Pulp Feek #10

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Sabe, algumas vezes eu me vejo como um personagem de um conto, eu tive meu começo, neste momento estou no meio da história, e sabe-se lá se alguém sabe quando será meu fim. Porque estou falando disso? Porque eu conheci ha vinte anos atrás um contador de histórias, um que gostava de contar sobre sua própria vida, ele não sabia escolher muito bem as palavras, ou não entendia de períodos como os que aqui escrevem, mas suas histórias eram lindas. Todas elas eram reais, todas vividas na carne e nas rugas, no suor e no cansaço de um homem que criou nove filhos. E que pela graça de Deus viu nascerem seus netos e bisnetos, mas que um dia teve sua história terminada com um grande ponto final. Dizia o grande poeta Horácio em seu poema: “Tu não indagues (é ímpio saber) qual o fim que a mim e a ti os deuses tenham dado, Leuconoé, nem recorras aos números babilônicos. Tão melhor é suportar o que será! Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último o que agora debilita o mar Tirreno nas rochas contrapostas, que sejas sábia, coes os vinhos e, no espaço breve, cortes a longa esperança. Enquanto estamos falando, terá fugido o tempo invejoso; colhe o dia, quanto menos confia no de amanhã.” E é isto, temos pouco tempo para contar nossas histórias, e para escutar as histórias de quem temos por perto, não perdemos tempo tão precioso pensando no dia de amanhã, pensemos em contar as histórias vividas no hoje. Uma história por dia, construamos o grande compêndio de nosso livro da vida, relembrando aqueles que se vão com amor e carinho, porém, seguindo em frente em respeito a memória. Gostaria de agradecer através deste texto, por estas lições, que aprendi com esse grande contador de histórias. Mas gostaria também que este texto fosse um alerta, para todos nós. A vida passa, e enquanto estamos nos preocupando em escrever da melhor forma possível, em corrigir nossos erros, podemos estar deixando de contar as melhores histórias apenas por vergonha. Esteja preparado, para escrever sua história hoje, para mostrá-la ao mundo hoje, não decida colher os louros de sua glória após sua morte, não deixe obras póstumas, publique tudo agora.


PULP FEEK - #10 Séries

A Falha Steinitz - Out of the Water Coast – Coil está prestes a entregar a sua “carga”, porém, logo ele irá perceber que esse não vai ser um dia de descanso para sua Colt. ---------------------------- Rodolfo L. Xavier - Pág 3 4x2:EM CETIM E RENDA Conheça um pouco sobre o que é 4x2, quem é seu autor? O que o motiva? Tudo isso e mais detalhes sobre a história de Lady Starbuck e outros fatos deste incrível mundo Cyberpunk.--------------- Alaor Rocha - Pág 17

One-Shot

Quando não sabemos: Quando promessas são feitas, e depois retiradas, tudo que nos resta é correr em busca da sobrevivência. Os extremos da conduta humana podem ser assombrosos. ------------------------- Bass D. Gibbons - Pág 29

Extra

Fonte de Inspiração: Super 8 é um filme que foi mal recebido pela crítica, não obteve uma boa bilheteria, mas veja a opinião de nosso colunista Lucas sobre esse filme e porque ele é uma grande fonte de inspiração. Lucas Rueles - Pág 39 Como escrever sobre - Gancho: Quem sabe faz ao vivo, e nosso colunista Rafael decidiu mostrar como usar Ganchos da melhor maneira possível em um texto. Rafael Marx --------------------------------------- Pág 47 Na próxima semana: Não perca o fim do arco de “O Dom das sombras” por Philippe Avellar, E veja a evolução de nosso mundo vampiresco em ”Lúcia” por Amanda Ferrairo Tudo isso editado pelo nosso editor Diogo, e acompanhado pelos textos de nossos já conhecidos colunistas.



A Falha Steinitz - Out of the Water Coast

Rodolfo L. Xavier

Ganimedes — ano 37 P.E.

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ravar curso nas coordenadas combinadas, Leo. — sorriu Coil, manobrando o Legionário. — Vamos buscar nosso pote de ouro. O cruzador de batalha singrava solitário sobre as planícies de gelo do maior satélite de Júpiter, dentro de uma tempestade de granizo, neve e poeira. A espaçonave seguia seu curso, recebendo o impacto dos fragmentos que a natureza lhe arremessava. Mesmo já tendo passado por coisa pior, o velho Ganimedes nunca fora um passeio no parque. Grandes oceanos, formados após o reaquecimento nuclear promovido pelos colonos, erguiam-se em tsunamis imensas no horizonte. Coil seguia para a costa, rumo a um complexo fabril afastado das colônias, para encontrar seus contratantes. No interior do cruzador, Sophia tremia, sentada atrás do corsário, na cabina, apesar da zona de conforto térmico proporcionada por seu traje. Passava os dedos por seus cabelos, sobre seu colo, enquanto mordia levemente o lábio inferior. Pôde ver, através dos monitores, o planeta gélido abaixo deles passando em borrões alvos e brilhantes. Apertou a mão, cerrada, sobre o peito. — O que há querida? — Aproximou-se a Navegadora, acomodando-se no assento ao lado da jovem, visivelmente interessada. — Alguma nova memória? A mulher suspirou. Tinha sido dessa forma nas últimas horas. Desde que acordara era constantemente bombardeada por perguntas da androide, que, para ser justa, se esforçava em ser simpática e prestati-

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va. Não queria nem imaginar como estaria caso estivesse sozinha com aquele brutamonte. — Olhar pra esse lugar me faz sentir congelada de novo. — murmurou, encarando os monitores, enquanto franzia o cenho. A androide assentiu e recalculou a rota, desviando o cruzador de uma tempestade ainda maior. Assim exercia sua função, sem cessar, capaz disso graças a seus múltiplos processadores, permitindo que mantivesse sua atenção ao meio enquanto se comunicava com os centros de processamento da espaçonave. — Ponto de encontro dois cliques a frente, senhor. — ecoou a voz no console da nave. — Estamos recebendo uma mensagem de confirmação. Devo transferi-la? — Coloque no monitor três, Leo. O terceiro monitor piscou em um flash e deixou de mostrar o cenário externo para exibir o rosto de um homem na casa dos trinta, de cabelos dourados e olhos azuis, que povoavam uma face marcada por múltiplas cicatrizes e uma expressão dura. — Pontual como sua fama o precede, Coil. — arrastou, em um sotaque soviético. — Qual o estado da carga? O corsário espiou por sobre o ombro. Sophia encarava o monitor de cabeça baixa, os lábios comprimidos em uma fina linha, o cenho franzido, as mãos fechadas sobre os joelhos. — Em perfeito estado, camarada. — disse, abrindo um sorriso enviesado. — Pra qual doca devo proceder, para trocarmos nossos presentes? — Estou transferindo as autorizações de atracagem para seu siste-

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ma. Doca quatro. No aguardo. — retrucou, logo antes de o monitor piscar em novo flash e voltar a exibir o cenário do grande satélite. Os viajantes no interior da cabina puderam avistar, encimando a linha do horizonte, um enorme complexo industrial. Grandes prédios povoavam uma plataforma quilométrica que flutuava sobre o oceano, impulsionada por gigantescos motores de fusão, emitindo constantes labaredas na direção da água. Chaminés cuspiam fumaça e fogo, maculando o até então límpido céu de Ganimedes. Sobrevoando o complexo, drones na forma de pequenos caças vigiavam o perímetro. Eram comumente apelidados de gárgulas pelos piratas e corsários. Letais em curtas distâncias. Coil setou o curso no automático e se levantou, caminhando através do interior da espaçonave. — Vai se arrumar, menina. — parou ao lado de Sophia. — Chegou o seu ponto, é hora de descer. Sophia ergueu o rosto, numa expressão de desafio. Liberou o cinto de segurança e se levantou, ficando ainda uns bons quinze centímetros mais baixa que o corsário. Encarou-o nos olhos, e mais uma vez Coil sentiu aquela sensação incômoda, ao ser fitado pelos olhos azuis. Danese. Brindaria àquela vergonha bebendo o whisky mais caro da galáxia, se fosse necessário. O cruzador de batalha atracou na plataforma, em uma estação de pouso a céu aberto. Ambos desceram do Legionário, sorvendo o ar da atmosfera artificial do planetoide em longos suspiros. Coil ajeitou o chapéu sobre a cabeça, em uma mesura sarcástica, cedendo passagem à jovem. Sophia, numa expressão cerrada e de costas retas, desceu a plataforma. O corsário a acompanhou.

