“Enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual...” Assim começa a música do saudoso Maluco Beleza Raul Seixas, e foi assim que pensamos esta revista. Não procuramos apenas qualidade, procuramos excentricidade, procuramos ser diferentes de tudo que você vê por ai. Nos destacar pela nossa loucura, loucura e amor pelo nosso trabalho, pela capacidade de pensar e trabalhar de um modo diferente. Chegamos até aqui, e sempre a cada revista, a cada edição, nos perguntamos, e agora? Para onde iremos? A resposta está bem diante dos nossos olhos, queremos ser vistos, queremos ser lidos cada vez mais, e melhorar a nossa qualidade. Para isso dependemos de “feedback”, dependemos da sua colaboração divulgando nosso trabalho. Desse lado estaremos sempre fazendo o melhor, temos os melhores malucos para isso, loucos de todos os modos, os mais sérios, os mais soltos, os mais “workaholics” e claro os simplesmente loucos. Nesta semana os malucos da vez são três, temos o André, com seu One -shot e a Amanda e o Philippe com suas respectivas séries, todos eles guiados pelo seu editor Diogo. Faça justiça, cada editor aqui é um guia para estes loucos, Eric, Diogo, Luiz e João, cada qual em sua semana, dão seus pitacos e se metem profundamente na vida de cada um, tentando se tornar amigos para poder tocar profundamente nas obras de seus instruídos. Porém, cada escritor também tem seu potencial, sua insanidade é apreciada por nós, amamos cada ponto dela, e cada um que aqui passa, é bem recebido. Gostaria de esclarecer, que estamos abrindo vagas, e processando os e-mails, e que tudo ao seu tempo será respondido. Aos interessados nossa portas estão abertas basta entrar no feeek@ outlook.com e falar com a gente e em breve nos o responderemos. A você que nos lê a primeira vez, seja bem vindo, este é o mundo de Pulp, aproveite-o.
PULP FEEK - #11 Séries
O Dom das Sombras - com um olhar vazio Anna finalmente parece encontrar a luz no fim do Túnel, ou será essa luz apenas mais um foco de escuridão, o final do arco dessa história com Philippe Avellar. ----------------- Pág 3 Lúcia: O Destino Corra de encontro à atraente escuridão com Lúcia em mais um capítulo da série de Amanda Ferrairo.------------------------------------- Pág 15
One-Shot
Delírio - set/2010: As questões familiares são um grande aborrecimento, conheça as questões profundas da mente de um homem que vive sua vida a seu modo com André Caniato. ------------------------------------------------------------------
Extra
Fonte de Inspiração: Entenda a construção de Poderoso Chefão, um clássico do cinema, através de sua origem literária com nosso colunista Lucas Rueles. ---- Pág 33
Como escrever sobre: Conheça o grande teatrólogo Shakespeare, que até hoje inspira gerações e entenda como criar paralelos com um dos autores mais populares da história com Rafael Marx.--------------------------------------- Pág 41 Na próxima semana: Mantenha a calma e continue a série Sob(re) Controle de Thiago Geth Sgobero Continue a acompanha a história no fantastico mundo steampunk de Rafero Olivera na Imperatriz de Ferro. Aproveite também para ler a coluna de nossos editores-chefe e muito mais.
O Dom das Sombras - Com Um Olhar Vazio
–V
Philippe Avellar
ocê está com uma cara péssima! Aconteceu alguma coisa? É claro que sim. As últimas três noites foram sessões de tortura, flutuando entre uma insônia galopante e pesadelos com imagens de chamas, mortos e olhos, ora desesperados, ora vazios como cavernas, e os dias se resumiram a viagens entre sua casa e o escritório, em geral sob um temporal. Viu um homem morto, outro morrer, e um que parecia a própria morte, na mesma noite. Sua vontade era a de gritar tudo isso para exorcizar seus fantasmas, mas Anna já estava acostumada a lidar com suas tempestades, deixando escapar menos que um conta-gotas. — Está tudo bem, Daniel. Estou gripada, e este tempo não ajuda em nada. — Ela respondeu ao homem pequeno e rosado ao lado de sua mesa. Sabia que suas intenções eram boas e amigáveis, embora sua atitude tenha se adocicado bastante depois que ela cedeu ao colega seu último trabalho. Após a fuga da cena hedionda junto ao alojamento de Andru, Anna dirigiu-se à redação antes de ir para casa, pois esta ficava mais próxima, e queria ver-se livre de tudo aquilo o quanto antes. Senhor Cust ficou muito satisfeito com sua boa cobertura do incidente envolvendo o corpo de Cid Hansen, e das novas informações que colhera sobre o caso de Andru. Era uma pena que ela tivesse saído do local pouco antes de um novo e fascinante caso ocorrer por lá; a notícia ainda estava fresca, e poderia fechar com chave de ouro seu último trabalho. “Sinto muito, mas não me sinto nada bem.” Dissera ela na ocasião. Cust notou pela primeira vez a tez pálida, a respiração controlada e o suor que rebrilhava no rosto de sua repórter.
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Philippe Avellar
“É uma pena.” disse, apenas. “Deixe Daniel cuidar disso. Posso dar a localização para ele. Está na redação há um bocado de tempo, mas ainda é tratado como novato. Trabalharei aqui, fora de campo, por alguns dias.” “Faça como quiser. Isto aqui lhe dá este direito.” Respondeu o patrão, com suas anotações nas mãos. Mas Daniel não se provou tão à altura da tarefa. Sua matéria foi fraca, e coube a Anna revisar as atrocidades gramaticais escritas por ele. Mesmo assim, o colega se viu forçado a cobri-la com toda a sua gratidão. — Gostaria que eu trouxesse um café? — ele ofereceu, seus olhos verdes muito claros estampando simpatia. Anna sempre pensava que tinham a cor de um chá aguado demais. Ela acabou cedendo, permitindo-se relaxar ao menos um pouco. — Sim, por favor. O fim do dia transcorreu tedioso e seguro na redação, e a noite avançou lentamente. Anna viu colegas alternarem seus turnos, enquanto atrasava cada vez mais seu próprio horário de partir. Ao fim, até Daniel, que tentara lhe fazer companhia, despediu-se pegando sua capa de chuva. Quando percebeu que estava arrumando os lápis por tamanho e a cor das canetas, Anna percebeu que já devia ter ido embora. Pegou suas coisas, seu casaco ainda úmido e seu chapéu, e saiu sozinha descendo as escadas, sem se despedir de ninguém. As ruas estavam desertas e os sons eram abafados pela chuva fina, que também tamborilou no teto do trem até que parasse completamente, pouco antes de chegar à estação de Anna. Na porta da estação alguém
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parecia esperá-la. Como ele me achou?! A jornalista sentiu como se seu sangue congelasse e corresse em sua veia como pequenas pedrinhas. Os cabelos loiros e a grande estatura eram fáceis de distinguir, mesmo à distância. Os olhos que ela sabia serem cinzentos fuzilaram-na antes que pudesse se esconder. Anna correu desabalada para a saída lateral da estação, grata por usar botas baixas e não sapatos de salto. Não havia ninguém a quem gritar por ajuda, e o trem já partia ruidosamente rumo à próxima estação. O chão era escorregadio sob suas solas. Seus pés não chegaram a tocar três vezes a calçada molhada antes que uma mão pesada caísse sobre seu ombro. O estranho dera a volta na esquina tão rápido quanto ela seguira em linha reta. — Eu não fiz nada! — ela sufocou um grito, girando o corpo para livrar-se da mão e batendo no braço do homem alto com sua bolsa. — Não me meti mais, como você mandou! — Eu sei. — ele respondeu com uma voz grave, e para surpresa de Anna, não se lançou novamente para ela. — Então por que está atrás de mim? — Porque outro também está. — Você irá me matar? — Não há necessidade. — ele respondeu, os olhos frios e escuros. A ideia de viver ou morrer de acordo com a conveniência dos outros fez Anna apertar sua bolsa até os dedos doerem. — Então me deixe em paz. Não vou contar a ninguém o que fez com Cid e Ton. Eu prometo.
