o rateio de prejuízos. No caso de prejuízos, como roubo de caminhão de associado, primeiro realiza-se o prejuízo (apuração do valor) para, depois, rateá-lo entre os associados. À luz de tais considerações, conclui-se que a atividade praticada pela AUSTRAU não se confunde com venda de seguros aos associados, regendo-se pelas regras comuns da Constituição Federal e Direito Civil, ou seja, a legislação específica, referente às prestadores de serviços securitários, mostra-se inaplicável ao caso em tela. Em conseqüência, reconhecida a ausência de ilicitude nas atividades da associação requerida e dos requeridos incluídos no pólo passivo, padece de fundamentação o pedido de cessação de suas atividades, bem como de indenização aos associados. Por fim, no tocante ao pedido formulado pelo Ministério Público, visando extração de cópias com remessa à Polícia Federal, diante dos fundamentos da sentença, fica facultado ao próprio autor referida providência. Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido inicial, com fundamento no art. 269, I, do Código de Processo Civil. Vale citar novamente as palavras do ilustre Juiz Federal João Batista Ribeiro, titular da 5ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Minas Gerais, que ressaltou: Assim, sendo incontroverso que à SUSEP compete, na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP, como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das Sociedades Seguradoras, decorre do ordenamento jurídico e da própria natureza das coisas que pode também estabelecer regras e impor restrições visando à proteção dos consumidores, dentro da razoabilidade e da proporcionalidade esperados. Desta feita, mais relevante e efetivo do que medidas judiciais é a elaboração de termos de ajustamento de conduta e convênios que viabilizem o legal e ordinário funcio-
Ainda, os tribunais, a cada dia, acolhem o sistema de associação veicular em suas decisões. Nota-se alguns pontos jurisprudenciais ao qual revela total aceitação das associações, apontando total divergência entre as figuras associação e seguradora, cabendo
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namento da associação, já que essa entidade realiza função que o Estado confessadamente não consegue desempenhar (...) Nas jurisprudências apresentadas, em toda sua fundamentação e por meios de outros entendimentos jurisprudenciais demonstra-se perfeita licitude em nosso ordenamento jurídico, que havendo qualquer ilegalidade da associação e que a mesma não negocia seguros conforme legislação especifica aplicável. Vejamos: 0014904-70.2011.4.02.5101 (2011.51.01.014904-8) RELATORA: EDNA CARVALHO KLEEMANN APELANTE(S): ASSOCIACAO MINEIRA DE PROTECAO EASSISTENCIA AUTOMOTIVA - AMPLA, EDUARDO PEREIRA DACOSTA,LUCIANA PEREIRA DACOSTA,GABRIELA PEREIRA DAS NEVES ADVOGADO(S): RENATO DE ASSIS PINHEIRO APELADO(S): SUSEP-SUPERINTENDENCIA DE SEGUROSPRIVADOS ADVOGADO(S): PROCURADOR FEDERAL ORIGEM: 07ª VARA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (00149047020114025101) EME N T A AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ADMINISTRATIVO. SUSEP. ASSOCIAÇÃO. PROTEÇÃO AUTOMOTIVA. ILEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. A despeito das atribuições legais da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP para a fiscalização das operações de seguro e afins (Decreto-lei n.º 73/66), não se verifica, no caso, a negociação ilegal de seguros por associação sem fins lucrativos instituída com o fim de promover proteção automotiva a seus associados. Apesar das semelhanças com o contrato de seguro automobilístico típico, há inegáveis diferenças, como o rateio de despesas entre os associados, apuradas no mês anterior, e proporcional às quotas existentes, com limite máximo de valor a ser indenizado. Hipótese de contrato pluralista, em grupo restrito de ajuda mútua, caracterizado pela autogestão (Enunciado n.º 185 da III Jornada de Direito Civil), em que não há a figura do segurado e do segurador, nem garantia de risco coberto, mas rateio de prejuízos efetivamente caracterizados. Eventual prática de crime (art. 121 do DL n.º 73/66) há de ser aferida na via própria, mas não há qualquer ilegalidade na simples associação para rateio de prejuízos. Apelação provida. Sentença reformada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a 6ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região,por unanimidade, na forma do voto da relatora, dar provimento à apelação. Rio de Janeiro, 14 de julho de 2014. (0014904-70.2011.4.02.5101 [2011.51.01.014904-8]) 4 constitucionalidade das associações de proteção veicular e a consequente institucionalização Com o intuito de demonstrar o amparo constitucional das associações mister se faz elencar os artigos na qual estas estão apoiadas para seu exercício legal. A priori, tem-se que a Constituição Federal estabeleceu, em seu art. 5º, incisos XVII e XII, como princípio básico a plena liberdade para associar-se, exercer qualquer profissão e praticar qualquer ato, não proibido por lei. Ainda no mesmo artigo, o inciso II, da Carta Magna impera: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
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fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesse diapasão, ainda que se tenha a preocupação no sentido de que toda atividade, inclusive a da associação de proteção veicular, esteja sob o controle e fiscalização da Administração Pública, o fato é que, constitucionalmente, tal interferência só poderia ocorrer em face da lei, nos termos do art. 5º, inciso II supracitado. Enquanto esta não for promulgada a atividade poderá ser livremente exercida, sujeita, apenas, aos controles gerais, entre os quais o tributário. 4.1 A institucionalização das associações de proteção veicular Inicialmente, deve-se ressaltar que a associação não é companhia seguradora e não opera seguros privados, constituindo-se uma associação sem finalidade lucrativa, que serve de mera intermediária do interesse de seus associados, com fins e razões benéficas, ao ratear entre os mesmos os prejuízos suportados individualmente. Sendo o direito de associação um direito de liberdade, as associações podem existir, desenvolver e expandir-se livremente, na forma do inciso XVII do artigo 5º da Constituição Federal, que preceitua ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. Nestas ações abrangidas pela liberdade de associação estão inseridos outros quatro direitos, conforme José Afonso da Silva: o de criar associação, independentemente de autorização; o de aderir a qualquer associação, pois ninguém será obrigado a associar-se; o de desligar-se da associação, porque ninguém será obrigado a permanecer associado; o de dissolver espontaneamente a associação, já que não se pode compelir a associação de existir. (SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional, p. 270) Todavia, existem restrições que são destacadas pelo dispositivo constitucional que compreendem, conforme trata Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, (2002, p.69): a vedação de associação dedicadas a fins ilícitos, entendidos estes como os fins proibidos por lei, que possam atentar contra a moral, a ordem pública ou que consistam na união de pessoas para o cometimento de crimes. Quanto à ilicitude, é importante destacar que ela não está limitada ao cometimento de crimes, à infração das normas de direito penal, mas também à prática de comportamentos não admitidos pelo ordenamento jurídico aos quais não se atribui sanção de natureza penal. A vedação de associação de caráter paramilitar, ou seja, organizações desenvolvidas com estrutura militar para a consecução de fins políticos. Ainda, a respeito das garantias coletivas decorrentes da liberdade de associação, ilustra a Constituição Federal art.5°, inciso XVIII: “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;” Para compreender a abrangência desse dispositivo constitucional, porém, é preciso pontuar que a edição de leis que ordenam a estrutura de organização das associações não constitui interferência estatal. Ao Estado é, portanto, conferido o direito de estabelecer regras de organização e estrutura das associações, como o faz por meio de Código Civil, sem que essa conduta implique em interferência. Neste sentido, Alexandre de Moraes, citando Jorge Miranda, destaca que: A liberdade ou autonomia interna das associações acarreta a
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existência de uma vontade geral ou coletiva, o confronto de opiniões para a sua determinação, a distinção de maiorias e minorias. Daí a necessidade de observância do método democrático e das regras em que se consubstancia, ao lado da necessidade de garantia dos direitos dos associados. À lei e aos estatutos cabe prescrever essas regras e essas garantias, circunscrevendo, assim a atuação dos órgãos associativos, mas não a liberdade de associação (devidamente entendida). (MORAES, apud MIRANDA, 2002, p. 70) O art. 5º, inciso XIX, da Constituição Federal também impera que “as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;” garantindo que o pedido de suspensão e dissolução compulsória das atividades de uma associação seja submetido à apreciação do Poder Judiciário e impede a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, tornando inconstitucional qualquer ato por eles editado com intenção de dissociar-se ou de finalizar as atividades desta. Sobre a atuação do Poder Judiciário neste dispositivo constitucional, é preciso destacar que seu poder é limitado. Conforme já explicitado, a Constituição Federal apresenta duas proibições à liberdade de associação: quando os fins são ilícitos ou quando o caráter é paramilitar. Conclusivamente, não existe qualquer ressalva constitucional ao exercício da liberdade de associação, a atuação do Poder Judiciário está limitada à dissolução compulsória quando a associação revelar a presença dessas proibições acima destacadas, proibições não encontradas no instituto das associações. 4.2 Associação de proteção veicular como instrumento de inclusão social A Constituição Federal trata sobre alguns pilares que diz respeito a base legal das associações. Em seus cinco incisos do artigo 5º vem tratar sobre as bases constitucionais das associações de fins não econômicos. O associativismo é um direito fundamental a qual vem garantir as pessoas liberdade de se associar a qualquer órgão dos quais sejam legalmente constituídos e com condutas legais. Portanto, é o direito de associação um direito fundamental do ser humano que como a própria classificação indica, significa que este é um direito que nenhuma lei, nenhum ato dos Poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário tem o condão de suprimir da pessoa, posto lhe ser um direito fundamental. As cláusulas do artigo 5° da Lei Maior em seus incisos são inalteráveis, ou seja, são cláusulas pétreas. Significa, ainda, as prerrogativas e instituições que o ser humano concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todos. Conforme José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional, (2001, p. 182), “trata-se de um direito sem o qual a pessoa não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”. Nessa ótica, o direito de associar-se consiste em um direito fundamental individual de liberdade que, em síntese, confere à pessoa o direito de agir, de atuar livremente, com autonomia de vontade, como podemos verificar em seu artigo 5°, caput da Constituição Federal, que assim dispõe: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-
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dade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes (…)”. Neste condão ninguém poderá ou será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, ou, em outras palavras, que todos são livres para agir ou não agir, conforme sua necessidade, exceto quando uma lei legítima, constitucional, determine uma proibição ou uma conduta impositiva. Dessa forma, sendo um direito à liberdade, o direito de associação implica em uma ação de interessados no seu exercício ou de uma renúncia, caso não tenham a necessidade de se associarem. Nenhuma lei pode impedir de se associar, da mesma forma que nenhuma lei pode obrigá-los a fazer. Nessa ótica, as associações no marcado atual vêm sendo uma grande ferramenta de inclusão social de seus associados. Enquanto as seguradoras têm algumas prerrogativas de verificação para aceitar o veículo, tais como: veículos com até 10 anos de uso, veículos importados até 5 anos de uso, veículos rebaixados não são aceitos, dentre outros fatores. As associações não dependem de nenhum fator desde que o veículo esteja em boas condições é claro. Ademais, as associações além de proteção veicular contam também com benefícios e parcerias com variadas empresas dandolhes descontos como em faculdades, cursos preparatórios, lojas de acessórios veicular, rastreador, serviços gerais para residências, auxilio jurídico além de eventos sociais para criança carentes. É bom deixar claro que cada associação faz e disponibiliza seus benefícios de acordo com o que a assembleia geral decidir. Indiretamente as associações criam empregos formais e geram renda a milhares de pessoas. Como a finalidade das associações é manter um custo baixo na prestação de serviço tendo em vista o rateio de despesas para cada associado, é de interesse da diretoria valer-se de meios mais baratos e com qualidade contratando oficinas de menor porte e as quais fazem parte da localidade e região da associação. Como explanado, verifica-se que as associações trabalham com a parte do mercado excluída pelas seguradoras que como informado anteriormente, fazem cálculos de risco e oneram a proteção veicular de seus segurados por motivos de não se enquadrarem em um perfil aceito por elas. É direito de todos a livre escolha por um seguro ou associação de proteção veicular. O que seria inviável é não proteger o bem que por muitos são comprados com muito trabalho e na maioria das vezes financiado. 5 considerações finais O associativismo é direito fundamental que se encontra esculpido na Constituição Federal de 1988. Todos têm o direito de livre escolha e este tipo de opção no mercado tem gerado grandes discussões judiciais, ao qual a SUSEP, Ministério Público e Policia Federal, vem tentando intervir de forma arbitraria e inconstitucional o que é permitido por lei. A partir das informações acima expostas, conclui-se que as associações, sem necessitar de autorização da SUSEP, podem prestar serviços de proteção veicular para com seus associados, desde que funcionem sob regime fechado de ajuda mútua. Destarte, com as elucidações apresentadas em leis, projetos de leis e jurisprudências dos tribunais, arremata-se, as associações não podem ser consideradas como “seguros piratas”, termo esse errôneo dado pela Superintendência de Seguros Privados e pelas seguradoras. Pode-se declarar, assim, que as atividades das associações são totalmente legais e diferenciadas de seguro, sendo cada vez mais abrangidas pelo judiciário Brasileiro.
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NOTAS DE FIM 1 Bacharel em Ciências Contábeis pelo Centro universitário UNA, é contador e Assessor Jurídico da empresa Assis Videira Consultoria e Advocacia e graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestranda em Direito pela Federal de Ouro Preto – UFOP. Especialista em Direito Administrativo e Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-GO. Bacharel em Direito Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-GO. Advogada e Professora da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. **Tatiana Reis Silva Reche; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
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O acesso à função jurisdicional pelos Juizados Especiais Cíveis Estaduais em face à Constituição da República Carolina Kerley Oliveira Melo ¹ Valéria Edith Carvalho de Oliveira ² Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo tem como objeto de estudo os Juizados Especiais Cíveis Estaduais e o acesso à função jurisdicional proposto na Constituição vigente. O tema problema consiste em analisar se a criação dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais possibilitou ao cidadão um maior acesso à função jurisdicional conforme o previsto na Constituição da República de 1988. PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição, Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Constituição da República. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Jurisdição no Estado Democrático de Direito; Acesso à Jurisdição; 4 Juizados Especiais Cíveis; 4.1 Princípios informadores dos Juizados Especiais; 4.2 Procedimentos dos Juizados Especais; 5 O acesso à jurisdição pelos Juizados Especiais Cíveis ; 6 Conclusão; Bibliografia.
INTRODUÇÃO A dignidade da pessoa humana é princípio constitucional e é objetivo da Constituição da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Neste sentido foram criados os Juizados Especiais. Eles foram idealizados e criados para facilitar o acesso à Justiça das camadas mais humildes da sociedade e, principalmente, daqueles que sofrem desigualdade social, ou seja, os que não têm recursos para sustentar os custos do processo, e que dificilmente recorreriam ao judiciário em busca de proteção aos seus interesses violados ou ameaçados de violação. O objetivo deste artigo é perquirir justamente sobre a criação dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais como resposta ao proposto na Constituição da República de 1988 para a solução de alguns dos problemas que o Poder Judiciário enfrenta hodiernamente. A criação dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais possibilitou ao cidadão um maior acesso à função jurisdicional conforme o previsto na Constituição da República de 1988? O marco teórico do trabalho foi o modelo constitucional do processo que, constituído pelos princípios processuais constitucionais, formam um verdadeiro esquema que orienta e disciplina a função jurisdicional, com intuito de evitar abuso e arbítrio de direito e proporcionar a efetiva participação das partes no procedimento jurisdicional. Essa pesquisa aborda as inovações trazidas pela lei 9.099/05 com todos seus procedimentos e princípios, que buscam através do exercício de uma função jurisdicional célere, gratuita e de composição amigável, propiciar a efetivação do direito material para todos os cidadãos, através de procedimentos diferenciados, além de princípios norteadores que conseguem cumprir o acesso à justiça proposto na Constituição Federal. 2 JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Sociedade e direito são inseparáveis (ubis societas ibi jus) e a vida em sociedade gera, inevitavelmente, conflitos de diversas naturezas. Segundo Silvana Campos Moraes, “O conflito de interesses é um dos resultados da contingência de viver em sociedade. Ela integra o universo dos conflitos sociais, estando presente em todos os grupos e nos diversos níveis da estratificação social” (MORAES, 1998, p.06). Houve um tempo em que era permitido aos particulares resolverem seus próprios conflitos. Era a conhecida autotutela, que hoje não é permitida, haja vista o monopólio estatal para a resolução de controvérsias. Sobre o tema elucida Ada Pellegrini Grinover: LETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
Nas fases primitivas da civilização dos povos, inexistia um Estado suficientemente forte para superar os ímpetos individualistas dos homens e impor o direito acima da vontade dos particulares... Assim, quem pretendesse alguma coisa que outrem o impedisse de obter haveria de, com sua própria força e na medida dela, tratar de conseguir, por si mesmo, a satisfação de sua pretensão. (GRINOVER, 2008, p.27) Hodiernamente, quando há de um lado uma pretensão e de outro lado uma resistência, surge a lide, neste caso, é o Estado quem é chamado para aplicar o direito no caso concreto, visando resolver o conflito. Este fenômeno chama-se jurisdição, como ensina Misael Montenegro Filho, “verifica-se que a jurisdição se encontra ligada à existência de conflito de interesses sob a forma de litígio, sem o qual não se justifica” (MONTENEGRO FILHO, 2007, p.46). Em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, ficou firmado historicamente no plano internacional que todos temos direito de recorrer aos tribunais para ter amparo quando um direito é violado por outrem: Artigo VIII Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Artigo X Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.(Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1964) O Estado evoluiu o suficiente para tomar para si a responsabilidade de resolução do conflito. Ao acompanhar esta evolução, a nossa Constituição Federal, buscando ser a expressão legítima da vontade do povo brasileiro, deu ênfase aos direitos fundamentais, vez que inseriu no seu texto um rol de direitos humanos e medidas para a sua implementação. Entre estes direitos, temos o de acesso à jurisdição, inclusive sendo constitucionalmente inafastável, ou seja, não pode ser excluída do judiciário lesão ou ameaça a direito. Neste sentido, pode-se extrair que o acesso à função jurisdicional é um direito e deve ser efetivo e adequado para haver sua concretização.
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3 ACESSO À JURISDIÇÃO Acesso significa, segundo o dicionário da língua portuguesa, aproximação, chegada ou entrada. É neste sentido literal da palavra que se busca estabelecer a conexão entre o cidadão e o judiciário. (Aurélio, 2010) No entendimento de Cappelletti (1988), acesso à justiça é de difícil definição vez que pode determinar duas finalidades básicas do sistema. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente juntos. Em sua obra Acesso à Justiça ele aborda primordialmente o primeiro aspecto. Ainda no entendimento de Mauro Cappelletti (1988), existiam três posições sobre o movimento que levaria a um Acesso à Justiça, que seria a assistência judiciária como facilitador, a segunda onda, como foi definido por ele, seria representação jurídica, ou seja, advogado gratuito, e a terceira e última onda a soma das outras duas juntas que formariam um órgão específico e completo para atender as necessidades e conseguir um acesso à justiça resolvendo os conflitos dos menos poderosos economicamente. Além da igualdade perante o juiz os cidadãos também devem ter as mesmas condições de acesso à jurisdição. A isonomia não deve, em um Estado Democrático de Direito, ser apenas formal, (“todos são iguais perante a lei”), deve ser também mais dinâmica e social, ou seja, o Estado deve criar condições de acesso à jurisdição à todos, na medida das suas desigualdades. Todos devem ter oportunidade de que sua demanda chegue aos órgãos do judiciário. Inclusive no rito dos Juizados Especiais o cidadão pode comparecer pessoalmente e sem assistência de advogado (nas causas até vinte salários mínimos) e ajuizar sua demanda. A nossa Constituição em seu artigo 5º, XXXV diz que o legislador não poderá criar obstáculos a quem sofreu lesão ou está na iminência de sofrê-la em seus direitos. Com esse ditame percebe-se que o Poder Judiciário deve atender às demandas de todos. Extrai-se que o legislador não pode criar obstáculos a quem sofreu lesão ou esta na iminência de sofrê-la em seus direitos. Além de não criar obstáculos o Estado deve criar meios alcançáveis do cidadão ao Judiciário, só assim, este princípio do direito de ação será efetivo. No Estado Democrático de Direito, em que se busca a participação dos cidadãos na sociedade, objetivando a igualdade e a dignidade da pessoa humana, é imprescindível que haja meios de acesso à jurisdição, não podendo este ser obstaculizado, sob pena de haver os direitos, mas não concretizá-los, assim é o mesmo que não haver direitos. No entender de Benedito Espanha, “como o processo apresenta-se como meio de administrar a justiça e de se garantir a ordem constitucional, deve ser alcançado a todos os cidadãos” (ESPANHA, 1986, p.82). Atualmente, em nossa sociedade encontram-se dificuldades na defesa dos direitos. Tal fenômeno não deve ser considerado normal, haja vista que pode acarretar diversas consequências e principalmente inibe-se de alcançar a pacificação social. São inúmeras as dificuldades atuais de acesso à jurisdição. Segundo Cappelletti “causas que envolvem somas relativamente pequenas são mais prejudicadas pela barreira dos custos” (CAPPELLETTI, 1988, p.19). São algumas delas: excessivas formalidades processuais; o custo do processo; a morosidade; além da incerteza da decisão; publicidade do processo, entre outros. As excessivas formalidades processuais trazem dificuldades para o processo. Montesquieu (1983, p. 7 – 14) afirmava que “as formalidades da justiça são necessárias à liberdade”. Contudo se forem exageradas, criam muita rigidez ao processo. Nesta perspectiva, acrescenta Galeno Lacerda “os malefícios do formalismo no processo resultam, na maioria das vezes, de defeitos na interpretação processual” (LACERDA, 1983, p.09).
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O custo do processo, que abarcam as custas judiciais, as despesas de advogado e perícias, criam os obstáculos de ordem econômica. Nas lições de Vigoriti, o custo do processo: Pode ser distinguido entre custos fixos e variáveis. Os primeiros dizem respeito à propositura da ação e o desenrolar do processo. Tais custos são os que menos oneram o processo. Enquanto os demais são os que pesam significativamente nos custos finais da demanda. Nestas condições deve ser estimado o quanto vai acarretar de gastos para o litigante: a assistência técnica, as perícias, as avaliações. (VIGORITI, 1986, p.142) Ora, se o proveito econômico com o ajuizamento de uma ação for pequeno ou até mesmo inexistente, o autor, diante dos custos para pleitear a efetivação do seu direito, pode desistir de fazê-lo, ocasionando um conflito que ficará sem resolução, surgindo assim uma litigiosidade contida3. A morosidade também é um grande obstáculo vez que é sabido que o Judiciário se encontra com grande número de demandas e a resolução destas demandas exige muito tempo, tempo que dependendo do caso, pode inclusive prejudicar o direito material. Acrescenta Silvana Campos Moraes: A morosidade é fator que procrastina a solução da controvérsia. Trata-se do longo período de tempo desde a propositura da ação até o seu momento final, ou seja, até o término do processo com a entrega da prestação jurisdicional. A excessiva duração do processo surge como constante da Justiça de nossos dias. (MORAES, 1998, p.35) O Poder Judiciário não tem a devida estrutura física e de pessoal para lidar com as demandas que lhe são apresentadas nesta sociedade moderna. Acentua Vigoriti “O crescente aumento do número de conflitos, a progressiva perda de autoridade do juiz e o nível profissional decadente do advogado são algumas causas da demora no desenrolar do processo” (VIGORITI, 1986, p.145). De acordo com Silvana Campos Moraes, “em decorrência das apontadas dificuldades de acesso à justiça e com o objetivo de diminuir suas consequências, surgem mecanismos institucionalizados, paralelos ao Judiciário, com meios alternativos na solução dos litígios” (MORAES, 1998, p.40). 4 JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS O surgimento das grandes cidades junto ao aumento da população e o desenvolvimento industrial elevaram os conflitos jurídicos, que se transformam em litígio e carecem de solução. Surge, então, a necessidade de criação, por parte do Estado, de um órgão judiciário mais desburocratizado e célere, que viesse agir diretamente nos pequenos conflitos, principalmente das camadas mais carentes, para que a vida em sociedade possa prosseguir próximo à paz social. Na nossa sociedade, atualmente, alguns conflitos nem sequer são apresentados ao Judiciário, devido aos seus obstáculos. As pessoas renunciam seus direitos. Contudo, esta realidade não pode permanecer. As pessoas precisam resolver seus conflitos. Por outro lado, quando os indivíduos chegam a buscar ao Judiciário, ocorre o congestionamento, pois são inúmeros os conflitos que até lá chegam. Muitos desses conflitos são questões que poderiam ser resolvidas sem burocracia. Desde que o Estado tomou para si a jurisdição, vários estudiosos vem perquirindo sobre este quadro social de conflitos e a neces-
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e Criminais. A nova Lei ampliou a competência aumentando o valor das causas para até 40 salários mínimos, definiu as regras das execuções, títulos extrajudiciais, e introduziu o Juizado Criminal. Concretizando assim as ideias iniciais de sua criação, que era ir a juízo sem a necessidade de advogado e facilitar o Acesso à Justiça e ao Judiciário. (RODRIGUES, 1994, p.54).
sidade de sua solução mediante a atuação do Estado, a fim de se encontrar equilíbrio e a propiciar a efetividade do direito material, necessária à vida em sociedade. Segundo o conhecimento de Cappelletti, As reformas começaram a acontecer nos países mais desenvolvidos, tendo como precursores os Estados Unidos em 1965, com o Office of Economic Opportunity (lei que destinava recursos federais para programas de ação comunitária), e foram seguindo pelo mundo, com a França, que tinha um programa de custos advocatícios pagos pelo Estado, Suécia, Inglaterra, enfim foram evoluindo e mudando seus sistemas de assistência judiciária, em busca de soluções. (CAPPELLETTI, 1988, p.33). Muito já foi discutido e criado para trazer o acesso efetivo à jurisdição. Na linha de evolução das reformas por um judiciário mais eficaz houveram muitos avanços, um dos principais seria o Sistema Judicare, muito bem descrito por Cappelletti: A maior realização das reformas na assistência Judiciária na Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha Ocidental foi o apoio ao denominado sistema judicare. Trata-se de um sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um Direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei, os advogados particulares, então, são pagos pelo Estado. A finalidade do sistema judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado. (CAPPELLETTI, 1988, p.35). Segundo Silvana Campos de Moraes (1998, p.59) os estudos realizados no mundo tiveram resultados positivos quando surgiu o Juizado de Pequenas Causas em Nova Iorque, Estados Unidos em 1934. Entre as experiências realizadas em outros países, foi a que obteve melhores resultados, surgindo assim o Juizado de Pequenas Causas, com a ideia principal era julgar causas de pequenos valores sendo chamado “corte dos pobres”. A sociedade brasileira também necessitava de um atendimento judiciário que resolvesse seus conflitos de forma efetiva, que viesse a resgatar a imagem do judiciário, que pela procrastinação dos feitos, encontrava-se desmoralizado. Foi preciso muito estudo e superação de resistências por parte dos processualistas, magistrados e advogados. Segundo Carneiro, O temor que havia quanto à oralidade dos procedimentos e a resistência ao aumento do poder dos Juízes que tinham de atuar nas decisões e também da participação de juízes leigos na fase de Conciliação. Era preciso superar o conservadorismo do nosso mundo jurídico para a implantação do Juizado de Pequenas Causas. (CARNEIRO, 1984, p.25). De acordo com Neto: “O Processo de formação deste instituto sofreu e sofre algumas resistências, resistência porque é um sistema que tem a característica de usar a Conciliação, como forma de solucionar os litígios” (NETO, 1998, p.11). Conforme entendimento de Rodrigues: A necessidade de solucionar os conflitos e manter o equilíbrio e a paz social fez ser aprovada e sancionada a Lei nº 7.244, de 07.11.84, dos Juizados de Pequenas Causas, com competência para até 20 vezes o salário mínimo, que foi revogada pela Lei nº 9.099 de 26.09.95 e passou a vigorar em 27 de Novembro de 1995, como a Lei dos Juizados Especiais Cíveis
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Conforme entendimento de Tostes, A aceitação por parte da sociedade foi muito positiva, a nova Justiça que surgia com a nova lei. Os estudos realizados sobre as buscas que a sociedade fazia ao judiciário mostravam que era cada vez maior, significando que estava sendo resgatada a confiança num sistema que estava desacreditado. Esta confiança fortaleceu-se mais com a edição da Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor. (TOSTES, 1998, p.05). Há que se observar que apesar da necessidade de criação dos Juizados Especiais, ainda assim existe resistência. Segundo Figueira Junior, “Temos que levar em conta, que estaremos aplicando o mesmo Direito, só que, de uma maneira não tradicional, mas respeitando todos os princípios legais e constitucionais, principalmente o “devido Processo legal” (FIGUEIRA JUNIOR, 1995, p.30). Para Figueira Junior: Embora tenha sido uma mudança nova e ousada dentro dos procedimentos processuais, os atos dos Juizados Especiais de Pequenas Causas com sua simplicidade e os sujeitos do Processo com liberdades, é um microssistema que respeita o nosso modelo contemporâneo e fiel às nossas tradições brasileiras, principalmente dentro dos Princípios norteadores do sistema processual vigente. (FIGUEIRA JUNIOR, 1995, p.31). A primeira lei a dispor quanto a criação de procedimentos judiciais simplificados para a solução de conflitos de menor complexidade foi a Lei Ordinária 7.244/84, que previu a criação dos Juizados Especiais de Pequenas Causas. Quatro anos depois a própria Constituição Federal de 1988, traria, em seu artigo 98, inciso I, a autorização para a criação pelos Estados dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Assim, em 26.09.1995, atentando a previsão constitucional, entra em vigor a Lei Federal 9.099, instituindo os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, revogando expressamente no seu artigo 97 a Lei 7.244/84 e aprimorando e ampliando sua competência para causas de até 40 vezes o salário mínimo. A Lei dos Juizados de Pequenas Causas e, posteriormente, a Lei 9.099/95 buscou priorizar o cidadão, procurando diminuir os obstáculos existentes ao acesso à justiça, com procedimentos menos burocráticos, com a conciliação, gratuidade e principalmente a possibilidade de ir a juízo oralmente, sem a obrigatoriedade da assistência de advogado. 4.1 Princípios informadores dos juizados especiais De acordo com o artigo 2º da Lei Federal nº 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estes se orientam principalmente pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, com o objetivo sempre que possível da conciliação das partes. O artigo 2º da referida lei dispõe que: “O Processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação ou a transação”.
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Os princípios destacados na lei 9.099/95 servem como norte a todos aqueles que atuam nos Juizados, sejam parte, magistrados, advogados, terceiros ou outros, por isso devem ser respeitados e acolhidos. Ressalta-se que tais princípios se somam aos princípios constitucionais, haja vista que estão na nossa estrutura normativa de forma superior, bem como se somam aos princípios do Processo Civil, vez que o processo dos Juizados Especiais se insere no Processo Civil. A doutrina atual divide os princípios em duas espécies, quais sejam, informativos e gerais. Os princípios gerais, também conhecidos com fundamentais, são aqueles previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional, como fontes norteadoras da atividade das partes, do Juiz, do Ministério Público, dos auxiliares da Justiça, da ação, do processo e do procedimento. (ARRUDA ALVIM, 2010, p.110). Todos os princípios mencionados devem ser observados e aplicados com a devida leitura dos mesmos, haja vista que só assim contribuirão na obtenção dos resultados esperados pelos Juizados Especiais Cíveis Estaduais. 4.2 Procedimentos dos Juizados Especiais Ao se falar em Juizados Especiais Cíveis é imprescindível mencionar algumas de suas peculiaridades, haja vista se tratar de rito especial. São algumas delas: valor da causa e competência; complexidade da causa; conciliação e conciliadores; sentença e competência recursal. O artigo 3º da Lei 9.099/95 trata da competência dos Juizados, estabelecendo o valor da causa (até 40 salários mínimos); inclui também as causas enumeradas no artigo 275, II, Código de Processo Civil; a ação de despejo para uso próprio; as ações possessórias sobre bens imóveis, que não excedam quarenta salários mínimos. Compete também aos Juizados Especiais Cíveis promover a execução dos seus julgados e de títulos extrajudiciais até o valor disposto no §1º do artigo 3º da mencionada lei. Destaca-se que a Lei federal 12.153/2009 ampliou a competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais para atenderem as demandas da Fazenda Pública. Outro ato peculiar é a extrema importância da audiência de conciliação, que normalmente, é designada no início do feito, sendo um dos principais objetivos deste procedimento. Para tanto são convocados conciliadores, que podem ser bacharéis em direito ou estagiários. Pretende-se, neste ato, que as partes ao comparecerem pessoalmente, e consigam por si só chegarem a um acordo. Em relação à sentença, esta, de acordo com o artigo 38, dispensa relatório e mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes. Não será admitida sentença condenatória por quantia ilíquida, ainda que genérico o pedido conforme o parágrafo único do mesmo artigo. A competência recursal, segundo o artigo 41, é da turma recursal composta por três juízes togados em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado. São outras características: a desnecessária apresentação da petição inicial com requisitos do artigo 282, Código de Processo Civil; a admissão de pedido genérico apenas em caráter excepcional (apenas em relação à extensão do pedido); a exclusão da citação por edital; a inadmissibilidade da reconvenção (artigo 31 da Lei 9.099/95), sendo lícito ao réu, na própria contestação, formular pedido em seu favor. 5 O ACESSO A JURISDIÇÃO PELOS JUIZADOS ESPECIAIS CIVEIS ESTADUAIS Conforme já mencionado, o Estado tomou para si o poder de aplicar o direito no caso concreto, ou seja, ele detém o monopólio da jurisdição. Segundo Ada Pellegrini
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Jurisdição é uma função do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça.(GRINOVER, 2010, p.147) Contudo, com o passar dos tempos o Estado se tornou incapaz de resolver todos os conflitos, seja por excesso de demanda, seja por morosidade, seja por taxas e custas ou seja por desconhecimento de parcela da população sobre a legislação. Watanabe denomina esse não acesso ao judiciário como “litigiosidade contida” referindo-se aos conflitos que ficam sem solução, inclusive não chegando ao conhecimento do judiciário e ainda diz que esse fenômeno traz grandes riscos à tranquilidade e paz sociais. (KAZUO WATANABE, 1985, p.02). Entendemos então que os conflitos crescem em grande número que o Estado passa a não mais ter condições de atender a todos, acarretando situações de exclusão e insatisfação. Para resposta a este cenário foram se formando métodos alternativos de resolução de conflitos, tais como conciliação, mediação e arbitragem, dentre outras. Nelas os conflitos de interesse são solucionados sem a necessidade da intervenção estatal, através de negociação direta das partes interessadas ou por intermédio de terceiros. Os métodos acima citados não atendem a todos os tipos de demanda, muitas ainda são resolvidas apenas no Judiciário. Dessa necessidade de acesso ao Judiciário, de soluções e do excesso de demandam surgem os Juizados Especiais para atender à população carente. Através dos ensinamentos de Cappelletti (1988), Bezzerra (2001) e outros grandes estudiosos vislumbramos que diversos são os fatores que elevaram os conflitos jurídicos individuais e coletivos (crescimento das cidades, aumento populacional, tecnologias, entre outros), que acabaram por colocar o homem em choque com interesses que precisam de soluções, para que seja restabelecido o equilíbrio. Tudo isso gerou a necessidade de criação por parte do Estado de um órgão judiciário desburocratizado, que viesse agir diretamente nos pequenos conflitos das camadas mais carentes, para que a vida em sociedade possa prosseguir em harmonia. Buscavam-se por mecanismos que auxiliassem a resolver os acúmulos nos órgãos judiciais, abarrotados cada vez mais por demandas de pessoas que queriam ver reconhecidos os seus direitos lesados, e que também resgatasse a confiança no judiciário como órgão estatal de acesso à justiça. Em resposta a esse cenário, o legislador criou os juizados de pequenas causas, atualmente conhecidos como Juizados Especiais. Eles foram idealizados e implantados para facilitar o acesso à Justiça pela grande massa de hipossuficientes, principalmente aqueles que sofrem desigualdades sociais e que, desprovidos de recursos para enfrentar os custos do processo, dificilmente ou quase nunca recorriam ao judiciário à busca de proteção aos seus interesses violados ou ameaçados de violação. Com a Lei ordinária 7.244/84 dos Juizados Especiais de Pequenas Causas dava-se início a uma nova era dentro dos procedimentos processuais. Quase uma década depois surgiu, com visão inovadora e corajosa do legislador, a Lei Federal 9.099 de 26.09.1995, com previsão constitucional no artigo 98, I, instituindo os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, revogando expressamente no seu artigo 97 a Lei 7.244/84. Aprimorando e ampliando sua competência para causas de até 40 vezes o salário mínimo, com base nos precursores Juizados Especiais de Pequenas Causas. Assim, já anunciava mudanças e avanços dentro dos procedimentos processuais, com a finalidade de abrir as portas do judiciário para os menos favorecidos. Certo é que toda mudança gera incerteza e tudo que é novo
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sofre críticas. Devemos mesmo questionar, pois as críticas contribuem para o aperfeiçoamento. Verdadeiro defensor dos Juizados Especiais, Figueira Junior tem uma visão diferente dos críticos pessimistas: A realidade é que o legislador nos ofereceu uma norma que traz em seu bojo novidades muito mais positivas do que negativas (queiram ou não aceitar essa assertiva alguns mais cépticos ou pessimistas). Os operadores do Direito – advogados, Magistrados, membros do Ministério Público e serventuários em geral – sempre exigiram um novo sistema que fosse pautado pelo Princípio da oralidade em grau máximo (...) e agora que a oportunidade nos é oferecida não podemos desprezá -la. (FIGUEIRA JUNIOR, 1995, p.46)
forma sistêmica, necessitando desde maior orçamento para estrutura e pessoal a uma moderna legislação processual e de organização judiciária. Ele veio para abarcar uma camada social excluída do judiciário. Então, apesar de não ser a solução de todos os problemas do Judiciário, os Juizados Especiais Cíveis Estaduais são uma resposta plausível aos anseios da sociedade, em especial, da população carente, que neles encontram um atendimento para seus conflitos. Eles são resultado do que foi pensado pelo legislador ao ter que cumprir a proteção dos direitos fundamentais e fazer com que estes saiam do plano teórico e partam para a concretização. E devem ser vistos não só como um mero procedimento, mas uma nova forma de se realizar a função jurisdicional, visando a efetivação do direito de ação.
Entretanto, de outro lado, existe uma corrente de doutrinadores que questionam se o Juizado Especial garante às partes um efetivo acesso à justiça, bem assim se cumprem o devido processo legal e se existem inconstitucionalidades na Lei 9.099/95. Neste sentido pontua Michele Faria: A criação dos juizados especiais não possibilitou um procedimento célere, informal e gratuito. Possibilitou sim, que os cidadãos tivessem seus direitos fundamentais suprimidos por um procedimento mascarado de acesso à jurisdição, que não garante a construção da cidadania pelo processo democrático, mas sim, a legitimação da subjugação do hipossuficiente. Não há o que se falar em celeridade ou informalidade quando o provimento final não foi devidamente construído pelas partes, com base na principologia constitucional. (SOUSA, 2007, p. 165)
ABREU, Pedro Manoel. Juizados Especiais – uma experiência brasileira de acesso à justiça. Disponível em www.tjsc.tj.sc.gov.br/academia. Acesso em 10 de outubro de 2014.
Apesar de todo entendimento da corrente contrária, Figueira Junior (1995) entende que os Juizados Especiais não seguem a forma tradicional processual, mas respeita todos os princípios legais e constitucionais, principalmente o devido processo legal. Apesar das inúmeras discussões acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos Juizados Especiais, bem assim, se são eficazes ou não, acreditamos que nossa legislação está no caminho de ampliação de acesso à jurisdição.
BARROSO, Carlos Eduardo Ferraz de Mattos. Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
referências
6 Conclusão Para a vida em sociedade é imprescindível que os cidadãos confiem na justiça. Para se formar esta confiança é necessário que ela (justiça) lhe seja acessível e solucione os conflitos em um tempo razoável. O Brasil, ao adotar o Estado Democrático de Direito, preocupouse em constar expressamente na Constituição de 1988 a previsão de uma justiça acessível. E, em continuidade, determinou a criação dos Juizados Especiais (artigo 98 inciso I). Isso porque se o Estado estabeleceu como norma básica a inafastabilidade do controle jurisdicional ele deve buscar criar meios de toda população ser direcionada ao Judiciário que é o local correto para a aplicação da jurisdição. Neste sentido, surgiram os Juizados Especiais, com proposta de tutela diferenciada voltada para uma justiça mais efetiva e popular, portanto, mais democrática. Era imprescindível estabelecer uma justiça que se adequasse à realidade social brasileira sendo, então, sem custas e formalismos. Só assim poderia frear a litigiosidade contida e a violência social derivada da justiça com as próprias mãos e da exclusão social. Os Juizados Especiais Cíveis Estaduais entraram no ordenamento como uma proposta concreta de um novo Judiciário, acessível a todos. Seu objetivo principal é o acesso da população carente ao Judiciário. Dito isso, ele não veio para resolver a crise do Judiciário brasileiro, vez que seus problemas são diversos e devem ser enfrentados de
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NOTAS DE FIM 1 Estudante de Direito do 9º período do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Privado. 3 Sobre a litigiosidade contida falaremos no capítulo 5 desse artigo. **Valéria Edith Carvalho de Oliveira; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
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O DEVER DE DILIGÊNCIA NAS EMPRESAS ESTATAIS Fabrício Pereira Contin1 Núbia Elizabette de Paula2 Banca examinadora** RESUMO: O objetivo do presente artigo é analisar o dever de diligência nas empresas estatais, tomando como parâmetro a análise da aquisição da refinaria de Pasadena (Texas – EUA) pela Petrobrás – empresa petrolífera de capital aberto, cujo acionista majoritário é o Governo do Brasil. Na feitura deste, utilizaremos dos conceitos e institutos trazidos pela Lei das Sociedades por Ações e dos princípios que regem a Administração Pública no Brasil - Art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Sociedade Anônima. Sociedade de Economia Mista. Dever de diligência. Abuso de Poder. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CVM
- Comissão de Valores Mobiliários
CRFB
- Constituição da República Federativa do Brasil
EUA
- Estados Unidos
EP
- Empresa Pública
S/A
- Sociedade Anônima
SEM
- Sociedade de Economia Mista
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Conceito e caracterização de uma Sociedade Anônima; 3 Conceito e caracterização de uma Sociedade de Economia Mista; 3.1 O Conselho de Administração e o dever de diligência; 4 O interesse público e a finalidade lucrativa; 5 Conflitos de interesse e o abuso de poder; 5.1 O caso Petrobrás; 5.2 Análise do caso; Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O propósito deste artigo é promover uma breve análise da aquisição da refinaria de Pasadena (Texas – EUA) pela Empresa Brasileira de Petróleo S/A, que tem como acionista majoritário o Governo do Brasil. Na consecução dos objetivos propostos serão trazidos os conceitos, características e formas de responsabilização das Sociedades Anônimas (S/A) e das Sociedades de Economia Mista (SEM), conforme impõe a Lei 6.404/1976. E, por tratar-se de uma forma de intervenção do Estado na economia, esta abordagem será norteada pelos princípios que regem a Administração Pública e a Ordem Econômica e Financeira trazidos pela Lei Maior. Em virtude da importância do Conselho de Administração nas deliberações de tomada de decisões da Estatal (órgão deliberativo, fiscalizador e administrativo), em sua análise será elucidado o dever de diligência ao qual os administradores estão submetidos e os eventuais conflitos de interesse e abusos de poder. Por se tratar de uma Sociedade de Economia Mista, resta maximizado o dever de diligência e o zelo pela transparência nas tomadas de decisões. As decisões do Conselho de Administração devem garantir a sobrevivência da instituição (busca do lucro) que, conforme demonstraremos, guarda coerência e compatibilidade com o interesse público – realização do objeto social da CIA. A promoção da análise da compra da Refinaria pela Empresa Brasileira de Petróleo S/A será minudenciada no título Conflitos de Interesse e o Abuso de Poder. Ocasião na qual promoveremos um exame das omissões e violações do dever diligência do Conselho de Administração em relação à avaliação de documentos que não se
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mostraram capazes de nortear o negócio no qual a Estatal se propunha a realizar – tudo à luz dos deveres de diligência e eficiência, aos quais estão subordinados os administradores públicos e privados. 2 CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE UMA SOCIEDADE ANÔNIMA A Lei Nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades por Ações), define Sociedade Anônima como uma companhia ou sociedade cujo capital é dividido em ações e em que a responsabilidade dos sócios é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas. Nas sociedades anônimas, diversamente do que usualmente observamos nas sociedades limitadas, não é necessário o affectio societatis – manifestação de vontades dos sócios no sentido de constituir a sociedade. Assim, segundo Marçal Justen Filho (2013, p. 305): Uma S/A é um instrumento capitalista para operação empresarial. Caracteriza-se como uma sociedade de capital, o que significa que o vínculo societário não se funda no affectio societatis – expressão que indica uma relação subjetiva de confiança que vincula em termos personalíssimos os sócios. (Grifo Nosso) Deste modo, numa Sociedade Anônima, o sócio ou acionista responderá apenas pelos riscos do negócio (atividade exercida) nos limites do preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas – Art. 1º da Lei 6.404/1976. Dentre as principais características de uma sociedade anônima, elencamos as seguintes3:
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Divisão do capital em ações; Preponderância dos capitais acumulados em relação aos membros da sociedade. A posse de ações é que faz valer a participação do acionista; Emissão de ações condicionada à autorização da CVM (Comissão de Valores Mobiliários); Responsabilidade dos sócios nos limites das ações adquiridas ou subscritas, e somente estas podem ser utilizadas como garantia financeira da companhia; Estrutura organizacional: Assembleia Geral; Conselho de Administração; Diretoria e Conselho Fiscal; Pode ser uma companhia aberta (valores mobiliários emitidos em negociação no mercado de valores mobiliários) ou fechada (não é admitida a negociação de valores mobiliários); Ações são títulos circuláveis, que definem as características da participação do sócio. Estas podem ser das seguintes espécies: ordinárias, preferenciais ou de fruição; Constitui pessoa jurídica de direito privado. Conforme exposto, a estrutura social de uma Sociedade Anônima é formada por quatro órgãos (Assembleia Geral, Conselho de Administração, Diretoria e Conselho Fiscal). Para o atingimento da proposta do presente trabalho, a análise se limitará às principais características do conselho de administração e ao seu dever de diligência. Antes, contudo, serão traçadas algumas considerações sobre a Sociedade de Economia Mista, espécie de Sociedade Anônima sujeita à disciplina da Lei das Sociedades por Ações. 3 O CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA Dentre as atividades do Estado, encontram-se o fomento, a polícia administrativa, o serviço público e a intervenção. Esta última envolve a regulamentação e fiscalização da atividade econômica de natureza privada, bem como a atuação do Estado diretamente na ordem econômica. Essa atuação, via de regra, se dá por meio das Empresas Públicas e das Sociedades de Economia Mista. Marçal Justen Filho (2013, p. 305) ensina que a Sociedade de Economia Mista é uma Sociedade Anônima sujeita a regime diferenciado, sob o controle de entidade estatal, cujo objeto social é a exploração de atividade econômica ou prestação de serviço público, que se destinam a formalizar a associação entre capitais públicos e privados, para um empreendimento conduzido sob a orientação do Estado. Majoritariamente, costuma-se dizer que as Estatais – Empresas Públicas (EP) e Sociedades de Economia Mista (SEM) – são regidas por um regime jurídico de caráter híbrido. No caso das SEM, isso quer dizer que não se aplica a elas o regime das Sociedades Anônimas em sua integralidade, pois há regras específicas para essas entidades relacionadas com sua natureza estatal (missão pública). É o que expressa o artigo 235 da Lei 6.404/76, in verbis: “As sociedades anônimas de economia mista estão sujeitas a esta Lei, sem prejuízo das disposições especiais de lei federal”. Importa dizer ainda que, por se tratar de um ente da Administração Indireta, sujeita-se aos princípios fundamentais que regem a Administração Pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, tal como expresso no Caput do art. 37 da Constituição da República. Marçal, contudo, faz uma importante ponderação no que tange à proteção do patrimônio jurídico dos sócios minoritários4: (...) O regime jurídico das S/A se aplica à SEM, naquilo em que não tiver sido excepcionado. Assim, aplicam-se as regras pertinentes a abuso de poder de controle. Se o Estado adotar práticas destinadas a prejudicar os sócios minoritários, a solução
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jurídica será a mesma aplicável a uma sociedade privada. Ou seja, o abuso de poder de controle não é legitimado porque praticado por uma pessoa estatal. O mesmo se passa com a pretensão de valer-se de aumento capital para diluir injustificadamente a participação societária dos minoritários. Trata-se de uma entidade sob o controle Estatal, uma vez que mais de 50% das ações com direto a voto pertencem à Administração Pública, o que implica dizer que o poder público é o acionista controlador da entidade. O conceito de acionista controlador é trazido pelo artigo 116, da Lei das S/A, in verbis: Entende-se como acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Assim, na intenção de induzir comportamentos mercadológicos, promover um planejamento econômico sistêmico e redistribuir as riquezas, o Estado inseriu-se diretamente no mercado econômico através da criação de Empresas Estatais. O Título da Ordem Econômica e Financeira da Lei Maior trouxe previsão expressa (Art. 173 da CR/1988) para a exploração da atividade econômica pelo Estado, desde que obedecidos pressupostos especiais e a um regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive no que tange às obrigações trabalhistas e tributárias. Desta forma, uma SEM poderá ser criada com o objetivo de atuar na prestação de serviços públicos ou de explorar a atividade econômica. Assim, ao Estado é facultado o exercício de atividade econômica propriamente dita, nas hipóteses previstas na Constituição ou nas leis, quando necessário aos imperativos de segurança nacional ou à satisfação de relevante interesse público. A observância de tais requisitos é imprescindível, uma vez que a Constituição consagrou o regime capitalista, tendo a livre concorrência como princípio fundamental. Nesse sentido é a redação do Caput do artigo 170 da Lei Maior, in verbis: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV – livre concorrência; (...) A atuação direta do Estado na economia, sem observância de pressupostos e critérios específicos, acabaria por destruir a concorrência, já que aquele goza de privilégios e benefícios que o colocam uma condição de supremacia. A Segurança Nacional pode ser entendida como um conjunto de condições necessárias e indispensáveis à existência e manutenção da soberania estatal e ao funcionamento das instituições democráticas5. Enquanto que o relevante interesse coletivo consiste na existência de uma necessidade supraindividual, comum a um número relevante de pessoas, cuja satisfação possa ser proporcionada pela atuação direta do Estado6. De acordo com Marçal Justen Filho (2013, p. 862),
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A atuação direta do Estado não é justificável mediante a mera invocação de algum interesse público que se considere relevante. É necessário evidenciar que a intervenção direta do Estado é a solução adequada e imprescindível para a satisfação de necessidades determinadas. Aplica-se o princípio da proporcionalidade, o que significa que somente se legitimará a intervenção estatal se outra alternativa não for mais satisfatória. Sob esse prisma, o princípio da proporcionalidade se manifesta como principio da subsidiariedade. Em síntese, o Estado, em sua atividade de intervenção, atua diretamente na ordem econômica. Contudo, tal atuação acontece excepcionalmente, em situações em que a não intervenção prejudicaria a satisfação de determinados interesses da nação. Assim, em respeito aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, não é concedido às Empresas Estatais os privilégios de que gozam as entidades de Direito Público e as Estatais prestadoras de serviços públicos. 3.1 O CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO E DO DEVER DE DILIGÊNCIA Nos termos do Art. 138 da Lei 6.404/76 (Lei das S/A), a administração da Sociedade Anônima competirá à diretoria e, se dispuser o estatuto da companhia, também ao conselho de administração. A criação deste último é feita conforme análise de conveniência e necessidade da CIA – necessária previsão estatutária. Assim, o Conselho de Administração é um órgão de criação facultativa em uma S/A, exceto nos casos de companhia aberta, de capital autorizado ou de Sociedade de Economia Mista – nestas é obrigatório. O Conselho de Administração é um órgão deliberativo, fiscalizador e administrativo, composto por, no mínimo, três membros eleitos pela Assembleia Geral, que tem competência para deliberar sobre qualquer matéria de interesse da companhia, estabelecendo a política econômica, social e financeira da sociedade, exceto nas matérias de competência privativa da Assembleia Geral. Este Conselho tem como principal papel7 agilizar o processo decisório no interior da companhia. As atribuições do Conselho de Administração tem previsão legal no Art. 142 da Lei 6.404/76. Dentre elas, podemos citar a fixação de orientação geral dos negócios da companhia, eleição e destituição dos diretores da companhia, estabelecimento das tarefas destes, fiscalizar a gestão dos diretores, examinar livros e papeis a qualquer tempo, convocar a Assembleia Geral quando julgar conveniente ou por força de lei, manifestar-se sobre contas apresentadas pela diretoria, deliberar, desde que autorizado pelo estatuto, sobre a emissão de ações ou bônus de subscrição, autorizar a alienação de bens, dentre outras funções. Nos termos do Art. 153 da Lei das Sociedades Anônimas, o Administrador da Companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios. Trata-se do dever de diligência, expressão genérica, um princípio do direito empresarial, um conceito que não comporta um comportamento específico, mas um padrão de condutas e procedimentos, no sentido de cuidado e zelo8. Ser diligente é empregar na condução dos negócios sociais as cautelas, os métodos, as recomendações, os postulados e as diretrizes da “ciência” da administração de empresas9. O dever de diligência pode ser subdivido no dever de se informar, que consiste na obrigação dos dirigentes em buscar informações quando da tomada de uma decisão negocial na gerência da sociedade, “devem apreciar criticamente essas informações, analisando os possíveis impactos do que lhes foi relatado sobre os negócios sociais” 10. Nesse sentido, os administradores de uma S/A devem analisar minuciosamente as possibilidades de operações da empresa de um
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modo geral, buscando obter todas as informações necessárias para tomadas de decisões diligentes, com a observância de todos os princípios norteadores da atividade (garantindo a sustentabilidade financeira da empresa e a perseguição do interesse público). Obrigação implícita ao dever de diligência do Administrador é o dever de manter-se qualificado. Esta qualificação profissional direciona-se à busca da eficiência e eficácia dos métodos utilizados pelo administrador na consecução dos interesses societários (no caso das empresas públicas a busca do lucro conciliado à sua missão pública), que deve existir em dois momentos: i) antes de assumirem o cargo; e, ii) concomitante à atividade de administração. Os administradores devem, antes de assumir o cargo, ter uma qualificação mínima para sua investidura . A posteriori, deve haver uma constante qualificação no sentido de aprimorar conhecimentos para uma boa administração11. Os administradores, ainda como um subdever do dever diligência, têm o dever de vigilância ou de monitoramento, que consiste na obrigação de acompanhar e monitorar os negócios da companhia de uma forma geral. Não é exigível dos administradores a supervisão em cada uma das atividades desenvolvidas pela companhia, mas o acompanhamento geral dos negócios sociais e de suas políticas ou procedimentos internos12. O Dever de investigar – decorrente do dever de informar e fiscalizar – consiste na obrigação do administrador de analisar minuciosamente as informações, no sentido de diligenciar quando forem incompletas, superficiais ou imprecisas, para a tomada de decisão – viabilizar os interesses da Companhia13. Nesse sentido, salienta Campos: “não devem os administradores ficar passíveis, mas antes devem criticamente examinar as informações que recebem, indagando, entre outras questões, a respeito da completude, extensão, riscos e correição (...)14”. Finalmente, os administradores devem intervir, agindo proativamente, visando ao melhor interesse da Companhia, buscando evitar erros e prejuízos15. Em resumo, o dever de diligência a que o administrador de uma Sociedade Anônima está impelido, quer significar que em todos os negócios, em que intervir em nome da organização, deverá tomar todas as diligências necessárias no sentido de preservar os interesses da organização – promover os melhores resultados com os menores investimentos. Conforme exposto, sendo a Sociedade de Economia Mista uma Companhia sob o manto do regime híbrido (observa leis de direito público e de direito privado), deverá cumprir as disposições da Lei 6.404/76, no que tange ao Conselho de Administração e ao dever de diligência, esculpido no Art. 153, o qual exige do Administrador, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência esperada de um homem probo, além da observância de todos os subdeveres já mencionados anteriormente, tais como o dever de informar, de se qualificar, de vigiar, de monitorar, de investigar e de intervir. Vejamos o que disserta o Artigo 153 da Lei das Sociedades Anônimas, in verbis: “O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência em que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. O descumprimento do comando expresso no artigo mencionado, como dos demais deveres expressos na Lei, importa na responsabilidade dos administradores pelos danos resultantes de omissão no cumprimento de seus deveres e de atos praticados com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto. Ademais, conforme salientado, uma Sociedade de Economia Mista, alicerçada nos interesses constitucionalmente instituídos, deve observância aos princípios norteadores da Administração Pública, conforme dispõe o artigo 37 – CRFB:
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A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) Nesse sentido, conclui-se que uma Sociedade de Economia Mista, por ser uma S/A, está sujeita à observância dos comandos da Lei 6.404/76. Deve, ainda, por se tratar de um ente da Administração Indireta, observar todos os princípios fundamentais que regem a Administração Pública Brasileira, sujeitando-se, destarte, ao controle do Poder Público por meio de seus órgãos e mecanismos. Para elucidas estas afirmações, transcrevemos trecho da obra da Professora Fernanda Marinela, ipsis litteris16: A sociedade de economia mista está sujeita, de igual maneira, a controle, seja interno ou externo. Portanto, submetem-se à supervisão ministerial e a controle do Tribunal de Contas, além da possibilidade de interposição de ação popular e dos demais controles previstos para o cidadão. No que tange ao controle pelo Tribunal de Contas em face das sociedades de economia mista, o entendimento do STF era a impossibilidade desse mecanismo de fiscalização. Entretanto, o Supremo alterou sua posição no julgamento conjunto dos Mandados de Segurança – MS nº 25.092 e 25.181, proferido em dia 10 de novembro de 2005, passando a admitir esse controle, ressalvando a impossibilidade de esse Tribunal interferir na política de administração desta empresa. A Suprema Corte fundou a sua decisão no fato de que um prejuízo causado a uma sociedade de economia mista afetaria o capital do Poder Público, considerando, que a maioria do capital com direito a voto dessas pessoas jurídicas lhe pertence, havendo, com isso, lesão ao erário. Justificou-se também em razão do regime híbrido dessas empresas. Nesse sentido segue EMENTA ao MS 25092/DF, da Relatoria do Ministro Carlos Velloso, Tribunal Pleno (Dj -17.03.2006)17: I - Ao Tribunal de Contas da União compete julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (CF, art. 71§, II; Lei 8.443§, de 1992, art. 1º, I). II. - As empresas públicas e as sociedades de economia mista, integrantes da administração indireta, estão sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas, não obstante os seus servidores estarem sujeitos ao regime celetista. (…). Cumpre, em breves linhas, afirmar que temos por imprescindível que o controle e a manutenção do poder das empresas estatais sejam mantidos nas mãos do Estado. Pois assim, o controle é estendido aos cidadãos (legítimos titulares da coisa pública), possibilitado ao se observar o princípio da publicidade, o qual, ao ser efetivado, maximiza o controle. Desta forma, apenas o Estado, em virtude da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, zelará pelos fins e objetivos trazidos pela Constituição Republicana. 4 O INTERESSE PÚBLICO E A FINALIDADE LUCRATIVA Mário Engler Pinto Júnior18 ensina que toda empresa estatal tem uma missão pública que coexiste com a finalidade lucrativa inerente ao modelo da Companhia.
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O Estado, como acionista controlador, passa a exercer sua influência dominante na condução dos negócios sociais por intermédio dos órgãos societários, sobretudo por meio do Conselho de Administração. A concentração das principais decisões no Conselho de Administração é uma forma moderna e evoluída de exercer o controle sobre uma Estatal, a qual abrange a ideia de domínio, como também o dever de fiscalizar. O Estado se vale da condição de acionista prevalecente para eleger a maioria dos conselheiros, fazendo-se representar naquela instância societária por pessoas de sua confiança e identificadas com as diretrizes da gestão em vigor. Assim, o conselho de administração (órgão responsável pela formação da vontade social, para onde convergem interesses tanto de natureza patrimonial quando coletiva) combina inúmeras vantagens logísticas em matéria de eficiência e agilidade19. A criação de uma Sociedade de Economia Mista justifica-se para atender ao interesse público. No entanto, esse interesse público não se restringe ao interesse dos cidadãos em geral. O Estado, ao intervir na Economia, o faz em função de um interesse público, mas que não está dissociado do interesse dos acionistas da empresa, pois ele se vincula à missão social da instituição, que engloba perseguir os fins para os quais ela foi criada, o que não implica na defesa de interesses exclusivos do acionista controlador. A busca da missão pública encontra-se incorporada no interesse da Sociedade de Economia Mista e não se trata de um elemento extra-social vinculado exclusivamente à pessoa do acionista controlador. Nesse sentido, o Conselho de Administração está legitimado a perseguir o interesse público compreendido no objeto da companhia, por iniciativa própria e independente de manifestação concreta do Estado. Além do mais, a identificação e consecução dos interesses públicos não constituem tarefas exclusivas do Estado controlador, mas objetivo comum compartilhado por todos os acionistas e responsáveis pela gestão social20. A despeito do aparente conflito entre a busca do interesse público e a finalidade lucrativa da SEM é possível a equalização destes anseios na busca dos objetivos da Sociedade – conciliação de interesses “divergentes”. O fato de uma empresa estatal estar imbuída numa missão pública não significa inexistência da finalidade lucrativa inerente ao modelo de sociedade por ações21. Nesse sentido ensina Marçal Justen Filho (2013, p. 297): As empresas estatais são orientadas à realização de seu objeto social, inclusive buscando a obtenção de lucro. Devem buscar as soluções mais eficientes, inclusive para evitar a criação de passivos a serem suportados pelos recursos públicos (...). A aplicação pelo Estado de recursos públicos numa empresa dotada de personalidade jurídica de direito privado não se destina, em princípio, a estabelecer uma alternativa não lucrativa para a atuação empresarial. Quando adota forma empresarial, o Estado tem o dever de nortear a atividade segundo os parâmetros próprios da eficiência preconizada ano âmbito da iniciativa privada. Como conclusão o Doutrinador traz a elucidativa passagem (2013, p. 308): As empresas estatais são orientadas à realização de seu objeto social, inclusive buscando a obtenção de lucro. Devem buscar as soluções mais eficientes, inclusive para evitar a criação de passivos a serem suportados pelos recursos públicos. Mas a isso não elimina a natureza funcional de sua atividade: as empresas estatais são instrumentos de realização dos fins estatais. Configuram-se como instrumento do desempenho
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da função administrativa. Nunca poderão operar como se fossem uma empresa puramente privada, para a qual é legítimo buscar o lucro egoístico. Ser dotada de personalidade jurídica de direito privado não significa ausência de natureza estatal, o que exige instrumento de vinculação à realização dos valores da democracia republicana. (...) Quando o quadro societário da Sociedade de Economia Mista for composto também por sócios privados, acentuar-se-á o seu cunho empresarial especulativo. Assim se passará inclusive em virtude das normas gerais de direito societário, que impõem aos administradores o dever de respeitar igualmente os direitos de todos os sócios (inclusive dos minoritários). Suponha-se, por exemplo, uma Sociedade de Economia Mista de capital aberto (cujas ações são negociadas em bolsas de valores e mercado de balcão). É problemático afirmar que os fins buscados por essa entidade seriam essencialmente administrativos. Considerando o exposto, não há que se falar em conflito entre interesse público e a finalidade lucrativa. A satisfação do interesse público está na realização da missão institucional da companhia, e a obtenção de lucro é inerente à natureza jurídica desta, que exerce atividade econômica, ao mesmo tempo em que é também indispensável a sua sobrevivência. 5 CONFLITOS DE INTERESSE E O ABUSO DE PODER Conflito de interesse, também chamado de conflitos de agência, se dá quando os administradores de uma organização atuam buscando interesses contrários aos da Companhia. Ao invés de atuarem no interesse de todos os acionistas, tomam decisões centradas em interesses próprios, particulares. Por outro lado, o abuso de poder acontece quando o acionista controlador, por meio de seus Administradores, atua visando exclusivamente seus interesses. Ou seja, ele não leva em conta os fins (objetivos) da Organização e os interesses de todos acionistas, atua, deste modo, de forma desleal para com estes. Assim, nos termos do art. 115 da Lei de S/A: O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si, ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar prejuízo para a companhia ou para outros acionistas. O voto não constitui um direito subjetivo exercitável de forma egoística pelo seu titular. Na verdade, trata-se de um direito-função atribuído ao acionista na busca de um fim específico, que vai além de seu interesse individual. Essa premissa deve ser observada nas decisões do Conselho de Administração, o que não quer dizer que deixa de existir uma margem de discricionariedade nas decisões. O intuito é evitar a evocação do interesse superior da Companhia, quando, na verdade, se busca o interesse privado22. Nesse sentido, qualquer ganho indevido em decorrência do voto dos acionistas deve ser revertido no interesse da empresa, previsão expressa do § 4º, art. 115, da lei 6.604/1976, ipsis litteris: “A deliberação tomada em decorrência do voto do acionista que tem interesse conflitante com o da corporação é anulável; o acionista responderá pelos danos causados e será obrigado a transferir para a companhia as vantagens que tiver auferido”. Da mesma forma, o ente controlador não pode agir buscando interesses exclusivamente políticos estranhos ao objeto social, sob pena de prejudicar não só os demais acionistas, como também o pró-
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prio interesse público incorporado na Companhia23. Ademais, o acionista controlador possui, como deveres e responsabilidades específicos, o cumprimento do objeto social e o atingimento da função social da companhia24. Para Mário Engler Pinto (2013, p. 405): Por se tratar de atuação no interesse alheio – e não no próprio interesse do titular do controle – traz implícita a relação de lealdade com os demais acionistas, os trabalhadores e a comunidade local. Ocorre abuso de poder quando o acionista controlador se vale de poder de comando para atingir objetivo estranho ao interesse da companhia. Tal comportamento caracteriza desvio de finalidade, que se traduz na observância apenas aparente ou meramente formal da norma jurídica imperativa, porém, frustrando o cumprimento do conteúdo finalístico. Ser acionista controlador não significa votar visando o seu único interesse, pois, controlar significa ter o poder de decidir em favor do interesse alheio. Implica em uma atuação pautada pelo dever de lealdade para com todos os acionistas e com a busca dos interesses da Companhia. Nesse sentido, ocorre abuso de poder quando o acionista controlador age buscando satisfazer interesses alheios aos da organização. Trata-se de um comportamento definido como desvio de finalidade, pois se observa apenas aparentemente a norma jurídica, enquanto que, na realidade, atua burlando a sua predestinação25. O abuso de poder pode se dá de forma comissa e/ou omissiva. No primeiro caso, o acionista controlador se vale do poder do voto majoritário para aprovar matéria contrária ao interesse da companhia, ou ainda, quando orienta os órgãos de administração a adotarem políticas neste sentido. Na forma omissiva, o abuso de poder se manifesta quando o controlador, por meio de seus administradores, deixa de observar os deveres impostos na lei. A atuação do acionista controlador deve estar pautada no dever de lealdade, expresso no parágrafo único do artigo 116 – Lei 6.404/1976 – ipsis litteris: O acionista controlador dever usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Dentre o rol de deveres a serem observados, encontra-se o Dever de Diligência, com todos os seus subdeveres já mencionados em outro momento deste trabalho, expresso no art. 153 da lei de S/A. A não observância desse relevante dever configura uma forma omissiva de abuso de poder. Destarte, uma companhia de capital aberto existe para o cumprimento de sua missão, da qual as deliberações não podem se afastar, pois se trata da razão de existência da instituição. 5.1 O CASO PETROBRÀS Em 2005 a empresa belga Astra Oil pagou pela refinaria de petróleo situada em Pasadena, Texas (EUA), o valor de US$ 42,5 milhões. No ano seguinte a Petrobrás (empresa petrolífera de capital aberto, cujo acionista majoritário é o Governo do Brasil) comprou 50% da mesma refinaria pagando o valor de US$ 360 milhões – valor aproximadamente 17 (dezessete vezes) maior que o pago pela Astra Oil26. Antes da compra, em atendimento às disposições da Lei de S/A e ao Regimento Interno da Petrobrás, foi realizada uma auditoria por uma empresa Americana, contratada pela Petrobrás, para analisar questões jurídicas, operacionais e financeiras, necessárias em opera-
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ções de fusões e aquisições. A auditoria foi realizada em 20 dias, um terço do prazo considerado normal para análise de todos os fatores que influenciariam na aquisição – o relatório foi considerado ineficiente pela própria Petrobrás27. Após a auditoria, deveria ter sido confeccionado um memorial pela Diretoria Executiva, documento que inclui todas as informações necessárias à realização da aquisição (parecer técnico e jurídico), que deveria ser encaminhado ao Conselho de Administração para análise, conforme exige o dever de diligência. O Conselho, ao analisar o documento, deveria solicitar uma complementação da auditoria – já que esta foi considerada ineficiente –, no intuito de obter todas as informações necessárias para uma aquisição de tal envergadura. O Presidente do Conselho poderia, ainda, convocar Diretores para prestar esclarecimentos e informações para uma melhor análise sobre a aquisição da refinaria. No entanto, a deliberação do Conselho de Administração foi realizada sem a observância desses procedimentos (pressupostos do dever de diligência), e foi aprovada a compra superfaturada da refinaria pela Petrobrás. Considerando que a aquisição realizada pela Petrobrás foi de 50% da refinaria, a empresa brasileira passou a ser sócia da Astra Oil – detentora da outra metade da refinaria. Por conta de uma omissão do parecer técnico, o Conselho de Administração não teve ciência de duas cláusulas contratuais: Marlin e Put Option. A primeira exigia um lucro mínimo anual a ser garantido a Astra Oil. A segunda estabelecia que, em caso de litígio, em virtude de desentendimentos entre os sócios sobre eventuais investimentos, a Astra Oil teria o direito de exigir que a Petrobrás comprasse suas cotas na sociedade28. Em 2008, a Astra Oil e a Petrobrás entram em divergência sobre os investimentos na Refinaria e, por não chegarem a um acordo, acionaram a justiça. Nesse ano, a Petrobrás descobriu a existência das clausulas supracitadas, e acabou perdendo o litígio, sendo obrigada a comprar a outra metade, desembolsando no final do processo o valor de US$ 820,5 milhões de dólares, considerando juros e custas processuais29. 5.2 ANÁLISE DO CASO Em breve análise dos fatos narrados à luz da Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76), tendo como referência os deveres dos Administradores de uma Companhia de capital aberto, em especial o dever de diligência, permite que cheguemos a algumas conclusões. Neste momento, faz-se imperativa a releitura do artigo 153 da Lei Nº 6.404 de 1976: “O Administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência em que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. Desta forma, apesar de ter havido uma auditoria prévia à deliberação sobre a compra da refinaria de Pasadena, com propósito de se analisar questões jurídicas, operacionais e financeiras, necessárias em operações de fusões e aquisições, não houve o devido cuidado e diligência exigidos pela lei, haja vista, ter sido realizada em prazo muito inferior ao normal e ter sido considerada ineficiente pela própria Petrobrás. Entretanto, apesar do laudo de ineficiência, o documento não foi descartado ou complementando, e serviu de referência no processo de aquisição, o que demonstrou falta de zelo, cuidado e diligência nos negócios da Companhia. A segunda falha em relação ao dever de diligência acontece no ato de elaboração do memorial, documento feito a partir da auditoria contendo todas as informações relevantes para o negócio. Esse documento, por conta de uma falha no parecer técnico, não trouxe a previsão e/ou análise das cláusulas Marlin e Put Option, a primeira
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que favorecia a Astra Oil e a segunda que estabelecia que, em caso de litígio, uma das empresas (Petrobrás ou Astra Oil) teria de comprar a parte da outra. Nesse sentido, o parecer técnico não apresentou de forma clara, concisa e direcionada as informações necessárias para a tomada de decisões – não cumpriu, destarte, o dever de diligência. O dever de diligência abrange o dever de investigar, decorrente do dever de informar e fiscalizar. Consiste na obrigação do administrador em investigar quando houver informações incompletas, superficiais ou imprecisas, no que tange aos interesses da companhia30. Nesse sentido, a deliberação do Conselho de Administração não poderia ter ocorrido antes de serem supridas as falhas do parecer e inseridas as informações essenciais às negociações de aquisição da refinaria. Verifica-se, nesse sentido, uma terceira violação ao dever em análise. Restam, ainda, violados os princípios fundamentais que regem a Administração Pública, em especial o princípio da legalidade, haja vista ter havido graves violações à Lei das Sociedades por Ações, e ao princípio da eficiência, tanto pelas falhas em todo o processo de aquisição, como também pelo alto custo de todo o processo, levando ao desembolso de US$ 820,5 milhões de dólares. CONSIDERAÇÕES FINAIS A missão da Petrobrás encontra-se descrita no site da instituição com o seguinte propósito31: Atuar na indústria de petróleo e gás de forma ética, segura e rentável, com responsabilidade social e ambiental, fornecendo produtos adequados às necessidades dos clientes e contribuindo para o desenvolvimento do Brasil e dos países onde atuamos. Por todo o exposto neste trabalho, conclui-se que o cumprimento ao dever de lealdade e de diligência é uma premissa a ser observada para que uma companhia de capital aberto como a Petrobrás atinja os seus fins. E como ente do Poder Público, sua administração não se exime da observância de todos os princípios fundamentais que regem a Administração Pública, conforme expresso no Caput do Art. 37 da Lei Maior. A missão é a razão da existência da instituição a que todos os administradores devem observância. É da natureza de uma SEM a coexistência de interesses do ente controlador e dos demais acionistas, e é por essa razão que a missão pública dada a essa espécie de companhia é buscar o interesse de todos. A lucratividade é vital para a sobrevivência da companhia e não é incompatível com o interesse público. E a pratica de princípios morais e éticos é condição sine qua non para que a companhia atinja o fim a que se propõe. REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo, Vicente Paulo. Direito Administrativo Descomplicado.-21.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2013. ANGHER, Anne Joyce (org.). Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel. 16ª Ed. São Paulo: Rideel, 2013. JUNIOR, Mario Engler Pinto. Direito Societário, Sociedades Anônimas. Coordenadores Maria Eugênia Reis Finkelstein e José Marcelo Martins Proença, São Paulo, Saraiva, 2007, Séria GVlaw, ISBN 978-85-020663-97, 17 jul 2013 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9.Ed.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 5ª Ed. Niterói: Impetus, 2011. MARTIN, Fran. Curso de Direito Comercial/Atual. Carlos Henrique Abrão – 37.ed. Ver, atual e ampli. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.
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NEGRÃO, Riçado. Manual de Direito Comercial e de Empresa, volume1. -7.ed. – São Paulo: Saraiva 2010. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. Teoria Geral e Direito Societário, volume1. - 6. ed: São Paulo: Atlas 2014.
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10 Ibid. 11 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1108 – APUD CARVALHO, Gabriel, O Dever de Diligência dos Administradores de Sociedade Anônima. PUC-Rio, p. 8. Disponível em: < http:// www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2012/relatorios_pdf/ccs/DIR/JUR-Gabriel%20Carvalho.pdf>. Acesso em: 15 de agosto de 2014. 12 Ibid., p. 10. 13 Ibid., p. 12.
ESTADÃO. Auditoria de Compra de Pasadena levou 20 dias. Disponível em : <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,auditoria-de-compra-de-pasadena-levou-20-dias-diz-jornal,1146319. Acesso em 27 de agosto de 2014.
14 Ibid.
G1ECONOMIA. Entenda a compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/03/entenda-compra-da-refinaria-de-pasadena-pela-petrobras.html>. Acesso em 27 de agosto de 2014.
16 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 5ª Ed. Niterói: Impetus, 2011. p. 147 e 148
INFONAUTA DIÁRIO DE BORDO. Missão: entender a missão da Petrobrás. Disponível em: <http://www.infonauta.com.br/index.php/2014/missao-entender-amissao-da-petrobras/>. Acesso em 06 de outubro de 2014. OLIVEIRA, Daniele de Lima de. Deveres e Responsabilidades de Administradores da S/A. Disponível em: http://www.lopdf.net/preview/8Mf_XKdMnAT8tqdHM1kLq0Tjui7uMjIOLuWkex-E1ho,/Deveres-e-responsabilidade-dos-administradores-da-s-a.html?query=How-Much-Is-Esta-Visa. Acesso em 27 de agosto de 2014. REDE BRASIL ATUAL. TCU isenta Dilma e conselheiros por Pasadena, e PGR arquiva investigação. Disponível em: Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/tcu-isenta-dilma-e-conselheiros-da-petrobras-porcompra-de-pasadena-e-pgr-arquiva-pedido-de-investigacao-contra-a-presidenta-2212.html>. Acesso em 27 de agosto de 2014.
NOTAS DE FIM 1 Bacharelando do 10º Período do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – Centro Universitário Newton. 2 Possui graduação em Direito (2004). É Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade Milton Campos (2008). Doutoranda em Direito Privado na PUC-MINAS - Linha de pesquisa: Reconstrução dos Paradigmas do Direito Privado no Contexto do Estado Democrático de Direito. Foi advogada responsável do Centro de Internação para Adolescentes - CIA - Sete Lagoas/MG, Procuradora do Município de Funilândia/MG e professora no UNIFEMM - Centro Universitário de Sete Lagoas/MG, PUCMINAS, FAMINAS/BH, Faculdades Pitágoras e no Prolabore - Curso Preparatório para o Exame da OAB. Atualmente é advogada especializada em Direito de Administrativo e Direito de Empresa, sócia do escritório Bueno e Paula Advogados Associados e professora no Centro Universitário Newton Paiva e na PUC-MINAS Virtual no curso de pós-graduação em Direito Público. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Administrativo e Direito Civil e Empresarial. 3 Sociedade Anônima. Disponível em: <http://sociedade-anonima.info/>. Acesso em: 12 de agosto de 2014. 4 JUSTEN FILHO. Op. Cit., p. 306. 5 Ibid., p. 865. 6 Ibid., p. 868. 7 OLIVEIRA, Daniele de Lima de. Deveres e responsabilidades dos administradores da s/a. São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br/ tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7150>. Acesso em: 10 de julho de 2014. 8 Ibid., p. 56.
15 Ibid., p. 14.
17 Ibid. 18 JUNIOR, Mario Engler Pinto. Direito Societário, Sociedades Anônimas. Coordenadores Maria Eugênia Reis Finkelstein e José Marcelo Martins Proença, São Paulo, Saraiva, 2007, Séria GVlaw, ISBN 978-85-020663-97, 17 jul 2013. 19 Ibid, p. 200. 20 JUNIOR, Mario Engler Pinto. Direito Societário, Sociedades Anônimas. Coordenadores Maria Eugênia Reis Finkelstein e José Marcelo Martins Proença, São Paulo, Saraiva, 2007, Séria GVlaw, ISBN 978-85-020663-97, 17 jul 2013. 21 Ibid. 22 Ibid. 23 Ibid. 24 Ibid. 25 Ibid. 26 G1ECONOMIA. Entenda a compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/03/entenda-compra-da-refinaria-de-pasadena-pela-petrobras.html>. Acesso em: 27 de agosto de 2014. 27 ESTADÃO. Auditoria de Compra de Pasadena levou 20 dias. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,auditoria-de-compra-de-pasadena-levou-20-dias-diz-jornal,1146319. Acesso em: 27 de agosto de 2014. 28 REDE BRASIL ATUAL. TCU isenta Dilma e conselheiros por Pasadena, e PGR arquiva investigação. Disponível em: Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/07/tcu-isenta-dilma-e-conselheiros-da-petrobras -por-compra-de-pasadena-e-pgr-arquiva-pedido-de-investigacao-contra-a-presidenta-2212.html>. Acesso em: 27 de agosto de 2014. 29 G1ECONOMIA. Entenda a compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/03/entenda-compra-da-refinaria-de-pasadena-pela-petrobras.html>. Acesso em 27 de agosto de 2014. 30 CARVALHO, Gabriel, O Dever de diligência dos Administradores de Sociedade Anônima.pág. 12. 31 Disponível em: < http://www.infonauta.com.br/index.php/2014/missao-entender-a-missao-da-petrobras> Acesso em 06 de outubro de 2014. ** Núbia Elizabeth; Anderson Avelino de Oliveira Santos.
9 Ibid.
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A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO PENAL MÍNIMO EM RELAÇÃO AOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Eros de Almeida Ruas Cunha 1 Eduardo Nepomuceno 2 Banca examinadora** RESUMO: O presente trabalho objetiva um novo tratamento aos crimes contra a administração pública, reinterpretando sua potencialidade ofensiva e relativizando institutos que tutelam seus respectivos delinquentes em detrimento da sociedade. Propõe-se, portanto, os primeiros passos de um longo caminho que possibilite alterações relevantes no que tange os paradigmas vigentes de persecução criminal e seu rigor penal, sendo proporcionalmente compatível à gravidade em relação ao sistema legal atual. PALAVRAS-CHAVE: Crimes Contra a Administração Pública; Relativização do Direito Penal Mínimo; Direitos e Garantias Fundamentais; Persecução Criminal. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Natureza relativa dos direitos e garantias fundamentais; 3 Teoria dos Crimes Eva; 4 A relativização do Direito Penal Mínimo em relação aos Crimes Contra a Administração Pública; 5 Conclusão.
1 INTRODUÇÃO Desde os primórdios da colonização portuguesa em território brasileiro encontram-se registros de corrupção, datados do século XVI. Neste período, haviam frequentes transgressões cometidas por funcionários públicos do império, sobretudo aqueles responsáveis pela fiscalização do contrabando, que acabavam por delinquir justamente através da prática do delito em que possuíam como ofício controlar, praticando, dentre vários outros, o comércio ilegal de matérias-primas como o pau brasil, ouro e diamante, através do consentimento direto da monarquia, que gozava de ganhos pecuniários robustos provenientes destes atos (BIASON, 2013). A chamada “cultura de corrupção” instaurada neste país, originada pelos europeus e amplamente absorvida pelo povo brasileiro, já possui alcance suficiente para se considerar tal prática como forma de governo, ao se afastar a república e substituí-la por uma res politicae, justificada nos intermináveis escândalos políticos relacionados à necessidade compulsiva desta classe em levar vantagem pessoal sobre os cofres públicos. Para a prática do referido feito, observa-se uma preponderância de representantes sobre representados, diante da imposição de limitações educacionais que visam impossibilitar o discernimento necessário para se distinguir o razoável do inviável em uma eventual disputa eleitoral. É possível observar no Brasil a existência de uma classe política possuidora de poderes blindados, de natureza antidemocrática, que se mantém no poder através da subtração do erário e de imensuráveis patrocínios privados que, em regra, têm origem naqueles que compõem a 1ª classe do domínio estatal, que por sua vez concedem àqueles, interessados em uma representação corruptível, meios para se perpetuarem no poder. Neste sentido, constata-se a incapacidade do homem médio de analisar as nuances entre a responsabilidade política e a potencialidade dos diversos crimes dos quais é vítima. Diante de um fato delituoso, é instantaneamente criado um juízo de valor generalizado, pautado unicamente em uma visão imediatista de certo e errado, que resulta na reprovação de criminosos ordinários como inimigos de Estado, implicando a estes uma responsabilidade moralmente injustificada, apesar de ser juridicamente plausível. O Estado, ao deixar de cumprir com suas obrigações basilares, norteadas por direitos e garantias fundamentais originadas dentro de suas limitações econômicas (sobretudo em consequência do
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desfalque criminoso conferido ao que é arrecadado do contribuinte segundo os ditames da Constituição Federal), provoca uma desordem social capaz de manter toda uma nação sob o caos de uma criminalidade endêmica, por consequência das necessidades humanas básicas não supridas. Tais considerações provocam um círculo vicioso que abrange o comum equívoco da população em eleger representantes indignos, que por sua vez é causado por limitações impostas pelos mesmos que já estão no poder, completando-o com a recorrente omissão estatal, renovada a cada eleição, mantendo o alcance educacional dentro do padrão ideal para a manutenção do poder pela mesma grei. Desta forma, o foco popular se volta à ineficiência da segurança pública ao invés do congresso nacional, sem se ater que aquela é mais uma vítima do atual sistema de abandono conferido por este (sem prejuízo da responsabilidade dos outros poderes), diante dos vários setores essenciais à administração pública. Assim como a teoria dos frutos da árvore envenenada, que determina a ilicitude de uma prova por ser proveniente de outra ilícita, provoca-se também tal efeito nas instituições estatais, causando uma impressão permanente de desvalorização ética que se justifica basicamente pela impunidade conferida aos praticantes de delitos contra a administração pública. Neste ínterim, o presente artigo tende a justificar a necessidade de uma mudança de paradigma relacionada a estes crimes, buscando delimitar a gravidade dos mesmos além dos limites atualmente impostos e denominando-os como “Crimes Eva”, em alusão à personagem das tradições judaico-cristã e islâmica, devido ao condão desta classe delitiva em originar o cometimento de outros tipos penais. Importante destacar, portanto, o sentido de Administração Pública no ordenamento jurídico criminal, segundo as palavras de Masson: O Código Penal, por sua vez, concebe a Administração Pública em sentido amplo, ou seja, não somente como o exercício de atividades tipicamente administrativas, mas como toda atividade estatal, quer no seu aspecto subjetivo (entes que desempenham funções públicas), quer no seu aspecto objetivo (qualquer atividade desenvolvida para satisfação do bem comum). Em síntese, no campo do Direito Penal a Administração Pública equivale a sujeito-administração e atividade administrativa. Enfim, no Direito Penal existe um conceito extensivo de ‘Administração Pública’, abrangente de toda ativida-
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de funcional do Estado e dos demais entes públicos. De fato, o legislador classificou no Título dos Crimes contra a Administração Pública os ilícitos penais que têm como características comum a ofensa à atividade do Estado ou de outras entidades públicas (MASSON, 2012, p. 256). Seguindo o raciocínio traçado pelo Eminente Ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento da ação penal n. 470, perante o Supremo Tribunal Federal, indaga-se: há meio viável de potencializar a persecução penal contra os responsáveis por esta “perversão da ética do poder e da ordem jurídica”? (AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa). 2 A NATUREZA RELATIVA DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS Diante do tema proposto, é imprescindível a busca pela compreensão das limitações constitucionais relacionadas ao poder punitivo estatal, no que tange, em primeiro plano, àquelas impostas pelo Supremo Tribunal Federal e, por conseguinte, ao entendimento de parte da doutrina no que se refere aos direitos e garantias fundamentais. Através desta análise será possível determinar até que ponto a Constituição Federal sustenta o amparo aos praticantes de crimes contra a administração pública. Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino demonstram a natureza relativa dos direitos fundamentais, que nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, “não dispõem de caráter absoluto, visto que encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto constitucional” (2010, p. 103). Conforme o ensinamento supra, destaca-se o caráter limitado dos direitos e garantias fundamentais diante da impossibilidade dos mesmos sobrepuserem seus efeitos sobre outros igualmente previstos na Carta Magna, resultando na convergência natural para o equilíbrio quando o conflito for iminente. Nesse sentido, os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal: (...) OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. (...) (ARE 731833 RS, Rel. Min. Celso de Mello) O referido julgado demonstra o princípio da relatividade em sua mais ampla concepção, conferindo um entendimento aplicável à tese em pauta. Neste quesito, há de se diferenciar a mera tutela Estatal para com o cidadão de delinquência ordinária com a tutela de similar eficácia disponibilizada aos praticantes dos Crimes Eva, sob o risco de uma proteção desproporcional ao indivíduo em detrimento de toda a coletividade. Pela perspectiva deste tema, a relatividade se apresenta a partir do instante que determinado crime contra a administração pública é consumado, pois, ao limitar a sociedade dependente do erário para se atingir a mínima dignidade social, o agente delituoso se coloca
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moralmente aquém da condição de cidadão, como membro da sociedade, devido à prática de uma conduta impiedosa que atinge quantidade incontável de vítimas. A partir deste instante se consagra o princípio nuclear desta tese, qual seja, a relativização dos direitos e garantias fundamentais aos respectivos sujeitos ativos destes crimes, diante da incoerência jurídica resultante da proteção estatal conferida àqueles que desestruturam toda sua base, como um remédio que ao ser criado para curar uma moléstia acaba por preservar uma doença ainda mais grave. 3 TEORIA DOS CRIMES EVA A fim de iniciar o desenvolvimento do tema tratado neste tópico, menciona-se a célebre frase de Berthold Brecht, encartada por Três em seu trabalho acerca dos chamados Crimes do Colarinho Branco, segundo o qual “Todos consideram o rio violento. Ninguém, todavia, consideram violentas as margens que o oprimem.” (TRÊS, 2006, p. 10). Obsessão da humanidade no plano político da era moderna, o controle absoluto da criminalidade é um objetivo de alcance improvável. O crime possui um conceito abstrato, criado a partir de dogmas absorvidos pelo ser humano ao decorrer da história, os quais tornam determinadas atitudes incompatíveis com o que se espera de um homem médio, resultando, portanto, em uma imprescindível atuação estatal para coibir tais condutas que não se compatibilizam ao modelo vigente de sociedade. Neste ínterim, constatam-se em primeiro plano três influências basilares à tipificação penal, quais sejam: valores inerentes à racionalidade humana, que criam por si só o repúdio por determinadas atividades que possuem reprovação arraigada no tempo; religiosas, enraizadas na sociedade independentemente de participação ativa em quaisquer cultos; político-empresariais, ou simplesmente econômicas, que se entrelaçam na legislação penal, consolidando ao invés da positivação do interesse social, os interesses das classes supra referidas, majoritariamente compostas pela camada economicamente mais privilegiada, preponderando sobretudo seus interesses pecuniários e subsidiariamente a suposta moral e os bons costumes contemporâneos. No plano político, conferem-se poderes distorcidos em relação aos seus objetivos legais. Tais poderes são assegurados através de práticas imorais provenientes dos componentes desta classe, resultando, em regra, na certeza da impunidade. Deste modo, o controle administrativo, em conjunto com a legislação que inobserva a desproporcionalidade dos tipos penais quanto à lesividade da conduta, proporciona uma deficiente repressão aos delitos que germinam as limitações da sociedade, frustrando a consolidação de nossas instituições, nos dizeres do Eminente Ministro Celso de Mello, (AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa). É evidente o desinteresse governamental proposital em vários aspectos, sobretudo em relação à criação de meios que propiciem aos cidadãos condições básicas de discernimento político, conduta essencial ao aprimoramento de projetos de poder. Fator primordial para o referido objetivo consiste na sabotagem da educação em prol da perpetuação destas oligarquias no topo do poder. Tal limitação é consequência de um bloqueio proposital do próprio Estado, que visa atingir este pilar essencial para o desenvolvimento de qualquer nação e para a autonomia ideológica dos cidadãos. Ao se restringir a capacidade de toda uma população através destes meios inidôneos, ocorrem mutações sociais decorrentes de expectativas frustradas, provenientes de pessoas debilitadas pelo sistema que, ao enxergar manifesta incapacidade para atingir uma qualidade de vida razoável, se enxergam a mercê de dois destinos: um primeiro, rumo à plena submissão ao sistema, provocando a inclusão desta relevante parcela da sociedade em condições sub-humanas, sobremaneira dependentes de políticas assistencialistas quando não alcançam a barreira do desemprego crescente; o outro, que segue
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através do caminho da transgressão do pacto social, ou seja, a prática delituosa visando melhores condições socioeconômicas. Ambos, por si só, garantem a fidelidade eleitoral. Se constata nesta situação imposta pelo Estado o encurralamento social do indivíduo, ao deixá-lo desprovido de condições dignas de subsistência e, consequentemente, originando desde a infância o animus delinquendi. É determinante enfatizar ainda o poder da citada classe em convalescer-se. Mesmo quando fogem à regra, sendo alvo de acusações formais e condenados posteriormente, promovem uma volta grosseira ao mundo político, atropelando a recente legislação (de iniciativa popular) da “ficha limpa”, ou na ocorrência da execução penal, através de regalias quando se encontram em cárcere, ignorando de forma plena o princípio constitucional da isonomia. Contudo, tal situação não ocorre somente da omissão Estatal, apesar desta ser imprescindível como instrumento de perpetuação eleitoral. Outro motivo crucial para se perenizar no poder, com um controle que transcende o voto popular e inescrupulosamente atinge o cume do dos três poderes, é a reiterada conduta referente aos crimes contra a administração pública, delitos de potencialidade imperiosa previstos em nosso ordenamento jurídico penal, tratados neste artigo como Crimes Eva. Tal denominação é inspirada na passagem bíblica judaico-cristã e na tradição islâmica, as quais relacionam esta personagem, Eva, com a origem de toda a humanidade. Metaforicamente, relacionam-se todos os crimes contra a administração pública - previstos no Título XI do Código Penal Brasileiro e em leis extravagantes que possuem esta mesma natureza - como crimes diferenciados, possuidores de um potencial lesivo superior a qualquer outro, inclusive aos hediondos, apesar da possibilidade dos tipos penais de corrupção ativa e passiva, peculato, concussão e excesso de exação ingressarem neste rol através do PL 5900/13. Neste sentido, a valiosa síntese de Dometila, citada por Três, a respeito do tema: Partindo-se do fato de ter a ordem constitucional vigente projetado um modelo econômico capaz de concretizar os direitos sociais (nela sensivelmente alargados), e implementar a justiça social (por ela almejada), não é difícil concluir que a criminalidade contra a ordem econômico-financeira solapa a concretização dos direitos sociais e a consecução da justiça social. Enquanto a criminalidade clássica, em níveis endêmicos, é forma enfurecida de protesto, é patologia social,como demonstrado pelo citado psicanalista - Freud -, a criminalidade econômica, gerada pela ânsia de lucros desmedidos, pelo individualismo egoístico, pela falta de solidariedade social é, sem dúvida, causa sociológica desse protesto criminoso, por aumentar a marginalização social (2006, p. 8). Importante destacar que os referidos delitos possuem um duplo efeito, sendo o primeiro causado contra a sociedade, de forma explícita, ao atingir diretamente o erário, enriquecendo ilicitamente seus agentes. Um segundo efeito, indireto e mais grave na perspectiva da segurança pública, é o que impede toda uma população dependente das instituições e políticas públicas relacionadas ao desfalque criminoso de desenvolver meios para se garantir uma dignidade mínima, originando delinquentes em potencial por consequência da carência econômica que se perpetua contra os mesmos, sabotando a ascensão econômica do povo (possibilidade inerente a qualquer Estado pautado em um sistema democrático e capitalista), diante de um Estado que a cada dia se torna mais adepto de uma governança meritocrática. Através de tais ponderações, se considera notória a necessi-
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dade da reação Estatal em tratar os respectivos crimes com um rigor superior aos preceitos de um direito penal mínimo, política criminal incompatível com sujeitos delituosos que possuem poderio político-econômico ilimitado, proveniente de uma complexa blindagem adquirida por meios inescrupulosos, impedindo a jurisdição de ser aplicada de forma proporcional à ofensividade causada aos inúmeros bens jurídicos tutelados. Conforme brilhante passagem da Teoria Geral dos Crimes pelo Colarinho Branco, se compreende a real potencialidade dos Crimes Eva: A delinquência do colarinho branco não subordina-se aos limites da criminalidade convencional. Inexiste “locus delicti”. É onipresente, difuso. É perpetrado, simultânea ou sucessivamente, em várias localidades do território, tanto o nacional como o transnacional, a exemplo da sonegação fiscal/lavagem de dinheiro por grandes corporações multinacionais, cuja evasão consuma-se em cada um dos seus incontáveis estabelecimentos/representações, além dos conhecidos paraísos fiscais - “off shore” - (expressão eufemística, eis que não são asilos apenas fiscais, sim da delinqüência em geral). Também não há “tempus delicti”. O tempo que medeia execução e consumação não é sequer quantificável. É o real, instantâneo, a reboque da alucinante velocidade das comunicações, como estampado nos bilionários crimes contra o sistema financeiro (...) Inocorre, “ipso facto”, “testis delicti”. Ausente qualquer testemunha. Se desde a antigüidade consagrou-se a insuficiência de uma testemunha - testis unus, testis nullus -, a fortiori, sequer dela. No máximo, são presenciadas frações da empreitada criminosa, isoladamente, atos lícitos (...) (TRÊS, p. 14). Destarte, tomando por referência os aspectos desta modalidade delitiva estabelecidos por esta respeitável doutrina, não restam dúvidas quanto ao padrão exclusivo conferido a estes delitos, pois, considerando a inexistência dos aspectos mencionados acima, conclui-se pela óbvia necessidade de um modelo aperfeiçoado de persecução criminal, desde a fase investigatória à execução penal. 4 A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO PENAL MÍNIMO EM RELAÇÃO AOS CRIMES CONTRA A ADMNISTRAÇÃO PÚBLICA Os crimes contra a administração pública, ou simplesmente “Crimes Eva”, possuem uma potencialidade extraordinária. Para se combater esta constante ameaça que assola a sociedade, não se encontra outra alternativa viável a não ser aumentar o rigor da legislação penal, reinterpretando dentro da Constituição Federal de 1988 direitos e garantias fundamentais que possuem o condão de assegurar a impunidade prática ao delinquente que o comete. A hermenêutica atualmente conferida às referidas tutelas constitucionais, (genitoras do Direito Penal Mínimo no ordenamento jurídico pátrio), tem de ser recriada, reestruturada em uma jurisprudência fidedigna que de fato irá amparar o maior número de indivíduos, no que tange especificamente à desproporcional proteção conferida aos agentes delituosos destes crimes com a respectiva gravidade desta conduta. Queiroz, citado por Gomes Duarte Neto, explana de forma objetiva este caminho normativo: Dizer que a intervenção do Direito Penal é mínima significa dizer que o Direito Penal deve ser a ‘ultima ratio, limitando e orientando o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta somente se justifica se constituir um meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. O Direito Penal somente deve atuar quando os demais ramos do Direito forem insuficientes para
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proteger os bens jurídicos em conflito (QUEIROZ apud GOMES DUARTE NETO, 2009). Incoerente se torna a aplicação deste diante de manifesta promiscuidade envolvendo os interesses nacionais, desvirtuados por representantes legitimamente eleitos, mas imoralmente escolhidos. Se entende, portanto, extremamente necessária a alternância de modelo normativo de direito. O garantismo, espécie de Direito Penal Mínimo, pode ser considerado um caminho falho quando relacionado aos crimes contra a administração pública, por serem os mesmos originadores da omissão estatal que influencia diretamente na incidência criminal de parcela relevante da população. Sobretudo, este modelo normativo, quando aplicado aos praticantes dos crimes contra a administração pública, vai de encontro ao seu objetivo essencial ao resguardar garantias àqueles que deturpam a consolidação das instituições em detrimento das liberdades individuais da população. Obsessão em qualquer Estado moderno republicano, a priorização de políticas públicas voltadas ao aperfeiçoamento do índice de desenvolvimento humano da sociedade, que abrange, entre outros, os três pilares eternamente prometidos em toda disputa eleitoral, quais sejam, educação, saúde e segurança pública, são prioridades governamentais inexistentes na prática. Tais prioridades se relacionam ao tema em seu aspecto complementar de um ideal de sociedade e, principalmente, como a causa e solução do mesmo, fato este que destoa da gravidade da responsabilidade penal observada nos respectivos dispositivos legais. Dieter, citando Santos, demonstra a interdependência destes pilares sociais com a prática delitiva, relacionando-os com a desordem generalizada nas instituições que solidificam a democracia e sustentam o bem-estar social: No Brasil e, de modo geral, nos países periféricos, a política criminal do Estado exclui políticas públicas de emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade; por isso, o que deveria ser a política criminal do Estado existe, de fato, como simples política penal instituída pelo Código Penal e leis complementares – em última instância, a formulação legal do programa oficial de controle social do crime e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal (DIETER, p. 2) Objetivando soluções plausíveis para este impasse, enxerga-se um caminho tortuoso diante da incompatibilidade do ordenamento jurídico penal com o rigor necessário para se alcançar níveis menores de impunidade. Busca-se, portanto, um viés de parcialidade diante do tratamento propiciado aos delinquentes dos “Crimes Eva”, materializando sobremaneira uma jurisprudência capaz de superar o manto protetor da Constituição e as deficiências da legislação penal, convergindo ideias baseadas em uma reinterpretação de dispositivos constitucionais que visem tutelar os bens jurídicos essenciais à coletividade em prejuízo da liberdade infame destes agentes delituosos e, por conseguinte, instituir uma punição efetiva, diferenciada defronte a este contexto único de potência delitiva. Neste diapasão, é importante destacar a aplicação do princípio da insignificância sobre os tipos penais desta estirpe, os quais, por si só, permitem uma omissão de natureza garantista da aplicação da norma,
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abrindo um flanco relevante que subestima a gravidade destes crimes. Para se compreender o referido princípio, é imprescindível destacar alguns pontos do conceito de crime. Segundo Correra, “o ponto de ligação entre esse princípio e o conceito de crime se dá no fato típico” (2014). Conforme Prado apud Correra, defendendo o entendimento de que: O fato típico tem profunda função de garantia, na medida em que deve descrever, com precisão, a conduta que imputa a pena cominada. Dessa forma, somente com a perfeita subsunção do fato à norma (tipicidade) é que haverá a incidência da norma penal (PRADO apud CORRERA, 2014). Ainda entende-se necessário destacar parte relevante do conceito majoritário de crime, onde se observa a necessidade da violação ao bem jurídico tutelado para a sua configuração. O princípio da insignificância, conforme explanação concisa de Cleber Masson: Surgiu no Direito Civil, derivado do brocado de minimus no curat praetor. Em outras palavras, o Direito Penal não deve se ocupar de assuntos irrelevantes, incapazes de lesar o bem jurídico legalmente tutelado. Na década de 70 do século passado, foi incorporada ao Direito Penal pelos estudos de Claus Roxin. Este princípio, calcado em valores de política criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal. Para o Supremo Tribunal Federal, a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação desse princípio (MASSON, 2012, p. 26/27). Conforme importante explanação de Correra, compreende-se que através deste princípio, tem-se somente a tipicidade formal, ou seja, adequação entre o fato praticado pelo agente e a lei penal incriminadora. Ademais, não encontra respaldo em relação à “tipicidade material, compreendida como o juízo de subsunção capaz de lesar ou ao menos colocar em perigo o bem jurídico penalmente tutelado” (2014). Sendo considerada, portanto, uma causa supralegal de exclusão de tipicidade. No que tange especificamente aos crimes contra a administração pública, observa-se divergência na doutrina e na jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal possui o mesmo entendimento da doutrina, conferindo possibilidade à aplicação do princípio da insignificância. Nesse sentido, o seguinte julgado: AÇÃO PENAL. Delito de peculato-furto. Apropriação, por carcereiro, de farol de milha que guarnecia motocicleta apreendida. Coisa estimada em treze reais. Res furtiva de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Circunstâncias relevantes. Crime de bagatela. Caracterização. Dano à probidade da administração. Irrelevância no caso. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento (HC 112388 SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Entretanto, observa-se uma ressalva desta compreensão em relação aos crimes militares, pois a Suprema Corte adota princípios tipicamente militares ao negar a aplicação da insignificância em sua
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jurisdição, mais precisamente quanto à autoridade e à hierarquia: EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. USO INDEVIDO DE UNIFORME MILITAR (CPM, ART. 172). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. O princípio da insignificância não é aplicável no âmbito da JustiçaMilitar, sob pena de afronta à autoridade, hierarquia e disciplina, bensjurídicos cuja preservação é importante para o regular funcionamento dasinstituições militares. Precedente: HC 94.685, Pleno, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 12/04/11 (...) (HC 108.512-BA, Rel. Min. Luiz Fux) Diante dos valores e princípios propostos neste trabalho, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é a mais adequada e convergente ao tratamento intentado a estes crimes, não entendendo ser a aplicação do princípio da insignificância compatível com a moral administrativa, ignorando, portanto, a suposta ausência de dano ao bem jurídico tutelado. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTOS INSUFICIENTES PARA REFORMAR A DECISÃO AGRAVADA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. A agravante não apresentou argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada, razão que enseja a negativa de provimento ao agravo regimental. 2. O acórdão recorrido está em perfeita consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, firme no sentido de que não se aplica, em regra, o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, uma vez que a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial mas principalmente a moral administrativa. 3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no AREsp: 342908 DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze). Apesar das divergências expostas, é possível afirmar que, atualmente, prevalece o entendimento no sentido de que há possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, sendo insuficiente, para afastá-lo, a alegação de que, nesses casos, a moral administrativa é sempre afetada. O presente trabalho diverge da posição majoritária da doutrina e jurisprudência. Os crimes Eva são, sobremaneira, ultrajes não somente à moral administrativa, mas também à eficiência da própria máquina estatal que, por sua vez, reflete diretamente na qualidade de vida e na dignidade de toda a sociedade. Ao se evidenciar a incompatibilidade dos Crimes Eva com o Direito Penal Mínimo e os preceitos garantistas da Constituição Federal, resta ser demonstrado meios relevantes no que se refere à eficaz punibilidade aos seus praticantes. Luis Flávio Gomes, apoiando-se nos ensinamentos de Beccaria, destaca que “é a certeza do castigo que pode diminuir os delitos. A pena não precisa ser severa ou cruel, basta que seja certa (infalível)” (GOMES, 2014). O que se propõe não é o aumento da pena além do constitucionalmente previsto nem punições de natureza medieval que atropelem o ordenamento jurídico como um todo. Para a real viabilidade do combate aos Crimes Eva, tem-se como objetivo fim a erradicação da impunidade, que impede a mínima aplicabilidade do caráter retributivo e a eficácia do caráter preventivo da pena. Esta ocorre devido ao poder ilimitado que detentores de grandes capitais possuem ao se tornarem invisíveis por não serem investigados, inacusáveis por não alcançarem-nos as provas constitu-
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ídas e, na eventualidade da ocorrência de um julgamento, impuníveis devido à generosidade da legislação penal. Considerando os institutos atualmente vigentes no ordenamento jurídico pátrio, cabe enfatizar a delação premiada, instituto conferido àqueles que colaboram com as diligências investigativas. O referido benefício normativo está sendo difundido em larga escala na legislação penal, constatando-se um raro mérito aos parlamentares nos trabalhos referentes à seara penal. A Delação Premiada foi instituída em variados textos legislativos na últimas duas décadas, quais sejam: Lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990); Lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei9.807/1999); Lei do crime organizado (Lei 9.034/1995); Lei de lavagem de capitais (Lei9.613/1998 e 12.683/12); Nova lei de drogas (Lei 11.343/2006); leniência nos crimes econômicos. Baseado na explanação interessante acerca da relevância da Delação Premiada, Gomes destaca que “a lei mais completa sobre delação é a 12.850/13 (nova lei do crime organizado) que permite diminuir pena, mudar o regime do seu cumprimento, perdoar o colaborador totalmente ou mesmo nem sequer denunciá-lo (não processá-lo)” (2014). Visando a necessidade de aperfeiçoamento da delação premiada, indiscutivelmente o principal instituto vigente relacionado ao presente tema no Brasil, entende-se cabível a adoção das normas instituídas na nova lei do crime organizado - 12850/13 em todas as legislações que preveem a tipificação de crimes contra a administração pública, convergindo neste sentido em um primeiro passo, curto, lógico, porém essencial, através do qual se obterá uma real paridade de armas na instrução processual, e, consequentemente, um meio definitivo de persecução penal em todas as esferas possíveis. 5 CONCLUSÃO Acerca da problemática abordada neste trabalho, destaca-se a marcante frase de Thomas Lynch, disponibilizada por Três em sua obra Crimes do Colarinho Branco: “Los mayores crímenes de hoy implican más manchas de tinta que de sangre” (TRÊS, 2006, p. 07). O presente trabalho, sobretudo, propôs um novo tratamento aos praticantes dos crimes contra a administração pública, denominados especificamente como Crimes Eva. Observa-se desde a chegada dos Europeus no Brasil e a respectiva consolidação da Monarquia, a ocorrência de frequentes episódios relacionados a estes delitos, fato este que colaborou significantemente para a perpetuação desta prática, de forma reiterada, convergindo para a instauração da República baseada na chamada “cultura de corrupção”. A Constituição Federal de 1988 foi determinante para a solidificação das liberdades individuais, fato meritório que converge com uma legislação penal garantista, que visa disponibilizar direitos e garantias fundamentais para delinquentes de toda estirpe, desde os praticantes de crimes de menor potencial ofensivo àqueles considerados hediondos. Por outro lado, há uma evidente desproporcionalidade no que tange às consequências de determinados crimes com a tutela propiciada pelos ditames constitucionais e suas respectivas leis. Os Crimes Eva diante de uma perspectiva lógica, generalizada, excepcionando os pontos fora da curva, podem ser considerados a origem de todos os outros, ao limitar todo aquele sob a administração do ente federativo sabotado, causando restrições que impedem a manutenção ou ascensão sócioeconômica compatíveis com uma vida digna em sociedade. Diante de tais constatações, se torna necessária a busca por soluções plausíveis de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. A relativização do Direito Penal Mínimo no combate a estes crimes
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pode ser considerada um primeiro passo, de muitos, que visaria garantir uma incidência menor de impunidade prática, ou seja, aquela que mesmo quando condenado o delinquente, este se vê amparado por uma legislação generosa que inobserva o caráter preventivo e retributivo da pena. Não obstante a jurisprudência, acompanhada da doutrina em sua maioria, possui um posicionamento que vai de encontro ao presente trabalho, no que se refere ao princípio da insignificância aplicado a estes crimes que, por si só, se materializa em uma brecha legislativa que prepondera sobre um maior rigor proposto nesta dissertação. Entretanto, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (corrente adotada neste trabalho), posicionando-se de maneira louvável, considera a moral administrativa princípio inatacável, que, se tratado de outra forma, deprava a administração pública refletindo em toda a população sob sua correspondente gerência. Portanto, não se considera insignificante qualquer violação desta espécie para fins jurisdicionais. Ademais, além da não aplicabilidade do princípio da insignificância, entende-se necessário o aperfeiçoamento da Delação Premiada, instituto essencial à real paridade de arma e à consequente tutela do erário, uma vez que este, quando subtraído, é usado como meio de poder para garantia da impunidade. Propõe-se neste artigo a absorção de normas instituídas na nova lei do crime organizado 12850/13 (a mais completa no que se refere à Delação Premiada), pelas demais legislações concernentes aos Crimes Eva, resultando em uma maior abrangência deste instituto (que se destaca dentre os demais em vigência), em prol do combate a estes crimes, contribuindo inequivocamente em uma maior eficiência da persecução criminal dos respectivos agentes delituosos. Há uma relação explícita entre os altos índices de criminalidade contra a administração pública com a endêmica prática delituosa dos demais, resultando em um manifesto subdesenvolvimento estatal. Exige-se, portanto, uma atuação vigorosa das autoridades públicas, objetivando, sobretudo, uma nova tendência normativa e jurisprudencial voltada à erradicação da impunidade, que influenciará diretamente na economia e, por consequência, em menores índices de criminalidade e na qualidade de vida da população. REFERÊNCIAS BIASON, Rita. Breve história da corrupção no Brasil. Disponível em: <http:// www.contracorrupcao.org/2013/10/breve-historia-da-corrupcao-no-brasil. html>. Acesso em: 22 out. 2014. BRASIL. Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado. htm.>. Acesso em 22 out. 2014. CARVALHO, Joana de Moraes Souza Machado de. Colisão de Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009. CARVALHO. Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1992. CORRERA, Marcelo Carita. O princípio da insignificância e os crimes contra a administração pública. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/30571/o-principio-da-insignificancia-e-os-crimes-contra-a-administracao-publica>. Acesso em: 10 nov. 2014. DIETER, Maurício Stegemann. A função simbólica da pena no Brasil: breve crítica à função de prevenção geral positiva da pena em Jakobs. Disponível em: <file:///C:/ Users/usuario/Downloads/7036-19293-1-PB.pdf>. Acesso em: 22 out. 2014. FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. GOMES DUARTE NETO, Júlio. O Direito Penal simbólico, o Direito Penal mínimo e a concretização do garantismo penal. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 66, jul 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.
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NOTAS DE FIM 1 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton. 2 Mestre, Especialista em Ciências Penais; Professor do Centro Universitário Newton da Disciplina Processo Penal e Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. ** Eduardo Nepomuceno; Cristian Kiefer da Silva.
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A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO DOENÇA AOS DEPENDENTES QUÍMICOS SOB CONDIÇÕES QUE IMPLEMENTEM SUA REAL FINALIDADE Gláucia dos Santos Fonseca1 Anderson Avelino de Oliveira Santos2 Banca examinadora**
RESUMO: A incidência de dependentes químicos vem crescendo gradativamente no Brasil. Com a possibilidade e concessão do benefício de auxílio doença à esses dependentes, é necessário que se faça uma política de fiscalização e implementação de medidas, para que esse benefício seja realmente destinado à reabilitação dessas pessoas. Esse estudo, visa contribuir com a Previdência Social, em observância ao princípio da eficiência, na qual possibilite a esses beneficiados a um tratamento, que promova a readaptação social e o retorno ao trabalho, onde possa perceber a efetividade do emprego desse benefício e um controle finalístico dos cofres públicos. PALAVRAS-CHAVE: Direito Previdenciário. Auxílio-doença. Dependentes Químicos. Princípios da eficiência e solidariedade. Implementação de Condições. Finalidade. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Breve histórico; 3. Princípios que regem a previdência social; 4. Auxílio-doença para dependentes químicos; 4.1 Condições que implementam a real finalidade do beneficio de auxilio doença aos dependentes químicos; 5. Conclusão; Referências.
1 INTRODUÇÃO A escolha deste tema se deu em razão da preocupação com a Seguridade Social principalmente com a concessão do benefício de auxílio-doença aos dependentes químicos, bem como pela potencial e impactante consequência que este tipo de incapacidade tem trazido para a nossa sociedade. O objetivo principal do estudo é demonstrar a necessidade de concessão do benefício previdenciário aos dependentes químicos desde que cumpridos alguns requisitos condicionais, que serão apresentados em momento oportuno. Para realização do presente estudo, utiliza-se de dados que permitem demonstrar a significativa quantidade de benefícios concedidos e a inexistência de acompanhamento destas concessões ocasionando muitas reincidências de requerimento, e por óbvio novas concessões. Ressalta-se também a importância do estudo até mesmo para os cofres da Previdência Social, uma vez que, o efetivo tratamento é capaz de diminuir a reincidência de concessões, bem como permitir a reinserção do usuário no mercado de trabalho. Ao longo do trabalho, demonstra-se o entendimento de que a criação de lei que estabeleça regras especificas para a concessão do benefício de auxilio doença aos dependentes químicos é de grande utilidade, haja vista que sua efetividade apenas será alcançada com implementação de condições pré-estabelecidas, que ainda não encontram qualquer disciplina em nossa legislação. A Lei nº 8.213/1991, estabelece tão-somente que o benefício de auxílio-doença é concedido aos segurados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em razão de incapacidade temporária para o exercício de seu trabalho habitual (BRASIL. Lei nº 8.213, 1991). Registre-se ainda, que para os casos de incapacidade em virtude de dependência química, é necessário apresentar laudo demonstrando acompanhamento médico. Veja que a lei não trata especificamente do benefício em comento. Entende-se, portanto, que é necessária legislação específica disciplinando o tema. Determinando o momento de concessão do
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benefício, e suas especificidades. Questionando, ainda se seria o caso de várias prorrogações do beneficio de auxílio-doença ou até mesmo a concessão de aposentadoria por invalidez. Justifica-se, portanto, a importância do presente estudo como uma forma de sanar o problema atual de nossa sociedade, qual seja, a concessão do benefício sem a garantia da efetividade no tratamento e até mesmo para que se utilize essa nova forma de concessão como uma forma preventiva de gastos para os cofres da previdência em relação aos casos que estão por vir. Portanto, não restam dúvidas da necessidade existente em discutir o assunto e que certamente levará a conclusão de necessidade de mudança em nossa legislação atual, quem sabe, uma alteração da Lei nº 8.213/1991. 2 BREVE HISTÓRICO Discorrer-se-á, inicialmente, acerca da Seguridade Social, como instrumento do Estado Democrático de Direito que permite a manutenção da ordem social em condições favoráveis ao desenvolvimento humano. Tem-se que a legislação social em nosso país começou decidida e efetivamente após a Revolução de 1930 (GOYATÁ,1979, p. 23). Iniciar-se-á este estudo com um breve histórico. Veja: Lei Eloy Chaves (nome do Deputado Federal que apresentou o projeto de Lei respectiva no cenário), conhecida como o marco do Direito Previdenciário, Decreto número 4.682 de 24 de janeiro de 1923, criou o primeiro sistema de Previdência Social para atender, especificamente, aos trabalhadores e ferroviários, com as denominadas Caixas de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários, garantindo a eles a proteção em caso de invalidez ou morte, além de proteção a título de assistência médica; Constituição de 1934 trouxe o direito à assistência médica, a direitos sociais o direito a benefícios como aposentadoria dos funcionários públicos; Diploma Constitucional de 1946 formalizou a ideia de Previdên-
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cia social, inseriu em seu titulo V, Da ordem econômica e social, nas garantias previstas no art. 157; Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), Lei nº 3.807 de 26 de agosto de 1960, sistematizou a previdência social, se manteve vigente até 1991, logo quando surgiram as atuais leis previdenciárias; dentre elas a Lei nº 8.213/1991, que disciplina o auxílio-doença. Nas precisas palavras de Mozart Victor Russomano (1967, p. 17), “o primeiro grande serviço, portanto, que nos foi prestado pela chamada Lei Orgânica da Previdência Social consistiu na uniformização das normas pertinentes a todos os órgãos previdenciais”. Enfim insta aqui ainda mencionar a Constituição Federal de 1988, onde foi formalizado e instituído o Sistema de Seguridade Social, como resultado da evolução histórica que formou o arcabouço jurídico necessário para que a sociedade brasileira tivesse garantidos seus direitos e prerrogativas em prol da justiça, do bem estar e da igualdade social (CUTAIT NETO, 2009, p. 34). Tem-se, portanto um pequeno esboço histórico acerca dos principais normativos que pretenderam tratar da Seguridade Social em nosso ordenamento jurídico. Lembrando ainda a necessidade de se observar os princípios que regem a Seguridade Social. 3 PRINCÍPIOS QUE REGEM A SEGURIDADE SOCIAL De grande importância citar o artigo 194 da Constituição Federal de 1988, que assim estabelece: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998); (BRASIL. Constituição, 1988) O primeiro princípio estampado no inciso I do artigo 194, mencionado acima, é o Princípio da Universalidade, aquele que pretende garantir a todos um tratamento igualitário perante a lei e as instituições sociais, consiste ainda em promover indistintamente o acesso ao maior número possível de benefícios, na tentativa de proteger a população de todos os riscos sociais previsíveis e possíveis (BRASIL. Constituição, 1988). O segundo princípio é o da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais impossibilitando quaisquer distinções entre trabalhadores urbanos e rurais. O terceiro princípio da seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços tem por finalidade orientar a ampla distribuição de benefícios sociais ao maior número de necessitados. Desta maneira, verifica-se claramente que o objetivo da Seguridade Social e exatamente manter um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme caput do artigo acima.
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Encontra-se ainda estampado em outros incisos diversos princípios que merecem também atenção, mas para o presente estudo não se pode deixar de ressaltar a importância dos princípios da solidariedade e da eficiência. O princípio da solidariedade traz a ideia da busca pela justiça, conceito muito discutido em termos constitucionais e filosóficos. Para Michel Cutait Neto (2009, p. 27) o mencionado princípio nada mais é que “um marco objetivo que estimula a sociedade a caminhar segundo os ditames da justiça, do bem-estar e da igualdade social”. Em uma pesquisa realizada no dicionário da língua portuguesa, tem-se a solidariedade como uma reciprocidade de obrigações e interesses. O que se verifica é exatamente o interesse de toda a sociedade destacando-se em relação ao interesse pessoal do indivíduo. Nesse sentido é a opinião do doutrinador acima mencionado, Michel Cutait ao discorrer acerca do princípio da solidariedade: Subsiste, portanto, a ideia de que a sociedade tem em comum determinados anseios que justificam que as pessoas individualmente, lancem mão de seus direitos e garantias e das suas prerrogativas em prol de valores que lhes são uníssonos, como a preservação da vida digna, o respeito ao próximo, a compaixão pelas mazelas sociais, a valorização do ser humano como parte de um todo, sem o qual o todo (a sociedade) não é capaz de seguir seu rumo no caminho da evolução e da manutenção da espécie humana.” (CUTAIT NETO, 2009, p. 18). Desta forma, o que se observa é a incessante busca em garantir que as oportunidades sejam compartilhadas entre todos, ainda que desiguais. Ressalta-se ainda que o princípio da solidariedade é fonte basilar do nosso Direito Previdenciário, não permitindo distinção entre aqueles que são seus segurados. Correlato ao princípio da solidariedade é o princípio da eficiência, que possui status constitucional já que estabelecido no art. 37 da nossa Carta Magna. A determinação deste é que o administrador do dinheiro público aja de maneira mais eficiente possível. Nas precisas palavras de Maria Sylvia Di Pietro (2004, p.186 ), o Princípio da eficiência apresenta dois aspectos, quais sejam: relativamente à forma de atuação do agente público, espera-se o melhor desempenho possível de suas atribuições, a fim de obter os melhores resultados;b) quanto ao modo de organizar, estruturar e disciplinar a administração pública, exige-se que este seja o mais racional possível, no intuito de alcançar melhores resultados na prestação dos serviços públicos. Assim, o princípio da eficiência tem a função de dar efetividade aos objetivos almejados pela sociedade, trata-se de uma implementação dos acordos realizados entre o particular e o Estado. Desta maneira, as duas formas estabelecidas por Maria Sylvia Di Pietro devem ser observadas sob pena de construção de projetos sem qualquer possibilidade de efetividade. Assim, cabe salientar que a concessão do benefício de auxílio-doença aos dependentes químicos nada mais é que a busca pela efetividade do bem estar social, através de concessões individuais daquele benefício. Tratar-se-à melhor deste benefício a seguir no capítulo seguinte. 4 AUXÍLIO DOENÇA PARA DEPENDENTES QUÍMICOS A concessão do benefício de auxílio-doença comum está disciplinada na lei nº 8.213/1991, art. 59. Art.59. O auxílio-doença será devido ao segurado que havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigida nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos. (BRASIL. Lei nº 8.213, 1991) Em linhas gerais a concessão do benefício de auxílio-doença demanda comprovação da qualidade de segurado, cumprimento do
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período de carência exigido em lei e incapacidade para o trabalho ou atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos e que a incapacidade seja temporária, parcial ou total. Exige-se ainda a realização de exame pericial médico a cargo da Previdência Social, para comprovação da incapacidade para o exercício de atividade capaz de lhe garantir a subsistência, podendo o segurado fazer-se acompanhar de médico da sua confiança. E igualmente, para que seja cancelado o dito benefício, o beneficiário deverá ser novamente submetido a perícia médica, não podendo a autarquia previdenciária suspendê-lo, aleatoriamente, em cumprimento ao denominado sistema de ‘alta programada’. Outrossim, tratando-se de incapacidade por dependência química é necessário o cumprimento de todos os requisitos acima impostos e ainda a apresentação de laudo que comprove a dependência química. Sabe-se desta necessidade de apresentação de laudo em razão da prática observada quando da concessão dos benefícios. Isto posto, verifica-se que a lei que disciplina a concessão do benefício de auxílio- doença aos dependentes químicos é a Lei nº 8.213/91, mais precisamente seu artigo 59, o que deixa muito a desejar em termos práticos, isso porque não há o tratamento da questão em comento com a especificidade que lhe é peculiar (BRASIL. Lei nº 8.213, 1991). Sabe-se que a dependência química é um fenômeno atual inserido na sociedade, encontrado em todas as classes sociais através de pessoas que usam de maneira excessiva substância tais como: o álcool, a cocaína, a maconha, o crack etc. Sabe-se ainda que o uso normalmente impossibilita seus usuários de permanecerem trabalhando por serem diagnosticadas incapacidades, no caso da dependência química, principalmente as psicológicas. De um estudo atento acerca do assunto, verifica-se através de artigos científicos, pesquisas administrativas no âmbito do INSS e jurisprudências no âmbito federal, que a concessão do benefício de auxílio-doença para dependentes químicos vem crescendo consideravelmente e a principal razão para esse crescimento, que nos diz respeito neste momento, é a falta da efetividade do tratamento feito pelo dependente químico durante o recebimento do benefício de auxílio-doença, ou até mesmo a não realização deste tratamento. Há um significativo acréscimo na concessão dos benefícios de auxílio- doença a dependentes químicos, o que implica em um gasto também significativo para os cofres da previdência social, razão pela qual a concessão deve ser limitada em especificidades do caso concreto e ainda em condições que implementem sua real finalidade, já que os números de reincidências no tocante a concessão dos benefícios também se mostram preocupantes. Em dados apresentados no site Jus Brasil - artigo publicado pelo renomado professor Luiz Flávio Gomes (2002) há informações que no ano de 2011 foram concedidos 124.947 auxílios-doença a dependentes químicos e o valor dessas concessões foi de R$ 107,5 milhões para o governo, o que representa para os cofres públicos uma expectativa bastante negativa. Ainda, informações constantes do site O Globo, indicam que os pedidos de auxílio-doença para os usuários de drogas triplicaram em oito anos (URIBE, 2014). Veja-se trecho da reportagem que trouxe números bastante preocupantes acerca da concessão deste benefício: Nos últimos oito anos, o total de auxílios-doença relacionados à dependência química simultânea de múltiplas drogas teve um aumento de 256%, pulando de 7.296 para 26.040. No mesmo período, o benefício concedido a viciados em cocaína e seus derivados, como crack e merla, também mais do que triplicou. Passou de 2.434, em 2006, para 8.638, em 2013, num crescimento de 254%. O uso de ma-
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conha e haxixe resultou, por sua vez, em auxílio para 337 pessoas, em 2013, contra 275, há oito anos.Os dados inéditos foram obtidos pelo GLOBO com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ao todo, nos últimos oito anos, a soma de auxílios-doença concedidos a usuários de drogas em geral, como maconha, cocaína, crack, álcool, fumo, alucinógenos e anfetaminas, passou de um milhão. Só em 2013, essa soma alcançou 143.451 usuários.Segundo o INSS, o total gasto em 2013 com auxílios-doença relacionados a cocaína, crack e merla foi de R$ 9,1 milhões. Os benefícios pagos a usuários de mais de uma droga somaram R$ 26,2 milhões. E a cifra total, relativa a todas as drogas (incluindo álcool e fumo), chegou a R$ 162,5 milhões.” Consumo de cocaína cresce no Brasil. A presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), a psiquiatra Ana Cecilia Petta Roselli Marques, observou que, por conta do aumento do consumo de cocaína e crack, era esperado que houvesse um impacto também no mercado de trabalho brasileiro. A última edição do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), promovido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostrou que, entre 2006 e 2012, duplicou o consumo de cocaína e seus derivados no Brasil. A pesquisa mostrou ainda que um em cada cem adultos consumiu crack em 2012, o que faz do país o maior mercado mundial do entorpecente. Na avaliação da psiquiatra, o consumo da droga já se tornou epidemia.— Era esperado que tivesse um impacto no mercado de trabalho do país, com repercussões, por exemplo, em auxílios-doença para cuidar da saúde. Por conta do uso, o trabalhador adoece cada vez mais cedo, principalmente do sistema cardiovascular. E há também a questão da mortalidade precoce. É uma epidemia, o que é visto pelo número de casos novos na população ao longo dos anos —explicou Ana Cecília.No ano passado, apenas os estados de Alagoas, Roraima e Sergipe não tiveram aumento do número de auxílios-doença relacionados ao uso de drogas em relação a 2012. Em São Paulo, estado que historicamente concentra o maior número de beneficiados, o total de auxílios-doença passou de 41 mil para 42.649. Na sequência, estão Minas Gerais (de 18.527 para 20.411), Rio Grande do Sul (de 16.395 para 16.632), Santa Catarina (de 13.561 para 14.176) e Paraná (de 9.407 para 10.369). O diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e outras Drogas (Inpad), o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, observa que o Brasil é um dos poucos países em que o consumo de crack e cocaína têm aumentado nos últimos anos. — As pesquisas mostram que há, nos domicílios brasileiros, um milhão de usuários de crack e 2,6 milhões de usuários de cocaína. E uma parcela dessas pessoas trabalha. Então, não há dúvida de que tem um impacto no mercado de trabalho. Em virtude do aumento da dependência química, o Ministério da Saúde informou que aumentará neste ano a capacidade de atendimento dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSAD) 24 horas. Atualmente, o Brasil tem 47 unidades em funcionamento, com capacidade para 1,6 milhão de atendimentos por ano. O governo federal afirma que vai construir mais 132 unidades até o fim do ano, elevando a capacidade para 6,1 milhões de atendimentos anuais. No Rio, concessão de benefício cresce 25% em um ano. No Rio de Janeiro, que historicamente é o sexto estado que mais concede auxíliosdoença relativos a drogas, o pagamento do benefício cresceu 10% em 2013, passando de 6.577, em 2012, para 7.234. No mesmo período, a quantidade de benefícios concedidos a dependentes químicos de cocaína e crack teve um aumento de 25,2%, crescendo de 471 para 590. No estado, sete de cada dez pacientes que procuram o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Uerj — uma das principais referências no assunto — são dependentes de crack. Em geral, eles têm a opção de aderir a um tratamento em um dos 27 Centros de Atenção Psicossocial (CAPSAD) existentes na capital
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fluminense. Os CAPS são unidades especializadas em saúde mental e buscam a reinserção social dos indivíduos que padecem de transtornos mentais graves e persistentes. Eles estão abertos ao usuário que quiser ajuda, mas também recebe pessoas encaminhadas pela assistência social ou por ordem judicial. Sua equipe é multidisciplinar e reúne médicos, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Mas os espaços para acolhida costumam ser pequenos para a demanda. Nesse cenário, sofrem até os bebês que são abandonados por mães viciadas em crack e superlotam os abrigos existentes. (URIBE, 2014) É claro que esta crescente procura aos benefícios de auxilio doença para dependentes químicos deve-se a diversos problemas sociais, que não são tema deste estudo, entretanto os índices são alarmantes e alertam acerca da regulamentação da concessão destes sob pena de permanecerem ineficazes e até mesmo ocasionarem um rombo irrecuperável para os cofres da previdência. Quando trata-se de doenças as quais considera-se para exemplificação deste estudo como “tradicionais”, tais como hérnias, lesões do ombro, fraturas, escolioses, verifica-se que o benefício de auxilio- doença deverá ser cessado tão logo realizado o exame pericial e constatada a volta da capacidade para o trabalho. Entretanto, quando trata-se da concessão do benefício de auxílio-doença para os dependentes químicos, questiona-se a efetividade deste tratamento. Isso porque estamos tratando de uma doença que não nos permite estabelecer data precisa ou provável de cessação. Explica-se abaixo. Sabe-se que a dependência química em termos bem simplistas é um transtorno mental. Normalmente os usuários de drogas e bebidas carecem de tônus vital, e deterioram a vida psíquica, emocional, espiritual e até mesmo física sem ter noção desta gravidade ou tendo sem saber como opor-se a este comportamento eficaz. Veja-se ainda que a concessão do benefício pode ser também uma outra fonte para o custeio dos vícios, a compra de álcool, drogas e demais substancias que ocasionam a dependência. É por esta e outras razões que se insiste em uma regulamentação acerca da concessão dos benefícios de auxílio-doença a dependentes químicos. Defende-se neste estudo a criação de um novo artigo na lei nº 8.213/1991, buscando implementar condições que garantam a efetividade do tratamento e a especificidade necessária ao caso em estudo (BRASIL. nº Lei 8.213, 1991). O próximo tópico deste artigo destina-se a demonstrar como deve ser a regulamentação da concessão deste benefício em questão. 4.1 Condições que implementam a real finalidade do beneficio de auxilio doença aos dependentes químicos Ante todo exposto e pelas razões até o momento expendidas, verifica-se uma necessidade de se implementar condições para a concessão deste benefício, quais sejam: o repasse financeiro a um dos membros da família, se responsabilizando pelo beneficiário, afim de impedir que o valor do benefício seja uma fonte de custeio das substâncias químicas; a concessão e manutenção do benefício deve estar condicionada ao efetivo tratamento, comprovado através de laudos médicos, receituários; fiscalização periódica de médicos e equipe da previdência social que se dará em casas de recuperação, clínicas de internação, hospitais, conforme a necessidade do caso em questão; tratamento médico, podendo estar associado ou não a outras formas de terapia em saúde mental, comprovado mediante regime de internação parcial ou plena em instituição de saúde reconhecida; após cessado o benefício seu restabelecimento só será permitido mediante análise psicológica do beneficiário e análise social, seus hábitos, o convívio social durante o primeiro tratamento; isso
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porque sabe-se que um dependente químico muitas vezes exterioriza sua dependência para a sociedade, antes mesmo de reconhecê-la, desta maneira a colheita de informações acerca de melhora de seus vizinhos e amigos ajudará a mensurar a profundidade do problema. Satisfeitos os requisitos acima, certamente estar-se-ia bem mais perto de concretizar os objetivos almejados por nossa sociedade. Estaria diante do cumprimento dos preceitos estabelecidos pelos princípios da solidariedade e da eficiência tão importantes em nosso ordenamento. Desta maneira, para regulamentar a concessão deste benefício, sugere-se o acréscimo de um novo artigo, o artigo 63 A, disciplinando a concessão do benefício de auxílio-doença para dependentes químicos, nos moldes aqui estabelecidos. Por fim, e apenas com o objetivo de demonstrar que a questão do benefício aos dependentes químicos também possui cunho judicial, importa mencionar neste momento uma ação que foi intentada contra o INSS onde se pleiteava o restabelecimento do benefício de auxílio-doença cessado pela Autarquia Federal em meados de 2010, quando o segurado ainda encontrava-se em tratamento. A Juíza Federal, responsável pelo caso, Maria Isabel Pezzi Klein, determinou que o INSS restabelecesse referido benefício. A Magistrada assim destacou: “a importância do amparo estatal, tanto jurídico quanto financeiro, para subsidiar o prosseguimento dos tratamentos médicos indispensáveis à recuperação da saúde física e mental dos jovens envolvidos no mundo das drogas” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. 5ª Turma. Processo n. 5028788-10.2012.404.7100/RS). A referida decisão tornou-se uma referência para a concessão do benefício de auxílio-doença aos dependentes químicos. E foi mencionada no fim deste artigo com um único objetivo de demonstrar a importância do amparo estatal e o prosseguimento dos tratamentos médicos indispensáveis à recuperação da saúde física e mental das pessoas envolvidas no mundo das drogas e que esse amparo só será possível no momento em que houver regulamentação específica da matéria e acompanhamento conforme muito bem já explicitado. 5 CONCLUSÃO O objetivo deste trabalho foi demonstrar que a concessão do beneficio de auxílio-doença sem a imposição de qualquer condição não tem produzido resultados favoráveis para sociedade, nem cumprido sua finalidade, qual seja, de reabilitar o profissional para o trabalho. Realizou-se uma pesquisa que se preocupou principalmente em analisar a legislação referente à concessão do beneficio de auxílio-doença; demonstrar os requisitos específicos para sua concessão; demonstrar a quantidade de concessões deste benefício; demonstrar a reincidência dos pedidos para aqueles que não fizeram o tratamento de maneira efetiva; demonstrar a necessidade de se impor condições para o recebimento deste benefício, sob pena de ser negada sua concessão. Desta maneira diante dos dados apresentados e das pequenas considerações acerca do benefício de auxílio-doença para dependentes químicos é que se conclui que deverá ser realizada modificações na concessão destes benefícios, e só será possível toda a mudança almejada se regulamentado e tratado de forma diversa do benefício de auxílio-doença comum. Isto posto, diante das razões já explicitadas a busca pela eficiência e implemento da solidariedade em nossa sociedade no âmbito do Direito Previdenciário e do benefício de auxílio-doença aos dependentes químicos trata-se apenas de um primeiro passo para o cumprimento de preceitos constitucionais muito bem delimitados e que apenas não cumpridos em razão de displicência com o sistema de seguridade social de nosso país.
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NOTAS DE FIM 1 Bacharelanda do 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Advogado. Professor do Centro Universitário Newton Paiva. ** Anderson Avelino de Oliveira Santos; Isabela Dalle Varela.
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CONSTITUINTE PELA REFORMA POLÍTICA Fábio Fernandes do Nascimento1 Tatiana Maria Oliveira Prates Motta2 Banca examinadora** “Mas cabe à história da democracia julgar a democracia. Ora, ela mostra que, justamente pelo pluralismo que é sua alma, a democracia é particularmente vulnerável. Por causa da diversidade das individualidades que, ao se exprimirem, tentaram e continuam tentando dar uma unidade à vontade geral do povo, a democracia secretou ilusões de que, hoje, se tem consciência e pela quais ela é severamente censurada. Em outras palavras, as virtudes da democracia são também suas fraquezas, sua força é também o que produz sua impotência. É por isso que, no mundo contemporâneo que vive globalmente na era da democracia, denuncia-se a crise que mina esse regime pelo qual tantas gerações lutaram dando o melhor de si.” Simone Goyard-Fabre3
RESUMO: O objetivo do presente artigo é analisar a proposta de instauração de uma Constituinte Exclusiva e Soberana por uma Reforma Política à luz da supremacia das normas constitucionais e da soberania popular. Na feitura deste, analisaremos o conceito de constituinte e suas formas de manifestação num Estado de Direito. Permeará nosso labor a busca pela legitimação dos anseios populares em uma democracia, que seja realmente participativa. PALAVRAS-CHAVE: Poder Constituinte. Reforma política. Constituinte exclusiva. Mobilização das massas. Democracia. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Constituinte e suas bases; 2.1 O que é Constituinte?; 2.2 Poder Constituinte; 2.2.1 Poder Constituinte Originário; 2.2.2 Poder Constituinte Derivado; 2.3 A Constituinte de 1987-1988; 3 A Constituinte por uma Reforma Política; 3.1 Origem do movimento; 3.2 A Proposta; 3.3 Limitações constitucionais à implementação da proposta; 3.4 Meio idôneos aptos a implementar a proposta na vigência da Constituição Cidadã; 4 Perigos da implementação da proposta; Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Iniciamos o terceiro milênio com um desafio que, desde os primórdios, permeia aventura humana4 – estabelecer regras legítimas para a vida em sociedade. Em tal empreita consideramos necessário que grupos plurais tenham valores compartilhados e sensibilidade, o bastante, para respeitar e conviver com comportamentos e condutas diversas. Na sociedade contemporânea os interesses da maioria, conforme abordaremos no decorrer deste trabalho, são, por vezes, produtos ofertados por uma elite que, via de regra, não visa promover as instituições democráticas. Pelo contrário, procuram perpetrar a cultura não-democrática arraigada em nossas instituições, que funcionam à margem do sistema democrático5. Este trabalho se propõe a analisar a proposta de instauração de uma Constituinte Exclusiva e Soberana por uma Reforma Política à luz dos preceitos da Lei Maior. Na feitura deste, fez-se imprescindível o estudo dos conceitos de legitimidade e democracia sob a égide da soberania popular. Iniciaremos nossa abordagem delimitando o conceito de constituinte e suas formas de manifestação num Estado Democrático de Direito – poder de fato e poder de direito. Em seguida, será promovida uma breve análise histórica da manifestação do Poder Constituinte Originário e suas nuances durante a Constituinte de 1987 – ruptura com o estado de exceção. Em breve síntese trataremos das limitações constitucionais à proposta, os perigos de sua implementação e os meios idôneos, na vigência da Constituição Cidadã, aptos a promover as reformas desejadas. Isto, à luz da reflexão sobre democracia, legitimidade e igualdade no Estado Democrático de Direito. O País quer e anseia por mudanças concretas. No entanto, a proposta por uma Constituinte Exclusiva e Soberana atenderia a estes anseios? É esta a questão que nos propomos a estudar.
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2 A CONSTITUINTE E SUAS BASES Num ambiente permeado de antagonismos6, buscamos a consolidação do Estado Democrático de Direito – trata-se do processo de (re)democratização do País iniciado sob a égide da Ditadura Militar. Em breve síntese, a expressão Estado Democrático de Direito significa que dentro de um determinado território, um governo exerce poder soberano, em virtude da outorga de parcela das liberdades individuais cedidas pelos membros desta “comunidade” (legitimidade – soberania popular) e, que, este mesmo governo, deve obediência às regras por ele estabelecidas para si (limites ao poder do Estado) e para seus “súditos”. Onde, em suas relações com os indivíduos, busca assegurar o exercício efetivo dos direitos civis, políticos, econômicos e culturais (direitos fundamentais)7. Para garantir a consolidação destes anseios é necessário preservar os princípios e instituições democráticas erigidas durante a ruptura do “Período de Restrições”. Assim, dar efetividade real à democracia é, dentro das regras estabelecidas, promover alterações no ordenamento jurídico em prol dos interesses preponderantes8. É nesse espírito que Soares9 nos alerta: “cabe ao constitucionalista disseminar o sentimento constitucional, estribado na força normativa da Constituição e nas suas instituições políticas eficientes, pilares do Estado democrático de direito”. 2.1 O que é constituinte? A expressão constituinte deriva do termo constituir (do latim constituere), que significa dar origem, formar a essência de, criar algo. Neste estudo, constituinte é o poder de fundar, estruturar, reformular e arregimentar “leis”, o qual pode ser inicial (rompendo com o regime anterior) ou subordinado (fundamenta-se no regime instituído e deve a ele observância).