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Titan — Ano 37 P.E. Jymmy nunca teve muitas chances na vida. Nunca conheceu seu pai e sua mãe era uma puta barata num bordel de merda, escondido numa esquina num dos recantos mais pobres daquele satélite saturniano. Quando moleque andava pelas ruas brincando de máquina contra humano, enforcado e, sua favorita, criptograma sem código. Conforme foi crescendo, viu cada colega sucumbir ou às drogas, ou ao tráfico em si, motivo pelo qual nunca usou sequer fitoterápicos, quanto mais sintéticos. Sua vida mudou na adolescência ao entrar, mais uma vez, naquele bordel de merda. Sua vida mudou quando conheceu um pirata. O glamour que cercava o capitão Richard Coufield encantou o garoto de primeira. Ou qual fosse o nome daquilo que o cercava. O capitão tinha créditos, respeito, fama e as mulheres que queria. O que não era seu, tomava e o que era, se multiplicava. Jymmy, dentro daquele bordel que se acostumara a chamar de lar, vira, por diversas vezes, o capitão caminhar até a mesa onde um cliente negociava com uma puta e, após um soco bem aplicado ou um banho de vinho, expulsar o homem do puteiro e subir pro quarto com a mulher. Por vezes com duas ou três. Um ano depois de conhecer as proezas do capitão, Jymmy era um pirata da tripulação da nave de assalto classe B, Caravela. A vida de pirata não era fácil. Desde fazer a limpeza e a manutenção da nave, trabalho extenso e cansativo, até as vigílias e noites sem dormir, perseguindo um saque, Jymmy aprendera, a duras penas, o que era ser um saqueador do espaço. Matara pela primeira vez aos dezesseis, e, apesar dos já incontáveis cadáveres sobre suas costas nesses três anos,

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jamais tomara gosto pela coisa. Era trabalho, e o trabalho tem que ser feito, ou a cabeça não permanece no pescoço por muito tempo. Mas tinha suas compensações. Dinheiro, respeito, proteção, fama. E as mulheres que queria, ah, isso tinha. Estava na cama com uma puta de longos cabelos negros e seios fartos, no mesmo bordel onde crescera, quando recebera a chamada e o alvo. Nas noites antes de uma missão trepava como se não houvesse amanhã, pois, cedo aprendera, para muitos, não há mesmo. Passou toda a madrugada com a prostituta, deleitando-se, e, na manhã seguinte, prosseguiu ao ponto de encontro, um pub xexelento, num bairro fodido de Titan, que vendia uma cerveja deliciosa, há que se respeitar. Travis, o gordo, ficava se esfregando na única garota de programa que fazia ponto naquele bar, enquanto Jymmy e seus companheiros sentaram em uma mesa de pôquer. O trabalho era simples. Um corsário estava fazendo muitas perguntas sobre o capitão. Deviam silenciá-lo. Isso até eles encontrarem o porco e Jymmy apagar depois de um cruzado em seu queixo, que lhe custara dois dentes de baixo. E a merda toda ainda não tinha acabado. Quando o jovem pirata acordou, dentro de um pequeno pedaço do inferno, viu que seus companheiros estavam mortos, assim como o barman. O chão era uma poça de sangue, álcool e cacos de vidro. A cabeça doía e ele se sentou, pensando em como daria essa notícia pro capitão. Coufield não gostava de fracassos. Sabendo da fama do capitão, Jymmy ateou fogo no bar. Ninguém iria dizer que o barman não era ele mesmo, depois de um beijo quente das labaredas. Pegou o que ainda tinha de créditos, além de limpar os bolsos dos camaradas, e fugiu. Iria sumir dos dados de todos, aproveitar

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sua juventude e experiência, com a grana que tinha guardado e com um pequeno cargueiro roubado, conseguido sem muito esforço ainda na órbita de Saturno. Esses eram os planos, até cruzar com ele. Jymmy abriu os olhos pela sexta vez. Ou seria sétima. Perdera completamente a noção do tempo, e procurava o ar que lhe faltava com desespero, cuspindo a água que entrara pela boca e pelas narinas. Piscou forte e abriu os olhos, dentro daquele porão já conhecido. Estava nu, atado a uma cadeira de ferro. Tremia e sentia o calor se esvaindo de seu corpo, cada filete de sangue que escorria de seu peito, braços e coxas levando cada vez mais aquele calor embora. Ofegou, tonto, e levantou os olhos de forma brusca, quando ouviu aquela voz lhe gelar a espinha novamente. — De novo, garoto — murmurou com a voz algo metalizada e abafada, que arranhava os ouvidos do jovem. —, onde está a carga? O sardento arregalou os olhos, buscando-o por sobre os ombros. Pelo menos quando o via sabia que era de verdade. A dor. Essa era sempre de verdade. Foi inundado mais uma vez pela dor. Os músculos se contraindo, os dentes forçando uns contra os outros até sentir novamente o gosto quente e metálico escorrendo pelos lábios. A urina descendo farta entre as coxas, enquanto cada um daquelas centenas de volts percorria sua pele, sua carne e seus ossos. E o alívio. O alívio da carga retirada, o alívio da ausência da dor, por um segundo que fosse. Queria falar, precisava falar, dizer tudo que sabia, precisava que a dor parasse. Mas já dissera tudo. — Eu já disse — ofegou, salivando. —, eu já disse... Pelo amor de

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Deus, eu já disse. — chorava e soluçava. — O que você quer mais? O algoz inclinou-se sobre Jymmy, encarando-o rosto a rosto, fazendo o garoto chorar ainda mais. Aquelas órbitas vazias, era como encarar o abismo na forma de um olhar. A baforada que atravessava o respirador que cobria as narinas e a boca daquele carrasco tinha um odor podre, nojento, canceroso. Sentiu a bile queimar na garganta e não segurou o vômito. O algoz parecia fitá-lo, a despeito de não ter olhos, com um inclinar de cabeça peculiar, quase curioso. — Não é óbvio, meu jovem? — sussurrou. — Quero livrar você da dor. Quero fazer com que esse sofrimento horroroso acabe. Quero te dar descanso. Jymmy chorava, a cabeça pendendo, saliva e vômito escorrendo pelos cantos da boca. — Mas... Mas... eu já disse tudo — implorou. — já disse tudo que eu sei... O algoz afagou-lhe os cabelos ruivos com um ar professoral. Deu um tapa amistoso no queixo do garoto, levantando sua cabeça. — Eu sei. Mas eu preciso ter certeza. E a dor recomeçou. *** Ganimedes — Ano 37 P.E. Se Coil aprendeu alguma coisa com a guerra foi que merda acontece. E aquela merda tinha acontecido rápido demais. Quando o corsário e Sophia desembarcaram na doca quatro, foram

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recebidos por seis mercenários trajados uniformemente, coletes táticos, roupas pretas, cada um com um fuzil a tiracolo, pendurados por bandoleiras. Entre os guarda-costas, o homem de traços russos aguardava, bem-vestido em um terno risca de giz, perfeitamente alinhado. Usava sobre o terno um sobretudo grosso, cuja gola subia acima de seu queixo. Na mão esquerda uma maleta de aço, segura de forma rígida. Coil caminhou vagarosamente, observando os arredores. Registrou mentalmente cada amontoado de canos que poderia lhe servir de cobertura, cada parede e viela que poderia ser camuflagem em uma emboscada, cada ponto alto que poderia servir como sítio para um atirador de elite. Sophia caminhava dois passos à frente, numa postura firme. Tinha que admitir, a menina era corajosa. Censurou rapidamente o pensamento. A carga era corajosa. Não que isso fizesse qualquer diferença. Ela valia muito. Muito whisky, absinto, vodka e combustível para mais viagens e mais saques e mais recompensas. Não existiam mais heróis no espaço. Estacou, pousando a mão sobre o ombro de Sophia, impedindo -a de prosseguir. — Como vai, camarada? — o corsário levantou a voz, superando o barulho do vento forte e das ondas quebrando abaixo da plataforma. — Trouxe meu pote de ouro? — Como combinado, aqui está. — respondeu o russo, com a habitual expressão carrancuda. O loiro entregou a maleta para um dos seguranças, que avançou até o corsário. Coil segurou a mala com a mão esquerda, enquanto a direita largou o ombro da menina. O segurança fez um gesto curto, e Sophia, resignada, voltou a caminhar. Deckard tocou a ponta do chapéu com a