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— Não fiz nada com Cid e Ton. Meu alvo é Andru. E não falharei de novo. — Andru...? — Anna lembrou-se das fotos do jovem desfigurado e inchado que fora retirado do rio. — Foi ele quem matou os dois. E quem quer que esteja com ele. — Ele já está... — Morto? — pela primeira vez a expressão do homem se alterou, quando ergueu ligeiramente uma sobrancelha — Ainda não. Por pouco tempo. — Você é louco! — Anna gritou, amedrontada e confusa. — Você é esperto... — disse outra voz, um pouco trêmula. Uma figura saiu de uma estreita viela, trazendo nas mãos uma barra de metal enferrujada. Seu corpo parecia um pouco deformado e mancava ao andar, mas seus movimentos eram anormalmente ágeis. — Mas miolos espertos não ficam tão bem na calçada. — A figura completou, antes de girar a barra de ferro na direção da cabeça do homem. Ele esquivou-se a tempo de proteger o rosto, mas recebeu toda a carga da pancada sobre o braço esquerdo, sendo lançado ao chão. Anna aproveitou a comoção para tentar correr, mas a silhueta manca prendeu -a em braços fortes como correntes. — Ele me pediu para pegá-la! Aquele que me corrói por dentro... — Me solte! Largue! — Anna se debateu, mas conseguiu no máximo virar-se um pouco, encarando a lateral do rosto de seu captor. Apesar de ter na memória apenas as imagens fotográficas, era possível reconhecê-lo. No lugar do enorme buraco na cabeça, havia ainda um
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grande ferimento que parecia fechar aos poucos, e quase não lhe restara qualquer cabelo. Somente um dos olhos parecia intacto, brilhando com uma mistura de loucura e pavor. Um ruído atrás deles fez com Andru se virasse com um tranco, tirando Anna do chão. O loiro parecia querer se levantar. Depois de um momento de dúvida, o captor começou a fugir com sua refém, sacolejando-a com seus passos trôpegos e rápidos demais. Anna viu-se sendo conduzida por inúmeras vielas sombrias e estreitas. Tentou gritar várias vezes, mas Andru forçou seu rosto contra o peito, abafando sua boca com a camisa imunda que usava. Seus passos espalhavam água e lama que cobriam suas pernas cobertas por farrapos. Após vários segundos, viu que alguém os acompanhava, sua sombra dançando perto deles por alguns instantes. Seu captor fez uma curva brusca, atravessando uma avenida e entrando e outra viela, somente para ser surpreendido pela silhueta alta um pouco mais adiante. Com mais um tranco, virou à esquerda, mas se viu preso em um beco com lojas miseráveis e abandonadas, paredes descascadas altas demais e pontilhadas por janelas quebradas ou cobertas por tábuas. Com mais um tranco, voltou seu corpo para o loiro que entrava lentamente, enquanto Anna sentia-se jogada como uma saca o tempo todo. — Espere, Andru. — o homem disse com uma voz calma e fria. — Eu entendo o que fez com Cid e Ton. E até o que tentou fazer consigo mesmo. Os braços ao redor de Anna começaram a tremer e a comprimi-la com mais força. Com a cabeça presa de lado, acompanhava o reflexo de Andru e do loiro na grande vitrine vazia da loja mais próxima.
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— Foram eles que fizeram isso! Eu nunca quis! Foi ideia deles! — a voz rouca soava desesperada, e o olho intacto parecia um pouco mais lúcido, e furioso. — E foi comigo que aconteceu! Foi a mim que ele quis! E então ELES FUGIRAM! — O tom elevou, rascante, ecoando no beco vazio. — Não quiseram me ajudar! E eu fiquei sozinho com ele TODO O TEMPO! — Eles já estão mortos. — Eu mataria mil vezes cada um se pudesse! — a acusação acompanhou uma cusparada no chão. — Se sua vingança já está realizada, deixe-a fora disso. — Mas não está realizada! Ainda sou um monstro! E não tenho nem o direito de morrer! — Deixe-a ir, e conversaremos sobre isso. — o nobre insistiu, erguendo a mão na direção de Andru, o que o fez apertar Anna com tal força que temia começar a sufocar. — Ele a quer! E se eu der, talvez ele me deixe em paz! Ele prometeu que deixaria! — mais uma vez a mente do raptor parecia se nublar com uma névoa de loucura, e sua boca se escancarou em um sorriso ingênuo, muito estranho naquele rosto deformado, e onde faltavam alguns dentes. — Quem a quer e por que razão? — o tom de voz do nobre ganhou um novo peso. Anna sentiu o corpo de Andru se tensionar completamente, como se recebesse uma descarga elétrica. Seus músculos se enrijeceram e seus tendões saltaram como se fossem as cordas de uma marionete, manipuladas por outra pessoa.
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Mas o mais medonho era seu reflexo no espelho. Pois sobre a imagem de sua face rígida e de seu olho que rodava em pânico para todos os lados, parecia dançar a imagem de outro alguém, um duplo às vezes indistinto como uma sombra, outras claras o bastante para formar os traços de um rosto cruel e monstruoso, de olhos brilhantes como estrelas. — Porque ela é a protegida de um velho conhecido meu... — a voz que saiu dos lábios de Andru parecia o raspar de duas peças de metal, e seu rosto se movia de forma anormal, como se alguém o manipulasse a força com as mãos. Era terrível sua semelhança com um boneco feio e apavorado. Anna não pôde acreditar quando o loiro lhe abriu um sorriso, embora fosse tão gelado quanto todo o resto que vinha dele. Discutiam sobre ela como se não estivesse ali. — Ora, e ela é tão importante que merece uma visita pessoal às nossas terras? — Importância? Nenhuma. — a voz da sombra pingava de Andru como veneno. — Há muito tempo não vinha aqui, e encontrei a oportunidade. E admito que sempre estive curioso para saber o que esta mocinha tinha... para despertar o interesse de meu colega. — E o que pretende fazer com ela? — o nobre perguntou, talvez porque apenas quisesse ouvi-lo em voz alta. Como se não estivesse claro o bastante. Ainda assim a resposta fez algo se mover dentro da jovem. Eu não posso morrer agora... — Matá-la, claro. Ou levá-la comigo... para que sufoque no abismo
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até seu último instante. Porque quero atingi-lo... — Por quê? Não por causa... A sombra ao redor de Andru parecia sorrir. — Porque eu o odeio. ...Dele!