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O conceito de Poder Constituinte foi teorizado pelo abade de Emmanuel Joseph Sieyès em seu “manifesto” Qu’est-ce que Le tiers État?. Neste, são lançadas as bases para a reorganização política da França pré-revolucionária. Nas palavras de Branco (2010, p. 273), “Sieyès enfatiza que a Constituição é produto do Poder Constituinte Originário, que gera e organiza os poderes do Estado (os poderes constituídos), sendo, até por isso, superior a eles”. Nas sociedades modernas, o Poder Constituinte fundamenta-se no pacto social. Onde – conforme disserta Marília Garcia (1985, p. 1920), citando Rousseau: Pelo pacto social, o indivíduo deve renunciar à liberdade natural irrestrita para conquistar uma liberdade convencional, socializada, que, protegendo a todos, protege cada um. O indivíduo permanece “tão livre quanto antes”. Com o pacto social nasce o que Rousseau chama de “corpo político”. Em sua forma passiva, o corpo político é o Estado. Em sua forma ativa, é o soberano. O povo é o único soberano legítimo, e a sua vontade é expressa na vontade geral (da maioria). Assim, dentre as parte que compõem um Estado, o único poder que dispõe de força soberana, emanada do povo, é o legislativo. A legislação é a única manifestação completa e direta da vontade geral; ela confere movimento e vontade (ação) ao corpo político nascido do pacto. As outras partes do Estado (incluindo aí o executivo, que aplica as leis, e o judiciário, que resolve os conflitos de acordo com a lei) não tem poder, apenas põem em prática as leis elaboradas pelo povo. (Grifo Nosso). Assim, o Poder Constituinte é um poder da titularidade do povo (soberania popular), que pode exercê-lo de forma direta ou representativa (representantes do povo reunidos em Assembleia), o qual, conforme veremos a seguir, pode ser originário ou derivado. Na reflexão de Sahid Maluf (2009, p. 193): A Assembleia Constituinte exerce o poder soberano na sua plenitude. Difere das Assembleias Legislativas pela sua transitoriedade e pela ilimitabilidade do seu poder. As Assembleias Legislativas são poderes constituídos: limitam-se pela Constituição existente. As Constituintes, ao revés, não têm limitação: a elas se devolvem a totalidade do poder de soberania, com apenas o dever de respeito aos imperativos das leis de direito natural. O Poder Constituinte pode manifestar-se de várias formas, as quais encontram referencia no momento histórico vivenciado pela sociedade. Nos tópicos posteriores analisaremos estas nuances. 2.2 Poder Constituinte 2.2.1 Poder Constituinte Originário
O Poder Constituinte Originário é a força responsável pela construção do alicerce da nova ordem jurídica de um Estado. Portanto, desvinculado da ordem anterior (insubordinado e inconstrangível). É um poder absoluto e ilimitado que encontra fundamento em si mesmo – poder de fato (primário). Assim, segundo Branco (2010, p. 274), “o poder constituinte não pertence à ordem jurídica, não está regido por ela”. Nesse sentido, temos a elucidativa definição trazida pela Professora Tatiana Maria Oliveira Prates Motta: Podemos definir o Poder Constituinte como o poder de elaborar e modificar a Constituição, de constituir e reconstituir o Estado. Na primeira hipótese, mais rara de ser observada, pois não se elaboram Constituições todos os dias, encon-
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tramo-nos diante do Poder Constituinte Originário, assim denominado devido ao fato de ser a grande fonte geradora e inspiradora de todo o ordenamento jurídico positivo, através da elaboração do texto que lhe fundamenta e que serve de estatuto ao poder do Estado, por ser o projeto da vida de seu povo10. (Grifo Nosso) Em síntese, o Poder Constituinte Originário (poder soberano e absoluto) é responsável pela ruptura abrupta da ordem vigente e instauração de uma nova. Trata-se da expressão da vontade política da “nação” em um dado momento da história11. Por isso, “não pode ser entendido sem a referência aos valores éticos, religiosos, culturais que informam essa mesma nação e que motivam suas ações12”. Este, no Estado Democrático de Direito, é exercido por uma Assembleia Constituinte que possui a “missão13 de construir ou reconstruir a ordem jurídica e política da sociedade civil”. 2.2.2 Poder Constituinte Derivado
Trata-se de um poder de direito, previsto na Constituição vigente – portanto, secundário. Conforme salienta Motta14, “deve ser processado à luz do imperativo constitucional”. Assim, as ordens emanadas pelo Poder Constituinte Derivado serão responsáveis pela manutenção do ordenamento instaurado nos limites e modos impostos pelo Pacto Originário. Cumpre destacar que há doutrinadores que pugnam pela inexistência de um Poder Constituinte Derivado, pela lúcida reflexão de que sendo ele derivado, “é porque não é constituinte15” e, sim constituído. De qualquer forma, não adentraremos ao mérito da discussão e encamparemos, nestes escritos, o entendimento da doutrina clássica. Assim, o Poder Constituinte Derivado, na lição de Sahid Maluf (2009, p. 195), “Consiste na competência para reformar parcialmente ou emendar a Constituição, que não é um código estático, mas dinâmico, devendo acompanhar a evolução da realidade social, econômica e ético-jurídica”. Em síntese, trata-se de um poder que tem por finalidade promover ajustes na Constituição – por Ela instituído (previsão expressa) –, o qual será responsável por sua atualidade e conformação social. Esse poder tem o condão de reduzir, conforme ressalta Branco (2010, p. 289), “os efeitos nefastos das contínuas rupturas da ordem constitucional”, para efetuar alterações de ordem “meramente pontuais”. Na elucidativa conclusão de Motta16, a função do Poder Constituinte de Reforma é essencialmente garantidora, visando preservar o sistema constitucional a que modifica, com fins a adaptá-lo às novas gerações ou reestruturá-lo em sua essência. No caso das Constituições populares, a preservação da ordem jurídica faz-se através do aprimoramento do texto, buscando a maturação democrática. As Constituições outorgadas buscam a preservação através da contenção do anseio democrático e da jurisdicização de mecanismos mais aptos para a manutenção do poder. O Poder Constituinte Reformador é um poder de direito – derivado ou secundário –, que encontra fundamento na ordem constitucional instaurada pelo Poder Constituinte Originário. Deste modo, por se tratar de um poder instituído, encontra limitações de ordem formal, material e circunstancial – assunto que será abordado no tópico 3.4 do presente trabalho. Sobre as limitações ao Poder Constituinte Derivado, registre-se lição de Sahid Maluf (2009, p. 195): A esse poder secundário e limitado é vedado atingir a estrutura básica da ordem constitucional, como no sistema brasileiro,
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por exemplo, são inalteráveis a forma federativa do Estado, a forma republicana do governo e a ordem democrática em sua essência. Limites de tempo são também traçados à função reformadora: a Constituição não pode ser alterada durante o estado de sítio, ou períodos determinados em seu texto. Concluímos, portanto, que o Poder Constituinte Derivado (que possui natureza de Poder Constituinte17) sujeita-se ao controle de constitucionalidade – ou seja, é possível (leia-se necessário) que seja verificada a adequação das ordens emanadas por este poder com às regras estabelecidas pelo Poder Constituinte Originário em virtude da supremacia dos preceitos constitucionais. 2.3 A Constituinte de 1987-1988 Para traçarmos o quadro sócio-político da Constituinte de 1987/88 é necessário fazermos um breve retrocesso na história do País. Assim, após um período de relativa estabilidade democrática18, sob a égide da Constituição de 1946 – que teve uma constituinte escolhida por voto universal, direto e secreto –, ocorreu o golpe militar de abril de 1964, que decretou o Ato Institucional Nº 1. Neste, a “Revolução Vitoriosa” investia-se no Poder Constituinte, destituindo o governo vigente e constituindo um “novo”, suspendendo as garantias individuais e permitindo ao Executivo cassar mandatos e direitos políticos19. Na sequencia temos instaurados os Atos Institucionais20 Nº 2 (promove a extinção dos partidos políticos – à exceção do ARENA e MDB21 –, estabelece o recesso do Congresso Nacional e dá poderes ao Executivo para legislar mediante decretos-leis), Nº 3 (estabelece eleições indiretas para Presidente, Vice-Presidente, governadores e vice-governadores), Nº 4 (convoca o Congresso para reunir-se extraordinariamente para discutir e votar a nova Constituição – “promulgada” em 24-01-1967) e Nº 5 que, nas palavras de Garcia22, “suspendeu toda e qualquer garantia dos cidadãos e permitiu a instalação definitiva do terror a partir do Estado”. Segundo Bonavides e Andrade, o AI-5 (assinado pelo Presidente Costa e Silva – 13/12/1968) sepultou as esperanças de redemocratização do Estado brasileiro (2006, p. 434): O AI-5 englobava todos os itens constantes dos atos anteriores, acrescentando a faculdade de intervir em estados e municípios, detalhando as consequências imputáveis aos que tivessem seus direitos políticos cassados, suspendendo a garantia de habeas corpus e concedendo total arbítrio ao Presidente da República no que se refere à decretação do estado de sítio ou de sua prorrogação. A Constituição de 1967 promoveu restrições às liberdades individuais e sociais23, a propaganda de guerra, e – através da disseminação de preconceitos – controlou comportamentos que julgavam afrontar a moral e os bons costumes. No entanto, isto não foi suficiente para atender aos anseios governamentais vigentes à época (plenitude do estado de exceção – terror absoluto). Assim, a junta de Ministros Militares outorga (em 17 de outubro de 1969) a Emenda Constitucional Nº 1, que, na verdade, substituí a Constituição de 1967. Assim, o poder arbitrário instaurado, na impossibilidade de obter legitimação – resume Bonavides24 – “desnudou suas reais intenções, exatamente quando os dispositivos formais dos textos que garantiram a liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, foram violentados pela censura e pela repressão policial”. Extinção de opositores25, cassação de mandatos, aposentadoria precoce de servidores públicos, expulsão, tortura, repressão e censura eram alguns dos métodos utilizados pelo poder “constituído” para controlar os anseios do espírito democrático arrebatado pelas
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forças militares. No entanto, a força do ideal democrático inflamava a população e minava o controle do governo – oficiais reclamavam o retorno das práticas democráticas26. Paulo Bonavides (2006, p. 449) retrata da seguinte forma este período de transição: Algumas manifestações foram abafadas pela censura. Punições se verificaram nos quartéis, alcançando oficiais que reclamavam retorno à prática democrática. Mas, somente em 1984 se explicitaram as manifestações da sociedade e a movimentação das organizações associativas como a Ordem dos Advogados do Brasil, as federações e sindicatos dos trabalhadores, com o apoio ostensivo da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Em 17 de abril de 1984, iniciou-se a grande campanha popular de rua, com mais de um milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, exigindo as eleições diretas em todos os níveis. Em breve síntese, como consequência das manifestações de inconformismo popular, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves é “eleito27” Presidente da República e José Sarney, seu Vice-Presidente. Este seria o governo responsável pelo processo de transição – redemocratização do país. Entretanto, o Presidente escolhido não chega a tomar posse – falece no dia 21 de abril de 198528. Assim, o Vice-Presidente “eleito”, José Sarney29 – interinamente na chefia do Governo – é empossado na Presidência com a promessa de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Vários segmentos da sociedade pressionavam o Congresso pedindo a instauração de uma Constituinte Exclusiva que, em linhas gerais, quer significar que seria eleita uma Assembleia com o fim exclusivo de confeccionar a Nova Constituição, sendo, após a promulgação desta, automaticamente dissolvida. No entanto, o apelo popular não foi atendido, sendo convocada uma Assembleia Nacional Constituinte na modalidade Constituinte Congressual, que resultou na instalação de uma Câmara e de um Senado que fariam a Constituição e, depois de realizada esta missão, os cidadãos eleitos para a Assembleia30 continuariam o mandato como deputados ou senadores. A Assembleia Nacional Constituinte era composta por 559 membros – sendo 487 deputados federais e 72 senadores, dos quais 23 eram biônicos (eleitos indiretamente nas eleições de 1982, com mandato até 1990). Esta foi instaurada em 1987 e teve que enfrentar várias adversidades, dentre as quais elencamos: conflito interno de liderança, pluralismo de interesses, prolixidade de propostas, ataques do Poder Executivo, crise de legitimidade, dentre outras. No entanto, o maior desafio da Assembleia Nacional Constituinte era elaborar uma proposta que representasse o interesse das maiorias, conciliando estes com a vontade das minorias de forma a garantir a estas seus direitos. Buscou-se, destarte, evitar a ditadura da vontade da maioria sobre os interesses e direitos das minorias. O que se observou durante a Constituinte de 87/88 foi a articulação de diversos setores da sociedade, os quais foram capazes de promover a inserção de interesses difusos e, por vezes, colidentes, na Lei Maior. Setores organizados e não organizados da sociedade faziam reivindicações e apresentavam suas propostas aos responsáveis pela elaboração do anteprojeto. Todos os que quiseram, puderam se manifestar durante o processo Constituinte. A Assembleia Nacional Constituinte conclui seus trabalhos no dia 22 de setembro de 1988. E, às 17 horas do dia 05 de outubro é promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil – Constituição Cidadã.
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No Rio de Janeiro, a manifestação invadiu uma das mais importantes avenidas do Centro por duas horas. O protesto foi na Avenida Presidente Vargas, uma das vias mais movimentadas do Centro do Rio. Policias foram chamados para conter o protesto e entraram em confronto com os manifestantes, que teriam atirado pedras nos policiais. A PM revidou. (...) Em Natal, os manifestantes queimaram pneus e fecharam uma estrada federal. Diferente do que aconteceu no dia 15 de maio, não houve confrontos. Estudantes bloquearam a BR-101, queimaram pneus e jogaram lixo nas ruas. Um estudante caiu de um viaduto e teve ferimentos leves. (...) Em Goiânia, os estudantes tomaram o centro da cidade, queimaram pneus e quebraram os vidros de uma viatura da polícia. Desta vez teve confronto entre a polícia e os manifestantes, mas houve muita confusão, principalmente no trânsito do centro da cidade. Os estudantes queimaram pneus e pularam catracas no terminal para não pagar as passagens. A polícia ficou de longe, só observando. Uma viatura da PM teve o vidro quebrado depois que manifestantes atiraram pedras33.
3 A CONSTITUINTE POR UMA REFORMA POLÍTICA Iniciaremos este capítulo perquirindo sobre o significado do termo legitimidade, que, em nossa concepção democrática está aquilatado no reconhecimento da sociedade de que as ações, atitudes, metas e métodos utilizados pelo Governo representam o interesse dos “súditos”. Segundo Mário Lúcio (2011, p. 28), “a questão substancial concernente ao poder é a legitimidade, conceito material: noção ideológica, que exige a consonância do poder com a opinião pública e os princípios da ordem jurídica vigente”. Assim, a legitimidade implica que o poder foi cedido pelo povo a seus representantes pelo voto direto e é exercido em consonância com os interesses da sociedade. Conforme disserta a Professora Motta: A legitimidade é o sustentáculo da Constituição. Esta nasce e consolida-se na aceitação da ordem constitucional, no reconhecimento de sua validade e na plena eficácia de seus mandamentos. Ao se alterar o corpo da Constituição, há que se observar que a formulação deve ser feita no sentido de dotá-la de total eficácia buscando-se a viabilidade de sua aplicação31. (Grifo Nosso). Não há dúvidas quanto à necessidade de se alterar as normas concernentes ao sistema político – Reforma Política. No entanto, a forma de implementação deste projeto deve observância à manifestação de soberania popular alicerçada na Constituição de 1988. Esta prevê mecanismos eficientes de reforma constitucional, os quais incluem a possibilidade de participação popular. Reformar, nas palavras de Vânia Siciliano Aieta32, significa, possibilitar as condições para que uma transição possa ocorrer. Em uma Reforma Política, deve-se buscar a ampliação da democracia representativa para que as legítimas demandas da sociedade possam se sedimentar. A reforma se faz necessária quando as estruturas já estão superadas ou não conseguem se concatenar com as novas exigências da realidade política. As instituições apresentam-se estáveis, a voz do povo é ouvida, a liberdade de expressão é exercida, temos um considerável avanço na conquista de direitos sociais. Acreditamos que este seja o momento esperado para a realização das reformas necessárias. Nossa Lei Maior traz os mecanismos aptos a promovê-las. A crise de representação instaurada quer dizer que o voto e, apenas o voto, não é instrumento suficiente para o exercício da democracia. É preciso aperfeiçoá-la – conforme salienta Kildare Gonçalves Carvalho (2012, p. 57) – através da “prática do debate permanente em busca do entendimento intersubjetivo, o que se dá em condições de efetiva igualdade, com respeito ao outro institucionalizado, baseado em condições de completa igualdade entre os participantes”. 3.1 Origem do movimento Nos meses de junho e julho de 2013 assistimos a manifestações de milhares de pessoas que tomaram as ruas de várias cidades do país reivindicando melhoria da qualidade de vida da população. Estas tiveram como estopim o aumento do preço das passagens de ônibus, conforme podemos extrair dos trechos da reportagem do Jornal Bom Dia Brasil, de 7 de junho de 2013: Protestos contra o aumento da passagem do transporte público terminaram em vandalismo em algumas cidades do país. Em São Paulo, manifestantes fecharam ruas da região central e entraram em confronto com tropa de choque da polícia. Em poucos minutos, lojas, bancas de revista e estações metrô foram depredadas. (...)
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Assim, como resultado da pressão popular, foi cancelado – em várias cidades do país – o aumento no valor da tarifa do transporte público. Entretanto, as manifestações continuaram e, desta vez, vários foram os pedidos que podiam ser extraídos das vozes e imagens da multidão. A única vontade compartilhada era o desejo de mudança: “como está não dá para continuar”. O jornalista André Lopes Borges, em artigo que retrata os anseios das manifestações, expõe suas impressões: O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está “disponível”. O fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário. (...) Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos34.
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Assim, foram as manifestações de junho de 2013 – sem bandeiras partidárias ou sindicais, nem autoria definida –, uma multidão de pessoas35 com várias vontades e apenas um propósito: melhoria da qualidade de vida da população. Apesar das várias investidas, nenhuma organização sindical ou partidária conseguiu assumir a titularidade das vozes das ruas. Na lúcida análise de Émile Durkheim sobre o comportamento do indivíduo e suas motivações ante os fatos sociais36, reflitamos37: Como poderíamos, então, possuir a capacidade de discernir com mais clareza as causas, muito mais complexas, de que procedem os comportamentos da coletividade? Pois, quando muito, cada um só participa neles numa ínfima parte; temos uma multidão de colaboradores, e o que se passa nas outras consciências nos escapa38. Como consequência, dentre as várias formas de conter (e/ou atender) os anseios populares, os governantes realizaram promessas (praxe dos governos populistas) em resposta às manifestações. A Presidente Dilma Rousseff, em 24 de junho de 2013, propõe um plebiscito constituinte exclusivo por uma reforma política. A qual, em linhas gerais, seria apto a promover mudanças na forma de escolha de governantes e parlamentares, financiamento de campanhas eleitorais, coligação entre partidos, propaganda na TV e no rádio, dentre outros pontos39. Vejamos o comentário proferido pelo governador Tarso Genro à questão: Ontem, o governador Tarso Genro confirmava sua sugestão à Dilma: — Abrimos hoje no país um processo de alta envergadura, de potência política extraordinária, para fazer a reforma política, que, na minha opinião, é a que pode abrir a possibilidade de outras reformas para o país do futuro — afirmou. — Eu coloquei a proposta (das candidaturas sem partido) na reunião que precedeu o encontro mais amplo, e a presidente disse que a ideia é boa, mas gostaria que isso fosse decidido no próprio processo convocatório, ou seja, na consulta plebiscitária40. No entanto, após breve período de reflexão (e várias críticas da comunidade jurídica à proposta) a Presidente descartou a possibilidade do plebiscito, deixando alguns adeptos da ideia polvorosos pela reforma. Nesse sentido, no discurso de comemoração ao Dia do Trabalhador41 – 30/04/2014 – a Presidente tece ponderações sobre a necessidade de uma reforma política, mas sem a ideia da constituinte exclusiva, e, sim, com ampla participação popular no processo de reforma: (...) Além de acelerar as ações desses pactos é preciso agora, sobretudo, tornar realidade o pacto da reforma política. Sem uma reforma política profunda, que modifique as práticas políticas no nosso país, não teremos condições de construir a sociedade do futuro que todos almejamos. Estou fazendo e farei tudo que estiver ao meu alcance para tornar isso uma realidade. Foi assim que encaminhei ao Congresso Nacional uma proposta de consulta popular para que o povo brasileiro possa debater e participar ativamente da reforma política. Sempre estive convencida que sem a participação popular não teremos a reforma política que o Brasil exige. Por isso, além da ajuda do Congresso e do Judiciário, preciso do apoio de cada um de vocês, trabalhador e trabalhadora. Temos o principal: coragem e vontade política. E temos um lado: o lado do povo. E quem está ao lado do povo pode até perder algumas batalhas, mas sabe que no final colherá a vitória.
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Viva o 1º de Maio! Viva a trabalhadora e o trabalhador brasileiros! Viva o Brasil. É neste quadro de reivindicações populares e promessas governistas que se fomenta o movimento por um plebiscito constituinte exclusivo. Sabemos que em uma democracia o poder de decisão é dos cidadãos e que o mais difícil é conseguir “estabelecer um acordo entre as diferenças ou a unidade da pluralidade42” de vontades, principalmente se considerarmos a forma como a informação é disseminada e o nível de instrução das pessoas a qual ela é dirigida. 3.2 A Proposta Em linhas gerais, a Presidente propôs que o povo, no exercício da soberania popular, decidisse através de um plebiscito sobre a instauração de uma assembleia constituinte exclusiva para realização de uma reforma política. Em suas palavras43: “Quero, neste momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política de que o país tanto precisa”. Esta constituinte44 exclusiva seria composta por representantes eleitos pelo povo com a missão exclusiva de elaborar e votar “um novo sistema político com mais democracia”. Assim – sob o argumento de que o Congresso Nacional não representa o povo brasileiro45 e seus anseios e que a estrutura do sistema atual está alicerçada nas bases trazidas do período ditatorial – o discurso a favor do plebiscito constituinte é inflamado com razão, paixão e emoção na mente e nos corações dos cidadãos. 3.3 Limitações constitucionais à implementação da proposta Inicialmente, cumpre destacar o alerta trazido pelo deputado Ulysses Guimarães – presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em 05 de outubro de 1988 – por ocasião da promulgação da Constituição Federal: A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério46. (Grifo Nosso). A observância aos preceitos trazidos pela Lei Magna, mais do que um imperativo, é uma questão de preservação dos interesses defendidos durante um amplo e complexo debate político vivenciado com a participação dos mais diversos setores da sociedade. Trata-se do mais rico registro de participação popular na construção de uma constituição da história do país. A supremacia das normas Constitucionais é conditio sine qua non seria possível dotar de efetividade e eficácia a Lei Maior. Assim, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Júnior (1985, p. 78): A primeira consequência da eficácia da Constituição é, portanto, a afirmação de sua supremacia. A supremacia da Constituição reflete de imediato e logicamente naquilo que sempre foi ensinado pelo doutrina tradicional clássica, ou seja, importa na nulidade dos atos contrários à Constituição. A soberania popular, fundamento do Estado Democrático de Direito, está expressa da seguinte forma na Lei Maior – Art. 1º, Parágrafo Único: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, em virtude da ruptura com a ordem anterior, é imprescindível
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que o Ordenamento Instaurado guarde preceitos que imponham limites ao poder de reforma, sob pena de transmutar-se em letra morta. Assim, excetuando a situação de revolução ou total dissonância entre a Constituição e a vontade soberana do povo, temos por temerosa qualquer alteração na Lei Maior que extrapole os limites estabelecidos pelo legislador constituinte originário. Cumpre destacar que a independência entre os poderes é um princípio fundamental (Art. 2º - CRFB) que não pode ser abolido nem via emenda à Constituição (Art. 60, § 4º, III – CR/88). Assim, insta salientar que – nos termos do artigo 49, XV da Constituição da República –, o Congresso Nacional é o único legitimado para convocar o plebiscito. Configurando a usurpação desta competência pelo Poder Executivo em Crime de Responsabilidade, por violação a preceitos constitucionais (Art. 85 – CRFB e Art. 4º, da Lei Nº 1.079/50). Nossa Constituição, nas situações em que autorizou as possibilidades de alterações de ordem estrutural em seu texto o fez de forma expressa. Resguardou destarte, o primado da segurança jurídica e a garantia da ordem constitucional. Por todo o exposto, sabemos que uma constituinte possui poderes ilimitados aptos a promover uma ruptura total com a ordem vigente – portanto, soberana e insubordinada. A proposta dos adeptos de uma constituinte pela reforma política é algo mais limitado: as alterações que os constituintes eleitos poderiam realizar seriam exclusivamente na matéria da política. Tal reforma, nestes moldes, só seria possível à margem da Constituição. Neste aspecto temos duas questões a serem abordadas: i) a constituinte não possuiria poderes aptos a realizar a reformas a que se propõe; ou ii) a constituinte possui estes poderes, os quais incorporam também o de instaurar uma nova ordem jurídico-política – reveste-se, nesta modalidade, no Poder Constituinte Originário. Em ambos os casos, a constituinte não cumpriria sua missão inicial. Considerando a segunda hipótese, em sendo esta convocada através de uma emenda à Constituição, regularmente promulgada pelo Congresso Nacional, como justificar o fato de um poder limitado e subordinado possa transferir um poder que não possui? Em suma, só podemos delegar o poder e propriedade que possuímos. O Congresso Nacional tem a capacidade de reformar a Constituição limitada pelos parâmetros estabelecidos por esta. De toda forma, em última análise e por amor ao diálogo, considerando que seja instaurada a constituinte: Como seriam escolhidos os membros desta? Através do mesmo modelo eletivo ultrapassado de mobilização das massas através de propaganda que envolve mais emoção e paixão do que razão, persuasão e convencimento (no mercado eleitoral, onde os eleitores são consumidores). Entretanto, temos ciência de que só poder-se-ia falar em limitações constitucionais ao poder de reforma, caso a reforma seja realizada seguindo os ditames estabelecidos pela Lei Maior. Assim, uma vez instaurado o plebiscito constituinte, sendo este investido de poderes ilimitados, teria o condão de extirpar a Constituição vigente. 3.4 Meios idôneos aptos a implementar a proposta na vigência da Constituição Cidadã O filósofo John Rawls47 disserta que a justiça como equidade é uma das escolhas mais gerais que as pessoas podem realizar. Assim, “uma vez que elas escolheram sua concepção de justiça, podemos supor que devem escolher uma constituição e um legislativo para promulgar leis e assim por diante, tudo de acordo com os princípios da justiça estabelecidos no início”. Desta forma, o marco, fundamento e alicerce para a confecção e inserção de novos instrumentos normativos em nosso ordenamento jurídico é a Constituição de 1988. Assim, o núcleo rígido da Constitui-
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ção que traz as formas de alteração e emenda da mesma é o artigo 60, in verbis: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II – do Presidente da República; III – de mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. O Texto Maior limitou a possibilidade de proposta de emenda à Constituição aos seguintes legitimados: i) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; ii) Presidente da República; e, iii) mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. A Professora Tatiana Maria Oliveira Prates Motta48, em interpretação sistemática e análise teleológica das normas constitucionais – encampando entendimento doutrinário de José Afonso da Silva49 –, ressalta a possibilidade de emenda à Constituição através da proposta de iniciativa popular (pelo método utilizado para propostas de leis complementares e ordinárias), desde que observados os preceitos do § 2º, do artigo 61, da Lei Maior – in verbis: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Salientamos, no entanto, que a referida técnica de emenda constitucional de iniciativa popular é passível de análise de controle de constitucionalidade em virtude da ausência da previsão no Texto Maior. A doutrina majoritária considerar o rol de legitimados a propor emenda constitucional numerus clausus – rol taxativo. Assim, cabe aos legitimados a elaboração de uma proposta de emenda tendente a promover a reforma da Constituição. No entanto, nada impede – e, até legitimaria a reforma – que, durante a confecção da proposta houvesse ampla participação popular com consulta às mais diversas organizações e setores da sociedade civil, nos moldes da Constituinte 1987/88. A dificuldade da promoção de uma reforma política via Emenda Constitucional encontra fundamento no quorum de aprovação: três
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quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação. Com a agravante de que os responsáveis pela elaboração da proposta seriam os principais prejudicados, caso seja aprovado o texto. A proposta de reforma política pode ainda ser apresentada via projeto de Lei Complementar ou Ordinária – quórum de aprovação, respectivamente, maioria absoluta e maioria simples. O rol de legitimados para propositura de projetos de leis complementares e ordinárias é bem mais amplo e conta com expressa previsão da possibilidade de projetos de iniciativa popular. Vejamos a redação do Art. 61 da CRFB, in vebis: A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. (...) § 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Em ambos os casos é possível que o Congresso Nacional consulte a população durante a feitura da proposta e, posteriormente, sobre sua aceitação (Referendo). Temos ciência de que existem vários projetos que pretendem realizar tais reformas tramitando no Congresso Nacional. No entanto, estes não contaram com ampla participação social em sua feitura e, principalmente, mobilização dos mais diversos setores da sociedade civil para que seja implementada a Reforma Política que represente os anseios da comunidade. 4 PERIGOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA PROPOSTA A promoção de uma Reforma Política através de uma constituinte exclusiva nos moldes propostos – em nossa visão – abalaria os alicerces da Lei Maior e traria precedente para novas alterações “ofensivas”. Na sociedade em que vivemos – onde a manipulação dos meios de comunicação é um instrumento de poder50 – colocaríamos em colapso a segurança jurídica ao permitir alterações, por vezes, lesivas aos próprios apoiadores da “ideia”. Nesse sentido, trouxemos as ponderações de Garcia sobre as características de um governo constitucional (1985, p. 25): A primeira delas é a estabilidade de procedimentos. Com a Constituição organizando a atuação do Estado, os cidadãos podem ter uma expectativa segura de qual deverá ser o procedimento do governo diante de determinada situação. Ficam assim mais fáceis a participação e o controle do Estado pelos cidadãos. Temos ciência da necessidade e urgência de uma extensa e complexa reforma política que seja capaz de transportar nossa sociedade para outro nível de democracia. A ampla participação popular e das diversas organizações da sociedade civil será a força capaz de trazer legitimidade e adequação das normas às perspectivas da comunidade como um todo. No entanto, uma constituinte exclusiva, dotada de poder inicial e ilimitado advindo da delegação do Congresso Nacional é, sem dúvida, uma afronta à ordem constitucional vigente. Visto que, conforme demonstrado, os movimentos precursores da proposta não a legiti-
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mam. Teríamos a utilização do voto como forma de legitimar vontades pré-estabelecidas pelos detentores do poder51. O exercício da democracia não pode ser mascarado por uma manifestação restrita de vontades de parcela da população através de respostas a um limitado número de perguntas, às quais não refletem ou deixam saber os seus principais anseios. Estaríamos sujeitos, como sempre estivemos, “à tirania da opinião, da mídia e dos grupos de pressão”52. Sabemos que o voto é um instrumento fundamental para o exercício da cidadania, no entanto, não é apto, por si só, a representá-la. Vontades sistematicamente impostas não refletem o desejo da população – trata-se de uma falha superável da democracia53. Nesse sentido, cumpre transcrever a reflexão de Kildare Gonçalves Carvalho (2012, p. 204): As novas tecnologias de comunicação têm, no entanto, colocado sob suspeita a autenticidade das manifestações de opinião pública. Constata-se ainda o desaparecimento dos espaços públicos autônomos, pressupostos para a existência de uma opinião pública como livre expressão de uma sociedade articulada em torno de múltiplos interesses coletivos. O fenômeno decorre dos efeitos alienantes de uma industria cultural neutralizadora do poder de criação intelectual, que se torna mercadoria, e concorre para a formação de um público de indivíduos atomizados e irrefletidos, que passam a ser objeto de manipulações sobretudo consumistas. A democracia não é um remédio que uma vez ingerido cura as doenças. Trata-se de uma drágea que deve ser aplicada com as devidas orientações, de forma regular e em concomitância com outros cuidados – a prática trará a perfeição. Conforme salienta Amartya Sen (2000, p. 182-183): “Essa é, evidentemente, uma característica básica das liberdades em geral – muito depende do modo como elas são realmente exercidas”. As instituições jurídicas não podem deturpar o sentido e o alcance dos preceitos estabelecidos (subjulgar a segurança jurídica) para atender aos anseios da opinião pública54 - por vezes, manipulada pelos meios de comunicação de massa. Ceder a tais reivindicações tornaria vulnerável todo o sistema jurídico-político vigente. Teríamos, destarte, um significativo retrocesso social55, marcado pela vulnerabilidade de nosso “Sistema”. Ao legislador é necessário prudência na análise das demandas, visto que muitos desejos (reivindicações) de determinados segmentos da sociedade, caso atendidos, promoveriam agressão direta a bens de outros. Em síntese, seguindo as conclusões de Goyard-Fabre56, a democracia real apresenta distorções ao consideramos a democracia ideal, onde aquela está sempre representada por uma imagem de crise. Em suas palavras (2003, p.345): As situações sociais são muitas vezes equívocas; o descontentamento e a miséria podem ser explorados por líderes ou grupos de pressão que não hesitam, preconizando o recurso a petições, a manifestações e a greves, em atiçar um fermento de anarquia; eles sabem que ele está presente em toda sociedade democrática e é fácil de inflamar. Desta forma, o exercício democrático da vontade política soberana do povo é deturpado em virtude dos contrastes econômicos, sociais, culturais entre outros. Conforme pondera Maluf57, “são miragens para o homem economicamente miserável, empenhado de corpo e alma em salvar o maior de todos os direitos humanos, que é o direito à sobrevivência”. Na reflexão de Ives Gandra da Silva Martins (2006, p. 182),
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“A própria democracia não é condição de garantia absoluta da excelência dos textos nascidos de seu exercício por determinado contingente humano”. CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de conclusão, ressaltamos que não há controvérsias quanto à necessidade da realização de reformas políticas em nosso país. No entanto, neste trabalho, defendemos que existem meios idôneos na Constituição vigente, aptos a transformar essa realidade. É sabido que todo poder precisa de limites – até mesmo a manifestação da soberania popular –, esses, representam “a vontade positiva de aumentar a liberdade de cada um58”. Consideramos que uma constituinte exclusiva por uma reforma política seria uma investida arriscada que, por não encontrar baliza na Lei Magna, seria capaz de promover uma ruptura com a Ordem Instaurada sem garantias da preservação dos interesses há muito defendidos por nossa sociedade. Vivemos em um momento impar de nossa história. Temos a oportunidade de realizar as mudanças necessárias através dos mecanismos de reforma apresentados pela Lei Maior sem trazer maiores prejuízos aos direitos e garantias conquistados. A mobilização dos diversos atores sociais, a promoção da informação, o debate permanente em prol da construção de uma sociedade que melhor represente os anseios da população, são os desafios que devemos enfrentar. A democracia que queremos só pode ser atingida através da promoção das liberdades, que consiste na promoção da igualdade. Apenas desta forma as pessoas poderão realizar escolhas conscientes, que representem sua forma de agir, pensar e compreender o mundo. Nas sábias palavras de Alain Touraine (1996, p. 21): “Já não queremos uma democracia de participação; não podemos nos contentar com uma democracia de deliberação; temos necessidade de uma democracia de libertação”. Em suma, a democracia – nas ponderações de Goyard-Fabre – “transporta e transpõe para a esfera política o caráter conflituoso das paixões humanas, de forma tal que, no mesmo movimento que suscita a esperança da liberdade e da igualdade, faz pesar sobre a Cidade as ameaças da desrazão que o desejo insaciável do povo introduz na razão59”. Assim, ela “se alimenta sempre das mais elevadas esperanças e ela é, sem trégua, minada pelas mais angustiantes crises; mas ela não é nem a utopia de uma Cidade do Sol, nem o mito do Inferno60”. Concluímos, por todo o exposto, que a proposta de instauração de uma Constituinte Exclusiva e Soberana não reflete os anseios de nossa comunidade. Nossa ânsia encontra-se na promoção dos meios idôneos aptos a transformar a forma deliberativa de democracia em efetivamente participativa. REFERÊNCIAS AIETA, Vânia Siciliano. Reforma Política: Estudos em homenagem ao Prof. Siqueira Castro,Tomo V. Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2006. ANGHER, Anne Joyce (org.). Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel. 16ª Ed. São Paulo: Rideel, 2013. AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habersiana e teoria democrática. São Paulo: Perspectiva, 2012. AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 44ª Ed. São Paulo: Globo, 2005. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 8ª Ed. Brasília: OAB Editora, 2006. BRITO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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HABERMAS, Jünger. Três modelos de democracia. Sobre o conceito de uma política deliberativa. Texto da apresentação de Habermas no seminário “Teoria da democracia”, na Universidade de Valência, 15/10/1991. Traduções de Gabriel Cohn e Álvaro de Vita. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n36/a03n36. pdf>. Acesso em: 10 de julho de 2014. MENDES, Priscila; COSTA, Fabiano; PASSARINHO, Nathalia. Dilma propõe 5 pactos e plebiscito para constituinte da reforma política. O GLOBO. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html>. Acesso em: 23 de agosto de 2014. MOTTA, Tatiana Maria Oliveira Prates. Considerações acerca do Poder Constituinte de Reforma. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 12ª Ed. Disponível em: < http://blog.newtonpaiva.br/direito/wp-content/ uploads/2012/08/PDF-D12-10.pdf >. Acesso em: 19 de agosto de 2014.
10 MOTTA, Tatiana Maria Oliveira Prates. Considerações acerca do Poder Constituinte de Reforma. Disponível em: < http://blog.newtonpaiva.br/direito/wp-content/uploads/2012/08/PDF-D12-10.pdf >. Acesso em: 19 de agosto de 2014. 11 Segundo Sahid Maluf (2009, p. 194), o Poder Constituinte Originário, apesar de inicial e soberano, encontra-se limitado pelo direito natural. Onde, “o ato de governo, ainda que ditado em nome da soberania absoluta, pode revestir-se de ilegitimidade por contrapor-se à ordem natural”. 12 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martíres; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 275. 13 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 29ª Ed. Atualizador prof. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 194. 14 MOTTA, Op. Cit.
NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 05 de março de 2014. O GLOBO. Confira a íntegra do discurso de Dilma Rousseff. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/confira-integra-do-discurso-de-dilma-rousseff-12350847#ixzz3AIjwpUFb>. Acesso em 13 de agosto de 2014. __________. Proposta de plebiscito para convocação de assembleia constituinte específica é polêmica. Disponível em: < http://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2013/06/proposta-de-plebiscito-para-convocacao-de-assembleia-constituinte-especifica-e-polemica.html>. Acesso em: 15 de agosto de 2014
15BRITO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 96. 16 MOTTA, Op. Cit. 17 Ibid. 18 GARCIA, Marília. O que é Constituinte. São Paulo: Abril Cultural – Brasiliense, 1985, p. 69-70. 19 Ibid. 20 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 8ª Ed. Brasília: OAB Editora, 2006, p. 434.
PEREIRA, Thomaz H. Junqueira de A. Proposta de constituinte exclusiva mostra tensões entre o direito e a política. Consultor Jurídico. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2014-mai-24/ideia-constituinte-exclusiva-mostra-tensoes -entre-direito-politica#_ftn2>. Acesso em: 13 de agosto de 2014
21 O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) era a oposição tolerada durante o Regime de Exceção.
Plebiscito Constituinte. Jornal do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. Disponível em: < http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/sites/default/files/material/pleb_jornal.pdf>. Acesso em: 13 de agosto de 2014.
23 BONAVIDES; ANDRADE, op. Cit., p. 446.
NOTAS DE FIM 1 Bacharelando do 10º Período do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas – Centro Universitário Newton. 2 Mestre em Direito e Instituições Políticas pela Universidade FUMEC. Professora Titular de Direito Processual Civil do Centro Universitário Newton Paiva. Assessora da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. 3 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? : a genealogia filosófica de uma grande aventura humana; tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 342. 4 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? : a genealogia filosófica de uma grande aventura humana; tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 349. 5 AVRITZER, Leonardo. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 136. 6 Destaque para os antagonismos social, político e econômico. 7 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martíres; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 215. 8 Não se faria correto dizer da maioria. 9 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalização. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 12.
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22 GARCIA, op. Cit., p. 71.
24 Ibid., p. 448. 25 MORAES, Maria Lygia Quartim de. Direitos Humanos e Terrorismo de Estado: A experiência brasileira. Caderno AEL: Anistia e Direitos Humanos. Campinas: UNICAMP/IFCH/AEL, v. 13, nº 24/25, 2008, p. 82. 26 BONAVIDES; ANDRADE, Op. Cit., p. 449. 27 Escolhido pelo Colégio Eleitoral. 28 ABC de Luta. 1985 – Conjuntura Brasileira: Tancredo Neves é eleito no Colégio Eleitoral. Disponível em: < http://www.abcdeluta.org.br/materia.asp?id_ CON=283>. Acesso em: 8 de agosto de 2014. 29 Salienta-se que o Vice-Presidente, José Sarney, era representante do partido da situação (ARENA) durante o período da Ditadura Militar. 30 Pleito realizado em 1986. 31 MOTTA, Op. Cit. 32 AIETA, Vânia Siciliano. Reforma Política: Estudos em homenagem ao Prof. Siqueira Castro,Tomo V. Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2006, p.16 33 BOM DIA BRASIL. Preço da passagem de ônibus provoca manifestações pelo país. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/ preco-da-passagem-de-onibus-provoca-manifestacoes-pelo-pais.html>. Acesso em: 17 de julho de 2014. 34 BORGES, André Lopes. Jovens vão às ruas e mostram que desaprendemos a sonhar. Jornal GGN. 09/06/2013. Disponível em: < http://advivo.com.br/ node/1400276>. Acesso em: 22 de agosto de 2014. 35 Incorrendo em ciente redundância.
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36 Fatos sociais, na visão de Durkheim, é uma construção humana – são formas de pensar e de agir que se impõe aos homens como algo exterior e exerce certa coerção social. 37 Assim, na análise de comportamentos individuais em meio a manifestações coletivas, Durkheim afirma que (2008, p. 34): “Somos, então, vítimas de uma ilusão que nos faz acreditar termos sido nós quem elaborou aquilo que se nos impôs do exterior. Porém, se a complacência com que nos deixamos iludir mascara a pressão sofrida, contudo, não a anula”. 38 DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico; tradução Pietro Nassatti. São Paulo: Martins Claret, 2008, p. 18. 39 MENDES, Priscila; COSTA, Fabiano; PASSARINHO, Nathalia. Dilma propõe 5 pactos e plebiscito para constituinte da reforma política. O GLOBO. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html>. Acesso em: 23 de agosto de 2014. 40 ALENCASTRO, Catarina; DAMÉ, Luíza. Ideia de Constituinte exclusiva surgiu no domingo. O GLOBO. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/ideiade-constituinte-exclusiva-surgiu-no-domingo-8813616#ixzz3AILRDB7L>. Acesso em: 13 de agosto de 2014. 41 O GLOBO. Confira a íntegra do discurso de Dilma Rousseff. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/confira-integra-do-discurso-de-dilma-rousseff-12350847#ixzz3AIjwpUFb>. Acesso em 13 de agosto de 2014. 42 GOYARD-FABRE, Op. Cit., p. 349. 43 O GLOBO. Proposta de plebiscito para convocação de assembleia constituinte específica é polêmica. Disponível em: < http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/06/proposta-de-plebiscito-para-convocacao-de-assembleiaconstituinte-especifica-e-polemica.html>. Acesso em: 15 de agosto de 2014.
48 MOTTA, Op. Cit. 49 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 64. 50 A vontade geral, retratada na soberania popular, é por vezes nebulosa e manipulada. Nas ponderações de Darcy Azambuja (2005, p. 73) – comentando Duguit (Traité de Droit Constitutionnel, vol. I): “Vontade nacional, consciência nacional, opinião nacional, são metáforas cômodas para designar a vontade, a consciência, a opinião de alguns indivíduos, daqueles que detêm o poder, dos governantes”. 51 Tratamos aqui das diversas formas de manifestação de poder, à exemplo: poder político, econômico, de comunicação etc. 52 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? : a genealogia filosófica de uma grande aventura humana; tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 333. 53 Leonardo Avritzer, ao analisar as reflexões sobre democracia e racionalidade da obra de Habermas chega às seguintes conclusões: “A solução habersiana aos problemas enfrentados pela teoria democrática desde o começo do século representa mais do que mero exercício heurístico. Ela representa uma forma de compatibilização entre democracia, racionalidade e participação, forma essa ausenta da teoria democrática desde as formulações de Weber e Schumpeter. Habermas nos oferece como solução ao problema da participação a existência de públicos não-institucionalizados capazes de se organizar no nível da sociedade e forçar a compatibilização entre esfera pública e sistema político. A compatibilização entre uma soberania popular procedimentalizada e os resultados de um debate discursivo no nível da esfera pública contribuiria para a racionalização do sistema político. Tal processo restauraria, de forma diferente da suposta pelos clássicos, a relação entre política e racionalidade. Ela nos permite entender o apelo normativo da democracia já percebido por Tocqueville e Ling Ch’ao e ignorado pelas teorias elitistas da democracia” (Avritzer, 2012: 123).
44 Plebiscito Constituinte. Jornal do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. Disponível em: <http://www.plebiscitoconstituinte. org.br/sites/default/files/material/pleb_jornal.pdf>. Acesso em: 13 de agosto de 2014.
54 GOYARD-FABRE, Op. Cit., p. 334.
45 Apesar de eleito pelo povo através do voto direto, secreto, universal e periódico – de igual valor para todos. Cumpre, em linhas de rodapé, trazer a seguinte observação: esta constituinte não seria realizada sobre as mesmas perspectivas eleitorais realizadas para a inserção de nossos representantes no Congresso Nacional? Prevalece, como sempre, o jogo do poder, no qual a população é sempre uma vítima induzida, perplexa e, por consequência, conivente.
56 Ibid. p. 345.
46 GUIMARÃES, Ulysses. Sessão solene de promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal. Disponível em: < http://www2. senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181880/000441849.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23 de agosto de 2014. 47 MAFFETONE, Sebastiano; VECA, Salvatore. A ideia de justiça de Platão a Rawls. Tradução Karina Jannini; Revisão da tradução Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 397.
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55 Ibid., p 335.
57 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 29ª Ed. Atualizador prof. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 299. 58 TOURAINE, Alain. O que é democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes,1996, p. 254. 59 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? : a genealogia filosófica de uma grande aventura humana; tradução Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 13. 60 Ibid., p. 349. ** Tatiana Maria Oliveira Prates Motta; Ludmila Stigert.
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DIALETOS E FALARES BRASILEIROS: Como um patrimônio cultural imaterial do Brasil Jade Ribeiro Cordeiro1 Maraluce Maria Custodio2 Banca examinadora** RESUMO: O referido artigo analisa os falares brasileiros como uma forma de patrimônio cultural imaterial, contendo uma preocupação em relação a proteção deste bem cultural. Vez que tem uma importância fundamental na evolução do país, em cada geração, devido a suas interferências geográficas, históricas e culturais. Desta forma, objetiva-se comprovar que os dialetos é um patrimônio cultural imaterial de muita relevância para o Brasil. PALAVRAS- CHAVE: Direito Ambiental Cultural; Patrimônios Culturais Imateriais; Importância dos Falares brasileiros; Proteção dos falares brasileiros. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Direito Ambiental Cultural; 3 Entendimentos dos Falares do Brasil como Patrimônio Cultural Imaterial; 4 Conclusão; Referências
1 INTRODUÇÃO Desde a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial feita em Paris na 32º sessão da conferência geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), vem surgindo a discussão em torno dos patrimônios imateriais que iriam ser protegidos. Tendo em vista a sua importância que é fonte de diversidade cultural e garantia do desenvolvimento sustentável, o Brasil entrou na discussão para assegurar tais bens imateriais culturais. Um desses patrimônios será objeto de estudo do presente artigo, qual seja: a linguagem, aonde irá questionar se os dialetos e os falares é um tipo de patrimônio cultural imaterial no Brasil. Neste sentindo, tem por finalidade a demonstração da importância deste bem, que ultrapassa a desigualdade social e regional deste país tão extenso. Visualizando a diversidade cultural que existe no Brasil, fundada por vários fatores históricos que serão apresentados no presente artigo, que terá por fundamento livros, revistas e artigos aonde se discute este relevante tema para o direito ambiental cultural imaterial brasileiro. O presente trabalho iniciará trazendo os conceitos de meio ambiente, do patrimônio cultural, a seguir será demonstrada a diferença do patrimônio cultural material e imaterial, na sua continuidade, irá conceituar os dialetos e falares para enfim confirmar a sua importância e a devida proteção a este bem cultural. Comprovando que os dialetos e falares brasileiro são um relevante patrimônio cultural que deve ser protegido para que ocorra a devida continuidade e evoluções da linguagem a cada comunidade em todas as regiões do país. 2 DIREITO AMBIENTAL CULTURAL 2.1 CONCEITO DE MEIO AMBIENTE O autor José Afonso da Silva, define meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as formas”. (SILVA, 2004, p.20). Portanto, divide-se meio ambiente em três direcionamentos para classifica-lo, sendo eles o meio ambiente natural, cuja denominação irá englobar tudo aquilo que interage com os seres vivos e seu meio, como exemplo o solo, a água e o ar, o meio ambiente artificial que é composto por todo o espaço urbano que existe ao nosso redor, e por fim, o meio ambiente cultural que é constituído por todo o patrimônio LETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
histórico, artístico e turístico. Vale ressaltar, que mesmo o meio ambiente cultural, sendo artificial, é diferente desta classificação, vez que o seu valor adquirido sobressai e é necessitado por toda a sociedade. (SILVA, 2004) Assim sendo, afirma-se que o meio ambiente não se resume apenas no meio ambiente natural, visto que o seu conceito vai além, agregando todo meio ambiente artificial, que contempla tudo o que foi construído pelo ser humano, sendo as obras históricas e artísticas, compõe o meio ambiente cultural, que irá envolver todo o patrimônio cultural. 2.2 PATRIMÔNIO CULTURAL O patrimônio cultural tem tido um espaço muito relevante no conceito ambiental, que como dito acima, que além dos ecossistemas naturais, contempla as grandes criações do espírito humano, onde se concebe em suas grandes obras. Na Carta Magna de 1934, inicia-se a institucionalização da tutela jurídica do patrimônio cultural, sendo ela a primeira a tratar de modo mais detalhado, em seu capítulo II, que aborda sobre a educação e a cultura. Todas as Constituições seguintes incluem o patrimônio cultural, sendo tratado de modo inovador pela Constituição de 1988, aonde se encontra regida pelo artigo 216, o conceito de patrimônio cultural, in verbis: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomando individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnógicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados as manifestações artísticos-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontógico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988, p.74) A preservação do patrimônio cultural tem como grande guardiã a comunidade, pois a atuação da mesma é fundamental, vez que é a legítima produtora e beneficiária dos bens culturais, sendo ela a verdadeira identificadora de um valor cultural, que ultrapassa a ideia de ser apenas artístico, arquitetônico ou histórico, mas poderá ser tam-
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bém estético ou simplesmente afetivo. Sob a denominação “Patrimônio Cultural”, a atual Constituição abraçou os mais modernos conceitos científicos sobre a matéria. Assim, o patrimônio cultual é brasileiro e não apenas regional ou municipal, incluindo bens tangíveis (edifícios, obras de arte) e intangíveis (conhecimentos técnicos), considerados individualmente e em conjunto; não se trata somente daqueles eruditos ou excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. (MILARE, 2014, p. 569) A Constituição Federal de 1988 assegura nos seus artigos 215 e 216 a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Ao que se trata do patrimônio cultural material divide-se em imóveis, como exemplo os núcleos urbanos, sítios paisagísticos e os bens móveis que são as coleções arqueológicas, documentais e bibliográficos. Os bens culturais materiais, tem como responsável o IPHAN, que tem o poder de abrir, guardar e dar acesso aos processos de tombamento, podendo emitir certidões aonde irá inscrever os bens nos Livros do Tombo, já o segundo patrimônio cultural, qual seja: o patrimônio cultural imaterial é o mais intrigante, vez que não é tão palpável quanto os bens culturais de natureza material, pois o patrimônio cultural imaterial diz respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam, aonde são transmitidos de geração a geração, e tem uma evolução constante por todas as comunidades, contendo natureza histórica e principalmente contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural. (ZANETTI, WALKIM, 2009) Conclui-se, que ao considerar a grande importância que traz o patrimônio cultural imaterial, diante do amparo dos bens que compreende as expressões e tradições de um povo que receberam tais conhecimentos e serão repassados adiante em cada um dos seus ancestrais, demonstrando, portanto, que não será só o aspecto físico que irá constituir a cultura de uma comunidade, será também suas tradições, os saberes, o folclore, as festas e a sua linguagem. 2.3 PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL Ao que se refere à proteção dos patrimônios imateriais no Brasil deve ressaltar o Decreto Federal 3.551/2000, no qual regulamentou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e institucionalizou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, que tinha como objetivo a realização de política específica de inventário, que poderia dar o valor necessário aos bens culturais imateriais. Tal decreto em seu artigo 1º § 2º, informa que são pressupostos para a inscrição a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira. (MILARE, 2014) Assim que for dado fim do processo, o IPHAN dará o seu parecer a respeito e irá enviar o processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que tem o poder de ter a decisão final sobre o registro, que será publicado no Diário Oficial da União, abrindo-se então prazo de 30 (trinta) dias da publicação para manifestações (art. 3º, parágrafos 4º e 5º, do Decreto 3.551/2000). Por fim, será publicado no livro correspondente e terá a qualificação de Patrimônio Cultural do Brasil. Diante disso, percebe-se a abrangência dos bens culturais de natureza imaterial, que tem por finalidade a valorização dos bens culturais intangíveis. Esta regulamentação que se deu através deste Decreto nº 3551/2000, aonde foi iniciado o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, tem por objetivo resguardar os conhecimentos produzidos coletivamente que vai além da individualidade, que faz parte da história, conhecimentos estes que são considerados como um bem cultural. (SANTILLI, 2002).
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Ao que se entende, é extremamente importante essa interferência estatal para haja a proteção a estes patrimônios imateriais. Como já suscitado acima, o grande valor que esses patrimônios têm para toda a sociedade é de suma importância. Desta forma, o registro é uma das formas nas quais entende-se pertinente para essa tutela ao bem tão relevante para a comunidade, o patrimônio cultural imaterial. Os registros de patrimônio cultural imaterial é fixado em alguns livros de registros, que são conceituados como Livro de registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro de Lugares. Entretanto os quais não se adaptam, poderão criar outro livro de registro de bens, como por exemplo, é o dos bens linguísticos, que através do pedido feito, com a devida assessoria do IPOL (Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística) ao IPHAN, pelo começou-se a se pensar neste livro de bens linguísticos. Portanto, para que haja a devida valorização a estes patrimônios culturais deverá ser feito da forma adequada, como por exemplo, quando se trata de patrimônio imaterial, deverá ser feito o registro. 3 ENTENDIMENTO DOS FALARESDO BRASIL COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERAL Não há o que se comparar o conceito entre dialetos e falares, vez que os dois trazem o mesmo significado, não havendo nenhuma diferenciação. Para que haja estes dialetos, existem vários fatores que influenciam, como por exemplo, geográfico, histórico e social. (RAMOS, 2002) Portanto, para que haja uma real concepção do que se trata estes dialetos, vejamos: A conceituação de dialetos ou falares regionais sempre é melhor entendida a partir da definição de língua. Língua pode ser definida como um sistema de oposições funcionais serve de instrumento de comunicação, suporte de pensamento e meio de expressão dos indivíduos de um determinado grupo social. A língua é sempre vista como uma unidade, um todo indivisível. No entanto, esta unidade é composta de infinitas variações – regionais grupais ou individuais - que podem ser estudadas através dos níveis de analise fonético-fonológico, morfológico, sintático e semântico. Cada língua, ou sistema lingüístico, é constituído de subsistemas que apresentam pontos de interseção e de disjunção. Esses subsistemas são os dialetos. (ARAGÃO, 1983; 17) A linguagem é uma das características mais significativas da cultura, vez que demonstra com clareza a sua continuação por várias gerações, sendo herdada por cada uma delas. Sendo também, uma forma de se expressar elencada na nossa Constituição Federal, em que é direito essencial a vida humana. Uma grande característica dos falares é a sua diversidade cultural, que é trazida no ordenamento jurídico brasileiro, como um patrimônio cultural linguístico, pois tem um grande respeito à língua materna e dando a total liberdade para cada comunidade se expressar, conforme a sua identidade cultural. (SOARES, 2011) No que tange a compreensão ao direito linguístico do nosso país, existe uma grande hegemonia de sua língua oficial, mas deve ser lembrado que se contém inúmeros falares, que constitui como bens culturais integrantes. Ao decorrer do tempo, foi-se perdendo as inúmeras línguas as quais eram faladas no Brasil, como por exemplo, as línguas indígenas. Há cerca de 500 anos atrás, considerava-se por volta de 1200 idiomas, sendo que na atualidade é falado cerca de
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180 idiomas. Conforme, os dados (RODRIGUES, 1986) da Revista Patrimônio no texto, “Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras. Essa extinção de línguas deu-se principalmente no período de colonização, aonde os colonizadores obrigavam os índios a falar somente o idioma português, tal idioma que tem como oficial no Brasil. Sendo assim, foi-se adquirindo a diversidade dos falares que há no território brasileiro”. (MULLER, MORELLO, p. 52) Diante disso, Carlos Frederico Marés de Souza Filho (1993, p. 23) defende. A novidade mais importante trazida em 1988, foi alterar o conceito de bens integrantes do patrimônio cultural passando a considerar que são aqueles portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Pela primeira vez no Brasil foi reconhecida, em texto legal, a diversidade cultural brasileira, que em consequência passou a ser protegida e enaltecida, passando a ter relevância jurídica os valores populares, indígenas e afro-brasileiros. Defende-se, portanto, a manifestação de todos os falares que advieram de enumeras partes do mundo, seja ela indígena, de imigração, afro-brasileiras ou de qualquer outro local. Portanto, não há o que se falar a oficialidade da língua portuguesa, mas a proteção dos dialetos e falares que são consagrados como bens culturais. O Estado democrático de direito tem por sua prioridade a necessidade de um país mais justo e de uma inexistência de desigualdade social e regional. Portanto, para que haja a desvinculação de qualquer preconceito que seja traçado por falares de outras regiões, é necessário o incentivo à cultura, onde estará sendo priorizada a identidade de cada uma das comunidades inseridas no território brasileiro. Tal Estado democrático de direito tem obrigação na proteção do multiculturalismo, sendo qualquer manifestação resguardada no texto constitucional, quando conceitua o patrimônio cultural. Neste sentido, reconhece a sociodiversidade da cultura brasileira e as variadas formas de expressão. (SANTILLI, 2002) A indicação pertinente ao que se refere a essa proteção está amparada pelo artigo 215, §1º da Constituição Federal de 1988, vejamos: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório. (BRASIL, 1988, p. 74) Mesmo a Carta Magna citando expressamente às comunidades indígenas, este direito à diversidade linguística engloba todos os dialetos falados por brasileiro. Sendo assim, o Estado juntamente com a sociedade, deve garantir a proteção aos dialetos e falares do Brasil, como refere o artigo 216 §1º da CF de 1988: O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (Brasil, 1988, p.74) Tendo como meios judiciais ou extrajudiciais, como por exemplo, os registros, o tombamento, a desapropriação, os inventários e a vigilância, que traz a toda população o dever de protegê-los. (SOARES, 2011). Constata-se, portanto que há uma busca para que haja a diversidade cultural e seja protegida por todos, respeitando cada região com sua forma de falar.
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3.1 DA IMPORTÂNCIA DOS FALARES BRASILEIROS Toda a sociedade brasileira se expressa com esta língua unificadora, o português, pelo fato de ter sido a língua em que colonizou o Brasil, historicamente sendo introduzida em todas as regiões deste extenso país, sendo desenvolvido o cotidiano do brasileiro e toda a sua cultura, deixando cada região com sua forma de falar, pelo fato de terem variadas influências, como os africanos, indígenas e europeus. Neste sentido, nossa língua oficial, é fato que demonstra ser devido a todo o processo de colonização e tendo uma variação cultural do português de Portugal. Historicamente a língua que se fala no Brasil tinha de ser diferente dos nossos colonizadores, vez que houve uma grande diversidade da descendência da mesma. Pois é constituída por várias influências, sendo elas: a língua indo-européia que teve sua origem entre a Europa e a Ásia, da qual faz parte a língua portuguesa, outra grande impulsionadora do falar brasileiro é a Tupi, na qual é falada pelos índios que residem em toda a América do Sul, e finalmente a Níger - Congo que teve sua origem na África Subsiariana e houve a expansão por todo o continente. O que transformou essa grande mistura, no que chamamos hoje de língua brasileira (CASTRO, 2008). Portanto, a origem para tantos dialetos é devido aos colonizadores do país, que foram importantes em variados momentos históricos do Brasil, como por exemplo, o português que se sobrepôs quando chegou e colonizou o país, porém sofreu influências de outros idiomas europeus, como o holandês, alemão, italiano, entre outros, que foram se espalhando neste grande território brasileiro, misturando tais dialetos com o indígena e o africano, supracitados. Essa miscigenação lingüística é um bem cultural imaterial, que demonstra o porquê dessa diversidade que existe nesta grande extensão do território brasileiro, no qual é desenvolvido várias formas e jeitos para expressar uma língua, qual seja o português. Sendo cada região com sua originalidade de cada palavra, que muda quando comparada a outra região do país a pronúncia, ou até mesmo o seu significado. Pois não há dúvidas que se pode falar português de diversas formas no Brasil, cada um com sua maneira e cultura diferente. Este pluralismo linguístico trouxe uma grande bagagem cultural ao nosso país, que teve influências, sociais, culturais, históricas e geográficas. Um processo de evolução, devido a grandes mudanças e eventos que ocorreram no país, sendo este processo inacabável, vez que está em constante evolução. Pois bem, é nítido que a forma com que é expressado cada sotaque é devido a região e o meio em que o indivíduo convive, pois tem uma interferência na identidade da fala de alguém. Estas influências, entende-se por integrar o patrimônio cultural do Brasil, sendo amparada no artigo 216, I, da Constituição Federal, ao que trata as “formas de expressão”. Portanto não há o que se discutir em relação ao amparo constitucional em que se refere aos dialetos brasileiros, que é abrangida por diversas influências, demonstrando haver uma mistura cultural em cada fala e expressão da identidade de cada brasileiro. 3.2 DO REGISTRO DOS FALARES BRASILEIROS COMO BEM CULTURAL IMATERIAL Demonstrou-se no presente artigo, quanto aos registros de patrimônio cultural imaterial, conclui-se a partir do estudo, a necessidade do livro de registro linguístico, que teria algumas obrigações ao IPHAN para constituí-lo, como explica Inês Virgínia Prado Soares, no seu artigo Cidadania cultural e Direito à Diversidade Linguística: A Concepção Constitucional Das Línguas e Falares Do Brasil Como Bem Cultural: (...) quando o bem intangível candidato a patrimônio brasileiro não possuir suporte material, como é o caso da língua falada,
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devem-se buscar contribuições com registro gráfico, sonoro, audiovisual ou outro para efeitos de conhecimento, preservação e valorização, de outras associações ou mesmo os moradores da cidade e indivíduos, nacionais ou estrangeiros que tiveram contato com o bem. (SOARES, p. 99, 2008) A partir de então terá um processo para que os falares em que o indivíduo de cada região se manifeste registrado no Livro de Registro de Línguas e Falares brasileiros, demonstrando o seu caráter cultural e de grande significância para o Brasil e todo o seu caráter histórico, como por exemplo, cada expressão utilizada por uma região diferente do país. Como explica o IPHAN, a respeito da relevância desses bens imateriais que são relevantes, a partir do seu artigo Os sambas, as rodas, os meus e os bois – A trajetória da salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil: 1936-2006. IPHAN, 2006, p. 18. A identificação desses bens culturais imateriais deveria se dar, portanto, a partir de sua relevância para a memória, identidade e formação da sociedade brasileira. Também foi visto como fundamental a sua continuidade histórica, ou seja: que fossem reiterados e transformados e atualizados, a ponto de se tornarem referências culturais para comunidades que as mantêm e as praticam. Percebe-se então a relevância para a memória e identidade da sociedade brasileira, se consolida pelo dialeto, o que demonstra ser um aparato legal para a sua continuidade e evolução de forma genuína. Cada comunidade fabricando cultura apenas pela sua forma de expressar. Algo que não poderia deixar de ser registrado e tendo um amparo não só pela sociedade, mas através de uma intervenção estatal que protege esse bem cultural imaterial pelo registro em livros, se firmando como um patrimônio cultural imaterial brasileiro. 4 CONCLUSÃO No presente artigo, pudemos constatar que não há o que se discutir sobre a oficialidade da língua portuguesa no nosso ordenamento jurídico, entretanto, após a nossa Constituição Federal de 1988, vislumbramos um espaço dado à diversidade linguística que constitui o nosso país. Este pluralismo linguístico existente no Brasil nos transmite a extensão da cultura aqui habitada, sendo ela produzida e evoluída de variadas formas, entre elas a evolução histórica. Pois bem, é claro que deve haver essa proteção ao direito das minorias se expressarem da forma com que estão acostumadas, afinal, além de ser um direito, estabelecido por um país no qual prega a democracia, é ainda algo que deva ser protegido, vez que a cultura arreigada em cada uma dessas comunidades é extremamente valiosa para o patrimônio cultural brasileiro. O Brasil por ser um país com dimensões grandes, tem-se uma diversidade de falares que poucos países tem este privilégio. Vez que a colonização trouxe as mais variadas culturas para integrarem o que constitui hoje, uma língua portuguesa, mestiça brasileira. Tem por seus integrantes o continente europeu - asiático, africano e uma comunidade que está espalhada por toda a América do Sul, que são os indígenas. Transformando esta grande diversidade em um valioso patrimônio cultural imaterial, sendo este a língua e os falares brasileiros. Por isso, a hegemonia da língua portuguesa, não deve ser entendida como uma proibição, ao contrário, deve ser contemplados como um direito fundamental, no qual cada comunidade tem sua liberdade de expressão, sem ser obrigada a falar qualquer outra língua ou falares que não sejam da sua história ou cultura. Sendo a língua portuguesa, o idioma nacional, diante do artigo 13 da Constituição Federal. Entretanto, a lei assegura o direito de ex-
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pressão em qualquer que seja o seu dialeto, o que enriquece a diversidade cultural, assegurando a cultura nacional, tanto para a maioria, quanto para a minoria. Neste sentido, a diversidade linguística dos falares, deve ser protegida como um patrimônio imaterial brasileiro, resguardando a todos este bem com total influência histórica, cultural e geográfica. REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Vade Mecum Saraiva. 16 ed. atual, ampl. São Paulo, Saraiva, 2014 DE CASTRO, Yeda Pessoa , Das línguas africanas ao português brasileiro, Revista Patrimônio,Diponível em <http://www.revista.iphan.gov.br/materia. php?id=211>, Acesso em 25 de novembro de 2014 Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instiuiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imateral que constituem o Patrimônio Cultural Brasleiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências, Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm> Acesso em 05 de novembro de 2014 FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza, Proteção Jurídica dos Bens Culturais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 1, n. 2, 1993. MILARE, Edis, Direito do Ambiente - a gestão ambiental em foco, 9 ed. São Paulo, RT Millennium Editora, 2014 RAMOS, Jânia, Dialeto mineiro e outras falas: estudo de variação e mudança linguística, Disponível em <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.iphan.gov.br%2FbaixaFcdAnexo.do%3Fid%3D4719&ei=RP11VL_gD8WlNt_WgsgC&usg=AFQjCNHGUCvYwg63NvQkgLur4E5yFHM_ NA&sig2=lRkx22ww-MgeIV8M_XGO6g&bvm=bv.80642063,d.eXY> Acesso 24 de novembro de 2014 SANTILLI, Juliana, Patrimônio imaterial: proteção jurídica da cultura brasileira. In: III Seminário Internacional de Direito Ambiental. Cadernos do CEJ, Brasília, v. 21, 2002. SILVA, José Afonso, Direito Ambiental Constitucional. 5 ed. São Paulo, Malheiros, 2004 SOARES, Inês Virginia Prado, Cidadania Cultural e Direito à diversidade linguística: a concepção das línguas e falares do Brasil como bem cultural, Disponível em <http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&sqi=2&ved=0CB0QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.reid. org.br%2Farquivos%2F00000039-REID001_InesSoares.pdf&ei=o_d1VNCcN8KhNpz9gMgO&usg=AFQjCNGG8_lswKVUxQudqk9bSPLVUZmpuA&sig2=QH2PeVndTXlKAHs2n2IV6A> Acesso em 12 de setembro de 2014. UNESCO, Convenção para Salvagada do Patrimônio Cultural Imaterial, França, 17 de outubro de 2003. Tradução feita pelo Ministério das Relações Exteriores, Brasília, 2006, Disponível em <www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo. do?id=4718>, Acesso em 23 de novembro de 2014 ZANETTI, Claudia Luciane. WALKIM, Melissa de Melo, Principais Conceitos sobre Patrimônio Cultural. Disponível em <http://www.brasilcultura.com.br/patrimonio-cultural/principais-conceitos-sobre-patrimonio-cultural/> Acesso em 05 de setembro de 2014
NOTAS DE FIM 1 Acadêmico do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton. 2 Doutora em Geografia na Universidade Federal de Minas Gerais. Professora adjunta da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva e professora da Graduação e Professora Permanente Do Programa De Pós-Graduação Em Direito Da Escola Superior Dom Helder Câmara. **Maraluce Maria Custódio; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
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ALIENAÇÃO PARENTAL: Uma abordagem à luz da Lei 12.318/2010 Gleison Ricardo Ribeiro1 Valéria Edith Carvalho de Oliveira2 Banca examinadora** RESUMO: Este artigo pretende demonstrar que com a perda do poder de familiar, a alienação parental pode ganhar espaço, principalmente nas relações mais fragilizadas. O alienador pode tanto ser um dos genitores como demais parentes, que, pela falta de valores morais ou éticos, associados aos sentimentos ruins que permeiam estas situações, poderão influenciar negativamente na formação psicológica do menor. Cabe, então, ao poder judiciário garantir tanto os direitos e a integridade psicológica da criança como os direitos de ambos os pais. A Lei 12.318/2010 procura regulamentar tal conflito, visando o bem estar de todos. PALAVRAS-CHAVE: Família; alienação parental; proteção legal, mediação. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Compreendendo o conceito de família a partir de uma análise histórica; 3 Identificando a SAP; 4 A proteção legal diante dos casos de Alienação Parental; 5 A situação após quatro anos de consolidação da lei 12.318/10;6 A mediação familiar como como meio de resolução dos casos de SAP;7 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O atual artigo aborda a Síndrome de Alienação Parental e suas peculiaridades no ordenamento jurídico brasileiro. Primeiro será feita uma leitura, abordando os institutos da família e sua evolução histórica, uma visão jurídica das relações familiares vividas no Brasil a partir do Código Civil de 1916. A evolução do instituto da família, como uma nova forma de composição e recomposição, dando destaque aos casos de disputas pela guarda dos filhos, a partir de casos de divórcio, ou rompimento da união estável. Será abordado o conceito de Alienação Parental e as formas de detectá-las. Será analisada a diferença entre Alienação Parental e a Síndrome da Alienação Parental, seu surgimento e as sequelas que este tipo de síndrome pode causar nos menores envolvidos. A forma como o Judiciário vem tratando os casos em que se confirmam a presença dessa alienação, sua identificação prevenção e possíveis penalidades para os agressores também serão abordados, focalizando nas jurisprudências atualizadas depois de quatro anos de vigência da Lei 12.318/2010 que trata especificamente sobre a Síndrome de Alienação Parental. 2 Compreendendo o conceito DE FAMÍLIA a partir de uma análise histórica Por ser uma instituição fundamental para a organização social do Estado, a família sempre teve a sua proteção prevista na legislação. O cenário dos atuais modelos de família vem sofrendo inúmeras mudanças ao logo dos tempos. Se analisarmos a evolução ocorrida nas relações humanas e o Código Civil de 1916, podemos considerar que houve um avanço na legislação brasileira que rege o Direito de Família. Segundo Carlos Alberto Gonçalves, em 1916 a família reconhecida pelo estado, só se constituía pelo casamento: “O Código Civil de 1916 e as leis posteriores, vigentes no século passado, regulavam a família constituída unicamente pelo casamento, de modelo patriarcal e hierarquizada, ao passo que o moderno enfoque pelo qual é identificada tem indicado novos elementos que compõem as relações familiares, destacando-se os vínculos afetivos que norteiam a sua formação”. (GONÇALVES, 2005, p. 16). Atualmente, doutrina e jurisprudência fazem interpretações da realidade familiar brasileira inclusivas e ampliativas em consonância
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com os preceitos regidos pela Constituição Federal de 1988 e as alterações da codificação civil de 2002. “As alterações introduzidas visam preservar a coesão familiar e os valores culturais, conferindo-se à família moderna um tratamento mais consentâneo à realidade social atendendo-se às necessidades da prole e de afeição entre os cônjuges e os companheiros e aos elevados interesses da sociedade”. (GONÇALVES, 2005, p. 6). Os modelos de família expressos pelo artigo 2263 da CF/1988, estão subdivididos em três modelos familiares. Primeiro tem-se os que se concretizam com o casamento, em seguida a união estável entre homens e mulheres, e por fim a família monoparental. Entretanto não se pode considerar o artigo 226 como um rol taxativo, pois, temos outras modalidades de famílias, além das já descritas, não positivadas como as famílias recompostas, aquelas formadas por apenas um dos membros do casal, com os filhos de outros relacionamentos e novos filhos em comum, a família anaparental, formada por apenas um dos genitores, as homoafetivas, que são aquelas formadas pela união entre pessoas do mesmo sexo, e por fim as famílias sócio-afetivas que estão fundadas em uma convivência comunitária por afinidade. Com as novas modalidades de família, as relações entre os membros tornaram-se bem diferentes das vividas antigamente. Com a globalização, a maior inserção da mulher no mercado de trabalho, uma nova postura da sociedade vem alterando as bases familiares, como por exemplo, antes a função de um pai de família era somente de sustento, hoje além do sustento ele tende a se preocupar com os afazeres domésticos e a educação dos filhos. Há também as mães que arcam financeiramente com as despesas do lar e a tarefa de educar os filhos sozinhas. Mesmo com todo o avanço nas relações familiares, o casamento ainda é o meio mais tradicional de se constituir uma família, ele está previsto no art. 1.511 do Código Civil de 2002 que diz:“O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.Então, o casamento é um ato solene no qual os noivos deverão firmar o compromisso de espontânea e livre vontade. Por ter um vínculo jurídico, somente o Estado poderá concretizá-lo ou desconstituí-lo. Outra forma de se instituiruma família é através da União Es-
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tável, que tem previsão no art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988, e no artigo 17234 do Código Civil de 2002. A terceira modalidade de entidade familiar apresentada é a Família Monoparental, que tem previsão no art. 226 § 4º da CF de 88. São bem amplasas possibilidades de formação, no caso das Famílias Monoparentais, a título de exemplo têm-se as formadas por pessoas que se separaram ou divorciaram, as que puseram fim a união estável, por morte de um dos conviventes, ou mesmo pelo celibato maternal ou paternal. Existe aindaas entidades familiares formadas por casais homoafetivos e que merecem os mesmos cuidados que se dá à família tradicional. Por fim, tem-se a família sócio-afetiva,que busca a valorização dos laços afetivos gerados e compartilhados pelo convívio, respeito, amor e segurança, resguardados como direito fundamental para convivência familiar e comunitária. Esta modalidade familiar baseou-se na concepção Eudemonista, que trabalha a felicidade individual como sendo o principal objetivo para a convivência familiar de seus integrantes, conforme José Renato Nalini (2006, p. 49) define: “Eudemonismo deriva de eudemonia, em grego felicidade. Incluem-se nessa ramificação as doutrinas que fazem da ventura o valor supremo. Para elas, a tendência à felicidade é inata ao homem e, [...] ela é o bem supremo”. Perceber-se então que para esta modalidade mais importante que os vínculos consanguíneos, são os laços afetivos que unem os integrantes na família, como define Fábio Ulhoa Coelho (2011, p. 177): “A filiação socioafetiva constitui-se pelo relacionamento entre um adulto e uma criança ou adolescente, que, sob o ponto de vista das relações sociais e emocionais, em tudo se assemelha à de pai ou mãe e seu filho”. Para a doutrinadora Ana Cristina Silveira Guimarães (2010, p. 434) “a verdadeira paternidade ou maternidade decorre mais de amar e servir do que fornecer material genético”. Ficando claro que a convivência harmoniosa entre os entes familiares vai muito além dos laços biológicos e que cada vez mais esta socioafetividade deve ser considerada pelo judiciário. Dentro da nova perspectiva constitucional, os princípios que passaram a mover o Direito de Família e reger as relações estabelecidas nesses núcleos, podemos destacar o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade, o princípio da solidariedade, o princípio da paternidade responsável, o princípio do pluralismo das entidades familiares, o princípio da tutela especial à família, o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, e o princípioda isonomia entre os filhos. Neste sentido as alterações mais significativas que ocorreram foram a igualdade dos filhos, a igualdade do poder decisivo do pai e da mãe, a partir do princípio da igualdade entre homens e mulheres no núcleo familiar. Com o fim do casamento, e perdida à igualdade da autoridade parental, uma vez que o poder decisivo torna-se exclusivo de um dos pais. ALei 11.698 de 2008, que veio para instituir e disciplinar a guarda compartilhada, define que nos casos de separação a guarda do filho passar a ser compartilhada sempre que possível. Conforme a redação do artigo 1º da lei 11.6985. Atualmente na maioria dos casos de separação, a guarda unilateral do menor é passada à mãe, restando ao pai ter que se adaptarse à rotina da criança e consequentemente a um tempo menor de convivência com ela, e é neste cenário que podem surgir os casos de alienação parental, onde aquele pai ou mãe que teve dificuldade de se adaptar à separação ou ànova rotina ou aquele que passou a viver
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em um ambiente social ou cultural inferior, passa a ausentar-se mais da vida da criança, favorecendo à alienação por parte do outro genitor ou até mesmos dos parentes consanguíneos ou afins. 3 IDENTIFICANDO A SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL O médico psiquiatra e norte-americano Richard Gardner foi quem tratou primeiro sobre o conceito da Síndrome de Alienação Parental também conhecida como SAP. Em suas pesquisas, ele chegou ao entendimento de que a Síndrome é um trauma de infância que quase sempre surge em crianças de famílias que disputavam a sua guarda. De acordo com Richard, o início da Síndrome aparecia com a campanha desmoralizante feita contra um dos genitores. Esta campanha era feita pelo próprio menor e sem nenhum fundamento. Esta denegação gratuita resulta de instruções coordenadas pelo próprio genitor alienador, com participação da própria criança para destruir a imagem do genitor alienado. Richard Gardner, faz uma analogia com a área de informática para explicar o que acontece nos casos da alienação. Ele trabalha o termo programming6 para explicar o implante de ideias, atitudes ou até mesmo respostas dadaspelo menor vítima da alienação, como acontecem com oscomputadores onde os softwares7 são inseridos em dispositivos de hardware8. Gardner ainda afirma que no caso de pessoas, as instruções ficam armazenadas em seu cérebro e podem ser recuperadas pelo programador que seria o genitor e até mesmo pela própria criança que as propagará através de falsas ações. A Criança responde a essas falsas memórias implantadas pelo alienador bloqueando a sua memória, uma verdadeira falácia em relação ao passado vivido com o genitor alienado. Mas que para ficar caraterizado a SAP é necessário que o menor alienado tenha um comportamento desrespeitoso e agressivo diante de um dos pais. A alienação parental é um termo geral, enquanto a Síndrome de Alienação Parental é termo específico da alienação. Para Gardner, a alienação parental pode se dar devárias maneiras, como por exemplo, a negligência, o abuso sexual, o abandono, dentre outros. E estes comportamentos por parte dos genitores pode causara alienação nos menores, e é percebida quase sempre quando os casais estão disputando a guarda da criança. Quando a Síndrome é identificada no início, a mesma poderá ser reversível a com a ajuda de psicólogos, assistentes sociais e até mesmo com o apoio do judiciário. Contudo quando a Síndrome já está instalada é muito difícil a suareversão. Richard Gardner define a síndrome da alienação parental nos seguintes termos: “A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua manifestação preliminar é a campanha denegatória contra um dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e que não tenha nenhuma justificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor (o que faz a “lavagem cerebral, programação, doutrinação”) e contribuições da própria criança para caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a negligência parentais verdadeiros estão presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e assim a explicação de Síndrome de Alienação Parental para a hostilidade da criança não é aplicável. (Richard A. Gardner, M.D. Tradução nossa)”9. Portanto, pode-se compreender que a alienação parental é caracterizada pela desmoralização da imagem de um dos genitores, para a criança alienada, podendo ser feita por um dos pais ou por outros parentes e amigos da família que movidos por diversas razões,
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podem distorcer a realidade. Já a Síndrome da Alienação Parental vai mais além, pois ela será o reflexo das sequelas deixadas no período de alienação parental. São prejuízos psicológicos, morais e sociais, por vezes crônicos e irreversíveis, que influenciarão nas condutas comportamentais do menor que foi ou está sendo vítima. A alienação parental inicia-se com a conduta doentia do alienador que por raiva do outro progenitor irá nutrir ao menor alienado sentimentos de raiva, menos valia e culpa pelos males da vida, que serão transmitidos através da implantação de falsas memórias, programando a mente do menor com princípios contrários aos do outro genitor, consequentemente estas informações confundirão a cabeça da criança ou adolescente, gerando uma tortura mental ou física podendo levá-lo a desenvolver problemas psicológicos como atitudes violentas, antissociais, criminosas, depressão e até mesmo nos casos mais graves o suicídio. Já na idade adulta pode levar o alienado ao remorso por ter desprezado e maltratado seu genitor. O meio cultural e social, também pode ser um fator determinante para esta alienação, pois o desequilíbrio mental, comportamental, o uso de drogas lícitas e ilícitas e o despreparo dos pais acabam por fazê-los transmitir aos filhos suas frustrações. Seja pelo desequilíbrio emocional de uma vida conjugal que não deu certo, seja pelo fato de o próprio progenitor não ter tido uma base familiar bem construída, pela perda do emprego, pelo não pagamento de pensão alimentícia, abandono familiar ou até mesmo pela realidade social precária onde estão inseridos estes pais e demais parentes. A alienação geralmente começa com a separação dos genitores e está ligada a outros fatores como, por exemplo, o ciúmes de um novo parceiro do outro genitor, a falta de pagamento da pensão alimentícia, a perda ou falta do emprego além de divergência de formas de educação e valores. O alienador pode ser capaz de diversas atitudes maldosas para alcançar seu objetivo, submetendo a criança a uma verdadeira tortura psicológica, por vezes contando com a participação da criança na disseminação do ódio ao alienado, ao ex-companheiro, podendo se estender aos avós e parentes próximos, ou responsáveis pela guarda do menor. Os menores que foram submetidos a essa violência emocional, podem carregar marcas para sempre no decorrer da vida, e poderão desenvolver também doenças crônicas que se iniciam quando o menor alienado passa a colaborar com a estratégia do seu alienador. Já quando adultos, estes alienados podem carregar o sentimento de culpa e remorso por terem contribuído e maltratado o seu genitor gratuitamente. 4 A PROTEÇÃO LEGAL DIANTE DOS CASOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL A prevenção ainda é a melhor saída para resguardar os Direitos e a integridade física e moral do menor. O artigo 227 da CF 1988 trata dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, prevendo o direito à convivência familiar como fundamental à formação das pessoas em desenvolvimento. Tem-se também o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido como ECA, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que também resguarda os direitos dos menores e a importância de que o menor cresça e seja educado no meio familiar. Para reforçar este direito do menor, criou-se a Lei n°12.318, de 26 de Agosto de 2010, que dispõe exclusivamente sobre a Síndrome da Alienação Parental, que se configura como legislação de cunho especial, visto que sua aplicação é limitada às pessoas ou às famílias que vivem separadas. O intuito desta Lei é a busca por um equilíbrio entre os pais na condução da educação, criação e formação de seus filhos, e nos casos de abuso aumentar a atuação do poder judiciário. Ela trouxe mais segurança e embasamento para os operadores do direito nas re-
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soluções de conflitos que envolvam crianças e adolescentes. A definição da nomenclatura SAP permite ao operador do Direito uma identificação mais rápida da lide em questão, e consequentemente identificação do problema no início o que torna mais fácil a tomada de medidas protetivas visando o bem estar do menor. A escolha da nomenclatura genitor, também foi outro ponto positivo na Lei porque ela afasta a ideia de que só a mãe pode alienar um filho, pois não raras vezes nos casos de dissolução do casamento ou união estável a guarda do menor fica com ela. A Lei tem um caráter preventivo, pois basta que sejam identificados os comportamentos que possam prejudicar a relação parental para que seja acionada. Além de punir os genitores ela se estende também a todos os responsáveis pela guarda do menor. A Lei não trata o processo da alienação como uma doença que mereça tratamento e sim com uma conduta reprovável que deva ser punida pelo judiciário, sendo assim a alienação e caracterizada como sendo um abuso emocional contra o alienado, e a finalidade é evitar este abuso. A Lei em seu artigo 2º define a Alienação Parental, e acrescenta ainda com hipóteses os atos declarados pelo magistrado, perícia e os outro que estão escritos como forma exemplificativa. Este artigo tem um caráter educativo e traz uma segurança maior na apuração e identificação dos casos ou de indícios da alienação. As perícias do rol exemplificativo devem constar a ocorrência de atos de alienação ou indicar alternativas de intervenção quando necessárias, não afastando a possibilidade de realização de perícias psicologias ou biopsicossociais. As perícias não devem ser absolutas pois em casos evidentes de alienação, o judiciário deve fazer uma intervenção rápida, principalmente quando se tem algum tipo de desrespeito por parte de um dos genitores. No artigo 3º, a preocupação do legislador está ligada diretamente aos direitos fundamentais da criança ou do adolescente ao convívio saudável no grupo familiar, por isso a necessidade da proteção do menor, que é uma pessoa em desenvolvimento, e que precisa ter seus valores éticos e morais preservados para que no futuro se tornem pessoas integras. O artigo 4º da Lei de Alienação Parental prevê a prioridade de tramitação do processo quando tiver fumaça de algum ato de alienação. Cabendo também ao magistrado caso necessário tomar medidas cautelares para assegurar o direito da vítima. Estas medidas são importantes, considerando que alguns processos podem demorar anos e então a vítima ficaria à mercê do genitor alienador. Uma vez constatada a alienação, o operador do Direito poderá intervir rápido em defesa da vítima. Embora fira o exercício absoluto da paternidade, o legislador também se preocupou em assegurar, no mínimo, a convivência assistida dos menores com os genitores suspeitos de abuso, até que seja comprovada a veracidade da acusação, à exceção de quando houver riscos aos menores. Isto se dá por que existem casos em que as queixas de abuso, ao serem examinadas posteriormente, são confirmadas como falsas. A guarda compartilhada ainda é o meio mais indicado para a participação dos pais separados na criação dos filhos, mas terão casos em que ela não será viável, sendo necessárias outras ações de proteção. A Lei de Alienação Parental trabalhou medidas que o magistrado pode aderir em benefício do menor. Não é um rol taxativo, são medidas de proteção previstas no ordenamento jurídico, que não são medidas de advertência, não tem um caráter punitivo, mas visam a prevenção psicológica da vítima. Por se tratar de um tema difícil, o artigo 5º da Lei em seu parágrafo primeiro estabelece os requisitos básicos para a construção do laudo, através de medidas de urgência que visam preservar a integri-
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dade física e psíquica do menor, podendo-se até ser solicitada uma oitiva como menor, vítima de alienação, além de determinar a elaboração de perícias psicológicas ou biopsicossociais. O artigo 6º da Lei prevê uma lista exemplificativa com alguns dispositivos que tem o intuito de proteger a manutenção do direito a convivência do menor com o genitor alienado, com o intuito de inibir ou responsabilizar o alienador por atos que caracterizem a alienação parental, como, declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador, ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado, estipular multa ao alienador, determinar o acompanhamento psicológico e ou biopsicossocial, determinar a alteração da guarda para compartilhada ou até mesmo a sua inversão, determinar a fixação cautelar do domicilio da criança e por fim, nos casos mais graves, suspender a autoridade parental. O artigo 7º prevê a guarda ao genitor que melhor viabilize a convivência da criança com o outro genitor, quando não for possível a guarda compartilhada. O artigo 8º prevê que é irrelevante para determinar a competência relacionadas as ações baseadas em direito de família, exceto quando houver acordo entre os genitores ou por determinação do judiciário. 5 A SITUAÇÃO APÓS QUATRO ANOS DE CONSOLIDAÇÃO DA LEI 12.318/10 Após tentar resolver o litígio de forma consensual entre os membros da família, o alienado que não obtiver sucesso, deve recorrer ao Poder Judiciário para solucionar essa situação. Visando resguardar o menor, a vítima de abusos, os operadores do Direito assumem um papel essencial na solução de casos de alienação parental, através de uma nova visão mais apurada na proteção e guarda do princípio do melhor interesse da criança, pois nesses casos, sua função é identificar e punir os atos de alienação. Então foram analisadas algumas jurisprudências, para saber como os operadores do Direito estão resolvendo os litígios nos casos concretos. Nesse Agravo de Instrumento proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Do Sul, foi declarada a alienação parental do agravante sobre seus 02 filhos, Tornando desnecessária maior dilação probatória: AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDA DE PROTEÇÃO. ALIENAÇÃO PARENTAL POR PARTE DO GENITOR DEVIDAMENTE CONSTATADA. DESNECESSIDADE DE MAIOR DILAÇÃO PROBATÓRIA. VISITAÇÃO MATERNA MANTIDA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS E JURÍDICOS FUNDAMENTOS. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. Conforme previsto no art. 2º da Lei, foi lesado o direito fundamental dos filhos de ter uma convivência familiar saudável, quando o genitor alienador prejudicou a relação entre a genitora e seus filhos. O Genitor alienador também feriu o artigo 6º da Lei, uma vez que ficaram caracterizados atos típicos de alienação parental cabendo ao magistrado determinar a adoção de medidas necessárias para impedir a instalação da síndrome. Ficando-se então mantida a decisão agravada para que os menores não sofram mais e tenham o desenvolvimento biopsicossocial saudável, junto a ambos os genitores. Observando sempre o interesse do menor, sem impedir o exercício do poder de família pelos pais, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná também negou provimento por unanimidade. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE DIVÓRCIO COM PEDIDOS DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E ALIMENTOS - CONVENÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA - NORMA COGENTE - PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO
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DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA - DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR - EXEGESE ESTRITA DOS ARTIGOS 22 E 24 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E DO ARTIGO 1.638 DO CÓDIGO CIVIL - SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DE DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES PARENTAIS - NÃO CARACTERIZADO - DESCONFIANÇA DE VIOLÊNCIA SEXUAL - MOTIVO INSUFICIENTE PARA DESTITUIÇÃO DA AUTORIDADE PARENTAL - INDÍCIOS DE ALIENAÇÃO PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Autos n.º 1104891-0 2 PARENTAL - NECESSIDADE DE AVERIGUAÇÃO PELO JUÍZO INSTRUTOR - DETERMINAÇÃO DE OFÍCIO - IMPOSIÇÃO DO ARTIGO 4º DA LEI Nº 12.318/2010 - DIREITO DA CRIANÇA DE CONVIVER COM SEU GENITOR - TUTELA DE CRIANÇA - IMPOSIÇÃO DE OFÍCIO DE MEDIDA DE PROTEÇÃO POSSIBILIDADE - PRECEDENTES DESTA CORTE E DO STJ - ACOMPANHAMENTO POR EQUIPE AUXILIAR DO JUÍZO NECESSIDADE DE ESTABILIZAÇÃO EMOCIONAL DA FAMÍLIA NO CASO CONCRETO - SENTENÇA MANTIDA.1 Este caso, tratou-se de tutela de interesse da criança, foram aplicados os artigos 18 e 19 da Convenção Internacional de Direitos da Criança, em conformidade com os artigos 22 e 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei 1.638 do Código Civil e a aplicação do o artigo 4º da Lei nº 12.318/2010, onde não foi comprovado a violência sexual contra descendente, o que não autoriza a destituição do poder familiar. Diante das peculiaridades do caso concreto, cumpre ao magistrado determinar, inclusive de ofício, a adoção de medidas de proteção que assegurem o melhor interesse da criança. Evidenciado o quadro traumático, toda a família deve ser acompanhada por equipe auxiliar do Juízo para que a restruturação dos vínculos familiares seja realizada de maneira adequada, devendo ser observado o desenvolvimento emocional dos interessados. Outra decisão, também do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Do Sul, sobre a reversão de guarda e alienação parental, também rejeita a preliminar e nega seguimento. apelação cível. reversão de guarda. alienação parental. inocorrência. Preliminar de desconstituição da sentença A sentença, ao julgar improcedente o pedido da apelante, e manter a guarda da filha com o pai, fundamentou tal julgamento em laudos sociais e psicológicos, diversos das informações da psicóloga particular, contratada pelo genitor. Caso em que se rejeita a preliminar de desconstituição da sentença, pois não há indício de cerceamento de defesa ou fundamento viciado da sentença. Mérito Caso em que não há indício de prática de alienação parental por parte do pai. Apesar da genitora também possuir condições de ter a guarda da filha, considerando que a situação da filha, na guarda paterna, também é muito saudável, o melhor interesse da menina é a manutenção da guarda paterna, em prol da estabilidade da vidada infante, não havendo motivo grave que justifique a mudança do contexto da criança de Pelotas para Canoas. Mantida a sentença. REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO. A genitora apelante ajuizou uma ação requerendo a guarda da filha, que desde 01 ano de idade residia com os avós paternos, em decorrência de um acordo judicial feito no ano de 2008, época em que
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nenhum dos genitores tinha condições de cuidar da criança. Hoje, ambos estão em novos relacionamentos e a criança tem 7 anos de idade. Com o intuito de ficar com a guarda da criança a genitora apelante, alegou que está com a vida estruturada e em condições de cuidar dela. Alegou também que o pai vem praticando atos de a alienação parental quando incentiva a filha a chamar sua companheira de mãe do coração. Não ficou constatada a alienação, e apesar da genitora demostrar condições de ficar com a criança, a sentença julga improcedente o seu pedido e mantem a guarda com o genitor. O fundamento foi baseado em laudos sociais e psicológicos de uma psicóloga particular contratada pelo genitor. 6 A mediação familiar como meio de resolução dos casos de SAP Os primeiros relatos sobre a técnica de mediação, apareceram nos EUA no início da década de 1970. O advogado e professor Rodrigo da Cunha Pereira (1999 p. 10) define mediação: “(...) é um processo onde um outro é colocado entre, in médio, os cônjuges, ou partes litigantes, para eliminar, inicialmente, o aspecto adversarial e competitivo entre eles. Com a demonstração de que não existe um ganhador e um perdedor com a dissolução da conjugabilidade, através de técnicas e regras previamente estabelecidas.” (SERPA p. 10). Este processo é informal e sem litígios que tem o objetivo principal de ajudar as partes em controvérsias ou disputas a alcançar a aceitação mútua e concordância voluntária. O negociador age como um facilitador orientando as partes a resolverem seus litígios em conjunto e de forma alternativa. A mediação é muito utilizada nos conflitos familiares como nos casos de separação e divórcio. Ela só é possível quando existe a cooperação entre as partes, devendo ser conduzido de maneira imparcial. Esta modalidade não deve ser confundida com a arbitragem, consultoria e nenhuma forma de tratamento ou terapia. A mediação familiar acontece quando o casal que querpôr fim ao seu relacionamento resolve o conflito de forma amigável justa e equilibrada, resguardando sobre tudo o interesse do menor. Para Grunspun (2000 p. 17): “A mediação familiar, é a intervenção de mediadores nas famílias da comunidade, íntegras ou em vias de separação, de forma preventiva, tentando evitar o divórcio ou interferindo no início das separações. São serviços ligados a Centros da comunidade, a Governos regionais ou universidades, e a mediação realizada de forma gratuita por voluntários. ” A princípio no Artigo 9º da Lei de Alienação Parental, era prevista a mediação para a resolução destas lides, porém esta possibilidade de mediação foi barrada. Com o veto do artigo acabou-se a possibilidade das partes resolverem estes litígios de forma rápida, pacífica e menos dolorosa. O benefício da mediação é o acordo que nasce da própria vontade das partes em fazer justiça. O casal aprende a lidar com os problemas pós separação, a auto estima de ambos melhora, o relacionamento entre os genitores fica mais saudável e com isso melhora-se a convivência com a possibilidade de diminuição de brigas. E o grande favorecido desta mediação é a criança que terá a oportunidade de passar a fase do divórcio dos pais sem maiores transtornos ou traumas de forma madura e consciente aprendendo a lidar com os pais separados. Diante dos benefícios descritos resta lamentar que o artigo citado tenha sido vetado, pois se houvesse as mediações antes de levá-las ao judiciário os casos de alienação parental poderiam ser identificados e resolvidos de forma mais rápida, e eficaz, uma vez
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que para se concluir o processo de mediação seria preciso passá-lo para o Ministério Público analisar e só depois seria homologado pelo juiz, evitando assim qualquer prejuízo ao direito do menor, além de não sobrecarregar o sistema judiciário. 7 Considerações Finais A alienação parental, é um problema que sempre existiu, mas que a cada dia vem ganhando mais destaque entre as pessoas e o judiciário. Com a ajuda dos auxiliares da justiça, dos psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e conselho tutelar, vem sendo possível reunir elementos e provas para a pesquisa e elaboração de laudos para que o magistrado possa se embasar na busca de uma decisão justa. Identificar o alienador e definir parâmetros para um convívio sadio nas relações entre os pais separados sempre foi um tema difícil. Por tanto deve-se pensar nas graves consequências que estas brigas podem gerar na cabeça de uma criança que está em formação, pois se esta alienação se arrastar por anos pode gerar sequelas irreversíveis ao menor que é a parte mais frágil. Voltando às questões que envolvem as disputas de guardas, pode-se perceber que um dos genitores, antes da separação, tem um comportamento e depois pode se transformar, alienando a criança. O final de um relacionamento a dois, seja por desgastes naturais, ou até mesmo decorrentes de uma vida conjugal tumultuada, assim como a adaptação a um novo cenário econômico e social, podem influenciar nos sentimentos negativos de um genitor pelo outro e consequentemente na disputa desleal pelo menor. Atualmente com a Lei 12.318/10 e as jurisprudências que tratam sobre a alienação parental fica mais fácil de identificar os atos de alienação e punir as condutas maliciosas que afetam a formação psicológica, moral e social do menor que podem fazer com que o mesmo cresça com distorções em sua formação que venha a prejudicá-lo futuramente, o que pode refletir-se em forma de toda ordem de problemas para a sociedade. Referências ANGHER, Anne Joise, Vade Mecum Universitário de Direito. 18º edição, São Paulo. Rideel 2014. 2144p. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: família – sucessões. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2011. v. 5. COELHO, Vânia. Metodologia do Trabalho Científico: Raciocínios. Comunicação, Literatura e Jornalismo. São Paulo, 09 de Setembro de 2010. Disponível em <http://literacomunicq.blogspot.com.br/2010/09/metodologia-do-trabalhocientifico_09.html> Acesso em: 05 de Maio de 2014. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. v.6, São Paulo: Saraiva, 2005. GRUNSPUN, Haim. MEDIAÇÃO FAMILIAR. O mediador e a separação de casais com filhos. São Paulo: Editora LTR, 2000. 159p. GUIMARAES, Ana Cristina Silveira; GUIMARAES, Marilene Silveira. Capitulo: XLIII: guarda: um olhar interdisciplinar sobre casos judiciais complexos. In: ZIMERMAN, Davi; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Org.) Aspectos psicológicos na pratica jurídica. 3.ed. Campinas: Millennium, 2010. NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. SERPA, Maria de Nazareth. Doutora e Mestra em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UFMG. Professora responsável pela organização e ensino da disciplina Técnicas Alternativas de resolução de Conflitos - PUC/MINAS. MEDIAÇÃO DE FAMÍLIA. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 1999. 120p.
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Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Do Sul. Agravo de instrumento nº 70060859501 (N° CNJ: 0278513-03.2014.8.21.7000). Des. Jorge Luís Dall’Agnol (Presidente) e Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Acórdão de 24 de setembro de 2014. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=APELA%C3%87%C3%83O+C%C3%8DVEL .+REVERS%C3%83O+DE+GUARDA .+ALIENA%C 3 % 8 7 % C 3 % 8 3 O + PA R E N TA L . + I N O C O R R % C 3 % 8 A N C I A . & p r o x y s tylesheet=tjrs_index&getfields=*&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&lr=lang_pt&client=tjrs_index&filter=0&aba=juris&sort=date %3AD%3AS%3Ad1&as_qj=aliena%C3%A7%C3%A3o+parental&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as_eq=&as_q=+#main_res_juris>Acesso em 05 de Novembro de 2014. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Cívelnº 1104891-0 Relatora: DESª. ROSANA AMARA GIRARDI FACHIN Relator CONV.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU MARCEL GUIMARÃES ROTOLI DE MACEDO. Acórdão de 11 de junho de 2014.Disponível em:<http://portal.tjpr.jus.br/ jurisprudencia/j/11694990/Acórdão-1104891-0>Acesso em 05 de Novembro de 2014. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande Do Sul. Apelação Cível nº 70056611338.Relato: Des. Rui Portanova. Acórdão de 02 de outubro de 2014. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=aliena%C3%A7%C3%A3o+parental&proxystylesheet =tjrs_index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&lr=lang_pt&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&asqj=&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as _eq=&as_q=+#main_res_juris>Acesso em 26 de Outubro de. 2014.
NOTAS DE FIM 1 Acadêmicodo 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Professora - Orientadora. Mestre em Direito Privado. Advogada. 3 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção especial do Estado. § 1o O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2o O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3o - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4o Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 4 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. 5 Art. 1o Os artigos. 1.583 e 1.584 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que
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não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II – saúde e segurança; III – educação. § 3o A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos. § 4o (VETADO).” “Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. § 1o Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3o Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. § 4o A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5o Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.” 6 programming - pro.gram.mingn Comp I programação: 2 arte de reduzir as instruções detectáveis por máquina, o plano para a resolução de um problema. languageprogramming linguagem artificial estabelecida para expressar programas de computação. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em <http://www.priberam.pt/DLPO/software> Acesso em 11 de Novembro de 2014. 7 Software | s. m. |softuére| (palavra inglesa, de soft, mole + ware, mercadoria) substantivo masculino [Informática] Conjunto de programas, processos, regras e, eventualmente, documentação, relativos ao funcionamento de um conjunto de tratamento de informação (por oposição a hardware). Plural: softwares. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em <http://www.priberam.pt/DLPO/software> Acesso em 11 de Novembro de 2014. 8 Hardware I s. m. I |àrduére| (palavra inglesa, de hard, duro + ware, mercadoria) substantivo masculino [Informática] Material físico de um computador (por oposição a software).Plural: hardwares.Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em <http://www.priberam.pt/DLPO/software> Acesso em 11 de Novembro de 2014. 9 GARDNER, Richard A. DEFINITION OF THE PARENTAL ALIENATION SYNDROME M.DDisponível em <http://www.fact.on.ca/Info/pas/gard99b.htm> Acesso em 28 de Setembro de 2014. ** Valéria Edith Carvalho de Oliveira; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
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TERCEIRIZAÇÃO DO CALL CENTER PELAS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÃO: Licitude e contrassenso das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho João Gabriel Pereira Mota1 Tatiana Bhering Roxo2 Banca examinadora** RESUMO: O presente trabalho propõe a análise crítica dos fundamentos adotados pela 6a Turma do Tribunal Superior do Trabalho no acórdão proferido nos autos do Recurso de Revista n. 127-98.2011.5.03.0112. Referido julgado foi eleito representante do entendimento majoritário do Judiciário Trabalhista a respeito da ilicitude da terceirização de serviços de call center, teleatendimento ou telemarketing pelas empresas de telecomunicação em razão de sua vasta e detalhada fundamentação. O escopo do trabalho é contrapor os argumentos lançados no acórdão de forma a demonstrar que a terceirização do call center das empresas de telefonia é indubitavelmente lícita e regular porque encontra respaldo na jurisprudência uniforme do próprio TST, bem como na Lei Geral de Telecomunicações e Lei de Concessões. PALAVRAS CHAVE: Telecomunicações; jurisprudência; legislação trabalhista; tercerização lícita; subsidiariedade. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Tercerização; 3. Tercerização de serviços de call center ou teleatendimento à luz da súmula 331/TST; 4. Análise de julgado sobre o tema; 5. Sobrestamento; 6. Conclusão; Referências Bibliográficas
1 INTRODUÇÃO Este trabalho pretende demonstrar a licitude da terceirização do call center pelas empresas de telecomunicação, a fim de rechaçar a possibilidade de utilizar o mesmo instituto para se valer de melhor técnica e perfeição ao desempenho do mesmo serviço. Serão apresentados princípios norteadores, o conceito de terceirização, o meio adequado para se declarar a lei que versa sobre o tema inconstitucional, caso seja o propósito, bem como as leis no qual se baseiam os argumentos para a arguição de licitude da terceirização. Assim, a partir de uma análise crítica do julgado proferido pela 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho no acórdão proferido nos autos do Recurso de Revista n. 127-98.2011.5.03.0112, foi exposto o raciocínio para desconstituir a ilicitude do instituo , afastando eventuais argumentos contrários. Será demonstrado a importância no cenário atual da terceirização, haja vista o sobrestamento das decisões que concerne ao assunto em pauta. 2 TERCEIRIZAÇÃO Em se tratando de terceirização, não se pode perder de vista o histórico da sua criação. O fenômeno foi recebido como estratégia para o sucesso empresarial, mas, também, com a necessária flexibilização do Direito do Trabalho diante da crise econômica, da introdução de novas tecnologias, além da competitividade selvagem entre as empresas que sufocavam o empresariado já enfartado pelo alto custo da sua atividade, aí incluídas as despesas com os recursos humanos, a folha de pagamento e consectários legais decorrentes da relação de emprego (FGTS, INSS, etc.), o que implicava, não raras vezes, extinção do empreendimento e o temido desemprego. A finalidade precípua da terceirização, portanto, foi dar condições às empresas de se manter no mercado, engendrando esforços em seu objeto social e confiando a terceiros atividades outras, sem perder o foco em sua função social - tal como delineado pela Constituição da República em seus artigos 5o, XXIII e 170, III - ofe-
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recendo empregos diretos e evitando-se o caos social que seria uma população com altíssimo índice de desemprego. O instituto, originado no século XX, faz-se cada vez mais necessário, mormente, quando associado ao fenômeno da globalização marcado pela “intensificação da comunicação humana, abrindo-se uma via, acima dos Estados e Nações, através da qual se movimentaram a atividade econômica e, após ela, a cultural e a política. Diz ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA (2011 p.16 ) que: A economia mundial transcende o poder político e, nos lugares em que não o ultrapassa, com ele concorre em aceitação, pois cria empregos, dinamiza a economia e produz bens e serviços que elevam o nível de vida e melhoram a situação social, enquanto os governos, sem dinheiro e exauridos pela corrupção, atuam com limitação e falta de recurso. Multiplamente utilizada pelas empresas, a terceirização é tema de milhares de processos que deságuam no Judiciário Trabalhista, assim ficando clara sua relevância no cenário político, econômico e social. A primeira lei a tangenciar o assunto foi a de n.o 6.019/74(BRASIL,1974), editada com o objetivo de normatizar o trabalho temporário, ou seja, a intermediação de mão de obra, ou seja, de pessoas, possível nas hipóteses de substituição de pessoal permanente ou para atender excesso de demanda justificado. Posteriormente, o Tribunal Superior do Trabalho, como de costume, fez as vezes do legislador e editou o Enunciado n.o 256, publicado em 09 de setembro de 1986. Referido verbete foi duramente criticado porque continha orientação contrária à ideia da terceirização, impedia a contratação das empresas prestadoras de serviço e, à época, defendeu- se a sua revisão, o que veio a ocorrer com a edição da Súmula n.o 331, em 1993, através da Resolução 23, atualizada pela Resolução 174/2011. Solucionando a falha do Enunciado 256, a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho abriu as portas para a contratação de
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empresas prestadoras de serviços. A referida súmula manteve a permissão para contratação de mão de obra nos casos de substituição de pessoal permanente ou suprimento de excesso de serviço, atendidos os requisitos da lei 6.019/74 e extravasando o que dantes orientava o Enunciado 256, avalizou a contratação de serviços de vigilância, conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade meio do tomador, desde que inexistentes pessoalidade e subordinação. É o que se tem em termos de regulamentação específica da matéria. A regra geral da terceirização é regida pela sumula 331 do TST, que versa: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei no 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei no 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.o 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI - A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral. Introduzida uma nocão geral da tarceirizacão, mostrada sua importância, razoes de sua instituicão e histórico, bem como a aplicacão comum deste instituto o trabalho passa a analisar o mesmo, especificamente nas atividade de call centers a luz da súmula 331/TST. 3 TERCERIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE CALL CENTER OU TELEATENDIMENTO À LUZ DA SÚMULA 331/TST A Súmula não especificou o que seria atividade meio, porém, a jurisprudência e a doutrina a conceituou como aquela que não se ajusta ao núcleo das atividades empresariais do tomador de serviços, que contribui para a consecução do seu objeto social, porém, não diretamente. A este respeito, cita-se MAURICIO GODINHO (2003, p436-437): Por outro lado, atividades-meio são aquelas funções e tarefas empresariais e laborais que não se ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador de serviços, nem
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compõem a essência dessa dinâmica ou contribuem para a definição de seu posicionamento no contexto empresarial e econômico mais amplo. São, portanto, atividades periféricas à essência da dinâmica empresarial do tomador de serviços. São, ilustrativamente, as atividades referidas pela Lei 5.645, de 1970: ‘transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas’. São também outras atividades meramente instrumentais, de estrito apoio logístico ao empreendimento (serviço de alimentação aos empregados do estabelecimento, etc) No caso específico das empresas de telecomunicação, entretanto, a Lei n.o 9472/97 – Lei Geral de Telecomunicações - define expressamente sua atividade-fim, bem como as que seriam meio, estas denominadas serviço de valor adicionado. Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação. § 1o Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza. § 2o Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis. Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações. § 1o Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição. § 2o É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.(BRASIL,1997) A interpretação sistemática do parágrafo primeiro do artigo 60 com o caput e parágrafo primeiro do artigo 61 permite concluir que toda atividade não relativa à transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza é serviço de valor adicionado ou atividade meio. Neste contexto, conclui-se que o serviço de teleatendimento é serviço de valor adicionado, suporte, apoio da atividade fim de telecomunicação, podendo ser terceirizada conforme entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho. No cerne do instituto da pessoalidade encontra-se o caráter da infungibilidade, ou seja, a prestação dos serviços pelo empregado é intuitu personae, inadmitindo que o mesmo seja substituído por outrem de forma intermitente e neste sentido, é indubitável a ausência de pessoalidade nesta relação, pois, realizado o serviço, inclusive, fora das dependências da empresa tomadora, o empre-
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gado quiçá é dela conhecido, pouco importando à concessionária a pessoa que presta atendimento a seus clientes. O conceito de subordinação como estado de sujeição ou de submissão deriva deste pensamento. Originariamente, e até bem pouco tempo atrás, “a subordinação poderia ser explicada pelo poder de determinação ou de conformação do conteúdo das prestações devidas pelo empregado, que o contrato e a qualificação profissional do obreiro só genericamente predetermina na lei 9472/97(BRASIL,1997) MAURÍCIO GODINHO,(2003,p.300), adota ao mesmo conceito clássico, definindo a subordinação da seguinte forma: Subordinação deriva de sub (baixo) e ordinare (ordenar), traduzindo a noção etimológica de estado de dependência ou obediência em relação a uma hierarquia de posição ou de valores. Nessa mesmas linha etimológica, transparece uma idéia básica de ‘submetimento, sujeição ao poder de outros, às ordens de terceiros, uma posição de dependência’. Para a teoria justrabalhista subordinação corresponde ao pólo antitético e combinado do poder de direção existente no contexto da relação de emprego. Consistiria, assim, na situação jurídica derivada do contrato de trabalho, pela qual o empregado comprometer- se-ia a acolher o poder de direção empresarial no modo de realização de sua prestação de serviços. Traduz-se, em suma, na situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação contratual da autonomia de sua vontade, para o fim de transferir ao empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenhará. O trabalho subordinado, portanto, é aquele dirigido pelo contratante (empregador) que efetivamente interfere ou tem a faculdade de interferir no modo de fazê-lo como exercício regular de um direito (poder diretivo) a ele conferido em razão da assunção dos riscos da atividade. Esta noção torna-se extremamente importante quando se traz à tona a discussão a respeito da licitude da terceirização de serviços conforme item III da Súmula 331/TST. Com efeito, e como de fato ocorre no caso específico dos call centers, a terceirização se dá em atividades operacionais em que o novo paradigma de subordinação não encontra sustentação ao reverso do que preconizado por alguns magistrados. Passa-se analisar o instituto da reserva de plenário, o qual seria o instrumento/meio para alegar inconstitucionalidade da Lei Geral de Telecomunicações, visto que emanou -se de autoridades competentes para tal. A Justiça do Trabalho, a despeito da existência da Lei Geral de Telecomunicações e da Lei de Concessões, insiste em negarlhes validade sem, entretanto, declarar a sua inconstitucionalidade se valendo do instituto da reserva de plenário ou apresentar qualquer fundamentação válida que sustente este posicionamento. Segue o trecho combatido: A disposição contida no artigo 94 desta norma, embora estabeleça a terceirização de atividades inerentes ao serviço da concessionária, tem em vista a execução desta atividade sob o prisma da responsabilidade da concessionária perante a ANATEL. Por tais fundamentos, conclui-se que esta disposição não chega a gerar o efeito pretendido pelas reclamadas na esfera trabalhista, pois persiste o entendimento de que a terceirização não abrange serviços relacionados ao processo produtivo explorado pela empresa.
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Existindo lei emanada de autoridade competente nos termos do artigo 59 da Constituição da República de 1988, e estando em vigor, não revogada ou modificada por outra, é dever do Judiciário aplicá-la, ou usar do meio adequado, no caso a reserva de plenário, para declarar sua inconstitucionalidade. Descabe, portanto, falar que uma lei não produz efeitos na esfera trabalhista. Leis são normas gerais e dizer o direito não é uma faculdade do Judiciário, mas, uma obrigação. 4 ANÁLISE DE JULGADO SOBRE O TEMA Passa-se de maneira estruturada á análise crítica dos fundamentos adotados pela 6a Turma do Tribunal Superior do Trabalho no acórdão proferido nos autos do Recurso de Revista n. 12798.2011.5.03.0112. além de contrapor os argumentos lançados no acórdão de forma a demonstrar que a terceirização do call center das empresas de telefonia é indubitavelmente lícita e regular: Intermediação de mão de obra. Empresa de telecomunicações. Teleatendimento. Call center. Súmula 331, I, do TST [...] A reclamada alega que a terceirização seria lícita, sendo inaplicável a Súmula 331, I, do TST. Indica violação do art. 5o, II, da Constituição, do art. 25, § 1o, da Lei 8.987/96 e do art. 94, II, da Lei 9.472/97. Junta arestos. Sem razão. E o que interessa em particular: também se inferiria que, havendo conflito de ordem puramente consumerista ou econômica, os usuários (ou consumidores) e a Agência estariam protegidos, pois poderiam atribuir responsabilidade à concessionária, sem demandar necessariamente contra a prestadora dos serviços; havendo, porém, conflito de ordem laboral, a lei seria omissa quanto à obrigação de a concessionária honrar igualmente os haveres trabalhistas e assim se poderia intuir que os trabalhadores poderiam cobrar seus créditos, de natureza alimentar, somente das empresas interpostas. (RR. n 127-98.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) De início, verifica-se que o acórdão analisado parte de premissa equivocada ao afirmar que havendo, conflito de ordem laboral, a lei seria omissa quanto à obrigação de a concessionária honrar igualmente os haveres trabalhistas e assim se poderia intuir que os trabalhadores poderiam cobrar seus créditos, de natureza alimentar, somente das empresas interpostas. Com efeito, não pretendem as empresas de telecomunicação, acima denominadas concessionárias, eximir-se de eventual responsabilidade que lhes caiba, razão pela qual mencionado fundamento não possui lastro. Assim passa-se a analisar de maneira crítica os trechos da decisão supra mencionada: Embora não se pretenda que o direito do trabalho engesse ou paralise a atividade econômica, cabe-lhe por certo estabelecer os parâmetros que viabilizam a progressão da economia - inclusive na perspectiva da geração de emprego e renda - sem aviltamento da dignidade humana. Os sistemas econômico e jurídico-trabalhista não se excluem, antes devendo interagir. (RR. n 127-98.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, prolatora do acórdão ilustrado, fere, outrossim, a livre iniciativa privada e, a
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despeito de preservar o pleno emprego e a dignidade da pessoa humana, em verdade, não os garante, além de impedir que as empresas exerçam a sua função social. São fundamentos da República Federativa do Brasil os valores do trabalho e da livre iniciativa, tal como é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Assim, e não obstante exaustivamente demonstrada a licitude da prestação de serviços de call center, a Justiça do Trabalho insiste em impedir-lhe o exercício, vedando, ainda, que as empresas do ramo exerçam a sua função social com a geração de emprego digno e justo e contribuam para o desenvolvimento da sociedade e da economia brasileiras, pelo que avilta forte e imotivadamente os artigos 1o, IV, 170 e parágrafo único e 173 da Constituição da República de 1988. A decisão combatida, abrange também a seara da responsabilidade da tomadora do serviço terceirizado, o que demonstra o trecho seguinte: Ao fim, o emérito professor e magistrado mineiro sustenta, com argumentos muito persuasivos, que a norma permissiva da terceirização dos serviços inerentes à operação de telefonia não impediria, de toda sorte, que se atribuísse responsabilidade trabalhista solidária à empresa concessionária, inclusive com esteio na responsabilidade objetiva prevista no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, dado que - do mesmo modo que evoluiu da culpa para risco, a fim de que se tornassem ressarcíveis todos os danos sociais, também a responsabilidade trabalhista se transforma e vai se baseando não mais na culpa, mas na responsabilidade proveniente do ato de empregar, que é uma nova forma de risco da sociedade contemporânea. (RR. n 12798.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) Pelo contrário, o que se defende é o reconhecimento da licitude da terceirização e consequente ausência de vínculo com as empresas de telecomunicação, tomadoras do serviço, inexistindo controvérsia acerca da sua responsabilidade, desde que na forma subsidiária, em estrita conformidade com a Súmula 331/TST - seja porque o relacionamento com o cliente é atividade meio, seja porque a terceirização do call center possui tratamento legal diferenciado, contido em leis específicas. O trecho do verbete abaixo, trata-se de uma reflexão sobre a possibilidade de terceirização na atividade-fim, obrserva-se: Há, com efeito, alguma reflexão no sentido de permitir, no âmbito da atividade-fim, a terceirização em serviços cuja brevidade, intercorrência e especialização a justificariam, a exemplo do uso de métodos exigentes de avançada tecnologia em fundação e em fabricação de moldes de laje protendida na construção civil, da instalação de redes de expansão elétrica ou de telefonia, ou do desenvolvimento de programas envolvendo tecnologia da informação em qualquer setor da economia. (RR. n 127-98.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) No campo das telecomunicações, as atividades inerentes ao sistema, por serem técnicas, de segurança nacional, por resguardarem os meios de comunicação em nível nacional e internacional, levaram o legislador a admitir a terceirização de seus serviços, tam-
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bém em atividades a ela inerentes, ou seja, atividades específicas da própria empresa, que a ela se aderem e que são necessárias para o seu bom desenvolvimento, com isso , trazendo de maneira analoga o exposto acima. Assim é que a Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, regulamentando a terceirização nas empresas de telecomunicações, dispõe sem eu art. 94: Art. 94. No cumprimento de seus deveres, a concessionária poderá, observadas as condições e limites estabelecidos pela agência: I - empregar, na execução dos serviços, equipamentos e infra-estrutura que não lhe pertençam; II - contratar com terceiros o desenvolvimento e atividades inerentes acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados. (BRASIL,1997) Também a Lei de Concessões, de n.o 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, em seu art. 25, § 1o já dispunha que: § 1o sem prejuízo da responsabilidade a que se refere este artigo, a concessionária poderá contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço concedido, bem como a implementação de projetos associados.(BRASIL,1995) Na própria Lei de Concessões, a concessionária já recebia a concessão com direitos a terceirizar as atividades inerentes, dispositivo legal que lhe foi novamente garantido na lei de telecomunicações. A decisão em estudo, retrata a possibilidade das empresas de telefonia usar o instituto da terceirização para ferir direitos do trabalhador, princípios trabalhistas e redução de seus custos, não havendo nenhuma justificativa lícita para aplicação da terceirização, sendo assim ilicita, observa-se: A bem dizer, a Justiça do Trabalho não ignora a amplitude das práticas de outsourcing e, nesse panorama, a existência de atividades-fim que seriam atualmente terceirizadas, de modo aparentemente impune, em alguns setores da economia. Mas a verdade é que assim se dá enquanto a prática da terceirização, envolta nos cânones da mutabilidade e da eficiência das novas formas de organização empresarial, não gera precarização e conflito trabalhista. Se e quando a presença da empresa interposta não se justifica pela especialização dos serviços, mas sim para a redução do custo trabalhista - o que se evidencia por gerar salários e outras condições de trabalho desiguais em relação aos salários e condições garantidas para os empregados da empresa tomadora dos serviços -, a intervenção estatal faz-se indispensável para que se resgate a eficácia dos mais caros princípios do direito do trabalho, e do direito constitucional do trabalho por igual. (RR. n 127-98.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) O Tribunal Superior do Trabalho equivoca-se, ainda, ao afirmar que houve lesão a direito dos trabalhadores com a terceirização do call center, declarando o vínculo de emprego com a tomadora e deferindo os benefícios e vantagens do acordo coletivo por ela firmado. De fato, inexiste qualquer lesão a direito dos trabalhadores ou subtração de vantagens ou a famigerada precarização árdua e
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erroneamente empunhada vez que concedidos todos os benefícios legais e convencionais tal como pactuado legitimamente entre a prestadora de serviços, real empregadora, e o sindicato representante da categoria profissional. Diga-se, especificamente, que os empregados, tanto das empresas de telecomunicação, quanto das prestadoras de serviço de teleatendimento, pertencem à mesma categoria profissional, sendo, portanto, representados pela mesma entidade sindical, o SINTTEL – Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações. Isso quer dizer que o SINTTEL, instituição legítima, a quem cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas, negocia benefícios diferentes, através de acordos coletivos com as empresas de telecomunicação e de teleatendimento e se assim o faz, presume-se seja, aquela norma autônoma, a que atende e satisfaz a categoria profissional representada, respectivamente, não havendo que se falar em precarização, portanto. O verbete abrange a limitação da terceirização o vínculo entre tomador e trabalhador, lastrea-se indiretamente também aos requisitos da pessoalidade e subordinação, veja o trecho combatido: Há algum tempo, os tribunais do trabalho perceberam, na prática da terceirização, o possível interesse da mercantilização do labor humano e, com vistas a divisar um limite para a realização de atividade econômica sem vínculo direto com o trabalhador, mas sem inviabilizá- la inteiramente, evoluiu no sentido de permitir a interposição de mão de obra nas condições que se extraem da Súmula 331 do TST. (RR. n 127-98.2011.5.03.0112, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, data da publicação 24/02/2012, TST) Esta análise, embora não mencionada no caso gerador (uma vez concluído pela natureza finalística do serviço terceirizado), é de suma importância para enriquecer a fundamentação favorável à licitude da terceirização do call center, falar sobre o instituto da pessoalidade e subordinação. No cerne do instituto da pessoalidade encontramos o caráter da infungibilidade, ou seja, a prestação dos serviços pelo empregado é intuitu personae, inadmitindo que o mesmo seja substituído por outrem de forma intermitente e neste sentido, é indubitável a ausência de pessoalidade nesta relação, pois, realizado o serviço, inclusive, fora das dependências da empresa tomadora, o empregado quiçá é dela conhecido, pouco importando à concessionária a pessoa que presta atendimento a seus clientes. Não obstante, a subordinação apta a conferir a pecha da ilicitude à terceirização é a direta por disposição expressa da Súmula 331/TST, ou seja, aquela que se configura pela existência de ingerência no modus operandi das atividades do empregado, aplicado o conceito clássico do instituto, o que, incontroversa e reconhecidamente, inexistiu no julgado modelo. Assim foram combatidos os trechos da decisão em estudo, para que reforce a licitude da terceirização pelas empresas de telefonia. Ressalta-se que o instituto é amplamente utilizado no Brasil, assim, as divergências acima expostas, desaguam diariamente em grande dosagem no judiciário, razão pelo qual houve o sobrestamento pelo STF, o que passa-se a ver no seguinte tópico. 5 SOBRESTAMENTO O ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou o sobrestamento de todos os processos que discutam a validade de terceirização da atividade de call center nas concessionárias de telecomunicações. O ministro é o relator
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do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 791932, com repercussão geral reconhecida. Até o julgamento do STF sobre o mérito do recurso - que valerá para todos os demais casos semelhantes -, a tramitação de todas as causas sobre a matéria estão suspensas, em todas as instâncias da Justiça do Trabalho. A decisão excepciona apenas os processos ainda em fase de instrução (sem sentença de mérito) e as execuções em andamento (decisões transitadas em julgado). O caso chegou ao STF por meio de recurso extraordinário interposto pela Contax S/A em processo originalmente ajuizado por uma atendente de call center que prestava serviços para a Telemar Norte Leste S/A. A empresa foi condenada, solidariamente com a telefônica, a pagar à atendente os benefícios garantidos pelas normas coletivas dos empregados de empresas de telefonia, pois a terceirização foi considerada ilícita. O reconhecimento da repercussão geral, como regra, acarreta o sobrestamento dos recursos extraordinários (recursos ao STF contra decisões do TST) sobre a matéria. No caso, porém, a Contax, a Associação Brasileira de Telesserviços (ABT) e a Federação Brasileira de Telecomunicações pediram ao STF o sobrestamento de todas as causas. A empresa e as entidades de classe alegam que existem cerca de dez mil processos em tramitação sobre a terceirização de call centers em telefonia, e as empresas têm sido obrigadas “a desembolsar vultosas quantias a título de depósito recursal”. Ao acolher o pedido, o ministro Teori Zavascki afirmou que a decisão a ser proferida pelo STF no caso repercutirá decisivamente sobre a qualificação jurídica da relação de trabalho estabelecida entre as operadoras de serviços de call center e seus contratados, afetando de modo categórico o destino das inúmeras reclamações ajuizadas por trabalhadores enquadrados nesse ramo de atividade perante a Justiça do Trabalho. 6 CONCLUSÃO A despeito de as empresas de telecomunicação não pretenderem eximir-se de eventual responsabilidade oriunda da prestação de serviços contratados, fato amplamente demonstrado é a licitude da terceirização do call center que induz, tão somente, a sua subsidiariedade, seja com arrimo na jurisprudência uniformizada pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho (Súmula 331), seja na legislação específica acerca da atividade de telecomunicação e concessão de serviços públicos. A um, porque sendo genuíno serviço de valor adicionado ou atividade meio especializada prestada sem pessoalidade e subordinação direta, e sendo inaplicável o conceito de subordinação estrutural ou integrativa, a prática se traduz legítima com base no verbete jurisprudencial da Casa. A dois, autorizada expressamente pela Lei Geral de Telecomunicações e pela Lei de Concessões, a terceirização de eventual atividade inerente está respaldada. Deduz-se, portanto, que o v. acórdão analisado está, data maxima venia, em dissonância com os preceitos fundamentais da nossa Constituição, seja porque desprestigia a segurança jurídica, negando validade a preceito de lei federal e, consequentemente, afrontando o Estado Democrático de Direito e a Reserva Legal, seja porque infringe a Reserva de Plenário ao fazê- lo através de órgão fracionário. Ao entender que, “ausente marco regulatório do fenômeno, à Justiça do Trabalho comete-se a relevante tarefa de decidir, em concreto, sobre as condições de trabalho”, este órgão afronta a Li-
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berdade Sindical, a Livre Negociação Coletiva, além de extrapolar a sua competência normativa restrita aos dissídios coletivos, fazendo erroneamente paladino. A decisão colegiada mostra-se cega e viciada, vilipendiando o princípio da Igualdade ou Isonomia ao adotar analogias insustentáveis, bem como ao tratar os iguais com desigualdade. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n.o 9472/97, de 16 de julho de 1997. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 17.07.1997. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 05/10/1988. CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, vol. 1, 1997. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003. Houais eletrônico – versão monousuário 1.0 – junho 2009. JUNIOR. Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. ROMITA, Arion Sayão. A Subordinação no Contrato de Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1979. SILVA, Antônio Álvares da. Globalização, Terceirização e a Nova Visão do Tema pelo Supremo Tribunal Federal. São Paulo: LTr, 2011.
NOTAS DE FIM 1 Acadêmico do 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009). Advogada Trabalhista. Professora do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 3 Salvo os casos de trabalho temporário e de serviços de vigilância, previstos nas Leis n.o 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1986, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços. 4 Art. 1o, IV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 5 Art. 170, parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
** Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo; Daniela Lage Mejia Zapata.
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DO CARATER HEDIONDO DO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO: Uma análise comparativa com o homicídio privilegiado-qualificado à luz da lei 8072/90 Ilydia Fonseca de Moraes1 Mauricio Lopes de Paula2 Banca examinadora** RESUMO: O artigo analisa as diferentes interpretações jurisprudenciais dadas à lei 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, no que tange aos crimes de homicídio privilegiado-qualificado e associação para o tráfico. Tendo em vista que ambos os crimes não compõe o rol taxativo da referida lei, mas há decisões dos Tribunais Superiores no sentido de que o crime de associação para o tráfico é crime hediondo, o artigo busca a solução jurídica pertinente para esse tratamento desigual entre os crimes à luz do principio constitucional da legalidade. PALAVRAS-CHAVE: Homicídio privilegiado-qualificado; associação para o tráfico; crimes hediondos; princípio da legalidade; analogia in Malan partem. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Crimes Hediondos e Equiparados; 3 Do Homicídio Privilegiado-qualificado; 4 Associação Para o Tráfico; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O presente artigo expõe o tratamento dado nos nossos Tribunais superiores e pela doutrina ao crime de homicídio privilegiadoqualificado e ao crime de associação para o tráfico sob a égide da Lei 8.072/90, a Lei dos crimes hediondos (LCH). O crime de homicídio privilegiado e qualificado simultaneamente é um tipo pacificamente aceito em nosso ordenamento jurídico proveniente da combinação das qualificadoras de cunho objetivos, previstas no art. 121, incisos III, IV e V do Código Penal (CP) e a causa de diminuição de pena prevista no art. 121, §1º, CP, e não é crime hediondo porque não encontra-se elencado no rol taxativo da lei 8.072/90. Por conseguinte, a associação para o tráfico é um tipo penal trazido pelo antigo art. 14 da lei 6.368/76, atualmente art. 35, da nova lei de tóxicos, lei 11.343/2006, que criminaliza a mera associação com o fim de cometimento de tráfico ilícito de entorpecente, sem a necessidade que este ultimo delito venha a ocorrer. Em que pese o crime de associação para o tráfico também não esteja previsto no rol taxativo da Lei dos Crimes Hediondos, a jurisprudência majoritária o considera como tal, e aplica as diretrizes da lei aos acusados pelo citado crime. O que há na verdade, é uma controvérsia jurídica longe de ser pacificada. Há julgados do STJ (Superior Tribunal de Justiça) no sentido de que a associação para o tráfico é crime hediondo, como também no sentido de que não é. Ante ao exposto, surge uma incompatibilidade jurídica: considerando que nem associação para o tráfico e nem o homicídio privilegiado-qualificado compõe o rol da Lei dos Crimes Hediondos por que o primeiro é classificado e tratado como hediondo e o segundo não? Não obstante a jurisprudência tenha o objetivo de uniformizar os entendimentos, no presente caso ela confunde ainda mais os operadores do Direito. Há entendimentos completamente contraditórios dos nossos Tribunais Superiores que só nos mostram o quão nosso ordenamento jurídico é frágil ao interpretar e aplicar de maneiras diferentes uma mesma lei. O presente trabalho analisa a solução jurídica pertinente no que tange á essa controvérsia a luz da Constituição Federal (CF) vigente, e ainda, dos princípios que norteiam a nossa legislação, dentre eles o principio da legalidade, que é um dos princípios basilares e absolutos do Direito Penal e é o maior dos argumentos em prol da segurança jurídica.
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O artigo será dividido em cinco capítulos, iniciando o estudo pela Lei dos Crimes Hediondos, logo em seguida, um estudo aprofundado sobre o homicídio privilegiado-qualificado seguido do estudo do crime de associação para o tráfico. Por fim, tem-se as considerações finais com o objetivo de expor a solução pertinente ao tratamento desigual dado pela jurisprudência aos dois crimes, no âmbito da LCH. 2 CRIMES HEDIONDOS E EQUIPARADOS 2.1 Contexto Histórico A lei dos crimes hediondos (8.072/90) surgiu após o legislador constituinte de 1988 estabelecer no art. 5º, inciso XLIII, a palavra “hediondo”. A norma, como toda norma de eficácia limitada, abriu espaço para a criação de uma lei posterior que definiriam quais seriam os crimes classificados como hediondos. O legislador também se preocupou em equiparar constitucionalmente como hediondo os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e o terrorismo, antes mesmo da criação da lei específica, conforme nos mostra o artigo in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; A lei dos crimes hediondos só veio a ser criada em 25 de julho de 1990 como uma forma de resposta para a sociedade ao considerável aumento da criminalidade nos anos 90 e trouxe um tratamento mais severo àqueles que cometem os crimes estabelecidos no rol taxativo da lei, especialmente no que tange a progressão de regime, à vedação da fiança, anistia, graça e indulto, regime inicial de cumprimento da pena, entre outros a serem explorados no próximo tópico.
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2.2 Os crimes hediondos e suas características O Brasil adotou o critério legal (GOMES, p. 494, 2010) para a definição dos crimes hediondos, ou seja, apenas é considerado como tais, os crimes elencados no rol taxativo do artigo primeiro da LCH, e os equiparados pelo legislador constituinte. São eles: I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V); II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o); V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o); VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o); VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o). VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B) VIII - favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º). Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, tentado ou consumado.(art. 1º, Leio 8.072/90). Além do tráfico ilícito de entorpecentes, tortura e terrorismo, que são as figuras equiparadas. A LCH chegou ao nosso ordenamento jurídico com o objetivo de punir mais severamente os criminosos, para tentar diminuir a criminalidade. Entretanto, a letra da lei trouxe muitos problemas e polêmicas a serem resolvidas pelos nossos tribunais, que tiveram que interpretá-la a fim de colocá-la à luz da Constituição. Vejamos as diretrizes mais severas e os problemas trazidos pela LCH. O art. 2º da LCH, em sua redação original estabelecia que os crimes hediondos e equiparados são insuscetíveis de anistia, graça e indulto. Os problemas começam por aí, uma vez que o legislador constitucional no art. 5º, inciso LXIII da CF definiu apenas a vedação a anistia e graça, excluindo, assim, o indulto. No entanto, o STF (Supremo Tribunal Federal) se posicionou no sentido de que o indulto é modalidade de graça e assim, estaria alcançado pela vedação constitucional, uma vez que a carta magna trás vedações mínimas, permitindo ao legislador ampliá-las. (GOMES, CUNHA, p. 511, 2010). O inciso II, do referido artigo, traz uma vedação à fiança. Na redação original, vedava-se também a liberdade provisória, porém, com o advento da Lei 11.464/07 essa proibição foi retirada, ficando apenas vedada à concessão de fiança. O STF interpretou da seguinte maneira: é proibida a concessão de liberdade provisória com fiança para os crimes hediondos e equiparados, porém é perfeitamente cabível a liberdade provisória sem fiança. Parece um pouco contraditório, mas essa é a saída para a constitucionalidade do artigo. A Lei 11.464/07 ainda trouxe outras modificações relevantes. A progressão de regime é uma delas e ocorre após o cumprimento de dois quintos da pena se o apenado for primário e três quintos se reincidente (art. 2º, parágrafo segundo, da LCH), diferindo da lei de execuções penais (LEP- Lei 7.210/84) que prevê a progressão de regime após cumpridos um sexto da pena privativa de liberdade (art. 112). No entanto, para os crimes praticados antes da vigência da Lei 11.464/07 a progressão é aquela estipulada pela regra da LEP, para evitar a retroatividade in malam partem, como dispõe a súmula 471 do STJ. (GOMES, CUNHA, p. 512, 2010).
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O primeiro parágrafo do art. 2º da LCH foi declarado inconstitucional pelo STF, e, por isso não tem mais aplicabilidade. Ele determinava que as penas por crimes hediondos e equiparados fossem cumpridas no regime inicial fechado. É entendimento pacífico do STF que, ao estipular o regime inicial o legislador está violentando as garantias constitucionais da individualização da pena, uma vez que fica a cargo o juiz competente realizar a dosimetria da pena, nos moldes do art. 59, inciso III, do CP, e é ele quem deverá fixar o regime de cumprimento de pena inicial de acordo com a quantidade de pena estabelecida, não podendo fixar o regime inicial fechado apenas pela natureza hedionda do crime julgado. Nesse sentido, o STF editou a súmula vinculante nº 26. Vejamos: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico. O instituto do livramento condicional também sofreu modificações com o advento da LCH, tornando-o possível para os autores de crimes hediondos e equiparados somente após o cumprimento de dois terços da pena imposta. Lembrando que, para todos esses cálculos, tanto no livramento condicional como na progressão de regime usa-se a pena efetivamente imposta, não a pena unificada, para atender o limite de trinta anos estabelecido pelo art. 75 do CP. Sobre esse tema, o STF também editou uma súmula, a 715, Vejamos: A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do código penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução. Resta complementar que o reincidente específico em crime hediondo ou equiparado (que inclusive, não precisa ter cometido o mesmo crime, basta que ela seja hediondo ou equiparado) não tem direito ao livramento condicional. Por fim, a prisão temporária do suspeito de cometimento de algum crime do rol taxativo da LCH ou equiparado é de 30 dias, prorrogáveis por mais 30, fugindo à regra geral dos demais crimes, que é de 5 dias, prorrogável por mais 5, conforme inteligência do art. 2º, parágrafo quarto, da LCH. 3 DO HOMICIDIO PRIVILEGIADO-QUALIFICADO 3.1 O crime de homicídio Dentre os bens jurídicos tutelados a vida humana destaca-se como o mais importante, pois, afinal, é a base de tudo e é a condição de existência dos demais direitos fundamentais. A proteção à vida humana encontra respaldo na Constituição Federal em seu artigo 5º, caput (Direitos e garantias fundamentais) e, para sua preservação efetiva recebe ainda uma proteção penal, uma vez que legislador, no Código Penal, inaugura a parte especial do Código Penal tipificando o ato de matar alguém, criando, assim, o crime de homicídio, previsto no artigo 121 do referido dispositivo legal. O direito a vida é classificado como direito público subjetivo, tendo em vista que é obrigação do Estado respeitá-lo e preservá-lo. É também, um direito indisponível, embora subjetivo. Não é possível renunciar a esse direito pelo fato de que a vida é o pressuposto da existência de todos os demais direitos.