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mão direita, num cumprimento ao seu contratante e deu-lhes as costas. Não tinha caminhado três passos quando algo lhe fisgou dolorosamente o ombro esquerdo e ele pôde sentir um fio de sangue aquecer seu peito e suas costas. Olhou rapidamente por sobre o ombro antes de saltar de lado até uma das vielas que registrara como cobertura. Viu, num relance, o atirador, um dos seguranças do russo, Livrar-se de Sophia, que lhe agarrara o braço de apoio, e retomar a mira. Trincou os dentes e franziu o cenho. O ombro doía como o inferno, mas não era isso que incomodava. Sobre a plataforma múltiplos acontecimentos foram simultâneos. Dois seguranças agarravam a garota, tentando imobilizá-la, mas Sophia resistia, lutava. Três mercenários avançaram, na tentativa de flanquear o corsário, enquanto o atirador despejava uma chuva de projéteis, cobrindo o avanço dos outros. Um deles lançou uma granada na direção da viela, detonando uma explosão que pôs abaixo uma das paredes do beco, levantando escombros e uma nuvem de poeira. Impassível, o russo assistia a tudo com as mãos nos bolsos. Coordenados, um dos mercenários adentrou a viela, por entre a fumaça, enquanto os outros dois avançavam lentamente, provendo cobertura. O atirador, mais atrás, avançou agachando-se atrás de uma pilha de tubos metálicos e apoiando o fuzil sobre ela. Sophia estava sendo vencida pela força dos dois, mas ainda resistia. No beco, um rastro de sangue denunciava o caminho tomado por Coil até uma esquina próxima. O mercenário sorriu com o resultado do explosivo. Avançou cauteloso até o limiar da curva, apoiando-se suavemente na parede, antes de fatiar e avançar. Foi apanhado de surpresa

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quando o braço metálico abriu um buraco no concreto, ao lado de sua cabeça, saindo até o cotovelo ficar exposto, sendo flexionado em seguida, o antebraço acertando sua testa, fraturando ossos e espalhando uma pasta de sangue e massa encefálica no reboco. Os outros dois abriram fogo, mas os projéteis foram incapazes de atravessar a parede e o cadáver, dando tempo ao corsário de recolher o braço e evadir-se mais uma vez. Coil sacou a Colt e deslizou até a parede desmoronada, disparando contra a dupla que havia avançado, eliminando-os. Correu até uma das pilhas de escombros, usando-a como cobertura. Ouviu os projéteis do atirador crivando o metal e o concreto. Aguardou, paciente, o momento em que seria necessário municiar novamente o fuzil e disparou, perfurando o rosto do mercenário, removendo-o do combate. Assustados, os dois que tentavam conter Sophia a largaram e dispararam contra o corsário. Coil esquivou-se, novamente se escondendo por trás do amontoado de tubos metálicos no qual se cobrira o primeiro atirador. Sophia aproveitou o momento e correu na direção do corsário, mas seus longos cabelos pretos foram seguros pelo russo, que a puxou de encontro a si, enquanto sacou de seu sobretudo um revólver Colt Peacemaker, disparando na direção de Coil que, por pouco, não foi atingido. Os mercenários atiravam contra o corsário sem dar espaço, alternando os períodos de recarga de forma sincronizada. Encurralado, Deckard rolou para o lado, usando o braço direito para se proteger dos disparos. Levantou-se dentro de outro beco, circundando os atiradores. Dois gárgulas mergulharam para cima do combate, cuspindo chumbo quente de suas bocas metálicas. Coil correu por entre as explosões,

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saltando pouco antes de ser incinerado. Pulou sobre uma mureta e disparou duas vezes, certeiro, eliminando os últimos mercenários, enquanto os gárgulas retomavam o voo. Tinha poucos segundos antes que os drones estivessem novamente aptos a lhe fuzilar. Aproveitou os segundos preciosos e avançou na direção do russo e de Sophia, desviando-se dos dois disparos efetuados em sua direção. Estacou quando ouviu o som das asas metálicas cortando o ar para um novo mergulho. — Parece que acabou, Coil. — o russo riu alto. — Pelo que eu contei, você só tem um tiro, e eu ainda tenho dois. — Só preciso de um, camarada. Coil arremessou a mala na direção dos gárgulas e disparou sua Colt, a munição trespassando o metal. A maleta explodiu em uma onda de choque vultuosa, engolfando os gárgulas em uma bola de fogo, enquanto o corsário investiu contra o russo, sendo atingido no ombro esquerdo e na coxa direita. Fechou a mão direita com força e desferiu um soco direto no rosto do homem loiro, atordoando-o. Sophia aproveitou o momento e, seguindo o corsário, correu para dentro do Legionário. O cruzador de batalha decolou, seus escudos sustentando os sucessivos impactos dos drones que tentavam lhe abater. Ganhou cada vez mais altura, até estar fora do alcance dos gárgulas. — Leo, curso de emergência trinta e dois. — arfou Coil, sentando-se na cabina. — Agora! A espaçonave distanciava-se, segura, atingindo a órbita de Ganimedes e, veloz, deixando o satélite gelado para trás. Deckard se reclinou na cadeira. Merda acontece mesmo, e os buracos de bala ainda iam doer bastante. Olhou para a garota, sentada no assento atrás de si. Sophia

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ofegava, valente. Tinha escoriações no rosto e nas mãos, e o encarava com ar de desafio. — Está inteira, garota? — Eu é que pergunto. — retrucou. Coil sorriu, dando-se por vencido. — Se não tivesse atrapalhado a mira do primeiro disparo, eu provavelmente estaria morto. Por que fez isso? — Se eles eram seus colegas e iam te matar, não quero imaginar o que fariam comigo. Como sabia da bomba na maleta? — Se eu fosse eles, também teria um plano B. Sophia o encarou, respirando fundo. — Pra onde vamos agora? — Neso. — suspirou. — Vamos descobrir que merda está acontecendo.

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omia uma baguete de ontem enquanto Elerian lia o rascunho final do que seria o segundo capítulo. Parecia desinteressada, coisa que raramente acontecia enquanto avaliava meus escritos. Pensamentos estranhos sobre terapia de casal rastejam para dentro de meus ouvidos. — Eu... eu não sei, baby — ela hesitou, roubando o pão e mordendo-o com ênfase. Continuou de boca cheia — Não sei se ficará claro para os leitores... — Muita coisa eu já escrevi no 3x2, você tem que considerar isso — rebati, roubando a baguete de volta. — Eu considero, mas estou pensando com a cabeça de um leitor sem essa bagagem prévia. Você sabe que seus livros são pop, muitos que leem têm, hã, pouco conhecimento, entende? Não foram todos que pararam para ler o 3x2... — Infelizmente terão que parar pra lê-lo — reorganizei as folhas do rascunho, do gel curativo à temporada de caça — A série não chama 4x2 à toa, é uma continuação do outro! O outro: 3x2 (2222, escrito por Sieff Minch — vulgo eu — e lançado pela Editora Haus), uma grande enciclopédia que contém toda a História do planeta Terra durante seus primeiros 222 anos de terceiro milênio, cobrindo a Terceira Guerra Mundial e a Primeira Guerra Espacial e todas as mudanças tecnológicas, culturais e socioeconômicas nesse período. Uma beleza de conteúdo muito bem condensado e prático, mas ainda assim são quase oitocentas páginas que cansam qualquer leitor casual. — E como pretende começar a terceira parte? — minha elfa per-

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guntou, roçando a grama verde que chamo de barba com os dedos longuíssimos. — Provavelmente vou falar de como a Guarda Central mudou depois do caso do Melker — começo, zapeando o televisor sem me fixar em canal algum — O clima ficou complicado em geral... ah, e tenho que falar do abrigo, não? Isso ficou em aberto... Será que já intercalo a Marie se prostituindo ou não? — Siga a história, baby. Foi na mesma época? — Foi. — Então sim. — Espero que não fique confuso. — Confio em você. — Jura? — Agora preciso jurar as coisas pro meu marido? Vai lá escrever, bobo! Georg fuma seu quarto cigarro da manhã enquanto lê as notícias do dia em seu hi-goggle. As lentes do aparelho mostram o improvável apocalipse zumbi na região da C17, perto da Fissura Morta e as passagens para colônias militares em Marte com preços ridiculamente pequenos (por culpa da suposta ameaça à Terra feita pelos marcianos¹). Nada de esportes ou cultura; nada de diversão. A mídia alternativa é assim em época de guerra (ao contrário das redes árticas que sempre fizeram de tudo para você acreditar que vive no Éden). O tempo está pesado em Nova Paris. Os atentados nucleares na América do Norte lançaram resíduos à atmosfera fragilizada, fazendo o