*** Por muito tempo o grito reverberou pelo beco, fazendo o vidro tremer em suas molduras. Agora o silêncio era absoluto. O casaco de Anna empapava-se de sangue pouco a pouco, com seu calor e o forte cheiro metálico. O nobre empurrou para longe dela o corpo de Andru, que caiu pesadamente no chão. Tirou seu próprio casaco longo e forrado, tirando o outro imundo do corpo da jornalista. A troca foi feita sem que ela se movesse, um manequim que estava somente vagamente consciente das mãos que a percorreram polidamente, procurando por qualquer ferimento. Não havia nenhum. Depois de respirar muitas vezes, a primeira coisa que perguntou foi: — Tem certeza de que ele está morto? Ele parece voltar com frequência. — Não se você o mata com a coisa certa. — ele respondeu, guardando algo que brilhava prateado em um estojo de couro na lateral da
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calça. — Não há chance de ele reaparecer? — Por um bom tempo. Como se estivesse em um sonho, Anna voltou-se para vislumbrar o corpo de Andru, mas não suportou fazê-lo por muito tempo. Estava irreconhecível. E parecia ter um vago sorriso nos lábios. Aconchegando-se dentro do casaco grande demais pare ela, Anna tentou reunir os pensamentos, que pareciam flutuar em um lago gelado para longe de seu alcance. — O que ele era? — Você deve saber. — Ele respondeu, objetivo. Era quase verdade. — Mas talvez seja melhor pensar nisso em outra hora. Alguém pode tê -la ouvido, e venha investigar. Um arrepio percorreu a coluna de Anna mesmo sob as roupas grossas. — O que foi que eu fiz? Eu só quis que ele... parasse. O loiro encarou-a, e algum humor estranho brilhou em seu olhar. — Foi mais ou menos isso o que fez. Anna podia adivinhar que ele sabia mais do que dizia. Que ele sabia o que ela não queria dizer. — Vá para casa. Estará segura por enquanto. Sinto muito que esteja envolvida desta maneira. — ele completou, seu rosto deixando claro que não sentia coisa alguma. — Mas talvez, em momento oportuno, eu pudesse lhe fazer uma proposta. A falta de cavalheirismo não a incomodou, nem um pouco. Precisava de um bom tempo sozinha. Mas algo em seu íntimo sabia que sua
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paz ia embora, e que não teria sua vida de volta. Algo que sempre tentara ignorar dentro dela escorria de seus dedos, de seus poros, como uma areia fina, e que, mais cedo ou mais tarde, voltaria para ela como uma tempestade no deserto, ou a tragaria em areia movediça. — Talvez. Qual é o seu nome? A resposta demorou poucos instantes. — Yan Garner. — Encantada, Yan Garner. Sou Aryanna Isinger. — O prazer é todo meu, senhorita Isinger. — Yan curvou delicadamente sua grande silhueta em uma reverência. Apertando mais uma vez o casaco junto ao corpo, e com um esforço sobre-humano, Anna deu mais e mais passos para longe do corpo de Andru, do beco e da vida que tinha, embora tivesse a sensação de mergulhar mais e mais fundo em um novo pesadelo.
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Lúcia: O Destino
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Amanda Ferrairo
nquanto a adaga vinha, como uma flecha em minha direção, não havia mãos me segurando e ninguém estava em posição de guarda. Eu não ia fugir, eu não ia me esquivar, eu não ia tentar impedi-lo. Aquela história já havia ido longe demais, e minha vida, além do que eu esperava. A lâmina se fazia cada vez mais próxima e meu coração acelerara-se tanto, que parecia querer sair pela boca, numa tentativa desesperada de fugir do que o aguardava. A cantoria cessou e todos pareciam bastante atentos à cena que eu, agora protagonizava, fazendo-me lembrar das execuções em praça pública, que costumavam ser a melhor atração da idade média. Eu poderia ter fechado os olhos, respirado fundo. Poderia ter reagido, ter gritado, ter chorado. Mas em um milésimo de segundo você tem que fazer uma escolha, e não se trata de viver e morrer, é a escolha de como morrer. Eu escolhi manter os pés firmes e a cabeça em pé, olhei fundo nos olhos do executor e, para a minha surpresa, não havia cenho franzido ou dentes cerrados, mas uma expressão que mesclava ternura e resignação. Quando a ponta de ferro tocou minha pele, pude perceber que se tornara incandescente, como se o contato tivesse produzido algum tipo de reação. A grande faca ia cada vez mais fundo em meu peito, dilacerando tecido por tecido e embora estivesse aquecida, o que deveria facilitar o trajeto, meus ossos, músculos e tela subcutânea pareciam resistir bravamente, como soldados feridos que permanecem em pé, apertando o gatilho até o suspiro final. O homem já fazia bastante força e eu sentia tanta dor, que meu corpo tremia dos pés à cabeça e o sangue, que agora
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jorrava de mim, já lavara a grande pedra sobre a qual eu estava. Cada gota de sangue que saía do meu peito, era uma gota de vida que escorria pelo meu corpo, lavava meus pés descalços e me abandonava, como tripulantes abandonando o navio prestes a naufragar. Lúcia estava à beira do precipício, caindo lentamente nas trevas da inexistência à qual todos estamos fadados. Meus pés não podiam mais me segurar, então eu caí com um baque na poça formada pelo meu próprio sangue. Olhei uma última vez à minha volta e pude ver lágrimas molhando um sorriso sentido no rosto de Khauã por baixo do capuz, respirei fundo, enquanto meus olhos se fechavam vagarosamente pela última vez. Estava escuro. Tão escuro, que nada se podia ver, nada podia existir, nada poderia sobreviver. Mas por que, então, eu estava ali? Onde eu estava? O que eu era? Eu estava dentro de mim, eu agora era trevas, escura e sombria como a minha mente, tão teimosa, que se recusava a deixar de existir. Foi quando “acenderam a luz”. Era um lugar enorme e rochoso, como um grande cânion, e eu estava sozinha, perdida no meio do nada e o desespero cada vez mais, tomava conta de mim. Havia uma grande elevação na paisagem, para onde eu sabia que deveria ir. Então eu corri mais rápido do que pensei que fosse capaz e ao olhar para trás, vi que tudo desmoronava dois passos atrás de mim. As pedras caíam, assim como o solo. Caíam no nada, no escuro, para onde eu não ia voltar. Finalmente cheguei aos pés do morro e comecei a escalar, me segurando o mais forte que podia com as mãos, enquanto via as rebarbas,