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nºs. 8.072/90 e 8.930/94, que tratam dos crimes hediondos, não altera a jurisprudência deste Tribunal, observando-se que no caso do homicídio qualificado não foi definido um novo tipo penal, mas, apenas, atribuída uma nova qualidade a um crime anteriormente tipificado. 2. A quantidade da pena-base, fixada na primeira fase do critério trifásico (CP, arts. 68 e 59, II), não pode ser aplicada a partir da média dos extremos da pena cominada para, em seguida, considerar as circunstâncias judiciais favoráveis e desfavoráveis ao réu, porque este critério não se harmoniza com o princípio da individualização da pena, por implicar num agravamento prévio (entre o mínimo e a média) sem qualquer fundamentação. O Juiz tem poder discricionário para fixar a pena-base dentro dos limites legais, mas este poder não é arbitrário porque o caput do art. 59 do Código Penal estabelece um rol de oito circunstâncias judiciais que devem orientar a individualização da pena-base, de sorte que quando todos os critérios são favoráveis ao réu, a pena deve ser aplicada no mínimo cominado; entretanto, basta que um deles não seja favorável para que a pena não mais possa ficar no patamar mínimo. Na fixação da pena-base o Juiz deve partir do mínimo cominado, sendo dispensada a fundamentação apenas quando a pena-base é fixada no mínimo legal; quando superior, deve ser fundamentada à luz das circunstâncias judiciais previstas no caput do art. 59 do Código Penal, de exame obrigatório. Precedentes. 3. Habeas-corpus deferido em parte para anular o acórdão impugnado e, em conseqüência, a sentença da Juíza Presidente do Tribunal do Júri, somente na parte em que fixaram a pena, e determinar que outra sentença seja prolatada nesta parte, devidamente fundamentada, mantida a decisão do Conselho de Sentença. (HC 76196 GO, Relator Maurício Corrêa, 29/09/1998, Segunda Turma) HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO TENTADO. VIOLENTA EMOÇÃO. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS. QUESTIONÁRIO. ORDEM LEGAL.TENTATIVA. RECONHECIMENTO. QUESITO SOBRE DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA. DESNECESSIDADE. 1. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluidamente do Excelso Supremo Tribunal Federal, é firme na compreensão de que as circunstâncias privilegiadoras, de natureza subjetiva, e as qualificadoras, de natureza objetiva, podem concorrer no mesmo fato-homicídio, à falta de contradição lógica. 2. Em respondendo a defesa com a tese da desistência voluntária à acusação de homicídio tentado, a formulação de um único quesito decide a tese acolhida pelos jurados que, afirmando ou negando a tentativa, negarão ou afirmarão a desistência,respectivamente, bem certo que, no caso de homicídio tentado, o quesito a ela relativo há de anteceder aos da defesa alegada, porque próprio do fato principal (Código de Processo Penal, artigo 484, inciso I). 3. Ordem denegada. (HC 28623 STJ)
Nesse sentido, o legislador penal tipificou o simples ato de matar alguém, independente dos motivos que levaram o autor a realizar tal conduta. No entanto, as formas de realização e circunstâncias do crime são levadas em conta para estabelecer o grau de reprovação da conduta praticada pelo autor, ou mesmo para a criação de novos tipos penais, como por exemplo, o infanticídio. Assim, o crime de homicídio, tipificado no art. 121, do Código Penal, prevê em seus parágrafos o homicídio privilegiado, causa de diminuição de pena prevista no parágrafo primeiro, e o homicídio qualificado, previsto no parágrafo segundo. O homicídio privilegiado, que na verdade, como dito anteriormente, é uma causa de diminuição de pena, é um exemplo de conduta que tem menor reprovabilidade social, tendo em vista os seus elementos motivacionais intrínsecos ao cometimento da conduta típica. No entanto a conduta continua proibida, vez que se trata de uma minorante, obrigatória nos casos em que o autor comete o delito “impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121, § 1º, do Código Penal). Lado outro, o homicídio qualificado apresenta uma situação oposta, em que após o legislador criminalizar a conduta de “matar alguém” estabelece novos parâmetros mínimos e máximos de pena, ao entendimento de que os motivos (torpe e fútil), meios (traição, emboscada, dissimulação ou outro meio que dificulte a defesa da vítima), modos (emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio que torne impossível a defesa do ofendido) e fins (para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime) utilizados no cometimento do crime causam maior repugnância na sociedade. Essas qualificadoras do tipo estão capituladas nos incisos do parágrafo segundo do art. 121 do CP, tendo caráter objetivo, quando versam sobre o modo de execução do crime, os meios e os fins, e subjetivo quando se referem aos motivos (fútil e torpe). 3.2 O homicídio privilegiado-qualificado Estabelecidos os conceitos, passa-se à analise do primeiro ponto: é possível o homicídio ser privilegiado e qualificado simultaneamente? A doutrina e a jurisprudência dos tribunais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal é amplamente majoritária no sentido de que é possível a coexistência do homicídio privilegiado e qualificado, quando as qualificadoras forem de cunho objetivo, ou seja, quando disserem respeito ao modo de execução do crime, excluindo assim as previstas no inciso I e II, respectivamente, motivo fútil e torpe. HABEAS-CORPUS. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO- QUALIFICADO: POSSIBILIDADE, MESMO COM O ADVENTO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS. PENA-BASE: FIXAÇÃO A PARTIR DA MÉDIA DOS EXTREMOS COMINADOS, OU DA SUA SEMI-SOMA, E FUNDAMENTAÇÃO; PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. 1. A atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite a possibilidade de ocorrência de homicídio privilegiadoqualificado, desde que não haja incompatibilidade entre as circunstâncias aplicáveis. Ocorrência da hipótese quando a paciente comete o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, mas o pratica disparando os tiros de surpresa, nas costas da vítima (CP, art. 121, § 2º, IV) A circunstância subjetiva contida no homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1º) convive com a circunstância qualificadora objetiva “mediante recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima” (CP, art. 121, § 2º, IV). Precedentes. A superveniência das Leis
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A justificativa para a impossibilidade de coexistência de um homicídio praticado por motivo torpe ou fútil com privilegiadoras seria a própria incompatibilidade da natureza jurídica subjetiva dessas figuras. Seria impossível, por exemplo, admitir que alguém cometa um homicídio por motivo fútil e sob domínio de violenta emoção ao mesmo tempo.
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3.3 O homicídio privilegiado-qualificado é crime hediondo? Superada essa discussão, e tendo em vista a perfeita possibilidade de coexistência do homicídio privilegiado e qualificado surge uma controvérsia jurídica: a hediondez do tipo penal privilegiado-qualificado. O homicídio qualificado foi considerado hediondo pela Lei 8.072/90, chamada de Lei dos Crimes Hediondos, por ser um crime que provoca maior comoção social e reprovação popular. Encontrase elencado no rol taxativo do artigo primeiro da lei 8.072/90 (inciso I). Entretanto, o crime de homicídio privilegiado não é hediondo. O Superior Tribunal de Justiça, assim como a maioria da doutrina, como Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha, Guilherme de Souza Nucci, Cezar Roberto Bitencourt, tem se posicionado no sentido de que tal tipo penal não é hediondo. No entanto, existe uma corrente minoritária, na qual autores como p. ex. Edgar de Oliveira Santos Cardoso defendem a hediondez do homicídio privilegiado-qualificado. A corrente majoritária sustenta que o crime de homicídio privilegiado-qualificado não pode ser hediondo pois a Lei 8.072/90 não faz qualquer menção a esse tipo penal, e, assim, pelo principio da legalidade, e considerando que o mencionado tipo não se encontra no rol taxativo da lei, não se pode caracterizá-lo como hediondo. O doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 327) compartilha o entendimento de que, no homicídio privilegiado-qualificado, as qualificadoras dizem respeito apenas ao modo de execução do crime, de tal maneira de que, ainda que o homicídio seja praticado com emprego de meio cruel, uma vez presente o motivo de relevante valor social ou moral torna-se incompatível a aplicação de uma reprimenda mais severa, tendo em vista a clara incompatibilidade entre a hediondez e os motivos determinantes desse crime. Ou seja, o crime não causa repulsa e nem reprovação social e por esse motivo, não é hediondo e as diretrizes da lei dos crimes hediondos não devem ser aplicadas. Ainda, usando da analogia com o artigo 67 do CP, que diz: Art. 67 No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência. Entende-se que o privilégio prepondera sobre a qualificadora, descaracterizando assim, a hediondez do tipo. Vejamos: Assim sendo, parece-nos indiscutível que há um predomínio do motivo sobre o método. Não seria crível que o relevante valor moral, móvel para o cometimento do delito, fosse caracterizado como hediondo, leia-se, repugnante. Ou é de relevante valor ou é repugnante. (NUCCI, 2012, p. 327) Nesse sentido, os tribunais superiores vêm decidindo reiteradamente que, uma vez não estando o tipo penal no rol taxativo da lei, não se pode realizar uma interpretação extensiva da norma para abranger o tipo penal privilegiado-qualificado. “STJ - HC 36317 / RJ - PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 121, §§ 1º E 2º, INCISOS III E IV, DO CÓDIGO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. CRIME HEDIONDO. Por incompatibilidade axiológica e por falta de previsão legal, o homicídio qualificado-privilegiado não integra o rol dos denominados crimes hediondos (Precedentes). Writ concedido” “STJ - HC 41579 / SP - HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. TENTATIVA. CRIME NÃO ELENCADO COMO HEDIONDO. REGIME PRISIONAL. ADEQUAÇÃO. POSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO. 1. O homicídio qualificado-privilegiado não figura no rol dos
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crimes hediondos. Precedentes do STJ. 2. Afastada a incidência da Lei n.º 8.072/90, o regime prisional deve ser fixado nos termos do disposto no art. 33, § 3º, c.c. o art. 59, ambos do Código Penal. 3. In casu, a pena aplicada ao réu foi de seis anos, dois meses e vinte dias de reclusão, e as instâncias ordinárias consideraram as circunstâncias judicias favoráveis ao réu. Logo, deve ser estabelecido o regime prisional intermediário, consoante dispõe a alínea b, do § 2º, do art. 33 do Código Penal. 4. Ordem concedida para, afastada a hediondez do crime em tela, fixar o regime inicial semi-aberto para o cumprimento da pena infligida ao ora Paciente, garantindo-se-lhe a progressão, nas condições estabelecidas em lei, a serem oportunamente aferidas pelo Juízo das Execuções Penais.” “STJ - HC 43043 / MG - HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. PROGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE. 1. O homicídio qualificado-privilegiado não é crime hediondo, não se lhe aplicando norma que estabelece o regime fechado para o integral cumprimento da pena privativa de liberdade (Lei nº 8.072/90, artigos 1º e 2º, parágrafo 1º). Em sentido contrário, há doutrinadores, como por exemplo Edgar de Oliveira Santos Cardoso que lecionam a possibilidade de considerar o homicídio privilegiado-qualificado como crime hediondo e aplicar as diretrizes da lei ao tipo, entendendo que, o art. 67 do CP aplica-se apenas para as agravantes a atenuantes e que, as circunstâncias do privilégio apenas interferem na quantidade de pena e não na natureza do delito em si, ou seja, o crime continua sendo de homicídio qualificado, porém verifica-se a presença de uma causa de diminuição de pena. (GOMES, CUNHA, p. 499, 2010). Nesse sentido, verifica-se ainda que ao classificar os crimes hediondos, o legislador não se preocupou com a quantidade concreta da pena e sim com o crime em si, desse modo, a incidência da minorante não afasta a qualificação legal do crime. Como dito, a doutrina majoritária e os tribunais superiores do nosso ordenamento não aceitam a caracterização hedionda do homicídio privilegiado-qualificado e, consequentemente, não aceitam a aplicação das diretrizes mais severas trazidas pela lei. 4 ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO 4.1 O conceito do crime e suas peculiaridades: Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei. O crime de associação pra o tráfico de drogas e maquinários está tipificado no artigo 35, da Lei 11.343/2006, que traz uma modalidade especial do crime de associação criminosa previsto no Código Penal no artigo 288, diferindo-se desse no tocante à quantidade de sujeitos passivos necessários à consumação do crime; a associação para o tráfico exige apenas duas pessoas e a associação criminosa exige três, conforme recente modificação introduzida pela Lei 12.580/2013, a nova lei do crime organizado.
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Como de costume, em todos os crimes trazidos pela lei de drogas, a associação para o tráfico tutela a saúde pública e individual da sociedade. O crime de associação para o tráfico é autônomo, classificado como crime formal, sendo que para a sua caracterização não é necessária a prática dos crimes citados pelo artigo 35, ou seja, o tipo descreve um resultado, porém esse não precisa ser verificado para ocorrer à consumação. Todavia, caso um desses crimes venha a ocorrer concomitantemente, está configurado o concurso material de crimes, conforme art. 69, do CP. Grande parte da doutrina (GOMES, CUNHA, p.264, 2010) não admite a forma tentada desse tipo penal, que é classificado como crime permanente, uma vez que sua consumação se perdura no tempo, enquanto existir a associação. Ressalte-se que, para a consumação do tipo é necessária a comprovação do animus associativo, ou seja, do liame subjetivo, o dolo da intenção associativa, com o fim de cometer o dolo específico. Essa comprovação do dolo cominada com o fim específico de praticar os delitos do art. 33, caput e parágrafo primeiro, art. 34 e 36 da lei de drogas, é exigível pela natureza subjetiva do tipo penal em questão. A associação está consumada mesmo se um dos autores for menor de idade, e consequentemente inimputável. A título de curiosidade, a antiga lei do tráfico de drogas previa uma majorante no caso de associação eventual para o tráfico, ou seja, para o concurso de agentes, tal previsão não vigorou com o advento da nova lei de drogas. Atualmente, ainda que a associação seja eventual está caracterizado o crime do art. 35 da lei de drogas, considerando que na nova redação há a expressão “reiteradamente ou não”. (GOMES, CUNHA, p.266, 2010). Essa modificação da lei retroagiu para beneficiar fatos passados, inclusive aqueles cujo transito em julgado já tinha se dado. A justificativa para tal modificação é que, como já dito, o crime de associação para o tráfico é crime formal, como se vê na lição de Cezar Roberto Bitencourt que cita Hungria para esclarecer o assunto: “Afirma-se que no crime formal o legislador antecipa a consumação, satisfazendo-se com a simples ação do agente, ou, como dizia Hungria,” a consumação antecede ou alheia-se ao eventus damni” “. (Cezar Roberto Bitencourt, tratado de direito Penal, parte geral, 16 edição, 2011, pag 255). 4.2 Associação para o tráfico é crime hediondo? A doutrina e a jurisprudência divergem muito no tocante a característica hedionda do crime de associação para tráfico. Existem decisões defendendo os dois lados. A doutrina do autor Luis Flávio Gomes não considera o tipo em questão como crime hediondo, amparando esse posicionamento no princípio da legalidade e, uma vez que o crime não encontra-se previsto no rol taxativo da Constituição Federal e nem da LCH ele não pode ser considerado como tal. Apesar disso, o crime de associação para tráfico é inafiançável, insuscetível de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, tratamento dado aos crimes hediondos e equiparados. Os que defendem a não hediondez do crime em tela argumentam que é impossível realizar uma analogia com a Constituição para considerar que quando ela se refere em “tráfico de drogas” ela inclui a associação para o tráfico, porque seria uma analogia in malam partem, vedada no nosso ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, ainda há que se considerar que a associação para o tráfico é crime autônomo e, assim, não tem relação com o tráfico de drogas e, como já dito, o crime não está ligado à realização das condutas típicas descritas por ele, entre elas o tráfico de drogas.
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Em sentido contrário, há o entendimento que interpreta o art. 5º, inciso XLIII, da seguinte maneira: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (Grifos nossos). (art. 5º, inciso XLIII, CF/88). Considerando que a lei foi omissa ao dizer o que seriam “drogas e afins” abre-se um precedente para interpretá-la aceitando que, dentro da conduta “traficar” está implícito todas as demais ações que fazem com que o agente contribua para o comércio ilícito de entorpecentes. Há ainda, o argumento de que, a LCH se preocupa em punir os crimes mais repugnantes aos olhos da sociedade, e, se a associação é destinada ao tráfico, e o tráfico é crime equiparado ao hediondo, logo, a associação para o tráfico também seria hediondo. O desembargador Alberto Deodato Neto em voto no acórdão em Agravo em Execução Penal Nº 1.0035.13.003199-6/001, citando Guilherme de Souza Nucci entendeu que se trata de crime hediondo: “... pois se trata de crime equiparado a hediondo, em nosso ponto de vista. Quem colabora com o tráfico, traficante é” (in: Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4.ed. rev. atual. e ampl.– São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. pág.369). Argumenta-se, ainda, que o não reconhecimento do crime de associação para o tráfico como hediondo abre precedentes para a seguinte reflexão: Realizar sozinho uma das condutas típicas para a configuração do tráfico de drogas é mais grave e reprovável que realizar em conjunto? Pensando dessa forma, a proposta da Lei dos crimes Hediondos ficaria prejudicada, vez que ela prevê tratamento mais severo àqueles que cometem os crimes considerados de maior comoção social, e a associação para o tráfico de drogas, cometido por duas ou mais pessoas, deveria ter o mesmo tratamento? Abaixo seguem jurisprudências acerca da questão, cabendo ressaltar Como que, essa discussão ainda não foi pacificada no ordenamento jurídico e está longe de ser. AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL - ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS - CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO - RECURSO NÃO PROVIDO. - O crime previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/06 é equiparado a hediondo, uma vez que a mens legis é punir aqueles que cometem os delitos relacionados com o tráfico de maneira mais severa. V.V. AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL - CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS - HEDIONDEZ - INOCORRÊNCIA. O delito de associação para o tráfico de entorpecentes não pode ser considerado como hediondo ou equiparado, uma vez que aConstituição da República e a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, não o consideram expressamente como tal, não sendo possível realizar analogia in malan parten de modo a inseri-lo em tal categoria. Recurso defensivo a que se da provimento. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. 1. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. CÁLCULO. CRIME CONSIDERADO NÃO HEDIONDO. AGRAVO EM EXECUÇÃO. DECISÃO HOMOLOGATÓRIA DO CÁLCULO CASSADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. CRIME NÃO HEDIONDO. LISTAGEM TAXATIVA DOS CRIMES COM TAL NATUREZA. ANALOGIA. IMPOSSIBILIDADE. 2. ORDEM CONCEDIDA. 1. O crime de associação para o tráfico não integra a listagem legal de cri-
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mes considerados hediondos. Impossível analogia in malam partem com o fito de considerá-lo crime dessa natureza. 2. Ordem concedida para, em confirmação à liminar já deferida, cassar a decisão proferida no acórdão impugnado, para que seja restabelecido o cálculo efetuado pelo juízo da execução criminal, que considerou o crime previsto no artigo 14 da Lei 6.368/76 como não hediondo. (HC 56529/RJ, Relª. Minª.Maria Thereza de Assis Moura, DJe 23/03/09). A seguir as recentes jurisprudências do STJ sobre o tema: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. RESSALVA DO ENTENDIMENTO PESSOAL DA RELATORA. EXECUÇÃO PENAL. CRIME DO ART. 35 DA LEI N.º 11.343⁄06. DELITO NÃO CONSIDERADO HEDIONDO OU EQUIPARADO. PRECEDENTES. LIVRAMENTO CONDICIONAL. ART. 44, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI DE DROGAS. REQUISITO OBJETIVO:FRAÇÃO ESPECÍFICA DE 2⁄3 (DOIS TERÇOS). ANALOGIA IN MALAM PARTEM.IMPOSSIBILIDADE. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUSCONCEDIDA, DE OFÍCIO, PARA ASSEGURAR A ELABORAÇÃO DE CÁLCULO DA PENA, PARA FINS DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO, SEM A EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTO DE 2⁄3 DA PENA IMPOSTA. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e ambas as Turmas desta Corte, após evolução jurisprudencial, passaram a não mais admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso ordinário, nas hipóteses em que esse último é cabível, em razão da competência do Pretório Excelso e deste Superior Tribunal tratar-se de matéria de direito estrito, prevista taxativamente na Constituição da República. 2. Esse entendimento tem sido adotado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, com a ressalva da posição pessoal da Relatora, também nos casos de utilização do habeas corpus em substituição ao recurso especial, sem prejuízo de, eventualmente, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício, em caso de flagrante ilegalidade. 3. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão de que o crime de associação para o tráfico não é equiparado a hediondo, já que não está abrangido pelos ditames da Lei n.º 8.072, de 25⁄07⁄1990. 4. Em matéria de livramento condicional, a Lei de Crimes Hediondos acresceu o inciso V ao art. 83 do Código Penal, fixando a fração de mais de 2⁄3 para a concessão desse benefício para condenados por delitos hediondos, terrorismo, tortura e tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. 5. Esta Corte Superior, em interpretação sistemática, passou a entender que os condenados pelo então crime do art. 14 da Lei n.º 6.368⁄76 faziam jus ao livramento condicional, após o cumprimento de mais de 1⁄3 da pena, se primário, ou de mais da metade, se reincidente, conforme o disposto nos incisos I ou II do mesmo art. 83, já que tal delito era autônomo e comum – v.g., HC 35.310⁄RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 16⁄11⁄2004 p. 307; HC 36.509⁄RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJ de 25⁄10⁄2004; HC 175.671⁄RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 01⁄08⁄2011. 6. Após o advento da Lei n.º 11.343, de 24⁄08⁄2006, o crime de associação para o tráfico, em continuidade normativo típica, passou a ser tipificado no art. 35 da novatio legis. Esta Casa manteve o mesmo entendimento de que os condenados pela prática dessa infração penal deveriam observar os re-
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quisitos dos incisos I ou II do art. 83 doCódigo Penal, para a obtenção de livramento condicional – v.g., HC 261.715⁄SP, 6.ª Turma, Rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES, DJe de 28⁄10⁄2013; HC 258.188⁄RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. MARILZA MAYNARD (Desembargadora Convocada do TJ⁄SE), DJe de 12⁄04⁄2013; HC 169.654⁄SP, 5.ª Turma, Rel. Min. ADILSON VIEIRA MACABU (Desembargador Convocado do TJ⁄RJ), DJe de 10⁄09⁄2012. 7. Todavia, a nova Lei de Drogas aparentemente inovou no tratamento da matéria em comento, uma vez que, diversamente da Lei n.º 6.368, de 21⁄10⁄1976, passou a estabelecer o critério objetivo para a concessão do livramento condicional dos condenados pelos delitos previstos nos arts. 33, § 1.º, e 34 a 37, inclusive, portanto, o crime de associação para o tráfico. 8. A invocação de quantum mais gravoso, para fins de concessão de benefícios da execução, traduz-se em verdadeira analogia in malam partem, expediente sabidamente vedado na seara penal. 9. Ordem de habeas corpus não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para assegurar a elaboração de cálculo da pena, sem a exigência de cumprimento de 2⁄3 da pena imposta pelo delito de associação para o tráfico de drogas, para fins de concessão do benefício do livramento condicional. (HC 284176/ RJ, Relatora: Laurita Vaz, 28/08/2014). HABEAS CORPUS. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ART. 14 DA LEI Nº 6.368/76. DELITO NÃO EQUIPARADO A HEDIONDO. LIVRAMENTO CONDICIONAL. INCISO V DO ARTIGO 83 DOCÓDIGO PENAL. NÃO APLICAÇÃO. 1. O delito de associação, previsto no art. 14 da Lei nº 6.368/76, não é equiparado a hediondo, mostrando-se incabível nas condenações por sua prática a aplicação do inciso V do artigo 83 do Código Penal para a concessão do livramento condicional. 2. Ordem concedida para que seja efetuado novo cálculo para a concessão do livramento condicional, em relação ao delito do art. 14 da Lei nº 6.368/76. (HC 38520, Relator Paulo Gallotti, 22/02/2005). Em sentido contrário, temos julgamentos do mesmo STJ tratando a associação para o tráfico como crime hediondo. Vejamos: CRIMINAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA. ARTIGO 44 DA LEI N.º 11.343/2006. INCONSTITUCIONALIDADE DO ÓBICE DECLARADA PELO PLENÁRIO DO STF. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA DO DECRETO PRISIONAL. ENVOLVIMENTO EM ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. SUSPEITA DE QUE INTEGRA O PCC. REITERAÇÃO CRIMINOSA. POSSIBILIDADE CONCRETA. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. EXCESSO DE PRAZO. FEITO COMPLEXO. PLURALIDADE DE RÉUS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, firmou-se no sentido de que o habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de recurso próprio, sob pena de desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, insculpida no art. art. 5º, LXVIII. 2. Com efeito, em respeito ao sistema recursal previsto no or-
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denamento jurídico, esta Corte de Justiça passou a não conhecer do habeas corpus quando impetrado com propósito diverso do delineado constitucionalmente. 3. Entretanto, em hipóteses excepcionais, este Tribunal Superior tem concedido, de ofício, ordem de habeas corpus, nos termos do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, quando a ilegalidade apontada for flagrante e estiver influenciando na liberdade de locomoção do indivíduo, situação que não se verifica na espécie. 4. O Pleno do STF declarou, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do art. 44, caput, da Lei 11.343/2006, determinando que sejam apreciados os requisitos previstos no art. 312 do CPP para que, se for o caso, seja mantida a segregação cautelar. 5. Mesmo em caso de crimes hediondos ou equiparados, remanesce a necessidade de fundamentação concreta para o indeferimento do pedido, prestigiando-se, assim, a regra constitucional da liberdade em contraposição ao cárcere cautelar, quando não houver demonstrada a necessidade de segregação. 6. A segregação cautelar é medida excepcional, mesmo no tocante aos crimes de tráfico de entorpecente e associação para o tráfico, e o decreto de prisão processual exige a especificação de que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. 7. Explicitado no acórdão recorrido o envolvimento do paciente em associação criminosa voltada para o tráfico de drogas na fundada suspeita de que integra o PCC, bem como de que possui mandado de prisão em aberto oriundo de outra Comarca, sob a acusação de formação de quadrilha e tentativa de homicídio, além de possível envolvimento com o PCC, evidencia-se o cometimento reiterado de condutas criminosas, tornando necessária sua custódia provisória para a garantia da ordem pública. 8. Demonstrada a periculosidade concreta do acusado, denotando ser sua personalidade voltada para o cometimento de delitos, resta obstada a revogação da medida constritiva para garantia da ordem pública. Precedentes desta Corte. 9. A possibilidade real do acusado voltar a delinquir caso seja posto em liberdade obsta, de igual modo, a aplicação de medida cautelar menos gravosa do que a prisão ao réu, conforme a nova dicção do art. 319, conferida após o advento da Lei nº 12.403/11. 10. Condições pessoais favoráveis não são garantidoras de eventual direito subjetivo à liberdade provisória, quando a necessidade da prisão é recomendada por outros elementos, como na hipótese dos autos. 11. O constrangimento ilegal por excesso de prazo só pode ser reconhecido quando a demora for injustificada, eis que o prazo para o encerramento da instrução penal não é absoluto, devendo ser avaliado à luz do princípio da razoabilidade, mormente se a suposta mora não puder ser atribuída ao Juiz ou ao Ministério Público. 12. Hipótese em que o feito tramita regularmente, devendo ser ressaltada a complexidade da causa, caracterizada pela pluralidade de réus (vinte e seis). 13. Ordem não conhecida. (HC 298.107 SP, Ministro Gurgel de Faria, 02/10/2014). PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO-CABIMENTO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁ-
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FICO. REGIME INICIALMENTE FECHADO. IMPOSSIBILIDADE. ART. 2º, § 1º, DA LEI N.8.072/90. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO STF. RESTABELECIMENTO DO REGIME INICIAL SEMIABERTO. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. I - A Primeira Turma do col. Pretório Excelso firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus substitutivo ante a previsão legal de cabimento de recurso ordinário (v.g.: HC n. 109.956/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/9/2012; RHC n. 121.399/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 1º/8/2014 e RHC n. 117.268/SP; Rel. Ministra Rosa Weber, DJe de 13/5/2014). As Turmas que integram a Terceira Seção desta Corte alinharam-se a esta dicção, e, desse modo, também passaram a repudiar a utilização desmedida do writ substitutivo em detrimento do recurso adequado (v.g.: HC n. 284.176/ RJ, Quinta Turma, Rel. Ministra Laurita Vaz, DJe de 2/9/2014; HC n. 297.931/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 28/8/2014; HC n. 293.528/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 4/9/2014 e HC n. 253.802/MG, Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4/6/2014). II - Portanto, não se admite mais, perfilhando esse entendimento, a utilização de habeas corpus substitutivo quando cabível o recurso próprio, situação que implica o não-conhecimento da impetração. Contudo, no caso de se verificar configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, recomenda a jurisprudência a concessão da ordem de ofício. III - O Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC n. 111.840/ ES, reconheceu a inconstitucionalidade, de forma incidental, do § 1º, do art. 2º, da Lei n. 8.072/90, não sendo mais obrigatório o regime inicial fechado para os crimes hediondos. IV - Na hipótese, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reformou decisão do magistrado de 1ª instância que concedeu à paciente o regime inicial semiaberto, por suposta violação à coisa julgada. V - Contudo, consoante o disposto no enunciado n. 611 da Súmula/STF, “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna.” VI- Desta forma, tendo o v. acórdão, proferido em sede de apelação, fixado o regime inicialmente fechado exclusivamente com fundamento no óbice imposto pelo art. 2º, § 1º, da Lei n.8.072/90, declarado inconstitucional pelo col. Pretório Excelso, deve ser restabelecida a r. decisão de 1ª instância, a qual fixou o regime semiaberto à paciente. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício. (HC 292155 MG, Ministro Feliz Fischer, 04/11/2014). HABEAS CORPUS . TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇAO PARA O NARCOTRÁFICO. LEI 11.343/06. EXECUÇAO. REGIME PRISIONAL FECHADO. CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO. DELITO COMETIDO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI 11.464/07. FIXAÇAO EM MODO DIVERSO DO MAIS GRAVOSO. POSSIBILIDADE. QUANTIDADE E NATUREZA DO ENTORPECENTE APREENDIDO. GRAVIDADE CONCRETA. FORMA MAIS GRAVOSA JUSTIFICADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NAO EVIDENCIADO. 1. Diante da declaração da inconstitucionalidade do 1º do art. 2º, com a redação dada pela Lei n. 8.072/90, perfeitamente possível, aos condenados por crimes hediondos ou equiparados, a fixação, em tese, de quaisquer dos regimes prisionais legalmente previstos, devendo a nova redação conferida ao
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citado dispositivo legal pela Lei n.11.464/07 atingir somente os casos posteriores à sua entrada em vigor. 2. Não obstante o quantum de pena fixado ao paciente não exceder a 8 anos de reclusão, mostra-se justificada a fixação do modo inicialmente fechado, nos termos do art. 33, 2º, alínea a , e 3º, do CP e do art. 42 da nova Lei de Tóxicos, haja vista a gravidade concreta dos delitos cometidos, bem evidenciada pela elevada quantidade e natureza da droga apreendida -gramas de cocaína. 3. Ordem denegada. (HC 159.211, Relator Ministro Jorge Mussi, 14/06/2011). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebe-se que a doutrina e a jurisprudência não são pacíficas sobre o tema. Num primeiro momento verificamos que uma corrente majoritária não admite a consideração do homicídio privilegiado-qualificado como sendo crime hediondo pelo fato de não estar presente no rol taxativo do art. 1º, da LCH. Em contrapartida, a jurisprudência tem admitido a característica hedionda do crime de associação para o tráfico, embora ele também não se encontre no rol taxativo da citada lei. Pensamos que, embora a associação para o tráfico tenha o objetivo final de cometer o tráfico de drogas em concurso de agentes e, embora seja o tráfico crime hediondo, não se pode considerar a associação como tal, tendo em vista que referido crime é formal, ou seja, o resultado final não precisa chegar a acontecer para se ter como caracterizada a associação. Destarte, nos filiando a corrente composta por Luis Flávio Gomes, tendo que é vedado por nossa legislação penal a analogia in malan partem. Não se pode preencher as lacunas do direito de maneira a prejudicar o acusado. Sobre o homicídio privilegiado-qualificado, a nosso ver, também não pode ser considerado como crime hediondo, pelo mesmo motivo que a associação para o tráfico também não, qual seja: os dois delitos não estão elencados no rol da LCH! O nosso ordenamento jurídico é regido pelo principio da reserva legal, legalidade ou ainda principio nullum crimen, nulla poena sine lege, que se encontra positivado na Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XXXIX, que assim dispõe: “ Não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Desse modo, tem-se que para a consideração dos crimes em epígrafe como hediondos é necessário que a lei, no caso LCH, cite os tipos, pois o princípio da reserva legal é absoluto, como leciona Cézar Roberto Bitencourt: “O princípio da reserva legal é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece às exigências da justiça, que somente os regimes totalitários têm negado.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral.16ª edição, 2011, p. 41). Em decorrência da obrigatoriedade da observância do princípio da reserva legal, tem-se que é impossível admitir os crimes em tela como hediondos. Assim, admitir a característica hedionda do tipo significa negligenciar uma garantia constitucional mais que de caráter individual, mas de caráter coletivo. Significa ainda permitir abusos por parte do Estado na pessoa de seus julgadores causando uma enorme insegurança jurídica. Nesse sentido, vejamos: Semelhante princípio atende, pois, a uma necessidade de segurança jurídica e de controle do exercício do jus puniendi, de modo a coibir possíveis abusos à liberdade individual por parte do titular desse poder (o Estado). Consiste, portanto, constitucionalmente, uma poderosa garantia política para o cidadão, expressiva do imperium da lei, da supremacia do Poder Legislativo – e da sobera-
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nia popular – sobre os outros poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguardados direito e liberdade individuais. (QUEIROZ, 2005, p. 26). Imaginando uma situação hipotética, seria inviável que um indivíduo fosse condenado as penas previstas em um dos crimes em questão, ou associação para o tráfico ou homicídio privilegiado-qualificado, viesse a ter sua progressão de pena, regimes e outras diretrizes fixadas conforme a LCH, sem que tais crimes constem do rol dos crimes hediondos! Com o reconhecimento da hediondez do crime estaríamos diante de uma aberração jurídica. Seria como considerar o roubo como crime hediondo por uma analogia ao crime de latrocínio. Admitir essa possibilidade seria um retrocesso diante da luta, ainda não finalizada, pela segurança jurídica da nossa legislação. Assim, ao nosso ver, pelo princípio da legalidade o homicídio privilegiado-qualificado e a associação para o tráfico não são crimes hediondos e nem podem ser considerados como tal. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte geral. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial 2. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. FILHO, Sergio Bautzer. Crimes Hediondos e Equiparados. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/238449350/Crimes-Hediondos-e-Equiparados-Sergio-Bautzer-Filho>. Acesso em: 31 out. 2014. GOMES, Luiz Flávio (org.). CUNHA, Rogerio Sanches (org.). Legislação Criminal Especial. 2. Ed. São Paulo: RT, 2010. LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal. 2ª edição. Vol. 3. Editora Revista dos Tribunais. 1999. MARTINS, Ilana. Homicídio Privilegiado-qualificado é crime hediondo?. Disponível em < http://ilamartins.jusbrasil.com.br/artigos/121938135/homicidio-privilegiado-qualificado-e-crime-hediondo>. Acesso em: 13 nov. 2014. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 6. ed. V. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. O PRINCIPIO, da legalidade no Direito Penal. 2006. Disponível em: <http://www. unifacs.br/revistajuridica/arquivo/edicao_fevereiro2006/discente/disc_04.doc>. Acesso em: 12 nov. 2014. QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal: Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001. SEABRA, Thiago Sinigoi. Homicídio Privilegiado-qualificado não é crime hediondo. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8445/homicidio-qualificado -privilegiado-nao-e-crime-hediondo> . Acesso em: 29 out. 2014. SOUZA, Willian Carlos de. A regulamentação dos crimes hediondos como controle social penal. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/19754/a-regulamentacao-dos-crimes-hediondos-como-controle-social-penal>. Acesso em: 4 nov. 2014. TRINDADE, Priscila. Associação para o tráfico se equipara a crime hediondo. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-12/associacao-trafico-equiparado-crime-hediondo-minas-gerais>. Acesso em: 13 out. 2014.
NOTAS DE FIM 1 Acadêmica do 10º período do Curso de Direito do Centro Universitário Newton. 2 Mestre em Ciências Penais. Advogado atuante na área Criminal. Professor do Centro Universitário Newton.
**Maurício Lopes Paula; Renato Martins Machado.
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ANÁLISE DA PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DOS MENORES NA DISPUTA PELA GUARDA ENTRE PAIS BIOLÓGICOS E PAIS ADOTIVOS À LUZ DE UM CASO CONCRETO Marcela Almeida Monteiro Lacerda¹ Valéria Edith Carvalho de Oliveira² Banca examinadora** RESUMO: O presente estudo traz uma interpretação à luz de um caso concreto, relacionado à preservação dos direitos dos menores na disputa pela guarda entre pais biológicos e pais adotivos, abordando aspectos relevantes, fundamentos sobre o tema, consequências, princípios e soluções plausíveis acerca do litígio. PALAVRAS CHAVES: Direito de Família; Adoção; Reversão; Melhor Interesse da Criança; Afetividade. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Poder Familiar e suas Implicações; 3 Entendendo o Processo de Adoção; 4 Caso Concreto; 5 O Interesse da Menor; 5.1 Princípio do melhor interesse da criança; 5.2 Princípio da Afetividade; 5.3 Possíveis consequências para a menor; 5.4 Possíveis respostas para o caso concreto; 6 Conclusão; Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Atualmente, em Minas Gerais, aconteceu uma ação na seara das adoções que trouxe à luz o debate sobre a reversão da guarda provisória e como ficariam os direitos da criança nesta disputa. O artigo tem como objetivo a análise deste caso sob a ótica dos princípios do Melhor Interesse da Criança, e o da Afetividade. Pretende-se construir argumento favorável à priorização dos interesses do menor sobre aqueles dos demais envolvidos no caso, discutindo os pontos de vista e apresentando possíveis soluções. Faz destaque também a urgência de melhorias no processo de adoção, no sentido de promover maior segurança jurídica ao instrumento, de forma a, proteger a criança ou o adolescente. 2 O PODER FAMILIAR E SUAS IMPLICAÇÕES A promulgação da Constituição da República de 1988 trouxe importantes e fundamentais modificações no Direito Familiar, gerando mudanças de valores nas relações familiares. Tais transformações demonstram que, hoje em dia, somente a ligação biológica não é o suficiente para uma relação paterna filial. O Poder Familiar reúne uma série de direitos e deveres, bem como, educação, criação, assistência, conferida aos pais em relação aos seus filhos menores de dezoito anos e todos os seus bens. Tal poder é indelegável, irrenunciável e imprescritível. Os direitos e deveres são essenciais para formar uma base sadia e favorável na vida da criança, proporcionando meios de enfrentamentos da vida. Nos ensinamentos da doutrinadora Maria Helena Diniz sobre o poder familiar, ela nos traz o seguinte conceito: É o conjunto de direitos e obrigações, quanto á pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido pelos pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e proteção do filho (DINIZ, 2008). Aos pais incumbe a formação e a educação de seus filhos menores, tê-los sob sua guarda, conduzir e controlar os atos civis de suas vidas, como está elucidado no art. 1.634 do Código Civil: Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
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Pelas atribuições estabelecidas pelos incisos do art. 1.634 do Código Civil de 2002 aos pais, fica claro que os genitores possuem a obrigação de criar e preparar seus filhos para a vida, sendo primordial para definir o futuro dos mesmos. Devido às suas características, o poder familiar, tornou-se um instituto jurídico muito importante, por possuir em sua estrutura, múltiplos direitos e deveres dos pais, que estão contidos na Constituição Federal, seja de forma implícita ou explícita. A extinção do poder familiar ocorre pelo descumprimento dos deveres atribuídos aos pais em relação aos filhos. O artigo 1.635 do Código Civil dispõe as formas de extinção: Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar: I - pela morte dos pais ou do filho; II - pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único; III- pela maioridade; IV - pela adoção; V - por decisão judicial, Nestes termos, então, os pais biológicos podem perder o poder familiar em relação aos filhos. Neste caso a criança será encaminhada para família substituta ou será disponibilizada para doção. Assim, possível inferir que as crianças acessíveis para adoção não são apenas as que não possuam pais conhecidos ou foram desamparadas.
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Mas também as que vivem com os pais biológicos e o juiz apurou que a criança padece de riscos de desenvolvimento, de saúde ou de vida. Com direito aos recursos disponíveis, poderá afasta-la do lar paterno, proporcionando a destituição do poder familiar dos pais biológicos, e concede-la para a adoção. Esta situação ocorre quando a criança sofre riscos concretos e já acabaram todas as medidas disponíveis para evitar o problema, contudo, é uma prática que já é prevista pela lei. A perda é durável, mas não significa que seja definitiva, uma vez que os pais podem reaver através de procedimento judicial a guarda, comprovando que o pedido da causa que motivou a perda não existe mais. A suspensão do pode familiar pode ser temporária, permanecendo enquanto for necessária. A suspensão pode ser ainda total abrangendo e cessando todos os poderes familiar, ou parcial, sendo necessário especificar qual poder será afastado de ser exercido. Ocorrendo o descumprimento de deveres decorrentes do poder familiar, segundo o Código Civil, acarretará a consequência será a extinção e suspensão do poder. O objetivo principal de aplicar estas penalidades é exclusivamente voltado para preservação do interesse do menor, e não pela punição dos pais. O poder familiar alcança a relação paterna filial em todas as suas formas, seja ela, biológica, sócio afetivas ou decorrente de adoção. 3 ENTENDENDO O PROCESSO DE ADOÇÃO A adoção é um processo legal que se baseia, em muitos casos, em passar o poder familiar (direitos e deveres) dos pais biológicos para os pais adotivos. É normalizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo Código Civil, que define evidentemente que a adoção deve privilegiar as reais obrigações, direitos e interesses da criança e do adolescente. É também o momento para os pais que não conseguiram ter filhos biológicos ou decidiram por filhos sem ligação genética exercerem a maternidade/paternidade, além de provavelmente ajudar a família de origem, que não conseguiu zelar pelo seu filho. O primeiro passo, para iniciar o processo de adoção, é a solicitação junto ao Juizado da Infância e da Juventude do município, através da Seção de Colocação em Família Substituta. Os interessados requisitam uma entrevista com os especialistas para conseguir os dados preliminares indispensáveis à normalização do seu pedido de registro. A idade mínima para tornar-se um adotante é de dezoito anos, independentemente do estado civil, estabelecido por lei, porém deve ser obedecido outro quesito; o adotante deve ter idade superior ao adotado de pelo menos dezesseis anos. São mínimas as limitações para adoção e quase todas se submetem a análise do Juiz em face das informações apresentadas pelos especialistas do juizado, entretanto, a Lei dispõe a proibição de adoção entre irmãos e avós com os netos, podendo apenas conseguir a guarda dos seus respectivos irmãos e netos. A guarda estabelece ao guardião o compromisso material e educacional, o dever de assistência moral e garante à criança e o adolescente todos os direitos, até os previdenciários. Já a adoção causa uma transformação na relação familiar, visto que, ocorre a substituição da certidão de nascimento por outra, com uma nova simetria de filiação que possibilitará ao adotado fruir de direitos iguais que tenham os filhos biológicos do adotante. O Momento maior do processo de adoção é o da aprovação dos adotantes. Após as entrevistas, as visitas ao domicílio dos supostos adotantes, e após tornar claro todas as dúvidas dos especialistas do Juizado, este processo é conduzido para o Juiz, que deparando- o adequadamente instruído, poderá aprovar a habilitação dos adotantes.
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Os supostos adotantes, após serem aceitos pelo juiz, estarão possibilitados de adotar e entrarão em um cadastro de prováveis adotantes. Certamente que os procedimentos judicias não aceitam qualquer ruptura da ordem de preferência, consequentemente, valerá para destinação de classificação na lista ou cadastro, a data de aceitação da ficha ou habilitação dos prováveis adotantes. Contudo convém constatar que os prováveis adotantes comunicam no momento da inscrição sua predileção (sexo, cor dos cabelos, cor da pele, cor dos olhos, idade etc.) em relação ao futuro adotado. Quando a primeira criança acessível não compatibiliza com as qualidades de predileção impostas pelos adotantes alistados em primeiro lugar a criança será guiada ao segundo adotante da lista e assim gradativamente. Quanto maiores forem as exigências expostas como predileção dos adotantes correlações aos adotados, maior será o tempo de espera. Durante um tempo o juiz estabelece para os interessados um termo de guarda antes de aprovar a adoção, esse tempo é chamado de “estágio de convivência”. Nesse prazo é permitido desistir da adoção, pois não foi efetivada. Da mesma maneira poderá o Juiz, cancelar a guarda e não aprovar a adoção identificando situações graves ou inadequadas para o menor. É considerável que o Juizado trabalha com o ideal de zelar pelos interesses do menor, desta forma, se houver algum acontecido que o Juiz entenda ser negativo para a criança, será reanalisada a guarda e todo o processo será paralisado. Contudo, após formalizada a adoção, não poderá o adotante desistir e devolver a criança, por isso determina-se maturidade e cautela. A adoção é irrevogável. 4 CASO CONCRETO O contexto da causa em análise aborda um caso concreto, no qual uma menor em seus primeiros meses de vida, foi retirada de seus pais biológicos através de uma denúncia feita pelo Ministério Público, na qual se alegou maus-tratos e abandono de incapaz. Fatos estes que também os levaram a perda da guarda de seus outros seis filhos. Diante dessa situação, ocorreu o encaminhamento da menor para um abrigo, que permaneceu durante um ano e três meses, quando foi acolhida por uma família que esperava há cinco anos na fila para conseguir uma adoção. Durante três anos, a menor ficou sobre os cuidados e proteção da nova família, que proporcionou para a criança toda estrutura necessária, dando a ela uma infância íntegra. Os pais adotivos respeitaram e exerceram todos os trâmites legais no que tange ao processo adotivo (documentação necessária, fila de espera, cursos, palestras, visitas técnicas). No decorrer do processo de adoção da menor, que já estava há alguns anos com a família substituta, surgiu um novo fato: os pais biológicos da criança ao se reabilitarem, pediram a reversão da guarda da menor. A Vara da Infância e da Juventude da comarca de Contagem/ Minas Gerais em primeira instância, através de sentença, na qual deferiu a ação de destituição do poder familiar dos pais biológicos, interposta pela Promotoria da Infância e da Juventude em Outubro de 2013, decidiu em favor dos pais adotivos. Manoel Luiz Ferreira de Andrade, instituído como promotor do caso em tela fundamentou seus pedidos através de diagnósticos psicológicos e auxílio assistencial, baseando-se também na falta de relacionamento da menor com os pais biológicos, aconselhando a permanência da criança com os interessados na adoção. A insatisfação dos pais biológicos perante a sentença proferida pela primeira instância julgadora, fez com que eles recorressem ao
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Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Recurso este, que foi deferido pelo Egrégio Tribunal, contra decisão publicada pela 7ª Câmara Cível da comarca de Contagem/MG, que por decisão unânime de seus desembargadores, determinaram a volta da menor à família biológica. Essa decisão teve como fundamento a concordância e reconhecimento de que os pais biológicos podem converter a situação de maus-tratos e abandono sofridos pela criança. Neste processo foi demonstrada por um laudo técnico, a aptidão da família biológica para acolher novamente todos os seus filhos, e baseou-se também no entendimento da Procuradoria Geral de Justiça, que argumentou não existir motivo algum para separar apenas a menor de seus pais biológicos, já que todos os seus seis filhos voltaram para a casa dos mesmos. O Desembargador Belizário de Lacerda, relator do caso, alegou a proteção legal do direito do convívio familiar, ao assegura à menor a manutenção na família natural, incumbindo diretamente ao Poder Público, o implemento de ações que para protegê-la, bem como restabelecê-la ao convívio com a família biológica. Segundo ainda o togado, conduzir a menor a uma família adotiva, só poderia ser feita em último caso, se a família biológica não tivesse nenhuma condição para criar e dar uma vida digna à criança. A sentença ainda destacou no que tange à ligação afetiva da menor com sua família adotiva, dizendo que o rompimento desse vínculo não seria suficiente para gerar um abalo emocional, e por isso o acórdão garantiu à família biológica a tutela da criança, que estava aos cuidados dos pais afetivos, no decorrer do processo adotivo. Diante da decisão a família adotiva impetrou um mandado de segurança, obtendo sucesso no pedido liminar, garantindo a eles a permanência da menor sobre seus cuidados, enquanto a apreciação de mérito do pleito não fosse julgada. Tal processo, gerou bastante discussão e divergências acerca do entendimento de especialistas, como doutrinadores, magistrados, advogados, por se tratar de uma questão polêmica, no que diz respeito ao melhor caminho para a criança, seja com a família biológica ou com a família adotiva. 5 O INTERESSE DA MENOR Como se presume, em um processo tão delicado e relevante como o de adoção, todas as partes se envolvem emocionalmente em seu trâmite de maneira muito profunda, de forma que, especificamente no caso em tela, o sucesso de um dos lados implica na ruína emocional do outro, sem mencionar a própria criança, que em meio a tudo isso, pode sair mais lesionada que os demais. Assim, importante que haja mecanismos de aplicação da norma legal, em consonância com os princípios norteadores do direito, de forma a preservar ao máximo os envolvidos. 5.1 Princípio do melhor interesse da criança A Constituição da República preconiza em seu artigo 227: É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Por serem pessoas ainda em formação e em desenvolvimento, as crianças e adolescentes, carecem de cuidados especiais e, em razão disso, precisam ter prioridade em se tratando de confrontos sociais, como o conflito de interesses que ocorre no caso concreto analisado.
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Em casos como esse, colocar em prática o Princípio do Melhor Interesse da Criança é primordial, uma vez que não só visa a melhor situação para o menor envolvido, como fortalece a ideia de que as crianças e adolescentes, são detentores de direitos, e não um mero objeto onde há pessoas litigando pela sua posse. Sobre esse princípio basilar do direito dos menores, leciona Tânia da Silva Pereira: Ocorreram no seio da sociedade pós-moderna, mudanças significativas, em especial no seio da família. Novos paradigmas surgem na sua formação, não sendo mais possível afastar-se, ou mesmo, não dar a importância devida aos constantes acontecimentos imbrincados, no que tangue a guarda, adoção e cuidados gerais das crianças e adolescentes. Há de se afastar dos conceitos e pré conceitos quando o tema é o melhor interesse do menor, que será avaliado, na sua aplicabilidade, pelo intérprete, através de uma escolha racional e valorativa, que deve averiguar, no caso concreto, a garantia do exercício dos direitos e garantias fundamentais pelo menor (PEREIRA, 2010). Não obstante, o artigo 6º do ECA aduz que “na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Felizmente, já se pode vislumbrar em nosso ordenamento, através de jurisprudências, decisões onde o direito das crianças e adolescentes são tratados com prioridade absoluta, vindo de acordo com o artigo 227 da Constituição da República e também em conformidade com o artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente. A exemplo, está a jurisprudência do Tribunal do Justiça do Estado de São Paulo, trata-se de julgamento de Apelação Cível nº 15350-0, de 05 de novembro de 1992, tendo o Dr. Desembargador Lair Loureiro como Relator do caso, embasando sua decisão no artigo 6º do ECA, artigo 227 da CR/88, e, consequentemente, no princípio do melhor interesse do menor: Decisão: Lei: ECA, art. 33 – Menor –Guarda – Postulação com vistas a fins previdenciários – art. 33 do ECA – ADM – Menor que necessita de cuidados urgentes para sua sobrevivência – aplicação do art. 6º do ECA – recurso provido. Recomenda o art. 6º que, na interpretação desta lei devem ser levados em conta os fins sociais a que ela se dirige e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento. O Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Resp. nº 275.568-RJ, como relator o Min. Humberto Gomes de Barros, analisou questão de destituição do poder familiar por abandono afetivo, usando como base a determinação principalmente no que tange o interesse do menor, conforme a ementa in litteris: DIREITO CIVIL - PÁTRIO PODER - DESTITUIÇÃO POR ABANDONO AFETIVO - POSSIBILIDADE - ART. 395, INCISO II, DO CÓDIGO CIVIL C/C ART. 22 DO ECA - INTERESSES DO MENOR - PREVALÊNCIA.- Caracterizado o abandono efetivo, cancela-se o pátrio poder dos pais biológicos. Inteligência do art. 395, II, do Código Bevilacqua, em conjunto com o art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se a mãe abandonou o filho, na própria maternidade, não mais o procurando, ela jamais exerceu o pátrio poder.(STJ - 3ª T.; REsp nº 275.568RJ; Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j.18/5/2004; v.u.) BAASP, 2388/933-e, de 11.10.2004.”O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, também seguiu a mesma linha de raciocínio, considerando indevida a retenção de documentos escolares
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com o objetivo de receber mensalidades em atraso. Vejamos a ementa: “ESTABELECIMENTO DE ENSINO - CRIANÇA OU ADOLESCENTE - RETENÇÃO DE DOCUMENTOS ESCOLARES COM O OBJETIVO DE RECEBER MENSALIDADES EM ATRASO INADMISSIBILIDADE - ATO ILEGAL QUE FERE O DISPOSTO NOS ARTIGOS 6º, 205 E 227 DA CF E A LEI Nº 8.069/90 Ementa oficial: Constitui-se ato ilegal reter, para fins de recebimento de mensalidades atrasadas, documento imprescindível para frequência e realização de provas em outro estabelecimento de ensino. Em se tratando de adolescente e crianças, o ato ilegal fere o disposto nos artigos 6º, 205 e 227 da CF, além do disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº8.069/90). (TJGO - 1ª Turma - 1ª Câm. Cív; Duplo Grau de Jurisdição nº 4.603-7/195; Rel. Des. Castro Filho; j. 03.06.1997; v.u.) RT 747/354. BAASP, 2156/138-m, de 24.04.2000. - CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS MENSALIDADE ESCOLAR INADIMPLEMENTO. A jurisprudência embasou-se no princípio do melhor interesse do menor com máxima prioridade, em outras palavras, o direito da criança prevaleceu sobre os interesses dos adultos. 5.2 Princípio da Afetividade No mundo jurídico contemporâneo, onde a cada dia novas conquistas são atingidas no campo da interpretação humanitária das normas, não é possível se admitir limitações e princípios retrógrados como a priorização dos laços de sangue sobre os afetivos no que tange à família. Fato é que, nesse mesmo contexto de reinterpretação e redefinição do conceito de família, os laços afetivos vêm ganhando espaço e significado, se mostrando tão relevantes quanto, ou às vezes até mais relevantes que a ligação genética, outro determinante para delimitação do ente familiar. Apesar da falta de previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, não restam dúvidas de que a afetividade constitui um princípio do Direito Familiar contemporâneo, uma vez que o afeto se encontra cada vez mais em evidência no que tange ao conceito de família. Inclusive, já conquistou grande parte da jurisprudência o reconhecimento do valor jurídico do afeto, sendo esse essencial para decisões de repercussão extrema, como a própria filiação, comprovando assim o surgimento da parentalidade socioafetiva, independentemente de vínculo consanguíneo. Seguindo essa linha de pensamento, aponta Ricardo Lucas Calderon: Parece possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento (CALDERON, 2004). No caso concreto em análise, a criança foi inserida em família substituta com apenas dois meses de idade, tendo isso em vista, percebe-se que o princípio da afetividade deve ser observado com atenção, uma vez que a criança sequer conheceu seus pais biológicos, não possuindo absolutamente nenhum tipo de vínculo com eles senão o fato de compartilhar de sua descendência genética.
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Por outro lado, a família guardiã é a única que a criança conhece, e com esta sim, criou laços de afeto. O núcleo familiar de seus pais adotantes representa toda a sua universalidade, sendo certo que ali estão presentes também os demais personagens de sua vida emocional, como primos, tios, avós, amigos, vizinhos e etc. É fundamental acusar a fala compreendida na expressão “retorno da criança à sua família”, uma vez que não existe retorno a um ambiente ao qual nunca se pertenceu. É fato que a criança não teve nenhum tipo de contato significativo com a sua família biológica, e por essa razão, no seu ponto de vista não estaria “retornando” a lugar algum, e sim, deixando todo o seu mundo para trás e partindo para um universo desconhecido e temerário. A mestra Maria Berenice Dias ressalta: Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse do estado de filho, nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família (DIAS, 2013). Portanto, é indispensável que esse novo tipo de família receba reconhecimento e proteção do Direito, uma vez que a convivência e a afetividade configuram fatores muito mais relevantes para o bom desenvolvimento do menor que apenas laços de sangue. O retorno da criança a essa altura de sua vida seria uma terrível aposta, uma vez que pouco teria a ganhar, e tudo que já conheceu a perder. 5.3 Possíveis consequências para a menor Após a análise do caso e das diretrizes básicas aqui comentadas, percebe-se que um possível “retorno” da menor à sua família de origem vai de encontro a inúmeros princípios basilares do direito fundamental da criança e do adolescente, sendo certo que é preciso se atentar ao fato de que a norma positivada muitas vezes se torna defasada, gerando dramáticas consequências aos envolvidos. Certamente, aplicar o ordenamento jurídico positivamente, de maneira arcaica, não é a melhor saída para a resolução de situações tão peculiares como essa. Os intérpretes da lei devem se atentar às particularidades de cada situação, individualmente, para assim estabelecer o melhor para a criança ou adolescente. Importante ressaltar que os princípios são as diretrizes maiores que regem a filosofia de estabelecimento e manutenção do Estado Democrático de Direito, e como tais, apesar de não possuírem força cogente, delimita e guia a atuação legislativa, vinculando a eles o norte ideológico das normas positivas. Tirar uma criança que há anos se encontra completamente ambientada à família guardiã, oferecendo como único fundamento a norma que privilegia os laços sanguíneos é cega manifestação positivista, que ignora o nobre dever secundário dos magistrados de, não se atendo à mera aplicação da lei, exercer seu questionamento, contribuindo para a evolução de um direito menos modelo e distante, para um que se aproxime mais da realidade fática de seu povo. Ainda, conforme mencionado acima, não há que se falar em retorno do menor ao seio de sua família biológica se, a princípio, daquele seio jamais fez parte. Atentando-se a esse fato, devemos concluir que o termo “família substituta” é inapropriado no caso, pois na visão da menor, não existe substituição alguma, existindo tão somente a sua amada família. Importante relembrar que a criança foi afastada de sua família biológica por ordem do Ministério Público, tendo sido provado o abandono e maus-tratos sofridos. Essa criança foi para um abrigo, onde logo depois, encontrou uma família que supriu tudo aquilo que
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seu núcleo familiar original não concedeu. Com isso, após anos de convivência, seria absurdo submeter essa criança a uma torturante adaptação que em nada contribuiria senão ao fato de tornar cada vez mais presente e assombrosa na sua vida a verdade da qual devia ser protegida nos seus primeiros anos de formação pessoal: seus pais biológicos foram afastados por serem notoriamente um risco, não apenas à sua saúde física e mental, como para todo o seu desenvolvimento constitucionalmente tutelado. A mera possibilidade de reversão da guarda em casos como o em voga traz à tona a análise da tutela do menor. Nesse sentindo, aduz a Presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), Suzana Schetinni: Essa decisão é um completo absurdo, pois esquece que a criança é um sujeito de direitos, como diz a Constituição e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O que é melhor para essa criança? Ela foi retirada da família biológica ainda bebê, porque o pai não trabalhava e bebia, a mãe tinha problemas psicológicos. Após mais de dois anos com a família adotiva, a Justiça decide que ela vai retornar para a família biológica. Mas tudo o que essa criança sabe da vida dela é que os pais adotivos são pais dela, que ela tem amor, tem primos, tem avós, tem uma família inteira. Agora, a gente vai dizer pra ela: “Minha querida, este pai não é mais o seu pai; esta mãe, não é mais a sua mãe”. Ela não tem como entender isso. Essa decisão é uma crueldade, uma violência contra a criança (SCHETINNI, 2006). O Dr. Sávio Bittencourt, Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, também se manifestou através de brilhante colocação sobre o polêmico caso: Se a criança foi colocada em um abrigo e, depois, quando já está adaptada ao novo lar, determinam o retorno dela aos pais biológicos, ela está sendo tratada como uma coisa, como uma propriedade de sua família biológica. Não é justo desfazer os vínculos já criados. Eu tenho profundo respeito pelas decisões judiciais, sou procurador de Estado, mas essa decisão tem o meu mais sincero repúdio (BITTENCOURT, 2013). Ainda segundo o jurista, a decisão monocrática do Desembargador Belizário de Lacerda, priorizou os direitos dos adultos em detrimento dos direitos da criança. O posicionamento do jurista foi certeiro, uma vez que, se essa decisão prosperar, fará com que a criança pague duas vezes por um erro do qual fora vítima antes de tudo. Ou seja, não apenas a criança fora submetida a princípio aos maus tratos e abandono de seus pais biológicas, como, agora, já estruturada e feliz, terá seu mundo destruído em razão de uma decisão que trata de sua filiação como direito real, ignorando o amor fraterno construído, e a transferindo entre as famílias como se dela fossem verdadeiros proprietários. Não obstante, é extremamente importante ponderar acerca do impacto desta decisão sobre o instituto da adoção no Brasil, que, por si só, já é um processo extremamente exaustivo, burocrático e desgastante para os candidatos a pais. Na ocasião da decisão monocrática favorável aos pais biológicos, o Relator do caso embasou-se na Lei Nacional de Adoção, que dita haver a necessidade de que se esgotem todas as possibilidades de permanência da criança ou do adolescente na família de origem antes de optar pela adoção, além dos laudos confirmando a cessação da degradação e das condições nocivas à permanência do menor junto ao seio da família natural. Foi também apontado pelo Desembargador, a importância da convivência da menor com os outros seis irmãos biológicos.
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Contudo, é necessário ressaltar novamente, que é preciso acima de tudo, considerar a melhor situação para a criança, respeitando o princípio do melhor interesse do menor. Na verdade, a legislação determina que seja atendida a situação da forma mais favorável ao menos, sendo certo que a aplicação do ECA e da Lei de Adoções no caso em tela fora feita de maneira descriteriosa. Em uma situação hipotética, em que a criança houvesse ao menos conhecido e criado laços afetivos com os pais e irmãos biológicos, até poderia ser considerado um possível retorno, porém isso jamais aconteceu. Lado outro, os mencionados vínculos foram desenvolvidos com a nova família, onde a menor já se encontra totalmente adaptada, e, data vênia à decisão do douto julgador, se a convivência com os irmãos é de tamanha importância, deve-se levar em consideração também os vínculos criados com a sua irmã adotiva, que, esta sim, a conheceu, amou, zelou e teme como qualquer outra irmã temeria, pela perda de sua querida caçula. Nesse sentindo, manifesta novamente o Dr. Sávio Bittencourt que “a criança ou o adolescente tem de ficar junto com os irmãos quando não há alternativa melhor. Mas, neste caso, a menina já está adaptada à família adotiva, Essa decisão encerra um profundo preconceito contra a adoção”. Por conta do caso concreto, a indignação tem sido geral, ocorrendo, segundo a Presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Suzana Schetinni, profundo receio entre os casais que pretendem adotar crianças e adolescentes. A situação tem provocado medo até mesmo naqueles pais guardiões, que já se encontram em processo de adoção dos filhos. Como visto os danos de uma possível reversão de guarda em favor dos pais biológicos, seriam profundos e irreversíveis à criança neste caso. Encerra-se esse tópico com as brilhantes palavras do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Dr. Nelson Calandra, pai de cinco filhos, sendo um deles adotado, o qual atuou vários anos como Juiz de Vara de Família: Como juiz dessa área, eu sempre me preocupei com essas alterações de guarda. A criança não é uma bola, não é um bambolê, para ficar passando de uma mão para outra. Os interesses da criança devem ser prioridade. Essa questão de só olhar para o adulto, e não para a criança, pode provocar uma decisão equivocada, que, muitas vezes, vai causar um dano grave à criança (CALANDRA, 2014). 5.4 Possíveis respostas para o caso concreto Muito se discute sobre uma possível solução para o caso, sem que afete o menor, onde os danos sejam senão inexistentes, mínimos. Fala-se bastante no instituto da guarda compartilhada para a resolução do caso, situação onde se agradaria um pouco os dois lados. O Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Dr. Nelson Calandra, se manifestou nesse sentindo, apontando a guarda compartilhada como uma saída para o polêmico caso: “A família biológica tem o direito de ter o filho perto; a família adotiva, também. A guarda compartilhada é uma ferramenta que pode resolver. Devemos compartilhar o amor, e não disputar o ódio”. Em contrapartida, o procurador Sávio Bittencourt, não acha que a guarda compartilhada seria uma solução justa: É uma forma de não romper o poder da família biológica, que, na verdade, deu origem a tudo isso. Se essa família se recuperou, agora já é tarde demais, pois a criança já estabeleceu outros vínculos. A guarda compartilhada só vai criar confusão na cabeça da criança (BITTENCOURT, 2013). Sobre o instituto da guarda compartilhada ser aplicada no caso concreto em questão, o estudo do presente trabalho compartilha da
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opinião do Dr. Sávio Bittencourt (2013), uma vez que a aplicação da guarda compartilhada não privaria a criança de traumas, podendo até ser pior para o seu desenvolvimento psicológico. Apesar de não ser uma alternativa descartável, certamente não é a melhor solução, principalmente porque a prioridade é sempre olhar o que é melhor para a criança, e não o que for mais satisfatório para as partes litigantes. Da mesma forma, por meio do presente estudo conclui-se que a melhor solução seria a alteração do instituto da guarda provisória no processo de adoção. Em outras palavras, os candidatos a pais, que já estiverem em processo de adoção, não deveriam possuir uma guarda provisória tão frágil e facilmente suscetível a reversibilidade, mesmo porque, como já dito, o processo de adoção é extremamente longo, podendo ocorrer em vários outros casos o que vem ocorrendo no caso concreto analisado. O jurista aplicador da lei deve exercer sua hermenêutica no sentido de se extrair do ordenamento interpretação que seja mais acolhedora aos princípios do Direito, observando sempre no caso concreto as particularidades que, mesmo amparadas pela lei, podem ir de encontro aos princípios mencionados.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso EM: 14, OUT, 2014.
6 CONCLUSÃO Diante de tudo que foi exposto no presente artigo, conclui-se que a determinação de reintegrar uma criança a uma família que descumpriu o seu dever perante sua filha e a abandonou, fere o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, mesmo com o que tenha motivado esse abandono não exista mais, em algum momento de sua história se desfizeram de sua vida. No entanto o melhor interesse da menor seria junto a sua família afetiva, que lhe concederam nos últimos anos a garantia de saúde, educação e segurança. Harmonizando- a em um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. Considerando que a menor já se afeiçoou aos pais adotivos, através da convivência, que gerou relações familiares entre eles, os laços de sangue não é o que mais importa e sim o afeto. É preciso distinguir os conceitos de “pais verdadeiros” e de “pais genéticos”. No caso em questão, não restam dúvidas serem os pais guardiões os verdadeiros pais da criança, uma vez que, independentemente do que a lei positiva tenha a dizer, pai verdadeiro é quem deu amor, quem assumiu as responsabilidades, cuidou e acompanhou o desenvolvimento. Para se assegurar que a tutela do menor seja observada em cada caso concreto, a lei que rege a vida dos infantes deve ser aplicada em consonância com todos os princípios constitucionais pertinentes. A interpretação hermenêutica não pode ser afastada das considerações do julgador. Assim, no caso concreto sob análise, a solução apresentada não parece ter atentado para esta questão, aplicando normas positivas em detrimento do princípio do melhor interesse do menor.
FAMÍLIA. 1ª ed. Minas Gerais: Editora e Livraria Del Rey. 2009
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda no Curso de Direito da Universidade Newton Paiva.
REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Sávio. A nova lei de adoção: do abancono à garantia do Direito à convivência familiar e comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013
2 Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. ** Valéria Edith Carvalho de Oliveira; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
BRASIL. Código Civil. Lei N. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
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DIREITO COMPARADO: SISTEMA DE APOSENTADORIAS PREVIDENCIÁRIAS DO BRASIL E DO CHILE Juliana Vilela Dias1 Anderson Avelino de Oliveira Santos2 Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo tem como objetivo trazer uma abordagem do Direito Previdenciário a luz dos ordenamentos jurídicos do Brasil e do Chile, mostrando que o estudo desse ramo do direito alcança níveis internacionais. O trabalho tem como ponto central conhecer as normas de direito previdenciário em vigor no Chile, analisando sua evolução histórica, política e social até atingir o patamar de desenvolvimento atual. A comparação com o sistema previdenciário brasileiro também é foco do presente estudo, que ao final pretende concluir pela aplicação ou não de medidas implementadas por aquele país no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Sistema Previdenciário; Aposentadoria; Pensões; Evolução; Aplicação. SUMÁRIO: 1.Introdução; 2. Influência do Banco Mundial na criação do Sistema Previdenciário Brasileiro e Chileno; 3. Sistema Previdenciário Simples e Sistema Previdenciário de Capitalização; 4 Sitema previdenciário Chileno; 4.1 Evoulução Histórica do Sitema Previdenciário do Chile; 4.2 Carcterística do Sistema previdenciário Chileno; 5. Sistema de Aposentadorias no Chile; 6. Sistema de Aposentadoria no Brasil; 6.1 Aposentadoria por Invalidez; 6.2 Aposentadoria por Idade; 6.3 Aposentadoria por Tempo Serviço; 6.4 Aposentadoria Especial; 7 Conclusão; Referências; Anexo I
1 INTRODUÇÃO A Previdência Social é um importante meio de distribuição de renda no mundo, por isso a preocupação de organismos internacionais com esse ramo do Direito se faz pertinente. Aqui é importante mencionar que o Banco Mundial exerce uma grande influência na elaboração das normas de Direito Previdenciário a serem seguidas por cada Estado. Nas décadas de 80 e 90, o sistema previdenciário em vigor no Chile foi referência de modernidade e sucesso, utilizando-se de um sistema de capitalização, diferentemente dos demais países, o que o tornou um modelo para os países do mundo todo, principalmente para a América Latina. A estrutura do sistema previdenciário do Brasil e do Chile se assemelha em muitos pontos e se afasta em muitos outros. Contudo, os dois países enfrentam problemas semelhantes quanto à mudança na estrutura socioeconômica. A redução na arrecadação devido a novas formas de relações de emprego, como trabalhos informais, trabalhos autônomos e prestadores de serviços é fator preocupante para os dois países juntamente com o aumento da perspectiva de vida, diminuição da população economicamente ativa, a diminuição da natalidade e o numero de ingresso de novos contribuintes para esses sistemas. A forma como é feita a gestão do recurso previdenciário e também a demora para acontecer uma reforma previdenciária eficaz também é fator importante a ser analisado, principalmente no Brasil. Assim, os dois países procuram encontrar um equilíbrio financeiro que trabalhe juntamente com a viabilidade econômica da seguridade social juntamente com a influência de uma série de fatores, como o social, econômico, político e também legal. 2 INFLUÊNCIA DO BANCO MUNDIAL NA CRIAÇÃO DOS SISTEMAS PREVIDENCIÁRIOS BRASILEIRO E CHILENO A previdência social está diretamente ligada ao desenvolvimento econômico e social dos países. Para estudar o sistema previdenciário brasileiro em relação aos outros sistemas previdenciários no mundo é necessário falar sobre os modelos teóricos sugeridos pelo Banco Mundial (BIRD) para implementação em cada ordenamento jurídico.
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O referido modelo teórico baseia-se nos modelos sociais europeus que tem como fundamento os mesmos temas cosagrados pela Constituição da República do Brasil no ano de 1988. O Banco Mundial sugeriu reformas estruturais em forma de três pilares. De acordo com Paulo, Borges e Rosa (2011, p,3) esses pilares se dividem em: Primeiro Pilar: formado por todos os programas com financiamento obtido pelo Estado, cujo objetivo seja redistribuir renda aos idosos pobres; Segundo Pilar: conjunto de programas que buscam aliviar a imprevisão, forçando os trabalhadores, cobertos pelo plano, a destinar uma parte de sua renda laboral para construir poupança e prover renda para velhice; Terceiro Pilar: conjunto de programas que tem por objetivo aliviar a imprevisão oferecendo incentivos fiscais (subsídios, por exemplo) aos indivíduos que adquirem voluntariamente planos de previdência que os garanta poupança e seguro contra risco não programados. [...] Existe também o pilar zero sugerido pelo Banco Mundial adotado por alguns países, como o Brasil, que visa conceder benefício assistencial para reduzir os índices de pobreza.(Paulo; Borges; Rosa, p, 4) Nesse contexto, o primeiro pilar do Brasil é composto pelo regime geral, pelo regime dos servidores públicos e ainda pelos benefícios assistenciais. O segundo pilar é composto pelo regime privado limitado aos empregados de associações ou entidades classistas ou setoriais e é facultativo. Já o terceiro setor é composto também pelo regime privado, mas aqui é aberto a qualquer cidadão. O sistema previdenciário Chileno, que adotou o sistema de capitalização individual após reforma também é dividido em três pilares conforme os modelos teóricos sugeridos pelo Banco Mundial. Dessa forma, Paulo, Borges e Rosa (2011, p, 11) exemplificam os pilares chilenos da seguinte forma. [...] O primeiro pilar tem caráter redistributivo e é financiado pelo orçamento público, sendo composto pelos seguintes programas: pensões não contributivas (Pensões Assistenciais - PASSIS) destinadas aos idosos pobres que não contribuíram para obter a aposentadoria, ou tendo contribuído, não fizeram
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pelo tempo mínimo de 20 anos. Pensões mínimas garantidas pelo Estado: destinadas aqueles trabalhadores que cujas contribuições aos fundos de pensões – por razão de desemprego, baixa renda ou informalidade- são insuficientes para financiar sua aposentadoria. [...] Segundo pilar: constituído por um sistema geral, compulsório, privado, gerido por estrutura própria. A associação dos fundos de pensões - AFP - administra a poupança destinadas à aposentadorias. Os trabalhadores que tem a capacidade de autofinanciar sua aposentadoria, contribuem a pretexto de aliviar as necessidades financeiras do primeiro pilar. [...] Terceiro Pilar: complementar os outros dois funciona como mecanismo de poupança voluntária. Seu objetivo é dar oportunidade aos trabalhadores que tem capacidade de ter aposentadoria superior ao teto do segundo pilar, como também permitir aos afiliados antecipar a data da aposentadoria ou suprir períodos sem contribuição, ou, ainda, optar por uma aposentadoria semelhante ou superior ao salário ou renda. Conclui-se que o Chile optou por adotar um sistema não redistributivo em que a participação do Estado como provedor de benefícios assistencialistas só acontece no primeiro pilar e que os demais pilares contribuem para diminuir o déficit da previdência. Desta forma, para os dois últimos pilares o Estado participa criando normas fiscalizando e punindo os fundos de pensões, responsável por determinar os seus rendimentos. O Estado participa ainda na complementação das aposentadorias que não atingiram com o fundo de pensões o mínimo determinado por lei. Assim, não se pode afirmar que o sistema Chileno de pensões é totalmente privado, sujeito somente às regras de mercado. 3 SISTEMA PREVIDENCIÁRIO SIMPLES E SISTEMA PREVIDENCIÁRIO DE CAPITALIZAÇÃO Existem dois tipos de sistemas previdenciários, denominados de sistema previdenciário simples e sistema previdenciário de capitalização ou sistema de repartição de capital. O sistema previdenciário simples tem como ponto central a solidariedade. Também é adotado na Alemanha, França e Estados Unidos. Em nosso ordenamento jurídico tem previsão no artigo 201 da Constituição da República e uma característica dos Estados da social democracia. Esse sistema, de uma forma bem simples, conta com as com contribuições realizadas pelos trabalhadores que estão na ativa para arcar com os benefícios daqueles que já se aposentaram ou recebam algum benefício previdenciário. O referido sistema também tem como objetivo garantir o mínimo existencial ao maior número de pessoas possível, e por isso se faz necessário à existência de benefícios assistências. No Brasil, o caixa da previdência social conta com a contribuição de toda a sociedade, que de forma indireta e direta contribuem para sua manutenção. Ainda quanto ao primeiro sistema, tem-se que nem sempre o benefício concedido condiz com as contribuições efetivamente pagas, o que não acontece no segundo sistema, que ainda será explicado. Para solucionar esse problema, países desenvolvidos que adotam o sistema simples, e posteriormente o Brasil inspirado na experiência desses Estados, optaram pela instituição dos sistemas de previdência complementar, em que as empresas conjuntamente com seus colaboradores contribuem para uma previdência complementar ao regime geral. Contudo, no Brasil, o sistema de previdência complementar na sua grande maioria é composto por contribuintes com condições financeiras mais favorecidas.
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No sistema de capitalização adotado no Chile, cada contribuinte é responsável pela constituição do seu próprio fundo que visa assegurar a cobertura de eventos imprevisíveis e também de aposentadoria por tempo de contribuição. O segundo modelo de sistema se afasta muito do previsto na constituição brasileira uma vez que não é possível enxergar nela o principio da solidariedade consagrado na magna carta. É importante informar nesse ponto do trabalho que um sistema não anula o outro, e que esses podem conviver harmonicamente. Ao contrário, o mais indicado pelos especialistas, é que realmente eles coexistam, uma vez que o que é pregado pelo principio da solidariedade é muito importante para sobrevivência e desenvolvimento da previdência em todos os Estados. Nesse sentido, Martinez (1996, p, 223) explana que: As manifestações de lado a lado, às vezes radicais, parecem indicar solução conciliatória, pois os países não apresentam habitat ideal para cada um deles, salvo num e no outro caso. O correto parece ser adequar-se cada uma das nuanças acentuadas a realidade do cenário enfocado, respeitado as particularidades. Por exemplo, definir-se a capitalização para os benefícios programados de repartição simples para os não programados. 4 SISTEMA PREVIDENCIÁRIO CHILENO 4.1.Evolução histórica do sistema previdenciário do Chile Entre os anos de 1940 e 1950 o Chile foi marcado por grandes movimentos sociais. Também nessa época aumentaram o numero de participantes do sistema previdenciário daquele país, principalmente em 1952 após sua reforma com a implementação de novos benefícios previdenciários no sistema. Segundo Munhós (2007, p, 46) os novos benefícios foram ‘’Pensão de Sobrevivência, Subsídio a Maternidade, Melhorias Substanciais nas pensões em invalidez e velhice’’. Esses novos benefícios ocasionaram novas taxas incidentes sobre a folha de pagamento dos trabalhadores que se tornou insustentável alguns anos depois, principalmente nos anos de 1970 e 1980, momentos em que a quantidade de ingressos no sistema previdenciário já não era capaz de cobrir os gatos. Em 1979, houve uma nova mudança no requistos para concessão de aposentadoria que alterou a idade de 60 anos para 65 anos para os homens e 50 anos para 55 anos para as mulheres, o que ocasionou uma melhoria no caixa da previdência social. Entre os anos de 1950 e 1980 houve uma diminuição drástica dos contribuintes, o que gerou déficit orçamentário sem precedentes. Quanto a reforma do sistema previdenciário Chileno Munhós (2007, p, 52) ensina que: Em 1981, com a mudança para o sistema que vigor até o presente momento, o sistema passa para a forma de repartição para o sistema de capitalização, dentro de um cenário com variáveis macroeconômicas importantes como, por exemplo, as mudanças no mercado de trabalho e no mercado de capitais incentivados pelos recursos das AFP que passam a ser direcionados para o mercado de capitais e pela redução nas taxas de contribuição que permitem aos trabalhadores um ganho real de poder aquisitivo e passa a incentivar o consumo. Essa reforma possibilitou uma diminuição das taxas incidentes da folha de pagamento, taxas essas que se tornaram insustentáveis na década de 70 a 80, possibilitando assim um aumento no poder de compra, e consequentemente mudando a estrutura econômica e social do país em uma época em que já se percebia a mudanças na estrutura das relações de trabalho.
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4.2. Características do Sistema Previdenciário Chileno A normatização do sistema previdenciário chileno está previsto na circular de número 1.302, superintendência de pensões da AFP e no Decreto lei 3.500/80. O artigo 1º do referido Decreto aduz que: Artículo 1°.- Créase un Sistema de Pensiones de Vejez, de Invalidez y Sobrevivencia derivado de la capitalización individual que se regirá por las normas de la presente ley. La capitalización se efectuará en organismos denominados Administradoras de Fondos de Pensiones. Os Fundos de Administração de pensões, chamados de AFP, constituídos na modalidade de sociedade anônima, são responsáveis pelo recolhimento, administração e investimento das contribuições previdenciárias no Chile. As administradoras tem previsão no artigo 3º do Decreto 3.500/80: Artículo 23.- Las Administradoras de Fondos de Pensiones, denominadas también en esta ley Administradoras, serán sociedades anónimas que tendrán como objeto exclusivo administrar Fondos de Pensiones y otorgar y administrar las prestaciones y benefícios que establece esta ley. Cada Administradora deberá mantener cuatro Fondos,que se denominarán Fondo de Pensiones Tipo B, Fondo de Pensiones Tipo C,Fondo de Pensiones Tipo D y Fondo de Pensiones Tipo E. Asimismo, la dministradora podrá mantener un Fondo adicional, que se denominará Fondo de Pensiones Tipo A. Los saldos totales por cotizaciones obligatorias, por depósitos convenidos y por cotizaciones voluntarias, así como la cuenta de ahorro voluntario y la cuenta de ahorro de indemnización a que se refiere el artículo 165 del Código del Trabajo, podrán permanecer en distintos tipos de Fondos. En todo caso, la cuenta de ahorro de indemnización será asignada al Fondo Tipo C, cuando el trabajador no opte por ningún tipo de Fondo. Esses fundos devem aplicar as contribuições recolhidas no mercado financeiro, com intuito que essas gerem os rendimentos necessários para serem os meios de pagamentos dos futuros benefícios previdenciários. As administradoras de fundos de pensões são obrigadas a disponibilizar para seus associados os valores de ganho real, devem realizar as exigências contábeis previstas em lei separadamente dos fundos, devem ter também patrimônio próprio diferente dos fundos de pensões, que apresentam características de impenhorabilidade. Por ser uma sociedade anônima, que visa lucro, e não uma instituição púbica, as administradoras devem ser remuneradas, o que ocorre de forma livre, sendo que todos os contribuintes associados à determinada administradora deve arcar com o pagamento. Atualmente no Chile existem poucas administradoras e talvez esse seja o ponto em que o sistema de capitalização adotado pelo Chile mais peque na sua escolha, uma vez que essas sociedades não apresentam muito interesse em concorrerem entre si, oferecendo assim taxas de administração muito próximas e no valor que acharem adequados. No intuito de amenizar as consequências ruins dessa falta de concorrência, contribuinte tem opção de mudar de uma administradora de fundo para qualquer outra existente e até mesmo de realizar um leilão de todos os valores que já fazem parte do seu fundo, a fim de encontrar a instituição que ofereça custos mais baixos para sua administração. Uma característica inerente ao sistema previdenciário adotado pelo Chile é a dependência do mercado externo, o que o deixa muitas vezes vulnerável, uma vez que depende da rentabilidade da carteira de investimentos que são aplicadas em papeis de mercado financeiro.
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O empregado pode escolher também a modalidade de como quer contribuir, existindo quatro, quais sejam, retirada programada, renda vitalícia imediata, renda temporal com renda diferida e renda vitalícia imediata com retirada programada. O empregado ainda pode escolher entre cinco tipos de fundos que variam entre os que apresentam maior segurança até o de menor segurança, medido pelo grau de risco de investimento. É preciso informar que nem sempre os fundos de pensões dos trabalhadores geram os valores esperados, motivo de grande descontentamento dos contribuintes de forma geral, o que demonstra que apesar do sistema se diferencia tanto do vivenciado no Brasil, aquele não é livre de falhas e também precisa ser reformulado. 5 SISTEMA DE APOSENTADORIAS NO CHILE O direito a seguridade social está previsto na Constituição do Chile de 1980 no capítulo III, artigo 19, item 18. CAPITULO III De los derechos y deberes constitucionales Art. 19. La Constitución asegura a todas las personas 18º El derecho a la seguridad social. Las leyes que regulen el ejercicio de este derecho serán de quórum calificado. La acción del Estado estará dirigida a garantizar el acceso de todos los habitantes al goce de prestaciones básicas uniformes, sea que se otorguen a través de instituciones públicas o privadas. La ley podrá establecer cotizaciones obligatorias. El Estado supervigilará el decuado ejercicio Del derecho a la seguridad social; No Chile existe a previsão para concessão de pensões mínimas, dessa forma, Munhós (2007, p, 108) ensina que: No sistema Chileno, todo individuo que cumprir o requisito básico a seguir, tem direito a uma pensão mínima, garantida pelo Estado, mesmo quando não possuírem saldo suficiente em sua conta para apagamento. O pagamento da diferença é feito com recursos do Estado que poderão ser pagos como complemento da diferença mensal ou, primeiramente, utilizando-se dos recursos da conta individual acumulada no sistema privado pelo participante, e depois da utilização desse recurso, o Estado passa a pagar o déficit. O requisto básico para o recebimento de pensão mínima é a contribuição por no mínimo vinte anos. Quanto às pensões mínimas, Santiago (2003, p, 3) conclui que: A principal limitação do sistema privado de pensões chileno consiste em que quase metade da população ativa não está coberta pelo sistema na sua forma atual. Isso devido ao fato de que para obter-se a pensão mínima garantida pelo Estado, uma pessoa necessita ter contribuído por pelo menos 240 meses, ou 20 anos, e essa meta não será alcançada por quase metade da força de trabalho. O sistema de pensões do Chile tem regulamentação no decreto lei 3.500/80. Assim, para a chamada aposentadoria por idade brasileira tem-se a pensão por velhice chilena e para a aposentadoria por invalidez tem-se a pensão por invalidez. A pensão por velhice chilena adota o mesmo parâmetro de idade utilizado no Brasil, 60 anos de idade paras as mulheres e 65 anos de idade para os homens, contudo exige vinte anos de contribuição. A pensão por invalidez tem previsão no artigo 4º do decreto lei 3.500/80³, deve ser examinado por uma junta médica que emitirá um parecer concluindo pela incapacidade total com perda da capacidade de trabalho de dois terços, ou incapacidade parcial, com perda da capacidade de trabalho igual ou superior a cinquen-
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ta por cento até dois terços. A decisão da junta médica que concluiu pela incapacidade total terá caráter de decisão definitiva, mas para a incapacidade parcial o beneficiário deverá se sujeitar a uma reavaliação após três anos a constatação dela, sob pena de corte do benefício caso não compareça. O beneficiário da pensão por invalidez deve ainda contar com no mínimo dois anos de contribuição, durante os últimos cinco anos anteriores da data em que foi considerado incapaz. Caso a incapacidade decorra de um acidente, para que tenha direito ao benefício, esse deve ter ocorrido depois de sua filiação aos fundos de pensões, o segurado deve estar contribuindo. Para o sistema chileno a incapacidade decorrente de tentativa de suicídio é considerada para os efeitos de aposentadoria por invalidez como acidente. Se for o primeiro vínculo do beneficiário e o acidente acontecer em menos de dois anos de sua filiação esse deve apresentar no mínimo dezesseis meses de contribuição. Preenchido os requisitos para concessão de pensão o beneficiário poderá escolher entre quatro formas de recebimento dos valores de pensão, sendo que esses são modalidades de resgate e pagamento, quais sejam, retirada programada, renda vitalícia imediata, renda temporal com renda vitalícia diferida e renda vitalícia imediata com retirada programada, nos termos do artigo 61 do decreto lei 3.500/80. Artículo 61.- Los afiliados que cumplan los requisitos establecidos en el artículo 3° los afiliados declarados inválidos totales y los afiliados declarados inválidos arciales, una vez ejecutoriado el segundo dictamen, podrán disponer del saldo de su cuenta de capitalización individual con el objeto de constituir una pensión. La Administradora verificará el cumplimiento de dichos requisitos, reconocerá el beneficio y emitirá el correspondiente certificado. Para hacer efectiva su pensión, cada afiliado podrá optar por una de las siguientes modalidades: a) Renta Vitalicia Inmediata; b) Renta Temporal con Renta Vitalicia Diferida; c) Retiro Programado, o d) Renta Vitalicia Inmediata con Retiro Dessa forma, os valores depositados nos fundos administrados pelas AFP’s podem ser utilizados como meio de prover mensalidade para seu contribuinte ou utilizado para contratar uma companhia de seguro. A flexibilidade do sistema de capitalização adotado pelo Chile permite que o beneficiário combine as duas formas de recebimento ditas acima. Acerca dos quatro tipos de pagamentos Munhós (2007, p, 132, 133, 134) ensina que: [...] para opção por retirada programada se o pensionista estiver no regime de pagamento preliminar a administradora deverá efetuar o primeiro pagamento da pensão definitiva no pagamento seguinte. Caso contrário deverá efetuar o pagamento dez dias após a escolha da modalidade de pensão.’’ [...] Quanta a opção de renda vitalícia imediata ‘’o pagamento será efetuado no mês de transferência. Caso o segurado já se encontre recebendo pagamento preliminar, dentro de dez dias úteis após o recebimento da apólice, a administradora deverá efetuar os pagamentos na modalidade de retirada programada, desde a solicitação até o mês anterior à transferência.’’ [...] Para a modalidade de opção de retirada programada com renda vitalícia imediata ‘’ a companhia de seguros iniciará o pagamento da renda vitalícia a partir do mês da primeira transferência. A administradora deverá, no momento, iniciar o pagamento de retirada programada informada no Certificado de Ofertas para essa modalidade. Se o segurado não se encontrar recebendo o pagamento preliminar, a administradora pagará a primeira parcela, nos dez dias úteis ao recebimento da apólice. Para aposentadoria por tempo de contribuição brasileira não te-
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mos uma equivalência no regime chileno. Diante da ausência de previsão de aposentadoria especial no Chile, os trabalhadores que estiverem sujeitos a condições especiais de labor fazem jus à redução do tempo exigido para aposentadoria por velhice de dois anos a cada cinco anos trabalhado em condições especiais, até o limite de dez anos. 6 SISTEMA DE APOSENTADORIAS NO BRASIL O regime geral de previdência social brasileiro está regulamentado na Constituição da República e também pelas Leis 8.212/91, 8.213/91 e Decreto Lei 3.048/90. No presente trabalho será abordado somente o estudo das aposentadorias previstas no artigo 201 da Constituição da República e artigo 18, inciso I da Lei 8213/91. Art. 201 - A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada § 7º - Assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços: I - quanto ao segurado: a) aposentadoria por invalidez; b) aposentadoria por idade; c) aposentadoria por tempo de serviço; c) aposentadoria por tempo de contribuição; d) aposentadoria especial; 6.1 Aposentadoria por invalidez A aposentadoria por invalidez está prevista nos artigos 42 a 47 da lei 8.213/91 e artigos 43 a 50 do decreto 3.048/99. A concessão de aposentadoria por invalidez está sujeita ao preenchimento da carência de doze meses de contribuição e será devida ao segurado que for considerado incapaz pra o trabalho, insuscetível de reabilitação para o exercício da sua atividade que lhe garanta a subsistência, por meio da realização de uma perícia médica a cargo da Previdência Social. A concessão desse benefício não está condicionada ao recebimento ou não de auxílio doença anterior ao se requerimento. A doença ou lesão que o segurado já era portador ao filiar-se ao regime geral de previdência não conferirá direito ao segurado à aposentadoria por invalidez, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa lesão, nos termos do artigo 42 § 2º da lei 8.213/91. Quando a incapacidade tiver origem em um acidente de qualquer natureza ou o segurado estiver acometido de algumas das afecções previstas na lista elaborada pelo Ministério da Saúde a concessão de aposentadoria por invalidez independerá de carência. A renda mensal do benefício será de 100 % do salário benefício. É possível contar com um acréscimo de 25% par aqueles segurados que dependa de assistência permanente em casos de aposentadoria, não cabendo para auxílio doença.
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6.2 Aposentadoria por idade A aposentadoria por idade, com previsão constitucional no artigo 201, §7º, II e também nos artigos 48 a 51 da Lei 8.213/91 e também nos artigos 51 a 55 do Decreto 3.048/99, visa assegurar o evento tido como idade avançada. Tem como requisito o cumprimento de carência de 180 contribuições e o requisito cumulativo de idade sendo de 65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres. Paras os trabalhadores rurais que exerçam atividade em regime de economia familiar é reduzido em cinco anos o requisito de idade mencionado acima, devem assim comprovar o efetivo exercício da atividade rural por um período igual ao número de meses exigidos como carência para concessão do benefício. Porém, quando o contribuinte trabalha apenas parte do tempo de contribuição como trabalhador rural o segurado fará jus ao benefício preenchido o requisito de idade quando presente as 180 contribuições. Para esses casos, o calculo do valor do benefício será apurado sem a utilização do fator previdenciário, de acordo com Bragança (2011.p.318): No cálculo de renda mensal do benefício, o salário benefício será apurado pela média aritmética simples dos maiores salários contribuições, correspondendo a 80% de todo o período contributivo. No período que se enquadrou como segurado especial, o salário de contribuição será considerado como salário mínimo. Apurado o salário de benefício que poderá ser superior a um salário mínimo, ainda como segurado especial, aplicar-se-à o percentual de 30%. É importante frisar que a renda mensal da aposentadoria por idade calculada nesses moldes não está restrita a m salário mínimo, mesmo que se trate de segurado especial. Para a aposentadoria por idade temos uma renda mensal do benefício de 70% (setenta por cento) do salário benefício mais 1% (um por cento) a cada grupo de doze contribuições mensais, que tem o limite em 30% (trinta por cento) 6.3 Aposentadoria por tempo de serviço Chamada atualmente de aposentadoria por tempo de contribuição, regulamentado pelo artigo 201, § 7º, I da Constituição Da República, artigos 52 a 56 da Lei 8.213/91 e artigos 56 a 63 do Decreto 3.048/99. Exige que o segurado tenha 35 anos de contribuição para homens e 30 anos para mulher, havendo uma redução de cinco anos para as aposentadorias de professores do ensino fundamental e ensino médio. Não há mais a previsão de aposentadoria proporcional na Constituição de acordo com a redação dos artigos 201 e 202, alterada pela Emenda Constitucional 20/98. Contudo, para aqueles contribuintes que tenham em 16/12/1998 adquirido o direito a aposentadoria com 30 anos para os homens e 25 anos para as mulheres possuem direito a requer a aposentadoria proporcional. Nesse caso, exige o requisto cumulativo de idade que corresponde a 53 anos de idade para homens e 48 anos de idade para mulher. 6.4 Aposentadoria especial A aposentadoria especial se assemelha a aposentadoria por tempo de contribuição, porém a apresenta redução do requisto de tempo de contribuição em virtude dos trabalhadores estarem sujeitos a condições especiais capazes de prejudicar sua saúde e/ou sua integridade física. Esse benefício previdenciário tem previsão nos artigos 57 e 58 da Lei 8.213/91 e no Decreto lei 3.048/99 e é devida ao segurado que comprove o trabalho por 15, 20 ou 25 que comprovem exposição contínua e habitual a agentes nocivos, que extrapolem o limite de segurança, podendo ser físico, químico e biológico.
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A legislação em vigor atualmente não exige requisto cumulativo de idade para ser cumprido, porém, é um benefício devido somente aos trabalhadores avulsos e empregados. O segurado especial por força do artigo 60, § 4º do Decreto 3.048/99 pode fazer jus à aposentadoria especial, embora seja extremamente difícil a comprovação dos requisitos para concessão da mesma. A comprovação da exposição aos agentes nocivos deve ser feito por meio de apresentação de Perfil Profissiográfico Profissional, o chamado PPP, que deve ser elaborado e fornecido pela empresa e apresentado pelo beneficiário no ato do requerimento da aposentadoria. 7 CONCLUSÃO O Brasil e o Chile optaram por adotar o modelo teórico sugerido pelo Banco Mundial para estruturação do sistema previdenciário. Apesar, desses países adotarem a mesma base teórica apresentam inúmeras diferenças quanto a legislação previdenciária em vigor, mas se assemelham em muitos pontos quanto aos problemas enfrentados. O sistema previdenciário Chileno visa assegurar a seus integrantes aposentadorias e benefícios equivalentes ao recebidos quando estes estavam na ativa. Já para o sistema previdenciário brasileiro, o objetivo maior é assegurar a seus integrantes benefícios capazes de proporcionar o mínimo existencial ao cidadão, já que podem existir aqueles que nunca contribuíram para a previdência e ainda assim terão direito a alguma espécie de benefício. Mesmo o sistema chileno apresentando esse objetivo como ponto central é preciso informar que existe insatisfação por parte dos contribuintes que ao final acreditam estar recebendo valor muito menor do que o efetivamente contribuindo. O sistema previdenciário brasileiro é dividido em regime geral, regime próprio, regime dos militares, regime complementar do servidor púbico e regime de previdência privada, sendo que o primeiro é que o detém maior número de contribuinte, por ser obrigatório, compostos por trabalhadores com carteira assinada. Quanto às formas previstas em lei para requerimento de benefícios os dois países se assemelham muito, principalmente nos últimos anos em que o INSS modernizou muito seu acesso, possibilitando o requerimento de benefícios e outros serviços como solicitação de cópia de processo administrativo e solicitação de contagem de tempo sejam feitos por meio de agendamentos pela internet. Contudo, no Chile é possível fazer ainda o requerimento também por meio dos correios, o que não é possível no Brasil. Quanto à concessão dos benefícios em espécie, há uma diferença ainda maior entres os países nos critérios para determinar se há ou não qualidade de segurado, nos termos utilizando no ordenamento jurídico brasileiro. No Brasil, os critérios são tempo de contribuição, perda da capacidade laborativa de forma definitiva ou temporária, idade, renda per capta e acontecimento de alguns eventos tidos como imprevisíveis, como reclusão em regime fechado ou semiaberto, acidente de trabalho e gestação. Para o sistema chileno, todo contribuinte, independente de possuir no seu fundo de investimento renda suficiente para arcar com o benefício em que se enquadra, pode ser beneficiário, precisando preencher somente alguns dos requisitos que são tidos como básicos. Não existe no Chile os benefícios de auxílio-reclusão, saláriofamília e salário maternidade, o que demonstra que o Estado não tem caráter assistencialista como no Brasil. Em casos de falecimento, em que é devido à pensão por morte, não existindo dependentes, os fundos de pensões chilenas se transformam em herança, o que não é possível no Brasil devido adoção do sistema simples.
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No Brasil o único gestor dos recursos destinados à previdência social é o poder público, o que não acontece no Chile, em que as administradoras dos fundos de pensões fazem esse papel, sendo que o Estado somente tem a função de regulamentar, fiscalizar e ora contribuir para aqueles que não possuem saldo suficiente em contas para receber benefício. Talvez esse seja o maior ensinamento do sistema adotado pelo Chile que o Brasil possa seguir, pois é capaz de evitar desvio de verbas para a corrupção. A diferença entre os países cresce ainda mais quando no Chile é obrigatória a contribuição de todos os trabalhadores, não existindo qualquer tipo de diferenciação, ou seja, autônomos e trabalhadores doméstico são obrigados a contribuir, enquanto no Brasil existe a classe dos segurados facultativos/opcional. A realidade no Brasil para os segurados considerados facultativos é que muitos deles não contribuíram em nenhum momento de sua vida ativa para a previdência, e que depois sem condições de continuar trabalhando, quando perdem a capacidade laborativa, vão recorrer aos benefícios assistenciais, contribuindo para aumentar o déficit da seguridade social. Essa é uma realidade constante dos trabalhadores brasileiros, que juntamente com outros fatores como globalização, mudança do cenário da economia, aumento de carga tributária e não existência de incentivos fiscais recorrem a informalidade e optam por não contribuir com o regime de previdência. Nesse contexto, pode-se concluir que os dois países alvos do presente estudo enfrentam problemas bem semelhantes quanto ao envelhecimento da população, aumento da expectativa de vida, baixa natalidade e mudança na estrutura básica das relações de trabalho, principalmente quanto ao aumento dos trabalhos informais, mostrando que seus sistemas previdenciários não se preparam para enfrentar essas mudanças tidas como significativas. A alteração nos padrões socioeconômicos apresentadas influenciam diretamente as questões previdenciárias, principalmente quanto à manutenção financeira dos benefícios feitos pelo Estado, aumentando os custos para os mesmos. Nesse sentido, a reforma do sistema previdenciário feito no ano de 1981 serviu para reduzir os custos ficais desse país, já que seus contribuintes participam ativamente geração dos recursos, porém não soluciona os problemas de manutenção do sistema. A reforma da previdência social brasileira deve permear por vários campos, principalmente econômico e social, garantindo que a previdência continue sendo um importante instrumento para garantir o equilíbrio social. Dessa forma, sugere-se uma reforma atuarial, equilibrando as contas de benefícios pagos e contribuições arrecadadas, projetos para enfrentar o aumento da expectativa de vida, a baixa natalidade e o aumento do trabalho informal, a desoneração da folha de pagamento das empresas para que aumente o numero de empregos com carteira assinada. Quanto à aplicabilidade do sistema previdenciário chileno no Brasil é preciso ter cautela, uma vez que os sistemas se diferenciam inicialmente já na sua formação, sendo um sistema de previdenciário simples e outro sistema previdenciário de capitalização. Dentro dessa analise, é preciso falar novamente que esses sistemas não se anulam, mas que ao contrário, devem coexistir. Nesse sentido, para o contexto do Brasil hoje seria impossível pensar em um sistema sem caráter assistencialista, mas devia se pensar em políticas para maior incentivo de investimento em previdência complementar, já que a previdência social brasileira visa apenas garantir o mínimo existencial. Uma saída interessante para minorar os efeitos do trabalho informal para o custeio da previdência social seria uma política de tributação sobre o lucro das empresas e não sobre a folha de pagamento, o que incentivaria um aumento no número de postos de trabalho formais.
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Conclui-se que o sistema previdenciário adotado pelo Chile não está livre de imperfeições, e que as políticas quanto ao setor de previdência de cada Estado devem encontrar soluções pertinentes e possíveis de ser aplicadas em sua realidade, apesar de termos bons exemplos. REFERÊNCIAS BERWAGNER, Jane Lúcia Wilhelm; FERRARO, Suzane Andrade. Previdência Social no Brasil e no MERCOSUL. Curitiba: Juruá Editora, 2010. BRAGANÇA, Kelly Huback. Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. BRASIL Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. BRASIL: Decreto Lei 3.048 (1999) Aprova o regulamento da previdência social, e dá outras providencias. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. BRASIL. Lei 8.213/91. Dispões sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras providencias. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. São Paulo: LTr, 2006. CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON. Manual para Elaboração e Apresentação dos Trabalhos Acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte, 2011 CHILE. Circular nº 1.302 da superintendencia de pesiones. Disponível em: http://www.spensiones.cl/files/normativa/circulares/CAFP1302.pdf acessado em 02/11/2014 CHILE. Circular nº 1.302. Disponível em: http://www.spensiones.cl/files/normativa/circulares/CAFP1302.pdf Acessado em:02/11/2014. CHILE. Decreto Lei 3.500/1980. Santigo.Presidência da República do Chile. Disponível em: http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=7147 acessado em 01/11/2014 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Primeiras Lições de Previdência Complementar. São Paulo: LTr, 1996. MUNHÓS, José Luiz. Previdência Social: Um Estudo Comparado do Modelo Brasileiro de Previdência Social Pública e do Modelo Chileno de Previdência. http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5330 Acessado em 04/10/2014. PAULA, Carlos de; BORGES, Bruna Romão; ROSA, Sergio. A Política de Fomento em Estudo Comparado. Disponível em http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/4_111005-153106-116.pdf. Acessado em: 25/10/2014 SANTIAGO, Manuel Jesus Hidalgo de. No Chile, aposentadoria sem alegria. http://www.condsef.org.br/portal3/greve/textos/previchile.pdf. Acessado em 01/10/2014. WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos. Previdência Privada. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. http://www.spensiones.cl/portal/institucional/578/w3-propertyvalue-6319.html acessado em 02/11/2014
NOTAS DE FIM 1 Acadêmica do 10º Período de Direito do Centro Universitário Newton 2 Mestre em Direito Público pela PUC/MG e Professor em Regime Integral da Newton Paiva 3 Tendrán derecho a pensión de invalidez parcial o total, los afiliados no pensionados por el DL 3500, de 1980, que sin cumplir los requisitos de edad para obtener pensión de vejez, y a consecuencia de enfermedad o debilitamiento de sus fuerzas físicas o intelectuales, sufran un menoscabo permanente de al menos el cincuenta por ciento o dos tercios de su capacidad de trabajo, respectivamente. (Circular nº 1.302). **Anderson Avelino de Oliveira Santos; Isabela Dalle Varela.
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GUARDA COMPARTILHADA: as vantagens e desvantagens trazidas por este instituto Mariana Morais Nascimento1 Daniela Recchioni Barroso2 Banca examinadora** RESUMO: O presente estudo pretende fazer uma análise do instituto da Guarda Compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, abordando pontos relevantes, sua evolução, e as mudanças obtidas com o advento da Lei n° 11.698/2008 – Lei da Guarda Compartilhada, que trata sobre a importância da manutenção do vínculo familiar entre os genitores, afim de que o menor não perca o elo entre estes após a separação. Busca-se demonstrar os pontos principais deste instituto, quais sejam, as vantagens e desvantagens, em quais casos a guarda será proveitosa e em quais ela não o é, buscando atender sempre o melhor interesse da criança e do adolescente. Ressalte-se a comparação entre outros tipos de guarda, destacando-se a guarda compartilhada. PALAVRAS-CHAVE: Guarda. Guarda Compartilhada. Proteção. Menor. Lei n°11.698/2008. Vantagens. Desvantagens. SUMÁRIO: Introdução. 1. O Instituto da Guarda. 1.1. Evolução histórica. 1.2. A guarda e o poder familiar. 2. Evolução da Guarda na Legislação Brasileira. 3. Espécies de Guarda. 3.1. A Guarda Unilateral. 3.2. A Guarda Conjunta ou Compartilhada. 4. Vantagens da Guarda Compartilhada. 5. Desvantagens da Guarda Compartilhada. 6. A guarda Compartilhada e o ECA. 7. A Lei 11.698/2008 – Lei da Guarda Compartilhada. 7.1. A Guarda Compartilhada e a Pensão Alimentícia. 8. Mediação Familiar na Resolução de Conflitos. 9. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO O objeto de estudo deste trabalho é o instituto da Guarda Compartilhada, sua importância, aplicação, vantagens e desvantagens no cotidiano brasileiro. Buscar-se-á demonstrar a eficácia da Guarda Compartilhada, comparando-a a outros institutos, analisando suas vantagens e desvantagens, ressaltando os critérios adotados para determinação do tipo de guarda, sob o prisma de todos os aspectos, favoráveis ou não, como por exemplo, os casos da não aplicação, sempre levando em consideração os interesses da criança e do adolescente. Neste tipo de guarda, o relacionamento entre os genitores deverá ser pacífico, para que no futuro, o menor não venha a sofrer uma alienação parental 3. Os benefícios deste instituto são notados no desenvolvimento social e escolar, pois uma vez mantido o vínculo familiar, não ocorrerão mudanças significativas no dia a dia ou problemas psicológicos na adolescência, em virtude da separação dos genitores. A Guarda Compartilhada dá um novo significado para “dividir”; pois nesta, dividir é participar conjuntamente, somar, mesmo diante de uma separação conjugal, com a permanência do vínculo familiar. 1 O INSTITUTO DA GUARDA 1.1 Evolução histórica A origem da família no direito brasileiro tem como base, a família romana que, por sua vez, passou pela influência do modelo grego. No Direito Romano4, compreendia- se por família, o conjunto de pessoas que viviam sob o domínio do pater potestas que era o ascendente comum vivo mais velho, detentor de todos os direitos, o responsável direto pela família. Era também chefe político, sacerdote e juiz e exercia total poder e decisão sobre a vida e morte dos filhos. Os filhos, nada tinham de seu. A família era mantida pelo homem, o chefe da sociedade conjugal, cabendo às mulheres apenas tarefas domésticas e de procriação. Com a morte do pater potestas, nem a matriarca e nem as filhas assumiam a família, tampouco assumiam o pátrio poder, pois este era transferido ao primogênito, ou a outros homens pertencentes ao grupo familiar.
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Para o doutrinador Caio Mário da Silva Pereira, O pater, era ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o culto dos deuses domésticos (penates) e distribuía justiça. Exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis), podia impor-lhes pena corporal, vendê-los, tirar-lhes a vida. A mulher vivia in loco filiae, totalmente subordinada à autoridade marital (in manu maritari), nunca adquirindo autonomia, pois que passava da condição de filha à de esposa, sem alteração na sua capacidade; não tinha direitos próprios, era atingida por capitis demintuio pérpetua que se justificava propter sexus infirmitatem et ingnoratiam rerum forensium. Podia ser repudiada por ato unilateral do marido. (PEREIRA,p. 31,2012). Várias transformações ocorreram ao longo do tempo e o Direito Romano também sofreu alterações. A carta Magna igualou a função de ambos os genitores no exercício da autoridade parental e expressa este importante princípio em seu artigo 5º, inciso I. O principio da igualdade na chefia familiar, está também expresso no Código Civil de 2002, nos incisos III e IV do artigo 1.566, os quais dispõem, in verbis: “São deveres de ambos os cônjuges: III – mútua assistência; IV – sustento guarda e educação dos filhos”. Assim, a igualdade de direitos, deveres e obrigações entre os genitores são asseguradas às relações familiares pela Constituição Federal, e bem assim pelo Código Civil, priorizando-se sempre, os interesses do menor. Consoante o disposto no artigo supracitado, Washington de Barros Monteiro, ensina que: A mulher deve desfrutar da mesma posição jurídica no casamento que ao homem se reconhece, conforme ditame constitucional. Em contrapartida, iguais obrigações lhe devem caber na contribuição para o sustento dos filhos, na obrigação de prestar alimentos se o marido deles necessitar. (MONTEIRO,2004,p. 9). E ainda, em seus artigos 227 e 229, a Constituição Federal de 1988 estabelece responsabilidades dos pais para com os filhos, as-
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segurando a estes, direito a ter um guardião, que os protegerão, prestando-lhes a assistência necessária na ausência de seus pais. A Carta Magna retirou o conceito de família do casamento, passando a considerar também como entidade familiar a união estável entre casais, a união de qualquer um dos pais com seus descendentes e, ainda, a família constituída por irmãos. Essa forma de igualdade está explícita no artigo 1.634 do Código Civil nos incisos de I à VII, trazendo aos genitores as seguintes atribuições: a) dirigir a criação e a educação dos filhos; b) ter os filhos em sua companhia e guarda; c) conceder aos filhos ou negarlhes consentimento para casarem; d) nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou se o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; e) representar os filhos, até aos 16 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; f) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; g) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. 1.2 A guarda e o poder familiar A guarda é um atributo do poder familiar, que é o direito e dever exercido por ambos os genitores, em igualdade de condições, não se alterando com o advento da ruptura do relacionamento, seja o casamento ou união estável. Assim, o poder familiar pertence a ambos os pais, confirmado pela Constituição da República de 19885. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, (2009), expressa em seu artigo 21, que o poder familiar será exercido igualmente pelo pai e pela mãe, não havendo qualquer distinção entre eles. Entretanto, o poder familiar poderá ser suspenso ou até mesmo extinto, caso se verifique abusos ou descumprimento dos deveres impostos aos genitores e que causem prejuízos aos filhos. No caso da suspensão, ocorre de forma temporária, porém a extinção será definitiva. O parágrafo único do artigo 1631 do Código Civil de 2002 assegura que “Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar é assegurado a qualquer um deles recorrer ao juiz para solução do desacordo”. E, ainda, o artigo 1633 do mesmo diploma, informa que: “o filho não reconhecido pelo pai, fica sob o poder exclusivo da mãe; se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo, dar-se-á tutor ao menor”. No tocante à responsabilidade civil, o doutrinador Sílvio de Salvo Venosa considera que: “A idéia é no sentido de que, em se tratando de pais separados, responsáveis pelos atos do menor, será o progenitor que detiver sua guarda”. Nos casos em que o divórcio for declarado judicialmente, não há mais entre os pais, uma convivência harmônica, recaindo nestas situações, a responsabilidade sobre o genitor que detém a guarda. 2 EVOLUÇÃO DA GUARDA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA O instituto da guarda obteve seu reconhecimento a partir do Decreto nº 181/1890, segundo o qual a sentença do divórcio determina que os filhos comuns e menores sejam entregues ao cônjuge inocente fixando a cota com que o culpado deverá concorrer para a sua educação6. Na sequência dos avanços obtidos, o Decreto nº 3.200/1941, tratava-se da guarda dos filhos naturais, onde o menor ficaria com o genitor que o reconhecera, ou com o pai.7 O Decreto nº 9.701/1946, sobre o desquite judicial, concedia aos pais o direito de visita aos filhos8. A Lei nº 4.121/1962 - Estatuto da Mulher Casada regulou a guarda dos filhos quando da separação litigiosa9. Outros diplomas também trouxeram sua contribuição, como a Lei nº 6.515 em 1977 - Lei do Divórcio, e, principalmente, a Lei nº 8.069 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que tem como tema primordial, a convivência do menor com a família, podendo este, ser colocado até em família substituta caso não seja possível ou in-
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viável permanecer com seus pais. Este último ressalta a guarda do menor órfão ou em situação de abandono.10 3 ESPÉCIES DE GUARDA 3.1 A guarda unilateral Esta é uma modalidade em que a guarda e o efetivo exercício da autoridade parental será atribuída a um dos genitores, tendo este a guarda física e cuidado dos filhos, restando ao outro a visitação e o encargo da pensão alimentícia. É determinada pelo consenso dos pais ou decisão judicial, onde o genitor não detentor da guarda, terá o direito de visitas e vigilância, porém não poderá participar direta ou indiretamente da educação dos filhos. Como vantagem da guarda unilateral, pretende-se que os filhos não passariam por constrangimentos sociais, principalmente no ambiente escolar, após a separação dos genitores, pois cessariam os constantes conflitos entre os eles. Porém, há outras situações igualmente importantes e que se torna uma desvantagem, que é o afastamento do genitor não guardião da companhia do filho, que não concorda e não entende a separação. Trata-se da modalidade de guarda em que os filhos se sentem rejeitados pelo não guardião, às vezes até tendo que escolher entre um e outro genitor, ficando até mesmo passíveis de sofrer uma alienação parental, e isto, com certeza, poderá vir a acarretar distúrbios psicológicos que poderão permanecer na adolescência e até mesmo vida adulta. 3.2 A Guarda Conjunta ou Compartilhada Esta modalidade, objeto de estudo do presente artigo, tem início em 1960, na Inglaterra, quando o sistema da commom law teve a iniciativa de romper com o tradicional deferimento da guarda única que sempre tendênciava para a figura materna, passando assim os tribunais a adotarem a conhecida split ordem, que significa repartir, dividir, os deveres e obrigações de ambos os cônjuges sobre seu filho.11 O Instituto repercutiu pela Europa12, sendo assimilado pelo direito francês, nos moldes do direito inglês, objetivando dirimir os prejuízos que as outras modalidades de guarda traziam para pais e filhos. Trouxe vários benefícios, os quais chamaram a atenção, fazendo com que fosse recepcionada por outros países como França, Canadá e depois Estados Unidos. Tanto assim, que o direito francês ratificou o posicionamento dos tribunais, de forma que todos os direitos inerentes aos pais sobre seus filhos continuassem após o divórcio. Depois da Europa, o instituto chega ao Canadá13. Entretanto, é nos Estados Unidos que é bem mais desenvolvido, tendo grande aceitação por parte da sociedade, citando a título de exemplo o Estado do Colorado, onde a maior parte da população segue o modelo de Guarda Compartilhada. No Brasil, a Guarda Compartilhada, já era autorizada pelo ordenamento jurídico desde o código civil de 1916. Mas, é somente com o advento da Lei nº. 11.698/08, que esta modalidade é instituída e disciplinada de forma expressa. 4. Vantagens da Guarda Compartilhada A grande vantagem da Guarda Compartilhada é a permanência da convivência dos filhos com os seus genitores, evitando, assim, que o menor fique sem contato com o genitor que não detém a guarda. Para ambos os genitores interessará o que for melhor para proteção do menor. Discorre o doutrinador Waldyr Grisard Filho: A guarda compartilhada atribui a ambos os genitores a guarda jurídica, ambos os pais exercem igualitária e simultaneamente todos os direitos-deveres relativos à pessoa dos filhos. Pressupõe uma ampla elaboração entre os pais, sendo que
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as decisões relativas aos filhos são tomadas em conjunto. (GRISARD FILHO, 2014, P. 211) Necessário salientar que, a co-participação de início seria difícil, levando em conta a companhia ou tempo de permanência, tendo em vista estarem os pais em residências diferentes. Assim, faz-se igualmente necessário, que o filho estabeleça um domicílio a partir do qual manterá seu ponto de referência. Grisard Filho ensina: Maior cooperação entre os pais leva a um decréscimo significativo dos conflitos, tendo por consequência o benefício dos filhos. É induvidoso, revela o cotidiano social, que os filhos de pais separados têm mais problemas que os de família intacta. Como é induvidoso que os filhos mais desajustados são os de pais que os envolvem em seus conflitos permanentes. (GRISARD FILHO, 2014, p. 211). O autor supra citado salienta ainda, ser indispensável o respeito mútuo entre os genitores, pois isso reflete indiretamente na vida e na formação do menor, que passa a conviver com seus genitores em residências diferentes. Outra vantagem da guarda compartilhada reside no fato de que o menor não precisa optar com qual genitor ele prefere ficar, pois isto causa um grande desgaste emocional, visto que o menor ficaria diante de uma situação difícil, pois sempre estaria magoando a um deles, e, se os pais não convivem com os filhos, acabam se afastando. Assim, a participação de ambos os pais na vida do menor é sem dúvida, o ponto relevante, pois não se desfaz o vínculo familiar, possibilitando aos pais tomarem conjuntamente, as decisões acerca dos filhos em desenvolvimento. É também vantajosa ao configurar uma forma de estimular o genitor não- guardião no cumprimento dos deveres assistenciais. Igualmente relevante, é o fato de diminuir a sobrecarga do genitor não guardião, pois com a guarda compartilhada, ambos os genitores tem participação igualitária nos deveres e obrigações quanto aos filhos, e isso, acaba gerando uma genuína consideração pelo ex – parceiro (a) em seu papel de pai ou mãe. 5. Desvantagens da Guarda Compartilhada Entretanto, a guarda compartilhada, não deve ser aplicada indistintamente. Sua aplicação será diante do caso concreto, pois é a partir deste, que se poderá determinar qual modalidade mais se adéqua àquela situação, lembrando que a Guarda Compartilhada, não seria adequada, quando um dos genitores apresentarem distúrbios ou vícios, que possam colocar em risco a vida do menor. Acerca disso, Grisard Filho salienta: Pais em conflitos constantes, não cooperativos, sem diálogo, insatisfeitos, que agem em paralelo e sabotam um ao outro, contaminam o tipo de educação que proporcionam a seus filhos, e, nesses casos, os arranjos da guarda compartilhada podem ser muito lesivo aos filhos. Para essas famílias, destroçadas, deve optar-se pela guarda única e deferi-la ao genitor menor contestador e mais disposto a dar ao outro o direito amplo de visitar. (GRISARD FILHO, 2014, P. 218) Sendo assim, não havendo respeito entre os genitores, se não aceitarem a divisão da guarda ou o fim do relacionamento, esta guarda não é a solução mais adequada, visto ser a convivência pacifica entre os genitores, inexistente, o que prejudicaria consubstancialmente os interesses do menor, e seria contrário aos objetivos desta modalidade. Nesse sentido, destaca-se o entendimento da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, in verbis:
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EMENTA: AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DE GUARDA - GUARDA COMPARTILHADA INVIÁVEL - INTERESSE DO MENOR - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. A guarda compartilhada requer cumplicidade, flexibilidade e cooperação dos genitores, não sendo possível em situações de grande atrito entre os pais. Sabe-se que o bem estar da criança e a sua segurança econômica e emocional devem ser a busca para a solução do litígio, nos casos em que há pretensão de guarda de menor. Assim, evidente, neste momento, que a situação em que se encontra a menor se lhe apresenta mais favorável. Impõe-se, portanto, a manutenção da decisão. (Ap. Cível 1.0024.10.258161-8/004 - 1ª. Câmara Cível - TJMG - Rel. Des. Geraldo Augusto - j. 05/02/2013 - p. 14/02/2013 - unânime). Como se pode observar da ementa acima, a 1ª Câmara Cível – TJMG entende que, não havendo respeito entre os genitores, esta guarda não é a solução mais adequada, visto ser a convivência pacifica entre os genitores, inexistente, o que prejudicaria consubstancialmente os interesses do menor, e seria contrário aos objetivos desta modalidade. A 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, também se posicionou em desfavor da concessão da guarda compartilhada, como se segue na ementa: FAMÍLIA - PEDIDO DE ‘GUARDA COMPARTILHADA’ - ALTERNÂNCIA DE PERÍODOS EXCLUSIVOS DE GUARDA ENTRE OS GENITORES - VERDADEIRA ‘GUARDA ALTERNADA’ - INCONVENIÊNCIA - PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA - INEXISTÊNCIA DE CONVIVÊNCIA HARMONIOSA E AMISTOSA ENTRE OS GENITORES. - A guarda em que os pais alternam períodos exclusivos de poder parental sobre o filho, por tempo preestabelecido, mediante, inclusive, revezamento de lares, sem qualquer cooperação ou co-responsabilidade, consiste, em verdade, em ‘guarda alternada’, indesejável e inconveniente, à luz do Princípio do Melhor Interesse da Criança. - Ademais, a ‘guarda compartilhada’ é incabível quando não houver uma relação amistosa e harmoniosa entre os genitores, sob pena de se inviabilizar o exercício compartilhado do poder parental, por meio da condução conjunta da educação e desenvolvimento da criança. (Apelação Cível 1.0145.07.3787296/001 . Rel. Des. Eduardo Andrade). O intuito de se compartilhar a guarda é que os genitores dividam todas as responsabilidades dos filhos como se casados fosse. Pois o casamento pode acabar, mas não existe divórcio entre pais e filhos, o fim do casamento não pode, nem deve pôr fim à convivência e as responsabilidades dos pais com seus filhos. Como já foi dito, a guarda compartilhada também possui aspectos negativos, pois em se tratando de pessoas e comportamento, não existe uma ciência exata, uma regra que vale para todos. O compartilhamento da guarda dos filhos pode ser o caminho perfeito para uma família e não funcionar para outra. Não há que se falar em guarda compartilhada se os pais não conseguem resolver seus conflitos pessoais e não são capazes de isolar seus filhos disso. Se não houver um acordo, um bom relacionamento e empenho necessário, o desejo de ambas as partes em priorizar sempre o interesse dos filhos, não será possível. Outro problema encontrado pela guarda compartilhada é a falta de estabilidade que este regime cria na vida das crianças, a perda de algumas referências; pois, ao se compartilhar a guarda, o menor acaba passando por rotinas diferentes, pelo fato de, em alguns dias estarem na casa do pai, e em outros, na casa da mãe; em contrapartida, pode-se criticar essa falta de estabilidade, pois, na sociedade moderna
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em que vivemos, os menores começam a frequentar creches e escolas muito cedo, independente de quem é a guarda, e se aqui, as crianças são capazes de se adaptarem a esse novo ambiente, passando nele, em alguns casos, todo o dia quanto pai ou mãe trabalham, então por que elas não seriam capazes de se acostumar com a segunda residência? É perfeitamente possível que a criança assimile duas casas. Porém, para que isso aconteça é necessário que a criança não se sinta um mero visitante na casa do próprio pai ou da própria mãe. 6. A GUARDA COMPARTILHADA E O ECA A Lei que deu vida ao ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente, é a Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre a proteção integral das crianças e dos adolescentes, criado especialmente para estabelecer uma forma de revelar os seus direitos. Em relação à guarda compartilhada, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe em artigo 42, §§ 4° e 5°: Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil. § 4o Os divorciados, os judicialmente separados e os excompanheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão. § 5o Nos casos do § 4o deste artigo, desde que demonstrado efetivo benefício ao adotando, será assegurada a guarda compartilhada, conforme previsto no art. 1.584 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. Percebe-se que, o disposto no ECA significa que a guarda compartilhada só será aplicada caso demonstrado interesse ao adotando, desde que não viole todos os direitos resguardados ao menor. 7. A LEI 11.698/2008 – LEI DA GUARDA COMPARTILHADA A entrada em vigor da Lei nº 11698/2008, que alterou os artigos 1583 e 1584 do Código Civil, tornou a Guarda Compartilhada, lei no direito brasileiro, e dá nova redação a estes artigos. A lei da Guarda Compartilhada mostra-se bastante positiva, pois o divórcio não põe fim ao vinculo entre pais e filhos. Ambos deverão manter uma convivência harmônica visando o melhor interesse do menor. Desta forma, os direitos e deveres com relação aos filhos, não se modificam, conforme preconizam os artigos. 1.579 (“o divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos) e 1.632 (“ A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos, senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”) ambos do Código Civil. A lei objetiva a co-participação dos genitores no processo de criação e desenvolvimento da criança e do adolescente. Oferece ao menor a garantia da convivência tanto paterna quanto materna. Assim, terá sempre a participação dos pais em seu desenvolvimento e formação moral, física e ética. A doutrinadora Maria Berenice Dias faz a seguinte consideração: Deixa a lei de priorizar a guarda individual. Além de definir o que é guarda unilateral e Guarda Compartilhada (Código Civil 1.583, § 1º), dá preferência pelo compartilhamento (Código Civil 1.584, § 2º), por garantir maior participação de ambos os pais no crescimento e desenvolvimento da prole. O novo modelo de co-responsabilidade é um avanço, pois favorece o desenvolvimento das crianças com menos traumas, propiciando
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a continuidade da relação dos filhos com seus dois genitores e retirando da guarda a ideia de posse. (DIAS, 2009,p.1.) Importante lembrar, que o sofrimento da separação, não é só do menor, mas também da parte que não gozará da guarda física. Isso só faz confirmar, que as mudanças ocorridas nas legislações acerca do instituto da guarda, trouxeram enorme contribuição não só para os filhos, mas também para os genitores, para os quais o rompimento da relação conjugal, se fez refletir até mesmo no ambiente de trabalho, dada a separação com a prole. Já antevia as mudanças na legislação pertinente e no cotidiano brasileiro, o doutrinador Rolf Madaleno ao relatar: Essas constantes mudanças sociais e familiares eu sempre procurei retratar em livros destinados a pensar e repensar o Direito de Família, destacando pontos específicos, polêmicos, instigantes e por vezes, porque não dizer, até inovadores. (MADALENO,2008,p.1). 7.1 A Guarda compartilhada e a pensão alimentícia Com a adoção da Guarda Compartilhada, ambos os genitores continuam responsáveis pelos filhos, educando e mantendo os cuidados assistenciais e educacionais. Compartilham os direitos e deveres materiais e assistenciais emergentes do poder familiar, tais como escola, cursos, passeios, alimentação, e demais gastos, todos partilhados igualmente ente ambos os pais. Há, entretanto, que se levar em consideração o poder socioeconômico de cada um. Responsáveis por todo o ônus decorrente do poder familiar, os pais conforme determinação do ECA, sujeitam-se à pena de multa se agir dolosa ou culposamente, assegurando assim, a proteção integral às crianças e adolescentes, dispondo, entre outros, sobre os direitos fundamentais e sobre a guarda da criança. Nos dias atuais, a Guarda Compartilhada, é requerida, também em ações de reconhecimento de paternidade, nos casos em que não há casamento ou mesmo união estável. Nestes casos, a guarda é também direito de ambos, ainda que não tenha havido uma convivência. Trata-se do direito do novo ser de ter a convivência tanto materna quanto paterna, como bem alerta o Código Civil, quanto aos direitos do nascituro, o que só vem a efetivar o principio constitucional da igualdade que estabelece direitos iguais aos homens e mulheres. Consoante com este entendimento, Luís Eduardo Bittencourt dos Reis. Nos casos em que não houve matrimônio ou união estável, entendemos ser a lógica igual, uma vez que primeiro há lacuna legal considerável, segundo a situação é efetivamente igual, pois o Poder Familiar NÃO NASCE COM O CASAMENTO, MAS SIM COM A PROCRIAÇÃO, COM A GESTAÇÃO DE UM NOVO SER HUMANO. (http://www.pailegal.net/guardacompartilhada/mais-a-fundo/monografias/160-paternidadeconsciente-o-novo-homem-e-a-guarda-compartilhada-parte-2-2). Acesso em 25/11/2014 às 00:28. O art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, consagra a igualdade jurídica entre os filhos, destacando, in verbis: “§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim, os filhos não havidos do casamento, comungam os mesmos direitos que os nascidos da relação do casamento, e, portanto, estes direitos refletem aos pais quanto às obrigações, direitos e deveres.
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8. A MEDIAÇÃO FAMILIAR NA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS No âmbito familiar, é possível também a solução de conflitos com a utilização da mediação. O mediador neste caso é um profissional voluntário, com condições aptas a proporcionar um acordo nos conflitos e litígios entre os casais e famílias que buscam por esta solução, principalmente objetivando os interesses dos filhos. Utiliza-se também a mediação na resolução de conflitos relativos à regulação e revisão do poder paternal dos filhos menores (sua guarda e pensão de alimentos), casa de morada de família e bens do casal. Através do diálogo, ambos os genitores optarão pela escolha da guarda que julgarem mais adequada, aquela que realmente irá atender o melhor interesse do menor. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante todo o exposto, demonstrou-se as vantagens e desvantagens trazidas pelo instituto da Guarda Compartilhada, levando em consideração o melhor interesse do menor; quando ela se torna a alternativa mais viável para o casal e principalmente para os menores envolvidos. Foi demonstrado também quando esta alternativa, que pode se encaixar perfeitamente para uma família, por vezes não é o ideal para outras. Ressaltou-se que, para ser aplicada, dependerá da análise de cada caso específico, bem como da prevalência de uma convivência harmônica entre os genitores. Enfatizou-se que a lei acrescentou benefícios ao direito brasileiro, protegendo o cidadão de amanhã, de uma má formação social e educacional. Por fim, demonstrou-se, que a criação dos filhos não deve ser analisada somente pelo ponto de vista material, mas imaterial, pois não basta só a contribuição alimentícia (que é necessidade básica dos filhos), mas também, moradia, educação, lazer, e, principalmente, dar o apoio psicológico e moral necessários afim de, efetivamente, proporcionar o verdadeiro bem estar do menor. REFERÊNCIAS BRASIL, Lei 10.406 de 10 de janeiro de2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª. ed. São Paulo :Revista dos Tribunais, 2014. MADALENO, Rolf. Alguns apontamentos sobre a guarda compartilhada. Disponível em: http://www.rolfmadaleno.com.br/novosite/conteudo.php?id=668 Acesso em 23/11/2014 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.44. http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e/ disponível em 25/11/2014 http://jus.com.br/artigos/3533/guarda-compartilhada/3/disponível em 25/11/2014 http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=8DB600D32151DA9BAF6776741AC2BFEE.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0024.10.258161-8%2F004&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar/ disponível em 25/11/2014 http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=8DB600D32151DA9BAF6776741AC2BFEE.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0145.07.378729-6%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar/ disponível em 25/11/2014 http://www.pailegal.net/guarda-compartilhada/mais-a-fundo/monografias/ 160-paternidade-consciente-o-novo-homem-e-a-guarda-compartilhada-parte-2-2/ disponível em 25/11/2014
NOTAS DE FIM 1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Graduada em 2006 pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG.Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG.Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
BRASIL, DECRETO LEI Nº 181/1890. Disponível em: http://www2.camara.leg. br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-181-24-janeiro-1890-507282-publicacaooriginal-1-pe.html.
3 Síndrome de Alienação Parental (SAP), também conhecida pela sigla em inglês PAS, é o termo proposto por Richard Gardner em 1985 para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. (http:// www.alienacaoparental.com.br/o-que-e/ disponível em 25/11/2014 as 22:18)
BRASIL, DECRETO LEI Nº 3200/1941. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/ fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3200-19-abril-1941-413239-normaatualizada-pe.html.
4 Grisard Filho, Waldyr. Guarda Compartilhada. Um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª Ed rev. Atual. e ampl. São Paulo Editora RT. Pág 40.
BRASIL, LEI 6515/1977 - Lei do divórcio. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l6515.htm.
5 BRASIL LEI N. 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Art. 1631.
BRASIL, LEI 4121/1962 - Estatuto da mulher casada. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4121.htm. BRASIL, LEI 8069/1990 – ECA. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. BRASIL, LEI 11698/08 - Lei da guarda compartilhada. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11698.htm. BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm.
6 Grisard Filho, Waldyr. Guarda Compartilhada. Um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª Ed rev. Atual. e ampl. São Paulo Editora RT. Pág 60. 7 Grisard Filho, Waldyr. Guarda Compartilhada. Um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª Ed rev. Atual. e ampl. São Paulo Editora RT. Pág 60. 8 Grisard Filho, Waldyr. Guarda Compartilhada. Um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª Ed rev. Atual. e ampl. São Paulo Editora RT. Pág 61. 9 Grisard Filho, Waldyr. Guarda Compartilhada. Um novo modelo de responsabilidade parental. 7ª Ed rev. Atual. e ampl. São Paulo Editora RT. Pág 61. 10 Idem acima.
DIAS, Maria Berenice,. Manual de Direito das Famílias. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.1. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. vol. V. 17ª ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2002. , p.503. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 9. PEREIRA Caio Mário Da Silva. Instituições de Direito Civil. VOL. V. , 20ª ed., 2012, p. 31.