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clima ficar ainda mais quente e nocivo. A clientela de todos os estabelecimentos tem rareado com certo alarme por parte dos donos. O ruivo já não se monta há pelo menos quatro dias, os olhos fundos e esfumaçados, pensando no filho. Pensando em sair do Spaceboys, esquecer essa autoproclamada insanidade crossdresser, o ABBA e o Elton John em nome de uma família decente, em nome da religião ãni (pronuncia-se “anhí”) de sua esposa. Acaba o cigarro, abre o tubo, enche com mais fluido de fumo. Acende mais uma vez. Sua patroa está a muitas quadras dali, fazendo companhia aos habitantes do colorido bioma do abrigo. Os cabelos estão presos em um de seus clássicos coques, deixando cachinhos castanho-ruivos escapar por mero charme. A roupa é de briga, por mais lustrosa que seja, e ela ajuda um dos abrigados a retirar a pesada cômoda da frente de uma das portas de emergência. — Nenhuma passagem pode ficar obstruída — Lady manda, a pele alva enrubescendo com o esforço que faz questão de fazer — Não sabemos se eles têm ideia de onde o abrigo está, mas eles sabem que esse lugar existe. Disso para uma chacina é um, ó — estala os dedos ossudos — um nada. Todo mundo morre e nem termina de digerir o almoço. Escondido nos últimos (e praticamente inacessíveis) subsolos do Little Wonder — a outra boate do falido Império Starbuck —, o abrigo foi uma das poucas criações originais da Lady em vigência, pelo bem da comunidade dita herege pelos rasputinni. Isso inclui qualquer pessoa que desrespeite o Código de Conduta e Ideologia do grupo, o que na prática quer dizer:

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1. Não demonstre afeto publicamente; 2. Não apresente sinais de comportamento fora da natureza de seu sexo; 3. Não ingira alimentos nem bebidas enquanto em público (sem brincadeira, isso está no Código); 4. Não deixe o seu local de origem por motivos que não sejam estritamente governamentais, como exílios e adoção por perda de familiares em guerras, entre outras coisas que nem valem a menção. O abrigo, então, tem seus andares subterrâneos povoados pelo que seria a casta ameaçada de Nova Paris. Além dos crossdressers, homo e bissexuais, muitas famílias no que poderíamos chamar de padrão acabam na brincadeira, assim como meros casais que já sofreram abusos físicos por simplesmente estarem de mãos dadas em uma loja. É tudo apertado, lotado mas limpo. O medo faz com que suas centenas de residentes se mantenham inertes a maior parte de seus dias, vivendo às custas de sistemas de ciberdimensão em suas cápsulas-dormitório. Imagine um local branco e vazio. Imagine cômodos simplesmente repletos de gavetas, como necrotérios. Imagine pessoas que, de tão translúcidas e sinteticamente alimentadas, têm suas costelas, às vezes até o coração, visíveis por trás da pele. Imagine que essas pessoas estão virtualmente mortas para qualquer um na superfície. Alguns dizem que a Terceira Guerra nunca acabou. Esses mesmos dizem que nunca acabará. Lady desfaz o coque e apoia o braço magro na cômoda.

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— Chama a cúpula pra mim, Treese? — pede, os pulmões danificados se espremendo para o ar sair, as mãos desembaraçando os cabelos. O abrigado, então, secando o suor do esforço com a camisa xadrez que acaba de tirar, vai ao interfone principal do local e comunica o chamado com a voz grossa. Treese está ali por simplesmente ter sido flagrado com uma lata de refrigerante em público, mas nem por isso parece amargurado e foi apelidado de Caubói Feliz pelos outros residentes — por mais idiota que soe, tudo se explica quando você vê as sempre presentes camisas xadrezes e as botas em um tom lustroso de marrom. E o sorriso no rosto, claro. Demora pouco para que sete pessoas cansadas, ou a cúpula que mantém a ordem no abrigo, adentrem o recinto e se espalhem pelas bancadas estofadas. — Ondié que ‘tá a Stella? — A mais magricela, estressada mãe de gêmeos com má-formação cefálica, pergunta. — Cuidando do Spaceboys. Mas o que vou falar para vocês ele já sabe — Lady responde com calma, a calma necessária para que não acabe em um hospital. “É, Lilah, fica inventando de levantar peso...” — Primeiro tópico: Melker foi recentemente afastado da Guarda Central após o episódio com Marie. — Episódio... — pensa um homem careca, franzino, hostilizado pela Brigada Gris por sua homoafetividade. — Sua amnésia anda piorando, não é, Weat?² — Lady comenta, no que o careca aquiesce com lábios apertados — Quando a Marie sofreu uma tentativa de estupro do Melker, aquele guarda lá... Lembra? — É... não — Weat responde, derrotado.

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— Bem, então saiba agora. Acho que hoje mesmo ele vai passar pela redução, mas não tenho maiores informações. Segundo tópico... Segundo tópico: Segurança reforçada por toda Nova Paris. Com patrocínio do governo ártico, a própria Guarda Central está se equipando com maquinário cada vez mais independente de controle humano. A maior parte do corpo de vigilantes já foi substituída pelos Postos de Observação Rubbler R-19 e pelo menos uma dezena de voluntários se predispôs à instalação do Chipstatic, programa de monitoramento e controle de material orgânico, em seus próprios corpos. Isso sem contar os John-Smiths. Os braços de Melker são atados a uma maca de grafeno pelas mãos de dois Johns. Um terceiro, aos fundos da sala, opera uma parede recheada de operadores holográficos, vestindo um jaleco que cai nada bem em seu corpo travado pelas ligações metálicas. John-Smiths são meros humanos artificiais. Um híbrido de minerais com silicone e células-tronco multiplicadas ao infinito, são a nova moda em humanidade. Prevê-se um bilhão de Johns em meados do século XXVI, sendo que pouco mais de cem anos após essa marca a marca de 1,7 bilhão será alcançada por reprodução sexuada, assim finalmente substituindo a humanidade conhecida. Esse, senhoras e senhores, é o futuro: Máquinas que geram sexualmente outras máquinas. Há todas as vantagens possíveis em ser um John-Smith. Por exemplo, mesmo se debatendo, Melker não consegue se livrar dos híbridos por culpa de sua superforça. Além disso, os cálculos e movimentos do terceiro John no Operador da Câmara de Redução seriam feitos com

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pelo menos a metade da velocidade se por um sapiens qualquer. E eles já saem de fábrica com Chipstatics instalados, o que garante um comportamento muito mais obediente e dentro da lei. Mas a população não sabe disso. Todo mundo quer ter um John, seja funcionário, cônjuge ou filho. Eles são humanos perfeitos, a inteligência artificial que John McCarthy sempre quis. Essa talvez seja uma das últimas gerações com livre-arbítrio. E ninguém sabe o que acontecerá quando Johns controlarem Johns. Mas nenhum sapiens estará vivo até lá, então para que a preocupação, certo? Melker é colocado na câmara, e ali trancado. Os olhos incrivelmente humanos dos três híbridos se encontram, resina brilhando com resina. Ativar. O processo de redução é indolor e a alternativa mais eficiente de punição para qualquer crime. As superlotações de penitenciárias se tornaram um problema fútil com os avanços da citologia, que permitiram a nivelação dos aspectos da vida orgânica. Manipulações genéticas podem ser feitas quase em tempo real para transformar obesos em magros, ossos porosos nos de um jovem saudável, alimentos podres em uma reconstituição perfeita. E vice-versa. Então, em vez de manter criminosos por vinte anos em uma cela, sendo matéria morta em um espaço mal aproveitado, acelera-se artificialmente o envelhecimento celular, diminuindo o tempo de vida da pessoa em horas. Em adição a tal processo, pode ocorrer a inclusão deliberada de alguma doença se a pena assim designar.

