A Pulp Feek quer estar com você. Na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapé. Para isso, a Pulp quer que você fique por dentro. Para começar, resolvemos que nossa relação com os leitores tinha muito a ser melhorada, e criamos um grupo para reunir o público, os escritores e os demais responsáveis da revista. Lá, você pode nos dizer o que acha, o que não acha, o que ficou ruim e o que ficou bom. Assim, a Pulp ganha mais sua cara, fica mais legal, e todo mundo ganha. Se quiser fazer parte, é só acessar o link: https://www.facebook.com/groups/pulpfeek/ Mas existe ainda outra maneira de você se aproximar da Pulp. É sendo parte dela. Estamos a procura de redatores para nosso projeto de expansão da revista, além da nossa eterna procura por novos escritores para os one-shots. Quer fazer parte? Manda um e-mail para feeek@ outlook.com A revista de hoje chega um pouco atrasada, é digno dizer, e a culpa é toda nossa. Cometemos alguns erros quanto a organização para essa edição, mas já descobrimos como fazer da maneira certa. Afinal, a vida é assim: Erramos e aprendemos com isso.
PULP FEEK - #12 Séries
A imperatriz de ferro iii se aventure com Andrei por esse mundo fantástico e junto com ele descubra os segredos que se escondem por traz do vapor em mais um capítulo da série de Rafero Oliveira. ------------------ Pág 3 Sob(re) controle viva, trabalhe, perca calma e passe limites que não deveriam ser passados com mais um capítulo da série Thiago Sgobero ------------ Pág 18
One-Shot
DREAM ON o mundo é um lugar estranho, tantos ruidos, tantas ilusões, video-games e trabalho, tudo lutando pelo seu espaço quando então acaba. Veja essa dança no limite do gênero nesse conto de André “Auroque” Motta -------- Pág 31
Extra
Fonte de Inspiração: na coluna dessa semana conheça Martin Page, entenda os destaques do Livro A gente se acostuma com o fim do mundo e por que esse livro é uma fonte de inspiração com nosso Editor-Chefe Lucas Rueles ----- Pág 42 Como escrever sobre: Na coluna dessa semana aprenda com o nosso Editor-chefe Rafael Marx como mostrar fatos complexos de forma simples em sua narrativa “Show, don’t tell”.----------------------------------------------------- Pág 51 Na próxima semana: Diretamente das masmorras de Castelo Azul, mais um capitulo d’A Queda de Aqueron E na série Rixa, Toras segue tentando seu ingresso nos caminhos da mágia. Aproveite também para ler a coluna de nossos editores-chefe e muito mais.
A Imperatriz de Ferro - III
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Rafero Oliveira
ubindo de volta à cozinha, Andrei espreitou até a outra porta.
Espiou para dentro da sala e viu grandes poltronas. Estantes nas paredes estavam cheias de pratos decorativos e suportes de livros, sem livro algum entre eles. Finas cortinas nas janelas filtravam a luz do sol, fazendo tudo ali apresentar tonalidades de roxo. Haviam portas em todas as paredes. Andrei se esgueirou entre as poltronas até uma delas, com os passos abafados por um grosso tapete. Do batente, avistou um longo corredor com ainda mais portas. Estalou a boca, impaciente e ansioso, voltando para a sala para procurar direções para as escadas do segundo andar. E congelou, sem fôlego. Do outro lado da sala, um guarda o encarava, também congelado de surpresa. O momento não durou mais de um segundo mas, naquele instante, pareceram horas. O garoto entrou no corredor às suas costas, correndo enquanto pensava que estava apenas piorando sua situação. Atrás dele, o guarda vinha correndo e gritando alguma coisa que Andrei não conseguiu entender, com o sangue pulsando tão forte nos ouvidos. Ele corria sem saber para onde ia, sentindo o coração bater com força nas costelas. Viu como grandes borrões salões de jogos, mesas de jantar e muitas tapeçarias penduradas e móveis de madeira. Mais barulhos de passos atrás dele, e cada vez mais próximos, fizeram o pavor amolecer suas pernas ao invés de fortalecê-las. Atravessando uma porta qualquer, Andrei avistou as escadas ao fim de um longo corredor. Desesperou-se, pensando que se suas pernas
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moles mal estavam mantendo os perseguidores longe, parecia que ia ser impossível escapar escada acima. Mas mesmo assim, ele abaixou a cabeça e começou a forçar ainda mais a corrida, quando, de uma porta lateral à sua frente que ele não havia notado, um guarda saltou para bloquear seu caminho. Sem tempo para pensar, Andrei se jogou de cabeça pra frente, derrubando o guarda com sua atitude inesperada. Rolou no chão, após cair pra frente, e de lá viu os outros guardas tropeçarem no colega tombado e também caírem embolados no corredor. Andrei levantou rápido, tropeçando nos próprios pés e usando as mãos pra se apoiar, enquanto avançava para a escada. Subiu saltando de três em três degraus, enquanto ouvia os guardas se levantando lá embaixo. A decoração ao longo do largo corredor onde corria ficava cada vez mais rica. Andrei abaixou a cabeça novamente e seguiu correndo com ainda mais pressa às portas duplas cheias de detalhes ornados à sua frente, determinado a não desperdiçar a vantagem que conquistara. Muito antes do que esperava, ouviu passos muito próximos às suas costas e se desesperou novamente. “Tão… perto…”, pensou - “Só… mais… um… pouc…” — UGH! Seus pensamentos foram expulsos com violência de sua mente junto com o ar de seus pulmões, quando foi agarrado pelo guarda. Juntos, voaram pra frente arrombando as portas como um aríete.
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— Hah!, o guarda disse, levantando-se e puxando Andrei junto dele pelo braço. — Agora você vai explicar o que… Andrei via luzinhas brancas na frente dos olhos enquanto lutava para recuperar o fôlego e se soltar da chave de braço que recebia. Ouviu os outros guardas chegando, enquanto olhava para a sala que haviam arrombado, procurando uma eventual rota de fuga. E sentiu o ar escapar de seus pulmões novamente. Era um amplo quarto de dormir com teto alto. Uma grande janela se abria para o jardim e deixava entrar a luz alaranjada de um sol de fim de tarde. Acima da janela, um mezzanino era suportado por duas pilastras que imitavam a arquitetura grega. Mesinhas baixas estavam atulhadas com diversas garrafas de bebidas douradas, que Andrei desconhecia. Cabeças de animais eram troféus que enfeitavam as paredes, enquanto um tapete feito da pele de um tigre branco estava em frente a uma grande cama com dossel. Deitada nela, a garota da rua virava um olhar beirando a inconsciência para a porta. Mirava apenas um olho para Andrei e os guardas, já que o outro estava roxo e inchado. Muitas outras marcas de violência coloriam seu corpo, vistas através de diversos rasgos em suas roupas. Ajoelhado em cima dela, um homem gordo com cabelo preto curto e largas costeletas negras moldando o rosto usava roupas roxas, decoradas de amarelo, combinando com os botões dourados de seu pequeno colete. Ele encarava a porta com olhos arregalados e a boca pendendo
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aberta. Depois de alguns instantes de silêncio, o homem começou a ajeitar e alisar as roupas enquanto se levantava. Fechou a boca e assumiu um olhar calmo, quase sereno. Andrei notou que as mãos que ele usava para fechar as calças estavam ensanguentadas. O homem pigarreou (“Caham!”) e se dirigiu aos guardas com um tom de voz muito calmo. — Não é o que parece. Tirem esse bandidinho daqui, agora, e depois voltem pra buscar a garota. Eu estava só… E então, a explosão o interrompeu. A casa tremeu por inteira, livrando Andrei quando ele e o guarda foram arremessados ao chão. Ele sentiu o calor chegando pela porta aberta, enquanto via o gordo tentando se levantar. Na cama, a garota não tinha esboçado reação à explosão, apenas continuava com aquele olhar perdido. Naquele momento Andrei se esqueceu dos guardas, do fogo e do orfanato. Simplesmente se levantou, deu três passos apressados até a cama e a pegou nos braços. Dali, correu até a janela e se jogou de costas pelo vidro, caindo nos arbustos do jardim. Foi até o buraco na cerca viva por onde entrou mais cedo e deu uma última olhada para a casa, vendo as chamas subindo famintas pelas paredes. Na rua, seguiu contra a multidão que corria na direção da mansão. Chamou menos atenção naquele momento, com uma garota sangrando nos braços, do que quando caminhou entre eles usando roupas velhas.