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11 http://jus.com.br/artigos/3533/guarda-compartilhada/3/disponível 25/11/2014 às 22:43.
em
12 Idem acima. 13 Idem acima. ** Adélia Procópio Camilo; Daniela Recchioni.
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O MOMENTO DE FORMAÇÃODO CONTRATO PELA VIA ELETRÔNICA Lorena Muniz e Castro Lage1 Bráulio Lisboa Lopes2 Banca examinadora** RESUMO: Os contratos eletrônicos têm sido cada vez mais utilizados na atualidade; entretanto, o mundo jurídico ainda tem dúvidas quanto ao momento de formação dos referidos instrumentos. O presente estudo visa contribuir para que seja delimitado o efetivo momento de formação do contrato por essa via virtual. PALAVRAS-CHAVE: contrato eletrônico; direito civil; formação do contrato; contrato virtual; direito do consumidor. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Comércio Eletrônico; 3 Contrato Eletrônico; 4 Momento de Formação dos Contratos Eletrônicos; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Com a crescente contratação, pela forma eletrônica, através da Rede Mundial de Computadores, as dúvidas atinentes às peculiaridades desse meio de mercantilização são cada vez mais constantes. Desse modo, o presente trabalho visa aprofundar o conhecimento na área do direito contratual, mais especificamente acerca do Contrato Eletrônico, verificando o momento em que se reputam efetivamente formados os referidos contratos, com o intuito de abordar a solução mais adequada para a resolução de eventuais litígios que possam surgir da relação contratual eletrônica. O presente estudo pautar-se-á, a partir da verificação do surgimento do comércio, abordando a necessidade de mercantilização à distância e a consequente realização de negócios, sem a proximidade física, através da Rede Mundial de Computadores e os problemas advindos dessa realidade, mais precisamente no tocante ao momento de formação dos contratos eletrônicos. Nesse sentido, haverá a necessidade de discorrer sobre a qualificação do contrato eletrônico e as formas de realização do mesmo, a fim de sanar a dúvida quanto ao seu efetivo momento de formação. Conforme será demonstrado no decorrer do presente estudo, apesar do contrato eletrônico ser realizado sem a proximidade física das partes, existem meios eletrônicos que permitem a interatividade e que podem vir a suprir essa proximidade física sem prejudicar a formação do contrato e a respectiva qualificação entre presentes . O presente artigo visa, com isto, tratar as formas de realização dos contratos convencionais e a utilização por analogia aos contratos eletrônicos, a fim de se chegar à solução para qualificação dos contratos eletrônicos e obter o efetivo momento de formação dos mesmos, tendo em vista a falta de legislação própria. 2 COMÉRCIO ELETRÔNICO 2.1 Surgimento do comércio O Comércio por si só, existe desde a Idade Antiga, quando as civilizações as quais se tem conhecimento, como por exemplo os fenícios, destacaram-se na realização da atividade mercantil, nas trocas de produtos por outros produtos, até a existência da moeda que passou a ser o símbolo da troca, que atualmente é denominada de compra e venda (RAMOS, 2012). Entretanto, somente na Idade Média o comércio passou a existir não para alguns povos, mas para todos eles, que necessitavam de obter outros produtos para a sua sobrevivência e não mais apenas dos produtos que produziam isoladamente, momento em que passou a ser necessário o surgimento de um regime jurídico específico para
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regular tais relações mercantis. Ademais, Rubens Requião (2014) leciona que após a Idade Média, a economia de escambo (troca) evoluiu para a economia de mercado (monetária), onde o produtor não mais produz para a troca, mas sim para obter uma contraprestação monetária, a fim de aplicá-la a um novo ciclo de produção. Na moderna teoria da empresa, adotada pelo Código Civil de 2002, influenciada pelo Direito Italiano, a produção e circulação de bens e serviços (comércio) é exercida de forma organizada (fatores de produção) pelo empresário individual ou pela sociedade empresária. A empresa, hodiernamente conceituada como sendo esta atividade organizada, expandiu seu campo de atuação graças às benesses e facilidades proporcionadas por este novo meio de contratação (contrato eletrônico). Portanto, atualmente, em virtude da globalização, esse ciclo passou a existir de forma facilitada, por meio da internet, onde os contratantes irão ofertar e aceitar os produtos à distância, objeto esse que será melhor abordado ao longo do presente estudo. Conclui-se com a definição de Deocleciano Torrieri Guimarães (2011, p. 192) que leciona que “o comércio é um conjunto de operações mercantis, pelas quais o comerciante se incumbe da distribuição de produtos da natureza ou da indústria, com fim especulativo”. 2.2 Surgimento do comércio eletrônico O comércio eletrônico adveio da tecnologia, tendo iniciado como uma forma de facilitar as contratações, a mercantilização (exercício da empresa), acrescendo à definição de Deocleciano (2011) a possibilidade de se prestar serviços. Conforme leciona Luis Henrique Ventura (2010), o comércio eletrônico possibilita, além da compra e venda de mercadorias, também a prestação de serviços à distância. Gilberto Mariot (2009) nos ensina que o termo “eletrônico” se refere à “infra-estrutura global das tecnologias de computadores e telecomunicações e redes, na qual são realizados o processamento e a transmissão de dados digitalizados”. Trata-se de tema recente, se comparado à história do comércio, destacando-se nas palavras de Luis Henrique Ventura: O marco inicial da legislação sobre negócios eletrônicos no Brasil foi o ano de 1995, quando o Ministério das Comunicações e o Ministério da Ciência e Tecnologia, tendo em vista a necessidade de informar à Sociedade a respeito da introdução da Internet no Brasil, publicaram nota conjunta dos ministérios das comunicações e da ciência e tecnologia. Naquele mesmo ano, o Ministério das Comunicações publicou a Norma nº 004/1995 que trata do uso de meios da rede pública de tele-
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comunicações para acesso à Internet. (VENTURA, 2010, p. 26) Ressaltando ainda que apenas em 2003 foi publicado o Decreto nº 4.829 que dispôs sobre a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil e sobre o modelo de governança da Internet no Brasil. Ademais, importante destacar ainda que o surgimento do comércio eletrônico se tornou um meio facilitador às partes que querem contratar ou oferecer seus produtos e serviços, já que os custos de manutenção de um estabelecimento empresarial virtual são imensamente menores que os custos de manutenção de um estabelecimento empresarial físico, associado ao fato de se poder efetuar a contratação a qualquer momento, sem necessidade de uma interlocução direta entre as partes contratantes, utilizando-se do que o Direito Consumerista denomina de contrato de adesão. Nesse contexto passaram a surgir litígios e dúvidas no tocante às diferenças legais entre os contratos tradicionais e os contratos eletrônicos e a aplicação por analogia das legislações dos contratos tradicionais aos contratos eletrônicos de forma equivocada, deixando clara a necessidade de legislação específica, conforme será demonstrado ao longo do presente estudo. 3 CONTRATO ELETRÔNICO Contrato pode ser definido como um acordo de vontades entre duas ou mais pessoas, sobre um objeto lícito e possível, pelo qual serão adquiridos, criados, modificados, conservados ou extintos direitos (GUIMARÃES, 2011). O contrato eletrônico terá o mesmo conceito, adicionadas as peculiaridades de ser concluído por meio eletrônico e à distância (ROSENVALD; FARIAS, 2013). Importante destacar, conforme bem esclarecido por Gilberto Mariot (2009), que de acordo com o princípio da liberdade das formas negociais, o meio digital é meio capaz de fornecer validade ao contrato eletrônico com as exceções legais que determinem expressamente outra forma para a celebração de um contrato específico (Art. 332 do Código Civil). Nesse sentido, o modelo de norma sobre o comércio eletrônico da UNCITRAL3 – United Commission on Internacional Trade Law – determina em seu artigo 6º que caso a lei requeira que uma informação seja fornecida por escrito, essa exigência será suprida pelo meio eletrônico caso a informação seja passível de acessos para futuras consultas. O princípio da verificação caminha nesse sentido, conforme será melhor abordado oportunamente. Rosenvald e Farias (2013) ensinam que o contrato eletrônico necessariamente será um contrato à distância tendo em vista que a contratação eletrônica é a contratação à distância, englobando nessa seara todas as negociações e todos os contratos celebrados através da utilização de qualquer meio eletrônico. A literatura estrangeira leciona que: El comercio electrónico tiene fuertes incentivos económicos: una reducción de costos administrativos e impositivos, el acortamiento del proceso de distribución e intermediación, la posibilidad de operar durante todo el día; la superación de las barreras nacionales; el aumento de la celeridad en las transaciones. (LORENZETTI, 2000, p. 14) Entende-se, portanto, que o contrato eletrônico é um facilitador da mercantilização, permitindo a redução de custos e a contratação a qualquer momento do dia, de forma célere, além de facilitador para importações e exportações (LORENZETTI, 2000). 3.1 Principais princípios do Direito Contratual Eletrônico Os contratos devem estar de acordo com os princípios da
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probidade, da boa-fé, da função social, dentre outros. Entretanto, especificamente no tocante aos contratos eletrônicos, existem alguns princípios particulares à sua formação que necessitam de maior destaque, quais sejam: a) Princípio da identificação As partes signatárias devem estar devidamente identificadas, de forma que o proponente e o oblato tenham plena convicção da identificação do outro (VENTURA, 2010). Ademais, atualmente já é possível obter certificação digital a fim de que a pessoa natural ou a pessoa jurídica sejam devidamente personificados na rede mundial de computadores, garantindo a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos que estejam em forma eletrônica, obtendo assim a realização de transações eletrônicas mais seguras. Conforme informações do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação4, os certificados digitais contêm os dados de seus titulares, como o nome, número do registro civil, assinatura da Autoridade Certificadora que o emitiu, dentre outras informações que garantem a autenticidade de que os documentos eletrônicos foram efetivamente assinados, de forma digital, pelo seu efetivo titular. É possível ainda que o contratante utilize de uma chave criptografada, denominada “senha”, que permitirá de forma simples e rápida o acesso do usuário, de forma individualizada, a sites previamente cadastrados com os seus dados, o que possibilitará a contratação online de forma segura e de acordo com o princípio da identificação. b) Princípio do impedimento de rejeição O simples motivo do contrato ter sido celebrado de forma eletrônica não caracteriza motivo para que seja alegada a invalidade devido à forma de celebração (VENTURA, 2010). c) Princípio da verificação Os contratos celebrados por meio eletrônico devem ficar disponíveis, também de forma eletrônica às partes, a fim de que possam verificá-lo a qualquer momento. d) Princípio da privacidade Para a validade do contrato eletrônico, o mesmo deve ser celebrado em um ambiente que garanta a privacidade nas comunicações (VENTURA, 2010). 3.2 Legislações aplicáveis Ainda hoje, existe insegurança quanto à legislação adequada a ser aplicada na relação contratual eletrônica, sendo defendido por alguns autores, como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2008) a necessidade de regulamentação específica acerca do tema, julgando inconcebível em pleno século XXI o Código Civil de 2002 não tratar do assunto, in verbis: Afigura-se totalmente inconcebível que, em pleno Século XXI, época em que vivemos uma verdadeira revolução tecnológica, iniciada especialmente após o reforço bélico do século passado, um código que pretenda regular as relações privadas em geral, unificando as obrigações civis e comerciais simplesmente haja ignorado as relações jurídicas travadas por meio da rede mundial de computadores. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008, p. 136) Em que pese o fato da não existência de legislação específica que trate de todo o tema, faz-se necessária a análise profunda da legislação subsidiária em vigor a fim de buscar sanar os problemas oriundos de tal déficit na legislação como, por exemplo, a discussão a ser apresentada neste trabalho, acerca do momento de formação dos contratos eletrônicos. As Leis que tratam das relações de consumo e das relações contratuais de forma geral - Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990
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(Código de Defesa do Consumidor) e Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), respectivamente – são aplicadas por analogia, cabendo ao operador do direito analisar o caso concreto e buscar sua interpretação conforme as definições legais existentes, até que seja regulamentada legislação específica. Tendo em vista a facilidade existente para a contratação por meios eletrônicos, bastando conectar-se à Rede para ter acesso às diversas ofertas do meio eletrônico, surgiu uma grande insegurança na sociedade quanto ao uso da Internet no Brasil, tendo em vista as dúvidas quanto à regulamentação de tais relações, no que concerne aos direitos, deveres e garantias para a sua utilização. A fim de buscar sanar essa insegurança, a sociedade rogou por uma lei que tratasse de forma satisfatória, regulando essa temática. Em momento muito oportuno, a Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, também conhecida como Marco Civil da Internet , após ter sido aprovada em todas as instâncias, foi sancionada pela Presidente Dilma Rousseff com vacatio legis de sessenta dias, começando a viger em 23 de junho de 2014. Ante o exposto, atualmente todos os usuários da Internet no Brasil devem atuar conforme a Lei 12.965 de 2014, que dispõe sobre os princípios, garantias, direitos e deveres para o seu uso. Entretanto, o Marco Civil da Internet não tratou de forma objetiva e clara das inseguranças jurídicas no tocante à contratação eletrônica, apenas deu garantias, direitos e deveres gerais ao uso da Internet. Portanto, ainda existe necessidade de regulamentação que complemente e adeque as atuais leis para o mundo virtual em que vivemos, pois, conforme será demonstrado no presente trabalho, a formação dos contratos pela via eletrônica é diferenciada e merece atenção específica dos legisladores. Ressalte-se ainda que a aplicação das leis existentes, por analogia, gera, na maior parte das vezes, dupla interpretação e soluções distintas para o mesmo litígio, suscitando assim insegurança jurídica, que não merece prosperar em nosso ordenamento. 4 MOMENTO DE FORMAÇÃO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS O efetivo momento de formação dos contratos eletrônicos depende da análise de uma série de fatores, como a verificação se o contrato foi realizado “entre presentes” ou “entre ausentes”, questão controversa e muito discutida na doutrina brasileira no tocante a esse tipo contratual. Importante, portanto, buscar a resposta do momento em que o contrato eletrônico fora efetivamente formado, por meio da análise das teorias e respectivas subteorias da formação contratual e da forma que efetivamente ocorreu, se considerada “entre presentes” ou “entre ausentes”, para definir o momento de obrigação e exigibilidade contratual. 4.1 Qualificação do contrato “entre presentes” e “entre ausentes” Ante o exposto, a definição da qualificação do contrato formado “entre presentes” e “entre ausentes” é critério determinante para que o contrato eletrônico possa ser inserido em uma ou outra qualificação, conforme adequação ao caso concreto, no mundo virtual. Os doutrinadores Luis Henrique Ventura (2010) e Guilherme Magalhães Martins (2010), data máxima vênia, definem de forma equivocada que os contratos eletrônicos serão formados “entre ausentes” tendo em vista tal tipo contratual ser marcado pela não presença física das partes, sendo formalizado em locais diversos. Os ilustres doutrinadores deixaram passar despercebido o fato de que com a evolução dos meios de comunicação online, é possível formalizar um contrato com interatividade, mesmo sem haver a presença física. A presença física para a definição do momento de formação dos contratos eletrônicos é algo totalmente irrelevante nos dias atuais, bastando a existência da possibilidade de interação e discussão negocial em tempo real para a formalização dos contratos. Regra geral, o entendimento seria de que o contrato formado
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“entre presentes” teria como fator determinante a proximidade física das partes, o que com o tempo precisou ser readequado ante à possibilidade de interatividade mesmo sem a presença física, passandose a entender que bastaria a viabilidade de uma resposta imediata à proposta para o enquadramento na qualificação “entre presentes”, conforme será discorrido no decorrer do presente trabalho científico (ROSENVALD; FARIAS, 2013). O artigo 428, I, inserido na seção II acerca da formação dos contratos, da Lei 10.406 de 2002 (Código Civil), considera presente aquele que “contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante”. A contratação por telefone foi o primeiro caso em que houve a necessidade de incluir na qualificação de contrato “entre presentes” a formação de um tipo contratual ocorrido sem a efetiva proximidade física, mas com a presença do atributo de interatividade em tempo real, retirando a ideia inicial de que necessitaria da presença física. Inicialmente, a definição do mencionado artigo gerou diversas discussões no meio jurídico no sentido de que toda e qualquer contratação no mundo virtual, de forma eletrônica, deveria ser considerada “entre presentes” tendo em vista ser um meio semelhante ao telefone, já que a informação também seria enviada via linha (TARTUCE; TARTUCE, 2004), o que pode ser considerado um equívoco. A interpretação ipsis litteris de tal artigo leva a um entendimento equivocado, tendo em vista que, conforme sábio entendimento de Ventura (2010), a telefonia atualmente independe de fios, como por exemplo a existência da telefonia celular e, portanto, dizer que a transmissão de dados e a telefonia seriam a mesma coisa pelo fato de ambas caminharem pelo mesmo fio é uma conclusão precipitada. Nesse ponto, é importante verificar a real intenção do legislador à época para averiguar a solução mais adequada à realidade atual. Ademais, Venosa (2014) leciona que embora seja utilizada a linha telefônica, cabo, antena ou outro sistema, deve-se ter em mente que, regra geral, não pode ser erroneamente taxada como contratação “entre presentes”, pois haverá a necessidade de verificação da interatividade no caso concreto, conforme explicado anteriormente. Se para a realização de determinado contrato eletrônico houver a possibilidade de efetiva interação, com a possibilidade de troca de informações em tempo real, como em uma conversa com a presença física, não haverá motivos para qualificá-lo como “entre ausentes”, tendo em vista que houve a mesma contratação que teria havido caso a contratação fosse realizada com a presença física, sem lapso temporal entre a proposta e a aceitação. Por sua vez, a qualificação do contrato como formado “entre ausentes” ocorrerá quando não se evidenciar a comunicação de forma imediata, faltando a característica da instantaneidade e existindo um lapso temporal entre a proposta e a aceitação. A fim de se ilustrar, se no caso concreto a realização de determinado contrato eletrônico ocorrer com um lapso temporal entre a proposta e a aceitação que permita uma reflexão, como no envio de uma carta (equiparada à mensagem por correio eletrônico), o contrato deverá ser qualificado como “entre ausentes”. Portanto, no contexto eletrônico, poderemos ter a qualificação do contrato tanto como “entre presentes” como “entre ausentes”, tendo em vista que o mundo eletrônico permite que o contrato possa ser formado com ou sem a interatividade, atributo essencial à qualificação no caso concreto. Teremos como exemplos de contratos formados “entre presentes” aqueles celebrados com a facilidade de comunicação através de programas de conversação em tempo real como o Skype, WhatsApp, salas de Chat, Webcam, dentre outros que permitam a interatividade e instantaneidade na troca de informações (TARTUCE, 2011). De outro lado, teremos como exemplos de contratos formados “entre ausentes” no mundo virtual, aqueles celebrados através de
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Thiago Garcia de Menezes Santos (2007) acrescenta ainda que a insegurança jurídica é notória, já que se o oblato redigisse a declaração e a guardasse em uma gaveta, ainda assim, conforme a subteoria da declaração propriamente dita, o contrato estaria formado, entendimento esse que não merece prosperar. b) Subteoria da expedição: determina que o contrato será reputado formado quando da expedição da declaração de aceitação pelo oblato, não podendo, em regra (com as exceções do artigo 434, III e 433 da Lei 10.406 de 2002 que serão melhor explicadas adiante), serem obstados os efeitos da sua manifestação de vontade. (VENOSA, 2014) A doutrina minoritária critica a subteoria da expedição tendo em vista que podem ocorrer intervenções ou interceptações da resposta durante o seu trajeto até o recebimento da mesma pelo oblato, podendo provocar transtornos às partes quanto à efetiva formação do contrato (SANTOS, 2007). c) Subteoria da recepção: define que o negócio jurídico será reputado formado quando o proponente receber a declaração de aceitação, mesmo que não a leia. Portanto, não bastará que a declaração seja redigida ou expedida pelo oblato, devendo ser recebida pelo proponente a fim de que o mesmo tenha efetivas condições de ter conhecimento da aceitação emitida (SANTOS, 2007). A presente subteoria detém mais condições de prezar pela segurança jurídica, já que possui mais exigências para reputar formado o contrato “entre ausentes”.
mensagens eletrônicas, correio eletrônico (e-mails), ofertas públicas permanentes, dentre outros que não permitam a aceitação imediata, em tempo real, havendo um lapso temporal. 4.2 Interatividade Ante o exposto, a interatividade é característica fundamental para, no caso concreto, definir se determinado contrato eletrônico fora efetivamente formado “entre presentes” ou “entre ausentes”. Conforme leciona Venosa (2014), a interatividade é a capacidade de um equipamento, de um sistema de comunicação ou de computação, de interagir ou de permitir a interação em tempo real, sem haver um lapso temporal na ação, permitindo ainda que cada pessoa que se utiliza do seu computador de forma simultânea e concomitante possa, em uma conversa ordinária, materializada na remessa recíproca de dados, formalizar a proposta e a aceitação para a concretização de um contrato. Portanto, se determinado meio eletrônico permitir a troca de dados em tempo real e de um lado for emitida a proposta e do outro, sem lapso temporal, for emitida a aceitação, o contrato eletrônico reputar-se-á efetivamente formado “entre presentes”, pois faz-se possível a resposta imediata à proposta, substituindo a necessidade da presença física das partes (RONSELVALD; FARIAS, 2013). Entretanto, se de um lado for emitida a proposta e a mesma ficar armazenada na memória do equipamento receptor, aguardando que comandos sejam acionados para posterior conhecimento e aceitação, existindo o lapso temporal, o contrato eletrônico reputar-se-á formado “entre ausentes” (VENOSA, 2014). Conclui-se que haverá a necessidade de identificação da forma online utilizada no caso concreto, a fim de realizar a averiguação aqui exposta e, apenas após, verificar o momento de formação do contrato eletrônico realizado, não podendo generalizar e utilizar-se de apenas uma solução para todas as formas de relações contratuais eletrônicas, já que diferem-se umas das outras de forma clarividente. 4.3 Teorias da formação contratual Superada a qualificação do contrato eletrônico “entre presentes” ou “entre ausentes”, será necessário verificar a que teoria da formação contratual o contrato qualificado pertence. Importante, portanto, aprofundar o presente artigo na teoria e respectivas subteorias da formação contratual, quais sejam: Teoria da Agnição na subteoria da declaração propriamente dita, na subteoria da expedição ou na subteoria da recepção No tocante ao contrato eletrônico realizado “entre presentes” não haverá dúvidas quanto ao momento de sua formação, pois a aceitação deverá ocorrer imediatamente após a proposta ter sido realizada, em tempo real e de forma interativa, reputando-se formado naquele momento em que ocorreu toda a tratativa, conforme exposto anteriormente. Assim dispõe o art. 428, I da Lei 10.406 de 2002 (Código Civil): “Deixa de ser obrigatória a proposta: I – se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita”. Por outro lado, no contrato realizado “entre ausentes” será necessária a análise da Teoria da Agnição em suas subteorias. A teoria da Agnição determina que o contrato será formado quando da declaração pelo aceitante concordando com a proposta enviada, tendo subteorias quanto ao momento exato dessa declaração, conforme será demonstrado a seguir. a) Subteoria da declaração propriamente dita: entende que o contrato será formado quando a declaração no sentido de aceitação for redigida. Entretanto, critica-se tal teoria tendo em vista que a declaração ainda não adentrou ao mundo jurídico, não tendo, portanto, presunção erga omnes e, consequentemente, não podendo ser oposta a quem quer que seja, nem mesmo ao proponente que não teve acesso à mesma. Nesse sentido,
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Nos contratos realizados de forma convencional, apesar de entendimentos doutrinários minoritários no que concerne à aplicação da subteoria da recepção na legislação brasileira, a doutrina majoritária e a Lei 10.406 de 2002 (Código Civil) deixa claro ao estabelecer em seu artigo 434 que os contratos convencionais estabelecidos “entre ausentes” serão considerados formados de pleno direito desde que a aceitação seja expedida, adotando portanto a subteoria da expedição (VENOSA, 2014). Alguns autores sugerem que por existir a possibilidade de que a proposta não chegue no prazo determinado (Art. 434, I, Lei 10.406/02) e a possibilidade de que haja a retratação da aceitação antes da recepção pelo proponente (Art. 433, Lei 10.406/02), o Código Civil tratou na verdade da subteoria da recepção, entendimento esse que não merece prosperar por se tratarem de meras exceções à regra geral, qual seja, a aplicação da Teoria da Agnição na subteoria da expedição, conforme deixa claro o caput do artigo 434 da lei em comento. Entretanto, no tocante aos contratos eletrônicos a teoria da Agnição na subteoria da expedição não prosperou, talvez pela maior necessidade de segurança jurídica aos contratos eletrônicos, sendo de acordo majoritário na doutrina que o contrato eletrônico realizado entre pessoas ausentes reputar-se-á formado apenas quando da recepção pelo proponente da declaração de aceitação. O entendimento da adoção da subteoria da recepção nos contratos eletrônicos “entre ausentes” foi, inclusive, alvo de enunciado do Conselho de Justiça Federal, sob o número 173 que assim determina: “A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente”. Portanto, deve-se adotar aos contratos eletrônicos a Teoria da Agnição na subteoria da recepção quando realizados “entre ausentes”, ou seja, sem a possibilidade de interação em tempo real. 4.4 Formação do contrato eletrônico Ante o exposto, argumentam de forma certeira Nelson Rosenvald e Cristiano Farias (2013) quando destacam que determinados aplicativos permitirão o diálogo imediato, como em uma conversa tradicional ao telefone, caso em que haverá a característica da interatividade em tempo real e bastará o recebimento da aceitação para determinar a concretização
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da contratação eletrônica, enquanto em outros casos em que não haja o diálogo imediato, a interatividade, a aceitação deve ser recebida pelo proponente para concretizar a reputar o contrato formado. Ademais, a contratação “entre presentes” no meio eletrônico não terá a proximidade física, conforme restou demonstrado no presente trabalho, mas terá essa necessidade suprida pela possibilidade de haver a interatividade em tempo real entre o proponente e o oblato, enquanto a contratação “entre ausentes” nesse meio adotará a teoria da Agnição na subteoria da recepção, reputando formado o contrato eletrônico apenas quando da recepção da resposta pelo policitante. Portanto, apesar de não haver regulamentação nesse sentido, devese utilizar analogicamente o entendimento dado ao contrato convencional levando em consideração a efetiva intenção do legislador em definir um contrato como “entre presentes” ou “entre ausentes”, qual seja, a possibilidade de interatividade. Será de suma importância ainda, verificar a necessidade de maior segurança jurídica a esse tipo contratual realizado de forma eletrônica, adotando-se à contratação eletrônica “entre ausentes” a teoria da Agnição na subteoria da recepção e não na subteoria da expedição como nos contratos convencionais, a fim de se estabilizar as expectativas da sociedade quanto à insegurança existente nesse meio. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, portanto, que diferentemente das formas contratuais típicas previstas no Código Civil, o Contrato Eletrônico requer um cuidado maior, tendo em vista que a averiguação da qualificação do contrato “entre presentes” e “entre ausentes”, dependerá de uma análise minuciosa das formas e possibilidades de respostas à proposta contratual no tocante à possibilidade de interação em tempo real. Será diferente, portanto, a qualificação contratual de uma proposta realizada com programas de conversação em tempo real, tais como o Skype, chat e videoconferência que permitem a interatividade, de uma proposta permanente online, por e-mail ou site, onde, por sua vez, não haverá a interatividade instantânea na aceitação, fato esse crucial para a definição do momento de formação dos contratos (ROSENVALD; FARIAS, 2013). Ante o exposto, após a análise dos critérios essenciais para a definição da formação do contrato eletrônico, pode-se auferir que quando, de um lado, houver a possibilidade de interatividade de forma imediata entre o momento da proposta pelo proponente e o momento da resposta pelo oblato, o contrato eletrônico deverá ser reputado formado “entre presentes”, enquanto, por outro lado, quando não houver a possibilidade da resposta de forma imediata, o contrato eletrônico deverá ser reputado formado “entre ausentes”. Nesse sentido, para definir o momento de obrigação e exigibilidade contratual nos contratos eletrônicos deve-se verificar a qualificação do contrato, como “entre presentes” ou “entre ausentes”, sendo que, os qualificados “entre ausentes” reputar-se-ão formados apenas quando da recepção pelo proponente da declaração de aceitação (enquadrando-se à Teoria da Agnição na subteoria da recepção), enquanto nos qualificados “entre presentes” a aceitação deverá ocorrer imediatamente após a proposta ter sido realizada, em tempo real e de forma interativa, reputando-se formados no momento da aceitação.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. IV. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 14. ed. São Paulo: Rideel, 2011. INSTITUTO NACIONAL DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO. Disponível em: <http:// www.iti.gov.br/certificacao-digital/certificado-digital>. Acesso em: 12 nov. 2014. LORENZETTI, Ricardo Luis. Informática, cyberlaw y e-commerce. Revista de Direito do Consumidor, n. 36, p. 9-37, out.-dez. 2000. MARIOT, Gilberto. Contratos eletrônicos. [2009]. Disponível em: <http://www.epm. tjsp.jus.br/Sociedade/ArtigosView.aspx?ID=2882>. Acesso em: 19 nov. 2014. MARTINS, Guilherme Magalhães. Formação dos Contratos Eletrônicos de Consumo via Internet. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. OAB SP. Conteúdo integral do Projeto de Regulamentação do Comércio Eletrônico, entregue ao Deputado Michel Temer. São Paulo, 18 de agosto de 1999. Disponível em < http://www.oabsp.org.br/noticias/1999/08/18/335>. Acesso em: 27 out. 2014. RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial esquematizado. 2. ed. Rio de Janeiro: Método, 2012. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2013. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. SANTOS, Thiago Garcia de Menezes. Do momento da formação do contrato. Âmbito Jurídico, Rio Grande, ano X, n. 41, maio 2007. Disponível em: <http:// www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1873>. Acesso em: 3 nov. 2014. TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 6. ed. São Paulo: Método, 2011. TARTUCE, Flávio; TARTUCE, Fernanda. A proposta celebrada via internet faz com que o contrato eletrônico seja formado entre presentes? Revista Eletrônica Intelligentia Jurídica, set. 2004. Seção Bate-Boca. Disponível em <http://www. fernandatartuce.com.br/site/artigos/cat_view/38-artigos/43-artigos-da-professora.html>. Acesso em: 28 out. 2014. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2014. VENTURA, Luiz Henrique. Comércio e contratos eletrônicos: aspectos jurídicos. 2. ed. Bauru: Edipro, 2010.
NOTAS DE FIM 1 Aluna do nono período do curso de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Empresarial, Especialista em Direito Civil e Processual Civil e professor do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. Dispõe sobre a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGIbr, sobre o modelo de governança da Internet no Brasil, e dá outras providências. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4829.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.
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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.
3 Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/noticias/1999/08/18/335>. Acesso em: 27 out. 2014 4 Disponível em: <http://www.iti.gov.br/certificacao-digital/certificado-digital>. Acesso em: 12 nov. 2014
** Bráulio Lisboa Lopes; Gustavo Henrique Carvalho da Mata.
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AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA CONCESSÃO DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS Nayara Nayana Lima Patrício 1 Valéria Edith Carvalho de Oliveira2 Banca examinadora** RESUMO: A proposta do presente trabalho consiste em apresentar o instituto dos alimentos gravídicos, apontando as consequências jurídicas de sua concessão, inclusive quanto às implicações legais de sua conversão em pensão alimentícia. Apresenta o conceito de nascituro, seus direitos e personalidade jurídica. Analisa a obrigação alimentar em geral, enfatizando os alimentos gravídicos e a responsabilidade de ambos os pais no financiamento das despesas extras do período de gravidez, indicando quais delas devem ser custeadas pela verba alimentar. Exalta a Lei nº 11.804/08 que disciplina o tema. Preconiza os critérios de construção da paternidade para fins de identificação do devedor dos alimentos gravídicos. Aborda a possibilidade de realização de exame de DNA após o nascimento da criança e o efeito da confirmação ou não da paternidade quanto à obrigação alimentar e a possibilidade de indenização em caso de pagamento indevido. PALAVRAS-CHAVE: nascituro; paternidade; alimentos; alimentos gravídicos. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O nascituro no ordenamento jurídico brasileiro; 3 A responsabilidade dos pais em relação aos alimentos gravídicos; 4 O nascituro e a identificação do pai como responsável pelo pagamento dos alimentos gravídicos; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Em 05 de novembro de 2008 foi editada a Lei nº 11.804, denominada Lei de Alimentos Gravídicos, que possui como objeto disciplinar o direito a essa espécie de alimentos e a forma como ele será exercido. Embora a doutrina e a jurisprudência tenham ventilado hipóteses de concessão da verba alimentar ao nascituro antes do advento da norma, não existia um posicionamento equânime acerca das suas condições, o que ensejava grandes equívocos e entraves à sua aplicação. A positivação do direito aos alimentos gravídicos veio para sanar essa lacuna jurídica, amparando-se na nova realidade social e nas modernas concepções e princípios do Direito de Família, como forma de concretização da dignidade da pessoa humana. Ademais, significou a proteção da personalidade do nascituro desde a concepção. Fundada em indícios de paternidade, a procedência do pedido não está condicionada à prévia comprovação do vínculo biológico entre o alimentante o nascituro, o que poderá ser constatado após o nascimento com vida, oportunidade em que os alimentos gravídicos são automaticamente convertidos em pensão alimentícia. A análise desse instituto impõe, ainda, o estudo do princípio da irrepetibilidade da verba alimentar, assim como atravessa, necessariamente, pelas consequências do superveniente resultado negativo do exame de paternidade, no que tange à possibilidade do indigitado pai pleitear o ressarcimento por perdas e danos. 2 O NASCITURO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O termo nascituro é empregado para identificar o ser concebido, mas que ainda se encontra em desenvolvimento no ventre materno. Trata-se do ser humano que ainda não nasceu, do produto da concepção em qualquer estágio de evolução. A condição de nascituro encontra-se tutelada pelo Código Civil Brasileiro que assegura, no art. 2º, a proteção legal de seus direitos, desde a concepção. Tal disposição está amparada nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida, expressos no art. 1º, inciso III e art. 5º, caput, da Constituição da República. No mesmo sentido, o Código Penal, ao tipificar o crime de aborto, admitindo-o apenas nas hipóteses de preservação da vida da gestante ou em caso de estupro, faz prevalecer o direito à vida e à integridade física do nascituro.
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Ademais, o nascituro também encontra amparo no Estatuto da Criança e do Adolescente que, ao estabelecer o direito de atendimento pré e perinatal à gestante, objetiva resguardar a mãe, mas, especialmente, o ser que está para nascer, garantindo-lhe as condições para o nascimento seguro e sadio. Não é pacífico o entendimento doutrinário quanto à definição do início da existência da pessoa. No Brasil, existem duas correntes divergentes que buscam determinar a condição jurídica do nascituro, quais sejam: a natalista e a concepcionista. A princípio, mister esclarecer que personalidade jurídica consiste na “aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito”. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 124). Nas lições de Venosa (2005, p. 149), personalidade “é a própria capacidade jurídica, a possibilidade de figurar nos pólos da relação jurídica”. De acordo com a primeira teoria, denominada natalista, ao nascituro não é concedida a personalidade jurídica que só lhe será conferida a partir do nascimento com vida. Prevalece a premissa de que o nascituro não possui vida independente de sua genitora, fato que o coloca na condição de mera expectativa de pessoa. Compartilhando desse entendimento, Venosa (2005, p. 153) afirma que “o nascituro é um ente já concebido que se distingue de todo aquele que ainda não foi concebido e que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo do nascimento, tratando-se de uma prole eventual”. Os adeptos de tal doutrina costumam utilizar a expressão latina spes hominis, que significa esperança de vir a ser homem, para intitular o nascituro, indicando a simples perspectiva de se adquirir personalidade jurídica. Mencionada corrente fundamenta seu posicionamento numa interpretação literal e isolada da primeira parte do art. 2º do Código Civil segundo o qual “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Alicerçado no referido dispositivo legal, o natalista Sílvio Rodrigues afirma que o indivíduo adquire personalidade se nascer com vida e comenta que a proteção jurídica ao nascituro não o reconhece como pessoa, mas objetiva tão somente “salvaguardar os direitos que, com muita probabilidade, em breve serão seus”. (RODRIGUES, 2004, p. 36).
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A teoria concepcionista, por sua vez, considera o início da personalidade jurídica a partir da concepção. Em sendo assim, o nascituro, por ser sujeito de direitos que independem de seu nascimento com vida, é visto como pessoa, motivo pelo qual lhe é atribuída a personalidade. Prevalece o entendimento de que existem direitos inerentes ao próprio nascituro, tais como os da personalidade e o de ser reconhecido como filho que, por serem absolutos, inatos, vitalícios, indisponíveis, extrapatrimoniais e intransmissíveis, não podem ser condicionados a fator algum. Os concepcionistas baseiam-se nas comprovações científicas de que o nascituro possui um código genético próprio, diferente de sua genitora, por isso é um ser distinto de sua mãe que merece ter reconhecida sua personalidade. (HORTA, 2008). Silmara Chinelato (2003, p. 93) compartilha desse entendimento ao afirmar que “a personalidade – que não se confunde com a capacidade – não é condicional. Apenas certos efeitos de certos direitos, isto é, os direitos patrimoniais materiais como a herança e a doação, dependem do nascimento com vida”. Admite-se, pois, que se adquira personalidade antes do nascimento, exceto com relação aos direitos patrimoniais que ficam sujeitos ao nascimento com vida. Maria Helena Diniz (2003) também se filia a essa corrente, sustentando que o nascimento com vida aperfeiçoa a capacidade para o exercício de alguns direitos patrimoniais, todavia, desde a concepção o nascituro goza de personalidade jurídica no que tange aos seus direitos personalíssimos. A aludida autora apresenta os conceitos de personalidade jurídica formal e material para enquadrar os direitos da personalidade e os patrimoniais: Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intra-uterina tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento. (DINIZ, 2003, p. 123). Os adeptos dessa doutrina fundamentam-se na segunda parte do art. 2º do Código Civil, segundo o qual “a lei põe a salvo, desde a concepção, direitos do nascituro”, numa convicção de que tal dispositivo reconhece direitos, e não meras expectativas. Cumpre mencionar a existência de uma terceira corrente, denominada teoria da personalidade condicional, na qual a personalidade encontra-se sob dependência de uma condição suspensiva, o nascimento com vida. A partir de então, seria como se a personalidade retroagisse até a concepção. Nessa esteira, importante contribuição vem de Carlos Roberto Gonçalves (2011) ao afirmar que essa corrente não se trata propriamente de uma terceira teoria, mas sim de um desdobramento da teoria natalista, visto que é estruturada no postulado de que a personalidade inicia-se do nascimento com vida. Convém ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça vem adotando a teoria concepcionista, ao reconhecer o dano moral em favor do nascituro. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal não possui um posicionamento consolidado sobre as teorias que envolvem o início da pessoa natural, ora adotando a natalista, ora a concepcionista. (GONÇALVES, 2011). Sob o ponto de vista legal, não se pode dizer que o ordenamento jurídico brasileiro privilegiou essa ou aquela teoria. Embora disponha que a personalidade jurídica começa a partir do nascimento com vida, o nascituro é titular da proteção aos seus direitos através de regras espalhadas ao longo dos diplomas legais. Nesse sentido, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 129) prele-
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cionam que: Independentemente de se reconhecer o atributo da personalidade jurídica, o fato é que seria um absurdo resguardar direitos desde o surgimento da vida intrauterina se não se autorizasse a proteção desse nascituro – direito à vida – para que justamente pudesse usufruir tais direitos. Qualquer atentado à integridade do que está por nascer pode, assim, ser considerado um ato obstativo do gozo de direitos. Há um evidente interesse jurídico em reconhecer e resguardar os direitos do ente que está para nascer, a fim de harmonizar-se com os valores expressados pela ordem constitucional vigente que possuiu a dignidade humana como referencial normativo. O princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado o dever de proteção e respeito aos indivíduos, que abrange a promoção das condições necessárias e a remoção dos obstáculos para a plena realização de uma vida digna. Por assim dizer, a Constituição Federal assegura o direito à vida e à integridade física, ao mesmo tempo em que, através do art. 5º, inciso XXXVIII, reconhece a instituição do júri para julgamentos de crimes dolosos contra a vida, dentre os quais se inclui o aborto. Garante, ainda, a proteção à maternidade (art. 6º, caput; art. 201, inciso II e art. 203, inciso I) e a licença à gestante com duração de cento e vinte dias (art. 7º, inciso XVIII), como forma de proteger tanto a mãe, quanto o nascituro. Conforme ensina Alexandre de Moraes (2010, p. 65), “a Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina”. Assim, dúvidas não há de que o legislador constituinte cuidou de inserir uma inequívoca proteção ao nascituro, o que refletiu, inclusive, na tutela infraconstitucional dos direitos daquele que se encontra em desenvolvimento no ventre materno. Cumpre notar que o Pacto San José da Costa Rica, também denominado Convenção Americana dos Direitos Humanos, assinado em 22 de novembro de 1969, ratificado pelo Brasil em setembro de 1992 e introduzido no direito interno através do Decreto nº 678/92, estabelece a proteção legal à vida do nascituro: Art. 4º - Direito à vida 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Também a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, por meio do Decreto nº 99.710/90, considera em seu preâmbulo que a proteção e os cuidados especiais que devem ser dispensados à criança incluem a proteção jurídica antes e depois do nascimento. Vê-se que o direito à vida é um bem que se sobrepõe a qualquer outro e dele dependem os demais. Sua magnitude é exaltada quando a obrigação de respeitá-la vem desde a concepção. Partindo dessas premissas é que se reconheceu o direito da genitora pleitear alimentos em nome do nascituro, para que possa enfrentar as despesas anteriores ao parto e garantir uma adequada assistência pré-natal. Nesse diapasão, em 05 de novembro de 2008 foi aprovada a Lei dos Alimentos Gravídicos (Lei nº 11.804/08) a fim de disciplinar o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido. 3 A RESPONSABILIDADE DOS PAIS EM RELAÇÃO AOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS O instituto jurídico dos alimentos encontra disciplina legal nos
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art. 1.694 a 1.710 do Código Civil e tem como propósito assegurar ao parente, cônjuge ou companheiro o que for necessário para sua manutenção, garantindo-lhes os meios de subsistência compatíveis com sua condição social. Compreende tudo aquilo que a pessoa demanda para uma vida digna, envolvendo não só o indispensável para o sustento, mas também o necessário para preservação da condição social e moral do alimentando. No entendimento de Maria Helena Diniz (2009, p. 1198), “os alimentos são prestações que visam atender às necessidades vitais, atuais ou futuras, de quem não pode provê-las por si”. Para Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 673) “os alimentos significam o conjunto das prestações necessárias para a vida digna do indivíduo”. A verba alimentar, também designada pensão alimentícia, é destinada à subsistência e, portanto, deve proporcionar sustento, assistência médica, vestuário, habitação, instrução, educação, lazer, cultura e um certo bem estar para aquele que não tem recursos para se manter. Os alimentos estão relacionados ao dever de amparo e solidariedade que deve existir nas relações familiares de parentesco, companheirismo e matrimonial, disposto no art. 3º da Constituição Federal que anuncia, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A pretensão dos alimentos tem como pressuposto fundamental o binômio necessidade/possibilidade, expressamente previsto no § 1º do art. 1.694 do Código Civil, segundo o qual “os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”. Contudo, a doutrina mais moderna acrescentou a proporcionalidade como terceiro requisito a ser observado. Em sendo assim, a fixação dos alimentos deve levar em conta a necessidade da pessoa que pede, a possibilidade ou capacidade econômica do responsável pela obrigação, além da proporcionalidade entre os recursos de quem paga e a necessidade de quem recebe. Acerca da proporcionalidade, Maria Helena Diniz (2009, p. 1200) assevera: Imprescindível será que haja proporcionalidade na fixação dos alimentos entre as necessidades do alimentando e os recursos econômico-financeiros do alimentante, sendo que a equação desses dois fatores deverá ser feita, em cada caso concreto, levando-se em conta que a pensão alimentícia será concedida sempre ad necessitatem. O direito à prestação de alimentos tem natureza personalíssima, já que é ínsito à própria vida e está diretamente vinculado à dignidade e pessoa humana. Desse modo, os alimentos são direitos essenciais da pessoa, inatos, absolutos, irrenunciáveis, indisponíveis, incompensáveis e impenhoráveis, É o que ensina Géssica Amorim Dona (2012) ao afirmar que “a obrigação alimentar é um direito personalíssimo, ou seja, tem como objetivo assegurar a vida do alimentando, não podendo este direito ser transferido a outrem e em face disso é também um direito impenhorável”. Por assim dizer, as normas jurídicas que regulam o instituto dos alimentos são consideradas como de ordem pública, inderrogáveis e irrenunciáveis, em virtude de sua relevância em proteger e preservar a vida humana. O Estado tem interesse direto no cumprimento das normas que impõem a obrigação legal de alimentos, pois a inobservância ao seu comando aumenta o número de pessoas carentes e desprotegidas, que devem, em consequência, ser por ele amparadas. Daí a razão por que as aludidas normas são consideradas de ordem pública. (GONÇALVES, 2011, p. 351).
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No tocante aos alimentos devidos aos filhos, o dever de sustento, inerente ao poder familiar, constitui obrigação de ambos os pais, conforme dicção do art. 1.566, inciso IV, do Código Civil. Além disso, o art. 1.703 do supracitado diploma legal apresenta a obrigação dos cônjuges separados contribuírem para a manutenção de seus filhos, na proporção de seus recursos, bem como, o art. 1.705 resguarda ao filho havido fora do casamento o direito de acionar o genitor para obter alimentos, admitindo-se que a ação se processe em segredo de justiça. De igual modo, o legislador constituinte teve o cuidado de reconhecer a obrigação dos pais de assistir, criar e educar os filhos menores. A obrigação alimentar dos pais para com os filhos inicia-se antes do nascimento, já que a lei põe a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Assim, a fim de assegurar o desenvolvimento da gestação de forma regular e sadia, objetivando a proteção da vida em desenvolvimento no ventre materno, foi editada a Lei nº 11.804/08 que disciplina o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido. A referida norma veio pacificar a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de concessão de alimentos ao nascituro. Enquanto perdurava o silêncio do legislador, os argumentos contrários eram fortalecidos pela Lei nº 5.478/68 que, em seu art. 2º, exige a comprovação do vínculo de parentesco como requisito para ação de alimentos. Todavia, antes mesmo do advento da Lei de Alimentos Gravídicos, existia uma tendência ao reconhecimento da obrigação alimentar antes do nascimento. Em decisão pioneira, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, com um julgado de 13 de agosto de 2003, reconheceu o direito de alimentos em favor do nascituro. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM FAVOR DO NASCITURO. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO DO QUANTUM. 1. Não pairando dúvida acerca do envolvimento sexual entretido pela gestante com o investigado, nem sobre exclusividade desse relacionamento, e havendo necessidade da gestante, justifica-se a concessão de alimentos em favor do nascituro. 2. Sendo o investigado casado e estando também sua esposa grávida, a pensão alimentícia deve ser fixada tendo em vista as necessidades do alimentando, mas dentro da capacidade econômica do alimentante, isto é, focalizando tanto os seus ganhos como também os encargos que possui. Recurso provido em parte. (RIO GRANDE DO SUL, Agravo de Instrumento nº 70006429096. Relator: Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Data do julgamento: 13/08/2003). No mesmo caminho, Caio Mário da Silva Pereira (2006 apud LOMEU, 2008) já afirmava que a vida do nascituro, cujos direitos são assegurados pela ordem jurídica vigente, estaria comprometida caso fossem recusados à mãe os recursos primários de que ela necessita para sobrevivência do ser em formação em seu ventre. Pontes de Miranda (apud LOMEU, 2008) também enfatizava: A obrigação alimentar pode começar antes de nascer, pois existem despesas que tecnicamente se destinam à proteção do concebido e o direito seria inferior se acaso se recusasse atendimento a tais relações inter-humanas, solidamente fundadas em exigências da pediatria. Lado outro, Yussef Said Cahali (2009, apud SILVA, 2013) não reconhecia o direito de alimentos ao nascituro sob o argumento de que o ser humano ainda não concebido, estando pendente a condição
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de nascimento com vida, não possui individualidade própria de vida, destarte não é titular da pretensão alimentícia. A Lei de Alimentos Gravídicos surge então para tornar juridicamente incontroversa uma conjuntura que vinha sendo perfilhada pela doutrina e adotada na esfera judicial, mesmo que em casos ímpares. Ademais, objetivou-se acompanhar a nova realidade social da forma com que as pessoas se relacionam afetivamente, tendo em vista que, na atualidade, muitas das vezes ocorre a gravidez sem que exista um relacionamento estável entre os genitores. Nessa conjuntura, os alimentos gravídicos funcionam como uma proteção aos direitos de nascituro, além de servir para que o pai contribua, ao menos financeiramente, para o bom andamento da gravidez. Abrilhanta a Lei de Alimentos Gravídicos a desejada proteção da pessoa humana e dos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna, correspondendo-os ao sistema do direito privado, gerando a via tão desejada do direito civil-constitucional, considerando assim um grande avanço na legislação pátria. (LOMEU, 2008). A lei em comento trata de definir, em seu art. 2º, o que vem a ser alimentos gravídicos. Art. 2º. Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes. Como ensina Leandro Soares Lomeu (2008), alimentos gravídicos são “aqueles devidos ao nascituro, e, percebidos pela gestante, ao longo da gravidez”. Nas palavras de Diego Gonçalves da Silva (2013, p. 15): São alimentos destinados à mulher gestante, incorporando todos os custos necessários decorrentes de tempo em que se desenvolve o embrião no útero da gestante até o nascimento, custeados pela mulher grávida e pelo suposto pai, de forma proporcional aos seus recursos. Criticando a terminologia adotada pela legislação e consagrada pela doutrina, Gagliano e Pamplona Filho (2011) destacam que o titular do direito a alimentos é o ser humano que ainda não nasceu, motivo pelo qual entendem que a Lei nº 11.804/08 deveria ser identificada como dos alimentos do nascituro, pois os alimentos são fixados para a pessoa e não para o estado biológico da mulher. Fato é que a gestante necessita de cuidados especiais durante a gravidez o que inclui exames médicos e laboratoriais periódicos, remédios, tratamentos clínicos, nutrição adequada, além das despesas com preparação do enxoval. A ausência de recursos financeiros para prover tais necessidades reflete diretamente na figura do nascituro. Assim, a obrigação de pagar alimentos no período gestacional serve para proporcionar uma gestação saudável e segura como instrumento para garantir a vida e integridade física do ente que ainda não nasceu, consolidando-se a proteção integral da personalidade do nascituro e o reconhecimento expresso de seus direitos. Os alimentos devidos ao nascituro são fixados judicialmente mediante a existência de indícios da paternidade e perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da genitora e as possibilidades do alimentante, conforme define a legislação sobre o tema. Note-se que, dada a premência dos alimentos gravídicos, basta a simples demonstração de indícios de paternidade para o arbitra-
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mento da medida, ficando definitivamente removido o obstáculo imposto pela Lei nº 5.478/68 que exigia prova cabal do parentesco para que o alimentando pudesse exigir alimentos de seu genitor. Dessa forma, para o deferimento do pedido de alimentos gravídicos, caberá à autora apresentar um lastro provatório que evidencie a paternidade, seja por intermédio de fotografias, testemunhas, e-mails, cartas, mensagens em redes sociais, ou qualquer outro meio de prova legalmente admitida. À luz dos pressupostos de Douglas Phillips Freitas (2008), por maior que seja a necessidade da gestante, o mero pedido de alimentos não possui presunção de veracidade, bem como não é possível inverter o ônus probatório ao pai, já que isso significaria impor-lhe a prova de um fato negativo, de produção impossível e refutada pela jurisprudência. A respeito da matéria, corrobora a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, admitindo a imposição dos alimentos gravídicos somente nas hipóteses em que se constata a existência de provas suficientes para justificar sua fixação. AGRAVO DE INSTRUMENTO - ALIMENTOS GRAVÍDICOS - FIXAÇÃO LIMINAR - INDÍCIOS DE PATERNIDADE - AUSÊNCIA - INDEFERIMENTO ATÉ ULTERIORES ESCLARECIMENTOS RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Nos termos do art. 6º da Lei 11.804/08, a concessão dos alimentos gravídicos está condicionada à “existência de indícios da paternidade” atribuída ao réu. 2. Para o arbitramento liminar de alimentos em favor da gestante, é necessário um lastro probatório mínimo da paternidade aventada pela autora, a fim de evitar lides oportunistas e temerárias, dada a irrepetibilidade da verba. 3. Ausência de provas indiciárias capazes de atribuir ao réu ora agravado - a condição de genitor do nascituro. 4. Recurso não provido. (MINAS GERAIS. Agravo de Instrumento nº 1.0035.13.007280-0/001. Relatora: Desembargadora Áurea Brasil. Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Data do julgamento: 22/08/2013). Há de se registrar, por oportuno, que é impraticável a utilização de perícia como instrumento de prova, pois o exame de DNA (sigla de ácido desoxirribonucléico) pode ocasionar grandes riscos gestacionais, comprometendo a existência do nascituro. Quando sopesados os direitos à vida e à saúde do nascituro com a necessidade de uma prova absoluta de paternidade, os dois primeiros direitos se sobressaem e permitem o emprego de um rol probatório amplo, formado por testemunhas, fotografias, cartas, correspondências eletrônicas, sem a imprescindibilidade do exame de carga genética no nascituro. (PEREIRA, 2012). Logo, com fulcro no princípio do livre convencimento do juiz, caberá ao magistrado fixar os alimentos gravídicos quando convencido da existência de indícios da paternidade alegada. Outro aspecto a ser considerado na Lei de Alimentos Gravídicos é o estabelecimento dos mesmos requisitos previstos no Código Civil para a fixação dos alimentos: a necessidade da gestante, a possibilidade do suposto pai e a proporcionalidade como forma de equilíbrio entre os dois outros critérios. Visando preservar a vida e assegurar o desenvolvimento do nascituro, o quantum definido deverá ser suficiente para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez, não só aquelas enumeradas no art. 2º, mas sim todas as outras que o magistrado entender pertinentes. Portanto, “o rol não é taxativo, podendo o juiz adicionar outras despesas necessárias à gestante”. (NUNES, 2013, p. 17).
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Para Tannuri e Hudler (2013), em razão do estado peculiar da gestante, suas necessidades são presumidas e, portanto, prescinde de comprovação de gastos específicos ou de efetivos dispêndios com a gestação. No julgamento do Agravo de Instrumento nº 2012.00.2.0074277, ocorrido em 06 de junho de 2012, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios acolheu esse entendimento, afirmando que “os alimentos gravídicos compreendem valores suficientes para cobrir as despesas referentes ao período de gravidez e que sejam dela decorrentes, uma vez que a necessidade em caso de gestante é presumida”. (TJDFT, 2012). De fato, não há como negar que o estado de gravidez requer despesas adicionais, já que a mãe necessita de acompanhamento médico, exames de pré-natal, além de outros procedimentos para o regular desenvolvimento do nascituro, o que não se desincumbiu o legislador dessa espécie particular de alimentos em explicitar tais dispêndios através de rol não exaustivo. No entanto, caberá à autora da ação, demonstrar as despesas para que o juiz possa considerar a extensão de sua necessidade, a fim de uma correta e adequada definição do montante a ser pago, em observância ao trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade, até mesmo para que o magistrado possa julgar sua pertinência no caso em apreço. Esse foi o posicionamento adotado pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em julgamento do Agravo de Instrumento nº 1073449-1, realizado em 26 de março de 2014, no qual reconheceu a possibilidade de fixação dos alimentos em favor do nascituro, embora não tenha havido comprovação das despesas por parte da autora. Todavia, entendeu que se poderia presumir os gastos ordinários que toda gestante possui com alimentação e saúde, de modo que os alimentos foram fixados unicamente para suprimento das necessidades vitais do alimentando. Interessa observar que ambos os genitores devem concorrer igualmente no custeio das despesas decorrentes da gestação, de forma proporcional aos recursos de cada um, conforme prevê o parágrafo único do art. 2º da Lei nº 11.804/08. Art. 2º. (...) Parágrafo único. Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de ambos. Bruna Carolino Rodrigues Nunes (2013, p. 18) reforça esse aspecto afirmando que “a referida lei não exime a mulher da participação dentro de suas possibilidades, o homem e a mulher devem concorrer de justa e igual, para garantir a saúde e o nascimento com dignidade do nascituro”. Essa isonomia está consagrada pela Constituição Federal ao determinar que ambos os pais possuem igualdade de direitos e obrigações para com os filhos. Ademais, o texto constitucional prevê deveres recíprocos entre os integrantes da entidade familiar que deve assegurar aos menores o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, dentre outros imprescindíveis para uma vida digna. Diante da similitude de deveres e direitos exercidos pelos pais em relação aos filhos, a gestante também deverá contribuir com as despesas adicionais do período de gravidez. Logo, os gastos devem ser repartidos entre a gestante e o pai, de maneira proporcional aos recursos de cada um. Cabe lembrar que de acordo com o parágrafo único do art. 6º da Lei nº 11.804/08, após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos serão convertidos em pensão alimentícia em favor do menor, até que uma das partes solicite a sua revisão.
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4 O NASCITURO E A IDENTIFICAÇÃO DO PAI COMO RESPONSÁVEL PELO PAGAMENTO DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS A partir do nascimento com vida, os alimentos gravídicos são automaticamente convertidos em pensão alimentícia em favor do menor, independentemente de qualquer manifestação das partes, já que assim define a legislação relativa ao tema. Os alimentos passam a ser direcionados à criança de forma imediata, sem que estejam condicionados a fator algum, não se exigindo, tampouco, a apresentação de certidão de nascimento para comprovar o nascimento com vida. Essa conversão, prevista no parágrafo único do art. 6º da Lei de Alimentos Gravídicos, altera a finalidade dos alimentos que antes se destinavam à manutenção da gestante durante o período de gravidez, e agora passam a assegurar a subsistência da criança que, por óbvio, não possui condições de prover seu próprio sustento. Além de facilitar o acesso à justiça e projetar uma maior celeridade processual, essa medida pretende dar continuidade à proteção dos direitos do nascituro, garantindo o melhor interesse do menor, em respeito ao princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, consagrada no ordenamento jurídico pátrio. Note-se que a titularidade dos alimentos é transferida para o menor que adquiriu personalidade jurídica a partir de seu nascimento com vida, conforme pode ser constatado no acórdão do Agravo de Instrumento nº 1.0024.12.220931-5/001, julgado pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AGRAVO DE INSTRUMENTO - ALIMENTOS GRAVÍDICOS - CONVERSÃO AUTOMÁTICA EM AÇÃO DE ALIMENTOS - POSSIBILIDADE - ART. 6º, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI FEDERAL N. 11.804/08 - REGULARIZAÇÃO DO POLO ATIVO DA DEMANDA NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO ADJETIVA CIVIL. Admitida a conversão automática da ação de alimentos gravídicos em ação de alimentos, com fulcro no art. 6º, parágrafo único da Lei Federal n. 11.804/08, sem prejuízo da regularização do pólo ativo da demanda, com a identificação civil do até então nascituro, nos termos do art. 8º c/c o art. 282, inciso II, ambos do CPC. (MINAS GERAIS. Agravo de Instrumento nº 1.0024.12.220931-5/001. Relator: Desembargador Versiani Penna. Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Data de julgamento: 29/08/2013). Nessa esteira, o fim da gestação não representa a extinção da obrigação, pois os alimentos continuam devidos até que uma das partes solicite a sua revisão, que poderá ser feita cumulativamente com a ação de investigação de paternidade, caso não tenha ocorrido o reconhecimento voluntário. Como visto, os alimentos gravídicos são fixados tão somente com base em indícios de paternidade, não sendo possível confirmá-la através da realização de exame de DNA por meio de coleta de líquido amniótico, em razão dos riscos que tal procedimento podem ocasionar à vida e à integridade física do nascituro. Cabe ressaltar que a redação original do projeto de lei que deu origem à Lei nº 11.804/08 previa a obrigatoriedade de realização de exame pericial pertinente para procedência do pedido de alimentos gravídicos nos casos em que houvesse oposição à paternidade. Entretanto, essa disposição foi objeto de veto presidencial, sob o fundamento de que a perícia não pode servir de condição para procedência de qualquer demanda, embora constitua elemento de prova necessário quando inexistirem outros elementos comprobatórios da situação jurídica objeto da controvérsia. A par dos motivos explicitados na mensagem de veto, fato incontroverso na comunidade médica é que o exame de DNA pode
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comprometer a gestação, fazendo com que a identificação do pai como credor alimentário se dê com base nos indícios decorrentes da interpretação das provas carreadas aos autos. Assim, na ação de alimentos gravídicos a contestação da paternidade é bastante tênue, cabendo ao demandado apresentar provas que afastem a possibilidade do vínculo biológico com o nascituro, seja pela comprovação de esterilidade, ter realizado vasectomia ou sofrer de impotência sexual grave, seja pela demonstração de que seu relacionamento com a gestante ocorreu antes da concepção ou de que ela manteve relações sexuais com outros homens. Isso porque o legislador preferiu priorizar os direitos do ser humano que ainda está para nascer, em detrimento de interesses particulares dos genitores, já que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Ocorrendo, então, o nascimento com vida, poderá o suposto pai questionar a paternidade e requerer sua averiguação, tendo a seu favor a possibilidade de realização de exame pericial de investigação de vínculo genético. Atualmente o exame de DNA é o meio de prova mais seguro para verificação da verdade biológica, sendo amplamente conhecido como mecanismo de extrema, notória e elevada confiabilidade, haja vista seu alto nível de precisão em desvendar as informações genéticas do ser humano. Possui margem de segurança de 99,9999% tanto para inclusão, quanto para exclusão da paternidade, o que favoreceu sua conversão no principal método de identificação humana de valor diferenciado até mesmo perante outras provas processuais cabíveis nas ações de determinação de filiação. (ALMEIDA, 1999). Assim, utilizando-se do exame de DNA e restando cientificamente comprovada que a paternidade é daquele obrigado, os alimentos mudam sua natureza e se convertem em favor do filho, em observância às disposições legais que visam proteger a criança e o adolescente, assegurando-lhes condições dignas de sobrevivência. Como ensina Géssica Amorim Dona (2012), “restando comprovada a paternidade, estaria firmado o vínculo de filiação e fixada a obrigação alimentar”. É o que se observa no julgamento da Apelação Cível nº 2012.09.1.005334-9, apreciada pela 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. APELAÇÃO CÍVEL. ALIMENTOS GRAVÍDICOS. CONVERSÃO EM ALIMENTOS PARA O MENOR NASCIDO COM VIDA. FIXAÇÃO. POSSIBILIDADE DE QUEM PRESTA E NECESSIDADE DE QUEM RECEBE. Para a concessão do benefício não há necessidade de cognição definitiva a respeito da paternidade, sendo suficiente a existência de indícios da paternidade. Destarte, ajuizada ação de investigação de paternidade em razão do nascimento da criança, o pedido foi julgado procedente. Na fixação dos alimentos há de ser observado o binômio possibilidade/necessidade. (BRASIL. Apelação Cível nº 2012.09.1.005334-9. Relator: Desembargador. Segunda Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Data do julgamento: 11/09/2013). Se do resultado do exame de DNA for constatado que o até então devedor dos alimentos não é pai biológico da criança, caberá a ele pleitar a exoneração da pensão, solicitando ao Judiciário que declare extinta a obrigação alimentar, com base no laudo pericial carreado aos autos. Fábio Maioralli (2009) explica que “ocorrendo a ação de investigação de paternidade, utilizando como prova o exame de DNA, logo após o nascimento, constatando que o suposto pai não sustenta, por intermédio
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de tal laudo pericial, esta responsabilidade, este está desobrigado”. Vislumbrando-se a descaracterização do vínculo biológico de forma absoluta, através de prova técnica de verdade científica inquestionável, não há razão para que o suposto genitor permaneça no pólo passivo da demanda, por completa ausência de obrigação legal. Em vários casos de investigação de paternidade, os tribunais vêm assentindo acerca da desoneração do pagamento da verba alimentar quando comprovada a inexistência de relação parental entre as partes, desde que não se tenha estabelecido um vínculo sócioafetivo. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXONERAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. TUTELA ANTECIPADA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DNA NEGATIVO. No direito civil brasileiro os alimentos somente são devidos quando há relação parental entre as partes. Excluída a referida relação de parentesco por meio do exame de DNA não há se falar em obrigação alimentar tolitur causa cessat efectus. (Agravo de Instrumento nº 1.0382.06.064184-4/001. Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Relator: Desembargador Belizário de Lacerda. Data de julgamento: 29/05/2007). Seguindo o mesmo caminho, no julgamento da Apelação Cível nº 1.0079.10.044365-8/003, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais sustentou que, proporcionalmente à inexistência vínculo hereditário e afetivo de paternidade, inexiste obrigação alimentar, pois a paternidade apresenta estreita conexão com os alimentos. Logo, comprovada a ausência de vínculo biológico e de relação afetiva que imponha a paternidade, declara por certo a não obrigação alimentar. Diante da possibilidade de se descaracterizar a obrigação alimentar pela comprovação da ausência de vínculo parental entre o recémnascido e o suposto pai, mesmo depois de adimplidas as prestações alimentícias decorrentes da imposição dos alimentos gravídicos, a Lei nº 11.804/08 continha dispositivo que impunha a responsabilização objetiva do autor pelos danos morais e materiais causados ao réu. Contudo, tal previsão foi vetada por ser considerada intimidadora, assim como atentatória ao livre exercício da ação, pois impõe ao autor o dever de indenizar independentemente da existência de culpa. Segundo Maria Berenice Dias (2008), aludido preceito afronta o princípio constitucional de acesso à justiça e, caso fosse sancionado, criaria um perigoso antecedente para que toda ação desacolhida, rejeitada ou extinta ensejasse direito indenizatório ao réu. De acordo com a redação original da norma, o resultado negativo do exame pericial de paternidade seria suficiente para que o réu pudesse pleitear a indenização. Com o veto, o assunto passa a ser objeto de controvérsia doutrinária. A princípio, insta destacar que prevalece o entendimento jurídico de que os alimentos são irrepetíveis, isto quer dizer que, se forem adimplidos indevidamente, o alimentante não pode pedir de volta e o alimentando não está obrigado a devolvê-los. A respeito dessa característica, discorre Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 365): Os alimentos, uma vez pagos, são irrestituíveis, sejam provisórios, definitivos ou ad litem. É que a obrigação de prestá-los constitui matéria de ordem pública, e só nos casos legais pode ser afastada, devendo subsistir até decisão final em contrário. Mesmo que a ação venha a ser julgada improcedente, não cabe a restituição dos alimentos provisórios ou provisionais. Quem pagou alimentos, pagou uma dívida, não se tratando de simples antecipação ou de empréstimo. Os alimentos não se restituem, pois se destinam à sobrevivência do indivíduo que dele necessita e, por corolário lógico, são imediatamen-
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te convertidos em bens de consumo, restando consagrada a impossibilidade de devolução das parcelas quitadas em favor do alimentando. Por essa razão, mesmo após a confirmação de ausência de filiação entre o suposto pai e o beneficiário da verba alimentar, o credor não poderia ser compelido a devolver os valores pagos a título de alimentos gravídicos. Buscando amenizar os danos materiais advindos ao réu, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 693) ensinam que “se a paternidade, posteriormente, for oficialmente negada, poderá o suposto pai voltarse, em sede de ação de regresso, contra o verdadeiro genitor, para evitar o seu enriquecimento sem causa”. Trata-se de hipótese em que, identificado e reconhecido o verdadeiro pai biológico do infante, faculta-se ao réu pleitear a devolução do montante dispendido para auxiliar nas despesas extras do período de gestação que deveriam ter sido arcadas por aquele que possuía vínculo genético com o nascituro. Yussef Said Cahali (2006, apud FERNANDES, 2012) também é adepto dessa teoria, admitindo a restituição dos alimentos quando tiverem sido prestados por quem não devia, desde que provado que a obrigação alimentar cabia a terceiro, pois o alimentando não teve nenhum enriquecimento ilícito. Flávio Monteiro Barros (2009, apud SILVA, 2013) ressalta a possibilidade de ação in rem verso contra o verdadeiro pai, mas somente se caracterizado dolo na conduta do genitor, silenciando intencionalmente sobre a paternidade. É certo que o Código Civil contrapõe-se ao enriquecimento sem causa, obrigando aquele que se beneficiou à custa de outrem a restituir o indevidamente auferido. Essa conjuntura, expressa no art. 884 do Código Civil, fundamenta uma possível ação de regresso contra aquele que efetivamente deveria ter fornecido os alimentos gravídicos. A despeito de ter sido vetado o artigo que impunha a responsabilidade objetiva da mulher grávida, não houve a exclusão dessa responsabilização que pode ocorrer de forma subjetiva, ou seja, dependendo da existência de dolo ou culpa do agente causador do dano. Demonstrar o enriquecimento ilícito da mãe que se beneficiou da verba alimentar seria uma tarefa árdua, já que os valores recebidos foram revertidos para custeio das despesas com a gravidez e não significaram aumento patrimonial. Todavia, comprovando o dolo ou a culpa da gestante em provocar-lhe dano, o falso pai poderá requerer a reparação, nos termos do art. 927 do Código Civil, segundo o qual “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Entende-se por ato ilícito toda ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, capaz de violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, consoante prevê o art. 186 do Código Civil. Em seguida, o art. 187 anuncia que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. No tocante ao dano, fica evidente a diminuição do patrimônio do suposto pai que foi obrigado ao pagamento indevido do valor arbitrado em juízo, configurando o dano material. Ademais, a repercussão da possível paternidade pode ter lhe afetado de forma íntima, atingindo de maneira negativa sua dignidade, honra, intimidade e reputação, restando danos à sua moral. Assevera Géssica Amorim Dona (2012) que “a condenação daquele que não era pai, além de gerar o encargo financeiro, indubitavelmente acarreta grande abalo psicológico ao réu”. Existe entendimento jurisprudencial no sentido de se conceder indenização àquele moralmente lesado pela falsa imputação de pa-
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ternidade. O acórdão reconheceu que o fato de ser apontado como pai da criança ensejou dano moral, na medida em que proporcionou uma dolorosa sensação de dor, espanto, vergonha e emoção que, associada às perturbações nas relações psíquicas, na tranquilidade e nos sentimentos, merece o justo ressarcimento. (DONA, 2012). Aventada a ação de ressarcimento do montante pago e de danos morais em favor do falso pai, caberá demonstrar a culpa da gestante, seja por intenção de causar prejuízo ou por negligência ou imprudência ao promover a ação de alimentos gravídicos. Não se trata, pois, de repetição dos alimentos, mas sim de justa indenização pelos danos morais e patrimoniais suportados pelo réu da ação de alimentos gravídicos. Outra hipótese de responsabilização é apontada por Douglas Phillips Freitas (2008) ao proclamar a possibilidade de condenação por litigância de má fé da gestante que indicar falso pai, sabendo da verdadeira paternidade, com o intuito de conseguir auxílio financeiro de terceiro inocente. Pelo exposto, embora os alimentos gravídicos sejam abarcados pelo princípio da irrepetibilidade, existem outros meios legais à disposição do suposto pai que os financiou de forma descabida, para que possa ser ressarcido dos danos sofridos, quais sejam, ação de indenização, repetição de indébito e litigância de má fé. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei nº 11.804/08 significa um avanço no que tange ao direito fundamental à vida, que deve ser preservada antes mesmo do nascimento. Buscou o legislador assegurar as condições necessárias para que o nascituro possa desenvolver-se no ventre materno de forma plena e sadia. A não exigência de provas robustas da paternidade para fixação dos alimentos gravídicos, bastando a demonstração de meros indícios, tem por fim assegurar a aplicabilidade da lei. Dada a urgência da medida, fica inviável a comprovação do vínculo biológico de forma inequívoca, notadamente em razão da inviabilidade de se realizar o exame de DNA antes do nascimento, em face dos riscos que o procedimento poderá provocar à gestação. Os alimentos são devidos até o parto, quando são automaticamente convertidos em pensão alimentícia em favor do menor. Assim, o Judiciário somente precisará ser provocado em caso de eventual exoneração, redução ou majoração da quantia arbitrada. Mesmo comprovado através de exame pericial que o indigitado pai não é efetivamente pai biológico da criança, as verbas alimentares adimplidas não poderão ser restituídas, pois se destinam à sobrevivência e, portanto, são consumidas de imediato. Destarte, fundamentando-se na vedação legal ao enriquecimento sem causa, o demandando na ação de alimentos poderá regressar contra o verdadeiro pai, solicitando o ressarcimento dos valores pagos indevidamente. De igual modo, poderá pleitear indenização por dano moral e material em face da gestante que, por culpa ou dolo, falsamente o indicou como genitor, haja vista que Lei Civil estabelece que aquele que causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Christina. A Prova do DNA: uma evidencia absoluta. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_44/Artigos/Art_Maria. htm>. Acesso em: 25 out. 2014. ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Bioética e direitos de personalidade do nascituro. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/iuris/article/ download/11105/9819>. Acesso em: 10 out. 2014.
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Privado pela Pontifícial Universidade Católica de Minas Gerais. Professora e coordenadora do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. **Valéria Edith Carvalho de Oliveira; Herbert Soares Leite.
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UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA PENAL: JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL Marianna Débora Marques Soares1 Ronaldo Braga2 Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo científico tem como objeto de estudo analisar a justiça restaurativa como um novo modelo de justiça aplicado no Brasil, diferente do processo convencional. Com intuito direcionado a solucionar mediante diálogos os conflitos que desencadearam a ação penal, sendo uma alternativa para a resolução dos litígios penais entre agressor e vítima. Examinar por meios de quais instrumentos legais, o ordenamento jurídico pátrio, permite a implantação de programas restaurativos no Brasil. O Estatuto da criança e do adolescente a Lei n° 9.099/95 são exemplos de legislações que contemplam dispositivos que servem de esteio para o desenvolvimento de práticas restaurativas. PALAVRAS-CHAVE: justiça restaurativa; justiça retributiva; soluções de conflitos; Lei n° 9.099/95. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Sistema Penal brasileiro; 2.1 Meios alternativos de resolução de conflitos e sua aplicabilidade na justiça penal: a conciliação e a mediação; 3 Justiça Restaurativa: um novo modelo de justiça penal; 3.1 Surgimento, Conceito e Objetivo da Justiça Restaurativa; 3.2 Princípios e modus operandi da Justiça Restaurativa; 4 Justiça Restaurativa no Brasil; 4.1 Portas de entrada no ordenamento jurídico brasileiro; 4.2 Implantação da Justiça Restaurativa no Brasil; 4.3 Projeto de Lei n° 7.006/06; 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O atual modelo de justiça utilizado no Brasil é primordialmente, o retributivo, que consiste que o Estado tem o dever-poder de punir aquele que violar o ordenamento jurídico aplicando ao transgressor uma pena putativa. Porém, este modelo não vem apresentando resultados satisfatórios. O encarceramento deveria acatar as necessidades sociais de punição e proteção enquanto promove a reeducação dos ofensores3, mas o que ocorre na prática é diferente disto, as cadeias tornaramse sede de horrores, e é nítido o número alarmante de pessoas presas e processadas criminalmente e o aumento de reincidentes no país. Ao admitir a inadequação e o mau uso das prisões buscaram-se “alternativas” ao encarceramento, contudo, ao passo em que cresce as “alternativas” aumentam as populações carcerárias e as necessidades essenciais da vítima e ofensor, continuam indeferidas. É através desta análise crítica do sistema putativo, que surge um novo modelo de justiça penal, a Justiça Restaurativa, que tem como objetivo tratar os danos e necessidades bem como as obrigações decorrentes, e envolve todos os atingidos ou interessados na situação utilizando, no que couberem, processos cooperativos e inclusivos. Sua idealização pressupõe uma mudança de paradigma ou, como descreve Howard Zehr, a construção de uma nova lente, que seria nas palavras do autor “visões alternativas fundamentadas em princípios e experiências” que serviria como caminho para soluções à crise atual4. A principal mudança refere-se à forma como enxergamos o crime, que passa a ser entendido como uma violação de pessoas e relacionamentos. A justiça deverá se concentrar na reparação, em acertar o que não está certo. Ocorrido o fato criminoso, a Justiça Restaurativa envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reconciliação com vistas à restauração. Dessa forma, a Justiça Restaurativa rompe com a proposta do modelo punitivo vigente, que se baseia na aplicação de uma pena a quem cometeu violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa, infligindo dor e sofrimento a quem o sistema considera culpado, por meio de regras sistemáticas. 2 SISTEMA PENAL BRASILEIRO A legislação processual penal brasileira é inspirada pela legislação italiana da década de 1930, em pleno regime fascista, que explica os traços notoriamente autoritários do Código de Processo Penal Brasileiro,
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que em redação primitiva não permitia a restituição da liberdade do réu, mesmo absolvido em sentença, sobre o fundamento de que a liberdade dependia do grau de apenação da infração penal. No princípio, recebida a denúncia, era decretada, automática e obrigatoriamente, a prisão preventiva do acusado, tratando como se fosse o verdadeiro culpado5. Ao passar dos anos, com advento de diferentes leis, a restituição da liberdade do aprisionado foi se expandindo, por exemplo, com a vigência da Lei n° 12.683/12 que revogou disposição legal que vedava a restituição da liberdade nos crime de lavagem de dinheiro e, como também, a Lei n° 11.464/07 que modificou o art. 2°, II, da lei dos Crimes Hediondos, que passou a vedar unicamente a liberdade provisória com fiança, admitindo a restituição da liberdade com a cominação de outras medidas cautelares diversas da fiança. Eis que em 2011 entrou em vigor a Lei n° 12.403/11 que estabelece que seja inexorável a ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária que restringe os direitos no curso do processo penal. As novas cautelares pessoais, que inclui a prisão preventiva, dependerão de fundamentação judicial, conforme artigo 283, caput do Código de Processo Penal. O originário Código de Processo Penal tratava o acusado como potencial culpado, sem sequer mencionar a presunção de inocência. A preocupação era dirigida tão somente à segurança pública, sem se importar com a liberdade individual. Isto mudou com o advento da Constituição Federal de 1988, que institui um sistema de amplas garantias individuais, por começar pela presunção de inocência, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5°, LVII, CR/88). Em decorrência da alteração feita pela Carta Magna, o processo se transformou em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado. Mas é nítida a manutenção pelo sistema retributivo no processo penal constitucional. O Estado ocupa posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre o qual tem exclusivo poder. O Estado está interessado tão somente em absolver ou condenar o acusado, deixando os interesses, a integridade psíquica das partes envolvidas no conflito, principalmente da vítima que é tratada como mero integrante, em segundo plano, quando não há sequer zelo por elas. O artigo 59 do Código Penal consagrou a teoria mista da finalidade da pena. Dessa forma, a sanção expõe um duplo aspecto: a
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reprovação e a prevenção do crime. Porém, os presídios no Brasil apresentam uma realidade que questiona a abrangência desses dois desígnios da pena. O que se nota, nas penitenciárias brasileiras, de forma quase total, são violações aos direitos humanos, constitucionalmente previstos e reconhecidos pela Corte Internacional de Justiça. Um sistema prisional debilitado tende a piorar o cenário de violência no país, uma vez ausente a possibilidade de recuperação do condenado. Isso converte em medo e insegurança na sociedade, que fica cada vez mais vulnerável a violência crescente em todos os meios sociais. Destaca-se, ainda, que esse aumento da criminalidade multiplica os gastos com segurança e saúde públicas, pelo fato de se tornar necessário um maior policiamento nas ruas e acolhimento, nos hospitais, das vítimas.
É importante destacar sobre a mediação que ela é classificada como extraprocessual ou processual, é confidencial e a saída é encontrada pelas partes que possuem total controle sobre o conflito. O objetivo dela não é promover um acordo, mas sim transformar o padrão de comunicação e relacionamento dos envolvidos. A mediação brasileira não possui previsão legal no ordenamento jurídico pátrio, mas em 1998 foi apresentado um Projeto de Lei n° 4.827 que a estabelecia como Método de Prevenção e Solução Consensual de Conflitos. O referido projeto tramitou no Senado e, no fim, foi instituído como prática para solução consensual de conflitos no âmbito civil6. Destarte, que há uma busca incansável para alternativas que visem solucionar conflitos na esfera penal. Por conta disto, a justiça restaurativa vem conquistando mais espaço na solução de pleitos.
2.1 Meios alternativos de resolução de conflitos e sua aplicabilidade na Justiça Penal: a conciliação e a mediação Devido ao aumento nos litígios, decorrentes da complexidade socioeconômica da sociedade moderna, é preciso recorrer a meios alternativos ao do modelo retributivo e individualistas das soluções judiciais. Como também pelo fato do aumento do problema penitenciário e prisional, caracterizado pela superlotação e condições sub -humanas que “demonstra o desencanto com as prometidas funções destinadas às sanções penais e a consequente falência de todo o sistema punitivo de privação da liberdade” (PACELLI, 2013, pág. 750). A Constituição através do artigo 98, I, encontrou como meio para resolução de conflitos a conciliação, com advento da Lei n° 9.099/95 foram instituídos os Juizados Especiais Criminais que detém a competência sobre a matéria. Tal caminho encontrado possui a finalidade de desafogar as varas criminais brasileiras, buscando, concomitantemente, uma maior solução aos processos envolvendo os cidadãos. O artigo 62 da Lei n° 9.099/95 prevê que: Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e cerelidade, objetivamente, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e aplicação de pena não privativa de liberdade (BRASIL, 2014).
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O processo penal conciliatório aduzido no presente momento tem por prioridade a não imposição da pena privativa da liberdade, como também acelerar a justiça e reparar o dano à vítima. A Lei n° 9.099/95 prevê hipóteses expressas em que a imposição de pena privativa de liberdade não apresenta a melhor solução para lide. Propõem, por fim, a transação penal, como prevê o art. 72 da referida lei. Destaca-se que a transação penal é direito subjetivo do réu. O Ministério Público no tocante à pena ser proposta na transação pode escolher “pela aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas” (art.76, Lei n° 9.099/95). Outra alternativa para a solução de conflitos no âmbito criminal é a mediação, que consiste em um terceiro, estranho à lide e imparcial, atuar como catalisador, sem interferir nas decisões dos sujeitos envolvidos. Aqui o objetivo é facilitar administração do conflito pelos próprios envolvidos, diferente da conciliação que tem por finalidade a solução do litígio. José Maria Rossani Garcez fala o seguinte: Na mediação, um terceiro, imparcial, auxilia as partes a chegarem, elas próprias, a um acordo entre si, através de um processo estruturado. As partes assim auxiliadas são as autoras das decisões e o mediador apenas aproxima e faz com que possam melhor compreender as circunstâncias do problema existente e a aliviar-se das pressões irracionais e do nível emocional elevado, que lhes embaraça a visão realista do conflito, impossibilitando uma análise equilibrada e afastando a possibilidade de acordo. (GARCEZ, 2004, pág. 39).
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3.1 Surgimento, conceito e objetivo da Justiça Restaurativa Na nossa sociedade o crime é definido pela violação ou infração de uma lei, deveríamos focalizar no dano efetivamente causado ou a experiência vivida por vítima e ofensor, contudo, nos interessa apenas o ato da violação da norma, se está presente à tipicidade ou não, sem direcionar os olhos ao dano ou conflito existente entre as partes evolvidas. A importância dado ao ato de violar a norma de direito penal é o que permite que tanto a ofensa como culpa sejam definidas em termos estritamente legais. As questões éticas, sociais, o ambiente em que se vive e que está perpetuamente influenciando condutas são tratadas de forma secundárias e, alguns casos, são até irrelevantes. O contexto do ato é desconsiderado, exceto na medida de suas implicações legais. Nas palavras de Nils Christie: A educação jurídica é um treinamento em simplificações. É uma incapacidade aprendida que faz com que o profissional, em vez de olhar todos os valores de uma situação, selecione somente os que têm relevância jurídica, ou seja, aqueles definidos pelos altos escalões do sistema como sendo relevantes. (Christie, Limits to Pain, pág.57). No direito penal o crime é definido como uma ofensa contra o Estado e a justiça consiste em estabelecer a culpa e impor a dor que seria a punição. A justiça concentra o seu foco em abstrações, o crime é uma dívida moral que deve ser paga, e a justiça é um processo que devolve o equilíbrio à balança, se omitindo quanto ao mal causado à vítima ou a comunidade afetada7. A vítima por diversas vezes é tratada como um mero integrante do processo. Os programas de ressarcimento e assistência às vítimas tornaram-se populares nos últimos anos, no entanto, será ineficaz sua aplicabilidade em quanto não enxergarmos a vítima como elemento intrínseco da definição de crime. E o Estado também é omisso em relação ao ofensor. As prisões, por exemplo, foram originalmente criadas como alternativas mais humanas aos castigos corporais e à pena de morte. O encarceramento deveria acolher às necessidades sociais de punição e proteção na medida em que promovem a reeducação dos ofensores. Porém, não é exatamente o que acontece, os cárceres privados cada vez mais se parecem com jaulas de animais e impossibilita à restauração do ofensor, o colocando a mercê, de forma contínua, a criminalidade, gerando reincidentes. A pena não pode ser vista como um fim é preciso ter como alvo à pacificação das relações sociais. Por isso, é necessário que a sociedade defina, imediatamente, o que pretende construir por meio do sistema atual de justiça criminal: uma nação de jaulas ou uma de cidadãos. Diante do crescente interesse por alternativas à resolução de conflitos, expedindo à elaboração de um novo paradigma/modelo de
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justiça criminal que vise influenciar ou até mesmo alterar decisivamente nossa maneira de pensar e agir em relação à questão criminal, inicia-se a apresentação do modelo de justiça restaurativa. A justiça restaurativa surgiu como meio de atender as necessidades das vítimas, dos ofensores e das comunidades. Pouco se fala aqui do papel incumbido ao governo enquanto parte interessada, uma vez que há certo ceticismo em relação a ele, contudo, de fato o governo tem interesse na questão e um papel importante na justiça restaurativa. Cabe a ele exercer a função de alicerçar os processos, salvaguardando direitos humanos e oferecendo procedimentos que deem conta das situações quando não é possível aplicar uma abordagem totalmente restaurativa. Para o acadêmico Howard Zehr a justiça restaurativa tem origem nas tradições indígenas, em suas palavras, “a justiça restaurativa representa a validação de valores e práticas que são característicos de muitos grupos indígenas” (ZEHR, 2008, pag. 256). E há vestígios de práticas restaurativas no Código de Hammurabi, o qual indicava medidas a restituição para as vítimas de crimes contra o patrimônio. Mas o modelo aplicado atualmente nasceu em meados da década de 1970, através de um psicólogo americano, Albert Eglash8. A justiça restaurativa segundo Renato Sócrates Gomes Pinto: [...] baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime (PINTO, 2010, pág.20). Em contrapartida ao modelo retributivo, o modelo restaurativo de justiça faz figurar a vítima como parte principal no processo e, procura meios no sentido de “consertar” o mal feito, para Howard Zehr “corrigir” significa que devemos tratar dos danos e necessidades das vítimas, como também as causas da ofensa. Este mesmo autor ao citar a conferência de justiça para a juventude da Nova Zelândia, no qual participou, extraiu duas partes fundamentais para a aplicação do novo paradigma de justiça: um plano para cuidar dos danos e neces-
sidades da vítima, e um plano para tratar daquilo que está acontecendo na vida do jovem ofensor e que contribuiu para levá-lo à ofensa. A justiça restaurativa trata de danos e necessidades bem como das obrigações decorrentes, e envolve todos os que sofrem o impacto ou têm algum interesse na situação utilizando, na medida do possível, processos cooperativos e inclusivos. Visa à restauração do dano causado pelo crime por parte dos transgressores da norma penal, procura fazer com que estes assumam a responsabilidade pelas suas condutas e busquem reconciliar-se com a vítima, ao invés de unicamente o Estado puni-los, esquecendo por muitas vezes, que as vítimas necessitam de outras respostas para suas demandas, que vão além da punição do agressor, carecendo, por vezes, de amparo especializado. Assim sendo, com licença as palavras de Howard Zehr: A justiça restaurativa encara (por exemplo) o crime como um mal causado acima de tudo, a pessoas e comunidades. O nosso sistema legal, que enfatiza apenas as normas e leis, frequentemente perde de vista essa realidade. Em consequência, faz das vítimas uma preocupação secundária, quando muito. Por seu turno, a ênfase no dano implica considerar antes de mais nada as necessidades da vítima e a importância desta no processo legal. Implica, ademais, em responsabilidade e compromisso concretos do infrator, que o sistema convencional interpreta exclusivamente através da pena, imposta ao condenado para compensar o dano, mas que, infelizmente, na maior parte das vezes, é irrelevante e até mesmo contraproducente (Howard Zehr, “Restorative Justice: The Concept”, Corrections Today, dez. 1997, pag.68, apud, SCURO NETO e PEREIRA, 2011, pág. 6). Situada a justiça restaurativa em relação à justiça retributiva que se encontra vigente, é importante atar-se a tabela adiante: O objetivo do novo paradigma de justiça discutido neste trabalho é a reparação e cura para as vítimas. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalançar o dano advindo do crime.
Fonte: Howard Zehr, 2008, págs. 174 e 175.
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Destaca-se que a cura para as vítimas não significa esquecer ou minimizar a violação. A intenção é provocar um senso de recuperação, numa forma de fechar um clico. A vítima supera o trauma se desconecta do dano que lhe causou sofrimentos e finalmente voltar a sentir que a vida faz sentido e que ela está segura e no controle. Enquanto o ofensor deveria ser incentivado a mudar. A cura abarca um senso de recuperação e esperança em relação ao futuro. Importante salientar que a cura não é somente para as vítimas, mas também para os ofensores, que devem ser responsabilizados, mas também ter atendidas as suas necessidades, a fim de que sejam resgatados neles princípios morais que sustentam o convívio social. Permite que através da responsabilização obtenham-se oportunidades para serem reintegrados na sociedade. Howard Zehr espera que “sanar o relacionamento entre vítima e ofensor deveria ser a segunda maior preocupação da justiça” (2008, pag. 176). O objetivo é reconciliar a vítima e o ofensor. Este movimento descreve pleno arrependimento e perdão e envolve o estabelecimento de um relacionamento positivo entre vítima e ofensor. Os participantes jamais devem sentir que estão sendo coagidos a se reconciliarem. Mccold e Wachetel aduzem nesse sentido que: Um sistema de justiça penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas não leva em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles afetados por um crime. Em um mundo onde as pessoas sentem-se cada vez mais alienadas, a justiça restaurativa procura restaurar sentimentos e relacionamentos positivos. O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento é o ponto chave a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável (MCCOLD E WACHETEL, 2010). O objetivo da justiça restaurativa não restringiu apenas a redução da criminalidade, há evidente preocupação com o programa de política sócio-educativa, buscando sempre como fim, a restauração de danos, sejam eles emocionais e materiais, utilizando o diálogo como meio nas reuniões entre famílias, vítimas e comunidades ou porque não até mesmo o ofensor, para atingir ampla eficácia, estes encontros possui o poder de mobilizar conteúdos afetivos e geram campos de normatividade e controle social informal, capazes de promover maior efetividade pedagógica. 3.2 Princípios e modus operandi da Justiça Restaurativa A resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas destacou os princípios básicos da Justiça Restaurativa, que são9: a) princípio do voluntarismo, que estabelece que o processo restaurativo não possa ser impositivo e unilateral, as partes envolvidas no conflito sejam cooperativas, e que tenham autonomia e ciência sobre seus direitos. Esse caráter voluntário faz com que o agressor envolva e se responsabilize pelas consequências que a sua conduta produziu, servindo como estorvo para que ele não se torne reincidente no futuro. Este princípio é de elevada relevância na justiça restaurativa, ele traz consigo uma limitação, qual seja se as partes não demonstrarem predisposição para dialogar, não alcançarão acordo. b) princípio do consensualismo que tem por objetivo a celebração de um acordo, onde se fixam as regras de conduta a serem respeitadas. Deve estar presente neste acordo o equilíbrio, os benefícios devem ser proporcionais para ambas às partes. Os acordos devem ser pormenorizados, os detalhes de quem fará o que, como, quando e durante quanto tempo,
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devem ser claros. A redução a termo, não é imprescindível, trata-se de garantia jurídica e segurança interpretativa. Dessa maneira, a justiça restaurativa creditando num acordo com o agressor, permite que a vítima tenha a reparação, a reabilitação e uma satisfação moral que lhe permita acalmar os efeitos psicológicos do crime e recuperação da sua autoestima. c) princípio da complementaridade o processo restaurativo complementa a sanção imposta ao ofensor, aqui o agressor poderá reparar extrajudicialmente a vítima. d) princípio da confidencialidade adjudica às partes a necessária confiança para, de forma honesta, lidarem com seus interesses sem constrangimentos, pois caso o processo de mediação fracassar, as declarações não devem ser comunicáveis em juízo, por isso, nos debates, as declarações não devem ser reduzidas em termo, prevalecendo o princípio da oralidade, que beneficia a expressão dos sentimentos dos envolvidos. e) princípio da celeridade a justiça restaurativa contrariamente da morosidade que tem caracterizado os mecanismos judiciários, dá ao problema jurídico um revide rápido, célere, eficaz, tal como impõem o próprio sentido da justiça. f) A necessidade de se respeitar a disciplina atinge o agressor e a vítima, também no que se refere à própria execução dos acordos. A ideia de disciplina liga-se a uma estratégia de responsabilização dos sujeitos implicados no processo em causa e favorece a confiança social desta atividade. No que diz respeito sobre as práticas restaurativas, Renato Gomes Sócrates Pinto conceitua o processo da justiça restaurativa como sendo: [...] um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator (PINTO, 2010, pág. 20). Howard Zehr cita em sua obra, Trocando as Lentes, uma das modalidades da justiça restaurativa dentro do campo da justiça criminal, a aplicação dela em casos de pena de morte nos Estados Unidos. O movimento Apoio a Vítimas com Base na Defesa (Defense Based Victim Outreach- DBVO), instituído pela pioneira Tammy Krause, atua em casos de pena de morte criando uma ponte entre a família da vítima de assassinato e os advogados de defesa a fim de auxiliar no atendimento das necessidades das vítimas e reduzir os traumas do processo judicial. “Funcionando a partir dos princípios de justiça restaurativa, em função do eixo de necessidades da vítima e obrigações do ofensor” (ZEHR, 2008, pág. 263). Um conhecedor em auxílio às vítimas trabalha com elas para identificar quais são suas necessidades e o que querem obter do processo penal, aquilo que for possível impetrar do ofensor e de seu advogado de defesa. O sobrevivente, em alguns casos, tem a necessidade do ofensor reconhecer sua responsabilidade. Frequentemente o trabalho com as vítimas chega a proceder em convenções que levam o agressor a declarar-se culpado. Em outros casos o trabalho com as vítimas se limitam a cuidar daquelas necessidades que podem ser recebidas dentro do processo judicial padrão. “Embora esses casos em geral levem a um encontro entre os sobreviventes e o ofensor, no mais das vezes trata-se de uma justiça restaurativa parcial, com ênfase no empoderamento das vítimas, atendimento de algumas de suas necessidades, e redução do trauma criado pelo processo judicial.” (ZEHR, pag. 264).
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e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação. (BRASIL, 2014).
No ano de 2004, o Comitê de Serviços de Defesa da Conferência Judicial dos Estados Unidos – um comitê de juízes federais que supervisiona o serviço de defensores da justiça gratuita – perfilhou que esse trabalho deve ser parte da inquirição que a defesa deve explorar nos casos de pena capital. 4 JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL Partindo da premissa de que foi compreendida a importância da justiça restaurativa, será objeto neste tópico se está presente à compatibilidade desse modelo de justiça com o ordenamento jurídico brasileiro, quais são os projetos já implantados e o Projeto de Lei n° 7.006/06. 4.1 Portas de entrada no ordenamento jurídico brasileiro No direito processual penal brasileiro ainda encontra-se em vigor a obrigatoriedade da ação penal pública e o princípio da indisponibilidade, que em suma provêm do jus puniendi, ou seja, a prerrogativa sancionadora do Estado. Logo, quando ocorre um crime, o Delegado de Polícia, através de uma portaria ou do auto de prisão em flagrante, deve instaurar o inquérito policial, para o processamento do sujeito, que tem resguardado o direito ao devido processo legal e ampla defesa, atendendo o princípio da obrigatoriedade da ação penal do Ministério Público, em que este fica proibido de dispor da ação penal assim que ela for instaurada10. Contudo, com a vigência da Lei 9.099/95, abriu caminho a mudanças em relação a isso, pois, apoiou-se a possibilidade da suspensão condicional do processo e da transação penal. A partir disto abriu-se uma lacuna possibilitando a aplicação do modelo de justiça restaurativa no ordenamento pátrio. Elenca a seguir as possibilidades para sua implantação. A Constituição Federal de 1988 no art. 98 permite a conciliação via procedimentos oral e sumaríssimo em infrações penais de menor potencial ofensivo. Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediantes os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; (BRASIL, 2014). Então, na lei n° 9.099/95, Lei dos Juizados Cíveis e Criminais, é possível encontrar brechas que possibilitam a aplicação da justiça restaurativa, é só analisar os artigos 70, 72, 73 e 74: Art.70. Comparecendo o autor do fato e a vítima, e não sendo possível a realização imediata da audiência preliminar, será designada data próxima, da qual ambos sairão cientes. Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa e liberdade. Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientação. Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliadores da Justiça, recrutados, na forma da Lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal. Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito
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Os citados artigos admitem que o magistrado aproveite a possibilidade de composição dos danos entre vítima e acusado, bem como, a aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, em que um procedimento a ser conduzido por um facilitador restaurativo. Outra brecha para implementação do molde restaurativo ao modelo de justiça criminal brasileiro é através da suspensão condicional do processo, que é utilizado quando atendida as hipóteses do art. 89 da Lei n° 9.099/95, ou seja, para crimes cuja pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano. Dispõem o referido artigo: Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requesitos que autorizam a suspensão condicional da pena (artigo 77 do Código Penal) (BRASIL, 2014). Nos termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento contencioso é possível à derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos crimes de ação penal privada e pública condicionada, há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade através da composição civil e, nos casos de ação penal pública, utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito, se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos – emocionais, por exemplo – trazido pelas partes e que podem ser colocados. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, vigorante através da Lei n° 8.069/90 prevê, mesmo que implicitamente, a implicação do modelo restaurativo, em vários dispositivos, como exemplo, o artigo 126 que aduz: Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. (BRASIL, 2014). Ainda sob a abordagem do ECA, a justiça restaurativa pode ser utilizada diante das medidas sócio-educativas elencadas no artigo 112, que são: Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviço à comunidade; IV – liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no artigo 101, I a VI. § 1° A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua ca-
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pacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2° Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida e a gravidade da infração. § 3° Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições. Como observado nos dispositivos do ECA elencados acima, é possível a aplicação de um novo paradigma, qual seja a justiça restaurativa, enxergar a infração a tal modo de aproxima-la a realidade, não perfilhando o objetivo de forma abstrata, em que o sujeito autor do crime sofre punição do Estado, e o Estado e o adolescente infrator são as partes do processo. Mas sim compreender que o delito é um dano à vítima a seu relacionamento, e que o crime está ligado a outros danos, que possivelmente são lesões sofridas por estes adolescentes que influenciou na formação de suas personalidades. A justiça não deve se empenhar somente em afastar os adolescentes da marginalidade, mas principalmente em uma restauração. Nota-se que a intenção é restaurar o ofensor, a vítima e a comunidade, que também sofreu diretamente com a ofensa, resgatando o relacionamento dilacerado entre as partes. Howard Zehr afirma que: O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança. (2008, pag. 170). Deve-se procurar entender as cicatrizes presentes nas vítimas causadas pela agressão, que se sentem perdidas no meio de tanta violência que aflora os grandes centros urbanos, resgatar a autonomia pessoal que lhe foram roubadas, e entender também as circunstâncias que motivou o adolescente infrator a cometer determinados delitos, é preciso, obviamente, responsabiliza-los, mas o que ocorre atualmente na sociedade é a criminalização destes jovens infratores, fazendo com que a comunidade perca o comportamento pacificador. De acordo com Eduardo Rezende Melo: [...] essa abordagem propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, garantindo, ainda, aos adolescentes, oportunidade para compreenderem as causas e as consequências de seu comportamento, assumindo responsabilidade de forma efetiva e, por fim, que a comunidade possa compreender as causas subjacentes crimes, visando promover seu bem-estar e prevenir a criminalidade. (2008, pag. 2). O comprometimento entre as partes e até mesmo pelo profissional que exerce a função de mediador deve ser supremo a fim de obter a proteção integral do adolescente, na garantia e efetivação dos seus direitos e na operacionalização da intercessão, como um meio de reparar o dano, educando, repensando, potencializando sua capacidade de emancipação. 4.2 Projetos de implantação da Justiça Restaurativa no Brasil Os primeiros debates sobre a justiça restaurativa no Brasil se deu na década de 90, com práticas pioneiras no Estado do Rio Grande do Sul, no Distrito Federal e na cidade de São Caetano do Sul/SP. Os efeitos positivos obtidos propiciaram o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, um importante feito desse movimento, concretizado na cidade de Araçatuba/SP no mês de abril do ano de 2005, onde as discussões volveram em volta da lentidão da justiça e da falta de eficiência do sistema penal em evitar novos conflitos, uma vez que se caracteriza pelo distanciamento da tutela dos interesses da vítima
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e a centralização nas ações de punição ao infrator11. O Simpósio mencionado foi realizado, também, no desígnio de explicar o conceito jurídico das práticas e dos procedimentos restaurativos, além de originar um debate interdisciplinar como meio de promoção e edificação de uma cultura de paz. Neste encontro, que foi apoiado pela UNESCO, foi elaborada a “Carta de Araçatuba”, o primeiro documento no país que estabelecia os princípios básicos da justiça restaurativa, considerando um marco da sua implantação e da sua aplicação. Posteriormente, no ano de 2006, foi realizado o II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa em Recife, procedendo a Carta de Recife, que ajudou na consolidação da justiça restaurativa no Brasil, pois armou as táticas para difundir as iniciativas da medida alternativa, com objetivo de gerar uma sociedade distinguida pela justiça, pela igualdade e pelo bem-estar de todos os indivíduos, com abordagem principal em seus valores comuns. Outro documento elaborado acerca do tema foi a Carta de São Luiz, que teve origem no I Seminário Brasileiro de Justiça Juvenil Restaurativa, realizado na capital do Estado do Maranhão, onde reuniu pessoas vindas de dezessete estados-membros e de Brasília, além de cem instituições. Em debate, restou comprovado que a justiça restaurativa não é só uma opção na resolução de conflitos, mas também uma forte aliada no combate a criminalidade e promoção de sua prevenção. Desde 2010 o Centro de Justiça Restaurativa de Porto Alegre já atendeu aproximadamente 800 casos envolvendo menores infratores. O projeto que foi criado em 2005, é uma alternativa ao cumprimento de medida socioeducativa. O juiz da 3° Vara da Infância e Juventude Leoberto Narciso Brancher, um dos idealizadores desse projeto explicou que “o funcionamento é trazer as pessoas para conversarem, em que você possa ter um plano de comportamentos futuros e reparação de danos que sejam mais importantes do que a pessoa simplesmente ser submetida a um castigo” 12. A justiça restaurativa se apresenta como uma grande ferramenta contra a superlotação carcerária. Em 2012 o programa fantástico da rede Globo exibiu uma reportagem em que mostra a situação desumana da Fundação de Atendimento Socieducativo (Fase) em Porto Alegre/RS, adolescentes infratores dividindo espaços em que deveria caber uma única pessoa. A juíza Vera Lúcia Deboni, titular do 3° Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS aponta os riscos desse tipo de detenção, sem qualquer tipo de atividades educativas, de lazer e profissionalizantes para os internos. Segundo a juíza “a privação de liberdade nunca foi uma alternativa pedagógica, ninguém é educado preso” e ela acrescenta que “temos hoje premências de muito curto prazo, porque é uma geração interia que se perde” 13. 4.3 Projeto de Lei n°7.006/2006 Tramita na câmara dos deputados o projeto de lei n° 7.006/06, da Comissão de Legislação Participativa, que buscar incluir na justiça criminal brasileira a justiça restaurativa, que propõe mudar o vigente código penal e de processo penal, além da lei sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais – Lei ° 9099/95 -. O projeto foi uma sugestão do Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília. A mudança prevista para o código penal seria a modalidade de extinção, pelo cumprimento de convênio restaurativo e, pela homologação do acordo restaurativo, até que seja concretizado. Já para o código de processo penal as alterações seriam encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo, através de sugestão da autoridade policial e a possibilidade do encaminhamento dos autos do inquérito a núcleos de justiça restaurativa pelo juiz. Por fim a mudança prevista para Lei n° 9.099/95 seria substituir a suspensão da ação penal, quando recomendável, pelas práticas restaurativas14.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A elaboração do presente artigo buscou evidenciar o quanto que o modelo de justiça restaurativa pode ser mais humano no que toca a solução de conflitos do que o modelo retributivo vigente. O novo exemplar penal pode ser mais eficaz para solução da lide entre as partes, buscando efetiva restauração dos danos sofridos pelas vítimas, e a responsabilização do ofensor pelo dano realizado. A justiça restaurativa resgata os relacionamentos entre as vítimas, os ofensores e as comunidades, promovendo a conciliação, focalizando nas necessidades das vítimas a fim de obter a recuperação do trauma, e possibilitar a reeducação dos ofensores para que possa reintegra-los com sucesso à sociedade, evitando novos reincidentes. Foi exposta a fragilidade do sistema penal em coibir os crimes e a deficiência em reabilitar os segregados, indicando que o modelo de justiça brasileiro encontra-se demasiadamente ultrapassado e que a justiça restaurativa apresenta-se como ferramenta que pode apresentar bons resultados para ser implantada no sistema de justiça. Foi constatada no estudo através da interpretação sistemática dos institutos penais previstos no ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade da intercomunicação entre os programas comunitários de justiça restaurativa e o sistema criminal formal. E apresentando, inclusive, resultados satisfatórios em projetos adotados em Porto Alegre/RS. Para que outros projetos em desenvolvimento no Brasil conquistem maiores espaços é preciso haver maio investimento do poder público para que os mesmos possam ser expandidos, legalizados e aplicados integralmente no país. Mesmo existindo a possibilidade de aplicação do novo modelo de justiça em crimes de homicídio, por exemplo, como já ocorre nos Estados Unidos, em que há adoção do novo paradigma de justiça em crimes cuja pena seja de morte, a fim de construir uma ponte entre a família da vítima assassinada e o advogado de defesa com intuito de minimizar os traumas advindos do processo judicial, a justiça restaurativa apresenta posição minimalista, sendo ideal para crimes de menor potencial ofensivo. Conclui que a justiça restaurativa é brilhante ás falhas do sistema de justiça criminal, que adota a crença de que a imposição de castigo e dor compõe o conceito de justiça, e que o crime é apenas uma violação das leis do Estado. Conforme sustenta Howard Zehr é preciso mudar a visão pela qual temos sobre o crime e a justiça, sendo a justiça restaurativa uma verdadeira troca de paradigmas em que altera o foco do processo penal ao estabelecimento de culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas soluções. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília, DF, 5 de outubro de 1988. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, DOU, 27 de setembro de 1990 Brasil. Estatuto do Idoso. Presidência da República. Disponível em <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10. 741. htm>. BRASIL Ministério da Justiça. Cartilha: “o que é justiça comunitária”. SE. Brasil.2008. Brasil. BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, DOU, 1995 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Ed. Revista dos Tribunais, 2ª edição, ano 2006, São Paulo/SP. GARCEZ, José Maria Rossani. Negociação. ADRS. Mediação Conciliação e Arbitragem. Ed. Lumen Juris, 2003. http://jus.com.br/artigos/20775/justica-restaurativa#ixzz3I7U7GIgU
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http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7946 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/ 91164-PROJETO-INSTITUI-A-JUSTICA-RESTAURATIVA-NO-BRASIL.html MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em busca de um paradigma: uma teoria de justiça restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10 à 15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.iirp.org/library/paradigm_port.html. PACELLI, Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, Atlas, Ed. 17°, 2013. PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine; DE VITO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (org.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Disponível em: http:// www.ibjr.justicarestaurativa.nom.br/pdfs/LivroJustica_restaurativa.pdf ZEAR, Howard. Trocando as lentes; um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Arthenas, 2008.
NOTAS DE FIM 1 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre, Especialista em Ciências Penais, Professor do Centro Universitário Newton Paiva da Disciplina de Direito Penal. 3 ZEAR, Howad. Trocando as Lentes; um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Arthenas, 2008. 4 Idem. 5 PACELLI, Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, Atlas, Ed. 17°, 2013. 6 Mediação: uma proposta de solução de conflitos a ser implantada no Brasil. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2987 7 ZEAR, Howad. Trocando as Lentes; um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Arthenas, 2008. 8 Justiça Restaurativa no Brasil: conceitos, críticas e vantagens de um modelo alternativo de solução de conflitos. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7946 9 Resolução 2002/12 da ONU – Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal. http://justica21.org.br/j21.php?id=366&pg=0#.VHcu_9LF-ww 10 PACELLI, Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, Atlas, Ed.17°, 2013. 11 Revista Eletrônica de Direito Processual, III. Justiça Restaurativa: novo conceito. http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/volume-iii/justica-restaurativa-um-novo-conceito 12 G1 Rio Grande do Sul. Justiça Restaurativa de Porto Alegre Atende quase 800 casos em dois anos. http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/07/justica-restaurativa-de -porto-alegre-resolve-quase-800-casos-em-2-anos.html 13 Idem. 14 Câmara dos Deputados. Projeto institui a Justiça Restaurativa no Brasil. http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/ 91164-PROJETO-INSTITUI-A-JUSTICA-RESTAURATIVA-NO-BRASIL.html **Ronaldo Passos Braga; Marcelo Sarsur.
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UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA PENAL: JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL Priscila Araújo Freitas 1 Ronaldo Passos Braga2 Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo científicovisa apresentar a justiça restaurativa como um novo modelo de justiça penal aplicado ao Brasil, diferente do processo convencional. Voltado a solucionar por meio de diálogos os problemas que desencadearam a ação penal, sendo uma alternativa para a resolução dos conflitos penais entre ofensor e vítima.Objetiva examinar em que esfera do nosso sistema de controle social podem estar situados os programas restaurativos, e verificar por meio de quais instrumentos jurídicos, o nosso ordenamento permite que programas restaurativos sejam desenvolvidos e em qual fase processual cabe a sua aplicação. O Estatuto da criança e do adolescente a lei n°9099/95 são exemplos de legislações que contemplam dispositivos que servem de esteio para o desenvolvimento de práticas restaurativas. PALAVRA-CHAVE: Justiça restaurativa, justiça retributiva, resolução de danos, lei 9.099/95. SUMÁRIO:1 Introdução; 2 Sistema Retributivo; 3 Um novo modelo de justiça penal justiça restaurativa; 3.1 Conceito e Objetivos; 3.2 Princípios norteadores da justiça restaurativa; 3.2.1 Justiça Restaurativa versus justiça retributiva principais diferenças; 4 Compatibilidade jurídica da justiça restaurativa com sistema brasileiro e sua aplicação no Brasil; 5 Práticas Restaurativas; 6 Conclusão; Referências.
1 INTRODUÇÃO O atual modelo de justiça previsto no ordenamento jurídico Brasileiro define que o Estado tem o dever-poder de punir aquele que viola as leis, retribuindo com a aplicação da justiça retributiva. Concepção de crime é uma infração a lei, o qual o infrator deve pagar cumprindo uma pena, a principal preocupação é estabelecer culpa por eventos passados. Nesse sentido segundo Zehr, (2008, p. 170), o “crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas”. O Estado tem a função de punir aquele que infringe as regras em sociedade, focaliza em apenas retribuir o mal cometido com a aplicação da pena, esquecendo-se da figura mais importante a “vitima”, que é posta totalmente de fora do processo penal, não configurando como parte. Em busca de soluções para amenizar as consequências oriundas do crime, surge a justiça restaurativa como uma nova resposta, uma nova justiça, com um novo olhar sobre o crime, e sobre os envolvidos no conflito penal, sendo um sistema flexível de justiça criminal. O crime causa danos morais, materiais e emocionais e a justiça restaurativa pode ser a melhor opção para reparar os danos e restaurar as relações sociais, sendo uma nova justiça que visa resgatar a convivência de forma pacifica no ambiente afetado pelo crime, é nesse contexto que surge a justiça restaurativa, cujo objetivo central é a restauração entre vitima, ofensor e comunidade. A justiça restaurativa foi introduzida no Brasil através do projeto” Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, iniciativa da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em colaboração com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNUD, cujo objetivo é difundir a justiça restaurativa na pacificação de conflitos. O artigo incialmente aborda a justiça retributiva, para podermos assim tentar chegar ao conceito de justiça restaurativa e seus objetivos, após citamos os princípios norteadores da justiça restaurativa conforme as diretrizes da ONU, depois esboçamos um quadro comparativo com
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as principais diferenças entre os dois modelos de justiça, em seguida argumentamos a compatibilidade e a aplicação da justiça restaurativa no Brasil e por fim exemplificamos práticas restaurativas aplicadas em alguns Estados do Brasil, demonstrando a compatibilidade da justiça restaurativa com o sistema jurídico brasileiro. 2 Sistema retributivo A pena possui funções preventivas e retributivas, a função preventiva tem como parâmetro que a prevenção geral é eficiente quando se tem a certeza da punição, e a função retributiva visa restabelecer a ordem violada pelo delito, na medida em que a pena deve ser proporcional ao crime cometido. O atual sistema punitivo adotado no Brasil é o sistema retributivo, sistema que preocupa-se com a figura do agressor, qual norma jurídica foi violada, qual sanção deve ser aplicada, é totalmente centrado no Estado, que processa e julga, condenando, sendo voltada para o passado, despreza a história e as relações da vítima. A forma que são executadas as penas no Brasil, é uma verdadeira forma de retribuição pois a máxima de ressocialização, que seria o objetivo que a pena deveria alcançar, não é alcançado, pois são inúmeros presos em total descaso, em situações de degradação humana. A pena neste sentindo torna-se um meio de não deixar o indivíduo impune aos olhos da sociedade. Preocupando-se apenas com o agressor, em retribuir o mal causado, o Estado deixa a figura da vítima de lado, concentrando-se em penalizar, esquecendo-se que a função primordial do direito penal seria a ressocialização em sociedade. Nesse sentido Zerh (2008, p.61) assevera que: As prisões mesmas foram originalmente criadas como alternativas mais humanas aos castigos corporais e a pena de morte. O encarceramento deveria atender as necessidades sociais de punição e proteção enquanto promovem a reeducação dos ofensores. O sistema retributivo ver o crime como ofensa a seguridade social, e não como ofensa a pessoa e a convivência pacífica na so-
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ciedade, nos faz concluir que o sistema retributivo seria um sistema vingativo-punitivo, que tem como finalidade retribuir o mal causado pelo mal da pena. Insta salientar que o sistema retributivo apesar de conter falhas em seu sistema, é uma ferramenta importante no ordenamento jurídico, tendo em vista que crimes graves necessitam de medidas rigorosas para que se tenha a pacificação social, no entanto o Estado carece de medidas alternativas e completares para aperfeiçoar o sistema retributivo imposto a sociedade. 3 Um novo modelo de justiça penal justiça restaurativa Zehr, em sua obra “Trocando as lentes-Um novo foco sobre o crime e a justiça”, é considerado um dos principais responsáveis pela disseminação da justiça restaurativa. Segundo ele, a grande diferença entre a justiça restaurativa e a justiça convencional está na abordagem. A justiça retributiva perguntará: que lei foi infringida? Quem infringiu? Que castigo merece? A justiça restaurativa perguntará: quem sofreu o dano? O que essa pessoa necessita para que esse dano seja reparado? Quem deve reparar o dano? .(Zehr, 2008, p. 258/259). Nota-se que a justiça restaurativa difere da retributiva pois aquela é totalmente reintegrativa preocupando-se com as pessoas e com relacionamentos, e está sendo totalmente legalista preocupa-se apenas em punir. A justiça restaurativa veio para inovar o sistema convencional, pois preocupa-se principalmente com a figura da vítima, em recompor os danos oriundos de atos ilícito praticado pelo agressor, embasada na análise crítica do sistema punitivo, veio inovar o atual modelo de justiça criminal. 3.1 Conceito e objetivos Embasado no que preceitua Zerh (2008.p.257-258), a justiça restaurativa é baseada em um procedimento de consenso, voltado a solucionar por meio de diálogos problemas em que originaram a ação penal. Objetiva entender e responder as necessidades de quem sofreu o dano, de quem causou o dano e da comunidade, propõe a reintegração da vítima e do autor, utiliza processos inclusivos e cooperativos, busca corrigir os males. A justiça restaurativa é uma nova forma de abordar as questões dos conflitos e dos crimes. Propõe um novo ponto de vista, o qual descreve uma nova metodologia de superação de situações, ao invés de entender o crime sob uma ótica legalista que discute, qual foi a lei infringida,qual foi o culpado pela infração e qual castigo ele merece, a justiça restaurativa perguntará quais as relações, e quem foi atingido, quem tem a responsabilidade de reparar o dano e de que forma irá compor uma solução visando a pacificação para o futuro, dessa forma desloca o eixo da discussão do problema para uma dimensão humana e gera o envolvimento direto das partes interessadas e desse modo a justiça restaurativa , se materializa na sua aplicação máxima através de encontros entre as partes, é um método de solução auto compositiva do conflito penal. Nesse sentindo assevera Pinto Renato (2010,p.20): [...] um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator.
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Segundo Zehr: A justiça restaurativa encara (por exemplo) o crime como um mal causado acima de tudo, a pessoas e comunidades. O nosso sistema legal, que enfatiza apenas as normas e leis, frequentemente perde de vista essa realidade. Em consequência, faz das vítimas uma preocupação secundária, quando muito. Por seu turno, a ênfase no dano implica considerar antes de mais nada, as necessidades da vítima e a importância desta no processo legal. Implica, ademais, em responsabilidade e compromisso concretos do infrator, que o sistema convencional interpreta exclusivamente através da pena, imposta ao condenado para compensar o dano, mas que, infelizmente, na maior parte das vezes, é irrelevante e até mesmo contraproducente (Howard Zehr, “Restorative Justice: The Concept”, Corrections Today, dez. 1997, pag.68, apud, SCURO NETO e PEREIRA, 2011, pag. 6). Zehr afirma que para compreender a justiça restaurativa é preciso usar outras lentes, conforme ele o crime é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado. Oportuno transcrever o conceito de justiça do ponto de vista restaurativo, conforme Pedro Scuro Neto: “Fazer justiça” do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemática às infrações e a suas consequências, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causado pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça, significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstruir de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo (Scuro Neto, 2000). Paul Maccold e Ted Wachtel parte de três pressupostos para chegar ao conceito de justiça restaurativa, conforme eles deve-se perguntar: Quem foi prejudicado? Quais as suas necessidades? Como atender a essas necessidades? Sustentam eles que: Crimes causam danos a pessoas e relacionamentos, e que a justiça restaurativa não é feita porque é merecida e sim porque é necessária, através de um processo cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinação da melhor solução para reparar o dano causado pela transgressão - a justiça restaurativa é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de “partes interessadas principais”, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão ( McCold, Paul e Wachtel, 2003).
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O conceito proposto por Mc Cold, Paul e Wachtel, focaliza em demonstrar o quanto é importante restaurar o trauma emocional e social das pessoas afetadas pelo crime. Nesse sentindo Mc cold e Wachetel afirmam que( 2010): Um sistema de justiça penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas não leva em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles afetados por um crime. Em um mundo onde as pessoas sentem-se cada vez mais alienadas, a justiça restaurativa procura restaurar sentimentos e relacionamentos positivos. O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento é o ponto chave a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável. A ideia central é pensar no futuro e na restauração dos relacionamentos, ao invés de centralizar apenas na culpa e no passado. Cumpre ressaltar que a Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 2002/12, conceitua o programa restaurativo, o processo restaurativo e o resultado restaurativo. Vejamos: 1. O programa restaurativo deve ser entendido como qualquer programa que utiliza processos restaurativos voltados para resultados restaurativos. 2. Processo restaurativo significa que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo abrange mediação, conciliação, audiências e círculos de sentença. 3. Resultado Restaurativo - significa um acordo alcançado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do infrator.( Tradução Renato Socrates Pinto). Do ponto de vista do conflito penal a justiça restaurativa não implica uma dispensa da sanção punitiva, pode contribuir para uma maior significação do cumprimento dessa sanção. Nesse sentido Brancher afirma: A justiça restaurativa não se propõe como substitutiva da Justiça tradicional, não se aplica a tudo. Há situações em que o infrator não tem condições de participar, ele não é uma pessoa interessada em fazer uma reparação ou tem disposição de remendar o erro que cometeu. Há também o dano irreparável, em que não se abre mão de uma resposta que retribua. Mas talvez essas situações sejam paralelas. Podemos ter o sujeito cumprindo pena por homicídio, por exemplo. Está arrependido do crime e o fato de ele oferecer uma compensação para a família da vítima não impede que continue cumprindo a pena. Isso é uma forma de reintegração na sociedade. A Justiça Restaurativa vai qualificar algumas situações e complementar outras. A vocação é para casos mais leves, em termos estatísticos. Nesse aspecto, porém, tem o poder de gerar compromisso da pessoa que cometeu a infração, o que certamente terá participação mais significativa da sua família, comunidade e, quando possível, da própria vítima. Isso produzirá outro contexto do que simplesmente receber a sentença, cumprir a pena e ir embora.(Leonardo Brancher,Jornal Pioneiro;2013).
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Zehr demonstra uma das modalidades da aplicação da justiça restaurativa em casos de homicídio, no qual os agressores são condenados a pena de morte nos Estados Unidos (2008, p.263). Vejamos: Uma das modalidades dessa pratica dentro do campo da justiça criminal, e uma que jamais teria sido prevista, é a sua aplicação nos casos de pena de morte nos Estados Unidos. O movimento Apoio a Vitima com base na Defesa (Defense Based Victim Outreach-DBVO), criado pela pioneira , Tammy Krause, minha ex-aluna, atua em casos de pena de morte criando uma ponte entre a família da vitima de assassinato e os advogados de defesa a fim de ajudar no atendimento das necessidades das vitimas e reduzir os traumas do processo judicial. Portanto não há uma determinação que impeça sua aplicação em delitos graves, a vítima pode querer entender o porquê o agressor cometeu o delito. Importante destacar que o processo restaurativo somente será aplicado quando o autor do fato tiver assumido a autoria e existir um consenso entre as partes sobre como os fatos ocorreram, sendo essencial o livre consentimento da vítima e do infrator, que podem desistir do procedimento a qualquer momento. Confome preceitua Zehr, para a justiça restaurativa o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança”. (2008;p.170). Importante destacar que a justiça restaurativa objetiva tentar curar as feridas e reparar os danos oriundos de atos lesivos, preocupando-se em atender as necessidades da vitima e do ofensor, a restauração é a meta,difere do atual modelo de justiça penal nesse aspecto, pois o sistema retributivo como assevera Zerh (2008,p.168), “negligência as vitimas enquanto fraquassa no intento declarado de responsabilizar os ofensores e coibir o crime.” Conforme Zerh (2008, p.175), “o primeiro objetivo da justiça deveria ser, portanto, reparação e cura para as vitimas” Nesse sentido Zerh (2008, p.176) afirma que: Cura para as vitimas não significa esquecer ou minimizar a violação. Implica num senso de recuperação, numa forma de fechar o ciclo. A vítima deveria voltar a sentir que a vida faz sentindo e que ela esta segura e no controle. O ofensor deveria ser incentivado a mudar. A cura abarca um senso de recuperação e esperança em relação ao futuro. O segundo objetivo da justiça como assevera Zerh seria sanar o relacionamento entre vitima e ofensor. (2008, p.176). 3.2 Princípios norteadores da justiça restaurativa A justiça restaurativa é um paradigma novo, e existe um crescente consenso internacional sobre seus princípios, princípios estes oficiais constando em documentos da ONU e da União Europeia, recomendado e validando a aplicação da justiça restaurativa em vários países. Conforme o que preceitua a ONU, o sistema é embasado na flexibilidade, devendo-se ajustar a realidade das partes. O sistema contempla a realização de círculos, painéis e conferências restaurativas, entre outros métodos. Cabe ressaltar que a prática restaurativa é voluntária, no que tange a participação da vítima e do agressor, ambos são incentivados a participar do processo restaurativo, devendo existir consenso entre as partes em relação aos fatos que ensejaram o crime e assunção da responsabilidade do infrator. A prática restaurativa pode acontecer antes ou após a sentença ou no curso da própria execução da pena, não há um mo-
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mento especifico para que seja realizada, para que possa ser indiciada deve existir indícios quem sustentem o recebimento de uma acusação formal. Com o objetivo de obter resultados satisfatórios na aproximação vítima e ofensor, é de suma importância que haja uma preparação cuidadosa do caso para a realização de práticas restaurativas, incluindo analise dos autos, e investigação com foco no conhecimento das suas circunstancias, devendo ser realizado por profissional capacitado, com a finalidade de se confirmar a possibilidade de aplicação da prática restaurativa ao caso concreto. No processo restaurativo são feitos contatos com os envolvidos , para que se possa confirmar a adequação do caso a pratica, sendo esclarecido as partes o funcionamento da prática restaurativa e identificação de pessoas próximas as partes, ou representantes da comunidade afetada, e também a preparação dos envolvidos para tornarem parte na pratica restaurativa adotada. A prática restaurativa reúne vítima e ofensor e os técnicos responsáveis pela condução dos trabalhos (facilitadores), e pode incluir familiares ou pessoas próximas a estes, além de representantes da comunidade, e os advogados dos envolvidos, se necessitar. O processo restaurativo se desenvolve em duas fases: primeiro são ouvidos os envolvidos acerca dos fatos ocorridos, suas causas e consequências, na segunda fase as partes devem apresentar, discutir e acordar um plano de restauração. É necessário assegurar aos participantes informações claras sobre as etapas do procedimento e consequências de suas decisões, deve-se resguardar a segurança emocional e física tanto da vitima quanto do ofensor. O papel dos facilitadores é fundamental, os quais devem ser discretos, no sentido de não dominarem as ações do evento, mas conduzirem as partes no caminho de alcançar, por seus próprios meios, o encontro da solução mais adequada ao caso. É resguardado o sigilo das discussões ocorridas durante o processo restaurativo, e seu teor não pode ser levado em consideração nos atos subsequentes do processo, o que inclui a própria admissão da responsabilidade deduzida com o fim de deflagrar a prática restaurativa.
Não sendo possível obter um acordo restaurativo, este não pode ser utilizado como fundamento para o agravamento da punição imposta ao ofensor. Se houver acordo na prática restaurativa deve ser redigido em termos precisos e claros, as eventuais obrigações acordadas deverão ser razoáveis, proporcionais e líquidas, devendo conter meios em que se garanta o cumprimento e a fiscalização das condições avençadas. Antes da homologação do plano restaurativo, este poderá ser analisado judicialmente. Cabe enfatizar o quanto esta prática é flexível, pois se adapta a realidade dos envolvidos no conflito penal, difere do sistema convencional cuja as partes devem se adaptar aos ditames legalista, formais, rígidos, o qual forma o nosso sistema tradicional de justiça. Cumpre ressaltar, que para justiça restaurativa obter o êxito almejado, é de suma importância o monitoramento do acordo e avaliação do seu cumprimento, para que esse novo modelo de justiça alcance de forma plena seus objetivos, quais sejam a ressocialização, a reparação entre vítima, agressor, e a comunidade. 3.2.1 Justiça restaurativa versus justiça retributiva principais diferenças
Conforme (Zerh, 2008, p.199), na justiça retributiva o crime viola o Estado e suas leis; o foco da justiça é o estabelecimento da culpa; para que se possa administrar dose de dor; a justiça é buscada através de um conflito entre adversários, no qual o ofensor está contra o Estado; regras e intenções valem mais que os resultados, um lado ganha e outro perde. Já a justiça restaurativa ver o crime sob outra lente, o crime seria uma violação de pessoas e relacionamentos, a justiça visa identificar necessidades e obrigações, para que as coisas fiquem bem, a justiça fomenta o diálogo e entendimento mútuo, da as vítimas e os agressores papeis principais, é avaliada pela medida em responsabilidades foram assumidas, necessidades atendidas, e cura de indivíduos e relacionamentos promovida. As diferenças entre o modelo retributivo e o modelo restaurativo será exposto a seguir em forma de um quadro comparativo, o qual demonstra as principais diferenças e características dos dois modelos de justiça.
Confome Zerh são as seguintes formas de ver o crime(2008,p.174,175):
(Howard Zehr, trocando as lentes, 2008, pag. 174 e 175).
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Conforme Renato Sócrates Gomes Pinto, os procedimentos, resultados, e efeitos para vítima e o infrator são os seguintes:
Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa: procedimentos e efeitos (Renato Sócrates Gomes Pinto, 2004, p. 24/27)
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4 Compatibilidade Jurídica da Justiça Restaurativa com o Sistema Brasileiro e sua aplicação no Brasil Um dos princípios que regem o direito processual penal são os princípios da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública, nesta significa dizer que o Ministério Público deve propor a ação penal, e oferecer a denúncia, quando o fato for típico, ilícito e culpável, já o princípio da indisponibilidade previsto no art.42 do CPP, prevê que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal, insta salientar que houve uma flexibilização destes princípios, tendo em vista a possibilidade da suspensão condicional do processo e da transação penal, com o advento da lei 9099/95,abrindo-se um espaço para aplicação do princípio da oportunidade, percebe-se então, o quanto é compatível a justiça restaurativa em nosso sistema penal brasileiro. Tendo em vista que não houve mudança legislativa para implementação da justiça restaurativa em nosso ordenamento jurídico, com o advento da lei 9.099/95 torna-se possível a prática restaurativa em nosso sistema penal.(Pinto, Renato,2004 p.29-32). Vejamos a CR/88 estabelece que: Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: Juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação penal e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau. (BRASIL,1988) A lei 9.099/95 em seus arts.70 a 74, traz a aplicação de práticas restaurativas quando estabelece que: Fase Preliminar: Art. 70. Comparecendo o autor do fato e a vítima, e não sendo possível a realização imediata da audiência preliminar, será designada data próxima, da qual ambos sairão cientes. Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientação. Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal. Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.(BRASIL 2014). Observamos que os dispositivos citados permite a prática da justiça restaurativa, percebe-se que o art.73 é um exemplo dessa prática, ao lermos o art.74 fica claro a diferença entre o procedimento sumaríssimo e a prática restaurativa, haja visto que em seu parágrafo único, prevê que o acordo homologado acarreta a renúncia ao direto de queixa ou representação, contudo de acordo com a Resolução 2002/12 da ONU a justiça restaurativa será regida pelo princípio da revogabilidade, ou seja , as partes poderão revogar o acordo estabelecido e ingressar com a ação judicial, caso não seja cumprido o acordo avençado.
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O instituto da suspensão condicional do processo, previsto no art.89 da lei 9099/95 dita o seguinte: Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II - proibição de frequentar determinados lugares; III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano. § 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo. § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos.(BRASIL2014). Após a leitura dos dispositivos citados, concluímos que é plenamente possível a aplicação da justiça restaurativa em situações em que admitam a suspensão condicional do processo,e que a adoção das práticas restaurativas, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, é compatível com os dispositivos norteadores da Lei 9.099/95. Cumpre salientar que práticas restaurativas também são aplicadas no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n° 8.069/90), estão previstas várias normas de proteção conforme aduz o art.99 “As medidas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo.(BRASIL 2014).” Percebemos que alguns dos dispositivos expressos no Estatuto da criança e do Adolescente são de cunho restaurativo, podemos citar como um dos exemplos o artigo 100, o qual prevê: “ Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.(BRASIL 2014).” Ademais, o artigo 116, aduz: Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima. Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada.(BRASIL 2014)
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Conforme Renato Campos Pinto de Vitto: O Estatuto da Criança e do Adolescente “arrolou diversas medidas de proteção que igualmente convergem para a possibilida-
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de de as partes buscarem, em um ambiente propicio,alternativas as medidas puramente sancionatarias”. (2008,p.203) No que toca o art.101, incisos II a IV do referido diploma legal encontramos exemplos dessas medidas, as quais prevê que a autoridade competente poderá determinar, orientação, apoio e acompanhamento temporários, inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente. No que tange ao art.112 do ECA, são elencadas medidas sócio -educativas,e estas podem ser utilizadas sobre o prisma restaurativo. Vejamos: Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviço à comunidade; IV – liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no artigo 101, I a VI. § 1° A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2° Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida e a gravidade da infração. § 3° Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.(BRASIL 2014). A partir do instituto da remissão, constante no art,126, observamos que o principio da indisponibilidade da ação penal foi atenuado no ECA. Conforme preceitua o art.126: Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo. (BRASIL 2014). Dessa forma, afirma Vitto : Abre-se um amplo espaço para que, antes mesmo da apresentação da representação, possa ser instaurado procedimento restaurativo em que a vontade das partes e a obtenção de um plano de autocomposição pode ser considerado.(2008,p. 203) Os princípios protetivos contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente alcança-se também através de encontros restaurativos. Uma das finalidades da proteção integral é proporcionar ao adolescente que seja inserido na comunidade,objetivando que este repare os danos causados, que passe a ter consciência de seus atos, sendo propicio a utilização de uma metodologia que vise a solução de conflitos, embasada no dialogo e no entendimento em detrimento de apenas ser aplicada a punição. Conforme Eduardo Rezende Melo a justiça restaurativa: [...] propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, garantindo, ainda, aos adolescentes, oportunida-
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de para compreenderem as causas e as consequências de seu comportamento, assumindo responsabilidade de forma efetiva e, por fim, que a comunidade possa compreender as causas subjacentes crimes, visando promover seu bem-estar e prevenir a criminalidade. (2008, pag. 2). Após a leitura dos dispositivos supra, verifica-se que processos restaurativos vem sendo aplicados de forma implícita em casos que envolvam conflitos, é notório que os processos restaurativos tem uma aceitação positiva e resultados satisfatórios. Ainda não há uma lei em sentido formal, apesar de existir em tramitação na câmara dos deputados o projeto lei nº 7006/2006, que propõe alterações no código penal, processo penal, e na lei 9.099/95, buscando instituir legalmente a justiça restaurativa ao atual sistema de justiça criminal. Acreditamos que seja de suma importância que a diretriz da ONU sirva de norte, para aplicação e implementação de práticas restaurativas em nosso sistema penal, e que seja criado uma lei com o propósito de inserir a justiça restaurativa a completar as lacunas do sistema retributivo. 5 Práticas Restaurativas A busca da reconciliação entre vítima e agressor é uma prática que vem sendo aplicado com sucesso em vários países, como Nova Zelandia,que foi o pais pioneiro na construção desse sistema, que teve grande sucesso, em questões de prevenção, reincidência e resolução dos danos, esta iniciativa serviu de inspiração para outros países como por exemplo Canada, Áustria e Austrália. No Brasil a experiência iniciou-se em 1999, a cargo do professor Pedro Scuro Neto no Rio Grande do Sul, iniciou-se os primeiros estudos acerca do prisma restaurativo no Brasil. Em abril de 2003, com a criação da Secretaria da Reforma do Judiciário, órgão do Ministério da Justiça, o tema justiça restaurativa obteve expressão nacional, em dezembro do mesmo ano, a entidade firmou acordo de cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, iniciativa que gerou o Programa de Modernização da Gestão do Sistema Judiciário. As duas entidades passaram a atuar conjuntamente sobre o tema justiça restaurativa. No final de 2004 e início de 2005, PNUD disponibilizou um apoio financeiro, que viabilizou o início de três projetos pilotos sobre justiça a restaurativa, quais sejam, o de Brasília, no Juizado Especial Criminal, o de Porto Alegre-RS, denominado Justiça do Século XXI, voltado para a justiça da infância e juventude, e o de São Caetano do Sul-SP, com o mesmo foco. Em abril de 2005 foi realizado o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo, que gerou a Carta de Araçatuba, documento que delineava os princípios da justiça restaurativa e atitudes iniciais para implementação no Brasil. O conteúdo do documento foi ratificado pela Carta de Brasília, na conferência Internacional “Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos”, realizada na cidade de Brasília. Da mesma forma, a Carta do Recife, elaborada no II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizado na capital do Estado de Pernambuco - Brasil, ratificou as estratégias adotadas pelas iniciativas de Justiça Restaurativa em curso, bem como sua consolidação. Desde então praticas restaurativas vem sendo aplicadas a realidade brasileira. Colocar vítima e agressor frente a frente é uma iniciativa que vem dando certo em vários países, desde de 2005 pessoas vem sendo beneficiadas pela justiça restaurativa, como exemplo podemos citar o fórum de Brasília que utiliza a justiça restaurativa como forma de remediar conflitos, outro exemplo é o Juizado Especial Criminal do Estado de Minas Gerais que também utiliza de práticas restaurativas. No Distrito Federal e no âmbito do Juizado Especial Criminal, o
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programa lida com os crimes de menor potencial ofensivo. Conforme reportagem veiculada pelo jornal pioneiro (2013), Caxias do Sul/RS, é a primeira cidade do Estado que possui uma política pública de pacificação social por iniciativa do município, a primeira jornada Municipal de Pacificação Restaurativa, realizada no fórum de Caxias, formalizou o convenio entre a prefeitura e o poder judiciário para o funcionamento do Núcleo de Praticas restaurativas, é a pioneira no modelo de justiça restaurativa. Em Caxias do Sul/RS, a justiça restaurativa vem sendo aplicado nas escolas, nas comunidades, e inclusive dentro dos presídios. A penitenciaria Regional Caxias do Sul é um dos exemplos dessa pratica, a justiça restaurativa age na penitenciaria da seguinte forma, durante conversas em grupo e ao lado de profissionais, os detentos tem a oportunidade de refletir sobre o passado, sobre o crime que cometeu e a oportunidade de desabafar suas angustias. A justiça restaurativa é de extrema importância dentro de penitenciárias, dentro de escolas, nas resoluções dos conflitos, gerando uma sensação de justiça maior aos envolvidos. Após os exemplos citados de Estados que adotam práticas restaurativas fica nítido o quanto esta pratica é de suma importância, haja vista que objetiva resgatar crianças, adolescentes, adultos, resgatar todos aqueles que se envolvam em um conflito, no qual necessitam de respostas, respostas estas vista sobre outras lentes, sobre outro foco, não apenas sobre o foco de punir aquele que pratica uma conduta moralmente errada vista pela sociedade, mas focar em restaurar vidas, olhar o crime sobre outras lentes, sendo o direito penal, um direito melhor. 6 Conclusão É importante enfatizar a necessidade de implementar as diretrizes da ONU em nosso sistema penal brasileiro, servindo de base para a consolidação da construção de uma justiça restaurativa brasileira. Podemos constatar que a justiça restaurativa é um novo modelo que visa intervir positivamente em conflitos penais, além de ser uma ferramenta importante para diminuir o grande volume de processos, e a morosidade do nosso sistema, sendo uma justiça mais célere. É importante destacar que as práticas restaurativas não violam os princípios processuais constitucionais do contraditório e do acesso à justiça, pelo contrário essa pratica além de fazer as partes envolvidas participarem efetivamente do conflito penal e juntas buscarem uma resolução, ainda traz uma sensação aos envolvidos de maior justiça. Após a análise dos dois modelos de justiça esboçada no quadro comparativo, percebemos o quanto é falho o sistema tradicional de justiça, e o quanto é essencial a aplicação da justiça restaurativa não somente em crimes de menor potencial ofensivo, como também em crimes em que seja necessária aplicação de penas rígidas. Cumpre ressaltar que o atual modelo de justiça é necessário para a pacificação em sociedade, o objetivo da justiça restaurativa não é abolir a pena e sim aperfeiçoar o sistema retributivo, o qual carece de mais atenção. É necessário recuperar a vítima dos danos causados pelo infrator, e também conscientizar o infrator que sua conduta gerou danos, e que devem ser reparados, haja visto que o crime como já mencionado traz problemas sociais, emocionais e psicológicos. Quando o Estado centraliza em tão somente aplicar a pena, esquece que a máxima do direito penal é a ressocialização, e que quem praticou o ilícito penal deve não somente ser punido, mas também deve ser conscientizado que, a sua atitude gerou danos, os quais devem, e necessitam serem reparados, conscientizando que quando prática um crime de homicídio ou estupro, por exemplo, destrói famílias, destrói vidas, trazendo traumas que as vezes seja impossível a recuperação dos atingidos. A justiça restaurativa traz uma chance da vítima dialogar com agressor e entender o porquê ele praticou o crime, amenizando as vezes a insegurança e o medo adquiridos pela conduta delituosa. Confome afirma Gustav Radbruch,”precisamos pensar não apenas em fazer do Direito Penal algo melhor, mas algo melhor do que
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o Direito Penal.” E nos indagarmos se a justiça restaurativa não seria uma oportunidade, uma porta, com abertura para uma resposta adequada a um considerável número de delitos. Fica nítido como é importante a aplicação da justiça restaurativa no Brasil e no mundo, sendo um sistema totalmente flexível, o qual deve ser aplicado sempre que possível e com o consenso dos envolvidos, em todos os tipos de condutas moralmente erradas, até mesmo em um crime de estupro ou homicídio, haja visto que o objetivo primordial da justiça restaurativa como o próprio nome já a caracteriza, é restaurar vidas, laços rompidos, restaurar o convívio em sociedade. REFERÊNCIAS Lei nº 9.099/1995. Código do Brasil. Vade Mecum. Editora Saraiva. 7º Edição; 2014 MELO Eduardo. Justiça Restaurativa e comunitária em São Caetano do Sul Aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. São Paulo, 2008. PINTO, Renato Sócrates Gomes. “Justiça Restaurativa é Possível no Brasil?”. Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. C. Slakmon, R. De Vitto, R. Gomes Pinto (org.). Brasília, Ministério da Justiça e PNUD, 2005, pp. 19-39. Scuro Neto, Pedro, 2000. Manual de Sociologia Geral e Jurídica (4ª edição) (São Paulo: Saraiva). Scuro Neto, Pedro, 1999. “Justiça nas Escolas: A Função das Câmaras Restaurativas,” in Leoberto N. Brancher, Maristela M. Rodrigues e Alessandra G. Vieira eds., O Direito é Aprender (Brasília: Fundescola/Projeto Nordeste/ MEC-BIRD). SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. VITTO, Renato; Justiça Restaurativa Coletânea de artigos; 2005; ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça. São Paulo: Palas, 2008.
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Notas de fim 1 Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre pela Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais. Professor adjunto de Direito Penal e Prática Penal no Centro Universitário Newton Paiva.
** Ronaldo Passos Braga; Renato Martins Machado.
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CERTIDÃO DE QUITAÇÃO ELEITORAL COM PRAZO INDETERMINADO: uma análise prática e constitucionalmente adequada da temática Meire Ellem Diniz Costa Galvão1 Ludmila Castro Veado Stigert2 Banca examinadora** RESUMO: A certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado pode ser considerada uma garantia como também pode ser compreendida como uma discriminação velada, que viola o direito ao voto. Nesse contexto, almeja-se com este estudo, desenvolver a questão ora controvertida e passível de discussão, apresentando para tanto, uma análise prática e constitucional da matéria. Para a realização da pesquisa será utilizado como referenciais teóricos os estudos realizados por Silva (2001), Ferraz (2012), Fernandes (2011) e Lanna (2010). Além da pesquisa teórico-jurídica, foram feitas duas pesquisas investigativas-quantitativas, uma tendo como investigados as pessoas com deficiência e a outra os Juízes Eleitorais. A primeira buscou perceber principalmente se aquela determinada categoria de pessoas conhecem o direito em questão, e a última teve o escopo de descobrir quais são os critérios realmente avaliados para a concessão de tal certidão. Ao final da mesma, ficou evidente que essa exceção legal ao direito-dever de votar viola os direitos positivados na Constituição Federal (1988) e na Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (2009). Além disso, constatou-se também que é grande o desconhecimento desse direito fundamental por parte dos destinatários. Logo, tal resultado denota e indica que é preciso avançar mais nos entornos do tema para que o exercício do voto seja um direito efetivamente ao alcance das pessoas com deficiência, buscando com isso efetivar a democracia e consolidar os ditames de um Brasil que deve ser construído por todos e para todos os seus cidadãos. Palavras-chave: Direito fundamental. Voto. Quitação eleitoral. Pessoas com deficiência. Contagem. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O movimento político das pessoas com deficiência no Brasil; 2.1 A deficiência como uma questão ambiental; 3 O Estado Democrático de Direito e as pessoas com deficiência; 3.1 O voto; 4 A certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado; 4.1 A Resolução do TSE n.º 21.920/2004; 4.2 Uma análise constitucional da matéria; 4.3 Uma análise prática dessa exceção legal; 4.3.1 Entrevistas realizadas com os Juízes Eleitorais; 4.3.2 Entrevistas realizadas com as pessoas com deficiência; 5 Ações afirmativas que estão sendo implementadas; 6 Considerações finais; Referências Bibliográficas; Anexos.
1 INTRODUÇÃO Existem, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do ano de 2010 (IBGE, 2010), 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência, sendo essa uma grande minoria, começamos esse trabalho trazendo um breve relato do movimento político dessas pessoas, demonstrando assim, como foi difícil e lenta a conquista do espaço na sociedade e dos direitos que hoje possuem. Tendo em vista que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem status de emenda constitucional, em seu artigo 29, prevê que os Estados devem garantir às pessoas com deficiência o pleno exercício dos direitos políticos, em igualdade com as demais pessoas, mediante a garantia de procedimentos, instalações, materiais e equipamentos para votação apropriados, acessíveis e de fácil compreensão e uso. E diante da possibilidade da regra, estabelecida na Resolução nº 21.920 de 2004 pelo Tribunal Superior Eleitoral, que concede às pessoas com deficiência a possibilidade de obterem uma certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado, se transformar em lei, após a aprovação do PL 3927/123 que tramita no Congresso Nacional, vimos a necessidade e importância de realizar uma análise constitucional e prática com o objetivo de investigar se tal exceção legal é uma garantia ou uma discriminação velada ao direito constitucional tão importante e fundamental para exercício da cidadania. Para tanto, fez-se necessário ir além da pesquisa teórico-documental. Foi desenvolvido e disponibilizado na internet o questionário “Você conhece esses direitos?” Com o objetivo de investigar junto às pessoas com deficiência, se elas possuem conhecimento de seus direitos políticos, especificamente o direito a obter a certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado, se os exercem, e como
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avaliam a adequabilidade do ambiente proporcionado pelo Estado. Além disso, e com o intuito de investigar junto ao cartório eleitoral do município Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte/MG, foi enviado para todos os Juízes Eleitorais, de cada Zona daquele cartório, um questionário, em que as respostas possibilitasse auferir com qual frequência é pleiteada a certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado, quais os critérios são avaliados para o seu deferimento, entre outras informações, também importantes. 2 O MOVIMENTO POLÍTICOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL A história do movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficiência no Brasil foi registrado pela primeira vez, em 2010, no livro “História do movimento político das pessoas com deficiência” lançado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em parceria com a Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), como parte do Projeto OEI/ BRA 08/001 – Fortalecimento da Organização do Movimento Social das Pessoas com Deficiência no Brasil e Divulgação de suas Conquistas4. Após assistir o documentário e fazer a leitura do livro foi possível traçar as principais conquistas e avanços dessa parcela da sociedade. Foi na década de 1970 que as primeiras organizações compostas e dirigidas por pessoas com deficiência surgiram, contrapondo-se às associações que prestavam serviços a este público. Essas organizações não possuíam objetivo político definido, mas ao criarem espaços de convivência entre os pares, as dificuldades comuns eram reconhecidas e debatidas, o que desencadeou um processo da ação política em prol de seus direitos humanos.
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No final da década de 1980 foi estabelecido no Brasil, uma representação do Movimento de Vida Independente (MVI), criado nos Estados Unidos na década de 70, o MVI é um movimento de inclusão social que busca o desenvolvimento individual das pessoas com deficiência através da divulgação do conceito de vida independente e do oferecimento de serviços e informações para que as mesmas adquiram autonomia na realização das atividades da vida diária, tomem as próprias decisões, se responsabilizem por suas escolhas e assumam as consequências destas. (LANNA, 2010) O ano de 1981 foi proclamado pela ONU como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD), sob o tema “Participação Plena e Igualdade”. O AIPD colocou as pessoas com deficiência no centro das discussões, no mundo e também no Brasil. Antes da Constituição de 1988, a única referência constitucional aos direitos das pessoas com deficiência era a Emenda n° 12, de 1978, conhecida como “Emenda Thales Ramalho”, que no seu artigo único definia: É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante: I. educação especial e gratuita; II. assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; III. proibição de discriminação, inclusive quanto a admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários; IV. possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos. (EMENDA n° 12, de 1978)
do Poder Público e da sociedade civil, tendo como algumas de suas competências: zelar pela implantação da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência; acompanhar o planejamento e avaliar a execução das políticas setoriais relativas à pessoa portadora de deficiência; zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de defesa dos direitos da pessoa portadora de deficiência; propor a elaboração de estudos e pesquisas; propor e incentivar a realização de campanhas visando à prevenção de deficiências e à promoção dos direitos da pessoa portadora de deficiência; aprovar o plano de ação anual da CORDE; entre outras. Em 2003, o CONADE passou a ser órgão colegiado da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. (LANNA, 2010) A elaboração do texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aqui já mencionada, foi marcada pela participação do movimento social organizado. Ativistas da sociedade civil, de todas as partes do mundo, inclusive do Brasil, participaram ativamente na formulação de um tratado de proteção aos direitos humanos. (LANNA, 2010) Como pode ser percebido havia pouco ou nenhum espaço para que as com deficiência participassem das decisões em assuntos que lhes diziam respeito. Mas desde o final da década de 1970, até os dias atuais as pessoas com deficiência empreendem intensa luta por cidadania e respeito aos Direitos Humanos. Quando as formas de participação política são ampliadas a democracia passa a ter novo significado para essas pessoas, e é sobre participação política que iremos tratar neste estudo.