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onde meus pés estavam segundos antes, despedaçarem como migalhas de pão. Minhas mãos já sangravam pela força com a qual agarrava as deformidades da grande rocha, mas não havia dor, apenas o desespero, que me agarrava pelas pernas e tomava conta de mim. Uma escolha errada, um passo em falso, uma pedra solta e minhas mãos não tiveram força o suficiente para impedir que eu desmoronasse junto a todo o resto e mergulhasse nas sombras novamente, caindo tão rápido que meu ar abandonou meus pulmões. Tive a sensação de que, durante horas, tudo o que eu fiz foi cair, me afundar no atoleiro negro do qual eu não poderia me livrar, até que bati estrondosamente contra um chão de pedra. Eu estava no cânion, de novo. Seria isso o inferno? Um looping infinito de acontecimentos desesperadores, no qual você, instintivamente foge da morte, que já te capturou? Correr não deu certo, então eu não faria de novo, mesmo que não tivesse nenhuma outra ideia, eu devia ter deixado algo passar. Foi quando lembrei que tudo começou depois que eu comecei a correr, mas qual era o sentido de ficar ali parada para sempre? Ouvi barulhos atrás de mim, como as crepitações da grande fogueira, me virei e vi. Eram chamas gigantescas que partiam da linha do horizonte e se alastravam mais rápido que qualquer coisa que havia visto, como um tsunami de chamas, que se apossava de tudo o que ousava cruzar seu caminho e se aproximava cada vez mais de mim. Lúcia! Não se mova! De cima do morro, do lado oposto, vinha surgindo uma grande avalanche. Percebi, que o gelo pode ser tão destrutivo quanto o fogo,
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porque como ele, varria tudo o que havia pela frente. Os dois, cada um vindo de uma direção, caminhavam ao meu encontro com a mesma velocidade. Não havia para onde correr, tampouco onde me esconder. Mais difícil ainda, era escolher entre o fogo e o gelo. Então eu escolhi os dois. Fiquei parada, imóvel, sequer respirava. Apenas abri os braços e esperei que ambos me consumissem igualmente, que tomassem conta de mim. Conforme se aproximavam, os elementos tomavam força, e as ondas aumentaram, como se estivessem competindo pela minha alma putrefata. Quando estavam prestes a me alcançar, se ergueram como um leão se ergue para soltar seu forte rugido. Atingiram-me em cheio, exatamente ao mesmo tempo, fazendo-me agonizar de tanto frio e calor. Senti saudades do demônio de olhos vermelhos, quando ambos tomaram conta de mim e me abraçaram, como se cada um estivesse cobrando o pedaço de alma que lhe pertence, me destroçando como hienas famintas. E não havia mais fogo, não havia mais gelo, não havia mais cânion, não havia mais nada, além de Lúcia. Não sei exatamente o motivo, mas me pus a caminhar na imensidão branca em que me encontrava. Passei algum tempo vagando, até que vi alguém caminhando em minha direção. Era um senhor de bastante idade, que pude reconhecer quando estava um pouco mais próximo. Era o sacerdote que me enfiara a adaga no peito. — Você? Veio me matar de novo? — Eu gritei, enquanto me afastava. — Eu não acredito que te encontrei! Você é mesmo Han’or! — Disse o sacerdote, com lágrimas escorrendo e um sorriso comovente. — Eu
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sou Nipur, sacerdote dos Han’or e vivo para lhe servir, verdadeira Han’or! — Eu não quero mais ouvir essa conversa! Estou de saco cheio disso tudo! É “Han’or” para cá, “Han’or” para lá, “sou seu servo”, “finalmente te encontramos”, e ninguém me explica merda nenhuma! Quase me matam, me curam, depois enfiam uma faca no meu peito. Onde diabos eu estou? — Você está onde quiser. Rompeu a barreira entre os mundos, se libertou do seu corpo, Han’or. Sente-se, vamos conversar. — Meu nome é Lúcia! — Tudo bem, Lúcia, como queira. — Disse o senhor, sentando-se no chão, tão alvo quanto sua túnica. Por mais relutante que eu estivesse, acabei por me sentar, finalmente parecia ter encontrado alguém disposto a esclarecer tudo o que acontecera. Fiquei em silêncio e deixei que ele começasse. — Os Han’or surgiram há tanto tempo, que nem se sabe quanto. Movidos pela esperança da chegada do Iluminado, caminharam em segredo pela terra, se escondendo em masmorras, estudando todas as escrituras, os presságios e passando a sabedoria para os mais novos, nunca deixando a esperança morrer. Há vários presságios. Os egípcios, os Maias, povos do Oriente Médio. Todos eles têm escrituras anunciando a chegada daquele que vai tirar a humanidade das sombras da ignorância, que vai nos guiar à luz e à verdade. — Guiar? Como? Que luz? Que verdade? — Interrompi — É muito difícil você entender que eu nunca fui iluminada? Eu bebo muito mais do que deveria, fumo tanto, que pareço uma chaminé. Largo todo o trabalho duro nas costas do meu parceiro de pesquisa. Sumo por dias sem
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dar notícia. Eu não sou uma pessoa boa! — Você sempre foi diferente. Não é surpresa que não tenha sabido lidar com isso. Mas me diga, porque resolveu se tornar uma pesquisadora? — Questionou, com um sorriso cheio de significado. — Porque eu queria descobrir as coisas, descobrir... — A verdade! — Interrompeu-me — Quantos Iluminados passaram pela vida e foram considerados pessoas “desajustadas” e nunca pudemos encontrá-los? E agora você está aqui, Han’or! Finalmente nos encontramos! Não haveria, mesmo como demovê-lo da ideia de que eu sou Han’or. — Mas você me matou! Como eu posso fazer qualquer coisa? Aliás, se você está aqui, então também está morto! — Você não morreu. — Como?! Se você enfiou uma faca no meu coração? — Interrompi, indignada. — Você fez uma viagem e eu vim buscá-la. A menos que não queira ir, então passaremos mais milhares de anos à procura do novo Iluminado. Não posso mentir para você, Lúcia, o seu destino não é fácil. Há muito sofrimento no nosso caminho, muitos perigos, muitas perdas. — Acho que já me acostumei... — Pense bem, criança. É uma escolha difícil — Disse Nipur, levantando-se. — Pensar antes de escolher nunca foi meu forte, mestre — Eu disse, levantando e pondo-me em sua frente. Ele estendeu as mãos em minha direção, e eu as segurei tão forte quanto pude.
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E lá estava eu, caindo novamente num breu inexorável. Desta vez, não houve cânion, ou imensidão alva, não havia tsunami de chamas, nem avalanche. Eu caí e bati forte dentro de mim, do meu próprio corpo. A dor tomara conta de mim novamente, e eu sentia como se estivesse sendo partida ao meio. Quando, finalmente abri os olhos, pude ver que a adaga não estava mais cravada em mim, e meu sangue, que se esparramara pela sala, parecia estar sendo sugado pelo corte em meu peito. Gota a gota, a vida ia sendo devolvida ao meu corpo, e os homens encapuzados ao meu redor, observavam a cena, tão espantados quanto eu. Depois de algum tempo, todo o sangue já havia retornado a mim e o rasgo começara a se fechar. Os tambores voltaram a dar o ritmo ao canto entoado e eu pude me mover novamente. Me levantei, como um guerreiro que venceu a batalha e está pronto para enfrentar o seu destino. Eu estava pronta, sempre estive. Sou Lúcia, Han’or!