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Não se passaram duzentos minutos e o ex-guarda já tem quinze anos de vida a menos. É retirado da câmara com cabelos grisalhos e com seus olhos artificiais danificados, brilhando pouco, 30% da visão. De 31 foi para 56, cálculo fácil e que o faz tossir afetadamente ao se levantar algemado da maca. Tosse até sangue sair pelas suas narinas. Cai desmaiado. Derrame. Bem, todo sistema tem seus bugs. Não há muito o que fazer nesse caso. — Você gosta do seu corpo, Marie? — Lady pergunta enquanto posiciona um vestidinho rendado à frente das curvas só de lingerie da morena. Câmbio de vestuário para o trabalho noturno: Esse era o nível de amizade delas. Para uma possessiva incorrigível como Lady Starbuck (algo que o próprio nome implica), isso quer dizer intimidade até demais. Mas, ela pensava desde o primeiro dia de Marie ali, ela é tão inocente... — Ah, num geral... — ela rodopia para a esquerda, apalpando a celulite que encontrava polvilhando a coxa e a nádega — Só sou um pouco, hã, exagerada, talvez. — Hoje em dia é raridade, você sabe — a outra comenta, olhando de relance para suas próprias pernas magras (ou pelo menos imaginando-as por baixo do vestido longo sem corte — A escassez de tudo ‘tá dando cria a um pessoal tão fininho... você é uma em um milhão. — Devo agradecer por isso? — Marie, rindo, sente o vestido proposto por Lady com as mãos sempre atentas. — Claro. Aliás, queria te propor algo — e Lady junta a peça a vários

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cabides jogados na cama da morena. Senta-se, o pescoço visivelmente tensionado e quase imóvel, e pede para que Marie se acomode na cama à frente. Esfrega uma mão na outra e pergunta — Você já pensou em se prostituir? — Oi? — os olhos se arregalam. — Isso mesmo qu’eu disse. — Mas... mas... — É importante em tempos de guerra, sabe? — Por quê? — É sempre bom tirar um dinheiro extra para, puf, sumir se a coisa apertar. E outra que você tem, hã, perfil para isso — e espia o corpo recheado da morena com olhos dóceis — Ficaria linda em cetim e renda. — Eu... eu não sei. — Bem, não tenho pressa para a resposta. Só quero que pense com carinho, tudo bem? — pisca, esquecendo toda a docilidade e apostando em qualquer chantagem maliciosa. Não deixaria a chance escapar. — É... tudo. Com mais um de seus beijos na testa, Lady se despede e volta ao já bem frequentado salão do Spaceboys (eram nove e meia de uma quinta-feira à noite, o show exclusivo das drags estava para começar, correria de saltos altos nos bastidores). Marie desenrola a alça de seu sutiã e, por curiosidade, puxa ambas as alças para cima. Estuda o movimento de seus seios de um modo diferente. De uma perspectiva diferente. De uma perspectiva masculina. Seus pais não ficariam orgulhosos dela, mas por acaso ela era orgulhosa de seus pais? Se fosse, não teria saído de casa aos dezesseis anos. Olha para o lume aberto no teto. Ela poderia

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ser quem quisesse ali naquele fim de mundo — isso porque todo lugar no mundo é o fim dele, já diriam os Schopenhauers e Nietzsches dessa nova geração. Teria tempo para se arrepender se aquilo não fosse sua vida. Aceitaria a proposta no dia seguinte. Enquanto se cobre com o vestido que há pouco estava à sua frente, pensa nas conversas que havia ouvido sobre a tal seita. Os rasputinni estraçalhariam uma prostituta imigrante como ela. Nem mesmo seus pais seriam capazes de reconhecê-la no Instituto Médico. Respirou fundo. A guerra está lá fora, não aqui. É uma questão de tempo para ter o dinheiro extra e, puf, sumir. Porque a coisa vai apertar.

¹ Desde 2137, no evento denominado Encontro Inter-racial (onde foi descoberta a raça marciana, que vivia subterraneamente desde sua concepção), marcianos e terráqueos convivem pacificamente (um milagre!) no território de Marte. No entanto, uma suposta conversa entre marcianos interceptou certa onda de rádio e foi traduzida como um plano para colonizar o Arquipélago do Caribe, o que tem criado tensão em ambos os planetas. ² Após os desastres químico-nucleares da Terceira Guerra que contaminaram muitas áreas subterrâneas e a própria atmosfera terrestre, dificilmente um ser vivo passava por um curso padrão de vida sem contrair o quádruplo de enfermidades que contrairia em condições normais. Atualmente, más-formações genéticas, como a dos gêmeos e a dos pulmões de Lady Starbuck, são mais comuns do que nascimentos normais.

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Quando Não Sabemos

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uando chegaram eram todas promessas de uma utopia. Nas primeiras semanas nos entregaram a cura da aids, do câncer, formularam a solução para o fim da fome e das guerras, findou o medo do horror nuclear e a insegurança do terrorismo. No primeiro mês tínhamos sido dominados. Ninguém sabe exatamente como aconteceu. Sabemos que eles foram melhores do que cada uma de nossas investidas. Os SEALS e os Marines caíram como moscas em volta deles. Os russos foram dizimados e os chineses completamente aniquilados. Sobreveio o caos. Durante meses nos escondemos nos cantos, nas pequenas cidades e vilas. Eles seguiram um padrão, tomaram as grandes cidades e capitais, e pareciam se importar pouco conosco. Rastejando no escuro, nos alimentamos de suprimentos roubados e pequenas esperanças, formando uma resistência, adotando modos de sobreviver. Tentamos, sim, tentamos diversas vezes posturas ofensivas, mas fomos derrotados em cada uma delas. Nunca vi e nem ouvi histórias sobre alguém que tenha sobrevivido a um contato com eles. Ninguém. Se você está lendo isso, soa clichê, mas eu não sobrevivi (aliás, puta clichê apontar o clichê). Sobreviva, filho. Sobreviva. Se esconda, fuja, não os enfrente. Você precisa sobreviver, continuar a espécie. Reze para que eles cansem e partam daqui. Senão, Deus me perdoe, estamos todos fodidos.”

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Alan acordou às quatro da manhã, sentou-se na cama e remexeu o papel dobrado e desgastado no bolso do jeans rasgado. Fitou as letras, sua prece de cada dia. Sobreviva. Fuja. Estamos todos fodidos. Assim era a vida depois que eles chegaram. Comer migalhas, chafurdar no lixo e mastigar, com sorte, ratos ou, se você fosse especialmente favorecido por Deus, um cão. Deus. Tá certo. Deus realmente não tinha nada a ver com isso. Antigamente nós achávamos que Deus morava no céu. Não mora. Só eles. Vieram em seus discos voadores. Que piada. Só podia ser piada. Mas era tudo verdade. Merda, tudo verdade. Pôs-se de pé e calçou os tênis All Star vermelhos de cano alto, passando por cima das outras seis pessoas que dormiam naquele cômodo. Foi na ponta dos pés para que ninguém acordasse, afinal, alguns ali tinham ido dormir fazia poucos minutos, na troca do turno de vigília. Entrou no banheiro, encostou a porta e acendeu a luz, lavando o rosto enquanto se fitava no espelho. Cacete. Outra espinha. Adolescência é isso aí. Mundo dominado, humanidade na merda, mas a porcaria da puberdade vem avassalando, com a pele oleosa e esses pontos de pus na cara. Que bonito. Um príncipe. Vestiu a camisa branca e a jaqueta de couro, puxando o capuz sobre a cabeça e saiu para o pátio. Aquele lugar tinha sido algum tipo de condomínio bacana antes deles chegarem. Os sobreviventes fizeram do lugar quase um forte. Cimentaram algumas portas e janelas, derrubaram paredes internas aumentando os cômodos. Estocaram comida, água, armas, munição, roupas. Grandes merdas. Estava tudo

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acabando e todo dia os coletores tinham que acordar cedo e andar por aí, pra catar as migalhas. O jovem passou pela guarita, cumprimentando os guardas, e saiu. Tirou a lanterna da mochila e prendeu na alça, pra iluminar e deixar as mãos livres. Escolheu uma direção a esmo e partiu. Desceu uma rua esburacada e cheia de mato pelos cantos, dando a volta em um furgão, velho conhecido, colado em um poste desde que Alan se conhecia por gente. Seguiu o caminho por quatro quarteirões, passando por lojas vazias, vidraças quebradas, uma ponte sobre um córrego. Na última vez que seguira naquela direção tinha explorado oito quadras, então decidiu avançar doze. Às nove da manhã já tinha saqueado uma farmácia, uma loja de conveniência e uma locadora de automóveis. A mochila pesava com remédios, esparadrapos e ataduras, comidas enlatadas e uma caixa de ferramentas. Trazia também uma chave-inglesa pendurada no cinto. Manhã produtiva, sem dúvida. Era ou não era a porcaria do melhor dos coletores, hein? Já estava voltando pra casa quando ouviu um barulho e correu para trás de um muro, na beira da estrada, tenso. Só podia estar ouvindo coisas. Só que, caralhos, não estava. Lá em cima, cortando o céu, o maior avião que Alan já tinha visto. Daqueles que os militares saltam de paraquedas. Não desgrudou os olhos do aeroplano nem por um segundo e viu quando lá de cima eles jogaram um grande contêiner, que desceu suave, seguro por (ora porras) dois paraquedas esverdeados do exército. Os militares ainda estavam vivos! Estavam jogando suprimentos!