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Ignorou o absurdo da situação enquanto procurava um beco tranquilo, onde poderia esperar que ela acordasse e lhe dissesse quem era o tal nórdico. *** Fievel continuava trancado no quarto. Era sua rotina, para tristeza da mãe e fúria do pai. O país inteiro mudando lá fora, e o garoto não se interessava nem em saber o que acontecia, só em continuar enfurnado. Saía no máximo uma vez por semana, para fuçar na sucata de fábricas, ou se enfiar no lixo do ferro-velho, como se seu quarto pudesse comportar mais bagunça. Tudo que seu pai queria era que Fievel trabalhasse, como o homem feito que já era. O máximo que o filho conseguia eram alguns trocados com alguma baboseira que inventava. Ele tinha tentado mostrá-los algumas vezes, com os olhos brilhando, fosse um trem que andava sozinho ou um monte de metal apoiado um no outro que ficava balançando sem parar. O pai perguntaria como ele pretendia ganhar dinheiro com aquilo. O garoto responderia que não sabia, com a animação escorrendo do rosto. Então o pai o aconselharia a procurar aprender um ofício que lhe desse condições de sustentar uma família. Em algum momento, o garoto parou de mostrar aos pais o que criava. Mas continuou sem sair do quarto e por outros longos anos, a família seguiu atormentada pelo barulho de mecanismos e engrenagens. Até hoje.
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Após ensaiar o discurso em sua cabeça, o pai foi até o quarto do filho, abriu a porta e entrou. Lá estava Fievel, encurvado sobre sua mesa de trabalho, debaixo da janela, entre pilhas de engrenagens de diversos tamanhos, montes de placas de metal e muitas outras coisas que um construtor de casas não se dava ao trabalho de reconhecer. O pai demorou um certo tempo até conseguir localizar a cama de seu filho, debaixo de ainda mais bagunça. Um amontoado de pano embolado aos pés da mesa fez o pai pensar, mais uma vez, que tanta dedicação era desperdiçada com coisas inúteis. O pai pigarreou, para se anunciar. — Fievel? O garoto levantou a cabeça depressa e o olhou por cima dos ombros. Afastou os cabelos, cheios e desgrenhados, do rosto e olhou o pai através dos óculos, necessários para uma vista estragada por tantas noites viradas. Um sorriso meio confuso se espalhou pelo rosto do filho. — Hã… pai? — Trabalhando em alguma coisa? — Para facilitar o processo, ele fingiu interesse, se aproximando da bancada. Mas parou de repente, quando viu o que estava em cima dela — … Fievel! Isso é um braço?! — Anh, é. Mais ou menos. Ele não serve pra segurar nada não, tá vendo que a mão é só de enfeite? E esse metal não aguenta nada, usei só pra testar a ideia. Aqui, em cima do cotovelo, ele não tem nada que dê
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força pra levantar qualquer coisa. Ele só abre e fecha, tá vendo? — Hum. — Então. Eu estava conversando com um conhecido esses dias e ele falou sobre umas coisas dentro do nosso corpo, que fazem a gente se mexer. Ele chamou de “nervo”, mas eu nem sei se esse é o nome certo. São essas coisas aqui, olha. — o garoto mostrou algo no antebraço, flexionando o pulso — Aí eu pensei que se eu ligasse elásticos nos nervos, uma pessoa poderia usar isso aqui no lugar de um braço perdido. Aí ele poderia carregar uma mochila nas costas, que nem os guardas usam, você já viu? Aí com o vapor, ela… — Chega, Fievel. Eu vim falar de coisa séria com você. A animação congelou no rosto do garoto, como tantas vezes antes. Mas ele se recuperou rápido, pôs o “braço” de volta na mesa e sorriu de volta para o pai. — Hã… Pois não? — Sua mãe e eu conversamos. A situação tá bem ruim. Do jeito que tá, não vai dar pra continuar. Não daria pra continuar. Bom, não é de hoje que eu falo pra você dar um jeito na sua vida e… — Eu sei, pai. Mas… — Deixa eu terminar de falar. Eu reclamava no trabalho das suas manias e um dia meu chefe ouviu. Ele me chamou na sala dele e eu achei que ia ser demitido, por não ter conseguido educar meu próprio filho. Mas na verdade, ele disse que podia dar um jeito e, depois que ele me explicou o que era, nós concordamos em…
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— Dar um jeito?! — ele se levantou, assustado — Como assim dar um jeito?! — Não me interrompe, moleque! Te aturei a vida toda, mas minha paciência tá no fim agora. Tô querendo me despedir bem de você! Com satisfação, o pai viu que o garoto engoliu a próxima pergunta. Continuou: — Você vai para um lugar onde pode fazer suas coisas e sua mãe e eu vamos poder nos aposentar mais cedo. Vão vir te buscar daqui a pouco. É pra você levar suas coisas. O pai estava preparado para discutir. Brigar. Pra fazê-lo parar de chorar. Até para impedí-lo de fugir. Mas não esperava que ele fosse sorrir. — Tudo bem!, o garoto disse. — … Tudo bem? — Sim, ué! - o filho continuou falando, enquanto andava pelo quarto, juntanto suas poucas roupas e muitas tralhas. — Nesse tempo todo vocês nunca me expulsaram de casa, mesmo eu dando tanto trabalho e desgosto pra vocês. Pelo menos agora, eu vou servir pra alguma coisa. Cadê a mãe? Vai dar tempo pra eu me despedir dela? — Sua mãe foi pra casa da sua tia. Ela disse que não queria ficar pra ver.
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O garoto parou por um segundo seu processo de juntar as coisas, ainda de costas para o pai, mas logo retomou sua atividade. — Ah. Tudo bem então. Menos de uma hora depois, uma carroça estava carregada de caixas e seu cocheiro parecia mal-humorado e com pressa. Nem o cavalo parecia estar gostando de estar em um bairro de classe baixa. Fievel olhou para a casa e depois para seu pai. Ainda sorrindo, estendeu a mão. Um abraço estava fora de questão, mesmo que essa fosse a última vez que fossem se ver. Seu pai hesitou um pouco, mas apertou sua mão. — Hm. Então… — Tchau, pai. Obrigado por tudo. — É. É, de nada. Tchau. Um segundo depois, o aperto de mão se desfez. Fievel pediu ao cocheiro para ir no meio de suas coisas, pois tinha acabado de ter uma ideia e queria trabalhá-la. O cocheiro resmungou algo parecido com uma afirmativa e o garoto subiu na parte de trás para se sentar entre suas caixas, ao mesmo tempo que a carroça começava a se mover. E ali, escondido e finalmente sozinho, Fievel chorou.
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*** Anoitecia na cidade e as pessoas voltavam para suas casas, ainda agitadas com a tragédia do dia. Dentro do Pub do Viking, alguns adiavam seu retorno ao lar para debater, animados, suas versões do acontecido e de como o bom Barão não merecia um coisa dessas. Andrei estava numa mesa no canto do bar, ainda sentindo um mal estar na boca do estômago, apesar da sensação de desmaio e suor frio já terem passado. Nas mãos que ainda tremiam, girava uma caneca com cerveja que não bebia. À sua frente, do outro lado da mesa, duas pessoas que não falavam. Dörthe estava cheia de bandagens e curativos, mas seus olhos estavam descobertos e, de uma fenda no meio de tanta roxidão, uma pequena íris azul lutava para aparecer e fazer par ao outro olho que o encarava. Ela ainda estava meio grogue quando chegaram, mas pareceu despertar quando o estranho da cadeia chegou. Ele cumprimentou Andrei e se apresentou como Egon, enquanto sentava, e pediu que ele contasse o que acontecera na mansão. Minutos se passaram desde que o garoto terminara o relato, e o homem ainda tinha um olhar pensativo. — Bom, - Egon finalmente disse, piscando os olhos e saindo de sua contemplação — acho que é hora de algumas explicações. Hoje mais cedo, estávamos tentando sabotar um trem. — … Quê? — O senhor Reinrassig, ou “Barão”, como ele prefere ser chamado, é um traficante de… Interesses, por assim dizer. — Qualquer coisa. — Dörthe disse, antes que Andrei perguntasse.