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Q
André Caniato
uando minha vó morreu, não fui no enterro. Não gosto de coisa de última hora, sem falar que eu não via a velha há uns dois meses, seria uma puta hipocrisia aparecer lá com cara de choro assim do nada, então não fui. Minha família virou a cara comigo porque nossa que desrespeito! Desrespeito foi o que eu sofri a vida toda e olha que nem virei a cara com ninguém. Fiquei até meio recalcado, mas fingi não ligar, sabe? Tenho coisas mais importantes e urgentes na cabeça. A faculdade, por exemplo. A faculdade é uma coisa bem urgente. Salvar minha faculdade é uma coisa bem urgente. Meu bolso também. Faz mais de quatro semanas que fiquei sem emprego e ainda não achei nada de novo. Eu dava aula de francês. A minha família, a mesma que virou a cara comigo agora, dizia que era língua fresca, língua de bicha, mas eu não ligava não. Pode ser de bicha, aí não sei, mas é bonita pra caralho, gosto muito. Aprendi um pouco sozinho no colegial, paguei um professor particular na faculdade, me dediquei mais a isso do que ao curso em si. Peguei jeito, fui trabalhar. Me demitiram por vagabundagem, acho, mas não disseram o motivo. Não gosto de trabalhar, admito, trabalhava por precisão, mas acho que ficar faltando não passa a melhor das imagens. A Carolina diz que é questão de ter paciência, que logo eu arrumo coisa nova, mas que é pra eu tomar juízo. Carolina é minha namorada, tem minha idade, mais ou menos, ou seja, uns vinte anos. É preta. Não é morena não, é preta mesmo. Não gosto dessa frescura de eufemismo: branco é branco, preto é preto. Chamar de negra, de morena parece medo de ser racista. Racismo velado, escondido. A Carolina é preta, tem uns peitões, umas coxas grandonas também. Gosto dela.
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André Caniato
Olha que nem quando eu arrumei uma namorada minha família parou de insinuar que eu era viado. Não perto de mim, é tudo um bando de covarde, mas sei que não pararam não. Mas eu não ligo, dessa vez não ligo de verdade. Já tive amigos viados e todos eles me asseguraram de que eu não tenho pinta nem nada, então sigo tranquilo. Minha mãe me ligou perguntando por que eu não ia no enterro da vó, que era a mãe dela. Ela tava chorando, eu expliquei. Não sei se ela entendeu, mas tentei ter o máximo de tato. Acho que não sou muito bom nisso. É sua vó filho. Eu sei mãe. Eu conhecia ela, sabe. Mas tenho muita coisa pra fazer. O que é mais importante que família? Faculdade mãe, faculdade. E se eu morrer? Cê não vem também? Tá louca mãe? Vira a boca pra lá. Cê não vem? Hein? Claro que vou mãe. Eu hein. Silêncio. Reza pra vó filho. Reza bastante. Tá bom mãe. Promete? Prometo. Tchau, fica com deus. Amém mãe, amém. Acho que dá pra ver que eu não sou o filho mais dedicado do mundo, mas meus pais tão longe de ter o direito de reclamar. Eles reclamam,
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André Caniato
mas não deveriam. Nunca reprovei de ano, nunca fui de drogas. Pra falar a verdade, até experimentei algumas coisas, tipo maconha, cocaína, mas não gostei não. Nem de bebida eu gosto direito. Bebo de vez em nunca quando tô muito precisado e olhe lá. Mas precisado do quê? A Carolina me perguntou quando disse isso pra ela. De beber ué. Mas tem precisão agora? Tem sim ué, sempre teve. Tem gente que precisa mais, tem gente que precisa menos. Meu tio por exemplo precisava todo dia, quase toda hora. Risos. Ela riu e me beijou. Transamos. A gente transa até que bastante, acho, mas não sei se somos só nós dois ou se é assim com todo mundo. Não sei o que seria bastante. Ela é minha primeira namorada, então é difícil dizer. Eu sou o segundo dela. Não perguntei do outro relacionamento por motivos óbvios, nem ela nunca me contou. Teve uma noite em que a gente tava deitado na cama, naquela paz que fica depois da transa, entrelaçando as mãos, e ela me perguntou e se ela morresse também. Também? É, tipo a sua vó. Que pergunta é essa Carol? Tás louca é? Eu perguntei rindo, mas preocupado de verdade. Falar de morte nunca é legal. Minha mãe também tinha falado de morte. Eu sou bem esclarecido pra morte, pelo menos mais do que uma galera por aí, mas ainda me sobe um frio na espinha ao pensar nessas coisas. Mas ela só disse Nada não e se encolheu mais nos meus braços, suspirando fundo e caindo no sono. Rapaz, não entendo mulher. Não entendi naquele dia e não entendo até hoje. Nem mãe. Mãe é uma classe especial, mas também não entendo.
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Então eu acordei ontem sem entender mulher também, como acordo todo dia sem entender mulher. Levantei, tomei banho, tudo certinho. Banho eu tomo dois por dia, ainda mais no calor infernal dessa cidade. Sou preguiçoso, sei disso, mas não sou porco não. Aliás, às vezes eu paro e penso e concluo que, desses apelidos de animais, desses ruins, porco é o que mais é certo. Porco é porco, ué. Cachorro não é cachorro, burro não é burro, mas porco é porco. Cavalo também pode dar certo, mas só se for falar de pinto, mas aí acho que usam mais jegue. Acabo pensando muito nesse tipo de coisa quando acordo, fico meio grogue, meio boboca, fico pensando em coisa aleatória, viajando mesmo. Quem precisa de drogas assim? Sou convicto de que qualquer dia vou pensar na cura do câncer assim nesse estado, mas que vou esquecer depois do primeiro gole de café figurado. Escovando os dentes pensei no que minha mãe tinha dito e que eu não tinha rezado pra vó. Não sou muito de rezar, mas até que eu sei um pouquinho, nem custa nada. Pensei em passar na igreja depois, rezar um pouquinho lá pra compensar não ter rezado antes de dormir. Não sei se compensa de verdade, mas é bom pensar que sim. Não sei nem se deus existe né, mas é bom pensar que sim também. É reconfortante, quase. Cheguei na cozinha e meu celular tocou pouco depois de eu dar o primeiro gole d’água. Eu tinha deixado ele lá carregando no balcão. Era final de semana, então nem de alarme eu precisava. Era uma e pouco da tarde, uma e pouquinho. Oi Carol. Oi lindo, cê vem hoje né? Se der tempo eu vou sim. Que hora vai ser?