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Uma vez por semana, nas oito semanas seguintes, a cena se repetia. O mesmo avião (ou seria outro?) jogava alimentos, roupas, remédios. Os coletores já ansiavam, a cada semana, pelo carregamento. Tinham tentado contato de rádio com os milicos, mas nada, sem resposta. Aventaram a possibilidade das comunicações estarem sendo interceptadas, ou pior, monitoradas. Desistiram. Achavam muito arriscado revelar sua posição para eles. Eles não os incomodavam no complexo, nunca incomodaram. Mas, pra que sinalizar, né? Com a barriga cheia, hidratados e bem cuidados, Alan achou notável como os ânimos melhoraram por ali. Cada um mais disposto, realizando mais tarefas. Item raro antes, chegou mesmo a ver sorrisos nos rostos. Humanidade é isso aí, seus invasores de merda. Sobrevivemos, nos adaptamos. Um dia vencemos, finalmente. Questão de tempo. Cada dia parecia mais suportável que o anterior, mais cheio de expectativa. As espinhas já secavam em seu rosto, e a menina loirinha mandava olhares e sinais. Deitou-se com ela na véspera da coleta, atrás do galpão de alimentos. Tinha a pele macia, branquinha, os mamilos duros, as coxas quentes. Porra, adeus virgindade! Dormiu de conchinha, falando pequenas besteiras no ouvido, entre sorrisos e selinhos. Só que no dia seguinte os militares não vieram. Nem no outro. Nem no outro. Nem na semana seguinte. Nem no mês seguinte. Veio, sim, a fome, o cansaço, o desespero. Primeiro morreram os sorrisos. Depois alguns idosos, pela falta de remédios, e então algumas crianças, por falta de comida. O trabalho dos coletores voltou a ser

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pesado, e a loirinha voltou a ficar distante, apática, adeus vuco atrás do galpão. Todos se perguntavam onde estariam os milicos, onde estariam os suprimentos. O medo crescente em cada fundo de mente, em cada boca do estômago, dentro dos corações. Teriam os militares sido vencidos de vez? Chegou o frio, o natal (quem raios ainda tinha um calendário?) e mais esperança, trazidas em uma manhã de neve, quando o barulho do avião voltou a ser ouvido nos céus e mais suprimentos foram derrubados. O furor no acampamento foi enorme. Uma expedição foi logo organizada e um grupo de doze coletores partiu em busca do presente dos céus. Nenhum voltou. Catatônicas, algumas pessoas passavam o dia inteiro olhando para os céus, ou sobre os muros, aguardando um retorno que fosse, os militares, ou mesmo eles vindo chaciná-los. Qualquer coisa seria melhor que a espera angustiante e interminável. Alan era um desses, em pé sobre a guarita, ou sentado sobre um dos telhados mais altos. O contêiner caíra na cidade grande mais próxima. Território deles. Por isso ninguém tinha voltado. Só podia ser isso. Alan acordou às quatro da manhã. Acordou? Tinha dormido? Levantou sem fazer barulho, sem acordar os outros, mas nem sabia se alguém estava dormindo de verdade. Calçou os tênis, vestiu camisa e jaqueta, pegou a mochila. Leu sua prece de cada dia. Fuja. Sobreviva. Estamos todos fodidos. Enquanto saía da segurança dos portões não acreditava no que estava fazendo, no que estava indo fazer. Ia con-

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trariar as palavras mais sábias que já tinha lido, os conselhos que o deixaram vivo durante todo esse tempo. Seguiu pela beira da estrada, devagar, fazendo a menor quantidade de barulho possível, se escondendo no meio do mato, atrás de carros, árvores, postes e muretas. Contornou um posto de gasolina e pôde ver, no horizonte, os prédios altos da cidade, um deserto de concreto e vidro se estendendo até onde a vista alcançava. Território deles. Só podia estar maluco. Hesitou antes de cada passo, respirando fundo e pesado. O cheiro da cidade invadiu suas narinas. Um cheiro azedo, podre, rançoso. Foi obrigado a parar e se apoiar num poste para vomitar. Que merda era aquilo? Que cheiro nojento. Pegou um lenço na mochila e amarrou sobre o rosto, mas não adiantou muito. Pelo menos não tinha mais nada no estômago para botar pra fora. Nos cantos das ruas viu muitos corpos. Podres. Parecia a merda do holocausto. Vomitou de novo. Porra, não tinha esvaziado o estômago? Atravessou um cruzamento de largas avenidas, centenas de carros batidos, quebrados e abandonados. Dois ou três ainda queimavam. Sobre um prédio alto circundado por uma escada de incêndio o rapaz viu o que viera buscar. A grande caixa de suprimentos. Ali, naquele terraço. Só precisava subir e pegar. Arrastou duas latas de lixo e tomou impulso, alcançando a borda da escada de incêndio e se agarrou firme, subindo com esforço os primeiros degraus. Tremia e se assustava cada vez que o metal rangia ou se entortava, enferrujado, cedendo perante um peso que há muito não sustentava. Ganhou confiança conforme ganhava altura, se

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aproximando cada vez mais do fim da escada e da borda do terraço. Estava quase lá. Era ou não era o coletor mais foda de todos? Foi aí que gelo correu pela sua espinha e ele estacou, os olhos arregalados, beirando as lágrimas. Ouvia um barulho que não entendia, logo acima da borda. Estalos, gemidos, um ou outro riso? Juntou toda coragem que ainda tinha para subir aqueles últimos cinco degraus. Tremia quando seus olhos conseguiram finalmente olhar na totalidade o que havia no terraço. Chorou. Como uma criança, soluçando. Merda. No terraço, enfileirados, estavam os doze coletores. Amarrados e amordaçados, se debatendo fracamente. Olhos arregalados em cada rosto. E de pé, ao lado do contêiner, dois deles. Eles. Deus. Eles existem. Caralho. Eles existem. São nojentos, asquerosos. Conseguem cheirar pior que a podridão das ruas. Estamos todos fodidos. Fuja. Sobreviva. Espera. São pequenos. Parecem fracos. Estão distraídos. Caralhos, não me notaram. Ocupados olhando pros coletores amarrados. Pegaram eles de surpresa, com certeza. Ninguém perderia pra esses mirrados. Eu posso libertar todo mundo. Porra, posso até matar esses dois. Alan subiu os últimos degraus, acocorando-se no terraço. Franziu o cenho, com medo, mas ainda confiante. Sacou do cinto a pesada chave-inglesa e a empunhou como um tacape, uma machadinha, a porra da última arma da humanidade contra esses invasores de merda. Viu, nos olhos dos coletores, a esperança quando o encararam. Eles sabem que eu vou salvá-los, sabem que eu vou vencer. Avançou

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na direção dos intrusos, golpeando um deles na parte de trás da cabeça (aquilo era uma cabeça?), fazendo um estalo forte, derrubando-o no chão enquanto uma gosma amarelo esverdeada subiu no ar, fedendo e se espalhando ao vento como um chafariz de merda. O outro se virou em sua direção e o atacou com uma garra enorme (ou seria uma arma? Ou um braço?), mas Alan desviou-se, atirando-se para o lado. Rolou na laje e se levantou, partindo pra cima de novo. Girou a chave mais uma vez, esmigalhando a testa da criatura (sim, definitivamente a testa), em mais um turbilhão daquele líquido viscoso. O garoto sorriu triunfal. Os coletores amarrados até sorriram, aliviados. Alguns choraram. A loirinha estava ali, também amordaçada, olhando para ele como se fosse a porra do Sir Galahad. Caralhos, era mais foda que a távola inteira. Ninguém nunca sobrevivera antes, mas ele sim. Caminhou na direção da menina, confiante, e retirou a mordaça, colando-lhe um beijo em seus lábios macios e úmidos. Livrou-a das amarras e das roupas, ignorando todo o resto ao redor. Saudade daqueles mamilos duros e das coxas macias. Ali, sobre a laje, tomou-a mais uma vez, fazendo amor como um desvairado. Durante todo o tempo os dois intrusos ali ficaram, observando o garoto copular com o cadáver da menina de cabelos loiros. O jovem tinha um sorriso no rosto, um sentimento deliciosamente heroico. Um turbilhão saboroso de emoções. Altruísmo. Ego. Esperança. Júbilo. Cada emoção mais apetitosa. Os dois trocaram olhares, sorrin-