O anteprojeto da Constituição de 1988, elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, tinha um capítulo intitulado “Tutelas Especiais”, específico para as pessoas com deficiências. Essa separação, na visão do movimento, era discriminatória, pois desde o início da década de 1980, a principal demanda do movimento era a igualdade de direitos, e, nesse sentido, reivindicavam que os dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência deveriam integrar os capítulos dirigidos a todos os cidadãos. O movimento vislumbrava, portanto, que o tema deficiência fosse transversal no texto constitucional. Mas, inicialmente as propostas não foram incorporadas da forma esperada. Em decorrência disso, o movimento preparou um projeto de Emenda Popular com 14 artigos sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde coubessem temas como igualdade de direitos, discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação, direito à informação, educação básica e profissionalizante. Foram recolhidas as 30 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à Assembleia Nacional Constituinte e a luta logrou êxito, a lógica da segregação presente na proposta do capítulo “Tutelas Especiais” foi superada, os direitos foram incorporados ao longo de todo o texto constitucional, além disso, surgiu o viés legal, o princípio da inclusão, das pessoas com deficiência na sociedade. (LANNA, 2010) Foi em 1986 e 1989, que a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), e a da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, foram respectivamente criadas e, a partir desse momento os interesses dessas pessoas ganharam cada vez mais espaço na estrutura federal. Desde 2003, a política para a pessoa com deficiência está vinculada diretamente à Presidência da República, por meio da pasta de Direitos Humanos. Recentemente, em agosto de 2010, alcançou o status de Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. (LANNA, 2010) Já o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE) foi criado em 1999, como órgão superior de deliberação coletiva, constituído paritariamente por representantes
2.1 A deficiência como uma questão ambiental De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do ano de 2010 (IBGE, 2010), há 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência. Essa categoria de pessoas pode ser definida como: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2009) O conceito apresentado acima é atual, mais amplo, voltado ao ambiente da pessoa. As palavras usadas para nomear as pessoas com deficiência comportam uma visão valorativa que traduz as percepções da época em que foram cunhadas. Termos genéricos como inválidos, incapazes, aleijados e defeituosos foram amplamente utilizados e difundidos até meados do século XX, indicando a percepção dessas pessoas como um fardo social, inútil e sem valor. Ao se organizarem como movimento social, as pessoas com deficiência buscaram novas denominações que pudessem romper com essa imagem negativa que as excluía. Hoje a deficiência deixou de ser propriamente uma característica médica, passando à condição social produzida pelo déficit de acesso aos direitos e bens sociais que esses indivíduos enfrentam, considerando a sociedade tal como está organizada. (RAMOS, 2012). Como pode ser percebido foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – documento que é no atual cenário constitucional democrático o mais importante e completo diploma normativo no que concernem a direitos e garantias às pessoas com deficiência, que ao ser introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, com status de emenda constitucional – que fez com que deixássemos a terminologia “portadores de deficiência”, e adotássemos a terminologia “pessoas com deficiência”. Segundo Araújo (2012) há uma simbologia importante no novo tratamento, a deficiência passa a ser parte da pessoa, integrando se a ela, e não algo que estava perto em virtude de posse ou portabilidade. Ela não carrega; ela é. Mas antes de tudo, é uma pessoa. Isso se deu a partir de uma evolução.
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3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA O Estado Democrático de Direito é o paradigma de Estado que assenta-se no marco filosófico do pós-positivismo jurídico e traz como grande desafio a busca pela reconciliação do Direito com a Democracia. Esta tarefa não se mostra fácil, sendo portanto a sua construção um grande desafio para o Estado e para a sociedade. Para compreendermos o que é o Estado Democrático de Direito, não seria adequado definir os elementos que o compõe e uni-los, pois este é um conceito novo, e é a Constituição de 1988 que funda e proclama tal Estado: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1988). A submissão ao império da lei, a divisão de poderes e o enunciado e garantia dos direitos individuais, são características básicas do Estado de Direito, antes denominado Liberal, mas que evoluiu para o denominado Estado Democrático, sendo que este se funda principalmente sob dois princípios, o da soberania popular e o da participação do povo no poder, consagrados no parágrafo único do artigo supracitado, eles são corolários da democracia. Silva (2001) afirma que a democracia aponta para a realização dos direitos políticos e este aponta para a realização dos direitos econômicos e sociais, que garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante. Silva sustenta ainda que: A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício. (SILVA, 2001, p. 123-124) Neste pequeno parágrafo, Silva (2001) pontua os aspectos que devem ser observados para responder a seguinte pergunta: a certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado é uma garantia às pessoas com deficiência ou uma discriminação velada, que viola o direito ao voto? 3.1 O voto Os direitos políticos são um conjunto de regras que dispõem sobre o exercício da soberania popular. É um grupo de normas que envolvem a participação dos cidadãos nas tomadas de decisões que envolvem a vida pública do Estado e da sociedade. Tais direitos fundamentam a democracia, arrimada no artigo 1º, parágrafo único, da
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Constituição de 1988, consagra a sua forma mista: indireta, escolha dos representantes, e direta nos termos da Constituição (plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei – artigo 14, I, II, III, CF/88. A manifestação desses direitos instrumentaliza a condição de cidadania ativa enquanto meio de participação nos processos de formação do poder no Estado e na sociedade, no qual viabiliza o exercício da democracia participativa em um Estado Democrático de Direito. (FERNANDES, 2011) Como exemplo de direito político podemos citar o direito de sufrágio, sendo que voto é o instrumento no qual elegemos alguém, através do exercício deste direito, que além de eleger, também envolve o direito de ser eleito. O voto é um direito político subjetivo e, ao mesmo tempo tem uma função sociopolítica para o exercício e desenvolvimento da soberania popular, já que, e a partir dele que escolhemos representantes para o exercício do poder em nome do povo. (FERNANDES, 2011) O Código Eleitoral é o diploma legal que traz as normas destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos precipuamente os de votar e ser votado. Sendo que o artigo 6º, caput, I, “a”, Código Eleitoral, narra que o alistamento dos inválidos não é obrigatório; o termo inválido era utilizado à época para designar pessoas com deficiências. Contudo, vale ressaltar que o diploma mencionado é de 1965 e sendo a Constituição Federal de 1988, norma fundamental posterior, podemos dizer que a regra mencionada, ou seja, a não obrigatoriedade do alistamento eleitoral das pessoas com deficiência não foi recepcionada pela Constituição, que disciplina em seu artigo 14, §1º, I, II, “b”, CF/88, as normas sobre o alistamento eleitoral e o voto, tornando ambos, obrigatórios para os maiores de dezoito anos e facultativos para os maiores de setenta anos, não incluindo a facultatividade às pessoas com deficiência. 4 A CERTIDÃO DE QUITAÇÃO ELEITORAL COM PRAZO INDETERMINADO 4.1 A Resolução do TSE nº. 21.920/2004 Diante da divergência entre a obrigatoriedade e a faculdade do alistamento e do voto das pessoas com deficiência, o Corregedor Regional Eleitoral do Espírito Santo formulou consulta ao Tribunal Superior Eleitoral através do Processo Administrativo nº 18.483 acerca da vigência do art. 6º, I, a do Código Eleitoral, que desobriga o alistamento eleitoral de “inválidos”, em face da disciplina constitucional do art. 14, § 1º, II, da CF/88. Tal processo administrativo ensejou a aprovação por unanimidade da Resolução nº 21.920 em sessão realizada em 19.9.2004. Essa Resolução nº 21.920 do TSE deu origem a um direito específico das pessoas com deficiência em relação ao processo de votação, a saber, o direito de solicitar a expedição de uma “certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado”. A emissão desse documento pode ser solicitada pelo interessado, por seu representante legal ou por procurador constituído diretamente no cartório eleitoral, conforme reza o artigo 2º, da mesma Resolução. A expedição da certidão ficará condicionada à apreciação do Juiz Eleitoral, que receberá a documentação, inclusive a que comprove a deficiência. Se o Juiz entender que devido à deficiência, o cumprimento das obrigações eleitorais, ou seja, o alistamento e o voto, para aquela pessoa é impossível ou demasiadamente oneroso, o cidadão se beneficiará dessa certidão e não estará sujeito à penalidade prevista no art. 8º do Código Eleitoral (BRASIL, 1932). É certo que o Tribunal Superior Eleitoral fundamentou a extensão do direito de facultatividade do exercício do voto reconhecido aos idosos e às pessoas com deficiência com a finalidade de não causar transtorno ao bem-estar destas, embasando-se principalmente na necessidade de se garantir o princípio da dignidade da pessoa humana. Entretanto, o §1º do artigo 2º da Resolução nº 21.920 diz que para a concessão dessa certidão “serão consideradas, também, a situação
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par efetiva e plenamente na vida política e pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem votadas, mediante, entre outros: i) Garantia de que os procedimentos, instalações e materiais e equipamentos para votação serão apropriados, acessíveis e de fácil compreensão e uso; ii) Proteção do direito das pessoas com deficiência ao voto secreto em eleições e plebiscitos, sem intimidação, e a candidatar-se nas eleições, efetivamente ocupar cargos eletivos e desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, usando novas tecnológias assistivas, quanto apropriado; iii) Garantia da livre expressão de vontade das pessoas com deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que elas sejam auxiliadas na votação por uma pessoa de sua escolha; b) Promover ativamente um ambiente em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e encorajar sua participação nas questões públicas, mediante: i) participar em organizações não governamentais relacionadas com a vida pública e política do país, bem como em atividades e administração de partidos políticos; ii) formação de organizações para representar pessoa com deficiência em níveis internacional, regional, nacional e local, bem como a filiação de pessoas com deficiência e atais organizações. (BRASIL, 2009)
socioeconômica do requerente e as condições de acesso ao local de votação ou de alistamento desde a sua residência”. Quanto a esses dois requisitos não está expresso e não conseguimos visualizar o nexo do pedido com a necessidade de serem considerados, pois se é a deficiência que torna impossível ou extremamente oneroso o exercício das obrigações eleitorais, a situação socioeconômica do cidadão não o tornará mais ou menos deficiente, no mesmo sentido as condições de acesso ao local de votação ou de alistamento desde a residência do cidadão. 4.2 Uma análise constitucional da matéria A concessão da certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado está condicionada ao preenchimento de alguns requisitos, sendo um desses as condições de acesso ao local de votação ou de alistamento desde a residência do cidadão. Nesse sentido notamos que há uma contradição entre a Resolução nº 21.920/2004, e a Resolução nº 21.008/2002, ambas editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, esta editada dois anos antes daquela, dispõe exatamente sobre a criação de seções eleitorais especiais destinadas a eleitores com deficiência, seções estas que devem proporcionar o fácil acesso para as pessoas com deficiência. A Resolução nº 21.008, garante ao eleitor, pessoa com deficiência, o direito de votar em uma seção eleitoral classificada como especial quando este solicitar a transferência para uma dessas seções até 151 dias antes das eleições. O artigo 2º desta Resolução estabelece que essas seções “deverão ser instaladas em local de fácil acesso, com estacionamento próximo e instalações, inclusive sanitárias, que atendam às normas da ABNT NBR 9050”. Já o parágrafo único do artigo 3º diz ainda que “as urnas eletrônicas, instaladas nas seções especiais para eleitores portadores de deficiência visual, deverão conter dispositivo que lhes permita conferir o voto assinalado, sem prejuízo do sigilo do sufrágio.” O artigo em comento concede ao eleitor que vota em uma dessas seções classificadas como especiais, a oportunidade de “comunicar ao juiz eleitoral, por escrito, suas restrições e necessidades, a fim de que a Justiça Eleitoral, se possível, providencie os meios e recursos destinados a facilitar-lhes o exercício do voto”. Já a Constituição de 1988 trouxe, com a finalidade de tornar a acessibilidade possível, a seguinte disposição no art. 227, §2°: A lei disporá sobre normas de construção de logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. (BRASIL, 1988). E em 2000, o Presidente da República sancionou e decretou a Lei 10.098, que estabeleceu normas gerais e critérios básicos à promoção de acessibilidade das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, posteriormente regulamentada pelo Decreto 5.296/2004, cujo parágrafo único do art. 21 estabelece a necessidade de conferir autonomia ao exercício do direito ao voto às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida; sendo ainda que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; no Artigo 9 estabelece que: Os Estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, bem como a serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. (BRASIL, 2009) Esse mesmo documento prevê em seu artigo 29, que os Estados devem garantir às pessoas com deficiência o pleno exercício dos direitos políticos, em igualdade com as demais pessoas, sendo que, para a efetivação de tais direitos o Estado será responsável por: a) assegurar que as pessoas com deficiência possas partici-
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Resta então comprovada a existência formal de normas que garantem condições de igualdade entre as pessoas com deficiência e os demais cidadãos de participarem da vida política do país. Não sendo adequado, e arriscamos até mesmo dizer, sendo inconstitucional, conceder a certidão eleitoral como exceção legal ao direito-dever de votar, já que a lei infraconstitucional deve respeitar a Carta Maior e esta prevê – assim como também a Convenção, que tem status de emenda daquela – o dever do Estado de proporcionar um ambiente adequado, acessível à participação efetiva das pessoas com deficiência na vida política do país. 4.3 Uma análise prática dessa exceção legal 4.3.1 Entrevistas realizadas com os Juízes Eleitorais
Com o objetivo de investigar com qual frequência é pleiteada a certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado, e quais os critérios são efetivamente avaliados para sua concessão, foi elaborado um questionário com dez questões, que foi enviado por e-mail, para os Juízes Eleitorais das cinco Zonas do Cartório Eleitoral de Contagem (quais sejam, Zona Eleitoral 090, 091, 092, 093, e 313) e também foi lhes solicitado caso existisse, o envio de uma cópia do formulário utilizado pelo requerente, ou seu procurador, para requerimento do documento (Anexo A – Formulário de requerimento), e pelo ao menos uma cópia de uma decisão referente a tal pleito (Anexo B - Decisão). Até o término da edição deste artigo, não havíamos recebido resposta apenas da Zona 090. Com a autorização dos Juízes os chefes de cartórios de 04 Zonas responderam as questões e enviaram os documentos solicitados. Analisando os resultados da pesquisa restou constatado que o total 26 eleitores com deficiência e com domicílio eleitoral em Contagem, já obtiveram a certidão de quitação eleitoral com prazo de validade inde-
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terminado, sendo que o primeiro pedido foi realizado em 2006 e o último neste ano de 2014. Nenhum dos pedidos foi indeferido, mas a falta de documentação comprobatório da situação alegada, é que é crucial para o deferimento ou não. Vale ressaltar que 07 destes eleitores fizeram o pedido pessoalmente, e 19 o fizeram através de procurador. Questionados sobre como essas pessoas geralmente ficam sabendo que possuem esse direito, as repostas foram unânimes em afirmar que é o próprio cartório, diante dos relatos, sobre o quanto é dificultoso, para alguns eleitores, o exercício do voto, que informa sobre esse direito às pessoas. Sobre o procedimento a ser respeitado para obter essa certidão, algumas Zonas adotaram um formulário específico que deve ser preenchido, mas em outras basta um requerimento simples por escrito, além da apresentação da documentação que comprove a deficiência. Nesse sentido foi a resposta de Luiz Cláudio José de Medeiros, chefe de cartório da Zona 093: A pessoa requer, pessoalmente ou através de procurador, a expedição da certidão, anexando a documentação que comprove sua situação. O Magistrado pode determinar a realização de alguma diligência, ou caso a prova seja satisfatória, já decide de imediato. O processo é administrativo e bem célere. Até a decisão final demora, em média, dez dias. (MEDEIROS, 2014) Apesar da Resolução nº 21.920/2004 prever que devem ser observados diversos critérios, os chefes de cartórios de quatro das cinco Zonas do Cartório Eleitoral de Contagem, afirmaram por unanimidade que o critério determinante, e único, que é observado pelos Juízes para deferimento do pedido, é a comprovação por laudo médico da doença que faz com que seja difícil ou demasiadamente oneroso o exercício do voto. Não sendo portanto consideradas a situação econômica e as condições de acesso aos locais de votação. 4.3.2 Entrevistas realizadas com as pessoas com deficiência
Com o objetivo de investigar junto às pessoas com deficiência, se elas possuem conhecimento de seus direitos políticos, especificamente o direito a obter a certidão de quitação eleitoral com prazo indeterminado e de votar em uma sessão especial, se os exercem, e como avaliam a adequabilidade do ambiente proporcionado pelo Estado. Foi desenvolvido, através do site SurveyMonkey, o questionário “Você conhece esses direitos?”5, que foi respondido online por 106 pessoas, sendo 100 através do acesso ao site, e 06 via e-mail. Das 106 pessoas que responderam ao questionário, 91 delas possui deficiência, sendo 87 pessoas com deficiência física; 103 possuem idade entre 18 e 70 anos, ou seja, são obrigadas a votar, destas 100 tem o título de eleitor, mas apenas 94 votam. Uma das pessoas que respondeu, relatou que: Votei agora no primeiro turno próximo de casa, ando de bengala com a ajuda e minha esposa. Mas tive que subir três rampas de escadas. Fiz um protesto por escrito, depois liguei para o cartório eleitoral e fui informado que nada vai mudar no segundo turno. Procurei o Ministério Público e protestei! (ANÔNIMO, pois o site SurveyMonkey permite identificar apenas o IP do entrevistado) Foi também investigado se a pessoa sai de casa com frequência de no mínimo uma vez por mês, e 11 responderam que não, por ser extremamente difícil. A pergunta “Direito de votar em uma seção eleitoral especial (de fácil acesso). Você conhece esse direito?” Foi respondida na seguinte proporção: 39 pessoas não conhecem esse direito, 30 conhecem e votam em uma seção especial, e outras 34, conhecem, mas não tem interesse em mudar de seção eleitoral, 03 pessoas
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ignoraram essa pergunta. Já quando informadas sobre a possibilidade de não serem obrigados a votar, obtendo para tanto a certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado, 20 disseram conhecer esse direito, 04 afirmaram que sabem da existência de tal direito, mas não sabem o que isso significa, e 81 pessoas nunca ouviram falar sobre isso. Ao final foram listadas as três afirmativas abaixo, sendo que o entrevistado poderia escolher, marcando a que melhor expressasse sua opinião, ou poderia ainda, escrevê-la com suas próprias palavras, em um campo determinado. As afirmativas eram: l “Eu gostaria que todas as barreiras fossem eliminadas e que eu pudesse votar facilmente”. 54 pessoas declararam ter essa opinião. l “Eu voto sempre, e não me importo com as barreiras (dificuldades) que enfrento”. 14 pessoas, portanto, não se importam com as barreiras ao exercer o voto. l “Eu gostaria de obter a certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado e não ser obrigada a votar”. 17 pessoas manifestaram o interesse de não votar. l 01 pessoa ignorou essa etapa do questionário e 17 pessoas deixaram com suas próprias palavras a sua opinião, abaixo a transcrição de 02 delas: Não voto e não tenho interesse em fazê-lo. Possuo a certidão de quitação eleitoral por tempo indeterminado. (ANÔNIMO, resposta obtida através do site SurveyMonkey, dia 15/10/2014, às 13:50) Acredito que o Estado quer fugir de sua responsabilidade de tornar o ambiente acessível. (ANÔNIMO, resposta obtida através do site SurveyMonkey, dia 14/10/2014, às 13:22) A sociedade tal como se apresenta estruturada possui um déficit de acesso aos direitos por parte das pessoas com deficiência e o desrespeito por parte do poder público às normas jurídicas em relação ao dever de proporcionar um ambiente adequado às necessidades específicas dessas pessoas, pode ser considerado um entrave ao exercício do voto, assim também como o desconhecimento das pessoas, que são destinatárias desses direitos, como identificado na realização da entrevista. 5 AÇÕES AFIRMATIVAS QUE ESTÃO SENDO IMPLEMENTADAS Ficou evidente que as condições de acessibilidade têm previsão constitucional e que o Tribunal Superior Eleitoral editou normas que garantem o direito ao exercício do voto aos cidadãos com deficiência. Contudo a concessão da certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado é um entrave ao exercício desse direito. Sendo assim, é necessário a implementação de ações afirmativas para implementação desses direitos. Como exemplo podemos citar a Resolução nº 23.381 editada pelo Tribunal Superior Eleitoral e publicada no DJe n.º 142, de 27/07/2012 instituiu o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral. O artigo 2º da Resolução em comento diz que: o programa destina-se à implementação gradual de medidas para a remoção de barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, a fim de promover o acesso, amplo e irrestrito, com segurança e autonomia de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida no processo eleitoral. (RESOLUÇÃO do TSE nº 23.381/2012, Art.2º) Dois pontos presentes nessa Resolução merecem destaque. O primeiro é a abertura para a “celebração de acordos e convênios de cooperação técnica com entidades representativas das pessoas com deficiência, objetivando o auxílio e acompanhamento das atividades necessárias
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à plena acessibilidade.” (Resolução do TSE nº 23.381/2012, Art. 3º, VIII) O segundo se refere aos mesários que passarão a receber treinamento com “orientações para auxiliar e facilitar o exercício do voto pelos eleitores com deficiência ou mobilidade reduzida” (Resolução nº 23.381/2012, Art. 5º) e que a cada eleição receberá no dia do pleito formulário de requerimento individual específico para que possa realizar a atualização da situação desses eleitores. (Resolução do TSE nº 23.381/2012, Art. 8º, §1º) Desde 30 de julho de 2012 encontra-se disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral legislação eleitoral em áudio. Editada em formato MP3, a série Legislação eleitoral em áudio é fruto de um trabalho em parceria com a Câmara dos Deputados. E basta um clique em um dos títulos para ouvir os arquivos ou fazer o download do material. Estão disponíveis o Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965); a Lei de Inelegibilidade (Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990) e a Lei das Eleições (Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997). Em uma reportagem do dia 18.09.2012 no site do G1 dia foi relatado que a Justiça Eleitoral de Rondônia tem aproximadamente cinco mil eleitores com deficiência cadastrados. E que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) oferece em alguns municípios transporte gratuito para as pessoas com dificuldade de locomoção no dia das eleições. Os municípios que já possuem o sistema de transporte gratuito são: Porto Velho, GuajaráMirim (RO), Jaru (RO), Ouro-Preto do Oeste (RO), Ji-Paraná (RO), Cacoal (RO), Pimenta Bueno (RO) e Vilhena (RO). O mesmo poderia ser feito em Contagem, tendo em vista que a Prefeitura do município mantém o Programa Sem Limite, que é um Serviço de Transporte Suplementar às Pessoas com Deficiência Física, com alto grau de comprometimento na sua mobilidade, são 25 vans adaptadas com elevadores, essas vans poderiam levar, no dia do pleito, os eleitores até as sessões eleitorais. Como o desconhecimento por parte das pessoas com deficiência foi um dos entraves, percebidos através da entrevista realizadas com essas pessoas, para a efetividade do exercício do voto em condições de igualdade com os demais, vale citar a cartilha “Voto: três direitos específicos das pessoas com deficiência”6. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Constituição Federal de 1988 instituiu teoricamente o Estado Democrático de Direito, porém, tal modelo ainda se encontra em fase de construção e aprimoramento. Após a realização desta pesquisa, ficou evidente que há direitos fundamentais que ainda não foram efetivados por uma parcela da população. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, é objetivo da República Federativa do Brasil que implica necessariamente na participação política da população na sua implementação conjuntamente com o Estado. O voto é o principal instrumento possibilitador dessa participação, já que é um direito-dever por meio do qual o cidadão escolhe os seus representantes e governantes. Buscou-se verificar nesta pesquisa se a certidão de quitação eleitoral com prazo de validade indeterminado, positivada como exceção legal ao direito de votar, é uma garantia às pessoas com deficiência ou uma discriminação velada, que viola o direito ao voto. Restou evidente que se trata de uma forma velada de discriminação, posto que as condições de acessibilidade, inclusive nos ambientes onde acontece essa participação, têm previsão constitucional e infraconstitucional, devendo o Estado proporcionar um ambiente adequado às necessidades específicas dessas pessoas, além promover a divulgação desses direitos para o conhecimento daqueles que são seus destinatários. Mas, ao contrário, o que se percebe é que o poder público tenta se eximir dessa responsabilidade concedendo essa certidão e liberando os eleitores do direito-dever de votar. Tal situação denota que o princípio da soberania popular está em crise e
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que ainda é preciso avançar mais para que o exercício do voto seja um direito efetivamente ao alcance das pessoas com deficiência. Algumas ações afirmativas já foram realizadas. Por exemplo, a possibilidade de acesso a leis em áudio e o transporte gratuito no dia das eleições, em alguns Estados. Entende-se que o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral, criado no ano de 2012, constitui-se como um meio para que o Poder Público, juntamente com as instituições representativas das pessoas com deficiência, possam se unir e proporcionar mudanças que resultem na efetividade de direitos já positivados. Considera-se importante levar ao conhecimento das pessoas com deficiência o direito de votar em uma seção eleitoral especial, ou seja, de fácil acesso. A divulgação dos direitos já positivados é de extrema importância. É preciso que, além dos responsáveis por tornar efetivos esses direitos, que os seus destinatários também os conheçam, pois só assim poderão exercê-los e promover a sua fiscalização, e, em caso de sofrerem ou presenciarem seu desrespeito serão capazes de denunciar a ocorrência. Além disso, cabe ainda ressaltar que as pessoas portadoras de algum tipo de deficiência são sujeitos costitucionais como outra qualquer, e que precisam ter os seus direitos de acessibibilidade garantidos para que possam interagir com os demais e fazer parte do cenário político brasileiro. REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiz Alberto David. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seus reflexos na ordem jurídica interna no Brasil. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 480 p. BARCELLOS, Ana Paula de; CAMPANTE, Renata Ramos. A acessibilidade como instrumento de promoção de direitos fundamentais. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 480 p. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projetos de Leis e Outras Preposições. PL 3927/2012. Acrescenta o art. 7º-A à Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, que “institui o Código Eleitoral”. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=54562>. Acesso em: 05 nov. 2014. BRASIL. Código eleitoral (1965). In: ANGHER, Anne Joyce. Vade mecum universitário de direito RIDEEL. 10.ed. São Paulo: RIDEEL, 2011. p. 526-556. BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: 10 set. 2014. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 21.008, de 05 de mar. de 2002. Dispõe sobre o voto dos eleitores portadores de deficiência. ALESP. Coletânea Temática de Leis. Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/coletanea/4_7_38.htm>. Acesso em: 20 de ago. 2014. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 21.920, de 19 de set. de 2004. Dispõe sobre o alistamento eleitoral e o voto dos cidadãos portadores de deficiência, cuja natureza e situação impossibilitem ou tornem extremamente oneroso o exercício de suas obrigações eleitorais. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/ eleitor/resolucao-tse-21.920-alistamento-eleitoral>. Acesso em: 18 de ago. 2014. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.381, de 19 de jun. de 2012. Institui o Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral e dá outras providências. Portal da Justiça Eleitoral. Disponível em: <http://www.justicaeleitoral. jus.br/arquivos/tse-resolucao-estrutura-ementa-voce-e-direito-aula-9-da-secaonocoes-de-direito-tse-resolucao-23381>. Acesso em: 08 de nov. 2014. CONTAGEM. Prefeitura de Contagem. Legislação. Decreto 282 de 13/03/2014. Disponível em: <http://www.contagem.mg.gov.br/?legislacao=252665>. Acesso em: 18 de ago. 2014.
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DAMASCENO, Ivanete. Rondônia tem cerca de cinco mil eleitores com deficiência cadastrados. G1, Rondônia, 18, set. 2012. Rondônia. Eleições 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/ro/rondonia/eleicoes/2012/noticia/2012/09/ rondonia-tem-cerca-de-cinco-mil-eleitores-com-deficiencia-cadastrados.html>. Acesso em: 19 nov. 2014. BRASIL. Decreto nº 5.296, de 2 de dez. 2004. Regulamenta as Leis nº 10. 048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e da outras providencias. Portal Ministério da Educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/ pdf/decreto%205296-2004.pdf>. Acesso em: 18 de ago. 2014. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. 1104 p. FERRAZ, Carolina Valença et al. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 480 p. IBGE. Censo 2010: população do Brasil é de 190.732.694 pessoas. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Comunicação Social 29 de novembro de 2010. Disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/ noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=1766>. Acesso em: 12 de set. 2014. LANNA Júnior, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. 443p SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 67, de 22.12.2001. São Paulo: Malheiros, 2001. 878 p.
NOTAS DE FIM 1 Discente do 9º período do curso de Direito, da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/PUC-MINAS; Especialista em Processo Constitucional pelo Centro Universitário Izabela Hendrix/IHENDRIX; Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva. Graduação em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva; é professora do curso de Direito da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 3 Em 2012, o deputado Asdrubal Bentes, propôs, na Câmara dos Deputados o PL 3927, que tem como objetivo transformar a exceção legal presente na Resolução 21.920/2004, em lei. Como justificativa o deputado ressalta o alcance social da proposta, em razão da situação especial das pessoas com deficiência, que merece atenção permanente da sociedade e do Estado. Em 05 de novembro de 2014, a Comissão de Seguridade Social e Família, em reunião ordinária opinou unanimemente pela rejeição do Projeto, nos termos do Parecer da Relatora, Deputada Mara Gabrilli, que em 28 de agosto de 2014, votou pela rejeição do Projeto. No momento da produção deste artigo, o PL 3927/2012 continua tramitando e está aguardando a designação de Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). 4 A obra busca resgatar a trajetória histórica desse grupo em nosso país e foi publicada, conforme determinam o Decreto nº 5.296/2004 e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), em distintos formatos, que podem ser acessados por qualquer ledor de tela (sintetizadores de voz) e também em Braille. Conjuntamente foi produzido um filme-documentário em formatos acessíveis e que foi traduzido para o espanhol e o inglês, com o objetivo de facilitar a divulgação da história brasileira para a comunidade internacional. (Lanna, 2010) 5 Endereço do site que hospedou o questionário https://pt.surveymonkey. com/s/68T6XC3. 6 Essa cartilha foi produzida a partir de uma pesquisa científica com o título, O Estado Democrático de Direito e as pessoas com deficiência: a efetividade do exercício do sufrágio no município de Contagem, desenvolvida no período de maio/2012 a maio/2013, através do XIII Programa de Iniciação Científica da Newton. A cartilha teve uma tiragem de 1800 exemplares físicos e 120 CDs de áudio, tanto o arquivo em PDF quanto o áudio estão disponíveis para download no site da Associação dos Deficientes de Contagem (ADC). ** Ludmila Stigert; Isabela Dalle Varela.
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ANEXO A – Formulário de requerimento
REQUERIMENTO Nome do Eleitor:_______________________________________, Insc. nº:______________________, eleitor da 91ª Z.E, requer, para os devidos fins, a desobrigação do dever de votar, tendo em vista que é portador de___________________, conforme atestado médico, em anexo, o que torna impossível ou demasiadamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais, relativas ao alistamento e ao exercício do voto.
Contagem, data
Nome Assinatura
ANEXO B – Decisão Proc. nº Parte: Assunto: Desobrigação do dever de votar Considerando que o eleitor_______________________________________ encontra-se incapaz para o exercício das obrigações eleitorais, conforme atestado em anexo. Considerando o artigo 1º da Resolução 21.920 de 19/09/04, que dispõe verbis Art.1º “O alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para todas as pessoas portadora de deficiência. Parágrafo Único “Não estará sujeita a sanção a pessoa portadora de deficiência que torne impossível ou demasiadamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais, relativas ao alistamento e ao exercício do voto. Defiro o requerimento supra, devendo ser providenciado o registro, no cadastro, da informação relativa a deficiência do eleitor, mediante o comando do fase 396 (deficiente), o que tornará inativa a situação de eventual registro, por ausência às urnas ou aos trabalhos eleitorais e ser expedida certidão de quitação eleitoral, por prazo indeterminado. Após arquive-se. Contagem, data
Juiz Eleitoral da 91ª Z.E.
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A filiação socioafetiva no ATUAL contexto do Direito de Família Brasileiro Rafaelly Cristiny Ramos Guimarães1 Valéria Edith Carvalho de Oliveira 2 Banca examinadora** RESUMO: Com a ascensão da constituição de 1988, houve uma extensão do conceito de filiação ficando vedada a discriminação entre os filhos independentes de sua origem, sendo a partir desse momento todos os filhos considerados iguais, não havendo nenhuma distinção de direito ente eles. Com advento do novo modelo de família o ordenamento jurídico requer uma nova concepção, sendo imprescritível no atendimento dos anseios e necessidades de uma nova realidade social e cultural. Dessa forma surge um novo conceito que impõe o afeto ao vínculo biológico, entretanto, o legislador ao regulamentar as entidades familiares no ordenamento jurídico, deixou de normatizar de forma expressa a paternidade socioafetiva, abrindo assim discussões judiciais e doutrinaria acerca do tema. Palavras-chaves: família; reconhecimento; afeto; socioafetividade; filiação. Sumário: 1 Introdução; 2 Evolução Histórica do Conceito de Família no Direito Brasileiro; 3 A filiação Socioafetiva no Atual Contexto do Direito de Família Brasileiro; 3.1 Filiação Socioafetiva; 4 Considerações Finais.
1. INTRODUÇÃO A entidade familiar no Direito Brasileiro sofreu importantes modificações, a evolução do indivíduo, os fatos históricos, e a ascensão dos princípios constitucionais, fizeram com que um novo conceito de família fosse formado amparado por igual, dignidade e afeto. O Direito ao logo dessa evolução vem se adequando às novas situações, evoluindo juntamente com indivíduo “abandonando” antigos dogmas de uma sociedade patriarcal e estabelecendo igualdade entre os membros que compõem a entidade familiar, estabelecendo que o poder familiar será exercido igualmente por ambos os pais, e que não existe diferença entres os filhos. A família tomou novas formas, seu conceito deixou de ser resultado de uma instituição formada pelo casamento entre um homem e uma mulher e os filhos providos desta, passando a considerar uma instituição familiar àquela que decorre de uma união estável e também a entidade familiar monoparental decorrente da sociedade criada entre um dos pais e seus descentes.Essa evolução se estendeu ao conceito de filiação. Nas constituições anteriores a de 1988 os filhos havidos fora do casamento eram considerados filhos ilegítimos, ou seja, não possuíam nenhum direito inerente à filiação como, por exemplo, os direitos sucessórios; sendo que somente aqueles filhos frutos de um casamento eram de fato considerados filhos legítimos com direitos resguardados constitucionalmente. A Constituição de 1988 traz em seu artigo 227 § 6º o princípio da igualdade de filiação, proibindo qualquer discriminação entres os filhos sendo estes concebidos ou não no casamento. A Constituição versa: Artigos 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Brasil, 1988). O disposto constitucional permite uma interpretação abrangen-
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te, conceituando-se a família como aquela que por vínculos de afeto e espontaneamente oferecem uma vida harmoniosa fundada nos princípios constitucionais. Nesse contexto o presente trabalho visa entender e demonstrar a importância das novas relações familiares, em específico a relação de paternidade socioafetiva que é pautada na espontaneidade do afeto como um vínculo para a formação de uma família. 2. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO A família é considerada atualmente base fundamental da sociedade, a primeira organização que um indivíduo conhece e passa a fazer parte. Ao logo do tempo o conceito de família sofreu mutações com o surgimento de novas formas. A constituição de 1934 foi a primeira que concebeu a família como instituto detentor de proteção do Estado, versando: Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo. Art 145 - A lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção as condições regionais do País. Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento. Parágrafo único - Será também gratuita a habilitação para o casamento, inclusive os documentos necessários, quando o requisitarem os Juízes Criminais ou de menores, nos casos de sua competência, em favor de pessoas necessitadas.
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Art 147 - O reconhecimento dos filhos naturais será isento de quaisquer selos ou emolumentos, e a herança, que lhes caiba, ficará sujeita, a impostos iguais aos que recaiam sobre a dos filhos legítimos. (BRASIL, 1934) Nota-se facilmente que o legislador atribui à família uma única forma de constituição aquela sendo formada pelo casamento indissolúvel, e em um primeiro momento retrata que os filhos naturais providos do casamento serão os considerados filhos legítimos dotados de direitos, em específicos os patrimoniais. A constituição de 1937 mantém o que já foi previsto na constituição anterior no que diz respeito ao instituto da família, trazendo de novidade a preocupação com a educação dos filhos como sendo dever da família. O Estado assume uma responsabilidade subsidiária onde a igualdade entre os filhos naturais e legítimos, a Infância e a Juventude passam a serem objetos de garantias para uma vida digna e também assume o dever de cuidar daqueles que sofrem por qualquer tipo abandono. Assim versava a citada Constituição: Art 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos. Art 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. Art 126 - Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais. Art 127 - A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provê-las do conforto e dos cuidados indispensáveis à preservação física e moral. Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação da sua prole. (BRASIL, 1937) A constituição de 1946 não trouxe nenhuma modificação ao conceito de família já existente, versando: Art 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. § 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público. § 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente. Art 164 - É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa. Art 165 - A vocação para suceder em bens de estrangeiro existentes no Brasil será regulada pela lei brasileira e em, benefício
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do cônjuge ou de filhos brasileiros, sempre que lhes não seja mais favorável a lei nacional do decujus .(Brasil, 1946) As constituições de 1967 e 1969 também não trouxeram nenhuma inovação ao que se refere à família como vemos nos artigos abaixo transcritos: Art 167 - A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1º - O casamento é indissolúvel. § 2º - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público. § 3º - O casamento religioso celebrado sem as formalidades deste artigo terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público mediante prévia habilitação perante, a autoridade competente. § 4º - A lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência.(Brasil, 1967) Constituição de 1969: Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos. § 1º O casamento é indissolúvel. § 2º O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e prescrições da lei, o ato fôr inscrito no registro público, a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado. § 3º O casamento religioso celebrado sem as formalidades do parágrafo anterior terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente. § 4º Lei especial disporá sôbre à assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sôbre a educação de excepcionais.(Brasil, 1969) Observa-se que todas as Constituições até a Ementa Constitucional de 1969, consideravam entidade familiar legitima somente aquela constituída por um casamento civil e estas apenas teriam a proteção do Estado. A Constituição de 1988 foi um marco do para o Direito de Família como conhecemos hoje, estabeleceu igualdade entre os cônjuges passando ambos serem detentores do poder familiar, estabeleceu-se ainda igualdade entres os filhos, havidos ou não na relação matrimonial ou por adoção. A constituição estendeu a proteção do Estado à famílias constituídas por união estável ente um homem e uma mulher e ainda a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes. Com o advento da constituição de 1988 a família, em rol mais amplo, passou ser considerada a Base da Sociedade: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
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§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. A compreensão da família moderna se faz através da sua função social, a família passou a ser a base de formação do indivíduo, sua identificação não está ligada ao casamento ou a diferença de sexo entre um casal e sua prole. Identifica-se uma família pelo vínculo afetivo que uni as pessoas com intuito de cuidado, carinho e respeito mútuo. Surge à entidade familiar a proteção do Estado estende-se à união estável e à família monoparental, reafirmando a decadência do conceito arcaico e restritivo de família apenas ao grupo formado a partir do casamento civil entre um homem e uma mulher. A jurisprudência e a doutrina estão à frente da legislação pátria ao reconhecer e equipar os direitos da união estável homoafetiva à união estável heterossexual, ou seja, transformam a relação homoafetiva em uma entidade familiar digna de proteção do Estado. Como demonstra Renata Barbosa de Almeida. É preciso não esquecer, da mesma forma, do princípio da pluralidade familiar. Todas as pessoas têm a faculdade de formar família e de estrutura-la, pelo exercício de sua autonomia, conforme lhes aprouver. Permita-se insistir que, se o objetivo é a autorrealização, as definições restritivas heterônomas não procedem. Imprescindível é reconhecer, definitivamente, que os requisitos familiares são neutros: o afeto e o compromisso intersubjetivo que ele pode fomentar não têm gênero. (ALMEIDA, Renata Barbosa, 2010, p.80) Ainda sobre o tema da pluralidade familiar a jurisprudência posiciona-se: 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a “especial proteção do Estado”, e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os “arranjos” familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto. (Recurso Especial nº 1183378 - Relator Ministro Luis Felipe Salomão)
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3. a Filiação socioafetiva no atual contexto do direito de família Incialmente a legislação pátria considerava filhos em sentido legal dotados de direitos somente àqueles concebidos na constância do casamento falava-se em filhos legítimos, àqueles que não eram concebidos dentro do casamento e os filhos adotivos eram considerados filhos ilegítimos e não tinham direitos resguardados. Com o advento da Constituição de 1988 ocorreram importantes mudanças no que diz respeito aos direitos dos filhos estabelecendo igualdade independente de origem e sem discriminação conforme versa o artigo 227 § 6º. Os filhos passaram a ser iguais perante a lei e a distinção conceitual tonou-se meramente terminológica e técnica como explica Sílvio de Salvo Venosa: A equiparação da filiação interessa fundamentalmente ao idêntico tratamento que faz a lei no tocante ao conteúdo e aos efeitos das relações jurídicas quanto à origem da procriação. A distinção entre filiação legítima e ilegítima possui modernamente compreensão essencialmente técnica e não mais discriminatória. Inevitável, contudo, que seja mantida a diferença terminológica e conceitual para compreensão dos respectivos efeitos. (VENOSA, Sílvio de Salvo, 2013, p.) Com a decadência da distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos, pode-se dizer que o conceito biológico de filho já não faz diferença no âmbito jurídico no que diz respeito ao reconhecimento voluntário desses. A paternidade deixa de ser presumida podendo ser confirmada com elevado grau de certeza em caso de dúvidas através de exames de DNA. A modernidade trouxe não só possibilidades de esclarecimentos de dúvida quanto à paternidade biológica, mas também o surgimento de novos tipos de filiação que foram recepcionados pela legislação e pela doutrina que são os filhos provenientes de Reprodução Assistida. Conforme versa o Código Civil no artigo 1.597 : Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (BRASIL, 2002) O mesmo diploma civil, no artigo 1.593, diz que o parentesco é natural ou civil, biológico (sanguíneo) ou de outra origem, podemos diz então que a “outra origem” presente no Código Civil refere-se à base estabelecida no âmbito familiar que são as relações de afeto. O afeto adquire valor jurídico, que é decorrente dos princípios constitucionais, abrindo a possibilidade da filiação passar a ser orientada por valores afetivos, sociais e morais e não meramente biológicos ou cíveis. 3.1. Filiação Socioafetiva A paternidade gerada por vínculos de afeto ou paternidade socioafetiva se caracteriza pelo intuito de ser pai e filho uma relação espontânea de ambas as partes que cumprem os deveres legais de educação, cuidado, amor e que agem de fato como uma família; passa-se a falar da posse do estado de filho. A posse do estado de filho
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existe quando há uma relação jurídica entre pai e filho instituída pelo elemento afetivo, a aparência faz com que todos acreditem que essa relação é real, ou seja, a aparência empresta uma juridicidade a uma manifestação de uma realidade que não existe. A posse do estado paterno filial se funda em três elementos: tractatus, nomen e fama. O tractatus refere-se ao tratamento da criança como parente. É a relação de cuidado como se filha fosse; o nomen refere-se a criança utilizar o nome daqueles que os tem como filho e o último, a fama, refere-se ao como a reputação da pessoa como filha não apenas em relação aos seus pais mas no meio em que convive. Elucida sobre o assunto Sílvio de Salvo Venosa: A posse do estado de filho, em paralelo como já vimos com respeito à posse do estado de casado, descreve a situação em que a pessoa é tratada como filho pela família, usa o nome familiar ect. Assim como para o casamento, a posse do estado de filho leva em conta três elementos: nominativo, tractus e reputatio. Existindo esses elementos, tudo nós leva a crer efetivamente que a pessoa é filho das pessoas indicadas. (VENOSA, Sílvio de Salvo, 2013, p. 239) O reconhecimento da paternidade socioafetiva não tem previsão legal. Entretanto a doutrina e a jurisprudência reconhecem o estado de filiação socioafetiva. Segundo Maria Berenice Dias: A necessidade de manter a estabilidade da família faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica. A constância social da relação entre pais e filhos caracteriza uma paternidade que existe não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de uma convivência afetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. (DIAS, Maria Berenice, 2013, p. 381) O posicionamento da jurisprudência mostra que para negar a paternidade já reconhecida não basta a negação do vínculo biológico e sim demanda provar também a inexistência de um vínculo sócio afetivo, ou seja, dá-se a devida importância ao reconhecimento de uma paternidade socioafetiva em sobrepondo a verdade biológica, pois mesmo que desconsiderada a paternidade biológica havendo a paternidade socioafetiva essa basta para o reconhecimento do estado de filiação. Nesse sentido a jurisprudência posiciona-se da seguinte forma. Com efeito, a paternidade atualmente deve ser considerada gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a socioafetiva. Assim, em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica, e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. (Recurso Especial nº 1.059.211 – RS/ Relator Ministro Luis Felipe Salomão) Dentro desse contexto Sílvio de Salvo Venosa diz “para benefício dos próprios envolvidos, deverá preponderar a paternidade afetiva e emocional e não a do vínculo genético” (2013, pg. 239). Para corroborar com a importância da paternidade socioafetiva no atual contexto do Direito de Família foi apresentado pelo deputado
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Newton Cardoso o Projeto de Lei 5682/2013 que tende a regularmente a possibilidade de reconhecimento da paternidade sócio afetiva. O projeto tem como pretensão alterar o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA que passaria a vigorar com a seguinte redação: Artigos 27. O reconhecimento do estado de filiação personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais, biológicos ou socioafetivos, ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça. O projeto encontra-se em tramitação e na Câmara dos Deputados, no dia 27 de março deste ano, o projeto foi analisado pela Comissão de Seguridade Social e Família tendo voto favorável a sua aprovação pela relatora deputada Jô Morais que decidiu: Todavia na certeza de que a Proposição vem dar segurança jurídica às relações familiares, instituindo a previsão de formalização de investigação de paternidade ou maternidade socioafetiva bem como assegurando que o reconhecimento do estado de filiação não decorre de mero auxílio econômico ou psicológico, como bem o dissera o nobre autor, a proposta merece ser aprovada. (MORAIS, Jô, 2014) O reconhecimento da paternidade socioafetiva é a concretização do princípio da proteção jurídica dada às famílias conforme prevê a Constituição de 1988, visto que, o conceito de família vem sendo modificado ao longo do tempo, não pode a legislação deixar uma lacuna referente ao reconhecimento da família formada pelos laços de afeto e cuidado. Com todo exposto, vale ressaltar o que diz Maria Berenice Dias. Texto entre o ventre e o coração - A paternidade não pode ser buscada nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. O critério que se impõe é a filiação social, que tem como elemento estruturante o elo da afetividade: filho não é o que nasce da caverna do ventre, mas tem origem e se legitima no pulsar do coração. A paternidade socioafetiva deve ser analisada observando o princípio da dignidade humana previsto no texto constitucional, proteção jurídica primordial. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A conclusão que se chega com todo exposto neste trabalho é que a sociedade está se modificando e evoluindo para ao fim chegar a melhor interesse dos indivíduos. As famílias não são como antigamente, os valores são outros, abandonamos conceitos arcaicos meramente registral e pré-formulado buscamos exercer o princípio da dignidade humana objetivando a felicidade. A família é formada diariamente através o zelo e o afeto; nada adianta o vinculo biológico sem o elo do afeto do intuito de ser família. A paternidade socioafetiva é o vínculo que une indivíduos a uma entidade familiar por opção, ou seja, por ato de vontade das partes envolvidas nessa relação, esse instituto fundado no princípio constitucional da dignidade deve ter proteção legal expressa para que seu reconhecimento possa gerar efeitos jurídicos amplos. Portanto a paternidade socioafetiva tem a necessidade de ser normatizada para que independente da análise obtenha-se efeito jurídico da relação, visando a melhor proteção do princípio previsto na constituição de proteção ao indivíduo
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REFERÊNCIAS
NOTA S DE FIM
ALMEIDA, Renata Barbosa de; JUNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito civil: famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2010.
1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.
BRASIL, Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA. _____,Declaração Universal dos Direitos do Homem, Disponível em < http:// portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm > Acesso em 15 de maio de 2014
2 Mestre em Direito Privado pela Pontifícial Universidade Católica de Minas Gerais. Professora e coordenadora do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ** Valéria Edith Carvalho de Oliveira; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
_____, Câmara dos Deputados. Projeto Lei para modificação do art. 27 do ECA. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=579023> Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1934 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm > Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1937 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm> Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1946 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm> Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1967 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm> Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1969 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/ Emc_anterior1988/emc01-69.htm > Acesso em 15 de maio de 2014 _____,Constituição da República de1969 Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm > Acesso em 15 de maio de 2014 _____, Recurso especial nº 1.059.214 – RS/ Relator Ministro Luiz Felipe Salomão <http://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STJ/IT/ RESP_1059214_RS_1332033697207.pdf?Signature=VzR90Q2BPkRkxa8EdEZv2eN%2BjJ0%3D&Expires=1382925354&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content-type=application/pdf> Acessado em 23 de abril de 2014 _____, Recurso especial nº 1.183.368 – RS/ Relator Ministro Luiz Felipe Salomão <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=18810976&sReg=201000366638&sData=20120201&sTipo=5&formato=PDF > Acessado em 23 de abril de 2014 DIAS, Maria Berenice. Entre o Ventre e o Coração. Disponível em <http://www. mariaberenice.com.br/uploads/4_-_entre_o_ventre_e_o_cora%E7%E3o.pdf > Acessado em 04 de maio de 2014 ______, Adoção e a espera do amor. Disponível em < http://www.mariaberenicedias.com.br/uploads/1_-_ado%E7%E3o_e_a_espera_do_amor.pdf> Acessado em 04 de maio de 2014. ______. Manual de direito das famílias. 9ª.ed. ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. IBDEFAM, Instituto Brasileiro de Direito de Família; Entrevista: reconhecimento da paternidade socioafetiva. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5136/Entrevista:%20reconhecimento%20de%20paternidade%20socioafetiva#.UmSSsPk_uLl>Acesso em 25 de maio de 2013. NÚCLEO de Bibliotecas, Centro Universitário Newton Paiva. Manual para Elaboração e Apresentação dos Trabalhos Acadêmicos: Padrão Newton Paiva. Atualização setembro 2011. Belo Horizonte, 2011. Disponível em <http://www. newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_2011.pdf> VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito Civil volume VI. 13ªed. São Paulo. Editora Atlas S.A,2013
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O SISTEMA RECURSAL NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – PROJETO DE LEI 8.046/2010 Pedro Henrique dos Santos Simões1 Bernardo Ribeiro Câmara2 Banca examinadora** RESUMO: O sistema recursal cível brasileiro é assunto que gera grandes discussões no meio jurídico, por ser apontado como um dos principais responsáveis pela morosidade do Judiciário. Desta forma, o presente artigo tem como objetivo identificar e demonstrar, no tocante especificamente ao sistema recursal, os pontos positivos e negativos trazidos pelo Projeto de Lei 8.046/2010, denominado Novo Código de Processo Civil, que se encontra em discussão no Congresso Nacional. PALAVRAS- CHAVE: Novo Código de Processo Civil; Sistema Recursal; Projeto de Lei 8.046/2010; Recursos em espécie. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Aspectos relevantes ao sistema recursal no PL 8.046/2010; 2.1 Da manutenção do princípio da taxatividade recursal; 2.2 Da unificação dos prazos e de sua contagem em dias úteis; 2.3 Da suspensão dos prazos de 20 de dezembro a 20 de janeiro – “recesso forense” - e concessão de período “livre” para que os magistrados coloquem seu serviço em dia; 2.4 Da supressão dos embargos infringentes; 2.5 Dos honorários advocatícios de sucumbência recursal; 3 Recursos em espécie; 3.1 Da apelação e da supressão do agravo retido; 3.2 Do agravo de instrumento; 3.3 Do agravo interno; 3.4 Dos embargos de declaração; 3.5 Dos recursos para o STJ e STF; 3.5.1 Do recurso ordinário; 3.5.2 Dos recursos extraordinário e especial; 3.5.3 Do agravo extraordinário; 3.6 Dos embargos de divergência; 4 Considerações finais; Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO O Código de Processo Civil vigente foi publicado em 17 de janeiro de 1973, tempos em que o contexto social era diferente dos dias de hoje. De lá pra cá, houve enorme crescimento populacional, grande amadurecimento social e exponencial aumento da demanda jurisdicional, o que tornou defasado o atual Codex, apesar das diversas alterações nele inseridas. Hodiernamente, a principal crítica feita ao judiciário brasileiro, especialmente no que se refere às lides da área cível, objeto deste trabalho, centra-se na morosidade e, como corolário dela, na imensa falta de efetividade na prestação jurisdicional do Estado. (GREZELLE, VINÍCIUS; 2012). Com o intuito de modernizar o procedimento judicial, adequando-o à nova realidade social, e de tentar, a partir daí, resolver definitivamente o problema, o Senado Federal instituiu, pelo Ato n. 379/2009, uma Comissão de Juristas para elaboração do Novo Código de Processo Civil. Para Luiz Fux, presidente da dita Comissão, a missão a eles confiada é muito maior do que simplesmente adequar o sistema aos novos tempos, devendo, acima de tudo, “resgatar a crença no Judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere” (BRASIL, 2010, p. 7). O trabalho da supracitada Comissão de Juristas resultou no Projeto de Lei do Senado – PLS n. 166, chamado de Anteprojeto do Código de Processo Civil, que em 08 de junho de 2010 foi comunicado oficialmente ao Plenário do Senado Federal nos seguintes termos: A Presidência comunica ao Plenário o recebimento do Anteprojeto de Código de Processo Civil, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato da Presidência do Senado Federal nº 379, de 2009, presidida pelo Dr. Luiz Fux, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, e relatado pela Drª Teresa Arruda Alvim Wambier. A Presidência comunica, ainda, a remessa, nesta data, de ofícios aos Srs. Líderes solicitando o envio dos nomes das Srªs e dos Srs. Senadores que integrarão a Comissão que analisará a matéria. À SCLSF. (SARNEY, JOSÉ. 2010).
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O PLS n. 166, depois de várias emendas e propostas de alterações feitas pela Comissão do Senado que apreciou o Anteprojeto, foi concluído e, no dia 20 de dezembro de 2010, enviado à Câmara dos Deputados para revisão: Remessa Ofício SF nº 2428 de 21/12/2010, ao Primeiro-Secretário da Câmara dos Deputados encaminhando o projeto para revisão, nos termos do art. 65 da Constituição Federal (fls. 5701). (SARNEY, JOSÉ; 2011). A Câmara dos Deputados, por sua vez, através da respectiva Mesa Diretora, recebeu, em 22 de dezembro de 2010, o projeto originário do Senado Federal: Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (MESA) Recebido o Ofício nº 2428/2010 do Senado Federal, a fim de ser submetido à revisão da Câmara dos Deputados, nos termos do art. 65 da Constituição Federal, o Projeto de Lei do Senado n° 166, de 2010, de autoria do Senador José Sarney, que reforma o “Código de Processo Civil. (SARNEY, JOSÉ; 2010). Já na casa revisora, o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil ganhou uma nova denominação: PLENÁRIO (PLEN) Apresentação do Projeto de Lei n. 8046/2010, pelo Senado Federal, que: “Reforma o Código de Processo Civil”. (SARNEY, JOSÉ; 2010). Após seis meses de tramitação, o PL 8.046//2010 foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 26/03/2014, com o seguinte despacho: DECISÃO DA PRESIDÊNCIA: Considerando que o PL 8046, de 2010, “Código de Processo Civil”, oriundo do Senado Federal, foi recebido, tramitou na Câmara dos Deputados, na forma do Capítulo III do RICD, e foi, nos termos dos arts. 142 e 143 do diploma doméstico, apensado ao PL 6025, DE 2005, também do Senado Federal, que “Altera o art. 666 da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, para dispor acerca da penhora sobre máquinas, instrumentos e implementos agrícolas”; e Considerando que a apresentação de emen-
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das, pareceres, substitutivo e da emenda aglutinativa substitutiva global, no âmbito da Comissão e do Plenário, teve como principal referência o Projeto de Lei n. 8046, de 2010, Resolve Submeter a aprovação da redação final ao Plenário, tendo por referência o PL 8046, de 2010, e encaminhar, desta forma, ao Senado Federal, os autógrafos que consubstanciam a matéria aprovada pela Câmara dos Deputados SARNEY, JOSÉ; 2010). Posteriormente, em 09/04/2014, o PL foi enviado ao Senado Federal, para última análise, onde se encontra atualmente: Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (MESA) Remessa ao Senado Federal do Of. nº 558/14/SGM-P, comunicando a correção de inexatidão material verificada nas páginas 195 e 212 dos autógrafos anteriormente enviados. SARNEY, JOSÉ; 2010).
2.2 Da unificação dos prazos e de sua contagem em dias úteis O §5º do artigo 1.016 estabelece que todos os prazos para interpor e responder aos recursos serão de 15 dias, com exceção dos embargos de declaração. A mudança se torna mais significativa quando se combina a disposição supracitada com o art. 219 do mesmo diploma, que preconiza valerem apenas os dias úteis para contagem desses prazos. A respeito da positividade dessa mudança, assim se posiciona Vinícius Grezelle (2012; p. 554), ainda quando analisava versão anterior do PL 8.046/10, integralmente mantida no último texto ora sob exame: Boa inovação do projeto consiste na uniformização dos prazos para interpor e responder recursos, prevista no parágrafo 1º do artigo 948 Substitutivo. Restam, todos os prazos, previstos em 15 dias, excetuados os Embargos Declaratórios e computando-se apenas os dias úteis, consoante previsão do artigo 186 do Substitutivo.
Relatado todo o trâmite e a situação que hoje se encontra o PL 8.046/2010, passa-se a analisar as mudanças significativas realizadas em seu sistema recursal, discorrendo acerca de alguns aspectos relevantes em cada um dos recursos previstos.
E continua: Afigura-se acertada tal previsão, que possibilita às partes melhor exercício das garantias constitucionais, não se constituindo a pequena dilação de tempo em relação a alguns recursos em significante entrave à celeridade. (GREZELLE, VINÍCIUS; 2012).
2 ASPECTOS RELEVANTES AO SISTEMA RECURSAL DO PL. 8.046/10 2.1 Da manutenção do princípio da taxatividade recursal Os artigos 1007 a 1021 tratam das disposições gerais dos recursos e estão contidos no título II da redação final do projeto do novo CPC. De início, evidencia-se a manutenção do princípio da taxatividade recursal na disposição do art. 1007, que enumera os recursos cabíveis: Art. 1.007. São cabíveis os seguintes recursos: I – apelação; II – agravo de instrumento; III – agravo interno; IV – embargos de declaração; V – recurso ordinário; VI – recurso especial; VII – recurso extraordinário; VIII – agravo extraordinário; IX – embargos de divergência. A despeito do assunto, Vinícius Grezelle (2012; p. 554) se posiciona da seguinte forma: Pelo que se nota, segue a Lei elencando, acertadamente, rol taxativo de recursos, sem prejuízo de eventuais formas recursais previstas em normas extravagantes. No mesmo sentido, eis a opinião do Professor Flávio Luiz Yarshell (2014): Subsiste, ainda que implicitamente, a regra de reserva legal, de que decorre o caráter taxativo do rol de recursos. São recursos apenas aqueles expressamente previstos pela lei e o rol que hoje se encontra no art. 496 do CPC aparece no art. 1007 do Projeto. Não é tarefa difícil chegar à conclusão de que é extremamente adequado e coerente que se mantenha o rol taxativo dos recursos cabíveis, uma vez que o princípio da taxatividade recursal, além de reforçar a sempre almejada segurança jurídica, pelo prévio conhecimento das possibilidades e limites recursais, evita procedimentos protelatórios e harmoniza-se com a celeridade processual.
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Assim, ao se analisar o art. 1.016 c/c com o art. 219 do Novo Código de Processo Civil, vislumbra-se ótima mudança, que facilitará o exercício das garantias constitucionais, sem que isso implique em morosidade ao processo. 2.3 Da suspensão dos prazos de 20 de dezembro a 20 de janeiro – “recesso forense” - e concessão de período “livre” para que os magistrados coloquem seu serviço em dia Uma mudança já aguardada pelos operadores do direito, principalmente os advogados, é trazida pelo caput do art. 220 do PL 8.046/10, que positiva o chamado “recesso forense”: Art. 220. Suspende-se o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive. Sobre o tema, Marcelo Pacheco Machado (2013) discorre sua opinião: O caput do dispositivo, como vários outros artigos, mostra a presença do fortíssimo lobby da advocacia na confecção do Código e, especialmente, na redação do parecer apresentado pela Comissão Especial. Talvez um lobby legítimo e adequado nesse ponto, ao passo que reconhece a necessidade de descanso do advogado, especialmente daquele advogado que trata de suas causas individual e artesanalmente, sem o apoio de uma banca e que, na prática, desconhece o conceito de férias. Vinte dias não é lá o ideal, mas são ossos do ofício. No entanto, o referido dispositivo vai além, e trás em seus §§ 1º e 2º inovações que realmente podem influenciar diretamente no andamento dos processos. Veja-se: (...) § 1º Ressalvadas as férias individuais e os feriados instituídos por lei, os juízes, os membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública, e os auxiliares da Justiça exercerão suas atribuições durante o período previsto no caput. § 2º Durante a suspensão do prazo, o órgão colegiado não realizará audiências nem proferirá julgamentos.
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Isto porque a morosidade, que muitas vezes deságua na falta de efetividade do processo judicial, é atribuída, em grande parte, à sobrecarga dos magistrados, que acumulam funções como atender a advogados, realizar audiências, comparecer a sessões de julgamento, fiscalizar os atos cartorários, administrar o gabinete, dentre outras. Neste ponto é que os §§ 1º e 2º do art. 220 do Novo Código de Processo Civil despontam positivamente, oferecendo aos magistrados um tempo para que possam diminuir a sobrecarga de serviço que lhes é atribuída, conforme opina Marcelo Pacheco Machado (2013): O Código, portanto, viu o óbvio. Deixou claro que o recesso deve ser um momento a serviço da Jurisdição e da efetividade do processo: “Ressalvadas as férias individuais e os feriados instituídos por lei, os juízes, os membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia Pública e os auxiliares da Justiça exercerão suas atribuições durante o período a que se refere o caput” (NCPC, art. 220, = 1º). Não há momento melhor para que o juiz tenha tranquilidade para pôr seu trabalho em dia do que durante o “recesso forense”. Sem advogados para atender, sem audiência ou sessões e com plantão para atender aos pedidos de urgência, o juiz terá calma e tranquilidade para eliminar suas pendências e, talvez, colocar o trabalho em dia. Desta forma, a nova previsão legal cuidou de assegurar que os atores indispensáveis ao funcionamento da Justiça tenham um merecido descanso, garantindo a continuidade do funcionamento da máquina judicial com maior objetividade. 2.4 Da supressão dos embargos infringentes Dentre as diversas novidades que acompanham o projeto de lei 8.046/10, destaca-se a supressão do recurso atualmente previsto, denominado embargos infringentes, confirmando, assim, o disposto na exposição de motivos do Anteprojeto do Novo CPC, o qual, por sua vez, foi influenciado por boa parte da doutrina que há algum tempo se direciona no sentido da extinção desse recurso. Entretanto, temos posicionamentos controversos a despeito desta mudança, inclusive porque, para tentar não desprezar completamente o voto vencido, o art. 954, §3º, do projeto do novo CPC prevê: Art. 954. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor. (...) § 3º O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de prequestionamento. Vinícius Grezelle (2012; p. 555), ainda quando analisava o mesmo dispositivo da versão anterior do projeto do novo CPC (art. 896, §3º), mas que se manteve nesta parte na atual versão (art. 954, §3º), entende que: A paliativa previsão inserida no parágrafo terceiro do artigo 896 do Substitutivo não serve sequer de bom sofisma a obscurecer as razões acima. A explicitação do voto vencido no corpo do acórdão, a fim de supostamente resguardar a interposição de eventual recurso especial com fundamento no voto vencido é falaciosa e unicamente visa mitigar a contundência dos discursos contrários a supressão dos embargos infringentes. O referido autor assevera inclusive a respeito da contrariedade a Súmula 320 do STJ: A previsão é contrária a súmula 320 do Superior Tribunal de Justiça, a qual assevera que a questão federal ventilada ape-
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nas no voto vencido não preenche o requisito do presquestionamento, parecendo que o intento implícito do projeto seria o impositivo cancelamento do verbete, o que, com todo respeito, pouco ajuda. (GREZELLE, VINÍCIUS; 2012, p. 556). E conclui expressando sua opinião sobre : Os embargos infringentes constituem-se em precioso mecanismo à disposição da atividade jurisdicional a fim de garantir o acerto e aperfeiçoamento de suas decisões. A afobação incutida nos discursos que visam sua extinção não se justifica, sequer estatisticamente, e deve se curvar à realidade da vida e à imposição de que seja garantida Justiça bem prestada aos jurisdicionados, a qual não se exaure na rapidez com que se pretende buscar o término de um processo, muitas vezes, longe da solução do conflito. (GREZELLE, VINÍCIUS; 2012, p. 556). Lado oposto, existe também entendimento que avalia acertada a supressão, atribuindo aos embargos infringentes parte da responsabilidade pela falta de celeridade na tramitação, julgando-os desnecessários à atual sistemática processual. Neste sentido, João Ricardo Imperes Lira (2011), ainda quando analisava o mesmo dispositivo da versão anterior do projeto do novo CPC (art. 896,§3º), mas que se manteve nesta parte na atual versão (art. 954, §3º), entende que: Portanto, veja-se que o projeto permite que, em sede de Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça ou de Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (recursos que possuem como um de seus requisitos de admissibilidade o prequestionamento), o voto vencido nas instâncias ordinárias poderá ser conhecido e até mesmo prevalecer. O que o projeto faz é excluir um recurso desnecessário, tanto que não possui similar em qualquer outro país, mas sem desconsiderar a importância do voto vencido, cuja existência indica a presença de uma controvérsia sobre o direito aplicável à demanda. LIRA (2011), conclui seu raciocínio da seguinte forma: Tendo em vista as características da fase instrumentalista, atual estágio científico do Direito Processual Civil, notadamente a busca pela efetividade do processo inclusive pelo viés da celeridade de sua tramitação (justiça tardia não é justiça efetiva), pode-se entender que os embargos infringentes, recurso cabível quando há um julgamento não unânime em um tribunal, consistem em instituto desnecessário – e até mesmo indesejado – na ordem jurídica nacional, tanto que a doutrina há muito vem defendendo a sua extinção e que não há institutos similares no Direito comparado. Com todo respeito a grande parte da doutrina e à posição adotada pelo projeto do novo CPC, filio-me à corrente que entende errônea a supressão dos embargos infringentes do nosso sistema recursal, isto porque a justificativa de que o voto vencido ainda será prestigiado por força do parágrafo 3º do art. 954 do projeto do novo CPC não é plausível, uma vez que os Tribunais Superiores não reexaminam matéria fática (súmula 7 do STJ) nem tampouco a simples ventilação da questão no voto vencido atende ao requisito do “prequestionamento” – causa decidida” (súmula 320 do STJ). De qualquer forma, não obstante a proposta de exclusão dos embargos infringentes como recurso, o Novo CPC estabelece regra especial de processamento e julgamento nos casos em que existir decisão por maioria.
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É o que está definido no art. 955 do CPC projetado, a saber: Art. 955. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, a serem convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores. (...) Este procedimento é estabelecido, também, para os casos de julgamentos não unânimes em agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito, e, ainda, em ações rescisórias, quando o resultado for a rescisão da sentença. Mesmo diante da regra especial estabelecida no art. 955, pela qual se garante nova apreciação da decisão não unânime, continuo convencido de que é inconveniente o banimento dos embargos infringentes como recurso, uma vez que a implementação do novel procedimento acarretará uma automática sobrecarga ao Judiciário, o que poderia ser ao menos parcialmente evitado, pois nem sempre as decisões não unânimes são objeto de embargos infringentes. 0Além do que o cabimento dos embargos infringentes é restrito a algumas poucas situações, que não interferem na marcha processual a ponto de prejudicar a efetividade do processo, mas, ao contrário, servem de instrumento fundamental para que, nestes casos, a jurisdição seja prestada com maior precisão. 2.5 Dos honorários advocatícios de sucumbência recursal O atual CPC, em seu art. 20, prevê os chamados “honorários advocatícios de sucumbência”, que são espécie do gênero “despesas processuais”. Dessa forma, os honorários de sucumbência devem ser pagos pela parte vencida ao patrocinador da parte vencedora, conforme fixação do magistrado, que, para fixá-los, deverá observar alguns critérios estabelecidos no próprio § 3º do supracitado artigo, a saber: a) o grau de zelo do profissional; b) o lugar de prestação do serviço; c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. Entretanto, existem problemas que são constantemente enfrentados pelos advogados no tocante à fixação do quantum desses honorários. Neste sentido, Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva (2014) aduz: Uma das grandes dificuldades enfrentadas pela advocacia se relaciona ao valor da verba remuneratória decorrente da sucumbência, porquanto, a despeito de estabelecidos os parâmetros legais de arbitramento, eles costumam ser interpretados de forma no mínimo injusta (para não dizer equivocada). É comum ver decisões judiciais fixando honorários de sucumbência em percentuais bem inferiores a 10% (dez por cento) – percentual, “a priori”, colocado como “mínimo”. E vai além: Mas, pior que isso, é que os honorários advocatícios de sucumbência são fixados em valores módicos, adotando como base percentuais bem inferiores àqueles atribuídos como remuneração a outros profissionais que, conquanto seja nobre a função desempenhada dentro do processo, despendem bem menos trabalho. Aqui se coloca como exemplo o leiloeiro, cuja remuneração, em regra, é de 5% do bem penhorado, paga em decorrência do simples ato de alienação. (SILVA, RINALDO MOUZALAS DE SOUZA; 2014). Outro problema suscitado em relação aos honorários advoca-
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tícios de sucumbência é que, em regra, são arbitrados pelo juiz e se tornam imutáveis até o final do processo, como se o trabalho do advogado parasse por ai. Assim, não existe um reajuste proporcional ao trabalho desempenhado na via recursal. Com muita clareza, Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva (2014) trata o assunto da seguinte forma: Outro ponto enfrentado pela advocacia (que significa desprestígio à remuneração dos seus integrantes) concerne ao momento de fixação dos honorários advocatícios de sucumbência. Na prática forense, tem-se o péssimo hábito de, uma vez arbitrados, eles seguirem “fixos” até o deslinde do processo (ou pelo menos de uma fase sua). Esta “fixação” conduz à interpretação no sentido de impedir que a verba alimentar devida aos advogados seja realinhada, quando prestados serviços profissionais na instância recursal, o que significa “desconsideração” à remuneração da atividade constitucionalmente colocada como essencial à Administração da Justiça. Portanto, os dois maiores problemas identificados no tocante aos honorários advocatícios de sucumbência do atual CPC são: a) a fixação do quantum; e b) a justa remuneração do advogado. O projeto do novo CPC inovou, buscando a resolução desses problemas da seguinte forma: acrescentou a expressão “proveito econômico” ao texto legal, positivou os honorários advocatícios de sucumbência recursal e, brilhantemente, encontrou um “remédio” que pode ter uma importância ímpar para o cumprimento de um dos maiores objetivos da reforma, ou seja, a efetividade jurisdicional através da quebra da morosidade processual. Vejamos como a redação do projeto do novo CPC tratou a inclusão da expressão “proveito econômico”: Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. (...) § 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá -lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar de prestação do serviço; III - a natureza e a importância da causa; IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. Em relação à solução encontrada pela redação do projeto do novo CPC, explica muito bem Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva (2014): O Projeto do NCPC (também em seu texto substitutivo) traz solução para este ponto de dificuldade enfrentado pela advocacia, ao acrescentar, ao lado do vocábulo “condenação” (contido com exclusividade na redação do art. 20 do CPC/73), a expressão “proveito econômico”. Pela nova sistemática (seja na versão do Senado Federal, seja na última apresentada na Câmara dos Deputados), os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido. A dizer de outra forma, a redação do texto legal, não se refere apenas à “condenação”, e, por assim dizer, possibilita a conclusão, aos mais conservadores, de que os parâmetros (máximo e mínimo) de fixação não se abstêm à sentença condenatória. Já em relação ao problema da justa remuneração do advogado, a redação do projeto do novo CPC positivou, no parágrafo 11º do art. 85, o realinhamento das verbas honorárias através dos honorários advocatícios de sucumbência recursal:
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(...) § 11. O tribunal, ao julgar o recurso, majorará os honorários fixados anteriormente levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o disposto nos §§ 2º a 6º. É vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento. Com esse dispositivo, haverá possibilidade de um realinhamento dos honorários advocatícios fixados inicialmente conforme o trabalho adicional desempenhado pelo advogado. Além da justa remuneração ao advogado, a previsão dos honorários advocatícios de sucumbência recursal tem outro objetivo mais nobre, que é a “inclusão de um novo instrumento de aceleração da atividade processual”, conforme um dos integrantes da comissão responsável pela elaboração do Anteprojeto, em artigo veiculado na rede mundial de computadores: No entanto, o CPC vigente não traz a previsão de novos honorários advocatícios quando se recorre. Isso significa que o perdedor, na primeira instância, tem todo o incentivo a recorrer, uma vez que não correrá nenhum risco em fazê-lo, mas, pelo contrário, se beneficiará por retardar o pagamento do principal, especialmente porque os juros da Justiça são inferiores aos praticados pelo mercado. Há um estímulo econômico para o devedor não aceitar a sentença, mesmo quando ele reconhece que a decisão foi justa e correta. Essa ausência de custo extra para manter o processo tramitando é um dos motivos para a morosidade do Poder Judiciário. Em contrapartida, se houvesse receio de incorrer em nova despesa antes de protocolar um recurso, o litigante talvez decidisse por não recorrer. (SILVA, RINALDO MOUZALAS DE SOUZA E; 2014) Portanto, a instituição dos honorários advocatícios na fase recursal funciona como um desestimulante para os litigantes que buscam a via recursal apenas como forma de fuga ou adiamento da obrigação. De modo que, antes de protocolar um recurso, tal litigante terá que somar à conta os riscos financeiros que uma possível improcedência de sua pretensão poderá causar-lhe. Assim, o realinhamento dos honorários advocatícios, através dos honorários recursais, funciona como forma de aceleração da atividade processual (SILVA; RINALDO MOUZALAS DE SOUZA E, 2014) Resta apenas endossar a crítica que se vem fazendo a um ponto suscitado no Anteprojeto e que, embora devesse ser acolhido, foi modificado após o relatório dos deputados Sérgio Barradas Carneiro e Paulo Teixeira na Câmara dos Deputados. Era previsto um percentual máximo de 25% para fixação dos honorários advocatícios, prevalecendo, entretanto, após os relatórios supracitados, o limite de 20% do proveito econômico ou do valor da causa, conforme o caso. Nesse aspecto, Rinaldo Mouzalas de Souza e Silva (2014) critica a parcial perda de efetividade da nova medida e sugere melhor fórmula: Sem dúvidas, se a parte sucumbente não tiver a possibilidade de ver os honorários majorados em seu detrimento, arriscará a modificação do julgado, porque não suportará nenhum outro considerável ônus, além do pagamento das custas processuais relativas ao preparo recursal. A condenação do recorrente já terá sido máximo, pelo que correrá o “risco” unicamente de melhorar a sua situação. A disposição do Projeto (em todas as suas versões) deveria ser diferente. Dever-se-ia possibili-
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tar que, a cada recurso interposto, fosse possível aumentar a condenação em honorários. Para se evitar excessos na fixação da verba, poder-se-ia determinar que, a cada recurso desprovido, haveria aumento em percentuais fixos (ou com variação pré-estabelecida), previstos no código. A guisa de exemplo, poder-se-ia colocar a condenação em 5% ou 10% (ou entre 5% e 10%) a cada recurso desprovido. Enfim, apesar deste pequeno deslize que em alguns casos pode tirar a efetividade da medida para evitar os recursos desnecessários, podemos considerar que houve uma inovação positiva na instituição dos honorários advocatícios de sucumbência, que irá possibilitar uma justa, ou pelo menos melhor remuneração do advogado, além de seu brilhante efeito inibidor de recursos procrastinatórios. 3 RECURSOS EM ESPÉCIE 3.1 Da apelação e supressão do agravo retido O recurso de apelação continua sendo cabível contra sentença e está disciplinado do art. 1.022 ao art. 1.027 do projeto do novo CPC. Permanece dotado do chamado duplo efeito: devolutivo, por força do art. 1.026; e, como regra, suspensivo, positivado no art. 1.025, exceto nos casos enumerados no rol taxativo do seu § 1º: Art. 1.025. A apelação terá efeito suspensivo. § 1º Além de outras hipóteses previstas em lei, começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que: I – homologa divisão ou demarcação de terras; II – condena a pagar alimentos; III – extingue sem resolução do mérito ou julga improcedentes os embargos do executado; IV – julga procedente o pedido de instituição de arbitragem; V – confirma, concede ou revoga tutela antecipada; VI – decreta a interdição. (fazer citação da redação final do ncpc) Ou seja, nas hipóteses elencadas nos incisos acima, a eventual apelação interposta não será dotada de efeito suspensivo, salvo se concedido em pedido específico, conforme previsão do § 3º. Uma mudança que pode ser considerada positiva é trazida pelo § 3º do art. 1.023, devendo imprimir maior celeridade ao andamento processual. Veja-se: Art. 1.023. A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá: (...) § 3º Após as formalidades previstas nos §§ 1º e 2º, os autos serão remetidos ao tribunal pelo juiz, independentemente de juízo de admissibilidade. Sobre a nova redação proposta, Giuseppe Santos (2013) opina em artigo veiculado na internet: Outra relevante modificação fica por conta do juízo de admissibilidade do recurso de apelação, atualmente o recurso é interposto no juízo a quo, sendo submetido a um primeiro juízo de admissibilidade pelo próprio magistrado que proferiu a sentença, onde este irá declarar os efeitos do recurso (art. 518 do CPC), cabendo agravo de instrumento da decisão que atribui efeito à apelação (art. 522 do CPC). Essa, talvez, seja uma inovação que poderá resultar em celeridade, pois elimina o juízo de admissibilidade desnecessário na 1ª instância, uma vez que será feita de qualquer maneira pelo juízo ad quem, fazendo valer perfeitamente o princípio da celeridade incluído
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na CR/88 pela EC 45 em 08 de dezembro de 2004. Inicialmente, a ideia de supressão do agravo retido era baseada no princípio da não preclusão das decisões interlocutórias, podendo toda a matéria alvo de tais deliberações ser discutida em sede preliminar de apelação. O agravo retido de fato não mais existe; entretanto, vislumbra-se que não foi acolhido o entendimento supracitado na última redação do projeto do novo CPC: Art. 1.022. Da sentença cabe apelação. § 1º As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, têm de ser impugnadas em apelação, eventualmente interposta contra a sentença, ou nas contrarrazões. Sendo suscitadas em contrarrazões, o recorrente será intimado para, em quinze dias, manifestar-se a respeito delas. § 2º A impugnação prevista no § 1º pressupõe a prévia apresentação de protesto específico contra a decisão no primeiro momento que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão; as razões do protesto têm de ser apresentadas na apelação ou nas contrarrazões de apelação, nos termos do § 1º. Assim, restou alterada a lei antevista no atual CPC, passando agora a ser regra o rol taxativo do agravo de instrumento e outras hipóteses previstas em lei, que serão tratados adiante, e os casos não abrangidos no art. 1.028 devem ser combatidos em eventual apelação ou contrarrazões. Ocorre que não parou por aí: a matéria acima, que será eventualmente argüida em sede de apelação ou contrarrazões, está sujeita à preclusão, se não for apresentado “protesto específico contra a decisão no primeiro momento que couber à parte falar nos autos”. O fato de não haver mais a previsão do agravo retido, mas a necessidade de se fazer protesto específico contra a decisão interlocutória, não passível de agravo de instrumento, objeto da divergência, traz uma modificação procedimental importante e bastante positiva, vez que influencia na marcha processual, economizando vários atos de vistas às partes. 3.2 Do agravo de instrumento Atualmente, o agravo de instrumento tem seu cabimento condicionado a um critério subjetivo, sendo admissível quando a decisão puder causar risco de lesão grave ou de difícil reparação, e também nos casos de negativa de seguimento de apelação e de questionamento quanto aos efeitos em que foi recebida. Na redação do Novo CPC, o agravo de instrumento continua sendo cabível contra decisões interlocutórias; entretanto, se estabelece um critério objetivo, sendo aceitável somente nas hipóteses legais e nas situações elencadas nos incisos do art. 1.028 do referido diploma: Art. 1.028. Além das hipóteses previstas em lei, cabe agravo de instrumento contra decisão interlocutória que: I – conceder, negar, modificar ou revogar a tutela antecipada; II – versar sobre o mérito da causa; III – rejeitar a alegação de convenção de arbitragem; IV – decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica; V – negar o pedido de gratuidade da justiça ou acolher o pedido de sua revogação; VI – determinar a exibição ou posse de documento ou coisa; VII – excluir litisconsorte; VIII – indeferir o pedido de limitação do litisconsórcio; IX – admitir ou não admitir a intervenção de terceiros;
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X – versar sobre competência; XI – determinar a abertura de procedimento de avaria grossa; XII – indeferir a petição inicial da reconvenção ou a julgar liminarmente improcedente; XIII – redistribuir o ônus da prova nos termos do art. 380, § 1º; XIV – converter a ação individual em ação coletiva; XV – alterar o valor da causa antes da sentença; XVI – decidir o requerimento de distinção na hipótese do art. 1.050, § 13, inciso I; XVII – tenha sido proferida na fase de liquidação ou de cumprimento de sentença e nos processos de execução e de inventário; XVIII – resolver o requerimento previsto no art. 990, § 4º; XIX – indeferir prova pericial; XX – não homologar ou recusar aplicação a negócio processual celebrado pelas partes. A respeito do tema, Flavia Siqueira Costa Pereira (2013) explicita sua opinião: Discute-se a plausibilidade da especificação de todas as situações de cabimento do agravo de instrumento na legislação, pois é certo que o legislador não consegue prever todas as hipóteses em que possa haver lesão a um direito, além do que muitas vezes situações sérias de nulidades que ocorreram no início do procedimento e poderiam ser facilmente detectadas somente poderão ser questionadas depois de toda a instrução probatória, o que causaria um enorme prejuízo para o sistema de uma maneira geral. As posições doutrinárias que influenciam a mudança do atual CPC sugerem que o agravo de instrumento tenha suas hipóteses de cabimento restritas para evitar que haja recursos demasiadamente protelatórios, evitando a morosidade processual. Entretanto, da forma disposta na redação do novo CPC, as situações de cabimento do agravo de instrumento foram restritas àquelas previstas em lei, formuladas em um rol taxativo, o que se mostra um erro, devendo tais hipóteses terem sido dispostas em um rol exemplificativo, uma vez ser humanamente impossível prever todos os casos em que pode haver necessidade de ser interposto este recurso. Assim, haverá uma enorme perda para o sistema processual civil, pois certamente ocorrerão situações de decisões interlocutórias não elencadas em leis, mas que podem causar um dano a uma das partes, acarretando um descontrole e certa insegurança jurídica. 3.3 Do agravo interno O agravo interno é um recurso direcionado ao órgão colegiado, cabível contra decisão proferida pelo relator respectivo. No atual Código de Processo Civil, não está elencado no rol taxativo do art. 496; entretanto, há sua previsão no art. 557 do mesmo diploma, sendo denominado com várias nomenclaturas não pacificadas, tendo prazo de cinco dias para sua interposição, com seu processamento regulado pelos regimentos internos de cada Tribunal. O Projeto do Novo CPC, diferentemente, elenca o agravo interno em seu rol taxativo de recursos cabíveis do art. 1.007, pacificando sua nomenclatura e sendo regulado apenas pelo art. 1.034 da redação em comento. Outra mudança ficou por conta do prazo, que passou a obedecer à regra geral da unificação dos prazos para 15 dias Apesar de ser chamado de “agravo”, em nada se assemelha ao agravo de instrumento, pois tem natureza diversa, sentido em que opina Walter Tierling Neto (2012, p. 573): Por questões ideológicas, não se compactua com a inserção
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deste recurso como se alguma espécie de agravo o fosse, vez que em muito, diferencia-se dos recursos inseridos na família dos agravos. Veja-se, que estes, buscam atacar decisões de natureza interlocutória, desde a gênese de sua previsão. E nesse ponto, verifica-se que a decisão monocrática, sem sombra de dúvidas, tem por finalidade resolver a lide, caracterizando-se como uma decisão terminativa. Os excepcionais contornos de decisão interlocutória que assume a decisão monocrática não se prestam a lhe conferir um nome, mais quando de agravo. Assim, apenas com o intuito de diferenciá-los quanto ao seu desígnio, fica o registro de que são remédios que atacam decisões distintas. No que se refere à celeridade processual, foi estabelecida redação parecida com a do atual Codex, em relação à multa inibidora de recursos protelatórios, com a singela redução do percentual de incidência sobre o valor da causa atualizada, que era de 1% a 10%, e agora passou a ser de 1% a 5%, somando-se a manutenção da disposição que exige o depósito prévio da multa estabelecida para interposição de qualquer outro recurso, salvo nos casos de justiça gratuita e Fazenda Pública, quando estes valores serão saldados ao final do processo. Em relação às alterações realizadas, Walter Tierling Neto (2102) deixa sua impressão final sobre o tema: As poucas mudanças propostas pelo Projeto de Lei 8.046/2010, deixam de alterar, substancialmente, as regras atinentes ao agravo interno. Ao fim, mostra-se correta a manutenção das regras de um recurso que já demonstra a almejada eficácia, postura esta que deveria ser adotada também em outros dispositivos já comentados, os quais foram vitimados pela proposta de infelizes modificações. Portanto, mostram-se positivas as poucas mudanças feitas no tangente a este recurso, tendo sido encontrada a medida certa de alterações para que seja cumprida a promessa de um CPC mais célere e efetivo. 3.4 Dos embargos de declaração Atualmente, os embargos de declaração estão expressamente previstos em nosso sistema recursal nos arts. 496 e 535 do CPC, como recurso cabível contra sentenças ou acórdãos que contenham omissão, obscuridade ou contradição. Houve algumas alterações que merecem ser destacadas na redação do novo CPC. A primeira delas diz respeito às hipóteses de cabimento, que, no art. 535 do atual Codex, admite a interposição de embargos de declaração quando houver, “na sentença ou no acórdão”, obscuridade ou contradição, ou quando for omitido ponto sobre o qual o juiz ou tribunal devia se pronunciar. Neste ponto, corrigiu-se a nomenclatura para deixar expressamente consignado o alcance da norma, haja vista que a redação do art. 1.035 do NCPC prevê o cabimento dos embargos de declaração “contra qualquer decisão judicial”, para esclarecer obscuridade ou eliminar contradição, suprir omissão sobre a qual devia se pronunciar o órgão jurisdicional de ofício e, ainda, para corrigir erro material. Além de o parágrafo único listar taxativamente as vezes que se considera omissa uma decisão. Outra previsão expressa do novo CPC é a do § 2º do art. 1.036, adequando o novo texto legal projetado à orientação atual do STJ que condiciona a validade do julgamento de embargos de declaração com efeito modificativo à oportunidade de participação da parte contrária via intimação prévia (veja-se, por exemplo, o julgado da Corte Especial nos Embargos de declaração nos Embargos de declaração
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na Ação Rescisória/RJ n. 1228 do STJ.3, determinando a intimação do embargado para, querendo, manifestar-se acerca dos embargos de declaração opostos, no prazo de quinze dias, caso estes, uma vez acolhidos, impliquem em modificação da decisão). Quanto aos efeitos dos embargos de declaração, a redação do novo CPC ocupou-se em expressamente mencioná-los: no art. 1.036 §2º, o efeito modificativo ou infringente, permitindo que a decisão seja modificada pelos embargos; no art. 1.039, caput, o efeito suspensivo, que em regra não acompanha os embargos de declaração, mas pode ser atribuído pelo juiz ou relator, se demonstrados os requisitos do art. 1.008; e também no art. 1.039, caput, o efeito interruptivo, que, no caso de acolhimento, interrompem o prazo para interposição de outros recursos. Houve uma alteração em relação à multa, quando demonstrado o intuito protelatório dos embargos de declaratórios, passando a alíquota de 1% para 2% do valor da causa, devidamente atualizado. Neste caso, a interposição de qualquer outro recurso fica condicionada ao depósito prévio da multa, além de não se admitir a interposição de novos embargos declaratórios, se dois outros anteriores tiverem sido considerados protelatórios. Modificação importante diz respeito à inclusão expressa, no art. 1.038 da redação do novo CPC, da figura do prequestionamento: Art. 1.038. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade. Por fim, vale ressaltar a positividade das importantes modificações realizadas nos embargos de declaração, que cumprem um papel salutar para boa prestação da jurisdição e para efetividade da decisão judicial no objetivo de um CPC mais eficaz. 3.5 Dos recursos para o STJ e STF 3.5.1 Do recurso ordinário
O novo CPC trata do recurso ordinário nos artigos 1.040 e 1.041, da seguinte forma: Art. 1.040. Serão julgados em recurso ordinário: I – pelo Supremo Tribunal Federal, os mandados de segurança, os habeas data e os mandados de injunção decididos em única instância pelos tribunais superiores, quando denegatória a decisão; II – pelo Superior Tribunal de Justiça: a) os mandados de segurança decididos em única instância pelos tribunais regionais federais ou pelos tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão; b) as causas em que forem partes, de um lado, estado estrangeiro ou organismo internacional e, do outro, município ou pessoa residente ou domiciliada no País. § 1º Nas causas referidas no inciso II, alínea b, contra as decisões interlocutórias caberá agravo de instrumento dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, nas hipóteses do art. 1.028. § 2º Aplica-se ao recurso ordinário o disposto nos arts. 1.026, § 3º, e 1.042, §§ 5º a 7º. Art. 1.041. Ao recurso mencionado no art. 1.040, II, alínea b, aplicam-se, quanto aos requisitos de admissibilidade e ao procedimento, as disposições relativas à apelação e o regimento interno do Superior Tribunal de Justiça; na hipótese do art. 1.040, § 1º, aplicam-se as disposições relativas ao agravo de instrumento, além do regimento interno do Superior Tribunal de Justiça.
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Parágrafo único. O recurso previsto no art. 1.040, I e II, “a”, deve ser interposto perante o tribunal de origem, cabendo ao seu presidente ou vice-presidente determinar a intimação do recorrido para, em quinze dias, apresentar as contrarrazões. Findo esse prazo, os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior, independentemente de juízo de admissibilidade. Nota-se que houve uma maior descrição quanto à aplicabilidade do recurso ordinário, limitando-o às hipóteses em que a decisão for denegatória. Mais adiante, no parágrafo único do art. 1.040, o legislador, acertadamente, repetindo o que fez relativamente à apelação, informa o lugar onde deve ser apresentado o recurso e elimina o juízo de admissibilidade desnecessário, que antes era realizado pelo tribunal a quo, passando a ser realizado apenas pelo juízo ad quem. 3.5.2 Dos recursos Extraordinário e Especial
Em relação aos recursos extremos, Extraordinário e Especial, o Professor Bernardo Ribeiro Câmara (2013) ensina: Os recursos extraordinário e especial diferem-se dos demais recursos pelo seu tratamento constitucional quanto ao objeto, requisitos, procedimento e competência para julgamento. (...) Esses meios de impugnação não se destinam à correção de injustiças da decisão recorrida. Têm objetivos maiores: manter a prevalência da Constituição, a unidade e a harmonia do sistema jurídico, a integridade da norma positiva e a uniformidade de interpretação das leis entre os tribunais. Atualmente, além da Carta Magna, os referidos recursos são balizados pela Lei 8.038/90, o Código de Processo Civil vigente, o regimento interno do STF e STJ e diversas súmulas dos respectivos Tribunais Superiores, que orientam a formação e processamento desses recursos excepcionais. A nova redação do CPC trata do assunto do art. 1.042 ao art. 1.048, não havendo grandes mudanças materiais, apenas procedimentais. Nota-se inovação quando analisados os artigos 1.049 a 1.054, alocados na seção II, do capítulo VI, do título II, sob a rubrica “Do Julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial Repetitivos”, que traz um incidente processual de rito próprio, onde são tratadas todas a peculiaridades procedimentais. Dessa forma, com a inclusão desse incidente processual, o legislador demonstra claramente sua intenção de atender ao clamor popular de celeridade nas demandas judiciais, deixando evidentes as possibilidades de sobrestamento de processos e estipulando prazos para seus respectivos julgamentos, sob pena de continuação no processamento dos feitos sobrestados e não julgados no tempo estipulado. 3.5.3 Do agravo extraordinário
O agravo extraordinário, na realidade, é a nova denominação dos atuais agravo em recurso extraordinário e agravo em recurso especial, cabíveis contra decisão do presidente ou vice-presidente do Tribunal a quo, que nega seguimento aos respectivos recursos no primeiro juízo de admissibilidade. Entretanto, com o advento do novo CPC, eliminou-se este primeiro juízo de admissibilidade desnecessário, fazendo com que este novo recurso tome maior importância. De forma bem simplificada, está elencado no artigo 1.055 da nova redação, que enumera, de modo taxativo, as hipóteses de seu cabimento e dispõe sobre seus requisitos e seu processamento. Boa novidade é trazida pelo § 2º, que estipula a interposição do recurso ao
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presidente ou vice-presidente do Tribunal de origem, independente do pagamento de custas e despesas postais. 3.6 Dos embargos de divergência No atual sistema recursal, os embargos de divergência são tratados no artigo 546 do CPC, conforme preceitua José Miguel Garcia Medina e Teresa Arruda Alvim Wambier (2010, p. 265): Os embargos de divergência são recurso previsto no art. 546 do CPC, cabível de decisões proferidas em recurso especial ou extraordinário, cujo teor seja divergente de decisões de outras turmas, da seção, do plenário ou de órgão especial. Hoje, é recurso cabível apenas nos Tribunais Superiores, com função de uniformização da jurisprudência dos excelsos. Na redação do novo CPC, os embargos de divergência tiveram ampliado seu cabimento, deixando de ser um recurso exclusivo para o STF e STJ, cabendo também para os Tribunais de Justiça, em casos específicos delineados no art. 1.056. Está previsto nos artigos 1.056 e 1.057 do Novo Código, de forma bem simples, sendo que o primeiro trata de modo detalhado das hipóteses de seu cabimento, enquanto o segundo dispõe sobre o procedimento a ser observado. Assim, vislumbra-se positiva a ampliação das hipóteses de cabimento dos embargos de divergência, vez que, em lugar de representar atraso no procedimento judicial, constituir-se-á, isto sim, em instrumento fundamental para que a jurisdição seja prestada de forma eficaz. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O PL. 8.046/2010 é, hoje, realidade sobre que não mais cabe discutir sua pertinência, mas, sim, debater as mudanças apresentadas e seus respectivos impactos práticos, uma vez que tais mudanças, enfocadas no vertente trabalho sob o prisma do sistema recursal, são de fundamental importância para que o resultado da reforma, conforme entendimento de Luiz Fux, alcance o objetivo maior de resgatar a credibilidade da Justiça e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça mais efetiva, harmonizando-se para isso a celeridade processual e a segurança jurídica. No estudo da atual redação do novo CPC, visualizamos algumas inovações que podem, e de fato vão, proporcionar uma celeridade nos procedimentos recursais, como, por exemplo, disposições que desestimulam a interposição de recursos protelatórios espalhadas por vários dispositivos do Título II da redação. Tiveram pontos em que o legislador poderia ter sido mais “corajoso”, como no caso que limitou a porcentagem dos honorários advocatícios de sucumbência recursal a 20% do valor atualizado da causa ou do proveito econômico, podendo prejudicar o objetivo maior do dispositivo, que é de inibir os recursos protelatórios. Houve situações em que as disposições do novo texto foram infelizes, como a que se refere à supressão dos embargos infringentes, pois este recurso é restrito a algumas poucas situações, que não interferem no ritmo da marcha processual a ponto de prejudicar a efetividade do processo, mas, ao contrário, servem de instrumento fundamental para que, nestes casos, a jurisdição seja prestada com maior precisão. Enfim, vislumbram-se pontos positivos e negativos no Novo CPC, no tocante ao sistema recursal, os quais, colocados na balança, certamente farão com que ela penda para o lado em que se agrupam os primeiros. Nesse sentido, podemos concluir que a implantação do PL n. 8.046/10, com a missão de adequar os procedimentos judiciais cíveis à nova realidade social, no tocante ao sistema recursal, traz mudanças que, de uma forma geral, acalmarão os anseios da comunidade.
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Contudo, os problemas enfrentados pelo Poder Judiciário não estão exclusivamente calcados no sistema recursal ou em outros pontos objeto de reforma e inovação pelo novo CPC, não sendo as mudanças, por mais positivas, suficientes para resolver o problema da morosidade. Isto porque, nos últimos tempos, o Poder Judiciário deixou de se precaver para enfrentar a crescente demanda judicial, que vem se multiplicando exponencialmente. Assim, para uma Justiça mais efetiva, mais próxima, mais palpável, mais sentida e reconhecida, é necessário que, além da reforma legislativa, o Judiciário se preocupe com outros aspectos, igualmente ou mais importantes, como a estrutura física, logística e material, a adequação e qualificação dos recursos humanos, dentre outros. Referências BRASIL. Senado Federal. Código de Processo Civil. Anteprojeto/comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. Disponível em: <http : / / WWW .cartaforense.com.br/conteudo/colunas/breves-notas-sobre-o-sistema recursalno-projeto-de-codigo--de-processo-civil-ii/13430>. ACESSO EM: 13 nov 2014. CÂMARA, Bernardo. NUNES, Dierele. BAHIA, Alexandre. SOARES, Carlos Henrique. Curso de Direito Processual: fundamentação e aplicação. Belo Horizonte: Editora, Fórum, 2011. FERRAZ, Sérgio Valadão. Curso de Direito Constitucional. 2º ed. São Paulo: Editora, Campus, 2006. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10º ed. rev. e atual. e ampl. São Paulo: Editora, Método, 2006. LIRA, João Ricardo Imperes. A reforma do Processo Civil brasileiro: análise dos projetos de lei que visam à modificação do CPC. Disponível em: <http : / / j u s . c o m.br/artigos/20298/o-projeto-do-novo-codigo-de-processo-civil-e -a-supressao-dos-embargos-infringentes>. Acesso em 19 nov 2014. MACHADO, Marcelo Pacheco. Novo CPC, descanso do advogado e do juiz. Disponível em: <http://marcelopacheco2.jusbrasil.com.br/artigos/121942931/novocpc-descanso-do-advogado-e-descanso-do-juiz >. Acesso em 18 nov 2014. MÉDICI, Emílio. LEI No 5.869, DE 11 DE JANEIRO DE 1973. Presidência da República, Casa Civil. Disponível em: < http : / / www . planalto . gov . br / ccivi l _03 /leis /l5869compilada.htm>. Acesso em: 05 nov 2014. MEDINA, Miguel Garcia Medina. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recursos e ações autônomas de impugnação. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2010.
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NOTAS DE FIM 1 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Processual. Especialista em Direito de Empresa. Professor Universitário de Graduação (Centro Universitário Newton Paiva) e Pós-Graduação. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Ex-assessor técnico da Escola Superior da Advocacia da OAB/MG. Ex-conselheiro da OAB/MG. Advogado e Sócio do Escritório Freire, Câmara & Ribeiro de Oliveira Advogados. 3 EDcl nos EDcl na AR 1.228/RJ, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/08/2008, DJe 02/10/2008. ** Bernardo Ribeiro Câmara; Amanda Helena Azeredo Bonaccorsi.
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O ENQUADRAMENTO JURÍDICO PENAL DO PHISHING E SUAS REPERCUSSÕES NO FURTO INFORMÁTICO Rebeca Bravo de Oliveira Gomes¹ Marcelo Sarsur Lucas da Silva² Banca examinadora** RESUMO: A criminalidade informática é um fenômeno bastante recente que trouxe consigo modalidades criminosas que não se amoldam àquelas previstas no Código Penal brasileiro, como é o caso do phishing. Desse modo, o objetivo deste estudo é tecer uma análise jurídica do tema, a fim de se estabelecer qual o tratamento penal mais adequado para a pesca de dados de identidade por meio da Internet. PALAVRAS-CHAVE: Phishing, criminalidade informática, Direito Penal, estelionato eletrônico, furto informático, tipificação penal. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Criminalidade Informática; 3 O Que é o Phishing; 4 O Phishing no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 5 Das Condutas Criminosas Atreladas ao Phishing; 6 Da necessidade de uma Legislação Penal Informática; 7 Considerações Finais; 8 Referências.
1 INTRODUÇÃO O avanço tecnológico que se tem experimentado nas últimas décadas não trouxe apenas bons frutos: ele fez também com que a criminalidade informática aumentasse exponencialmente. O Direito Penal, porém, ressalvadas algumas melhorias na legislação, não acompanhou tal progresso, de modo que os estudos jurídicos sobre o tema são extremamente escassos. São várias as modalidades de crimes informáticos e de condutas fraudulentas cometidas com o auxílio de dispositivos informáticos que não possuem tratamento adequado no ordenamento jurídico pátrio. Optou-se, aqui, pelo estudo de uma conduta específica: a da “pesca” online de dados de identidade – o phishing. Assim, investigar-se-á a exata natureza jurídica do phishing, a fim de lhe dar correta capitulação no âmbito do Direito Penal, abordando, ainda, quais as repercussões jurídicas deste fenômeno e estabelecendo, um tipo penal adequado para tal conduta delituosa e, por conseqüência, para o furto informático. 2 A CRIMINALIDADE INFORMÁTICA Uma das maiores características da denominada “Era Digital”, nas lições do sociólogo Ivanir Corgosinho, foi a substituição da comunicação face-a-face pela comunicação mediada por computadores. As vantagens advindas desse novo método de interação trouxeram mudanças significativas em vários setores sociais, notadamente nas relações financeiras dos indivíduos. Segundo o autor, os benefícios econômicos e operacionais dos processos de transmissão de dados via computadores conectados em rede, em termos de rapidez e segurança, levou a que as principais transações comerciais do mundo passassem a operar com base em uma mesma plataforma lógica e via os mesmos tipos de equipamento. (CORGOSINHO, 2005, p. 6) Ainda nas lições do sociólogo, a inauguração desse novo paradigma, traduzido no uso intensivo dos recursos informáticos, vem gerando um profundo impacto no cotidiano das sociedades contemporâneas, que passa a funcionar sob a lógica da comunicação online. O Direito, por sua vez, reconhecendo esses impactos, tem empenhado um enorme esforço para assegurar que os direitos e garantias fundamentais, elencados na Constituição Federal de 1988, não deixem de ser tutelados também no ambiente virtual, conforme se extrai, por exemplo, da recentíssima Lei 12.965/2014, apelidada de Marco Civil da Internet.
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No âmbito jurídico-penal, a criminalidade informática tem se mostrado como um dos vários frutos do avanço da tecnologia da informação, de tal sorte que os bens jurídicos ofendidos por essas condutas carecem igualmente da tutela penal, conforme dispõem Túlio Vianna e Felipe Machado, na obra “Crimes Informáticos”: a inviolabilidade de informações e de dados informáticos é decorrência natural do direito à intimidade e privacidade, devendo, portanto, ser reconhecida como direito essencial para a convivência social. Como corolário desse direito, a inviolabilidade das informações automatizadas, ou seja, daquelas armazenadas e processadas em dispositivos informáticos, surgirá então como um novo bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal, de forma a se garantir a privacidade e a integridade dos dados informáticos. (VIANNA, MACHADO. 2013, p. 16) Dessa forma, mesmo que a Lei 12.737/2012 - Lei Carolina Dieckmann - tenha representado um avanço em termos de legislação penal, ela ainda não foi suficiente para normatizar toda a criminalidade informática, razão pela qual se torna indispensável o estudo e a reflexão do tema, sendo que se optou aqui, especificamente, pela análise de uma das várias modalidades de “cibercriminalidade”, qual seja, a pesca de informações pessoais e sigilosas através de dispositivos informáticos – o phishing. 3 O QUE É O PHISHING Phishing é o nome dado à pesca online de identidade, praticado com o objetivo de obter-se vantagem econômica indevida por intermédio da Internet. Em geral, os phishers (nome dado aos agentes que praticam tal conduta), agem enviando e-mails fraudulentos – passando-se por instituições financeiras, ou por órgãos públicos, ou por serviços de crédito - para uma enorme quantidade de pe ssoas, tudo com o fim de “pescarem” suas informações pessoais, tais como número do cartão de crédito e senha. Importante descrever, de modo geral, como é feita tal “pesca”, já que se deve ter em mente que o phisher não invade o computador do usuário, mas sim o induz, de modo ardiloso, a conceder-lhe suas informações pessoais. Ademais, o conhecimento do caminho percorrido pelo agente até que este consiga obter a vantagem econômica da vítima irá influenciar sobremaneira na capitulação, por exemplo, do “furto informático”, também objeto deste estudo. Dessa maneira, há casos em que o criminoso envia os e-mails, se fazendo passar por uma instituição financeira e solicitando atuali-
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zação de cadastro. Para tanto, será indicado um link como sendo o do site do Banco, que direcionará a vítima para um site falso idêntico ao original, onde então irá inserir seus dados pensando tratar-se de uma página confiável. Em outras vezes, de forma um pouco diferente, mas com o mesmo objetivo, o criminoso poderá enviar e-mails contendo apenas um link ou um arquivo que descarregará um programa malicioso no computador da vítima e que nele ficará alojado até que o usuário tente acessar a página da sua instituição financeira. O programa malicioso irá substituir o atalho dos favoritos no computador do usuário, de modo que este, também nestes casos, será direcionado a uma página falsa quando tentar acessar a página do seu Banco. 4 O PHISHING NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Em relatório recente3, a Trend Micro, empresa especializada em segurança, apurou que o Brasil está entre os países que registram maior número de vítimas de phishing no mundo (8,15%), ficando atrás apenas dos EUA (38,38%) e Japão (8,28%). Não obstante, tal conduta delituosa só chega ao conhecimento do Poder Judiciário quando o furto das contas bancárias dos usuários de internet banking já foi consumado, dando a perceber que a pesca de identidade, considerada isoladamente, não vem recebendo a devida atenção da doutrina e jurisprudência, além de não ter sido ainda normatizado pelo Direito. A conseqüência disso é que o phishing acaba sendo sempre atrelado às figuras do furto ou do estelionato, quando em outros países, por exemplo, há quem defenda que este seja um crime autônomo (em Portugal, poderia configurar-se crime de falsidade informática). A esse respeito, chama-se atenção para o Conflito de Competência nº 72.738/RS, de Relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, que atrela o phishing ao furto qualificado por fraude e para Projeto de Lei 5485/2013, de autoria do Deputado Eduardo Azeredo, que propõe a tipificação do phishing como estelionato, os quais serão analisados mais cuidadosamente a seguir. 5 DAS CONDUTAS CRIMINOSAS ATRELADAS AO PHISHING 5.1 Do Furto Qualificado Por Fraude O Código Penal assim dispõe sobre o furto qualificado por fraude: Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. [...] § 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: [...] II - com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;[...] Nas lições de Nelson Hungria (1967, p. 43-44, apud GRECO, 2014, p. 27), pratica furto mediante fraude aquele que subtrai coisa alheia móvel, utilizando-se de ardil que provoque a ausência momentânea do dominus ou distraia a atenção da vítima para tornar mais fácil a consumação do furto. Ou seja, a fraude é praticada para que o próprio agente subtraia a coisa. O CC nº 72.738/RS trata de transferências eletrônicas fraudulentas realizadas por meio de internet banking da Caixa Econômica Federal. No caso apresentado, houve conflito quanto à competência para processar e julgar a conduta, já que um juízo considerou ser o caso de furto qualificado por fraude, donde seria competente o lugar onde se consumar a infração, ao passo que o juízo declinado entendeu se tratar de estelionato, sendo competente, portanto, o juízo do local onde houve a obtenção da vantagem patrimonial indevida.
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Em sua decisão, assim se pronunciou a Ministra Relatora: O cerne da questão para se determinar o Juízo competente para o prosseguimento do caso em tela reside, pontualmente, na correta capitulação da conduta criminosa em comento. O furto mediante fraude, escalada ou destreza não se confunde com o estelionato. No primeiro, a fraude visa a diminuir a vigilância da vítima, sem que esta perceba que está sendo desapossada; há discordância expressa ou presumida do titular do direito patrimonial em relação à conduta do agente. No segundo, a fraude visa a fazer com que a vítima incida em erro e, espontaneamente, entregue o bem ao agente; o consentimento da vítima integra a própria figura delituosa. Da análise dos autos, verifica-se que trata de hipótese em que o agente se valeu de fraude eletrônica para a retirada de mais de três mil e quatrocentos reais de conta bancária situada em Porto Alegre/RS, por meio da Internet Banking da Caixa Econômica Federal, o que ocorreu, por certo, sem qualquer tipo de consentimento da vítima. A fraude, de fato, foi usada para burlar o sistema de proteção e vigilância do Banco sobre os valores mantidos sob sua guarda, configurando, assim, crime de furto qualificado por fraude, e não estelionato (STJ, CC nº 72.738, RS 0226850-1/2006, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, j. 08/08/2007, Dj 20/08/2007). A importância da análise deste julgado, como já exposto, advém do fato de que o phishing é cometido sempre com o fim de obter vantagem econômica, muitas vezes com o furto das contas bancárias das vítimas. Como não há ainda tipificação penal para a pesca dos dados de identidade, o Judiciário somente registra litígios em que há a subtração do dinheiro, pouco importando o modus operandi utilizado para tal. Dessa forma, como o real sujeito passivo do furto seria a instituição financeira (que possui os valores sob sua guarda), não há que se falar, com razão, em estelionato, que pressupõe o consentimento da vítima – o que por óbvio não houve. Conforme se extrai do voto proferido acima, o agente burlou o sistema de proteção e vigilância do banco para retirar o dinheiro mantido sob sua guarda, o que, de fato, caracterizaria fraude, assistindo razão ao Superior Tribunal de Justiça. 5.2 Do Estelionato Em relação ao estelionato, dispõe o Código Penal: Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa. A fraude para Greco (2014), ponto central do estelionato, seria “a conduta do agente com o intento de obter vantagem ilícita, em prejuízo de outrem, considerando-se vantagem ilícita, para o autor, aquela economicamente apreciável, surgindo aqui o primeiro impasse quanto à tipificação do phishing como estelionato, o que é justamente a proposta do Projeto de Lei 5485/2013, conforme se demonstra:
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“Estelionato informático Art. 171..................................................... ................................................................. §2º Nas mesmas penas incorre quem: ................................................................. ................................................................. VII – envia mensagens digitais de qualquer espécie, fazendo-
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se passar por empresas, instituições ou pessoas a fim de induzir outrem a revelar informações pessoais, de identidade, ou senhas de acesso.” Justifica o autor do projeto: A prática do estelionato informático se consubstancia no envio, com intenções fraudulentas, de e-mails que pretendem ser de empresas conceituadas, a fim de induzir as pessoas a revelar informações pessoais, como senhas e/ou números de cartão de crédito. Essa conduta é usada para o roubo de identidade on-line, utilizando engenharia social e subterfúgios técnicos para obter, de forma indevida e fraudulenta, os dados pessoais, de identidade e as credenciais financeiras dos consumidores. É sabido que o crime de estelionato consuma-se com a obtenção da vantagem ilícita em prejuízo da vítima. As questões que se fazem presentes, desse modo, são: o mero envio das mensagens digitais, a fim de induzir outrem a revelar informações pessoais, de identidade ou senhas de acessos, por si só, poderia ser classificada como crime contra o patrimônio? Ainda, caso o agente consiga obter essas informações, a posse dos dados de identidade dos usuários da internet pode ser considerada vantagem ilícita? Em caso positivo, qual seria então o tratamento dado ao furto das contas bancárias por meio do internet banking? De certo, caso se considere o phishing como estelionato, impossível seria a tipificação do furto propriamente dito como qualificado por fraude, sob pena de bis in idem, uma vez que se puniria duas vezes a conduta fraudulenta. Ademais, como será demonstrado a seguir, entendemos que, muito embora a intenção dos phishers seja a de obter vantagem econômica indevida, o phishing não pode ser considerado um crime contra o patrimônio, já que a mera obtenção dos dados de identidade não resulta necessariamente um prejuízo patrimonial para as vítimas. 6 Da Necessidade de Uma Legislação Penal Informática Obviamente, a Lei 12.737/2012 - Lei Carolina Dieckmann, embora constitua um avanço em termos de legislação, não resolveu todo o problema da criminalidade informática, já que não contempla todas as modalidades criminosas que podem ser cometida através da Internet ou por meio de dispositivos informáticos. A título de ilustração, chama-se atenção para o tratamento dado aos “cibercrimes” em países como Estados Unidos, Itália, Alemanha, Áustria, França, Inglaterra, Portugal e alguns outros que, já na década de 1990 sancionaram leis e reformaram seus Códigos Penais, tipificando condutas como sabotagem informática, acesso não-autorizado a dispositivos informáticos, etc. A fim de demonstrar a necessidade de um tratamento penal adequado à criminalidade informática e tentar estabelecer o enquadramento jurídico do phishing, utilizaremos como parâmetro a legislação portuguesa e estadunidense, especificamente a Lei nº 109/2009 – Lei do Cibercrime e os “Anti-Phishing Acts” dos Estados de Nova Iorque e da Califórnia. Como se sustentou durante todo este trabalho, nem o tratamento dado ao phishing pelo STJ ou pelo Projeto de Lei 5485/2013 é adequado, visto que não consideram tal conduta de forma apropriada. Isso porque se as decisões do Superior Tribunal de Justiça somente apreciam o fato após a consumação do furto, o mencionado projeto de lei equivoca-se ao tipificá-lo como crime contra o patrimônio. Para que o phisher alcance êxito na empreitada criminosa, ele passa por um longo caminho vai desde o envio em massa de emails
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contendo informações falsas até a manutenção de sites fraudulentos para que só então consiga, se obtiver sucesso no engano às vítimas, a vantagem patrimonial que cogitou inicialmente. Nessa linha de raciocínio, o phishing poderia configurar-se como ato preparatório do crime de furto, já que todas essas etapas identificadas fazem parte de um processo sistematicamente desenvolvido pelo agente para que este alcance o resultado almejado. Os atos preparatórios, nas lições de MIRABETE e FABBRINI (2014) são aqueles externos ao agente, que passa da cogitação à ação objetiva e que não se submetem, em regra, à aplicação da lei penal. Desse modo, se considerada apenas como modus operandi, a pesca de informações sigilosas feita pela Internet continuaria não sendo objeto de repressão penal. Fica claro que ao enviar emails falsos em massa e manter sites fraudulentos o agente está ofendendo seriamente a segurança jurídica que os usuários esperam encontrar no ambiente virtual. O cerne da questão, portanto, é: as relações jurídicas travadas neste ambiente merecem a tutela penal? Defende-se enfaticamente que sim. A seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, segundo GALVÃO, depende do juízo de valor dos legisladores, já que um ato só passa a ser criminoso em decorrência de norma jurídica que o qualifique como tal. A esse respeito: Um juízo de valor representa o trabalho de uma apreciação subjetiva, ou seja, da participação da consciência de quem valora, no ato de vinculação do sujeito ao predicado. A gênese da norma jurídica, necessariamente, traz embutido o resultado de uma tomada de posição diante do fato social. Assim, a consideração do que seja socialmente inadequado dependerá sempre do ponto de vista daquele que detém o poder de imposição (eleição da conduta proibida). Pode-se observar que a criminalidade e o delito não fazem parte de uma realidade natural, mas sim da construção jurídico-social que depende dos juízos valorativos que produzem a qualidade de criminosa na conduta à qual se aplicam. [...] Dessa forma, a definição de crime revela-se dependente dos interesses, das crenças e da cultura dos indivíduos que usufruem posição de predomínio na determinação do que seja inadequado, ou seja, das autoridades. (GALVÃO, 2011, p. 207) Rogério Greco, no mesmo sentido, afirma que somente os bens jurídicos mais valiosos devem ser objeto de proteção do Direito Penal, sendo assim considerados aqueles necessários para a sobrevivência em sociedade. A seleção desses bens é feita através de um critério político, tendo em vista que a evolução da sociedade pressupõe também a mutação dos seus valores morais, que ora se extinguem, ora se criam: Em virtude dessa constante mutação, bens que outrora eram considerados de extrema importância e, por conseguinte, carecedores da especial atenção do Direito Penal já não merecem, hoje, ser por ele protegidos. (GRECO, 2011, p. 3) Ora, não se tem por razoável que a ausência de tipificação para o phishing, bem como para as diversas modalidades de crimes informáticos não previstos no ordenamento jurídico pátrio tenha como fundamento a insignificância desses bens para o Direito Penal. Prova disso é a promulgação das Leis 12.7372012 e 12.965/2014 que protegem a inviolabilidade das informações automatizadas, corroborando, assim, o entendimento de que a pesca de dados de identidade feita pela Internet e a manutenção de sites fraudulentos, ainda que o furto de dinheiro não venha a se consumar, merece ser também objeto de reprimenda na esfera criminal. Veja-se o que a Lei 109/2009 de Portugal (Lei do Cibercrime) dispõe sobre em seu artigo 3º:
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Artigo 3.º Falsidade informática 1 — Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias. 2 — Quando as acções descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados ou incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão. 3 — Quem, actuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objecto dos actos referidos no n.º 1 ou cartão ou outro dispositivo no qual se encontrem registados ou incorporados os dados objecto dos actos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respectivamente. 4 — Quem importar, distribuir, vender ou detiver para fins comerciais qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, sobre o qual tenha sido praticada qualquer das acções prevista no n.º 2, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. 5 — Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de 2 a 5 anos. (Art. 3º da Lei 109 de 2009 de Portugal – Lei do Cibercrime) Para MONTEIRO e TEIXEIRA (2013), a própria criação e manutenção de um site fraudulento que preveja a possibilidade de um usuário acessá-lo pensando se tratar de site legítimo poderia ser tipificado como falsidade informática. O phishing, neste caso, seria considerado um modus operandi para a realização deste delito. Os Estados de Nova Iorque e da Califórnia, por sua vez, foram mais incisivos ao tratar do assunto, criminalizando diretamente a pesca de informações pessoais: It is unlawful for any person, by means of a web page, electronic message, or other use of the internet to solicit, request or collect identifying information by deceptively representing himself or herself, either directly or by implication, to be a business or a governmental entity and doing so without the authority or approval of such business or such governmental entity. (Anti-Phishing Act of 2006, §390-b, “3”, Estado de Nova Iorque) It shall be unlawful for any person, by means of a Web page, electronic mail message, or otherwise through use of the Internet, to solicit, request, or take any action to induce another person to provide identifying information by representing itself to be a business without the authority or approval of the business. (Anti-Phishing Act of 2005, 22948.2, Estado da Califórnia) O que se depreende da leitura das legislações apresentadas é de que já há uma preocupação internacional com a efetiva regulamentação do ambiente virtual, traduzida na proteção penal dos bens jurídicos nascidos desse avanço tecnológico. No Brasil, ao revés,
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muito embora a Lei 12.965/2014 tenha estabelecido em seu artigo 3º que a segurança da rede, a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais sejam princípios que disciplinam o uso da Internet no país, não é possível afirmar que tal segurança seja uma realidade. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por respeito ao princípio da legalidade, não é possível falar-se em enquadramento penal do furto de informações sigilosas e de dados de identidade até que haja uma lei definindo tal conduta como crime (art 5º, XXXIX da Constituição Federal de 1988). Como exposto, o projeto de lei 5485/2014, que equipara o phishing ao estelionato apresenta grave erro do ponto de vista jurídico, já que tipifica tal conduta como crime contra o patrimônio, o que, repita-se, não seria coerente. Por fim, enquanto não há tipificação para a pesca de dados pessoais e sigilosos, defende-se como correto o tratamento dado ao “furto informático” pelo Superior Tribunal de Justiça, que o capitula como furto qualificado por fraude – artigo 155, §4º, II do Código Penal brasileiro. Como se sustentou, ainda que nestes casos seja desconsiderado o iter criminis percorrido pelo agente, com os conseqüentes danos causados a outros bens jurídicos que não o patrimônio, o criminoso age mediante fraude ao subtrair o dinheiro da instituição financeira burlando seu sistema de vigilância, ao utilizar o login e a senha de outro usuário, assistindo razão ao Tribunal. Assim, não obstante o envio de mensagens fraudulentas, a criação e manutenção de sites falsos ou a pesca de informações sigilosas vise quase sempre à obtenção de vantagem patrimonial ilícita, tal conduta constitui-se, claramente, como uma ofensa à inviolabilidade das informações automatizadas e da segurança jurídica no ambiente virtual, de modo que a solução que se pode apresentar, após a exposição deste breve estudo, não pode ser outra senão a criação de uma legislação penal mais efetiva e avançada que contemple as modalidades de crimes informáticos que não se amoldem à legislação penal em vigor, muito embora se tenha a consciência de que a criminalização de determinado comportamento, sem que haja política pública a respeito ou esforço integrado dos vários setores sociais, não seja suficiente para a erradicação da ocorrência de qualquer espécie de delito. REFERÊNCIAS AZEREDO, Eduardo. Projeto de Lei 5485 de 2013. Disponível em http://www. camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=575520. Acesso em 15 de março de 2014. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 27 de Nov de 2014. BRASIL. Decreto Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em 15 de Outubro de 2014. CORGOSINHO, Ivanir Alves. A Prática da Comunicação Face-aFace. Belo Horizonte: 2005. FABBRINI, Renato N. e MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manuel de Direito Penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. São Paulo: 2014. GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: 2011. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. Niterói: 2014. MACHADO, Felipe e VIANNA, Túlio Lima. Crimes Informáticos: Conforme a Lei 12.737/2012. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. Legislação do Estado da Califórnia. Disponível em <http://www.legin-
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fo.ca.gov/cgi-bin/displaycode?section=bpc&group=22001-23000&file=22948-22948.3>. Acesso em 24 nov. 2014. Legislação do Estado de Nova Iorque. Disponível em: http://public.leginfo.state. ny.us/LAWSSEAF.cgi?QUERYTYPE=LAWS+&QUERYDATA=$$GBS390-B$$@ TXGBS0390- &LIST=LAW+&BROWSER=01912488+&TOKEN=33260917+&TARGET=VIEW>. Acesso em 24 nov. 2014. LEI DO CIBERCRIME. Disponível em: <http://www.cnpd.pt/bin/legis/nacional/ LEI109_2009_CIBERCRIME.pdf>. Acesso em 15 de março de 2014. MICROSOFT. O que é phishing. Disponível em: <http://www.microsoft.com/pt -br/security/resources/phishing-whatis.aspx>. Acesso em 19 set. 2014 MONTEIRO, Fernando Conde e TEIXEIRA, Alexandre Gonçalves. O Fenômeno do Phishing: Enquadramento Jurídico-Penal. 2013. 155 folhas. Dissertação (Mestrado em Direito, especialidade em Ciências Jurídico-Criminais). Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa. 2013. OLHAR DIGITAL. Brasil é o 2º país mais afetado por sites phishing HTTPS, diz pesquisa. Disponível em <http://olhardigital.uol.com.br/noticia/44036/44036>. Acesso em 26 out. 2014. PLANTULLO, Vicente Lentini, Estelionato Eletrônico – Segurança na Internet. Curitiba: Juruá, 2003. ROSA, Fabrízio. Crimes de Informática. Campinas: 2005. VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de Direito Penal Informático. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/34441066/Fundamentos-de-Direito-Penal-Informatico. Acesso em 07 maio de 2014.
NOTAS DE FIM 1 Aluna do nono período do curso de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, advogado criminalista e professor do Centro Universitário Newton Paiva. 3 Disponível em: http://blog.trendmicro.com/trendlabs-security-intelligence/ phishing-safety-is-https-enough/ **Marcelo Sarsur; Renato Martins Machado.
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A TUTELA PENAL NOS CRIMES DE MAUS TRATOS CONTRA ANIMAIS DOMÉSTICOS NO MUNICIPIO DE BELO HORIZONTE Thais Machado Silvério1 Maraluce Maria Custódio2 Banca examinadora** RESUMO: A abordagem jurídica ao meio ambiente surge como resultado de uma conquista, uma consciência mundial da necessidade de preservação como condição de vida. Ocorre que embora inseridos em um contexto de ampla normatização, no qual o poder público e sociedade são agentes dessa proteção, ainda presenciamos atrocidades contra o meio ambiente, em especial, foco do estudo, a fauna doméstica. Diante disso, em abordagem inicial, o presente trabalho traz uma análise da tutela penal do direito ambiental para, após situado o ramo jurídico em que se insere a proteção dos animais domésticos, bem como seu histórico, abordar a proteção e efetividade de seus recursos jurídicos. De fato, o atual sistema de penalização é capaz de coibir práticas abusivas dos direitos dos animais? O que poder público e sociedade têm executado, especialmente no Município de Belo Horizonte, para que se torne uma realidade o sistema de proteção? Esses e outros questionamentos são abordados ao longo do trabalho, demonstrando o longo caminho que ainda há de se percorrer em prol da efetividade do direito dos animais. PALAVRAS CHAVES: Meio ambiente. Direito Ambiental. Fauna Doméstica. Tutela e punição. Crimes ambientais. Penalização. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Da Tutela penal ao meio ambiente: evolução e princípios constitucionais; 2.1. O Direito Ambiental; 2.2 Os princípios da tutela de proteção ao meio ambiente; 3. O Direito e a proteção da fauna doméstica; 3.1. Legislação penal: Dos crimes e das penas; 3.1.1. Art. 32 LCA – Abuso, maus tratos, ferimento ou mutilação de animais; 3.2. Sistema de Proteção; 3.2.1. O papel da sociedade civil; 3.2.2. Dos avanços no Município de Belo Horizonte; 4. Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O Direito tende a evoluir em compasso com a sociedade por ser um mecanismo de regulação dos fatos sociais. Ao longo dos séculos e com o evoluir da complexidade das relações sociais o Direito adentra diversos ramos sociais, regulamentando-os, tais como direitos fundamentais civis e políticos, denominados direitos fundamentais de primeira geração pelo constitucionalista Paulo Bonavides (2007), responsável por agrupar os direitos em gerações; direitos sociais, culturais e econômicos ou de segunda geração; e, ainda direitos de terceira geração, no qual se insere o direito ao meio ambiente. Esse ramo adquire status de proteção jurídica em virtude do reconhecimento de que a natureza é parte integrante da qualidade de vida do ser humano, bem como condição de sua existência. Resultado do resgate de uma consciência mundial no fim do século XX. No Brasil, a Constituição Federal, reconhece o meio ambiente como direito fundamental da humanidade. Faz da sociedade, juntamente com o poder público, guardiões do meio ambiente, uma conquista recente, advinda da Constituição de 1988. É que as Constituições anteriores não consideravam a proteção ao meio ambiente, consideravam-na mero objeto de propriedade humana. Embora diversas produções legislativas infraconstitucionais já existissem no Brasil, tratavam apenas de interesses econômicos sem alcançar, entretanto, efetividade prática ou consciência social de proteção ao meio ambiente. Diante do contexto da proteção ambiental, o presente estudo propõe como escopo central a proteção jurídica penal da fauna doméstica, ou seja, dos animais domesticados pela sociedade. Note-se que embora grandes conquistas tenham sido perpetradas em matéria ambiental com a Constituição Federal de 1988 e a regulamentação dada pela Lei Federal 9.605/98, ainda enfrentamos o desafio da aplicabilidade das normas, resultado da falha não só do poder público, mas da sociedade como um todo.
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Durante séculos os animais foram tratados como meros objetos de livre disposição do grupo social. Entretanto, com o evoluir de teorias não só cientificas, mas filosóficas em relação a fauna, passa-se a inserir os animais como sujeitos de direitos, limitando-se a atividade predatória da humanidade. Cresce gradativamente, no meio jurídico e social, o reconhecimento de que não apenas o ser humano racional é dotado de valor e dignidade, pois os animais não são meros objetos, mas possuem valor em si mesmo, são seres vivos e merecem ter assegurado seu direito a vida. Em suma, apesar dos avanços legislativos e da recente modernização da Justiça brasileira, os animais continuam discriminados pelo estigma do princípio da insignificância, onde a maioria dos crimes, se assim considerados, acaba caindo na vala comum das condutas de menor potencial ofensivo. Com o desenvolvimento de estudos, análises e teorias sobre comportamento animal, o homem passou a modificar sua postura, pois percebeu que os animais também sofriam e sentiam medo, dor e angústia. Isso aconteceu graças ao trabalho dos cientistas e estudiosos do comportamento animal e dos defensores de animais - pessoas que lutam pelos direitos dos animais, tirando-os das ruas, protegendo-os, criando e cuidando de abrigos. Diante disto, consolidou-se em muitos segmentos da sociedade o entendimento de que os animais devem ser realmente protegidos contra maus-tratos e crueldade, surgindo movimento, campanhas e até ações judiciais neste sentido. Assim discutem-se quais seriam os motivos da ineficácia legislativa, no que tange à proteção dos animais domésticos no município de Belo Horizonte, uma vez que estes deveriam ser tutelados pelo Direito Penal. Para se garantir a efetividade da garantia do direito da fauna doméstica o direito penal passa a tutelar efetivamente criando tipos penais, com consequentes sanções para as práticas que violem os direitos ambientais. No tocante aos crimes contra os animais, a nova Lei Penal Ambiental atende às necessidades de proteção do bem tutelado,
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havendo, no entanto, como é de costume, a falha na fiscalização pelo poder de polícia do órgão público encarregado e, além de tudo, a falta de conscientização dos cidadãos que consideram a facilidade de se burlar a legislação. Portanto, a proposta é analisar o corpo legislativo frente sua aplicabilidade, bem como os mecanismos e instituições que existem, tendo, para tanto, como paradigma a análise da realidade do Município de Belo Horizonte. 2. DA TUTELA PENAL AO MEIO AMBIENTE: EVOLUÇÃO E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 2.1. O Direito Ambiental O legislador infraconstitucional definiu Meio Ambiente na Lei 6.938/81, que em seu artigo 3°, I, dispõe: Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;(...). Pelo que se depreende desse dispositivo legal, o objetivo do direito ambiental seria tutelar a vida em todas as suas formas. Ocorre que grande parte da doutrina que trata do tema, tem uma visão antropocêntrica do direito ambiental, afirmando ser o homem o centro e objetivo da proteção. Tal pensamento fica claro no trecho do jurista Celso Antônio Pacheco Fiorillo, 2009, p. 59: Parece-nos inaceitável aludida concepção, porquanto devamos considerar a proteção da natureza como um objetivo decretado pelo homem exatamente em benefício exclusivo seu. De acordo com essa posição os animais assumiriam posição de destaque, em face da proteção ambiental, enquanto destinatários direitos do direito ambiental brasileiro. Não nos parece razoável inserir apenas o homem como sujeito de direitos, já que tal entendimento tende a referendar atitudes de desrespeito aos animais, bem como reflete valores sociais de indiferença ao direito dos animais, que seriam meros objetos de disposição humana. Ao compreender os valores inseridos pela constitucionalização do direito ambiental e de mandatos expressos de criminalização de condutas contra a natureza e os animais, depreende-se uma crescente valorização da natureza e seus componentes como valores em si. No plano do direito interno, em decorrência do conteúdo político e de relevância do fenômeno ambiental, as Constituições mais modernas, sobretudo a partir de 1970, passaram a dar-lhe tratamento explicito em seus textos, evidenciando desse modo a necessidade de uma tutela mais adequada. E isso não é sem razão, visto que a Constituição representa ‘escala de valores essenciais de uma determinada sociedade e o critério reitor da vida social’. (PRADO, 2013, p. 60) A Constituição Federal de 1988 não ficou indiferente a esse processo de transformação, fixando em seu artigo 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nem sempre foi assim, a consciência social evolui a cada grande impacto sofrido, trazendo a lume as consequências de não reconhecer o respeito ao meio ambiente natural, reconhecimento de que deve ser cuidado e respeitado, não só enquanto solo, água, ar atmosférico, energia, flora, mas também e em importante valor, a fauna, doméstica e silvestre.
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E ainda, como referido acima pelo autor (PRADO 2013) a mudança reflete valores essenciais de uma sociedade, os valores mudam a constituição reproduz os valores. Embora ainda tenhamos um longo percurso para efetiva transformação social no que tange ao respeito do direito dos animais, percebe-se um movimento pela estruturação de seus direitos. Nessa caminhada, valor e dignidade são conceitos que passam a ser inseridos no tema fauna. A humanidade passa a dotar de direitos os animais como um todo. Em que pese a criação legislativa de mandatos expressos de criminalização de condutas através do direito penal ambiental e de mecanismos de proteção, a sensação de impunidade e ineficácia das leis ainda impera. Como decorrência da proteção legislativa ampla, mas que ainda deixa muitas lacunas, como veremos, e que ainda não atingiu o grau de concretização e respeito necessário, importante se faz analisar os princípios, as bases norteadoras, para que se possa aprimorar a defesa jurídica da fauna doméstica. 2.2. Os princípios da tutela de proteção ao meio ambiente Todo ordenamento constitucional democrático necessita de parâmetros para estabelecer seus fundamentos, tais parâmetros são denominados princípios. Assim como em todos os ramos do regramento social, o direito ambiental também está fundado em princípios norteadores de suas normas, ou seja, vetores de interpretação das normas (GALUPPO, 2002, p.170). Os princípios são uma superação do mar de incertezas derivadas do puro positivismo, como proposto pela teoria de interpretação do jurista HANS KELSEN (CARVALO NETTO, 2000, p.100). Portanto, torna-se de relevante importância para a presente análise, já que confrontamos justamente a ineficácia de regras que não tem alcançado o fim proposto de proteção ambiental. Diante do tema central proposto nesse trabalho, qual seja proteção jurídica penal da fauna doméstica, abordaremos quatro princípios do ramo jurídico direito ambiental que nortearam a abordagem jurídica da questão. Senão vejamos: Principio da Responsabilidade, segundo tal princípio, decorrente do enunciado do parágrafo 3° do artigo 225 da CR/88, deve ser responsabilizado administrativa, civil e penalmente aquele que causar danos ao meio ambiente. De acordo com SAMPAIO, WOLD e NARD (2003 p.74), tal princípio tem primeiro previsão nos documentos internacionais, primeiramente como corolário do dever estatal de proteção dos recursos naturais previsto tanto na declaração de Estocolmo (Princípio 21), quanto da Declaração do Rio (Princípio 2): “[Cabe ao Estado] a responsabilidade por assegurar que atividades dentro da sua jurisdição ou controle não causem danos ao ambiente” (Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992). Depois como um dever estatal de criar uma estrutura legislativa que imponha responsabilidades pelos danos causados ao ambiente (Princípio 13). Sob esse fundamento nosso ordenamento adotou providências civis e penais para o cidadão cuja conduta tipifique crime contra o meio ambiente. Já o Principio da proteção ambiental, dirige-se a proteção específica da fauna e da flora e tem como escopo vedar práticas que provoquem a extinção de espécies e submetam os animais à crueldade. Por esse princípio, conforme nos ensina CASTILHO (p.70), há uma ampliação no conceito de fauna para fins de uma maior garantia de proteção aos direitos dos animais, sejam eles silvestres ou domésticos.
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Decorre do princípio da responsabilidade uma vez que tende a coibir ações que coloquem em risco a integridade da natureza e dos animais. Outro princípio que merece menção é o da equidade Inter geracional, segundo o qual “as presentes gerações não podem deixar para as futuras gerações uma herança de déficits ambientais ou estoques de recursos e benefícios inferiores aos que a geração passada. ” (SAMPAIO, 2003, p. 77) Tal princípio possui diversas orientações, que podem variar de acordo com os argumentos éticos e a visão do mundo de seus defensores. No presente estudo consideramos o princípio da equidade Inter geracional sob perspectiva não só jurídica da necessária regulamentação efetiva da proteção dos animais, mas sob uma perspectiva ética de que não se pode deixar para as gerações futuras uma herança de desrespeito e impunidade ao direito dos animais domésticos, pois que se revela um indicador de decadência social, bem como de falha no sistema jurídico que repercute em diversas áreas do sistema jurídico que na verdade é um corpo de normas indissociável, separado em áreas apenas para fins didáticos. Por fim, o princípio da participação que se enquadra no nosso estudo na medida em que visa incluir todas as esferas da sociedade na busca pela concretização da preservação ambiental, e no caso dos direitos dos animais domésticos. 3 O DIREITO E A PROTEÇÃO DA FAUNA DOMÉSTICA 3.1 Legislação Penal: Dos crimes e das penal A tutela penal do direito da fauna doméstica, e do direito ambiental como um todo, diante do já exposto e da atual conjuntura e reconhecimento da humanidade de seu patamar e importância, é medida jurídica cabível, já que visa proteger a vida. Em decorrência de novos fatos cruéis puníveis e de novas exigências sociais, o conceito de crueldade contra animais, sempre abrangendo o de maus-tratos em sua generalidade perversa, vem sendo ampliado legalmente no sentido de prever a tendência de novas práticas cruéis contra animais, bem como prevenir e reprimir novas condutas desumanas decorrentes tanto do recrudescimento dos maus costumes como das novas pressões notadamente socioeconômicas e ecológico-ambientais (naturais e culturais) contra tais animais, impondo-se a introdução de novas normas legais e regulamentares ajustáveis ás novas exigências de proteção aos animais, de acordo com a realidade contemporânea. (CUSTÓDIO, 1997, p. 63.)
estabelece como objeto material animais silvestres, domésticos ou domésticos, nativos ou exóticos. (CASTILHO, 2009, p. 66) Sendo assim os animais domésticos podem ser igualmente objeto material de crimes contra a fauna, conforme tipos previstos no artigo 31 e 32 da LCA, são eles os animais que homem domesticou e sobrevivem além de suas condições naturais, daquelas as quais o homem lhe oferece. De acordo com a portaria 93/98 do IBAMA, são todos aqueles animais que, através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico, tornaram-se domésticos, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou (art. 2, III). São animais retirados de seu habitat natural para submeterem ao ambiente que o homem lhe oferece. Mais um motivo para que sua dignidade e integridade sejam valorizados e garantidos, já que há uma troca entre homem e animal, que deixa seu ambiente natural para servir ao homem, perdem sua liberdade para adotar o estilo de vida que lhe dá o homem. O cão é um lobo amansado, primeiro animal doméstico entre quantos passaram a sê-lo no decorrer dos séculos. A domesticação ocorreu há aproximadamente doze mil anos, contemporaneamente em quase todas as partes da Terra. (PUGNETTI, 1980, p. 8) Ainda na portaria 93 do IBAMA, estão descritos os animais considerados domésticos, dentre todos vamos citar alguns mais usuais, cachorro, gato, hamster, porco, canário, calopsita, coelho, galinha. Vejamos os tipos penais que dizem respeito a crimes contra a Fauna em geral previsto na LCA:
Em que pese haver incoerências na norma jurídica em relação a proteção do bem, vida dos animais, uma vez que protege apenas sua integridade física, deve-se ter como escopo central tal proteção, já que podemos nos valer dos princípios para determinar o bem a ser protegido de forma a alcançar o objetivo de proteção real, eliminando a ideia de impunidade e ineficácia da norma de forma a forçar uma necessária mudança nos valores sociais em relação aos animais domésticos. A lei federal 9.605/08 (LCA) em seus artigos 29 ao 37 elenca os tipos penais praticados contra a fauna. Conceito fundamental na construção do tipo penal é o da Fauna. Nos termos da Lei de Crimes Ambientais, de acordo com sua relação com o homem a fauna pode ser silvestre ou doméstica. A fauna silvestre, em uma interpretação constitucional, é aquela segundo o qual fauna silvestre é a fauna selvagem, isto é a fauna que não é domesticada ou é difícil de sê-lo. Esta interpretação de animal silvestre com oposto do animal doméstico encontra guarida na própria lei, quando, ao definir crime de maus tratos (art.32)
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Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II - quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. § 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. § 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras. § 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado: I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração; II - em período proibido à caça; III - durante a noite; IV - com abuso de licença; V - em unidade de conservação; VI - com emprego de métodos ou instrumentos capazes de
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provocar destruição em massa. § 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça profissional. § 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca. Art. 30. Exportar para o exterior peles e couros de anfíbios e répteis em bruto, sem a autorização da autoridade ambiental competente: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. Art. 31. Introduzir espécime animal no País, sem parecer técnico oficial favorável e licença expedida por autoridade competente: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. Art. 33. Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas cumulativamente. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas: I - quem causa degradação em viveiros, açudes ou estações de aqüicultura de domínio público; II - quem explora campos naturais de invertebrados aquáticos e algas, sem licença, permissão ou autorização da autoridade competente; III - quem fundeia embarcações ou lança detritos de qualquer natureza sobre bancos de moluscos ou corais, devidamente demarcados em carta náutica. Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos; II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas. Art. 35. Pescar mediante a utilização de: I - explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante; II - substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente: Pena - reclusão de um ano a cinco anos. Nos crimes contra a Fauna, objeto jurídico principal é a sua função ecológica, tende assim a proteger o equilíbrio natural. De acordo com CASTILHO (2009, p. 70) a coletividade é o sujeito passivo principal desses crimes. Entre outros bens jurídicos também identificáveis encontra-se o devido respeito aos animais, assumindo a condição de sujeito passivo.