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— Armas, bebidas, ópio. Animais. Pessoas. — O sobrenome que ele herdou da família ainda impõe respeito, de forma que os vagões com seu brasão não são inspecionados. Pra parar isso, nós tentamos impedir que o trem chegasse aqui. — Mas por que vocês? — Como assim “por que”?! — Dorthe disse. — Você não ouviu as coisas que eu disse que ele faz?! — Não! Digo… Sim, ouvi! Desculpa. O que eu quis dizer foi por que vocês é que têm que tomar alguma atitude. — Ah, sim. Calma, Dörthe. Ele ainda não sabe. Nós somos os Candeeiros, Andrei. E vamos salvar toda a Prússia. O olhar sério que aqueles dois estavam lhe dando, somados ao barulho das pessoas ao seu redor que riam e conversavam no bar, estavam dando uma sensação muito forte de surrealidade ao jovem. — Desculpem… Hã… — Somos um grupo de ressurgentes, se você quiser chamar assim. E nos chamamos Candeeiros, porque guiaremos todo o povo de volta à luz. — Menos poesia, Egon. - Dörthe disse. - E fala mais baixo. A mudança de atitude da garota, desde que Egon chegou, ainda intrigava Andrei. — Hã… - Andrei continuou, confuso e coçando a nuca. — Mas en-
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tão o que aconteceu hoje? Por que o resto do grupo não ajudou vocês? Foi porque o tal Barão já conhece todo mundo? Os dois rebeldes se entreolharam brevemente, antes de Egon continuar. — Todos os Candeeiros estão sentados aqui nesta mesa, garoto. — Como…? — Enfim. Quando fomos descobertos hoje, eu fiz bastante confusão pro Egon conseguir escapar, enquanto os homens do Barão me agarravam. Esse é o nível dos planos que conseguimos bolar. — Mas mesmo assim, um dos guardas dele me viu e começou a vir atrás de mim. Aí eu fingi que estava tentando roubar a carga, pra “só” ser preso. Foi quando encontrei você. Ainda era muita loucura para a cabeça de Andrei. — Hã… Que bom que deu tudo certo no final. Ou quase tudo. - ele acrescentou, olhando de esguelha para os ferimentos de Dörthe. — Mas, isso tudo é muito… — Olha. - Egon se inclinou por cima da mesa com um rosto animado, quase alucinado. — Até hoje de manhã éramos só ela e eu. A única coisa que podíamos fazer era tentar cuidar da nossa cidade. Você conseguiu sozinho o que vínhamos tentando fazer desde que começamos o grupo! As ruas vão ficar mais limpas e vão ser mais seguras enquanto o Barão não se recuperar desse golpe! E ele vai demorar! Sei lá, a gente
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não sabe, ele pode até ter morrido! A felicidade estampada no rosto de Egon foi o que mais incomodou Andrei que, contrariado, continou ouvindo o que ele dizia. — E agora com você no grupo, podemos fazer bem mais! Olha, as cidades vizinhas vêm reclamando de… — Não, não, não. Espera aí. Eu não disse que ia entrar pro grupo. — O quê?! Mas você foi salvar a Dörthe e tudo! Você explodiu a mansão do Barão! — Foi, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra! Você me falou que não tinha nenhuma outra forma de salvá-la e a explosão foi um acidente! Desculpa, mas eu não quero mais me envolver com isso. Eu ainda nem sei se alguém saiu machucado da explosão! — Ah, alguém deve ter se machucado sim, mas todos eles eram funcionários do Barão e eles deviam saber com quem… Dörthe o calou com um toque no braço. — Egon, ele disse que não quer. Chega. Só nós dois já basta. Vendo que o homem iria continuar a discussão, Andrei se levantou. — Desculpa de novo. Eu vou ali no banheiro. - e deixou os dois na mesa, Egon perplexo e ela mal-humorada.
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Saindo pela porta dos fundos, que havia avistado quando chegou com Dörthe mancando e apoiada em seus ombros, Andrei respirou o ar frio da noite e sentiu o alívio do silêncio repentino quando a porta se fechou às suas costas. Sentiu a dor de cabeça causada pela fome aliviar um pouco e começou a se encaminhar para a saída do beco. Teria de retomar o doloroso e familiar processo de encontrar um lugar para dormir, mas parou de andar quando alguém saiu das sombras e veio na sua direção. O Barão possuía uma expressão enfurecida no rosto. E uma faca nas mãos.
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escritório fedia a fumo. Um cheiro pungente, nauseante, que marcava a presença de Berga, o chefe, no seu habitat natural. O odor era forte o bastante para fazer Jonas ter ânsias de vômito, e ele já tivera tantas nos últimos minutos parado ali que sentia como se tivesse tomado café da manhã duas vezes. E não havia tomado nenhuma. — Deus, parece que eu estou falando com uma porta! — Berga falava ao telefone enquanto Jonas esperava impaciente. Pelo jeito aquilo só iria terminar antes de dez minutos se o marca passo do chefe fosse pro saco — Será que você é retardada igual as duas últimas que me atenderam? E uma delas nem era mulher, era uma bicha! E falava que o nome era Betina, que bela merda. Devia ser Gilberto o viado, tinha uma voz de bicha que eu vou te falar um negócio. Jonas olhava para o teto, tentando não expressar nada, tentando nem mesmo pensar em alguma coisa, contando rachaduras e manchas de mofo. Estava bem servido. — Não quero passar dados, cacete! Deus do céu, vocês não querem trabalhar? Vocês são pagos pra... Eu não quero saber de procedimento nenhum, eu quero que você resolva a porcaria do meu problema. Se você me colocar na musiquinha eu... Berga xingou alto e bateu o telefone, e Jonas soltou um “graças a Deus” baixinho, meio sem querer. Berga pareceu não notar ou não ligar, e acenou para a cadeira vazia. — Não, não — Disse Jonas — Fico em pé. — Malditas do telemarketing. Não servem pra bosta nenhuma — Berga respondeu.— Com aquela voz de puta... Betina o meu caralho, se quer saber.