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do, se é que eram capazes de tal feito, deliciando-se nas juras de amor trocadas entre Alan e o cadáver. Eram aquelas pequenas vitórias que lhes davam a certeza de valer à pena. Cada invasão, cada viagem longa e extenuante. Cada delicioso sentimento. Valia o esforço de manter alguns vivos e alimentados. Dar-lhes recursos, esperanças e sonhos. Ali, como em tantos outros tempos e lugares, tudo se repetia e os recompensava. Gozavam o controle absoluto. O maior laboratório, ou curral, que já tiveram. A melhor forma de nos controlar é quando não sabemos. Fuja. Sobreviva. Estamos todos fodidos.

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Para entender um pouco dessa Fábula de Terror, Ficção Científica, Drama, Nostalgia Juvenil e homenagem cinematográfica, é preciso dividir o filme em camadas. Entretanto deixo claro que esta vai ser uma missão difícil, pois é tudo bem conectado por J.J. Abrams.

“— Sei que coisas ruins aconteceram. — Coisas ruins acontecem. — Mais ainda podemos viver.”

Logo que começamos somos apresentados a cena de um velório, que vai nos inserir ao subgênero de drama que vai permear e justificar toda a história e relação dos personagens. Neste ponto, mais do que um roteiro eficiente, que justifique as relações entre os personagens, dando-lhes motivações para suas ações. Vemos a construção de personagens neutras, confusas, que muitas vezes podem ser entendidas erroneamente como personagens fracas. No entanto essa escolha é positiva, e vem demonstrar o que aconteceu com cada personagem, ou o período de vida que ele vive, é um mundo sendo abalado por todos os lados, desde conflitos familiares a problemas de segurança nacional, tudo justifica a insanidade e a apatia destes personagens. Porém, em algum momento isso muda, a existência dos problemas faz com que todos repensem essas relações e mudem drasticamente suas ações de uma hora para a outra, não por conveniência, mas por instinto de sobrevivência. Neste ponto tenho que elogiar J.J. Abrams que soube

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utilizar-se dos problemas para que nada ficasse artificial. Entretanto, realmente algumas mudanças irritam e alguns esteriotipos não encaixam, a velha irmã patricinha que só quer ir a uma festa está lá, e o “bixo grilo” da cidade também. Mas nada que estrague a obra, apenas detalhes que tem que estar lá para justificar outro ponto da história no qual entrarei agora.

“— Eu faço” Super 8, é um grande amontoado de homenagens aos diversos garotos que motivados pelo inovador formato da Kodak começaram a produzir seus próprios filmes caseiros. E é isto, Charlie (Riley Griffiths) tal qual um mini Hitchcock, ou Orson Welles, está obcecado por fazer o filme perfeito, no seu caso um filme perfeito de Zumbis. Para isso escreve e reescreve roteiros para seus amigos, estudando constantemente o limite para sua capacidade criativa, e cobrando todos em seu máximo. Enquanto isso seus amigos fazem uma equipe técnica quase perfeita. Joe (Joel Courtney) é o maquiador e técnico de efeitos especiais, Cary (Ryan Lee) é o técnico de explosões e atua como um dos zumbis, Martin (Gabriel Basso) é o protagonista do filme e Preston (Zach Mills) faz as pontas de coadjuvante enquanto ajuda na filmagem. Só que falta uma coisa no roteiro para que esse filme seja sucesso, e Charlie encontra a solução em uma revista, é ai que entra a personagem Alice (Ellen Fanning). E é com ela que teremos os efeitos de fotografia que mais ressaltam o respeito pelo cinema de J.J. Abrams.

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Em sua primeira cena ao contracenar, com Martin, ela é envolta numa penumbra de luz diferente, um efeito que ressalta a qualidade de sua atuação e a surpresa dos garotos, mas que também serve para demonstrar o respeito de Abrams, pelo cinema. Logo depois de aceitar, participar do filme novamente, ela é protegida pelo vidro, que num enquadramento quase perfeito, faz lembrar a película de um filme de 8mm, agora numa homenagem ao formato que dá nome ao filme. Além das homenagens aos cargos e elementos que suportam o filme, temos também as homenagem aos gêneros que se consagraram entre o publico de filmes B, ficção científica e terror.

“ — Esperem, então as pessoas estão virando zumbis por causa do acidente químico, certo? — Não sei como o cara que faz o papel de detetive Hathaway pode perguntar de onde os zumbis estão vindo.” Quando a ótica do filme sai do drama e parte para o terror ele tem o seu grande acerto, antes disso a história é apenas uma nostalgia do cinema amador da época, a história de um garoto e de uma família com um trauma rodeado de fatos que nem ele mesmo entende. Mas a partir dessa mudança, o filme ganha forma, com um terror focado no extremo oposto do terror que permeia o filme dos meninos. Enquanto nele se valoriza a demonstração do horrendo, neste momento Abrams tem a genialidade de mostrar o outro lado do terror feito na

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época, o terror do mistério. Já quando notamos a parte de ficção científica, marcada principalmente pelo aparecimento do exército e a subtrama do Delegado Jackson, um contraste é notado, ali se força no exagero, tudo é fantástico. Um detalhe muito importante dessa parte são os arquétipos desenvolvidos. O Pai para demonstrar sua autoridade, e também para se relacionar a trama como um todo acaba por ser um delegado, é um clichê que encaixa bem na história explicando inúmeros fatos e gerando inúmeras boas oportunidades de tensão Temos também Overmeyer, um professor respeitado, porém que não estabelece vínculos com seus alunos, desenvolvendo um passado e gerando diversos porquês. Porém, neste personagem a um erro crucial, seu aparecimento na história de uma forma extremamente oportuna, gera uma das cenas que mais desafia a credibilidade do filme. Outro arquétipo desenvolvido de forma interessante, mas que fica no pano de fundo é a falecida mãe, pessoa querida por todos, é ela que conecta toda a trama. E seu reflexo se faz numa das cenas mais bonitas do filme, é um personagem que atua maravilhosamente bem para a trama sem nem mesmo efetivamente aparecer no filme. Em contraponto a estes bons arquétipos temos Nelec, ele não irrita por ser um usual clichê, este é um filme onde os clichês se inserem de uma forma perfeita. O que irrita nesse personagem é a falta de motivação, seu pouco desenvolvimento para ser um vilão tão importante, e seu apagamento instantâneo e também sem motivo. Combinando este estilo cinematográfico com arquétipos clichês desse filme, consegue-se uma gama de resultados agradáveis no fim, e

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porque não tomar os exageros que nos irritam, como também uma referência aos exageros do cinema dessa época?

“— Soube que ela foi completamente esmagada. — Vigas de aço pesam uma tonelada, literalmente. — Não sei como vocês podem comer. — Prove o peru, e saberá.”