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Note-se que a necessária conscientização sobre o respeito aos direitos dos animais, pois que há todo um sistema de vida envolvido nessa garantia. O objeto material dos tipos penais acima descritos é sempre a fauna, com maior ou menor especificação. 3.1.1. Art. 32 LCA – Abuso, maus tratos, ferimento ou mutilação de animais.
Em 1988, os animais são tutelados pelo Estado, ao qual cabe a função de protegê-los. Surgiu uma importante Lei Federal 9.605, em 1998, denominada Leis dos Crimes Ambientais. Esta Lei impõe aos autores penalidades pelos maus tratos e, por consequência, sansões administrativas e penais para cada caso. Todos os artigos são importantes da referida lei, mas tem um em especial que é o artigo 32, onde os animais domésticos estarão protegidos, quem infringir este artigo, violando os seus direitos serão penalizados e responderão por crime ambiental, nos seguintes termos: Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. Sem dúvida o sujeito tutelado é a fauna, doméstica e silvestre. É uma obrigação da coletividade sua garantia de vida e integridade. De acordo com o que dispõe o Convenio Europeu sobre Proteção dos Animais Vertebrados, em seu preâmbulo diz que “o homem tem a obrigação moral de respeitar a todos os animais e ter devidamente em conta sua capacidade de sofrimento e memória”. (PRADO, 2013, p. 200) A conduta típica consiste em praticar ato de abuso, maus tratos, ferimento ou mutilação de animais. O tipo subjetivo aqui é caracterizado pelo dolo, vontade e consciência de praticar o ato de maus tratos, abuso ou ferimento e mutilação de animais. A consumação ocorre quando da realização das condutas, e uma vez que se enquadra na regra do código penal, admite-se sua forma tentada, ou seja, punição da tentativa na qual a execução iniciada de um crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente; seus elementos são o início da execução e a não-consumação por circunstâncias alheias à vontade. Na aplicação a pena pode ser aumentada de um sexto a um terço em caso de morte do animal. PRADO (2013) explica que a multa será calculada segundo os critérios do Código Penal, artigo 49. Entretanto, se revelada ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida, conforme dispõe art. 18 LCA. Os artigos 14 e 15 da LCA trazem, respectivamente, circunstâncias atenuantes e agravantes da pena, entretanto vale ressaltar que a alínea m do art. 15 não tem aplicação no art. 32 por se constituir elemento do tipo, já que prevê emprego de métodos cruéis para abate ou captura de animais. Conforme disposição do artigo 26 a Ação penal é publica incondicionada e por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, em virtude da pena, o procedimento é sumaríssimo e, portanto, a competência para processo e julgamento é dos juizados especiais criminais. Admite-se a suspensão condicional do processo nos moldes estabelecidos pela Lei 9099/95, observadas as regras específicas do art. 28 da LCA.
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Cabe aqui ressaltar que uma vez que o artigo 32 da LCA trata de animais domésticos o artigo 64 da Lei de Contravenções penais foi revogado, pela regra contida na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (art. 1°, §1), que dispõe que lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Sendo assim, a prática de abusos e maus tratos em face dos animais foi elevada da condição de contravenção penal (artigo 64 da LCP) para a de crime ambiental, na forma do artigo 32 da referida lei, o que reflete a preocupação do legislador em garantir um melhor mecanismo de defesa da fauna. Entretanto, um fator que deve ainda ser considerado como causador de instabilidade e ineficácia da norma é a incerteza jurídica que tem sido provocada pela aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais. Não há uma posição consolidada, ora as decisões adotam, ora repudiam, e a adoção de tal princípio sem parcimônia poderá fazer do artigo 32 da Lei 9.605/98 uma letra morta e gerar mais danos e atrasos nas conquistas perpetradas a fauna, especialmente a doméstica, pois que convive diretamente com o homem. Conforme bem ressalta os juristas LEITE e AYLA (2002, p. 184), por problemas de falta de investimento, corrupção na Administração Pública, ética social, descrença na capacidade efetiva do Direito Administrativo de atuar efetivamente na prevenção da ocorrência das infrações ambientais etc, tem levado o legislador a imprimir uma expansão do Direito Penal na área ambiental. Ocorre que tal expansão fica paralisada quando de sua aplicação o poder judiciário passar a ver como insignificantes. Por outro lado parte da jurisprudência ainda tem combatido os crimes ambientais como lesões graves a um patrimônio não só da humanidade, mas que possui grande valor em si. Como bem destaca o Desembargador Ramos de Oliveira em julgamento de uma Apelação Criminal, “não é insignificante o crime contra o meio ambiente, pois ele produz efeitos em longo prazo e que são, muitas vezes, irreversíveis. ” (Apelação Criminal nº 97.04.72902-2/RS). 3.2 Sistema De Proteção O sistema de proteção ao animal doméstico é um assunto pouco abordado pela doutrina e jurisprudência. Vê-se um grande esforço da sociedade civil, ONG´s e associações, mas pouco esforço jurídico. Para mudar o panorama atual é necessário abordar e atacar as origens da problemática vez que altos índices de maus tratos a animais evidenciam problemas na escala de valores de uma sociedade, bem como problemas econômicos, culturais e, até mesmo, no âmbito de políticas sociais. Tal assertiva é comprovada por diversos estudos, nesse sentido nos explica DELABARY (2012, p. 835): Entende-se por “maus tratos” o ato de submeter alguém a tratamento cruel, trabalhos forçados e/ou privação de alimentos ou cuidados. Esse crime é praticado pelos mais variados tipos de pessoas e os motivos envolvem aspectos culturais, sociais e psicológicos, sendo muitas vezes praticado sem a consciência de que tal ato é prejudicial. Infelizmente, na maioria das vezes os maus tratos contra animais sequer são denunciados, pois já se encontram banalizados dentro da sociedade devido ao seu alto índice de ocorrência. Apresentarei nesse capitulo o papel da sociedade civil e os mecanismos existentes no município de Belo Horizonte.
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3.2.1. O papel da sociedade civil
Ao mencionarmos os direitos dos animais, e qual a importância de preservá-los, faz-se necessário pensarmos sobre o papel da sociedade na regulamentação de nosso convívio e na contribuição para o relacionamento harmonioso e o bem-estar social, através das leis e das campanhas de conscientização. Estas questões estão diretamente relacionadas e, dependendo da forma como as encaramos, pode-se defender os mais variados pontos de vista, ressaltando a necessidade de um ordenamento jurídico que proteja não somente as espécies animais selvagens, como também as domesticadas. A Constituição Federal A Constituição Federal em seu artigo 225 prevê: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º: Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: Inciso VII: proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. (BRASIL, 1988. p. 43) Assim, verifica-se que tal dispositivo constitucional menciona três aspectos fundamentais da fauna, que são seus objetos de tutela: sua função ecológica, preservação das espécies e vedação de práticas que submetam animais à crueldade. Dentre os princípios gerais do direito ambiental que norteiam a proteção jurídica dos animais, podemos encontrar, o princípio da participação comunitária, que é semelhante ao princípio da cooperação, pois pressupõe que o Estado e a sociedade devem andar juntos na defesa dos interesses ambientais, no desenvolvimento de uma política ambiental adequada. É o que podemos extrair do pensamento de Édis Milaré (2005, p. 162-163): De fato, é fundamental o envolvimento do cidadão no equacionamento e implementação da política ambiental, dado que o sucesso desta supõe que todas as categorias da população e todas as forças sociais, conscientes, de suas responsabilidades, contribuam à proteção e melhoria do ambiente, que, afinal é bem e direito de todos. Assim, as entidades ambientais e os cidadãos em conjunto podem iniciar o processo legislativo participando efetivamente na elaboração de leis de proteção ambiental. Cada vez mais a sociedade encontra-se empenhada e organizada para defesa dos direitos dos animais. Tal mobilização tende a fortalecer a consciência social e a vigilância sobre práticas criminosas, como exemplo o Movimento Mineiro Pelo Direito dos Animais criado a partir de movimentos sociais e organizados pela comunidade militante pela defesa dos animais domésticos e domesticados. Trata-se de um movimento ativo que encaminha propostas de projetos de lei para melhoria de condições de tratamento dos animais. 3.2.2. Os avanços no Município de Belo Horizonte
A Resolução 7.499 de 23 de janeiro de 2013 da Policia Civil Mineira que criou a primeira Delegacia Especializada de Investigação de Crimes Contra a Fauna de Minas Gerais. A nova unidade é subordinada ao Departamento de Investigação, Orientação e Proteção à Família (DIOPF) e funciona no mesmo prédio da Divisão de Meio Ambiente, na região Noroeste de Belo Horizonte.
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Interessante citar o preâmbulo da referida resolução que fundamentou a criação da referida unidade e que fundamenta também todo o escopo do presente trabalho, bem como o escopo de defesa e garantia da fauna: Considerando que o artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, incumbe ao Poder Público a proteção da fauna, vedando as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade; Considerando que a Declaração universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela Organização das Nações unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 27 de janeiro de 1978, da qual o Brasil é signatário, dispõe que todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o direito à existência, ao respeito, à cura e à proteção do homem; Considerando que, nos termos da mesma Declaração, nenhum animal deverá ser submetido a maus tratos ou a atos cruéis e, sendo sua morte necessária, deve ser instantânea, sem dor e angústia; Considerando que a fauna integra de forma essencial o meio ambiente ecologicamente equilibrado; Considerando que o Estado de Minas Gerais abriga rica diversidade faunística, incluindo 243 (duzentas e quarenta e três) espécies de mamíferos, 785 (setecentas e oitenta e cinco) de aves, 200 (duzentas) de anuros, 107 (cento e sete) de répteis, 359 (trezentas e cinquenta e nove) de peixes e ainda milhares de invertebrados, dentre as quais diversas encontram-se ameaçadas de extinção ou em algum nível de endemismo, conforme informações do documento “Biodiversidade em Minas Gerais: um Atlas para sua Conservação”, de 2005, da Fundação Biodiversitas; Considerando que nos municípios mineiros ocorrem graves problemas associados ao abandono, guarda irresponsável e maus-tratos de animais domésticos; Considerando que é responsabilidade do Estado concretizar o direito ao meio ambiente equilibrado, na perspectiva dos direitos humanos de terceira dimensão; Considerando a necessidade de promover a defesa da fauna, através, principalmente, da investigação dos crimes contra o meio ambiente que atingem os animais, sejam eles silvestres, exóticos ou domésticos, subsidiando o Ministério Público e o Poder Judiciário de elementos para a propositura e desenvolvimento da ação penal e, ainda, assegurando a atuação dos órgãos de fiscalização do sistema estadual de meio ambiente,(...). Na área da saúde Belo Horizonte conta com o Conselho Municipal de Proteção e Defesa dos Animais que é um órgão ligado à Secretaria de Saúde Municipal. No âmbito do poder legislativo existe a Comissão Especial de Estudos sobre políticas de proteção e defesa dos animais que elaborou diversos projetos para criação de programas e mecanismos de defesa aos direitos dos animais. De autoria do vereador Léo Burguês de Castro (PT do B), o PL 97/13, que aguarda votação em plenário em primeiro turno, estabelece sanções para aqueles que praticarem maus tratos contra animais no município. De acordo com o texto, dentre outras práticas, serão passíveis de punição a manutenção de espécies em local inapropriado, a privação de água e alimentação adequada, o abandono, o castigo físico e mental, bem como a eliminação de cães e gatos para fins de método de controle populacional. O projeto sugere que a Secretaria Municipal do Meio Ambiente seja o agente responsável pelo cumprimento dos preceitos estabelecidos e cria ainda o e cria o Conselho Municipal de Defesa e Proteção Animal. Na mesma linha, o PL 489/13, de autoria do vereador Joel
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Moreira Filho (PTC), que tramita em primeiro turno, foi anexado ao PL 97/13, de Léo Burguês, e também propõe a criação do Conselho Municipal de Proteção e Defesa dos Animais (COMDEA), com o objetivo de assessorar a Prefeitura de Belo Horizonte a elaborar políticas públicas de proteção das espécies. Os avanços na legislação de proteção aos animais são uma realidade, mas ainda há muito que fazer. A responsabilidade deve ser de todos. Em 1983, Edna Cardozo Dias fundou a Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal. Para a doutora, presidente da Comissão de Direito dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB/ MG), o respeito aos bichos é uma questão de amor. “O amor é um só. Só existe um amor e uma crueldade.” (DIAS, 2000, p. 155). A advogada defende a ampliação do sistema nacional de proteção ambiental e espera um empenho maior do poder público municipal. Edna acredita em conscientização e na parceria público/privada como efeito da boa vontade. Desde a Constituição de 1988 houve grande mudança e evolução na legislação. “Estamos falando de direitos fundamentais. É o reconhecimento de que os animais têm direitos. A partir de 1988, os órgãos públicos passaram a ter obrigações com o direito dos animais”, ressalta. Edna chama a atenção para a importância da conscientização de responsabilidades do indivíduo. A professora cobra do poder público mais trabalho pela ética da proteção à natureza. “O brasileiro não está acostumado a exercer cidadania ambiental”, critica. De acordo com a defensora e especialista, é possível avançar com o direito dos animais, desde que haja “vontade e meta”. (DIAS, 2000, p. 155). Edna Cardozo, uma das criadoras do site www.sosanimalmg. com.br, tem na internet ferramenta facilitadora na causa. “Hoje, com o acesso às redes sociais, as pessoas publicam fotos e denunciam, mas ainda falta mobilização de fato pela proteção dos animais. Não basta publicar e transferir as responsabilidades”, ressalta. (DIAS, 2000, p. 155). Para a advogada, as lideranças de grupos ativistas estão sobrecarregadas, enquanto todo cidadão devia assumir o seu papel de responsabilidade com o meio ambiente. Dos projetos de lei em tramitação na Câmara Municipal, ela fala da importância da criação do pronto-socorro público 24 horas. Todo o sistema de proteção que se desenvolve tem como escopo fundamental enfrentar a dura realidade de que nos municípios mineiros ocorrem graves problemas associados ao abandono, guarda irresponsável e maus-tratos de animais domésticos, conforme ressalta os dados da Polícia Civil. Portanto, por mais que há mecanismos de proteção aos animais domésticos, atualmente a tutela processual de proteção desses animais não tem sido eficaz no município de Belo Horizonte/MG. Temos legislação protetiva dos animais no Brasil, consolidada principalmente pela Constituição Federal e pela Lei dos Crimes Ambientais, mas o que deve ser buscado, entretanto, é a aplicabilidade dessa legislação protetiva, que, infelizmente, ainda é relegada a segundo plano por muitos aplicadores da lei, ou mesmo desconhecida pela sociedade. 4 Considerações finais Diante do estudo realizado, vê-se uma crescente preocupação pela defesa do meio ambiente em geral. Em que pese o reconhecimento de tais necessidades, ainda pouco tem sido feito. Fala-se muito em direitos do ser humano. Ser humano como centro da humanidade, centro das medidas de proteção, mas ignorase, principalmente no meio jurídico, a interdependência entre o ser humano e meio ambiente, bem como o desastre social que advém do desrespeito aos direitos dos animais. Deixamos assim de lado não só um sistema efetivo de proteção e conscientização, mas também os valores que permeiam a garantia da dignidade da fauna doméstica.
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Ressaltamos a importância dos princípios e de uma leitura constitucional dos direitos para que se possa implementar de maneira efetiva os objetivos de proteção para quem sabe um dia sermos uma humanidade que convive harmoniosamente com o meio ambiente. No município de Belo Horizonte, a lei de crimes ambientais não vem sendo suficiente para assegurar a vedação constitucionalmente prevista, de forma que se torna imprescindível maior rigorosidade no tratamento de delitos de ordem ambiental, bem como adoção de políticas publicas que visem a conscientização populacional. É preciso realizar um trabalho de educação amplo e duradouro dentro das comunidades para que os animais não sejam mais vistos como objetos. Sendo assim, a educação vem a ser a principal ferramenta para acabar com essa triste realidade, visto que através dos ensinamentos pode-se trabalhar a conscientização e encorajar a sociedade a denunciar esses crimes. Esse é um tema que importa, ao direito, a sociedade, ao Estado e as futuras gerações. E é com a consciência de sua importância e relevância que propomos um enfretamento contínuo das situações de abuso, uma posição ativa dos juristas e uma consolidação do entendimento dos tribunais afim de que se afaste da jurisprudência a concepção do princípio da insignificância dos crimes ambientais. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22ed. São Paulo: Malheiros, 2007. BRASIL, IBAMA. Portaria 93, 07.07.99. Normaliza a importação e exportação de espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre brasileira e da fauna silvestre exótica. Diário Oficial, Brasília. BRASIL, SENADO. Meio Ambiente: legislação, Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Brasília: Senado Federal. BRASIL, SENADO. Meio Ambiente: legislação, LEI Nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Brasília: Senado Federal. CAMARA DOS DEPUTADOS. Central de notícias. Disponível em http://www. cmbh.mg.gov.br/chapeu/defesa-dos-animais acesso em Nov. 2014. CARVALO NETTO, Menelick de. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Belo Horizonte, 2000 CASTILHO, Ela Wiecho de. Conceito de Fauna e de Animais nos crimes de contra fauna da Lei 9.605/98. 3ed. Juruá, 2009. CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e proteção destes como relevante questão jurídico-ambiental e constitucional. Revista de Direito Ambiental, 7, São Paulo, RT, julho-setembro de 1997.
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DELABARY, Baresi Freitas. Aspectos que influenciam os maus tratos contra animais no meio urbano. Revista eletrônica em gestão, educação e tecnologia ambiental, disponível em http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs2.2.2/index.php/ reget/article/viewFile/4245/2813, acesso em 03 Nov. 2014. DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 155. DIAS, Edna Cardozo. Conscientização como forma de garantir a proteção dos animais. Disponível em http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/04/14/ interna_gerais,518737/conscientizacao-e-a-melhor-arma-para-garantir-a-protecao-dos-animais.shtml, acesso em 18 Nov. 2014. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 14ed. Saraiva, 2013. GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Mandamentos, 2002. LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na sociedade de risco. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002. NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2014 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Agenda 21), adotada de 3 a 14 de junho de 1992 POLÍCIA CIVIL, Resolução 7.499 de 23 de janeiro de 2013. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/54319571/doemg-executivo-24-012013-pg-41, acesso em 02 de Out. 2014 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5ed ver. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2013. . PUGNETT, G. Todos os cães. Tradução L. G. Schutzer. São Paulo, Melhoramentos, 1980. SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY Afrânio. Princípios de Direito Ambiental: Na dimensão internacional e comparada. Rio de Janeiro: Del Rey, 2003.
NOTAS DE FIM 1 Estudante de graduação em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Mestre em Direito Ambiental pela Universidad Internacional de Andalucía. Doutoranda em Geografia pela UFMG em convênio da Université d’Avignon (França). Professora de Direito Ambiental, História do Direito e Metodologia do Curso de Direito do Centro Universitário Newton. **Maraluce Maria Custódio; Leonardo Martins Wykrota.
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REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO E DIREITOS TRABALHISTAS DAS (OS) PROSTITUTAS (OS) Sabrina Dias de Almeida Faustino¹ Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo² Banca examinadora** RESUMO: O presente trabalho visa discutir e analisar a possibilidade de regulamentação da profissão das (os) prostitutas (os), para restaurar a dignidade dessas pessoas, com elucidações acerca dos pontos favoráveis e os posicionamentos contra, ideias para o melhoramento do Projeto de Lei nº 4.211/2012 e o seu alcance e, cotejo histórico a luz do comportamento social perante a esses profissionais. PALAVRAS-CHAVE: Regulamentação; Dignidade; Prostituição; Exploração Sexual. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Contexto Histórico da Prostituição; 3 A Realidade Atual das Prostitutas; 4 A Profissão no Mundo – Regulamentação, Abolicionismo e Proibicionismo; 5 A Profissão no Brasil - Análise do Projeto de Lei 4.211/2012; 6 Elementos do Contrato de Trabalho; 7 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO O presente estudo, preliminarmente aborda a prostituição em seu aspecto histórico, para compreensão dessa atividade concomitante a sua relevância social. Isso porque, ao que sempre se soube, a prostituição é umas das “profissões” mais antigas que se tem notícia, ao analisar a sua história, verifica-se desde o enaltecimento à vulgarização da atividade. Adiante, é traçado um paralelo com os tempos atuais, onde se pontua a latente a discriminação negativa, em que pese a sociedade moderna ser vista tolerante e complacente com o assunto sexo, seja através de músicas, novelas, filmes e etc, sequer há de forma efetiva a censura com relação a menores. Lado outro, não se pode continuar a negligenciar direitos a essas pessoas que vendem seu próprio corpo, como se coisa fossem, e busca destacar que, sobretudo são pessoas e, com base nesse contexto, têm-se esclarecimentos para análise do que pode ser feito sobremaneira legal. Tendo-se que o escopo deste estudo, paira sobre a verificação, basicamente, de fundamentos sociais e legais que embasam a importância para regulamentação da atividade exercida pelas (os) prostitutas (os), é feito cotejamento de como é enfrentada essa então, profissão, nestes mesmos fundamentos sociais e legais pelo mundo. Nesse gancho, são analisados os seguintes sistemas mundiais: o proibicionismo, o regulamentarismo e o abolicionista, sendo este último, o sistema adotado atualmente pelo Brasil. Então, é discorrido com maior ênfase acerca do sistema abolicionista, com o questionamento se é a melhor forma de enfrentamento à exploração sexual, ou se seria a regulamentação a melhor medida a ser tomada, e nesse caso, através de lei, que iria restaurar o que há mais importante para uma pessoa independente da profissão ou meio de vida escolhido que a sua dignidade. O fechamento deste trabalho, se dá com a análise dos elementos constituintes cujo objeto lícito ensejam o contrato de trabalho e, com o Projeto de Lei nº 4.211/2012, proposto pelo então deputado federal Sr. Jean Wyllys, e que atualmente encontra-se para apreciação do plenário. A título de esclarecimento, foi adotado neste trabalho, o uso da variação do gênero prostituta ou prostituto, para condizer à ideia de que não há e nunca houve a prática da prostituição somente por mulheres, mas por homens também e, ao colocar prostituta (o) e não prostituto (a), enfatiza que a mulher nesse aspecto está em maior evidência quando o assunto é prostituição.
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Então, o que se espera, é um aproveitamento para compreensão e consequente quebra de paradigmas, tendo-se que a prostituição em si, é uma atividade antiga, e que no avançar social, no amadurecimento das ideias da sociedade e, o que se espera dela, essa atividade perdurou, portanto, cabível a discussão da viabilidade do abolicionismo ou da regulamentação. 2 CONTEXTO HISTÓRICO DA PROSTITUIÇÃO Ao longo da história a prostituição teve seus percalços, marcada de venerações e repúdios, do glamour dos requintados cabarés até a escória da sociedade, de toda forma, é algo indubitavelmente discutível em razão da ausência de direitos. Apesar de ser uma das mais antigas atividades econômicas ou prestação de serviço remunerado, por possuir um aspecto que envolve questões religiosas e de moralidade devido ao puritanismo, durante séculos falar sobre o assunto é algo delicado, principalmente no seio familiar. A palavra prostituta, segundo Regina Navarro Lins em sua obra “A Cama na Varanda: arejando novas idéias a respeito de amor e sexo, quer dizer: “mulher, que pratica o ato sexual por dinheiro”. Como se sabe, a prostituição existe desde sempre, atualmente é estigmatizada, o que talvez seja desconhecido por muitos, é que nem sempre foi assim. Ainda, com a luz da obra de Lins, a prostituição já foi considerada um ato de adoração aos deuses, mulheres faziam sexo com sacerdotes, eram respeitadas, lhes eram oferecidas honras, ocorria das próprias sacerdotisas serem prostitutas. Tratavam-se de mulheres belas, cultas, além de terem influência na política. Segundo o colunista Breno Rosostolato, em seu blog na internet, no texto “A História da Prostituição”, dá sequencia, contando que uma série de fatores possibilitou a inversão dessa imagem, marcado pela chegada do cristianismo e a partir dessa nova percepção a prostituição teve o seu declínio. Já não possuíam mais a mesma valoração, e o ingresso para a vida da prostituição era por motivo de pobreza. O colunista conta ainda que, apesar da repressão pela Igreja, a prostituição, mesmo não possuindo mais o status de outrora, ainda continuava a existir, sendo um dos motivos a necessidade que os homens tinham de manter suas relações extraconjugais, bem como meio de afirmação de sua virilidade, além de satisfazer as necessidades sexuais.
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A Igreja exerceu forte campanha para eliminar a prostituição, pois incentivava as mulheres a não mais se prostituirem para que formassem famílias, no entanto, não teve, sucesso, uma vez que a prostituição já era algo estabelecido. Rosostolato ressalta sobre algo marcante também, que na época da Idade Média, foi a disseminação de doenças, como a sífilis, sendo um dos motivos pelos quais a moral cristã embarcou para eliminar a prostituição. Apesar da influência religiosa, a prostituição continuou a existir, porém de forma clandestina. Fato é que as prostitutas, conclui o colunista, “eram pessoas que colocavam em cheque a moral de uma sociedade e a hipocrisia desta mesma”. Nos estudos feitos, há uma curiosidade histórica levantada pelo Ilmo. Desembargador Guilherme de Sousa Nucci, em uma entrevista dada ao programa de televisão “Programa do Jô” através da emissora Rede Globo, na qual faz vários comentários acerca do seu novo livro sobre este tema, e conta que em determinado momento da Idade Média, a igreja chegou a aprovar um concilio para a legalização da prostituição dizendo ser a salvação do casamento, a prostituição garantia a continuidade do casamento monogâmico, assim os maridos satisfaziam suas necessidades meramente sexuais e o casamento monogâmico era preservado. Neste parágrafo, se percebe a então função social da atividade dos profissionais do sexo. Apesar disso, fato é que o cenário perante a sociedade das (os) prostitutas (os) e o que representam, quase não sofreu, ou se sofreu foram poucas as modificações no que diz respeito ao comportamento discriminatório exercido pela sociedade, e o pior, com direitos fundamentais negados, direitos esses que qualquer pessoa não exercente dessa atividade flui plenamente, no entanto, é como se a prostituição fosse a coisificação do ser humano que a pratica. Visto um pouco do enquadramento das (os) profissionais do sexo ao longo da história, e seus percalços, passa-se então a uma análise da realidade atual das (os) protitutas (os). 3 A REALIDADE ATUAL DAS PROSTITUTAS Superado o contexto histórico das (os) prostitutas (os), de encontro com a realidade, o que se percebe é que a sociedade de um modo geral avançou muito, e a prostituição foi tomando novas formas, tornando-se mais visível e, consequentemente, mais criticada. Hoje, facilmente os profissionais do sexo, nesse caso as mulheres, são vistas nas ruas, inclusive à luz do dia, quanto a prostituição para os homens, também encontrou seu caminho, não tão visivelmente quanto as mulheres, mas é nesse cenário atual que eles, os prostitutos se encaixam. Toda essa visibilidade causa uma espécie de susto na sociedade, ensejando a discriminação desenfreada, uma grande intolerância, resultando por vezes em agressões físicas. Então, a realidade dessas pessoas é maculada ao descaso político que aparentemente não toma medidas protetivas e punitivas contra a discriminação, que pela ausência de regulamentação permite que se continue cada vez mais a exploração sexual. Por não haver um estabelecimento legal onde esses profissionais possam exercer a atividade, recorrem às zonas boêmias com “hotéis” com diárias caras (exploração), com condições insalubres, e sem a menor segurança, inclusive, em casos que são vitimas da própria polícia. O que é preciso entender, é que a prostituição é um fato imutável, razão pela qual, é urgente a necessidade de aprovação de leis que regulamentem essa profissão, já que, enquanto tiver procura, irão existir os prostitutos e não podem ficar a esmo da proteção estatal.
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A importância da regulamentação está em desmarginalizar essa prática, porque em que pese ser uma atividade que é de conhecimento amplo, existe uma discriminação negativa latente, inclusive, que causa vergonha, isso porque a sociedade conservadora prega a moralidade e bons costumes, o que soa falacioso. Não há o que se falar hoje em dia em moralidade nesse aspecto, quando é permitida a veiculação de músicas com dizeres altamente pejorativos no que tange à questão da sexualidade, assim como novelas em horário nobre, que expõem cenas “românticas”, cujo erotismo beira a cenas de sexo quase explícito, sem falar no apelo dos comerciais, bem como filmes de cunho erótico, cuja censura não é efetiva, adolescentes cada vez mais cedo tem a percepção desse mundo. Portanto, é contraditório o espanto causado ao se falar em regulamentação dos profissionais do sexo. Lado outro, porém não apelativo, não é um ponto negativo que a sexualidade esteja à tona, porque diante da falta de esclarecimento sobre o assunto proporcionou, entre outras coisas, a transmissão de doenças sexuais, pelo mero desconhecimento. Dessa forma, a liberdade de falar sobre isso nos dias atuais é um ponto favorável, porque permite o melhor conhecimento sobre o assunto, consequentemente influi na prevenção de doenças e escolhas que fazem, principalmente, os jovens adultos. Por todo o exposto, em relação às condições às quais estão expostos esses profissionais, seja quanto aos locais para exercerem a atividade, seja quanto ao abuso da discriminação, na ausência de proteção, por tudo isso, se faz necessária a regulamentação dessa profissão. Nesse contexto “profissão”, passa-se a demonstrar como é operado em âmbito mundial, como outros países aceitam ou não a prostituição. 4 A PROFISSÃO NO MUNDO – REGULAMENTAÇÃO, ABOLICIONISMO E PROIBICIONISMO A ideia da regulamentação é excelente, há um interesse público social, e para além de benefícios e segurança não só para as (os) prostitutas (os), mas para toda a sociedade, há de restabelecer a essas pessoas o princípio da dignidade da pessoa humana, que é o princípio mais importante e norteador da demais normas, está previsto no artigo 1º, inciso III Constituição Federal de 1988: Art.1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; (Brasil, 1988) A não aprovação do projeto de lei existente ou de qualquer outro que possa trazer uma redação melhorada, significa a permanência do abolicionismo, ao contrário do que a palavra denota, não se trata de eliminação das (os) prostitutas (os). Segundo Mário Bezerra da Silva, em seu artigo publicado na internet “Profissionais do Sexo e o Ministério do Trabalho”, o abolicionismo, sistema adotado pelo Brasil, pela maioria dos países, coloca a prostituta como vítima e que somente exerceria a atividade obrigada por um terceiro, no caso, o explorador, que por sua vez obteria parte dos lucros. Este sistema aplica punição ao dono da casa de prostituição ou daquele que explora, e não a prostituta, sendo àquele a incidir na ilegalidade, conforme disposto no art. 228 pela redação dada na Lei nº 12.015, de 2009: Art. 228 - Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Brasil, 1940)
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Ainda de acordo com o Mário Bezerra, existem outros dois sistemas mundiais no que tange à prostituição, que são o Regulamentarismo e o Proibicionismo, no primeiro, pela própria palavra quer dizer que a profissão é reconhecida e devidamente regulamentada com vários direitos e exigências, dentre eles, contrato de trabalho, aposentadoria, realização de exames. São aderentes deste sistema os países Uruguai, Equador, Bolívia e outros da América do Sul e Alemanha e Holanda, há noticia de que o Brasil já aderiu a este sistema e que as prostitutas eram fichadas através das delegacias. O último sistema, o Proibicionismo, também a teor da palavra, a prostituição é ilegal, com punição para quem a pratique, assim como para a casa de prostituição. O sistema é adotado por poucos países, sendo que os Estados Unidos é participante. Esse sistema é basicamente o seguinte: o Estado decide pelo que a pessoa faz com o seu próprio corpo. Segundo Nucci, na mesma entrevista televisa mencionada anteriormente, fala com maior clareza acerca destes sistemas, nos EUA, por exemplo, a prostituição é proibida, ou seja, em caráter duplo, tanto para prostitutas quanto para os exploradores. Há maior número de agressão sexual, estupro e estupradores em série pela pressão que se forma faz com que as pessoas deem vazão aos instintos. Na França, houve um forte movimento de direita para proibir a profissão, porém não logrou êxito. Na Inglaterra, permite-se a prostituição individual assim como no Brasil, e estão implantando o movimento abolicionista, como já explanado com a punição do cliente. Na Suécia já funciona dessa forma como ocorre na Inglaterra com a punição indireta do cliente. A punição consiste na aplicação de multas, nos casos de reincidência pode até virar uma prisão, o que é surpreendente pela Suécia ser aderente do Direito Penal Mínimo. Nucci fala de forma descontraída, sobre a forma curiosa que ocorria na Itália, que também conta com o sistema abolicionista, ou seja, haviam punições para as pessoas, clientes que se serviam da atividade das prostitutas, nesse caso especificamente mulheres prostitutas, essas punições eram aplicações de multas. Como forma de compensação, caso o cliente fosse multado, as prostitutas por antecipação já lhes entregavam um cupom cor-de-rosa, que dava garantia de um serviço sem custos, como uma espécie de bônus para compensar o pagamento da multa. Alemanha, Austrália, Nova Zelândia já trabalham com a legalização, com o aspecto positivo da prostituição, para as pessoas que não têm acesso ao sexo com facilidade e é uma necessidade, sendo um fator que contribui socialmente. (Nucci, 2014) Ao analisar todo o contexto, a insistência aqui provocada quanto à regulamentação, não é com a pretensão de fazer com que haja um apoio ou uma concordância com a prostituição, e sim de criar uma consciência quanto à realidade vivenciada por essas mulheres e homens, não importando se aderiram a essa a vida por opção, por prazer ou por necessidade, embora, as mais marginalizadas e que sofrem as maiores conseqüências pela falta de direitos, são as mais humildes. 5 A PROFISSÃO NO BRASIL - ANÁLISE DO PROJETO DE LEI 4.211/2012 A CUT – Central Única dos Trabalhadores, possui um coletivo de mulheres que defendem a não regulamentação da profissão das (os) prostitutas (os). De acordo com o artigo “Por que legalizar a prostituição?” publicado no site Causa Operária online, em determinada ocasião as mulheres da CUT se reuniram a fim de um posicionamento referente ao Projeto de Lei de nº 4.211/2012 proposto pelo então deputado Sr. Jean Wyllys, que obteve o seguinte fechamento “Regulamentar a Prostituição é legalizar a exploração do corpo das mulheres”, declaração da Secre-
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tária Nacional da Mulher Trabalhadora da CUT, Roseane Silva. Essas mulheres da CUT que são fatores econômicos que levam as mulheres prostitutas a esta exploração e que um sistema de exploração, no caso o exercício da prostituição, e dessa forma, coloca o corpo das mulheres à disposição dos desejos dos homens, que isso protegeria a exploração sexual e a indústria do turismo sexual. O Projeto de Lei de nº 4.211/12 elenca seis artigos que basicamente dispõe sobre a capacidade de quem poderia exercer a atividade, a exigência do pagamento como contraprestação do serviço sexual, vedação da exploração sexual com imposição de limite percentual do rendimento e em quais modalidades a prestação do serviço poderá ocorrer. Quanto às modalidades em que a prestação de serviço poderá ocorrer, é interessante porque têm a previsão de profissionais liberais, em cooperativa e ainda a possibilidade de autorização de casa de prostituição observada a vedação da exploração sexual previstos nos artigos 228, 229, 230, 231 do capítulo V da parte especial do Decreto -Lei nº 2.848/40 Código Penal. Art. 228. - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. §1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do 1º do artigo anterior: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. §2º - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, além da pena correspondente à violência. §3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa. (Brasil, 1940) Casa de prostituição Art. 229. - Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Brasil, 1940) Rufianismo Art. 230. - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. §1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do 1 do art. 227: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, além da multa. §2 - Se há emprego de violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, além da multa e sem prejuízo da pena correspondente à violência. (Brasil, 1940) Tráfico de mulheres Art. 231. - Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. §1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do 1º do art. 227: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Brasil, 1940) Trata-se de um Projeto de Lei suscinto, que precisa de maior aprofundamento e detalhamento para que possa abarcar maior número de situações e hipóteses, como por exemplo, previsão quanto
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aos limites de disposição do corpo, e também com o intuito de prevenção e resguardo de direitos. Não é esse Projeto de Lei que de início irá resolver a situação das (os) prostitutas (os), inclusive, a aceitação popular do projeto está paritária, de acordo com enquete realizada através do site da revista Carta Capital, toda sorte, é um avanço e precisa de mais atenção e conseqüente aprovação, em consonância com o art. 5ª, XIII, CR/88, que garante a todo brasileiro ou residente no país o direito a qualquer trabalho, atendidas as qualificações legais [...]. O Projeto de Lei nº 4.211/12 no artigo 3º, Parágrafo Único, dispõe que: Art.3º - A/O profissional do sexo pode prestar serviços: Parágrafo Único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não exerce qualquer tipo de exploração sexual. (Brasil, 2012) O artigo acima, traz a previsão da casa de prostituição e, faz apenas a ressalva acerca da vedação da exploração sexual. Seria interessante o artigo trazer em seu texto também, sobre a fiscalização da saúde sanitária para garantir um ambiente higiênico e salubre, ou ao menos fizesse menção que tais requisitos fossem observados por norma regulamentadora. Sugere-se, na eventualidade de regulamentada a profissão, que estes profissionais fossem registrados nessas casas, fariam exames de saúde regulares, inclusive, para maior conforto de quem está contratando o serviço, com obrigatoriedade do uso de preservativo, com circuito interno de segurança, com o registro de entrada e saída de clientes, mas claro, preservando a identidade à terceiros, com fornecimento de nota fiscal para dedução do Imposto de Renda, entre outras benesses. Nesse tocante, do profissional do sexo ter o registro, percebese o vínculo empregatício que se formaria entre a (o) prostituta (o) e o estabelecimento (casa de prostituição), pois de acordo com o art. 3º da CLT é empregado àquele que presta serviço de natureza não eventual, com subordinação e mediante salário. De forma análoga, só reafirma a evidência de ser uma profissão. Assim, não seria mais um constrangimento uma pessoa buscar um profissional do sexo e definitivamente não há nada de errado com isso, as pessoas são livres para suas escolhas. Outro ponto, é a possibilidade do surgimento de sindicatos para defender e conquistar mais direitos para a classe. Atualmente existe em Belo Horizonte/MG a APROSMIG – Associação das Prostitutas de Minas Gerais, que serve de apoio para orientação as mulheres prostitutas e realiza trabalho de educação sexual e presta amparo. A APROSMIG está localizada no centro da cidade, na zona boêmia e, de acordo com a Revista Ragga (out. 2012: 42-44), circulam cerca de 600 prostitutas, que cobram pelo programa por volta de R$ 10,00 a R$ 15,00, e ainda, têm que pagar pela diária do “hotel” onde atendem os clientes a média de valor de R$ 60,00. As prostitutas têm faixa etária variável entre 18 até 60 anos, tais dados são reais e absurdos, motivo qual a regulamentação faz-se extremamente necessária. Portanto, a legalização é imprescindível para evitar a atividade clandestina, porque a não regulamentação, acaba por fomentar a altíssima discriminação e deixa o canal aberto e mais fácil para exploradores e consequente agressões. 6 ELEMENTOS DO CONTRATO DE TRABALHO Outra razão para a regulamentação da profissão das (os) protitutas (os), são os elementos de contrato de trabalho presentes nessa atividade.
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Assim conceitua Godinho: A CLT aponta esses elementos em dois preceitos combinados. No caput de seu art. 3º: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviço de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Por fim, no caput do art. 2º da mesma Consolidação: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalria e dirige a prestação pessoal de serviços”. Tais elementos são, portanto: trabalho não eventual, prestado “intuitu personae” (pessoalidade) por pessoa física, em situação de subordinação, com onerosidade. (Godinho, 2011) Nesse diapasão, tanto a pessoa física, no caso um cliente, ou pessoa jurídica, na hipótese de casa de prostituição, são tomadores de serviços das atividades prestadas pelas (os) prostitutas (os). Portanto, tem-se que as (os) prostitutas (os) constituem na atividade exercida todos os elementos caracterizadores do contrato de trabalho e, nesse ponto, a não regulamentação maculam o texto legal. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS É sabido que as leis são criadas de acordo com os anseios da sociedade e, exatamente dessa forma que ao longo dos anos o povo dispõe de vários direitos que foram duramente conquistados, ainda que exista a discussão sobre a efetividade de alguns direitos, é importante que sejam regulamentados e portanto exigíveis quanto a aplicação. São razões que embasam veemente questionamentos do porquê que a prostituição, dada a evolução da sociedade e a falta de pudores com o assunto “sexo”, conforme foi demonstrado, ainda é algo tão intocável, e assim permite-se a exploração de forma velada. Assim, a abordagem buscou os posicionamentos, prós e contra à regulamentação, em cotejo ao Projeto de Lei nº 4.211/12 proposto pelo deputado Jean Willians e o posicionamento das mulheres da CUT – Central Única dos Trabalhadores. Desvendados, portanto, os sistemas mundiais sobre a prostituição que são a regulamentação, abolicionismo e o proibicionismo, com fins de melhor esclarecimento, objetivando a quebra de paradigmas sociais. A dissecação, então, pautou-se na real compreensão do mundo e da vulnerabilidade dos profissionais do sexo, e a desmistificação do tabu que a prostituição não seria uma profissão, uma vez que serão perceptíveis os elementos que caracterizam uma relação de emprego no caso celetista ou de trabalho liberal, possibilitando a conclusão de forma abrangente e esclarecedora. A pretensão é o que o resultado dessa moderna e polêmica pesquisa, mas cujo objeto remonta à antiguidade, foi trazer elementos técnicos e legais que corroboram o entendimento par aque seja regulamentada a profissão das (os) prostitutas (os). A prostituição é uma questão social relevante tendo-se em nota a sua existência antes de Cristo e, que até o presente momento não houve regulamentação, não se sabe se por desinteresse político social ou a existência de outras prioridades. Fato é, que pela grandiosa importância histórica e também contemporânea da prostituição é que foi vislumbrado o interesse para e para escrita destas espinhosas linhas, para que seja enfim regulamentada com a devida valorização e, sobretudo respeito.
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; é professora do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ** Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo; Daniela Lage Mejia Zapata.
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AÇÃO POPULAR AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO DE CIDADANIA Thiago Oliver Pereira1 Maraluce Maria Custódio2 Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo tem como objeto mostrar o instituto da ação popular no âmbito ambiental, como instrumento de cidadania. O seu objetivo é de anular atos lesivos ao patrimônio público, bem como instituições que o poder público tenha participação ou ainda postergar a moralidade administrativa Serão demonstradas legislações ambientais, políticas de proteção ao meio ambiente e todo o conjunto necessário para que proteger o patrimônio ambiental, através de uma ação popular. PALAVRAS CHAVES: Ação Popular, Cidadania, Direito Ambiental, Meio Ambiente, Políticas ambientais. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2 Histórico da Ação Popular; 3 Legislação Brasileira acerca da Ação Popular; 4 Proteção do Meio Ambiente Brasileiro; 4.1 Políticas Ambientais no Brasil; 4.2 Educação Ambiental; 5 Aplicação dos princípios da precaução e prevenção na preservação do meio ambiente; 6 Preceitos da Ação Popular e Aplicabilidade; 6.1 Natureza Jurídica; 6.2 Objeto; 6.3 Partes; 6.4 Competência; 6.5 Procedimento; 6.6 Sentença; 6.7 Jurisprudência; 7 Meio Ambiente e Cidadania; 8 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Sob a ótica dos interesses das civilizações e seu desenvolvimento ao longo da história, serão mostradas as frequentes transformações dos pensamentos e preocupações em relação ao patrimônio ambiental equilibrado. Ao interpretar a sociedade contemporânea brasileira e mundial, é nítido observar o aumento do interesse em relação às questões ligadas ao meio ambiente, principalmente a defesa dos direitos difusos exercida pela sociedade. O presente trabalho tem por objetivo a análise e também o estudo sobre a ação popular ambiental no Brasil, ferramenta processual assegurada a todos os cidadãos para defender os direitos difuso, principalmente o meio ambiente tema relevante do nosso estudo. A questão sobre esse instrumento popular, já garantido pelo ordenamento jurídico, é a baixa usualidade por parte da sociedade em querer proteger o nosso meio ambiente. A Constituição Federal de 1988 estabelece o dever da sociedade na preservação ambiental, pois a Lei Maior, entende que o meio ambiente é um bem fundamental para a vida da população, o que o torna um bem de uso comum do povo (FIORILLO, 2002). Assim, torna essencial que também seja analisado a concepção da cidadania demonstrando a sua ligação direta com patrimônio ambiental, através da participação comunitária e as peculiaridades legais vinculadas ao a ação popular. O problema desse instrumento surge em relação a sua aplicabilidade no direito ambiental em face do judiciário. Nesse contexto é importante compreender o que a lei brasileira proporciona para o cidadão intentar com a ação popular ambiental, fazendo com que esse remédio constitucional fortaleça ainda mais a preservação ambiental. Para o alcance dos objetivos desse trabalho, foram adotados uma metodologia com base em pesquisas bibliográficas, acesso aos Tribunais de Justiça dos Estados do Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do sul, através de seus portais eletrônicos, para encontrar elementos quantitativos que pudessem demonstrar a como esse instrumento funciona na prática jurídica. O mencionado estudo foi organizado de maneira bem objetiva, iniciando seu conteúdo mostrando a evolução histórica da ação popular no mundo e no Brasil, relatando suas origens e suas transformações no tempo. O trabalho aborda a legislação brasileira acerca da ação popular e destaca a proteção do nosso meio ambiente, por meios legais, políticas ambientais e educação ambiental. LETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
Em sequência, destaca-se os preceitos da ação popular, demonstrando suas peculiaridades no processo, bem como, natureza jurídica, legitimados, objeto, partes, competência, procedimento, sentença e jurisprudência acerca das discussões sobre o tema. Ao final, relata-se sobre uma questão de suma importância, a cidadania, demonstrando o quanto esse meio é efetivo para garantir e proteger a nossa natureza. Essas curtas observações, nos proporcionam um levantamento em relação aos problemas ambientais, para uma melhor concepção da importância da cidadania ambiental no nosso ordenamento jurídico. 2 HISTÓRICO DA AÇÃO POPULAR A ação popular teve seu surgimento no Direito Romano, na qual era denominada de actio popularis. Esse remédio constitucional era atribuído a qualquer cidadão (do povo), como ferramenta para defender os interesses de toda a coletividade (FIORILLO, 2010). No berço do Direito, em Roma, esse instrumento com o tempo, se tornou uma excepcionalidade em relação ao direito de ação, pois a natureza jurídica da ação é individualizada, não autorizando nenhuma pessoa defender os direitos de outrem, salvo se for a favor da coletividade. Esse instituto popular, embora almeje o ressarcimento, não integra os bens do ofendido, visto que a ação popular busca defender o interesse do povo. Entretanto, sabendo da possibilidade da ação popular ser impugnada por qualquer cidadão, deve ser observado algumas características peculiares que reduzem esse direito, bem como a legitimidade ativa e fato de que somente pessoas íntegras poderiam propor esse instrumento popular. Veio à queda do Império Romano, surgindo o feudalismo (direito medieval), as ações populares não sobreviveram a essa transição. A consequência da era feudal não concedia nenhum tipo de instrumento ao cidadão, para que ele pudesse defender a res publica. No sistema feudal não era admitido nenhuma forma de superioridade em relação ao senhor feudal, não existindo nenhuma forma do cidadão sobressair em busca dos seus direitos. Mesmo a ação popular não sendo utilizada no feudalismo esse instituto sobreviveu a essa época, pois era usado em alguns reinos mediterrâneos, como por exemplo, França e Reino Unido No direito moderno e contemporâneo, as ações populares reacenderam suas chamas e ganharam uma força jurídica resistente, pós-feudalismo, no ano de 1836 na Bélgica. Posteriormente outros países como
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Espanha, Portugal, França, também ratificaram a ação popular em seus ordenamentos jurídicos, enaltecendo a concepção de cidadania e democracia, erguendo todos os direitos do povo esquecidos no era feudal. A Itália teve seu pape fundamental no fortalecimento das ações populares, ao possibilitar o cidadão propor esta ação no que tange a matéria eleitoral. A ação popular em sua trajetória se solidificou e mantém em absoluto vigor nos estados democráticos. A participação da sociedade na defesa do bem de uso comum do povo, bem como os direitos difusos, foi um reflexo de toda a evolução da actio popularis, com tendência ao crescimento posto que este instrumento popular tem como objetivo destituir atos lesivos e punir os responsáveis a repor, quando possível, o dano causado ao bem da coletividade. No Brasil ação popular teve seu início desde a primeira Constituição vigente no Estado Brasileiro, a Constituição do Império de 1824. As demais constituições publicadas posteriormente na história do país, também recepcionaram esse instrumento, exceto as constituições de 1891 e 1937. As alterações da ação popular no decorrer das atualizações constitucionais brasileira foram mínimas, visto que o Brasil ao se tornar República em 1889, sempre deu ênfase a participação da sociedade na luta pelos seus direitos. 3 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ACERCA DA AÇÃO POPULAR Essa garantia constitucional que existe em nosso ordenamento jurídico, foi adquirida inicialmente na Constituição de 1934, no qual estava expressa no capítulo que se tratava das garantias e direitos individuais, conforme “rt.113 38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios” Com a redução dos direitos individuais na Constituição Federal de 1937, a ação popular tornou-se distante dessa lei maior mencionada. Foi somente em 1946, que esse instrumento ressurgiu e ganhou um novo escopo jurídico que em nenhuma constituição no Brasil até aquele momento havia sido proposto. Surgiu uma nova concepção da ação popular aumentando ainda mais o seu alcance, conforme nos traz o artigo 141, § 38 da referida Constituição. Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:(..) § 38 - Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988, ARTIGO 141, s/p). Em 1965, no dia 29 de maio, foi promulgada a Lei 4.717, onde tal legislação chamada de Lei da Ação Popular, atribui a esse instituto a necessidade de propositura da ação no rito ordinário, e também inúmeras modificações visando uma melhor adaptação dos objetivos que almeja a Constituição. A Constituição da República de 1988, contudo, recepcionou em seu escopo jurídico e consolidou da ação popular como sendo um direito e garantia, que está positivado no artigo 5º, LXXIII: Art. 5º (...) LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando
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o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988, ARTIGO 5º, s/p). A Magna Carta ao positivar o instituto da ação popular em seu ordenamento jurídico, ela tão-somente solidificou esse meio processual, sem se valer de nenhuma atualização, visto que já existia previsão legal de tal ação, regulamentada pela Lei 4.717 de 29 de junho 1965. A Lei da Ação popular, 4.717/65 em seu artigo 1º, traz a seguinte definição: Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista, de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos (LEI DA AÇÃO POPULAR, n. 4.717 de 1965, ARTIGO 1º, s/p). Essa legislação peculiar da ação popular, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, além de trazer todo o seu procedimento, bem como a legitimidade, competência, cabimento, sujeitos, atenta que a ação para que ela possa ser admitida como popular, deve ser observados todos os procedimentos legais e específicos. Destaca-se ainda, que mesmo a ação popular possuindo uma legislação própria regimental, é preciso utilizar de maneira subsidiaria os princípios e estrutura jurídica do Código de Processo Civil, por entendimento de que mesma possui cunho de ação civil, apesar de ser coletiva. Acerca da ação popular, ela tem a proeminência de não se resumir simplesmente em um meio de garantir os direitos fundamentais e o dever da sociedade na defesa do patrimônio público, mais também de proporcionar o exercício máximo de cidadania. A ação popular é o instrumento de direito processual constitucional colocado à disposição do cidadão como meio para sua efetiva participação política e tem por finalidade a defesa da cidadania (SIQUEIRA JR, 2012). É inevitável reconhecer a ação popular como um remédio constitucional, um verdadeiro instrumento democrático, visto que a sua estrutura atesta ser uma ferramenta autêntica em função da democracia. A Constituição da República de 1988, de forma zelosa, concedeu a ação popular o seu devido reconhecimento, positivando-a na lista de garantias fundamentais, permitindo que esse meio processual seja utilizado por qualquer cidadão. Tal carta constitucional demonstrou o quanto é importante a utilização desse instrumento jurídico pela população para a proteção do patrimônio ambiental, visto que a muitas décadas o Brasil buscou proteger o meio ambiente mas somente na Lei Maior de 1988 quando a mesma dedicou um capitulo exclusivamente para esse problema, efetivando ainda mais ação popular na matéria de defesa ambiental. Nota-se que os preceitos relacionados ao meio ambiente não estão somente presente no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, existem também inúmeras normas que defendem o nosso patrimônio ambiental, onde a necessidade de proteger a natureza é o imenso desafio a ser alcançado, para resultar em uma harmonia sustentável entre o homem e meio ambiente.
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4 PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE BRASILEIRO A proteção e preocupação com a preservação ambiental é uma realidade atual em todo o mundo, bem como no Brasil. A Constituição da República de 1988 traz um fortificado suporte jurídico quando se trata da necessidade de resolver os problemas ambientais. O legislador decidiu dar ênfase a essa matéria, por considerar o meio ambiente como um bem difuso e essencial para a qualidade de vida das pessoas, dando a ele uma identidade própria. O artigo 225 da Constituição Federal aduz de forma cristalina o que foi anteriormente dito, no qual o dispositivo assegura que todas as pessoas: Têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para os presentes e futuras gerações (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988, ARTIGO 225, s/p). Ao interpretar o caput desse artigo é nítido compreender a ideia do legislador de elevar o meio ambiente e fazer dele, um direito fundamental da pessoa humana, e ainda reconhecer esse direito não somente de brasileiros ou estrangeiros, mas sim de todos aqueles que se encontram dentro do território nacional. Tal interpretação nos remete ao direito a vida sadia e com qualidade, para todas aqueles que vivem no Brasil, independente de sua nacionalidade. Machado (2002, p. 46) “Não basta viver ou consagrar a vida. É justo buscar e conseguir a qualidade de vida”. O Direito Ambiental constituiu normas e princípios voltados unicamente para a proteção ambiental e principalmente para efetivar a qualidade de vida de todos os cidadãos, devendo ser compreendida como circunstância duradoura no que se refere às condições humanas, estas relacionadas a saúde, educação e também ao próprio meio ambiente. Na legislação brasileira o conceito legal de meio ambiente, esta previsto no artigo 3º, da Lei 6.938/81, que expressa que o meio ambiente é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Leite (2004) nos ensina sobre o Direito Ambiental: Se ocupa da natureza e futura gerações nas sociedades de risco, admitindo que a projeção dos riscos é capaz de afetar desde hoje o desenvolvimento do futuro, que importa afetar, portanto, as garantias do próprio desenvolvimento da vida (LEITE, 2004, p. 80). A preservação ambiental é extremamente importante por causa das atividades humanas, o Estado hoje na esfera ambiental, tem o dever de agir e atuar em conjunto com a sociedade, para proteção e principalmente a conservação do patrimônio natural. O controle ambiental é a única solução para assegurar o meio ambiente equilibrado e consequentemente resguardá-lo para atuais e futuras gerações conforme os fundamentos constitucionais. O instituto da ação popular traz prerrogativas ao cidadão para que ele em conjunto com o poder público, exerce também o controle ambiental, quando a ele é permitido, contestar judicialmente os atos que o mesmo considerar prejudiciais ao patrimônio ambiental. A sociedade exercendo seus direitos por meio da ação popular vão garantir a todos uma condição melhor de vida, para atuais e futuras gerações. 4.1 Políticas Ambientais no Brasil A necessidade e a urgência de preservar o meio ambiente, fez com que o Brasil estabelecesse mecanismos legais para garantir a sua conservação. A partir da segunda metade do século XX a prote-
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ção ambiental vem ganhando força, principalmente após a Organização das Nações Unidas (ONU), realizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente de Estocolmo, em 1972 que teve como propósito a conscientização da sociedade para melhorar a convivência com o meio ambiente e também suprir as necessidades da sociedade atual sem atrapalhar as futuras gerações. O Brasil começa a sentir os reflexos desse acontecimento, reconhecendo a necessidade de políticas ambientais com gestões apropriadas com maior rigidez e êxito, voltadas exclusivamente para o meio ambiente. No ano de 1973 foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), para alcançar uma gestão integrada de desenvolvimento sustentável e garantir a preservação e conservação ambiental. O principal respaldo dos debates internacionais no Brasil se concretizou com a publicação da Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981, onde instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), o grande marco da gestão ambiental, criando o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISAMA). Este tem como objetivo principal assegurar o desenvolvimento sustentável, por meio de mecanismos que proporcionarão uma melhor qualidade no meio ambiente do Brasil, conforme ensinamentos do Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2001). Através desses institutos e instituições regidos pelo órgão publico, buscam harmonizar as condutas humanas em relação à sociedade, bem como as biológica e de ordem física, para que a população tenha uma qualidade de vida excepcional. Dessa maneira, almejam assegurar uma alta qualidade dos elementos que atendam as necessidades do cidadão com o objetivo de serem aceitos pela sociedade. Nas questões relacionadas ao meio ambiente o Estado, precisa exercer o papel de fiscalizador e prevenir a lesão ambiental, esse é seu papel e obrigação constitucional. As políticas ambientais adotadas no Brasil nos mostra uma nítida vontade de mostrar a população o tão-quanto é importante cuidar da natureza e tudo aquilo que ele nos proporciona. Não há de se falar em uma vida saudável, se o nosso patrimônio ambiental não for equilibrado. O Poder Público busca a preservação do meio ambiente a todo momento, mais precisa levar esse conceito para a sociedade, para que saibam e possam exercer a proteção desse direito difuso. 4.2 Educação Ambiental A educação ambiental é um fator preponderante quando o assunto é preservação ambiental. Lidar com a magnitude dos problemas causados ao meio ambiente necessita de uma abordagem ampla e que exige conhecimentos a respeito do assunto. O doutrinador Séguin (2006, p. 109) nos ensina, que a Educação Ambiental é imprescindível na “fixação de uma política ambiental nos países em desenvolvimento. Foi recepcionada no art. 225, § 1º, VI, da CF, que determina ao Poder Público, a promoção da Educação Ambiental em todos os níveis de ensino”. A Lei Federal 9.795/99, na redação do seu artigo 1 º dispõe: Art. 1º Entende-se por Educação Ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade (LEI FEDERAL, N. 9.795 DE 1999, ARTIGO 1º, s/p). A educação ambiental deve ser entendida como um mecanismo de aprendizagem que demonstra os valores e as ações que devem ser realizadas para a formação do homem perante a sociedade e também em relação a preservação ambiental. Ela desempenha papel fundamental na criação do conhecimento, por instruir a sociedade sobre a importância da proteção dos direitos difusos, bem como alcançar a ideia da consciência e da cidadania. Ressalta-se que a informação sobre o meio ambiente, é um
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mecanismo de muita relevância, visto que ela vai mostrar ao cidadão, de que zelar pela conservação do nosso meio ambiente não é apenas função do Estado, mas de toda a população. O direito de participação comunitária na proteção do meio ambiente, está na mesma direção das informações ambientais que o cidadão precisa conhecer. A participação comunitária é um princípio que norteia o Direito Ambiental, onde o mesmo concede a sociedade à responsabilidade pela preservação ambiental, fazendo com que o cidadao exerça a função de coadjuvante na guarda dos problemas do meio ambiente. De fato, o acesso as informações fazem com que a população tenha condições para exercer e atuar de forma mais intensa nas questões ambientais. 5 APLICAÇÃO DOS PRINCÍPOS DA PRECAUÇAO E PREVENÇÃO NA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE No contexto do Direito Ambiental, os princípios exercem as mesmas atividades de análise das normas legais, para que haja um equilíbrio no ordenamento jurídico. A aplicação dos princípios ambientais da precaução e da prevenção tem papel fundamental na preservação ambiental, visto que sua finalidade principal é de resguardar esse direito difuso, bem como, instruir toda a coletividade a não praticar um dano e consequentemente gerar efeitos negativos. Ambos os princípios ambientais foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, e estão previstos no artigo 225, parágrafo 1º, inciso V, e também pela Lei 6.938/81, Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, positivados no artigo 4º, incisos I e V. O princípio da prevenção está fundamentado em nossa Lei Maior, no qual o mesmo é quem vai propor que crie políticas públicas em defesa do meio ambiente, pelo fato do descontrole em relação a degradação dos recursos ambientais. Está presente no caput do artigo 225 da Constituição da Republica, quando se faz leitura do dispositivo e se encontra que é dever do Poder Público e também da coletividade , preservar e proteger o meio ambiente para a as presentes e futuras gerações. Esse princípio está incorporado em todas as politicas públicas ambientais e é o que mais está incorporado em toda legislação ambiental. A prevenção ela é muito mais importante e essencial do que responsabilizar o agente causador do dano ambiental (BENJAMIN, 1993). Muita das vezes a lesividade ao meio ambiente não pode ser recuperada, e se possível, ocorre de maneira lenta e com um custo muito alto, de maneira que a prevenção é de suma importância para evitar que a lesão ao meio ambiente ela não ocorra e dessa forma não seja necessário a sua recuperação. Tal princípio é usado no que tange aos impactos sofrido pelo meio ambiente e na necessidade de criar medidas protetivas para preservar e impedir que o dano ambiental aconteça. O princípio da precaução assegura a proibição de qualquer intervenção ambiental, salvo se a mesma demonstrar certeza que não irá causar nenhuma consequência adversa ao meio ambiente. Este princípio é sinônimo do princípio da prevenção, visto pela grande semelhança e ligação existente entre esses dois princípios. Assim, Machado (2001) nos ensina que: No princípio da prevenção previne-se porque se sabe quais as consequências de se iniciar determinado ato, prosseguir com ele ou suprimi-lo. O nexo causal é cientificamente comprovado, é certo, decorre muitas vezes até da lógica. No princípio da precaução previne-se porque não se pode saber quais as consequências que determinado ato, ou empreendimento, ou aplicação científica causarão ao meio ambiente no espaço e/ ou no tempo, quais os reflexos ou consequências. Há incerteza científica não dirimida (MACHADO, 2001, p. 48). A cooperação do Estado em conjunto com a sociedade, por
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meio da participação dos grupos sociais diversos, na criação e aplicação de políticas públicas voltadas ao meio ambiente é essencial para que se alcance o efetivo sucesso desses princípios. Quando o Estado não conseguer fazer com que a população conheça o princípio da precaução bem com o principio da prevenção, posto que os mesmos não possuem previsão legal , o nível de degradação ambiental cresce gradativamente, e o controle ambiental deixa de ser efetivo. 6 PRECEITOS DA AÇÃO POPULAR E APLICABILIDADE A ação popular possui legislação própria, como já citado anteriormente. Esse instrumento é regulado pela Lei 4.717 de 29 de junho de 1965, que permite qualquer cidadão fiscalizar os atos do Pode Público, e também anular todos os atos que causem lesão ao Patrimônio Público. 6.1 Natureza Jurídica O instituto da Ação Popular tem natureza jurídica desconstitutiva e também condenatória, ligada a um processo de cognição, no qual tem como conjectura e análise jurídica o dano. Esse processo de conhecimento ligado à ação popular, primeiramente irá fazer verificação e somente depois decretará o dano, através de provas demonstrada pelo autor da ação. É somente dessa forma que o cidadão, que impugnar a ação, irá atingir a verdadeira finalidade desse pleito. A natureza pode ser ainda processual constitucional, pelo fato de instituir tal ação como garantia fundamental de todos os cidadãos, vinculada à efetivação do direito de proteger e assegurar os interesses coletivos. A natureza jurídica na ação popular é uma questão de extrema importância para determinar qual procedimento deve ser seguido, e assim alcançar a sua finalidade. 6.2 Objeto O objetivo da Ação é anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência, sempre que esse ato violar todos os princípios que regulam a Administração Pública, principalmente os positivados no artigo 37 da Carta Magna “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. O objeto de defesa da ação popular, está conectado diretamente com pedido postulado, já que o mesmo fomenta a matéria do que esta sendo pleiteado, ou seja, busca a proteção da justiça por meio de uma decisão com base nos direitos. Logo, o objeto do artigo 1º da Lei da Ação Popular, fortificado pelo artigo 5°, em seu inciso LXXIII da Constituição da República. Em síntese, o objeto dessa ação é acontecimento real e concreto que lesionará o patrimônio público, meio ambiente e a moralidade administrativa, Nesse contexto, Jose Afonso da Silva (2007, p.100) expressa que o objetivo basilar da ação popular é a manutenção do princípio da moralidade na conduta dos poderes públicos ou das entidades privada, relativamente à gestão do patrimônio público. Assim o objetivo imediato da ação popular é obter uma decisão que desfaça o ato causador da lesão ao patrimônio publico. 6.3 Partes Ao explorar sobre legitimidade ativa dessa ação, é fundamental conhecer o que a Lei Brasileira traz sobre o conceito de cidadão. O artigo 1°, inciso III da Lei 4.717 de 1965, conhecida com Lei da Ação Popular, compreende que para ter legimitidade ativa, é obrigatória a provação de
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cidadania, através de apresentação do título de eleitor ou qualquer documento equivalente. Não seria suficiente ser apenas brasileiro intentar essa ação, é necessário que se prove a condição de cidadão, ou seja, estar em situação regular com suas obrigações e deveres eleitorais. No que tange ao sujeito ativo, este pode ser qualquer cidadão, pessoa física, desde que esteja em dia com seus direitos políticos, conforme previsto legalmente no artigo 1° da Lei 4.717/65. Quanto a legitimidade do sujeito passivo, regulamentada pelo artigo 6° da Lei da Ação Pena 4.717/65, este pode ser, pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, todas as autoridades públicas positivas no artigo 1° da referida lei e também aqueles agentes públicos de alguma forma participaram do ato lesivo ao patrimônio público. 6.4 Competência Primeiramente, é de suma importância destacar que a ação popular, sempre será proposta na justiça comum (1° grau) no foro do local onde ficou comprovado o dano, tornando-se assim, o juízo competente. É necessário identificar quem cometeu o ato lesivo, para que seja possível determinar a competência. Na Lei 4.717/65, no artigo 5°, ele expressa, que ao se tratar de Município e Estado, a competência será definida conforme a estrutura do judiciário do Tribunal Estadual. Mais no caso de uma lesão de bens da União, terá sua competência compreendida pelos ensinamentos do dispositivo 109 da Constituição Federal de 1988. 6.5 Procedimento A ação popular é auxiliada pelo rito ordinário previsto no código de processo civil, mas a Lei 4.717/65, traz algumas peculiaridades, no que tange ao seu procedimento e seus prazos. Essa ação ainda é passível de pedido liminar se presentes os requisitos do fumus bonis iuris e o pericullum in mora quando o ato lesivo precisa ser urgentemente reparado. O preparo e as custas processuais da ação popular, serão compromisso dos litigantes no término do processo. Se o autor propor a ação de má-fé, recairá sobre o mesmo, as custas judiciais e também o ônus da sucumbenciais. O valor da causa, será determinado na sentença, onde que o valor do dano deve ser comprovado durante o processo, conforme artigo 14 da Lei 4.717/65. 6.6 Sentença O processo da ação popular sendo ação julgada procedente, o ente público estará obrigado a reparar todo o dano causado pelo ato praticado, de modo que o ocorrido seja desfeito e volte para a situação anterior, não sendo possível, responderão os entes com seus patrimônios, podendo os mesmos se valer da ação de regresso em face de seus agentes públicos e também dos favorecidos pelo ato lesivo praticado. No caso da sentença ser contrária a pretensão do autor, e a mesma já tiver transitado em julgado, certificando que não houve má-fé por parte do sujeito ativo, este está isento das custas processuais, bem como honorários. A sentença da ação popular gera efeitos erga onmes, Esse ato processual tem efeitos erga omnes (art.18 da Lei de Ação Popular), a decisão terá efeito vinculante, ou seja, servirá para todos. No caso de uma nova ação ser proposta com os mesmos fundamentos, esta será declarada nula. 6.7 Jurisprudência A jurisprudência nos traz concepções diversas sobre o tema. Nesse momento é conveniente mostrar alguns entendimentos e posionamentos dos nossos tribunais, acerca da ação popular. TJRS - EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO POPULAR. REQUISITOS DA AÇÃO. ILEGALIDADE E LESIVIDADE. AUSÊNCIA. A
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ilegalidade e a lesividade são requisitos processuais da ação popular que não foram demonstradas pelo autor popular, impondo-se a manutenção da decisão que julgou extinta a ação, sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC. APELO DESPROVIDO (RIO GRANDE DO SUL, Apelação Cível Nº 70022682504, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 21/12/2007). STF - Os atos de conteúdo jurisdicional — precisamente por não se revestirem de caráter administrativo — estão excluídos do âmbito de incidência da ação popular, notadamente porque se acham sujeitos a um sistema específico de impugnação, quer por via recursal, quer mediante utilização de ação rescisória. (...) Tratando-se de ato de índole jurisdicional, cumpre considerar que este, ou ainda não se tornou definitivo — podendo, em tal situação, ser contestado mediante utilização dos recursos previstos na legislação processual —, ou, então, já transitou em julgado, hipótese em que, havendo decisão sobre o mérito da causa, expor-se-á à possibilidade de rescisão (...) (BRASIL, Pet 2.018-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-8-00, DJde 16-2-01”. A ação direta de inconstitucionalidade não constitui sucedâneo da ação popular constitucional, destinada, esta sim, a preservar, em função de seu amplo espectro de atuação jurídico-processual, a intangibilidade do patrimônio público e a integridade do princípio da moralidade administrativa (CF, art. 5º, LXXIII) (BRASIL, ADI 769-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-4-93, DJ de 8-4-94). Súmula 101 – STF: O mandado de segurança não substitui a ação popular (BRASIL, edição: imprensa nacional, 1964, p. 67). TJMG - Relator: CARREIRA MACHADO; Data do Julgamento: 06/11/2003; Data da Publicação: 09/03/2004; Número do processo: 1.0000.00.296475-7/000(1). Ementa: “AÇÃO POPULAR - QUALIDADE DE CIDADÃO - ILEGALIDADE DO ATO IMPUGNADO - LESIVIDADE LEGALMENTE PRESUMIDA - REQUISITOS CABALMENTE DEMONSTRADOS - NULIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO E RESSARCIMENTO AO ERÁRIO PÚBLICO MUNICIPAL”. Ao desenvolver o procedimento licitatório em desacordo com as regras disciplinadas na lei geral de licitação, prejudicou a Administração Pública uberabense a realização de uma concorrência sadia e vantajosa para a sociedade, de maneira a propiciar proposta mais interessante e consoante com o interesse público. Não há de se falar, “in casu”, em irregularidades meramente formais, uma vez que a Lei 8.666/93 traçou regras inteiramente formais e rígidas pra a realização do procedimento licitatório, de forma a ensejar a escolha da proposta mais vantajosa e a possibilitar a participação equânime de todos que se interessarem em contratar com o Poder Público, sempre visando o interesse da coletividade. A forma como foi desenvolvida o procedimento licitatório impediu ou ao menos dificultou a participação de eventuais interessados, já que não foram respeitados os prazos e atos tidos como necessários pela legislação pertinente. Não se admite a ocorrência de sucessivos vícios formais em uma licitação de tamanho vulto e de extrema relevância para a comunidade do Município de Uberaba. Restaram devidamente preenchidos os requisitos necessários à propositura da ação popular. A lesão não necessita ser efetiva, podendo dar-se de forma presumida, desde que legalmente prevista. Esclarecedores são os ensinamentos
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do mestre Hely Lopes Meirelles a respeito, afirmando que “ essa lesão tanto pode ser efetiva quanto legalmente presumida, visto que a lei regulamentar estabelece casos de presunção de lesividade (art. 4º), para os quais basta a prova da prática do ato naquelas circunstâncias para considerar-se lesivo e nulo de pleno direito (MINAS GERAIS, 2003). Tribunal de Justiça do Maranhão Processo nº. 13691996 Acórdão: 0397912002; Relator: JORGE RACHID MUBÁRACK MALUF Órgão: MIRADOR Processo: APELAÇÃO CÍVEL Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO Popular. IMPROCEDÊNCIA. ATO LESIVO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO OU À MORALIDADE. NÃO-COMPROVAÇÃO. I - A Ação Popular é instrumento de exercício da soberania Popular, pois confere ao cidadão a possibilidade de exercer, de forma ativa, a atividade fiscalizatória do Poder Público. II - Constituindo sua finalidade a Invalidação e desconstituição de ato administrativo lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, a não-demonstração de sua ocorrência acarreta a improcedência da Ação. III - Apelo conhecido e improvido (MARANHÃO, 2008). Os entendimentos jurisprudenciais citados anteriormente, são plausíveis e estão em consonância com a Lei da Ação Popular 4.717/65. Na jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Egrégio Tribunal, entendeu que além da ilegalidade sobre o ato praticado, a lesividade também se torna condição obrigatória processual da ação popular. A maior instância do poder judiciário, o Supremo Tribunal Federal, decidiu pela exclusão dos atos de matéria jurisdicional da ação popular, o Tribunal ainda disse que ação popular não pode ser substituída por uma ação direita de inconstitucionalidade, e concedeu uma maior liberdade as garantias fundamentais positivadas no artigo 5º, LXXIII, da Constituição Federal ao publicar a súmula 101 “O mandado de segurança não substitui a Ação Popular’’. O Tribunal de Justiça mineiro tem em seu entendimento de que, a lesividade pode ser presumida, mas a mesma deve estar prevista na legislação, sem necessidade de eficácia. Já a compreensão jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Maranhão, que a ação popular, atribui ao sujeito ativo a alternativa de exercer uma função de fiscalizar o ente público, consagrando assim esse remédio constitucional um instrumento popular soberano. Os Tribunais decidem nos tramites legais, e buscam a todo instante facilitar a utilização do instituto da ação popular, permitindo que o cidadão se sinta mais esperançoso em relação ao processo. 7 MEIO AMBIENTE E A CIDADANIA A cidadania deve ser entendida de forma clara como sendo uma ligação política entre o Estado e o indivíduo, no que tange o exercício dos direitos e também de seus deveres sociais, civis e políticos. O conceito de cidadão surgiu na Grécia, onde esse termo traduz a idéia de uma pessoa que vive na cidade e exerce todas as suas atividades nesse lugar. A Constituição Federal de 1988 permitiu que o cidadão, participasse efetivamente da vida social. A Lei Maior, ao tratar de matéria ambiental, estabeleceu a oportunidade da sociedade como um todo, participar efetivamente na defesa do meio ambiente, compelindo a população a tarefa de defender o patrimônio ambiental brasileiro. Com o passar dos anos e com o aumento exorbitante das adversidades relacionadas ao meio ambiente, o Direito Ambiental passou a trazer o cidadão para perto dos problemas ambientais, fazendo surgir a chamada cidadania ambiental. O cidadão ambiental passa a
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se interessar e compreender as dimensões dos danos que o homem vem causando à natureza, exigindo seus direitos ambientais e exercendo maior responsabilidade com o mesmo. Tal cidadania ambiental não esta direcionada a um determinado povo, tampouco a um território específico, pois ela tem como foco principal a comum proteção do patrimônio difuso ambiental. A necessidade de urgência de resolver inúmeros problemas com relação ao meio ambiente, fez com que a sociedade exercesse uma função primordial na batalha pelo desenvolvimento sustentável. É válido ressaltar, que ainda precisa ser feito muito trabalho para levar a ideologia de cidadania na sociedade brasileira, para que todos enxerguem não só a importância do nosso meio ambiente, mais que também compreendam que todos os direitos e deveres precisam ser cumpridos. Afinal a cidadania é um dos fundamentos resguardados na Constituição brasileira, mas para isso se fortificar é preciso melhorar em vários aspectos, principalmente na educação. Observa-se que todo o mecanismo para utilizar a ação popular ambiental, deve ser estruturado e conectado, ou seja, existe toda uma lógica para que esse sistema seja consolidado. A Constituição Federal de 1988 e as leis esparsas, asseguram o direito ambiental para todos e o dever de preservar o nosso meio ambiente. Existem ainda os princípios que norteio a matéria ambiental, fortalecendo ainda mais o nosso ordenamento jurídico. As normas e as políticas de proteção ambiental por si só já demostraram não ser tão eficazes, nem mesmo o Estado consegue atuar de forma rígida para que a sociedade não degrade ainda mais o patrimônio ambiental. É necessário introduzir o conceito de cidadania na população, levar o conhecimento ambiental por meio da educação e informações. O acesso as questões ambientais a todos os cidadãos, fazem com que as pessoas consigam enxergar a realidade caótica que se está vivendo com o nosso meio ambiente, e assim compreenda a importância de defender os seus direitos, utilizando-se de um instrumento espetacular e tão revolucionário, a ação popular. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluído o trabalho, compreende-se que as ponderações apresentadas tornam compreensível todo o instituto da ação popular, assim como, a tutela ambiental no direito brasileiro. O conhecimento acerca do nosso meio ambiente,foi esculpido pela Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), que trouxe uma nova roupagem sobre a matéria ambiental. Desse contexto, foi retratado o progresso histórico do direito difuso ambiental, e um entendimento fortificado da importância da preservação do patrimônio ambiental. O Direito ambiental sofreu inúmeras transformações no Brasil, com relação a ideologia ambientalista, fazendo com que o país enaltecesse o seu ordenamento jurídico ambiental. Mais tais mudanças só foram possíveis, a partir do momento que o país buscou para si, o conhecimento sobre o meio ambiente na esfera mundial. As normas ambientais brasileiras, passaram por um processo de aperfeiçoamento ao longo do tempo, mas somente a Constituição Federal de 1988 que a tutela ambiental se consagrou. O Legislador compreendeu então que a sociedade como um todo, tem o dever de proteger e fiscalizar os atos do poder publico para garantir a preservação do patrimônio ambiental. Acentua-se que tal induzimento se deu pela Convenção realizada em Estocolmo no ano de 1972. A referida Magna Carta, ainda recepcionou algumas leis que foram positivadas antes de sua promulgação, dilatando os o alcance dos scripts ambientias. A matéria ambiental foi protegida da melhor maneira possível, já que o meio ambiente, na concepção de sua na-
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tureza jurídica, é visto como um direito de todos os cidadãos e os mesmos devem garantir a proteção desse direito difuso. Cria-se então uma ligação direta entre o patrimônio ambiental e a ação popular. O Surgimento da ação popular, ocorreu no Direito Romano, com as chamadas actio popularis. Nessa época qualquer pessoa do povo, poderia se beneficiar desse instrumento para proteger os direitos coletivos, o que torna a ação popular como iniciadora no que tange a defesa dos direitos difusos. No Brasil ela apareceu na Constituição de 1934, se ausentou na Lei Maior de 1937 mais foi recepcionada em todas as outras Constituições. Esse instituto possui legislação autônoma a Lei n° 4.717/65 onde regula todas as particularidades desse instrumento. Mas mesmo com toda essa força normativa, essa ação não é intentada constantemente. A proteção do nosso meio ambiente precisa ser melhor direcionada, as politicas existentes no nosso ordenamento precisam ser mais efetivas. Faz-se necessário que o Estado leve o conhecimento e a educação ambiental a todos os cidadãos. O ponto chave desse estudo se pauta na compreensão que o meio ambiente deve estar ligado diretamente com cidadania, essa que une o Estado e o indivíduo visando o exercício dos seus direitos e também deveres. Estes que estão assegurados na Constituição Federal de 1988, bem como o direito ambiental. O cidadão precisa estar vivendo e ao mesmo tempo lembrando do meio ambiente, o conhecimento e as informações são fundamentais para que a sociedade possa ter condições de defender os interesses ambientais Pode-se constatar que existem constantes incentivos em relação ao uso da ação popular com finalidade de proteger o meio ambiente, mas esta ainda é um mecanismo pouco usado no Brasil. Assim, conclui-se que a ação popular não vem sendo aplicada constantemente pelos cidadãos na proteção do meio ambiente, posto que tal situação ocorre pela insatisfatória educação ambiental, a quase obsoleta ideia de cidadania e o habito da população em esperar o Estado agir. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Antônio Herman (coord). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva, 2009.
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BRASIL. Lei n. 6.938 de 31 de agosto de 1981. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 22/10/2014 BRASIL. Lei n. 4.717 de 29 de junho de 1965. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4717.htm>. Acesso em: 15/10/2014 BRASIL. Lei n. 9.795 de 27 de abril de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso em: 30/10/2014. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano diretor. Brasília: Senado, 2001. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2002. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Saraiva, 2004. MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001. MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Meio Ambiente e repartiiação de competência. São Paulo: Malheiros, 2002. SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006. SILVA, José Afonso da. Ação Popular Constitucional: Doutrina e Processo. São Paulo: Malheiros, 2007. SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004. SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Direito processual constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.
NOTAS DE FIM 1 Aluno do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Professora/orientadora do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Mestre em Direito Constitucional pela UFMG, mestre em Direito Ambiental pela UNIA (Espanha) e Doutora em Geografia em Convenção de Doutorado Sanduíche financiado pela CAPES entre a UFMG e a UAPV (França); é professora do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. **Maraluce Maria Custódio; Karen Myrna de Castro.
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A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE ACESSO A JURISDIÇÃO1 Auack Natan Moreira de Oliveira Reis2 Leandro Henrique Simões Goulart3 Banca examinadora** RESUMO: Nos últimos anos houve considerável crescimento do número de recursos excepcionais destinados ao Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, com aumento significativo do acervo processual. Uma das soluções encontradas pelo Poder Judiciário na busca de celeridade processual foi desenvolver práticas denominas “jurisprudência defensiva”, manifestada por diversas formas no âmbito daqueles tribunais superiores. Assim, a criação de entraves e formalismos exacerbados para não admitir recursos, em detrimento do acesso a jurisdição garantido constitucionalmente, importa violação aos preceitos constitucionais. PALAVRAS-CHAVE: Jurisprudência defensiva; Princípios Constitucionais de Acesso à Justiça; Novo CPC. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Os princípios constitucionais de acesso à jurisdição; 3. A jurisprudência defensiva, 3.1. Prequestionamento, 3.2. Recursos não assinados, 3.3. Recursos interpostos por advogado irregularmente constituído, 3.4. Erro no preenchimento de guias, 3.5. Falta de ratificação do recurso interposto antes do termo inicial; 4 Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) encontram-se sobrecarregados de processos judiciais. A discrepância entre o número de processos julgados e o número de processo que chegam aos tribunais superiores é notória, o que acarreta a conhecida morosidade judicial. O presente artigo realizará uma abordagem do excesso de formalismo criado no âmbito dos tribunais superiores para não analisar o mérito recursal, com o pretexto de busca pela celeridade processual, incorrendo em violação aos princípios constitucionais de acesso à jurisdição. Em um momento primevo, serão abordados os princípios que garantem o acesso à jurisdição insculpidos texto constitucional, fazendo uma breve análise sobre o alcance dos institutos. Posteriormente, serão apresentadas diversas formas de manifestação da famigerada jurisprudência defensiva, analisando a sua razoabilidade, bem como relacionando-as a possíveis soluções previstas no projeto do Novo CPC. Por último, se demonstrará que o excesso de formalismo e os entraves jurisprudenciais criados acarretam violação aos princípios de acesso a jurisdição consagrados no texto constitucional. 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE ACESSO A JURISDIÇÃO A Constituição da República promulgada em 1988, na chamada constitucionalização do processo, de forma expressa consagrou em seu texto um significativo rol de garantias fundamentais destinadas à defesa da posição jurídica perante a Administração ou em relação aos órgãos jurisdicionais em geral, conforme se pode depreender do artigo 5º, incisos: XXXIV; XXXV; e XXXVII a LXXIV; LXVIII, LXXVI e LXXVIII. O inciso XXXV supracitado, consagra o princípio do acesso à justiça, cujo objetivo é garantir o ingresso em juízo, nas diversas hipóteses de lesão ou ameaça de lesão de direitos. A terminologia utilizada na norma, é criticada por parte da doutrina, que considera a expressão “acesso a justiça” imprecisa e passível de várias interpretações distorcidas da finalidade da norma. Nesse sentido, ensina Rosemiro Pereira Leal: Evitaremos aqui a expressão equívoca de “acesso a justiça”, porque, como já esclarecemos, a palavra justiça, quando assim posta nos compêndios de direito, pode assumir significativos vários que, a nosso ver, perturbam a unidade semântica e serieLETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
dade científica do texto expositivo. É certo que o cognominado “acesso a justiça” nada tem a ver com o acesso aos direitos fundamentais do homem, porque simploriamente definido como “algo posto à disposição das pessoas como vistas a fazê-la mais felizes (ou menos felizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas”. Também a expressão “acesso a justiça” não é a síntese de todos os princípios e garantias constitucionais do processo, porque atualmente o modelo constitucional de processo democrático é que, por incorporar o princípio da ampla defesa pelo direito-de-ação, é que gera o livre acesso a jurisdição, como direito irrestrito de provocar a tutela legal (art. 5°, XXXV, CR/88) (LEAL, 2010, p.68). Acompanhando as idéias de Rosemiro Pereira Leal, acreditamos ser mais correta a terminologia “acesso a jurisdição” e não “acesso a justiça”, pois esta pode criar uma problemática interpretativa cuja solução caberá à sapiência do juiz, já aquela se faz pela garantia constitucional de movimentar a atividade jurisdicional por meio do direito de ação e não precisa de explicações ideológicas. Sobre a garantia individual do acesso a jurisdição, destacamos os ensinamentos de Dinamarco, Cintra e Grinover: (...) pode se afirmar que a garantia do acesso à justiça, consagrada no plano constitucional o próprio direito de ação (como direito à prestação jurisdicional) e o direito de defesa (direito à adequada resistência às pretensões adversárias), tendo como conteúdo o direito ao processo, com as garantias do devido processo legal. Por direito ao processo não se pode entender a simples ordenação de atos, através de um procedimento qualquer. O procedimento há de realizar-se em contraditório, cercando-se de todas as garantias necessárias as partes possam sustentar razões, produzir provas, influir sobre a formação do convencimento do juiz. E mais: para que esse procedimento, garantido pelo devido processo legal, legitime o exercício da função jurisdicional (DINAMARCO; CINTRA; GRINOVER, 2012, p. 93). Cumpre destacarmos que o Estado tem o monopólio da atividade jurisdicional, por meio do Poder Judiciário intervém na solução de conflitos, com a finalidade de se evitar a auto-tutela dos particulares. Logo, assume a postura ativa de dizer o direito. Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes: (...) o art. 5º, XXXV, da Constituição estabelece o monopólio do
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Poder Judiciário para reparar lesão ou ameaça a direito. Assegura-se o direito de acionar a jurisdição estatal toda vez que se estiver diante de uma lesão ou simples ameaça de lesão a direito (MENDES, 2012, p. 582). Sobre a importância da função jurisdicional, trazemos ainda as palavras de José Afonso da Silva: Os conflitos de interesses são compostos, solucionados, pelos órgãos do Poder Judiciário com fundamento em ordens gerais e abstratas, que são ordens legais, constantes ora de corpos escritos que são as leis, ora de costumes, ou de simples normas gerais, que devem ser aplicadas por eles, pois está praticamente abandonado o sistema de composição de lides com base em ordem singular erigida especialmente para solucionar determinado conflito. (...) A jurisdição hoje é monopólio do Poder Judiciário do Estado (art. 5º, XXXV). Anteriormente ao período moderno havia jurisdição que não dependia do Estado. Os senhores feudais tinham jurisdição dentro do seu feudo: encontravam-se jurisdições feudais e jurisdições baronais. Lembre-se de que os donatários das Capitanias Hereditárias no Brasil colonial dispunham da jurisdição civil e criminal nos territórios de seu domínio. No período monárquico brasileiro, tínhamos a jurisdição eclesiástica, especialmente em matéria de direito de família, a qual desapareceu com a separação entre a Igreja e Estado. Agora só existe jurisdição estatal, confiada a certos funcionários, rodeados de certas garantias: os magistrado (SILVA, 2014, p. 560). O cerne da questão a ser tratada no presente trabalho cinge-se à extensão do direito de acesso a jurisdição. Os princípios constitucionais podem sofrer limitações nas instâncias extraordinárias? A Constituição da República não faz nenhuma distinção entre as instâncias ordinárias e extraordinárias, razão pelo qual acreditamos que o formalismo exacerbado a ser observado nos recursos extremos configurase como práticas em evidente inconstitucionalidade. Preliminarmente, cumpre demonstrar que a própria Constituição da República estabelece expressamente a competência material a ser observada quando da interposição dos recursos extremos. O recurso especial, cuja competência de julgamento é do Superior Tribunal de Justiça, está disciplinado no art. 105 da Constituição da República, in verbis: Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Denota-se que a matéria submetida às instâncias especiais já se encontra delimitada pelo próprio texto constitucional, o que já constitui um óbice as matérias a serem apreciadas pelas cortes superiores. Em suma, sob uma ótica simplória, vale dizer que compete ao Supremo Tribunal Federal verificar se houve violação à constituição, e o Superior Tribunal de Justiça aprecia julgados onde houve violação à lei federal. A respeito da função dos tribunais superiores, novamente citamos Dinamarco, Cintra, Grinover: Sua função básica é a de manter o respeito à Constituição e sua unidade substancial em todo país, o que faz através de uma série de mecanismos diferenciados – além de encabeçar o Poder Judiciário inclusive em certas causas sem conotação constitucional. Como cabeça do Poder Judiciário, compete-lhe a última palavra na solução das causas que lhe são submetidas. A Constituição Federal, como fonte concreta da norma jurídica processual, contém: a) normas de superdireito, relativas às próprias fontes formais legislativas das normas processuais; b) normas relativas à criação, organização e funcionamento dos órgãos jurisdicionais; c) normas referentes aos direitos e garantias individuais atinentes ao processo; e d) normas dispondo sobre remédios processuais específicos (DINAMARCO; CINTRA; GRINOVER, 2012, p. 104). Outro importante princípio constitucional a ser destacado, é o da duração razoável do processo (CR art. 5º, LXXVIII). A morosidade da justiça no Brasil, desde os tempos do império, já era duramente criticada. O célebre jurista Rui Barbosa, no longínquo ano de 1921, disse que “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade”. Parte da doutrina, ensina que tal princípio decorre do princípio da dignidade de pessoa humana, tratando-se de norma constitucional de eficácia plena e imediata. Assim explica Gilmar Ferreira Mendes: A EC n. 45/2004 introduziu norma que assegura a razoável duração do processo judicial e administrativo (art. 5º, LXXVIII). Positiva-se, assim, no direito constitucional, orientação há muito perfilhada nas convenções internacionais sobre direitos humanos e que alguns autores já consideravam implícita na ideia de proteção judicial efetiva, no princípio do Estado de Direito e no próprio postulado da dignidade da pessoa humana. (...) O reconhecimento de um direito subjetivo a um processo célere — ou com duração razoável — impõe ao Poder Público em geral e ao Poder Judiciário, em particular, a adoção de medidas destinadas a realizar esse objetivo. Nesse cenário, abre-se um campo institucional destinado ao planejamento, controle e fiscalização de políticas públicas de prestação jurisdicional que dizem respeito à própria legitimidade de intervenções estatais que importem, ao menos potencialmente, lesão ou ameaça a direitos fundamentais (MENDES, 2012, p. 584).
O recurso extraordinário, cuja competência de julgamento é do Supremo Tribunal Federal, está disciplinado no art. 102 da Constituição da República, in verbis: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
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Sobre o tema, José Afonso da Silva esclarece que: De fato, o acesso à Justiça só por si já inclui uma prestação jurisdicional em tempo hábil para garantir o gozo do direito pleiteado – mas crônica morosidade do aparelho judiciário o frustrava; daí criar-se mais essa garantia constitucional, com o mesmo risco de gerar novas frustrações pela sua ineficácia, porque não basta uma declaração formal de um direito ou de
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uma garantia individual para que, num passe de mágica, tudo se realize como declarado (SILVA, 2014, p. 433).
originários arrolados no inciso I do artigo 102 da Constituição Federal (SOUZA, 2014, p.65).
As lições trazidas demonstram que, se por um lado, houve preocupação do legislativo em busca da celeridade processual, inclusive com a inserção de tal princípio no texto constitucional; em contrapartida, existe a preocupação da doutrina sobre o que deve ser feito na busca pela concretização da tão almejada celeridade processual. Embora não esteja previsto de forma expressa, mas não menos importante, vale destacar o princípio do duplo grau de jurisdição, que é visto pela doutrina como ínsito em nosso sistema constitucional. Rosemiro Pereira Leal (LEAL, 2010, p. 240) aduz que “O duplo grau de jurisdição consiste em oferecer o povo oportunidade de conhecimento e decisão de suas causas por, pelo menos, dois órgãos judicantes hierárquicos, sucessivos e autônomos”. Sobre o citado princípio constitucional, Humberto Theodoro Jr. Ensina que: Com a evolução, operada pelo Estado Democrático de Direito, do devido processo legal para o processo justo, a concepção do contraditório dinâmico e efetivo se ampliou para incluir em seu alcance subjetivo não só as partes, mas todos os sujeitos do processo, inclusive o juiz. Nessa perspectiva, o diálogo processual coloca no mesmo nível partes e juiz, de modo a criar um clima de cooperação no qual os litigantes assumem condição de influir, de forma concreta, na formação do provimento jurisdicional. O julgamento da causa, portanto, não pode deixar de considerar as alegações relevantes das partes e, sob pena de nulidade, não lhe será lícito omitir na resposta adequada às arguições de fato e de direito levantadas regularmente por meio das referidas alegações. A consequência desse contraditório democrático é que o diálogo processual não pode encerrar-se no provimento do primeiro grau de jurisdição. Se assim fosse, as partes não teriam como assegurar sua efetiva participação na formação do ato decisório. O julgamento em instância única deixaria incólume a sentença afrontosa ao contraditório. Indispensável, portanto, se torna o acesso da parte prejudicada ao tribunal para demonstrar a ilegalidade do julgado abusivo pronunciado no primeiro grau de jurisdição (JÚNIOR, 2014, p. 780).
O acesso à jurisdição, o duplo grau de jurisdição, todos em consonância a duração razoável do processo envolvem questões complexas e pretensões variadas, que passam pela modernização da prestação jurisdicional, até o aparelhamento do judiciário com estrutura física e humana. Em síntese, o acesso à justiça busca garantir o direito a um processo justo, sem entraves, morosidade e a uma decisão que efetive o direito material requerido. A aplicabilidade deste direito fundamental gera diversos questionamentos no ramo do processo civil. Não se está a questionar o formalismo processual, visto que este almeja conceder provimento útil e justo aos litigantes; o que se questiona, é o excesso de formalismo. O que não se pode admitir é que, ante ao número excessivo e crescente de processos judiciais, seja ceifado o acesso à jurisdição dos tribunais superiores sob o singelo argumento de que se está a zelar pela celeridade processual. Assim, nos tópicos seguintes, demonstraremos o quão à jurisprudência defensiva se funda em argumentos teratológicos, a pretexto de engajamento relativo à celeridade processual, em notória subversão axiológica aos direitos e garantias fundamentais assegurados no texto constitucional.
Ainda sobre o tema, concordamos com Elpídio Donizetti, este leciona que: A garantia ao duplo grau de jurisdição está implicitamente prevista na Constituição, seja como consectário do devido processo legal - o exercício do contraditório em face da decisão recorrida -, seja em decorrência da previsão constitucional de tribunais de superposição, aos quais foi conferida competência recursal (arts. 92 a 126 da CF) (DONIZETTI, 2014, p. 102). Acrescentamos ainda os apontamentos de Bernardo Pimentel Souza: Ademais, os inúmeros processos cíveis de competência originária do Supremo Tribunal Federal revelam que o princípio do duplo grau de jurisdição não tem caráter absoluto. Não há, à evidência, na Constituição Federal vigente, previsão de recurso algum para outro tribunal que configurasse grau superior para o reexame dos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal nas ações de competência originária, como, por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a ação rescisória, o mandado de segurança, além dos outros tantos processos cíveis
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3 A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA Em consonância ao que foi dito anteriormente, vale relembrar que o papel recursal das cortes superiores já se encontra delineado pelo texto constitucional, os Tribunais Superiores não funcionam como instância revisora ou terceiro grau jurisdicional. Os recursos excepcionais estão submetidos a procedimento rigoroso de apreciação, a devolutividade se restringe a matéria de direito. Se prestam à unificação da aplicação do direito positivo, observados os pressupostos específicos para sua admissibilidade, que já constituem enorme dificuldade para os recorrentes, o que torna inconcebível outros artifícios utilizados para que não ocorra análise dos recursos. Ante as circunstâncias do surgimento da denominada “jurisprudência defensiva”, que consiste nos entraves e requisitos criados para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos excepcionais, vale trazer as considerações de José Miguel Garcia Medina: Os tribunais superiores têm a grande função de apontar o rumo correto a ser seguido na interpretação e aplicação da Constituição e da lei federal. Devem, pois, ser tomados como exemplos do cuidado com que a norma jurídica deve ser interpretada e aplicada. A criação de requisitos recursais à margem da lei definitivamente não corresponde ao papel que deve ser desempenhado pelos tribunais. Esse, a meu ver, é o maior problema da jurisprudência defensiva. Os tribunais — e, no que respeita ao tema, especialmente os tribunais superiores — devem atuar com retidão, ao aplicar a lei. A criação de “entraves e pretextos” não previstos na norma jurídica “para impedir a chegada e o conhecimento de recursos” mancha a imagem daqueles tribunais que deveriam servir de guias na interpretação da própria lei. (MEDINA, 2013). No mesmo sentido é a opinião de Gilmar Mendes: Registre-se que o acúmulo de processos na Corte Suprema a obrigou a adotar uma série de posicionamentos formalistas, definidos como “jurisprudência defensiva”, com o intuito de barrar o processamento dos recursos extraordinários e agravos de instrumento. Nesse sentido, podem-se citar as Súmulas 280, 281, 282, 283, 284, 288, 291 e 400, entre outras.
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Um exemplo dessa prática é o indeferimento liminar de agravos de instrumento cuja cópia da petição de interposição do recurso extraordinário tenha protocolo ilegível, aplicando-se interpretação extensiva à sua Súmula 288. Os números revelam a crise numérica que o Supremo Tribunal Federal enfrentou e a necessidade de racionalização do modo de prestação jurisdicional pela Corte (MENDES, 2012, p. 1538). Logo, nas próximas linhas serão demonstrados alguns casos em que é nítido o excesso de formalismo e a falta de amparo legal de algumas práticas manifestadas por diversas formas na jurisdição dos tribunais superiores. 3.1 Prequestionamento Prequestionar significa questionar antes. Deve ser entendido como manifestação prévia sobre a questão de direito devolvida pelo recurso, a própria natureza dos recursos excepcionais exige o cumprimento do requisito. Assim, caso o tribunal de origem não tenha analisado a matéria de direito constitucional ou infraconstitucional a ser debatida, não será possível a formação das “causas decididas em última ou única instância”, requisito de admissibilidade indispensável aos apelos extremos. Apesar das inúmeras divergências doutrinárias a respeito dos diferentes conceitos atribuídos à expressão “prequestionamento”, o que não é o objeto do presente trabalho, certo é que omissão na definição técnica da expressão da azo a inúmeras situação prejudiciais aos recorrentes. O maior problema advindo de tal situação, aparece com a criação de formalismos exacerbados em detrimento do acesso à jurisdição das cortes superiores. Perguntamos, se após a interposição de embargos declaratórios a questão continuou sem manifestação pelo tribunal a quo, existirá prequestionamento? Na resposta a interrogação, existe divergência entre os tribunais superiores. O STJ tem posicionamento consagrado no enunciado n. 211 da súmula de sua jurisprudência, no sentido de que não ocorrerá o prequestionamento da matéria. Nesta hipótese, o recorrente deve interpor o recurso especial com fundamento na violação ao art. 535 CPC. Já o STF admite o prequestionamento ficto, assim, mesmo que o tribunal de origem não tenha se manifestado expressamente, se o recorrente suscitou a questão por meio de embargos declaratórios, considera-se que houve o chamado “prequestionamento ficto”. Sobre a divergência citada, destacam-se os ensinamentos de Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha: O posicionamento do STF, porém, é diferente. Admite o STF o chamado prequestionamento ficto, que é aquele que se considera ocorrido com a simples interposição de embargos de declaração diante da omissão judicial, independente do êxito dos embargos. Trata-se de interpretação mais amena do enunciado n. 356 da súmula de jurisprudência do STF. Essa postura do STF é a mais correta, pois não submete o cidadão ao talante do tribunal recorrido, que, com a sua recalcitrância no suprimento da omissão, simplesmente, retiraria do recorrente o direito a se valer das vias extraordinárias. Inicialmente, a concepção do STJ é sedutora, impõe-se, contudo, perfilhar a do STF, que se posiciona a favor do julgamento do mérito do recurso extraordinário, a fim de que o recurso cumpra o seu objetivo – e, encarando o problema do juízo de admissibilidade como uma questão de validade do procedimento, qualquer postura no sentido de impedir ou dificultar a aplicação da sanção de inadmissibilidade deve receber a pronta adesão do operador do direito (DIDIER JR; CUNHA. 2013, p. 282).
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De acordo com o projeto de Lei do Senado nº 166/20104, esse formalismo exacerbado que provocou inúmeras discussões doutrinárias a respeito da imprecisão do termo “prequestionamento”, enfim, será reparado. De acordo com o art. 979, será exigido apenas que a parte interponha embargos declaratórios, considerando-se prequestionada a matéria. Embora acreditamos ser digna de aplausos a iniciativa legislativa, ousamos discordar sobre a redação do artigo. Pois, de acordo com a natureza dos recursos excepcionais e a previsão constitucional destes serem cabíveis contra as “causas decididas”, tal redação pode comportar distorções futuras por não corrigir o tecnicismo destinado ao instituto. Desta forma, opinamos pela redação sugerida por Bernardo Ribeiro Câmara: O momento é propício para que o Congresso Nacional aproveite a oportunidade de discussão de um novo Código de Processo Civil e corrija esta deficiência técnica na interpretação destes diferentes institutos jurídicos. Um único artigo pode resolver o problema. Fica a sugestão: Art. ___) Só será possível discutir em recurso especial e ou em recurso extraordinário questão jurídica exclusivamente de direito que tenha sido examinada pelas instâncias ordinárias, ainda que implicitamente. Parágrafo único: em caso de não exame da questão jurídica pela instância ordinária e desde que tenha ocorrido provocação pela oposição de embargos de declaração, se argüido e demonstrado pelo recorrente, em fundamento específico do seu recurso, pode o respectivo Tribunal Superior, presumindo a submissão da matéria à instância ordinária, já adentrar na questão de mérito que envolve o recurso extremo. 3.2 Recursos não assinados Os recursos não assinados têm como consequência uma das mais perceptíveis formas de manifestação da jurisprudência defensiva. O STJ entende que, nas instâncias ordinárias, recurso não assinado trata-se de simples irregularidade, passível de ser sanada com intimação da parte para assinar o recurso: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DEINSTRUMENTO DO ART. 522 DO CPC SEM ASSINATURA. REGULARIZAÇÃO NASINSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. POSSIBILIDADE. ARTIGO 13 DO CÓDIGO DEPROCESSO CIVIL. PRECEDENTES. 1. Entendimento do STJ no sentido de que a falta de assinatura do advogado, nos recursos apresentados na instância ordinária,constitui vício sanável, diante do qual deve ser concedido prazo para o suprimento da irregularidade, conforme artigo 13, do CPC. Ao contrário da extraordinária, onde não se admite a regularização. 2. Precedentes: REsp 1.109.832/ES, Rel. Ministro Benedito Gonçalves,Primeira Turma, DJe 1/6/2009, REsp 964.160/RS, Rel. Ministra ElianaCalmon, Segunda Turma, DJe 29/10/2008, REsp 905.819/PE, Rel.Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 20/8/2008.3. Agravo regimental não provido.(STJ , Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 20/03/2012, T1 - PRIMEIRA TURMA)(Grifamos) Todavia, quando se trata de recurso especial, o mesmo colendo tribunal adota posicionamento totalmente antagônico: (...) 1. Recurso apócrifo dirigido ao Superior Tribunal de Justiça é considerado inexistente, não sendo passível de regularização, já que o disposto no art. 13 do CPC não é aplicável nas instâncias extraordinárias. 2. Agravo Regimental da EMPRESA BRASILEIRA DE REPAROS NAVAISS/A-REBAVE desprovido. (STJ, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 26/06/2012, T1 - PRIMEIRA TURMA)(Grifamos)
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No entendimento do STF, infelizmente, a realidade é a mesma. Além de considerar inexistente a peça apócrifa, sem oportunizar ao advogado corrigir o equívoco, a Corte também excetua a aplicabilidade do artigo 13 do CPC em relação ao recurso extraordinário: (...) O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência pacífica no sentido de considerar inexistente o recurso não assinado pelo procurador do recorrente. Precedentes. Ademais, é firme o entendimento desta Corte de que não é aplicável ao recurso extraordinário a norma inscrita no art. 13 do CPC. Precedentes. Agravo regimental não conhecido (AI 780.441-AgR/AC,Primeira Turma, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 20/11/2013). EMENTA DIREITO CIVIL. USUCAPIÃO. AGRAVO REGIMENTAL. ANTERIORES AGRAVOS REGIMENTAIS DECIDIDOS MONOCRATICAMENTE. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DO advogado. ATO PROCESSUAL INEXISTENTE. INVIABILIDADE DA CONVERSÃO EM DILIGÊNCIA. VÍCIO INSANÁVEL. Não se conhece do recurso em que ausente assinatura do advogado, vício que não se traduz em mera irregularidade do ato processual praticado, de todo inviável, na instância extraordinária, converter o feito em diligência, nos moldes preconizados pelo art. 13 do CPC.Precedentes. Agravo regimental não conhecido (RE 602.956-AgR-AgR-AgR/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. ROSA WEBER, DJe de 04/05/2012). 2. Diante do exposto, nego provimento ao agravo. Publique-se. Intime-se. Brasília, 6 de novembro de 2014.Ministro Teori Zavascki Relator Documento assinado digitalmente(STF - ARE: 839557 SP , Relator: Min. TEORI ZAVASCKI, Data de Julgamento: 06/11/2014, Data de Publicação: DJe-221 DIVULG 10/11/2014 PUBLIC 11/11/2014)(Grifamos) É inconcebível num Estado democrático de direito a tolerância a tão exacerbado formalismo para impedir a chegada de recursos excepcionais. Ora, quando o recurso é de competência dos tribunais de justiça o entendimento é um, quando trata-se de recurso excepcional, que já exige pressupostos específicos e fundamentação vinculada, o entendimento é totalmente oposto. A doutrina pátria tece críticas severas no tocante a este posicionamento, concordamos inteiramente com as palavras de Cândido Rangel Dinamarco: Ouso até dizer que chega a ser arbitrária a postura dos que, proclamando o repúdio ao formalismo irracional em relação a outros atos do processo e chegando mesmo a admitir sua regularização mediante a assinatura inicialmente faltante, quando tratam do recurso extraordinário ou do especial vêm assumir atitude diferente. Por que esses atos mereceriam ser tratados assim, a partir de um metro formalista e discrepante das premissas tão bem aceitas em outras situações? Essa postura parece-me mais uma manifestação da idéia de que tais recursos não teriam compromisso algum com o valor do justo, servindo somente, como está em escritos de Alfredo Buzaid, à preservação da ordem jurídico-positiva do país - e não como instrumento à disposição das partes para a busca do acesso à justiça (DINAMARCO, 2010, p. 1052). Ante aos argumentos expostos, é necessário a revisão jurisprudencial em relação ao tema, visto que só existe um Código de Processo Civil, que deve ser observado tanto nas instâncias ordinárias quanto nas extraordinárias. Em louvável inspiração legislativa, o Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 traz expressamente autorização para sanar o vício, previsão do art. 983, § 2º: “Quando o recurso tempestivo contiver defeito formal que não se repute grave, o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal poderão desconsiderar o vício, ou mandar saná-lo, julgando o mérito”. Logo, no que tange ao ponto dos recursos não assinados se-
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rem considerados inexistentes, o projeto do novo CPC apresenta provável solução. 3.3 Recursos interpostos por advogado irregularmente constituído O art. 36 do CPC estabelece que a parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. A ausência de procuração outorgando poderes para aquele que interpôs o recurso caracteriza irregularidade de representação. O STF, de forma irrefutável, considera inexistente o recurso interposto por advogado sem procuração nos autos: AGRAVO REGIMENTAL. MATÉRIA PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO OUTORGADA AO ADVOGADO SUBSCRITOR DO AGRAVO (NOS PRÓPRIOS AUTOS, CONFORME A LEI 12.322/2010). RECURSO CONSIDERADO INEXISTENTE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o recurso interposto por advogado sem procuração nos autos é de ser considerado inexistente. 2. Agravo regimental desprovido. (STF - ARE: 665704 SP , Relator: Min. CEZAR PELUSO (Presidente), Data de Julgamento: 31/10/2012, Tribunal Pleno)(Grifamos) Já o STJ, mantém o mesmo entendimento sobre a matéria, inclusive, editou súmula nesse sentido. (...) 1. Nos termos da Súmula 115 desta Corte Superior, “na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”. 2. Não há, portanto, como admitir a juntada tardia da procuração ou do seu regular substabelecimento em razão da preclusão consumativa, na instância especial, o que atrai a incidência da Súmula nº 115 desta Corte. Nesse sentido: AgRg nos EDcl no Ag 1420710/SC, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 16/5/2013, DJe 27/5/2013. Embargos de declaração rejeitados. (STJ - EDcl no AgRg no REsp: 1441555 PR 2014/0052549-7, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 03/06/2014, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/06/2014)(Grifamos) Mais uma vez, a jurisprudência destes tribunais se alinha no sentido de excetuar a aplicação do art. 13 do CPC. Reiteramos as mesmas críticas do tópico anterior sobre recursos não assinados; ora, só existe um Código de Processo Civil, que deve ser aplicado inclusive às instâncias excepcionais. Encontramos no novo CPC a solução para tamanha excrescência. Segundo previsto no artigo 76, § 2º, a aplicação do art. 13 aos recursos excepcionais será de forma expressa. Assim sendo, independente se instância ordinária ou extraordinária, antes de considerar inexistente o recurso, a parte deve ser intimada para sanar o vício. Quando promulgado o projeto de lei do novo CPC, essa incorreção jurisprudencial será corrigida. 3.4 Erro no preenchimento de guias É incumbência da parte recolher e comprovar as custas recursais, que devem ser pagas para ajuizamento de uma ação ou interposição de recurso, nos casos em que há previsão legal. Caso seja interposto recurso especial ou extraordinário com a guia de custas incompleta ou com alguma incorreção no preenchimento, a atual jurisprudência de ambas as cortes superiores impõe como consequência o reconhecimento da deserção, veja-se: (...) A jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que o recolhimento do preparo recursal deve ser efetuado observando-se as instruções contidas nas Resoluções editadas por esta Corte, vigentes à época da
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interposição do recurso, utilizando-se da guia de recolhimento adequada, sob pena de deserção. II. No caso, tendo sido efetuado o pagamento das custas judiciais de preparo recursal utilizando-se a GRU Simples, em desacordo com o disposto no art. 7º da Resolução 01/2014 do STJ, de 01/02/2014, em vigor à época da interposição do recurso, é de se declarar deserto o Recurso Especial. III. Como decidido pela Corte Especial do STJ, “o cumprimento pelo recorrente das instruções contidas nas Resoluções do STJ sobre a comprovação do preparo recursal emana expressamente do art. 41-B da Lei n. 8.038/90, alterado pelo art. 3º-A da Lei n. 9.756/98. A partir da Resolução n. 12/2005, não basta o pagamento da importância devida na origem, sendo imprescindível o correto preenchimento das respectivas guias, bem como o recolhimento no estabelecimento bancário, sob pena de deserção” (STJ, EREsp 820.539/ ES, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, DJe de 23/08/2010). Em igual sentido: STJ, AgRg no AREsp 439.864/ PR, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, DJe de 11/02/2014; STJ, AgRg no AREsp 382.112/PE, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, DJe de 27/05/2014; STJ, AREsp 547.635/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, DJe de 06/08/2014. IV. Agravo Regimental improvido. (STJ , Relator: Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, Data de Julgamento: 09/09/2014, T2 - SEGUNDA TURMA)(Grifamos) (...) Na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o recolhimento do preparo em desacordo com a regulamentação vigente configura a deserção do recurso manejado. Nesse sentido: Agravo regimental no agravo de instrumento. Deserção reconhecida. 1. O preparo do recurso extraordinário deve ocorrer concomitantemente à sua interposição. Sua não efetivação, conforme os ditames legais, enseja a deserção do recurso. 2. Agravo regimental não provido.”(AI 587.613-AgR/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe 21.3.2012.) “RECURSO EXTRAORDINÁRIO – DESERÇÃO. Constatando-se no processo o não recolhimento do preparo, não há que se aplicar a intimação prevista no artigo 511, § 2º, do Código de Processo Civil, impondo-se a conclusão sobre a deserção do recurso.” (ARE 695.203-AgR/ BA, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJe 16.11.2012.) Nego seguimento (art. 21, § 1º, do RISTF e 544, § 4º, II, a, do CPC). Publique-se. Brasília, 23 de abril de 2014.Ministra Rosa Weber Relatora (STF - ARE: 805826 CE , Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 23/04/2014, Data de Publicação: DJe-085 DIVULG 06/05/2014 PUBLIC 07/05/2014)(Grifamos) Sob o singelo argumento de preclusão consumativa, não é oportunizado as partes a juntada posterior da guia devidamente preenchida. Esta jurisprudência encontra-se pacificada no âmbito daquelas cortes, em mais uma prática que dificulta o acesso à jurisdição superior. Novamente encontramos no novo CPC a solução contra esta jurisprudência defensiva. O art. 961, § 2º, assegura que o equívoco no preenchimento da guia de custas não resultará na aplicação da pena de deserção, cabendo ao relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de cinco dias ou solicitar informações ao órgão arrecadador. 3.5 Falta de ratificação do recurso interposto antes do termo inicial O termo delimita o prazo, assinalando seu início e fim. Se inicial, corresponde ao dia de início, dies a quo para contagem do prazo; se final, corresponde ao dia final, dies ad quem do prazo. Ambos os tribunais superiores não admitem os recursos excepcionais antes do julgamento dos embargos de declaração, quando
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a parte não ratificar o recurso interposto após a publicação do julgamento dos embargos declaratórios. Veja-se o posicionamento do STF: (...) Verifico, de plano, que o recurso é extemporâneo, pois foi interposto antes da publicação do acórdão que julgou os embargos infringentes, não sendo ratificado posteriormente. A jurisprudência desta Corte é pacífica quanto a necessidade de ratificação do extraordinário manejado antes da publicação do último acórdão da instância de origem, que, no caso, foi o dos infringentes. Nesse sentido cito os seguintes precedentes, entre outros tantos: Rcl 12.431-AgR/SP, Rel. Min. Teori Zavascki; ARE 773.889-AgR/SC, Rel. Min. Rosa Weber; AI 718.944-AgR/ RS, Rel. Min. Dias Toffoli; ARE 666.713-AgR-ED/SP, Rel. Min.Cezar Peluso; AI 842.860-AgR/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa; ARE 663.915-ED/AC, Rel. Min. Luiz Fux; AI 742.611-AgR/SP, de minha relatoria. Cabe o registro de que o Superior Tribunal de Justiça chegou a essa mesma conclusão ao analisar o recurso de sua competência (fls. 200-204). Isso posto, nego seguimento ao recurso (CPC, art. 557, caput). Publique-se. Brasília, 4 de abril de 2014.Ministro RICARDO LEWANDOWSKI- Relator - (STF - ARE: 712628 RS , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 04/04/2014, Data de Publicação: DJe-072 DIVULGAÇÃO 10/04/2014 PUBLICAÇÃO 11/04/2014)(Grifamos) Inclusive, o STJ editou a súmula 418 nesse sentido, entendimento reiterado na jurisdição daquela corte: Súmula 418: “É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão de embargos de declaração, sem posterior ratificação”. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO ANTES DO JULGAMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO. SÚMULA 418/STJ. PRECEDENTES. 1. Consoante jurisprudência do STJ, é necessária a ratificação do recurso especial interposto em momento anterior ao julgamento dos embargos de declaração. Não havendo a mencionada ratificação, tem-se por extemporâneo o apelo nobre, porquanto protocolado fora do prazo recursal. Súmula 418/STJ. 2. A peculiaridade de os embargos de declaração terem sido opostos pelos demais litisconsortes (corréus) não afasta o dever de a parte reiterar seu recurso especial. Agravo regimental improvido. (STJ - AgRg no AREsp: 475296 SP 2014/0031061-3, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 06/05/2014, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/05/2014)(Grifamos) Este posicionamento somente se mostra plausível quando os embargos declaratórios modificam de alguma forma a decisão guerreada. Mas se a parte se adiantou e interpôs o recurso, e o julgamento dos embargos declaratórios em nada alterou o julgado, inexiste justificativa aceitável para o recurso ser considerado extemporâneo. A doutrina tece severas críticas a respeito da questão, visto que a parte manifestou o inconformismo contra a decisão interpondo o recurso, decisão que se manteve inalterado após o julgamento dos embargos declaratórios. Neste ponto, o acesso a jurisdição não pode ser extirpado de tal forma, a ponto de considerar o recurso interposto serôdio. Destaca-se ainda que, se a parte, “mesmo antes da intimação da decisão recorrida, adiantou-se e interpôs o recurso cabível, ela se deu por intimada, dispensando-se nova intimação. Não há como entender que o caso seja de intempestividade” (BUENO, 2008, p. 290). No âmbito da STF, já há posicionamento no sentido de superar a questão, conforme destaca MEDINA:
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É certo que, como já se decidiu, a decisão que julga os embargos de declaração, ainda que para rejeitá-lo, integra a decisão embargada. No entanto, é evidentemente injustificável a exigência de ratificação, se não houve qualquer alteração na decisão embargada. Esse aspecto foi destacado em julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal. Em 2009, no julgamento da Ação Rescisória 1.668, o ministro Cezar Peluso chamou a atenção para o erro. Como disse ele, daquele que não interpôs embargos de declaração não se deve exigir a ratificação do recurso, após a rejeição dos embargos de declaração interpostos por outrem. Tal orientação veio a ser posteriormente confirmada pelo Supremo em 2013, no julgamento Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 680.371, ao qual se seguiu, no mesmo sentido, o julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 740.688. A despeito dessa boa evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema, no Superior Tribunal de Justiça continuou a preponderar o entendimento contrário, antes referido. O novo CPC prevê no artigo 980, § 2º: “Se, ao julgar os embargos de declaração, o juiz, relator ou órgão colegiado não alterar a conclusão do julgamento anterior, o recurso principal interposto pela outra parte antes da publicação do resultado será processado e julgado independente de ratificação”. É clarividente a intenção legislativa em sanar tal absurdo, que de forma expressa admite o recurso interposto antes do julgamento dos embargos declaratórios quando não houver alteração no julgado. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O crescente número de processos em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, e o gradual aumento do acervo processual exigem soluções na busca da celeridade processual, sem olvidar-se dos princípios constitucionais de acesso à jurisdição. Estes tribunais superiores, com o nítido propósito de diminuir o acervo processual e na tentativa de buscar celeridade, criam a famigerada “jurisprudência defensiva”, que se manifesta por diversas formas para justificar a inadmissão dos apelos extremos. Alguns autores justificam a jurisprudência defensiva dos tribunais superiores com fundamento na doutrina utilitarista; nesse sentido, vale destacar as palavras de Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos de Amaral e Fernando Moreira Freitas da Silva: Ao relacionar as reflexões sobre a doutrina utilitarista e a jurisprudência defensiva dos tribunais superiores, chega-se à conclusão de que a jurisprudência defensiva trata-se de uma ferramenta utilitarista para o julgamento do maior número de processos, em um menor tempo possível, sem qualquer esforço para enfrentar o mérito do recurso. Em nome da felicidade geral dos julgadores e de toda a população brasileira, que tem a falsa impressão de possuir cortes superiores céleres e eficientes à sua disposição, nega-se o acesso à justiça, apegando-se a exacerbados formalismos. Olvidam-se os tribunais superiores de que o compromisso institucional de todo o Poder Judiciário, e não apenas dos órgãos de instância ordinária, é com a justiça. Nesse ponto, aliás, vale transcrever as lições de John Rawls para quem “as instituições básicas da sociedade não devem se distinguir apenas por serem organizadas e eficientes: elas devem ser, sobretudo, justas. E, se não forem, então deverão ser reformadas ou abolidas. Dentre as formas de exteriorização, no presente trabalho destacamos: imprecisão do termo prequestionamento como fundamento para
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inadmissão recursal; recurso não assinado, excetuando-se aplicação do art. 13 CPC às instâncias extraordinárias; recurso interposto por advogado sem procuração nos autos, impedindo a intimação para juntada de procuração; não admissão da correção da guia de recolhimento de custas posterior à interposição do recurso; impossibilidade de ratificação de recurso após o julgamento dos embargos declaratórios. Diante de todo exposto no presente trabalho, está demonstrado que a jurisprudência defensiva cria formalismos e entraves não previstos em lei, em flagrante violação aos princípios constitucionais de acesso à jurisdição. O Novo Código de Processo Civil se preocupou em afastar de forma expressa alguns entendimentos já consolidados das práticas defensivas das cortes superiores, em louvável iniciativa legislativa. Contudo, é necessária maior reflexão por parte dos componentes dos tribunais superiores, notadamente, no papel de uniformizar a interpretação da legislação federal e da Constituição Federal, no eterno desafio de concretizar a tutela dos direitos subjetivos. REFERÊNCIAS BARBOSA, RUI. Em março de 1921, a Oração aos Moços, de Rui Barbosa, foi ouvida na sessão solene da formatura da turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/ dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf> Acesso em: 15 de setembro de 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado. htm> Acesso em: 11 de setembro de 2014. BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: <http://www.stj. jus.br/portal/site/STJ> Acesso em: 21 de julho de 2014. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.jus. br/portal/principal/principal.asp> Acesso em: 01 de julho de 2014. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2008. CÂMARA, Bernardo Ribeiro. PREQUESTIONAMENTO versus CAUSA DECIDIDA: desfazendo mitos. Disponível em <http://blog.newtonpaiva.br/pos/e6d13-prequestionamento-versus-causa-decidida-desfazendo-mitos/>. Acesso em: 21 de julho de 2014. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. DIDIER JR.,Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 11 ed. Bahia: JusPodivm, 2013. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. vol. II. São Paulo: Malheiros, 2010. DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2014. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. MEDINA, José Miguel Garcia. Pelo fim da Jurisprudência Defensiva. Revista Eletrônica Conjur. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2013-jul-29/processo-fim-jurisprudencia-defensiva-utopia> Acesso em: 03/05/2014. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014. SILVA, Fernando Moreira de Freitas da.. AMARAL, Ana Cláudia Zuin Mattos do. A jurisprudência defensiva dos tribunais superiores: doutrina utilitarista mais viva do que nunca. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/publicacao/ ufsc/> Acesso em: 03 de outubro de 2014.
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NOTAS DE FIM 1 Preferimos o expressão “acesso à jurisdição” ao invés de “acesso à justiça”, por essa última ter sentido amplo, que pode ensejar várias interpretações. No trabalho há justifica aprofundada para tal posicionamento. 2 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton. Estagiário no escritório Moura & Siqueira Advogados Associados. 3 Mestre em Direito pela FUMEC/FCH, professor (Regime Integral) do Centro Universitário Newton de Paiva e Coodenador do CEJU - Centro de Exercício Jurídico - Membro do Núcleo Docente Estruturante e Colegiado do Curso de Direito na Newton Paiva. ** Leandro Henrique Simões Goulart; Sérgio Armanelli Gibson.
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INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DO DEPENDENTE QUÍMICO NO ESTADO DE MINAS GERAIS Bárbara Santos Trindade1 Júlio César Faria Zini2 Banca examinadora** RESUMO: A internação involuntária do dependente químico envolve diversas discussões em relação à sua aplicabilidade e eficácia, e vem sendo abordada com maior frequência nos últimos anos. O presente estudo tem por objetivo elucidar o procedimento de tal medida de tratamento no estado de Minas Gerais e questionar a sua eficácia, abordando os pontos mais discursivos. PALAVRAS-CHAVE: Internação involuntária; Minas Gerais; dependente químico; drogas; intervenção estatal. SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 DEPENDÊNCIA QUÍMICA; 2.1 Conceito; 2.2 Transtorno Mental; 2.3 Garantias do dependente químico; 2.3.1 Garantias constitucionais; 2.3.2 Garantias infraconstitucionais; 2.3.2.1 Lei 10216 de 2001; 2.3.2.2 Lei 11.343 de 2006; 2.3.2.3 Resolução nº 3 de 27 de outubro de 2005; 3 INTERNAÇÃO DO DEPENDENTE QUÍMICO NO ESTADO DE MINAS GERAIS; 3.1 Descriminalização do dependente químico e a sua inimputabilidade 3.2 Da internação involuntária; 3.3 Procedimento da internação involuntária no estado de Minas Gerais; 4 POLÍTICA PÚBLICA NO ESTADO DE MINAS GERAIS; 4.1 Do dever do Estado; 4.2 Da necessidade de uniformização do local de tratamento; 4.3 Criação e fiscalização de clínicas para tratamento de internação involuntária pelo estado de Minas Gerais; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO A utilização compulsiva de drogas nem sempre foi considerada dependência química. Anteriormente, aqueles que faziam o uso eram marginalizados pela sociedade, que viam no usuário um desvio de caráter quando acometidos pela dependência química. Este cenário modificou a partir da metade do século XX, momento em que tal comportamento passou a ser considerado uma síndrome de dependência química, a qual necessita de tratamento assim como as demais doenças estipuladas pelo Conselho Internacional de Doenças (CID). No decorrer da pesquisa serão abordados os direitos garantidos ao dependente, positivados no texto constitucional e reafirmados em normas infraconstitucionais. Entre as diversas medidas possíveis para o tratamento da dependência, será destacada a medida de internação involuntária daquele acometido por transtorno mental em razão do uso de drogas e o procedimento aplicado em diferentes estados do país, entre eles São Paulo, Rio de Janeiro e detalhadamente em Minas Gerais. Por fim, será questionada a eficácia desta modalidade de internação e sugerida eventuais melhoramentos ou alterações. 2 DEPENDÊNCIA QUÍMICA 2.1 Conceito A dependência química, caracterizada também pelo uso compulsivo de substâncias capazes de alterar o efeito psíquico da pessoa, é um fato que acompanha todo o contexto histórico do uso de drogas, ao levar em consideração que todas as civilizações tiveram acesso às ervas e substâncias que hoje são consideradas drogas pela Lei 11.343 de 2006 e causam a dependência. Anteriormente, aquele que usava drogas compulsivamente e tinha os seus comportamentos alterados pelo efeito da mesma era comparado à marginal ou até mesmo reconhecido como aquele que possuía desvio de caráter. Com o decorrer do tempo, tal comportamento foi diagnosticado como uma síndrome, mais especificadamente como uma dependência química. A fim de esclarecer e identificar a dependência a CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) trouxe consigo o conceito da mesma:
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A síndrome de dependência química é o conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após repetido consumo de uma substância psicoativa, tipicamente associado ao desejo poderoso de tomar a droga, à dificuldade de controlar o consumo, à utilização persistente apesar das suas consequências nefastas, a uma maior prioridade dada ao uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações a um aumento da tolerância pela droga e, por vezes, a um estado de abstinência física”. (disponível em <http://www.datasus.gov. br/cid10/V2008/WebHelp/f10_f19.htm> Acesso em: 15/11/2014) Entende-se como substâncias psicoativas, aquelas que, quando ingeridas, modificam funções do sistema nervoso central, produzindo efeitos psíquicos e comportamentais, independentemente da via de administração (MESSA; 2002 p. 43); 2.2 Do transtorno mental A dependência química é algo que vem sendo discutido com maior amplitude na atualidade e leva em consideração diversos fatores para a sua caracterização como um transtorno mental. A referida dependência como transtorno mental está estipulada na CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), mais especificamente demonstrada nos itens F-10 a F-19, no qual informa os tipos de transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substância psicoativa. A CID10 compreende que: este agrupamento compreende numerosos transtornos que diferem entre si pela gravidade variável e por sintomatologia diversa, mas que têm em comum o fato de serem todos atribuídos ao uso de uma ou de várias substâncias psicoativas, prescritas ou não por um médico. (CID-10) Para que sejam identificadas as substâncias psicoativas deve ser efetuada uma busca a partir de todas as fontes de informações disponíveis, como aquelas fornecidas pelo próprio sujeito, análises de sangue e outros líquidos corporais, sintomas físico, psicológico, entre outros. O objetivo desta identificação é informar se tal substância é capaz de causar a dependência química no usuário ou não.
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2.3 Garantias do dependente químico 2.3.1 Garantias constitucionais
Logo no inciso III do art. 1º, a Constituição da República tem como fundamento do Estado Democrático de Direito a garantia da dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais visam defender preliminarmente a pessoa humana, assim como a sua dignidade, e o fato desta defesa estar constitucionalizada coloca o indivíduo como centro de titularidade de direitos. A Constituição da República garante também o direito à vida no caput do art. 5º, e o direito à liberdade de locomoção conforme dispõe o inciso XV do mesmo artigo. No que tange à inviolabilidade do direito à vida, tem-se que a mesma está diretamente relacionada com o princípio da dignidade da pessoa humana. Isso significa que para que seja garantido o direito à vida em sua plenitude, esta deve ser vivida com dignidade. Ora, evidente que o usuário de drogas, vitimado pela dependência química, por muitas vezes encontra-se em situações sub-humanas em virtude da compulsão pelo uso de substâncias psicoativas. Diante disso, deve ser analisado: tal usuário goza do seu direito a vida? O faz com dignidade? A resposta é não! Destarte, surge a necessidade de uma intervenção na vida do dependente, a fim de garantir a inviolabilidade dos seus direitos. Como já foi demonstrado, o dependente químico sofre de um transtorno mental, e isto deve ser tratado. O direito à saúde está positivado no art. 196 da CR/88, e é reconhecido expressamente pela Constituição Federal como direito fundamental social, a qual prevê que a concretização da proteção e promoção do direito à saúde, deve ser exercida tanto pelos entes públicos quanto pelos particulares. Nesse sentido, entende Sarlet: Embora haja obrigação precípua do poder público para a efetivação do direito, há de se reconhecer que a saúde gera um correspondente dever de respeito aos particulares, uma vez que igualmente estão vinculados na condição de destinatários da norma de direitos fundamentas. Razão pelo qual se tutela a integridade física, vida e dignidade pessoal. (SARLET, 2012) Entre inúmeras formas de tratamento existentes para o dependente químico com o objetivo de garantir a sua reinserção e convívio social, tem-se a internação involuntária. O procedimento desta modalidade de internação será ampliado posteriormente. A partir disso, surge o questionamento quanto à liberdade de locomoção garantida constitucionalmente a todo cidadão. Neste caso, a garantia da dignidade da pessoa humana, assim como a garantia do bem superior que é a vida devem servir como limitadoras da liberdade de locomoção do indivíduo. Isso significa que a cessação da liberdade do dependente é legal, pois o que está sendo questionado é o direito que o indivíduo possui à saúde, mas sem restringir sua liberdade coercitivamente, apenas na tentativa de assegurar sua segurança e um tratamento adequado. 2.3.2 Garantias infraconstitucionais
Em razão do aumento do número de usuários de drogas acometidos pela da dependência química, conforme informação fornecida pelo site do senado, surge a necessidade de regulamentação assim como a readaptação das normas já existentes de acordo com o tempo. Entre as normas garantidoras dos direitos do dependente, assim como o seu devido tratamento para a garantia da adequada reinserção social estão a Lei 10.216 de 2001 (Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental) e a Lei 11.343 de 2006 (Nova Lei de Drogas).
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Conforme será exposto a seguir, restará evidente que tais redações possuem um objetivo em comum: a recuperação do indivíduo, na busca de garantir a sua saúde mental, reinserção social, com a devida participação do Estado, da família e sociedade como um todo. 2.3.2.1 Lei 10216 de 2001 A Lei de Saúde Mental (10.216/2001), objetiva garantir os direitos e proteção às pessoas acometidas por transtorno mental independente de nacionalidade, idade, família, recursos econômicos, entre outros. Não há também discriminação quanto ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno. No art. 2º da mesma lei, são indicados os direitos garantidos aos portadores do transtorno e aos seus familiares nos atendimentos em saúde mental. Entre tais direitos, o inciso V diz que a mesma deve “ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária”, é garantido ainda ao usuário e familiares, em seu inciso VII, o recebimento do maior número de informações a respeito da sua doença. É enfatizada no texto legal a responsabilização do Estado em desenvolver políticas de saúde mental, incluindo-se ainda a participação da sociedade e da família, e visa um tratamento adequado em que a assistência deve ser prestada em estabelecimento de saúde mental, no caso, instituições ou unidades com todos os recursos necessários para o tratamento dos portadores de transtorno mental. Em relação aos recursos, o parágrafo 2º, do art. 4º, da Lei, estabelece que: O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. Ainda no artigo 4º, em seu parágrafo primeiro, é explicitado que a internação deve ser aplicada em ultima ratio, ou seja, quando todos os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Em sua primeira redação, a lei era caracterizada por uma política higienista. Atualmente, a reforma da lei trouxe consigo progressos em relação às políticas públicas para melhoria do tratamento de portadores de transtorno mental ao retirar a ideia dos manicômios, políticas asilares ou até mesmo a intenção de higienização, passando a defender o tratamento em estabelecimentos com todos os recursos necessários para sua eficácia. A precípua finalidade é a reinserção social do dependente químico, protegendo a sua vida e dignidade. 2.3.2.2. Lei 11.3434 de 2006 A Lei 11.343, também conhecida como Lei de Drogas, foi publicada em 23 de agosto de 2006 e trouxe como principais objetivos, a prevenção do uso indevido, atenção, reinserção social de usuários e dependentes de drogas e a repressão do tráfico ilícito de drogas, conforme estabelece o seu art. 1º. Divergente das leis anteriores (Lei 6.368/76 e Lei 10.409/2002), nota-se que a nova Lei de Drogas, trouxe inovações, com uma política de separação entre prevenção de uso e repressão do tráfico de entorpecentes, ao retirar a característica de criminoso atrelada ao dependente, que passou a considerar o tratamento como melhor solução, afastando reclusão. Trata-se de uma medida de proteção. No mesmo sentido, entende Andrey Borges e Paulo Roberto Galvão: O mote desta nova linha metódica é o reconhecimento de que o uso de drogas é uma realidade e que suas causas e efeitos constituem um problema social. Com base nesta premissa, não é suficiente, para a prevenção geral e especial, taxar os usuários de drogas de criminosos e impor-lhes a reclusão,
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permitindo a superveniência de todas as consequências adversas desta forma de repressão – em especial, o preconceito – e, ao mesmo tempo, negando aos usuários a assistência integral devida pelo Estado. (MENDONÇA; CARVALHO; 2013) De acordo com a lei o tratamento deve ser utilizado em casos específicos e não será aplicado a todos aqueles que utilizam drogas (há uma distinção entre dependentes químicos e usuários de entorpecentes) sob o fundamento de que nem todos que usam a droga tornam-se necessariamente dependente. Circunstanciadamente no Título III da Lei, há disposição sobre a prevenção, atividades de atenção e reinserção social de usuários ou dependentes de drogas. Os autores Andrey Borges e Paulo Roberto Galvão, explicam como tais atividades devem ser exercidas separadamente: A atividade de “prevenção” visa a reduzir os fatores de vulnerabilidade e comportamentos de risco ao acesso às drogas, bem como a promover e fortalecer os fatores de proteção, ou seja, aqueles fatores que afastariam os potenciais usuários das drogas, tais como incentivo às atividades esportivas, culturais e profissionais. A “atenção”, direcionada ao usuário, dependente e respectivos familiares, visa a melhorar a qualidade de vida e reduzir os riscos e danos associados ao uso de drogas, não somente à saúde individual, mas à sociedade como o um todo (art. 20). Por fim, a “Reinserção Social” visa à integração e à reintegração, em redes sociais, do usuário, dependente e respectivos familiares (art. 21), ou seja, permitir que eles sejam novamente integrados à sociedade, evitando a marginalização. (MENDONÇA; CARVALHO; 2013) O autor Luiz Flávio Gomes aborda a divisão da a prevenção em três momentos. São eles: a prevenção primária (visa impedir o primeiro contato do indivíduo com a droga); prevenção secundária (busca evitar que o indivíduo que faz o uso moderado passe a usar com mais frequência) e a prevenção terciária (investe nas ações de para a recuperação do dependente) [GOMES. 2013]. A finalidade dessa subdivisão é aplicar o tratamento correto ao usuário de acordo com as circunstâncias e necessidade. No que versa à Reinserção Social, entende-se que a sua intenção é fazer com que o ex-usuário de drogas se sinta confortável diante da nova situação de tratamento, uma vez que o contexto histórico relacionado ao dependente químico é traz uma imagem de que os mesmos pertencem às classes menos favorecidas da sociedade. Apesar da Nova Lei, dedicar um título para as garantias do usuário e dependente, abordando sobre a política preventiva (capítulo I) e de reinserção social (capítulo II), a atuação do Estado e entes privados (art. 24), a destinação de recursos a instituições sem fins lucrativos (art. 25), entre outros, a mesma não dispõe sobre a internação do usuário de drogas fora das hipóteses de infrações delitivas. O fato de a lei permanecer silente quanto à possibilidade de internação para tratamento do usuário não significa que esta não poderá ocorrer. Como foi abordado anteriormente (Lei 10216/2001), é possível a internação daqueles que através de laudo médico é diagnosticado com transtorno mental, podendo esta ocorrer de três formas: voluntária, involuntária e compulsória. 2.3.2.3. Resolução 3, de 27 de outubro de 2005 O CONAD, estabelece sua política Nacional sobre Drogas através da Resolução 3, de 27 de outubro de 2005, e, no que tange à recuperação e reinserção social, destaca que:
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O Estado deve estimular, garantir e promover ações para que a sociedade (incluindo os usuários, dependentes, familiares e populações específicas) possa assumir com responsabilidade, o tratamento, a recuperação e a reinserção social, apoiada a técnica e financeiramente, de forma descentralizada, pelos órgãos governamentais, nos níveis municipal, estadual e federal, pelas organizações não governamentais e entidades privadas. (Resolução nº 3 de 2005) O investimento para as políticas de drogas é estipulado em seu item 2.1.5 que dispõe: No orçamento Geral da União devem ser previstas dotações orçamentárias, em todos os ministérios responsáveis pelas ações da Política Nacional sobre Drogas, que serão distribuídas, de forma descentralizada, com base em avaliação das necessidades específicas para a área de tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e ocupacional, estimulando o controle social e a responsabilidade compartilhada entre governo e sociedade. (Resolução nº 3 de 2005) A resolução estipula também que as estratégias de tratamentos e demais devem ser baseadas em pesquisas científicas, devendo-se investir naquelas que obtiverem os melhores resultados. Por fim, entre outras garantias, em relação à recuperação, é incentivada a promoção de reinserção familiar, social e ocupacional, tendo como principal objetivo o rompimento do ciclo consumo e tratamento, uma vez que muitas vezes, após o tratamento, o paciente tem recaídas ou crises de abstinência, volta a consumir drogas. Em todos os textos de lei nota-se a intenção do legislador em recuperar o dependente químico, dando ao mesmo todas as garantias positivadas no texto constitucional, como o direito à vida com dignidade, à saúde, a participação do Estado e da sociedade, objetivando, sobretudo a reinserção social. Para atingir o objetivo financeiramente, já existem recursos cuja destinação é especificamente para estas ações. Tem-se como exemplo a reserva pelo orçamento geral da União. A medida de internação sem o consentimento do dependente somente é aplicada em situações excepcionais, nas quais o dependente se encontre em situações de risco de vida, sendo necessário que tenham esgotados todos os recursos distintos do cerceamento da liberdade do mesmo. Todavia, quando resta identificado o transtorno mental do usuário, tem-se que a sua capacidade de autocontrole da situação encontra-se comprometida. Isso significa que, muitas vezes, o mesmo não possui condições de entender a necessidade de tratamento diverso, nem sequer controle quanto ao tratamento extra hospitalar, tendo em vista que a possibilidade do mesmo ter recaídas no início é bem maior. Percebe-se nesse caso, a necessidade de internação do dependente em clínicas, a fim de oferecer o tratamento adequado nas crises de abstinências e evitar o retorno ao uso de drogas. Por outro lado, pergunta-se: está o sistema brasileiro preparado para receber os dependentes químicos? O país encontra-se pronto para oferecer o tratamento adequado e garantir a sua reinserção social? As políticas sobre drogas ao que se refere à internação não é padronizado, o que resulta constantes alterações. Nota-se que os recursos para o tratamento do dependente químico estão positivados, entretanto, não há uma consonância entre os entes que os façam tornarem eficazes.