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Como assim se der tempo? É lá pelas seis... Eu tava pensando em sair pra deixar uns currículos, queria passar na igreja também, mas não sei não. Igreja? Vai fazer o que na igreja? Cê nem sabe rezar. Sei sim, ou. Sei Pai Nosso e Ave-maria, já tá bom. Mais que bom. Ela não gosta quando eu falo muito em religião. Ela diz que deus tá nos toques, nas ações, tá no sexo, no amor, na esmola que a gente dá pro pessoal passando fome, diz que deus tá por aí, em todo lugar, mas menos na Igreja. No culto também não. Tá, ela diz meio contrariada. E vai fazer o que lá? Minha mãe pediu pra eu rezar um pouco pra minha vó. Acho que eu vou. Tô me sentindo meio culpado por não ter ido no enterro. Mas cê nem era apegado a ela nem nada, cara. Eu sei, mas sei lá. Morte não é uma coisa bacana. Tá. Faz o que cê quiser. Mas tenta estar aqui às seis. Eu gosto da Carol porque ela entende a gente quando a gente fala as coisas. Tem namorada que faz ceninha, mas a Carol não. Quando ela diz “tá. faz o que cê quiser.” ela quer dizer “tá. faz o que cê quiser.”, mas assim, sem ressentimento nem nada. Minha mãe fala isso pro meu pai quando tá magoada com ele, mas a Carolina não, ela fala de verdade. Dessa vez ela queria que eu fosse na festa surpresa que iam dar pro pai dela, mas eu sabia que se eu não fosse estaria tudo bem. Bom comigo, bom sem migo. Isso é legal, né. Almocei num restaurante perto de casa. Tava morrendo de preguiça de cozinhar e não ando bem numa situação tão feia assim pra não poder comer coisa boa. O lugar é um daqueles self-service que todo mundo da
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faculdade curte ir pra não ter que cozinhar, então nem é tão caro assim. Comi tudo em meia hora, talvez menos, e fui entregar currículo. Tinha imprimido uns trinta no dia anterior, só pro caso de precisar, nunca se sabe. Acabou que só fui em umas cinco escolas de línguas e em umas duas lojas, todas com aquele jeito de “se a gente precisar, a gente te procura” que todo mundo sabe que é furada. Acho que a pior parte de procurar um emprego é essa: você precisa ter experiência, mas ninguém quer te dar experiência. Já teve gente que me disse que não pega novato porque quer professor e não aluno. Só pode ser piada. Acho que eram umas quatro horas quando eu cheguei na igreja, suando do sol quente. Pelei pra subir a escadaria grandona. Sou magro mas sou meio sedentário, não sirvo pra essas coisas. Lá dentro tinha umas duas velhinhas rezando, como sempre tem em igreja à tarde, velhinha rezando, velhinha só reza. Reza e reclama do ar-condicionado do ônibus. O altar era decorado com umas quatro imagens de santo, incluindo uma do santo padroeiro, um santo meio hipster que eu nunca lembro do o nome. Fiz o sinal-da-cruz pra entrar, por costume mesmo, e me dirigi pra um dos bancos do fundo. Eu tava no começo da Ave-maria quando uma terceira velhinha entrou e veio bem pro meu lado. O porquê eu não soube. O resto da igreja tava bem vazio, mas ela veio e ajoelhou bem do meu lado, cabeça baixa, uma espécie de xale cobrindo o rosto, véu, sei lá. Cheguei um pouco pro lado pra me afastar da figura e ela pareceu não se importar. Bom, bom. Continuei a reza. Devia fazer uns cinco anos que eu não pisava numa igreja, tava desacostumado a rezar. O joelho até doeu mais cedo. Confundi Ave-ma-
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ria com Santa Maria e Salve Rainha umas três vezes até conseguir fazer mais ou menos certo, mas consegui, devo ter conseguido. Depois fiz os pedidos que a gente faz quando alguém morre. Pra que deus abençoe a alma da pessoa e que ela seja feliz no céu e coisas assim. Aproveitei e pedi pra ela ter uma outra vida feliz, porque vai que os espíritas estão certos ou os budistas, sei lá. Ia falar até em karma, mas achei exagero. Fui lá fazer o último sinal da cruz quando eu vi que a velhinha do meu lado tava de pé. Ela não tava fazendo nada não, só tava de pé, aquele xale bizarramente cobrindo todo o rosto dela. Acho que tava olhando meio pra cima, mas não tenho certeza. Por fim, ela se virou e veio na minha direção. Eu achando tudo muito estranho, claro, mas fiquei parado. Já do meu lado, ela se abaixou e me deu um beijo na cabeça, bem no topo mesmo, o xale e meus cabelos se interpondo entre a boca dela e o couro cabeludo em si, mas já deu pra sentir que ela era bem fria. Acho que ela disse alguma coisa, mas não tenho certeza, foi um meio Obrigada, meio Se cuida filho. Acho que tinha filho no meio. Na hora eu não pensei direito, mas fiquei paralisado do mesmo jeito. Assisti a velha sair da igreja eu com um frio na espinha, meio com medo meio com sei lá o quê. Fui aos poucos juntando as peças e não me senti melhor. No caminho pra casa da Carolina eu quase fui atropelado umas três vezes, não sei se por falta de atenção ou outra coisa. Quando cheguei às sete no aniversário ela me perguntou se eu tinha visto algum fantasma. Respondi que não era nada não, mas passei mal no meio da festa. Me senti febril, um pouco enjoado. Pedi desculpas, beijei a Carol e vol-
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tei pra casa. Deitei. Dormi e sonhei umas coisas estranhas. Não lembro direito e olha que eu acordei agora há pouco, foram umas quinze horas de sono. Eu tava morto, acho. A Carol também tava morta, minha mãe tava morta, minha vó tá morta ainda, mas tava também no sonho. Acho que tava todo mundo morto, mas todo mundo meio vivo também. Não sei explicar não. Acordei com o coração acelerado, sem o pau duro de sempre. Liguei pra Carol e conversamos um pouco. Foi bom ouvir a voz da minha namorada sem o tom fantasmagórico da minha pouca lembrança do sonho. Escrevi isso aqui logo depois do telefonema. Por enquanto, tudo normal.
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É importante ressaltar que não irei falar do Filme na coluna de hoje. É claro que personagens como Don Vito, brilhantemente interpretado por Marlon Brando, e o Michael Corleone do ainda jovem Al Pacino ficaram eternizados em nossa memória, mas para entender o potencial de verdade dessa obra e porque ela não é apenas sucesso e sim um clássico do cinema americano é preciso ler o livro de Mario Puzo e ir ao fundo de suas 461 páginas (na versão de língua portuguesa).
— Algum dia, e talvez este dia nem chegue, eu vou chamá-lo para fazer um serviço para mim. Mas até esse dia, considere essa justiça um presente no dia do casamento da minha filha.
A obra começa em pequenos planos, conta a história de alguns homens que tem suas vidas tomadas por problemas e sabem que estes problemas podem ser resolvidos por seu padrinho Don Corleone. Acontece que se aproxima a data em que um siciliano não pode recusar um pedido, o casamento de sua única filha. Ao colocar suas subtramas nesse cenário, Puzo tem a plena consciência do que ele faz, ele está dando um ar artificial aos sentimentos iniciais de sua obra, gerando um mistério sobre quem são verdadeiramente seus personagens. Nos apresenta a família do Don, não apenas aqueles presos por laço de sangue, mas também os que são conectados a ele pelos vínculos mais profundos que eles conhecem: a promessa de sangue, o compromisso que pode lhes custar a própria vida.