O filme todo é permeado por um senso de juventude, cada personagem passa isso, esse sentimento de que estou num passado do qual sinto saudade, mesmo nessa situação tão estranha e problemática. Somos levados de volta ao mundo de E.T. a um mundo ficcional onde queremos viver, e onde nossa imaginação já residiu. É assim que Abrams usa a nostalgia, trabalha ao seu modo cada elemento, mas mantém a essência do sentimento que temos ao ver um filme, de George Lucas, Spielberg ou outro qualquer diretor que fez história entre os anos 80 e 90. E existe ali, um pouco do “Moonrise Kingdom” de Wes Anderson também, impossível não comparar o amor puro e proibido que nasce entre Joe e Alice, com o que acontece com os personagens de Anderson. Os elementos de Cult entram bem no desenvolvimento dos personagens juvenis, lembra também à transição que o cinema tem passado nos últimos tempos, e o enquadramento, fotografia e a trilha sonora só ressaltam essa escolha de Abrams. Mas a parte realmente interessante do núcleo juvenil e que lembra

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a nostalgia de ser jovem, não é nada técnico, são os conflitos que eles passam apesar de tudo que vive a volta deles, a capacidade de ignorar o mundo todo e viver para si que só um adolescente tem. Esse egoísmo praticado por Charles, Joe, Alice, Preston, Martin e Cary de viver sua aventura independente da opinião ou ação dos mais velhos, e dos problemas que os cercam faz do filme uma fábula. Faz com que paremos e coloquemos por um instante a observação de o quanto nos inserimos e deixamos de fazer o que amamos pelos outros, até o nosso amadurecimento. Tem o selo Pulp Feek (e o da AMBLIN também) Assim com contraste e combinação desses vários elementos Spielberg e Abrams produzem um filme capaz de agradar o publico, e também de alimentar a ânsia de quem quer procurar detalhes e profundidade. Só peca mesmo nas relações forçadas, ou um excesso de carga emocional em seu final, mas tudo isso é relevante se observarmos o filme como um todo. E no fim essa fábula de nostalgia e técnica ressalta apenas uma coisa que Abrams ama esse cinema como ele mostra para nós, com as técnicas que ele demonstra. Então mais importante do que analisar todos estes elementos de construção é analisar quem é o diretor, e quem estava com ele no projeto. Só assim é possível entender a grandiosidade disso tudo e o quanto é importante para o diretor que amemos isso. É um filme para não ver com olhos de crítico por um primeiro momen-

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to, um filme que é importante ver com olhos de apaixonado pelo cinema, só então, depois de ver com estes olhos, é possível fazer qualquer análise real do filme. Uma pena que a baixa bilheteria, e as críticas negativas, talvez possam ter desmotivado o diretor de fazer mais filmes como esse, ele teria muito potencial nessa área.

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Como Escrever Sobre

Rafael Marx

A coluna de hoje é um pequeno conto demonstrando ferramentas para se criar um gancho na história. Os diálogos e personagens apresentados são descritos de forma breve, mas curiosa, e muitos elementos são apresentados como simples descrição, mas podem ser usados como ponto de partida de um cenário. Tortuga era uma terra maldita. Muitas carreiras promissoras na pirataria começavam ali. Outras se encerravam, com um tiro entre os olhos. Nenhum beco era seguro, e era melhor dormir nas estalagens com uma faca nos dentes, para se proteger de invasores e de colegas de tripulação propensos ao furto. De fato, muitas das estalagens ofereciam o aluguel de baús emprestados e cimentados ao chão para que os visitantes do porto livre pudessem guardar seus pertences valiosos. Esses baús eram solenemente ignorados pelos mais experientes, que sabiam que seus locatários tinham cópias das chaves para eles mesmos subtraírem os pertences dos locadores. Fosse o que fosse, Tortuga não era um lugar para tolos. Mas era um lugar para crentes. Muitas lendas se espalhavam sobre uns e outros piratas, muitas alimentadas pelos próprios. Falava-se que os dentes de Abdul Al’Ghin eram de ouro pois ele tivera seus dentes arrancados quando era um marujo-escravo dos traficantes de bebida nos Mares da Índia. Diziam que Vishant, o Eunuco, tinha poderes de regeneração, e um marujo jurava ter visto o capitão do Prazeres do Mar crescer um dedo instantes depois de perde-lo num golpe de uma espada inimiga. Dizia-se muita coisa, pois piratas em terra são como velhas entediadas, apenas trocando as agulhas de crochê pelo rum, mas manten-

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Como Escrever Sobre

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do-se a vontade de dizer o que não se devia, sobre quem não se devia, e da maneira mais estúpida. Mas poucas pessoas tinham tantas lendas sobre si próprio quanto William Ganther, conhecido pelos mares como Bill Mão de Ferro. A origem do apelido era nada menos do que sua mão esquerda, que inexistia. Em seu lugar se encontrava um gancho de aço de Toledo, que sempre se encontrava encoberto por uma tira de couro que o capitão do Rasga-Mares se ocupava todos os dias em prender todas as manhãs. A primeira coisa que se sabia sobre o capitão Mão de Ferro ao se perguntar por ele no porto livre era que ele podia ser encontrado a qualquer hora adormecido de tão embriagado sobre uma mesa de canto do Tripa da Donzela, estalagem que, de fato, lhe pertencia. Essa não era uma lenda, mas um fato, e era nesse exato ponto que ele se encontrava, acompanhado de sua tripulação, naquela tarde vazia de um sábado sagrado de Páscoa. Um dos tripulantes do Rasga-Mares era o jovem e recém-ingressado no mundo da pirataria Harry Pé de Chumbo. Harry procurara a um ano Felipe Espanhol para ingressar em sua tripulação, mas quando da morte deste nas mãos de Ganther havia se oferecido para mudar de lado. Apenas começava a conhecer o capitão da Mão de Ferro naquele dia, e prestava muita atenção nas velhas histórias dos outros não tão velhos colegas bucaneiros. Mestre Steve contava a história do dia que vira uma sereia em alto mar, que todos, inclusive o novato, já tinham ouvido pelo menos quatro vezes, e todos gargalhavam com a cena em que Steve ficava dependurado do lado de fora do navio que tripulava, preso pelo pé na corda salvadora que o impediu de se afogar no mar pela beleza da

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voz da criatura. Harry então achou por bem levantar uma dúvida que tinha, em voz alta. — E como o capitão perdeu a mão esquerda? As risadas cessaram, todos se calando e observando o velho capitão, ainda com a cara fincada na madeira de sua mesa favorita, roncando alto. — Não se sabe ao certo. — Quem começou a responder, quando se constatou que o capitão dormia, fora o próprio Mestre Steve. — Mas ouvi dizer que no princípio de sua vida de pirata ele se apaixonou pela amante de seu capitão, e ela por ele. Um dia, ao estar na cama com sua musa, Bill foi surpreendido pelo resto da tripulação do navio, que o levaram para fora do quarto, onde o capitão cortou sua mão. — Não! — Era IdrisGalaghar, o indiano que servia de navegador no Rasga-Mares. — Ouvi uma história ainda mais macabra e terrível, sobre o dia em que o capitão se encontrou com o diabo em pessoa. Vendo uma oportunidade, ele deu sua mão como entrada numa negociação por uma vida cheia de prazeres e luxos. A última parcela será sua alma, quando da sua morte. Dizem, entretanto que o demônio não cumpriu com sua parte, e esse é o motivo do capitão treinar com espadas todos os dias de sua vida. Ele planeja desafiar o negociante de almas para recuperar sua própria. — Nada disso. — Dessa vez a voz pertencia a Billy Balofo, o tripulante que a mais tempo acompanhava o capitão, mas que ele próprio não era na tripulação origina do navio. — Os tripulantes mais antigos diziam que ele deu a própria mão para um fabricante de amuletos que possuía o Rasga-Mares antes dele. Foi uma troca para que pudesse se tornar capitão.

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— Quanta baboseira. Todos se calaram. O capitão despertará. Provavelmente ouvira as histórias. O ar ficou pesado. Ele caminhou, os saltos da bota soando audíveis pelo chão de madeira, até próximo do novato Harry. — Minha mão foi cortada em combate, quando eu era um tripulante do capitão David Killigan em seu Senhora dos Ventos. Um marujo da Companhia das Novas Índias Ocidentais me tirou a mão com um cutelo, e eu lhe tirei as tripas com meu sabre. Uma vez quase caí do navio e o gancho não me segurou nas cordas, por isso amarro couro nele, exceto na ponta. — Dizendo isso, fincou a ponta do gancho na madeira. — A ponta eu uso para rasgar os inimigos. AGORA SAIAM! Todos os tripulantes deixaram a velha estalagem do capitão a galope. Nem mesmo o velho balconista Larry Caolho ficou presente. Mão de Ferro também recebera o apelido graças as punições que dava aos insolentes, apenas por diversão. Quando se viu sozinho no salão, Bill procurou mais uma garrafa de rum, tirando a rolha com os dentes. Se sentou em sua mesa, com o copo cheio à frente. Pôs-se então a retirar a tira de couro de seu gancho. Conforme o couro revelava a peça, revelavam-se as fissuras em forma de língua antiga talhadas no metal. — Um acordo de sangue. — Explanou o capitão, solitário, enquanto fincava o gancho em seu próprio braço direito, deixando o sangue escorrer para as fissuras. — Mas um trato é um trato.

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