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3 INTERNAÇÃO DO DEPENDENTE QUÍMICO NO ESTADO DE MINAS GERAIS 3.1 Descriminalização do dependente químico e a sua inimputabilidade A utilização de drogas lícitas ou ilícitas pela sociedade tem se tornado cada vez mais comum e em alguns casos o uso moderado foge do controle do usuário, levando-o à dependência. O dependente torna-se vulnerável e, em algumas situações, abandonam seu emprego e família, submetendo-se de práticas de furtos à capacidade de matar alguém, com objetivo em obter mais drogas para consumo. Este comportamento faz com que a sociedade o considere um criminoso. Entretanto parte desta sociedade não compreende que tais atos não seriam praticados pelo dependente, se não estivesse investido pelo transtorno mental. No mesmo sentido se expressa Anna Nery: O uso indiscriminado de substâncias psicoativas vem sendo associado à criminalidade e às práticas antissociais relacionadas ao comportamento irresponsável do usuário, que acaba por cometer atos de delinquência e envolver-se com problemas de ordem judiciária. Isso acarreta perdas individuais e sociais, o que leva o dependente à exclusão social. (Disponível em < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452010000300021> Acesso em: 20/11/14) Conforme demonstrado, a Nova Lei de Drogas trouxe em seu conteúdo o tratamento diferenciado àquele que faz o uso de drogas e àquele que pratica o tráfico. A precípua finalidade dessa diferenciação é enfatizar que o uso de drogas trata-se de um problema social e que a repressão do usuário não trará resultados satisfatórios após o cumprimento da sua pena, podendo inclusive piorar o seu comportamento. Nesse sentido entende o Supremo Tribunal Federal: EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. (...) 4. A Lei n. 11.343/2006 --- nova Lei de Drogas --- veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. 5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. (...) (STF - HC 92961 / SP - SÃO PAULO, Relator: Ministro Eros Grau. Julgamento: 11/12/2007. Órgão Julgador: segunda turma). Conforme se expressa inciso II do art. 4º do Código Civil, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham discernimento reduzido, são incapazes relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercerem. O dependente químico é considerado portador de transtorno mental, de acordo com a CID-10, e a existência do transtorno deve ser comprovada através de laudo médico, conforme estipulado pelo art. 8º da Lei 10216/2001. Diante da demonstração de descriminalização do usuário e dependente, pela Lei de Drogas, a consideração da existência do transtorno mental pela Lei de Saúde Mental, nota-se a reduzida capacidade do indivíduo em exprimir sua vontade, sendo necessária a intervenção de terceiros para determinados atos da vida civil. Num outro ponto de vista, em casos de prática de crimes, independente do tipo de infração, se cometido por dependente químico,
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há, na primeira parte do art. 45 da Lei de Drogas, a consideração de um caso de inimputabilidade penal. Reconhecendo o juiz ser caso de inimputabilidade, este deve absolver o agente e, caso entenda necessário, determinar o seu tratamento médico adequado, conforme se expressa o parágrafo único do art. 45 da Lei anteriormente citada. Ante o exposto, restou demonstrado a necessidade de tratamento do dependente como medida preferencial, visto que comprovado a sua capacidade reduzida ocasionada pelo transtorno mental, a dependência. 3.2 Da internação involuntária A internação involuntária é disciplinada pela Lei 10.216 e é realizada a pedido de terceiros (podendo ser familiares ou outras fontes), sem o consentimento do dependente. Essa forma de internação justifica-se pela incapacidade do paciente em reconhecer a necessidade do tratamento, levando em consideração a grave situação de risco em que se encontra devido ao uso indiscriminado de substâncias psicoativas. Apesar de não tratar especificadamente das internações fora do contexto de práticas ilícitas, a Lei de Drogas defende que a medida de tratamento através da internação deve ser adotada em último caso. Assim também entende a Lei de Saúde Mental ao dispor que a internação somente será adotada quando insuficientes os recursos extra-hospitalares. A principal intenção de ambas as leis é evitar que o dependente tenha a sua liberdade cerceada. Ocorre que há situações em que o dependente não possui discernimento suficiente para perceber os riscos que o uso da droga traz à sua vida, sendo necessária uma intervenção na tentativa de recuperá-lo e fazê-lo entender como as consequências do uso pode interferir na sua vida como um todo, seja no meio social, financeiro ou pessoal. Sendo assim, inúteis seriam os recursos extra-hospitalares, como terapias, em grupo ou individual, quando o dependente sequer aceita a sua condição atual, ou seja, o mesmo perdeu a sua capacidade de tomar decisões. Diversos e impactantes são os casos de dependência química evidenciados na mídia. As situações envolvem pessoas sem condições financeiras que buscam tratamento e não possuem amparo pelo Estado, pessoas, independente da condição financeira, que negam o tratamento, sendo nesse caso situação de internação involuntária ou compulsória e pessoas que reconhecem a necessidade, pois não conseguem se recuperar sozinhas, e buscam o tratamento para abandonar o uso de drogas. De acordo com a clínica de tratamento Viva, a eficácia da internação voluntária é significativamente mais alta, e justificada principalmente pela concordância e colaboração do dependente. Em contrapartida, apesar do grau de eficácia da internação compulsória ou involuntária ser menor, não significa que a mesma deve ser descartada. Em depoimentos de pessoas submetidas a esse tipo de tratamento, há relatos que após a desintoxicação o paciente reconhece a necessidade de reabilitação, fazendo com que o procedimento seja facilitado. O procedimento da internação involuntária está disciplinado nos parágrafos do art. 8º, da Lei de Saúde Mental que determina que a autorização da mesma deva ser efetuada por profissional competente (médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina onde se localize o estabelecimento) e comunicada ao Ministério Público pelo técnico no prazo de 72 horas. Ressalta-se que tal comunicação também deverá ser realizada no momento da alta do paciente, sendo que o término poderá ocorrer de duas formas: solicitação escrita do familiar, ou responsável legal; ou por determinação do especialista responsável pelo tratamento. Quanto à estrutura do local de tratamento do paciente é importante enfatizar que este deve oferecer todos os recursos imprescindí-
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veis (assistência integral) para a devida reabilitação do mesmo, quais sejam: serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros. (vide §2º do artigo 4º, da Lei 10.216). A internação involuntária e de dependentes químicos nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo são reiteradamente aplicadas e, no caso de obrigatoriedade do Estado em autorizar o tratamento da internação compulsória ou viabilizar o tratamento da internação involuntária, tem-se que estas são reafirmadas e garantidas nas jurisprudências dos respectivos tribunais. Nesse sentido: INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA. Pedido liminar. Decisão que revogou deferimento liminar. Agravado que, além de ser pessoa agressiva, usuário de bebidas alcoólicas e de drogas, sofre de doença psiquiátrica. Pedido da agravante que está disciplinado na lei e é constitucionalmente garantido. Presença dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. Agravo provido. (TJSP - AGRAVO Nº 474.139-4/1-00. Relator Carvalho Viana. Data do julgamento 20/03/2007); APELAÇÃO CÍVEL Disponibilzação de internação involuntária para dependente químico Direito à saúde que deve ser prestado pelo Estado ‘lato sensu’ Prescrição médica específica Inadmisíveis limitações de cunho administrativo Sentença mantida Recurso desprovido. (TJSP - Apelação nº 006905-23.2013.8.26.0242. Relator: Moreira de Carvalho. Data de julgamento: 24/11/2014). APELAÇÃO - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DEPENDENTE QUÍMICO QUE NECESSITA DE INTERNAÇÃO EM CLÍNICA ESPECIALIZADA PARA DESINTOXICAÇÃO. Sentença de procedência. - Condenação dos réus a fornecerem ao autor tratamento em clínica especializada para desintoxicação de dependência química e, caso eleita clínica fora dos limites da Comarca, seja providenciado o seu transporte. (...) A universalização da saúde é objetivo da república (Arts. 196 e 200, CF), constituindo direito de todos e dever do estado, a quem a constituição encarrega de prover os meios suficientes para garanti-lo aos necessitados. Responsabilidade solidária dos entes da Federação no fornecimento gratuito de medicamentos necessários à recuperação da saúde de portadores de doenças que demandem uso contínuo de medicação, bem assim de internações. Súmula 65, TJRJ - Não se há de fazer diferenciação entre o médico credenciado pelo SUS e o não credenciado. Laudo médico, que atesta a necessidade de internação. Manutenção da sentença. (...) (TJRJ – Apelação nº 0027090-19.2012.8.19.0014. Relator(a): Desembargador(a) Sidney Hartung. Data do Julgamento: 24/06/2014) No Estado de São Paulo em 2013, houve a assinatura pelo governador de um termo de cooperação técnica com o Ministério Público, Ordem de Advogados da OAB e Tribunal de Justiça de São Paulo. O termo supracitado prevê a instalação de unidades em determinadas regiãos onde se encontram concentrados dependentes de Crack, na qual trabalharão em conjunto a equipe médica, juízes, promotores e advogados com a finalidade de acelerar o procedimento de tratamento mais adequado para cada caso específico. Sendo necessária a internação involuntária ou compulsória, através de laudo médico, deverá o juiz determinar a internação compulsória, ou o Ministério Público consentir com a internação involuntária. Situação análoga ocorreu no Estado do Rio de Janeiro também em 2013. A megaoperação de combate ao crack aconteceu na entrada da comunidade Parque União no bairro Bonsucesso, em que os usuários foram retirados do local e encaminhados para um setor de triagem
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localizado em um abrigo da prefeitura em Paciência (Zona Oeste da cidade). No local era feito a avaliação dos pacientes pela Secretaria de Saúde que indicavam o tratamento adequado para cada um. Medida similar vem sendo tratada no Estado de Minas Gerais, desde o ano de 2012, que alterou a política de tratamento oferecida ao usuário de crack, passando a adotar a internação involuntária. Entretanto a adoção da internação somente será permitida nos casos de risco de morte ao paciente . O Estado não pretende recolher os usuários nos pontos tradicionais de consumo, mas aplicar tal medida nos casos em que os familiares procurarem socorro em hospitais ou centros de tratamento ao usuário. O subsecretário de políticas sobre drogas Benevides ao manifestar a respeito enfatizou ainda que “Cada caso será analisado individualmente, e só faremos a internação involuntária se houver indicação médica e acompanhamento do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e da Defensoria Pública”, completou ainda dizendo que “A decisão sobre o paciente caberá a um conjunto de profissionais, e a internação só será aplicada quando for realmente necessária”. Em relação às medidas adotadas pelos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, a Organização das Nações Unidas (ONU) considerou a ação como operações de varredura de dependentes de crack, através de uma inspeção feita pelo Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária. Dessa forma, a internação involuntária do dependente ficará proibida de ser executada por policiais e outros agentes de segurança pública. 3.3 Procedimento da internação involuntária no estado de Minas Gerais Atualmente o tratamento de dependência química gratuito em Minas Gerais é oferecido pelo SUS através de fornecimento de medicamentos, tratamento ambulatorial nos Centros de Atenção Psicossocial e internação psiquiátrica, em caso de crises agudas, em hospitais especializados de Belo Horizonte. Nos casos de internação involuntária, em virtude da ausência de leitos suficientes e condição financeira para arcar com os custos da internação, familiares recorrem ao judiciário na tentativa de obter vagas nos leitos hospitalares ou clínicas de tratamento. Nesse sentido: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. DROGAS. DEPENDÊNCIA. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. POSSIBILIDADE. DIREITO À SAÚDE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. (...) Possível a internação involuntária, precedida de avaliação médica especializada, para o restabelecimento da saúde de usuário de drogas, tendo em vista a possibilidade de risco para si e à integridade física dos seus familiares. (TJMG. Processo nº 1.0024.13.336924-9/001. Relator Desembargador Antônio Sérvulo. Data do julgamento: 11/03/2014) EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - TUTELA ANTECIPADA - DIREITO À SAÚDE - PACIENTE DEPENDENTE QUÍMICO E PORTADOR DE ESQUIZOFRENIA - INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA EM CLÍNICA TERAPÊUTICA DE AUXÍLIO E RECUPERAÇÃO A TOXICÔMANOS - CUSTEIO PELO ESTADO - ARTS. 4º E 6º DA LEI N. 10.216/2001 - EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA - APRESENTAÇÃO DE LAUDO MÉDICO CIRCUNSTANCIADO COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. 1. O tratamento de saúde mental em regime de internação, por ser ato que interfere na esfera de autonomia do indivíduo, tem evidente caráter excepcional, sendo imprescindível a apresentação de laudo médico circunstanciado, que caracterize os motivos pelos quais a internação é preconizada ao paciente (arts. 4º e 6º da Lei n. 10.216/2001).
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2. Demonstrada nos autos a imprescindibilidade da submissão do paciente a internação em clínica terapêutica de auxílio e recuperação a toxicômanos para tratamento de dependência química, por meio da apresentação de laudo médico circunstanciado, que expõe os motivos pelos quais a internação é preconizada ao paciente, esta deve ser proporcionada pelo Estado, que é o ente responsável por fornecer os meios indispensáveis ao tratamento de saúde dos cidadãos. (TJMG – processo nº 1.0625.14.001452-7/001. Relator(a): Desembargador(a) Áurea Brasil. Data do julgamento: 25/09/2014) EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO ORDINÁRIA – ESTADO DE MINAS GERAIS - FORNECIMENTO DE TRATAMENTO – DEPENDENTE QUÍMICO - ESTÁGIO AVANÇADO - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA - REQUISITOS - PRESENÇA. (...) - Ausente a verossimilhança das alegações do agravante, pois, quando a saúde de um indivíduo está se deteriorando e sua vida corre risco, não se pode aguardar a excessiva burocracia administrativa para realização da intervenção necessária. - Há risco de dano inverso, uma vez que a internação involuntária mostrou-se, num primeiro momento, como a melhor alternativa a ser adotada, tendo em vista o perfil psicológico e gravidade do estado do assistido (dependente químico). (TJMG – Processo nº 1.0313.13.002653-4/001. Relator(a): Desembargador(a) Heloisa Combat. Data do julgamento: 18/07/2014) A forma de abordagem involuntária atualmente adotada pelas clínicas de tratamento em Minas Gerais é baseada na Portaria nº 148 de 31 de Janeiro de 2012 que: “define normas as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do Componente Hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e institui incentivos financeiros de investimento e de custeio” (art. 1º). A intenção das clínicas é utilizar a portaria supracitada na intenção de desintoxicar o paciente e posteriormente direcioná-lo para o estabelecimento no qual possui um projeto terapêutico. Insta enfatizar que para a ocorrência da condução do paciente para o estabelecimento de tratamento faz necessário seu consentimento. Isso significa que a abordagem involuntária acontece somente no primeiro contato com o paciente, momento em que o mesmo é direcionado ao serviço hospitalar. O serviço hospitalar de referência deve objetivar a preservação da vida e criar condições para a garantia da continuidade do cuidado por outros componentes da Rede de Atenção Psicossocial (art. 2º, inciso II) e oferecer o suporte hospitalar apenas em casos de emergências (art. 2º, inciso IV), sendo que a internação deve ser de curta duração, encerrando-se com a estabilidade clínica do usuário (art. 3º, inciso I). Em seu art. 5º, a Portaria determina que a estrutura física do Serviço Hospitalar deve, entre outras coisas, atender “uma lógica na qual a humanização do cuidado e a conveniência se apresentam como favorecedores do processo terapêutico” (parte final do inciso III). Em relação ao número de leitos, tem-se que deverá haver 01 leito a cada 23 mil habitantes, sendo que o número máximo em cada hospital é de 30, não podendo, entretanto, exceder a 15% dos leitos (art. 9º). O procedimento de internação involuntária do dependente em Minas Gerais existe, porém a sua estrutura não se mostra eficaz. O paciente é levado a leitos hospitalares involuntariamente para o tratamento de desintoxicação e após a sua estabilidade clínica é liberado. Logo após, o
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paciente decidirá sobre a sua internação voluntariamente em clínicas. Em algumas situações, apenas a estabilidade clínica não é suficiente para o dependente entender o quão necessário é seu tratamento. Além disso, o ambiente do hospital não traz para o paciente uma boa imagem dos benefícios do tratamento da dependência, e nem sequer uma estrutura favorecedora conforme estabelece o disposto no artigo 8º, III da Portaria em questão. Outro problema em relação ao atual procedimento da internação involuntária em Minas Gerais diz respeito ao número de leitos hospitalares. Estes são insuficientes para suportar a demanda existente que engloba a internações voluntária e compulsória. Informativo da disponibilidade de leitos em Minas Gerais: NÚMEROS 2.750 é o total de leitos disponíveis em Minas para pacientes da saúde mental, também destinados a pessoas em tratamento por dependência de álcool e drogas; 1.000 leitos do total são dão destinados a pacientes permanentes; 1.750 vagas restantes da saúde mental estão liberadas para atendimento flutuante de usuários de álcool e drogas em Minas; 100% é a taxa de ocupação desses leitos; 10% da população brasileira é dependente de álcool e drogas; 1 milhão de mineiros têm problemas com álcool e drogas, o que não significa, no entanto, que todos precisem de internação; 1,8% da população brasileira, segundo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas seja usuária de crack; Fonte: Estado de Minas: Disponível em: http://www.senado. gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/tratamento-para-dependentes-quimicos/criticas-ao-local-duracao-da-internacao-dependencia-quimica.aspx. Acesso em 28.11.2014 O numero de leitos destinados para tratamento de dependentes químicos para cada hospital é limitado, devendo ser de 30% da capacidade dos leitos existentes, não podendo ultrapassar o número de 15. Entretanto, a equipe direcionada a este tratamento tem a capacidade para atender 40 leitos. Nesse sentido expõe: Para oferecer seis leitos em ala própria para doentes mentais é preciso ter psiquiatra e equipe de enfermagem, além de plantonistas, psicólogo e assistente social, toda uma equipe, quando sabemos que essa mesma equipe, com um psiquiatra e duas enfermeiras, atenderia quarenta leitos. A gente tem que entender que não podemos jogar dinheiro fora (Disponível em:<http:// www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependenciaquimica/tratamento-para-dependentes-quimicos/criticas-ao-local-duracao-da-internacao-dependencia-quimica.aspx>) Percebe-se que o Estado não está estruturalmente preparado para a execução da modalidade de internação involuntária, visto que é necessária a conjunção de um espaço físico adequado com uma equipe devidamente preparada, ambos auxiliados pelo Estado. Por isso, se faz necessário a cooperação de todos para aperfeiçoar o tratamento e local de internação involuntária dos dependentes químicos, analisando individualmente cada caso, com o fim de garantir a adequada reinserção social do paciente. 04 POLÍTICA PÚBLICA NO ESTADO DE MINAS GERAIS 4.1 Do dever do Estado
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O direito à saúde trata-se de direito social e é caracterizado como direito fundamental. A partir desta premissa, observa-se ser dever do Estado executar medidas cuja finalidade seja a garantia e efetividade da saúde. A saúde deve ser garantida pelo Estado através de política social e, conforme o art. 196 da Constituição da República deve objetivar a “redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. A dependência química é questão de saúde e deve ser tratada. Para isso, se faz necessário a atuação do Estado por ser dever deste garantir a saúde. 4.2 Da necessidade de uniformização do local de tratamento Conforme já demonstrado, existe o tratamento da dependência química através de internação involuntária no estado de Minas Gerais. Entretanto, o estado não possui leitos suficientes para receber todos que necessitam de tratamento. Outro problema refere-se ao procedimento do tratamento, que se inicia em hospitais psiquiátricos para somente depois direcionar o paciente a clínicas que recebem pacientes que resolvem se tratar voluntariamente. A partir disso, entende-se que a internação involuntária no estado não é eficaz, uma vez que para que seja efetuada a internação, é necessário aguardar a liberação de vagas em leitos psiquiátricos e a sua mora pode ocasionar na morte do dependente, pois o mesmo encontra-se em situações de risco em virtude das consequências trazidas pelo uso de drogas. Outro ponto da ineficácia da internação involuntária em Minas Gerais refere-se ao fato do dependente ser preliminarmente internado em hospitais até a sua estabilidade clínica e logo após ter que decidir sobre a sua internação ou não em clínicas de tratamento. Ocorre que a estabilidade clínica não significa exatamente que o paciente esteja em condições de decidir sobre a necessidade ou não de sua internação, tendo em vista que tal estabilidade diz respeito tão somente à primeira etapa de tratamento que visa estabilizar a crise de abstinência, que é a desintoxicação. Além disso, apesar de cada tratamento ser individualizado, a maioria destes somente possuem progressos a partir do terceiro mês, ou seja, após três meses o paciente começa a recuperar a sua capacidade de discernimento. Diante disso, se faz necessário a melhoria da medida adotada no estado, sendo que a solução mais viável, neste caso, é a criação de clínicas específicas para a internação involuntária. É importante que na clínica possua os leitos de internação com todos os requisitos exigidos pela Resolução 3, de 27 de outubro de 2005, a fim de garantir desde o início ao paciente o convívio social e posteriormente a sua reinserção social. 4.3 Criação e fiscalização de clínicas para tratamento de internação involuntária pelo estado de Minas Gerais As ações e serviços sociais conforme o art. 197 da Constituição da República são de relevância pública e merecem atenção do Estado, que deve dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle. No caso em tela se faz necessário a efetivação da internação involuntária em Minas Gerais e o poder público deve adotar medidas objetivando a garantia da saúde do portador de transtorno mental diretamente ou através de terceiros. Além disso, a Lei de Saúde Mental (Lei 10216/2001) determina que o estado deve desenvolver política de saúde mental, assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais (art. 3º), enfatizando ainda a necessidade da participação dos familiares e a sociedade. Atualmente a internação é realizada, mas não como política pública de combate ao uso de drogas.
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Em virtude da antiga impossibilidade e atual dificuldade (ausência de leitos) de internação involuntária em Minas Gerais, os familiares dos dependentes químicos tem recorrido à esta internação em outros Estados que possuem políticas específicas em relação ao procedimento (estas clínicas já possuem escritórios em Minas Gerais e providenciam todo o processo de deslocamento e internação do dependente em outro estado). Ocorre que, há situações em que as clínicas não possuem a devida fiscalização e submetem os pacientes a situações degradantes e desumanas, não oferecendo aos mesmos o tratamento adequado. Diante disso, se faz necessário a criação de clínicas, destinadas especificadamente à internação involuntária, pelo estado de Minas Gerais, devendo o ambiente destas oferecer todos os recursos necessários para o adequado tratamento, desde a desintoxicação, psicoterapia até a terapia ocupacional e assistência social com o intuito de reestabelecer a sua reinserção social. A necessidade da criação de clínicas especializadas se justifica por diversos fatores, como a ausência de leitos, incompatibilidade de tratamento adequado com todas as garantias determinadas pelas leis supracitadas, baixo número de internações em virtude da inviabilidade, o fato dos familiares recorrerem a outros estados para efetuar a internação e por fim, a eficácia desse tratamento quando feito em longo prazo. Finalmente, insta salientar que a fiscalização das clínicas destinadas ao tratamento involuntário é de extrema importância para que se evitem abusos, maus tratos e aplicação indevida de recursos financeiros. É importante ainda que haja uma equipe devidamente estruturada conforme estabelece o §2º do art. 4º da lei de reforma psiquiátrica (Lei 10.216/2001). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A internação involuntária envolve diversos fatores e questionamentos, sendo que um deles refere-se ao cerceamento da liberdade do indivíduo, garantia esta que está positivada no texto constitucional. Por outro lado, tal modalidade se justifica pela necessidade de garantia essencial que é o direito à vida com dignidade e obrigação do estado em fornecer ao indivíduo o seu direito à saúde. O procedimento de internação involuntária não é padronizado, e cada estado adota políticas públicas distintas a fim de garantir a qualidade de vida e saúde do indivíduo acometido pelo transtorno mental da dependência química. Em relação ao Estado de Minas Gerais, restou destacado a ausência de aplicação da internação involuntária como uma política pública, assim como a insuficiência de leitos para tratamento e dificuldade de acesso a tal procedimento, fazendo com que os familiares busquem a internação dos dependentes em outros Estados. Conclui-se, diante do exposto, a necessidade de maior atenção à aplicação da internação involuntária no estado de Minas Gerais, tendo em vista que, em algumas situações (negação do dependente), é a única saída encontrada pela sociedade para garantir a recuperação do dependente e oferecê-lo uma oportunidade de convívio e reinserção social. REFERÊNCIAS GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. v.1. 13. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2011. (parte geral); GOMES, Luiz Flavio. BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Saches; OLIVEIRA,Willian Terra de. Lei de Drogas Comentada. 5. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2013;
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda em direito pelo Centro Universitário Newton 2 Doutor em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais/ UFMG, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG , professor na Graduação em Direito da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. **Júlio César Faria Zini; Marcelo Sarsur.
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ARBITRAGEM COMO FORMA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS TRABALHISTAS Breno Cesar Silva¹ Maraluce Maria Custodio2 Banca examinadora** RESUMO: A aplicação da arbitragem nos conflitos trabalhistas é tema de debate pelos doutrinadores em razão do caráter protecionista das normas trabalhistas e, consequentemente, sua indisponibilidade. O presente estudo pretende trazer uma reflexão da aplicabilidade da arbitragem no direito do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: arbitragem; direito do trabalho; procedimento arbitral; aplicabilidade; direitos indisponíveis. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Arbitragem; 2.1 A figura do árbitro no procedimento arbitral; 2.2 Procedimento arbitral; 3 Arbitragem em âmbito internacional e no Brasil; 4 Direito do trabalho e arbitragem; 4.1 Arbitragem trabalhista 5 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO Atualmente, a arbitragem vem sendo cada vez mais utilizada em contratos comerciais de grandes empresas brasileiras, permitindo, inclusive, uma ampliação nas relações internacionais, diante das vantagens apresentadas por este instituto. Dentre as vantagens deste método, podemos destacar a maior rapidez na resolução do conflito, a possibilidade do árbitro ser especialista na área, o sigilo e a autonomia da vontade das partes, ressalvando que apenas os direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de um procedimento arbitral. De outro lado, sabemos que as normas trabalhistas visam proteger o trabalhador equilibrando a relação formada entre empregado e empregador e, por este motivo, são considerados direitos indisponíveis e, em tese, os conflitos oriundos da relação de trabalho não seriam passíveis de resolução pela via arbitral. O presente trabalho se propõe a verificar a aplicabilidade da arbitragem nos conflitos laborais, buscando-se ressalvar as situações em que seria possível utilizar a arbitragem na solução destes conflitos. O primeiro capítulo abordará sobre a arbitragem de um modo geral, o conceito e as peculiaridades do instituto, tais como a figura do árbitro e o procedimento arbitral, enquanto no segundo capítulo trataremos da arbitragem em âmbito internacional, destacando as normas brasileiras que tratam do assunto. O terceiro capítulo tratará da arbitragem nas relações trabalhistas, ressalvando as posições contrárias e trazendo uma reflexão, com base na obra dos doutrinadores da área, de como este instituto poderia ser utilizado no âmbito trabalhista. 2 ARBITRAGEM A arbitragem, segundo Carlos Alberto Carmona (2009), é um método alternativo de solução de controvérsias, baseado na autonomia da vontade dos contratantes que se obrigam a submeter eventual litígio decorrente da relação jurídica formada, a um terceiro, denominado árbitro, cuja decisão tem eficácia de sentença judicial. O instituto possui natureza jurídica mista, segundo a doutrina majoritária, uma vez que por esta corrente, a primeira fase da arbitragem é considerada contratual, em razão da necessidade do acordo de vontade das partes, enquanto a segunda fase é jurisdicional diante da figura do árbitro e da função de julgar o litígio. A Lei 9307/96, que regulamenta o instituto da arbitragem, bem como o Código Civil Brasileiro, dispõe que somente as pessoas capazes podem recorrer a este meio de resolução de controvérsias,
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ressaltando que o litígio deverá versar sobre direitos patrimoniais disponíveis, uma vez que às partes é dado o poder de escolha do direito material e processual a ser aplicado, conforme previsto no art. 2º da Lei de Arbitragem. A manifestação da vontade das partes em utilizar a arbitragem como meio de resolução de eventual litígio, bem como a escolha do direito a ser aplicado e os árbitros que conduzirão o procedimento arbitral, são manifestados através da convenção de arbitragem, entendida como a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, sendo ambas declarações aptas a instituir a arbitragem. Contudo, anteriormente a aprovação da Lei 9307/96 a cláusula compromissória e o compromisso arbitral possuíam significados distintos, sendo a cláusula considerada mera declaração de vontade das partes em utilizar da arbitragem para a resolução de suas controvérsias, enquanto o compromisso era a formalização do contrato de arbitragem, único ato apto a instaurar o juízo arbitral e afastar a competência do juiz togado. Sobre o tema, leciona Carlos Alberto Carmona: Era nítida no direito brasileiro anterior à Lei de Arbitragem a posição de desvantagem que a doutrina reserva à cláusula compromissória, eis que esta, por si só, não gerava efeito negativo algum (não excluía a competência do juiz togado) e, para gerar efeito positivo (isto é, para instaurar a arbitragem) dependeria celebração do compromisso (e, portanto, da vontade do outro contratante). (CARMONA, Carlos Alberto, 2009, p. 101) A distinção de ambos os termos está ligado à formalidade, uma vez que a lei de arbitragem exige apenas que a cláusula seja celebrada por escrito, enquanto o compromisso deve conter a lei vigente, a qualificação das partes, a qualificação dos árbitros ou da câmara arbitral, a matéria que será objeto da arbitragem e o lugar que será proferida a sentença arbitral, nos termos do art. 9º da Lei, por este motivo é celebrado quando o conflito já é determinado. 2.1 A figura do árbitro no procedimento arbitral O capitulo III da Lei de Arbitragem dispõe acerca do árbitro, terceiro nomeado pelas partes para exercer função semelhante ao juiz estatal no procedimento arbitral. O caput do art. 13 da Lei dispõe que qualquer pessoa capaz e de confiança das partes pode ser árbitro, salvo o juiz togado, uma vez que a única função que pode ser desempenhada concomitantemente a magistratura é a de professor, conforme art. 26, II da Lei Complementar 35/79.
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Importante frisar, que na convenção arbitral as partes podem nomear o árbitro ou a câmara arbitral, instituição que oferece serviços especializados para a realização do procedimento arbitral e geralmente possui quadro de árbitros próprios, admitindo eventualmente a escolha de árbitros que não fazem parte da instituição. O § 6º do art. 13 da Lei 9307/96, dispõe que o árbitro, no desempenho de sua função, deverá agir com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição, podendo o árbitro responder civil e penalmente por seus atos. Atualmente, não há um código de ética geral que regule a conduta dos árbitros, advogados e partes. No entanto, a International Bar Association – IBA formulou algumas orientações no que se refere às condutas de todas as partes envolvidas. Sobre este guia Carmona faz as seguintes considerações: Assim, o “guia” sugere, de modo prático, três listas de situações – uma vermelha, outra laranja e a última verde – que podem ou não gerar o afastamento do árbitro, com a previsão da necessidade (ou não) de revelação dos fatos relevantes. Na primeira lista (red list), estão exemplificadas circunstâncias que devem necessariamente provocar o afastamento do árbitro (non-waivable Red List) e situações que, embora importantes, podem permitir que o árbitro assuma a função, desde que as partes, cientes do fato, assim decidam (waivable Red List); na segunda (Orange List) estão relacionadas exemplificativamente situações que, aos olhos das partes, podem gerar dúvidas justificáveis sobre imparcialidade ou independência do árbitro, de modo que este tem o dever de revelar tais situações (se as partes, cientes, não impugnarem o árbitro, devese considerar que ele foi aceito e que os fatos revelados não comprometem a capacidade do julgador); por fim, a terceira lista (Green List) contem exemplos de circunstâncias em que não existe, objetivamente, conflito de interessantes que possa comprometer a imparcialidade do arbitro, de maneira que tais fatos não precisam ser revelados às partes e seus advogados. (CARMONA, Carlos Alberto, 2009, p. 241/242) Os árbitros têm o dever de revelar, antes ou durante o procedimento arbitral, qualquer fato que esteja ligado a sua imparcialidade ou independência, sendo proibido de atuar em um procedimento em caso de impedimento ou suspeição. Obviamente, caso as partes, tendo ciência desta situação, aceitarem indicar o árbitro a proibição é afastada, podendo, ainda, a parte vencida, demandar no judiciário exceção de impedimento e suspeição. Desta forma, considerando que o árbitro é o julgador da causa e a decisão proferida tem caráter judicial, a ele incumbe agir de igual forma aos juízes estatais, ressaltando, a discrição que é uma característica ligada a arbitragem, em razão do beneficio do sigilo que este meio de resolução de controvérsias possibilita. 2.2 Procedimento arbitral As partes, como mencionado anteriormente, poderão na celebração da convenção arbitral estabelecer o procedimento a ser adotado durante a arbitragem ou remeter-se às regras de uma instituição arbitral ou, ainda, delegar ao árbitro ou tribunal arbitral a escolha do procedimento, conforme preconiza o art. 21 da Lei 9307/96, hipótese que também será aplicada quando não houver estipulação quanto ao procedimento. A lei exige que sejam respeitados em qualquer um dos casos, os princípios do contraditório da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento, ou seja, o devido processo legal. O processo arbitral inicia-se, portanto, com a celebração da convenção de arbitragem e o juízo arbitral é instaurado após o árbitro
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aceitar o encargo recebendo a manifestação da parte e expedindo as notificações. Importante ressaltar que se for indicado mais de um árbitro, se formará o denominado tribunal arbitral e deverá ser escolhido um presidente, por voto da maioria, idade ou escolha das partes, que terá o voto minerva. É possível que as partes requeiram medidas cautelares e antecipação de tutela, caso estejam presentes os requisitos exigidos pelo Código de Processo Civil, sendo deferido e havendo resistência da parte contrária, o árbitro poderá solicitar ao Poder Judiciário, através de ofício, o concurso de força, uma vez que não possui poder de coerção. Após a apresentação das manifestações de cada uma das partes, o árbitro deverá instruir a causa, determinando a produção das provas que entender necessárias para formar seu convencimento e solucionar o litígio, não eliminando as regras do ônus da prova, também aplicáveis ao procedimento arbitral. Com relação à produção de provas, a arbitragem possibilita que as partes produzam provas não previstas no ordenamento jurídico brasileiro, como, por exemplo, a oitiva de testemunhas técnicas, que fornecem informações especializadas e o depoimento do perito, além da apresentação do laudo pericial, o que contribui para o convencimento do árbitro. A prova testemunhal, muito utilizada nos conflitos trabalhistas, possui certa especificidade quando do não comparecimento da testemunha na data, local e hora determinados pelo árbitro, uma vez que neste caso será necessário solicitar ao Poder Judiciário a condução da testemunha sob vara, se sua ausência não for justificada. Após a fase instrutória, o árbitro deverá proferir a sentença, ressalvando que este ato deverá ser realizado no prazo estipulado entre as partes ou em seis meses contados da instituição da arbitragem. Ressalta-se que se a arbitragem foi conduzida por vários árbitros, prevalecerá o voto da maioria ou do presidente do tribunal arbitral, garantindo que o árbitro com entendimento diverso ao da maioria declare seu voto separadamente, nos termos do art. 24 da Lei 9306/97. A sentença deverá conter obrigatoriamente, o relatório, os fundamentos da decisão, a parte dispositiva, data e local em que foi proferida, posteriormente, deverá ser enviada as partes cópia da decisão, mediante comprovação do seu recebimento, sendo assegurado as partes que apresentem embargos declaratórios caso haja erro material, obscuridade, omissão ou contradição na decisão. Dificilmente a sentença não é cumprida, uma vez que as partes que procuram a arbitragem para a resolução dos seus conflitos estão de boa-fé, mas caso ocorra é inevitável a interferência do juiz estatal. Ponto relevante que merece destaque é o surgimento de controvérsias que envolvem direitos indisponíveis durante o procedimento arbitral, questão tratada no art. 25 da Lei que determina a remessa das partes à autoridade competente do Poder Judiciário, suspendendo o procedimento arbitral. Como visto, a arbitragem apresenta muitas vantagens às partes, como a especialização dos árbitros, possibilidade de produção de provas diversas daquelas previstas no ordenamento jurídico brasileiro, confidencialidade e a celeridade, o que não se vê no Poder Judiciário atualmente. 3 Arbitragem em âmbito internacional e no Brasil O instituto da arbitragem é muito utilizado em contratos internacionais, em face da globalização da economia, uma vez que os princípios que regem o instituto são os mesmos, a autonomia da vontade das partes e a boa-fé, além da legislação brasileira não fazer distinção entre a arbitragem doméstica e a internacional, observado a ordem pública. Atualmente o Brasil é signatário de algumas legislações internacionais que tratam sobre o tema, como o Protocolo de Genebra
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de 1923 (Decreto 21.187/1932), da Convenção do Panamá de 1975 (Decreto 1902/96) da Convenção de Nova York de 1958 e da Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial (UNCITRAL) editada pela Organização das Noções Unidas – ONU. A adoção das regras contidas nestas legislações alienígenas gera confiabilidade para as relações comerciais internacionais, porque universaliza as normas a serem aplicadas. Segundo, Arnoldo Wald e Ana Gerdau de Borja, no ano de 2013 o Brasil ficou entre os cinco primeiros países que utilizam a arbitragem, além de depositar o instrumento de adesão à Convenção de Viena, costumeiramente aplicada nos contratos de compra e venda de mercadorias, o que trará maior segurança jurídica. As sentenças arbitrais estrangeiras, ou seja, aquelas cujo laudo foi proferido em outro país, para terem eficácia no Brasil, precisam ser submetidas à homologação do Superior Tribunal de Justiça, podendo o pedido ser negado caso haja algumas das hipóteses previstas nos artigos 38 e 39 da Lei 9307/96, senão vejamos: Art. 38. Somente poderá ser negada a homologação para o reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira, quando o réu demonstrar que: I - as partes na convenção de arbitragem eram incapazes; II - a convenção de arbitragem não era válida segundo a lei à qual as partes a submeteram, ou, na falta de indicação, em virtude da lei do país onde a sentença arbitral foi proferida; III - não foi notificado da designação do árbitro ou do procedimento de arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando a ampla defesa; IV - a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, e não foi possível separar a parte excedente daquela submetida à arbitragem;V - a instituição da arbitragem não está de acordo com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória;VI - a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada. Art. 39. Também será denegada a homologação para o reconhecimento ou execução da sentença arbitral estrangeira, se o Supremo Tribunal Federal constatar que: I - segundo a lei brasileira, o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem; II - a decisão ofende a ordem pública nacional. Parágrafo único. Não será considerada ofensa à ordem pública nacional a efetivação da citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da convenção de arbitragem ou da lei processual do país onde se realizou a arbitragem, admitindo-se, inclusive, a citação postal com prova inequívoca de recebimento, desde que assegure à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de defesa. (BRASIL, 1996) A homologação da sentença arbitral estrangeira segue a mesma regra prevista nos arts. 483 e 484 do Código de Processo Civil, sendo o procedimento previsto nos artigos 215 a 224 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Após a homologação da sentença, caso seja necessária a execução da mesma, será competente o juiz federal, conforme exige o art. 109, inciso X da Constituição Federal. No entanto, Carmona ressalva que a necessidade de homologação da sentença da sentença arbitral estrangeira está perdendo força, uma vez que as convenções internacionais, como exemplo a de Nova York, prevê que os países signatários poderão dar eficácia a sentença arbitral provenientes entre si, sendo desnecessária a ratificação, observado os impedimentos já destacados. 4 DIREITO DO TRABALHO E ARBITRAGEM O Direito do Trabalho é definido por Maurício Godinho Delgado
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(2005) como o complexo de princípios e normas que regulam a relação estabelecida entre empregado e empregador, ou seja, um ramo jurídico especializado nas relações trabalhistas. Como sabido, as normas trabalhistas objetivam igualar as partes que possuem uma relação jurídica naturalmente desigual, em razão do poder econômico do empregador em relação ao empregado. Diante do caráter protetivo do Direito do Trabalho, a ciência é regida por princípios basilares que garantem tal objetivo, tais como o princípio da proteção do empregado, da aplicação da norma mais favorável em caso de conflitos de normas, princípio da condição mais benéfica ao empregado, intangibilidade salarial, primazia da realidade sobre a forma, além do princípio do in dubio pro operário, que assim como no Direito Penal, autoriza que havendo dúvida não sanada por meio das provas, a decisão deve ser favorável ao empregado. O caráter protetivo do Direito do Trabalho é o que impede atualmente que alguns dos conflitos oriundos das relações trabalhistas sejam solucionados por meio da arbitragem, Carlos Alberto Carmona ressalta que não são poucos os doutrinadores que defendem a incompatibilidade da arbitragem no processo trabalhista brasileiro. No entanto, existem no ordenamento jurídico brasileiro normas trabalhistas que preveem a utilização da arbitragem nessa esfera, como o § 1º do art. 114 da Constituição Federal, além de legislações esparsas como a Lei de Greve e a Lei do trabalho portuário, caso em que a arbitragem é obrigatória. Atualmente, a arbitragem já é aceita nos conflitos coletivos de trabalho, por envolverem direitos disponíveis, a questão é se o instituto poderia ser utilizado nos conflitos individuais de trabalho. Maurício Godinho Delgado acredita que Há forte dúvida sobre a compatibilidade da arbitragem com o Direito Individual do Trabalho. Afinal, neste ramo prevalece a noção de indisponibilidade de direitos trabalhistas, não se compreendendo como poderia ter validade certa decisão de árbitro particular que suprimisse direitos indisponíveis do trabalhador. No Direito Coletivo do Trabalho já caberia, sem dúvida nenhuma, a arbitragem, desde que escolhido o arbitro no processo negocial coletivo, pelo ajuste entre sindicato obreiro e empregador. (DELGADO, Mauricio Godinho. 2005. pag: 167) Como visto no capitulo anterior, o procedimento arbitral possui inúmeros benefícios, tais como a celeridade, o sigilo, especialidade do árbitro, possibilidade de escolher as provas aplicáveis, menor formalidade, dentre outros e como toda ciência também possui pontos que afastam a sua aplicação. Sérgio Pinto Martins (2006) destaca que o problema para implantação da arbitragem nos conflitos trabalhistas, embora esteja sendo utilizada, é o fato do empregado não confiar em um terceiro, ou seja, o árbitro e que em razão do litigio sejam supridos direitos patrimoniais disponíveis. É importante ressaltar que a arbitragem não precisa ser necessariamente aplicada a todos os conflitos trabalhistas, uma vez que como se sabe há querelas que demandam a presença do Estado para proteger o empregado, parte hipossuficiente da relação, mesmo em se tratando de direitos disponíveis No entanto, a utilização da arbitragem no direito coletivo e em alguns casos individuais de trabalho, representariam avanços nas ações de trabalho em razão dos benefícios que a arbitragem oferece. 4.1 Arbitragem trabalhista A implementação da arbitragem na esfera trabalhista é tema de muitas discussões entre os doutrinadores da área, isso porque quase a totalidade dos direitos individuais tutelados pelo direito do trabalho são indisponíveis e irrenunciáveis, em razão do caráter protecionista
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das normas trabalhistas e do risco de ampliação da possibilidade de fraude contra o empregado. No campo dos conflitos coletivos de trabalho a Constituição Federal prevê no §1º do art. 114 a utilização da arbitragem quando frustrada a negociação coletiva, além da Lei 7.783/89, que regulamenta o direito de greve, e a Lei 10.101/00, que trata da participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa, também trazerem disposições nesse sentido. Márcio Yoshida expõe em seu livro Arbitragem Trabalhista (2006) as seguintes vantagens da utilização da arbitragem em situação de greve. As greves clamam por soluções imediatas, céleres e preponderantemente negociais, pois geram indesejada conturbação no seio da sociedade e nem sempre encontram no poder normativo do judiciário o melhor remédio para os impasses que a motivaram. Ao elencar a arbitragem como modalidade privilegiada de solução de conflitos, no mesmo nível da negociação coletiva, certamente pautou-se o legislador constituinte em algumas das qualidades da arbitragem, como a rapidez da entrega das suas decisões, a irrecorribilidade e a natureza pacificatória, atributos que na maior parte das vezes proporcionam melhores condições para a obtenção de soluções mais eficazes ou até conciliadas. (YOSHIDA, 2006, p.103) Na esfera individual, somente a Lei 8.630/93 prevê a utilização da arbitragem em conflitos envolvendo trabalhadores portuários avulsos. Isso porque há uma resistência da doutrina e jurisprudência quando da resolução dos conflitos individuais pela via arbitral, sob o fundamento de que as normas trabalhistas são irrenunciáveis, afrontam o disposto nos incisos XXXV e XXXVII do art. 5º da Constituição Federal, além de não estar prevista no art. 114 da CF/88, bem como pelo fato de haver entre empregado e empregador um grande desequilíbrio de forças. A questão da violação aos incisos XXXV e XXXVII do art. 5º da CF/88, ou seja, da inconstitucionalidade da Lei 9307/96, foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Agravo Regimental n. 5.206-7, ficando afastada tal alegação de inconstitucionalidade. No tocante a questão do desequilíbrio de forças, YOSHIDA (2006) destaca que dependendo do nível de discernimento, grau de escolaridade e cargo ocupado pelo empregado, sua manifestação de vontade quanto à escolha da via arbitral pode e deve ser admitida afastando a presunção de vício de consentimento. O autor, a fim de ilustrar tal posição, relata uma experiência profissional que teve envolvendo um alto executivo de um banco, vejamos: Na minha experiência profissional tive a oportunidade de arbitrar um litigio envolvendo um alto executivo de uma instituição financeira, assistido por seu filho, advogado de um dos maiores escritórios de advocacia deste país, no qual se discutia o pagamento de bônus e reflexos de benefícios de natureza supostamente salarial.O acordo elevado dos pleitos e a condição diferenciada do trabalhador em nenhum momento autorizaria supor estar ele sendo induzido ao erro ou coagido a transacionar seus direitos pela sua ex-empregadora. (...) A validade da conciliação ocorrida no âmbito da arbitragem em referência é inescusável pois a adesão do trabalhador ao procedimento esteve isenta de constrangimento e nada indica que o trabalhador não possuísse liberdade de discernimento para dar um consentimento válido.” (YOSHIDA, 2006, pág. 117) Importante ressaltar que tal hipótese foi incluída no Projeto de Lei 7108/2014 criado por uma comissão de juristas, presidida pelo
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ministro do Superior Tribunal de Justiça Luís Felipe Salomão, convidados pelo Senado Federal a proporem a reforma da Lei de Arbitragem, que assim prevê: Art. 4º ........................................................................................ ............... ................................................................................................... .............. § 4º Desde que o empregado ocupe ou venha a ocupar cargo ou função de administrador ou diretor estatutário, nos contratos individuais de trabalho poderá ser pactuada cláusula compromissória, que só terá eficácia se o empregado tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou se concordar expressamente com a sua instituição. (BRASIL, 2014) Yoshida e Carlos Alberto Carmona ressalvam que o desequilíbrio existente entre as partes no caso da aplicação da arbitragem, poderia ser diminuído caso o sindicato intervenha no procedimento, uma vez que segundo previsto no inciso III do art. 8º da CF/88 este é o órgão responsável pela defesa dos direitos dos trabalhadores, recomendando que a convenção de arbitragem seja inserida nas negociações coletivas e exigindo a expressa anuência do empregado quanto à utilização da arbitragem para a solução de controvérsias, exigência contida no parágrafo 2º do art. 4º da Lei 9307/96, quanto aos contratos de adesão. Carmona (2009) faz, ainda, uma ligeira comparação com a aplicação da arbitragem nos Estados Unidos da América, conforme abaixo destacado: Nos Estados Unidos da América o instituto é de larguíssima utilização, sendo por todos reconhecida sua vantagem em relação a solução judicial dos conflitos. Chega-se mesmo a constatar que a arbitragem é o meio de solução de conflitos individuais de trabalho mais utilizado entre os empregados sindicalizados e empregadores, tudo graças a tradição norte-americana que estimulou intervenção apenas subsidiária do governo nas relações trabalhistas.(CARMONA, 2009, pág 43) YOSHIDA (2006) sugere ainda outras duas situações em que se poderia arbitrar em caso de controvérsias trabalhistas, após a rescisão contratual quando afastada a presunção de coação existindo apenas o crédito trabalhista de natureza patrimonial e quando o Ministério Público do Trabalho – MPT atuar como árbitro, conforme autoriza o inciso XI do art. 83 da Lei Complementar 75/93. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar da resistência da doutrina e jurisprudência em aplicarem a arbitragem nos conflitos individuais do trabalho em razão da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, vimos no decorrer do presente artigo, que seria possível arbitrar conflitos trabalhistas específicos, devendo ser sopesada as situações dos trabalhadores com maior discernimento intelectual, como os altos executivos. A utilização da arbitragem também seria possível quando o sindicato intervir no procedimento, representando o trabalhador, o que equilibraria a relação havida entre empregado e empregador e após a rescisão contratual, quando os direitos do empregador já foram analisados pelo juiz togado e este possui apenas o crédito trabalhista que possui natureza patrimonial. Haveria, ainda, a possibilidade da arbitragem ser realizada pelo Ministério Público do Trabalho, caso em que se afastaria a presunção de coação do trabalhador, uma vez que tal órgão é público e busca
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proteger os direitos fundamentais e sociais do cidadão diante de possíveis ilegalidades cometidas na esfera trabalhista. Verificamos que no âmbito dos conflitos coletivos há disposição legal que autoriza a utilização do instituto para dirimir conflitos oriundos do exercício do direito de greve, participação do trabalhador nos lucros ou resultados da empresa empregadora e quando frustrada a negociação coletiva. Contudo, apesar de haverem disposições legais e posições que defendem a arbitragem trabalhista e de tais posições serem plausíveis, verifica-se que a falta de tradição da resolução de conflitos através dos meios alternativos de solução de controvérsias é atualmente o maior empecilho para a aplicação da arbitragem neste âmbito. REFERÊNCIAS BRASIL. Projeto de Lei 7104/2014. Altera a Lei nº 9307/96, para ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem e dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral e o incentivo ao estudo do instituto da arbitragem; e revoga dispositivos da Lei nº 9307/96. Câmara dos Deputados, Brasília, 11 fev. 2014. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário a Lei 9307/96. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. 571 p. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4ª edição. São Paulo: LTr, 2005.1471 p. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho: doutrina e prática forense; modelos de petições, recursos, sentenças e outros. 26ª edição. São Paulo: Atlas, 2006. 727 p. YOSHIDA, Márcio. Arbitragem Trabalhista: Um novo horizonte para a solução dos conflitos laborais. São Paulo: LTr, 2006. 157 p.
NOTAS DE FIM 1 Aluno da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2 Doutora em Geografia na Universidade Federal de Minas Gerais. Professora adjunta da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva e professora da Graduação e Professora Permanente Do Programa De Pós-Graduação Em Direito Da Escola Superior Dom Helder Câmara. **Maraluce Maria Custódio; Karen Myrna de Castro.
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DIREITO E SUICÍDIO: o direito da liberdade de escolha de viver ou morrer no ordenamento brasileiro Camila Cavalcanti Valadares Meireles1 Carlos Augusto Teixeira Magalhães2 Banca examinadora** RESUMO: O presente estudo trata da possibilidade jurídica de dispor da própria vida. Tema muito pouco trabalhado e debatido, mas de extrema relevância por envolver conflito entre direitos fundamentais do mais elevado grau de importância: vida, liberdade e dignidade. Pretende-se, assim, abordando a moral e o direito, contribuir para a reflexão sobre a autonomia do indivíduo para pôr fim à própria vida: o direito à morte. PALAVRAS-CHAVE: SUICÍDIO; DIREITO DE MORRER; DIGNIDADE E AUTONOMIA. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1.Suicídio; 2.2. Direitos da Personalidade; 2.3. Direito à Vida; 2.4. Dignidade da Pessoa Humana; 2.5. Autonomia; 2.6. O suicídio no ordenamento brasileiro; 2.7. Moral e Suicídio; 2.8. Direito de morrer; 3. Considerações finais; 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO O presente estudo se propõe a tratar do direito à vida. Direito este considerado universal, e o mais essencial entre os direitos fundamentais, pois dele decorrem todos os outros direitos, inclusive a dignidade humana e a autonomia da vontade. E neste contexto verificamos que os ordenamentos jurídicos ocidentais tradicionalmente trazem grandes garantias e proteções ao Direito de viver, e exercer tal direito com dignidade. Mas como direito potestativo, é garantido aos sujeitos o direito de dispor dele livremente? É juridicamente assegurado o direito de morrer com dignidade, como opção individual e pessoal? É o que analisaremos neste trabalho. A falta de regulamentação do tema, tem gerado discussões, em especial no que tange a pessoas que sofrem de determinadas enfermidades ou que sofrem sequelas permanentes. Pessoas que buscam a eutanásia, ortotanásia, e etc, temas que dividem opiniões tanto de médicos, juristas, sociólogos e das pessoas em geral. Parece prevalecer a ideia de que esta lacuna em que se insere a questão do suicídio, associada ao princípio da legalidade, ou seja, ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, seria o suficiente para garantir liberdade de escolha do indivíduo e permitir a disposição da própria vida.Contudo, o ordenamento jurídico deve ser analisado com uma estrutura única, e as leis devem ser observadas em consonância umas com as outras e em conformidade com a Constituição, para então ser possível perceber como as normas entrelaçadas atuam efetivamente na conduta da sociedade e dos indivíduos que a compõem. E neste contexto indaga-se, a ausência de proibição expressa ou tipificação penal que puna o suicídio é garantia de respeito à autonomia do indivíduo a permitir-lhe que exerça livremente sua vontade de dispor da própria vida? 2. Desenvolvimento 2.1. Suicídio É importante frisar que, atualmente muito tem sido debatido sobre o tema do direito à morte, porém, não como simples liberalidade do ser, mas nos casos de enfermidades ou sequelas incapacitantes e/ ou incuráveis, eutanásia, ortotanásia e etc. Em que pese a relação bem próxima entre os temas, estas hipóteses não são objetos deste estudo, que se limita a falar do suicídio, o ato de disposição da vida por deliberação do próprio in-
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divíduo, e não dos atos de disposição assistidos quando o indivíduo sequer dispõe de meios para fazê-lo por si próprio em decorrência de sua condição física/médica. Cumpre-nos, então, esclarecer o que é suicídio para um entendimento adequado do tema. Nas palavras de Durkheim: Todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado. A tentativa é um ato assim definido, mas interrompido antes de resultar em morte. (DURKHEIM: 1982, p. 16) Além deste, e apesar de ser com este conceito que o artigo trabalhará, há outros conceitos interessantes na literatura sobre o tema, como é o de Shneidman (2000, p. 40), que entende o suicídio como “ato humano de cessação [da vida] auto-infligida e intencional e que percebe no suicídio a sua melhor solução”. Sejam quais forem as causas (comuns ou remotas) que levam ao suicídio – transtornos mentais, dificuldades financeiras ou emocionais – elas não serão foco do trabalho, que tratará o tema do ponto de vista jurídico, sendo suficiente para compreensão do tema que, segundo a abordagem de Durkheim, o suicídio é um fato social, que tem sua origem na própria sociedade. O fim da vida é uma (senão a única) certeza que o homem carrega consigo, e que o acompanha desse nascimento, mas há dificuldade em debater a questão - o inevitável – principalmente com neutralidade. Os debates que circundam o tema são sempre acalorados e parecem atingir, de maneira pessoal, a todos. Maria Fátima Freire de Sá (2012, p. 5), sobre o tema, assim expõe: O querer morrer expressa, pelo menos num primeiro momento, espanto para aquele que ouve alguém dizê-lo. A impressão inicial é que ainda estamos propensos a acreditar que a vida segue um fluxo que retira de nós mesmos a possibilidade de deliberar sobre ele. É preciso indagar: viver é um direito ou uma obrigação? A resposta à indagação acerca da possibilidade de deliberar sobre a própria morte gira em torno da análise de temas como moralidade, liberdade, dignidade, autonomia e intimidade. Que são princípios consagrados na Constituição Federal, assim como o próprio direito à vida, que serão tratados a seguir.
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2.2. Direitos da personalidade Os direitos que serão estudados estão inseridos na Doutrina como direitos da personalidade, assim, uma breve definição faz-se necessária. Para Júlio Moraes Oliveira (2013, p. 105): “os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa humana, capazes de garantir um mínimo necessário e fundamental a uma vida com dignidade” e tem como características a indisponibilidade, a intransmissibilidade, a extrapatrimonialidade e caráter absoluto (oponíveis erga omnes). O autor cita o famoso caso de arremesso de anões, que foi coibido pelo Estado Francês por ser atentatório à dignidade da pessoa humana. Um dos anões, em ação ajuizada em face do Estado, tentou discutir se o seu direito ao trabalho e a livre iniciativa não estariam acima da dignidade defendida pelo Estado (ou pelo menos no mesmo patamar), visto que o próprio anão não se sentia violado com os arremessos, e tinha o direito de decidir como ganhar a própria vida. Mas a França manteve sua decisão e a despeito de recursos, o espetáculo foi proibido. O exemplo citado pelo autor, e por diversos outros doutrinadores, é emblemático e extremamente relevante para o presente estudo, uma vez que demonstra como tais direitos são tratados com arbitrariedade pelo Estado, que chegam ao extremo de violá-los em nome de garanti-los, tratando-os como absolutos. Assim, evidencia-se a relevância e complexidade do debate, quando há um conflito em que diversos desses direitos estão envolvidos. 2.3. Direito à vida O Direito à vida é garantido constitucionalmente no art. 5º como pressuposto lógico da existência. De tal forma, que a Carta Magna conceda proteção especial à vida como direito fundamental do próprio ser humano. CRFB. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) A vida é considerada por muitos como um direito absoluto, devendo, portanto, se sobrepor a todos os demais princípios e direitos constitucionais, por ser o direito primordial sem o qual, evidentemente, não se pode exercer qualquer outro direito. Neste sentido, Alexandre de Moraes explica que “O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.” (MORAES: 2004, p. 65). No entanto, Júlio Moraes Oliveira (2013, p.108) explica que é imprescindível notar que nenhum direito é absoluto, nem mesmo a vida, bem jurídico máximo de acordo com a Constituição Federal de 1988, lei suprema do Estado brasileiro e fundamento de validade para todas as demais normas jurídicas. Não seria por outra razão que a própria Constituição, no inciso XLVII, alínea a, do artigo 5º (o mesmo que dispõe sobre a inviolabilidade da vida), esboça exceção à tutela da vida, que é a pena de morte em casos de guerra declarada. Afastando a ideia de que este seria um direito absoluto entramos na questão central desse trabalho, nas palavras da doutrina: “Ao pleitear o direito de morrer, estamos diante de uma afronta a direito fundamental ou apenas fazendo com que a dignidade da pessoa humana seja respeitada?” (CAMPOS; MEDEIROS; 2001) Fato é que o direito à vida entra em conflito com outros direitos fundamentais quando começamos a tratar do direito â morte, de forma que para sanar tais confrontos, no caso concreto, é necessária uma ponderação de valores, para conciliar os valores defendidos por
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cada instituto, garantindo a máxima eficácia possível a cada princípio na solução da questão ou, em último caso, indicar qual direito prevalecerá em detrimento dos demais. Para tanto faz-se necessária uma análise dos demais princípios contrapostos. 2.4. Dignidade da Pessoa Humana A Constituição Federal de 1988 incorporou expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da república e do estado democrático de direito. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; No entanto, conceituar o que é dignidade humana é tarefa árdua na doutrina, restando em consenso apenas o fato de que a sua aplicação em casos de desrespeito à vida, à liberdade, à intimidade, dentre outros direitos fundamentais, é inafastável. Pode-se compreender a dignidade como princípio ético, inafastável, vinculante ao Estado, assim sendo, qualquer norma que a contrarie carece de legitimidade, devendo ser afastada imediatamente. Mas o autor alerta que é preciso ter cuidado para que o indivíduo não seja tratado como reflexo da ordem jurídica, pois as pessoas são o objetivo supremo numa relação entre estas e o Estado – o Estado existe para o ser humano, não o contrário. Em sendo assim, do desrespeito à dignidade humana resultam quatro importantes consequências, seguindo Joaquín Arce y FLORES VALDÉS (1990, p. 4), a saber: Igualdade de direitos entre todos os indivíduos (art. 5ª, I) Garantia da independência e autonomia do ser humano, não podendo ser utilizado como instrumento ou objeto; Observância e proteção dos direitos inalienáveis do homem; Não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida (garantia de um patamar existencial mínimo). Apesar da dificuldade conceitual, pela própria subjetividade de dignidade, o princípio pretende que os indivíduos existam minimamente de forma digna para um ser humano, daí decorrem proibição de tratamento desumano, trabalho escravo ou forçado, e qualquer forma de viver que diminua o ser humano da própria condição de homem. 2.5. Autonomia Autonomia da vontade, presente nas relações entre pessoas é decorrente do direito fundamental da liberdade, já transcrito neste trabalho, e previsto no art. 5º da CRFB/88, e consiste no respeito do Estado às aptidões individuais para tomar suas próprias decisões, obrigando-se o indivíduo pelos negócios que praticar. Contudo, a autonomia não está vinculada apenas às relações contratuais, a constituição ao estabelecer o princípio da legalidade limitou os atos das pessoas a tudo que não seja proibido em lei, ou seja, o indivíduo tem o direito/poder de se autodeterminar, fazendo suas escolhas sobre qualquer aspecto de sua vida, desde que não viole o texto legal. É importante observar que, esse conceito de estarem as ações limitadas à lei, é puramente jurídico-formal, ou seja, o indivíduo, sob os aspectos psicológicos e sociológicos tem a possibilidade de autodeterminar-se da maneira que lhe aprouver, por tal razão a lei prevê
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penalidades para os atos que violam ou causam dano a determinado direito ou bem juridicamente tutelado. Neste sentido, Maria Fátima de Freire Sá (2012, p. 63) expõe: A vida nos remete à autonomia. Aos melhores interesses das pessoas. A aptidão para a manifestação da vontade. A construção não mais puramente biológica, mas também biográfica de cada um. A dignidade da pessoa humana que pode ser traduzida pela garantia de que todos se reconheçam livres e iguais em direitos. E para a efetivação desta dignidade, é necessário que os outros se conscientizem de que cada um tem seus próprios interesses críticos, cada pessoa é dotada de um padrão moral que lhe é próprio. Assim, vislumbra-se que a autonomia, é um direito personalíssimo de grande relevância, pois, sob as consequências da lei, permite à pessoa atuar mesmo que contrariando a mesma, e é o princípio por trás de cada escolha individual e consequentemente o direito que permite efetivamente que o sujeito concretize todos os demais direitos que lhe são subjetivos. 2.6. O suicídio no ordenamento brasileiro Antes de tratarmos da relação entre os princípios definidos e o ato de disposição da própria vida, questão central deste trabalho, devemos abordar como atualmente a questão é prevista. O ordenamento jurídico pátrio, por razões talvez calcadas na moral ou religião, é silente acerca do suicídio No ordenamento pátrio não há proibição expressa ao suicídio. Pela própria natureza do ato sua criminalização seria complexa, uma vez que concretizado o crime o sujeito ativo do “crime” seria a própria vitima e não restaria punibilidade pela morte do agente. Em que pese o ato atente contra um bem que é juridicamente tutelado – a vida, a conduta não apresenta ofensividade, não há efetivamente um dano à sociedade, o dano é pessoal. Apenas a moral social pode-se dizer afetada, mas nesta hipótese também não se vislumbra lesividade a justificar sua tipificação, em especial pela função social da pena, qual seja, reeducar o sujeito para sua ressocialização, e no contexto social a punição da tentativa incentivaria novas tentativas de matar-se. Assim, por tal justificação social e jurídica ao suicídio não foi dado tratamento penal. Acrescenta-se a isso o princípio da legalidade, que encontra-se assim previsto: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; Com base em tais argumentos, afirma-se que, inexistindo previsão expressa que proíba o suicídio, tal ato é juridicamente tolerado, sendo, portanto, lícita a conduta. Então, passamos a retomar nosso questionamento inicial, pela ausência de previsão legal específica sobre o tema, a conduta de suicidar-se é lícita? Com base nos pontos apresentados, temos a ideia de que sim, tirar a própria vida é ato lícito. Conduto, o ordenamento jurídico deve ser entendido e estudado como um único e complexo sistema, que se intercala e se completa, e apenas analisando mais profundamente podemos entender a problemática.
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O Código Penal possui conduta típica relacionadas ao suicídio, assim prevista: Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único - A pena é duplicada: Aumento de pena I - se o crime é praticado por motivo egoístico; II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. O mesmo código prevê ainda: Constrangimento ilegal Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. ... § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II - a coação exercida para impedir suicídio. Ora, se a conduta de dispor da própria vida é lícita, porque punir aquele que presta auxílio? Ou ainda, porque excluir a tipicidade do ato de constranger uma pessoa, com violência ou ameaça, na hipótese desta se realizar para impedi-la de suicidar-se? Por fim, tipifica o código penal: Omissão de socorro Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. A lei penal deixa evidente que a conduta tratada neste trabalho é socialmente reprovada, e sua não tipificação decorre apenas da inutilidade da pretensão punitiva, porém, de forma alguma é considerada lícita, uma vez que terceiros podem intervir para impedir, mesmo utilizando-se de violência; aquele que encontra uma pessoa que já efetivou o ato e não a socorre para impedir o resultado responde por crime; e veda-se expressamente o auxílio e encorajamento. Desta forma, verifica-se de forma bem clara que a ausência de norma que permita o suicídio ou o puna diretamente não faz com que o exercício deste ato seja garantido, pelo contrário, há toda uma regulamentação para impedir o resultado ou o próprio ato. Importante frisar que, em alguns países, como Holanda, o direito de morrer é tutelado, sendo garantido que, em casos específicos de doenças incuráveis ou condições médicas/físicas irreversíveis, o sujeito exerça o direito de morrer, inclusive com o auxílio de terceiro. Porém, mesmo nestes países não há norma que expressamente autorize o ato de dispor da própria vida, por liberalidade, sendo o tema, extremamente delicado que é, deixado nas lacunas da lei por critérios morais.
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2.7. Moral e Suicídio Como exposto anteriormente, em que pese ao ato de suicídio não seja cominada penalidade pela lei, há grande condenação moral ao ato. Santo Tomas de Aquino, discorrendo sobre o suicídio argumenta que este ato seria sempre um pecado mortal porque a vida é intangível tanto quanto a matar alguém quanto a matar-se a si, por tríplice razão: “Primeiro porque naturalmente todas as cousas a si mesmo se amam; por isso é que todas naturalmente conservam o próprio ser e resistem, o mais que podem, ao que procura destruí-las. Portanto, quem se mata a si mesmo vai contra a inclinação natural e contra a caridade que todos a si mesmo se devem. Logo, matar-se a si mesmo é sempre pecado mortal, por ser um ato contrário tanto à lei natural como à caridade. Segundo porque qualquer parte, pelo que é, pertence ao todo. Ora cada homem é parte da comunidade, e, portanto, o que é da comunidade o é. Logo, matando-se um a si mesmo, comete uma injustiça contra a comunidade, como está claro no Filósofo. Terceiro, porque a vida é um dom divino feito ao homem e dependente do poder de Deus, que mata e faz viver. (in Suma Teológica. 2ª parte da 2ª parte, questões 1-79, pp. 2.544-2545). Para Santo Tomás de Aquino, portanto, aquele que atenta contra a sua própria vida, peca contra Deus. Desde tempos remotos, no mundo o suicídio sempre foi visto como um ato moralmente condenável, sendo, portanto, necessário falar sobre a moral, e para tanto novamente se utilizará a abordagem de Durkheim. Este autor, define a moral como normas de conduta caracterizadas pela conjunção de dois fatores opostos mas necessários, a obrigatoriedade e o desejo de obedecê-las, pois, ao mesmo tempo que elas são obrigatórias para os sujeitos, estes desejam segui-las e que os demais as sigam em igual medida. Para o entendimento da discussão no presente trabalho, é importante ainda entender a divisão feita pelo autor entre a moral comum e a particular. A primeira se refere às normas morais da forma como a sociedade espera seu cumprimento, a moral individual é particular a cada sujeito, e se refere a como este se relaciona com as normas morais comuns. Assim, ao tratar da moral, Durkheim, conclui que a moral coletiva pode julgar como criminosa uma conduta, que a particular do sujeito entende como normal, ou o contrário. Sobre o tema deve-se ainda observar que ao tratar sobre a sanção pela violação da regra moral, demonstra como esta se aproxima da sanção pela violação de uma regra jurídica (1994: p. 69-9): (...)a sanção é uma conseqüência do ato, que não resulta do seu próprio conteúdo, mas da circunstância de que o ato não se acha de acordo com uma regra pré-estabelecida. Ou, em outras palavras: é por existir uma regra ditada com anterioridade e porque o ato é um ato de rebelião contra essa regra, que o mesmo implica uma sanção. É evidente que a sanção jurídica difere da moral no que tange a sua concretização, a primeira é externa e aplicada apenas pelas autoridades determinadas por lei e de acordo com previsão expressa, e nas morais a pena pode ser interna, representada pelo sentimento de culpa, ou externa, pela reprovação social. Frisa-se que, no que tange ao suicídio, a moral coletiva, predominante em todo o ocidente, é no sentido de condenar o ato e reprovar severamente aqueles que pensam em cometê-lo ou chegam as vias da tentativa. Porém, como explicou-se de maneira sucinta neste capítulo, a moral particular é individual de cada sujeito, e, portanto, há aqueles para quem o suicídio está de acordo com sua moral.
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Sendo o ato de disposição da própria vida um ato pessoal, que não atinge patrimônio jurídico de terceiros, e sendo moralmente aceito pelo indivíduo, cabe a sociedade julgar e condenar moralmente quem o pretende a ponto de coibir-lhe a prática com a normatização jurídica? 6.8. Direito de Morrer Os tabus em torno do assunto morte impedem as discussões abertas e a criação legislativa sobre temas relevantes não apenas em relação ao suicídio, como também em relação à eutanásia, entre outros. José Luiz Quadros de Magalhães (2012, p. XIX), em belíssima introdução ao livro de Maria Fátima Freire de Sá, aponta que para falarmos de vida e de morte é preciso dessacralizar estas palavras, isto é, trazê-las para o campo de discussão: Para falarmos de vida e de morte, o desafio consiste em considerar a cultura, a história, os sentidos prévios, muitos sacralizados, mas ao mesmo tempo, considerando as sacralizações promovidas pela cultura hegemônica, pelo poder e pela religião, sermos capazes de discutir nossas posições com liberdade. Em outras palavras, precisamos, como Anthony Giddens propôs ao desenvolver a ideia de destradicionalização, trazer tradições para o espaço da discussão livre. Não se trata de desconsiderar as tradições, não se trata, também, de promover falsas universalizações, que partem de falsas pretensões civilizatórias; a proposta é discutir tudo, em condição de igualdade, sem hegemonias, respeitando a diversidade e o contexto. Para falar sobre o direito à morte, precisamos retomar o direito à vida: Dentre os bens jurídicos tutelados pela lei penal não constitui novidade o fato de que a vida é, na generalidade dos ordenamentos jurídicos, o bem considerado mais precioso, estando normal e precipuamente em patamar superior aos demais, ainda que possa restar também, em certas sociedades e em determinados momentos históricos, em próximo grau de relevância em relação a outros valores essencialmente caros, como os da dignidade humana, liberdade de ir e vir, de expressão de crença (Guimarães: 2011, p. 68) O autor expressa perfeitamente a situação do direito à vida, que indiscutivelmente, encontra-se em patamar privilegiado em relação a outros direitos. E quanto a isso não se faz objeções. Contudo, como magistralmente nos expõe, há outros valores essencialmente ligados àquele, direitos sem os quais a vida não pode ser exercida, e por tal razão devem estar no mesmo nível de proteção. A dignidade e a liberdade. A vida é um valor construído, reconhecido e protegido juridicamente pelas sociedades, como um dos bens mais importantes. Porém não é absoluto, como já demonstrado, e verifica-se que ainda há países em que o Estado detém o poder de privar o indivíduo de sua vida como punição por crimes, mesmo nosso ordenamento prevê hipóteses de penalidade semelhante, ainda que em hipóteses extremamente restritas. A dignidade e a liberdade, sendo o segundo em analise mais crítica decorrente do primeiro, são igualmente valores tutelados pela ordem jurídica. E encontram-se em similar grau de proteção, todas cláusulas pétreas em nossa carta magna. E assim o é, pois, como já dito, privar o sujeito destes direitos é privar-lhe a própria vida. Limitar o homem a uma condição em que sua vontade não pode ser exercida e dignidade lhe é tolhida, é reduzi-lo a condição animal, destituí-lo da própria condição humana. Neste contexto, surge o direito à morte. A vida como bem jurídico personalíssimo, é um direito do indivíduo, e como tal, formalmente, pode ele não querer exercer tal direito.
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Dispor do direito à própria vida é um ato de disposição de vontade, um entre tantos outros atos que o sujeito pode realizar em sua liberdade. A autonomia para morrer encontra forte resistência moral. A vida, pelo sentimento social comum, extremamente influenciado pela moral religiosa, é tida como um bem inalienável e indisponível. Porém, dignidade e liberdade são indiscutivelmente essenciais para viver. O que nos leva a um paradoxo no pensamento comum. Aquele que não encontra dignidade em viver, e escolhe por sua livre determinação dispor da própria vida, procurando meio digno para realizá-lo. É justo privar-lhe de concretizar sua ideia de dignidade para a própria vida, cerceando sua liberdade individual e obrigando-o a viver de forma como não considera digna? Há inúmeros argumentos para refutar a ideia, fundada em pensamentos religiosos, morais, psicológicos e sociais. Porém, o que se pretende é a discussão jurídica à luz do que se entende por dignidade e autonomia nos dias de hoje, sobretudo, pela necessidade de formulação de uma nova doutrina jurídica para o tema do direito de morrer. E neste contexto a resposta é obvia. Porém, a moral social, e para a maioria dos indivíduos também a individual, impede de prosseguir para o resultado da ponderação, e buscar ideais sociais de esperança e motivação, na busca de justificativa para a continuidade da vida. Porque é tão inconcebível aceitar e regulamentar o suicídio? A vida, como direito tutelado ou fato natural/social tem menos valor nos países em que há normatização do suicídio assistido? Ou teria essas disposições um efeito social contrário, fazendo com que um ato, visto pela maioria como um ato de desespero, seja visto como um ato de reflexão séria, em que o titular diz adeus à experiência de existir da forma como lhe parece mais digno e adequado. O direito de dispor da própria morte, além de um exercício de autonomia, é uma forma de exercício da dignidade, e regulamentar o tema, permitindo o auxílio ou o acompanhamento, por exemplo, é garantir que o indivíduo não tenha sofrimentos desnecessários, com possíveis sequelas por uma tentativa fracassada, e permitindo que o indivíduo encontra conforto e esteja com as pessoas que lhe são caras neste último momento. Negar esse direito ao sujeito não impede o ato, mas leva-o a necessidade da clandestinidade, que aumenta a chance de sequelas pelo insucesso do ato, bem como a dor daqueles que são próximos ao sujeito e são surpreendidos pelo suicídio. Assim, a prevalência do direito à vida sobre o direito de morrer não é juridicamente sustentável, e uma vez que não há ofensividade à sociedade, não pode a moral social interpor-se a moral individual para justificar a vedação ou obstaculizar o ato de disposição da própria vida. 3. Considerações Finais O direito à vida, como tem se apresentado hodiernamente, como fundamental e indisponível, faz com que este deixe de ser um direito e passe a ser um dever jurídico. Impor a vida como obrigação é privar o indivíduo de sua liberdade, e, por consequência, de sua dignidade. Se estes são critérios mínimos para que o indivíduo viva, proceder de tal forma é condená-lo a viver sem exercer o direito à vida. Hoje não é possível amparar legalmente a vontade do indivíduo de pôr fim a própria vida, e, pelo contrário, como se verificou, o ordenamento pretende por diversas formas impor a obrigação de viver, permitindo que terceiros intervenham na ação daquele que chega a concretização deste ato último, que é o suicídio. De modo que o quanto antes a autonomia parar morrer for uma possibilidade discursiva, questionada, debatida, refletida, melhor será para entendimento de que viver bem não é viver a despeito de todas as dores – físicas ou emocionais – que a existência pode trazer.
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NOTAS DE FIM 1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor do Centro Universitário Newton Paiva. ** Carlos Augusto Teixeira Magalhães; Bernardo Gomes Barbosa Nogueira.
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TRANSFUSÃO DE SANGUE EM TESTEMUNHA DE JEOVÁ Cirlene Costa Marçal1 Leandro Henrique Simões Goulart2 Banca examinadora** RESUMO: O presente artigo aborda a questão da transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová, na perspectiva jurídica confrontando a proteção constitucional do direito à vida com os postulados de ordem ética e religiosa. PALAVRAS-CHAVE: Transfusão de sangue; Testemunha de Jeová; Direito constitucional; Ética médica e Religiosa. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A religião e influência sobre tratamentos; 2.1 Os problemas da transfusão de sangue; 3 Alternativas de qualidade para transfusão de sangue; 4 Análise sob a ótica medica; 5 Garantias legais; 5.1 O direito à liberdade religiosa e o direito à privacidade; 5.2 Principio da dignidade da pessoa humana; 5.3 A questão médica que prioriza a vida; 6 Hermenêutica constitucional e o aparente conflito entre direito a vida e liberdade religiosa; 6.1 Decisão do STJ; 7 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO A religião testemunha de Jeová, diante da interpretação que fazem das passagens bíblicas dos livros de Gênesis, 9:3-4 (1); Levítico, 17:10 (2) e Atos 15:19-21 (3), recusa-se a se submeter a tratamentos médicos ou cirúrgicos que incluam transfusões de sangue. Na impossibilidade de se valerem de tratamentos alternativos, negam-se a receber transfusões, mesmo que isso possa levá-las à morte. A recusa às transfusões de sangue possui importantes reflexos na esfera médica, acarretando dilemas éticos, pois os médicos estão condicionados a enxergar a manutenção da vida como o bem supremo, e no âmbito jurídico, no qual se debate se é direito do paciente recusar um tratamento médico por objeção de consciência quando este, aparentemente, é o único meio apto a lhe salvar a vida. As comunidades médicas e jurídicas, ainda que de forma sutil, têm dado sinais de que tendem a reconhecer o direito do paciente rejeitar determinados tratamentos médicos, independentemente do risco que ele esteja correndo com essa recusa. Tem-se a modesta finalidade de demonstrar que, frente às normas constitucionais que tutelam a liberdade de crença e de consciência, o direito à intimidade e à privacidade, os princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana, bem como em razão de dispositivos da legislação infraconstitucional – fatores aos quais se associa o risco inerente às contaminações nas transfusões – é absolutamente legítima a recusa das Testemunhas de Jeová em se submeter a tratamentos médico/cirurgias que envolvam a administração de sangue e seus derivados, mesmo nos casos de iminente risco de vida. Nos últimos 15 anos, as comissões de ligações com hospitais para as testemunhais de Jeová em todo o mundo distribuíram á comunidade médica, milhares de cópias do programa em vídeo intitulado estratégias alternativas à transfusão: simples seguras, eficazes, em cerca de 25 idiomas. Desde modo médicos de renome analisaram, e desde então tem o “crescente reconhecimento de que uma das metas do bom tratamento médico é evitar a transfusão sempre que possível” (MEDICINA3, 2006). Munidos com tal conhecimento, um crescente número de profissionais da área de saúde estão encarando a medicina transfusional de modo mais criterioso, pois passaram a avaliar se o sangue produz um resultado melhor para o paciente. As decisões que os médicos tomam em relação às transfusões baseiam-se naquilo que lhes foi ensinado, na sua formação cultural e na sua opinião clínica, e que pode ser contrário no caso concreto ao direito religioso das testemunhas de Jeová que não aceitam a transfusão.
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2 A RELIGIÃO E INFLUÊNCIA SOBRE TRATAMENTOS As Testemunhas creem que o sangue retirado do corpo deve ser inutilizado, de modo que não aceitam a autotransfusão de sangue retirado de uma pessoa e guardado. Embora muitas vezes os cirurgiões tenham recusado a tratar as Testemunhas, porque a posição destas sobre produtos de sangue parecia “amarrar as mão dos médicos”, muitos médicos agora decidiram considerar a situação como um desafio para a medicina. Visto que as Testemunhas não têm objeção ao uso de fluidos substitutos coloides ou cristaloides, tampouco ao eletrocautério, à anestesia hipotensiva, nem à hipotermia, estes têm sido usados com sucesso. No Brasil as Testemunhas de Jeová entregam um Termo de Responsabilidade para o médico e o hospital, eximindo os mesmos da responsabilidade, e a maioria das Testemunhas trazem consigo um cartão datado, assinado por testemunhas, preparado mediante consulta a autoridades médicas e legais. Estes documentos são válidos para o paciente (ou seus herdeiros e representantes legais), desse modo fornecem proteção aos médicos. O atendimento aos menores de idade representa a maior preocupação, resultando amiúde em um processo legal contra os pais, sob as leis referentes ao abandono dos filhos, tais processos, porém, são questionados por muitos médicos e advogados, familiarizados com casos das Testemunhas, as quais acreditam que os pais que são Testemunhas procuram dar boa assistência médica a seus filhos. Não querendo eximir de sua responsabilidade paterna, as Testemunhas desejam que se dê consideração aos princípios religiosos da família. 2.1 Os Problemas da Transfusão de Sangue As transfusões de sangue envolvem inúmeros riscos, e muitas vezes podem levar até a morte. Assim o uso das transfusões de sangue passou a ser também uma preocupação médica. Mesmo há 30 anos, os patologistas e as equipes dos bancos de sangue foram aconselhados: O sangue é como uma dinamite! Pode trazer muitos benefícios ou muitos malefícios. A taxa de mortalidade resultante da transfusão de sangue equivale à da anestesia com éter ou à da apendicectomia. Diz-se que há aproximadamente uma morte em cada 1.000 a 3.000, ou, possivelmente, 5.000 transfusões. Na área de Londres, informa-se haver uma morte para cada 13.000 frascos de sangue transfundido. (REVISTA..., 1960 apud AS TRANSFUSÕES4..., 2014). Compatibilizar o sangue do doador com o sangue do paciente é algo crítico nas transfusões. Porém mesmo o sangue que
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tenha sido devidamente compatibilizado pode causar a supressão do sistema imunológico. Como uma das tarefas deste sistema é defender o corpo de infecções, é compreensível que alguns pacientes que recebem sangue são propensos à infecção. (AS TRANSFUSÕES..., 2014). Além disso, existem várias doenças infecciosas, transmitidas por transfusões de sangue, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais são: a AIDS, a doença de chagas, a malária, dentre outras. 3 ALTERNATIVAS DE QUALIDADE PARA A TRANFUSÃO DE SANGUE Existem meios legítimos e eficazes de cuidar de graves problemas de saúde sem se usar sangue. Essas alternativas experimentaram grande desenvolvimento nos últimos trinta anos. A reposição do volume do plasma pode ser conseguida sem usar sangue total ou plasma sanguíneo. Diversos líquidos que não contêm sangue constituem eficazes expansores do volume do plasma. O mais simples de todos é a salina, que é compatível com o nosso sangue. Existem também líquidos dotados de propriedades especiais, tais como a destrana, o Haemaccel, e a solução de lactato de Ringer. Esses líquidos apresentam vantagens definitivas, são relativamente atóxicos, prontamente disponíveis, podem ser estocados à temperatura ambiente, não exigem testes de compatibilidade e estão isentos do risco de doenças transmitidas pela transfusão (ALTERNATIVAS5..., 2014). E o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via SUS, de tratamentos alternativos às transfusões de sangue – forma de materializar o atendimento dos direitos à saúde e à objeção de consciência, ambos protegidos constitucionalmente. Com o uso das alternativas médicas já foram feitas várias cirurgias como a de coração, operação do cérebro, cirurgias ortopédicas entre outras. O risco da cirurgia em pacientes do grupo das Testemunhas de Jeová não tem sido significamente maior do que no caso de outros. No entanto, quando o paciente perde de 25% a 30% do volume sanguíneo, está em risco de sofrer um choque hipovolêmico e morrer. Neste caso a transfusão de sangue seria importante para voltar o transporte de oxigênio, o que atualmente para esse caso não existe alternativa. 4 ANÁLISE SOB A ÓTICA MÉDICA Nos últimos 15 anos, as comissões de ligações com hospitais para as testemunhais de Jeová em todo o mundo distribuíram á comunidade médica, milhares de copias do programa em vídeo intitulado estratégias alternativas à transfusão: simples seguras, eficazes, em cerca de 25 idiomas. Desde modo médicos de renome analisaram, e desde então tem o “crescente reconhecimento de que uma das metas do bom tratamento médico é evitar a transfusão sempre que possível” (MEDICINA6..., 2006). Munidos com tal conhecimento, um crescente numero de profissionais da área de saúde estão encarando a medicina transfusional de modo mais criterioso, pois passaram a avaliar se o sangue produz um resultado melhor para o paciente. As decisões que os médicos tomam em relação às transfusões baseiam-se naquilo que lhes foi ensinado, na sua formação cultural e na sua formação cultural e na sua opinião clinica, e que pode ser contrário no caso concreto ao direito religioso das testemunhas de Jeová que não aceitam a transfusão. Aos médicos buscam indicar estratégias alternativas seguras e eficazes, no crescente reconhecimento de um bom tratamento e também o direito do medico de se pautar pelos padrões éticos em matéria de medicina transfusional, e ainda a manifestação de vontade das
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testemunhas de Jeová que possuem garantias religiosas e constitucionais ao expressar a vontade, de não receber transfusão de sangue e tendem a certificar a medicina alternativa como solução mais benéfica e pura aos seguidores da religião com embasamentos bíblicos. Os padrões de segurança em transfusão de sangue no mundo inteiro variam muito e os tratamentos com sangue são mais arriscados do que muitos pensam. Além disso, existem grandes diferenças no modo como os médicos usam o sangue, por causa de sua formação, pericia ponto de vista. Apesar dessas diferenças, muitos são cada vez mais cautelosos em aplicar transfusões que não envolva o uso do sangue. Decisões sérias sobre saúde podem ser muito estressantes e muitas vezes são difíceis de tomar. A respeito da pratica comum transfundir sangue, é importante que respeitemos os desejos das pessoas, deste modo agir com cautela e critério no que diz respeito à permissão desse fluido no corpo. 5 GARANTIAS LEGAIS As Testemunhas de Jeová, a título de cooperação, oferecem garantia legal de que um médico ou um hospital não incorrerão em responsabilidade civil ao promoverem o solicitado tratamento isento de sangue. Conforme recomendado por especialistas médicos, cada Testemunha porta um cartão intitulado “Documento para uso Médico”. Este é renovado anualmente e é assinado pela pessoa e por testemunhas. As Testemunhas também se dispõem a assinar formulários hospitalares de consentimento expresso. 5.1 O Direito a Liberdade Religiosa e o Direito à Privacidade A supremacia da liberdade de livre escolha, no que tange a liberdade de pensamento, a liberdade de crença e consciência provem do princípio de que nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma senão em virtude de lei, estão estoicamente asseguradas na Constituição Federal. Declaração Universal dos Direitos do Homem: Artigo 18 - Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. (DECLARAÇÃO7.., 2014). Constituição Federal, artigo 5º incisos: VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. (BRASIL8, 1988). A liberdade religiosa é um direito fundamental de primeira dimensão, onde não pode o Estado intervir nas áreas reservadas ao indivíduo. Sendo assim é direito do cidadão expressar a fé em todos os aspectos da vida, dando-nos o direito de recusar tratamentos médicos. As Testemunhas de Jeová, ao rejeitarem a transfusão de sangue, mesmo correndo risco de vida estão querendo que suas crenças sejam respeitadas. Além disso, levando em conta a proteção constitucional da intimidade e da privacidade, seria inaceitável forçar alguém a receber transfusão de sangue;
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Artigo 5° inciso X da constituição federal, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. (BRASIL, 1988). 5.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Consagra a instituição do “Estado democrático, o qual se destina assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” (BRASIL, 1988), assim como o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social, bem como, seguindo tendência do constitucionalismo contemporânea, incorporou, expressamente, ao seu texto, o princípio da dignidade humana artigo 1° inciso III, como valor supremo definindo-o como fundamento da república. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. Inciso III - a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988). Um dos objetivos fundamentais da República é justamente promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, inclusive religiosa. Assim impor uma transfusão de sangue contra a vontade de uma Testemunha de Jeová acarretaria na violação do seu corpo e também de seus preceitos religiosos. Lopez (2006) analisa essa questão da seguinte forma: Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral (LOPEZ9, 2006). O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez. 5.3 A Questão Médica que Prioriza a Vida Quando o médico fizer a transfusão de sangue contra a vontade do paciente, mas realizou esta transfusão em um caso de iminente risco de vida, e a fez para salvar-lhe a vida, não poderá ser aplicada a ele a responsabilidade civil ou criminal, pois o Código de Ética dos médicos nos artigos 46 e 56 dizem: Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida. Art. 56. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida. (CÓDIGO10,1988). Além disso, o artigo 146 do Código Penal no inciso I do § 3º: Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo. I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. (BRASIL11, 2014).
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Dentro destas condições o médico não pode receber qualquer punição administrativa ou ser responsabilizado nas esferas civil e criminal. 6 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E O APARENTE CONFLITO ENTRE DIREITO A VIDA E LIBERDADE RELIGIOSA A hipótese de transfusão de sangue a um Testemunha de Jeová, quando o mesmo encontra-se em risco de morte, é uma questão polêmica que desencadeia um aparente conflito entre os direitos fundamentais da vida e a liberdade religiosa. A aplicação do Direito neste caso depende de técnicas da hermenêutica constitucional, uma vez que a aplicação de uma norma jurídica ou direito fundamental exclui o outro já que ambos são plenamente compatíveis e aplicáveis ao caso concreto. Sendo assim para considerar o direito a vida é necessário ocultar a liberdade religiosa e vice versa. O conflito aparente entre o direito à vida e a liberdade religiosa da Testemunha de Jeová pode ter uma solução devido ao caráter relativo do direito a vida e a liberdade religiosa. Um exemplo de que o direito à vida se relativiza, é nos casos de guerra declarada em que a pena de morte é permitida, conforme o artigo 84, inciso XIX da Constituição Federal brasileira. Além disto, a liberdade religiosa é limitada pela Constituição, no seu artigo 5º, VIII, quando do descumprimento de obrigação legal a todos imposta. Sendo assim, para definir qual irá prevalecer será necessária uma interpretação através da hermenêutica constitucional e a presente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 6.1 Decisão do STJ No que concerne a transfusão de sangue, que diz respeito ao conflito presente entre direitos fundamentais de notória grandeza (direito à vida versus direito de recusa por convicções religiosas), faz com que o aludido tema possua larga amplitude. E tal embate entre direitos fundamentais se dá quando, no momento do exercício destes direitos, há o confronto entre os mesmos ou, entre eles e outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente. Além disso, o referido tema envolve ainda, não apenas aspectos jurídicos, mas também questões de ética profissional, saúde pública, crença, psicologia, entre outros, por isso parece óbvio, pois, afirmar que a matéria posta em exame, extremamente delicada. Deste modo, em recente entendimento, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que é possível transfusão de sangue em testemunha de Jeová, em risco eminente de morte, conforme julgado a seguir: Habeas Corpus nº 268.459/SP (2013/0106116-5): Atente ilegalidade. Reconhecimento. (3) liberdade religiosa. Âmbito de exercício. Bioética e biodireito: princípio da autonomia. Relevância do consentimento atinente à situação de risco de vida de adolescente. Dever médico de intervenção. Atipicidade da conduta. Reconhecimento. Ordem concedida de ofício (SUPERIOR12, 2014). A Justiça brasileira decide: risco iminente de morte obriga médico a fazer transfusão de sangue em testemunha de Jeová, mesmo contra a vontade da família. Diante disso explica o Professor Eduardo Hoffmann (2014): Não cometem crime os pais que impedem médicos de realizar transfusão de sangue em seu filho por razões religiosas. Assim decidiram dois ministros da 6ª turma do STJ ao analisar o polêmico caso envolvendo a morte da menina Juliana Bonfim da Silva, de 13 anos, devido à oposição de seus pais à realização do procedimento. Ao conceder HC aos progenitores, testemunhas de Jeová, os ministros Sebastião Reis Júnior e Maria Thereza de Assis Moura destacaram que os médicos devem realizar a trans-
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fusão independentemente da objeção dos pais, conforme determina a ética médica. O julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista. Outros dois ministros ainda votarão. O caso ocorreu em 1993, em São Vicente/SP. Juliana sofria de anemia falciforme e, durante uma crise, ficou dois dias internada sem receber as transfusões de sangue porque seus pais – o militar aposentado Hélio Vitória dos Santos e Ildelir Bonfim de Souza – impediram o procedimento. Em 2010, o TJ/SP decidiu que os réus deveriam ir a júri popular por homicídio doloso. A alegação do MP era de que os pais da garota tinham participação na morte da filha por não autorizar a transfusão devido às questões religiosas. O advogado do casal, Alberto Zacharias Toron, destacou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo que o julgamento é histórico, “porque reafirma a liberdade religiosa e a obrigação que os médicos têm com a vida. Os ministros entenderam que a vida é um bem maior independentemente de questão religiosa“. (HOFFMANN13, 2014).
tidos a tratamento terapêutico ás transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 787, n. 90, maio 2001.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratar de pessoas da religião Testemunha de Jeová pode parecer representar um dilema para o médico, uma vez que este faz um juramento a qual seu objetivo é a preservar vidas e a saúde, empregando todas as técnicas à sua disposição. Os padrões de segurança em transfusão de sangue no mundo inteiro variam muito e os tratamentos com sangue são mais arriscados do que muitos pensam. Além disso, existem grandes diferenças no modo como os médicos usam o sangue, por causa de sua formação, pericia ponto de vista. Apesar dessas diferenças, muitos são cada vez mais cautelosos em aplicar transfusões que não envolva o uso do sangue. As testemunhas reconhecem que clinicamente, sua firme convicção parece acrescentar certo grau de risco e pode complicar a assistência recebida. Respeitar a consciência religiosa dos pacientes que são Testemunhas de Jeová talvez seja um desafio. Mas, ao enfrentarmos este desafio, colocamos em destaque valiosas liberdades muito prezadas por todos nós. Sendo assim para poder respeitar o direito das Testemunhas de Jeová de negar a transfusão de sangue, há um caminho difícil mais não impossível de ser conquistado, basta se dedicar a pesquisas para desenvolver melhor as alternativas de transfusão sem a utilização de sangue, até chegar na total dispensa do sangue mesmo quando o paciente está em eminente risco de vida. Portanto, dentro da conformidade dedicada aos fundamentos teóricos relevantes, a mudança de paradigma na ética médica é explorar os sentidos possíveis da ideia da não aceitação da transfusão, bem como o conteúdo dos dois principais direitos fundamentais que concorrem na hipótese: direito à vida e direito a religião.
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2 Mestre em Direito pela FUMEC/FCH, professor (Regime Integral) do Centro Universitário Newton de Paiva e Coodenador do CEJU - Centro de Exercício Jurídico - Membro do Núcleo Docente Estruturante e Colegiado do Curso de Direito na Newton Paiva Email: cirlenebh@hotmail.com
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** Leandro Henrique Simões Goulart; Sérgio Armanelli Gibson.
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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA NA INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO Claudiovane Vianini César1 Cristian Kiefer da Silva² Banca examinadora** RESUMO: O princípio da insignificância é uma construção doutrinária e jurisprudencial e sem previsão legal. Mira o postulado afastar a tipicidade material, almejando a não-punição da conduta, que a princípio é formalmente típica, tendo em vista que o bem jurídico tutelado não sofreu lesão séria a ponto de justificar a incidência do braço mais gravoso do Direito, qual seja, o Direito Penal. O cerne do trabalho está na análise da discussão acerca da aplicação do princípio aos crimes que efetivamente não afrontam a sociedade e que estigmatizam o cidadão ora investigado por delito de pequena monta ou furto famélico. PALAVRAS-CHAVES: Princípio; Insignificância; Autoridade; Policial. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Da origem; 3 Das Razões; 4 Do Bem Jurídico; 5 Da Polícia Judiciária; 6 Considerações finais; Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO Nos dias de hoje percebemos claramente em nossa sociedade o clamor pela aplicação do direito penal máximo, é o que se pode denominar de “teoria das janelas quebradas” ou “broken windows theory” é um modelo norte-americano de política de segurança pública no enfrentamento e combate ao crime, tendo a desordem como fator de crescimento da criminalidade. Nesse contexto, caso não sejam repelidos os pequenos delitos ou contravenções se alçaria indubitavelmente ao patamar de cometimento de condutas criminosas mais graves, dado a inércia estatal em punir os agentes dos crimes menos graves. Assim, torna-se imprescindível a atuação forte do Estado no combate ao crime, seja a mínima criminalidade ou máxima criminalidade. Tal teoria se contrapõe a Constituição da República Federativa do Brasil que em seu artigo 1º, inciso III estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, além disso, preleciona ainda serem invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e a propriedade, extraído do seu artigo 5º. Diante do exposto, intentaremos apontar através deste projeto uma alternativa ao que concerne a punição dos infratores, dado ao fato que se o Estado usar o poder punitivo que dispõe com o mesmo rigor em cima daqueles que por furto famélico e que não tendo pendências com a justiça cometem algum delito, estaria cometendo uma violência contra a Lei Maior. Que a aplicação de um direito penal mínimo desde que analisado o caso concreto ainda é possível, e que, é viável na fase que antecede ao recebimento da ação penal, ou seja, quando do momento do inquérito policial, podendo o delegado deixar de instaurá-lo fundamentado pela bagatela. A recomendação é que este princípio deverá sempre incidir no caso concreto quando estiverem presentes os requisitos trazidos pelo Código Penal, ou seja, quando a conduta a princípio seria criminosa, é formalmente típica, prevista em lei como crime, mas a sua prática é incapaz de produzir uma lesão grave ao bem jurídico tutelado pela norma, não ofendendo ao bem, a ponto de se fazer necessária a atuação do Direito Penal para a solução da questão. 2 DA ORIGEM A ideia de desconsideração de danos sociais irrelevantes, remonta ao Direito Romano, orientado pelo brocardo minimis non curat pretor e, hoje, retrata a inadequação social da intervenção punitiva do
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direito penal. Se a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal é insignificante, socialmente inadequada será a intervenção punitiva do direito penal. (GALVÃO, 2011, p. 295). O princípio da insignificância surgiu na Europa, após a primeira Grande Guerra, predominantemente na Alemanha, quando o abalo econômico gerado por essa, levou à alguns membros da sociedade a pratica de pequenos furtos, alguns doutrinadores germânicos passaram a denominar essa pratica de “criminalidade de bagatela” (Bagatelledelikte), naquela época, seu caráter era basicamente patrimonial. Há uma boa parte dos doutrinadores que atribui a Claux Roxin a primeira menção à teoria da insignificância como princípio. Ressaltou Roxin que: O Direito Penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do Direito Civil ou do Direito Público, o Direito Penal deve retirar-se. (ROXIN apud GALVÃO, Direito Penal – Parte Geral, 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 295). A noção trazida por Claux Roxin contribui para importantes doutrinadores que vêm analisando o direito penal e almejam a aplicação do mesmo voltado para uma ótica mais humanista no intento de afastar desta ciência o desejo de vingança que a permeou por muito tempo. O que se busca é que o Estado tenha um instrumento efetivo de intervenção a delimitados fins, determinando que o Direito Penal somente seja aplicado quando outros ramos do direito não alcançaram. A aplicação do princípio da insignificância possibilita exatamente a atuação e aplicação do Direito Penal tão somente nas situações de grande relevância, onde a conduta praticada merece uma reprimenda de tal forma que os outros ramos do direito se mostrem insuficiente, ou seja, nas praticas onde se há atos menores, insignificantes, o Direito Penal não deve atuar. No direito pátrio o princípio da insignificância está inserido no bojo dos princípios penais implícitos, com isso extrai-se que, sua previsão não é de forma expressa na Constituição da República, e se complementam por outros princípios fundamentais explícitos, quais sejam, o Princípio da Dignidade da pessoa humana e o Princípio da Legalidade, com o que se obtém a justificação para a aplicação da pena criminal.
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A somatória de todos esses princípios na determinação da justificação e proporcionalidade da sanção punitiva revela o Princípio da Insignificância em matéria criminal, que é trazido à baila no intento de afastar do âmbito do Direito Penal as condutas insignificantes, como instrumento de proteger o direito de liberdade e igualdade na Constituição, conforme já mencionado anteriormente. Apesar da existência de toda uma construção para a aplicação do princípio da insignificância, o jus puniendi se consagrou como forma de garantir a manutenção da ordem pública e da paz social entre os cidadãos, indo assim na contramão das perspectivas dos doutrinadores que enxergaram na aplicação desse princípio uma forma de afastar a aplicação do Direito Penal de forma desnecessária. Na verdade, associar o bem estar coletivo com a punição, transformou a pena em resposta para todas às condutas desviadas, o Direito Penal passou a ser visto não como ultima ratio, mas sim, equivocadamente, como a primeira forma de solução de conflitos. O Estado passou a ser o único detentor do poder de punir, bem com da obrigação de aplicar as sanções impostas, mesmo naqueles delitos mais insignificantes, bloqueando assim os demais caminhos para composição dos litígios. Nessa visão de Estado opressor, obrigado a punir a todo custo, com base nas leis penais afasta-se a possibilidade da aplicação de outras sanções fora do âmbito do direito penal, tais como: as advertências, as indenizações etc. afastando-se ainda, a possibilidade da vítima querer decidir, transigir ou mesmo perdoar o infrator. Observa-se, pois, que a aplicação do Direito Penal nos moldes acima não traz nenhum benefício para a sociedade, obrigando-se, pois, a revisão da aplicação desse direito penal máximo. O Estado necessita rever as condutas ora aplicadas, necessita retomar as lições de Claux Roxin e de outros doutrinadores que tão sabiamente perceberam que o direito penal deve ser aplicado nos últimos do caso. A noção da importância da aplicação de um direito penal em consonância com a importância do ato praticado também foi tratada pelo Marquês de Beccaria, àquela época já mencionava os princípios da proporcionalidade e legalidade, que somados aos da liberdade, da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da intervenção mínima e da insignificância indubitavelmente passa a nortear o direito penal de um Estado. Segundo o autor: Para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser de modo essencial, pública, pronta, necessária, à menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei. (BECCARIA; 1.999, P. 52). Assim, com a modernização da Justiça Criminal, tornou-se indiscutível que aquele que provocar lesão a um bem jurídico só deve ser submetido à sanção criminal quando esta se mostrar indispensável à adequação da justiça e à segurança dos valores da sociedade, pois, a menor pena aplicada poderia ser desproporcional ao dano. (MIRABETE, 2004, p. 118). Nesse sentido vislumbramos que a tutela penal deve ser invocada sempre como ultima ratio, ou seja, tão somente quando outros ramos do direito não puderem proteger de forma satisfatória o bem jurídico tutelado, posto que o direito penal poderia criminalizar certas condutas, cujos limites se lastreiam nas garantias fundamentais já consagradas. Como bem explica o voto do Ilustríssimo então Ministro Ayres Brito, exempli gratia: HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL. TIPICIDADE PENAL. JUSTIÇA MATERIAL. JUÍZO DE ADEQUAÇÃO DE CONDUTAS FORMALMENTE CRIMINOSAS, PORÉM MATERIALMENTE INSIGNIFICANTES. SIGNIFICÂNCIA PENAL. CON-
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CEITO CONSTITUCIONAL. DIRETRIZES DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. ORDEM DENEGADA. 1. O tema da insignificância penal diz respeito à chamada “legalidade penal”, expressamente positivada como ato-condição da descrição de determinada conduta humana como crime, e, nessa medida, passível de apenamento estatal, tudo conforme a regra que se extrai do inciso XXXIX do art. 5º da CF, ipsis litteris: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. É que a norma criminalizante (seja ela proibitiva, seja impositiva de condutas) opera, ela mesma, como instrumento de calibração entre o poder persecutório-punitivo do Estado e a liberdade individual 2. A norma legal que descreve o delito e comina a respectiva pena atua por modo necessariamente binário, no sentido de que, se, por um lado, consubstancia o poder estatal de interferência na liberdade individual, também se traduz na garantia de que os eventuais arroubos legislativos de irrazoabilidade e desproporcionalidade se expõem a controle jurisdicional. Donde a política criminal-legislativa do Estado sempre comportar mediação judicial, inclusive quanto ao chamado “crime de bagatela” ou “postulado da insignificância penal” da conduta desse ou daquele agente. Com o que o tema da significância penal confirma que o “devido processo legal” a que se reporta a Constituição Federal no inciso LIII do art. 5º é de ser interpretado como um devido processo legal substantivo ou material. Não meramente formal. 3. Reiteradas vezes o Supremo Tribunal Federal debateu o tema da insignificância penal. Oportunidades em que me posicionei pelo reconhecimento da insignificância penal como expressão de um necessário juízo de razoabilidade e proporcionalidade de condutas que, embora formalmente encaixadas no molde legal -punitivo, materialmente escapam desse encaixe. E escapam desse molde simplesmente formal, por exigência mesma da própria justiça material enquanto valor ou bem coletivo que a nossa Constituição Federal prestigia desde o seu principiológico preâmbulo. Justiça como valor, a se concretizar mediante uma certa dosagem de razoabilidade e proporcionalidade na concretização dos valores da liberdade, igualdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, etc. Com o que ela, justiça, somente se realiza na medida em que os outros valores positivos se realizem por um modo peculiarmente razoável e proporcional. Equivale a dizer: a justiça não tem como se incorporar, sozinha, à concreta situação das protagonizações humanas, exatamente por ser ela a própria resultante de uma certa cota de razoabilidade e proporcionalidade na historicização de valores positivos (os mencionados princípios da liberdade, da igualdade, da segurança, bem-estar, desenvolvimento, etc.). Donde a compreensão de que falar do valor da justiça é falar dos outros valores que dela venham a se impregnar por se dotarem de um certo quantum de ponderabilidade, se por este último termo (ponderabilidade) englobarmos a razoabilidade e a proporcionalidade no seu processo de concreta incidência. Assim como falar dos outros valores é reconhecê-los como justos na medida em que permeados desse efetivo quantum de ponderabilidade (mescla de razoabilidade e proporcionalidade, torna-se a dizer). Tudo enlaçado por um modo sinérgico, no sentido de que o juízo de ponderabilidade implica o mais harmonioso emprego do pensamento e do sentimento do julgador na avaliação da conduta do agente em face do seu subjetivado histórico de vida e da objetividade da sua concreta conduta alegadamente delitiva. 4. É nessa perspectiva de concreção do valor da justiça que se pode compreender o tema da insignificância penal como um
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princípio implícito de direito constitucional e, simultaneamente, de direito criminal. Pelo que é possível extrair do ordenamento jurídico brasileiro a premissa de que toda conduta penalmente típica só é penalmente típica porque significante, de alguma forma, para a sociedade e a própria vítima. É falar: em tema de política criminal, a Constituição Federal pressupõe lesão significante a interesses e valores (os chamados “bens jurídicos”) por ela avaliados como dignos de proteção normativa. Daí por que ela, Constituição, explicitamente trabalha com dois extremos em matéria de política criminal: os crimes de máximo potencial ofensivo (entre os quais os chamados delitos hediondos e os que lhe sejam equiparados, de parelha com os crimes de natureza jurídica imprescritível) e as infrações de pequeno potencial ofensivo (inciso I do art. 98 da CF). Mesmo remetendo à conformação legislativa ordinária a descrição dos crimes hediondos, bem como daqueles de pequeno potencial de ofensividade. 5. Ao prever, por exemplo, a categoria de infrações de menor potencial ofensivo (inciso I do art. 98), a Constituição Federal logicamente nega a significância penal de tudo que ficar aquém desse potencial, de logo rotulado de “menor”; ou seja, quando a Constituição Federal concebe a categoria das infrações de menor potencial ofensivo, parece mesmo que o faz na perspectiva de uma conduta atenuadamente danosa para a vítima e a sociedade, é certo, mas ainda assim em grau suficiente de lesividade para justificar uma reação estatal punitiva. Pelo que estabelece um vínculo operacional direto entre o efetivo dano ao bem jurídico tutelado, por menor que seja, e a necessidade de uma resposta punitiva do Estado. 6. A contrario sensu, o dano que subjaz à categoria da insignificância penal não caracteriza, materialmente, sequer lesão de pequena monta; ou seja, tratase de ofensividade factualmente nula, porquanto abaixo até mesmo da concepção constitucional de dano menor. Donde sua categorização como penalmente atípica. 7. O desafio do intérprete da norma é encontrar aqueles vetores que levem ao juízo da não-significância penal da conduta. Vetores que decolam de uma leitura pluridimensional da figura da adequação típica, principiando pelo ângulo do agente; quero dizer: da perspectiva do agente, a conduta penalmente insignificante deve revelar muito mais uma extrema carência material do que uma firme intenção e menos ainda toda uma crônica de vida delituosa. Pelo que o reconhecimento da irrelevância penal da ação ou omissão formalmente delituosa passa a depender de uma ambiência factual reveladora da extrema vulnerabilidade social do suposto autor do fato. Até porque, sendo o indivíduo uma realidade única ou insimilar, irrepetível mesmo na sua condição de microcosmo ou de um universo à parte, todo instituto de direito penal que se lhe aplique há de exibir o timbre da personalização. Logo, tudo tem que ser personalizado na concreta aplicação do direito constitucional-penal (sobretudo os institutos da pena e da prisão), pois é a própria Constituição que se deseja assim orteguianamente aplicada (na linha do “Eu sou eu e as minhas circunstâncias”, como luminosamente enunciou Ortega Y Gasset). 8. Já do ângulo da vítima, o exame da relevância ou irrelevância penal deve atentar para o seu peculiarmente reduzido sentimento de perda por efeito da conduta do agente, a ponto de não experimentar revoltante sensação de impunidade ante a não-incidência da norma penal que, a princípio, lhe favorecia. Espécie da mais consentida desreificação ou auto-apeamento de situação jurídico-subjetiva. Sem que estejamos a incluir nesse vetor aquelas situações atinentes aos bens de valoração apenas no psiquismo da vítima, porquanto de valor tão-somente
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sentimental (uma bijuteria que pertenceu a importante familiar falecido ou muito admirado, por exemplo). 9. Sob o prisma dos meios e modos de realização da conduta, não se pode reconhecer como irrelevante a ação que se manifesta mediante o emprego de violência ou ameaça à integridade física, ou moral, tanto da vítima quanto de terceiros. É dizer: os meios e modos de execução da ação formalmente delitiva não podem consistir em atentado à vida, à saúde, à integridade física, nem à dignidade de qualquer pessoa. Reversamente, sinaliza infração de bagatela ou penalmente insignificante aquela que, além de não se fazer acompanhar do modus procedendi que estamos a denunciar como intolerável, revela um atabalhoamento ou amadorismo tal na sua execução que antecipa a sua própria frustração; isto é, já antecipa a sua marcante propensão para a forma não mais que tentada de infração penal, porque, no fundo, ditadas por um impulso tão episódico quanto revelador de extrema carência econômica do agente. 10. Do ângulo da repressão estatal, a aplicação do princípio da não-significância penal é de se dar num contexto empírico de óbvia desnecessidade do poder punitivo do Estado. Situações em que a imposição de uma pena se auto-evidencie como tão despropositada que até mesmo a pena mínima de privação liberdade, ou sua conversão em restritiva de direitos, já significa um desbordamento de qualquer idéia de proporcionalidade. 11. Por fim, e invertendo um pouco a visão até hoje prevalecente na doutrina e na jurisprudência brasileiras acerca do furto e demais crimes contra o patrimônio, o reconhecimento da atipicidade material da conduta há de levar em consideração o preço ou a expressão financeira do objeto do delito. Ou seja: o objeto material dos delitos patrimoniais é de ser conversível em pecúnia, e, nessa medida, apto a provocar efetivo desfalque ou redução do patrimônio da vítima. Reversamente há de propiciar algum enriquecimento do agente. Enriquecimento sem causa, lógico, apto à estimulação de recidiva e à formação do juízo malsão de que “o crime compensa”. É dizer, o objeto material do delito há de exibir algum conteúdo econômico, seja para efetivamente desfalcar ou reduzir o patrimônio da vítima, seja para ampliar o acervo de bens do agente. 12. As presentes diretivas de aplicabilidade do princípio da insignificância penal não são mais que diretivas mesmas ou vetores de ponderabilidade. Logo, admitem acréscimos, supressões e adaptações ante o caso concreto, como se expõe até mesmo à exclusão, nesses mesmos casos empíricos (por exemplo, nos crimes propriamente militares de posse de entorpecentes e nos delitos de falsificação da moeda nacional, exatamente como assentado pelo Plenário do STF no HC 103.684 e por esta Segunda Turma no HC 97.220, ambos da relatoria do ministro Ayres Britto). 13. No caso, nada obstante a reduzida expressividade financeira dos bens objeto da tentativa de furto, o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente servia muito mais como um nocivo estímulo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário. 14. Ordem denegada.” (HC 111017 - RS, 2.ª T., rel. Ayres Brito, 07.02.2012). 3 DAS RAZÕES Invocar a ação do princípio da insignificância nos delitos materialmente atípicos é demonstrar respeito ao princípio da dignidade humana, assim, não se permitirá que fatos desprovidos de reprovabilidade se transformem em estigmas de criminalidade para seus agentes, sendo ainda, uma forma de conter o caráter seletivo do direito penal. “O Direito Penal tem cheiro, cor, raça, classe social; enfim, há
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um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado.” (GRECO, ROGÉRIO; 2008). Decorre de tudo isso a ideia de que o direito penal deve apenas proteger os bens jurídicos concretos e nunca as concepções religiosas, ideológicas ou políticas, tampouco o comportamento moral dos cidadãos. Neste sentido, citamos Zaffaroni e Pierangeli (2009; p. 401), para os quais: Sob nenhum ponto de vista a moral em sentido estrito pode ser considerada um bem jurídico. A “moral pública” é um sentimento de pudor, que se supõe ter o direito de tê-la, e que é bom que a população a tenha, mas se alguém carece de tal sentimento, não se pode obrigar a que o tenha, nem que se comporte como se o tivesse, na medida em que não lesionem o sentimento daqueles que o têm. Logo, o bem jurídico tem função limitadora da intervenção do Estado, no concernente à interpretação dos tipos penais concretamente previstos pelo legislador. 4 DO BEM JURÍDICO Uma das funções do direito penal é proporcionar aos cidadãos o convívio pacífico e seguro através da proteção dos bens jurídicos considerados fundamentais para esta convivência. Conforme Zaffaroni: Bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam. (ZAFFARONI E PIERANGELI, 2009; p. 399). Portanto, é sabido que o princípio da insignificância se propõe a excluir lesões de ínfima lesividade. No entanto, tal aplicação se dá ante a observância de vários aspectos entre eles, importa considerar a compreensão do bem jurídico a ser tutelado no tipo penal. Nesse sentido, destacaremos seu conceito, função e classificação en passant. Toledo (1994) enfatiza que o ordenamento jurídico penal está dirigido para a proteção de algo. Depois, identifica como objeto dessa proteção, certos bens jurídicos. Nessa esteira, elucidar o conceito de bem jurídico e compreender elementos essenciais à compreensão da aplicação do princípio da insignificância é necessário. Tanto que, o mesmo Toledo (1994, p. 15) propõe um conceito para os bens jurídicos: Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de “valor”, isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são, “valem”. Por isso são em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razão, expostos a certos perigos de ataques ou sujeitos a determinadas lesões. Por essa razão, Toledo (1994) deixa evidente que para manter a paz social seria necessário adotar certas medidas que visem tutelar esses bens jurídicos. Acrescenta ainda, que nem todo bem é jurídico, e que nem todo bem jurídico é tutelado pelo Direito Penal, eis que, nesta seara, só entram os de maior importância, que sejam imprescindíveis de uma “proteção especial”, já que os outros ramos do direito mostraram-se incompetentes para tal tarefa. Nesse contexto, cabe analisar o critério de seleção de bens jurídicos. Greco (2007) nos ensina que, sendo a finalidade do Direito Penal a proteção dos bens essenciais ao convívio da sociedade, deverá o legislador fazer a sua eleição. Afirma que, tal critério e escolha não se encontram completamente seguro, em razão da forte conotação subjetiva, natural, da pes-
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soa humana encarregada de levar a efeito tal seleção. Superada a fase de seleção dos bens jurídicos penais, Prado (2004) atenta para a necessidade em diferenciar bem jurídico de objeto da conduta e substrato do bem jurídico. Alerta o autor que, muito embora, não haja dificuldade em diferenciar bem jurídico de objeto da ação, nem sempre é fácil distingui-los. Nesse sentido, Prado (2004) acerca da compreensão do objeto da conduta, defende duas linhas de pensamento: a primeira, tem sua origem em V. Liszt e segundo ele, o objeto da ação ou material é uma entidade pertencente ao mundo biofísico, naturalístico, enquanto que o bem jurídico, por sua vez, pertence ao mundo das normas. Já, a segunda postura, considera o aspecto normativo do objeto material. O objeto da conduta (ou do fato) é o referido pela ação típica, enquanto o bem jurídico é obtido por via interpretativa, referente à função de tutela da norma penal. Apesar disso, a diferença não consiste no fato de os dois conceitos pertencerem a mundos diversos, mas sim, quanto à função. Dentro desse contexto, Prado (2004, p. 248) ensina: Nessa nova perspectiva, a distinção não consiste no fato de os dois conceitos pertencerem a mundos diversos (empírico e normativo). Ao contrário, ambos os conceitos pertencem tanto ao mundo da norma como ao da realidade (ou da experiência) sendo que a distinção entre eles reside na diversa função exercida. O objeto da conduta exaure seu papel no plano estrutural: do tipo, é elemento do fato. Já o bem jurídico se evidencia no plano axiológico, isto é, representa o peculiar ente social de tutela normativa penal. Não são conceitos absolutamente independentes um do outro, mas, que se inter- relacionam, numa mútua imbricação. Assim, em melhores termos, sintetiza Prado (2004), que o objeto da ação vem a ser elemento típico, no qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal. É o objeto real a ser atingido pelo autor, em sua experiência, a concreta realidade empírica a que se refere a conduta típica , sendo que, essa realidade pode ser corpórea, no caso por exemplo da pessoa e da coisa e pode ainda ser incorpórea, no caso da honra. Ressalte-se ainda, que por essa razão, o objeto material pode ou não coincidir com o bem jurídico. Por outro lado, no que tange ao bem jurídico, assevera o autor, ser um ente material ou imaterial, inserido no contexto social, podendo ser ainda, individual ou metaindividual. Por fim, acerca da seleção dos bens, confirma pensamento já defendido por Greco (2007), afirmando que o bem jurídico deve sempre estar em compasso com o quadro axiológico, com fundamento na Constituição e no Estado Democrático e Social do Direito. Clara a ideia de bem jurídico, necessário ainda diferenciá-lo de seu substrato. Nesse sentido: Nessa linha de pensamento, convém evidenciar-se que o bem jurídico não se identifica exatamente como seu substrato; revela algo mais que sua base, visto ser resultado de um juízo positivo de valor sobre algo, que se encarna, e acaba por dar-lhe um conteúdo ímpar de cunho empírico-valorativo. E sempre portador de um sentido de algo valioso para o ordenamento jurídico, sendo expressão de uma relação empírico axiológica. Além disso, pode ter um objeto ideal como substrato de um significado, sentido ou valor jurídico (PRADO, 2004, p. 250). Então, pode-se inferir acerca das distinções acima elencadas, que nem todo bem jurídico tem suporte material, corpóreo, na qual possamos equipará-lo a objeto da ação. Isso porque, o bem jurídico, muito embora, possa ter conteúdo material, encontra-se posicionado mais no campo axiológico, ou seja, dos valores e ideias. Por última contribuição acerca dessa distinção, pode-se confir-
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mar tal pensamento de Prado (2004, p. 250): “Quando o bem jurídico se apresenta como valor, ainda que conectado com a realidade social, o objeto da ação pode ser incorpóreo. A conduta delitiva pode recair também sobre um objeto que não seja exatamente o seu suporte material”. Compreendidas as distinções entre bem jurídico, objeto da conduta e substrato, Prado (2005, p.115), alerta ainda, para a necessidade de diferenciá-lo de função. “A razão ou o motivo da incriminação legal nada mais é do que causa (o porquê) da tutela penal ou mesmo o objetivo que se busca alcançar, não sendo possível erigi-la à condição de bem jurídico”. Assim, pode-se afirmar, que bem jurídico e função, tem em sua essência, elementos completamente diferentes. Dentro desse contexto, importante considerar as funções do bem jurídico penal. Ademais, muitas são as funções do bem jurídico, no entanto, por achar mais pertinente ao objeto em questão, a análise será sob a ótica de Prado (2005), que considera as seguintes funções do bem jurídico: função de garantia, teleológica, individualizadora, sistemática e crítica. No que tange à função de garantia ou limitadora, Prado (2005) também a denomina como função garantista, e como o próprio nome suscita, apresenta-se como uma garantia do indivíduo, eis que, restringe o poder de punir do Estado ao selecionar apenas condutas que afetem bens jurídicos importantes para a sociedade. Importa, que para que um crime reste configurado, é necessário que exista uma agressão ou um perigo de agressão a bem jurídico de extrema relevância a ponto de ser tutelado pelo Direito Penal, posto que, em virtude do princípio da fragmentariedade, os ataques mais intoleráveis ao bem jurídico poderão ser combatidos. Desta forma, o legislador só poderá cominar pena a determinada conduta, se um bem jurídico de forte relevância social for atingido. Tal função de caráter político-criminal, restringe o jus puniendi estatal e indica que não se pode descurar do sentido informador do bem jurídico na construção dos tipos penais. Por sua vez, a função teleológica determina que ao analisar um determinado tipo penal, deve-se extrair qual o bem jurídico tem-se como finalidade proteger. Desta forma, a conduta somente será considerada como ilícita quando lesionar tal bem jurídico. Prado (2005a) define tal função, como critério de interpretação dos tipos penais, que condiciona o seu sentido e alcance à finalidade de proteção de determinado bem jurídico, como conceito central do tipo. Outra função existente é a individualizadora. Tal função está relacionada com a aplicação da pena e a lesividade da conduta. Pode ser definida como: “critério de medida da pena, no momento concreto de sua fixação, levando-se em conta a gravidade da lesão ao bem jurídico (desvalor do resultado)” (PRADO, 2005, p. 148). Dessa forma, defende que, ao fixar a pena, o magistrado deve analisar a importância da lesão provocada no bem jurídico protegido pela norma penal, a fim de que a pena seja proporcional ao tamanho da agressão. Por fim, Prado (2005) destaca também a função sistemática e a função crítica. A primeira, diz respeito à forma em que os tipos penais estão dispostos no Código Penal, de maneira que existem divisões de acordo com o bem jurídico que se deseja proteger, já a segunda função, destaca-se na medida em que, a partir da identificação do bem jurídico, se pode investigar a razão da opção legislativa ter se dado na escolha daquele bem jurídico e não de outro. É através dessa função, que se pode analisar de forma crítica o Direito Penal, como um todo. Verifica-se claramente, que as funções dos bens jurídicos ora estudadas, estão em plena consonância com o que se propõe o princípio da insignificância. Nesse sentido, é importante ao aplicar tal princípio, analisá-las com vistas a garantir ao indivíduo (função garantista) que não seja penalizado de forma desproporcional por condutas de ínfima lesividade (função individualizadora). Acrescenta ainda, que a necessi-
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dade em observar as seguintes funções ao aplicar o princípio da insignificância, revela ainda, que cabe ao magistrado, ao fazê-lo, considerar a real finalidade de proteção do bem jurídico (função teleológica). Outra classificação de grande relevância, e que merece destaque, diz respeito à divisão dos bens jurídicos. Mais uma vez, considerar-se-á a classificação proposta por Prado (2005), na qual, divide o bem jurídico em individual e meta individual. Nesse contexto, Prado (2004) afirma que o bem jurídico individual tem como titularidade o indivíduo, ou seja, o particular que tem o poder de controlar e dispor do mesmo. Possui caráter estritamente pessoal, já os bens jurídicos meta individuais, não tem como titularidade o indivíduo, sua titularidade tem caráter de massa, universais, pois estão para além do indivíduo, afetam um grupo, a coletividade. São bens essenciais e primordiais para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano. Percebe-se por meio dos conceitos acima, que o meio ambiente é bem jurídico incluso na categoria meta individual, eis que, sua proteção se dá para além da individualidade e sua proteção é essencial ao equilíbrio ecológico, o que proporciona a qualidade de vida do ser humano. No entanto, apesar de se destinar a coletividade, nem por isso o bem jurídico meta individual é mais importante que o individual. Há entre eles, uma relação de complementaridade, o que afasta o pensamento de preponderância entre eles. Tal afirmação confirma-se no entendimento de Prado (2004, p. 255): Parece bem observar que entre os bens jurídicos individuais e os metaindividuais há, em sentido material, uma relação de complementaridade (v.g., a saúde pública em relação à individual: a ambiente em relação à qualidade de vida do homem). Naqueles a referência individual privada é direta: nestes a referência pessoal é indireta, em marco individual mais ou menos acentuado. Nessa mesma direção, Vega (apud PRADO, 2005, p. 120), apresenta ainda outra classificação. Subdivide o bem jurídico metaindividual em três categorias: bens jurídicos institucionais (públicos ou estatais), bens jurídicos coletivos e bens jurídicos difusos. Desta forma, define os bens jurídicos institucionais como sendo aqueles em que a tutela supra – individual aparece intermediada por uma pessoa jurídica de público. Por outro lado, os bens jurídicos coletivos afetam um número mais ou menos determinável de pessoas, e por fim, quanto aos bens jurídicos difusos, sustenta que possuem caráter plural e indeterminado e dizem respeito à coletividade. 5 DA POLÍCIA JUDICIÁRIA NO BRASIL Nesse contexto, acreditamos ser a hora acertada para se provocar uma reflexão como vários outros tentaram no sentido de ser possível oferecer aos órgãos que se encarregam da persecução penal, uma diminuição dos processos de delitos menores que abarrotam os gabinetes, possibilitando-os que se ocupem das infrações graves com relevância penal que precisam ser punidos pela ofensa causada. A sistemática que se almeja abordar diz respeito à possibilidade ou não da aplicação do principio da insignificância e sua aplicação diretamente, já no estágio da investigação criminal, pela Autoridade Policial. Na atualidade, a polícia judiciária é exercida no âmbito da União, exclusivamente pela Polícia Federal, de acordo com o artigo 144, §1º, inc. IV da Constituição da República. Já no âmbito estadual, o exercício de polícia judiciária compete às polícias civis de cada Estado, conforme disciplina o artigo supracitado, em seu § 4º, in verbis: Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as Militares.
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O artigo 4º do Código de Processo Penal disciplina a função da polícia judiciária, determinando que “será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.” (PACELLI; 2013, p. 53). As polícias civis dos Estados são regidas por suas leis orgânicas e administradas pelas respectivas Secretarias de Segurança Pública, cujos titulares, os Secretários da Segurança Pública são nomeados pelos Governadores de Estado. Para o cargo de Delegado de Polícia, é requisito indispensável o bacharelado em Direito, além da aprovação no respectivo concurso que versa sobre matérias jurídicas, bem como a aprovação no Curso de Formação da Academia de Polícia. Extraímos da LEI Nº 12.830, DE 20 DE JUNHO DE 2013, entre os artigos 1º ao 4º, a natureza do cargo de Delegado de Polícia. Que versa sobre a investigação criminal conduzida por ele. O papel do Delegado de Polícia destaca-se no que tange a persecução penal, já que sua principal função é recolher elementos para formar o conjunto probatório mínimo que indicará o suposto agente de fato definido como crime bem como a prova da materialidade, quando o crime deixar evidências, a fim dedar lastro a ação penal pública, promovida pelo Membro do Ministério Público. Para tanto, o inquérito policial é o instrumento com o qual se documenta e materializa toda e qualquer investigação na primeira fase da persecução penal. É imperioso informar que no Brasil, o modelo adotado na investigação criminal é harmonioso com o Estado Democrático de Direito, haja vista que se presa pela legalidade e garantias constitucionais do investigado, ainda que na fase do inquérito policial. O delegado de polícia é um dos atores principais para apurar e descobrir os fatos e autores de um crime, não só quando da coleta de provas, é aquele que deve observar as disposições legais para reconstruir o fato considerado como crime, pois, tratamos aqui como uma parte desinteressada na busca da verdade real material. Todo o conjunto probatório coletado no inquérito policial é pautado na estrita legalidade, por ser a justa causa da ação penal. Sendo assim, as provas do inquérito não são “meros elementos informativos”, como afirma a doutrina formalista tradicional. “Já são provas, fins de dar efetividade e economia à justiça criminal, já que 99% das denúncias criminais oferecidas pelo parquet ao Estado Juiz são com base nas provas colhidas durante fase do inquérito”. (SANTOS, ALEXANDRE CESAR DOS; 2014). Para prosseguirmos com a reflexão, o Delegado de Polícia não deve ser encarado simplesmente como um profissional de segurança pública que investiga, executa diligências e comanda operações policiais. Face a nova redação dada pela Medida Provisória nº 657 de 2014 no seu artigo 2º-B: O ingresso no cargo de delegado de Polícia Federal, realizado mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, é privativo de bacharel em Direito e exige três anos de atividade jurídica ou policial, comprovados no ato de posse. (Incluído pela Medida Provisória nº 657, de 2.014). Neste sentido, vale lembrar que, tal disposição legislativa não se aplica ainda, às polícias civis dos Estados-Membros e dentro de uma opinião bem particular, deverá ocorrer em breve. O que irá corroborar então, que o Delegado, quem representa a polícia judiciária, o Estado Investigação, que cumpre funções de natureza probatória, cautelar, coercitiva e por fim alimenta às autoridades do Judiciário com informações precisas à instrução e julgamento dos processos na justiça criminal. Temos então que para ocupar o cargo de delegado de polícia é exigido vasto e robusto conhecimento jurídico, bem como a constante atualização sobre a legislação vigente e ainda o acompanha-
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mento das decisões de Tribunais, vez que, trata-se da dignidade e liberdade do investigado. Sendo assim, é de conhecimento público, que a polícia judiciária em regra é o primeiro braço estatal a ter contato com a infração e normalmente a responsável pela imediata resposta à sociedade, o que de per si viabiliza a aplicação deste princípio na fase de instauração do inquérito pelo Delegado de polícia – este por vez, sendo dotado de conhecimento técnico-jurídico e de discricionariedade – para evitar um processo penal estigmatizante, custoso em todos os aspectos procedimentais e cuja sentença final não será condenatória. Diante da realidade, a autoridade policial se vê forçada, em dadas situações, a selecionar entre os muitos procedimentos, aqueles de maior gravidade, que demandam mais atenção e celeridade. Assim, urge a necessidade de procedimentos processuais penais mais adequados à realidade social, com a finalidade de punir aqueles delitos que lesam efetivamente o bem jurídico, deixando-se de lado os fatos que, embora se amoldem formalmente ao tipo penal, são materialmente atípicos, ou de pequena bagatela par ao direito penal por não abalarem a segurança social. Trata-se de uma seleção necessária em relação à urgência de determinados feitos e diante da grande demanda, que não é mais suportada pelo aparato policial, tampouco pelo Poder Judiciário. Vale lembrar, que não se trata de arquivamento de inquéritos policiais ou de quaisquer outros procedimentos instaurados nas Delegacias de Polícia de forma sumária, mesmo porque, o artigo 17 do CPP veda à autoridade policial o arquivamento do inquérito, o que se almeja é a não instauração do inquérito pelo delegado de polícia. Entretanto, há que diferenciar a questão do arquivamento do Inquérito Policial do arquivamento da notitia criminis ou do denominado Boletim de Ocorrência que pode e deve segundo nosso entendimento ser realizado em situações peculiares, in casu, situações em que se vislumbre a aplicação do princípio da insignificância. Ao Ministério Público e não à autoridade policial pertence à titularidade da ação penal, e por consequência a apreciação da necessidade da instauração da persecução penal, oriundo do inquérito policial, situação diversa da mencionada acima, onde se defende a realização do arquivamento da notitia criminis. A discussão acerca da legalidade desse tema vem ganhando adepto no campo jurídico, sustentando a legitimidade dessas pratica, manifesta-se Salles Júnior: Voltando à comunicação do crime diretamente ao Delegado de Polícia, temos que às vezes, apesar da lavratura do Boletim de Ocorrência ou do recebimento da comunicação escrita, o inquérito não é instaurado, por entender a autoridade policial que o fato não é criminoso, que a autoria é incerta ou por qualquer outro motivo (CPP, art. 5º., § 2º.). (28 SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Inquérito Policial e Ação Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 12.) Portanto, o ato de arquivamento do inquérito por previsão legal pertence exclusivamente ao juiz, a requerimento do Ministério Público, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal, tendo em vista ser este o titular da ação penal, de acordo com o disposto na Constituição de 1988, em seu inciso I do artigo 129. O que se busca é a possibilidade de que o delegado de policia analisando a inexistência de justa causa para instauração do referido caderno indiciário deve nos termos ora defendidos deixar de instaurá -lo, mas uma vez instaurado, o arquivamento só pode ocorrer através de decisão judicial, provocada pelo Parquet, sempre de forma fundamentada, em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal, disposto no mencionado art. 28 do CPP.
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As mesmas disposições referentes a possibilidade de arquivamento pelo delegado de polícia devem ser aplicados aos outros procedimentos policiais a cargo da Polícia Judiciária, quais sejam: Termo Circunstanciado, Boletim de Ocorrência Circunstanciado, Auto de Apreensão de Adolescente e Auto de Investigação de Ato Infracional. Aliás, a própria jurisprudência já determina que contra o ato da autoridade policial que instaura inquérito ou outro procedimento policial sem a devida justa causa, é cabível habeas corpus com o objetivo de trancar a atividade persecutória do Estado. Portanto, desnecessário se faz a instauração por parte do delegado de polícia de um procedimento fadado a ser arquivado. É sabido, que investigar trata-se de atividade regular da polícia, portanto, coíbe-se o abuso e não a atividade investigativa inerente à função policial, quando fundada em justa causa, mas desnecessária se torna diante da ausência de elementos que possam caracterizar essa justa causa. Exemplificando a instauração de procedimento sem justa causa, tem-se a abertura de inquérito policial por fato atípico, que não configura crime ou ainda, a instauração como se quer demonstrar de uma conduta onde ao final o autor do fato será absolvido face a aplicação do princípio da insignificância. Nestes casos, tem-se claramente um constrangimento ilegal, passível do trancamento por meio de habeas corpus, e por que não evitar de plano até mesmo a existência desse mecanismo, através da simples leitura do delegado que não instaura o inquérito uma vez constada que a “notitia criminis” não possui justa causa. O arquivamento pelo delegado de policia já é uma realidade que vem ocorrendo nas Delegacias, em face de problemática já abordada, de se levar a efeito à totalidade das notícias crimes que chegam diariamente às órgãos policiais, conforme relata Brutti (2007, p. 21): De tempos em tempos, e esta tem sido a prática, ao atingirse número considerável de feitos prescritos em um Distrito Policial, convenciona-se determinado acordo entre Delegado de polícia e Promotor de Justiça locais e remetem-se citados cadernos apuratórios, em lotes, à apreciação do Parquet, a fim de que este requeira seu arquivamento ao Juízo competente. Incontáveis procedimentos, instaurados ou não, já prescritos, encontram esse destino em nossa Administração Pública. Por todas as razões expostas, em prol da apuração de ilícitos graves, que demandam complexa e demorada investigação, tais como: latrocínio, homicídio, tráfico de drogas, sequestro, estupro, tráfico de pessoas, dentre outros, propõe-se o que Brutti (2007, p. 22-23) entende por “sistemática processual” extremamente simples e rápida. Brutti propõe que a autoridade policial ao vislumbrar condutas materialmente atípicas por não afetarem significativamente o bem protegido, devem ser de pronto afastadas pelo delegado de polícia. Almeja-se assim que crimes como calúnia, difamação e injúria, descaminho cuja lesão tributária não atinja o valor mínimo para a interposição de execução fiscal, furtos de pequena monta e todos os demais abrangidos pelo princípio da insignificância não ocasionem a instauração do inquérito policial, deixando para os demais ramos do direito a responsabilidade por abarcar tais pratica, cujo resultado pode ser muito mais eficaz quando da incidência de uma multa, ou mesmo da obrigação de restituição do valor, do que propriamente a aplicação do direito penal. A sistemática proposta pelo referido autor, que é Delegado de Polícia Civil no Estado do Rio Grande do Sul, consiste em remeter-se à apreciação do Parquet, tão-somente os registros de ocorrência, sem a necessidade de instauração de procedimento, sendo que na hipótese de discordância do critério seletivo adotado pela autorida-
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de policial, restituiriam a notícia-crime à Delegacia, para ser instaurado o competente procedimento. Entendemos, no entanto, que além do registro da ocorrência, devem ser remetidos os respectivos termo de apreensão e de entrega dos materiais, com sucinta fundamentação da autoridade policial, a respeito da não instauração do procedimento com fulcro no princípio da insignificância, tendo em vista que, conforme verificado no início deste capítulo, o ato discricionário, para ser legítimo, deve ser fundamentado. Acreditamos também que o arquivamento da notícia-crime deve ser feito por decisão judicial, devendo o representante de o Ministério Público requerê-lo ao Magistrado, que diante da situação específica, poderá confirmar e validar uma conduta que por ser materialmente atípica fatalmente se sentença condenatória fosse prolatada seria essa reformada em sede de recurso. Nesse sentido orienta o doutrinador Mirabete (2004, p. 119) que: Com as cautelas necessárias, reconhecendo caber induvidosamente na hipótese examinada o princípio da insignificância, não deve o delegado instaurar o inquérito policial, o promotor de justiça oferecer denúncia, o juiz recebê-la ou, após a instrução, condenar o acusado. Há no caso exclusão da tipicidade do fato e, portanto, não há crime a ser apurado. A proposta apresentada e ora defendida tem um cunho social que pode trazer inúmeros benefícios à sociedade, visto que, traz celeridade, eficiência para persecução penal, evitando-se procedimentos desnecessários, e ainda, procedimentos que trazem grande repercussão na vida do particular. A partir da celeridade policial e processual, poderá vislumbrar-se maior possibilidade de justiça. Afinal, nos dizeres de Caon (2004, p. 16-17), “às vezes, a justiça tarda e falha. E falha exatamente porque tarda [...]” Desta forma, enquanto não vemos incluída na legislação brasileira, alguma norma que conceda legitimidade à autoridade policial para, efetivamente selecionar aquilo que não deve culminar em procedimento, baseada em seus conhecimentos jurídicos e no contato direto com a realidade social, utilizando-se do poder discricionário conferido aos administradores públicos, deve-se utilizar a sistemática aqui fundamentada, por significar verdadeiro respeito à sociedade, que clama por justiça diante dos delitos de maior gravidade. Neste sentido, trazemos a lição da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia Antunes Rocha, citada por Caon (2004, p. 17), “[...] não se quer a justiça do amanhã. Quer-se a justiça hoje. Logo, a presteza da resposta jurisdicional pleiteada contém-se no próprio conceito de garantia que a jurisdição representa”. Corroborando o exposto, assevera Brutti (2007, p. 23): Destarte, pela sistemática aqui defendida, dizer-se que se estaria valorizando o tempo da nossa Polícia Judiciária seria, a bem da verdade, uma afirmação inverídica. Estar-se-ia, isto sim, valorizando o ínfimo lapso temporal que a própria sociedade dispõe para a persecução dos casos graves, pois aquela só existe pela razão desta. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, de forma tão simples e prática, vários procedimentos que jamais acarretariam em qualquer tipo de condenação, face ausência de tipicidade material, deixariam de ser instaurados, trazendo benefícios à justiça penal. Podemos destacar ainda, a eficiência e verdadeiro respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois evita-se que um indivíduo carregue o estigma de indiciado, processado, quando na verdade a conduta por ele praticada não gera ou mesmo acarreta uma verdadeira lesão aos objetos jurídicos tutelados pelo direito penal.
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NOTAS DE FIM 1 Acadêmico do 9º Período em direito pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ** Eduardo Nepomuceno; Cristian Kiefer da Silva.
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O COLEGIADO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO NA LEI 12.694/12 E A OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL Rodrigo Vaz Mendes Sampaio1 Ronaldo Passos Braga 2 Banca examinadora** Resumo: O artigo busca analisar a lei 12.694/12, que permite a instauração de colegiado em primeiro grau de jurisdição para o processo e julgamento de crimes praticados por organização criminosa, a luz do princípio constitucional do juiz natural e do princípio processual da identidade física do juiz, abordando o novo conceito de organização criminosa trazido pela lei 12.850/13; a finalidade da lei, isto é, porque ela foi criada; a ofensa ao princípio do juiz natural e; a ofensa ao princípio da identidade física do juiz, tudo em conformidade com as posições doutrinárias e do Supremo Tribunal Federal.
Palavras Chaves: Lei 12.694/12; órgão colegiado; juiz natural; identidade física do juiz; Sumário: 1. Introdução; 2. O Novo Conceito de Organização Criminosa; 3. Escopo da lei 12.694/12; 4. Ofensa aos Princípio do Juiz Natural e Identidade Física do Juiz; 5. Considerações Finais; Referências.