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Os personagens são caricaturas, o exemplo do poder da máfia representado através de imagens bem construídas de arquétipos com personalidades marcantes. Nenhum personagem existe apenas por existir, todos eles sem dúvida, desempenharam papéis importantes para a trama, e isso é o que torna Puzo um escritor de elementos bem utilizados e concretos. A dicotomia interna da família entre o pai e os seus filhos que pleiteiam sua sucessão, apresentada pelas diferenças entre estes filhos, e pelas ações tomadas por eles diante da mesma situação, já é iniciada aqui. E mais tarde é isso que vai dar contorno a subtrama da sucessão de Don Corleone, fortemente importante para todos os personagens. A dinâmica com que o autor trabalha esse cenário é incrível, ele vai inserido elementos pouco a pouco, e vai te levando aqui e ali dentro da festa exatamente como se fosse uma câmera. Podemos ver tudo de diferentes pontos de vista e opiniões, somos informados sobre o que ocorre por diferentes narradores e comentaristas. Tudo isso nos dá a possibilidade de avaliar a situação em um todo, e Puzo deixa claro sua opinião de que aquilo não é o ritmo normal da família e que ali está tudo tomando uma forma diferente do habitual, o perdão de Johnny Fontane, apenas é a cereja no bolo disso tudo.
— Vou argumentar com ele. Quando o casamento acaba, começamos a nos perguntar para que direção a trama vai? Afinal fomos apresentados a uma família simples. É difícil ter idéia do grande poder dos Corleone aqui, parece que o Autor
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quer nos ensinar a máxima do seu próprio personagem: Deixe que seus amigos subestimem suas qualidades e que seus inimigos superestimem seus defeitos. E de repente somos então convidados a conhecer Solozzo, ele faz uma proposta, o Dom recusa, e algo muda os destino dos Corleone. Os colocando em uma profunda crise que deve ser resolvida por Sonny, Tom e Michael. Vemos agora a transformação de um personagem, vemos Michael se transformar de um homem que não quer ser parte da família, para o homem mais leal a ela. No momento que ele começa a resolver os problemas ele já está se transformando, no momento que ele é forçado a tomar uma decisão sua transformação está quase completa. Com isso entendemos o poder da família Corleone, com isso entendemos quem é quem, com isso Mario Puzo num misto de sangue e drama vem desmitificando todo o véu colocado na primeira parte de seu livro. Ele nos apresenta a família como ela é, e para isso começa a voltar ao passado, ao inicio de tudo. É contando a história de Don Vito que temos a grande surpresa do livro, a escrita começa a se alterar, é como se chegássemos a um período do tempo diferente, uma linguagem mais sépia, que também é vista nos trechos onde a história acaba por chegar a Sicilia. Esse dinamismo é algo incrível. Mesmo considerando que a tradução não tenha conseguido manter totalmente esse trejeito conquistado pelo escritor, ou considerando que isso possa ser apenas um sentimento de leitor, existe sim algo ali além do que o normal, principalmente na agressividade permitida aos personagens, pois o ambiente destes luga-
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res é mais hostil. O que acontece na verdade, é que o estilo do autor muda, porque os cenários são construídos de maneira a parte, é como se ele tivesse plena consciência da transição necessária para passar esses sentimentos. Não é a toa que o filme preservou fortemente estes sentimentos.
— Ele é um negociante. Eu lhe farei oferta que ele não poderá recusar.
Uma das coisas que infelizmente não puderam ser transportas totalmente para o filme é a história de Johnny Fontane, me pergunto sinceramente como ninguém teve a brilhante idéia de pegar esse fragmento do livro e expandi-lo para um filme próprio. O personagem que nos é apresentado como um cantor em declínio pouco a pouco vai se reconstruindo com a ajuda do Don. Ele é o principal modo encontrado para demonstrar o amor de Vito Corleone por seus afilhados. Demonstra também a capacidade de planejamento do velho padrinho, como seus planos são grandiosos, e abrangem uma larga escala de ramos. Nem mesmo Johnny acredita no quanto lhe é disponibilizado, pelo padrinho e o quanto ele está disposto a confiar em Johnny é tudo muito rápido. Possivelmente inspirado na vida de Frank Sinatra e seu relacionamento com Sam Giancana, há aqui uma grande dose de realismo de como era a máfia. Um largo retrato de como ela agia em beneficio dos
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seus. É com Johnny Fontane, que está Nino, o personagem mais profundamente, bem construído, que discute algo acerca da vida, que pode até passar despercebido em meio a tantas subtramas, mas que dá um gostinho a mais no livro.
— Permita-me que eu vá mais longe. Se meu filho for atingido por um raio de relâmpago, culparei algumas das pessoas aqui presentes. Don Vito é um personagem bem construído, simplifica bem o mundo da máfia e o que um homem precisava para dominá-lo a simplicidade, onde seus inimigos erravam, ele acertava: a cautela. E foi assim que ele respondeu logo após ter seu mundo destruído, é assim que Puzo responde ao maior problema da trama, como reconstruir o mundo dos Corleone? Agora que tudo se foi? Eis que ele simplesmente demonstra a força dos Corleone, chamando todos os mafiosos para uma reunião e ali argumenta com todos e negocia, e convence a todos. Demonstrando não apenas o poder, mas também de onde ele provém que é da força representada por seu líder. Criar um personagem forte é algo difícil, mantê-lo condizente com o plano inicial ao longo de seu texto é ainda mais difícil, porém Puzo consegue criar esta atmosfera para todos seus personagens. Para isso ele se utiliza de justificações, de um relacionamento bem trabalhado, sem ter medo de se desgastar em longas cenas.
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Porém, existe uma coisa no personagem do “Padrinho” que me irrita profundamente, talvez eu não tenha entendido o que o autor deixou no ar, mas porque Vito não perdoa Fredo? Isso é uma coisa que me irrita até hoje.
— Então, você me ensinou tudo o mais. Diga-me como dizer “não” às pessoas de um modo que elas gostem.