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— Você me chamou aqui, Berga. Berga acendeu um cigarro e ofereceu um para Jonas, que bem pensou em aceitar, só para desanuviar a mente de todas as merdas, caralhos e bichas, mas recusou. Já contava cinco anos desde seu último trago. — Eu estou numa posição difícil, você entende. Sua voz rápida e agressiva o fazia parecer que estava tudo, menos em dificuldades. — Você está meio desligado esses dias, anda muito ríspido com todo mundo. Não quer nem comer no refeitório com o pessoal, fica olhando feio pro conferente... Ele até disse que tá com medo de você. Bicha. E tem isso daí, também — Apontou para as mãos de Jonas — Vê só. Essa porra aí te marca como um maluco imprevisível. E um lugar que mexe com solda, máquina pesada e risco de furar a cabeça de alguém se alguma dessas porras de máquinas der um treco, um maluco imprevisível é a última coisa que eu tô precisando agora, deu pra entender? Jonas achava incrível a capacidade que Berga tinha de tentar passar uma imagem de chefe preocupado com o bem estar dos seus funcionários usando o tom mais ríspido que podia conceber. Gordo suado, careca e nervosinho, era a antítese da compreensão, uma contradição ambulante. — Você está me mandando embora. Berga jogou o corpanzil na cadeira, e a coitada gemeu e protestou na língua do seu povo. — Eu tenho que te deixar ir. Jonas cerrou os punhos e sentiu o fogo correndo. “Filha da puta”, pensou. O chefe olhava para ele com seus olhos pequenos que só faziam
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a situação ficar pior. Uma coisa idiota pulou na sua cabeça, um versinho, um chamado. Faca, fogo, fúria. De onde era mesmo? Era uma trompa, ele sabia, mas além disso... — Entendeu? Você está demitido. Jonas acertou um soco no meio da mesa, um parafuso saiu voando de uma de suas pernas e Berga fechou as mãos pequenas e rechonchudas nos braços da cadeira. Seus olhos pareciam dois ovos cozidos de tão grandes. Jonas ofegava. Um retrato de um cachorro caiu de rosto pra cima, um boxer tigrado, com cara de mau. — Mas... Mas o quê... Filha da puta, você acha que tá aonde? Jonas acertou outro soco na mesa, que dessa vez não aguentou e se rachou no meio. O chefe segurou os braços da cadeira mais uma vez e se encolheu, soltando um gemidinho. Jonas ficou ali, com a mão fechada sobre a rachadura, olhando nos olhos de Berga. — Sua mesa é uma merda mesmo — Ele disse — É bom que você compra outra. E saiu, batendo a porta atrás de si. Berga ficou um minuto ainda paralisado, olhando para a porta, e depois começou a juntar suas coisas. O retrato do boxer estava esmigalhado. Jonas estava sentado no banco da praça com o celular na orelha, sem escutar muito bem o que Cella falava, mas compreendendo perfeitamente o que estava acontecendo. Ela chorava, falando qualquer coisa sobre o incidente e de como Jonas era imprevisível, e que Deus a livrasse se outro incidente acontecesse, não saberia o que dizer e como encararia a vizinhança. Sentado no banco da praça, Jonas observava os pombos,
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os passantes e os cachorros sem pensar em nada, sem sentir nada. Batia os pés no chão cada vez mais rápido, e dava soquinhos no banco, que estralava feio a cada golpe. Ele não percebia que estava batendo forte demais. Observava os cães, e eles observavam de volta. Um vira latas que abanava o rabo para um casalzinho parou de pular sobre as pernas e sentou-se rígido, com o olhar voltado para Jonas. Ele mal piscava, e não respondia aos chamados dos dois, que logo se cansaram e foram embora. Logo outros três vira-latas, com caudas pra cima e corpos sardentos, também se sentaram e dirigiram seus olhares para o banco onde ele estava largado feito um saco vazio. Logo até os cães em coleiras se sentaram e olharam para ele, e antes que pudesse perceber alguma coisa estranha, uma dúzia de cachorros já brincava de vamos ver quem aguenta ficar sem piscar? Um grande rotweiller se destacou do grupo, deixando seu dono para trás, e foi correndo até o banco, sentando-se aos pés de Jonas. Olhou para ele e começou a falar. — Você é como nós — Disse, na sua voz grossa e poderosa — Nosso irmão. Jonas se levantou assustado, e o cão não estava mais lá. Tudo estava completamente normal na praça. Cella gritava ao telefone. — Você não vai pelo menos dizer alguma coisa? “Não”, ele queria dizer, “Não vou dizer nada”. Não disse, mas fez melhor. Tirou o celular a orelha e o atirou no asfalto, transformando o aparelho num monte de peças e cacos. O plástico começou a derreter, e depois de alguns segundos não havia nada na pista que pudesse lembrar um celular, só uma poça preta de metal e plástico derretidos cristalizando-se em alguma coisa nova e sem forma que fazia Jonas se lembrar da
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Bolha Assassina. Desviou os olhos e foi caminhando na direção de casa, deixando para trás uns cinco moleques que cutucavam a coisa com gravetos e olhavam para ele como se olhassem para um deus. Estava bem longe de ser um. A fumaça feria seus olhos, o calor fazia seu rosto arder, e seus cabelos loiros estavam cinza pela fuligem. Jonas observava a cena sem pensar muito, só absorvendo devagar o que estava vendo. Havia uma casa, sim, no seu bairro, que estava em chamas. Coitado do dono. E quantos bombeiros! Jonas nunca havia visto um caminhão de bombeiros trabalhando antes. Um homem com roupa preta e chapéu amarelo o empurrava para longe, meio com violência, e Jonas acabava indo com ele mesmo sem entender bem por que. Não era como se o fogo fosse sair voando pela janela e correr atrás dele, Deus, só queria ver o espetáculo. Fogo é legal. Faca, fogo, fúria. — Não tem mais nada pra salvar lá, senhor. Não vai dar a louca aqui, hein? Calma aí. Vem cá comigo. — Não — Disse Jonas — Eu já vou indo. Só quero ir pra casa. O bombeiro fez uma careta e o empurrou mais um pouco, para uma ambulância do resgate que estava ali, e uma paramédica bonitinha insistia em colocar uma máscara de oxigênio no seu rosto. A moça dobrou sua orelha e agora ela ardia, mas ele não sentia a dor. Só um incômodo leve, uma coisa que ele passaria sem, mas que não era assim tão problemática. — Tira essa merda de mim, que saco — Ele disse — Só quero ir embora.
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E tudo ficou claro como o dia. — Oh merda — Disse baixinho, e a paramédica (não era uma coisinha linda, aquela moça?) só fazia shh e dizia que tudo ia ficar bem — É a merda da minha casa. Do outro lado da rua, um rotweiller estava sentado, observando o fogo, e se levantou quando Jonas disse seu lamento nos braços da moça, com as orelhas em pé e o rabo balançando devagar. Cruzou a rua de pedra-sabão e foi indo na direção do bombeiro, sempre abanando o rabo, e Jonas desviou o olhar para responder qualquer coisa para outro paramédico. Quando procurou o cachorro de novo, quem estava lá era o doutor Gregório, conversando com o bombeiro que lhe dissera para não dar a louca. Jonas não conseguia ouvir muito bem o que eles diziam, só capturava alguns fragmentos, palavras soltas, “amigo” e “uma tragédia”, e o bombeiro respondia qualquer coisa enquanto passava a mão na cabeça. O fogo parecia muito irreal, amarelo demais, feroz demais, e sua visão ia ficando cada vez mais escura. O doutor se aproximou, andando devagar e sorrindo simpático, e Jonas imaginava que tipo de pessoa conseguia sorrir no meio de tanto fogo. “E com a minha casa no meio. Que belo médico esse meu”. Chegou à porta da ambulância e perdeu o sorriso, colocando seu rosto de sempre. — O senhor é parente? — Disse a paramédica bonitinha. — Não. Sou o médico dele. — A gente tá só administrando o oxigênio e... — Ele está bem — Disse o Doutor, e Jonas sabia que conhecia aquela voz. Era a voz das coisas sépia, a voz que fez Joel mijar no moletom — Ele vai vir comigo agora.