Por mais que a lei 12.850/13 não faça qualquer referência à revogação parcial da lei 12.694/12, especificamente no tocante ao conceito de organizações criminosas, é no mínimo estranho aceitarmos a superposição de conceitos distintos para definir tema de tamanha relevância para o Direito Penal e Processual Penal. É bem verdade que o art. 9º da LC 95/98, com redação dada pela LC nº 107/01, determina que a cláusula de revogação de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e disposições revogadas, o que não ocorreu na hipótese sob comento, já que o art.26 da lei nº 12.850/13 revogou expressamente somente a lei 9.034/95, sem fazer qualquer referência ao art. 2º da lei nº 12.694/12. No entanto, a falta de técnica por parte do legislador – que, aliás, tem se tornado uma rotina –, não pode justificar a convivência de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando do conceito de organização criminosa de maneira conflitante. Por consequência, como se trata de norma posterior que tratou da matéria em sentido diverso, parece-nos que o novel conceito de organização criminosa consoante do art.1º, §1º, da lei nº 12.850/13, revogou tacitamente o art. 2º da Lei nº 12.694, nos termos do art. 2º, §1º da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro.
1. INTRODUÇÃO A lei 12.694/12, surge de um cenário tipicamente emergencial com o homicídio da magistrada Patrícia Acioli, ofendendo gravemente o preceito constitucional do juiz natural e consequentemente a identidade física do juiz, princípio expresso no artigo. 399, §2º do Diploma Processual Penal, o que torna evidente a criação de um verdadeiro tribunal de exceção. A instauração do colegiado em primeiro grau de jurisdição, sempre quando o juiz natural da causa se encontrar em situação de risco a sua vida e integridade física foi declarado constitucional no julgamento da ADI 4.144/AL, entretanto não deixa de apontar a ofensa aos princípios supra citados como será demonstrado. 2. O NOVO CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA Com a entrada em vigor da lei 12.850/13, surge uma dúvida, se há no presente momento dois conceitos de organização criminosa, um na lei supra e outro na lei 12.694/12, objeto do presente artigo ou a lei mais nova revogou parcialmente a antiga. Vejamos os conceitos em ambas as leis. Art. 2, Lei 12.694/12: Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional. Art.1, §1, Lei 12.850/13: Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”. Minoritária doutrina afirma que subsistem dois conceitos de organização criminosa, todavia, segundo entendimento da maioria a lei 12.850/12 revogou (parcialmente) a lei 12.694/12, especificamente em relação ao conceito de organizações criminosas Nesta Linha LIMA (2014 p.479).
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Por outro lado os demais dispositivos permanecem em plena vigência. Então, no caso de crimes cometidos por organizações criminosas (valendo-se do novo conceito trazido pela 12.850/13) pode ser instaurado o colegiado em primeiro grau de jurisdição nos termos do art.1º da lei 12.694/12. 3. ESCOPO DA LEI Nº 12.694/12 O assassinato da magistrada Patrícia Acioli, em Niterói/RJ, durante a investigação de quadrilhas que praticavam crimes na região chocou o país e ganhou tremenda repercussão midiática Com a vigência da lei 12.694/12 surge a possibilidade de o juiz instaurar um colegiado em primeiro grau de jurisdição, nos processos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas, quando sua integridade física ou até mesmo vida estejam ameaçadas. Proveniente de tais dados, foi sancionada na data de 24 de julho do ano de 2012 a lei nº 12.694, que vigora desde outubro do mesmo
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ano, com o escopo de oferecer maior segurança a juízes que processam e julgam crimes praticados por organizações criminosas. O objetivo da lei ao permitir a convocação do colegiado em primeiro grau de jurisdição é conceder maior segurança ao juiz para ele julgar com maior independência, ou seja, livre de pressões exteriores que possa sofrer por parte do acusado, integrante de organização criminosa. Acerca do tema dispõe TAVÓRA E ALENCAR (2013, p 268): A formação de um órgão colegiado, a partir de decisão motivada do juiz natural da causa criminal, tem o fito de despersonalizar a figura do juiz singular. Em outras palavras, verificando o juiz situação que seja apta a colocar sua segurança em risco, quando se apure crime praticado por organizações criminosas, terá a faculdade de proferir decisão, justificando a necessidade de composição de órgão coletivo, formado por ele e mais dois juízes sorteados eletronicamente. O objetivo geral da previsão legal é diluir a responsabilidade do juízo de primeiro grau, essencialmente singular (um único juízo), em três membros (...). Tudo visando que a personificação da jurisdição em único magistrado não seja motivo de causar-lhe riscos, notadamente diante de fatos concretos que indiquem perigos a sua integridade física.” 4. OFENSA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL O princípio do juiz natural, ou juiz legal (conceito alemão), é uma das maiores conquistas do ordenamento jurídico e consequentemente da sociedade em geral. O surgimento do princípio em testilha decretou o fim das justiças senhorias e apresentou o tribunal de caráter imparcial, onde todos estão submetidos à justiça. Dessa forma o juiz competente é estabelecido previamente, sem a temeridade da instauração de uma corte julgadora em qualquer momento processual para análise do crime. Hodiernamente o princípio está estabelecido no conjunto legal da maioria dos países como Argentina, Espanha, Cuba, Alemanha, dentre outros. Todas as constituições brasileiras, salvo a de 1937, continha o princípio expressamente esculpido. Os incisos XXXVII “não haverá juízo ou tribunal de exceção” e LIII – “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” do artigo 5º, que elenca as garantias individuais, da atual Carta Maior, manifestam o princípio em debate. COUTINHO (2001, p.26) define o juiz natural, como “o juiz competente, aquele que tem sua competência legalmente preestabelecida para julgar determinado caso concreto.”. Tal definição é finalizada pela vedação constitucional da existência de juízo ou tribunal excepcional. Celso de Mello, ministro do Pretório Excelso no HC 110.237/PA aponta dupla função do princípio. Abaixo, suas palavras: Na realidade, o princípio do juiz natural reveste-se, em sua projeção político- jurídica, de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, incide sobre os órgãos do poder incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal. Vê-se, desse modo, que o postulado da naturalidade do juízo, ao qualificar-se como prerrogativa individual (“ex parte subjecti”), tem, por destinatário específico, o réu, erigindo-se, em consequência, como direito público subjetivo inteiramente oponível ao próprio Estado. Esse mesmo princípio, contudo, se analisado em perspectiva diversa, “ex parte principis”, atua como fator de inquestionável restrição ao poder de persecução penal, submetendo, o Estado, a múltiplas limitações inibitórias de suas prerrogativas institucionais. Portanto, o juiz natural na sua essência principiológica exerce,
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a uma, função voltada para o acusado, qual seja, a garantia de ter conhecimento prévio de quem será seu julgador, a duas, voltada para o Estado, que não pode designar nenhum tipo de juízo singular ou composto, para julgar o defendente, em momento posterior ao delito, isto é, o juízo natural tem que ser previamente determinado. O princípio em estudo, segundo DIAS apud BRANCO, MENDES. (2014, p.478), possui três características, quais sejam: a) Somente são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição b) Ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer seja. Assim, percebe-se que a lei que determina a competência do juiz que deve ser preexistente à prática delitiva, para fins de impedir o surgimento de alçada de exceção. O autor supracitado afirma que o princípio está instituído sobre três planos diferentes, fonte, tempo e competência. No que diz respeito ao plano da fonte, somente a Carta Magna pode determinar o órgão competente para este ou aquele julgamento. Considerando que o Estado é o detentor do direito de punir, este deve ser limitado pelas garantias elencadas na Constituição Federal, das quais constam a imperiosa necessidade de se estabelecer previamente a autoridade competente para julgamento. Nesse sentido é o posicionamento de KARAM, (2005, p. 64). O conteúdo básico do princípio do juiz natural, consistente no fato de que órgãos a quem se atribui o exercício de um poder do Estado só podem ser instituídos pela Lei Maior, determina a conclusão de que são as regras constitucionais sobre competência as que contêm valor de funcionar também com o escopo maior de, além de realizar a distribuição do exercício da jurisdição, legitimar este exercício, traduzindo e efetivando a garantia da presença no processo do juiz natural. Não sendo órgão pré-constituído, sem o que não estariam asseguradas suas indispensáveis imparcialidade e neutralidade, torna-se necessário que regras com sede constitucional determinem um âmbito para o exercício da função jurisdicional que são investidos aqueles órgãos. Clareia a questão, MARQUES (2000, p.67): Mas, como o preceito tem agasalho na própria Constituição, apenas se considerará juiz natural ou autoridade competente o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais. A lei ordinária, por si só, não legitima a jurisdição conferida a juízes e tribunais. Autoridade judiciária competente é aquela cujo poder de julgar a Constituição prevê e cujas atribuições jurisdicionais ela própria traçou. Dessa forma por estar a Constituição acima de toda e qualquer norma, não é permitido a aplicação das regras infraconstitucionais em detrimento daquela, sob pena de serem declaradas inconstitucionais. Acerca do plano temporal, é necessário, como já exaustivamente falado, ser a competência definida anteriormente ao crime. Ora, nada mais é que um consectário lógico do princípio da nulla poena sine lege e tempus criminis regit iudicem. Sobre a esfera temporal do princípio do juiz natural, vale registrar julgado da sétima câmara criminal do Estado do Rio de Janeiro: JUIZ NATURAL. VIOLENCIA DOMESTICA. COMPETENCIA DA VARA CRIMINAL COMUM. Conflito de Competência. Alegação de
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aplicabilidade da Lei 11.340/06, com necessária remessa dos autos ao juízo hoje especializado. A Resolução n. 23, de 19/09/2006, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, atendendo ao comando emanado do artigo 14, da Lei 11.340/06, que passaram a ter competência para o processo e julgamento dos fatos decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Por delegação do Órgão Especial, o Exmo. Corregedor Geral de Justiça, através do Provimento n. 06/2007, determinou que somente os feitos distribuídos a partir da vigência da Resolução acima referida deveriam ser encaminhados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, vedando a redistribuição daqueles já distribuídos antes da vigência da Referida Resolução. Ocorre que neste conflito há a singular situação de um fato praticado em fevereiro de 2006, quando ainda não vigia a Lei 11.340/06, mas somente denunciado em maio de 2007, quando já existia o referido diploma legal e também a Resolução e o Provimento mencionados. Em uma rápida leitura do Provimento, através de mera interpretação literal, podemos ser tentados a afirmar que a competência é do Juizado de Violência Doméstica, posto que a denúncia somente foi ofertada e distribuída após a edição da Resolução n. 23, do Órgão Especial. No entanto, aqui os atos administrativos referidos merecem uma interpretação segundo a Constituição Federal, sob pena de violação da garantia constitucional ao Juiz Natural. Se ao tempo da prática do fato ainda não existia o órgão jurisdicional, não pode o denunciado ou querelado ser julgado por órgão criado posteriormente, posto que ninguém pode ser processado ou julgado por órgão instituído após a ocorrência do fato ou especialmente escolhido para conhecer e decidir sobre determinada causa. Assim não entender, é ferir mortalmente o princípio do Juiz Natural e abrir portas para possibilitar futuros Tribunais ou Juízos de Exceção. Deve prevalecer o “tempus criminis regit iudicem”, o que vale por afirmar a necessária competência segundo a organização judiciária preexistente à prática da infração penal para conhecimento e julgamento das causas criminais. Interpretar em sentido inverso é violar o disposto nos incisos XXXVII e LIII, do artigo 5., do Pacto Fundamental da República. A Constituição Federal submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade e ainda subordina todo o sistema normativo. Conflito conhecido e procedente, declarando-se competente o Juízo suscitado. (TJRJ. CONFLITO DE JURISDIÇÃO - 2007.055.00077. JULGADO EM 29/11/2007. SETIMA CAMARA CRIMINAL - Unanime. RELATOR: DESEMBARGADOR GILMAR AUGUSTO TEIXEIRA). (grifo nosso). O presente julgado trata sobre conflito de competência entre vara comum e vara especializada para julgamento, porém os fundamentos da decisão são totalmente aplicáveis ao tema em discussão. No caso, entendeu a turma por unanimidade que se ao tempo da prática da infração, não existia a vara especializada, não pode o denunciado ser julgado por órgão criado em momento ulterior. Pois, em homenagem ao princípio do juiz natural, ninguém pode ser processado ou julgado por órgão constituído após a prática do fato criminoso. Realizar tal conduta, segundo posicionamento da turma, é ofender de forma grave o princípio constitucional do juiz natural, possibilitando a criação de juízo ou tribunal de exceção. Aplicando a fundamentação do julgado supracitado à lei 12.694/12, percebemos que a instauração do colegiado em processo já em curso, fere de morte o princípio do juiz natural e cria um verdadeiro tribunal de exceção. Em último, no que trata ao plano da competência, a autoridade julgadora deve ser taxativamente estabelecida para o processo e julgamento do acusado de pratica delituosa, a fim de também impedir a
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criação dos juízos e tribunais extraordinários. A título de argumentação, tem-se por tribunal de exceção, na definição de CRETELLA JUNIOR (1997, p.463) “o colegiado judicante instituído ad hoc ou permanentemente para contingências particulares, contrapondo-se ao Tribunal Natural ou Tribunal Legal, inseparável do regime de legalidade.”. Por fim, afirma MARCON (2004, p.115) que, para se prestar validade ao princípio, deve haver “previsão em lei; previsão em lei anterior ao crime. Previsão em lei anterior ao crime que fixa a competência de forma taxativa.”. Corolário lógico do princípio do juiz natural é o princípio infraconstitucional da identidade física do juiz instituído no artigo 399, §2º do Código de Processo Penal, também violado pelas disposições da lei 12.694/12. O artigo 1º, §3º, da lei 12.694/12 define que a competência do colegiado limita-se ao ato para o qual foi convocado. O problema é que a lei não especifica se o colegiado poderá ser convocado mais de uma vez, dessa forma caso o seja há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, esculpido no artigo 399,§2º do diploma processual penal, nessa linha LOPES JR (2014, p.482): A competência deste órgão colegiado está limitada ao ato para qual foi convocado (art. 1º, §3º, da Lei n. 12694/12), o que acaba gerando um grave problema: ao longo de um mesmo processo, poderá haver diferentes colegiados proferindo decisões interlocutórias e, ao final, um outro colegiado decidindo (ou apenas o juiz singular sentenciado). É, ainda, incompatível com a regra da Identidade Física do Juiz (art. 399, §2º, do CPP). Para além da violação desta regra, deve-se considerar que a promiscuidade jurisdicional criada acarretará grave prejuízo para a qualidade da decisão. Por elementar que o julgamento colegiado é mais qualificado, mas não desta forma, onde diversos “colegiados” podem atuar no mesmo processo e, no final, o julgamento poderá ser feito por outro grupo de juízes ou apenas pelo juiz singular. Essa oscilação na estrutura do órgão jurisdicional sacrifica a qualidade do julgamento final. Há quem entenda que o colegiado poderá ser convocado de duas formas, ampla, ou seja para todos os atos da persecução, ou restrita, isto é, para determinado ato. É esta a lição de TÁVORA E ALENCAR (2013, p. 272): Se a decisão do juiz pela formação do órgão colegiado for ampla, isto é, para todos os atos processuais, sem exceção, a atuação colegiada perdurará até o encerramento das funções jurisdicionais de primeiro grau. Caso seja restrita – por exemplo, para prolatar sentença –, a competência para condução do processo pelo colegiado estará exaurida com a prática deste único ato. No mesmo diapasão é a posição de LIMA (2014, p. 619): (...) preferimos entender que, se houver necessidade, é plenamente possível – e até recomendável – a formação do colegiado para acompanhamento de toda persecução em relação a determinado crime praticado por organização criminosa A uma, porque a instauração do colegiado para a prática de cada ato processual, é claramente incompatível com o princípio da celeridade, o que, evidentemente contraria um dos objetivos da própria Lei nº 12.694/12, qual seja, o de viabilizar uma prestação jurisdicional mais justa e eficaz para os crimes praticados por organizações criminosas. Em segundo lugar, fosse necessária a convocação do colegiado para cada ato processual, ter-se-ia evidente prejuízo à busca da verdade, escopo fundamental do processo penal. Afinal para cada novo juiz que passasse a fazer parte do colegiado, seria necessário a reabertura da instrução, de modo a permitir que este magistrado tomasse conhecimento dos elementos informativos e probatórios constantes dos autos do processo.
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Ocorre que a Lei não foi clara sobre quantos atos processuais poderá o colegiado se pronunciar, pois segundo a lei 12.694/12, “juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual” (art.1º, caput). Adiante, o art. 1, §3º autoriza o colegiado ser instaurado apenas para o ato ao qual foi convocado, dessa forma, caso haja necessidade de instauração do colegiado para diversos atos, e como o órgão é instituído por sorteio eletrônico (art. 1º, §2º) gera a possibilidade de formação de vários colegiado com vários juízes diferentes, de forma a lesionar o princípio da identidade física do juiz (art. 399, §2º). Em sentido contrário, aduz PACELLI (2013, p.832) que não há qualquer ofensa ao princípio da identidade física do juiz. Vejamos: (...) que a citada legislação não viola o princípio da identidade física do juiz, atualmente acolhido no art. 399, §2º, do CPP. Em primeiro lugar, porque a matéria não tem fundo constitucional Aliás, até o ano de 2008, época que se editou a lei nº 11.719/08, não se exigia na ordem processual penal brasileira que o juiz sentenciante fosse aquele que presidiria a instrução. Razões pouquíssimos nobres são responsáveis pelo atraso na mudança ocorrida àquele tempo. Como quer que seja, o tema é de conformação legislativa, nada havendo na Constituição que determine o respeito ao aludido princípio. Ao depois, há que se ressaltar que existem exceções legais à regra do art. 399,§2º, CPP. Com efeito, no caso de promoção, de licença ou de qualquer outro afastamento legal e regulamentar do magistrado, nada impedirá que seu substituto profira sentença no processo, sem a obrigação de repetir a prova até então colhida, Assim como a instauração do Colegiado vem instrumentalizada em Lei Federal – e não em norma de organização judiciária! – não há como se pretender a sua invalidade sob a perspectiva da identidade física. Sustentado a nossa tese, O Supremo Tribunal Federal, em julgamento da ADI 4.144/AL propostas pela Ordem dos Advogados do Brasil em face da Lei Estadual de Alagoas nº 6.806, a qual criou a 17ª Vara Criminal, composta por cinco magistrados para decidir a respeito de crimes praticados por organizações criminosas, decidiu pela sua inconstitucionalidade, por violar o princípio da identidade física do juiz. Confira trecho da ementa: O mandato de dois anos para a ocupação da titularidade da Vara especializada em crimes organizados, a par de afrontar a garantia da inamovibilidade, viola a regra da identidade física do juiz, componente fundamental do princípio da oralidade, prevista no art. 399, § 2º, do CPP (“O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”), (...).
mais o juiz natural da causa. Corrobora para esse entendimento LIMA (2014, p.620): (...) a necessidade de instauração do colegiado para cada ato processual iria de encontro ao princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, §2º), porquanto, especialmente nas causas a envolver crime organizado, esta limitação temporal de atividade do julgador inviabilizaria que ele fosse o mesmo perante o qual produzidas as provas e conduzidos os debates, obstaculizando, ademais, o princípio da oralidade, expressamente adotado pela lei 11.719/08. Por fim, como bem colocado por NUCCI (2014, p. 98), a lei deve observar algumas cautelas “dentre elas a fiel observância ao princípio da identidade física do juiz (art. 399, §2º, do CPP).” A doutrina majoritária, aponta pela não ofensa ao princípio do juiz natural. Em sentido contrário é a posição do Supremo Tribunal Federal. Segundo TÁVORA E ALENCAR, (2013, p.273), duas posições podem vislumbradas. Vejamos: (1) A primeira sustentando a inconstitucionalidade da previsão. Para essa corrente, o acusado tem o direito de saber qual juiz é competente para apreciar o fato de maneira prévia. Isto é, a formação posterior do colegiado – ou seja, após a prática do crime –, ofenderia o princípio do juiz natural instituindo algo semelhante a um tribunal de exceção. (2) a segunda que não vê inconstitucionalidade, com esteio na interpretação conforme a Constituição. Vale dizer, só em casos excepcionais que o colegiado é instituído, de forma motivada, quando presentes os requisitos legais. Há um controle correcional a respeito. Nessa senda, o princípio do juiz natural não é ofendido pela formação do colegiado a partir de regras rígidas: (a) verificação concreta que ponha em risco a integridade física do juiz natural da causa;(b) decisão motivada; (c) permanência do juiz natural como membro do colegiado; e (d) sorteio eletrônico de dois outros juízes de primeiro grau de igual competência. Não haveria assim similitude com tribunal de exceção e aparente colidência de princípios seria resolvida pela técnica de interpretação conforme a Constituição, não admitindo formação de colegiado em primeiro grau sem a presença dos requisitos legais
Ora, se a estipulação da permanência máxima pelo período de dois anos, quando magistrado ficará responsável pela vara especializada em crime organizado ofende o princípio da identidade física do juiz, é consequência lógica que a situação prevista na lei 12.694/12, em que o juiz é convocado para apenas um ato também ofende. Assim, a disposição que autoriza a instituição do colegiado em primeiro grau de jurisdição está em completo desacordo com o princípio constitucional do juiz natural, pois cria claramente um tribunal de exceção para cada momento processual. A regra não alega em nenhum momento que ocorrerá a prevenção, caso seja necessário mais de uma instituição, no curso do feito. Destarte, se o magistrado convoca o colegiado para a pratica de três feitos diferentes, o réu poderia chegar a se defender perante sete juízes diferentes, pois, seriam os seis convocados (dois para cada ato),
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Os autores são partidários da segunda corrente. Na mesma linha PACELLI (2013, p. 831): Em princípio, e desde que respeitadas as regras estabelecidas na lei 12.694/12, a jurisdição colegiada ali instituída nada tem de inconstitucional, relativamente a suposta violação do juiz natural, na perspectiva da vedação do juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). Com efeito, trata-se de instância judiciária (o colegiado) devidamente prevista em lei, com competência instituída antes da prática do delito, o que, por si só, já afastaria a exceção do tribunal, conforme consta da citada cláusula constitucional. E, mais. O juiz do processo, isto é, o juiz legal (competência territorial) e constitucional (em razão da matéria), não será afastado do processo. NUCCI (2013, p.97): Levando-se em consideração que um dos pilares do princípio do juiz natural é a sua prévia designação abstrata em lei, para que não surpreenda o investigado ou réu, nem se constitua em juízo de exceção, pode-se considera válido o colegiado. Afinal, há expressa disposição em lei acerca da sua formação, bem como as regras específicas para que tais medidas sejam tomadas.
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E ainda LIMA (2014, p.621) Sem embargo de opiniões em sentido contrário, considerando que referido postulado assegura não só a imparcialidade do julgador, evitando designações com finalidades obscuras em prejuízo do acusado, como também o direito, a qualquer pessoa, a processo e julgamento pelo mesmo órgão, e um reforço à independência do magistrado, é de todo evidente que, na verdade, a formação desse órgão colegiado vem ao encontro do juiz natural. Isso porque, para além de se tratar de instância judiciária devidamente prevista em lei anterior, com competência instituída antes da prática do delito, sua formação visa à preservação da própria segurança do magistrado, que deve se sentir protegido contra ameaças perpetradas por organizações criminosas para que possa exercer função jurisdicional de maneira imparcial e independente. De mais a mais, como os nomes dos demais integrantes do colegiado são divulgados, é perfeitamente possível que eventual exceção de suspeição, impedimento ou incompatibilidade seja oposta contra cada um deles. Já segundo LOPES JR (2014, p.482), a possibilidade de instauração do colegiado para prática de atos decisórios pode ter sua constitucionalidade contestada, confira as palavras do autor: A primeira ressalva que se faz é acerca da possibilidade de um juiz decidir sobre a “criação de órgão colegiado” com poder decisório. Trata-se de uma autorização legal até então desconhecida pelo sistema nacional e que tem sido objeto de severas críticas, na medida em que pode representar a violação da garantia do juiz natural. Isso porque o órgão julgador tem que ser definido previamente à prática do crime. Ou seja, é a garantia de ser julgado por um juiz cuja competência é preestabelecida e não por um órgão colegiado criado ad hoc, ou seja, para aquele caso penal e aquele ato procedimental, conforme discricionariedade de um ou outro juiz. Trata-se de medida de duvidosa constitucionalidade, no mínimo. O Supremo Tribunal Federal, na Análise da ADI 4.144/AL, pareceu entender pela ofensa ao princípio do juiz natural, por haver, segundo trecho da ementa, “INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL, POR VIOLAR O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E A VEDAÇÃO DE CRIAÇÃO DE TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO (ART. 5 º, LIII E XXXVII, CRFB).”. Ademais, o Pretório Excelso, em outro trecho da ementa do mesmo julgado, aduz que: A criação, no curso do processo, de órgão julgador composto pelo magistrado que se julga ameaçado no exercício de suas funções e pelos demais integrantes da Vara especializada em crime organizado é inconstitucional, por afronta aos incisos LIII e XXXVII do artigo 5º da Carta Magna, que vedam, conforme mencionado alhures, o poder de comissão, é dizer, a criação de órgão jurisdicional ex post facto (...) Entendemos que a nossa o Corte Máxima acertou, pois não é passível de aceitação que o juiz possa convocar o colegiado, após o início da persecução, para a prática de apenas um ato processual, alegando risco a sua integridade física, instaurado um verdadeiro tribunal de exceção. Clarividente que a lei estadual de Alagoas trata de matéria similar à lei 12.694/12, dessa forma possível a aplicação do entendimento supra à esta última. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Verifica-se que a lei 12.694/12 está eivada de inconstitucionalidade e ilegalidade por grave ofensa ao princípio constitucional do juiz natural e processual da identidade física do juiz.
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Pela similitude entre a lei estadual 6.806/AL e a Lei 12.694/12, deve a decisão do Supremo Tribunal Federal a ADI 4.414/AL deve valer de parâmetro de aplicação e interpretação da última. Mesmo que a nossa Corte Máxima tenha decidido pela constitucionalidade do colegiado em primeiro grau de jurisdição, observou com maestria o insulto ao princípio do juiz natural, que segundo entendimento do Pretório Excelso, o fato de convocar o colegiado para a pratica de determinado ato processual, cria um tribunal exceção, não admitido pela Constituição Federal Brasileira. Adiante, quando a Lei 6.806/07 do Estado de Alagoas, estipula que o juiz ficará por prazo determinado na vara (2 anos), pode impedir, o magistrado que participou da instrução, proferir a sentença. Na lei 12.694/12 é ainda pior, pois, o juiz convocado pode sê -lo para apenas um ato e, caso haja necessidade poderá haver nova convocação por sorteio eletrônico como determina a lei, de outros magistrados desconhecedores do processo. Assim pode ser que uns participem da instrução e outros profiram sentença. Conclui-se então que é claro como a luz do sol a afronta aos princípios do juiz natural e identidade física do juiz. REFERÊNCIAS ALENCAR, Rosmar Rodrigues, TAVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 8ª ed. Salvador: Editora JusPodivm. 2013. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2014 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Vol.1 São Paulo: Revista de Estudos Criminais 2001. CRETELLA JR, José. Comentários à Constituição 1988. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Forentese Universitária, 1997. KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2005. LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª ed. Salvador: Editora JusPodvim. LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 11ª ed. São Paulo: Editora Saraiva MARCON, Adelino. O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. Curitiba: Editora Juruá. 2004. MARQUES, José Frederico; NALINI, José Renato. Da Competência em Matéria Penal. 1. ed. Campinas: Editora Millennium. 2000 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. 2. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17ª ed. São Paulo: Editora Atlas.
NOTAS DE FIM 1 Aluno do 10º Período do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Empresarial (GEPEM) do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre, Especialista em Ciências Penais, Professor do Centro Universitário Newton Paiva da Disciplina de Direito Penal. ** Ronaldo Passos Braga; Marcelo Sarsur.
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DISCRIMINAÇÃO NO PAGAMENTO DE DIÁRIAS NA POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS Thales Milanez de Carvalho1 Anderson Avelino de Oliveira Santos 2 Banca examinadora** RESUMO: O presente estudo visa tecer reflexão acerca da percepção de diárias no âmbito da Polícia Militar de Minas Gerais em face dos tão aclamados princípios da dignidade humana e da igualdade. Atualmente, o critério preponderante para se definir o valor das diárias é o cargo ocupado pelo beneficiário, o que entendemos não ser muito correto, visto que trata de benefício de natureza jurídica indenizatória com a mesma finalidade. PALAVRAS-CHAVE: Serviço Público; Princípio da Dignidade Humana; Princípio da Igualdade; Natureza Indenizatória; Diárias.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Polícia Militar de Minas Gerais; 3 Organização Funcional; 4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 5 Princípio da Igualdade; 6 Remuneração e Subsídio; 7 Diária; 8 Natureza Indenizatória; 9 Conclusão; Referências.
1 INTRODUÇÃO Muito se discute dentro da Polícia Militar de Minas Gerais sobre os valores diferenciados que são pagos aos militares que necessitam se deslocar de sua sede quando em diligência do serviço público. Atualmente, de acordo com o Decreto nº 45.260 de 22 de setembro de 2009, os valores são diferenciados de acordo com o posto/graduação do militar e corresponde a um dia de vencimento quando o servidor se descolar no Brasil e, de dois dias de vencimento quando for para o exterior (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009). Entretanto, não se sabe os critérios os quais justificam a definição desses valores, e não há justificativa que sustente o pagamento de diárias em valores completamente distintos levando em consideração a remuneração do posto ou graduação, mesmo porque, os militares que viajam, seja praça ou oficial, têm despesas iguais, com alimentação, hospedagem e outras despesas eventuais que podem ocorrer quando se está longe de casa e da unidade onde serve. Sendo assim, o presente trabalho visa estudar os critérios que definem os valores correspondentes às diárias pagas aos servidores militares que necessitam se deslocar de sua sede, tendo como base o princípio constitucional da isonomia que se estende, inclusive, no que tange as necessidades biológicas das pessoas, visto que as diárias tem natureza indenizatória, pois servem para custear despesas com alimentação e pousada. Se todos são iguais perante a lei e as necessidades biológicas de todos são iguais, porque há diferença de valores das diárias para uma equipe de praças e oficiais que viajam juntos? O tema do referido trabalho apresenta grande relevância não só para a Polícia Militar, mas para todas as instituições públicas que precisam indenizar seus servidores, visto que, a lei ao fixar os valores das diárias de modo diferenciado e tendo como base a remuneração, traz junto a marca da discriminação e desproporção, sendo que a natureza da diária é de caráter indenizatório. O valor da diária percebida por um Coronel da Polícia Militar de Minas Gerais corresponde a uma quantia superior a 100% do valor da diária recebida pelo Soldado. Com base nessa diferença, quem se hospeda, se alimenta e se locomove com mais dignidade? Está sendo respeitado o princípio da igualdade? Será que um cargo ocupado é condição suficiente para justificar tamanha disparidade nos valores percebidos? O objetivo do trabalho é justamente analisar a lei e a forma que ela é aplicada e com base em novas ideias, pareceres e fundamentos, buscar soluções que justifique o problema aqui apresentado de forma clara e coerente. LETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
2 POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS Em nível estadual, a segurança pública foi atribuída às polícias civis e policias militares e ao corpo de bombeiro, organizados e mantidos pelo estado, diferente apenas do Distrito Federal que é organizado e mantido pela União, art. 21, XVI Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) (BRASIL. Constituição, 1988). A Constituição do Estado de Minas Gerais dispõe em seu art. 39 que são militares do Estado “os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, que serão regidos por estatuto próprio estabelecido em lei complementar” (MINAS GERAIS. Lei nº 5.301, 1969). O referido estatuto trata-se da Lei nº 5.301, de 16 de outubro de 1969 e contém o Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais (EMEMG). Quanto a função do policial militar, esta é exercida pelos oficiais e praças com a finalidade de preservar, manter, e restabelecer a ordem pública através das várias ações policiais no exercício do poder de polícia. Para melhor compreensão da função, faz-se necessário definir ordem pública e poder de polícia. Para Lazzarini (1999, p. 52), ordem Pública “constitui-se pelas condições mínimas necessárias a uma conveniente vida social, a saber: segurança pública, salubridade pública e tranquilidade pública”. Sendo assim, ordem pública é situação que se materializa pela convivência social pacífica e harmoniosa da população, pautada pelo interesse público, pela estabilidade das instituições e pela observância dos direitos individuais e coletivos e fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade, excluindo assim, a violência, o terror, a intimidação e os antagonismos deletérios, que deterioram àquela situação. O artigo 29, § 2° da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que: Art. 29 - No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem publicam e do bem-estar numa sociedade democrática. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948) Para que seja garantida a ordem pública, a Polícia Militar faz uso do seu poder de polícia que para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p.124), adotando um conceito moderno defini como sendo: “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse púbico”.
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do Chefe do Governo do Estado. § 2º – Graduação é o grau hierárquico das praças, conferido pelo Comandante Geral da Polícia Militar. (MINAS GERAIS. Lei nº 5.301, 1969)
Sendo assim, nos termos da CR/88, cabe as policias militares o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública além de ser força auxiliar e reserva do exército. Preconiza os arts. 142 e 144 da CR/88: Art. 142 - A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar, forças públicas estaduais, são órgãos permanentes, organizados com base na hierarquia e na disciplina militares e comandados, preferencialmente, por oficial da ativa do último posto, competindo: I – à Polícia Militar, a polícia ostensiva de prevenção criminal, de segurança de trânsito urbano e rodoviário, de florestas e de mananciais e as atividades relacionadas com a preservação e a restauração da ordem pública, além da garantia do poder de polícia dos Órgãos e entidades públicos, especialmente das áreas fazendárias, sanitária, de proteção ambiental, de uso e ocupação de solo e de patrimônio cultural; (BRASIL. Constituição, 1988) E ainda: Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...] V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. [...] § 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; (BRASIL. Constituição, 1988) 3 ORGANIZAÇÃO FUNCIONAL A Polícia Militar de Minas Gerais, instituição específica a qual tratamos, tem como base institucional a hierarquia e a disciplina, sendo que a autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. A Lei Federal nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980 que trata sobre o Estatuto dos Militares defini hierarquia e disciplina no seu art.14, sendo: Art. 14 - A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. § 1º - A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade. § 2º - Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo. (BRASIL. Lei nº 6.880, 1980) A ordenação da autoridade e a subordinação (hierarquia), com visto, possuem níveis diferentes e dentro das instituições militares se fazem por posto e graduação. Sendo assim o EMEMG em seu artigo 8º, §§ 1º e 2º, dispõe sobre a hierarquia militar e logo em seguida no art. 9º, sobre a estrutura da Polícia Militar de Minas Gerais, sendo que quando se faz menção a posto refere-se a oficiais, em se tratando de graduação refere-se a praças. Art. 8º – Hierarquia militar é a ordem e a subordinação dos diversos postos e graduações que constituem carreira militar. § 1º Posto é o grau hierárquico dos oficiais, conferido por ato
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E ainda. Art. 9º – São os seguintes os postos e graduações da escala hierárquica: I – Oficiais de Polícia a) Superiores: Coronel, Tenente-Coronel e Major b) Intermediários: Capitão c) Subalternos: 1º Tenente, 2º Tenente II – Praças Especiais de Polícia a) Aspirante a Oficial b) Cadetes do último ano do Curso de Formação de Oficiais e Alunos do Curso de Habilitação de Oficiais c) Cadetes do Curso de Formação de Oficiais dos demais anos; III – Praças de Polícia: Subtenentes e Sargentos; Subtenente; 1º Sargento; 2º Sargento; 3º Sargento; Cabos e Soldados: Cabo; Soldado de 1ª Classe; Soldado de 2ª Classe (Recruta). (MINAS GERAIS. Lei nº 5.301, 1969) No que tange a cargo público, José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 604), afirma: É o lugar dentro da organização funcional da Administração Direta e de suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específicas e remuneração fixadas em lei ou diploma a ela equivalente. O conceito de cargo público também é definido pela Lei nº 8.112/1990 que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, sendo disposto no art. 3º que cargo público é “o conjunto de atribuições e responsabilidades que devem ser cometidas a um servidor” (BRASIL. Lei nº 8.112, 1990). A função pública, conforme José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 605) é “a atividade em si mesma, ou seja, função é sinônimo de atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o objeto dos serviços prestados pelos servidores públicos”. Sendo assim, todo servidor público é possuidor de um cargo dentro da administração pública, cargo este que é precedido de uma função pública, visto que não se pode admitir um lugar na administração que não tenha a predeterminação das tarefas do servidor. No entanto, nem toda função pressupõe a existência do cargo. Feitas as considerações a respeito da organização funcional da Polícia Militar, de modo a facilitar o entendimento do que ainda será exposto, e, adentrando um pouco no tema aqui proposto, necessário considerar o artigo 15 do EMEMG que aduz: Art.15 - A qualquer hora do dia ou da noite, na sede da unidade ou onde o serviço exigir, o policial militar deve estar pronto para cumprir a missão que lhe for confiada pelos seus superiores hierárquicos ou impostas pelas leis e regulamentos. (MINAS GERAIS. Lei nº 5.301, 1969) Como citado no artigo acima, algumas situações exigirão prestação de serviço fora do local da sede do militar. Sede, é definida no art. 1º parágrafo único do Decreto 45.260/2009 como “a região compreendida dentro dos limites geográficos do município
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ou distrito, em que se localiza uma organização e onde o militar tem exercício” (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009). São situações eventuais e por motivo de serviço, como por exemplo o evento da copa do mundo que ocorreu nas principais capitais do Brasil em julho deste ano de 2014, participação em cursos ou eventos de capacitação profissional, em que o militar deverá se afastar da sua sede para participar de alguma missão ou curso. Nessa situação, fará jus à percepção de diária de viagem. No que tange as diárias de viagem, tema central do referido trabalho, há várias regulamentações previstas. Será objeto de estudo o Decreto nº 45.618, de 09 de junho de 2011 que dispõe sobre viagem a serviço e concessão de diária ao servidor dos órgãos da administração pública direta, autárquica e fundacional do poder executivo e o Decreto nº 45.260 de 22 de dezembro de 2009 que dispõe sobre a concessão de diária nas Instituições Militares Estaduais (IME) de Minas Gerais além da Lei nº 8.112/1990 que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.618, 2011; MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009; BRASIL. Lei nº 8.112, 1990). No que se refere aos decretos, ambos foram expedidos pelo chefe do poder Executivo do Estado de Minas Gerais, que, no uso de suas atribuições privativas previstas na Constituição Estadual no seu art. 90, inciso VII, pode sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e, para sua fiel execução, expedir decretos e regulamentos (MINAS GERAIS. Constituição, 1989). Como será visto a seguir, de forma mais aprofundada, as diárias são indenizações que se destinam a reembolsar o militar nas despesas com alimentação e pousada quando se deslocar de sua sede por motivo de serviço e o valor da diária corresponde ao mínimo de um dia de vencimento, quando o deslocamento ocorrer no Brasil. Ocorre que dentro do escalonamento da hierarquia militar, considerando que a autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico, faz fus o servidor militar mais graduado a uma remuneração superior em relação ao menos graduado. Dentro desse prospecto, de acordo com o decreto que regula os valores das diárias, sempre será diferente os valores pagos aos servidores, visto que, o soldo sempre vai variar de acordo com posto ou graduação do militar, diferenças essas que entendemos não serem viáveis diante da natureza jurídica das diárias. Além disso, a legislação é muito sintética ao estabelecer o valor da diária e o faz sem se basear ou fundamentar em nenhum critério, sendo que, da mesma forma que existem critérios para fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório do servidor público, a legislação específica também deveria estabelecer critérios que justificassem a diversidade nos valores pagos a título de indenização aos seus servidores. Diante disso, passaremos a expor todos os preceitos, ideias e princípios que são contrários a estipulação legal e justificam uma alteração no dispositivo. 4 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA É fundamento da República, previsto no art. 1º inciso III da CR/88, a dignidade da pessoa humana (BRASIL. Constituição, 1988). É considerada o valor constitucional supremo e por isso deve servir como diretriz na elaboração, interpretação e aplicação da lei nos casos concretos. Além disso é considerada como absoluta, ou seja, não comporta gradações no sentido de existirem pessoas com maior ou menor dignidade. Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 73), preconiza ser a dignidade da pessoa humana em sua completude: qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser hu-
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mano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co – responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Como se vê, a dignidade da pessoa humana trata-se de uma qualidade intrínseca a todo ser humano, independentemente de sua origem, condição social, opção sexual, cultura ou qualquer característica de modo que a todos sejam concedidos direitos fundamentais que assegurem condições existenciais mínimas para uma vida digna. Como garantia desta qualidade intrínseca, é necessário que o Estado promova ações de promoção e de proteção da dignidade. A promoção é feita a partir do momento em que são impostas medidas que garantam o acesso das pessoas aos bens e utilitários indispensáveis a uma vida digna. Está diretamente ligada a igualdade material, de modo que é dever do Estado garantir a dignidade fornecendo prestação de todos os serviços sociais previstos na Constituição e consequentemente estabelecendo o mínimo existencial. A proteção da dignidade é garantida através da elaboração de normas que criminalizem qualquer conduta que viole o bem jurídico, além de, como já dito, ser uma importante diretriz hermenêutica e orientar na interpretação da legislação. Por fim, a dignidade é o fundamento dos direitos fundamentas, ou seja, todos os outros direitos garantidos constitucionalmente são derivados da dignidade da pessoa humana. Pode ser considerada a base do ordenamento jurídico de modo que qualquer situação que constitua uma expressão de desprezo pela pessoa ou para a pessoa acarreta ofensa a dignidade da pessoa humana. Esta definição se faz importante, pois, aqui discute-se a respeito de valores diários que devem ser pagos aos policiais militares quando precisarem se deslocar de sua sede em razão do serviço. A dignidade da pessoa humana somada ao princípio da igualdade material são fundamentos indispensáveis a aplicação no caso, pois os valores pagos pelo estado a título de indenização devem garantir pousada e alimentação digna e compatível com o padrão de vida do servidor e de forma a não diferencia-los, levando em consideração que são todos iguais cabendo direitos iguais (igualdade material), conforme será estudado abaixo. 5 PRINCÍPIO DA IGUALDADE A igualdade é valor jurídico fundamental e unido de modo indissociável à dignidade da pessoa humana. Não possui um conteúdo material específico, pois possui caráter relacional, ou seja, pressupões elementos de comparação para a análise da igualdade ou desigualdade do tratamento. Em nível constitucional, a CR/88 no caput do art. 5º, estabelece o princípio da igualdade, sem qualquer distinção de qualquer natureza, nos termos seguintes: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL. Constituição, 1988)
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Para Marcelo Novelino (2014, p. 574), o termo “perante a lei” diz: entende-se que o dever de igualdade deve ser observado não apenas na dimensão da aplicação, mas também no momento
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de criação do direito (igualdade na lei). Nesse sentido, o dever de igualdade vincula todos os poderes públicos inclusive o legislador no momento de elaboração das normas legais. O princípio da igualdade ou da isonomia é regra que serve de diretriz interpretativa para as demais normas constitucionais. Nesse contexto, entende o Supremo Tribunal Federal (STF): O princípio da isonomia, que se reveste de auto aplicabilidade, não é, enquanto postulado fundamental de nossa ordem político-jurídica, suscetível de regulamentação ou de complementação normativa. Esse princípio, cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do Poder Público, deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios (ROA, 55:114), sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei - que opera numa fase de generalidade puramente abstrata, constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de inconstitucionalidade. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MI 58, 1991) José Afonso da Silva (1999, p. 218) ensina que: que, ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições - os mesmos ônus e as mesmas vantagens - situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a quinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades. O princípio da igualdade, pode ser definido em dois aspectos: igualdade jurídica formal e igualdade jurídica material. A igualdade jurídica formal é verificada pelo uso da expressão “perante a lei” assim como consagra o art. 5º, caput, 1ª parte da CR/88 (BRASIL. Constituição, 1988). Segundo Marcelo Novelino (2014, p. 576), “o princípio da igualdade formal confere a todos os indivíduos que se encontrem em uma mesma categoria essencial o direito prima facie a um tratamento isonômico e imparcial (igualdade com imparcialidade)”. Nesse sentido, a igualdade formal não leva em consideração os atributos pessoais dos destinatários da normal, mas resulta da perspectiva política do Estado de Direito, que é fundado na lei, no sentido da lei igual para todos. Observa-se um Estado que não intervém para garantir privilégios a determinada categoria de indivíduos, pois a igualdade jurídico-formal visa abolir os privilégios, isenções pessoais e regalias de classe. Não há em nenhum momento um debate sobre igualdade de condições e de participação social. Quanto a igualdade jurídica material, esta busca a proteção da igualdade real ou substancial. Passou-se a considerar as desigualdades concretas existentes na sociedade de modo a tratar de modo desigual as situações de desigualdade. Nesse sentido deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida da sua desigualdade. Celso Antônio Bandeira de Mello (2003, p. 9) explica que o alcance do princípio da igualdade material não se limita a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, porque a própria lei pode ser editada em desconformidade com a isonomia. Trata-se de preceito voltado tanto para o aplicador da lei quanto para o legislador, e, como
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ressalta o autor, “não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”. Referido autor assevera (MELLO, 2003, p. 10) ainda que: A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. 6 REMUNERAÇÃO E SUBSÍDIO Um grande desafio desse ordenamento é definir o conceito das terminologias relacionadas a remuneração do servidor público, pois a Constituição ora fala em remuneração ora em vencimentos. Após Emenda Constitucional (EC) nº 19 passaram a coexistir para os servidores públicos dois sistemas remuneratórios. A modalidade mais tradicional de pagamento de servidores públicos é a remuneração, também denominada vencimentos que corresponde ao salário dos servidores composto por uma parcela fixa consistente em um valor padrão fixado em lei para determinada carreira, somada a uma parcela que varia de um servidor para outro em função de condições especiais em razão do serviço (BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, 1998). As vantagens pecuniárias são as parcelas pecuniárias acrescidas ao vencimento em decorrência de uma situação fática previamente estabelecida na norma jurídica pertinente. Toda vantagem pecuniária reclama a consumação de certo fato, que proporciona o direito à sua percepção. Presente a situação fática prevista na norma, fica assegurado ao servidor o direito subjetivo a receber o valor correspondente à vantagem. Esses fatos podem ser das mais diversas ordens: desempenho das funções por certo tempo; natureza especial da função; grau de escolaridade; funções exercidas em gabinetes de chefia; trabalho em condições anormais de dificuldades, além de adicionais, gratificações, verbas indenizatórias dentre outras. A outra modalidade, a qual está incluída a classe dos servidores policiais por força de lei constitucional, é o subsídio. Foi introduzido na reforma administrativa de 1988 e passou a ser atribuída a certos cargos da estrutura estatal. O subsídio trata-se de retribuição mensal ao servidor público e é constituída por uma parcela única, sendo vedados aditamentos ou acréscimos de qualquer espécie (art. 39, § 4º, da CR/88). O objetivo da exclusão da parcela variável, segundo Fernanda Marinela Santos (2010, p.208) é “tornar mais visível e controlável a retribuição de determinados cargos, evitando os aumentos descontrolados gerados pela criação de parcelas variáveis sem qualquer critério”. A retribuição por subsídio foi fixada na CR/88 para os cargos mais importantes da estrutura estatal, como por exemplo, o de Presidente, Senadores, Deputados, além de outros e incluiu no art. 144, § 9, os servidores policiais, seja da polícia federal rodoviária federal, civil, militar e corpo de bombeiros, ficando excluídas as guardas municipais (BRASIL. Constituição, 1988). Vide artigos 39, § 4º e artigo 144, § 9º da CR/88. Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. [...] § 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais
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serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI. Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...] § 9º A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39. (BRASIL. Constituição, 1988) Como visto, o subsídio afasta a possibilidade de acréscimos de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou qualquer espécie remuneratório, excetuando as verbas decorrentes de garantias constitucionais e verbas indenizatórias, incluindo assim as diárias. A Lei Delegada nº 37 de 13 de janeiro de 1989, em seu art. 3º, dispõe: Art. 3º - Nesta Lei, são adotadas as seguintes definições: I - Remuneração é o quantitativo devido ao militar da ativa em função de seu posto ou graduação, de condições pessoais, de tempo de serviço, habilitação profissional e encargos de família, e de condições que lhe sejam impostas para a prestação de serviço. II - Vencimento é o quantitativo mensal, em dinheiro, devido ao militar da ativa em função do seu posto ou graduação, tempo de serviço, regime de tempo integral e dedicação exclusiva e condições pessoais de habilitação profissional. III - Provento é o quantitativo mensal, em dinheiro, devido ao militar inativo. IV - Soldo é a parcela básica da remuneração ou do provento do militar, fixada em função de seu posto ou graduação. (MINAS GERAIS. Lei Delegada nº 37, 1989) O trabalho realizado para justificar uma remuneração subdivide sua razão de ser em conjuntos de tarefas/atribuições, denominadas funções. Pelo serviço prestado, o servidor público recebe uma retribuição em espécie, denominada, como foi visto, remuneração ou subsídio. A EC nº 19/1998 alegando a melhoria da política remuneratória dos servidores, alterou o art. 39, § 1º e definiu que hoje a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: Natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira; Requisitos de investidura; As peculiaridades dos cargos; (BRASIL. Emenda Constitucional nº 19, 1998) Verifica-se que as retribuições pecuniárias destinadas aos servidores públicos são distintas em razão da natureza também distinta de cada cargo ocupado. Importante destacarmos que, quando o servidor público militar se desloca de sua sede por motivo de serviço, este exerce as mesmas funções, porém, em local diferente. Sendo assim, o fato que justifica a remuneração do servidor público e consequentemente as distinções remuneratórias no âmbito da administração pública serão justificadas no ato do cumprimento do seu dever legal, que pode ser exercido em qualquer lugar dentro do espaço geográfico compelido ao ente federado.
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7 DIÁRIAS As referidas diárias, são indenizações ao agente público ou colaborador eventual para compensar despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana, quando designado, em caráter eventual ou transitório, para trabalhar em local diferente de sua lotação, pagas por dia de afastamento. O art. 58 da Lei nº 8.112/1990 dispõe: Art. 58. O servidor que, a serviço, afastar-se da sede em caráter eventual ou transitório para outro ponto do território nacional ou para o exterior, fará jus a passagens e diárias destinadas a indenizar as parcelas de despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana, conforme dispuser em regulamento. (BRASIL. Lei nº 8.112, 1990) E ainda, de acordo com o Decreto nº 45.260/2009 em seu art. 1º: Art. 1º Diária é parcela indenizatória destinada a atender as despesas de alimentação e de pousada devidas ao militar que se deslocar de sua sede por motivo de serviço. (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009) As diárias, portanto, são devidas quando existe, no caso concreto, o dever da administração pública indenizar o servidor público, assim, se não houver o que indenizar, não são devidas as diárias. Situações em que não for necessário o desembolso de valores pelo servidor para cobrir gastos com alimentação, deslocamento e hospedagem, porque, por exemplo, os receberá diretamente pela administração, não se pode falar de dever da administração de indenizar o servidor. Nesse caso, haverá dispensa de pagamento de diárias pelo ente público ao servidor, seja antecipadamente, seja por ressarcimento, sempre que as despesas forem prestadas integralmente, abrangendo deslocamento, alimentação e hospedagem, pelo ente público. Isso ocorrendo, estar-se-ia em presença de bis in idem, o servidor receberia as prestações in natura, e, além disso, receberia as diárias. O pagamento da diária pode ser integral ou parcial. A diária integral compreende as parcelas de alimentação e de pousada, de mesmo valor, e será concedida quando o deslocamento se der por fração de dia superior a doze horas e inferior a vinte e quatro horas, havendo comprovação de pagamento de pousada por meio de documento legal ou equivalente ou quando o servidor se afastar por período igual ou superior a vinte e quatro horas, facultada a apresentação do comprovante legal ou equivalente. Para que se contabilize a fração fora da sede, deve-se tomar como termo inicial a hora da partida da sede e como termo final a hora da chegada. No que diz respeito aos valores pagos por dia de afastamento, o Decreto nº 45.260/2009 em seu art. 2º aduz que: Art. 2º O valor da diária corresponde ao mínimo de um dia de vencimento, quando o deslocamento ocorrer no Brasil, e de dois dias de vencimento, quando for para o exterior. (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009) De acordo com Di Pietro (2014, p. 753) “As vantagens pecuniárias devem ser acrescidas tomando como base o vencimento do cargo”. Contudo, entendemos que está regra não se aplica para as vantagens pecuniárias indenizatória. Como estudamos anteriormente, o servidor militar recebe como forma de contraprestação dos serviços um subsídio, sendo vedado pagamento de qualquer vantagem, aditamentos ou acréscimos de qualquer espécie, salvo os valores de natureza indenizatória. Essa exceção decorre em razão da natureza jurídica, pois objetivam ressarcir o servidor pelas despesas extraordinárias surgidas em razão do serviço público. Sendo assim, não devem ter o vencimento do servidor como base para critério de fixação, pois, diferentemente dos adicionais e gratificações, as indenizações, não
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incorporam à remuneração, não repercutem no cálculo dos benefícios previdenciários e não estão sujeitas ao imposto de renda. Imaginemos a situação de dois ou mais servidores que ocupam cargos distintos e se deslocam de sua sede em razão do serviço para a mesma missão e realizam os mesmos gastos. Diante da circunstância, duas situações podem ocorrer: ou o possuir de menor cargo terá que gastar mais do que recebe ou o de maior cargo retornará com um saldo que certamente não será restituído ao Estado pelo fato da falta de necessidade de prestação de contas. Pode-se imaginar também, na mesma situação, a possibilidade do superior hierárquico, para justificar o valor superior recebido em relação ao inferior, resolve por se hospedar e se alimentar em local não compatível com o valor da diária do inferior hierárquico. Diante da situação, estarse-ia infringindo gravemente o princípio da isonomia e a dignidade da pessoa humana, pois a lei estaria exercendo desprezo de um servidor em relação ao outro restringindo o direito de um deles de gozar dos mesmos benefícios do outro. Além do constrangimento, a situação proporcionaria a o surgimento de discriminação no ambiente de trabalho. A Convenção nº 111 da OIT, Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, utilizada como referência para o presente estudo, dispõe sobre discriminação em matéria de emprego e profissão, e preceitua no seu art. 1º, “b”, bem como o art. 5º, caput, da CR/88 que são discriminatórias quaisquer condutas que representem uma distinção, exclusão ou preferência em relação à determinado indivíduo ou grupo de indivíduos (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 111, 1956). Já o constrangimento, é configurado quando não há respeito à dignidade humana, ou seja, quando há desprezo pela pessoa, sendo que, qualquer conduta que atente contra a imagem, honra ou nome da pessoa humana, é considerada como constrangedora. 8 NATUREZA INDENIZATÓRIA As indenizações correspondem aos valores pagos ao servidor para compensar ou restituir gastos de que ele precisou dispor para executar o trabalho, sendo, portanto, nada mais que uma devolução dos valores gastos pelo agente no exercício de suas atribuições. São exemplos de verbas indenizatórias, conforme a Lei nº 8.112/1990: a ajuda de custo, as diárias, o transporte, e o auxílio-moradia. Outra característica importante é que sobre as indenizações não incidem quaisquer deduções ou ônus fiscais, uma vez que se trata da restituição de seu patrimônio (BRASIL. Lei nº 8.112, 1990). O art. 51 da Lei nº 8.112/1990 dispões da seguinte forma: Art. 51. Constituem indenizações ao servidor: I - ajuda de custo; II - diárias; III - transporte. IV- REVOGADO IV - auxílio-moradia. (BRASIL. Lei nº 8.112, 1990) Logo, é cediço que as diárias têm natureza eminentemente indenizatória, ou seja, destinam-se a indenizar o servidor por despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana. Seus valores podem ser fixados em lei ou decreto se aquela permitir e por fim não incorporam à remuneração, não repercutem no cálculo dos benefícios previdenciários e não estão sujeitas ao Imposto de Renda.
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9 CONCLUSÃO As diárias recebidas pelo policial militar quando deslocado de sua sede possuem um valor estipulado pelo Decreto nº 45.260/2009 que compreende o mínimo de um dia de vencimento do servidor quando o deslocamento for no Brasil (MINAS GERAIS. Decreto nº 45.260, 2009). No entanto, diferentemente do sistema remuneratório dos servidores, o referido Decreto não estipula a fixação de padrões ou critérios que devem ser observados para definição de um valor, sendo equivocada a ideia proposta na lei, diante das observações feitas no referido trabalho. Considerando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade, não existe fato que acarrete uma distinção na repartição de benefícios. Deve-se ser respeitada a isonomia material, visto que, todos são aptos ao exercício da sua função, mesmo porque são servidores aprovados em concurso público, sendo todos submetidos, sem distinção alguma, aos mesmos critérios para aprovação, quais sejam: prova de títulos, exames médicos, físicos e psicológicos. Não há fato que justifique o tratamento desigual, devendo os iguais ser tratados igualmente e consequentemente, assegurado a todos a igualdade perante a lei e na lei. Além do mais, as diárias são indenizações, ou seja, ressarcimento ou reembolso do Estado ao servidor que realizou despesas extraordinárias com pousada, alimentação e locomoção urbana para executar o trabalho, sendo que, quando o poder público prestar de forma integral as despesas com alimentação e pousada, não fará jus o servidor a receber indenização por configuração de bis in idem. Nesse sentido, quando há gastos e esses são os mesmos entre os servidores, porque as indenizações são diferenciadas? Deve-se considerar também que o militar, por se tratar de servidor estatal, está apto para exercer suas funções em qualquer lugar do Estado e, por isso, deverá estar pronto para cumprir a missão seja na sua sede ou onde o serviço exigir. Pelo serviço público prestado ele já recebe, como forma de contraprestação, o subsídio que é calculado conforme previsão Constitucional. As diárias, portanto, são acréscimos que objetivam o reembolso de gastos pelo servidor e, por isso, nada têm a ver com o valor que cada um recebe a título de remuneração. Sendo assim, não podem ter a remuneração do servidor como base de definição além do que as diárias, como dito, não incorporam à remuneração. Sendo assim, o Estado deve reconhecer a cada servidor o mesmo respeito, tratando todos de maneira isonômica e garantindo um valor considerável capaz de custear pousada e alimentação que promovam condições mínimas existenciais e compatíveis com aquelas vivenciadas no dia-a-dia do servidor. Além do mais, a referida discriminação pode causar situações desagradáveis entre os servidores, visto que, em algumas situações, os menos beneficiados talvez não possam gozar dos mesmos direitos e benefícios daqueles mais beneficiados, fato que gera constrangimento desnecessário. Por fim, conclui-se que na lei não há motivo que justifique a discriminação nos valores pagos em razão de diárias, mas que há dois princípios constitucionais que quando relacionados ao tema, faz-se perceber que o justo seria o pagamento do mesmo valor de diárias para todos os servidores, valor este pago numa proporção considerável e capaz de suprir com todas as necessidades físicas e biológicas do militar, lhe sendo assegurado as condições existenciais mínimas para uma vida saudável.
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NOTAS DE FIM 1 Bacharelando do 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva 2 Mestre em Direito Público pela PUC/MG e Professor em Regime Integral da Newton Paiva ** Anderson Avelino de Oliveira Santos; Isabela Dalle Varela.
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UMA ABORDAGEM LEGAL A RESPEITO DA EVOLUÇÃO DO AMPARO AO MENOR Thiago Ludgero Sena Fernandesi1 Valéria Edith Carvalho de Oliveira² Banca examinadora** RESUMO: A evolução da sociedade acarretou a busca e a concretização de direitos em todas as classes representantes de um estado. Logo, o presente artigo visa demonstrar a evolução das garantias conquistadas aos menores no transcorrer da história. A narrativa demonstrará a uniformização no âmbito universal desses direitos, bem como a nacionalização dos mesmos. PALAVRAS-CHAVE: Amparo ao menor. Conquista de direitos. Dispositivos legais. SUMÁRIO:1 Introdução; 2 Origem da Proteção ao Menor; 3 Convenções e Tratados Internacionais a Despeito da Proteção ao Menor; 4 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Assistência ao Menor; 5 A Tutela do Menor e o Código Civil; 6 Estatuto da Criança e do Adolescente e o Zelo Pelo Menor; 7 Considerações Finais; Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO Com intuito de abordar a proteção ao menor em suas ocorrências diversas, o presente artigo científico tem o seu início convergente com o nascimento da sociedade por meio do cristianismo e a Bíblia Sagrada, até a contemporânea Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assimo presente artigo é proposto. Desse modo, em minúcias será expressa a forma a qual surgiu o direito do menor por sua necessária demanda, abrangendo desde a sua ausência em meio à exploração sofrida por ele, até o surgimento do seu direito, consentindo em explanar de forma verossímil o que motivadamente fez com que os juristas e doutrinadores dessem tanta importância ao fato em tese. Ensejando por este mesmo fato tratar de tema tão renomado, que gera discussões, o Direito Romano que em suma foi o precursor em primícias será também falado, além do Código Civil, do ECA, dos Tratados e Convenções Internacionais e da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988. Com o dilatar do tempo e a evolução da mentalidade, cresce a ideia de ser possível arquitetar uma sociedade justa e igualitária, em detrimento da sociedade individualista e voltada ao capital, ao qual de forma deturpada tratava o menor como um objeto e não um sujeito fidedigno de direitos. Nesse sentido, inúmeros instrumentos codificados vêm sendo criados, dedicando seus capítulos e artigos especiais aos direitos das crianças e dos adolescentes. Por meio desses Tratados, Convenções, Constituições, e Códigos, têm-se buscado fazer com que os direitos dos menores tenham efetivo exercício. Antes o que era utópico, passa a se tornar real. Os direitos dos menores eram fantasiados e agora são vistos como um objetivo intrínseco a estrutura estatal. Isso será demonstrado ao longo desse artigo com a evolução desse cuidado a essa classe desfavorecida. Assim sendo, este estudo não enseja esgotar o tema, devido a sua complexidade e longanimidade temporal, mas tem por objetivo aprofundá-lo, discorrendo sobre os principais marcos da proteção ao menor, estimulando o desenvolvimento desse direito que afeta direta ou indiretamente a todos os cidadãos. 2. ORIGEM DA PROTEÇÃO AO MENOR O primeiro relato cravado historicamente sobre o âmbito familiar foi relatado há mais de 2.500 anos a.C em um texto hebraico. A primeira expressão desse texto é Bereshit (“no princípio”), sendo também LETRAS JURÍDICAS | N.3 | 2/2014 | ISSN 2358-2685
o título em hebraico do livro. O título português de onde se encontra esse relato é denominado como Gênesis. Possui origem grega e provem da palavra Geneseôs, que consta na tradução grega. Dependendo do contexto, a palavra pode significar “nascimento”, “genealogia”, ou “história de origens”. Assim, tanto na forma hebraica, quando na grega, o título em português Gênesis designa perfeitamente o conteúdo do livro, pois trata sobretudo de começo. Tal livro sustenta: a origem da criação familiar; o modo de convivência entre os membros de um mesmo grupo; o direito de herança de um membro adotado na família, mesmo que escravo; os direitos de um filho; a obrigação que a esposa estéril tinha de dar filhos ao marido por meio da serva; as proibições contra a expulsão dessa serva e de seu filho, as bênçãos e o cuidado recebidos pelo filho primogênito e inúmeras outras formas que explicam e constituem o âmbito familiar. Nas palavras de Russel Shedd, Mestre em Teologia pelo Wheaton College(EUA) e Ph.D em Novo Testamento pela Universidade de Edimburgo (Escócia), em sua contribuição aos estudos da Bíblia relata: Gênesis trata dos começos – do céu e da terra; da luz e das trevas; dos mares e da atmosfera; dos solos e da vegetação; dos animais marinhos; da sociedade e da civilização; do casamento e da família; das artes, dos artesanatos e do trabalho inventivo. É acima de tudo um livro de relacionamentos, ressaltando a interação de Deus com a natureza e com os homens e dos homens entre si... A narrativa concentra-se muitas das vezes na vida de um filho mais novo em detrimento do primogênito: Sem em detrimento de Jafé, Sete de Caim, Isaque de Ismael, Jacó de Esaú, Judá e José de seus irmãos e Efraim de Manassés. (2012, p.1 e 3). (Grifo nosso). O livro de Gênesis é dotado de um caráter rico em informações reais e comprovadas pela ciência, devendo ser o ponto de partida de todo e qualquer estudo sobre o conceito familiar. A partir disso, os relatos longínquos adentram nos períodos egípcios e mesopotâmios, passando pelos romanos e gregos, até os povos medievais e europeus. No decorrer dessa evolução ficou evidente que os menores não eram tidos como merecedores de proteção especial. Segundo Day: No Oriente Antigo, o Código de Hamurábi (1728/1686 a.C.) previa o corte da língua do filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais, assim como a extração dos olhos do filho adotivo que aspirasse voltar à casa dos pais biológicos (art. 193). Caso um filho batesse no pai, sua mão era decepada (art.
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195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações sexuais com a filha, a pena aplicada ao pai limitava-se a sua expulsão da cidade (art. 154). (2003, apud BARROS, 2005, p. 70-71). A título de curiosidade, o Código de Hamurabi representa um anexo de leis codificadas oriundo da Mesopotâmia. Acredita-se que foi escrito pelo rei Hamurabi e este Código fora achado por uma expedição francesa em 1901 na região antiga da Mesopotâmia, correspondente hoje a cidade de Susa, atual Irã. Prosseguindo, conforme José de Farias Tavares (2001, p.46),em sua obra Direito da Infância e da Juventude, em Esparta as crianças eram selecionadas pelo seu porte físico para serem utilizadas como guerreiros, frente à necessidade Estatal. Servindo assim como um objeto meramente político, havendo a possibilidade de sacrifício da criança portadora de deficiência física em sua formação corporal. Ademais, o mesmo autor expõe que entre os povos remotos, tanto no ocidente como no oriente, os filhos durante a menoridade, não eram considerados sujeitos de direito, mas sim servos do domínio paterno. Dessa forma, no século XVII surgiram os castigos, as punições físicas, com paus e ferros, os espancamentos com os chicotes, tendo como pretexto de que a criança deveria ser moldada conforme a vontade do adulto por ela responsável. Destarte, tendo dado os pormenores históricos mais arrazoados pelos doutrinadores, é cediço passar para a análise da influência do Direito Romano no ordenamento vigente, visto que houve um enorme desenvolvimento a partir desse marco. O Direito Romano influenciou a despeito dos direitos nacionais europeus e latino-americanos de forma desmesurada, sendo que tal influência perdura até hoje. Inúmeros preceitos provenientes desse Direito agora estudado, ainda se aplicam às ordens jurídicas de múltiplos países, que o incorporaram de um modo mais sistemático e expresso em suas línguas nacionais. Por esta causa, o estudo do direito romano ainda é estimado como indispensável à correta compreensão dos sistemas jurídicos de hoje. Partindo dessa premissa, nota-se uma profunda e radical modificação entre a noção de família e pátrio poder entre o Direito Romano e o Direito Contemporâneo. Na modernidade é estabelecida a igualdade constitucional do tratamento entre homem e a mulher quanto à figura do menor. Denominando essa equidade como o poder familiar, ou melhorproferindo, como o pátrio poder, ou seja, “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”, art.378 do recente Código Civil (BRASIL, 2002). Por outro lado, o Direito Romano supracitado, apresentava a patriapotestascomo um poder incontestável do chefe de família. Em Roma, esse pátrio poder tinha uma conotação exclusivamente religiosa, ao qual conduzia esse poder familiar sob um cunho religioso, explicando o então rigor estabelecido à família. O pai romano, não só optava pela religião do grupo familiar, como também conduzia todo esse grupo da forma que bem entendesse, junto a escravos e agregados. Seu papel era de fundamental importância, pois de certa forma, em uma pequena proporção, esse pai realizava o papel do estado, de controlador e administrador de uma “pequena nação”. De fato, o seu poder não tinha limites. Ele decidia sobre a vida e a morte de seu grupo, incluindo os seus filhos. Sendo assim, historiadores comprovam que os filhos não tinham poder nenhum de escolha ou qualquer tipo de direito que mantivesse a sua vida ou a sua dignidade humana. Chamados assim de alieni júris, ou seja, estavam sob a custódia do pai. Os filhos não tinham propriedades em seu nome e eram tratados como se fossem uma. Podiam ser vendidos, punidos e mortos, de acordo com a vontade de seu genitor. Tal visão foi se atenuando com o passar do tempo. Passou a ser
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permitida a possibilidade de contrair bens em nome do próprio menor e também, com o governo de Justiniano, no apogeu do seu império em plena idade média, já não mais se admitia que o pai obtivesse controle sobre a vida e a morte de seu filho. Este imperador se manteve aliado à classe mercantil, pois tinha uma característica ambiciosa que almejava reconquistar o Antigo Império Romano do Ocidente. Tratando mais uma vez o menor como um mero objeto com poucos direitos garantidos, fruto de uma visão econômica e obsoleta. De qualquer forma, a noção romana, ainda que mitigada chega até a Idade Moderna. Estrangeiros trazem aos poucos o entendimento mais brando sobre a autoridade paterna. Segundo Brugner, “o sentimento pela infância nasce na Europa com as grandes Ordens Religiosas que pregavam a educação separada, preparando a criança para a vida adulta”, (1996, apud BITENCOURT, 2009, p. 37). Assim, foi a partir do século XVII, que surgiu uma evolução sobre o entendimento do que realmente significa infância. Considerado este, um dos marcos na proteção do menor, visto que aqui a criança passa a ser indivíduo central dentro da família, sendo alvo de afabilidade. Com base nisso, neste período surgiu à primeira ideia de que a criança deveria ser tratada como pessoa, mas por ser ainda a concepção inicial, vestígios da coisificação do menor ainda operavam na sociedade. Até o final do século XIX [...], a criança foi vista como um instrumento de poder e de domínio exclusivo da Igreja. Somente no início do século XX, a medicina, a psiquiatria, o direito e a pedagogia contribuem para a formação de uma nova mentalidade de atendimento à criança, abrindo espaços para uma concepção de reeducação, baseada não somente nas concepções religiosas, mas também científicas. (DAY, 2003 apud BARROS, 2005, p. 71). Assim, trazendo essa análise para dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o primeiro relato armazenado sobre o menor foi a partir de colonização do Brasil, quando as crianças chegavam como órfãos do Rei e eram obrigadas a casarem com seus servos: “Nas embarcações, além de “obrigadas a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos”, eram deixadas de lado em caso de naufrágio.”(DAY, 2003 apud BARROS, 2005, p. 71). Nesse contexto, de acordo com estudos desenvolvidos por Maria Silveira Alberton (2005, p.58), em sua obra Violação da Infância, em meados do século XVI no Brasil, é chegada adenominada Companhia de Jesus, que era composta por um grupo de religiosos, cuja função principal era dizer o evangelho e apregoar princípios morais e costumes embasados nas boas novas de Jesus, ou seja, a Bíblia. Com esse aspecto, além de evangelizar, é criada uma espécie de defesa em favor dos direitos dos menores, pois até o final do século XX, todo o amparo oferecido às crianças foi realizado pela Igreja Católica. Já na concepção atual, o conceito da proteção do menor é destinado em sua totalidade para os princípios de mútua compreensão, resguardo dos menores e aos deveres intrínsecos, irrenunciáveis, e inafastáveis da paternidade e maternidade estabelecidos por leis, jurisprudências, tratados, costumes e etc. A coisificação do menor é deixada totalmente para trás, sendo este, alvo da Dignidade da Pessoa Humana, tido pelo ordenamento brasileiro como um sujeito de direitos protegidos pelo sistema Estatal. Consistindo assim,o amparo judicial ao menor através do nomeado “instituto da tutela”, definido como a incumbência ou múnus confiados a alguém que conduza a pessoa e administre os bens de menores de idade que não se encontra sob o pálio do poder familiar do pai ou da mãe. Este, normalmente, incorre na tutela, quando os pais são falecidos ou ausentes, ou decaíram da patriapotestas nos
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termos do art. 1728 do Código Civil (BRASIL, 2002). 3 CONVENÇÕES E TRATADOS INTERNACIONAIS A DESPEITO DA PROTEÇÃO AO MENOR Trata, esta parte, da reunião em um só corpo de direitos humanos que, muito embora tenham abrangência omogenês, ou seja, capacidade para ser direito de todos os membros da espécie humana, foram mais uma vez afirmados, solicitados e garantidos, agora relativamente às crianças, de uma forma peculiar. Na sociedade internacional, o combate principal é pela uniformização dos direitos, objetivando a permissão igualitária a todos, de forma que possa haver um gozo unânime, ainda que isso acarrete o tratamento desigual daqueles que se encontram em posição de desigualdade. Em assim sendo, a propensão existente no âmbito da coletividade internacional é a de consentir que, em um futuro, exatas disparidades naturalmente verificadas possam ser retificadas, sanadas ou ao menos amenizadas. Os direitos dos menores são declarados na prática como de menos valia, de forma que é necessária a sua proteção eficaz por parte de todo um aparato internacional. É importante notar o progresso da sociedade internacional no que diz respeito ao tema da família e de sua responsabilidade na persecução e ascensão dos direitos humanos, principalmente das crianças. Em 1959, no princípio 1º da Declaração Universal dos Direitos das Crianças, está previsto que todas as crianças são iguais, sem distinção de cor, raça, sexo, língua, religião, opiniões, origem, fortuna, nascimento ou qualquer outra situação que se aplique diretamente à criança ou que advenha da situação da família a que pertence. Sob esse aspecto, a sociedade internacional afirma que nenhuma criança será privada de qualquer dos direitos previstos nessa Declaração. Devendo todos os Estados signatários lutarem em conjunto para defender essa “minoria”. Já em 1990, a então ratificada Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças, garante que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Declarando expressamente em seus artigos, 12, 15, 17 e 31, o direito das crianças de opinião, expressão, pensamento, consciência, religião, informação, lazer, associação e reunião. Segundo Tânia da Silva Pereira (2008, p.246), em sua obra Direito da Criança e do Adolescente, essa Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança foi fruto de um empenho unido entre vários países, tida como um marco extremamente importante, visto que reuniu em um mesmo documento legal, normas e metodologias maleáveis as mais diversas realidades, esboçando as futuras políticas legislativas dos Estados-Partes. Dessa forma, a mesma autora supracitada, declara que: “O grande desafio consistiu em definir direitos universais para as crianças, considerando a diversidade de percepções religiosas, socioeconômicas e culturais da infância nas diversas nações.” (PEREIRA, 2008, p. 592). Ademais, no ano de 1995, na Conferência de Pequim sobre os direitos das mulheres, em busca de uma redução das responsabilidades, os países desenvolvidos, retiraram dos documentos oficiais quaisquer alusões, ainda que positivas, ao matrimônio, à maternidade, à família e aos direitos e deveres parentais no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento da prole. Um ano depois, em 1996, na conferência diplomática de Istambul sobre habitat, a coletividade internacional retomou o seu posicionamento, afirmando novamente o encargo dos pais no que refere ao desenvolvimento dos filhos. Nesse sentido, as crianças ganham então destaque especial quanto aos direitos de igualdade, à compreensão, ao desenvolvimento,
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à liberdade, à dignidade e o direito à integridade (física mental e moral). E por fim, é válido encerrar esse tópico internacional deixando claro que a Carta das Nações Unidas, que é uma espécie de constituição da Organização das Nações Unidas, serve como um parâmetro necessário para todo ordenamento vigente internacional tratar a proteção do menor. Tal carta define princípios elementares que tem por objetivo orientar os Estados-Partes, quais sejam: a) Reconhecimento de Direitos Fundamentais resumidos em: sobrevivência, desenvolvimento, participação e proteção. b) Proteção Integral da Criança. Esta preocupação já estava presente na Declaração de Genebra de 1924 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (ratificada pelo Brasil). A Doutrina Jurídica da Proteção Integral passou a orientar os Estados-Partes que ratificaram a Convenção, na definição de suas políticas básicas de proteção à população infantojuvenil. c) Prioridade imediata para a infância, recomendando que este princípio tenha caráter de aplicação universal,sobrepondo-se às medidas de ajuste econômico e às crises decorrentes das dívidas dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. d) Princípio do melhor interesse da criança, que leva em conta primordialmente a condição especial de serem pessoas em via de desenvolvimento e que em todos os atos relacionados com a criança deve ser considerado o seu melhor interesse. (PEREIRA, 2008, p. 952-953). 4 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E A ASSISTÊNCIA AO MENOR O Poder Constituinte Originário, por meio da Constituição Federal de 1988, especificamente no Título VIII, Capítulo VII da Carta Republicana Brasileira, destinou à criança e ao adolescente um peculiar zelo protetivo, notadamente evidenciado através dos seus arts. 227, 228 e 229. Dentre esses, o que resguarda uma maior proteção para os menores é o art.227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010). O artigo citado permite concluir, sob toda uma análise histórica, que a proteção do menor não está mais apenas nas mãos do ‘’chefe da família’’, mas passa a ser um dever, constitucionalmente garantido, do Estado, da sociedade e também da família, recaindo igualmente tal responsabilidade sobre todos os seus membros gestores. Segundo Luciane Potter Bitencourt,“A população infanto juvenil deixa de ser tutela tutoria/discriminatória para tornar-se sujeito de direitos.” (2009,p.39). Finda essa análise, vê-se que a tutela do menor possui grande importância para toda a sociedade. E que, embora não se enquadrem no rol das garantias do art. 5º da CF/88, os artigos mencionados se fazem presentes na categoria de direitos fundamentais, encontrando assim amparo protetor como se cláusulas pétreas fossem. Os direitos instituídos em favor dos menores, classificados como direitos fundamentais sociais, encontram origem nos direitos de
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segunda geração ou segunda dimensão. Por isso, demandam uma participação não apenas passiva e restringida do Estado, mas sim ativa e destinada à execução das garantias infantojuvenis. A proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a ideia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento. (CURY, GARRIDO E MARÇURA, 2002, p. 21). 5 A TUTELA DO MENOR E O CÓDIGO CIVIL Como supracitado no primeiro capítulo, seus antecedentes históricos são antigos. Registra-se a sua primeira aplicação no Brasil pelo Direito Romano, por meio das Ordenações de Portugal, a partir do século XVIII, que vigoraram até a promulgação do primeiro Código Civil de 1916. Nesse século, o poder familiar era exercido sobre todos os filhos, independentemente de idade. Essa autoridade abrangia também a pessoa dos netos, pois todos eram incapazes. Falecendo o pai da família os filhos tornavam-se livres, não importando a sua da idade. Porém, se fossem menores, não era defeso que para estes fossem designados tutores, para cuidar de sua pessoa e de seus bens. A problemática é evidenciada na vigência do Código Civil de 1916, pois ele instituiu a tutela basicamente para a proteção e administração dos bens do menor. Ao tratar desse instituto, o legislador do Código Civil de 1916 e de 2002, teve como foco, primordialmente, o menor com seu patrimônio. O órfão classificado como rico era o foco do Código Civil de 1916, pois ao disciplinar o tema teve em vista, em primeiro lugar, a preservação dos bens; aliás, dos quarenta artigos dedicados a matéria, somente um se refere aos menores desamparados. Além disso, caso houvesse desquite entre o casal (termo usado para designar a separação antes da instituição do divórcio), o menor ficava com o cônjuge julgado como inocente na separação. Assim, mais uma vez, existia a coisificação do menor, pois aqui eles eram vistos como uma espécie de prêmio, em que o cônjuge inocente permanecia com o filho e o cônjuge culpado perdia o pátrio poder sobre ele, ou seja, a sua guarda. Essas regras levavam em conta apenas o caráter volitivo dos pais e a sua culpa, não atentando de forma alguma para os direitos e interesses dos filhos. Inclusive em outros códigos de países distintos, a proteção do menor também era aplicada sobre esses moldes. Com o efetivo alcance do crescimento dos direitos dos menores, o Código Civil de 2002 passa a prever grande parte das medidas protetivas quando violados os direitos dos mesmos. O instrumento utilizado para a assistência, denominado pelo Código como tutela, preocupouse com os fatores inerentes a moral, a dignidade, a saúde, educação, representação em juízo do menor e também com o aspecto patrimonial. Passa a vigorar aqui, o princípio do melhor interesse dos menores, ou seja, no caso da separação não é mais visada à culpa ou inocência do cônjuge e sim quem possui melhores condições para a criação do impúbere. De acordo com Maria Helena Diniz (2010, p.1118), em seu Código Civil Comentado, isso deve ser feito respeitando a sua dignidade como ser humano e seus direitos da personalidade, satisfazendo suas necessidades, acatando suas relações de afetividade e procurando seu bem-estar. Tal princípio passou a ser tido como direito fundamental da criança, pois se tornou uma norma cogente, devido à ratificação do Brasil na Convenção da ONU/1989. Atualmente, ele serve como norte para todas as decisões referentes ao menor, seja em âmbito judicial
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com a dissolução da sociedade conjugal, o direito de visitação do cônjuge que não possui a guarda, e até mesmo no valor dos alimentos que serão destinados ao menor como pensão para sua subsistência, como também no campo social, nas relações cotidianas da sociedade com o menor. Para se concretizar tal proteção e ser então aplicado o instituto da tutela, alguns requisitos devem ser preenchidos, como bem definido por Sílvio de Salvo Venosa: Para que tenha lugar a tutela, é necessário que os pais do menor tenham sido destituídos ou estejam suspensos do pátrio poder. Se isso não ocorre, a forma de o menor ser colocado em família substituta é por meio da guarda. A inibição do poder familiar é essencial para a tutela, pois não convivem ambos os exercícios. (2002, p.393). 6 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O ZELO PELO MENOR (LEI Nº 8.069) O Estatuto da Criança e do Adolescente foi estabelecido pela Lei 8.069 no dia 13 de julho de 1990. Ele concretiza um notável avanço democrático ao regulamentar as conquistas referentes aos direitos de criança e adolescente consubstanciadas no Artigo 227, já supracitado, da Constituição Federal de 1988. Doutrinadores especificam que o ECA nasceu de uma indignação nacional ligada a apelos de cunho internacional em prol dos direitos dos menores, sejam eles crianças ou adolescentes. Ele representa uma parte importante do esforço de uma Nação recém-saída de uma ditadura de duas décadas, para acertar o passo com a comunidade internacional em termos de direitos humanos. Este estatuto é considerado como um dos maiores marcos da proteção ao menor no ordenamento jurídico brasileiro, visto que ele influenciou a política criando mecanismos para efetivar ou ao menos viabilizar o atendimento dos direitos estabelecidos para essa classe. O ponto crucial desse aparato estatal é o fato dos menores serem aqui, considerados como sujeitos em desenvolvimento de direitos civis, humanos e sociais. As prerrogativas garantidas aos menores são assistidas como fundamentais, pois além de serem tratados assim pela Constituição da República Federativa Brasileira, agora elas estão no plano eficaz e na plenitude de sua garantia. Resta deixar claro, que o objetivo principal desse regulamento é proteger o menor contra qualquer arbitrariedade, seja ela abusiva ou não, por parte do estado, da família ou da sociedade. O ECA criou os Conselhos de direitos em âmbito nacional, estadual e municipal que passam a ser o canal de participação e envolvimento conjunto do Estado e da Sociedade na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, e os Conselhos Tutelares que atuam no caso de violação dos direitos individuais das crianças e adolescentes, que se encontram em situação de risco. (BITENCOURT, 2009, p.40). Ademais, o presente Estatuto, em seu artigo 88, inc. I a VII, prevê a ajuda da sociedade interligada aos órgãos governamentais na criação de políticas para o atendimento na área da infância. Fazendo surgir dessa forma os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, em todos os níveis de poder estatal. Art. 88. São diretrizes da política de atendimento:
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I - municipalização do atendimento; II - criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;
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III - criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa; IV - manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente; V - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; VI - mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade. VII - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de agilização do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009). Portanto, todos os relatos acima, deixam claro que o cuidado com o menor, não é mais um direito defasado deixado à margem da livre escolha dos pais, mas sim, um direito fundamental garantido a todos, protegido pelo Estado, pela sociedade e também pelos familiares diretos. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo proposto, este artigo científico teve por foco analisar de forma minudenciada a proteção do menor enquanto sujeito digno de direitos e alvo de proteção estatal no transcorrer da história. Dessa forma é descrita a evolução desse resguardo, seja no âmbito jurídico, familiar ou social dessa classe desvalida. De tal modo, a priori é estudada a sua origem com o cristianismo através da Bíblia Sagrada, escrita há mais de 2.500 anos a.C. Esse documento, por ser o primeiro relato escrito a respeito do presente tema, tornou-se o ponto de partida do presente estudo. Passando assim a análise para a antiga Mesopotâmia, com o Código de Hamurabi, onde a criança ou o adolescente era mutilada caso desobedecesse aos pais ou condutas traçadas por eles como essenciais. E em seguida com a influência extraordinária do Direito Romano. Nota-se no decorrer do tempo que o menor era visto por todos como um objeto a ser utilizado sob um enfoque econômico, sem direitos e sem excelência. Entretanto, deslumbra-se o momento em que a criança e o adolescente são sopesados como sujeitos de direito, deixando de ser abordados como sujeitos passivos, vindo a possuir titularidade de direitos da mesma forma que os adultos. Ademais, observando essa evolução na seara universal, os Tratados e Convenções Internacionais referentes a esse amparo alcançam inúmeras melhorias. Dentre elas, a principal seria a uniformização dos direitos dos menores, tratando as desigualdades existentes nos Estados membros com a devida peculiaridade e cautela. Dessa forma, o Brasil não permanece em estado de inércia. Com a promulgação da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, o menor deixa de ser negligenciado e discriminado e os seus direitos passam a ser tratados como se cláusulas pétreas fossem.
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E também com base na legislação especial do Estado supracitado, o Código Civil de 2002 e o ECA trazem para um plano real a desvalorização do enfoque apenas patrimonial do menor e passam a criar juntos mecanismos de defesa aos direitos do mesmo. Findando o presente artigo com o consentimento de que todas as legislações citadas devem ser constantemente atualizadas e aprimoradas, garantindo assim a eficácia do amparo de forma integral. REFERENCIAS ALBERTON, Maria Silveira. Violação da infância:crimes abomináveis: humilham, machucam, torturam e matam! Porto Alegre, RS: AGE, p.58, 2005. BARROS, Nivia Valença. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente. Trajetória histórica, políticas sociais,práticas e proteção social. Rio de Janeiro, 48f, p. 70 e 71, 2005. BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização Secundária Infanto-Juvenil e Violência Sexual Intrafamiliar: Por uma Política Pública de Redução de Danos. Rio de Janeiro:Lumen Juris, p. 37, 39 e 40,2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil:1988 - Texto constitucional promulgado em Cinco de outubro de 1988 com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais de nos. 1/92 a 53/2006 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos. 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2007. BRASIL. Lei n. 10.406/2002, institui o Código Civil. Publicada no Diário Oficial da União, no dia 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>.Acesso em: 15 de nov. 2013. BRASIL. Lei n. 8069/1990, institui o Estatuto da Criança e do Adolescente. Publicada no Diário Oficial da União, no dia 13 de julho de 1990. Disponível em :<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 15 de nov. 2013. CURY, Munir; GARRIDO, Paulo Afonso; MARÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.21, 2002. DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15.ed. São Paulo: Saraiva, p. 1118, 2010. JUNIOR, João Paulo Roberti. Evolução Jurídica do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil. 2012. Disponível em: <http://www.unifebe.edu.br/ revistadaunifebe/20121/artigo025.pdf>. Acesso em : 08 nov. 2013. NIGRI, Deborah Carlos. A Guarda Compartilhada no Código Civil. 2011. Disponível em: <http://www.emerj.rj.gov.br/paginas/trabalhos_conclusao/1semestre2011/trabalhos_ 12011/DeborahCarlosNigri.pdf>. Acesso em : 08 nov. 2013. PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente:Uma proposta interdisciplinar. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, p.246 e 592,2008. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, p.952 e 953, 2004. SHEDD, Russel. Bíblia de Estudos NVI. Belo Horizonte: Vida, p.1 e 3, 2012. TAVARES, José de Farias. Direito da Infância e da Juventude. Belo Horizonte: DelRey, p. 46, 2001. TEIXEIRA, Ludmila Celistrino. Proteção do Trabalho do Menor. Disponível em :<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/ view/2340/1836>. Acesso em: 08 de nov. 2013. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Direito de Família. São Paulo: Jurídico Atlas, p. 393, 2002.
NOTAS DE FIM 1 Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Newton 2 Professora - Orientadora. Mestre em Direito Privado. Advogada. ** Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo; Daniel Medrado.
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OS EFEITOS DA PRESCRIÇÃO QUINQUENAL NA RESCISÃO DE UM CONTRATO DE TRABALHO COM MAIS DE CINCO ANOS DE DURAÇÃO Ramon Felipe Antunes Matias1 Tatiana Bhering Roxo2 Banca examinadora**
RESUMO: O presente estudo visa analisar os efeitos da prescrição quinquenal na rescisão de um contrato de trabalho com mais de cinco anos de duração, contribuindo para adensar o debate sobre o tema, apontando soluções práticas e didáticas para as inúmeras questões enfrentadas, no aspecto relativo à prescrição, por todos aqueles que militam na Justiça do Trabalho. PALAVRAS-CHAVE: direito do trabalho; prescrição quinquenal; rescisão; contrato de trabalho. SUMÁRIO: 1 introdução; 2 Prescrição - Regra geral; 3 Prescrição trabalhista; 3.1) Regra Geral; 3.2) Efeitos da Prescrição Quinquenal na Rescisão do Contrato de Trabalho com mais de Cinco Anos de Duração; 4 Possível adequação da regra prescricional trabalhista; 5 Conclusão; Referências; Notas de fim.
1 – INTRODUÇÃO A divisão social do trabalho existe em toda e qualquer sociedade, mudando de caráter à medida do desenvolvimento dos países e os estágios de civilização. Antigamente, a simplicidade das relações contratuais de trabalho no Brasil exigia uma singela previsão prescricional. Com o avanço da sociedade e a ostentação de traços complexos por parte das relações de emprego, viu-se a necessidade de ampliar os direitos dos trabalhadores. Com a promulgação da Constituição da República de 1988, o art. 7º, inciso XXIX, instituiu a prescrição quinquenal no Direito do Trabalho. Novas teorias foram desenvolvidas, acentuando-se as controvérsias judiciais acerca dos efeitos da passagem do tempo sobre os direitos decorrentes da relação trabalhista. Vários entendimentos sobre o mesmo tópico surgiram, o que ensejou a análise pormenorizada da matéria, despindo os princípios, fundamentos, histórico, evolução doutrinária e jurisprudencial, dentre outros aspectos afins. As dificuldades e controvérsias geradas a partir da aplicação do dispositivo constitucional determinaram o ressurgimento do interesse dos estudiosos do Direito do Trabalho pela matéria. Com o passar do tempo, foi pacificado o entendimento sobre a prescrição quinquenal. No entanto, a vedação constitucional ao direito de ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho com mais de cinco anos de duração, reacende nova discussão. Por ser o lado mais fraco na relação de trabalho, o empregado é impedido de reclamar os créditos trabalhistas abrangidos pelo período prescricional. Como consequência, o empregador obtém um enriquecimento sem causa, uma vez que são suprimidas as verbas devidas ao empregado relativas à época abrangida pela prescrição. Nesse contexto, o presente estudo abordou as regras gerais de prescrição no Direito Brasileiro. Em seguida, foram abordadas as regras prescricionais específicas do Direito do Trabalho, bem como a análise dos efeitos da prescrição quinquenal na rescisão de um contrato de trabalho com mais de cinco anos de duração. Ato contínuo, foram apresentadas possíveis adequações da regra prescricional trabalhista à realidade social brasileira. Ao final, apresentou-se a conclusão do trabalho e as referências bibliográficas utilizadas durante toda a pesquisa.
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2 – PRESCRIÇÃO – REGRA GERAL Quando se tem uma lesão ao direito, de qualquer natureza, o titular deve exercer a sua pretensão dentro de um determinado prazo, sob pena de extinção deste exercício. O ordenamento jurídico brasileiro trata a prescrição como uma perda da pretensão jurídica do titular do direito violado. De acordo Ferreira (2008, p. 651), prescrever é sinônimo de “ordenar, regular, comandar, estabelecer, preceituar, receitar, recomendar, fixar, limitar, o mesmo que deixar de existir com o decorrer do tempo”. No que tange ao Direito em si, Beviláqua (1959 apud FIGUEIREDO, 2002, p.13) diz que a prescrição “é a perda da ação atribuída a um direito, de toda a sua capacidade defensiva, em consequência do não uso dela, durante um determinado espaço de tempo”. Essa capacidade defensiva que Beviláqua se refere é, no geral, a efetiva propositura da ação judicial. De modo semelhante, Leal (1959 apud FIGUEIREDO, 2002, p. 13) ensina que a “prescrição tem por efeito direto e imediato extinguir ações, em virtude do seu não-exercício durante em certo lapso de tempo. Sua causa eficiente é, pois, a inércia do titular da ação, e seu fator operante, o tempo”. O art. 189, Código Civil dispõe que, “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição nos prazos a que aludem os artigos 205 e 205” (BRASIL, 2002). Nesse sentido, pode-se definir a prescrição como um instituto que regula a impossibilidade da chancela do Poder Judiciário, devido ao decurso de determinado lapso temporal. No Brasil, a prescrição é bastante confundida com a decadência. Pode-se dizer que ambos são institutos que regulam a perda de um direito pelo decurso de um período de tempo. Estão intimamente ligadas ao Princípio da Segurança Jurídica. Entretanto, a diferença entre ambas é que, enquanto a prescrição interrompe a possibilidade de se exigir judicialmente um direito, a decadência extingue o próprio direito em si. A prescrição, segundo Covello (1996 apud FIGUEIREDO, 2002, p. 14), “não atinge a obrigação e sim a responsabilidade. Prescrita a ação que ampara a obrigação civil, esta perde a exigibilidade, mas continua sendo obrigação, porque a dívida de justiça permanece in-
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tacta como obrigação natural”. O autor ensina que a prescrição, ainda que aplicável, não impede que o devedor possa cumprir espontaneamente a obrigação, sem que se caracterize pagamento indevido. É inegável que a estipulação de prazos para o exercício de direitos tem um cunho social importante, pois permite a segurança jurídica. Tanto é verdade que a prescrição encontra fundamento no Princípio da Segurança Jurídica. Este princípio visa impedir a desconstituição injustificada de atos ou situações jurídicas, mesmo ocorrendo inconformidade legal. O desfazimento do ato ou da situação jurídica pode ser mais prejudicial do que a sua manutenção, especialmente quanto a repercussões na ordem social. Caso não houvesse a prescrição, cada cidadão teria que guardar para sempre todas as provas relativas a todos os negócios jurídicos e fatos jurídicos realizados, inclusive de seus antepassados. A existência de prazos para o exercício de direitos é medida de alta relevância social, necessária à segurança das relações. No que tange à área trabalhista, existem regras específicas relacionadas à prescrição. Deve-se observar tanto a prescrição bienal para o ajuizamento da ação, como também a prescrição das pretensões imediatamente anteriores a cinco anos, contados da data do ajuizamento da reclamação. Este assunto será melhor abordado no próximo capítulo. 3 – PRESCRIÇÃO TRABALHISTA 3.1) Regra Geral A prescrição, até o advento da Constituição da República de 1988, não recebia a devida atenção por parte dos estudiosos da área trabalhista. Até então, a matéria era disciplinada pelo disposto no art. 11 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, o qual estabelecia que, não havendo disposição especial em contrário, prescrevia em dois anos o direito de pleitear a reparação de qualquer ato infringente de dispositivo nela contido (BRASIL, 1943). Com a promulgação da Carta Magna de 1988, especificamente no art. 7º, XXIX, passou-se a adotar dois prazos prescricionais: o bienal, contado após a extinção do contrato de trabalho; e o quinquenal, contado durante o contrato de trabalho. A prescrição bienal exige que o trabalhador realize sua pretensão jurídica dentro do prazo de dois anos contados da data de término do contrato de trabalho. Observado este prazo, o titular do direito pode postular as verbas trabalhistas dos últimos cinco anos, contados da data da propositura da ação trabalhista. Há entendimentos doutrinários no sentido de que o prazo de dois anos contados da extinção do contrato de trabalho tem natureza decadencial, em função da perda do direito pela inércia do titular. Schiavi, no entanto, entende que: [...] o prazo de dois anos tem natureza prescricional, pois a própria Constituição assim determina. Além disso, a interpretação no sentido de ser um prazo prescricional é mais benéfica ao trabalhador. De outro lado, como os institutos da prescrição e decadência visam a extinção de direitos, a interpretação deve ser restritiva, não cabendo ao intérprete distinguir onde a lei não distingue. (SCHIAVI, 2013, p. 443) Na Constituição da República de 1988, especificamente no seu art. 7º, inciso XXIX, há previsão expressa da prescrição quinquenal do direito de ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho. Em outras palavras, pode-se dizer que a Constituição prevê a perda do direito do trabalhador de reclamar judicialmente as verbas trabalhistas resultantes da relação de trabalho. É justamente esse limite temporal de cinco anos o objeto de estudo deste artigo científico. Nos contratos de trabalho com duração inferior a cinco anos não há o que discutir sobre a prescrição quinquenal. Porém, o tra-
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balhador com contrato mais longevo pode vir a sofrer com os efeitos negativos desta prescrição. Importante abordar a questão do momento da arguição da prescrição no Processo do Trabalho. O art. 269, IV, CPC estabelece que a prescrição é matéria de mérito (BRASIL, 1973). Partindo-se dessa premissa, alguns doutrinadores sustentam que o momento de invocar a prescrição é na contestação. Por sua vez, a Súmula 153, TST dispõe que “não se conhece de prescrição não arguida na instância ordinária” (TST, 2003). Nesse sentido, Schiavi entende que a prescrição somente poderá ser invocada até o segundo grau de jurisdição, ou seja, até o recurso ordinário, ou, no máximo, nas contrarrazões ao recurso ordinário, mas não no recurso de revista (SCHIAVI, 2013, p. 455). Em sentido diverso, Leite entende que, extraídas as regras alusivas à prescrição dos arts. 190 a 196 do Código Civil, “a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”. (LEITE, 2013, p. 556). Há, ainda, a questão do reconhecimento da prescrição de ofício. Com a entrada em vigor do art. 219, §5º, CPC, o qual estabelece que “o juiz pronunciará de ofício a prescrição” (BRASIL, 1973), há doutrinadores que entendem que a prescrição pode ser conhecida de ofício.Schiavi, no entanto, entende que o Juiz do Trabalho não deve pronunciar de ofício a prescrição, sob o argumento de que: [...] o Processo do Trabalho e o judiciário trabalhista têm por finalidade e função institucional dar efetividade aos direitos trabalhistas e garantir a dignidade da pessoa humana do trabalhador, bem como facilitar o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho. Estes fatores, que são a razão da existência da Justiça do Trabalho, impedem que a prescrição seja pronunciada de ofício pelo Juiz do Trabalho. (SCHIAVI, 2013, p. 459) Além disso, o referido autor acrescenta que o reconhecimento da prescrição de oficio não propicia a melhoria da condição social do trabalhador, prevista no caput do art. 7º, CF(1). Nesse sentido tem sido as recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho, formando jurisprudências pela impossibilidade de decretação da prescrição de ofício. Destarte, explicitados os entendimentos quanto ao momento da arguição da prescrição, bem como a prevalência jurisprudencial sobre a decretação da prescrição de ofício, passa-se à análise dos efeitos da prescrição quinquenal na rescisão do contrato de trabalho com mais de cinco anos de duração. 3.2) Efeitos da Prescrição Quinquenal na Rescisão do Contrato de Trabalho com mais de Cinco Anos de Duração Uma minoria doutrinária questiona o instituto da prescrição quinquenal. Visto como uma punição do ordenamento jurídico ao credor inerte, a prescrição quinquenal torna o empregado desprovido da tutela judicial na defesa de seu patrimônio, em prol da segurança das relações sociais. O que se vê na prática é o enorme prejuízo financeiro suportado pelo empregado quando da rescisão de um contrato de trabalho com mais de cinco anos de duração. Caso este cidadão queira receber créditos decorrentes de períodos superiores a cinco anos, estará desprovido do apoio do ordenamento jurídico. O empregado pode até reclamar, mas o instituto da prescrição, simplesmente, não obriga o empregador a pagar tais créditos. Como consequência, o empregador, que suprimiu as verbas trabalhistas devidas ao empregado durante anos, terá um enriquecimento sem causa. Em recente decisão da Justiça do Trabalho de Santa Catarina, Oscar Krost, Juiz da 2ª Vara do Trabalho de Blumenau/SC, questionou a aplicação da prescrição quinquenal. Especificamente sobre o art. 7º,
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inciso XXIX, CR/88, Krost explana sobre a necessidade de regulamentação da estabilidade no emprego, inadmitindo a aplicação quinquenal em caso contrário. Para o magistrado, a prescrição quinquenal foi “idealizada em um sistema de estabilidade no emprego, em que vedada a despedida arbitrária, segundo o inciso I (art. 7º, CR/88), o qual perdura desde 1988 sem a regulamentação devida” (KROST, 2011, p. 1). Segundo as reflexões do Juiz do Trabalho, não se pode aplicar a prescrição sobre os créditos trabalhistas enquanto não houver a regulamentação sobre a estabilidade no emprego. Krost ainda complementa o entendimento de que o Judiciário deve buscar a melhor interpretação à norma constitucional, qual seja: [...] enquanto não regulamentada a estabilidade no emprego, inaplicável a disposição referente à prescrição “parcial”, não havendo como imaginar a livre postulação em juízo por quem esteja sob dependência econômica de outrem, correndo eminente risco da perda abrupta e injustificada da fonte de sustento. (KROST, 2011, p. 1) Para que o empregado possa reclamar todos os créditos trabalhistas efetivamente devidos pelo empregador, ele deve ajuizar, periodicamente, uma ação trabalhista para tanto. Entretanto, é impensável a ideia de ajuizar uma ação contra determinada empresa com o contrato de trabalho ainda vigente. Caso isso aconteça, é presumida a retaliação da empresa para com o empregado ou, até mesmo, a dispensa imediata deste empregado. Nesse mesmo sentido, Silveira (apud KROST, 2011, p. 2) argumenta: Se não pode entrar na justiça, pois perde o emprego e, depois de despedido, perde todos os direitos maculados no período anterior aos cinco anos que precedem o fim da relação empregatícia, o trabalhador está num brete. (...) Estivesse regulamentada, a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa seria elemento pacificador desta realidade. Isso, pois oneraria o empregador com auspícios demissionários, permitindo que o empregado, até mesmo, defenda processualmente seus direitos, sem ser por isso demitido. (KROST, 2011, p. 2) Por mais difícil que seja impedir a aplicação da prescrição quinquenal nas reclamatórias trabalhistas, seja pelo seu alicerce constitucional ou doutrinário, a verdade é que há entendimentos divergentes sobre o tema. Ainda que em pequena escala, há estudiosos que defendem a abolição da prescrição quinquenal. Faz parte dessa minoria de pensadores Valdete Souto Severo, Juíza da 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegre/RS. Instada a declarar a prescrição quinquenal em uma reclamatória trabalhista, a Juíza proferiu decisão nos seguintes termos: [...] foi aprovado Enunciado no último Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas - XV CONAMAT - realizado em Brasília, de 28/4/2010 a 01/5/2010, com a seguinte redação: “PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL CONTRA A DISPENSA ARBITRÁRIA (artigo 7o, I, CF). NÃO-REGULAMENTAÇÃO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL: INAPLICABILIDADE. Considerando que a prescrição não é um “prêmio” para o mau pagador, enquanto não aplicado efetivamente o direito de proteção contra a dispensa arbitrária previsto no inciso I do art. 7º da CF, que gera ao trabalhador a impossibilidade concreta de buscar os seus direitos pela via judicial, não se pode considerar eficaz a regra do inciso XXIX do artigo 7º, no que se refere à prescrição que corre durante o curso da relação de emprego. Portanto, enquanto não conferirmos efetividade plena ao artigo 7º, I, da
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CF/88, não se pode declarar a prescrição quinquenal”. Por todos esses fundamentos, entendo que, enquanto não garantida a plena eficácia do sistema de garantia contra a despedida arbitrária de que cogita o art. 7º da Constituição, a vigência do contrato de emprego constitui elemento impeditivo ao fluxo do prazo prescricional, cuja contagem, pelo menor prazo previsto na Constituição (biênio), tem início tão-somente após o rompimento da relação. No caso em apreço, havendo decorrido menos de 02 anos entre o término do contrato e o ajuizamento da demanda, inexiste prescrição a ser pronunciada. (SEVERO, 2012, p. 8). É inconcebível crer que a parte mais frágil da relação de trabalho tenha que suportar o pesado fardo da prescrição, sob o fundamento da segurança jurídica. Não se pode admitir que o empregador, dotado de um poder muito maior que o empregado, tenha a seu favor o instituto da prescrição. A prescrição quinquenal, quando mal utilizada, torna-se uma ferramenta de grande valia para o mau pagador, uma espécie de “prêmio” para o empregador inadimplente com os créditos trabalhistas abarcados pela prescrição. Destarte, é necessário rever as regras prescricionais das relações de trabalho, seja através de mudança no comportamento dos trabalhadores, emendas constitucionais ou de alteração na forma de interpretação do direito já positivado. 4 – POSSÍVEL ADEQUAÇÃO DA REGRA PRESCRICIONAL TRABALHISTA Existem várias formas de adequar a regra prescricional trabalhista à realidade social brasileira. Tem-se desde a mudança de comportamento do trabalhador brasileiro até a promulgação de emendas constitucionais. Boa parte da classe trabalhadora desconhece por completo os seus direitos trabalhistas. Se os direitos e deveres fossem amplamente difundidos na sociedade, poderia haver uma reclamação administrativa por parte do empregado assim que seu direito fosse lesionado. Não sendo possível uma conciliação administrativa, poderia o trabalhador ajuizar a ação trabalhista sempre que a prescrição quinquenal estiver na iminência de pulverizar os direitos suprimidos pelo empregador. Entretanto, seria utopia pensar nessa hipótese como forma de resolver o problema prescricional, tendo em vista a presumível retaliação por parte do empregador. Certamente, o contrato de trabalho será extinto assim que ajuizada a reclamatória. Outra forma de adequação da regra prescricional seria a interpretação sistematizada das normas trabalhistas, buscando aplicá-las de modo a fazer valer o pr incípio da proteção em detrimento do princípio da segurança jurídica. O art. 9º da CLT estabelece como “nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos direitos trabalhistas” (BRASIL, 1943). Nesse sentido, deve-se realizar uma compreensão extensiva da restrição ao direito fundamental de ação contida no art. 7º, XXIX, CR/88, aplicando tal dispositivo apenas nas hipóteses em que exista efetiva garantia de manutenção do emprego, sob pena de chancelar diariamente a renúncia de crédito alimentar, em evidente desrespeito ao art. 1.707, CC/02(2). Ainda no campo interpretativo, destaca-se o art. 197, CC/02, o qual estabelece as causas que impedem ou suspendem a prescrição, quais sejam: Art. 197. Não corre a prescrição: I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal; II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;
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III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela. (BRASIL, 2002) Realizando o exercício da hermenêutica e considerando que a relação entre empregador e empregado se equiparada à relação entre pai e filho, entre os cônjuges, tutor e tutelado ou curador e curatelado, não seria admissível a aplicação da prescrição quinquenal na relação de trabalho, tendo em vista as causas impeditivas ou suspensivas da prescrição civil. A interpretação sistemática das normas trabalhistas ganha força quando analisados os fundamentos da decisão de Krost: [...] examinar topicamente cada regra que compõe o art. 7º da Constituição, de modo descontextualizado, conduz a conclusões distintas das idealizadas pelo Constituinte, afetando os fundamentos e objetivos do Direito do Trabalho. (KROST, 2011, p. 1) Não sendo possível essa interpretação sistematizada, tem-se a possibilidade de intervenção do Poder Legislativo, promovendo a regulamentação da proteção contra a dispensa arbitrária, prevista no art. 7º, I, CR/88(3). Ainda na seara legislativa, tem-se a possibilidade de uma emenda constitucional com a instituição da prescrição trintenária em detrimento da quinquenal, assim como ocorre na matéria sobre os depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, alterando expressamente o texto do art. 7º, XXIX, CR/88. Nesse sentido, Krost (2011, p. 3) aceita a possibilidade de o principal seguir o acessório, quando mais favorável ao trabalhador, possível apenas a pronúncia da prescrição trintenária quanto à pretensão para postular a paga de toda e qualquer parcela decorrente do contrato, tal qual estabelecido na Lei nº 8.036/90, art. 23, §5º, observando-se o lapso de dois anos após sua extinção, como consagrado na Súmula nº 362 do TST. Entretanto, a instituição da prescrição trintenária como forma de adequação da prescrição quinquenal fica descartada em face da recente atualização da jurisprudência do STF. A decisão majoritária foi tomada na sessão de julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 709212, com repercussão geral reconhecida, a qual modificou de trinta anos para cinco anos o prazo de prescrição aplicável à cobrança de valores não depositados no FGTS. Foi declarada a inconstitucionalidade das normas que previam a prescrição trintenária. De acordo com o ministro Gilmar Mendes, o prazo prescricional do artigo 23 da Lei 8.036/1990 e do artigo 55 do Decreto 99.684/1990 não é razoável. “A previsão de prazo tão dilatado para reclamar o não recolhimento do FGTS, além de se revelar em descompasso com a literalidade do texto constitucional, atenta contra a necessidade de certeza e estabilidade nas relações jurídicas” (MENDES, 2014, p. 9). Apesar da reforma jurisprudencial realizada pelo STF, em evidente desconformidade com a Súmula nº 362 do TST(4), não faltam outras modalidades para adequar a regra prescricional trabalhista à realidade social brasileira. É necessária a reunião de esforços, seja da classe trabalhadora, seja do Poder Legislativo ou Judiciário ou, até mesmo, dos empresários, para que as medidas adequadas possam ser implantadas, com o objetivo de fortalecer as garantias creditícias do trabalhador e dizimar o “prêmio” dos maus pagadores. 5 – CONCLUSÃO É indiscutível o enorme prejuízo suportado pelos empregados em face da impossibilidade da reclamatória trabalhista dos créditos abrangidos pela prescrição quinquenal. Seria utopia incumbir a solução dos efeitos da prescrição quinque-
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nal ao próprio trabalhador. Torná-lo conhecedor dos seus direitos para uma possível resolução administrativa dos litígios seria inviável, pois o poder social exercido pelo empregador faz com que, qualquer ato atentatório do empregado, possa ensejar a perda do posto de trabalho que, via de regra, é a exclusiva fonte de sobrevivência do trabalhador. Impossibilitada a solução amigável, tem-se a necessidade da intervenção do Estado na relação de trabalho para a resolução do litígio, seja pelo Poder Judiciário e/ou Poder Legislativo. O Poder Judiciário, via de regra, possui condições de solucionar o problema da prescrição quinquenal. Ressalta-se, entretanto, que o ajuizamento de uma reclamatória trabalhista com o contrato de trabalho ainda em vigência ensejará na imediata retaliação pela parte reclamada, o que torna inviável a realização de pedidos judiciais a cada cinco anos por parte do trabalhador. Neste sentido, a solução dos efeitos negativos da prescrição quinquenal necessariamente passa pela realização de uma interpretação sistematizada do ordenamento jurídico e, principalmente, das normas trabalhistas por parte dos magistrados quando do julgamento da lide. Não se podem interpretar os dispositivos legais de forma isolada e descontextualizada. O ordenamento jurídico deve ser aplicado a cada caso concreto de forma conjunta, com objetivo de repudiar todos os atos que venham a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos direitos trabalhistas. O exame, de modo descontextualizado, de cada regra que compõe o art. 7º da Constituição conduz a conclusões distintas das idealizadas pelo Constituinte, afetando os fundamentos e objetivos do Direito do Trabalho. Deve-se realizar uma compreensão extensiva do direito de ação contida no art. 7º, XXIX, CR/88, aplicando tal dispositivo apenas em casos excepcionais, evitando a renúncia do trabalhador aos créditos alimentares. Acrescenta-se, ainda, a possibilidade de aplicação, por analogia, das causas que impedem ou suspendem a prescrição aos créditos decorrentes da relação de trabalho, vez que a relação entre empregador e empregado pode ser perfeitamente equiparada à relação entre pai e filho, entre os cônjuges, tutor e tutelado ou curador e curatelado, para as quais não se admitem a prescrição. Ante a inércia do Poder Legislativo de regulamentar a proteção contra a dispensa arbitrária, prevista no art. 7º, I, CR/88 e que perdura desde a promulgação da Carta Magna, haveria a possibilidade de uma Emenda Constitucional para a reforma expressa do art. 7º, XXIX, CR/88, instituindo a prescrição trintenária em detrimento da quinquenal. Porém, essa última solução acaba de ruir ante a recentíssima decisão do STF de declaração de inconstitucionalidade do art. 23, §5º, Lei nº 8.036/90(5). Diante de todo exposto, conclui-se que o ideal para extirpar os efeitos da prescrição quinquenal na rescisão do contrato de trabalho com mais de cinco anos de duração é através de uma emenda constitucional, alterando expressamente o art. 7º, XXIX, CR/88, impedindo a contagem da prescrição quinquenal durante a vigência do contrato de trabalho, afastando a incidência do Princípio da Segurança Jurídica em detrimento da prestação da tutela jurisdicional à parte mais frágil na defesa de seu patrimônio. REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Direito do Trabalho Aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, 2 Ed. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em abril 2014. BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo
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SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013.
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SEVERO, Valdete Souto. 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegra/RS. Reclamação Trabalhista nº 0000765-37.2011.5.04.0005. Autora: Cristine Rien Moraes. Ré: Comunidade Evangélica Luterana São Paulo - CELSP. Sentença, 30 de março de 2012.
BRASIL. Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8036consol.htm. Acesso em novembro 2014.
NOTAS DE FIM
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em outubro 2014. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa dicionário. Curitiba: Ed. Positivo, 2008, 7 Ed. FIGUEIREDO, Antônio Borges de. Prescrição Trabalhista. Porto Alegre: Síntese, 2002. KROST, Oscar. 2ª Vara do Trabalho de Blumenau/SC. Reclamação Trabalhista nº 0001337-63.2010.5.12.0018. Autor: Luis Ricardo Hessmann. Ré: Bayer S.A. Sentença, 11 de janeiro de 2011. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 2013, 4 Ed. LORA, Ilse M. Bernardi. A prescrição no direito do trabalho: teoria geral e questões polêmicas. São Paulo: LTrm 2001. MENDES, Gilmar. Supremo Tribunal Federal - STF. Recurso Extraordinário Com Agravo 709.212 Distrito Federal. 13 de novembro de 2014. TST, Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 153. PRESCRIÇÃO (mantida) Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 TST, Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 362. FGTS. PRESCRIÇÃO (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
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(1) Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. (BRASIL, 1988) (2) Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora. (BRASIL, 2002) (3) Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; (BRASIL, 1988) (4) Súmula nº 362, TST - É trintenária a prescrição do direito de reclamar contra o não-recolhimento da contribuição para o FGTS, observado o prazo de 2 (dois) anos após o término do contrato de trabalho. (TST, 2003) (5) Art. 23, § 5º O processo de fiscalização, de autuação e de imposição de multas reger-se-á pelo disposto no Título VII da CLT, respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária. (BRASIL, 1990) 1 Aluno de graduação em Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2009). Advogada Trabalhista. Professora do curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ** Daniel Guimarães Medrado de Castro; Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo.
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PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E TRIBUTAÇÃO: Limites da Delegação ao Poder Executivo, no que Tange à Edição de Medidas Provisórias na Seara Tributária Gustavo Henrique Duarte1 Tatiana Maria Oliveira Prates Motta2 Banca examinadora** RESUMO: Este artigo tem por objeto discutir se o Poder Executivo pode se utilizar das medidas provisórias para legislar na seara tributário, se utilizando este instituto, ele está ferindo os princípios que estão na Constituição da República de 1988, tendo em vista que a competência exclusiva para legislar sobre esta matéria é do Poder Legislativo. PALAVRAS-CHAVE: Medidas Provisórias; Princípio da Legalidade; Poder Executivo; SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O Sistema Legislativo Tributário; 3 Da Medida Provisória em Direito Tributário; 4 Da Inaplicabilidade da Medida Provisória no Direito Tributário; 5 Considerações finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO A Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, II nos assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988, p.25), sendo este denominado de Princípio da Legalidade, um dos mais importantes instrumentos constitucionais de proteção individual no Estado Democrático de Direito. Em consonância com este princípio, o Código Tributário Nacional estabelece o Princípio da Estrita Legalidade Tributária, que limita o poder de tributar do Estado, podendo ele ser somente realizado através de lei específica. Ocorre que, na Constituição de 1967 o Presidente da Republica tinha a permissão de promulgar Decretos com a mesma força de uma lei, inclusive no que tangia a matéria de direito tributário. Já na Constituição da República de 1988 foi eliminado o instituto do decreto-lei do ordenamento jurídico brasileiro, mas no mesmo diploma legal foi criado o instituto da medida provisória, que de acordo com o artigo 62, §2º, não poderá instituir ou majorar impostos, salvo algumas exceções. Decorre que, para editar uma medida provisória são necessários pressupostos específicos, urgência e relevância, para que elas sejam instituídas com força de lei, sendo elas enviadas imediatamente ao Congresso Nacional, para que este possa realizar o juízo de admissibilidade da mesma, e caso não se enquadre nos pressupostos exigidos, deverá transforma-la em projeto de lei, conforme nos mostra o artigo in verbis: Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; III - reservada a lei complementar; IV - já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Na-
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cional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. § 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada. § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. § 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional. § 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais. § 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. § 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional. § 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados. § 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional. § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se
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-ão por ela regidas. § 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. Pois bem, os pressupostos exigidos para a edição de medidas provisórias sendo eles, relevância e urgência, já excluem automaticamente este instituto do que tange ao direito tributário, devido a este ser regido obrigatoriamente pelo princípio da legalidade, que exige que a lei seja formal e material, sendo que medida provisória tem força de lei, mas ainda não se tornou lei. Desta forma, e vedado ao Poder executivo inovar no que tange a matéria tributária, pois de acordo com o princípio da estrita legalidade, sendo este previsto no artigo 97 do Código Tributário Brasileiro, que elenca tudo que necessita de lei no âmbito do Direito Tributário, para se criar, majorar e definir os elementos de um tributo é necessário o uso de lei, não podendo assim o Poder Executivo realizar uma alteração significativa na seara tributária, podendo apenas realizar alterações que estejam autorizadas pela Constituição da Republica, adequando a aplicação da lei através de regulamentos, sendo que estes atos do Poder Executivo não podem inovar a aplicação da lei, conforme explica Luciano Amaro “Os regulamentos, portanto, embora úteis como instrumento de aplicação da lei, não podem, obviamente, inovar em nenhuma matéria sujeita à reserva da lei.” (1999, p. 187). No direito tributário, a utilização de medidas provisórias, também fere outros princípios constitucionais como o princípio da não surpresa, pois este princípio não permite que o contribuinte seja surpreendido por um aumento repentino da carga tributária, e a medida provisória surpreende os constituintes, já que se torna vigente no momento de sua publicação. No mesmo sentido, também fere o princípio da anterioridade, que exige que o tributo só possa ser cobrado no próximo exercício financeiro, ou seja, o tributo criado só pode entrar em vigor no ano seguinte a sua publicação, e este encontra-se em consonância com o princípio da noventena, que delimita um período mínimo de 90 (noventa) dias para que os tributos passem a ter vigência, proibindo que um tributo seja criado, por exemplo, no ultimo dia do ano e comece a ser cobrado no primeiro dia do ano seguinte a sua publicação, salvo as exceções previstas pela Constituição de 1988. Outrossim, a lei em sentido formal e material exige, em sede tributária, absoluta competência legislativa, salvo as exceções previstas no própria Constituição da República, que também não exigem que sejam respeitados os princípios da anterioridade e noventena, sendo que estas exceções só se aplicam as alíquotas de determinados impostos, não podendo ser alterado a base de calculo, por exemplo. Assim, a utilização de medidas provisórias no que tange a criação e edição de tributos pode ser considerada uma prática inconstitucional. 2 O Sistema Legislativo Tributário A Constituição da República de 1988 prevê em seu artigo 2º que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 1988, p.25), sendo este instituto chamado de Princípio da Separação dos Poderes. Estes poderes convivem de forma harmônica e pacifica, e além de exercerem suas funções típicas, também exercem funções de controle, inibição e moderação recíprocos, conforme determina nossa Constituição, e nos ensina Anna Candida da Cunha Ferraz (1994, p.14): no desdobramento constitucional do esquema de poderes, haverá um mínimo e um máximo de independência de cada órgão de poder, sob pena de se desconfigurar a separação, e haverá, também, um número mínimo e máximo de instrumentos que favoreçam o exercício harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo limites, um poder se sobrepor ao outro, ao invés de, entre eles, se formar uma atuação ‘de concerto’.
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Estas funções no ajudam a compreender a o Princípio da Separação dos Poderes, que é um princípio que exige uma organização do Estado, para que exista a manutenção do Estado Democrático de Direito, protegendo assim toda a sociedade das vontades individuais de quem está exercendo o poder. Ficou expresso na Constituição de 1988, que o Poder Legislativo tem a tarefa de instituir leis, o Poder Executivo de aplicar estas leis e ao Poder Judiciário ficou a tarefa de dirimir eventuais conflitos que venham a surgir no momento da aplicação destas leis, tendo também estes poderes funções atípicas, que estão expressas no texto constitucional. A teoria da separação dos poderes foi desenvolvida por Montesquieu (2004, p.201), que assim elucida: Quando na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo est· reunido no poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. A nossa Carta Magna ordenou em seu Título V, entre os artigos 145 a 162, todas as normas que versam sobre Direito Tributário, distribuindo a competência que cada ente federado tem para legislar sobre essa matéria, e elencando também os diversos princípios a que o legislador esta vinculado. O Direito Tributário tem como sua principal função, regular e restringir o poder do Estado de exigir tributos e regula os deveres e direitos dos contribuintes, sendo tudo feito de forma isonômica. Isso fica ainda mais evidente quando se percebe a intenção do constituinte ao destacar na Constituição da República o Sistema Tributário, dando-lhe um tratamento autônomo, de tal maneira que certas matérias encontram nesse sistema regulação própria. Portanto, deste princípio se depreende a competência para cada ente federado instituir e majorar tributos, não cabendo está tarefa ao Poder Executivo, vez que o mesmo não possui competência para tal, dentro do processo legislativo. 3 - Da Medida Provisória em Direito Tributário 3.1 - Princípio da Legalidade Tributária A Constituição da República de 1988 trouxe diversas discussões no tocante ao poder de legislar na seara do direito tributário, através de medidas provisórias. No entanto, esse instituto infringe diretamente a Carta Magma, uma vez que viola alguns de seus preceitos constitucionais, qual seja o Princípio da Legalidade, da Anterioridade e da Noventena. Em seu artigo 5º, II a CR/88 nos assegura o Princípio da Legalidade, um dos mais importantes princípios constitucionais de proteção individual no Estado Democrático de Direito. O Princípio da Legalidade também está inserido no mesmo diploma legal em seu artigo 150, inciso I que veda de forma expressa à União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, de instituir ou majorar tributos sem utilização da devida lei especifica. A legalidade formal para que sejam instituídos ou majorados os impostos, foi atribuída ao Poder Legislativo, sendo este o único dos três poderes que possui competência para legislar em matéria tributária. A Constituição da República estabelece algumas exceções a este princípio, quanto a diminuir, majorar ou restabelecer a alíquota de alguns impostos classificados como extrafiscais, através de um sim-
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ples ato administrativo do Poder Executivo, sendo que está exceção só pode ser aplicada ao imposto de importação, exportação, IPI, IOF e CIDE-Combustíveis. Está exceção foi criada com o intuito de nos momentos em que for necessária a intervenção do Estado para controlar a economia interna, que esta tendo algum tipo de anormalidade, regulando assim as políticas sociais e econômicas. Geraldo Ataliba (1990, p. 233.) define assim a extrafiscalidade: Consiste a extrafiscalidade no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados. [...] É lícito recorrer aos tributos com o intuito de atuar diretamente sobre os comportamentos sociais e econômicos dos contribuintes, seja fomentando posicionamento ou inibindo certos procedimentos. Dá-se tal fenômeno (extrafiscalidade) por intermédio de normas que, ao preverem uma tributação, possuem em seu bojo, uma técnica de intervenção ou conformação social por via fiscal. São os tributos extrafiscais, que podem ser traduzidos em agravamentos ou benefícios fiscais dirigidos ao implemento e estímulo de certas condutas.
que o tributo possa ser cobrado. As modificações que estão sujeitas à anterioridade nonagesimal são as que representem uma efetiva mudança na cobrança do tributo, e assim represente uma diferença significativa para o contribuinte. As modificações menos onerosas ao contribuinte podem ser aplicadas desde a entrada em vigor da lei nova. Os princípios da anterioridade e noventena têm como principal objetivo proteger o contribuinte contra o fator surpresa, dando ao contribuinte o tempo necessário para se ajustar seu planejamento financeiro, visando o pagamento do devido tributo. Em consonância com este entendimento, leciona Eduardo Maneira (1994, p. 161): O princípio da não surpresa da lei tributária é instrumento constitucional que visa garantir o direito do contribuinte à segurança jurídica, essência do Estado de Direito, qualquer que seja a sua concepção. Num sistema econômico que faz opção pela economia de mercado, a legalidade e a não surpresa, além de oferecerem segurança jurídica, são, na qualidade de normas gerais, fundamentais para garantir igualdade aos que disputam o mercado.
Este princípio, também encontra respaldo, de forma mais detalhada, no Código Tributário Nacional em seu artigo 97, quando prescreve que “Somente Lei Pode Estabelecer: (...)”, discorrendo em seus seis incisos e dois parágrafos, o princípio da legalidade no Direito Tributário Brasileiro. Para Sacha Calmon Navarro Coêlho “o princípio da legalidade significa que a tributação deve ser decidida não pelo chefe do governo, mas pelos representantes do povo, livremente eleitos para fazer leis claras” (COÊLHO, 2012, p.173). Deste modo, a expressão LEI, para o princípio da legalidade tributária, deverá ser compreendida na perspectiva formal e material, sendo esta norma jurídica elaborada pelo Poder Legislativo, competente este para legislar, conforme os termos da Constituição, observado também o processo que nesta está estabelecido. Corroborando com nosso entendimento, Sacha Calmon Navarro Côelho aduz (1992, p. 227): Estado de Direito e legalidade na tributação são termos equivalentes. Onde houver Estado de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria tributária. Onde prevalecer o arbítrio tributário certamente inexistirá Estado de Direito. E, pois, liberdade e segurança tampouco existirão.
Como no princípio da legalidade, estes princípios também possuem algumas exceções. Os impostos de Importação, Exportação, IOF, IPI, Imposto Extraordinário de Guerra, Empréstimo Compulsório de Calamidade Pública ou Guerra, CIDE – Combustíveis, ICMS – Combustíveis e as Contribuições Sociais destinadas ao Custeia da Seguridade Social (Art. 195 da CF), não estão sujeitos a aplicação do Princípio da Anterioridade. E os impostos de Importação, Exportação, Imposto de Renda, Imposto Extraordinário de Guerra, Empréstimo Compulsório de Calamidade Pública ou Guerra, ICMS – Combustíveis e as alterações na base de calculo do IPVA e do IPTU, não estão sujeitos ao princípio da noventena. Tais exceções somente se aplicam ao princípio da anterioridade e da noventena, e nunca ao princípio da legalidade, pois no que tange a esse último, as exceções se encontram expressas no art. 153, parágrafo 1º apenas referindo-se à majoração de tributos e, desde que, obedecendo os limites fixados em lei, o que leva a se afirmar que o princípio da legalidade é absoluto, não admitindo, portanto, nenhuma exceção no sentido de que os tributos serão sempre criados por lei, não tendo que esperar o fim do exercício financeiro para que possam ser cobrados. Podemos assim afirmar, que quando cominados os princípio da legalidade e da anterioridade, fica reafirmado o valor do princípio da segurança jurídica, na medida que se tem a certeza de que a criação ou majoração de tributos, jamais prescindirá da aceitação daqueles que serão os sujeitos passivos da obrigação tributária, mediante manifestação dos seus representantes no Poder Legislativo.
Sendo assim, o princípio da legalidade tributária é um dos mais importantes princípios aplicados no âmbito do direito tributário, estendendo-se para as outras áreas do direito, sendo ele um verdadeiro freio do poder estatal. 3.2 - Princípio da Anterioridade e Noventena A Constituição da República proíbe a surpresa tributária para o constituinte, estabelecendo que novos tributos criados, somente poderão ser cobrados no próximo exercício financeiro, sendo este princípio chamado de princípio da anterioridade. Este princípio está em consonância com o princípio da segurança jurídica e não surpresa, que não permite que o constituinte seja surpreendido com a cobrança de um novo tributo ou a majoração de um tributo existente, não estando ele preparado para suportar este novo encargo, e com o princípio da noventena, que delimita o prazo mínimo de 90 (noventa) dias da data de publicação da lei que as houver instituído ou modificado o tributo, para
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4 da inaplicabilidade da Medida Provisória no direito tributario Ao analisarmos a utilização das Medidas Provisórias na seara tributário, não podemos deixar de lembrar que essa questão já foi discutida na Constituição de 1967/69, quando se questionava a constitucionalidade ou não da criação de tributos através dos Decretos-Leis. Ocorre, que no texto do artigo 55 da Constituição de 1967/69, existia previsão expressa para a utilização dos Decretos-Lei por parte do Poder Executivo, para legislar sobre “finanças públicas, inclusive normas tributárias” (art. 55, inciso II, CF-69), enquanto que na Constituição da República de 1988, em seu artigo 62, §2º, existe a previsão para a instituição de impostos, desde que estes impostos só comecem a produzir efeitos no próximo exercício financeiro, e que a medida provisória seja convertida em lei até o ultimo dia do ano a qual ela foi promulgada. A medida provisória foi criada para ser um ato normativo, que
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deveria ser utilizado de forma excepcional pelo Presidente da Republica em casos de extrema relevância e urgência, e que de acordo com Joel de Menezes Niebuhr é um “ato político, normativo, discricionário, excepcional, cautelar, precário e com força de lei” (2001, p.88). Por se tratar de medidas provisórias sobre temas que exijam relevância e urgência, não houve consonância deste com as finalidades previstas na CR/88, no que tange ao Direito Tributário, pois este veda de forma expressa a não surpresa ao constituinte. Esse é o entendimento Misabel Abreu Machado Derzi (2013, p. 16): Como não é uma faculdade ou discricionariedade do Poder Legislativo, tampouco acidentalidade ou eventualidade, mas sim a regra geral, o princípio da anterioridade acaba por caracterizar e especializar as leis tributárias que instituem ou majorem tributos. O mesmo fenômeno ocorre com o princípio da espera nonagesimal. Do ponto de vista técnico, o fenômeno será sempre o mesmo: posta a lei e publicada, esta só terá aptidão para desencadear efeitos e ser aplicada no exercício financeiro subsequente ao de sua publicação. E mesmo assim, se tiver decorrido noventa dias da data de sua publicação, pois a observância de ambos, anterioridade e espera nonagesimal, é concomitante. Portanto, as leis não podem criar insegurança jurídica perante a sociedade, só que não é isto que estamos vivendo, “Ocorre que a não surpresa, jurisdicizada pela anualidade ou pela anterioridade, não tem seguido, no Brasil, vigor correspondente à importância dos valores que carrega.”(COÊLHO, 2012, p. 212). Outro ponto que e defeso a medidas provisórias, e a instituição de tributos que a Constituição da República de 1988 exige a utilização de Lei Complementar. Nestes casos o artigo 62, §3º inciso III da CR/88, veda de forma expressa a utilização das medidas provisórias, não podendo elas instituir ou majorar qualquer tipo de tributos que exijam a utilização de Leis Complementares. Conforme leciona Eduardo Sabbag (2014, p.84): A razão é simples: a inequívoca falta de harmonização entre o natural imediatismo eficacial da medida provisória - perante a existência de critérios de relevância e urgência – e o criterioso processo elaborativo próprio de uma lei complementar, em face da necessidade de quorum privilegiado de votantes (maioria absoluta) na Casa Legislativa (art. 69 da CF). As leis complementares se encaixam entre a rigidez para criação das emendas constitucionais e a maior flexibilidade de promulgação das leis ordinárias, situação necessária para proteção de fatos que possuam importância diferenciada, que não precisariam de um processo tão rígido como o das emendas constitucionais, mais teriam estabilidade maior que as ordinárias, não podendo ser modificado por qualquer quorum no Congresso Nacional. Deste modo, as leis complementares não comportam serem objeto de delegação, não podendo sua competência ser substituída por medida provisória, em virtude do seu próprio procedimento e competência para sua criação. O Supremo Tribunal Federal ao ser questionado sobre a constitucionalidade da utilização da medida provisória na seara tributária, tem julgado normalmente de forma favorável a utilização da mesma para a instituição e majoração dos tributos, afirmando que a medida provisória tem eficácia limitada, sendo utilizada apenas para iniciar o processo legislativo de criação ou aumento dos tributos, conforme voto proferido pelo Ministro Carlos Veloso, no RE 138.284/CE no qual era relator: A criação do tributo mediante medida provisória. Há os que sustentam que o tributo não pode ser instituído mediante medida
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provisória. A questão, no particular, merece algumas considerações. Convém registrar, primeiro que tudo, que a Constituição, ao estabelecer a medida provisória como espécie de ato normativo primário, não impôs qualquer restrição no tocante à matéria. E se a medida provisória vem a se transformar em lei, a objeção perde objeto. É o que ocorreu, no caso. A MP n º 22, de 6-12-88, foi convertida na Lei n º 7.689, de 25-12-88. Não seria , portanto, pelo fato de que a contribuição criada, originariamente, mediante medida provisória, que seria ela inconstitucional. Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter reconhecido, em alguns processos, a possibilidade de as medidas provisórias veicularem matérias tributárias, cabem aos operadores do direito, demonstrarem que o vício de inconstitucionalidade existente no § 2º do artigo 62 da Emenda Constitucional nº 32/ 2001, tendo em vista que ao permitir a instituição e majoração de impostos por meio de medidas provisórias, afrontou os direito e garantias constitucionais dos contribuintes, que estão garantidos nos princípios constitucionais da legalidade, segurança jurídica, anterioridade, noventena e indelegabilidade da competência tributária, que não são passíveis de emendas constitucionais por serem consideradas cláusulas pétreas. Em que pese o respeitável entendimento do STF, o Ministro Celso de Melo, no RE239.286/PR, emitiu a seguinte opinião: (...)Devo ressaltar, inicialmente, na linha de voto vencido que proferi, em 13-08-1997, no julgamento final da ADI 1.135-DF, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, a minha posição pessoal, que, estimulada por permanente reflexão sobre o tema, repudia a possibilidade constitucional de o Presidente da República, mediante edição de Medida Provisória, dispor sobre a instituição ou majoração de qualquer tributo. A crescente apropriação institucional do poder de legislar, pelo Presidente da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica em razão de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. O exercício dessa excepcional prerrogativa presidencial, precisamente porque transformado em inaceitável prática ordinária de Governo, torna se necessário – em função dos paradigmas constitucionais, que, de um lado, consagram a separação de poderes e o principio da liberdade e que, de outro, repelem a formação de ordens normativas fundadas em processo legislativo de caráter autocrático - que se imponham limites materiais ao uso da extraordinária competência de editar atos com força de lei, outorgada, ao Chefe do poder Executivo da União, pelo art. 62 da Constituição da República. É natural - considerando-se a crescente complexidade que qualifica as atribuições do Estado contemporâneo - que se lhe concedam meios institucionais destinados a viabilizar produção normativa ágil que permita, ao Poder Público, em casos de efetiva necessidade e real urgência, neutralizar situações de grave risco para a ordem pública. (...) Na mesma linha de raciocínio, Misabel Abreu Machado Derzi elucida, “Na Constituição da República de 1988, as medidas provisórias são absolutamente incompatíveis com a regulação de matéria tributária, em especial, instituição e majoração de tributos.”(DERZI, 2013, p.15). Destarte, as exigências trazidas no artigo 62, §2º, afrontam os princípios ora elucidados, uma vez que não pode o Poder Executivo legislar na seara tributária, trazendo assim surpresa para o constituinte, o que é vedado pela CR/88. Dessa forma, “temos uma primeira delimitação, posta na Constituição, às expressões, aparentemente abertas, relevância e urgência” (COÊLHO, 2012, p. 212).
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Por se tratar de medidas provisórias sobre temas que exijam relevância e urgência, não houve consonância deste com as finalidades previstas na CR/88, no que tange ao Direito Tributário, pois este veda de forma expressa a não surpresa ao constituinte. Pautada na segurança jurídica, a interpretação correta da lei é questão que julgamos extremamente necessária para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Entendemos que o problema aqui levantado, no que tange ao poder de legislar em matéria tributária pelo Poder Executivo, deve e merece ser debatido pelo seu caráter inconstitucional. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A utilização das medidas provisórias em matéria tributária trás diversos questionamentos por parte da doutrina majoritária, que entende ser inconstitucional sua utilização. Já o Supremo Tribunal Federal, que tem legislado, nos momentos em que o Poder Legislativo deveria atuar, mas se mantém inerte, tem posição contrária à doutrina e diz ser possível a utilização das medidas provisórias na seara tributária. Dessa forma, respeitando todos os posicionamentos em contrário, concluímos que a Emenda Constitucional nº 32/ 2001, ao revogar direitos constitucionais considerados absolutos, contém vícios de inconstitucionalidade material, devendo está inconstitucionalidade ser sanada pelo Poder Judiciário, tal como se dá com as demais normas jurídicas em desacordo com a Carta Magna. O direito brasileiro não pode ser interpretado de forma diferente aos estipulados pelos princípios da Constituição da República, sob pena de trazer a tona a insegurança jurídica, e na seara do direito tributário, a Constituição da República, ao estabelecer o ordenamento para o sistema tributário, buscou valorar essa regras de tal modo, que o Poder Executivo tem necessariamente que levar em consideração o teor dos princípios ali consagrados, não sendo aconselhável ignorar esses parâmetros. Deste modo, os princípios da legalidade, o da anterioridade e o da noventena, são verdadeiras garantias constitucionais do constituinte em face do Poder Público, servindo como um verdadeiro freio para o Estado, no que tange a criar e majorar as espécies tributárias. As exceções previstas na Constituição da República de 1988 aos princípios da legalidade, da anterioridade e noventena, inegavelmente, reafirmam que as regras contidas nos mesmos, têm que ser obrigatoriamente seguidas, dando assim mais uma demonstração do disciplinamento jurídico rígido que a matéria tributária recebeu no sistema da Constituição da República. As medidas provisórias possuem requisitos obrigatórios, sendo eles a relevância e a urgência, que demonstram a incompatibilidade da aplicabilidade deles na seara tributária, pois confrontam os princípios constitucionais pertinentes a está matéria, uma vez que existe um disciplinamento específico e rígido no próprio título que versa sobre o Sistema Tributário Nacional. E mesmo não existindo qualquer tipo de limitação na utilização da medida provisória no direito tributário, não é válido entender que essa omissão a habilita para ser utilizada em qualquer tipo de matéria, devendo ser este entendimento contrário, posto que as matérias que possuem requisitos impostos pelo texto constitucional, por si só, teriam que afastar a utilização da medida provisória, quando a mesma tivesse requisitos contrários a matéria ao qual ela seria aplicada. Destarte, a utilização das medidas provisórias, para instituir ou majorar tributos, em função de caso relevante e urgente, representa um verdadeiro afrontamento aos princípios da legalidade e da anterioridade, afrontando assim a ordem jurídica brasileira, e sua constante utilização por parte do Poder Executivo, prejudicam os contribuintes, tendo estes que recorrer aos órgãos jurisdicionais, para tentar impedir
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as cobranças que consideram indevidas. Mesmo sendo a doutrinária majoritária, contra a utilização de medida provisória no âmbito do direito tributário, pois esta entende que ela desrespeita o ordenamento jurídico, principalmente nossa Lei Maior, o Supremo Tribunal Federal tem tido, em alguns casos, entendimento oposto ao da doutrina, não possuindo esta matéria uma jurisprudência mansa e pacífica. Entendemos que nossa Suprema Corte não pode ignorar os questionamentos desenvolvidos pela doutrina, devendo este aprofunda-se nesta discussão, para assim buscar maior segurança para os constituintes. Portanto, entendemos que a criação ou majoração de qualquer tipo de tributo jamais poderá ocorrer através das medidas provisórias, pois afronta o texto da Constituição da República de 1988, sendo um atentado contra todo o ordenamento jurídico e contra o Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO. 4ª Ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1999. ATALIBA, Geraldo. Hipóteses de Incidência Tributária. 5ª Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. ATALIBA, Geraldo. IPTU: progressividade. Revista de Direito Público, v. 23, n. 93, 1990. Baleeiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013. BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei 5.172 de 25 de outubro 1966. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF,Senado,1998. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 25ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre Poderes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis, São Paulo: Editora Edipro, 2004. Niebuhr, Joel de Menezes. O novo regime constitucional da medida provisória. São Paulo: Editora Dialética,2001. NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte: Centro universitário Newton. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/ Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 08/05/2014. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário.6ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2014.
NOTAS DE FIM 1 Acadêmico do 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Newton. 2 Mestre em Direito e Instituições Políticas pela Universidade FUMEC. Professora Titular de Direito Processual Civil do Centro Universitário Newton Paiva. Assessora da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. ** Tatiana Maria Oliveira Prates Motta; Leticia Junger.
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