Entre as grandes coisas desse livro, acho que Michael é a maior, embora o Padrinho seja o personagem principal, é no jovem rapaz que temos a maior expressividade da trama. No começo da história o que vemos é alguém que quer estar alheio da família, não quer mais viver este mundo para o qual foi criado, porém, que vai se transformando, e vai se descobrindo o único capaz de sustentar esse mundo. É como se ele soubesse desde o inicio que este era seu destino, mas estava apenas tirando umas férias dele. E assim vemos no livro essa transformação, são lampejos contra o qual ele luta, mas que não podem ser controlados. As coisas simplesmente acontecem e quando ele vê, ele não é mais ele, ele é um homem frio, com um rosto diferente em um continente diferente. E ele até planeja ser feliz nessa nova vida, mas a crueldade do destino lhe esbofeteia e o faz pagar, por não ter aceitado seu destino em um primeiro momento. Parece tudo genialmente planejado por Puzo, parece que tudo casa. Afinal segundo Don Vito todo homem tem um destino, acredito
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que esta é uma mensagem bem forte em “O Poderoso Chefão”, em todo momento temos isso sendo repetido a nós seja verbalmente seja pela vida de um personagem. Primeiro temos os homens que vão pedir a graça do Don, depois temos Luca Brazi, depois temos o destino de Connie, Sonny, Michael e é claro o destino do próprio Don. As coisas vão se tecendo, e as histórias vão se mudando. Dentre as grandes coisas feitas por Mário Puzo nesse livro a maior é dar-nos uma nova maneira de escrever histórias, não que ele seja o primeiro a escrever através de subplots. Mas escrever dessa maneira com esse linguajar e carga era até então inédito, sem contar a coragem de amar a máfia verdadeiramente que o livro tem. Ele revela uma característica importante que muitos autores tem que levar em conta ao escrever um livro que ao escrever sobre um assunto, devemos começar a amar ele, se não tudo soa artificial.
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De todos aqueles que marcaram seu nome na arte de se contar uma história, ninguém foi mais influente do que William Shakespeare. Ao estabelecer um estilo único norteado por um método, ele não apenas criou uma nova língua inglesa como estabeleceu técnicas para a trama e plot twists até hoje extensamente copiados. Shakespeare seguiu a tradição de sua época, escrevendo histórias para o teatro que eram criadas através de um método poético, com estrofes e contagem de sílabas. Entretanto, ele se libertou da necessidade de rima, e grande parte de sua obra é realizada através de rimas brancas. Além disso, fez uso de variações de ritmo dentro de suas estrofes para criar momentos de tensão, tranqüilidade, angústia e até esperança. Mas não é pela contribuição poética me si que louvamos o escritor. Suas metáforas e monólogos são o ponto alto da obra, e é nelas que outros escritores devem se espelhar procurando aprender algo que valha a utilização. A grande vantagem do autor é, sem dúvida, a utilização de grandes personagens, com personalidade própria e até mesmo um modo pessoal de falar. Como no exemplo retirado de Romeu e Julieta: “JULIETA — Já vai embora? Mas se não está nem perto de amanhecer! Foi o rouxinol, não a cotovia, que penetrou o canal receoso de teu ouvido. Toda a noite ele canta lá na romãzeira. Acredita-me, amor, foi o rouxinol. ROMEU — Foi a cotovia, arauto da manhã, e não o rouxinol. Olha, amor, as riscas invejosas que tecem um rendado nas nuvens que vão partindo lá para os lados do nascente. As velas noturnas consumiram-se, e o dia, bem-disposto, põe-se nas pontas dos pés sobre os cimos nevoentos dos
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morros. Devo partir e viver, ou fico para morrer. JULIETA — Essa luz não é a luz do dia, eu sei que não é, eu sei. É só algum meteoro que se desprendeu do sol, enviado para esta noite portador de tocha a teu dispor, e iluminar-te em teu caminho para Mântua. Portanto, fica ainda, não... precisas partir. ROMEU — Que me prendam! Que me matem! Se assim o queres, estou de acordo. Digo que aquele acinzentado não é o raiar do dia; antes, é o pálido reflexo da lua. Digo que não é a cotovia que lança notas melodiosas para a abóbada do céu, tão acima de nossas cabeças. Tenho mais ânsia de ficar que vontade de partir. — Vem, morte, e seja bem-vinda! Julieta assim o quer. — Está bem assim, meu coração? Vamos conversar... posto que ainda não é dia! JULIETA — É dia sim, é dia sim. Corre daqui, vai-te embora de uma vez! É a cotovia que canta assim tão desafinada, forçando irritantes dissonâncias e agudos desagradáveis. Alguns dizem que a cotovia separa as frases melódicas com doçura; não posso acreditar, pois que ela vem agora nos separar. Alguns dizem que a cotovia é o odiável sapo permutam seus olhos; como eu gostaria, agora, que eles também tivessem permutado suas vozes! Essa voz alarma-nos, afastando-nos um dos braços do outro, já que vem te caçar aqui, com o grito que dá início à caçada deste dia. Ah, vai-te agora; ilumina-se mais e mais a manhã. ROMEU — Ilumina-se mais e mais... enquanto anoitece em nossos corações!” A utilização da cotovia e do rouxinol no texto é o exemplo da metáfora supracitada. Sendo o rouxinol um pássaro noturno, seu canto simbolizaria que os amantes ainda tem tempo para passarem juntos. Mas
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sendo o canto da cotovia, pássaro que prefere o dia e canta ao amanhecer, seria um alarme dizendo que devem se afastar. Assim, a discussão sobre a identidade do pássaro é na verdade uma discussão sobre quanto tempo os amantes ainda possuem para dividir. Notem que, pela linguagem ser estritamente teatral, o texto carece de descrições. Dessa maneira, toda a importância é transferida ao diálogo, e as características dos personagens devem ser expressas em seus trejeitos, e não descritas. Essa é a mesma lógica da técnica “Show, Don’t Tell”, tão citada nessa coluna. Um exercício que eu fortemente recomendo a qualquer autor que deseja melhorar a qualidade de seus diálogos é tentar escrever uma cena na mesma linha, apenas com o diálogo e nada mais. Assim, todas as funções da narrativa passam para a conversação, e dela depende o resultado. Outra experiência interessante é o monólogo, que em geral no teatro é usado como forma de expressar os pensamentos de um determinado personagem, e a partir do qual podem ser desenvolvidas técnicas de descrição de intenções. Pode parecer estranho, mas escrever monólogos auxilia a acrescentar qualidade a cenas de ação. Shakespeare foi também um exemplo na criação de mitos. Sua visão sobre o “Reino das Fadas”, comandado pela rainha Titânia e o rei Oberon, é até hoje extensamente copiada e propagandeada como a forma definitiva das lendas feéricas, e foi extensamente utilizada por outros autores, como Neil Gaiman em sua série em quadrinhos Sandman e pela editora White Wolf no RPG Changelling, O Sonhar. Até mesmo sua apresentação de um personagem monstruoso escravizado de nome Caliban em A Tempestade ressoou na cultura pop, uma vez que a Marvel conta com um personagem mutante que atende por esse nome em
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meio ao grupo conhecido como Morlocks. Isso sem citar as dezenas de versões “atualizadas” para os tempos atuais de suas obras que chegam ao cinema, ou à quantidade de palavras que os dicionários de inglês atribuem a primeira utilização a uma de suas obras. Tendo sido um autor prolífico e com uma qualidade consistente e constante, Shakespeare é leitura obrigatória para qualquer contador de histórias.
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EDITORES-CHEFES LUCAS RUELES RAFAEL MARX
EDITORES SEMANAIS ERIC PARO JOÃO LEMES LUIZ LEAL DIOGO MACHADO
DIAGRAMADOR JOÃO LEMES
REVISOR ANDRÉ CANIATO
REDATOR ALAN PORTO VIEIRA
AUTORES: SEMANA FANTÁSTICA
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Horror: Amanda Ferrairo
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Noir: Philippe Avellar
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