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O Abismo Olha de Volta
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— Senhor... — Chega. Ele vem comigo. A paramédica saiu pra rua e foi chorando até a esquina, onde acendeu um cigarro. — Eles sempre ficam assustados, mas se você pergunta por que, não sabem dizer — Disse — Não sabem o que fazer então se assustam. Olha aqui pra mim. Gregório estalou os dedos Jonas se sentiu melhor. Sua visão voltou ao normal, e ele conseguia pensar novamente. Estava sem trabalho, sem mulher e sem casa. “Era melhor ter ficado no delírio”, pensou. — Eu perdi tudo — Disse. — Tudo. — Vamos, vou te tirar dessa fumaça. Você precisa de um lugar pra ficar. Jonas concordou, mesmo que todos os seus sentidos berrassem para que ele desse o fora dali o mais rápido possível. O que poderia fazer? Morar embaixo da ponte?. “Não tinha pra onde ir” daria um bom epitáfio, no final. Tão bom quanto qualquer outro. O apartamento do doutor era uma coisa estranha. Refinado, de bom gosto, mas estranho. Todos os móveis eram no estilo colonial, de madeira de lei, e um cheiro de óleo de peroba emanava de todas as coisas. “Deus, quem é que ainda usa óleo de peroba?”. A sala de estar era exatamente como Jonas imaginava que uma sala de um psiquiatra deveria ser, com uma estante de livros enorme recheada de volumes de capa dura, poltronas com estofado de veludo, um tapete vinho e marrom claro e uma lareira enorme. “Uma lareira num apartamento?”, Jonas pensou,
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mas não se importou muito. Tudo parecia estar em perfeita ordem, e era a ordem que importava. Sentou-se na poltrona perto da lareira e o doutor sentou-se ao seu lado, fumando um cachimbo escuro. — Está bem confortável? — Disse. — Não muito. Não é a minha casa. — Agora é. Sinta — se em casa. — Não quero. Não é minha casa. Gregório olhou nos olhos de Jonas, e eles refletiam o fogo da lareira, parecendo estar acesos com mil fogueiras. — De onde eu vim — Ele disse — As coisas são diferentes. Você não pode voltar quando ofende o chefe. E eu... Bem, pode não parecer, Jonas, mas eu sou como você. Também perdi tudo. Por isso, quando digo pra se sentir em casa, sinta-se. Tirou um maço de cigarros da jaqueta e acendeu um, deixando o cachimbo pela metade. — Quer? — Disse, e Jonas aceitou seu primeiro cigarro em cinco anos de abstinência. Achou estranho que a única coisa que passou na sua cabeça fora um belo “foda-se” enquanto puxava a fumaça para dentro. Imaginava que teria culpa, remorso ou um prazer indescritível, mas só o “foda-se” estava lá. — Tem poder no mundo, Jonas. Poder nas pessoas, pessoas que você nunca imaginaria. Nos ritos, nas danças, no sexo, nos gritos e na fúria, e pra cada tipo de poder, existe alguém que o carrega. Alguém que nasceu propenso para ele. — Aquela coisa de poder do pensamento positivo e essas palhaça-
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das? Acho idiotice. — Eu estou falando de poder de verdade, rapaz. Poder para mudar as coisas, para transformá-las ou destruí-las. Poder. Doutor Gregório estalou os dedos e as chamas da lareira ficaram mais altas, fazendo a lenha passar de um tec-tec tranquilo para uma sinfonia infernal de estouros e tiros. — Controle remoto. — Disse Jonas — Como é mesmo o nome disso? Clapper?. Bem bolado. — Clapper. É mesmo. Um que faz isso aqui, olha. Jonas olhou, e o doutor segurava uma bola de fogo na mão como se a coisa flamejante não passasse de uma bolinha de tênis. Era estranho olhar, ela ficava surgindo e aparecendo o tempo todo, como se estivesse num plano nebuloso entre a consciência e o sonho. Jonas podia vê-la, estava bem ali, na sua frente, mas não conseguia dizer como ela se parecia exatamente. Se lhe perguntassem, só conseguiria dizer que havia fogo. Bastante fogo. — Essas coisas não tem lugar no mundo de vocês. Esse poder. Vocês são criaturas racionais, jamais aceitariam algo que extrapola suas regras. Mas você, Jonas, você consegue ver. Pode ver as barreiras do mundo se contraindo, se endurecendo e cedendo em alguns pontos. Você já olhou para o outro lado. Sabe que não foi loucura sua. — Não sei, não — Disse Jonas, ainda tentando ver todas as nuances da bola de fogo, que insistiam em escapar. — Sabe. E sabe que eu posso te ajudar. Não vai recuperar nada, mas vai ganhar coisas, isso eu te garanto. E Berga? E Cella? Eles te largaram. Eu posso te ajudar com isso.
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Doutor Gregório apagou a bola de fogo e estendeu a mão, enquanto mantinha o seu rosto habitual. — Qual é a do cachorro, doutor? Gregório não respondeu, apenas fez um leve aceno de cabeça para a mão estendida, como se dissesse para apertá-la e descobrir. Jonas sentia que estava na beira de um abismo e olhava para baixo, e sabia o que diziam sobre abismos. Suspirou alto, largou outro “foda-se” e apertou a mão do doutor. Ele te olha de volta. Faca, fogo, fúria. Jonas se lembrou. Era do Senhor dos Anéis. *** Túlio, de cara fechada para a noite, enfrentando o vento frio com sua velha jaqueta cinza, segurava um pedaço de papel numa mão e uma rama de urtiga na outra enquanto caminhava favela adentro. “Velho truque”, pensava, “tão velho quanto eles.”. Andava preocupado, olhando para os becos e as vielas, procurando sinais de que estava sendo seguido. Não havia vivalma em qualquer lugar, estava frio demais. Era a lua das bruxas, e era meia noite. Depois de ter andado por alguns minutos, estacou na frente de uma viela apertada e fedorenta, suspirou fundo e entrou. As paredes ao seu redor eram pintadas com cal e manchavam sua jaqueta enquanto ele caminhava, e ele dava graças aos céus por essa ser o maior das suas preocupações naquele lugar. Ali ele andava despreocupado, a lua cheia iluminava seu caminho e lhe dava força, e ninguém teria coragem de lhe fazer algum mal no terreno da Mamãe. Se ousassem, tudo já estaria perdido, e o seu corpo só iria ser mais um em milhões. Olhou para trás,
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para a entrada da viela, e percebeu pequenos pontos verdes brilhando na escuridão. Havia olhos ali. Túlio sabia que eram olhos de cães. Atravessou o caminho e chegou num barranco coberto de névoa, com uma ponte que dava para um casebre mais além, sob uma colina que flutuava no mar branco da neblina. “Bom” pensou, “Cruzei a fronteira”. Atravessou a ponte, que rangia hostil, e bateu na porta de madeira. Uma fresta pequena foi aberta, e Túlio podia ver a claridade das velas lá dentro. — Que é? — Disse uma voz rasgada, e uma mão ossuda e morena se estendeu pela fresta — Que ‘cê qué? Túlio pôs o papel na mão rústica, que se fechou e correu para dentro. — É o Cão. Ele arrumou alguém. Um leve chiado cáustico ecoou de dentro da casa, e Túlio soube que Mamãe estava acordada. Não tinha nada a fazer agora. Deu meia volta e foi-se embora por onde entrou. *** Da esquina, um homem com uma moeda observava as coisas tomando rumo. Jonas apertando a mão do doutor, a Mamãe cuspindo o vinho, uma menina morena e desgrenhada chorando, assustada. E a moeda ia pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo, sem parar por um segundo sequer, e cada ida era uma cena, e cada cena era uma lembrança e uma novidade. O homem tinha muitos nomes e todas as identidades, e se quisesse, podia ter o que quisesse pra continuar sendo o que era por bilhões de eras. O que escolhera ter? Uma moeda. Uma esquina. Pra que mais? A humildade era algo que pregava, e ali estava a perfeita
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mostra dela. Não é ter pouco. Não é decidir não ter ou qualquer coisa assim. Moeda pra cima, moeda pra baixo, moeda pra cima de novo. Humildade é ter exatamente o que se precisa e estar bem com isso. E aquele homem não precisava de mais do que uma moeda e uma esquina. Desencostou-se do muro e mergulhou no mundo. *** Em algum lugar, uma escuridão se mexeu e riu.
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E
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ra a faixa de pedestres ao lado do clube.
Ele estava esperando o sinal fechar, mesmo que não tivesse nenhum carro à vista. Não havia ninguém ao seu redor também. O dia devia estar nublado, porque tudo estava meio acizentado. Quando ele começou a atravessar a pista, alguém encostou uma arma nas suas costas. Ele sabia que era uma arma pois sentiu o metal frio contra sua pele, mesmo através da roupa. Por acaso se lembrou que dizem que não se ouve o tiro que te mata. E ele realmente não ouviu nada. Caiu sem forças no chão, de cara no asfalto, sentindo o sangue molhar suas costas. Sentia cada vez mais frio até que, de repente, não sentiu mais nada. Breu. Não pensava, não ouvia, não enxergava e não sentia. Só o vazio. Daniel acordou meio assustado. Seu coração, que já estava acelerado, chegou a doer quando ele sentiu as costas úmidas. Se levantou depressa, esvoaçando o lençol, mas a cama não tinha manchas. Era apenas suor. Tinha sido só um sonho. Respirando fundo pra se acalmar, ele olhou no relógio. O sol já ia nascer, então ele começou mais cedo sua rotina de trabalhador dedicado. Cafeteira passando café, banho rápido, pão com manteiga e Daniel já estava fora de casa antes de seus pais acordarem. Hoje não queria conversar com ninguém.
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Chegou no trabalho, depois de enrolar no caminho para não chegar muito cedo. Fez sua parte nas conversas genéricas, meio de má vontade, só pra não recuperar a fama de antissocial da época do colégio. Every time I look in the mirror “É, o dia tá mó bonito mesmo.” All these lines in my face gettin’ clearer “Nem vi o jogo, cara. Pô, torço pra Portuguesa sim, mas nem acompanho. Ah, perdi pro seu time, é? Haha sacanagem.” The past is gone “Bizarro, tô com Dream On na cabeça. E pô, faz muito tempo que não ouço Aerosmith.” It went like dusk to dawn “Ah é, né. Nem vi o jornal ontem, mas eu também ouvi falar que a cidade tá cada vez mais violenta.” Isn’t that the way? “É, os hospitais tão uma merda, como sempre né. Ah, cara. Vejo muita gente ainda reclamando dos cubanos, mas sei lá. Não sei se tá certo ou errado, mas todo mundo sempre lembra de criticar o preconceito dos americanos com os mexicanos.” Everybody’s got their dues in life to pay. “Na novela a mina empurrou a rival da escada? Haha uma amiga minha diria exatamente que ela ‘devia é ter arrastado a cara da vagabunda no asfalto!’ ”
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E assim a manhã foi passando, com Daniel atualizando os bancos de dados e conversando. Às vezes se distraía pensando que tinha mais um monte de quests pra completar em Skyrim, antes de platiná-lo. Era tanta coisa, e coisas tão banais, que ele estava quase desanimando e partindo pra outro jogo. Ser “garoto de recados medieval” tava sendo dose. Bem podiam ter mais missões com história. Nem exploraram direito o fato do personagem ser descendente de dragões, caramba. Mas a bem da verdade, lá no fundo, ao lado dos falsetes de Steve Tyler, ele ainda repassava o sonho na sua cabeça. E se ele fosse até o clube? Será que morreria mesmo? Era um aviso ou um chamado? Paulo Coelho diria que a resposta estaria dentro do próprio Daniel. Como era mesmo? “Para a pessoa comum, a pedra no caminho é um sinal. Para o Guerreiro da Luz, ela é um desafio.” Algo assim. Mas agora, ele sentiria mesmo falta de estar vivo? Alguém sentiria falta de Daniel? Sua rotina era trabalhar e voltar pra casa pra jogar no computador. Empurrava com a barriga o sonho de criar seu próprio jogo, com a sempre presente desculpa de “estar estudando gêneros e estilos diferentes”. Uma vez, ele ouviu alguém dizer que você deve levar uma vida que desejaria que seus filhos tivessem, e que sentiria orgulho de contar para os seus netos. Daniel podia ter muitas dúvidas em sua mente, mas essa não era uma delas.
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Essa vida vazia ele não desejava pra ninguém. Ele se controlou pra não gritar de frustração, ali mesmo no meio de todo mundo. Daniel estava levando essa rotina já há quase dois anos e nunca teve esses questionamentos na cabeça. Nas madrugadas de insônia, ele se distraía jogando e voltava para a cama quando estava quase desmaiando. Sem problemas, sem crises. Nada de ficar pensando muito no assunto. Mas não dessa vez, ah não. Dessa vez a insônia resolveu deixá-lo em paz. O quê ele faria então? A agonia de estar ali normalmente só o fazia se sentir sufocado. Mas hoje estava mais próximo da sensação de estar se afogando em seu cubículo. Antes que a sensação ficasse insuportável e ele fizesse alguma coisa mais drástica, Daniel tomou uma decisão. A primeira grande decisão do dia. Com a coragem de alguém que decide livrar o mundo de todos os dragões e reunir todos os quatro Cristais da Luz em um único dia, Daniel resolveu encarar o que quer que o Destino lhe reservasse. Salvou seu trabalho, se levantou e foi até seu chefe. — Seu Souza? — bateu na porta aberta da sala do gerente. — Hm? Ah, oi, Daniel. Senta aí. Posso te ajudar? — Ééé… — Ele quase perdeu a coragem, mas resolveu fingir que esta era apenas outra sidequest de Final Fantasy. A tática funcionou: —
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Será que eu posso ir embora por hoje? — Você tá sentindo alguma coisa? Tem uma caixa de remédio na copa, logo em cima da pia. — Não, não é isso… É que… — Você ainda tá de ressaca, né? Eu reparei que você nunca ia nas happy hours com o pessoal, você deve estar desacostumado. Pega uma aspirina lá e… — Não! Eu não estou passando mal! Eu só… Preciso ir. O calvo gerente o encarou por cima dos óculos por uns dez segundos, antes de dizer: — Tá bom. Vai lá. Não bate seu cartão, não. Depois eu assino ele. Mas você sabe que falta justificada ainda desconta no pagamento, né? — Sim. Não tem problema. — Então vai lá. — O chefe disse, voltando a atenção à tela de seu computador. — Tudo bem. Obrigado, seu Souza. — Urrum. Daniel ignorou os olhares curiosos de seus colegas enquanto pegava suas coisas e caminhava para fora do prédio. Não respondeu ninguém nem olhou pros lados. Lá fora, caminhou feliz, saboreando sua liberdade e apreciando este dia tão belo. E daí que seria descontado de seu pagamento? Existem coisas que o dinheiro não compra e essa sensação com certeza era uma delas.
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A cidade era a mesma de sempre, mas ela parecia mais bela aos seus olhos. Aquele prédio sempre teve essa arquitetura antiga? Aquele parque sempre teve tantas árvores? Esse músico de rua sempre tocou tão bem? Caramba, sua cidade sempre teve tantas garotas bonitas? Na cabeça dele, soava tão clichê quanto as falas de seus RPG’s de computador. Mas ter tomado essa decisão hoje poderia, sim, ser o começo de uma nova vida. Daniel se sentia invencível. I know, nobody knows Trabalhando com desenvolvimento de jogos, ele podia muito bem trabalhar à distância. Where it comes and where it goes Ele podia montar um estúdio próprio, na sua própria casa. I know it’s everybody’s sin Ei, sua casa! Ele finalmente poderia morar sozinho! You got to lose to know how to win Com certeza ele conseguiria trabalhar com muito mais afinco se não tivesse que prestar contas a ninguém. Ele só precisava confirmar sua teoria. Talvez se encarasse a morte nos olhos, ele veria que seu destino era muito maior que ficar inerte enquanto o mundo girava ao seu redor. Seria o último dia na vida de
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Daniel que ele seria só mais um NPC na aventura de outros heróis. Uma última vez ele iria colocar sua vida nas mãos da sorte. Depois, seu caminho e seu caminhar seriam seus e apenas seus. Mas… E se ele morresse? Daniel diminuiu o caminhar, pensativo. Talvez hoje fosse mesmo o último dia de sua vida. Ele não deveria estar fazendo alguma coisa que valesse a pena? Alguma coisa grandiosa? Se morresse agora, quantos arrependimentos levaria para o além? Muito mais do que gostaria, é verdade. Ele resolveu parar numa lanchonete ali no centro mesmo. Tava perto da hora do almoço, disse a si mesmo. Não é covardia, ele realmente estava com fome. Quase acreditou. Pediu uma coxinha de frango com catupiry e um suco de maracujá. O guardanapo já veio transparente e o suco parecia aguado demais para sequer ter cheiro de maracujá. Mas Daniel comeu feliz. Era isso mesmo que ele esperava tendo entrado ali. Infelizmente, aquele não era um lugar para comer e pensar. A televisão estava ligada no programa de auditório da ex-âncora de jornal e os funcionários estavam conversando e rindo em voz alta sobre a capa de alguma Playboy. Daniel se levantou, pagou a conta e saiu de novo. Voltou a caminhar, dessa vez devagar, com as mãos nos bolsos. Sempre ouviu pessoas falarem que saíam pra “clarear a cabeça”. Quando Daniel
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tentava, sempre se sentia mais confuso do que antes de sair de casa. Eram muitas pessoas passando por ele, todas com aquele olhar decidido de quem já sabe o que quer e isso o deprimia um pouco. Talvez fosse a hora de Daniel descobrir que também poderia ter aquele olhar. Ok. Fim das dúvidas. Ia colocar em prática seus planos. Continuaria no seu emprego só até terminar de aprender a programar e, então, fundaria seu estúdio. Com certeza tinha muitas ideias para colocar em prática. Histórias que revolucionariam o mundo dos jogos. Implementaria jogabilidades inovadoras que fariam todos pensarem “Queria ter tido essa ideia.” Pensando agora, ele também iria precisar aprender a fazer o design de jogos, além dos gráficos e personagens. Será que tinham cursos presenciais disso? Daniel sabia que não era muito bom autodidata. Mas isso era pro futuro! Agora ele já sabia o que fazer. Seu plano era perfeito e só tendia a melhorar. Ah, trabalhar de casa. Só de pensar nisso, ele já voltou a se apressar para a fatídica faixa de pedestres. Half my life’s in books’ written pages Ei, se ele ia trabalhar à distância, por que tinha de ser de casa? Lived and learned from fools and from sages Ele podia colocar o notebook na mochila, mais uma muda de roupas, e sair por aí. You know it’s true
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Estava decidido. Seria um nômade. All the things you do Começaria como programador freelancer, pra juntar um dinheiro, e depois viveria dos royalties de seus próprios jogos. Dormiria em hoteis, ou ao relento mesmo, sob as estrelas. Come back to you Conheceria novos países, novas culturas e novos horizontes. Essa era a vida que ele sempre quis levar, só tinha demorado até hoje para descobrir. Ela estava ali, ao alcance da sua mão. Sempre esteve na verdade, ele que nunca tinha percebido. Daniel caminhou decidido rumo à sua nova vida. Ia, sem olhar para trás, até o lugar onde sonhou que morreria. Ia enfrentar seu próprio boss. Que maneiro. Lá estava o clube, com suas portas fechadas aos nãosócios. Talvez Daniel se associasse, caso tivesse vontade. Não haviam mais limites. Finalmente, depois de caminhar na calçada até chegar ao lado da faixa de pedestres, Daniel parou. O sol estava belo, mas quente, e ele já estava suando nas pernas debaixo dos jeans e nos ombros, por causa da alça diagonal da mochila. O sinal ainda estava aberto para os carros. Um guarda de trânsito estava ao lado da faixa e disse algo a Daniel, que ainda cantarolava a mesma música na cabeça. Ele entendeu: “Pode passar que eu seguro.”
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E Daniel sorriu ao guarda e começou a atravessar a rua. Sing with me. Mas o que o guarda disse foi: “Pode passar a mochila.” Sing for the year. Irritado por ter sido ignorado, o “guarda” ergueu alguma coisa na mão. Sing for the laughter n’ sing for the tear. Daniel descobriu que era mentira o que diziam. Ele ouviu todos os três tiros. Sing with me. Caiu, perdendo as forças. Ouvia pneus derrapando. Num último esforço, se apoiou com as mãos e se virou pra cair virado pra cima. If it’s just for today. Aceitou a morte sem medo, talvez inspirado pelo dia que tinha levado. Se ia morrer, então que fosse olhando pro céu lá em cima, e não pro asfalto sujo aqui embaixo. Maybe tomorrow the good Lord will take you away. O dia estava muito bonito mesmo. Cantou baixinho, enquanto ia perdendo a consciência: — Dream on, Dream on… Dream on…
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Lucas Rueles
Uma obra pode ter diversas funções, ela pode simplesmente contar uma história, ela pode analisar fatos políticos ou econômicos, ela pode ir ao fundo de nossas mentes, ou ela pode simplesmente discutir um assunto aleatório do cotidiano. Mas algo é inegável toda obra possui sua função. O que torna Martin Page um autor incrível é exatamente sua capacidade de transcender estas funções dando a sua obra um tom satírico que permeia questões variadas, dando um pouco da sua opinião sobre tudo de uma maneira, leve e divertida.
Biografia
Martin Page
Page é um escritor francês nascido em 7 de fevereiro de 1975. Tendo passado a maior parte da sua juventude no bairro dos subúrbios de Chateau Rouge, em Paris. Atualmente reside em Nantes. Ele destacou o contraste de Paris e seus subúrbios em uma entrevista: “Eu vivi nos subúrbios aos sul, por sete anos. Como o persoangem principipal do meu livro (Talvez uma história de amor, 2008), eu amo esta cidade, porque sei o que é não viver, viver em lugares onde você não pode fazer nada sem um carro. Minha teoria é que para amar Paris, você tem que primeiro ter vivo em outro lugar”*nc. Tendo se formado na universidade, mas para um ramo muito específico das ciências humanas, acabou por estudar várias disciplinas, como direito, psicologia, filosofia, história da arte, sociologia, antropologia e linguística. Durante seu estudo, trabalho em muitos empregos: vigia noturno, NC: O mesmo vale para Curitiba, e qualquer outra cidade grande.
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Lucas Rueles
faxineiro em festivais e monitor de embarque foi alguns deles. Apesar de ter publicado seu primeiro romance apenas com 25 anos (Como me tornei um estúpido, 2000), Martin admite ser atraído pela escrita desde a infância. Sua obra consiste principalmente de romances. Ao lado de seu trabalho como romancista, Martin Página era um ativista em sua carreira inicial. No entanto, ele aborda temas mais sérios, como em Le garçon de toutes les couleurs (Sem tradução ainda no Brasil), onde ele fala da agressão infantil, dando-lhe uma abordagem poética. Ele publicou um ensaio em Ramsay (2007), que corresponde ao gênero que ele gosta. Seus romances foram traduzidos em muitas línguas. Desde 2011 ele também escreve um blog sob o pseudônimo de Pit Agarmen (anagrama de Martin Page) e publicou um livro publicado por Robert Laffont com este mesmo pseudônimo.
“Por algum tempo, é possível fingir que não se vê ou que não se acredita nisso, mas, nessa mesma noite, ele se sentia obrigado a admitir que era, sim, um vitorioso”. Eu encontrei Martin Page em um dos momentos mais tensos de minha vida, e por alguma questão de sorte, ou destino eu encontrei o livro certo para aquele momento, porém, deixo aquele livro de lado para resenhar aqui o livro dele que iria transformar meu ano de 2013. A gente se acostuma com os extremos do mundo, ou como foi tra-
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duzido por algum motivo no Brasil: A gente se acostuma com o fim do mundo. Publicado pela Editora Rocco no selo Safra XXI. E traduzido num excelente trabalho de Bernardo Ajzenberg que conseguiu captar e manter a essência de boa parte do sarcasmo de Martin Page o que não deve ter sido um trabalho fácil. Acredito que o primeiro pano de fundo de Martin Page, é o próprio autor refletido na obra, em um contato intimo como você, então é impossível deixar de citar o trabalho de Ajzenberg, que deu uma atenção toda especial a esses trejeitos e tiques estilísticos que indicam que Page está se vendo, seja em Elias, em Margot, e principalmente ao ver outras pessoas a quem tem carinho como no caso de Zoé. Manter este mundo é um incrível desafio do tradutor, e o leitor atento, mesmo aquele que nunca viu a obra original, não sabe francês, (como é o meu caso), pode diferenciar esta presença ou ausência por alguns fatores. Primeiro: escolha de palavras, usos coloquiais, que talvez não teriam um sentido em um mundo parisiense, mas que se aproximam em sentimento de toda a carga necessária. Segundo: manutenção da agressividade do livro, sem se sentir preso a uma necessidade de atenuar os discursos, é uma das coisas que me irrita das traduções atuais, muitas vezes elas parecem ter medo de nos passar as frases chulas escritas pelos autores em outras línguas. E isso é importante principalmente em um autor como Martin Page. Terceiro e ultimo: não tentar entender os pontos ditos pelo autor, mesmo entendendo-os, em momento algum o tradutor transpassa seus
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próprios sentimentos da obra, deixando prevalecer sempre o conteúdo original. Manter a obra como ela é e passá-la da maneira mais íntegra possível é isso que faz um bom tradutor e esse livro me agrada ainda mais por conta disso, foi isso que me fez ter certeza de estar conhecendo o verdadeiro Page, mais tarde comprovado, pelos textos que eu mesmo tento traduzir via Google Translate de seu Blog como Pit Agarmen (o qual também indico leitura.
“Segurava um copo vazio. Não se pode beber indefinidamente. Não se pode fumar a cada segundo. É uma pena. O cigarro substitui o amor, a família os filhos, a casa de campo. Ele mata? Claro que sim. A morte é justamente um substitutivo para o amor, a família, os filhos e casa de campo.” O tom é tudo em uma obra, a maneira como você se porta diz quem você é, como se posiciona ou elucida os fatos tudo isso está conectado de tal maneira a expor um mundo, que existe além do cenário: A mente dos personagens. Martin não define Paris, ou qualquer parte do cenário de forma veemente a menos que isso tenha um motivo claro, definir a mente de seu personagem relacionado aquele cenários. Ele não escreve uma frase sarcástica ou um pensamento sobre a vida por simples divagação isso está conectado fortemente a essência do que seus personagens são. É uma construção literária diferente? De alguma forma ela difere do que está sendo produzido aqui? Ou o que foi produzido no passado?
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Se formos analisar a maior parte de nossos autores contemporâneos não, um de nossos expoentes literários é Milton Hatoum que faz exatamente esse tipo de construção, porém, é claro com suas próprias características, e se a opção for se remeter ao passado podemos facilmente comparar o estilo de Page, ao realismo de Machado de Assis. Nessa questão é fácil classificá-lo como um neo-realista, comentando nossa visão contemporânea através de nossos desejos profundos e nossas incongruências psicológicas. E se munindo de sua principal arma, o sarcasmo, pontua: o quanto a sociedade atual, como suas luxúrias e volúpias, anda vazia de sentimentos e compreensões, que para ele são extremamente simples.
“A juventude não entende nada de sentimentos, acha que ama, mas não faz mais que representar cenas de ‘sitcom’. O amor requer maturidade e inteligência, duas qualidades que não podemos ter antes de conhecer o que é a solidão e o azedume do tempo que passa.” Seu comentário ideológico, não será aqui tratado, é claro que isso faz parte de seu mundo, mas é uma visão tão particular de mundo, que prefiro deixar isto a parte, não perfaz o livro e nem o estraga. Mais do que uma crítica ao sistema, ou a ideologias, o livro é uma crítica, (assim em Como me tornei um estúpido), a como tratamos tudo isso. Ele parece deixar isso tudo claro, no momento que seu personagem decide viver, (isso mesmo, viver), o que para ele é algo impossível de
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aceitar, ele se prendeu tão forte aos seus objetivos pessoais palpáveis, que ele pareceu se esquecer dos inatingíveis. É como se ele continuasse a crítica do seu livro anterior, é como se ele estendesse a discussão para um segundo livro, com um personagem totalmente diferente, em um mundo totalmente diferente. Fazendo este paralelo, preciso comentar um resumo breve de como eu vejo seu primeiro livro, Como me tornei um estúpido, nele Page discute a existência de homens que deixam de ser tudo aquilo que são simplesmente para se alocar na sociedade em que vivem. Aqui, Elias, deixou as coisas que ele podia alcançar serem mais importante que os sonhos que ele considerava inalcançáveis. Por isso é tão importante o contraponto com Zoé, aquela que acreditou em seu sonho e continuou, mas no fim teve que se contentar com uma vida ínfima. Porém, a grande verdade sobre Zoé, ou sobre qualquer contraponto próximo a Elias, é que todos eles, não conseguem sua felicidade, ou não tem felicidade total, porque em algum ponto recuaram, em algum ponto eles se consideraram indignos dessa felicidade total, e se contentaram com algo pela metade, ficaram felizes com substitutos para tudo isso. E ai aparece Margot, e o que faz ela mexer com o mundo dele é isto, ela nunca negou seus sonhos, e sua tristeza é exatamente forçada, ela na realidade não existe, por que por mais que exista um ar de lúgubre nela, ela nunca se negou em viver o que ela era. E por isso, Elias simplesmente, não consegue se afastar dela, porque ela é aquilo que ele quer, é o que falta em sua vida ela tem, e o que falta na vida dela, ele tem. Elias é a sanidade, as pessoas que sabem ponderar seus sonhos, mas ele perdeu o controle da sanidade, se tornando insano por ser são, Mar-
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got é o contrário, a insanidade de alguém que se torna são por ser insano.
“Quando retorna a seu país, o viajante não sofre apenas com a defasagem causada pelo fuso horário. Se as horas ganhas ou perdidas nos fazem viver no contra fluxo do tempo, isso não dura muito, logo recuperamos o ritmo local.” Este é o nosso sentimento ao finalizar a obra, viajamos aos confins das mentes de outras pessoas, tivemos contatos com eles, e os investigamos a fundo. E agora nos sentimos perdidos, estamos perdidos em relação a nossa mente, é hora de nos avaliarmos. É estranho eu pensar neste livro como um livro de auto-ajuda, porque ele não tem esse propósito, mas ele me faz feliz, sempre que leio um livro, ou um texto de Martin Page eu me sinto feliz, me sinto motivado. Como isso? Afinal Martin Page é um pessimista, ele deixa isso claro na sua obra, em diversos pontos, eu também sou, mas pouco a pouco, você percebe que ele é um pessimista que entende que viver a vida é a única forma de fugir dos males, e isso é algo excelente. É preciso entender que esse epicurismo*nc não está na obra, ele é entendido e absorvido, ele é passado pelas passagens e pelo sentimento de que para alguns as coisas melhoram, se eles quiserem melhorar. É uma constante importante, tanto na psicologia, como na literatura, na psicologia acredito que a necessidade da vontade do paciente em melhorar seja algo meio óbvio, mas e na literatura como isso funciona? Na literatura funciona quando o leitor quer fazer parte do texto, en-
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tão o texto o medica, ele reflete sobre as passagens deste texto e consegue transpor essas idéias para dentro de si de uma forma forte e consistente. É como se simplesmente pegássemos e vivêssemos o texto junto aos personagens, como se evoluíssemos e aprendêssemos de forma artificial com seus erros e acertos. Se isso é possível em uma história de ficção, e se esse valor realmente vai ser passado a você pela obra, não custa tentar. Mas considero Martin Page, além de um bom pensador sobre quem somos em nossos modelos sociais atuais, um bom remédio para os humores de quem é, assim como eu, meio amargo.
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Como Escrever Sobre
Rafael Marx
De todas as técnicas aplicáveis a um texto literário em prosa, a mais importante, como toda certeza, se chama “Show, Don’t Tell”. Numa tradução livre, mas precisa, ficaria “Mostre, Não Conte”. E o nome é preciso. A técnica, basicamente, se traduz por não contar algo numa história, mas sim expressar a mesma coisa com mais palavras e através de uma situação narrativa. Parece simples, mas para alguns é difícil de compreender. Basicamente, uma situação em que estaríamos contando algo seria: “Julia era linda.” É simples, e talvez até aceitável, mas é também tão imensamente pobre para uma situação cheia de potencial. A mesma coisa poderia ser dita de forma mais extensa, assim: “Quando Julia atravessava as calçadas era acompanhada pelo olhar distraído das centenas de homens que cruzavam com ela e até então se encontravam desavisados da existência de algo tão belo como ela. Era tão bela que às vezes isso até lhe causava problemas.” A segunda descrição é muito mais rica e até mesmo dá uma ideia da beleza de Julia, o que a primeira não faz. Além disso, apresenta um gancho para o autor utilizar posteriormente em sua história. Pensemos em alguns exemplos de como a técnica já foi empregada. Uma utilização muito famosa mas quase imperceptível é na série Harry Potter. No primeiro livro, ao invés de simplesmente dizer que Harry é um garoto não muito apreciado pelos tios responsáveis por sua criação, a autora prefere dizer que ele fora obrigado por estes a morar um pequeno espaço sob uma escada. Esse momento é tão simplesmente descritivo sobre a relação familiar apresentada que ela rapidamente se
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livra da situação posteriormente e coloca o garoto com um quarto. Outro caso, desta vez apresentando a possibilidade não descritiva que a técnica possui é a festa de aniversário de Bilbo Bolseiro no começo do livro O Senhor dos Anéis. A cena é descrita com ações e ligações entre os hobbits presentes, e não apenas com descrições de cores e das coisas apresentadas ao longo do aniversário. Entretanto, por mais importante que seja a técnica, ela não deve ser abusada. O excesso de uso da Show Don’tTell ao longo de um único texto em prosa fará com que a técnica se desgaste e até mesmo se torne irrelevante pelo fato de não possuir um contraste no texto que faça a importância daquelas ações serem apresentadas. Um caso em que a técnica se mostra desnecessária e até atrapalharia caso utilizada seria algo como: “A bala cruzou-lhe o crânio.” A simples utilização da frase descritiva comum, sem a “firula literária” da técnica, demonstra uma seriedade bruta e brusca no acontecimento, especialmente se apresentada em contraste como uma série de utilizações da técnica. Como toda técnica literária, esta também não é obrigatória.
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